Tese Sobre Cesário Verde
Tese Sobre Cesário Verde
Tese Sobre Cesário Verde
Dissertação apresentada
por Patricia Floriani
Sachet ao Programa de
Pós-Graduação em
Literatura da
Universidade Federal de
Santa Catarina, para
obtenção do título de
Mestre em Literatura,
área de concentração
em Teoria Literária.
FLORIANÓPOLIS
ABRIL 2014
1
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Inclui referências
2
3
4
5
Você sabe melhor do que ninguém,
sábio Kublai, que jamais se deve
confundir uma cidade com o
discurso que a descreve. Contudo,
existe uma ligação entre eles.
6
7
Para Isabela Vieira e vó Jeane, in memoriam.
8
9
SUMÁRIO
Resumo ..................................................................................11
Resumen .................................................................................13
Abstract ...................................................................................15
INTRODUÇÃO ....................................................................17
CONCLUSÃO .....................................................................155
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS ...............................157
11
RESUMO
12
13
RESUMEN
14
15
ABSTRACT
From the concept of city, taking into account the relation between the
subjects and their polis, this paper proposes a journey through the poems
of Cesário Verde, a Portuguese poet, and the three first poems of Jorge
Luis Borges, an Argentinian poet, with the purpose to show the
convergences and divergences that can be noticed through such poems.
The way how the symbolization of transformations towards modernity
permeates these authors‟ poems shows us that the cities under
consideration (Lisbon and Buenos Aires) are far away from being
perfect cities. The presence of two distinct views about the same focus,
the city, took us to think over the subjects‟ feelings in relation to the city
and their feeling of belonging to a constantly changing space.
Key-words: Cesário Verde. Jorge Luis Borges. City. Modernity.
16
17
INTRODUÇÃO
1
Expressão utilizada pelo poeta David Mourão-Ferreira.(MOURÃO-
FERREIRA, 1981, p. 89).
2
Vários termos do português podem traduzir este vocábulo essencialmente
borgeano: no seu sentido próprio: "borda, margem"; no seu sentido topográfico,
geográfico: "arredores, redondezas"; e naquele social: "subúrbio, arrabalde".
18
Assim como sugerem Bradbury e McFarlane (1989), colocaremos a
cidade como o centro dos acontecimentos: "Sob muitos aspectos, a
literatura do modernismo experimental que surgiu nos últimos anos do
século XIX e se desenvolve até nosso século foi uma arte de cidades”3
(BRADBURY; McFARLANE, 1989, p. 76).
A construção da cidade é relatada na história da humanidade
desde os primórdios. Já na Bíblia Sagrada encontramos o mito de Caim
como fundador da primeira cidade: "Caim uniu-se a sua mulher. Ela
concebeu e deu à luz Henoc. Caim construiu uma cidade e lhe deu o
nome de seu filho, Henoc" (BÍBLIA, Gênesis, 4, versículo 17).
Na Bíblia também somos apresentados a dois tipos distintos de
cidade. Segundo Mitscherlich (1970), a cidade é tão antiga que pode ser
associada ao comportamento instintivo do homem e às suas
necessidades de sobrevivência. Um dos fatores apontados para a
construção das cidades é a necessidade do homem de ter uma habitação
fixa, ou seja, o fim do homem nômade.
Para Borges, ele reúne todos esses sentidos. Palavra frequentemente usada pelo
autor em toda sua obra, representa mais um lugar mítico do que geográfico. É
um espaço não determinável da fronteira entre o campo e a cidade, onde acaba e
começa cada um deles, um horizonte de origem e fim.
3
Ou seja, os escritores tomaram a cidade como objeto central/tema de suas
obras.
19
um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra
passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova
Jerusalém" (BÍBLIA, Apocalipse, 21, versículos 1-2).
Como ressalta o ensaísta Helder Macedo (1988), na Bíblia o
produto final da Queda da Idade de Ouro4,5 é a cidade, a obra de Caim é
o resultado da sua errância a Leste do Paraíso.
No bucolismo, há duas tradições culturais convergentes: a
clássica e a judaico-cristã. Na tradição clássica, nos mostra Macedo, a
cidade é a representação antitética da Idade de Ouro: representa a
degeneração6 de que a cidade é o produto mais visível.
Macedo continua, nas duas tradições, a clássica e a judaico-cristã;
a cidade é sempre a violência que se opõe à mansidão, possessividade
que se opõe ao comunitarismo, a prisão que se opõe à liberdade, o
presente que se opõe ao passado, como a oposição cidade e campo nos
poemas de Cesário Verde e a visão do passado versus presente expressa
por Borges. Dois poetas que se inspiraram no concreto e buscavam
exprimir o tempo em que viviam.
A chegada do novo, daquilo que é desconhecido, tornou a cidade
um espaço ambíguo e contraditório. Uma associação recorrente é a
dicotomia paraíso versus inferno. As duas cidades, Buenos Aires e
Lisboa, dicotomicamente apresentadas nos remetem a outras
relacionadas ao assunto, como: campo versus cidade, periferia versus
centro.
A noção de cidade antiga7 é sempre imaginada como aquela onde
o centro gira em torno da Religião. Nas cidades modernas, o homem
passou a inserir novas formas do sagrado. Apesar de ser um local
4
Termo derivado da mitologia grega e de lendas. Refere-se ao tempo mais
antigo do espectro grego das idades, ou seja, o início da humanidade, que é tido
como estado ideal, utópico, de pureza e imortalidade. É conhecido como um
período de paz, harmonia, prosperidade e estabilidade.
5
Na literatura, a queda da Idade de Ouro, geralmente, termina com a queda do
homem, com o início da imperfeição humana.
6
Idade de Ferro, Bronze, Prata e Ouro – passado versus presente.
7
Segundo Coulanges (2004), que investiga as origens mais afastadas das
instituições das sociedades grega e romana, a base das instituições dos povos
estava na religião. Cada família tinha sua crença, seus deuses e seu culto, as
demais coisas eram reguladas por essa fé. Com o passar do tempo, os homens
foram se relacionando mais constantemente, havendo a necessidade de unidades
cada vez maiores para reger as regras, até chegar à cidade. Para o autor, a
origem da cidade também é religiosa, porém, com as mudanças de relação
social, o fundamento da sociedade foi alterado para o bem-comum.
20
ordenado, a grande cidade - metrópole = metro (mãe) + polis (cidade) - é
híbrida, sendo possível encontrar nela os diversos elementos que
constituem a cultura: as igrejas, os imigrantes, o local de trabalho, o
comércio, os monumentos, as bibliotecas, os livros e os indivíduos que
nela habitam. Esse lugar que armazena tanta diversidade ordenada é o
grande responsável pela evolução social. O acúmulo de elementos
reunidos na polis constituem a cultura de um povo.
24
25
CAPÍTULO I
27
Lisboa, perpassado por um lirismo inovador que teve seu merecido
reconhecimento tardiamente, porém bem estabelecido.
Embora muitos estudiosos já tenham se proposto a analisar a
temática citadina em Cesário Verde, há uma preferência por uma
abordagem que opõe a cidade ao campo. Aqui, procuramos relativizar
essa dicotomia e, além disso, fazer emergir um conceito de cidade
próprio da obra de Cesário Verde, e não tentar aplicar um conceito dado
a priori à obra do autor – o que, acreditamos, seja um diferencial deste
estudo em relação a outros já realizados.
8
Freguesia onde ficava a casa de campo de Cesário Verde.
9
Teatro de miniatura inglês que atingiu o auge de sua popularidade nos
princípios do século XX.
28
negociante”, ao ver publicados seus primeiros versos. Outros dois
poemas, “Eu e ela” e “Lúbrica”, também foram publicados nesse mesmo
ano no jornal Diário da Tarde, do Porto. Serrão (Idem) aposta que o
Cesário dessa época era o resultado indeciso de uma experiência dupla:
viver com um pé em Lisboa e outro em Linda-a-Pastora. É nesse ano
que o poeta começou a frequentar o café Gomes Leal com outros
literatos. Foi também em 1873 que o poeta se inscreveu no curso
superior de Letras, onde conheceu os amigos Silva Pinto e Luiz
Andrade. Abandonou os estudos no início de 1874, ano em que nas
noites de boemia conheceu Bittencourt Rodrigues, Fernando Leal, João
Bonança, os irmãos Barros Seixas, Leão de Oliveira, entre outros.
Publicou o poema “Ele” em folha solta. Nesse mesmo ano publicou
também outros poemas sob o título “Ecos do realismo”, entre os dias 20
e 23 de janeiro, no Diário da Tarde. São eles: “Impossível”,
“Lágrimas”, “Pró pudor” e “Manias”.
Há a hipótese, levantada por Pedro da Silveira, de o poeta ter
publicado nessa época o poema perdido “Voto negro”. São de 1874
também os poemas: “Heroísmo”, “Cantos de tristeza” (mais tarde
intitulado “Setentrional”) e “Cinismos”. Outros poemas foram
publicados nesse mesmo ano, sob o título de “Fantasias do impossível”:
“Capricho” (posteriormente intitulado “Repouso”), “Esplêndida”,
“Arrojos”, “Vaidosas”, “Flores venenosas, I – Cabelos” (título alterado
para “Meridional”), “Melodias vulgares” (alterado para “Flores velhas”)
e “Cadências tristes”. Daunt (2006) fixa cronologicamente nesse mesmo
ano o poema “Humilhações”, publicado posteriormente. Desde essa
época já é notada a influência de Baudelaire na poesia de Cesário.
Nesses primeiros versos cesarinos, há três marcas constantes: a ironia, a
mulher (objeto de desejo) e o amor (tema). Segundo Serrão (1961), a
ironia, nesse caso lírico, é usada como tentativa de superar um conflito,
um mal-estar causado pela tomada de consciência do meio em que vive.
No ano de 1875, o poeta publicou os poemas
“Deslumbramentos”, “Humorismos do amor” (título alterado para
“Frígida”), “Ironias do desgosto” e “Desastre”, escreveu o poema “A
débil”. Começou a integrar-se à cidade, iniciou uma amizade com
Antônio Macedo Papança, com quem trocou cartas ao longo dos anos.
Em 1876, Cesário Verde teve um ano de intensa atividade
comercial na loja de seu pai e social em companhia dos amigos.
Publicou dois poemas: “Nevroses” (mais tarde intitulado
“Contrariedades”) e “A débil”. Encontrava-se em Linda-a-Pastora no
início do ano de 1877 a trabalho. É nesse ano que iniciou o ápice
29
urbano10 da poesia do autor que duraria mais ou menos até 1880. A
família Verde se mudou: o novo endereço estava mais próximo de
Linda-a-Pastora. Escreveu os poemas: “Num bairro moderno”, “Manhãs
brumosas – versos de um inglês” e “Merina” (posteriormente intitulado
“Noites gélidas – Merina”). Sua saúde começou a dar sinais de
enfraquecimento.
Em 1878, a amizade com Silva Pinto estava estremecida. Juvenal
Pigmeu, revelado mais tarde como sendo a redatora do jornal A Tribuna
do Povo Angelina Vidal, dirigiu insultos a Cesário Verde. Publicou os
poemas: “Num bairro moderno”, “Merina” e “Sardenta”. José
Anastácio, pai do poeta, decidiu que o filho cuidaria da propriedade
rural em Linda-a-Pastora. O poeta lá se instalou e tomou conta com
mãos firmes dos negócios da família. Escreveu os poemas:
“Cristalizações” e “Em petiz”. Foi nesse ano que a barca Imógene
aportou em Lisboa, trazendo a ameaçadora febre amarela.
Em 1879, sob o pseudônimo de Cláudio, publicou o poema
“Noitada” (cujo título foi modificado para “Noite fechada”). Publicou
ainda: “Cristalizações”, “Num álbum”, “Em petiz” e “Manhãs brumosas
– versos de um inglês”. Escreveu a Bettencourt Rodrigues confessando
o desejo de se ausentar do país.
Ano de 1880, tricentenário de Camões. Cesário Verde escreveu o
poema “O sentimento dum ocidental” para homenageá-lo. O poeta
passou o primeiro semestre desse ano em Linda-a-Pastora e o restante
do ano na cidade de Lisboa. No ano de 1881, Cesário Verde participou
das reuniões do grupo do Leão, nome dado aos pintores e literatos que
se agregavam nas mesas da cervejaria de Antônio Monteiro. Teve uma
briga com Oliveira “qualquer coisa”, o que o levou a ficar acamado por
vários dias. Após o incidente, o poeta retraiu-se mais e ampliou os
negócios da família, ainda houve, nesse mesmo ano, a morte do irmão
Joaquim Tomás.
Em 1883, viajou para França para realizar seu projeto de
exportação de vinho. Dedicou-se aos negócios durante o ano. Quando
regressou a Lisboa, sem sucesso nos planos comerciais, testemunhou o
regresso do cólera. O poema “Nós” foi publicado no ano seguinte, em
1884. Abandonou a vida literária e se dedicou exclusivamente aos
negócios da família. Estava já com a saúde debilitada, refugiou-se em
10
Época em que os poemas de Cesário Verde tinham como assunto principal a
cidade, deixando de lado o campo.
30
Linda-a-Pastora nos meses de agosto e setembro. Em outubro retornou a
Lisboa.
Mesmo com a saúde enfraquecida, em 1885, continuou com os
negócios e correspondências internacionais. Em fevereiro, foi para
Linda-a-Pastora, onde iniciou a escrita do poema inconcluso:
“Provincianas”. Regressou em março para Lisboa.
Em 1886, reencontrou Silva Pinto e se desentenderam. Tendo
recebido notícias ruins sobre a saúde do poeta, Silva Pinto tornou a vê-
lo. Apavorou-se ao ver Cesário Verde prostrado no quarto. Nesse mesmo
ano, o poeta instalou-se na propriedade de um conhecido do seu pai em
Caneças. Depois se transferiu para uma casa do Largo da Erminda, no
Paço do Lumiar. Em 19 de julho faleceu de tuberculose.
32
[...] caracterizou-se como um escritor polivalente,
de traços múltiplos e com uma forte tendência a
escapar de inclusões específicas em correntes
literárias. Cesário apresenta traços de poeta
simbolista, realista, impressionista, para quem o
ver e o sentir eram constituintes primordiais, e
acabou por se tornar uma forte influência para a
moderna poesia portuguesa e para grandes nomes
futuros como Fernando Pessoa (MENDES;
THIMÓTEO, 2007, p. 90).
34
sinceridade poética. E continua, comparando a poesia do português com
uma lente que é ajustada e que corrige rigorosamente as imagens
deformadas/confusas e as imprecisões das ideias que os homens têm de
si mesmos. De um lado temos um visualismo, que seria semelhante ao
jornal, onde a realidade exterior é representada fielmente,
acrescentando, às vezes, uma análise objetiva à descrição. E, por outro
lado, temos a expressão lírica, a fantasia que imita e transforma essa
mesma realidade pela subjetividade poética.
Já que usamos a palavra descrição acima, esclareceremos que a
tomamos conforme o conceito estabelecido por Óscar Lopes (1946), não
como mero descritivismo, mas como uma visão crítica da sociedade,
refletindo sobre condições sociais e psicológicas, como em ”O
sentimento dum ocidental”.
35
Sua poesia encontra identidade na observação do real. Ao
contrário de Antero de Quental e de Alexandre Herculano, Cesário
Verde não se interessa pelo passado; para o poeta, a saudade parece não
existir, ele está preocupado em retratar o presente, o agora. Cesário
Verde escolhe pintar estruturalmente o presente da cidade de Lisboa por
meio de um olhar seletivo, de onde cria seus quadros que parecem
delimitados previamente e revelando o imediato do cotidiano.
Assumindo a fala coloquial, afasta-se da oratória, que era uma
característica do seu tempo, faz seus retratos dotados de espontaneidade
e de facilidade de comunicação. Helder Macedo (1975), ao analisar a
forma estilística da escrita do poeta, percebe que o que prevalece como
processo é a articulação copulativa (conjunção) e o assíndeto, revelando
a organização e a lógica de quem caminha pela cidade, ação que aparece
na estrutura da maior parte dos poemas. Suas composições são relatos
de fatos cotidianos, apresentados em forma de conversa, o que acaba
distanciando-o mais ainda das obras de sua época.
36
Respiro indústria, paz, salubridade
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 140).
[...]
40
feminino da nossa poesia tradicional" (MOURÃO-FERREIRA, 1981, p.
68).
Cesário Verde adaptou as técnicas da novela para a visão pessoal
de um eu observador e concreto, exercendo assim, em um novo estilo,
uma reflexão realista e social.
Simões (1971) aponta-nos algumas razões pelas quais a escrita
poética foi adotada por Cesário ao invés da prosa. Segundo o autor, se
fosse adotada a escrita em prosa, haveria a necessidade de seguir uma
lógica, uma sucessão e um encadeamento de ideias, o que prenderia a
criatividade do poeta português, que já estava atado à “escravidão” do
real. A poesia traria à escrita de Cesário Verde a liberdade, a
possibilidade de ir e vir, de fazer e refazer, de encontrar novos aspectos
do real e, por fim, revelar a sua alma que pulsava nas coisas do mundo.
Outra razão de a prosa haver sido desprezada segundo Simões (1971) é
porque ela não permitia recompor a realidade, não lhe permitia criar, já
que essa faculdade é vedada à prosa como processo.
Segundo Schiller (1795[1991]), existem dois tipos de poetas: os
ingênuos e os sentimentais. Os poetas sentimentais são aqueles
reflexivos e emocionais. Não creem que suas palavras abarcarão a
realidade a que estão inseridos e se suscitarão alguma espécie de
reflexão. É uma escrita consciente. É um poeta questionador, até mesmo
dos próprios sentidos. Seus versos têm um fim intelectual, educativo e
ético. Os poetas ingênuos seriam aqueles que escrevem poesia
espontaneamente, quase sem pensar, sem se importar com a opinião
alheia e a repercussão de suas palavras. A poesia seria algo natural, que
teria como estímulo o universo a que o poeta está inserido, como é o
caso de Cesário Verde.
11
Como bem nos lembra Walter Benjamin, a multidão, esse fenômeno
primordial da vida moderna, foi primeiramente expressa por Edgar Allan Poe,
no conto “O homem da multidão”.
42
Os poemas de Cesário Verde, como ressaltamos anteriormente,
têm uma estética singularmente muito próxima ao romance realista.
Como nos aponta Macedo (1988), os poemas de Cesário Verde são
semelhantes a uma série de sequências, ao que tudo indica casuais, de
acontecimentos justapostos, como a técnica cinematográfica de corte e
montagem. Os acontecimentos vão progredindo à medida que o poeta
vai caminhando e observando os arredores. Conforme o ambiente se
altera, forma-se um novo quadro poético, que já é justaposto a outro no
passo seguinte.
Segundo Macedo (1988), o método poético de Cesário Verde, ou
seja, a narrativa dramática de acontecimentos justapostos, atingiu em
“Cristalizações” uma das suas formas mais acabadas. Na perspectiva de
Cesário Verde, autor desses “versos agudos e gelados”, o poema é uma
série de cristalizações visuais, que lembram um poliedro de cristal,
refletindo um grupo de trabalhadores calçando uma rua dos subúrbios
pobres de Lisboa.
Nesse poema, o “eu-lírico” inicia falando sobre o tempo na
cidade - “Faz frio” -, sobre os trabalhadores que estão calçando a rua,
sobre poças-d´água no chão, relata sobre as atividades comerciais
daquela rua, sobre os sons que ouve ao caminhar, sobre as atividades
dos trabalhadores: enquanto uns carregam as pedras, outros martelam na
calçada, outros usam a calçada já feita para caminhar. Descreve e analisa
alguns trabalhadores. Até que, na 15ª estrofe, surge uma atriz a caminho
do ensaio. Retorna a falar dos trabalhadores e encerra descrevendo o
caminho apressado feito pela atriz em meio ao cenário apresentado.
O poema é composto por várias cenas simultâneas: os
trabalhadores calçando a rua, cidadãos usando a calçada, o clima da
cidade e a atriz que corre rumo ao ensaio. As ações se fundem em um
único quadro, mas não perdem sua individualidade, são colocadas lado a
lado, de modo que uma dependa da outra para ocorrer, o conjunto forma
o todo.
[...]
[...]
12
A página digital em que a revista é publicada não possui numeração de
páginas.
46
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 91).
47
A figura do anjo voltado para o futuro nos remete aos poemas de
Cesário Verde e ao livro Viagens na minha terra, do escritor português
Almeida Garrett. Ambos dão as costas para o mar, rompem com a
tradição, viajam na terra, na superfície. Os autores citados invertem a
noção de mar, a cidade é o mar de Cesário Verde.
49
Mal ganha para sopas...
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 101).
51
“civilizada”, não é menos verdade que o campo
está nele ainda, como na psicologia dos seus
contemporâneos e também a dois passos dele, na
quinta de Linda-a-Pastora (SERRÃO, 1961, p. 75,
grifo do autor).
52
Tomando para si os temas do poeta francês, seu objetivo era propagar a
poesia baudelairiana. À medida que Cesário Verde foi amadurecendo
poeticamente, foi também exprimindo um estilo próprio, tendo como
inspiração a cidade de Lisboa. Mendes e Thimóteo (2007) atribuem a
esse primeiro contato com Baudelaire, que deixou resquícios até o fim
de sua obra, essa poética própria cesarina.
A publicação do poema “Esplêndida” (1874) deixa clara a
influência do poeta francês em Cesário Verde. Na época, afirmou-se que
o poema era plágio da poesia de Baudelaire. Ortigão (1944), no
periódico As farpas, critica Cesário por imitar Baudelaire e enaltece a
distância que este estava do francês: "[...] o realismo baudelairiano está
fazendo mais numerosas e lamentáveis vítimas do que o velho
romantismo de Byron, de Lamartine e de Musset" (ORTIGÃO, 1944, p.
219).
“Metálica visão que Charles Baudelaire / Sonhou e pressentiu nos
seus delírios mornos [...]”: eis a única menção onomástica feita ao poeta
francês na obra de Cesário Verde. Nesses versos já é revelada a
faculdade sensorial de Baudelaire que mais impressionou ao português:
a visão.
As sensações estão presentes nos poemas deles, “os poetas dos
cinco sentidos”, porém de forma diferente, a hierarquia dos valores
sensoriais é distinta. Baudelaire apresenta em seus poemas, como expõe
Mourão-Ferreira (1981), uma atração pelo mórbido, uma riqueza
psíquica e emocional, a repulsa e o fascínio, o comprazimento e o
remorso, enquanto Cesário Verde prefere a normalidade e o equilíbrio,
sem uma riqueza psíquica e emocional. Ou seja, a reação à ação dos
sentidos é muito distinta.
Baudelaire vê uma unidade nos sentidos, como se um dependesse
do outro para existir, o que justifica a justaposição de vários planos
poéticos. Essa característica, consolidada no soneto “Correspondências”,
por meio da teoria das “correspondências sinestésicas”, viria a ser a base
teórica do Simbolismo. Esse processo poético se tornou um lugar-
comum na poesia simbolista em geral, como também na obra de alguns
poetas portugueses, mas em Cesário Verde há poucos vestígios. Para o
poeta português cada sentido é independente, autônomo, isolado. Cada
sentido é responsável por um novo mistério, um novo quadro.
O olhar de Baudelaire e o de Cesário Verde são voltados para o
mesmo objeto: para o novo que adentrava o dia a dia da cidade. Essas
“cenas primordiais da modernidade”, como as chama Berman (1986),
são registradas nos poemas dos autores e é possível encontrar algumas
53
semelhanças temáticas entre seus poemas. Um dos temas comuns aos
dois poetas é a questão de se sentir exilado em sua própria cidade.
Ambos apresentam um “eu-poético” perdido, deslocado diante das
mudanças modernas.
Berman afirma que a relação dos cidadãos com a cidade na
poesia de Baudelaire "[...] nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver
com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente
inspira e força a modernização da alma de seus cidadãos" (BERMAN,
1986, p. 168).
Cruz (2010) pontua que a velocidade da mudança fazia com que
os cidadãos se sentissem perdidos até que entendessem de fato o que
estava acontecendo. Nos poemas dos autores, é possível perceber esse
cidadão deslocado diante das rápidas mudanças do mundo moderno.
54
[...] Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
[...]
[...]
13
Disponível em: http://portodeabrigo.do.sapo.pt/cesario1.html. Acesso em 15
de julho de 2013.
55
Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
14
Não estamos aqui propondo, anacronicamente, um efeito puramente “reflexo”
nos poemas de Cesário, mas procurando sublinhar aspectos da realidade lisboeta
em transformação e que, de forma prismática e reprocessada esteticamente,
marcaram presença em seus versos.
58
democrático e incentivar a indústria nacional, já que o Brasil, maior
fonte econômica portuguesa, havia se tornado independente, Lisboa
tentava entrar no ritmo das demais cidades europeias. Segundo Margato
(1998), as manifestações modernas tomaram corpo no universo
“semiperiférico”, ou “de fronteira”, fazendo parte dessa relação à cidade
de Lisboa, já que seu contexto diante da moderna Europa é de um “estar
entre”, é a de ocupação de um entrelugar, um estado limite entre centro e
periferia – “o estar na fronteira”.
Portugal vinha passando até então por uma lenta transformação
material, que gerará as mais diversas consequências. Segundo Serrão
(1961), a vida nacional permanecia quase imutável. É importante
ressaltar que, durante esse período, a maior atividade econômica era a
indústria agrícola.
País marítimo, Portugal tinha nas atividades de além-mar seu
centro monetário, político e social. Agora, durante algum tempo, a “mãe
pátria” teve de viver quase exclusivamente dos rendimentos produzidos
pela “casa lusitana”. Cesário Verde já comenta essa inversão. Aponta a
cidade como o novo mar, um novo horizonte a ser descoberto. “A Dor
humana busca os amplos horizontes,/ E tem marés, de fel, como o
sinistro mar! (CESÁRIO VERDE, 2006, p. 138).”
Outra revolução que marca esse período moderno da indústria
portuguesa é a Revolução do Vapor, dos Transportes e das
Comunicações. As cidades grandes trazem consigo, ainda, outras
novidades às quais as pessoas precisavam se habituar. Uma novidade
das cidades modernas seriam os transportes coletivos urbanos, criados
em Paris no século XIX, e que até hoje são caracterizados pela mesma
situação de choque: fica-se parado olhando para outra(s) pessoa(s), sem
que sejam trocadas uma palavra sequer, como se fossem separadas por
um vidro.
Em 1817, iniciou-se a utilização das máquinas a vapor em
Portugal. Em 1845, o país contava com 58 máquinas, 26 delas em
Lisboa. Já em 1881, o país contabilizava um total de 328 máquinas
instaladas. Cesário Verde também registrou em seus versos a presença
do vapor das fábricas que tornava o céu de Lisboa cinza e de cor
monótona, como ele mesmo ressaltou em um de seus poemas.
Conforme afirma Serrão (1961), as consequências sociais e
demográficas resultantes do aumento das transações comerciais internas
e do rendimento nacional somados ao crescimento da produção
industrial foram: o aumento do proletariado fabril e o crescimento das
59
cidades. Segundo o crítico, o poeta agarra-se a uma ideia, esquemática,
geométrica, de Progresso.
61
Com um enorme esforço muscular.
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 109).
63
aprendido principalmente nas viagens por
caminho de ferro, a percepção do tempo modifica-
se e o ritmo dos acontecimentos torna-se
trepidante, se tivermos em conta o lento suceder
dos acontecimentos nas épocas anteriores
(SERRÃO, 1961, p. 43).
64
cidade de Lisboa em 1865, e a peste bubônica no Porto em 1899. As
epidemias aparecem nos poemas de Cesário Verde como uma
consequência vinda da modernidade. Até a família do poeta foi vítima
desse problema social que assolou a cidade.
[...]
[...]
15
O barulho da fábrica faz falta, assim como fazia no livro O Cortiço, de
Aluísio Azevedo.
69
um lugar de refúgio, onde o sujeito pode se sentir seguro, pois um
indivíduo some no meio da massa, é engolido pela multidão.
Outro elemento da cidade que aparece nos poemas de Cesário
Verde, que foi percebido primeiramente nos poemas de Baudelaire e nos
contos de Poe, é exatamente a multidão. O número de pessoas que há
nas ruas faz com que o número de conhecidos torne-se pequeno, ainda
menor se comparado com o número de habitantes de uma cidade grande.
A multidão nada mais é do que um aglomerado amorfo de pessoas que
se movimentam nas ruas das cidades. Ela é o grande personagem da
poesia moderna e o personagem principal da cidade grande. O flâneur se
move e se perde no meio da turba. O flâneur precisa de seu espaço livre
e não quer perder sua privacidade nem no meio de um aglomerado de
pessoas.
Quando se para no meio da multidão, corre-se o risco ou de ser
arrastado “no turbilhão da multidão” ou de provocar algumas colisões.
Da mesma forma, mover-se entre a população resulta também numa
série de choques. O que o transeunte sente ao colidir corresponde ao dia
a dia do trabalhador com a máquina, o corpo que se ajusta à máquina. A
multidão atarefada torna tudo em hábito, até os gestos mais simples.
70
Ao buscar um lugar privado longe da multidão atarefada, no caso
dos habitantes da era moderna, foram feitas as casas16, lugares que
seriam, em tese, seguros. A casa é onde o ser humano preserva seus
vestígios, guarda seus pertences, é um local impregnado de
pessoalidade, muito diferente dos quartos de hotel, que não guardam
qualquer rastro.
16
Os homens pré-históricos, com intuito de se protegerem do calor ou do frio e
de possíveis ataques de animais, começaram a se abrigar em grutas. Eles
permaneciam na mesma gruta por tempo determinado, já que dependiam da
natureza para sobreviver. Quando não encontravam mais caça, pesca e frutas,
eles se mudavam em busca de alimentos. A evolução da construção de suas
casas se deu através da percepção que cultivando o alimento que consumiam
eles podiam repor aquilo que foi colhido e consumido. Assim, o homem passou
a investir mais tempo na construção de seus abrigos, se fixando num
determinado local onde pudesse investir no cultivo.
71
sentidos dos percursos – isso, obviamente, não se concretiza de maneira
tão fluente na prática.
No início de sua escrita poética, 1873-1874, a cidade é vista
como a Babel, onde o poeta não é feliz, vive experimentando/provando
“O canto da agonia”:
E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria
Chorando aflitamente a minha sorte
17
E prelibando o canto da agonia .
17
Disponível em: http://cfp.cm-
lisboa.pt/pls/htmldb/f?p=334:6:337682761709371::::P6_POE_ID,P6_TEP_ID,P
6_ANCORA,P6_AUTOR,P6_POEMA,P6_ID,P6_TIPO:2210,15523,6,Ces%E1
rio%20Verde,Cantos%20da%20tristeza,67,autor. Acesso em: 15 de julho de
2013.
72
oposição campo-cidade e seus conflitos psicológicos não estão ainda
bem definidos, mas é notável que a cidade começa a se impor. Cesário
Verde vive plenamente a metrópole que vai surgindo, está integrado a
ela, que passa a ser “mercantil, contente: madeiras, águas, multidões,
telhados!”
"É a cidade que está presente como nunca, agora a “cidade faz
parte” das vivências do poeta. E que vivências são essas? Por um lado, o
tédio e, por outro, a piedade pelos humildes" (SERRÃO, 1961, p. 92). O
desencanto perante a urbs fica claramente apontado nesse poema. Como
aponta Mourão-Ferreira (1981), no século XIX, a ideia de progresso se
liga à ideia de cidade, o desencanto com uma delas implica o desencanto
com parte da outra. E em Serrão nós lemos:
São sentimentos que ficam claros nos poemas dos anos de 1877 a
1880, quando a produção poética de Cesário Verde tem seu ápice
urbano, em especial no poema “O sentimento dum ocidental”, no qual o
poeta se entrega às tentações da cidade moderna. Serrão afirma que o
73
poeta foi um enamorado da cidade, e só ao ter um conhecimento mais
amplo dela é que deixará de o ser.
[...]
74
Cesário Verde sempre esteve ante a oposições contrastivas: entre
futuro e passado, campo e cidade, inovação e rotina, paraíso e inferno.
Como ressalta Serrão (1961), uma hora o poeta foi obrigado a escolher
entre campo e cidade e, condicionado pelo meio em que vivia, pela
paisagem natural, pela paz que se contrapõe ao ritmo acelerado do
tempo das máquinas, do esforço da adaptação à vida civilizada e do
cansaço citadino, opta pela “normalidade e calmaria” do campo.
75
CAPÍTULO II
18
O nome bairro se usa na Argentina tanto para circunscrever os vizinhos locais,
como para designar uma unidade maior, o subúrbio.
76
Borges deixa clara sua identidade com a cidade de Buenos Aires:
“Se tivesse nascido em qualquer parte [...] em Yoskshire, um lugar mais
bonito do que este, não teria sido eu a nascer ali, mas uma outra pessoa”
(ZITO, 1998, p. 24).
Em seu poema “Fundación mítica de Buenos Aires” fica evidente
que Buenos Aires cria Borges e Borges recria Buenos Aires. Nesse
poema, o poeta cria uma nova e excêntrica fundação para a sua cidade,
afirma que os conquistadores espanhóis a fundaram no quarteirão de sua
casa, na Rua Serrano, no Bairro de Palermo. Em seus primeiros poemas,
surge essa nova cidade nos textos. Uma cidade de ruas solitárias,
construções sobre a planície e uma cidade quase sem pessoas, apenas
silhuetas que fogem.
77
Borges, um jovem culto e de boa família, caminha pelos
subúrbios a observar a outra parte da cidade, longe do Centro, onde tem
contato com o tango, que nasceu nos bordéis argentinos, e a partir da
década de 1880 tomará os botequins, as casas de bailes. Ao obedecer à
emoção e buscar uma Buenos Aires mais propriamente argentina, a que
se assemelha com o campo, Borges transmite nessa atitude um ímpeto
nacionalista, portenho, denominado por ele de criollo.
19
Arrolaremos aqui apenas os dados biográficos de Borges até 1929, ano da
publicação do último livro que utilizaremos em nossa pesquisa, Cuaderno San
Martín.
78
ao começar a Grande Guerra. Foi em Genebra que Borges passou a
estudar francês e a realizar os estudos secundários. Nessa época, leu
vários autores clássicos ingleses e franceses, entre eles: Victor Hugo,
Voltaire, Baudelaire, Flaubert, Maupassant, Barbusse, Carlyle,
Chesterton, além do norte-americano Whitman. Aprendeu alemão ao
traduzir Heine e o romance O Golem, de Gustav Meyrink. Pelo contato
com seu companheiro de estudo, Maurice Abramowitz, iniciou-se na
leitura de Rimbaud e passou a estudar o simbolismo francês. Também
nesse mesmo ano, 1914, aproximou-se do expressionismo alemão, leu
Schopenhauer e escreveu poemas em francês, hoje perdidos. No ano de
1917, a família Borges continuava na Suíça. Leu Ascasubi, José
Hernández, Eduardo Gutiérrez, Leopoldo Lugones e Evaristo Carriego,
com o intuito de reforçar seus laços com seu país, a Argentina.
Sua avó faleceu em 1918, ano em que sua família se mudou para
Lugano, na Suíça. Com o fim da Guerra, viajaram para a Espanha pela
primeira vez, em 1919. Instalaram-se inicialmente em Barcelona e
depois em Palma de Maiorca. Participou de um movimento ultraísta
maiorquino e publicou alguns poemas na revista Baleares. Escreveu
dois livros que nunca foram publicados: Ritos Rojos ou Salmos Rojos
– poemas em que era exaltada a Revolução Russa – e Los Naipes del
Tahur – narrativa perdida. Ainda em 1919, foi para Sevilha, onde
colaborou em diversas revistas vanguardistas da época. Publicou seu
primeiro poema: “Al mar”. Encontrou-se com o crítico literário, ensaísta
e poeta Guillermo de Torre. Viajou para Madri e lá conheceu Rafael
Cansinos-Asséns, a quem proclamaria como o seu grande mestre. Leu
Quevedo, Villarroel, Unamuno e Manuel Machado.
Em 1920, ainda em Madri, encontrou Valle-Inclán, Juan Ramón
Jiménez, Ortega y Gasset, Ramón Gómez de la Serna e Gerardo Diego.
Na Espanha, as traduções feitas por Borges, de poemas expressionistas
alemães, se tornaram conhecidas. No ano de 1921, regressou com a
família para Buenos Aires. Redescobriu sua cidade e, perante o
entusiasmo pelas novas tendências europeias, fundou com um grupo de
jovens a revista mural Prismas, onde escreveu o primeiro manifesto
“ultraísta” argentino. Conheceu Macedonio Fernández, a quem
proclamou como seu outro mestre. Em 1922, fundou a revista Proa com
Macedonio Fernández, Eduardo González Lanuza, Norah Lange e seu
primo Guillermo Juan.
Regressou para a Europa em 1923. Visitou Londres, Paris, Madri,
Maiorca e Sevilha, percorreu toda a Andaluzia. Publicou seu primeiro
livro de poemas, Fervor de Buenos Aires, ilustrado por sua irmã Norah.
79
Em 1924, retornou para Buenos Aires. Fundou a segunda época da
revista Proa, com Ricardo Güiraldes, Rojas Paz e Alfredo Brandán
Caraffa. Em 1925, publicou seu segundo livro de poemas, intitulado
Luna de enfrente e um volume de ensaios, Inquisiciones. Colaborou
ativamente com a revista Martín Fierro. Conheceu a escritora Victoria
Ocampo, com quem iniciou uma longa amizade. Encontrou-se com o
poeta italiano Marinetti. Em 1926, lançou seu segundo livro de ensaios,
El tamaño de mi esperanza. No ano de 1927, veio à luz El idioma de
los Argentinos. Iniciou sua amizade com Néstor Ibarra, seu primeiro
tradutor para o francês. Em 1929, publicou um novo livro de poemas,
Cuaderno San Martín, com o qual obteve o segundo prêmio municipal
de poesia.
20
Caudilhismo: exercício do poder político caracterizado pelo agrupamento de
uma comunidade em torno do caudilho. Caudilho é a liderança política ligada a
setores tradicionais da sociedade, baseando seu poder no populismo. Os
caudilhos surgiram na primeira metade do século XIX no Uruguai e na
Argentina. Na Argentina, o caudilhismo se desenvolveu devido à necessidade de
proteção e organização militar da região. O caudilho é substituído pelo
presidente.
81
Esta “europeización” de la Argentina pronto
demostró ser al mismo tiempo la mayor fuerza y
la mayor debilidad del país. Los dirigentes de la
década del Ochenta no sólo contribuyeron al
sorprendente y rápido progreso de la ciudad y de
la nación a fines del siglo XIX, sino que también
crearon las condiciones de una economía cada vez
más dependiente de los mercados, industrias y
recursos extranjeros (SCOBIE, 1986, p. 96).
21
Peronismo é o nome popular dado ao Movimento Nacional Justicialista,
criado e liderado a partir do pensamento de Juan Domingo Perón, presidente da
Argentina eleito em 1946, 1951 e 1973.
84
resultaram em novos agrupamentos das classes menos favorecidas:
passou-se do conventillo para a villa miséria, finalizando o papel da
questão urbana de Buenos Aires.
85
Em duas décadas a metamorfose atingiu Buenos
Aires em todos os aspectos, desde o tipo físico dos
seus habitantes aos hábitos alimentares, passando
ainda pelo vestuário, a língua, a música, as festas
e a arquitetura (ZITO, 1998, p. 66).
86
Mientras que los recién llegados no tenían otra
alternativa que trabajos pesados y alojamientos
precarios, la clase alta gozaba de las grandes
ventajas que le ofrecía su ubicación en el corazón
de la ciudad. Pero la mayoría de la población
porteña buscaba mudarse fuera del centro. Los
obreros especializados y empleados – 63 a 73%
del total de la población masculina ocupada –
buscaba seguridad y progreso en casas
individuales. Mejores condiciones de vida,
terrenos más baratos y alquileres más bajos,
posibles por el desarrollo del sistema traviario,
empujaron rápidamente a estos sectores hacia los
barrios (SCOBIE, 1986, p. 324).
22
Data da Independência da Argentina.
23
Avenida Presidente Roque Sáenz Peña, mais conhecida como Diagonal Norte,
importante avenida da cidade de Buenos Aires, une a sede do Poder Executivo
87
Nessa época, a Rua Florida se torna a artéria comercial de Buenos Aires,
com lojas elegantes, ao estilo de Paris e Londres, enquanto a Rua Alvear
se torna o berço das grandes mansões de estilo francês da alta burguesia.
89
Como afirma Molloy (1999), o eu de Baudelaire está ligado ao
espetáculo da cidade, e a projeção do sujeito nesse espetáculo para vivê-
lo e viver segue o recolhimento solitário e o isolamento.
90
moderna. O choque da transformação aparece diante da mudança
arquitetônica, e as recordações pessoais passam a fazer parte do poema.
Em Baudelaire lemos:
24
Existia o “espírito” daquilo que estava sendo registrado e simbolizava a união
da cidade com o sujeito.
91
y cuánta quebradiza luna nueva
infundirá al jardín su ternura,
antes que me reconozca la casa
y de nuevo sea un hábito!
(BORGES, 2008, p. 39).
92
2.5 Evaristo Carriego – antecessor de Borges
25
Vecinos: vizinhos. Os vencidarios foram adquirindo um sentido de identidade,
boa parte da população começou a trabalhar dentro de seus limites locais. Para a
grande maioria dos portenhos era o vecindario que dava sentido as suas vidas.
“Un hombre pertenecía a una cuadra o a un vecindario en particular y sólo en
forma secundaria y en menor grado a un barrio, una parroquia o la ciudad
misma”. (SCOBIE, 1986, p. 263-264)
94
Mientras las calles del centro cada jornada se
parecían más a las de las grandes capitales
europeas, las del barrio donde vivia Carriego se
quedaban en un esquema quasi provinciano,
permitiendo al poeta la añoranza de la casi
desconocida ciudad de su nascimiento, y también
de La Plata, donde pasó años infantiles
(GHIANO, 1964, p. 16).
96
El rio, el primer río. El hombre, el primer hombre
(BORGES, 2008, p. 72).
99
duvido que tivesse podido vê-la com essa peculiar
mistura de surpresa e afeto daquele momento
(BORGES, 2000, p. 63).
100
a luces en el día
(BORGES, 2008, p. 45).
101
Con la tarde
se cansaron los dos o tres colores del patio.
Esta noche, la luna, el claro círculo,
no domina su espacio
(BORGES, 2008, p. 26).
Jadeante
la ciudad que oprimió un follaje de estrelas
desborda el horizonte
y en la mañana llena
de passos y de sueño
la luz va abriendo como ramas las calles
(BORGES, 2008, p. 43).
[...]
y adentro las miradas
no precisan fijarse
que ya están cabalmente en la memoria.
102
Conozco las costumbres y las almas
y ese dialecto de alusiones
que toda agrupación humana va urdiendo
(BORGES, 2008, p. 46).
Quando quer, o poeta traz a cidade como ela é26 à baila, mas fica
evidente a preferência pelo bairro criado a partir de suas memórias
infantis ou quando encontra na cidade moderna um vestígio de passado,
como acontece no poema “Montevideo”. O poeta sabe que essa cidade
26
Ou seja, com todos os aspectos que a modernidade trouxe.
103
que descreve não pertence mais ao seu tempo, mas busca nela elementos
que evoquem uma imagem que lhe agrade, até que o real o acomete
novamente.
O poeta deixa claro que pertence àquele lugar que ele criou, que
sua identidade está na cidade de Buenos Aires de sua infância, local
onde ele se sente à vontade. Os pronomes possessivos nos ajudam a
ressaltar essa noção de se sentir bem em sua cidade.
104
Y somos desganados y argentinos en el espejo
(BORGES, 2008, p. 97).
(Y pensar
que mientras juego con dudosas imágenes,
la ciudad que canto, persiste
en un lugar predestinado del mundo,
con su topografia precisa,
poblada como un sueño,
con hospitales y cuarteles
y lentas alamedas
y hombres de lábios podridos
que sienten frío en los dientes)
(BORGES, 2008, p. 43 e 44).
105
Sua lírica paisagística e frágil dos três primeiros livros de poesia
revela uma Buenos Aires nova, desconhecida, surpreendida pela emoção
estética que os bairros humildes podem provocar. Alguns elementos da
cidade que se destacam nos poemas de Borges são:
Con la tarde
se cansaron los dos o tres colores del patio.
Esta noche, la luna, el claro círculo,
no domina su espacio.
El patio es el declive
por el cual se derrama el cielo en la casa.
Serena,
106
la eternidade espera en la encrucijada de estrellas.
Grato es vivir en la amistad oscura
de un zaguán, de una parra y de un aljibe
(BORGES, 2008, p. 26).
Os meios de transporte
Os meios de transporte também foram um elemento presente nas
obras de Borges. Nesses poemas que estudamos pouco aparecem, já que
retratam a simplicidade portenha do arrabalde, local onde não havia
muitos meios de transportes na época representada pelo poeta.
Identidade
Armazém
[...]
Molino colorado:
remota rueda laboriosa en el viento,
honor de nuestra casa, porque a las otras
iba el río bajo la campanita del aguatero.
[...]
109
Jardín, frente a la verja cumplieron sus caminos
los sufridos carreros
y el charro carnaval aturdió
con insolentes murgas.
[...]
Antepassados
Los daguerreotipos
mienten su falsa cercania
de tiempo detenido en su espejo
y ante nuestro examen se pierden
como fechos inútiles
de borrosos aniversários
(BORGES, 2008, p. 30).
111
O poeta traz à baila alguns nomes marcantes da história de
Buenos Aires, como o de Rosas27, que regressam como sombras e
ajudam a desenvolver a obra do autor. A poesia é ditada pelo
conhecimento histórico e traz a voz dos antigos. Esse passado aparece
como um círculo que se repetirá pelos que ainda estão por vir. Sendo
assim, o tempo não avança, tudo o que vai ocorrer já ocorreu no
passado.
Sobre Isidoro Acevedo, avô do poeta, Borges escreveu um poema
publicado no livro Cuaderno San Martín, que sobreviveu a todas as
numerosas censuras feitas pelo próprio autor ao livro. Os versos contam
sobre a morte de seu avô, que ocorreu na casa onde Borges morava
quando menino, em meio a um delírio, na cama:
27
Juan Manuel José Domingo Ortiz de Rozas y López de Osornio foi
governador da Província de Buenos Aires.
112
He conocido muchas tierras; he visto uma mujer y
dos o tres hombres.
He querido a una niña altiva y blanca y de una
hispánica quietud.
He visto un arrabal infinito donde se cumple una
insaciada inmortalidad de ponientes.
He paladeado numerosas palabras.
Creo profundamente que eso es todo y que ni veré
ni ejecutaré cosas nuevas.
Creo que mis jornadas y mis noches se igualan en
pobreza y en riqueza a las de Dios y a las de todos
los hombres
(BORGES, 2008, p. 79).
113
As suas deambulações nas ruas da cidade são dotadas da emoção
de quem descobre o mundo com a mesma intensidade de um olhar de
criança, já que essa experiência pelo bairro se dera tardiamente. As
sensações mais diversas que encontra ao caminhar pelos bairros ganha a
atenção do jovem poeta.
114
Pero sin ruido y siempre,
en cosas incomunicadas, perdidas, como lo están
siempre las cosas,
en el gomero con su veteado cielo de sombra,
en la bacía que recoge el primer sol y el último,
perdura ese hecho servicial y amistoso,
esa lealtad oscura que mi palavra está declarando:
el barrio
(BORGES, 2008, p. 105).
28
Divisão dos quarteirões de Buenos Aires. Disponível em:
http://www.biblioteca.fapyd.unr.edu.ar/leaves/archivo/urbanismo/mas-
informacion/buenos-aires/planos-planes.htm. Acesso em 20 de novembro de
2013.
115
Mis pasos claudicaron
cuando iban a pisar el horizonte
y quedé entre las casas,
cuadriculadas en manzanas
diferentes e iguales
como si fueran todas ellas
monótonos recuerdos repetidos
de una sola manzana
(BORGES, 2008, p. 35).
29
Evaristo Carriego, de 1930, e El compadrito: su destino, su música, sus
barrios, de 1945, escrito em parceria com Silvina Bullrich.
117
como esperando un ángel.
118
119
CAPÍTULO III
Perspectivas de cidade
30
Esse artigo de Cruz, publicado na revista digital Sibila, não possui numeração
de página em sua publicação.
120
poeticamente como o oposto do ideal. A cidade estava repleta de
cidadãos inseguros, que eram obrigados a se adaptar às mudanças
modernas desde os atos mais simples, como a iluminação, até as
indústrias. Um processo que atingia, em diferentes proporções, toda a
sociedade, desde os mais favorecidos aos menos favorecidos. Tudo
passou a girar em torno das cidades, que deveriam manter a ordem
social, mas estavam enfrentando o caos de uma transformação trazida
pela modernização: “[...] como um novo tipo de paisagem, um novo tipo
de sociedade. De início, no entanto, era difícil separar o que era novo
das imagens tradicionais da cidade” (WILLIAMS, 2011, p. 242).
Nos poemas de Cesário Verde e Borges, a cidade nos é
apresentada como um sistema, uma organização, o que é considerado
uma nova forma de olhar para a época. Apesar de serem mudanças, elas
ocorrem de forma sistemática, como se fossem uma forma de repressão
organizada, onde todos os habitantes são obrigados a se adequar
voluntariamente. Havendo um elo, uma conexão, entre a sociedade e as
mudanças estruturais, políticas e econômicas como as engrenagens de
Tempos Modernos, de Chaplin.
Essa visão é mais madura em Jorge Luis Borges, que transcende o
contraste campo/cidade, nos apresentando a cidade através de uma
comparação presente/passado. Cesário Verde, preso às suas lembranças
rurais que norteiam sua visão, nos aponta uma cidade, na direção de
Williams, contrastando a inocência do campo ao vício da cidade. Ambos
reconhecem a forma de organização diferenciada da cidade moderna que
está surgindo, as novas relações criadas entre os homens que nela
habitam, a perda de alguns referenciais.
Cesário Verde foi quem primeiro cantou a cidade de Lisboa, “nos
ensinou a ver a cidade”31. Já Borges não foi o primeiro cantor do
arrabalde portenho. O primeiro poeta urbano de Buenos Aires foi
Evaristo Carriego (1883-1912), poeta que inspirou Borges.
Além de residirem em países distintos, os poetas também são de
gerações díspares. Cesário Verde já havia falecido quando Borges
nasceu. O que de fato os aproxima é que ambos os poetas viveram um
momento especial em suas cidades: quando elas estavam se
modernizando – Lisboa em 1870 e Buenos Aires em 1900. Cesário
Verde viveu a modernização de Lisboa enquanto esta estava
acontecendo. Foi testemunha de cada mudança, viveu a fase de
31
Expressão utilizada pelo poeta David Mourão-Ferreira.(MOURÃO-
FERREIRA, 1981, p. 89).
121
transição, momento em que o novo convivia com o velho e, muitas
vezes, tomava seu lugar. Borges era criança quando sua cidade começou
a sofrer com as mudanças modernas e, em 1914, mudou-se para Europa
com sua família, ficando fora de seu país de origem durante sete anos.
Quando regressou a Buenos Aires, em 1921, a cidade já não era a
mesma, a mudança já havia se consolidado.
Ambos registram suas vivências pela cidade, assim como o fez
Baudelaire – poeta de quem descendem neste aspecto –, o ponto de
divergência é a maneira como o fazem. Cesário Verde registra quadros
do presente de Lisboa, como no poema “Noite fechada”.
[...]
la tarde entera se había remansado en la plaza,
serena y sazonada,
[...]
ꜟQué bien se ve la tarde
desde el fácil sosiego de los bancos!
(BORGES, 2008, p. 24).
123
campo, e Borges assume sua preferência pelo bairro que criou em sua
memória.
32
“Pode-se ir mais longe e dizer que a poesia urbana enquanto tal é uma
invenção daquele século XIX, uma invenção do que costumamos chamar de
capitalismo moderno. Por isso que falar em poesia urbana quase que se
confunde com falar em poesia urbana moderna, ou seja, uma espécie particular
de poema que procura representar a cidade moderna ou que está em vias de se
transformar em moderna” (CRUZ, 2012).
124
a obra dos autores. Cada um à sua maneira, escreveu um conjunto de
poemas que podem ser considerados “quadros”. Em Cesário, “quadros
lisboetas” e, em Borges, “quadros portenhos”.
Apesar de terem como assunto principal de sua poesia a cidade
moderna, o foco escolhido para observação é divergente. Borges virou
as costas para o Centro da cidade e voltou seu olhar para las orillas, as
zonas marginais da cidade, que também se encontravam em fase de
mudança, porém com um crescimento diferente do que vinha ocorrendo
no Centro. Já Cesário Verde, apesar de fazer algumas menções a lugares
do subúrbio de Lisboa, o que, principalmente, é cantado pelo sujeito
lírico são as zonas centrais da cidade. O poeta e o leitor adentram o
centro nervoso de uma cidade moderna:
126
chica, expressão usada por Borges. Em seus poemas, o poeta argentino
deixa claro esse sentimento de pertença.
128
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 110).
En busca de la tarde
fui apurando en vano las calles
(BORGES, 2008, p. 24).
130
tan lejos que no espera llegar” (BORGES, 2008, p. 70). A opção feita
por Borges, portanto, é diferente da feita por Cesário Verde. Enquanto o
poeta português deambula por ruas apinhadas de multidão, o poeta
argentino caminha por ruas “quase invisíveis”, vazias.
33
Quarteirão.
132
y sin sentido, iguales
a luces en el día
(BORGES, 2008, p. 45).
La rosa,
la inmarcesible rosa que no canto,
la que es peso y fragancia,
la del negro jardín en la alta noche,
la de cualquier jardín y cualquier tarde,
la rosa que la resurge de la tenue
ceniza por el arte de la alquimia,
la rosa de los persas y de Ariosto,
la que siempre está sola, [...]
(BORGES, 2008, p. 28).
133
conhecidos, como é o caso do poema “El general Quiroga va en coche al
muere”.
Na segunda forma, o poeta traz as memórias de locais que
frequentou quando criança, e, em suas caminhadas, observa e busca as
coisas que novamente habitam a memória do “eu-lírico”, como no
poema “Curso de los recuerdos”. Aqui, também entram as memórias
familiares, em especial o poema dedicado ao seu avô, “Isidoro
Acevedo”.
[...]
[…]
34
A janela como um objeto de contato de dois mundos diferentes, o de fora e o
de dentro.
137
y en los cristales hubo generosidades de sol
y en las hojas lucientes
dijo su trémula inmortalidad de estío
(BORGES, 2008, p. 29).
Juntamente amanhece
en todas las persianas que miran al Oriente
y la voz de un almuédano
apesadumbra desde su alta torre
el aire de este día
y anuncia a la ciudad de los muchos dioses
la soledad de Dios
(BORGES, 2008, p. 43).
138
Las ventanas con reja
desde la cual la calle
se vuelve familiar como una lámpara
(BORGES, 2008, p. 50).
35
Expressão utilizada pelo crítico Raymond Williams.(WILLIAMS, 2011, p.
244).
139
Borges, pelo contrário, como descreve a periferia, um lugar sem
muitas mudanças modernas, traz a presença da cor, suas ruas são
iluminadas pelo dia, pelas cores das casas e pelos entardeceres.
Con la tarde
se cansaron los dos o tres colores del patio.
Esta noche, la luna, el claro círculo,
No domina su espacio
(BORGES, 2008, p. 26).
140
Em Borges o tempo cronológico aparece de forma leve, não é o
tempo “avarento das tarefas do dia” que move o caminhar do poeta. O
escritor argentino marca sua poesia pela passagem do dia, não em horas,
mas pelas fases: manhã, tarde e noite. Essa marcação é deixada bem
clara em muitos de seus poemas.
En la cóncava sombra
vierten un tiempo vasto y generoso
los relojes de la medianoche magnífica,
un tiempo caudaloso
donde todo soñar halla cabida,
tiempo de anchura de alma, distinto
de los avaros términos que miden
las tareas del día
(BORGES, 2008, p. 47).
En busca de la tarde
fue apurando en vano las calles
(BORGES, 2008, p. 24).
141
3.2 A visão poética da cidade através dos poemas
142
descrições do cotidiano e a chegada da noite, em um tom melancólico.
Não há mais pressa, os trabalhadores deixam seus trabalhos e dirigem-se
para as ruas:
143
Esse aljube36 anunciado nos versos parece ser também uma
representação da cidade. A visão e o sentimento de prisão aliados ao
acender das luzes traz ao “eu-lírico” uma debilidade tamanha que o faz
declarar-se doente. O poema registra aquilo que provoca no poeta uma
angústia, uma sensação de sufocamento, certa melancolia – as prisões, a
velha Sé e as cruzes.
Conforme Helder Macedo (1975) e Oliveira Cruz (2012), essa
escuridão interna, que reflete o seu estado externo, é interrompida
quando o sujeito poético se dá conta da luminosidade e do movimento
da cidade. Aparece a alegria das tascas37, dos cafés, das tendas, das
tabacarias, que contrastam com o sentimento do eu poético.
36
Referência à cadeia de Aljube, situada em Lisboa, na freguesia de Santa
Maria Maior, recebia presos eclesiásticos até 1820, e mulheres acusadas de
delitos comuns, em 1920. A partir de 1928, até o ano de seu encerramento, em
1965, a prisão abrigou presos políticos do Estado Novo, presos de delitos
comuns e, ainda, instalações de serviços do Ministério da Justiça. No ano de
2015, será inaugurado o Museu da Resitência e Liberdade no edifício em que
funcionava a cadeia.
37
Bodega, taberna.
144
Na estrofe seguinte, há uma referência ao terremoto que destruiu
Lisboa em 1755, que matou inúmeras pessoas, e tornou favorável a
construção de uma cidade mais moderna e planejada no governo
pombalino.
145
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
um sopro que arrepia os ombros quase nus.
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 135)
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 135)
146
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
(CESÁRIO VERDE, 2006, p. 136)
(...)
38
“O orillero, morador desses bairros, muitas vezes trabalhador dos
matadouros e frigoríficos onde ainda se estimavam as destrezas rurais no
manejo do cavalo e da faca, inscreve-se numa tradição criolla de maneira muito
mais plena do que o compadrito suburbano (de quem Borges não propõe
150
esse “eu-lírico” “solitario”, é comparado à pátria pelo eu poético e
incorporado à busca de um nível intrínseco, por meio da citação dos
pontos cardeais, exceto o leste, onde ficavam as águas do rio da Prata.
Penumbra de la paloma
llamaron los hebreos a la iniciación de la tarde
cuando la sombra no entorpece los pasos
y la avenida de la noche se advierte
como una música esperada y antigua,
como un grato declive.
(BORGES, 2008, p. 23)
151
que conmovía el fondo.
(BORGES, 2008, p. 23)
152
sujeito e geografia da cidade. Já no primeiro verso o arrabalde é
apresentado como um reflexo do tédio, um subproduto da cultura da
cidade. “El arrabal es el reflejo de nuestro tedio” (BORGES, 2008, p.
35).
El pastito precario,
desesperadamente esperanzado,
salpicaba las piedras de la calle
y divise en la hondura
los naipes de colores del poniente
y sentí Buenos Aires.
(BORGES, 2008, p. 35)
153
não se vê fora de sua cidade natal e nega os tempos vividos no exterior.
Ao mesmo tempo em que o sujeito poético é habitante de Buenos Aires,
é também o cantor dessa mesma cidade. Percebe-se nesses versos a
identidade do poeta com o local em que está inserido, seu sentimento de
pertença a essa parte da metrópole que está representada em seus
poemas.
154
155
CONCLUSÃO
156
Ambos os poetas não se conformam com as mudanças modernas
que adentram a cidade e, de diferentes formas, demonstram esse
desagrado em seus poemas. Borges adota um discurso que focaliza as
ruas marginais da cidade, vendo-as como um lugar familiar, onde tudo
acontece pela evocação da memória. Enquanto Cesário Verde assume
uma postura ambígua em relação à cidade, um misto de fascínio e
rejeição, evocando-a com surpresa e desagrado com o novo.
Os poemas de Cesário Verde e Jorge Luis Borges aqui abordados
foram escritos a partir do impacto que os elementos da cidade
provocaram em seus sujeitos poéticos. Como afirma Sarlo (2008), o tom
nacional não depende da representação das coisas, mas da formulação
de uma pergunta: como é possível escrever literatura numa nação
culturalmente periférica? Cesário Verde e Borges escreveram sobre
nações periféricas, ou seja, foi desse entrelugar que nasceram as suas
particularidades poéticas.
A aproximação dos dois poetas, Cesário Verde e Borges, revela
muitas vezes formas de expressão distintas, permitindo avaliar como os
dois autores se relacionam com a aventura de viver numa cidade
moderna. Os poetas caminham sem se restringir a um único recorte,
deambulando de forma diferente, observam a cidade sem negá-la, até
porque são também um reflexo dela. As obras têm suas particularidades,
porém ambos os poetas revelam sua existência e sua forma particular de
ver o mundo a partir da cidade, o que nos permite considerá-los poetas
da modernidade.
157
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
158
_____. Um ensaio autobiográfico. Trad. Maria Carolina de. Araujo e
Jorge Schwartz. São Paulo: Globo, 2000.
159
_____. Um Baudelaire para o século XXI. Sibila, 2010. Disponível em
http://sibila.com.br/novos-e-criticos/um-baudelaire-para-o-seculo-
xxi/3579. Acesso em 24 abr. 2013.
160
MENDES, K. M.; THIMÓTEO, M. N. F. G. Cesário Verde e
Baudelaire: da leitura ao abraço. Anlecta, Guarapuava, v. 8, nº1,
jan./jun. 2007, p. 89-98,
161
SABINO, Lina Leal. Cesário Verde um poeta poliédrico. Assis, 1998.
Tese de Doutorado em Letras. UNESP – Universidade Estadual Paulista
– Faculdade de Ciências e Letras de Assis.
SILVEIRA, Pedro da. “Cesário Verde visto hoje por poetas portugueses”
In: Revista Colóquio/Letras. Inquérito, nº 93, set. 1986, p. 111-112.
162
SIMÕES, J. G. O mistério da poesia. Porto: Inova, 1971.
163