Ana Lc3bacia Texto Gregc3b3rio
Ana Lc3bacia Texto Gregc3b3rio
Ana Lc3bacia Texto Gregc3b3rio
Tomarei como ponto de partida o próprio título deste artigo, cujas aspas, aliás,
pretendem apontar para um dos problemas centrais que vêm mobilizando a crítica ao
longo do tempo: a autoria da obra atribuída a Gregório de Matos. Por uma questão
metodológica básica, alguns fatos relevantes quanto à questão da autoria – e nem sempre
do domínio do público – devem ser aqui reiterados: 1) não se conhece texto autógrafo
de Gregório de Matos; 2) não há texto seu impresso em vida; 3) seus poemas foram
recolhidos, sem nenhum critério normativo, em códices manuscritos por copistas dos
séculos XVII e XVIII, que podem ter-lhe atribuído autoria da produção alheia. E mais:
até a época atual, apesar de algumas publicações da sua “suposta” obra completa, não
existe qualquer edição realmente crítica das poesias que costumeiramente lhe são
atribuídas1.
Decisiva para a fortuna crítica da obra foi a primeira biografia do autor – Vida do
excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra –, escrita no século XVIII
pelo Licenciado Manuel Pereira Rabelo. Texto apologético, em que a admiração
sobrepuja qualquer possibilidade de crítica, serve de introdução a uma extensa
compilação do códice gregoriano, sem indicação dos critérios que presidiram à sua
coleta: os textos foram recolhidos da circulação oral anônima ou transcritos das
legendárias “folhas avulsas” que circulavam na Bahia em fins do século XVII? Em
síntese, foram coletados de fonte oral ou escrita? Tais dúvidas ainda permanecem.
Outro ponto a destacar refere-se ao fato de o biógrafo ter reunido também o
anedotário acerca de Gregório de Matos, tentando passar a limpo a constrangedora
legenda criada em torno do poeta, cuja vida supostamente devassa encontrava sua rima
nas virulentas e obscenas poesias proferidas por sua denominada “boca do inferno”. Para
atenuar tão carregadas tintas, o biógrafo plasmou uma visão protetora do poeta,
enfatizando certos aspectos moralmente mais aceitáveis da sua vida e a sua produção
1
Para um exame da problemática referente à publicação da obra de Gregório de Matos, cf. Houaiss,
1990, pp. 1273-1278.
2
Tomemos, como ponto de partida, os seguintes versos de Cabrera Infante (1976, p.191):
“Leer un soneto de Quevedo/ pensando que lo escribió/ con una pluma de ganso”.
Em primeiro lugar, importa tecer algumas considerações acerca do método de
abordagem proposto. Como se sabe, a etiqueta “barroco” foi produzida, no final do
século passado, para classificar as práticas de representação do século XVII segundo
pressupostos românticos, bem ao gosto da crítica literária oitocentista, mas inteiramente
exteriores às produções artísticas que foram catalogadas sob a referida etiqueta. Cabe
aqui enfatizar, ainda que de modo muito superficial, que os discursos assim classificados
são resíduos de práticas que só existem para além de si mesmas, no tempo, como a ruína
que chegou até nós sobredeterminada por diferentes apropriações efetuadas nesse longo
decurso de três séculos (cf. Hansen: 1994, p. 33).
Para tentar atenuar o anacronismo inevitável em qualquer abordagem de textos
tão remotos, seguirei a lição de Adolfo Hansen, em seus brilhantes estudos A sátira e o
engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (1989) e “Pós-moderno e
Barroco” (1994), inspirando-me em sua busca de adequação histórica ao objeto
estudado e recusando a interpretação das práticas discursivas como representação
diferida de seu momento de produção. Segundo esse autor, o critério da “originalidade”
dos poemas gregorianos é duplamente exterior à poesia barroca, seja no sentido de
origem e autoria, seja no sentido de novidade estética, de inspiração marcadamente
romântica (Hansen, 1989, p. 15). Em vez da acusação de plágio, que reiteradamente lhe
foi imputada pela crítica, seria mais proveitoso examinar o posicionamento de Gregório
no tabuleiro retórico de seu tempo, reconhecendo o relevante papel da imitação como
norma retórico-poética do período, que funciona como uma espécie de freio para a
criatividade individual.
Se, atualmente, diferentes meios de comunicação empregam, através de
sofisticada tecnologia, múltiplas formas de apelo visual e auditivo para conquistar e
convencer os receptores, no século XVII contra-reformista, o envolvimento do público
tinha que ser obtido através dos requintes persuasivos da eloqüência, voltados para os
objetivos de difundir a ortodoxia católica e de fazer face à Reforma protestante. Assim, a
ostensiva ornamentalidade da retórica barroca foi a “tecnologia” de convencimento
manipulada numa época em que as palavras ainda não recebiam o suporte dos engenhos
fabricados pelo progresso científico. Daí o número considerável de tratados sobre
retórica e eloqüência então produzidos, apontando para a predominância de uma rígida
codificação das práticas discursivas, num tempo ainda anterior às noções românticas de
originalidade e de expressividade da obra. Sem os meios de aprofundar aqui o exame
5
dessa complexa questão – aliás, já desenvolvida nas citadas obras de Hansen e no livro
de João Carlos Teixeira Gomes, Gregório de Matos, o boca de Brasa. Um estudo de
plágio e criação intertextual –, limito-me a destacar que, no século XVII, diversas
preceptivas apontavam para a distinção entre furto e imitação, sendo esta considerada
não uma cópia servil, mas uma espécie de competição em que é preciso superar o
modelo.
Sem mais protocolos de leitura, passemos então ao exame da musa praguejadora
gregoriana. Cabe inicialmente apontar que pouco se sabe da situação material de
recepção da sátira: era lida em voz alta para todos ou para um grupo específico de
destinatários? era afixada em pasquins ou circulava anônima em folhas volantes2? Tais
perguntas ainda não encontraram respostas satisfatórias. Conforme a tradição do gênero,
a sátira é estruturalmente aberta, sendo que “a abertura faz dela uma forma da oralidade
e da audição, segundo a temporalidade curta das praças e das ruas” (Hansen, 1989, p.
40). E mais: segundo James Amado (1990, vol. I, p. 21), “no caso do Brasil Colônia,
onde a imprensa era proibida pela coroa portuguesa, a poesia saía às ruas e era uma festa
para todos os marginalizados do rígido sistema”. Conseqüentemente, nos poemas
satíricos, como veremos em seguida, há uma tensa coexistência da oralidade e da escrita.
A própria generalidade da caracterização dos tipos humanos, suficientemente aberta para
adaptar-se criticamente a pessoas de várias posições sociais, indica a reciclagem fácil
desse gênero. Trata-se de uma prática poética de intervenção, por meio da qual se
produz um rosto anônimo em que alguém se reconhece. E quem vestir a carapuça...
Importa ainda destacar que a sátira funciona em condições teatrais: como ato de
comunicação entre um cantador e seus ouvintes. Desse modo, tem sempre em vista o
destinatário, de quem espera a cumplicidade e o deleite favoráveis à causa que a motiva.
Segundo as convenções do gênero3, a persona satírica é vazia, espécie de ator móvel que
pode investir diferentes vozes – o que de saída põe em xeque as leituras da poesia
satírica atribuída a Gregório em clave exclusivamente biográfica. Conforme a exaustiva
análise de Adolfo Hansen (1989) evidencia, sua fala heterogênea manifesta vários
paradigmas de ação, segundo os principais códigos do século XVII ibérico: direito, ética
e religião.
Como a figura do sátiro, metade homem e metade animal, em que duas naturezas
se misturam para formam uma terceira, a sátira “não tem a unidade prescrita de outros
gêneros: é mista, como mescla de alto e baixo, grave e livre, trágico e cômico, sério e
2
Sobre os panfletos que circulavam anonimamente no período colonial, cf. Araújo, 1997, pp. 329-337.
3
Para maiores esclarecimentos, consultar Anderson (1982) e Hodgart (1969).
6
4
Para um exame mais detalhado da retórica seiscentista, cf. Oliveira, 2003, cap. 2.
5
Como exemplo de tal interpretação, cite-se Teixeira, 1977, especialmente o capítulo “O fauno
arrependido”,
10
tomado por arrebatamentos de piedade cristã, apenas por ter escrito poemas de devoção
religiosa. Ele foi, essencialmente, um poeta satírico e burlesco, como a crítica mais
perspicaz atualmente já reconhece. Segundo Teixeira Gomes (1980, p. 32),
[...] a explicação para o cultivo de temas contrários por parte de
Gregório de Matos, do obsceno ao contrito, não deve ser buscada,
pois, no pretenso interior convulsionado do homem (cujo texto, aliás,
deixa bem claro que, se convulsão houve, foi a provocada por mulatas
e não por santos), mas sim na integração do poeta com costumes
generalizados da sua época, os quais impunham a cada escritor que
exibisse o seu engenho excedendo o que outrem já houvesse
produzido.
Para concluir, gostaria de retomar uma questão levantada no início deste texto e
que dizia respeito ao duplo retrato do poeta Gregório de Matos constituído ao longo do
tempo, em que se acentuava ora sua face lírico-religiosa, ora a face satírica, ao sabor das
diversas mãos que habilmente manipularam tintas e pincéis para esboçar um rosto que,
em uma reviravolta irônica, mimetizava caricaturalmente os próprios princípios éticos e
estéticos dos retratistas. O que se propôs aqui foi, seguindo a lição de James Amado,
Teixeira Gomes e Adolfo Hansen, abandonar o retrato em proveito do esboço de um
painel de uma obra multifacetada que está, não “à procura de um autor”, como definido
por Emanuel Araújo (1990, vol.II, pp. 1285), mas em busca de mais leitores curiosos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, James. A foto proibida há 300 anos. In: MATOS, Gregório de. Obra poética,
vol. I. Rio de Janeiro: Record, 1990.
------. Notas à margem da editoração do texto II. In: MATOS, Gregório de. Obra
poética, vol. II. Rio de Janeiro: Record, 1990.
ARARIPE JR, T.A Gregório de Matos. 2. ed. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1910.
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ARAÚJO, Emanuel. 716 poemas à procura de um autor. In: MATOS, Gregório de.
Obra poética, vol. II. Rio de Janeiro: Record, 1990.
CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro:
F. Briguiet & Editores, 1937.
GOMES, J.C. Teixeira. Gregório de Matos, o boca de brasa. Petrópolis: Vozes, 1980.
------. Sátira barroca e anatomia política. In: Literatura e memória cultural. Anais do 2º
Congresso ABRALIC, vol. I. Belo Horizonte: ABRALIC, 1991.
MATOS, Gregório de. Obra poética. Ed. James Amado e notas de Emanuel de Araújo.
Rio de Janeiro: Record, 1990. 2 vol.
OLIVEIRA, Ana Lúcia M. de. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras
jesuíticas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. São Paulo: Letras & Letras, 1998.
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