A Educação e A Cultura Nas Constituições Brasileiras

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SENADO FEDERAL» SUBSECRETÁRIA DE EDIÇÕES TÉCNICAS

ABRIL A JUNHO 1982 ; - '


ANO 19-NÚMERO 74
REVISTA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA
a. 19 n. 74 - abril/junho 1982

Publlcaçlo trimestral da
Subsecretaria de EdIções técnicas
do Senado Federal

Fundado. .:
Senador AURO MOURA ANDRADE
Presidente do Senado Federal
(1961-1967)

Oro ISAAC BROWN


secretário-Gerai da Presidência
do Senado Federal
(1946-1967)

Dlreçlo:
LEYLA CASTELLO BRANCO RANGEL

Redaçlo:
ANA VALDEREZ AYRES NEVES DE ALENCAR (Chefe)
PEDRO HEtV~CIO BOMTSMPQ

Capa de GAETANO R~

Composlçlo e Impressão:
Centro Gráfico do Senado Federal

Toda correapondêflcla deve ser dirigida à Subsecretaria de edIções Tknlcaa - Senado


Federal - Anexo I - Telefone: 223-4897 - 70180 - Brasllla - DF

R. Int. legisl. Brasllla a. 19 n. 74--lsbr,Jj un.1982


Os concaltos emItidos em artigos de colaboração
são de responsabilidade de seus autores

Preço deste exemplar: Cr$ 350,00

Encomendas à Subsecretaria de Edições Técnicas

SOLICITA-SE PERMUTA
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RevIsta de Informação legislativa. Ano 1- n. 1- março 1964·


BrasJlla, senado Federal

v. trimestral
Ano 1-3, n. 1-10, publ. pelo Serviço de Informação LegIslativa; ano 3-9,
n. 11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- n. 34- publ.
pela Subsecretaria de Edições Técnicas.

Diretores: 1964- Leyla Castello Branco Rangel.

ISSN 0034-835X
1. Direito - PeriódIcos. I. Brasil. Congresso. Senado Federal. Subse-
cretaria de EdIções Técnicas. 11. Rangel, Leyla Castello Branco, dlr.

"
o CCO 340.05
CDU 34(05)
SUMARIO

Pág.
HOMENAGEM
Aura Moura Andrade 5

OOLABORAÇAO
Justiça, segurança e desenvolvimento - A. Machado Pauperio 23
TeorIa geral do Poder Constituinte - José Alfredo de Oliveira Baracho 33
Due process of law e a proteção das liberdades individuais - Torquato Lorena
Jardim 69
Dois aspectos da imunidade formal dos parlamentares. Extensão aos deputados
estaduais. O inquérito policial - Ronaldo Rebello de Britto Poletti 95
A educação e a cultura nas Constituições brasl1eiras - Rosalvo Florentino 103
O impacto dos tratados e resoluções nas relações internacionais na América
Latina - Antônio Augusto Cançado Trindade 159
Notas sobre a justiça na Alemanha - Francisco de Paula Xavier Neto 183
Realidade jUrldica atual da empresa pública brasileira - Vera Galvão 243
Os efeitos da falência sobre a alienação fiduciária - Arnoldo Wald 261
Publicação, reprodução, execução - direitos autorais - Antônia Chaves 273
Os processos modernos de comunicação e o Direito de Autor - Carlos Alberto
Bittar 287

O problema fundiário no Distrito Federal - enfoque histórico e juridico -


José DileTmando Meireles 301
Notas sobre o po.sicionamento da mulher no tempo e no espaço - Paulo de
Figueiredo 307

PUBLICAÇõES
Obras publicadas pela Subsecretaria de Edições Técnicas 397

R. Inf. legi.l. IrCl.mCl CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 3


HOMENAGEM

Auro Moura Andrade

A Revista de Informação Legislativa e a Subsecretaria de Edições


Técnicas, por imposição de dever e por impulso de gratidão, homenageiam
não só o político liberal que o Pais vem de perder, como o administrador
que lhes deu vida e o amigo que lhes deu apoio e assistência.
t sabido que, sob a presidência de Moura Andrade, o Senado Federal
recebeu o influxo de uma administração dinâmica que procurou imprimir
maior eficácia aos métodos de trabalho pela modernização dos instru-
mentos manejados.
Deve-lhe a Casa a criação do Serviço de Radiodifusão, com vistas a
uma futura Rádio do Congresso Nacional - constante preocupação do
inquieto administrador.

R. Inf. leSi". Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 5


Ao inaugurar a "Hora do Congresso" na "Voz do Brasil", diria Moura
Andrade justificando a iniciativa:
"Afirmo que o Congresso Brasileiro, sempre tão atacado pelos
inimigos do regime, constitui, entretanto, a instância final da
salvação das liberdades públicas e é na democracia a última trino
cheira dos direitos dos homens livres. :e o Congresso um poder sem
armas, que não pode, pois, oprimir, e nasceu na verdade dos mo·
vimentos libertários dos povos contra as pressões. É o Congresso
um poder sem tesouro, que não pode, pois, comprar nem corrom-
per consciências, e nasceu, na verdade, das lutas do povo contra
a corrupção. Nestes últimos anos o rãdio passou a ser arma prefe-
rida dos inimigos da democracia. Esta, inexplicavelmente, longe
de defender-se, pondo-se pelo menos em igualdade de meios, li-
mitou-se à passiva conduta de ouvir e não falar."

Sentiu também o Presidente a necessidade de assegurar ao Senado


auto-suficiência em matéria de trabalho gráfico, para a eficaz disseminação,
tanto do expediente dos órgãos internos da Casa, quanto do trabalho le-
gislativo propriamente dito.

Por isso que, numa iniciativa arrojada, dotou a Câmara Alta de um


completo e moderno Serviço Gráfico, cuja utilidade, dentro do complexo
do Congresso Nacional, é tamanha que, hoje, não se poderia imaginar o
mecanismo das duas Casas legislativas sem tal empreendimento.
Igualmente, a Revista de Informação Legislativa teve no Presidente
Moura Andrade seu fundador.
Na primeira página do nQ 1 da publicação (janeiro/março de 1964),
explicaria ele o porquê da realização ou dos "novos caminhos" então
abertos:

NOVOS CAMINHOS

Em matéria de publicações, o Senado, como as demais Casas


legislativas, até ultimamente se vinha mantendo nas linhas clás-
sicas de um passado mais que secular.
Era o Diário do Congresso Nacional, com as suas imperfeições
e a rigidez da sua feição, a realizar, em âmbito muito restrito, a
divulgação da atividade do Plenário e das Comissões. Eram os
Anais, em sua luta pertinaz contra o aniquilamento de um atraso
de vários anos, imposto pelas gráficas incumbidas de publicá-los.
Era, episodicamente, uma ou outra edição comemorativa ou a se-
parata de um ou outro discurso, buscando dar relevo a este ou
àquele momento fugaz da vida da Casa. Era, em suma, um siste-
ma de publicações que apenas valia como documentário do pas-
sado, e jamais como contribuição para as realizações do presente.

6 R. Inf. Ic~i51. BrCl5ílill a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


o "Serviço de Informação Legislativa)" criado em 1963, com
o objetivo de fornecer aos membros do Senado da República novos
elementos de estudo, por meio de documentação instr~tiva do
trabalho em curso, acrescenta, agora, às suas realizações jã co-
roadas de êxito, a Revista de Informação Legislativa, dentro da
mesma linha de programação. Pretende ser útil tanto ao estudo
dos problemas em exame nesta Casa do Congresso - através de
trabalhos doutrinãrios e de pesquisa - como à divulgação, lã
fora, do que aqui dentro se fizer, no trato dessas matérias.
As suas pãginas estarão, pois, abertas aos que tenham subsi-
dios de estudo, de investigação ou de experiência, a oferecer à
obra legislativa do Pais. Elas serão, paralelamente, o veículo da
atividade dos legisladores, na apreciação dos problemas postos
sob o seu exame.
Com esses objetivos, é bem de ver que à Revista de Informação
Legislativa, como ao Serviço que a vai editar, está reservado um
grande papel.
AURO MOURA ANDRADE

Atente-se, no último parãgrafo do texto transcrito, para a mensagem


de encorajamento de Moura Andrade ao periódico que vinha de fundar e
ao recém-nato Serviço de Informação Legislativa - criação também sua,
influenciada pelo idealismo e pela visão do Dr. Isaac Brown, então Se-
cretário-Geral da Mesa do Senado - Serviço posteriormente transformado
na atual Subsecretaria de Edições Técnicas.
Essas palavras de incentivo, registradas na apresentação do periódico,
repetiram-se no dia-a-dia da vida do Serviço e da Revista, traduzidas cons-
tantemente em apoio concreto em termos de meios de trabalho, de suges-
tões para o empreendimento de novas tarefas, de acato às iniciativas do
setor, de aplausos encorajadoxes a cada passo.
~ grato à Subsecretaria de Edições Técnicas e à Revista de Jnformação
legislativa lembrar que o Presidente Moura Andrade, mesmo após afas-
tar-se do senado Federal, permaneceu em constante contato com o setor,
solicitando publicações elaboradas pela equipe, fazendo-se presente no
interesse de receber cada nÚDlero da Revista, participando de eventos, em
que a Subsecretaria se fizesse representar. Haja vista que, na IV Bienal
do Livro promovida em São Paulo, em 1976, o "stand" do Senado Federal,
ali instalado pela Subsecretaria de Edições Técnicas, foi inaugurado com
entusiasmo por Auro Moura Andrade.
Nosso preito de saudade ao Fundador da Revista de Informação Le-
gislativa, ao Presidente que criou o Serviço de Informação Legislativa e
deu-lhe inteiro apoio à direção e aos trabalhos, ao Amigo da Subsecretaria
de Edições Técnicas, cuja lembrança, com orgulho e gratidão ela mantém
e reverencia.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./ja. 1982 7


o senador Auro Moura Andrade, o Ministro da Educação e Cultura, Senador Ney
Braga, e a Diretora da Subsecretaria de Edições Técnicas, na inauguração do st.nd
desta Subsecretaria na IV Bienal Internacional do Livro.
DADOS BIOGRÁFICOS
Aura Soares de Moura Andrade nasceu em Barretos, Estado de São
Paulo, a 19 de setembro de 1915. Era filho de Antônio Joaquim de Moura
Andrade e D. Guiomar Soares de Andrade. Casou-se com D. Beatriz Stella
Prado de Andrade e deixou três filhos: Aura Moura Andrade Filho, Antô-
nio Joaquim Moura Andrade Neto e Beatriz Helena Prado de Moura An-
drade.
Cursou o Liceu Franco-Brasileiro e o Liceu Nacional Rio Branco. No
Instituto Caetano de Campos, formou-se em Psicologia, Lógica e Pedagogia.
Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito de São Paulo.
Teve ativa participação na vida da escola do Largo de São Francisco,
como orador oficial do Centro Acadêmico XI de Agosto, agremiação re-
presentativa dos estudantes da Faculdade, e fundador e redator-chefe dos
jornais acadêmicos Democracia e A Urna, fechados em 1937, e Folha Do-

8 R. Inf. le!lill. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


brada, fechado em 1938. Os simples títulos desses jornais estudantis e
a indicação dos anos em que foram fechados revelam o posicionamento
democrático de Auro Moura Andrade, em oposição, àquela época, ao re-
gime ditatorial implantado por Vargas no Brasil, sob o rótulo de Estado
Novo e mediante o golpe de 10 de novembro de 1937.
Doutor Honoris Causa pela Universidade de São Paulo (1955), Assessor
Jurídico e Consultor Econômico da Presidência da Mobilização e Coorde-
nação Econômica (1942-1943), Diretor da Associação Comercial de São
Paulo (1944-1946), Diretor-Superintendente da revista especializada em
assuntos econômicos, Digesto Econômico, publicada sob os auspícios da
Associação Comercial de São Paulo e da Federação do Comércio do Estado
de São Paulo (1946-1948), Diretor-Conselheiro e Presidente interino da
Comissão Geral de Preços, órgão da Coordenação e Mobilização Econômica
em São Paulo (1943-1944), Membro cI'e Honra da Faculdade de Filosofia
Mater Verbi, São Paulo, e da Associação dos Antigos Alunos da Faculda-
de de Medicina da Universidade de São Paulo, Membro do Comitê de Honra
do Patronato Assistencial "Imigrantes Italianos", Membro de Honra e
Grande Benfeitor da Cruzada Pró-Infância. São Paulo, Assessor Jurídico
e Consultor Técnico da Comissão de Estudos, Organização e Desenvolvi·
mento da Lavoura Paulista junto à Secretaria da Agricultura do Estado de
São Paulo, Auro Moura Andrade exerceu a advocacia nos foros da Capital
e do Interior, no Tribunal de Justiça do Estado, no Tribunal de Segurança
Nacional e no Supremo Tribunal Federal. até 1959, quando assumiu a li-
derança da Maioria no Senado Federal.
Redemocratizado o País em 1945, Auro Moura Andrade candidatou-se
.à Assembléia Constituinte do Estado de São Paulo, sob a legenda da
União Democrática Nacional (UDN) que era, então, o grande partido de
oposição, tanto no plano federal. como no estadual. Elegeu-se e foi, assim,
constituinte (1946/47) e, a seguir, Deputado à Assembléia Legislativa
paulista (1 ~ Legislatura 1947/50).
Na Assembléia, foi Presidente da Comissão de Leis Complementares
à Constituição, membro da Comissão de Constituição e Justiça, Presidente
da Comissão Especial de Defesa da Lavoura e membro da Comissão de
Finanças. Desde logo se salientou pelos notáveis dotes oratórios que o co-
locaram na galeria dos grandes oradores parlamentares do País. Foi Líder
das oposições coligadas na Assembléia, sustentando duras batalhas parla-
mentares contra o governo estadual de Adernar de Barros. Certa feita,
fazendo obstrução a projeto de aumento de impostos, chegou a permanecer
na tribuna da Assembléia por mais de 24 horas.
Em 1950, elegeu-se Deputado federal com mandato até 1954. Na
Câmara Federal foi membro da Comissão de Tratados e Diplomacia e da
Comissão de Finanças.
Em 1954, foi eleito Senador pelo Estado de São Paulo, com mandato
até 31 de janeiro de 1963. Jâ então deixara a UDN, vindo a fixar-se, defini-
tivamente, no PSD.

R. Inf. legill. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 9


Nesse período, integrou as Comissões de Constituição e Justiça, de
Finanças e de Relações Exteriores, a Comissão Mista do Congresso Nacional
de Revisão da Consolidação das Leis do Trabalho e atuou na qualidade de
Vice-lider (1958-1959) e lider da Maioria (1959-1960). Foi também Vice-
Presidente do Senado, de 10 de março a 25 de agosto de 1961, data a partir
da qual presidiu a Casa e o Congresso Nacional até 1967.
Reelegera-se Senador, em 1963, com a expressiva votação de 1.060.667
sufrágios, para um mandato de 8 anos. A primeira eleição para a Presi-
dência do senado data de 11 de março de 1962 e as subseqüentes efetiva-
ram-se em 2 de fevereiro de 1963, 10 de março de 1964, 24 de fevereiro de
1965, 28 de fevereiro de 1966 e 2 de fevereiro de 1967.
No periodo anterior à Revolução, como Senador, Auro Moura Andrade
concorrera ao governo de São Paulo, enfrentando nas urnas Adernar de
Barros e Jânio Quadros que apoiava Carvalho Pinto; no período imediata-
mente posterior, candidatou·se à Prefeitura de São Paulo, no último pleito
direto realizado para a chefia do Executivo Municipal.
Como Presidente do Senado e do Congresso, teve partdpaçào de pri-
meiro plano nos principais acontecimentos políticos do Brasil.
Apenas a título exemplificativo, lembre-se de que coube ao Senador
Auro Moura Andrade, como Presidente do Congresso, declarar vaga a Pre-
sidência da República. em 1961, pela renúncia de Jânio Quadros, e dar
posse a João Goulart, Vice-Presidente da República. Em 1964, pela segunda
vez lhe competiu declarar vaga a Presidência da República, quando o Pre-
sidente João Gouiart deixou Brasília. Presidiu à eleição do Mare~hal Cas-
tello Branco, diplomou-o e o empossou.
Na crise de 1961, figurou entre aqueles que trabalharam para encon-
trar uma fórmula institucional conciliatória, capaz de evitar a guerra civil,
fórmula, afinal, alcançada na adoção do sistema parlamentarista de governo.
Quando o Gabinete chefiado por Tancredo Neves - o 1Q do parla-
mentarismo - renunciou, Auro Moura Andrade foi convidado para formar
o novo governo. Seu nome chegou a ser aprovado pelo Parlamento, mas o
Senador acabou declinando da honrosa escolha, em face da impossibilidade
de constituir-se um ministério realmente parlamentar.
Na fase difícil que se seguiu à renúncia do Presidente Jânio Quadros,
o Senador Moura Andrade falou incessantemente à Nação, na defesa das
instituições democráticas então ameaçadas.
A 10 de março de 1962, dizia (1);

"A crise nacional se agrava pondo em fisco as liberdades pú-


blicas e a própria Constituição. A situação econômica é catastro-
(1) DCN - 11-3-e2.

10 R. Int. legisl. 8rasília a. 19 n. 74 abr./iun. 1982


fica e a inflação devora o Pais. Tudo é pretexto para alarmar a
Nação. Apelo para o Exército, para a Marinha e para a Aeronáu-
tica, a fim de que sustem as veleidades dos agitadores e não ani-
mem os propósitos dos que anarquizam este País."
Guardião da soberania do Congresso Nacional, afirmava ao inaugurar
a ~essãoLegislativa Ordinária de 1962:
"As ameaças com que tentam agravar o Congresso represen-
tam um triste e prolongado espetáculo de imaturidade politica, de
arrogância e de leviandade de seus autores e, por outro lado, iden-
tificam os desafetos do regime, que até aqui se acobertavam sob o
manto da legalidade e que já podem ser apontados como farisem;
da democracia e inimigos da ordem constituída.
As autoridades estão no dever de impedir, em nome da ordem
constitucional, da paz pública e do bem nacional, a deflagração de
greves de fundo meramente político, que se anunciam sob a mais
perfeita inspiração comunista, visando a paralisar o País e levá-lo
ao ato final da calamidade, da vergonha e da inconsciência patri-
ótica. É preciso enfrentar os agitadores, onde quer que estejam e
atuem: no Legislativo, no Executivo e nas entidades, na imprensa
e nos sindicatos, nas bases militares e nas bases diplomáticas - agi-
tadores fardados ou civis, mas sempre agitadores, agindo fora dos
limites da lei e tentando destruir os poderes constitucionais da
República."
No ano seguinte, instalando a Sessão Legislativa, proferiu o Senador
Moura Andrade, da Presidência do Congresso Nacional, as seguintes pa-
lavras (2):
"Parece-me inadiável que os democratas tomem posição ante
os crescentes perigos que ameaçam o regime. Sem dúvida, a de·
mocracia é uma arma para a liberdade; sem dúvida, é instrumento
para a prosperidade. Mas se não se maneja a arma contra os inimi-
gos da liberdade, se não se usa o instrumento na oficina do tra-
balho nacional, ela se destrói, ou se torna sem sentido humano,
vazia de finalidade.
Numa comunidade democrática existimos para auferir os bens
da democracia, afastando dela os seus inimigos, venceado através
dela as nossas adversidades.
É preciso agir com tal vigor que os interesses subalternos
dos cúpidos e as preocupações demagógicas dos aventureiros não
mais atuem e só permaneça a inspiração da verdade e do bem pú.
blico, como condição do exercicio da democracia. Somente assim
estaremos afirmando o nosso compromisso na defesa dos valores
----
(2) DCN - 1<1-:3-63.

R. In'. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 11


morais, culturais e espirituais que dentro da liberdade se somam e
só dentro da liberdade realizam a dignidade humana, a indepen-
dência dos povos e a soberania das nações. Para isso precisamos
dar todo apoio aos padrões morais absolutos que a democracia
contém ou desperta, promover a união interna de nossa Nação e
a união externa com as demais nações democráticas."
A 12 de setembro de 1963, por ocasião da Rebelião de Brasilia, o Se-
nador Moura Andrade, da Presidência do Senado. exortava os brasileiros à
defesa da Pátria (3):
"Como Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacio-
nal, entendo ser de meu dever alertar a Nação e exigir, nos limi·
tes máximos de minha autoridade institucional, que os demais res-
ponsáveis pela crdem democrática no País se reúnam e atuem com
decisiva e sempre crescente energia no sentido de pôr cobro à
marcha a que, no plano inclinado da subversão, está sujeita a or-
dem constitucional do Brasil.

o Brasil está sendo ocupado e não se defende. Os que amam


esta terra, as liberdades que ela proporciona, os direitos que nela
desfrutam, os que estimam e respeitam a Constituição e os Pode-
res que ela instituiu, os que acatam e proclamam a autenticidade
democrática das nossas Forças Armadas, devem auxiliar a que es-
tas forças possam cumprir o seu dever, alertando os seus chefes,
colaborando para que não se conspurque, em sublevações antipa-
trióticas, o trabalho da Nação ou a farda e a honra de nossos sol·
dados.
Já suportamos o máximo que deveríamos suportar.
A democracia precisa defender-se. As Forças Armadas, que
sustentam as instituições, saibam que, para sua glória e honra, as
instituições e os que a representam sustentam-nas irredutivelmen-
te."
Em 19 de abril de 1963, o Senador Moura Andrade fora condecorado
com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco, tendo sido agraciado, no mesmo
ano, com a Grã-Cruz da Ordem da Bandeira da Iugoslávia c a Grã·Cruz da
Ordem do Mérito Militar.
Em 12 de novembro de 1963, ao receber do Ministro da Guerra. Jair
Dantas Ribeiro, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Militar, proferiu o seguinte
discurso:
"Sabem Vossa Excelência e seus ilustres companheiros de glo-
riosa farda quanto tem sido profunda a confiança por mim deposi·
(3) DCN - 13·9-63.

12 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 Obr./Jlln. 1982


tada, como Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional,
no Exército Brasileiro, em seus comandantes e soldados.
Chefe do Poder Legislativo da República, meu diálogo com as
Forças Armadas está revestido da lealdade devida à Constituição,
à paz do povo e à segurança nacional. São nossos deveres garan-
tir os direitos consagrados na Constituição; e são nossos direitos
exigir o cumprimento dos deveres constitucionais. Eis por que,
eminente senhor Ministro da Guerra, devemos estar alertas contra
as deformações que se fazem, nos dias atuais, do conceito de lega·
lidade. Legalidade não é apenas uma palavra, mas a própria or-
dem social, polftica e econômica de um povo. Ela não é um "slo-
gan"; é a nossa ordem como Nação e como Estado. A representa-
ção de uma autoridade não constituída é inadmissível: significa
subversão da ordem hierárquica, destruição da disciplina, quebra
de convivia - é uma intolerável usurpação. Entretanto, disto te·
mos exemplo no Pais. Individuos e entidades hã, não instituídos em
lei ou na Constituição, que usurpam a autoridade das entidades
constituídas, e, nas suas siglas, pretendem conter a legalidade de
que não são titulares. Falam à Nação, são apoiados ostensivamente,
insultam o Judiciário, ameaçam o Legislativo, oprimem os sindi·
catos livres, paralisam o trabalho e se alastram impunemente, sub-
metendo a lei e atentando contra as estruturas do regime."
Instalando o período de Convocação Extraordinária do Congresso Na-
cional, em 15 de dezembro de 1963, disse o Senador Moura Andrade (4):
"São terrivelmente difíceis os dias que se aproximam, não
bastassem ao Brasil as dificuldades dos dias em que nos achamos.
Urge adotar severas medidas de reabilitação nacional. De modo
definitivo, é preciso não esquecer que nada se pode construir quan·
do a política se exerce sem nenhum rigor de consciência nacional
e corrompe, por isso, os valores morais e cívicos do povo. Não
deixa de ser constrangedor ao Presidente do Congresso Nacional
declarar que este está se reunindo, não para uma pauta de tra-
balhos e rituais do processo legislativo, mas sim por uma pauta
de deveres para com o regime democrático. São, portanto, as nos-
sas angustiosas preocupações quanto ao futuro, quanto à ordem
jurídica e quanto à ordem social que nos reúnem e determinam o
ato de responsabilidade que aqui se pratica."
Na instalação da sessão Legislativa Ordinária de 1964, em 15 de março,
novo brado de alerta lançou o Senador Moura Andrade, da Presidência do
Congresso Nacional (S):
"~ indisfarçável a gravidade do momento. Para a perturba-
ção da tranqüilidade do povo, para o desrespeito aos principios
----
(4) DCN - 17·12-63.
(5) DCN - 16-3-e4 .

. R. Inl. leti.1. Bra.ma a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982 13


mais puros e mais válidos do regime, ninguém poderá contar
conosco, pois também estamos dispostos a todos os sacrifícios para
impedir que deflagre sobre a Nação a terrivel desgraça do fim da
sua Constituição democrática. Estamos decididos a interromper a
marcha do comunismo, as ameaças crescentes às liberdades do
povo, a perturbação de seu trabalho, a queda da produção, a de-
sordem social, a degenerescência de costumes, pois tudo isso já
invade as escolas, os lares, os campos. as oficinas e os templos,
e tantos males faz à Nação, porque a atinge nos seus mais sagra·
dos fundamentos. Ninguém se sente seguro e todos olham ansio-
samente para os dias vindouros. Os democratas precisam arregi-
mentar·se: chamar homens e mulheres, reunir a mocidade das
escolas e das oficinas, encontrar seus chefes, organizar sua luta,
ir às praças, aos jornais, aos rádios e às televisões, proclamar em
toda parte sua fé no regime e defender perante a História a inde-
pendência deste País, a liberdade deste povo, a autoridade das leis
e o respeito à Constituição. Advirto a Nação de que o processo usur·
patório da democracia começa pela usurpação da consciência e da
coragem moral dos homens. Lutem para impedi-lo. Quanto ao Con-
gresso, estará à altura do temário democrático: os deveres para
com o Brasil serão cumpridos. Se for para a democracia, o Con-
gresso dará todo o apoio. Se não, não."
A 29 de março do mesmo ano, lançou o Senador Moura Andrade um
manifesto à Nação. em que afirmava:
"O Congresso cumprirá, com a Nação e com as suas Forças
Armadas, tudo quanto seja necessário para defender a democracia
e salvar a honra e a liberdade do povo. Por mais grave que a situa-
ção seja, o Congresso não se transferirá de Brasília. Aqui é a nossa
trincheira. Só faremos outra, se ela for tomada. Sustentem e acla-
mem os democratas, com redobrado entusiasmo cívico, a posição
institucional da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Com as
Forças Armadas do Brasil, unidas num s6 corpo, revestidas de um
só espirito, o da legalidade democrática, nada há que temer. Na
qualidade de Presidente do Congresso Nacional, declaro ao povo
e às Forças Armadas que esta hora dramática do Brasil pode tam-
bém transformar-se, pela força invencível do patriotismo brasi-
leiro, na mais retumbante afirmação de vigor da democracia. Nada
obriga que seja o fim. Tudo indica que pode ser o recomeço."
Na madrugada de 2 de abril de 1964, em Sessão do Congresso Nacio-
nal (6), o Senador Moura Andrade, numa demonstração de grande coragem
e alto patriotismo, declarou a vacância da Presidência da República, inves-
tindo no cargo de Chefe da Nação o Presidente da Câmara dos Deputados,
Sr. Ranieri Mazzilli.
(5} DCN - 3·4-64.

14 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Disse o Presidente do Congresso, naquela histórica sessão:
"Comunico ao Congresso Nacional que o Senhor João Goulart
deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a Nação é
conhecedora, o Governo da República.

o Senhor Presidente da República deixou a sede do Governo,


deixou a Nação acéfala, numa hora gravíssima da vida brasileira
em que é mister que o Chefe de Estado permaneça à frente de seu
Governo. O Senhor Presidente da República abandonou o Governo.
A acefalia continua. Há necessidade de que o Congresso Nacional,
como Poder Civil, imediatamente tome a atitude que lhe cabe, nos
termos da Constituição, para o fim de restaurar, na pátria contur-
bada, a autoridade do Governo, a existência do Governo. Não po-
demos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado.

Recai sobre a Mesa a responsabilidade pela sorte da população


do Brasil em peso.

Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República e, nos


termos do art. 79 da Constituição Federal, é investido no cargo o
Presidente da Câmara dos Deputados, Senhor Ranieri Mazzilli."

Em 1965, o problema da Reforma do Poder Legislativo, como parte


das reformas estruturais de que o País estaria a necessitar, começou a ser
agitado, suscitando pronunciamentos que, não raro, traziam à tona mani-
festações reveladoras do absoluto desconhecimento do que se passa neste
setor das instituições democráticas.· Coube, então, ao Presidente Moura
Andrade reivindicar para o âmbito do Congresso o debate sobre a matéria,
assentando com o Presidente da Câmara dos Deputados a constituição de
uma Comissão de Senadores e Deputados para estudar a reforma do Con-
gresso Nacional, do Poder Judiciário e das instituições político-administra-
tivas.
Instalando os trabalhos da Comissão Mista, disse Moura Andrade:

"Não se faz nenhuma revolução para viver em estado revolu-


cionário, e sim, para criar ou restabelecer um Estado de Direito.

As revoluções que assim não procedem, despertam o espírito


de "revanche" e criam condições para movimentos contra-revolu-
cionários constitucionalistas.

A revolução de 1930, durante dois anos, exercitou o que enten-


dia por direito da revolução, aceitou uma certa coexistência com as
leis do Estado de Direito contra o qual se erguera, mas descurou
de organizar a Nação constitucionalmente.

R. Inf. legisl. BrGsília G. 19 n. 74 obr./i"'" 1982 15


o fato acabou por dar lugar ao movimento de São Paulo,
reivindicatório de uma ordem constitucional - a chamada Revo-
lução Constitucionalista.
A Revolução de Março de 1964, de característica diversa, pois
mantendo a Constituição tornou-se Constitucionalista, deve, por
isso mesmo, compreender as ansiedades da Nação por uma vida
constitucional estável, em que se realizem as verdadeiras razões
da Revolução.
Isto se tornará impraticável, caso antes de 31 de janeiro de
1966 o Poder Executivo e o Poder Legislativo não se entendam
quanto à inarredabilidade dos fundamentos revolucionários e à im-
prorrogabilidade de condensar na reestruturação constitucional
esses fundamentos, de modo a que a transit6ria legalidade revo-
lucionária do Ato Institucional seja absorvida na organização jurí-
dica, política e econômica da Nação.
Não é explicável, e é mesmo irrazoável, que uma revolução
suponha dever seguir o sistema tradicional do Estado de Direito
contra o qual se ergueu, pois a tradição já foi quebrada pela pró-
pria revolução.
A Revolução, para ser legítima, e não tornar-se usurpatória,
está obrigada:
1Q) a manter as instituições que ratificou;
29) a possibilitar, por todos os meios, que essas instituições
se reorganizem;
39) a respeitá-las como Poderes do Estado, que são, e are·
conhecê-Ias como expressão da vontade popular haurida nas urnas,
e acrescidas em autenticidade nacional pela vontade popular revo-
lucionária que as ratificou.
Desse modo, o Congresso eleito pelo povo e ratificado pela
Revolução possui, mais do que qualquer outro futuro Congresso,
a fonte de legitimidade que o eleva a uma capacidade quase cons-
tituinte, tendo, portanto, autoridade para reformular ou reformar
a Constituição, de modo a que organizado fique o Estado de Direito
conseqüente à Revolução."
A iniciativa do Presidente Moura Andrade foi coroada de êxito. As
alterações propostas pela Comissão Mista convocada pelo Presidente do
Congresso Nacional deram origem à Emenda Constitucional nQ 17, de 1965,
que introduziu na Carta de 1946 importantes inovações quanto à compe-
tência e ao funcionamento do Poder Legislativo.

T6 R. Int. leglll. Bralília a. 19 n. 74 abr.lJun. 1982


Em 1966, como Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Moura
Andrade presidiu à eleição do Marechal Costa e Silva, conferiu-lhe o diploma
e o empossou na Presidência da República.
Ainda em 1966 e no ano seguinte, o Congresso contaria com a atuação
inconfundível de seu Presidente no decorrer da tramitação do Projeto da
Carta de 1967. O pulso firme, a inteligência, a lucidez, o espírito democrá-
tico de Moura Andrade puseram-se, então, a serviço da Pátria.
Desse período, transcrevem·se dois dentre seus inúmeros pronuncia-
mentos. O primeiro data de 16-1-67 e foi expresso pelo Presidente ao anun-
ciar a votação das emendas apresentadas ao Projeto de Constituição (7):
"Srs. Congressistas, o Congresso vai, neste instante, iniciar a
votação das emendas apresentadas ao Projeto de Constituição.
Esta Presidência está certa de que, através das normas e instru-
ções que baixou, proporcionou o maior número de oportunidades
possível à discussão da matéria.
Do mesmo modo, tudo quanto considerou necessário, útil e
favorável à boa interpretação dos Senhores Congressistas foi por
ela, ainda que com dificuldades e fadigas, oferecido por meio de
publicações especiais que mandou proceder.
Pesquisas foram feitas por um serviço especializado, quadros
comparativos foram publicados, emendas, pareceres, retificações e
considerações foram impressas, e tudo foi distribuído a tempo e ao
seu tempo.
Assim, os Senhores Congressistas ficaram habilitados, não
obstante a exigüidade dos prazos, a discutir com precisão a ma-
téria, a localizar pontos de divergência e a identificar outros de
concordância. Muitos importantes discursos foram pronunciados:
de ordem doutrinária-constitucional; de ordem técnico-legislativa;
de natureza regimental e prática; de crítica ou de defesa apaixo-
nadas; de afirmações construtivas; de definições políticas e de atitu-
des compreensivas entre os líderes mais responsáveis.
Dispõe, assim, o Congresso Nacional, de instrumentos, se não
os ideais, pelo menos os estritamente necessários a aperfeiçoar o
Projeto de Constituição.
Tenho uma esperança muito fundada em que o Congresso de-
cida nesta hora fazendo o máximo para dar forma ao futuro do
País, retirando-o da instabilidade jurídica que tantas perturbações
traz à vida econômica e tanto desfigura os fatos sociais.
Sei que o anseio de liberdade e de justiça deve, neste grave
mas histórico momento, dominar os corações dos Congressistas
(7l OCN - 17-1-67.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 17


no esclarecimento dos princípios constitucionais que vão ser lança-
dos. Só posso desejar que cada um faça a sua parte, mesmo a
despeito de quaisquer conseqüências pessoais, reais ou imaginá-
rias.
Em nada melhoraremos a sorte do Pais se cometermos o equi-
voco de pensar em melhorar a nossa própria sorte. Precisamos ter
uma profunda consciência de destino, encontrar, dentro de nós
mesmos, o nosso dever e torná·lo inabaláveL Cumprir o dever,
antes de mais nada, fazer o que se deve, acima de tudo, porque do
contrário virão depois de nós os que nos julgarão de forma ine-
xorável.
Nenhum pode, nesta hora, ser tími.do ao ponto de omitir-se,
deixando de contribuir com a sua inteligência, a sua cultura e o
seu bom senso; nenhum pode ser arrogante ao ponto de destruir
o trabalho dos demais, pretendendo que apenas a sua inteligência,
a sua cultura, mas também a sua falta de bom senso é que possam
prevalecer.
Uma indeclinável fidelidade à Nação deve nortear a conduta
de todos. Todas as razões de ordem pessoal ou política são pequenas
demais para superar aquela mais alta, única e universal inspiração
para os nossos atos.
Neste momento, Senhores Congressistas, a Nação precisa dos
frutos da experiência de seus legisladores, de sua coragem cívica
e devoção democrática.
As nossas decisões, hoje, não nos afetarão a nós unicamente,
mas a toda a Nação, a cada homem, mulher e criança, e ainda a
cada um daqueles que estão para nascer.
A Presidência aspira à cooperação de todos, para que se possa
chegar a um resultado e, de seu mais íntimo desejo e de sua mais
ardente esperança, para que se possa chegar a um bom resultado.
Não haverá obstáculo algum aos que realmente quiserem
cumprir o seu dever. A Presidência não será hostil a ninguém,
mesmo aos que pretendam servir·se dela para alcançar fins que
náo estejam contidos no dever. Não será hostil a ninguém, mesmo
a estes, mas estes certamente encontrarão sérias dificuldades para
alcançar seus objetivos.
A Presidência espera que todos procedam como construtores
de um edifício, preocupando-se em primeiro lugar com as suas
fundações.
As normas de trabalho estabelecidas por esta Presidência
asseguram a votação de toda a matéria, sem surpresas para nin-

18 R. 'nf. legill. Bra.ília o. 19 n. 74 abr./lun. 1982


guém, com a margem de segurança que um método desta impor-
tância deve conter. Para cumpri-lo, precisa a Presidência contar
com a boa vontade, a compreensão, o concurso dos lideres.
Vale neste instante ressaltar que o processo de votação das
Emendas à Constituição se inicia dentro de um clima promissor,
que se deve, sobretudo, às lideranças na Câmara e no Senado,
particularmente ao Senador Daniel Krieger, (palmas) coadjuvado
pelo Deputado Raimundo Padilha (palmas) e compreendido pelos
Lideres do MDB, Deputados Vieira de Melo, Humberto Lucena e
Senador Aurélio Vianna.
A Presidência confia em que, durante os trabalhos de vota-
ção, ainda mais se acentue esta compreensão reciproca. Acredita
na imensa capacidade de diálogo desses eminentes brasileiros, tan-
tas vezes demonstrada nas horas cruciantes da vida nacional."
o segundo pronunciamento verificou-se no momento seguinte à exe-
cução do Hino Nacional, após a promulgação da Carta de 1967 (8):
"Srs. Ministros, eminentes autoridades, minhas senhoras e
ilustres convidados. Todos foram testemunhas de um ato histórico
na vida de sua Pátria. Estes momentos são vividos com extremo
civismo pelos povos. A realização de uma Constituição é a orga-
nização de um Estado, é a afirmação de um destino, é a consubs·
tanciação de um método de vida, é a formulação de uma esperança;
é assegurar direitos, garantias e liberdades; é prometer futuro
para o povo, é dar no presente mais arduamente para poder rea-
lizar esse futuro.
A realização de uma Constituição é uma tarefa de enorme
responsabilidade. maior ainda no instante em que ela está ter-
minada, maior ainda no instante em que ela for iniciada; maior,
ainda, nas mãos daqueles que vão executA-la, muito maior que
nas mãos daqueles que a fizeram.

Nesta oportunidade, a nova Constituição do Brasil está entre-


gue à Nação. Ela pertence a todos nós. Que ela, portanto, defenda
a nossa Pátria, seja o instrumento útil da nossa prosperidade, da
nossa liberdade, da nossa soberania; seja o instrumento vivo da
nacionalidade. Mal conformada, ainda que o fosse, ela representa
o retrato do Brasil dos dias atuais. Ela é uma tentativa profunda
de reconstrução nacional e assim ela deve ser recebida: com respei-
to para ser cumprida; com respeito, para ser estimada; com
respeito, para não ser traída; com respeito, para servir ao povo;
com respeito, para servir a toda a Nação, para que todos por ela
trabalhem, para que este Pais possa manter, efetivamente, a sua
(B) DCN - 25-1~7.

R. Inl. legill. 8rallllo o. 19 n. 74 obr./Jun. 1982 19


área territorial sempre intocada e possa manter a soberania na·
cional completamente a salvo de todas as investidas. Que o Brasil
pertença aos brasileiros, assim, de braços abertos para todo o mun-
do, para todos que vêm para o bem, para todos que chegam para
trabalhar, para todos que vêm construir ao nosso lado, lançar o
seu suor na nossa terra, plantar a sua casa no nosso chão, aqui ver
nascer os filhos e amar a nossa terra tanto quanto amaram a sua.
Neste instante, em que o Congresso Nacional, havendo decre-
tado, promulga a Constituição do Brasil, que tudo tenha sido
feito para que as Forças Armadas se mantenham unidas, para que
os Poderes se mantenham efetivamente harmônicos e indepen-
dentes entre si, para que todo poder no futuro emane do povo
e em seu nome venha a ser exercido, para o bem do Brasil, para
a defesa do nosso povo, para a glória da hora presente que esta-
mos vivendol"
Com o advento da Constituição de 1967, Moura Andrade enfrentou o
governo, com respaldo em ponderáveis e respeitadas parcelas da opinião
pública democrática do País, na questão da Presidência do Senado e do
Congresso Nacional.
Depois de longa luta parlamentar, recorreu ao Supremo Tribunal Fe-
deral, que deixou de decidir sobre o mérito, por haver-se tomado a matéria
prejudicada com o falecimento do Presidente da República Gen. Costa e
Snva e o impedimento do Vice-Presidente da República, na crise de 1969.
Sua tese, porém, foi vitoriosa, e restabeleceu-se o exercício da Presidência
do Congresso pelo Presidente do Senado Federal.
Este foi um dos maiores serviços prestados às instituições pelo Senador
Aura Moura Andrade e é hoje um dos pontos mais importantes para os
.:studiosos do regime. Os mais brilhantes juristas sustentaram a tese do
Senador, através de fecundos pareceres (9), sendo que os Professores Miguel
Reale, Alfredo Buzaid e José Frederico Marques tomaram-se os seus advo-
gados perante o Supremo Tribunal Federal.
A atividade política de Moura Andrade não se circunscreveu ao âmbito
interno. Foi delegado do Brasil à V Reunião de Consulta dos Ministros de
Relações Exteriores dos Estados-Membros da Organização dos Estados Ame-
ricanos, realizada em Santiago, Chile, em 1959.
Foi autor, juntamente com o então Ministro Horácio Later e o Depu-
tado San Thiago Dantas, da "Declaração de Santiago" (1959), aprovada
unanimemente pela OEA.
Em 1959, foi delegado do Brasil à V Conferência sobre a Organização
da Aviação Civil Internacional (OAIeI) em Roma.
(9) Vide a documenlaçlo "A Presidência do Congre88o Nacional", in Revl.e de Informeçlo Leglllellve
a. 6 n' 23 jul./ael. 1969, p. 65.

20 R. Inf. leg;s!. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jlln. 1982


Em 1956, foi enviado especial do Brasil à Hungria, como observador
parlamentar, para colheita de subsídios extragovernamentais visando ao
restabelecimento das relações diplomáticas entre o nosso e aquele pais.
A convite do Papa João XXIII, chefiou a delegação do Senado Federal
ao Vaticano e representou a Câmara Alta nos funerais do Presidente dos
Estados Unidos, John F. Kennedy.
Foi membro do Parlamento Latino-Americano e Presidente de Honra
da Associação Interamericana de Imprensa, entidade que congrega jornais
de todo o continente e cuja principal atividade é a luta em defesa da
lIberdade de imprensa, fundamental ao regime democrãtico.
Antes de terminado o segundo mandato de Senador, foi nomeado, com
autorização e aprovação do Senado, Embaixador Extraordinário e Plenipo-
tenciário do Brasil na Espanha.
Deixando a Embaixada e retornando ao Brasil, em 1970, não teve sua
candidatura apoiada pela Convenção da ARENA.
Nessa ocasião, rompendo longo silêncio, concedeu entrevista à im-
prensa de São Paulo, na qual analisou o revés político sofrido na Convenção
da ARENA e concluiu assim:
"Há os que servem, os que subservem e os que desservem.
Creio que estive entre os primeiros. Recuso-me a pertencer às
duas outras categorias. Continuarei apoiando os que servem até
que vençam e cumpram a missão final de possibilitar ao Brasil
horas apenas de servir. Com os que estiveram lealmente ao meu
lado, desejo uma ordem constitucional normalizadora - um Con·
gresso - e não meramente uma representação parlamentar des·
valiosa e desvalida."
Com tais palavras, jã há doze anos, Auro Moura Andrade pregava a
necessidade da normalização democrático-constitucional e da restauração
plena do Poder Legislativo, processo hoje em marcha, no quadro da "aber-
tura política" .
Convidado pelo Governador Paulo Maluf, retornou à vida pública, es-
colhido para a Presidência do Banco de Desenvolvimento do Estado de
São Paulo. Explicando sua decisão, declarou, no dia 2 de fevereiro de 1980,
após avistar-se com o Chefe do Executivo estadual, que retornava à política
por entender ser da sua responsabilidade voltar a apreciar os problemas
nacionais, principalmente em face das novas situações que vão surgir no
Pais.
E, fixando posição, afirmou:
"Fora da democracia não temos outra solução. Devemos
caminhar para rumos democráticos, nos quais sempre confiei, mas

R. Inf. legitl. lratília Cl. 19 n. 74 abr./jun. 1912 21


devemos também impedir que euforias excessivas prejudiquem
essa marcha,"
Criticando o extinto AI-5, o antigo Presidente do Congresso Nacional
disse:
"A partir do momento que o AI-5 foi revogado pelo Presidente
da República, o General Figueiredo, que apoiou a medida, se apre-
senta perante minha consciência como um homem que teve a
coragem de apresentar uma opção de liberdade e de democracia
para o Brasil. Não posso negar-lhe apoio."
xxx
Ao tomar conhecimento da morte do ex-Presidente Moura Andrade,
o Senado Federal, na primeira sessão ordinária da Casa, realizada poste-
riormente ao infausto acontecimento (lO), oiprovou requerimento datado de
31 de maio de 1982, assinado pelos Senhores Senadores Nilo Coelho, Passos
Pôrto, Bernardino Viana, Jutahy Magalhães, Almir Pinto e Lourival Bap-
tista, no sentido de que fossem prestadas ao ilustre desaparecido as home-
nagens da "inserção em ata de voto de profundo pesar" e da "apresentação
de condolências à família e ao Estado".
Procedida a leitura do documento, o Presidente em exercicio, Senador
Passos Pôrto facultou o uso da palavra aos Senhores senadores para o
eompetente encaminhamento do pedido e posterior votação, quando fala-
ram os Senadores Nilo Coelho. com aparte do Senador Gastão Müller; o
Senador José Fragelli, com aparte do Senador Jutahy Magalhães; o senador
Hugo Ramos e o Senador Passos Pôrto, na Presidência dos trabalhos.
As manifestações de sentimento pela morte do ex-Presidente do Senado
Federal traduziram a admiração do Plenário ante o político, o patriota, o
intelectual, o orador, o homem de atitudes, de cujo convívio a Câmara Alta
usufruíra anos a fio.
Finalmente a Presidência. a requerimento do Senador Hugo Ramos,
sem apoio regimental mas autorizada pelo Plenário, suspendeu a sessão
"em homenagem ao saudoso ex-Presidente do Congresso Nacional e à
rrande figura que realmente está inscrita na História pol1tica de nosso
Pais". -
Na sessão do Senado Federal. em 1C) de junho, ocuparam a tribuna
os Senadores Nelson Carneiro (11) e Dirceu Cardoso (11) e, no dia seguinte,
em sessão do Congresso Nacional, usou da palavra o Deputado Edison Lobão
(12), reverenciando a memória de Auro Moura Andrade.
O Senhor Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco.
Conselheiro Ruy Lins de Albuquerque, comunicou à Revista de Informação
Legislativa que, em sessão realizada a 2 de junho, aquele Tribunal, aco-
lhendo proposição do Conselheiro Jarbas Maranhão, aprovada à unanimi-
dade, fez constar da ata de seus trabalhos voto de sentida homenagem e
profundo pesar pelo falecimento do ex-Senador Auro Moura Andrade.
(10) DCN (S. 11) - 1.0-6-1882.
(11) DCN (S. 11) - 2-6-1882.
(12) DCN - 3-6-1982.

22 R. Inf, legisl. Brosílio o. 19 n. 14 obr./Jun. 1982


COLABORAÇAO

Justiça,
segurança e
desenvolvimento

A. MACHADO PAUPEBIO

Professor Titular da Universidade


Federal do Rio de Janeiro

A missão do jurista é objetivar o bem, que para ele é a justiça. O


trabalho do jurista é, portanto, descobrir o justo, como já queria
PLATÃO.

Mas a justiça, na linguagem bíblica, é entendida bem diferente-


mente do conceito aristotélico. Nela, ser justo é estar de acordo com
a vontade divina, ou seja, com a sua Lei. Temos aqui o conceito lato de
ju.stiça, em contraposição com o conceito jurídico de ARISTÓTELES. A
justiça significa, então, retidão 1'1UJ1'OJ, absoluta.

Sob o ângulo especificamente jurídico, porém, a justiça, fundamento


do direito, é, segundo ARISTÓTELES e SANTO ToMÁS (v. do Doutor

R. I"f. legisl. Brasília o. 19 n. 74 obr./jv_. 1982 23


ANGÉLICO a 8umma Theologica, TIa. llae., quo 57 et s.), a virtude que
tem }X)r objeto a partilha do meu e do teu, dentro de um grupo social.
Em sentido contrário, coloca-se o individualismo. Em vez de visar
à ordem do grupo, centra-se particularmente sobre o súdito, tendendo
a colocar em relevo as qualidades ou faculdades individuais. Dele emerge,
a partir do nominalismo, e sobretudo de GUILHERME DE OcCAM, a noção
de direito subjetivo, que vai ganhar, no mundo moderno, cada vez mais,
inaudito relevo.
Já no próprio direito romano, todo jus tem o sentido prático do
exercicio d.e uma potestas. Aliás, a expressão jus ac potestas, usada na
linguagem legislativa romana, corrobora aquele sentido.
Cada um passa, então, a formular a lista de seus direitos, derivados
da lei escrita, objetiva: direitos do imperador contra o papa, direitos
dos reis contra os súditos, direitos desse ou daquele senhor, que se
confundem, em última análise, mais ou menos, com o seu próprio poder.
De modo geral, o direito passa a ser confiscado pelos direitos egoístas,
fruto dos próprios interesses individuais.
Mas, afinal, se o vocábulo jus designa um bem, um valor, uma
prerrogativa, deve fazê-lo conforme a justiça. Sem o jus utendi o uso
não seria justo.
Nem São Francisco, que prescreveu aos seus irmãos a pobreza, nem
mesmo Cristo renunciaram ao ato de usar coisas exteriores, necessárias
à sua vida; renunciaram apenas ao poder que este ato envolve.
Sobre um mesmo bem, é possível distinguir, no uso que nos é
atribuído, o poder que nos vem do céu d.e gozá-lo e de consumi-lo, e o
poder que nos vem da lei humana.
Deus não tinha, no final da criação, concedido à espécie humana,
sobre os animais e as plantas, senão um domínio coletivo (G€n. I, 28
e 29). A instituição de direitos individuais tinha-se feito somente na
esfera do poder marital e do poder paternal. Mas, depois da queda
original, Deus revoga o comunismo incipiente e promulga a potestas
appropriandi, como nos deixam implícitos certos textos da Escritura
Sagrada.
Daí nasce uma nova ornem social, da qual será célula elementar
o direito individual, que se construirá inteiramente sobre a noção de
potestas, elevada à dignidade de direito. Ai:, leis positivas tornar-se-ão,
por excelência, então, fonte da ordem.
Enquanto o direito natural se faz a matriz da ciência jurídica
antiga, o direito subjetivo torna-se a matriz do direito moderno.

24 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


o positivismo jurídieo pretende fundar todo o direito na vontade
humana, levando-nos à ficção do contrato social e à ditadura. do
número. Se o positivismo jurídico, entretanto, continua majoritârio na
opinião dos juristas, encontra-se denunciado por eminentes teóricos do
direito e entrou em visível crise.

o próprio protestantismo de Calvino, baseado, como o de Lutero,


na Epístola aos Romanos, de São Paulo, trouxe ao pensamento moderno
decisiva promoção das leis positivas humanas, ordenando aos súditos,
com relação às ordens dos magistrados, atitude de obediência irrestrita.
Em sua preocupação de retorno às fontes bíblicas, o protestantismo
amputa a moral social clássica de um de seus elementos mais sutis e
também mais necessários, qual seja a justdça 8ocial, em que se funda
obrigatoriamente o direito. Tal fato ajudaria, sem dúvida, a engrossar
o positivismo moderno.
No século XVI, século de ouro para a Espanha, a Universidade de
Salamanca é, no meio das universidades européias, a capital cultural
por excelência.
As teses extremistas de MOLINA e VAZQUEZ não vão polarizar a
adesão de todos os mestres de Salamanca, mas vão ajudar a laicizar
racionalistamente a escola de direito natural.
Contudo, com base na filosofia tomista, que lá assume proporções
de Escolástica tardia, a Espanha católica colabora para o progresso da
ciência jurídica, esterilizada por Lutero e Calvino.
Com o ensino de VITÓRIA e de COVARRUBIAS, a autoridade vem de
Deus por intermédio do povo: a Deo per populum. MARIANA e SuÂREz
jogam as primeiras sementes do liberalismo e com outros publicistas
constituem-se os fundadores do nosso direito público, apesar da
resistência oposta pela França da época, então sob o guante absolutista.
Para SUÁREZ, o sentido principal do vocábulo direito é o de lei. A
lei já não é, portanto, a ordem da natureza, misteriosa e desconhecida
de nós, que devemos descobrir. Para SuÂREz, a lei é somente o preceito
suficientemente promulgado pela intervenção da vontade de um
legislador (De Jure et Justitia, l, 12, 5).
Já para SANTO TOMÁs, o direito é extraído da natureza exterior,
da observação das cidades e dos grupos humanos, e não da razão
individual.
Para ARISTÓTELES, em quem o Doutor ANGÉLICO se baseia, o direito
constitui-se pela justa partilha realizada ou pela justa parte de cada um.

R. Inf. legi... BrCllílio o. 19 n. 74 obr./iun. 1982 25


Nessa perspectiva, o fim do direito e da justiça é a ordem harmoniosa
de uma cidade, a partilha bem propJrcionada.
Mas o direito, derivado do estoicismo romano, confunde-se com a
moral, pelo menos com a moral social. Apesar de reproduzir fórmulas
de origem aristotélica, tal direito não lhes guardou o sentido, perdendo
seu conceito estrito.
A natureza, para ARISTÓTELES, é o fim que os seres tendem
naturalmente a realizar, ou seja, a sua causa final. E tal causa final,
para o direito, é a justiça objetiva.
Mas, para o estoicismo, a virtude da justiça compreende dois
deveres estritamente obrigatórios, que constituem o cerne da moral
jurídica. O direito, para CíCERO, para ser direito, deve formalizar-se por
regras precisas: respeitar a propriedade alheia e manter a palavra dada.
Quanto ao preceito de não roubar, é comum em muitos sistemas
morais, mas alçar tal preceito à situação de primeira regra d.o direito
é coisa que não podemos compreender, pois a transferência de uma
tal regra moral para o direito terá efeitos insuspeitáveis sobre o
problema jurídico principal, que é afinal o da justiça distributiva.
É verdade que os romanos distinguiram nitidamente o direito da
moral privada, não tendo confundido aquele ou o justo com a
honestidade.

o direito visa principalmente à equitas, à boa proporção instituída


na partilha dos bens e honras (id. quod equum est). Não é outra coisa
o que diz o Digesto (1, 1, 11). O direito, portanto, guarda seu conteúd.o
próprio, não se confundindo com a moral comum.
Os céticos, porém, renunciaram de maneira total à procura da
justiça. Atualmente, seu positivismo curva-se à consagração pelo jurista
das instituições estabelecidas. A justiça passa a ser o que é estabelecido.
Dessa maneira, as nossas leis, só por serem estabelecidas, já são
necessariamente justas, sem precisar serem examinadas. Cedo, creram
os juristas dever ensinar que é inútil procurar o justo e que nada é
melhor que chamar de direito as leis existentes, os costumes estabelecidos
ou a jurisprudência imperante dos tribunais.
Por sua vez, o epicurismo renascentista não negou totalmente o
justo, mas reduziu-o ao útil, sempre mais fácil de perceber. O jurista
tornou-se, então, o servidor do enriquecimento e do bem-estar, com
sacrifício da distribuição que a filosofia jurídica de ARISTÓTELES, menos
simplista, havia consagrado como o objeto especifico do direito. Tal
atitude, oriunda da cultura renascentista, tornou-se lugar comum no
quadro político-jurídico atual do Ocidente.

26 R. Int. legi.l. Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982


Mas o sistema jurídico moderno vai encontrar notável reforço e
aprimoramento nos autores do humanismo jurisprudencial, ajudando
a deturpar a filosofia do direito clássica aristotélica, base da filosofia
perene de SANTO TOMÁS.

Convém que aqui relembremos a significação da definição clássica


dos romanos: jus suum cuique tribuendum. O direito de cada um era
exatamente o que precisava ser resolvido pelo jurista, consoante, em
cada caso, as circunstâncias e os interesses em causa, para instaurar
ou manter uma justa distribuição. O direito de cada um é, sem dúvida,
a parte que lhe deve ser atribuída, levados em conta todos os dados
da coexistência social. Tal direito é de certo modo uma incógnita, cuja
equação cabe ao jurista resolver.
Os direitos reconhecidos a cada um foram firmemente defendidos
pela consagração d.os chamados direitos subjetivos, mas à custa,
infelizmente, da escamoteação da justiça distributiva. O papel central
do direito deixou, assim, de ser a promoção de uma justa proporção na
distribuição de bens e honras.

Em vez de promover, passou-se a conservar a proporção de fato


dada pela natureza e completada pelas leis do Estado. Em última
análise, passou-se a defender a resultante dos direitos subjetivos. O
direito de propriedade, baseado na posse efetiva, passou a ser o direito
do primeiro ocupante, porque a lei moral impõe a obrigação de não
roubar o que outrem possui. O direito de crédito, baseado nas dívidas
dos mais pobres, consagrou-se em face da lei moral que obriga a cada
um cumprir suas promessas. É óbvio que tal sistema simplista de
distribuição é cômodo demais para os ricos, que hão de todos os modos
querer perpetuar tal regime, cercando-o de toda segurança. Foi assim
que o direito ganhou em segurança o que perdeu em justiça.

As três regras por excelência do Código de Napoleão, protótipo dos


Códigos Civis modernos, são: a propriedade absoluta (art. 544), a força
do contrato (art. 1.134) e a obrigação de reparar os prejuízos
injustamente causados (art. 1.382).

Em nome do art. 544, condena-se o miserável ladrão de pão; em


nome do art. 1.134, validam-se contratos iníquos; em nome do art. 1.382,
condenam-se em acidentes de trânsito dirigentes de veículos por eventos
discutíveis e altamente contestáveis. Mas que se pode dizer de tudo
isso se o direito, para nós, é a lei?

Recorde-se que o próprio direito romano, em princípio, não extrai


o direito da lei: jus non a regula sumatur. A regra, afinal, é somente
um auxiliar na investigação cllalética do direito.

R. Inf. leglll. Brosília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 27


Hoje, porém, evita o jurista tomar consciência dos principias
fundamentais do direito, por medo de ter que reformá-los. A mesma
coisa dá-se com os Parlamentos modernos, por força da inautenticidade
da representação popular.

Afinal, não se pode negar que os princípios filosóficos que governam


o sistema tradicional dos civilistas e que datam da Revolução francesa
são não só os do positivismo jurídico, temperado por alguns axiomas
vagos do direito natural, verdadeiros axiomas de moralidade, como os
do individualismo, fruto da noção de direito subjetivo.

A ciência jurídica moderna vai, porém, além disso, ganhando


francas tendências de utilitarismo.

Já BACON ousara dizer que o fim do direito ou das leis não é


absolutamente o justo, mas o útil, que se compendia, pelos preceitos
e sanções, na felicidade dos homens.
ARIsTÓTELES tinha ensinado, como vimos, que ao jurista cabia a
investigação do justo e seus discípulos definiram o direito como id
quod justum est.

Mas GROTIUS, que laicIzou o direito natural, retirou a justiça


chamada distributiva do direito propriamente dito, não tendo guardado
o próprio sentido da justiça comutativa.

Para ele, o papel do jurista pMsa a ser uma tarefa ativa e útil:
contribuir para a extinção das desordens e das violências. Como se a
extinção das desordens e das violências se pudesse objetivar sem justiça,
como talvez ainda hoje pense a maioria de nossos políticos.

No fundo, entende GROTIUS que a observância dos mandamentos


morais seria suficiente para fazer imperar a ordem e que tod.os os
distúrbios sociais se originam de infrações à regra moral.

Apesar de ser em parte verdadeira a afirmação de GRDTIUS, como


é ela, grosso modo, vã e ilusória!
Vê-se, em resumo, que o direito racionalista moderno se constituiu
de mitos. Baseado em premissas falsas, tal sistema só aparentemente
se mantém inexpugnável.
Na prática, visa GROTIUS, pragmaticamente, ao restabelecimento
da paz, à tranqüilidade pública e à segurança dos bens.

GROTIUS esforça-se por estabelecer, quer em benefício d.os Estados,


quer dos indivíduos, direitos subjetivos absolutos.

28 R. Inf. legisl. Bl'Osília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Com relação à propriedade, por exemplo, GROTIUS é pioneiro de
uma teoria sistemática dos modos de aquisição do direito respectivo.
Sua preocupação é, em maior parte, demonstrar o direito do primeiro
ocupante. Fará, para isso, remissão ao consenso universal e à regra do
jus gentium d.erivada daquele consenso. Invocando a autoridade da
doutrina romana, GROTIUS não deixa de deturpá-la, pois, enquanto o
Digesto só falava da ocupação dos pássaros, dos peixes e dos animais
selvagens, por meio da caça ou da pesca, atribui a esse modo de aquisição
caráter universal. Por meio de uma primeira ocupação, justificar-se-iam
tanto as propriedades imobiliárias pelos particulares, como as soberanias
sobre os territórios metropolitanos e coloniais levadas a efeito pelos
Estados. O capitão inglês ou holandês que pusesse o pé num ponto
qualquer de território habitado por povos de cultura inferior carreava
para sua pátria a propriedade ou a posse de tal solo.

Apesar de pouco jurídica, tal teoria não deixou de merecer o


aplauso e a adoção por parte da Europa e do mundo moderno. A
doutrina dos direitos subjetivos dos Estados e dos particulares continuou
a campear por intermédio, sobretudo, de HOBBES, SPINOZA, LocKE, WOLFF,
KANT etc.

Do dever que todos têm de não me roubar, infere-se a certeza de


que tenho o direito de conservar tudo que possuo. E se a moral exige
de todos manter as promessas e a palavra dada em quaisquer
circunstâncias, segue-se daí que tenho o direito de exigir, em qualquer
situação, o cumprimento do contrato acordado.

o sistema dos direitos subjetivos está em perfeitas condições de


efetivar a segurança das posses e das propriedades estabelecidas, a
segurança das transações, a tranqüilidade exigida pelo desenvolvimento
econômico ...

o homem tende para a segurança. Por isso, não fez outra coisa o
sistema de HOBBF.S senão defendê-la. Com isso, defenderam-se os direitos
privados da burguesia.

No sentido estrito, já o dissemos e tornamos a repetir, o direito


é a justa partilha, levada a efeito numa cidade, dos bem, entre a sua
população. Daí infere-se que o vocâbulo diTeíto, aplicado ao individuo,
traduz a parte que lhe retorna nessa justa partilha. A obrigação da
arte jurídica é atribuir a cada um a parte que merece, ou seja, seu
direito: suum jus cuique tribuere.

Para ARISTÓTELES e SANTO TOMÁS, a lei humana deve determinar


exatamente os limites do meu e do teu, mas procurando respeitar a lei
natural e as exigências das justiças distributiva e comutativa.

R. Inf. '.. i.1. 8ra.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 29


Como um dos profetas da economia liberal, HOBBES defende o poder
absoluto do proprietário sobre a sua coisa. Apesar de não ser unânime
tal modo de entender, na prática conservadora de nossos dias, permanece
ele sem discrepâncias. Haja vista as atuais leis do inquilinato, que
chegaram ao absurdo da denúncia vazia.
O sistema jurídico moderno não constitui, assim, ciência da justiça
ou da harmonia social. No sistema de HOBBES, por exemplo, nada é
mais ausente que a idéia de justiça social, de justiça distributiva, de
partes justamente repartidas entre membros componentes de um mesmo
grupo social. Aliãs, como se poderia propor como objetivo a harmonia
de uma coletividade que para ele não tem existência natural? No fundo,
o sistema jurídico moderno é uma ciência dos direitos subjetivos, dos
soberanos e dos súditos. Dos contratos e das leis originam-se todos os
direitos, garantidos pela força do Estado.
É verdade que AluSTÓTELES disse que é justo o que se confonna
com a lei e SANTO TOMÁS deixou bem claro que a lei constitui a razão
do justo. Mas, no caso, essa lei é essencialmente uma lei não escrita.
De outro lado, é verdade também que a doutrina aristotélico-tomista
admite, ao lado da lei natural, a lei positiva humana, mas o objetivo
desta é fixar certos pontos de direito arbitrariamente, sem contrariar,
no entanto, a lei natural.
Desde que nos recusemos a ver na natureza a ordem dos conjuntos,
mais que as realidades exclusivamente singulares, perde-se sem dúvida
a noção cósmica da lei.
Ora, o mundo moderno não pôde, por seus pressupostos,
compreender a lei como a ordem de um todo.
O coroamento do sistema jurídico imperante passou a ser o próprio
De Legibus, de SUÁREZ, obra de certo modo contrária ao pensamento
original de ARISTÓTELES e, conseqüentemente, de SANTO TOMÁS.
Regulando-se o direito atual exclusivamente de acordo com a
decisão do Estado, aboliu-se a antiga concepção cósmica da lei natural,
concretizada em ARISTÓTELES e que, preocupada com a própria ordem
das sociedades, é realmente a fonte autêntica do direito.
Substancialmente, o sistema de HOBBES é ainda o nosso, do chamado
pensamento jurídico moderno. A elite burguesa liberal moderna continua
assinalando para o direito a utilidade e a segurança das posses
individuais. Ninguém melhor que o Leviatan e sua lei civil para
constituir e garantir os direitos subjetivos do individuo. Leviatan tem
por fim a segurança e a salvação do homem natural, que é um ser
isolado e individual.

30 R. Inf. legisl. BrClsilia a. 19 11. 74 abr./Jun. 1982


Partindo do indivíduo, entretanto, não se pode atingir o direito
como justa partilha e proporção entre membros de uma sociedade,
mas apenas o direito subjetivo solitário e individual.
MinaI de contas, um direito justo, aceitável por todos, só poderia,
essencialmente, proceder de uma fonte supra-individual.

Os liberais, com LocKE à frente, tiveram sempre por meta restaurar


as liberdades individuais do cidadão em face do Estado, mas não
puderam fazê-lo banindo os problemas da injustiça social.

Tais problemas, para serem resolvid.os, requerem, até certo ponto,


o sacrificio dos interesses individuais, que se não podem sobrepor aos
interesses do bem comum.

o tom conservador dos chamados direitos subjetivos individuais


tem impedido, por toda parte, a eclosão dos necessários direito.s sociais,
presos à sistemática de que o direito de cada um é, sem dúvida, a part.e
que llle deve ser atribuída, levados em consideração todos os dados
da coexistência grupal.
Por não se ter observado isso, o direito tornou-se mera caricatura,
garantidor e conservador dos poderes individuais. Com a representação
popular, que continua, por motivos óbvios, sem representatividade, as
leis continuam a ser elaboradas pelos interessados na manutenção do
status quo.
Não é por outra razão que a nossa legislação é, em grande parte,
injusta e unilateral, como fizemos sentir, com copiosa soma de exemplos,
em nossa recente obra Direito e Poder, Rio, Forense, 1981.

Para nós, o valor supremo do Estado é a justiça, sem o que não


há direito. A justiça é, assim, o valor dos valores do Estado. se a
segurança, portanto, "quer seja do homem, quer seja da Nação ou do
Estado, é um valor primordial", como entende a Escola Superior de
Guerra, a justiça é um valor mais primordial ainda, dela dependendo,
em grande parte, a própria segurança.

Sobretudo no âmbito interno, a justiça, inclusive a justiça social,


é mais importante que a própria segurança, que é um seu corolário.
Numa ordem justa, todos se sentem seguros e as discrepâncias serão
meramen te excepcionais.

Numa ordem injusta, porém, como a atual, a segurança já não


pode nascer espontaneamente e, quando existe, existe em beneficio de
uns contra outros e conseguida por compressão e nunca por persuasão.

R. Inf. legisl. Bro.mo o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 31


o enfoque da Escola Superior de Guerra, entretanto, hoje, cinge-se
ao binômio Segurança e Desenvolvimento, em que ambos os termos
devem estar atendidos equilibradamente.
Na ordem interna, "um país é dito seguro se desfruta de razoãvel
garantia quanto à conquista e manutenção de seus objetivos nacionais. t
uma situação alcançada e mantida mediante o processo de permanente
prevenção e eventual repressão que caracteriza a segurança" (v. ESG,
Doutrina Básica, Rio de Janeiro, 1979, pág. 195).
Os objetivos nacionais permanentes, porém, a começar pelo
primeiro, democracia, que consiste na "incessante busca de uma
sociedade moral e racional, que propicie um estilo de vida caracterizado
pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pela igualdade de
oportunidade para todos", não se podem objetivar sem o império da
justiça, máxime da justiça social.
Ao lema programático da ESG, Segurança e Desenvolvimento,
acrescentaríamos, assim, um novo termo: Justiça, Segurança e
Desenvolvimento.
Desenvolvimento sem justiça é subversão. Se o desenvolvimento
aproveita apenas às classes economicamente superiores ou somente ao
Estado, é inútil e contraproducente. Já não se respeita, no caso, o bem
comum, que deve alcançar, por redistribuição, o bem de todas as classes.
Afinal, a verdadeira vocação do Estado deve ser a de servir à pessoa
humana, como doutrina judiciosamente ANGELO BRUCCULERI.
O art. 1ÇI da Lei de Segurança (Lei nQ 6.620/78), baseado no art. 86
da Constituição Federal, coloca implicitamente a segurança nacional
na situação de valor supremo do Estado.
O grande jurista alemão GUSTAVO RAnBRUCH também assim encarava
a segurança antes do nazismo. Para ele, a segurança era o valor por
excelência do direito. Mas, depois do nazismo, compreendeu RAnBRUCH
que o valor supremo do Estad.o é a justiça e não a segurança.
Com segurança, pode não haver justiça, mas com justiça é
impossível não haver, em geral, segurança interna. Com a justiça
implantada e mantida, a segurança nasce e decorre naturalmente
daquela, que lhe é fonte e razão de ser.
Sem justiça, por sua vez, não há direito, pois este não pode
reduzir-se a regras morais. Como ficou bem claro, a justiça e, portanto,
o direito, tem por objeto a partilha do meu e do teu; para a ordem
harmoniosa de um grupo. Sem justiça social, o direito é uma
contrafação e perde o seu cerne mais profundo. Só quando este existe,
têm razão as demais regras de moral social. Quando aquele falta, estas
só aproveitam aos ricos e poderosos.

32 R. Inf. legisl. 8I'Gsílill a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Teoria geral
do Poder Constituinte

JOSÉ .A1.FREoo DE OLIVEIRA BARACHO

Diretor da. Fa.culda.de de Direito da.


Universidade Federal de Minas Gera1s

SUMARIO

1 - Noção de poder. As formu de poder


2 - Origem histórica da doutrina do Poder Constituinte
3 - Natureza do Poder ConaUtulnte
4 - Titularidade do Poder COnstituinte
5 - Tipos de Poder Constituinte
6 - Poder Constituinte orlgin6rto
7 - Poder Constituinte lnatltuido
8 - Convocaçlo de Constituinte. Assembléia constituinte

1 - Noção de poder. As formas de poder

A conceituação de poder que assume formas variadas, com caracte~


rísticas bem diversifioadas, constitui tema central para a Teoria do Estado,
a Ciência PoHtica ou o Direito Constitucional, sendo, também, essencial
para o Direito, desde que sua própria determi·nação e modos de exercfcio
podem afetar a ordem jurídica em geral.
RADOMIR LUKIC, ao mostrar a diversificação que ,a idéia de poder
sugere, aponta a existência de aspectos comuns que se reúnem no
conceito geral de poder.
A idéia de poder é vista no contexto social, efetiva-se quando uma
pessoa dá ordens a outra, isto é, traça-lhe regl'las de conduta, conseguindo
a submissão às normas. Consiste na imposição de certos modos de agir
àqueles
.
que- as- respeitam
-
e- se submetem; em síntese. é a predomLnância

R. Inf. leeill. Brasílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 33


Para este expositor, o poder não é um fenômeno autônomo que se
realiza por si próprio, mas um meio para atender a certa finalidade social.
Assenta-se esta justificativa na coordenação, no seio da coletividade,
da atividade social das várias pessoas que a integram. Tem como objetivo
regular a divisão das tarefas, com a finalidade de impedir uma ação global.
Visa regulamentar particularmente os conflitos que surgem nos processos
de atividade social. O gênero de atividade e a importância que ele apre-
senta para a sociedade, sua vinculação com 'as outras atividades, depen-
dem da intensidade do poder, os meios pelos quais é exercido e os tipos
de relações que surgem.
Todo poder implica em certa dose de sujeição, de coerção, exercida
pelo detenror do poder sobre as pessoas, desde que ele pressupõe
determinação de atitudes ao sujeito colocado no estado de subordinação.
Mesmo quando o subordinado submete-se voluntariamente ao titular do
poder e aceita-lhe as ordens, não existe nada menor do que uma diferença
nascida entre o titular do poder e o sujeito, desde que o primeiro apenas
dá as ordens e o outro as executa. A coerção do poder em certos casos
surge dupla. Pode-se usar meios morais ou outros para influenciar a
vontade e a consciência da pessoa, levando-a 'a agir de conformidade a
certas regras sem a utilização da força física. Esses procedimentos mos-
tram que o conflito de interesses entre o titular do poder e o indivIduo
transforma-se em violência e torna-se difícil de ser resolvido (I).
BERTRAND DE JOUVENEL, par·a conhecer a natureza do poder, pro-
cura sua origem e os meios que levam à obediência ao mesmo, ocasião
em que apresenta levantamento das diversas fases e formas que toma
através dos tempos. Aponta que o poder tem instintivamente, como uma
lógica necessária, aumentar e centralizar o poderio público. Dentro desse
desenvolvimento o poder desempenha na sociedade papel bem diferente
quando consideramos a sua existência limitada por leis ou não, à propor-
ção que são ditadas normas de conduta que limitem seu exercicio:
"Cu ando vemos, en un momento dei desarrollo histórico,
que el poder hace las feyes con el concurso dei pueblo o de una
asamblea, y que no puede hacerlo más que con ase concurso,
interpretamos de ordinario esos derechos deI puebJo o de esa
asamblea como una restricción deI poder absoluto primitivo; pera
este absolutismo primitivo es pura leyanda. No es verdad que se
proceda de un estado anterior, en donde los magistrados O el
monarca determinaban a su arbitrio las normas de compor la-
mienro. La verdad es que ellos no tenian en modo alguno este
derecho, o, hablando más propiamente, este poder. EI pueblo
o la asamblea no quitan, pues, aI poder la capacidad de hacer
solo las leyes, ya que éste no la poséia" (2).
O conceito de poder, pela sua importância e repercussão na vida
política e jurídica, tem merecido diversas justificativas que procuram
(1) LUKIC, Radomir - Th60rle de "IHa' ., du Droll, Dalloz, Paris, 1974, Irad. franco de MARC ClJIDAAA,
pp. 195 e 196.
(2) JOUVENEL, Bertrand de - EI Poder, Editora Nacional, Madrid. 1974, trad. de J. DE ELZABURU, pp.
258/259; RUSSELL, Bertrand - O Poder, Uma MoVI IlnAlla Socla', Companhia Editora Nacional, 560
Paulo. 1957, trad. de BRENND SILVEIRA, p. 24.

34 R. Int. lagill. Bralílill 11. 19 n. 74 IIbr./Jun. 1982


fornecer as bases que possam determinar os elementos que justifiquem
a capacidade de sua efetivação, por meio de ,atos que demonstram a
vontade e a forma de sua concretização.
A interpretação do vocábulo, sua significação e alcance, podem gerar
ambigüidades que só serão afast'adas através de uma noção que permita
destacar sua acepção pura, desbastada de deformações ou extensões.
Conhecido através de suas manifestações e resultados, ocupa lugar de
relevo no domínio político.
O poder pode ser v.isto como as múltiplas formas hist6rioas de que se
reveste a autoridade, exteriorizando-se por suas encarnações político-
sociats que pertencem ao mundo do concreto. Por outro I'ado, é Vlisto como
energia, difusa na sociedade política, assegurando-lhe coerência e desen-
volvimento (S).
Entendido dentro da perspectiva política e jurídioa não tem sido
examinado, muitas vezes, sem ser visto como mando social, isto é, fenô-
meno sociológico. O poder político tem como destinatários os homens,
sendo de sua essência a estrutura relacional (4).
Encontramos a definição da política como ciência do poder. Ao
mesmo tempo, é no Estado que ela atinge a forma e a organização mais
completas. Estudos comparativos sobre o poder, em muitas coletividades,
apontam diferenças entre o poder no Estado e o poder. Essas incursões
pretendem analisá-lo fora do âmbito do Estado. Na aproximação com o
Estado, PASSERIN D'ENTREVES define o poder como a força exercida de
acordo com a lei e em seu nome:
"Le fait de concevoir I'l::tat en termas juridiques ou, ce qui
est la même chose, de definir le pouvoir comme la force exercée
en accord avec la loi et en son nom, n'implique pas nécessaire-
ment que I'on exprime un jugement de valeu r sur ce que l'l::tat
devrait être, ni sur les objectifs à atteindre dans I'exercice du
pouvoir. Cette définition tient simplement compte du fait que
J'l::tat ne peut être conçu uniquement en termes de force, et que
pour comprendre sa nature naus devons partir de la consta-
tation, facile et évidente, qu'il existe entre hommes des relations
de commandement et d'obéissance, afin de procéder à une analy-
se du commandement en sai at de la maniere dont il s'extéríorise
et se 'réalise dans le contexte social" (5).
O conceito de poder ou a sua natureza normalmente estão vinculados
ao fenômeno da obediência, entretanto em suas formas de exercício
encontramos as limitações que lhe são impostas.

(3) BRASil, FrancillCo de Souza - "O Poder - Sua Legitimidade", RMlsbl de CI.ncla PollllCll, Fun-
daçlo GelQllo Vargas, vol. 7, n.D 3, setembro, 11173, pp. 65 a 88: GOMES, Carlos Mejla - Teorfa
de 'a Conatltucl6n, Edllorlal Terrnls. Bogot6, 1967. pp. 185 e ss.
(4) BODENHEIMER, Edgar - Teorla dei Derecllo, Fondo de Cultura EoonOmlca, México, 1946, tred.
da VICENTE HERREJlO, 2.- ed.. p. 20; DUVER13ER. Maurlce - Inlroduçllo • PolltlCll, E811ldl08 Cor,
LIsboa, 1972. trad. MÁRIO DELGADO, PP. 11 e 12.
(5) D'ENTR~VES, AlellBndre Passerin - La NolIllll de 1'.1, Edilions Sirey. Paris. 1969, trad. de JEAN
R. WEILAND, p. 85.

R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./ju", 1982 35


A preocupação com as origens do poder motivou a elaboração de
várias teorias que procuram explicar o seu aparecimento. Merecem des-
taques as explicações contratualistas formuladas por HOBBES, LOCKE e
ROUSSEAU, pela repercussão dessas exposições, bem como as teocráti-
cas, as democráticas, as nacionais, as populares, as proletárias e as
econômicas (6).
O poder, na maioria dos estudos, com modificações de caráter res-
trito, apresenta três formas principais:
- poder imediato;
- poder individualizado;
- poder institucionalizado.
Considera-se como poder social imediato aquele que é imposto a
todos os homens de um grupo, sem que possa distinguir quem o exerce,
todos obedecem sem que se possa indicar aquele que manda.
Os usos e os costumes são observ·ados, as tradições respeitadas. A
submissão é espontânea, não há repressão, nem sanção, mas a reprovação
do grupo. A individualização do poder surge quando aparecem os conta-
tos mais freqüentes com outros grupos. Como a riqueza é um elemento
de poder, a individualização do poder liga~se à evolução da propriedade
privada. Ocorre a especialização e apropriação privada das funções eco-
nômica, militar e religiosa. Estas circunstâncias levam à individualização
progressiva do poder social.
O poder institucionalizado começou a fazer parte de juristas contem-
porâneos como HAURIQU e BURDEAU. Consiste em uma operação juorr-
dica, mas que é um fato social que consiste em transferir o poder social
do indivíduo ou dos indivíduos a uma pessoa moral, que tem sua origem
no próprio grupo (').
As preocupações doutrinárias em torno do poder político, através dos
elementos que possam defini-lo, são importantes na conceituação do
poder constituinte. A maneira de apresentar as características do poder
vão configurar as formas de seu exercício, que por sua vez importam na
justificação e nos limites que lhe são inerentes.
DUGUIT denomina de democráticas todas as doutrinas que localizam
a origem do poder político na vontade coletiva da sociedade submetida
a este poder e entendem que ele é legítimo, unicamente porque foi insti-
tuído pela coletividade que o rege. Essas doutrinas, através de dois dos
seus mais ilustres representantes, HOBBES e J. J. ROUSSEAU, colocam
frente à onipotência do poder político a subordinação completa e sem
limites ao indivíduo (8).

(6) ACUtilA, Eduardo Rozo - Inlroducclón a la. In.Utuclone. Polfllc••, Universidad Exlemado de Co-
lombla. Bogotá, 1978, pp. 6 a 59.
(7) LAPIERRE, Jean-Willlam - Le Pouvolr Polilique, Prensa Univer9ltalres de franca, Paris. 19ti9, pp.
10 e ss.
(8) DUGUJT, Léon - Trai" de Droll Conslllullonnel, E. de Boccard. Succes98ur, Paris, 1927, Tomo I,
3- ed.• pp. 5701571.

36 R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Mostra JUAN FERRANDO BADIA que as distintas formas que têm os
cidadãos de considerar o poder, sua natureza, estrutura e fins, é que
motiva o nascimento dos distintos sistemas e regimes políticos.
Entende, ainda, que, para afirmarmos a legitimidade do poder, torna-
se necessário conhecer previamente qual a concepção predominante que
existe na sociedade a seu respeito. Averigua-se o poder, forma de escolha
dos governantes, sua estrutura e fins, bem como ocorre a acomodação
com o sistema de crenças do grupo social, com análises empíricas prévias
acerca do status de opinião difusa. Nos Estados do Ocidente existem
meios formais ou institucionalizados e meios informais. Por intermédio
do sufrágio recorre-se a consultas populares, que determinam sondagens
de opinião pública.
As teorias acerca da natureza do poder político encontram concep-
ções clássicas em C. J. FRIEDRICH, que distingue dois conceitos de
poder, o substantivo ou corpóreo e o relaciona!. O primeiro é apresentado
através de HOBBES, SPINOZA, os jusnaturalistas e os totalitaristas de
nossos d~as, passando pelos utilitaristas e hegelianos, que descrevem o
poder como coisa tida, uma substância possuída por alguns seres humanos
que o inadiam a todos.
A teoria personalista do poder não pode oferecer uma visão completa
do conceito em questão, desde que ele existe no seio da comunidade.
A teoria relacional do poder -apresenta o conceito relativo ou ener-
gético. Está em LOCKE, mais próxima à legitimidade democrática.
O exame das formas históricas do poder político e suas legitimidades
deve perceber que toda instituição corresponde a uma determinada ideo-
logia justificadol'1a de si mesma. Dentro desse entendimento percebe-se
que todo poder concretiza-se em um complexo de instituições coerentes e
coordenadas entre si:
"La formasn que se interrelacionan estará en función de la
ideologia o teoría justificadora vigente que, a su vez, guarda
estrecha intimidad con la correspondiente naturaleza dei poder
poHtico también en vigor" (9).
Os problemas da legitimidade e legalidade do poder político consti-
tuem dois pontos fundamentais do presente trabalho. A legitimidade vai
sanear as formas de investimento de poder, desde que devem ter ocorrido
de acordo com las normas jurrdicas que regulamentam a transmissão. A
aquisição do poder poHtico mediante ato posterior próprio, emanado de
um poder de fato, à margem de normas jurídicas que o regulam, enfrenta
nulidade de caráter público. A legitimidade significa aquisição de confor-
midade com o direito, em conexidade com a sua origem:
"Resumiendo lo expuesto, frente ai problema de si la ile9i-
timidad de un poder es suceptibfe de sanearse y convertirse en

(9) BADIA. Juan Ferrando - EatudlOtl de Clencle PoUtlca, Edilorial Tecnos, Madrid, 1976, pp. 375 e as;
MAYNEZ, Eduardo Garcia - Introcluccl6n ai E8tudlo dei Derecho, Edilorial Porrua, S.A., Buenos
Aires, 1978, 28.- ed., pp. 102 e 103.

R. Inf. leglll. Bra.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 37


un poder poHtico legitimo, podemos distinguir dos grandes cor-
rientes: quiénes piensan que no se legitima bajo ninguna cir-
cunstancia a excepción de la vuelta a la norrnalidad constitu-
cional bajo la aplicación de las normas jurídicas que regulan el
procedimiento de transmisión dei poder político, y quiénes pien-
san que la iJegitimidad dei poder desaparece aI ser éste ejercido
en conformidad con los intereses dei pueblo" (10).
A problemática da legalidade do poder na teoria do Estado mereceu
do autor acima citado reflexões em que ele raponta a circunstância de o
poder poHtíco converter-se em jurídico, que de certa maneira pode ser
concebido através do Estado de Direito, no qual toda a atividade do
Estado está submetida à lei, de maneira que o poder polftico está subme-
tido ao estatuto legral que o rege, de acordo com a teoria clássica que
examina essa legalidade do poder e sua conformidade com o direito posi-
tivo existente.
As preocupações com a limitação do poder e os instrumentos que
podem levar a esse controle, a concepção de democracia e seu relacio-
namento com as noções de poder, a estrutura do poder na sociedade
polftica levam, ainda hoje, a diversos questionamentos, o mesmo ocorren-
do com a definição do objeto do poder político (11).
Para DUVERGER o direito é um dos instrumentos essenciais do poder.
As Constituições, os códigos, as leis, os regulamentos, as decisões admi-
nistrativas, as sentenças dos tribunais são procedimentos de ações fun-
damentais do poder, sendo que estão éissentados em dois elementos: a
coação e a legitimidade.
Partindo da mesma perspectiva, BURDEAU vê o poder como fenôme-
no jurídico. Ao serem determinadas as regras de direito, chega-se a levan-
tamentos sobre a procedência de sua juridicidade, que se impõe à noção
de poder. A representação e o poder criador da norma leva à sua noção.
A força criadora da idéia de direito postul.a o conhecimento do poder:
"La vie politique moderne rend particuliêrement sensible
cette union du pouvoir et de I'idée de droit mais celle ne I'a pas
créée. Nous voyons aujourd'hui chaque conception de I'organi-
sation juridique de la société prendre une forme concrête dans
un type de pouvoir. Jamais il n'a été plus vrai de dire d'un homme
qu'iJ est toot un programme" (12).
BIDART CAMPOS, ao justificar a denominação dada a um de seus
livros Derecho Constitucional dei Poder, como equivalente à parte orgAni-

(10) BALMACEOA, Sebastlán Eyzagulrre - EI Poder en la TeorIa dai E.tado, Editorial Jurldlca de
Chile. Santiago, 1967, p. 63.
(11) RIBEIRO, Manoel - A InetlluclonaUzaçlo do Poder. Artes Gráficas, Salvador, 1963, p. 60; BEHR·
MANN, Ralael Ma. de Balbin - UI Concrecl6n dei Poder pomlco, Univeraldad de Navarra, Pam·
plana, 1964, p. 168; LEÓN'I, Franceaco - "EI Poder Pofltlco an la Socledacl Moderna". RevI* de
Estudloe Pollllcoe, Instltuto de Ealudios Polltlc08, Madrid, n,O 198, nov.ldez., 1974, pp. 213 e
OABIN, Jean - L'.la' ou .. Pollllqua, Dalloz, Paria, 1957, pp. 146 e aa.
N'
(121 DUVERG ER, Mau rica - InfU'uclon.. Pollllc.. y Derecho ConetUuclon'l, Edlo lonea Arl ai, Barcelon.,
1970, 5.• ed., eap" PP. 33 e ss; BURDEAU. Georges - Tralté d. Selenc. Polltlque, L1brarle Gén&.
rele de Orolt el de Jurlsprudence, Paris. 1949, Tomo I, Le PauYol, Polltlque, pp. .217 e 88.

38 R. Inf. legi.1. Bro.ilia o. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


oa da Constituição, diz que ele compreende o âmbito que orden·a a estru-
tura do poder. Completando o raciocínio, diz que é o fragmento do mundo
jurídico no qual se localiza a política traçada para os govemantes e os
governados (13).
Em Le ProbIéme du Pouvoir dans la Théorie Constltutionnallste,
FRIEDRICH aponta que no mundo político contemporâneo existe uma
pluralidade de poderes constituídos, ao passo que por detrás deles, que
devem estar separados, existe outro poder que é uno e indivisível.
~ o poder de fazer a Constituição, de fixar a ordem constitucional,
modificá-Ia, transformá-Ia e inclusive substituí-Ia por outra (14).
Este Poder Constituinte é um poder relacional gerado por consenti-
mento, capaz de traçar todo um sistema jurídico que dá estrutura consti-
tucional lao Estado. Dentro da perspectiva assumida pelo poder, com as
caracterfsticas de constituinte, na teoria da Constituição, toma relevo
essencial 'na estruturação das formas políticas essenciais.

2- OrIgem histórica da doutrina do Poder Constitui'nte


Ao apontar as formas primitivas do Poder Constituinte, SANCHEZ
VIAMONTE acentua que a lei fundamental ou Constituição, destinada a
reger a vida de um grupo social politicamente organizado, surge nos
Estados teocráticos. A lei fundamental é sempre de caráter religioso.
Nesses Estados a soberania não residia concretamente no rei. Este é o
executor de vontade superior, de caráter divino, das leis permanentes,
que foram escritas. Apresentada como a forma mais absoluta de auto-
ridade, não deixa de ter certos limites que não eram tolerados nem nas
monarquias abso~utas dos tempos modernos:
"La violación de la ley divina es sacrilegio aunque 5ea el rey
quien incurra en ella. La ley dictada por la divinidad, pero hecha
por los hombres, 'redactada y escrita por ellos, es anterior y supe-
rior, entre los hebreos, a la monarquia, pera aun cu ando no
pueda establecerse igual circunstancia cronológica para el Có-
digo Hamurabi o el Código Manú, ambos presentan sus mismos
caracteres.
En el sistema teocrático, pues, la ley divina o código que ha
servido para constituir la unidad moral, polftica y ju,rídica de
una naci6n (Caldea, Palestina, lndia, Creta) tiene un carácter
constituyente sui generis, pero cuyo rasgo principal es el que
singulariza el aeto constituyente de la Edad Contemporânea.
Ese rasgo saliente consiste en su jerarquía institucional,
puesto que se impone a la ,autoridad ordinaria y le fija sus
limites" (ll».

(13) CAMPOS, aerrn6n J. Bldarl - EI Der.cho ConoUlucional dei Poder, Ediar, Bueno. Aires, 1967,
pp. 13"".
(14) BADIA, Juan Ferrando - E$lUdlol de Clancla PoUlle., ob. cit., p. 405.
(16) VIAMONTE, Carloa Sénchez - D.~o Con.t1tuclonal. Tomo I, Poder Con8tltuyante, Editorial Ka·
peluez, Buenos Alr~, pp. 4t e 42.

R. laf. legill. Brosllio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 39


Pelo exame das Leis de Hamurabi, da Bíblia, das Leis de Manu, da
legislação de Esparta e Atenas, SANCHEZ VIAMONTE conclui:
- As leis fundamentais ou as constituições de Licurgo e
Sólon apresentam a expressão unificada da vontade nacional,
através das quais surge unidade política e jurídica, como essên-
cia do ato constituinte.
- Nos Estados laicos o Poder Constituinte é exercido pelo
povo, podendo-se encontrar ali quase todas as idéias fundamen-
tais de caráter institucional, que serviram para elaborar a teoria
moderna do Poder Constituinte e da Constituição.
- ARISTÓTELES delineia com precisão e clareza as deter-
minantes de valor supremo da Constituição e o caráter subordi-
nado da lei, de modo que só falta a terminologia consagrada pela
Revolução francesa, através da qual se dá o nome de Poder
Constituinte àquele que cria a Constituição e poder constituído
ao que a dita.
A ordem juridica ateniense é vista ar, através de um poder constituin·
te, cujo exercício é denominado como de ato constituinte. Ao mesmo
tempo surge um poder legislativo subordinado ao ato constituinte, cujos
princípios fundamentais devem ser respeitados sob pena de invalidez.
As cartas, convênios escritos ou acordos, 05 pactos ou contratos
celebrados entre o senhor e seus vassalos, para SANCHES VIAMONTE,
surgem como nova maneira de manifestar-se a vontade constituinte,
mesmo que não definam o sujeito desse poder, daí serem denominados
atos constituintes rudimentares.
Além dos concilios, na Espanha surgiram os foros, conseqüência do
direito medieval legislado, sob a forma jurídica de pacto, convênio ou
contrato. O primeiro Fuero espanhol que apresentou carecteres de orde-
namento jurídico-polftico de natureza constituinte foi o de Léon, de 1188,
outorgado ante as Cortes convocadas pelo Rei Alfonso IX, que tem a
forma de pacto político civil.
A história institucional da Espanha apresenta vários atos de natureza
constituinte, registrados em sua legislação foral.
A Carta Magna de 1215, considerada como um ato constituinte para
a Inglaterl'la, para SANCHEZ VJAMONTE está longe de alcançar significa-
ção institucional de um ato constituinte único, integral e completo, capaz
de dar fisionomia global a todo o sistema institucional daquele Estado.
Trata-se de um primeiro pacto, convênio ou acordo entre forças políticas
daquela época, servindo como ponto de partida para lenta evolução
posterior, que dará lugar a novos atos constituintes sucessivos e com-
plementares (16).
Dentro dessa evolução doutrinária do Poder Constituinte, SANCHEZ
VIAMONTE o relaciona com o conceito de povo, através do levantamento

(16) VIAMONTE, Oarl08 Sénchez - Oerecllo Conatitllc:km.r, ob. clt., pp. 35 e 85.

40 R. Inf. legi,1. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


dos plebiscitos, assembléias populares, comlCIOS, referendos, e outras
instituições. Dentre essas destaca as formas do plebiscito constituinte e do
referendo constituinte. Este consiste </la reconhecimento ostensivo da
soberania popular, com natureza de poder constituinte, que se distingue
com nitidez do Poder Legislativo. O sistema de plebiscito constituinte
funciona nos Estados Unidos e Suíça.
Dentro da evolução das doutrinas do Poder Constituinte merece relevo
a teorização de SIEYi::S - que é o Terceiro Estado? -, que partiu da
doutrina do contrato social (17). O sistema ideológico, como aponta
VIAMONTE, transforma-se em institucional. A idéia de Constituição surge
de maneira nítida. O Poder Constituinte adquire a importância hierárquica
desde o momento em que se cria o poder legisl'ativo ordinário que dita
as normas, mas com obediência à Constituição.
A técnica constitucional da separação entre Poder Constituinte e
poderes constituídos é a grande criação que surge nessa fase do consti-
tucionalismo moderno:
"La separación y diferenciación claroas y precisas dei Poder
Constituyente y de los poderes constituídos es un rasgo essncial
dei Estado de derecho" (18).
Esse autor demonstra inclinação para a intervenção direta do povo
no exercício do Poder Constituinte, conforme chega, também, a afirmar
na ~presentação do exercício deste poder:
"En efecto, se trata de un poder que pertenece originaria y
esencialmente ai pueblo y que no se puede ejercer de un modo
satisfactorio en su directa intervención. Es necasario, pues,
allanar todas las dificultades y resolver todos los problemas dei
procedimiento para la leal aplicación de ese principio" (19).
A doutrina do Poder Constituinte de SIEYF;;S obteve grande reper-
cussão no desenvolvimento da publicística, sendo que ele é considerado (}
teórico e o fundador do sistema representativo.
A importância que a ciência jurídica dá ao regime como Constituição
em sentido material, as questões que apontam o formalismo cientifico,
geraram indagações sobre a noção de Poder Constituinte, compreendido
no seu exercício do elemento regime e constituição material:
"Potere Costituente e regime politico sono qualificati da una
connotazione assai simile a quella contempol'\anea - anche nel
Joro rapporto - nella esperienza costituzionale della rivoluzione
francesa, origine della concezione continentale dello Stato mo-
derno. Considerare attraverso la visione di SIEVi::S alcuni aspetti
della dottrina francese deI Potere Costituente, esaminadone la

(17) SlEY!S, Emmanuel - Qu'••t-ee que I. Tlen elat?, librarie OrOl, Genêve, 1970.
(18) VIAMONTE, Carlos Sénchel - DeNcho ConltltuclOnllf, ob. clt., p. 253.
(19) VFAMONTE, Carlos Sénchez - Derecho eo.t1tuclonel, ob. clt.. p. 463.

R. Inf. legid. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 41


formulazione e rintracciandone le implicazioni successive, ê
quanto ci si propone di fare in questo scritto" (20).
Ao focalizar o exercício do Poder Constituinte, o publicista argentino
inicia pelo exame dos problemas do procedimento da revisão constitu·
ciona!.
A primeira indagação que sugere é a de saber se se deve admitir de
alguma forma o sistema de conferir o exercício do Poder Constituinte aos
corpos representativos, que têm como atribuição especifica o poder legis·
lativo ordinário.
O constitucional ismo aponta a estrita separação entre o Poder Cons-
tituinte e os poderes constitufdos. O exercício do Poder Constituinte por
vi,a legislativa normal merece várias indagações:
Pelo sistema das convenções, com O objetivo de uma reforma total
ou parcial de uma Constituição, pode ocorrer, também, o referendo ple-
biscitário. Ao criticar a função ordinária do parlamento, como merecedora
do exercfcio desse poder, defende SANCHEZ VIAMONTE o trabalho
puramente constituinte, capaz de efetuar melhor reforma constitucional:
"Por lo que respecta a los cuerpos mismos, fuerza es reco-
nocer que, como poder legislativo ordinario, desempenan una
funci6n especificamente distinta deI Poder Constituyente. Vin-
culados ai Poder Ejecutivo por una relaci6n de interdapendencia
recíproca, sufren, en muchas ocasiones, la influencia y hasta la
presión que éste ejerce sobre allos, en uso de una autoridad
que, en vez de disminuir, ha ido aumentando en los últimos tiem·
pos, y que los priva de la independencia necesaria para la alta
función que les corresponde desempenar" (21).
Ao confrontar o Poder Constituinte com o Poder Legislativo, reconhe-
ce VIAMONTE que o Poder Constituinte pode autolimitar-se. Pode fixar
limitações inclusive no que toca a forma e condições sob as quais devem
funcionar as convenções constituintes.
Ainda, no que toca à doutrina do Poder Constituinte, investiga o autor
em questão a teoria do ato constituinte que é um fato realizado pelo povo,
é a vontade poHtica. Para SIEY~S o termo Constituinte qualifica o poder
que tem o povo de constituir-se em sociedade civil ou Estado. O Poder
Constituinte é a função correspondente ao titular da vontade.

3 - Natureza do Poder Constituinte


As averiguações em torno do Poder Constituinte, quando pretendem
apresentar as caracterfsticas de sua natureza, começam por considerá·[o
como supremo, oríginário, dotado de soberania, com capacidade de deci·
são em última instância. Não estando comprometido com preceitos ante-

(20) TOS I, Sllvano - "Sleyêe e la Doltrina dei Polere Coetiluente", 8tudl Pollllcf, Rlvl8ta Trlmestre!e,
SlInsone-Flrenze, Ano IV, n. D 2, " Serle, abril/junho, 1957, pp. 240/241.
(21) VIAMONTE, Carlos Sénchez - Derecho Con.tllucfone'. ob. clt., p. 466.

42 R. Inf. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr.!Jun, 1982


riores de direito positivo, autolimita a própria vontade ao determinar as
regras reguladoras da atividade estatal (22).
Trata-se de tema essencial para se proceder a investigações em
torno da origem da Constituição. A produção de normas jurídico-eonstitu-
cionais podem ter um duplo nascimento: originário ou derivado.
Quando ocorre a produção originária da ordem jurídica, esta nasce
sem apoiar-se em norma positiva anterior, aparecendo pela primeira vez,
possibilitando o surgimento de um novo Estado sem a ruptura com a
ordem jurídica anterior. Na criação derivada surgem normas em torno do
sistema jurídico já constituído, pelas competências definidas e os proce-
dimentos estabelecidos. A execução derivada das normas jurfdicas deman-
doa processo complementar vinculado a competência previamente esta-
belecida.
SCHMITT define o Poder Constituinte como a vontade polftica cuja
força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto
sobre o modo e a forma da própria existência política (2S).
A origem da Constituição supõe a. ruptura da ordem anterior, em
conseqüência de uma revolução, golpe de Estado ou conquista ou a ins-
tauração de uma nova ordem.
Para XIFRA HERAS, a formação de um novo Estado pode obedecer a
um procedimento primário ou imediato, secundário ou deriWKlo, pela
extinção ou transformação de um ou mais Estados preexistentes:
a) a formação primária que não modifica, nem extingue outros Es~
tados;
b) a formação derivada por modificação de um ou vários Estados
preexistentes pode ocorrer por segregação de parte do território estatal
para constituir um novo Estado ou por um processo tipo federal;
c) a formação derivada pela extinção de um ou mais Estados.
Sendo de origem revolucionária a Constituição, decorrente da ruptura
da ordem jurídica, por uma revolução, golpe de Estado ou conquista
militar, a sociedade fica sem o direito, e, para vencer esse vazio, ocorre
a necessária implantação de um novo Ordenamento.
A imposição revolucionária de uma ordem jurídica, proveniente da
juridicidade das revoluções, que elaboram o direito, através do poder
revolucionário, não é simples força material, mas poder, que ainda, de
fato, encarna a idéia de direito:
"~ um dado de fato, que está na experiência, que todo Esta p

do que se forme ou que se transforme repousa num processo de


vontade. Essa vontade, ainda que de um indivíduo, ou de um
grupo, ou de uma coletividade nacional, não é parcial, mas com

122) FERREIRA, Pinto - PrincIpio. aerala do Direito C_lItucioner Moderno, Editora Revlata doe Tri-
bunais, SAo Pau lo, 1971. 6.· ed., p. 91.
(23) SCHMITT, aarl - TltOrl. d. Ia COMlitucl6n, Editorial Revista de DerEK:ho PriYlldo, Madrid, p. 86.

R. Inf. le,iI!. 'roamo o. 19 n. 74 abr./illn. 1982


intencionalidade global: é a vontade de dar forma polftica ao
todo, imprimir-lhe um modo de ser polftico concreto, de conferir
uma morfologia ao poder (ser poder monárquico, republicano,
autocrático, democrático). Esse dado existencial é o que SCHMITT
denomina decisão. ~ o Grundfaktun, ponto de partida efetivo de
toda estrutura constitucional de poder. Dizendo em termos da
teori'a kelool1'iana: é o fato fundamental a que corresponde a
norma fundamental (Grundfaktum-Grundnorm). Não é a norma
fundamental que produz ou traz ao nível da existência o fato
fundamental. Ao contrário, dado o fato fundamental, para colhê-
lo em termos de conhecimento dogmático, pressupõe-se a nor-
ma que lhe corresponde, põe-se a hipótese normativa básica que
tem o fato fundamental por conteúdo.
A revolução entra na categoria de fato fundamental, de deci-
são política proveniente de uma coletividade que tomou em suas
mãos a opção de ser uma determinada forma. Essa decisão é
prévia a toda normatividade. Pode ocorrer ora dentro de um
Estado já constituído (a Revolução francesa de 89), ou antes de
um Estado a constituir-se (o movimento de independência poll-
tica das treze colônias inglesas). Constituído ou a constituir-se,
o Estado ante a revolução está ante o poder constituinte" (24.).
O pacto constitucional é o acordo de vontades, no ato gerador de
uma Constituição. Surge nos estudos a respeito do Poder Constituinte. As
Constituições outorgadas e impostas são alheias à idéia de pacto, falta
nas mesmas a dualidade de titulares do Poder Constituinte, essencial para
que ele possa existir.
Para XIFRA HERAS, quando estuda a natureza do Poder Constituinte,
este reflete a mais genuína expressão da atividade política. Manifesta-se
pelas decisões fundamentais, capazes de criar e impor originariamente
uma ordem jurídioa nova.
Trata-se de um poder peculíar, pois suas intervenções são breves,
mas normalmente procuradas em ocasiões decisivas para a vida de um
povo. No entender de XIFRA HERAS são estes os caracteres do Poder
Constituinte:
a) é um poder originário, isto é, alheio a toda competênc~a prévia, a
toda regulamentação predeterminada, diferente dos poderes constituídos.
Não existe dentro, mas fora do Estado. ~ um poder extra-estatal que
transcende à ordem jurídica positiva. Por cima dele não existe nenhum
outro poder político, desde que é a autoridade suprema, incondicionada,
livre de toda formalidade ou coação;
b) é unitário e individual, serve previamente a todos os poderes cons-
tituídos;
c) é permanente e inalienável, seu exercício o exterioriza, subsiste
acima da ordem que cria;

(24) VILANOVA, Lourival - "Teoria Jurldlca da Revoluçlo (Anotações à margem de Kels8Il)". em AlI
Tend'nel.. Atuala do Direito Público, EalUdoa em Homenag8m ao ProteMor AfonllO Allnoa de "elo
Franco. Forense, Rio de Janeiro, 1976, p. 475.

44 R. Inf. legisl. Br05ílio O. 19 n. 74 ob,.ljlln. 1982


d) é portador de eficácia atual, com força histórioa efetiva, apta para
realizar os seus fins (25).
Como poder supremo dentro do Estado, é um poder fundador, sobe-
rano, mas existem autores que apresentam problemas referentes a seus
limites. Aponta XIFRA HERAS as três categorias de limites do Poder Cons-
tituinte:
"los absolutos, que suponen imposibilidades radicales por
motivos extrajurfdicos e incluso extrapoliticos (recuérdese como
ejemplo el principio inglês segun el cual el Parlamento puede
hacer todo menos cambiar el sexo de las personas o la imposibi-
lidad de que un pais democrático vote una ley declarándose
comunista), los autónomos procedentes siempre de una autoli-
mitación que no afecta para nada ai genuino Poder Constituyente
(verbigracia, las normas que prescriben que "Ia forma republi-
cana no puede ser objeto de revisión constitucional") y, final-
mente, los límites heterónomos que proceden de una ,presi6n ex-
terna que ha originado (sobre todo en los últimos tiempos) una
grave minoración de la suprema facultad poHtica decisoria. Pro-
ptamente hablando, 0010 estos últimos Ifmites sen los que afectan
aI Poder Constituyente" (26).
O Poder Constituinte, entretanto, é considerado por vários autores,
pela sua natureza, como ilimitado, absoluto. Não deriva sua competêncta
de nenhum outro poder, ao mesmo tempo que não está submetido a qual-
quer tipo de ordenamento positivo:
"Observa-se, portanto, que o veículo do Poder Constituinte
é a revolução. Através desta, o grupo constituinte consegue im-
por ou restaurar a idéia de direito, derrubando a antiga Consti~
tuição.
Deve-se entender como direito de revolução o direito de
mudar de organização. Mesmo através do recurso à força, um
povo tem o direito de mudar a organização constitucional esta-
belecida, o que, no entanto, não impede que um grupo venha a
ficar em situação de estabelecer nova Constituição sem recurso
à força" (27).
O Poder Constituinte é uma faculdade originária da comunidade polí-
tica soberalla, com o fim de provê-la, em sua origem e transformações
revolucionárias ab imis, da organização jurídica constitucional, para a
qual ele não se acha limitado em seus alcances e modo de exercício, por
regras preexistentes de direito positivo. Pelo seu caráter originário não é
possível esta forma de relativizar a sua atuação (28).

125) HERAS, Jorge Xilra - CllrlIO de Derecho Conltltllclon.l, Boaeh, Barcelona, 1957, Tomo I, 2.- ed.,
pp. 143 e ss.
(26) HERAS, Jorge XI'ra - Cllno da Oarecho Conetl,,"olonal, ob. eit" pp. 149 e 150.
(27) BARRUFINI, José Carlos ToseU - Revolllç,lo a Poder Consl"lIlnte, Editore Revlsla dOI Tribunais,
510 Paulo, 1976, p. 51.
(28) SAMPAV. Mllro Enrique - Inb'Odllccl6n a .. Teor'. de' El1ado. Edielones PolUele, Bllenos Aires.
1951, p.•U3.

R. Inf. legill. Bralilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 45


MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, no que diz respeito à natu-
reza do Poder Constituinte, aponta ser a Constituição o ponto de partida
da ordem jurfdica positiva, pelo que apresenta duas teses a respeito da
natureza da Constituição, obra do Poder Constituinte: a tese positivista e
a tese jusnatu ral ista.
O Poder Constituinte dentro do primeiro entendimento é simplesmen-
te força social. No que se refere ao Poder Constituinte ligado ao jusna-
turalisrno, acrescenta que está ligado à problemática da liberdade:
"O Poder Constituinte sobrevive, após a edição de uma Cons-
tituição, fora da Constituição, como expressão da liberdade hu-
mana" f~9).
Ao examinar as Constituições de acordo com as suas fontes, SÁN-
CHEZ AGESTA apresenta aquelas que derivam de um Poder Constituinte
genuíno, poder revolucionário com força histórica, que permite definir e
impor uma nova ordem, como uma atividade política criadora, documentos
que denomina de Constituições revolucionárias. Caracteriza-se por uma
certa fragilidade e paradóxica rigidez, que provém de sua própria origem,
com o objetivo de proteger juridicamente as conquistas de uma revolu-
ção (20).
A naturez'8 jurídica do Poder Constituinte, conforme exposição de
CANOTILHO, pode partir inclusive de uma consideração de sua existên-
cia como puro fato, onde os acontecimentos preparatórios de uma cons-
tituinte, através de inéditas manifestações do Poder Constituinte originá-
rio, situam-se no campo do pré-jurídico, onde o direito surgiria com a pró-
pria Constituição:
''Estia tese, típica do positivismo, ainda hoje tem os seus
defensores. O Poder Constituinte continua a ser visualizado como
um ato revolucionário que, criando um novo fundamento legal
para o Estado, opera uma ruptura jurídica em relação à situação
anterior. Quando muito, diz-se, o Poder Constituinte reclamará
um título de legitimidade, mas não a cobertura da legalidade.
Poder Constituinte será legítimo a partir de determinadas idéias
°
politicas, mas não a partir do prisma da legalidade. E a legitimi-
dade de um ato constituinte não é uma qualidade jurídica, é uma
qualidade ideológica - a sua concordância com determinadas
idéias poHticas" (81).
Esse publicista, por outro lado, lembra aqueles que não aceitam que
uma revolução seja um simples fato antijurídico:
"A revolução serã um fato antijurídico, ou melhor, antilegal
em relação lao direito positivo criado pela ordem constitucional
derrubada, mas isso não impede a sua classificação como movi·

(28) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves - Direito COn.lltuclon.1 comp.rado. I - Poder Con.tltuJnte.
Jollé BU8hatsky Edilor, São Paulo, 1974, pp. 63 e a8.
(30) AGESTA. Luie Sánchez - D....çho Constitucional Comp.rado. Editora Nacional, Madrid, 1968, 3. 8 ed.•
p.3O.
(31) CANOTlLHO. JOlIé Joaquim Gomes - Direito Co".tltuclo".I, Livraria Almedine., Colmbre, 1977, p. 157.

46 R. Inf. legisl. 8rosílio O. 19 n. 74 obr./jun. 1982


mento ordenado e regulado pelo próprio direito; visam, sim, subs-
tituir uma idéia de direito por outra idéia de direito - aquela que
informa ou inspira as forças revolucionártas. ~ de acordo com
estas premissas, ou seja, de que a revolução não rompe com o
direito, antes transforma a substância do direito, que certos auto-
res defendem a possibilidade e necessidade da teorização jurí-
dica das revoluções e do Poder Constituinte originário, conside~
Mdo como ato revolucionário" (32).
A noção de Poder Constituinte adquire na sistemática institucional
papel relevante, desde que a sua compreensão dará explicação definitiva
para elaboração decisiva do processo democrático, assentado em bases
legitimas.
l:: ponto essencial de uma teoria do Poder Constituinte o exame de
sua natureza, tendo em vista que dessa compreensão dependem as várias
implicações decorrentes da delimitação deste conceito.
LUIZ CARLOS SACHICA, ao traçar esquema para uma teoria do
Poder Constituinte, apresenta, inici,almente, estes dados:
- é faculdade e função;
- poder criativo de ingerência política, de construção e estrutura
relacional da convivência.
Coloca, ainda, a teoria do Poder Constituinte como uma teoria polí-
tica. Contrari'ando diversas opiniões, às quais nos filiamos em parte, o
professor colombiano entende que no direito, como ciência, não interessa
o poder polftico em si, por não ser próprio de seu objeto e escapar sua
metodologia. Está de acordo com o entendimento exposto por LUIS CAR-
LOS SACHICA mais no campo da ciência política; desde que o poder aí
considerado é elemento da realidade política. O direito, como sistema
normativo dotado de coercibilidade, reconhece e apreende o poder polftico
para regulá-lo em seu exercido. Aceita o poder racionalizado, institucio-
nalizado, normativado e transformado em competência jurídica atribulda
como faculdade contida 'nos preceitos jurídicos de um órgão estatal (83).
A teoria constitucional e do Estado, vista pela perspectiva do consti-
tucionalismo liberal e democrático, bem como a ordem normatiVla corres-
pondente, surgem de uma teoria do poder político, de cuja essência é o
Poder Constituinte.
A atuação do constituinte é ocasional, solicitada em clecorrência de
mudanças institucionais e quando a conjuntura polítioa força transforma-
ções necessárias.
A Constituição precisa de estabilidade, que está assentada na estru-
tura de poder, responde pela segurança jurldica. A função constituinte

(32) CANOTILHO. JOlé Joaquim Gomes - DI..11o conalllUeloMl, ob. clt., pp. 157/158.
(33) SACHIC.... Lull Carlol - ElquMIIll p.ra uns Teorl. dei Pod... Conllltuyenle, Editorial Temil, Be-
goli. 1978, pp. 3 e.1.
R. Inf. legial. Bralília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 47
não deve ser confiada a um organismo permanente. A iniciativa reformado-
ra deve estar delimitada pelo condicionamento temporal.
Considera-se desprestígio para os constituintes o prolongamento ar-
tificial de seu funcionamento.
As constituintes devem ser eleitas especialmente para as reformas
necessárias, sendo seu funcionamento breve e de término fixo.
A iniciativa convocatória da constituinte tem gerado múltiplas dis-
cussões quanto à oportunidade, os mecanismos e o órgão encarregado de
concretizar o seu estabelecimento. A etapa vestibular da constituinte pode
originar-se do Congresso ou outro corpo que possa encarnar as atribui-
ções que lhe deverão ser definidas.
l:: necessário evitar que o legislador ordinário se desdobre em cons-
tituinte, sem participação popular explfcita sobre essa função, nem no que
diz respeito à iniciativa ou aos seus resultados.
CARLOS SACHICA, dentro de sua exposição, apresenta duas etapas
do exercício da competência reformadora:
- pré-constituinte, em que o Congresso decide se é oportuno, ne-
cessário e conveniente convocar um corpo constituinte;
- outra em que os eleitores designam ou adiantam a reforma cor-
respondente.
O Poder Constituinte é de atuação continua, no momento em que,
através de sua vontade organizadora, é um sistema normativo, que adqui-
re vigênci'a permanente e estabilidade institucional. Entretanto, a função
constituinte é descontínua. O constituinte primário estará presente em
momentos criticos e excepcionais (34).
O poder democrático identifica-se à liberdade coletiva de decisão.
ROUSSEAU caracteriza dessa maneira a análise do pacto social, cujo
objeto essencial consiste em estabelecer o poder da vontade geral.
A significação do contrato social, o estudo dos princípios de organi-
zação política, através do conhecimento da obra de ROUSSEAU, HOBBES,
LOCKE fornecem dados para uma compreensão do Poder Constituinte,
desde que chegaremos a uma etapa histórica da existência de um Estado
de natureza anterior a esta operação.
As indagações em torno da formulação em termos de direito sobre o
primeiro princípio de organização política leva-nos a questionamentos em
torno da natureza do Poder Constituinte.
O consentimento dos cidadãos na decisão política impõe-se em con-
seqüência da liberdade reconhecida a todos que deverão participar na
elaboração do documento básico, regra comum de convivência política. O
direito que têm os povos de traçar as normas básicas da estrutura política
decorre desse poder de elaboração de sua Constituíção.

(34) SACHICA, L.ula Carlo. - Eaquama para una T90rra 1101 Poliar Conallturanto, ob. cll" pp. 5 a a••

48 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./lun. 1982


A proteção das liberdades contra o poder deve ser efetuada através
de mecanismos que o limitem na forma de atuação que só é posslvel
através de Poder Constituinte que tenha natureza para tal (3:».

4 - Titularidade do Poder Constituinte


PAULO BONAVIDES acentua que fundamentalmente a teoria do Poder
Constituinte é uma teoria da legitimidade do poder, que surge na ocasião
em que nova forma, situada nos conceitos de soberania nacional e sobera-
nia popular, toma relevo histórico e revolucionário em fins do século XVJII.
Poder novo que surge oponível ao poder decadente e absoluto das
monarquias de direito divino, transforma-se em dado essencial para as
reflexões em torno das instituições políticas:
"Nasce assim a teoria do Poder Constituinte, legitimando
uma nova titularidade do poder soberano e conferindo expressão
jurídica aos conceitos de soberania nacional e soberania popular.
Cumpre, todavia, não confundir o Poder Constituinte com a
sua teoria. Poder Constituinte sempre houve em toda sociedade
pomica. Uma teorização desse poder, porém, para legitimá-lo,
numa de suas formas ou variantes, só veio a existir desde o
século XVIII, por obra da reflexão iluminista, da filosofia do con-
trato sooioal, do pensamento anti-h'istoricista e antiautorirtário do
racionalismo francês, com sua concepção mecanicista de socie-
dade. Numa fórmula feliz estabeleceu EGON ZWEIG a síntese
dessa teoria: um conceito novo para instituir a suprema potestas
nationis ai rationis" (36).
As indagações sobre a natureza do Poder Consti1uinte, se é um poder
jurídico ou não, levam às definições de sua titularidade.
PAULO BONAVIOES aponta as controvérsias sobre a questão da titu-
laridade do Poder Constituinte, quando faz levantamentos que procuram
determinar a quem pertence esse poder:
"Se nos afastarmos da indagação de legitimidade, que abran-
ge considerações valorativas, deixando, portanto, de lado o fun-
damento ou a justificação da pessoa investida nesse poder, a
resposta se simpHf;ca, visto que uma fácil consulta 'aos fatos polí-
ticos nos mostrará, numa dimensão exclusivamente histórica, que
a titularidade vem atribuída ora a Deus, ora a um príncipe ou mo-
narca, bem como ao povo, à nação, a um parlamento ou a uma
classe" (81).
A determinação da titularidade do Poder Constituinte é tema funda-
mentai para a compreensão da próprioa legitimidade de um regime político,

135) l.ACHARR1I!RE, Renê d. J.an.Jacqu1l8 ROU818au - "lnlerprétatJon et P.rmananee", R._ du Drolt


Publlo .1 cfII I. S1c1_. Pollllqu.... Franoe .1 1 1'11"lIlr, Libralrle de Drolt el de Jurlaprudence,
n. o 3, malolJunho, 1961, pp. 469 e .8.
(38) BONAVJOES, Paulo - "O Pod.r Conslltulnt.... 110... • Procunulorla-QlJ'Ilf do Estedo de . . .
'.alo, SIo Paulo, n. O 10, Junho/19n. pp. 111 • Mo° .
(37) BONAVIOES, Paulo - Direito Con.t1tllclonaJ, Forense. RIo de Janeiro, 1980, 1,- .d., pp. 153/154.

49
desde que está ai o traço fundamental para explicar a sua origem e as
conseqüências que ocorrem por formulações espúrias em torno do mesmo.
Em trabalho que destaca aspectos essenciais da natureza e titulari~
dade do Poder Constituinte, ARICe MOACYR AMARAL SANTOS apresenta
importantes destaques sobre o tema, quando relaciona:
- a nação como titular do Poder Constituinte, assentando-se na
exposição de SIEY~S;
- o povo como titular do Poder Constituinte, para o jusn-aturalismo;
- o Poder Constituinte como força social, na sustentação da pers-
pectiva positivista;
- o decisionismo de SCHMITT, que coloca a titularidade no povo;
- a titularidade fixada, ainda, na nação, conforme a perspectiva de
HAURIOU;
- o princípio, o povo ou uma autoridade revolucionária, que, no dizer
de HELLER, podem ser os titulares do Poder Constituinte;
- a posição de CARR~ DE MALBERG, para quem a soberania pri-
mária res~de no povo, na total'idade e em cada um de seus membros;
- a concepção de BURDEAU, em que o povo surge, também, como
titular desse poder (88).
O Ato Constituinte supõe uma vontade em condições de produzir
uma decisão eficaz. O titular dessa vontade é também a do Poder Consti-
tuinte.
A atribuição do Poder Constituinte ao povo não foi unânime em todas
as épocas, conforme podemos confirmar pelo exame da titularidade:
"La atribución dei Poder Constituyente ai pueblo no ha sido
unánime en todo momento. Es más, en el plano real, es uno de
los frutos politicos tardíos que no se implanta hasta fines dei siglo
XVIII en América dei Norte y en Francia. En la antigüedad pre-
clásica, en la Edad Media y en la literatura protestante era gene-
ral la creencia en que Dias era el único titular dei Poder Const;-
tuyente. En las monarquias absolutas esta titul'aridad pasó ai
Rey, quien la justificaba a su vez en un derecho divino. Pera
cuando se impuso .a
concepción inmanente que rechazó la
creencia en el Poder Constituyente de Dios, el poder pasó a la
comunidad, ai populus, a la universllas civium. La revolución bur-
guesa lo consolidó en la nación. La técnica democrática lo limi-
tará frecuentemente ai partido mayoritario, y la táctica socialista
lo concentrará nuevamente en las minorias dirigentes. De ahi que
se haya afirmado que "el Poder Constituyente ha pasado por to-
dos los aspectos que la autoridad ha revestido entre los huma-

(3111 SANTOS, Arlcê MOBcyr AmBrBI - o Podwr Conltflulnle IA Natureza e Tllularldlld. do Poder COIIItI·
1U1n" OI'lglnirio), Sugeat5e& LUar!rla., 810 Paulo, 1980, 1.• ed., pp. 24, 25, 32, 38, "2. a. "9. 50,
57, 58, 63 e 88.

50 R. Inf. lalial. Bralília a. 19 n. 74 abr.lJun. 1982


nos: 1) la exégesis de los libras sagrados: las leyes de Hammu-
rabi, la Biblia, la ley dei Manú, el Corán; 2) las asambleas del
pueblo eo Grecia y en los pueblos germanos; 3) los fueros me-
dievales con los cu ales comienza la construcción intelectual de
una soberania constituyente atriburda a la sociedad: las manifes-
taoiones más trasoendentales de l-a actividad constitucional en
el sistema foral son el Pacto de Mayflower, acordado por los pe-
regrinos que fundaron la colonia de Massachussets en 1620; el
Fuero de Guernica, convenido en 1562 por el pueblo de Vizcaya;
y el "Agreement of the People" de 1647, por el cual el pueblo
ing:és se pronunció contra I·a monarquia absoluta de Carlos I; 4)
las decisiones dei Parlamento, como apoderado de la voluntad
constituyente particular: los Estados Generales franceses con la
Declaración de los Derechos dei Hombre y dei Ciudadano de
1789, el Parlamento britânico con la Petición de Derechos de
1628" (89).
A titularidade e o exercício do Poder Constituinte são temas bem
próximos, que devem ser tratados paralelamente. A atividade constituinte
torna-se parte importante nas análises em torno da dJnâmi·ca do Poder
Constituinte.
XIFRA HERAS define o ato constituinte como essencialmente revolu-
cionário, pelo que é ~mpossível estabelecer um procedimento prévio ao
qual se vincule o Poder Constituinte. Está alheio a toda regu~8Jmentação.
Na evolução das formas de atuação de um Poder Constituinte, percebem-
se certas maneiras de atuação do mesmo:
a) como atributo do monarca, que outorgava a Constituição, median-
te ato unilateral de sua vontade;
b) ao passar a titularidade ao povo, como instância informe e inorQa-
nizada, surge a questão da exteriorização dessa vontade, anterior e supe-
rior a todo procedimento regulamentado. A forma natural de manifestação
imediata da vontade do povo seria a "aclamação". Processo impraticável
em comunidades de grande densidade, dai que foram sendo adotados ou-
tros mecanismos constitucionais;
c) assembléias constituintes, órgãos representativos, com a finalidade
especifica de elaborar e aprovar uma Constituição;
d) convenções constituintes, assembléias que preparam um projeto
de Constituição, cuja aprovação deve ser submetida ao referendum popu-
I'ar ou a outra ratificação direta ou indireta dos cidadãos ativos;
e) plebiscito constituinte utilizado para legitimar um projeto de Cons-
tituição elaborado sem a intervenção do povo ou qualquer órgão repre-
sentativo; introduz-se ai um mínimo de decisão democrática para provo-
car o consentimento popular a um fato jã consumado (40).
Os levantamentos em torno dos tipos de constituintes surgem como
aspecto importante da problemática ora ~xamlnada. Mas as classificações

(381 HERAS, JOllle Xllra - C _ d. oerecha Conatlluclonal, ob. clt., p. 153.


(40) HERAS, Jorge Xllr. - De...oho COMIIllNl..... 00. clt., pp. 154 • 156.
CIIrto •

R. IlIf. "'11I. 8ralma a. 19 n. 74 ••r./jun. 1982 SI


variam, quando os autores procuram encarar os elementos fáticos e polf~
tico-democráticos que encarnam o Poder Constituinte dentro dessas
formas:
a) Assembléias Constituintes absolutas;
b) Congresso em função constituinte;
c) Parlamento com poderes de revisão constitucional (41).
As discussões em torno das formas democráticas e autocráticas mo-
dernas levam a relevantes questões que estão ligadas aos regimes poHti-
cos contemporâneos. Dentre essas inquirições, a questão da titularidade
ou o sujeito do Poder Constituinte ou o seu exerclcio merecem cuidadosa
atenção. A maioria dos regimes pollticos proclamam a titularidade demo~
crática do Poder Constituinte.
A titularidade ou sujeito descansa obrigatoriamente no povo como um
todo, que se expressa graças a sua liberdade política, que se conforma
com uma organização pluralista da sociedade. Democracia, povo, plura-
lismo, maiorias são palavras que se supõem reciprocamente, opõem-se a
autocracia, oligarquia, monismo, monocracia e minorias.
VANOSSI apresenta classificação das teorias sobre a titularidade do
Poder Constituinte, começando a separar as concepções clássicas das
modernas. Entende que as concepções modernas giram em torno da auto-
cracia e democraci·a. Já as concepções clássicas ou tradicionais apresen-
tam três séries, que correspondem a fases da evolução do pensamento
polltico: teorias de sujeito unipessoaJ, teorias de sujeito coletivo e teoria
de sujeito compartilhado.
Ao tratar do exercício do Poder Constituinte f'undacional ou revolu-
cionário, VANOSSI examina o nascimento das Constituições que decorrem
como criaturas desse mesmo poder.
Os órgãos ou autoridades que assumem o exercício dessa força ou
poder de organização política da comunidade merecem detido exame do
publicista argentino, que apresenta a seguinte tipologia:
1) Exercício autocrl!ítico: criação unilateral da Constituição:
a) cartas eram concessões graciosas do rei, no exercício de seu
poder absoluto e ilimitado;
b) decretos constituintes ou atos institucionais. como atos de imposi-
ção dos detentores do poder, pela força ou em virtude do consen-
timento, seja por um golpe de Estado de alguns dos poderes
constitufdos ou pela insurreição das forças armadas frente ao
poder civil.
2) Exercicio sinalagmático: criação consensual da Constituição:
a) pactos entre o rei e o parlamento, correspondentes a uma etapa
hibrida ou ambígua sobre a titularidade do Poder Constituinte;

(41) LIMA, GelOJlo Tlrglno de - "ReflexO.. lobr. o Poder eonltitulnte", RplMa de CI'nele Polltllll,
Funllaçlo GIIOUo Varga., vaI. li, n. o 3, p. M.

52 R. In'. legial. Braaília a. 19 n. 74 abr./Jull. 1982


b) pactos entre Estado e provfncias que levam à formação de confe-
derações de Estados, cuja base jurídica é o pacto, ou que levam
à reunião de um congresso, assembléia ou convenção que deter-
minará uma nova forma de Estado e sua Constituição.
3) Exercicio democrético: criação soberana-popular da Constituição:
a) criação representativa, através da democracia indireta, mediante:
- órgão especial, convocado para este efeito, como o sistema de
"Convenção" de Filadélfia;
- órgão comum e permanente, sanciona a Constituição mediante
o mesmo procedimento das leis ordinárias, como o caso da
Constituição flexível da Inglaterra;
b) criação popular, através da democracia semidireta, por meio de:
- referendum ante legem ou consultivo, em cuja hipótese trata-se
mais propriamente do Poder Constituinte;
- referendum post legem ou aprovatório, o povo decide direta-
mente sobre uma proposta governamental, elaborada ou não
por um 6rgão representativo prévio;
c) pela combinação dos procedimentos anteriores ou reg~me misto:
- sanção do Parlamento, com ulterior referendumj
- sanção da convenção, por meio de referendum posterior;
d) por sanção direta.
Observa-se que o exercfcio do Poder Constituinte originário nos pro-
cedimentos democráticos, através de assenmléia ou referendum, é cons-
tante.
O órgão e o procedimento da modificação constitucional é outro as~
sunto importante dentro das pesquisas sobre o tema que pode ser matéria
de órgãos especiais (42).
BIDART CAMPOS aceita como sendo tese geral a opinião clássica
de que a comun!dade é o sujeito titular do Poder Constituinte:
"En definitivo, significa que el pueblo es titular dei Poder
Constituyente para manifestar su voluntad en dos momentos po-
Hticos: ai formar el Estado y ai dar una Constitución; es decir. ai
consentir la convivencia an una organizaci6n polfbica concreta,
y 'al atribuir a esa instituci6n una forma constitucional y una i·n-
vestidura de poder. Ambos momentos no coinciden si la Consti-
tución es escrita y se dieta después de la fundación dei Es-
tado (43).
Em estudo que tem por objeto a análise do que denomina a teoria da
Constituição, soberana para o povo, LE MONG NGUYEN inicia esse tra-
balho fazendo referência a ANDR~ HAURIOU que proclamava a existência

(42) VANOSS1, Jorge Relneldo A. - Tlorl. C_llluclotl... l_r. Con.tltllJllnle. PocIw ConeUtllrenle: filo-
dRlonel; NYOlUclonerlo; retonnador, vai. I, Dapalma, Buenol ArAlI, 1975, pp. 277 B A.
(43) CAMPOS, GBnnln J. Bldart - DIl'ICho COMIIIUoIoNlI, Tomo 1, Edlar, Buenos AlrBI, 1968, pp. 1691170.

R. Inf. lelill. Bralília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 53


de mais de 130 Estados independentes, com um aparelho polrtico e uma
Constituição. Essa vida polftica exposta no estatuto constitucional é cheia
de contradições. que levam a perrodo de calma, tumulto. golpes de Estado
ou revoluções:
"Ainsi, gouverner c'est avant tout avoir une Constitution.
Que la pratique puisse en altérer le sens initial, la chose n'est
rien de moins que naturellel Le général De Gaulle n'a-t-i! pas
déjá invoqué Solon dans son discours de Bayeux afin de justifier
dês 1946 des modifications ultérieures de "son" oeuvre consti-
tuante? La Constitution suit de ce fait le cheminement de la cons-
cience d'une nation, elle épouse I'évolution d'un peuple dans sa
recherche constante de la liberté. La Constitution n'est pas, elle
ne peut pas être une notion uniforme, car elle secrete I'avenir,
elle revêt des aspects multlples et variés, qui font ainsi la syn-
thése de ses articles, de sa pratique, de son évolution et - pour-
quoi pas? - de sa "violation"? (44)
A complexidade da questão da titularidade do Poder Constituinte é
percebida no trabalho em questão, quando faz referência ao desdobra-
mento constitucional ocorrido, através de um ensaio de racionalização de
sua prática referendária. Esse fenômeno é criticado nas instituições poll-
t;cas contemporâneas, pois acarreta certos perigos que afetam o próprio
Poder Constituinte.
Após do:s séculos de distância, as idé'as revolucionárias de SIEY~S
sobre o Poder Constituinte da nação encontram eco na concepção gau-
lista de poder.
A titularidade de Poder Constituinte em uma Constituição soberana
do povo. desde que ele a estabeleça soberanamente, conforme pronun-
ciamento do general De Gaulle, em 1945, determina que o povo detenha
diretamente este poder:
"Parce que le peuple peut toujours la modifier librement
(selon le général De Gaulle, ce pouvoir populaire s'exerce S8ns
entrave).
Parce qu'elle I'enporte - en cas de conflit - sur les autres
aspects relationnels de la Constitution, étant hiérarchiquement
supérleure (selon le général De Gaulle "la souveraineté nationale
appartient au peuple et elle lui appartient évidemment, d'abord.
dans le domaine constituant").
Parce qu'elle est présumée la meilleure, étant le reflet con-
tinuei des aspirations nationales dominantes (selon le général
De Gaulle, à "une Constitution, c'est un esprit, des instítutions,
une pratique") (.5),
A titularidade do Poder Constituinte é objeto de várias implicações
doutrinArias e práticas, principalmente tendo em vista as grandes transfor-
(....) NGUYEN, Le Mong - "Conlrlbullon à la Théorle de la Consll1ullon Souveralne par le Peuple", Re-
_ da Dro" PubUe .1 da la Selanea Pollllqu. an Franca et • l'llranger, L1bralrle Gllnéral. da
Droll el da Jurleprudence, Julho/agoslo, 1971, n.O 4, pp. 925 e 926.
(45) HGUYEN, Le Mong - COntrlbutlon li la TII~rlli di I. COMlltutron Souveral.. par I. PHpIl, ob. cll..
pp. 931 • 932.

54 R, Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


mações e crises por que passa a estrutura constitucional do Estado con-
temporâneo.
A consideração da Constituição como um ato de vontade unilateral da
nação, que pode ser sempre revista, livremente, surge em considerações
atuais sobre o Poder Constituinte.
Esse Poder Constituinte permanente da nação, Exposition raisonnée,
de 20 de julho de 1789, por SIEY~S, mereceu o seguinte comentário de
ESMEtN, em éléments de Droit Constitutronnel (7~ ed., T. I, p. 570):
"Trata-se de uma ação revolucionária reconhecida legítima
e quase permanente."
A nação como titular do Poder Constituinte não está ligada a qual-
quer regra preestabelecida. Ela é independente de qualquer forma. A
nação detém, de maneira absoluta, o direito de trocar a Constituição, sem
se importar pelo processo a ser empregado, desde que sua vontade é lei
suprema.
Percebem-se, claramente, as invocações que demandam a questão
da titularidade do Poder Constituinte. Já CARRt: DE MALBERG, em capí-
tulo sobre a teoria do 6rgão do Estado e a questão do Poder Constituinte,
indagava: Em que reside o Poder Constituinte?
Para esse autor, o estatuto orgânico pelo qual uma pluralidade de
homens concorrem para a formação de uma mesma nação, constituindo-
se em um corpo estatal unificado, deve ser obra desses mesmos homens.
A soberania primária ou o Poder Constituinte reside essencialmente no
povo, na totalidade e em cada um de seus componentes (48).
A teoria que parte da idéia de que a soberania constituinte reside em
principio no povo mereceu detalhada análise de MALBERG. Para chegar a
este entendimento, vê como necessário partir das indagações em torno
da primeira Constituição do Estado. aquela da qual ele se originou.
A respeito dessa Constituição inicial, surge doutrina que se esforça
em descobrir base jurídica. Entretanto, para este doutrinador, a teoria do
Contrato Social que procura chegar a esses esclarecimentos, parte de
erro essencial, quando aceita ser possível dar uma construção jurldica aos
acontecimentos ou a atos que puderam determinar a fundação do Estado
ou sua primeira organização. Estas, no entendimento de MALBERG, não
resultam senão como fato, não susceptível de ser classificado em nenhu-
ma categoria jurfdica, desde que não está governado por princrpios de
direito.
Dentro dessa perspectiva positivista, desde que não existe direito
anterior ao Estado, é essencial que o Estado já constituído possua uma
ordem jurfdica, especialmente uma ordem jurídica destinada a regula-
mentar eventualmente a reforma de sua organização.
O Poder Constituinte não é exercido com o objetivo de criar uma
nova nação e o Estado.

("6) r..tALBERG, R. Carré de - Teoria a.n_1 de, ~do, Fendo de Cultura Econ6mlca, MélClco, 19046.
Irad. esp. de JOS~ 1I6N DEPETRE, pp. 1.181 e SS.

R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 obr./jlln. 1982 55


Nas coletividades erigidas em Estado, o Poder Constituinte há de
explicar-se, para CARRt DE MALBERG. pelos órgãos mesmos da Consti-
tuição. Estes podem ser uma assembléia especialmente eleita com esta
finalidade, o corpo de cidadãos ativos atuando por via do governo direto
ou várias autoridades constituídas.
Quaisquer que sejam as pessoas ou assembléias chamadas para exer-
cer a função constituinte, 'apresentam o caréter jurídico de 6rgãos esta-
tais ou representantes.
Para esta exposição, a teoria do órgão do Estado faz-se extensiva
ao Poder Constituinte:
"Asr, puas, el concepto jurídico de Poder Constituyente im-
plica ~a preexistencia de ciarta orden y de cierta organización
constitucional. Este punto fué comprendido instintivamente por
la primera Constituyente de 1789. Aunque esta asamblea estu-
viese decidida, desde el principio, a reorganizar la nación fran-
cesa sobre bases enteramente nuevas y a emanciparia comple-
tamente dei or.den jurídico anterior, sintió la necesidad de un
titulo jurídi,co tomado dei pasado, y se esforzó por creárselo a si
misma" ('7).
Apesar das diferenças que existem entre os diversos sistemas cons-
tituintes, ocorre de comum entre eles, à exceção das cartas, que as Cons-
tituições, geralmente, coincidem em que o Poder Constituinte deve ser
exercido não pelo corpo legislativo ordinário, mas por uma assembléia
especial:
"Esta asamblea es el Senado en las épocas napoleón:cas:
bajo las Constituciones de 1791, de 1793, dei ano 111, y de 1848 es
una asamblea que - cualquiera que sea el nombre que se le dé:
convención, asamblea de revisión etc. - t:ene por carácter esen-
cial el ser una constituyente, es decir, una asamblea especial-
mente lIamada a ejercer el poder constituyente, formada por
diputados que han sido elegidos por el pueblo para aI cumpli-
miento especial de una labor constituyente y, por último, que no
tiene más función que la de efectuar la revisi6n para la que fue
convocada, pues debe disolverse inmediatamente después de
cumplida esta misi6n" (48).
A experiência constitucional da Espanha ocorrida em 1978, pelo que
demonstra LUIS SÁNCHEZ AGESTA, debateu a questão dos poderes cons-
tituintes e o processo constituinte.
As Cortes tiveram grande importância, sendo que o projeto de refor-
ma tinha três objetivos intimamente relacionados: nova composição e
base polftica das Cortes; novo procedimento de reforma constitucional; e
o estabelecimento dos princfpios básicos da lei eleitoral que permitisse
conhecer efeti....amente ras opções que representavam os partidos (40).

(471 MALBERG, R. Carré da - Teoria Oaneral dei Estado, ob. cit., pp. 1 .169 e aa.
(48) MALBERG, R. Carré da - Teoria O_reI dai Eslado, ob. clt., p. 1.183.
(48) AGESTA. Lula S6nchez - El SII'ama PolIUco da la Coftltltuclón Eaplllola da 11178. Edllora Nacio-
nal, Madrid, 1980. pp. 41 a 43.

56 R. Inf. legisl. Brasílio o. 19 n. 74 abr.lJun. 1982


5- Tipos de Poder Constituinte
As modalidades sob as quais surge o Poder Constituinte têm apre-
sentado variantes que podem ser assim nomeadas:
a) Poder Constituinte originário;
b) Poder Constituinte derivado, constituído, instituído ou de segundo
grau;
c) Poder Constituinte decorrente fiO).
Para ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ, tendo em vista a finalida-
de da intervenção do Poder Constituinte, a doutrina apresenta dois tipos:
a) Poder Constituinte originário;
b) Poder Constituinte institurdo (51).
~ constante a referência ao Poder Constituinte originário, que elabora
a Constituição e não se prende a limites formais. Essencialmente poUtico,
é para PAULO BONAVmES até extrajurrdico. O Poder Consttuinte cons-
titurdo 'insere-se na Constituição. e órgão constitucional, afeito a I'imitações
táoitas e expressas, surge como primacialmente jurídico, desde que tem
como objeto reformar o texto constitucional (62).
A fixação desses tipos é importante, desde que podem influenciar no
procedimento do Poder Constituinte para elaborar e adotar uma Consti-
tuição (53).
Como poder originário da sociedade política, somente o Poder Cons-
tituinte tem caráter inicial e ilimitado:
"O Poder Constituinte originário sempre cria uma ordem
jurrdica, ou a partir do nada, no caso de surgimento da primeira
Constituição, ou mediante a ruptura da ordem anterior e a im·
plantação revolucionária de uma nova ordem. O poder reforma-
dor apenas modifica a Constituição" (5~).
NELSON DE SOUSA SAMPAIO, após mostrar que o poder reformador
está colocado abaixo do Poder Constituinte, apesar de sua natureza
constituída, salienta que sua base está na Constituição, que lhe fixa os
contornos e estabelece o processo de atuação: .
"O poder de reforma jamais atingirá, portanto, a eminência
representada pela i1imitação da atividade constituinte. Chame-
mo-I'o um "Poder Constituinte consti1tlrdo", como faz AGESTA;
"Poder Constituinte derivado", conforme PELAVO; ou "Poder
Constituinte instituído", segundo BURDEAU; devem:)s encará-lo,

(M» I'lUSSOMANO, .Ro..ll - CUra0 11. Onllo ConalllUclonal, Saraiva, Slo Pnulo, 1972, 2,· ed .. p. 35,
(51) FERRAZ, Al'Ina CAndld_ d_ Cunll_ - Poller Conatltulm. do Ea'ado"'HIbro, Editora Revista doa Tri·
bunals. Slo Paulo. 1979, p. 13.
(!2) BON....VIDES. 'aulo - O Poder C_lllUln.., ob. cil., p. 94.
(53l LOEWENSTEIN. Karl - TltOrf. Ih .. eonatJtucl6ft. Edlçlones Arlel. Barcelona, 1970, 2.• ed.. Ired.
ALFREDO GALLEGO ANABITARTE, pp. 160 e ...
(54) CAET....NO. Marcelo - DIreIto COMIllUcIOM'. Fore".., Rio de JaneIro, 1977, vol. I, pp. 397 e 3911;
BASTOS, Caleo Ribeiro - CII~ d. Dlre/lo e-tltualonal. saraiva, 510 Paulo, 1980, 3." ed.. pp.
18 a 20.

R. Inf. leglsl. Bl'Cllílla a. 19 n. 74 ••r./jun. 1982 57


nas palavras de PONTES DE MIRANDA, como uma "ativídade
constituidora diferída" ou um "Poder Constituinte de segundo
grau" (55).
Dentro da tiporogia do Poder Constituinte, ocorrem indagações que
permitem análises em torno da natureza de cada um dos tipos. Dessas
investigações surgem questionamentos se o poder de modíficação é total
ou parcial, apenas modificatório ou substituto institucional do regime.
Principalmente quando se procuram apontar as características da atuação
do constituinte primário. Este distingue-se do constituinte derivado, que
não pode negar a fonte de seu poder, a razão de sua legitimidade (56).
A organização constitucional em momentos de crise sente-se atraida
pelas formas de exercício do Poder Constituinte, circunstância que pode
gerar inquietações, sobre o melhor tipo para soluções de impasses insti-
tucionais. Nem sempre essas situações podem ser resolvidas por atr:bui-
ções de poderes excepcionais a órgãos que tiveram estruturação consti-
tuidaatravés da elaboração de uma Constituição, que não encontra cor-
respondência com a nova realidade (:s7).
O Poder Constituinte, normalmente, é examinado em relação com as
Constituições rígidas, porque surge nelas nitidamente a atríbuíção norma-
tiva <'lesse poder a um órgão extraordinário e superior, acima dos poderes
conslltuidos. Em vista dessa rigidez, a ulterior reforma que é reservada a
um órgão com Poder Constituinte, que se habilita de acordo com o proce-
dimento indicado pela Constituição, ocorre de maneira diferente.
B!'DART CAMPOS aceita nova distinção quando fala em Poder Cons-
tituinte formal e Poder Constituinte material. O primeiro é aquele em que
tanto o ato originário como as reformas derivadas ajustam-se à formali-
l.Iade solene, que é clássica no constitucionalismo rigido. Na segunda
hipótese, os órgãos ordinários o exercem quando cumprem atos de con-
teúdo constituinte, legislando, de maneira válida, por disposições em
matérias constitucionais, seja interpretando a Constituição por via juris-
prudencial, seja instaurando normas constitucionais em desacordo com a
Constituição escrita. O Poder Constituinte, quando não formal, não está
preso a corpos nem processos especiais. Nos Estados de Constituição
rigida, quando ocorre a circunstância em que os poderes constituídos
usam a competência ordinária, estes são, muitas vezes, titulares de um
Poder Constituinte material.
A elaboração de uma Constituição supõe um Poder Constituinte
originário e formal (58).
JOS~ AFONSO DA SILVA, ao considerar as particularidades ineren-
tes ao Poder Constituinte reformador, salienta:
"Como se nota, o poder de emenda constitucional foi atri-
buído ao Congresso Nacional, que é o poder constitufdo e órgão
(55) SAMPAIO. Nélson de Sousa - O Poder de Reform. Con.lIluclon.', Livraria Progresso Editora, Sal-
vador, 1954. ~~. 42 e 43.
(se) SACHICA, luis Carlos - Expo.lelÓn y Gle•• de' Con.U1uelon.n.....o Modemo, Editorial Temls, Bo-
g olé. 1976, p. 63.
(67) lEROY, Paul - l·O...nl••lIon Con.Ulullonne'" .1 IM Cri..., Libralrie GEnérela da OroU él Juris-
prudence. Paris. 1966. pp. 33 e 8S.
(58) CAMPOS, German J. Bldarl - De,.cho Con.muclan.l, Edlar, Buenos Aires, 1968, Tomo r, pp. 166 e ••,

58 R. Inf. legisl. Brolilio a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


da legislatura ordinária. Trata-se de um problema de técnica
constitucional. Seria muito complicado ter que convocar o Poder
Constituinte originário todas as vezes que fosse necessário
emendar, reformar ou rever a Constituição. Por isso, o próprio
Poder Constituinte originário, ao estabelecer a Constituição da
República, instituiu um Poder Constituinte reformador, que, por
isso mesmo, a doutrina denomina o Poder Constituinte derivado,
Poder Constituinte institufdo ou constitufdo, poder de reforma
constitucional" (119).
Os tipos de Poder Constituinte, pela repercussão na forma de ela-
boração constitucional, têm grande importância na criação da ordem
jurfdica, na sua manutenção e continuidade.
Não é fácil apontar as manifestações do Poder Constituinte, tendo
em vista os tipos sob os quais ele aparece.
Entende-se que o povo revela seu Poder Constituinte por meio de
qualquer expressão reconheclvel de sua imediata vontade de conjunto,
dirigida para decisão sobre o modo e a forma de existência da unidade
polftica. Apesar de dotado desse poder, de ser seu titular, não é consi-
derado como organismo estável, nem de atuação contínua (60).
As transformações institucionais que ocorrem em nossos dias de-
monstram a importância dos aspectos teóricos e práticos do Poder
Constituinte, no que se refere ·aos tipos sob os quais ele se apresenta.
Na consolidação de autêntico sistema democrát~co, o tipo de Poder
Constituinte, que vai traçar diretrizes de determinado regime, depende
de sua forma de atuação,. que por sua vez decorre do tipo sob o qual
surge a elaboração constitucional.
VANOSSI, sob a denominação de controvertidas etapas do Poder
Constituinte. aceita que a doutrina tradicional consagra dois tipos, classes
ou etapas do mesmo, correspondentes a momentos do Estado e como
base para a trabalhosa construção teórica sobre os limites desse poder:
"Coinciden la mayorfa de los autores en hablar de un Poder
Constituyente originaria y de otro derivado, asignando ai primere
el nombre y la condici6n de genufno, mientras que el último o
tendrfa la calidad de ser un Poder Constituyente constituído o
institufdo. En el primer caso, se tratarfa dei Poder Constituyente
que actua en el momento de la constitución originaria, es decir,
la primera vez que se da la comunidad un ordenam;ento jurfdico;
mientras que en el segundo caso estarfamos ante el ejercicio
dei poder encargado de la reforma de la constituci6n vigente" (61).
Mostra esse publicista a diferente situação existente entre a criação
ou recriação revolucionária de um ordenamento constitucional (Poder

(511) SILVA, Joeé Afon8Q da - Curwo d.· Dhwtto eo.W1l1uc1on.. Poaltlwo. D. Organluçlo N.clonal. Edl-
lora R.vlela doe Tribunais, Slo Paulo. 19711, \'OI. I. p. 25.
(60) SACHICA. Lule Carloe - Con.Uluclonallno CoIOlllllI-. Editorial Temia, Bogotê, 1977, 5. a ed., p. 101.
(61) VANOSSI, Jorge Reinaldo A. - T_I. C_lItuclo....'. \'OI. I, ob. cl!., p. 123.

R. Inf. le,lIl. Bra.ília o. 19 n. 74 obr.!jun. 1982 59


Constituinte originário) e sua modificação, sem solução de continuidade
(Poder Constituinte derivado), Aceita dentro desse entendimento, um Po-
der Constituinte fundacional ou revolucionário e um Poder Constitu:nte
de reforma da Constituição.
O Poder Constituinte revolucionário leva a questionamentos sobre a
configuração do fato revolucionário, em relação à legalidade preexistente,
com o exerCÍcio da competência reformadora. Para configurar a existência
de um acontecimento revolucionário, VANOSSr aponta três situações:
a) para as ciências sociais em geral, principalmente a economia e
sociologia, o revolucionário supõe mudanças estruturais;
b) para a ciência política, o revolucionário indica transformações
institucionais;
c) para a ciência jurídica, o revolucionário supõe a v:olação da lógica
dos antecedentes, tem como característica essencial o rompimento da
lógica normativa de criação regular do direito, estabelecido por um orde-
namento jurídico (62).

6- Poder Constituinte originário


O Poder Constituinte é originário ou genuíno quando o exercíc:o da
faculdade soberana do povo de constituir-se originariamente, e pela pri-
meira vez, no Estado tem o objetivo de elaborar o ordenamento jurídico.
Surge para dotar um novo Estado de Constituição ou para estabelecer
as instituições que foram revolucionariamente extirpadas, não se achando
o titular desse poder necessariamente investido (63).
Entende AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO que o Poder Consti-
tuinte originário surge na oportunidade de organização do Estado, no
caso de uma antiga colônia que conquista a independência e elabora
sua lei constitucional, ou nos Estados existentes, por ocasião de revolu-
ção. guerra externa ou outros fatos que acarretam a reordenação jurídica
fundamental (64).
O caráter originário e extraordinário sob que se produz a ordem
constitucional tem pela frente uma decisão criadora, não prevista por
meio de um preceito jurídico, nem por uma lei histórica de probabilidade.
Não tem apoio na ordem anterior nem segue uma sucessão regular de
causas. Está além dos poderes constituídos e das razões que possam
fundamentar o exercício desse poder. Para LUIS SANCHEZ AGESTA, o
Poder Const;tuinte originário deve apresentar essas características:
a) não encontra sua justif:cação em uma legitim'dade jurídica an-
terior;
b) sua base é de caráter transcendente à ordem jurídica positiva;

(1l2) VANOSSI. Jorge Reinaldo A, - horla ConNlIuclonal. \l{)1. I, ob. cit., pp. 143 e 1«.
(63) QUINTANA, Segundo V. Linares - Tratlldo de la Clenela dei DtIrecho CoMllluclonal "'l'IIenllno ~ Com-
p.rlldo, P.... O.ra1. Teoria de I. CClnslllucl6n, Tomo li, Editorial AlIa, Buenos Aires, 1953, p. 129;
ACCIQlI, Wilson - ln,lIIulç6e' d. Dh..llo COllalll\lelonal. forense, Rio de Janslro, 1978, pp. 42 e -43.
(M) FRANCO. Alon80 Arinos de Melo - Direito ConatllUcIOll.r. Teorla da ConNllul~. AI ConatllUl~'
do .r"II, Forense, Rio de Janeiro, 1976, p. 123,

60 R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n, 74 obr./Jun. 1982


c) deve ser procurado em um direito superior ao positivo:
d) surge com legitimidade transcendente, com a invocação de valores
de justiça superiores ao direito positivo ou apoiando-se em necessidades
históricas ou em titular de direito que o direito positivo é incapaz de
realizar;
e) deve ser buscado no direito natural;
f) o caráter radicalmente originário e revolucionário do Poder Cons-
tituinte o distingue daquelas criações da ordem que têm seu fundamento
em uma norma constitucional, ainda que esta não regule senão a compe-
tência de um órgão criador;
g) caracteriza-se por sua eficácia atual, que inova esse direito, deve
estar em condições, por razão da força de que dispõe, ou pela autoridade
de que se acha investido, de realizar criação da ordem frente às forças
que se lhe opõem;
h) essa originalidade demonstra ser uma efetiva força histórica, capaz
de realizar os fins a que se propõe;
i) a mera formulação de uma nova ordem, ou o propósito revolucio-
nário de realizá-la, não surgindo vias eficazes de cumprimento, não pode
ser considerada como manifestação efetiva do Poder Constituinte;
j) é preciso a plena consumação de fato de seu objeto, com a criação
de uma nova ordem;
k) o Poder Constituinte é diferente de toda atividade política que
não tem imediatamente seu objetivo;
I) é uma atividade criadora e transformadora da ordem jurídica, sua
ação não é conservadora (811).
O Poder Constituinte não é apenas o que ordena e organiza o Estado,
ao fundá-lo ou estruturá-lo pela primeira vez. Pois, após estar constituído
o Estado, tem poderes de reforma. modificação ou emenda à Constituição.
Surge daí a distinção entre o Poder Constituinte originário e o Poder
Constituinte derivado. Apesar de ambos serem constituinte, existe uma
etapa de prioridade. No primeiro caso, elabora-se, originariamente, uma
estrutura constitucional, ao passo que no outro ocorre uma etapa posterior
e subordinada à problemática da revisão constitucional.
BIDART, com essa classificação, chega às seguintes conclusões:
- a subordinação hierárquica do poder constituído ao Poder Cons-
tituinte e a separação entre um e outro;
- o poder constituido não pode, validamente, exercer o Poder
Constituinte e deve respeitar a Constituição, que lhe é dada por este;
- dessa distinção surge a teoria da inconstitucional idade de todo
ato do poder constituldo contrário à Constituição;
(85) AGESTA. Lu" S6nchez - o.rwcho Pollllco. Granilda, 1951, .... ed;, lIP. 333 8 341; DANTAS, Ivo ~
*'
I'otl... Co.-JlhI..... •. R,"oIu9lO. _... IldrodqIo. Y.... Sodo,"lca do Dlralto Con.utuclonal.
Editora Rio, 1978.

R. .llIf. 1..111, Brasilia a. 19 11. 74 .br./ju•• 1982 61


- a subordinação hierárquica do Poder Constituinte derivado ao
Poder Constituinte originário;
- o Poder Constituinte derivado, para reformar, com validade, a
Constituição deve estar habilitado de acordo com o que foi estabelecido
pelo Poder Constauinte originário (66).
O Poder Constituinte originário, no dizer, ainda, de BIDART CAMPOS.
é o que possui maior força criadora do direito, desde que preside o
momento inicial ou de reestruturação do Estado. ~ fundacional desde
que, através de seu exercicio, surge um Estado, que adquire existência
política por meio de sua primeira Constituição. Este Poder Constituinte
originário deve residir no povo ou na comunidade. Dar que o titular do
Poder Constituinte originário é o povo. Como titular nato, só quando ele
exerce esse poder, pode-se reconhecer a validade da obra ai surgida:
- o povo ou a comunidade são os sujeitos titulares do Poder Cons-
tituinte originário;
- nenhum homem ou grupo de homens têm, por si mesmos, a titu-
laridade desse poder;
- como todos não podem exercê-lo em conjunto, a titularidade é
exercida em "ato", através de homens ou grupos de homens, dentro do
mesmo povo, que estão em condições de determinar a estrutura fun-
dacional do Estado e de adotar a decisão fundamental de conjunto (61).

7 - Poder Constituinte Instituído


O Poder Constituinte derivado, constituído ou instituldo, conforme
aponta PAULO BONAVIDES. suscita graves reflexões quanto à sua natu-
reza e extensão:
"Com efeito, tomada ao pé da letra, a distinção clássica
usual que separou o Poder Constituinte em duas modalidades,
a saber, Poder ConsNtuinte originário e Poder Constituinte de-
rivado, carece, por inteiro, de fundamento, se, medJante a mesma,
pretendermos estabelecer limites teóricos ao seu exercício.
Equivaleria o reconhecimento de tais limites a negar-lhe caráter
ou teor soberano, o que sem dúvida contraria a essência do
Poder Constituinte" (68).
A essência do Poder Constituinte, conforme bem acentua. ainda,
esse autor, leva-nos a concebê-Io como absoluto, livre de vinculas restri-
tivos que não fossem os da direta e imediata expressão da própria von-
tade. Aponta que a teoria constitucional procura dar, o quanto possrvel,
ao Poder Constituinte derivado caráter mais jurldico do que politico:
"De sorte que se empenha em colocá-lo nas Constituições
como instrumento útil e eficaz de mudança e adaptação corretI-
va dos sistemas constitucionais rígidos, diminuindo-lhe o alcance
(68) CAMPOS, aerman José Biclart - o.rMho Pollüco, Aguller, Bueno. Alre., 1967, 2.- &d., pp. 522 e 623.
11m CAMPOS. Oerman J. Bldart - Flloeorla dll ~ho COnll/tllCloUl, Edlar. 1969, Pll. 163 I 1$.
(B81 BONAVIDES, Peulo - Direito Conetlluclonfll, ob. clt., p. 146.

62 R. Inf. lagi.1. Bro.íIIo a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


ou competência e afastando-o assim, consideravelmente, daque-
le entendimento há pouco exposto, por onde resulta, aliás, em
grande parte, o sacrifício da tese lógica" (69).
L1NARES QUlNTANA discorda da doutrina que sustenta que a fa~
culdade de emendar a lei fun·damental não importa no exercício do Poder
Constituinte, mas, apenas de um poder legislativo extraordinário. Acres w

centa que a obra do Poder Constituinte s6 pode ser validamente modifi-


cada pelo mesmo poder e não por outro de menor hierarquia jurídica.
Para RECAS~NS SICHES, em EI Poder Constltuyente (Madrid, 1931,
p. 77), de nenhum modo deve-se confundir o Poder Constituinte com a
competência legal estabelecida por uma Constituição para a reforma
parcial de algumas de suas normas. O poder titular dessa competência
para reforma de preceitos fundamentais da Constituição não detém cará-
ter de Poder Constituinte, desde que essa faculdade é determinada pela
própria Constituição.
Aceita-se que a primeira espécie de Poder Constituinte instituído é
aquele que surge para rever e modificar a Constituição. daí as denomina-
ções, também, de Poder Constituinte de revisão ou Poder Constituinte
reformador. Tem sua base na Constituição, pelo que acrescenta-se sa-
mente ser possfvel quando é fixa ou rígida.
Além <la modalidade de Poder Constituinte instituído, (70) que é o
de revisão constitucional, admite-se uma segunda espécie que é o Poder
Constituinte decorrente. 'Estipulado na Constituição, surge para exercer
tarefa de caráter constituinte, quando estabelece a organização funda-
mentai de entidades que compõem o Estado federal:
"Mas a Constituição não estabelece apenas esses poderes.
Em regra geral, ela institui também um outro poder, que é o
Poder Constituinte, usualmente denominado de Poder Consti-
tuinte instituído, ou Poder Constituinte derivado. Há, então, nor-
malmente, numa Constituição, obra do Poder Constituinte, a ins-
tituição não só dos chamados poderes do Estado, mas também
de um poder destinado a estabelecer normas com a mesma
força das normas constitucionais.
Esse Poder Constituinte instituído se manifesta, porém, de
duas formas diferentes; ou, em outras palavras, há duas espécies
de Poder Constituinte institufdo. A primeira espécie de Poder
Constituinte instituído, que é a mais comum, é a do poder que
se destina a rever e a modif.car a própria Constituição, numa
palavra, é o poder de revisão da Constituição" (71).
O Poder Constituinte derivado ou Poder Constituinte institurdo, en-
tretanto, é definido por MARCEL PRELOT como o que modifica a Cons·
tituição já em vigor. São alterações que ocorrem de conformidade com
as regras, anteriormente, estabelecidas (72).
(18) BONAVIDES, Paulo - DIr8llo COnatltuclonal, ob. clt., p. 147.
(70) FERRAZ, Anna Candlda da Cunha - Poder Co...altulnle do Esteclo-ll"lbro, ob. clt., pp. 17 • M.
(71) FERflEIRA FILHO, Manoel Gon"alvea - DI~1Io Cou8tucIlonal Colllpal'lldo. I. O Poder Coa8lItul_.
ob. clt.. p. 85.
(72) PRêLOT, Mareei - InetJlUllo.. Polltlll_ 8t Droit e-lIlullonnel, Oalloz, t969, 4.- 3d.• p. 206.

R. •.,. Iq.... Brasilia o. 19 n. 74 obr./lu-. 1982 63


A doutrina está presente na enumeração dos requisitos próprios à
caracterização do Poder Constituinte instituldo. Um Poder Constituinte,
ao qual falta o caráter radical inerente ao Poder Constituinte genuíno,
não surge com vontade originária, mas com competência determinada
pela Constituição, que lhe fixa o exercício e procedimento. Trata-se de
Poder Constituinte estabelecido, pelo que surge a denominação de Poder
Constituinte constituído. A essência desse poder é que a própria Cons-
tituição determina o órgão e a maneira como ocorrerá sua reforma ou
transformação. Apesar de aparentar qualidades comuns ínerentes ao
Poder Constituinte originário, para SANCHES AGESTA, três são os atri-
butos que o particularizam:
a) diferentemente do Poder Constituinte genurno, o Poder Constituin-
te constituído encontra sua legitimidade na "legalidade" de sua função
reguladora pela própria Constituição. A autoridade deriva da própria Cons-
tituição que vai reformar;
b) o poder e a eficácia que mantém não encontra suporte em auto-
ridade ou força material estranha à ordem constituída, desde que é a
ordem constitucional vigente que permite a efetividade de seu exercrcia.
A base de sua eficácia é o respeito ao direito existente e às formas legais
estabelecidas; mais do que em sua legitimidade, importa falar em sua
legalidade;
c) ocorre uma situação de supra-ordenação e subordinação com o
direito estabelecido (73).

8- Convocação de Constituinte. Assembléia Constituinte


As preocupações em torno do Poder Constituinte, do poder de refor-
ma constitucional, ou suas implicações com os processos revolucionários,
têm sido objeto de constantes preocupações de publicistas e c:entistas
políticos.
Para CARL J. FRIEDRICH uma Constituição bem redigida estabelece-
rá normas necessárias para sua própria reforma, de modo que possa
antecipar, até onde seja humanamente possível, as reivindicações revo-
lucionárias. As disposições para essas reformas constituem parte fun-
damentai das Constltuições modernas. Não se percebeu, inicialmente,
o valor dessas disposições (74).
As constituintes, convenções ou assembléias de revisão. chamadas
e eleitas com a finalidade de desempenhar as tarefas constituintes, de
conformidade com a doutrina da soberania nacional, apresentam as ca·
racterlsticas de assembléias especiais:
"Dissolvem-se de imediato uma vez elaborada a Constitui-
ção. Deve a Constituição em seguida sujeitar-se à ratificação do

(73) ....GESTA, Lul. S6.nchez - o.Ncho Polltlco, ob.cll., pp. 343 e 344; SCHMITI. Carl - Leg.lkI.d·"
Leglllml4ld, lIgu Uar, Madrid. 1971, Irad. de Jollé DIa. Oare la. .
(nl mlEORICH, Carl J. - T"rl. r R••IId.d d. la Orglnlzacl6n ConalllUclon.1 DemocrllIICl. Fondo d.
Cultu11l, México, Irad. de Vicente Herrero, 1.' ad., pp. 134 •••.

R. Inf. Illill. Bralília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


povo ou da nação, de conformidade com o princípio ou sistema
de separação entre o Poder Constituinte e os poderes constituí-
dos. Tudo naturalmente no espírito daquelas máximas segundo
as quais "o povo tem sempre o direito de rever e reformar a
Constituição" (Thouret), ou só a nação é competente para decidi'r
sobre a Constituição, "independente de todas as formas e de
todas as condições" ou ainda "todos os poderes aos quais uma
nação se sujeita emanam de si mesma" "('5).

Muitas são as indagações que surgem quando das reflexões sobre


a convocação de constituinte, voltadas algumas delas para noções essen-
ciais do Poder Constituinte. A Constituição ou Ato de Constituição de
um povo, a legislação constitucional positiva ou Poder Constituinte pro-
movem várias indagações de ordem doutrinária. Com SCHMITI a doutrina
do ato constituinte retornou aos fundamentos da teoria contratual. Sendo
que RECASI::NS SICHES disse ser necessário entender que, quando atua
o Poder Constituinte, a sociedade encontra-se sempre 1"10 estado de natu-
reza. Nesse sentido, SANCHEZ VIAMONTE alerta que não é conveniente
complicar o sistema contemporâneo do constitucionalismo com uma ter-
minologia em desuso e a evocação de conceitos discutíveis (76).
Nas democracias torna-se prática a convocação de Assembléia Na-
cional Constituinte, eleita segundo os postulados do sufrágio universal
e igual, como procedimento reconhecido para os processos de elaboração
constitucional.
A convocatória de Assembléia Nacional Constituinte, para SCHMITI,
não é o único procedimento democrático imaginável, pois foram intro-
duzidas outras classes de execução e formulação da vontade constituinte
do povo (77).
Nos procedimentos constitucionais modernos, também, referendum
popular passou a ser acolhido e examinado com certo interesse, nas bus·
cas de melhores formas para legitimar as Constituições e suas alterações.
O referendum teve, assim, um clima favorável na Constituição italia-
na. Com a queda de alguns regimes autocráticos, as tendências refratárias
a essas formas políticas procuram opor obstáculos ao renascimento das
normas:
"11 referendum trovo un'atmosfera favorevole nella nostra
Costituente, che era nata da una votazione congiunta ad un
referendum; e si sentíva da tutti i membri della Costituente,
senza eccezione, I'esigenza di reagire ai totalitarismo, che aveva
soppresso I'espressione deUa volontà popolara" (78).

(751 BONAVIDES, Paulo - DireIto ConeUtuclon", ob. 011., pp. 148 e 149.
(78) V1AMONTE. Carlos Sánchez - Manuel de D_cIIo Polltrco, Editorial Bibliográfico, Argentina. BUIII-
noa Alrea. 1959, p. 414 e fl8; SICHES, Lula Recaaéna - EI Po.r Conelltuyent., J. Morata, Madrid,
1931.
177) SCHMITT, Carl - Teoria d. 'a Conetllucl6n, Editorial Ravlela de Derecho Privado, Madrid, p. 97.
(78) RUNI, Meucclo - 11 Referendum Popola,. e .. Rnlalone .lIa Coellluzlone, 0011. A. Gluffrê, Mlllo,
1953. p. 7.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 65


Em várias ocasiões que ocorrem, em nossos dias, as discussões em
torno das alternativas das transformações de regimes totalitários nas
diversas maneiras que podem cristalizar o sistema democrático pluralista,
surgem dúvidas no que diz respeito à convocação do Poder Constituinte
e à amplitude de sua atuação.
JORGE MIRANDA aponta as diferentes concepções expostas na As-
sembléia Constituinte, no que diz respeito às relações entre revolução
e Constituinte, bem como ao desenvolvimento que os processos revolu-
cionários e o Constituinte tomaram. Realça a importância da relação
entre revolução e Constituição como essencial para a Assembléia Cons-
tituinte, ocasião em que aponta os requisitos de uma Constituição
revolucionária:
"1} que a Constituição não pretenda ser um estatuto defi-
nitivo, eternamente válido, mas sim um estatuto expressamente
válido apenas para a próxima fase da revolução;
2) que a Constituição não se apresente como um estatuto
de exceção, após o qual se regressaria a um pretenso "estado
normal", mas sim como estatuto normal de uma certa fase, tam-
bém ela natural, da revolução;
3) que a Constituição receba e garanta as conquistas revo-
lucionárias já efetuadas;
4} que a Constituição deixe margem ampla aos necessários
avanços no sentido do socialismo;
5) que a Constituição não impeça as medidas de combate
à contra-revolução que se venham a revelar necessárias:
6) finalmente, que a Constituição integre na estrutura cons-
titucional todos os órgãos de poder revolucionário" (79).
JUAN FERRANDO BADIA observa que, com a morte de Franco, o
problema da mudança do regime, tendo em vista as posições e tendências
poHticas, ocorreram três alternativas a seguir:
a} mediante a ruptura;
b) por meio da chamada reforma pactuada; e
c) através de reforma constitucional (80).
No Brasil, nos últimos tempos, as questões inerentes à Constituinte
passaram a ser objeto de vários debates. FREITAS NOBRE, ao iniciar
campanha em favor de uma Assembléia Nacional Constituinte, dentre
outras afirmativas, expõe:
"Com a Constituinte abre-se um espaço político permissivel
à participação popular. O cansaço e o desgaste da continuidade

179) MIRANDA, Jorge - li. ConaUlUlçlo de 1976. Formaçlo, E.lrulurB, Prlnclplo. Fund_nlal., Livraria
Pelrony, Lisboa, 1978, pp. 32 e 33.
(80) BADIA, Juan Ferrendo - Democracia irenl. a Autocracia, Editorial Tecnos. Madrid, 19110, p. 364.

66 R. Inf. legísJ. Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982


aconselham o governo a procurar o caminho que apontamos. A
Constituinte - perguntaria o povo - vai por si mesma resolver
esses problemas todos? Temos que ser sinceros. ~ claro que
não, mas ela vai possibilitar ao povo caminhar junto com o go-
verno à procura das soluções nacionais. Ela encarna um movi-
mento social democratizado" (81).
Proposta de Emenda à Constituição para convocação de uma
Constituinte, a ser eleita em 15 de novembro de 1982, recebeu esse
pronunciamento da Ordem dos Advogados do Brasil:

"A idéia consubstanciada no anteprojeto de emenda à Cons-


tituição coincide, nos seus pontos essenciais, com o que vem
defendendo a Ordem dos Advogados, em várias oportunidades,
ao sustentar que a convocação de uma Assembléia Constituinte
é o caminho indicado para superar o impasse criado com a ile-
gitimidade institucional do poder e votar uma nova Constituição
que propicie o reencontro histórico da nação com o Estado de
Direito, sob a égide de um instrumento democrático de governo.
Uma nova Constituição com força e autoridade suficientes para
mobilizar o interesse e as energias necessárias à realização de
um projeto nacional de vida que reflita o consenso do povo
brasileiro" (82).
O Relator FRANCISCO FERREIRA DE CASTRO, no exame da pro-
posta, afirma que uma Constituição é legítima quando tem origem numa
Assembléia Constituinte, representativa da vontade da nação. No mesmo
trabalho, em nota sobre a história constitucional do Brasil, faz um levan-
tamento das Constituintes convocadas em 1823, 1891, 1934 e 1946, quando
apresenta dois pronunciamentos sobre a convocação de uma Assembléia
Constituinte:
"Duas conferências pronunciadas recentemente na Comissão
de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, tendo como
expositores os renomados constitucionalistas, Professores AFON-
SO ARINOS DE MELO FRANCO e PAULO BONAVIDES, focali-
zaram os principais temas em torno dos quais se formam duas
vertentes de uma corrente de opinião pública sobre a reorgani-
zação constitucional do País, a saber: uma, a que adere o emi-
nente Prof. AFONSO ARINOS, sustenta que "a solução política
para o caso brasileiro não pode ser outra, senão a mais mode-
rada, ou seja, a convergência das forças da situação e de oposi-
ção no Congresso, no sentido ou da feitura de um projeto global
de Constituição, ou da revisão de um projeto que venha do
governo".
A esta conclusão chegou S. Ex~ depois de recordar o Poder
Constituinte na feitura das Constituições brasileiras, tendo em

lB1) NOBRE, Freitas - Conetllulnte. Paz e Terra, 1977, pp. 11 e ss.


(82) Rel'le.. da Ontem doe Ad'fOllsdoe do &....11. Ano x, vol. X, Janeiro/abril, 19BO, n.o 25.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 67


vista duas coisas: "A primeira é que o Poder Constituinte em
1823, 1891, 1934 e 1946 foi sempre convocado pelo poder polr-
tico preexistente, que traçou os lineamentos do futuro texto. A
segunda é que, como poder instituído e não originário, ele sem-
pre funcionou com incumbências derivadas, procedentes à
revisão de textos anteriores".

Outra, a que se filia o Prof. PAULO BONAVIDES, assevera


que: "Como soluções mediatas, tomadas em nome da legitimI-
dade democrática, com o objetivo de extinguir a crise poHtlco-
institucional, não poderão alternativamente ser outras senão
estas: a) conferir poderes constitu intes ao futuro Congresso Na-
cional; b) convocar mais adiante uma Constituinte soberana oue.
em nome do povo ou da nação, exercite o seu poder de criação
ju rídica fundamental; e c) convocar uma Constituinte não sobe-
rana, de poderes limitados, cuja obra ficaria sujeita ao referendum
popular.

Dentre as três soluções, o Prof. BONAVIOES aponta: "a


primeira, vis10 ser mais branda e representar um desdobramen-
to consideravelmente atenuado da segunda. passa a ser, sem
dúvida, aquela que, nas circunstâncias atuais do processo poH-
tico brasileiro, melhor se recomenda à reconciliação do poder
com a legitimidade, da Revolução de ontem com a democracia
de amanhã. De qualquer maneira, uma conclusão logo se impõe:
não há saída legítima com a ConsN'ÍL:ição em vigor" (83).

O poder de revisão das Constituições tem sido analisado de diversos


modos, chega-se a dizer que, consubstanciado no poder de emenelar,
não teria praticamente limites, até fazer uma Constituição inteiramente
nova. Mas a extensão desse poder acobertaria uma verdadeira revolução,
com o exercício do Poder Constituinte sem delegação expressa do elei-
torado. Ocorreria uma usurpação de funções que o povo não deveria
abdicar, com tal alcance, ao Poder Legislativo.

o Poder Constituinte originário, que é livre no que se refere à forma


e ao fundo, opõe-se, de acordo com esse entendimento, ao poder insti-
tuído ou poder de revisão, que é limitado.

As Constituições enumeram certos limites ao poder de emendar:


tais inscrições constitucionais revelam que as Assembléias Constituintes
têm poderes que não podem ser exercidos pelas Assembléias Ordinárias,
mesmo que se tratasse de emendas constitucionais.

As mudanças políticas, sociais e econômicas levam a novas inter-


pretações quanto às questões constitucionais. A ordem constitucional,
para que não se converta em simples legalidade, deve corresponder à
situação real da sociedade.

(83) CASTRO, Francisco Ferreira de - Raviattl da Orelam do. Advogado. do 8r.. n, ob. cit.

68 R. Int. legisl. Brosilio o. 19 n. 74 obr.ljun. 1982


Due process of law
e a proteção das liberdades individuais
TORQUATO LORENA JARDL\{

Mestre em Direito pela Universidade de


Michigan. Professor na Universidade de
Bra.süia. Advogado.

SUMARIO

I - INTRODUÇAO

II - AS FONTES DA MUDANÇA

III - A PRIMAZIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS

IV - A PRIMEffiA EMENDA
1 - Liberdade de associação
2 - Liberdade de expressão: interesse público
3 - Liberdade de expressão: obscenidades

v- OS DIREITOS DO ACUSADO
1 - Busca e apreensão arbitrária
2 - Direito à assistência de advogado
3 - Direito à assistência de advogado: a extensão
da regra
4 - Os limites da investigação policial

VI - O LEGADO DE WARREN

I - INTRODUÇÃO

Dentre os múltiplos temas que este simpósio comporta sob a égide


"O Papel do Judiciário na Promoção dos Direitos Humanos", proponho-
me a fazer breve exposição sobre o que, nos Estados Unidos, realizou a

PaJestra. proferida na Associação dos AdvogadOB de São Paulo.

R. Inf. legisl. Brosilio o. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 69


Suprema Corte, em especial na década de 1960, sob a presidência de
EARL WARREN, no tocante à proteção dos direitos individuais.
A Corte WARREN tornou-se marcante na história americana pela
criatividade de sua interpretação dos princípios constitucionais, mor·
mente no que respeita a vinculação dos Estados, por via da cláusula do
due process Df law da Emenda XIV (1), ao BiU of Rights. Arrogou-se
a Corte WARREN, segundo críticos veementes, o poder de criar direitos
substantivos, competência que, segundo se alega, era do Poder Legis-
lativo. Desse modo, revendo jurisprudência antiga e arraigada, reinter-
pretaram o BiU of Rights para forçar a integração racial nas escolas,
restaurantes, hotéis, empregos e até mesmo no sistema eleitoral; para
estender às minorias politicas a proteção da Primeira Emenda (2), evi-
tando que contra elas se impusessem discriminações de toda sorte, seja
pela proibição de empregos em escolas, universidades e estaleiros, seja
pela obrigatoried'3.de de juramentos de adesão ao sistema vigente, seja
pela auto-incriminação decorrente de atestados ideológicos, bem como
para estender à imprensa liberdade de que antes não gozava. A Corte
WARREN assumiu, em suma, encargo especial, qual seja o de suprir a
s.ção do Congresso ou do Poder Executivo (3) .
Os Juízes da era WARREN se empenharam na realização de um ob-
jetivo, o de construir o que o Professor KURLAND denominava Egalitarian
Society (4), uma sociedade que exigia a igualdade para todos, que de-
mandava que a todos se estendessem os frutos do progresso e a proteção
da ordem jurídica. A Corte, no dizer de um àe seus estudiosos, imaginou
o passado e lembrou-se do futuro (5) .
Antes de passar à descrição do trabalho desse tribunal, é oportuno
resumir alguns dos princípios do processo judicial americano, bem como
identificar outros fatores que também contribuíram para tornar pos-
sível a obra realizada pela Corte WARREN.
II - AS FONTES DA MUDANÇA
OS juízes devem saber como entender o espírito àe sua época, como
se manterem à margem das correntes de opinião, tangidas pelas pai-

(1) Emenda, XIV, seção I: Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estad06
Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado
em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei restringindo os
privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem privará qualquer
pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular; nem negará
a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis.
(2) Primeira Emenda: O Congresso não fará qualquer lei relativa à. lnstitulç§.o de
religião, ou que proíba o seu livre exercício; ou que restrinja a liberdade de
palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de
peticionar ao Governo para reparação de injustiças.
(3) ALEXANDER BICKEL. The Supreme Court anã the ldea of Progress, p. 114.
Yale Unlversity Press, New Haven, Conn., 1978.
(4) P. B. KURLAND, Foreworà: Equal in Origin anti Equal in Títle to the Legf.5-
lative and Executive Branches of Governments, 78 Harvard Law Review, 143 (1964).
(5) L. B. NAMIER. Conjlits, p. 70 (1942), cf. Blckel, supra nota 3, p. 13.

70 R. Inf. le::isl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jlln. 1982


xáes (6), OU, na palavra de famoso jurista, os juizes devem nutrir sim-
patia pelo espirito do seu tempo (7) .
"Nossa Constituição" - afirmou BRANDEIS - "não é uma camisa
de força. ~ um organismo vivo, e, como tal, capaz de desenvolvimento,
de expansão e de adaptação às novas condições. Desenvolvimento implica
mudanças - politicas, econômicas e sociais" (8).
Tal concepção da carta fundamental, de sua eterna atualidade,
"compeliu os juízes a buscarem significado, não na leitura da Constitui-
ção, mas na leitura da vida" (9). O processo de interpretação co~­
titucional compele a tradução de política em julgamento, e a concepçao
dominante do juiz é sua própria visão da ordem social existente. SOmen-
te o reconhecimento consciente d9. natureza deste exercício do processo
judjcial protegerá a política de uma interpretação estreita, decorrente de
premissas desacreditadas ou de formulações abstratas de preconceitos
inconscientes. Já foi dito que o juiz deve ser historiador, filósofo e
profeta, tarefas que exigem "sensibilidade poética" e "o dom da ima-
ginação". Deve ele "levantar a cortina do futuro, dar forma e visão
aos mistérios ainda no ventre do tempo" (10) .
Os julgamentos da Suprema Corte podem ser vazados sob a forma
de prescrições de caráter universal; porém, só alcançam esse vigor quan-
do ganham assentimento geral, porquanto, como sabido, as decisões
só obrigam as partes no litígio. Para tornar realidade a promessa insita
nos julgados de que todos os que se acham em situação semelhante serão
tratados de igual modo, a Corte necessita do assentimento e da coopera-
ção das instituições políticas e da opinião pública (11) .
Porque entenderam e nutriram simpatia pelo espírito de sua época,
porque compreenderam a Constituição como o organísmo vivo que se
expande e se adapta às circunstâncias de seu tempo, porque viram no
processo judicial o meio de interpretar o direito de modo a tomar vasta
a proteção que ele garante aos cidadãos, os juízes da era WARREN res-
ponderam aos anseios e às necessidades da sociedade, e as decisões que
tomaram se tomaram irreversíveis pelo apoio da opinião pública e,
por força desta, do Poder Legislativo.
A Corte WARREN obedeceu, assim, a princípios aceitos havia algum
tempo no pensamento jurídico norte-americano. Consoante sentença
famosa, serve melhor à causa do direito o tribunal que identifica as
normas jurídicas que, desenvolvidas em geração remota, podem, na
plenitude da experiência, servir mal à geração presente, e, pois, dela se

(6) TOCQUEVILLE, Democracy in Amenoa, p. 137, J. P. Mayer & M. Lerner, eds., 1966.
('1) BENJAMIN N. CARDOZO, A Natureza do Processo Judicial, p. 155, 3.... ed., Cole-
ção Ajuris/9, Porto Alegre, 19'78.
(8) In V.S. v. Moreland, 258 US 433 (1922).
(9) P'RANKF'URTER, Supreme Court, U.S., 14 Encyclopedia of the Social ScienceB 474,
480 (1934),
(10) FRANKFURTER, OI Law anã Men, p. 39, P. Elman, ed. 1956.
(11) BICKEL, supre. nota. 3, p. 30.

R. Inf. legisl. BflIsília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 71


descarta, por reconhecer ser outra a que corresponde ao novo julgamento
estabelecido e assentado da sociedade (12). Foi assim que grandes expo-
sitores do comrrwn law descobriram a fonte e o método de sua evolução,
e encontraram nesta o motivo de sua força e de sua vida, pois o direito
não é, nem pode ser, estático.
Na mesma linha de pensamento, CARDOZO afirmou que, quando uma
regra de direito, depois de devidamente provada peh experiência, é
considerada inconciliável com o senso de justiça ou com o bem-estar
social, deve haver menos hesitação no franco reconhecimento desse
fato e no completo abandono da referida regra (13). Se os juízes, por
infelicidade, interpretarem m3.1 os mores de seus dias, ou se os mores
de seus dias deixaram há muito de ser os de hoje, não deveriam atar,
em desamparada submissão, as mãos dos seus sucessores (14) .
Os juízes da Suprema Corte certamente não pautaram sua conduta,
ao menos nas decisões cruciais, de acordo com a opinião de MARSHALL,
para quem o Poder Judiciário "não tem vontade alguma, em qualquer
caso ... O poder judicial nunc'1 é exercido com o propósito de dar efeito
à vontade do legislador: ou, em outras palavras, à vontade da lei" (15).
Não foi com a vontade do legislador em mente, nem mesmo com a da
lei, que os juízes da era WARREN se lançaram à proteção d1S minorias
raciais, políticas e econômic3.s. Atenderam eles, ao contrário, às neces-
sidades da sociedade igualitária que ansiava pela repartição do quanto
que o progresso lhe trouxera.
Assim, além de contar com a tradição do common law, cujo processo
judicial armava o Judiciário de força irreprimível, também a opinião
pública se pôs ao lado da Corte. O ambiente social estava preparado
para o advento de uma corte progressista e liberal, um tribunal ati-
vista, que reagisse contra a inércia do Congresso e a indiferença do
Executivo. O país estava em paz, nenhuma ideologia ou força armada
alienígena oferecia perigo iminente à estabilidade reinante; a guerra
fria e o mccarlhyism já não opunham as ameaças do começo dos anos
50; o acúmulo de riquezas decorrente do pós-guerra atingia o ponto
máximo.
A tudo isso se somou a eleição de JOHN F. KENNEDY para a presi-
dência. O tema de sua campanha - get the country moving again -
era um chamado ao retorno de uma administração atuante e engagée.
A nova lei de direitos civis e as severas investigações sobre o crime orga-
nizado e as atividades das grandes empresas comerciais revelam o es-
nírito da nova administração.
Esta combinação de fatores. que induzia o tribunal à liderança finne
e decisiva no sentido da transformação social, justifica a assertiva de
que a Suprema Corte, "a longo prazo, está predestinada, não somente

(12) Juiz WHEELER, Dwy v. Connecticut Co., apud CARDOZO, supra nota 7, p. 142.
(3) CAROOZO, supra nota 7, p. 141.
(14) Id., ibid., p. 142.
(15) OaOOrne v. Bank 01 the Uniteri States, 9 Wheaton 738, 966.

72 R. lnf. IC'Jísl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


pela marcante tradição do direito anglo-americano, como também pela
realidade de sua posição na estrutura das instituições americanas, a
ser uma voz de razão incumbida da função criativa de redescobrir, arti-
cular e desenvolver princípiOS impessoais e duráveis" (16) .

!II - A PRIMAZIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS


Ao proteger e expandir as liberdades garantidas pelo RiU of Rights,
a Corte Suprema conquistou uma posição nova e vital na estrutura
constitucional dos Est'3dos Unidos. Demonstrou ela, cada vez mais,
sua preocupação com a liberdade de expressão, de imprensa, de religião,
eom os direitos das minorias, dos réus ou dos submetidos às investigações
dos Poderes Legislativo e Executivo.
Três foram os principais desenvolvimentos da Corte WARREN: a)
adoção da teoria da primazia dos direitos individuais; b) incrementação
da tendência de tomar as garantias do RiU of Rights obrigatórias para
os Estados; e c) expansão do conteúdo substantivo dos próprios direitos.
A teoria da primazia dos direitos individuais foi exposta pela pri-
meira vez pelo Justice STONE em 1938 (17). Sob a Corte WARREN essa
doutrina tomou-se dominante. Significa isso que a Constituição dá
preferência aos direitos pessoais, em relação aos de propriedade, donde
um duplo critério da Corte no exercício do seu poder de judicial review:
nos casos de liberdades civis e outros de direitos individuais, o principio
da autolimitação judicial será observado pelo juiz de modo significativa-
mente menos rígido do que, e.g., nos casos de direito de propriedade (IS) .
A presunção de validade de ato do Poder Executivo ou Legislativo cede
mais prontamente quando a vida e a liberdade são restringidas. Nessa
hipótese, a intenção e o discernimento da autoridade sofrem escrutínio
mais cuidadoso o

Dizem os críticos que a doutrina de primazia, com sua sublimação


dos direitos pessoais, cria uma hierarquia de direitos não contemplada
na Constituição (19) Deve, todavia, ser reconhecido, acentua renomado
o

professor, que cada geração deve necessariamente ter sua própria escala
de valores. Na América do século XIX, devotada à conquista econômica
de um continente, direitos de propriedade ocupavam posição dominante.
Um século mais tarde, quando a autonomia individual fora tolhida pela
concentração do poder, a preocupação com os direitos pessoais tornava-
se preponderante (20). Com o intento de tutelar o livre desenvolvimento
do indivíduo, os juízes tendem, naturalmente, a limitar a ingerência

(16) HENRY M. HART JR.; Foreword: The Time Chart o/ the Justices, 73 Harvard
Law Review 84, 99 (1959).
(17) U.S. v. Carolene Products Co., 304 US 144, 152, n. 4 (1938).
(18) carta. do J1Utíce Stone, 12 de abril de 1941, citada por Mason in the Core 01 Free
Government, 1938-40: Mr. JustWe Stone an4 "Preterred Freedqms", 65 Yale Law
Journal 597, 626 (1956), apud Schwartz, The Law in Ameríea. clt., p. 237.
(19) Cf. Justice Jackson, voto divergente em BTtnegar v. U.s., 338 US 160, 180 (1949).
(20) SCHWARTZ, T1I.e La,w in AmericG, Cff., p. 237.

R. Inf. legislo Brasília a. 19 no 74 abr./Jun. 1982 73


legislativa nesse campo de modo mais vivo do que quando essa ingerên-
cia se realiza no tocante aos direitos econômicos (21).
Anos antes da Corte WARREN, fora decidido que o Bill Df Rights não
obrigava os Estados; BLACK, porém, insistiu em que a Emenda XIV
havia mudado tal entendimento (22). A maioria da Suprema Corte, não
aceitando a tese de BLACK de que o Bill Df Rights fora incorporado na
cláusula do due process of law da Emenda XIV, adotou, ao invés, um
método seletivo pelo qual somente os direitos considerados fundamen-
tais foram incluídos no due process. Nos anos 50, porém, embora sem
abandonar formalmente o método seletivo, a Corte WARREN veio a con-
siderar como fundamentais quase todas as garantias do Bill of Rights,
e, pois, absorvidas pelo due process.
As decisões cruciais foram tomadas em Mapp v. Ohio a) e Gideon e
v. Wainwright (24), onde se reformaram acórdãos que não consideravam
1'undamentais o direito de ter declarada nula condenação fundada em
'prova obtida ilegalmente nem o direito a assistência de advogado.
Ambas as decisões defenderam, em termos largos, a necessidade de pro-
teger direitos individuais exprimindo a tendência de, cada vez mais,
se incluírem as garantias do Bill Df Rights na Emenda XIV. Na década
seguinte, os tribunais declararam fundamentais os seguintes direitos,
obrigatórios, assim, para os Estados: direito de não ser processado duas
vezes pelo mesmo crime (2:), nem de auto-incriminar-se (26); direito a
processo perante júri em casos criminais (27), a julgamento rápido (28),
a confrontação com as testemunhas de acusação (29), e a fiança (30) .
Acrescentem..se a estes direitos aqueles declarados vinculativos quan-
to aos Estados antes de 1950 (31), e se terão todos os direitos garantidos
pelo Bill Df Rights, salvo o de denúncia pelo grand jury e o de júri em
lJrocessos civis de valor superior a vinte dólares. Estas duas exceções

(21) Confronte-se com Justice FRANKFURTER in Kovacs v. Cooper, 336 US 77, 95


(949) .
(22) Voto divergente em Adamson v. California, 332 US 46, 71-72 (1947).
(23) 367 US 643 (1961>.
(24) 372 US 335 (963).
(25) Benton v. Maryland, 395 US 784 (1969).
(26) Malloy v. Hogan, 378 US 1 (964).
(27) Duncan v. Louisiana, 391 US 145 (1968).
(28) KZopfer v. North Carolína, 386 US 213 (1967).
(29) Pointer v. Texas, 380 US 400 (1965).
(30) Pükinton v. Circuit Court, 324 F. 2d. 45 (8th. Ciro 1963); Goodine v. Grillin, 309
Ji'. Supp. 590 (SD. 08. 1970).
(31) Direito contra busca e apreensão ilegal na Quarta Emenda (Wolf v. Colorado,
338 US 25 - 1949), direito contra confissão sob coação na Quinta. Emenda (Brown
v. MissÍ8sipi, 297 US 278 - 1936), direito a júri público na Sexta Emenda (In re
Oliver, 333 US 257 - 1948), direito a júri imparcial (Norris v. Alabama, 294 US 587
- 1935), direito a advogado em casos de pena de morte ou na hipótese de que
o julgamento imparcial se mostre improvável (Powell v. Alabama, 287 US 45 -
1932; Betts v. Brady, 316 US 455 - 1942) e o direito a não sofrer punição croel
e desusada na OitavR Emenda (Francis v. ReBWeber, 329 US 459, 463 - 1947).

74 R. Inf. legisl. Bra.ilia a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


não tolhem a marcante tendência de tornar a cláusula do due process
cada vez mais abrangente.
A Corte WARREN, porém, fez mais do que tornar obrigatórios quanto
aos Estados os direitos fundamentais do Bill of Rights: expandiu o
conteúdo substantivo dos direitos, dando, virtualmente, aos direitos.
individuais significado que, pela sua latitude, não encontra paralelo
no direito americano. Assumiu isto particular relevo em dois temas
cruciais: liberdade de expressão e justiça criminal.

IV - A PRIMEIRA EMENDA
1- Liberdade de associação
As liberdades protegidas pela Primeira Emenda foram garantidas
com crescente vigor nos anos 60. No tocante às restrições aos comu-
nistas, porém, o processo foi mais lento. Ainda em 1961, foi mantida
a constitucionalidade do Smith Act, que definia como crime "tornar-se
ou manter-se membro de qualquer organização que advogue a derru-
bada do Governo Federal pela força ou violência" (32) . Para tal, recorreu
o Tribunal à interpretação restrita em uso nos anos 50. No caso Scales
v. United States (33), a Corte interpretou a norma que proibia filiação
ao partido comunista aplicável apenas aos membros ativos e com inten-
ção específica de cumprir os objetivos revolucionários do partido. O
julgamento no caso Scales manteve a condenação do réu, identificando
filiação ativa com intenção específica, ao passo que em Noto v. United
States (34), a Corte reformou a condenação, dada a inexistência de prova
que atendesse aos dois requisitos: participação ativa e intento especifico.
BLACK, B1lENNAN, DoUGLAS e WARREN dissentiram em Scales e con-
cordaram em Noto, mas em ambos os casos instaram fosse declarada a
inconstitucionalidade da norma que proibia a filiação (35). A mesma
divergência se manifestou em 1961 em outro processo, no qual se cuidava
da Lei de Controle das Atividades Subversivas, que exigia, no art. 7Q,
que o partido comunista se registrasse como organização de ação comu-
nista (36) . O voto de BLACK acentuou que "a proscrição de uma assocIa-
ção por advogar ela idéias odiadas ... marca momento funesto na histó-
rja de um pais livre" (37) .
Após reduzir a abrangência da lei, em decisões de 1963, 1964 e 1965,
a Corte, em 1965, por decisão unânime, declarou que uma ordem da
Comissão de Controle das Atividades Subversivas para que certos indi-
viduos se registrassem como membros do partido comunista violava o
direito da não-auto-incriminação. A inexistência de qualquer garantia

(32) LOCKHART, KAMISAR & CHOPER, op. cit., p. B04.


(33) 367 US 203; 81 S. ct. 1469; 6 L. Ed. 241. 782 (1961).
(34) 367 US 290; 81 S. Ct. 1517: 6 L. Ed. 2d. 836 (1961).
(35) 367 US 259. 300.
(36) Communist Party v. subv. .tet. Control Bd., 367 US 1, 137 (1961).
(37) Cf. SWINDLER, op. dt., p. 291.

R. Inf. leglsl. BIG_íIia 11. 19 n. 74 abr./lun. 1982 75


na lei de que tal registro não serviria de base para processo constituia,
no dm!r de BRENNAN, uma falha fatal; porém, mesmo que tal garantia
fosse estipulada, a violação persistiria, porquanto poderia a informação
ser utilizada para busca de outras provas incriminadoras (38). Dessa
forma, foi praticamente anulada a cláusula do registro estabelecida na
referida lei.

2 - Liberdade de expressão: interesse público


No que toca à liberdade de expressão, as principais decisões podem
ser divididas em dois grupos: as que têm a ver com assunto de interesse
público e as que cuidam dos limites adequados a exercício da liberdade,
fixados pelas leis que dispõem sobre a obscenidade.
New York Times v. Sullivan (10) foi, na realidade, uma conse~
qüência do movimento de dessegregação. Como grande parte da julis-
prudência da dessegregação, esse julgado teve efeitos em outras áreas.
A causa do processo residiu num anúncio publicado no Times e assinado
pelo "Comitê de Defesa de Martin Luther King e da Luta pela Liberdade
no Sul", anúncio pelo qual o comissário de polícia da cidade de Montgo-
mery, no Alabama, alegou ter sido caluniado. Embora o nome do co-
missário não tivesse saído nessa publicação, e a imprecisão na descrição
dos fatos se reduzisse a detalhes irrelevantes, a sentença foi-lhe favo-
rável, concedendo-lhe indenização de 500 mil dólares.
Em decisão não unânime, a Suprema Corte reformou o acórdão da
corte suprema estadual. BRENNAN asseverou que processos de calúnia
não gozavam de imunidade especial, sujeitavam-se às limitações conS'·
titucionais, e, por conseguinte, deviam ser examinados "em face do
profundo compromisso nacional para com o princípio de que debates
de interesse público devem ser desinibidos, vigorosos e abertos, o que
bem pode incluir ataques veementes, cáusticos e por vezes desagradáveis
contra o Governo e os servidores públicos". A regra constitucional,
sustentou a maioria, "proíbe que servidor público seja indenizado por
declarações caJuniosas relativas à sua conduta pública, salvo se se
comprovar que a declaração foi feita com malícia intencional" - dolo
-, "isto é, com conhecimento de que era faIsa ou com desatenção negli-
gente quanto à sua falsidade" (40) .
Dois anos após SuUivan, BRENNAN estendeu o mesmo principio -
public official rule - às agências públicas de atividade delegada. Dou-
GLAS, concordando em parte, entendeu que esse princípio dizia respeito
a questões públicas - public issues - ao invés de servidores públicos,
porquanto era o válido interesse público no debate que devia ser contra-
balançado com a calúnia ao indivíduo (41) . Em 1967, BRENNAN procurou
ncomodar a opinião de DoUGLAS ao estender o princípio de Sullivan à

(38) Albertson v. SuOv. Act. Contral Bd., 382 US 77 09651.


(39) 376 US 255; 84 S. Ct. 710; 11 L. Ed. 2d. 686 (964).
(40) Id., ibid.
(41) R08enblatt v. Baer, 383 US 76 (966).

76 R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr.lJlln. 1982


invasão da vida privada. "Exposição do indivíduo aos demais em graus
variados é um fato natural da vida numa comunidade civilizada. O
risco de tal exposição é um incidente essencial da vida em uma socie-
dade que dá valor primordial à liberdade de expressão e à de imprensa...
N6s criamos um sério e grave risco de tolher o serviço indispensável
de uma imprensa livre em um país livre se encUhamos a imprensa
com o ônus impossível de verificar a certeza dos fatos associados em
noticiário ao nome, reputação ou imagem de um indivíduo, particular-
mente quando se trata de matéria não difamatória" (42) .
Até que ponto poderia a regra Sullivan ser estendida às ações priva-
das por crimes contra a honra, foi debatido no Tribunal em outros dois
~asos em 1967: o primeiro, de um diretor de esportes da Universidade
da Geórgia contra o Saturday Eveníng Post; o segundo, de um militar
reformado, General WALKER, contra a agência de noticias Associated
Press.
A maioria da Corte, em voto do J ustice HARLAN, reduzindo a inde-
nização no primeiro e reformando a condenação no segundo caso, deci-
diu que a regra Sullivan não era apropriada para ações de calúnia,
difamação ou injúria em que não estivesse envolvido servidor público,
e que os padrões conhecidos de delitos civis (torts) - cuidado razoável
ou devido - eram suficientes para resolver tais questões, sem necessi-
dade de disputa com fundamento em princípios constitucionais. Uma
figura pública, que não servidor público, concluiu liARLAN, deve obter
indenização por difamação comprovando conduta marcadamente não
razoável e indevida por parte do ofensor. No caso da Universidade da
Geórgia, personalidade esportiva conhecida acusada de conspiração
para "arranjar" jogo de futebol, as implicações manifestamente peri-
gosas do artigo, e a inexistência de pressão para que o jornalista termi-
nasse a reportagem em hora certa, apoiaram a prova de que ocorrera
"conduta marcadamente não razoável e indevida" _ No caso do General
WALKER e SU3, alegada participação em resistência organizada contra
os esforços de policiais federais de garantirem a matrícula de um negro
na Universidade de Mississipi, a demanda premente do público por noti-
ciirio imediato e ao vivo, como também a publicidade prévia das opi-
niões de WALKER sobre a controvérsia, foram provas de que a agência
de notIcias havia agido razoavelmente ao aceitar a reportagem do cor-
respondente (43) _
WARREN, para quem a regra Sullivan oferecia o padrão mais prático
para limitar responsabilidade no interesse de informação pública, argu-
mentou que, "embora não sujeitos às restrições do processo politico,
figuras públicas freqüentemente têm papel influente no ordenamento
da sociedade". Uma vez que, no mundo moderno, distinções entre ações
públicas e privadas haviam se tornado nebulosas, e que uma "combina-
ção de posições e poder" tornara possível para muitas pessoas, fora de

(42) Time, Inc. v. Hill. 385 US 374. 388 (967).


(43) Curtia Publishing CO. V. BUtt8, 385 US 130; Associated Pre88 v. Walker, 386 US 130
(196'1) •

R. Inf. legill. BrGlília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 77


funções públicas, influenciar os negoclOs públicos, por intermédio do
contínuo interesse geral em suas atividades e opiniões, o ChieI Justice
concluiu que a regra Sullivan deveria ser aplicada. Se aplicada tal
regra aos dois casos ora discutidos, a decisão d.a corte teria sido a mesma,
porém, acentuou WARREN, o princípio continuaria como "uma proteção
lmportante dos direitos da imprensa e do público de informar e de ser
infonnado sobre assuntos de seu legitimo interesse" (44) .
A conseqüência desses casos de crime contra a honra nos anos 60,
de Sullivan a Curtis e Walker, foi a de promover uma liberdade subs-
tancialmente maior de discussão pública onde pudesse ser comprovado
legítimo interesse público na matéria e objetividade razoável na sua
publicação (45) .

3 - Liberdade de expressão: obscenidades


Deviam os mesmos padrões de Sullivan, Curtis e Walker serem apU-
cados a temas que parte da opinião pública considerava pornográfico
ou obsceno? Nesta faceta da Primeira Emenda, o tribunal encontrou
dificuldade ainda maior do que naqueles casas.
Em 1957, a Corte, contra os votos de BLACK e DoUGLAS, e, em parte,
contra o de HARLAN, manteve a condenação de editores da Califórnia e de
New York pela violação de leis estadual e federal, respectivamente,
sobre a obscenidade. BRENNAN, pela maioria, observou que o caso era o
primeiro teste de obscenidade que se apresentava dentro do contexto
das Emendas Primeira e XIV sob a cláusula de garantia da imprensa
livre. Definindo matéria obscena como "matéria que trata do sexo de
modo a despertar interesse lúbrico", ele concluiu que o juiz de primeira
instância, no caso envolvendo lei federal, havia corretamente instruído
os membros do júri a "perguntarem a si próprios se a publicação ofen-
d:a a consciência da comunidade de acordo com os padrões atuais" (48) •
A divergência parcial de lIARLAN se fixou na natureza variável da
"consciência da comunidade de acordo com os padrões atuais", apon-
tando que o livro Merrwirs of Hecate County, ilegal em New York,
havia sido liberado na Califórnia, enquanto testes judiciais de God's
Little Acre causaram condenação em Massachusetts e absolvições em
New York e Pennsylvania. E mais, prosseguiu !IARLAN, julgar-se dada
matéria obscena não devia necessariamente levar à conclusão de que a
publicação "não tivesse qualquer importância social que a redimisse"
(47). BLACK e DoUGLAS partiram da mesma linha de argumentação para
citar estudos sociológicos mostrando a pouca correlação entre interesse
de leitura e delinqüência, e acentuaram que "o critério consciência da

(44) 385 US 165.


(45) Cf. A. B. HANSON, Developments in tne Law 0/ Libel: Impa.ct 0/ the New York
Times Rule, 7 WUllams and Mary Law Revlew 215 (1966), apud SWlNDLER, op.
cit., p. 296.
(46) Rcth v. U.S.; Alberts v. Cf},lijornia, 354 US 476, 496, 508 (1957).
(47) la., p. 503.

78 R. Inf. legitl. Brasília CI. 19 n. 74 abr./jun. 1982


comunidade, de acordo com os padrões atuais", claramente conflitava
com a Primeira Emenda.
"Qualquer teste que se baseie no que é ofensivo aos padrões da comu-
nidade" é perigosamente vago, escreveu BLACK; quão perigosamente vago
se tornaria evidente se, ao invés de obscenidade, a matéria em debate
fosse religião, economia, política ou filosofia. A censura comunitária -
concluiu o Justice - "cria um regime no qual, na batalha entre os h<r
mens de letras e os filisteus, os filisteus certamente vencerão" (48).
O processo que se seguiu provocou uma torrente de criticas, "e nin-
guém, dentro ou fora da Corte, pareceu capaz de aperfeiçoar a juris-
prudência nos casos seguintes" (49). Tratava-se de uma revista de nus
masculinos que só pôde circular após ter a Suprema Corte cassado limi-
nares concedidas nas instâncias inferiores. HARLAN, pela maioria, reite-
rou os critérios de ofensa patente e apelo ao "interesse lúbrico", e suge-
riu que, para publicações de circulação nacional, "um padrão nacional
de decência" deveria ser concebido. A esta decisão de 1962 seguiu-se
outra, de 1964, na qual BRENNAN, uma vez mais pela maioria, acrescen-
tou aos testes de Roth a necessidade de se comprovar a ausência total
de "qualquer redimivel importância social" (50).
Dois anos mais tarde, a Corte, em três outros processos, buscou
esclarecer a distinção entre descrição permissível e imperrnissivel dentro
do conceito de imprensa livre. O sucesso do esforço não foi notável; por
seis votos a três, com três diferentes votos pela maioria, o Tribunal
reformou decisão que considerava obsceno o livro Fanny Hill (51), escrito
dois séculos antes. Os critérios enunciados pela Corte, disse BRENNAN,
"não deviam ser aplicados inàependentemente", e, no "teste da impor-
tância social", a obra não devia ser condenada "a não ser que se verifi-
casse inexistir qualquer valor social que a redimisse". DouGLAS sugeriu
que, "quando os especialistas discordassem a respeito do mérito da obra,
a presunção da proteção constitucional deveria prevalecer" (112).
Nos outros dois casos, mantiveram-se condenações de tribunais no-
vaiorquinos; o primeiro envolvendo um editor, Mishkin, que especifica-
mente contratava a escrita de livros nos quais "sexo tinha que ser
vigoroso, rude e explícito"; o outro, também envolvendo um editor,
Ginzburg, e suas três corporações publicadoras de material pornogrãfi-
co (11&). No primeiro processo, Mishkin, BRENNAN afirmou que quando a
publicação tem o objetivo de atingir público consumidor de material
pornográfico - público este claramente definível, então "o critério
Roth - apelo lúbrico - é satisfeito se o tema dominante da publicação

(48) Id., p. 512.


(49) 8WINDLER, op. cit., p. 297.
(50) Jacobellis v. Ohio, 3'18 US 184, 191 (1964).
(51) o titulo anterior era John Clella'1l4's MemoiTS of a Woman 01 Pleasure.
(52) Memotrs v. Attorney General, 383 US 413, 418, 427 (1966).
(53) O material consistia. de uma. revista de nus explícitos - Eros, um tab16ide quin-
zenal - Ltaison, e um pequeno livro intitulado The Housewife's Handbook of
SelecU-oe Promiscuity.

R. Inf. legisl. Brasília G. 19 n. 74 obr./Ju". 1982 79


é apelar para o interesse lúbrico do grupo" (54). No segundo processo
- Ginzburg, embora concedesse um possível valor social das publica-
ções para especialistas médicos, BRENNAN declarou: "Se a ênfase única
do fornecedor é nos aspectos sexualmente provocadores de sua publi'-
cação, tal fato pode ser decisivo na determinação de obscenidade" (55).
Ainda assim, conforme HARLAN já havia dito no caso de Fanny Hill,
"nenhum critério estável de determinação da Obscenidade foi até agora
concebido por esta Corte". Recuando da posição de especulação de um
padrão nacional de obscenidade, HARLAN propôs limitar a Primeira Emen-
da aos casos de material "cuja indecência seja autodemonstrável" e
aplicar a Emenda XIV apenas para exigir que os tribunais estaduais
"aplicassem critério racionalmente compatível com a noção aceita de
obscenidade" (56), Le., due processo Todavia, conforme DoUGLAS repli-
cara ao divergir em Mishkin e Ginzburg, esperar que a Corte aplicasse
t.ais testes supunha uma onisciência "que poucas pessoas em toda nossa
sociedade possuem".
A questão, tal como posta, levaria à conclusão última, do ponto
de vista de DC>UOLAS, "de que a Primeira Emenda permite a expressão
de todas as idéias - quer ortodoxas, populares, off beat ou repulsivas".
A solução, insistiu o Justice, era deixar as pesso3.s livres "para escolhe-
rem cuidadosamente, para reconhecerem a escória quando a vissem,
para serem atraídas à literatura que satisfizesse suas necessidades mais
profundas, e, presumivelmente, para moverem de um plano a outro e,
finalmente, atingirem o mundo das idéias duradouras". Este apontou
ele ser "o ideal de uma sociedade livre inscrito na nossa Constituição" (57).
A indefinição das razões da Corte vai, assim, do subjetivismo de
Roth ao absolutismo de liberdade de publ:cação na visão de BLACK e
DoUGLAS. A hesitação e as dúvidas que caracterizaram tais decisões
pareceram refletir a indecisão da própria sociedade americana em geral,
conforme os velhos padrões de sexualidade transformavam-se aos olhos
de todos. Uma sugestão do curso final do constitucionalismo nesta m3.-
téria veio na primavera de 1967, quando a Corte, em decisões per curiltm,
sumariamente reformou vinte condenações (58).

v - OS DIREITOS DO ACUSADO
1 - Busca e apreensão arbitrária
O conteúdo do pensamento predominante na maior parte das deCI-
sões sobre a Primeira Emenda nos anos 60, seja isolando "questões
públicas" de quaisquer restrições, salvo difamação dolosa, seja buscando
uma visão geral sobre a obscenidade no contexto d3. moralidade da

(54) Mishkin v. New York, 383 US 502. 508 (1966).


(55) Ginzburg v. U.S., 383 US 463. 470 (1966).
(56) 383 US 465.
(57) Id., p. 491.
(fJ8) Jacob8 v. New York, 368 US 431 (1967) e os processos que se .seguiram.

80 R. lnf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


época, foi o convencimento de que "liberdade pessoal máxima é a pedra
de toque de uma sociedade madura" (59). Tal percepção é coerente
com a preocupação primacial da Corte Warren em assegurar igualdade
para todos no gozo dos direitos garantidos pela Constituição, fossem
eles membros de minoria, eleitores intitulados a igual peso no processo
político, ou réus incapazes de exercer suas defesas sem a assistência
de- advogado.
O precedente que dominava na questão de busca e apreensão era
Wolf v. Colorado, decidido em 1949 (60). Nele, Julius Wolf fora conde-
nado no Colorado por conspiração para facilitar abortos. Autoridade
policial, sem autorização judicial, entrara em escritório médico, lá obten-
do relatórios com os nomes dos clientes, os quais, interrogados em juízo,
forneceram a prova incriminadora. F'RANKFURTER, por uma maioria de
seis votos a três, decidiu que condenação por corte estadual em razão
de crime estadual não violava a cláusula do due process of law unica-
mente porque a prova incriminatória, como obtida, era inadmissível
numa corte federal. Embora concedesse que a segurança da privacidade
individual contra a intrusão arbitrária da policia fosse básica para uma
sociedade livre, e que, pois, estava implicita no conceito de "liberdade
com ordem", a Corte entendeu, todavia, não ser vital para a proteção
de tal principio a exclusão de prova obtida mediante busca e apreensão
arbitrária, porquanto a proteção da privacidade podia ser exercida pela
disciplina interna da policia, por uma opinião pública alerta e pela
ação privada de cada um. Por conseguinte, concluiu F'RANKFURTER, a
Emenda XIV não proíbe que condenação por crime estadual em corte
estadual seja fundada em prova obtida mediante busca e apreensão
arbitrária.
Mapp v. Ohio (61) todavia, alterou fundamentalmente a jurispru-
I

dência. Em 23 de maio de 1957, três policiais de Cleveland foram à casa


da Srta. Mapp e solicitaram-lhe autorização para realizar busca, pois
dispunham de informação de que um suspeito foragido ali se escondia.
Negada a permissão, porque os policiais não exibiram mandado judicial
forçaram eles a porta e fizeram a busca, ao cabo da qual apreenderam
material obsceno, cuja posse era crime pela lei de Ohio, o que resultou
na condenação da Srta. Mapp. Salientando que o tempo havia voltado
sua face contra WOlf, Justice CLARK decidiu que as restrições da Quarta
Emenda (62) contra busca e apreensão arbitrária deviam ser aplicadas

(59) BWINDLER, op. cit., p. 299.


(60) 338 US 25; 69 S. Ct. 1359; 93 L. Ed. 1'l82 (194&).
(61) 367 US 643; 81 S. ct. 1684; 6 L. Ed. 1081 (1961).
(82) Quarta Emenda: O direito do povo de estar seguro quanto às suas pessoas, casu,
papéis e haveres contra buscas e apreensões arbjtráriasnâoo será violado. e nenhwn
mandado será expedido. salvo se existente indício de cUlpabilidade, confirmado por
Juramento ou declaração, nele plU'tJcular1zadamente descritos o local da busca e
as pessoas ou coisas a serem apreendidas. .

R. Int. M.... BrotUIa a. 19 n. 74 abr./"n; 1982 .1


aos Estados por via da cláusula do due process da Emenda XIV. Conti-
nuar a tolerar a prática estadual de admitir como válida prova obtida
em violação da Quarta Emenda, quando tal era proibido nas cortes
federais, implicava em "encorajar desobed'êncÍ3. à Constituição federal".
Tal "atalho ignóbil para a condenação deixado aberto aos Estados" -
concluiu CLARK - "tende a destruir o inteiro sistema de restrições cons-
titucionais no qual se alicerçam as liberdades do povo" (63).
Dois anos mais tarde, porém, CLARK declinou de aplicar o prece-
dente Mapp a qualquer busca e apreensão arbitrária. Onde a entrada
arbitrária em certo lugar fosse motiv3.da por causa provável, Le., razoá-
vel indício de criminalidade, e resultasse em prisão legal e produzisse a
prova incidentalmente à prisão, CLARK distinguia de Mapp, onde a en-
trada arbitrária fora pré-requisito para a obtenção da prova, a qual, só
posteriormente, criara a causa provável, te" a razoabilidade da prisão.
Em Ker v. Calijornia, CLARK insistiu que a diferenç3. entre as regras
federal e estaduaiB de exclusão de provas era legal e não constitucional
(64), porquanto necessário notar que "as demandas do nosso sistema fe-
deral nos compelem a distinguir entre a prova dada como inadmis-
sível em razão dos nossos poderes de supervisão sobre as cortes federais
e aquela inadmissível porque proibida pela Constituição dos Estados
Unidos" (65).
A metódica progressão da assertiva inicial de caus3. provável até
entrada legal, prisão legal e busca e apreensão legal incidental à prisão
foi o padrão que a Corte buscou aplicar consistentemente.
Em Aguilar v. Texas (66) a maioria reformou condenação fundada
em prova obtida com mandado de busca irregular; se as circunstâncias
requeriam mandado, disse GoLDBERG, a exigência de se obter um que
fosse regular e próprio era a mesma, seja de acordo com a Quarta Emen-
da ou com a Emenda XIV (67). Em Preston v. United states, no mesmo
ano, a Corte unanimemente reformou condenação fundada em busca
"remota no tempo e do lugar da prisão". No caso, prisão por vadiagem
resultara em condenação por tráfico de narcóticos (68).
Autorização para busca sem mandado, disse a Corte em stoner v.
California, podia ser dada apenas pelo réu, nunca por terceiros. Na
hipótese, a busca feita no quarto de hotel, embora permitida pelos em-

(63) Mapp v. Ohio, supra nota 61.


(64) Ker v. Caltfornia, 374 US 23. 34 (1963),
(65) LOCKHART, KAMISAR & CHOPER, op. cit., p. 603.
(66) 378 US 108, 110 (1964).
(67) Id., IlJi4.
(68) PrestoR v. United States. 376 US 364 (1964).

82 R. Inf. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 olH'./jun. 1982


pregados, violara o direito constitucional do réu. "Era o seu direito que
estava em jogo, não o do empregado, nem o do hotel. Ao ocupar um
quarto de hotel, o réu tinha, na realidade, dado permissão para que
arrumadeiras e empregadas entrassem em seu quarto, porém, apenas
para o desempenho de suas funções normais", não para acompanhar
a polícia (69). Apreensão de prova, sem autorização legal, porém, podia
ser justificada pelas circun.stâncias, como no caso de motorista preso
pela causa provável de estar dirigindo embriagado, quando o retarda.·
menta do exame de sangue faria desaparecer a prova c0!1denatória (70).
Em duas decisões de 1967, mesmo os liberais ativistas da Corte se
dividiram. Na primeira, STEWART manteve prisão de um susPeito de
tráfico de narcóticos com base em informe anônimo. O informe criara
a "causa provável" que motivou busca e apreensão legal, disse a maio-
fia, enquanto WARREN, divergindo, afirmou que a Corte deixava a ga-
rantia da Quarta Emenda à discrição da polícia (71). BLACK, no
segundo caso, manteve condenação fundada em busca e apreensão, no
carro do réu, de narcóticos, após prisão por suspeita de tráfico de nar-
cótico, o que tomava o caso diverso de Preston, onde a apreensão do
veículo não estava relacionada à prisão, e a busca desvendou prova não
relacionada à causa da prisão (72).
O mesmo princípio de busca e apreensão arbitrária como causa de
exclusão de provas incriminatórias, como meio de proteção dos direitos
constitucionlis do réu, tentou a Corte aplicar nos primeiros casos de
prova obtida clandestinamente por meio de interceptação eletrônica de
comunicações.
Fundada na Lei Federal de Comunicações de 1934, que proibia
interceptação de comunicações, a Corte, em 1957, excluiu prova obtida
clandestjnamente, por policiais eshduais, por meIos eletrônicos, e entre-
gues a promotores federais para uso em tribunais federais (73). No mes-
mo ano, outro acórdão distinguiu entre interceptação e gravação de
conversas nas quais uma das partes consentira na gravação (74). Toda-
via, quando :l gravação meramente documenta o depoimento do próprio
policial que executara a prisão, decidiu a Corte em 1963, ou quando o
próprio depoimento consiste de comentários feitos pelo réu a um infor-
mante, decid:u a Corte em 1966, a defesa não pode clamar pela proteção
da Quarta Emenda. No primeiro processo, Lopez, o réu oferecera suborno

(69) Stoner v. California, 376 US 483, 488 (1964); LOCKHART, KAMISAR & CHOPER.
op. cit., p. 614.
(70) Schnerber v. CaZi/ornia, 384 US 757, 77i1 (1966).
(71) McCrBlI v. Winais, 386 US 300 (1967).
(72) Cooper v. Calijornia, 386 UB58, 59-00 (1967).
(73) Benantf v. U.S., 335 US 96, 99 <1957>.
(74) Rathbun v. U.S., 355 US 107 (1957).

R. Inf. l..i.l. IN.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 83


a fiscal de tributos, o qual, instruído por seus superiores, fingiu aceitar, e,
no escritório de Lopez, gravou a conversa sem conhecimento do réu;
no segundo, Rolta, o réu foi condenado por tentativa de suborno de
membros do júri em processo que respondia, e a prova foi obtida por
um informante da polícia que, fazendo-se passar por integrante do
grupo do réu, tinha acesso à suíte do hotel em que se hospedava
Hoffa (75).
Em Berger v. New York, em 1967, a maioria declarou inconstitu-
cional lei de New York sobre escuta eletrônica clandestina, porquanto
a linguagem da lei era "muito abrangente resultando numa intrusão de
direito constitucionalmente protegido" (76), e, portanto, "violadora das
Quarta e Quinta Emendas" (77). Apontando para a decisão do Ministério
da Justiça de proibir tal prática para fins de processo judicial, Justice
CLARK declarou: "No nosso regime um homem se cala se quiser, ou
fala se quiser. A questão está em se ele o faz voluntariamente ... Em
resumo, não vejo como qualquer escuta eletrônica que obtém provas
ou leva a sua busca é ou pode ser constitucional em face da Quarta
e Quinta Emendas" (78).

2 - Direito à assistência de advogado

Toda esta linha de pensamento levou ao clímax das decisões dra-


matizadas em Gideon v. Wainwright (79), e abriu caminho para um°
processo criminal mais humanitário, condicionado por direitos consti-
tucionais. A preocupação da Corte com o grau de coação nas confissões
estava essencialmente relacionad:l à sua determinação de que nenhum
réu tivesse sua defesa diminuída pela falta de assistência jurídica pro·
ftssional. Assim, os anos 60 assistiram, por um lado, a uma série de
decisões que progressiva e continuamente expandiram as garantias do
réu; por outro, a crf.ticas crescentes de que a tendência de tais decisões
era a demolição do sistema de execução àas leis.
A admlssibilidade das confissões em processo penal fora tópico de
debate áspero por décadas. Ainda em 1953 a Corte decidira que a única
preocupação da Emenda XIV com o tema era admoestar os tribunais a
não admitirem. confissões obtidas em circunstâncias "inerentemente des-
merecedoras de crédito" (80). Seis anos mais tarde, porém, a Corte, apli-
cando o "teste da credibilidade" a seu próprio alvitre, invalidou con-

(75) Lopez v. u.s., 373 tIS 427 (1963): Hof/a v. U.S., 385 US 293 (1966); LOCKHART,
KAMISAR & CHOPER, op. clt., pp. 618-19; KAUPER, op. cit., p. 939.
(76) LOCKHART, KAMIBAR & CHOPER, op. oit., p. 621.
(77) KAUPER, op. cit., p. 937.
(78) Berger v. New York, 388 US 41, 55 et sego (1967J.
(79) 372 US 335; 83 S. Ct. 792; 9 L. Ed. 2d. 799 (1963).
(80) Stein v. New York, 346 US 156 (1953).

84 R. Inf. legill. Brasília a. 19 n. 74 obr./jlln. 1982


fissões obtidas em maratona de interrogatórios ou mediante ameaça
ou molestamento da família ou de amigos do réu. O teste doravante,
disse WARREN em 1961, era se quaisquer circunstâncias envolvendo uma
::onfissão eram "tais que subjugavam a vontade do réu de resistir e
não admitir confissões involuntárias" (81).
Mesmo o novo teste da "voluntariedade" tinha seus pontos fracos;
era, disse CLARx., "um padrão indefinível e incomensurável de coação
psicológica" que apenas encorajava os interrogadores a usarem maior
inventiviàade nos seus métodos.
A raiz do problema, apontou DoUGLAS em 1962, era a ausência
de advogado durante o inquérito policial, quando os "prejuízos poten-
ciais" para o réu atingiam o ponto máximo. "Um advogado imagina-
tivo". prosseguiu DoUGLAS, "pode prontamente identificar aspectos na
vida pregressa do réu que devidamente questionados levantam suspeita
quanto à validade de alguma prova da acusação" (82).
Com este voto de DoUGLAS, o palco estava pronto, uma vez mais,
para a refutação da amaldiçoada regra de Betts v. Brady, e a petição
manuscrita de Clarence Gideon. para revisão de sua condenação na Fló-
tida. trouxe a oportunidade no ano seguinte.
Em Betts a Corte havia decidido que o Estado. ao indeferir pedido
de advogado dativo, não negava o due process of law ao réu indigente
acusado de roubo, porquanto fora ele informado pelo juiz que o direito
só lhe seria assegurado em casos de homicídio ou estupro, ou caso as
circunstâncias recomenà3.ssem a nomeação como meio de se garantir
um julgamento justo, o que, na hipótese. não era necessário. Justice
ROBERTS assim termina seu voto: "... a Emenda XIV proíbe a conde-
nação e o encarceramento de alguém cujo julgamento não esteja de
acordo com as idéias fundamentais e comuns'" Le., do comnwn law,
"de justiça e direito, e embora a ausência de advogado em seu caso
particular possa resultar em uma condenação carente de tais valores
fundamentais, não podemos dizer que a Emenda contenha um manda-
mento inexorável de que nenhum julgamento por qualquer crime, ou
em qualquer corte, possa ser conduzido com correção, e que justiça
não possa ser feita ao réu, porque não é ele defendido por advogado" (83).
Em janeiro de 1962, em papel tiInbrado da Divisão de Correções
da Flórida, um preso dirigiu-se à Suprema Corte nestes termos: "Eu.
Clarence Earl Gideon, informo este Tribunal que sou pobre, sem recursos.

(81) Spano v. New York, 360 US 315 (1959) j CulOmbe v. Connecticut, 367 US 358, 635
(1961> .
(82) Chewntng v. Cunningham, 368 US 443, ~ (1962).
(83) 318 US 455; 62 S. Ct. 1251l: 86 L. Ed. 1595 (1942); KAUPER, op. cit.• pp. 895-898;
LOCKHART, KAMISAR & CHOPII:R, op. dt., p. 638.

R. Inf. legid. Bro.ília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 85


e sem possibilidade de obter ajuda financeira, e eu imploro a este Tri-
bunal que ouça e delibere sobre meu pedido" (84). A Corte de primeira
instância, alegou Gideon, recusara-lhe advogado, contrariamente ao
direito da Constituição.
Abe Fortas, defensor nomeado pela Suprema Corte, e um dos mais
hábeis advogados de Washington então, iniciou dIzendo que a questão
não era a da necessidade ou não de advogado em um julgamento "justo
e decente". "A necessidade de advogado é muito clara para se discutir.
Nenhum indivíduo que não seja advogado treinado e experiente tem
ch:mce de conhecer ou diligenc~ar as elaboradas e sofisticadas medidas
técnicas que são necessárias para ordenar e avaliar os fatos, analisar
o direito, determinar a linha de argumentação, barganhar a acusação,
dominar e apresentar todas as considerações de fato e de direito rele-
vantes para sua defesa. Mesmo um advogado criminalista treinado e
experiente não deve - e nem o fará, se tiver sensibilidad.e - promover
sua própria defesa".
"As leis sobre confissões involuntárias e buscas e apreensões apli-
cáveis aos Estados" - prossegu'u Fartas - "são posteriores quase todas
a Betts v. Brady" (85). Leigos inexperientes, ignorantes das regras do
processo criminal, marchavam firmes para armadilhas. Em tais cir-
cunstâncias, a distinção entre crimes punidos com penas de reclusão
e de detenção, aqueles exigindo advogado dativo, este não, era inválida;
se negar advopdo a qualquer réu indigente implica em negar o due
process e a igual proteção das leis, então o impedimento constitucional
estendia-~e a todos, a despeito da magnitude da acusação.

Portanto, concluiu Fortas, se a decisão em Mapp (86) se mostrara


necessária p:ua eliminar disparidade inconstitucional entre os tribunais,
em matéria de admissibilidade de prova obtida mediante busca ilegal, de-
cisão semelhante, reformando Betts na questão d.e direito a assistência de
advogado, tornara-se igualmente imperiosa. E a Corte não poderia se
deixar intimidar em razão do efeito retroativo de tal decisão. Em um
mundo livre, declarou Fartas, o direito a advogado para os pobres tanto
quanto pan os ricos "é uma garantia indispensável. .. da justiça e do
direito" (87).
Acatando os argumentos de Fortas, BLACK, por uma corte unânime,
concordou que Betts devia ser rejeitado. Onde Constituições nacional
e estaduais uniformemente buscam proteger os direitos dos réus de modo
que tOd03 Eejam iguais perante os tribunais, a réu pobre, forçado a exer-

(84) SWINDLER, op. cit., pp. 301-302.


(85) Id., p. 302.
(86) Supra nota 61.
(87) Memorial do Recorrente, apud SWINDLER, 01'. cit., p. 302.

86 R. lnf. lecisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


cer sua defesa sem assistência de especialistas, se negava este "nobre
ideal u (88)
DoUGLAS acrescentou que "os direitos protegidos contra a intrusão
dos Estados pela cláusula do due process da Emenda XIV não são ver-
sões esmaecidas do que o Bill of Rights garante", sugerindo, desse modo,
que, melhor que incorporação, é a concepção da Emenda XIV como
protetora de direitos aind.a incipientes, proposição esta negada por HAR-
LAN para quem "um direito ou imunidade, válidos contra o governo
federal, está implícito no conceito de liberdade ordeira" e, pois, "é
válido contra os Estados, o que não implica em interpretar os prece-
dentes como vinculando os Estados ao inteiro sistema das leis fe-
derais" (89).

3 - Direito à assistência de advogado: a extensão da regra


No caso que se seguiu a Gideon (90), a maioria, em voto de DoUGLAS,
revogou prática da Califórnia que permitia apelações por intermédio de
a:::vogado se o réu pudesse contratá-lo, porém submetia as apelações
de indigentes a uma revisão do processo, antes de determinar a necessi-
dade ou não de nomear advogado. "Submeter o indigente a este ônus"
- disse DoUGLAS - "é incompatível com um processo justo ... O indi-
gente, quando o processo é nebuloso, ou os erros são escondidos, tem
direito apenas a um ritual sem significado, enquanto o a.bastado tem
uma apelação eficiente" (91).
1IARLAN, dissentindo, reclamou da extensão desusada do direito a
advogado em ape19.ção. O requisito da equal protection (92), disse ele,
não impede o Estado "de adotar lei de aplicação geral que afete o pobre
mais severamente que o rico". Requisitos processuais uniformes são uma
coisa, prosseguiu HARLAN, porém "impor aos Estados 'o dever afirmativo
de compensar desvantagens decorrentes de diferenças de circunstâncias
econômicas' ... seria ler na Constituição filosofia de igualdade estranha
a muitos dos conceitos básicos das relações próprias entre governo e
sociedade". Quanto ao due process, acrescentou, a Emenda XIV não exige
revisão de casos já julgados, e, de qualquer modo, o procedimento de
apelação não requer o mesmo tipo de conhecimento juridico que na
primeira instância (93).
Assegurado o direito a assistência de advogado na primeira instân-
cia, e presumivelmente na segunda, a questão seguinte foi saber a partir

(88) Gfde:on V. Wainwright, 372 ns 335, 339 (1963).


(89) Id., p. 345, 349.
(90) Supra nota 88.
(91) Dougla8 v. CaliJornia, 372 US 353, 367 (1983).
(92) Emenda XIV, seçio l, in fine, supra nota l.
(93) Douglas, supra nota 91, p. 360.

R. Inl. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 19..l2 87


de que momento a presença de defensor tornav31·se obrigatória. Mesmo
se o due process não requeria advogado na fase do inquérito policial,
era tal garantia negada se, naquele período, o réu, sem sucesso, solici-
tasse 8.SS!stência, ou se seu advogado, sem sucesso, buscasse encontrá-
lo? Dois acórdãos de 1958 responderam negativamente. Veio, então, E8~
cabedo v. IUinois (94).
Na noite de 19 de janeiro de 1960 um homem foi morto a tiros
em Chicago. Um cunhado da vítima, um espanhol-americano de 22 anos,
Danny Escobedo, foi preso, sem ordem judicial, às 2:30 horas da manhã,
levado à delegacia de policia e interrogado até as clnco horas da tarde,
quando foi solto mediante habeas corpus obtido por seu advogado. Em
30 de janeiro, outro suspeito acusou Escobedo de ter disparado os tiros
fatais, e, naquela noite, ele e sua irmã, viúva da vítima, foram levados
à delegacia.
O advogado de Escobedo chegou pouco depois; apesar dos insistentes
pedidos de ambos, porém, não lhes foi permitido que se encontrassem.
A uma hora da manhã, o advogado desistiu, e partiu após entregar
reclamação escrita ao chefe de polícia de Chicago. Enquanto isso, inter-
rogatório contínuo em espanhol e inglês afinal obteve de Escobedo de-
poimento que o implicava substancialmente. O promotor, então, anotou
o depoimento, em palavras cuidadas, de modo a atender a lei de Dlinois
sobre apresentação e apreciação de provas. Os registros de toda esta
fase inquestionavelmente comprovam que a Escobedo nunca foi dito
que tinha o direito, constitucionalmente assegurado, de permanecer ca~
lado (9S).
A condenação de Escobedo foi revogada por cínco votos a quatro
na Suprema Corte. GoLDBERG, pela maioria, declarou que as circuns-
tâncias do que se passou na delegacia, antes da denúncia formal, impU-
caram na negação do direito a assistência de advogado assegurado pela
Sexta Emenda (96) e vinculado aos Estados pela Emenda XIV. Embora
o interrogatório tivesse o aspecto superficial de "uma investigação gené-
rica de um 'crime sem solução', disse GoLDBERG, na realidade Escobedo
"havia se tornado réu, e o propósito do interrogatório era 'forçá-lo' a
confessar, a despeito do seu direito constitucional de não fazê-Io".
Qualquer que fosse a percepção de Escobedo do seu direito consti·
;;ucional, em razão de eventual conselho anterior de seu advogado, enfa-

(94) 378 US 478; 84 S. ct. 1758; 12 L. Ed. 2d. 977 (1964).


(95) Id., tbid.
(96) Sexta Emenda: Em todos os processos criminais o acusado terá direito a julgamento
rápido e público por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime for
cometido, distrito esse que será. previaiIlente delimitado por lei; a ser infonnado
da natureza. e do motivo da acusação; a ser acareado com as testemunhas de
acusação; a dispor de meios compulsórios pa.ra forçar o comparecimento de teste.
munhas d&. defesa e a ser assistido por &.dvogado.

88 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


tirou GoLDBERG, como leigo ele estava "indubitavelmente despercebido
de que, sob a lei de Illinois, uma admissão de 'mera' cumplicidade na
conspiração era tão prejudicial quanto a admissão de ter disparado o
tiro fatal. T3.1 era o momento em que a assistência era mais critica",
Antecipando a 'imediata torrente de criticas à nova regra, de que
"se o direito à ·assistência é garantido antes da denúncia, o número de
confissões obtidas pela polícia diminuirá significativamente, porquanto
a. maioria delas é obtida entre a prisão e a denúncia",GoLDBERGacen~
tuou"que ~'o·fato de muitas confissões serem obtidas durante talperiodo
destaca sua natureza critica como o estágio em que a ajuda e o conse-
lho de advogado 'são certamente necessários". A maioria rejeitou a
idéia de que o sistema de justiça· criminal não poderia sobreviver se
não .pudesse depender "da abdicação dos cidadãos, em razão do desco-
nhecimento de seus direitos constitucionais". "Nenhum sistema que
valha a pena ser preservado" - asseverou o Tribunal - "deve ter meàO
que o réu consulte seu advogado, aperceba-se de seus direitos, e os
exerça" (97).
STEWART, divergindo, disse que assegurar ao cidadão o direito de
permanecer calado quando a polícia investiga crime implica em exa~
gerara significado d3. garantia constitucional (98).
O extremo lógico,e "o,objetivo que a Cqrte aparentemente tem em
vista".':"- afirIPou WHITE, também diverginc.o -"seria excluir da prova
qualquer confissão de um indivíduo suspeito de crime, involuntaria-
mente obtida ou não".
"O direito a advogado" -'- prosseguiu --:- "não somente intitula o
indivíduo ao çon~lh() e .à ajud3.dQ defensor na preparação do julga-
mento, como;;e antepõe como barreira impenetrável. a qualquer interro-
gatório, uma vez que se torne ele suspeito. A partir desse exato instante,
o seu direito opera, principio .impraticável e impossível de administrar,
[o,alvo se os carros de policia forem equipados com defensores públicos,
e se os agentes secretoseos intQrm~ntes da policia tiverem advogados
dedef~a a seu lado". Sarcasticamente, WBITE declarou que, em última
instância, a decisão da maioria implícava em prover advogado para o
criminoso em perspectiva antes que ele cometesse o crime (99).

4 - o~ limites. da . investigaçãopoli~ial
Diante das criticas continuadas de que Escobedo havia desmorona-
do o sistema de execução do direito, a Corte, .em 1966, tomou a inicia-

(97) lI&cobsclo, supra nQta· 94, p. 'll8, t92. . .


(98) Id., p. 492.
(99) Id., p. 495.

R. Inf. Iegi-'. lra.ma a. 19 n. 74 abr.li-. 1982 89


tiva desusada de detalhar o que en e o que não era permitido, na fase
de investigação policial, sob o princípio Escobedo.
Julgando em conjunto quatro processos sob o título do primeiro
deles, Miranda v. Arizona (100), WARREN dedicou a maior parte de seu
voto à d'scussão dos detalhes de um inquérito policial. A questão fun-
damental, disse o Chie! Justice, era a natureza "das restrições que a
sociedade deve observar para ser consistente com a Constituição federal
quando processa seus cidadãos por crime". Descreveu ele, explicitamen-
te, os requisitos constitucionais: antes de qualquer interrogat6r~o, as
autoridades devü:m tornar claro para o acusado seu direito de perma-
necer calado, bem como sua responsabilidade por qualquer palavra que
proferisse e que pudesse ser usada como prova contrária a ele. E mais,
o acusado devia ser advertido, de pronto, que tinha o d:reito "à presença
de um advogado, próprio ou dativo". O interrogado poderia invocar
qualquer dos seus direitos a todo momento durante o inquérito, e ainda
qne tais direitos fossem abdicados, poderiam, à discrição do interrogado,
M:rem invocados novJ.mente a qualquer instante (101).
Quanto aos padrões de interrogatório, descritos nos manuais de
polícia, e citados nos memor:ais dos réus, WARREN observou que seus
objetivos eram claros: "Ficar só com o preso ... e privá-lo de qualquer
apo'o exterior. A aura de certeza de que é ele o culpado mina SU'l força
o
de resistência ... É importante manter preso inseguro, por exemplo,
jogando com sua própria insegurança ou com a do ambiente em que
se encontra. A polícia, então, o convence, o trapaceil ou o induz com
!~sonjas ou falsas promessas a abrir mão de seus direitos constitucionais",

Nenhuma confissão em ta's circunstâncias, afirmou a maioria, po-


deria ser considerada voluntária. "Um individuo arrancacl'O de seu am-
biente costumeiro, sob custódia policial, cercado por forças que lhe são
antagônicas, e suje:to a tais técnicas de persuasão" - asseverou a Corte
- "não está senão compungido a falar". Desse raciocínio segue que "o
direito de ter a assistênch de advogado no interrogatório é indispen-
sável à proteção do privilégio da Quinta Emenda" (102:) porquanto, com
advogado presente, "a probabílidade de que a polícia praticará coação
é reduzida, e, se coação assim mesmo for pratic:lda, o advogado poderá
alegá-la no tribunal".
"Qualquer que seja o testemunho das autoridades de que o réu
renunciara a seus direitos, a prática de interrogatórios exaustivos ou de

(100) Um do Arizona, o segundo da Califórnia, o terceiro de New York, o Último da


justiça federal de Ka.nsa.s City.
(101) Miranda v. Arizona, 384 US 436, 473; B6 S. Ct. 1602; 16 L. Ed. 2d. 694 (1966).
(102) Quinta Emenda: Nenhuma pessoa será obrigada ... a depor contra si própria em
processo criminal.

90 R.lnf. I.gill. lralílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


prisão incomunicável anterior à renúncia é prova convincente de que
o réu não desistiu validamente de seus direitos", concluiu WARREN. O
fato incontestável é que a Qu"nta Emenda garante que o indivíduo não
pode ser compelido a testemunhar contra si próprio. "Tal dire'to", disse
a maioria, "não pode ser restringido" (103).
liARLAN e WHITE dissentiram vigorosamente. "Acredito que a decisão
da Corte" - começou HARLAN - "representa infeliz jnterpretação cons-
titucional e lega ao país conseqüênc' as danosas". O "novo código cons-
titucional de regras para confissões" - prosseguiu - "tende a impos-
sibilitar qualquer pressão, a reforçar o suspeito nervoso ou ignorante, e,
por último, a desencorajar qualquer confissão". HARLAN negou enfati-
camente que a força da Quinta Emenda fosse para eliminar todo e
qualquer tipo de interrogatório que persuadisse o suspeito a abandonar
sua resistênCÍ3. "Até hoje" - disse o Justice - "o papel da Constituição
tem sido somente ode prevenir pressão indevida, não o de assegurar
confissões espontâneas". Quando é do conhecimento comum "que alguns
crime3 não podem ser resolvidos sem confissões ... a Corte assume
grande risco com o bem-estar da sociedade ao impor seu novo regime
ao pais" (11M).
Era necessário reconhecer de início, disse WHITE por seu turno, que
o que a maioria fez em Miranda foi "criar direito novo e prática nova".
Prosseguindo, atacou o que considerou as conseqüências lógicas da de-
cisão: se se exigir a presença de advogado, e se o advogado presumivel-
mente tiver que advertir o cliente do direito de se calar, "o resultado
é que o Judiciário não poderá usar contra o réu prova por ele próprio
fornecida, seja voluntariamente ou não". A falha fundamental do novo
princípio, concluiu, não estava na sua filosofia, mas na sua indiscri~
minada aplicação ao direito penal (1M).
Embora a Corte decidisse que Escobedo e Miranda retroagiam tão-
~omente à data da primeira decisão (106), 22 de junho de 1964, tribunais
estaduais foram inundados quase instantaneamente com habeas corpus
fundados quer nestes doís casos, quer em Gideon. Foi largamente pre-
visto que uma onda de desafios aos interrogadores policiais se seguiria
a decisões tão impetuosas, e os extremistas previram uma derrocada
geral do sistema processual penal. O fato de que, na primavera de 1967,
três dos quatro réus dos processos reformados por Miranda, inclusive
o próprio Ernesto Miranda, foram condenados no segundo julgamento
(OU, em um caso, confessou-se culpado de crime menor), sem uso de
suas confissões, não m'tigou as críticas.

(103) Mirando., 384 ua 488 et seg.


(104) Id., p. 5Q4 et sego
(105) Id., p. 526.
(106) Johnson v. New Jersey, 384 US 719 (19G6).

R. Inf. legi.1. Bra.mo CI, 19 n. 74 obr./jun. 1982 91


A realidade é que, em Gideon, Escobedo e Miranda, uma maioria
liberal e ativista da Suprema Corte assegurou um absolutismo das
garantias d:l Quarta, Quinta e Sexta Emendas pelo menos igual Aquele
assegurado à Primeira Emenda nos casos de liberdade de imprensa e
nos de obscenidade, ou antes mesmo, nos processos de liberdade de
associação. O tema dominante do direito constitucional que emerge da
década de 60 é a importância dos dire.itos individuais sobre os direitos
da sociedade organ'zada. Pode haver, como a Corte seguidamente adver~
tiu, "um balanceamento de tais direitos, porém o fato é que o direito
de um cidadão que a Corte reconheça e garan b só poderá ser limitado
por direitos institucionais que pesem no outro prato da balança" (107).

VI - O LEGADO DE WARREN

ARTHUR GoLDBERG certa feita declarou que as principais realiza~


ções da Corte nos quinze anos da presidênci:l de WARREN foram, primei-
ro, dar cunho de realidade garantida por lei à proclamada crença na
igualdade racial; segundo, iniciar mudança profunda no processo poli-
tico democrático e, terceiro, promover verdadeira revolução na justiça
(,Iiminal federal e estadual (1'-).
No tocante a justiça criminal, a Corte asseverou sua fé na contínua
atualidade do Bil! 01 Rights. "Embora no.sso sistema criminal" - afir-
mou GoLDBERG - "esteja longe da perfeição, hoje, pelo menos, mar·
chamas por um caminho de justiça igualitâria p:lra todos, pobres ou
ricos, sejam eles julgados pelo governo estadual ou federal" (109).
As decisões da Corte WARREN, quer as que discutiram direitos polí-
ticos, seja as que versaram direito penal, foram fundamentais preci-
samente por não serem mera extensão de direitos preexistentes. Elas
representaram uma promessa inteiramente nova: o princípio novo de
que onde quer que exista um direito, este d.ireito não deixará de ser
garantido em conseqüência da pobreza OU ignorância do réu, ou da
falta de remédio processual. "Tais decisões repousam próximo à essên-
cia mesma de nossas grandes liberdades constitucionais", asseverou
uma vez mais GOLDBERG (110). As mudanças feitas tiveram por fim adap-
tar o direito às novas circunstâncias, garantir que ele não perdesse seu
Significado na nova sociedade, permitir seu exercicio efetivo e contínuo
dentro de um espírito de igualdade, e possibilitar que ele fizesse frente
aos novos males e obstáculos que os constituintes do século XVIII não
conheceram. Em resumo, tais transformações objetivaram dar efeito

(107) SWlNDLER. op. cit.• p. 308.


(08) ARTHUR GOLDBERG, Equal Justice - The Warren Era 01 the Supreme Court;
pp, 5-6, Farrar, Stre.US8 & Glroux; New Yort. 1971.
(109) lã., pp. 6-7.
(110) Id" p. 21.

92 R. Inf. lagi.l. Bradlia a. 19 n. 74 abr./JUft. 1982


prático às proteções do Bill of Rights e a lidar com àS realidades de si-
tuações as mais diversas que a Corte teve de enfrentar.
Aspecto importante desta fase d3. história da Corte, talvez que o
mais relevante e o que mais próximo esteja de explicar a sua atuação,
sem dúvida seu grande legado à nação. é a visão que teve da sua função
na estrutura de poder de um3.. sociedade democrática
Rejeitaram WARREN e seus pares a postura tradicional de passivi.
dade do Poder Judiciário, para muitos "uma de suas mais proeminentes
características" (111). se. por um lado. continuaram a não controlar a
seqüência dos processos que lhe chegavam às mãos, o que dificultava
ordenar a transformação do direito que. segundo seu entendimento. se
fazia necessária. por outro, ousaram correr o risco de discernir. a des-
peito de todas as críticas, dentre os fatos que os litigantes lhes traziam,
aqueles que ilustravam a situação que julgavam ser a de incontáveis
cidadãos impedidos de peticionarem perante a Corte. Por conseguinte.
lançaram suas decisões em termos universais, tornando realidade a pro-
messa de que todos os que se achavam em situação semelhante estariam
vinculados de igual modo.
Rejeitaram. ainda, a interpretação tradic:onal do judicial restraínt,
segundo a qual os juizes, porque não prestam contas ao eleitorado e
porque são vitalícios. devem sempre dar preferência ao julgamento po-
pular, valorado como mais democrático. Assim, não devem os magistra·
dos, de acordo com esta linha de pensamento. imporem· suas opiniões à
sociedade; ao contrário, devem submeter-se ao julgamento do Poder
Legislativo.
A Corte WARREN acatou o principio no tocante à regulamentação
da vida econômica. mas não quanto aos direitos individuais. E o fez.
acredito eu. a despeito do que em contrário dizem alguns especialistas,
com irrespondivel justificativa: um judiciário atuante e presente na
poteção dos direitos e liberdades individuais é um vigia permanente,
um observador poderoso e um julgador imparcial da justiça e da igual-
dade do processo político da sociedade.
Garantir just:ça e igualdade implicou, necessariamente. por exem·
pIo, em verificar detalhadamente a intenção do Pqder Legislativo ao
passar leis limitando o direito de votos dos negros (112) e dos que eram
muito pobres para p:lgar o imposto de alistamento eleitoral (113). E o
resultado foi declarar tais práticas inconstitucionais, o que acarretou
colocar o discernimento judicial acima da discrição legislativa. Impli-
cou, também. na prevenção das restrições à expressão do pensamento

(111) OONALD L. HOROWITZ. The Courts a1Id Social Policy. p. 38, The Brooldngs
Institutton; Washington, De, 1977.
(112) E.g., Gommilion v. Lightfoot, 364 US 339 (1960).
(113) Barper v. Va. Bd. 01 ElectWns. 383 os 663 (1966).

R. Inf. le,isI. lrasUIo a. 19 D. 74 ah./JlIn. 1982 93


político impopul:3.r, porquanto, preservando o livre intercâmbio de idéias,
e.stava a Corte preservando a eficácia do regime p::>lítico democrático.
Implicou, por fim, na proteção do que ARTHUR OoLDBERG denomi-
nou a "minoria permanente" (114). A teoria da democracia, explica o
Justice, sugere que ela func~ona melhor quando as ma:orias são form1das
por coalizões em contínua mutação, isto é, que cada cidadão que se
encontre na minoria em alguns assuntos, em outros se ache na maioria.
Enquanto as minorias flutuarem deste mado, as maiorias hesitarão em
[ratá-Ias injustamente, porquanto aquele que vota para explorar outro
hoje, amanhã poderá se encontrar em uma minoria sujeita à explora~
ção. Porque "minorias permanentes" diversas tinham dificuld3.de de se
ürganizarem em alianças políticas eficientes, a Corte W ARREN a elas se
~ubstituiu, num ativismo sem precedentes, cujas conseqüências hoje
raros são aqueles que as lamentam.
Creio, pois, poder-se dizer que, :::.lém dos três pontos indicados por
GOLDBERG, três outros, igualmente relevantes, podem ser àestacadas no
legado da Corte WARREN: prime.ro, que um Poder Judiciário politica-
mente ativo e influente, que ocupe os espaços deixados vazios quer pela
indiferença do Executivo, seja pelo jogo de interesses do Legislativo, é
absolutamente possível, a despeito das limitações impostas pela teoria
democrática e pelos cânones tradic~onais do direito; segundo, que liber-
ctade pessoal máxima é a pedra de toque de uma sociedade madura,
cuja estabilidade não será jam:üs permanente se prevalecerem por lon-
gos períodos de tempo, adquirindo, pois, matizes de certeza e legitimi-
àade, leis ou políticas de disfarçada intolerância para com grupos ou
idéias em oposição à maioria do momento; terceiro, que uma sociedade
verdadeir.::mente democrática e livre só será viável se o àireito assistir
a todos indistintamente, a despeito das diferenças de raça, posição social
ou credo político.
Obs.: Os textos dos processos da Suprema Corte, a não ser que
de outra forma indicados, baseiam-se no que está publicado nas
seguintes obras: LOCKHART, KAMISAR & CHOPER, Constituttonal
Law - Cases, Comments, Questtons, West Pub. Co., st; Paul, Minn.,
1975; PAUL G. KAUPER, Constttutional Law - Cases anà MateriaIs,
4~ ed., Little, Brown & Co., Boston, 1972; GERALD GUNTHER, Cases
anà Materials on Constituttonal Law, 9~ ed., The Foundatlon Presa,
Inc., Mlneola, N.Y., 1975; LAURENCE H. TRIBE, American Constf-
tutfonal Law, The Foundation Press, Inc., Mineola, N.Y., 1978; PAUL
C. BARTHOLOMEW, American Constitutfonal Law, 2~ ed.., Llttlefield,
Adams & Co., Totowa, N.J., 1978; BERNARD SCHWARTZ, Constitu-
tional Law, Macm1llan Pub. Co. Inc., New York, N.Y., 1972; BER-
NARD SCHWARTZ, The Law in American - A Htstory, McGraw Hill
Co., New York, N.Y., 1974; WILLIAM F. SWINDLER, Court and Cons-
titutton in the 20th. Century - The New Legaltty, Bobs-Merrll CO .•
Inc., New York, N.Y., 1970.

(114) GOLOBERG, op. cit., p. 49.

94 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./lu", 1982


Dois aspectos
da imunidade formal dos parlamentares

Extensão aos Deputados Estaduais


O Inquérito Policial

RONALDO REBELLO DE BRITIO POLE'ITI

Membro do MinIstério Público do Estado


de São Paulo. Consultor Juridico do Mi-
nJstérlo da Justiça. Professor na UnB

A Constituição estabelece em favor da 'instituição parlamentar, como ga-


rantia de sua independência, algumas prerrogativas, de que são titulares os
congressistas. Tais prerrogativas são a int;io1abilidade, a imunidade, a isenção
do serviço militar e o privilégio dé foro. Pela inf>iolabilicUu:k, os parlamentares
estão excluídos, por força da letra constitucional, do cometimento de crimes, por
suas opiniões, palavras e votos, salvo no. caso de crime contra a segurança
nacional (Constituição, art. 32, caput). A imunidade propriamente dita não

R. IlIf. I...... 8...,íllo ClI. 19 n. 74 ollr./jlln. 1982


exclui, como a inviolabilidade, o crime, mas impede o processo. E prerrogativa
processual:

"Desde a expedição do diploma até a inauguração da Legislatura


seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos,
salvo flagrante de crime inafiançável, nem prooessados, criminalmente,
sem prévia licença de sua Câmara" (art. 32, ~ 1Q).

:e a chamada imunidade fo1'11la!, diferente da mnterial, que configuraria a


inviolabilidade (1).

Dentre as inúmeras questões que as prerrogativas dos parlamentares sus-


citam, duas bastante sugestivas constituem objeto deste estudo, meramente
introdutório à matéria. Dizem respeito à imunidade formal, especialmente
sobre: a) sua extensão aOs deputados estaduais, sobretudo em face dos órgãos
jurisdicionais federais e b) a interpretação da idéia de processo, inserida no
texto constitucional, para saber se ela abrange, ou nãQ,os' inquéritos PQliciais.
'..:;..' ,.:.;1 ..J

Uma vez ensaiadas as respostas, poder-se-á cogitar de solução prática,


quanto à ~egundaquestão, Jlue concilie a prerrogatw.:a pa.rlll.roentái: COQ1_Q
obrigação poncial de apurar fatos violadores da lei penaL

Os princípios da Constituiç~o sobre, as ,pre~rog~ti,:as parlamentares ,se


estendem aos representantes do povo às As~mblélas 'liegtslativa~ dos Estados-
Membros, não obstante as discussões que os pormenores d~se problema susci·
taram na história político-jurídica do Brasil (2). Assim, os Estados não podendo
legislar sobre matéria penal, ou m~mo processual, reproduzem o direito federal.
Encontra-se, por isso, nas Constituições estaduais, o meSmo sistema de garantias
do mandato legislativo. Dessa forma, são os deputados às Assembléias Legis-
lativas também invioláveis e gozam da imunidade formal, não podendo ser
processados sem prévia licença da Casa de Representantes, a que estiverem
vinculados, nos termos do disposto na Constituição federal e na Constituição
do Estado-Membro correspondente (3).

Em suma, a questão é pacífica no tocante à extensão das imunidades


federais aos deputados estaduais, as quais adquirem forma nas Constituições

(1) Cf. JOSlt AFONSO DA SILVA, Curso de Direito ccmstitucional Positivo, vaI. I,
Ed. RT, SP, 1976, pp. 1071109; a. respeito do tema das prerrogativas e imunidades,
ver estudos recentes de NELSON DE SOUSA SAMPAIO, "Prerrogativas do Poder
Legislativo", in Revista de Informação Legis14tiva, a. 17, n. 67, jul./set. 1980; J~
ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, "Imunidades Parlamentares", in Revista de
InfOT'11UJ#.o Legislativa, a. 17, n. 68, out./dez. 1980; e lDUNA E. WEINERT, "Prer-
rogativas do Poder Legislativo", in Revista de Informação LegUtativa, a. 18, n. 69,
jan./mar. 1981.
(2) Cf. BARBOSA LIMA SOBRINHO, As Imunidades dos Deputados Estaduais, 00. Rev.
Bras. de Estudoa PoUticos, Belo Horizonte, 1966; ALCINO PINTO FALCAO, Da Imu-
nidade Parlamentar, Forense, Rlo de Janeiro, 1955, pp. 103/103,
(3) Cf. OSWALDO TRIGUEIRo, Direito Constitucional Estadual, Forense, Rio de
Janeiro, 198O,p. 160; e JOQ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, op. cito

:96 R. Inf, I.ti". lIra.mo 'o. 19 .~74 olHJJun. 1982


dos Estados-Membros. Onde, por~m, o tema assume dimensão polêmica está
em saber se as imunidades estaduais valem perante o Ex.ecutivo e o judiciário
da Federação. Se podem ser aduzidas perante os órgãos jurisdicionais da União
(justiça federal, militar e eleitoral). Na vigência da Constituição de 1946, :l
resposta do .Supremo Tribunal Federal foi negativa, consoante julgamento do
Habeas Corpus nQ 29.866, Relator o Ministro Ribeiro ·da Costa, vencidos os
Ministros Hahnemann Guimarães e Aníbal Freire, mais tarde acompanhados
pelo Ministro Edgar Costa. Por' esse precedente judicial, as. imunidades dos
deputados estaduais são restritas .aos Iimi~s <;los respCGtivO$ territórios, e. nio
pooem valer contra a justiça federal; se as CoIlStituições estaduais não podem
estabelecer restrições ao livre exerçÍçio das autoridades da União, não P0gem,
em conseqüência, negar cumprimento a decisões proferidas pelos. órgãos federais
de justiça: (4). Embora não haja notícia cU, alteração. jurisprudencial, penso,
porém, que o alargamento da competência da justiça federal e a conjuntura
poHtica, modificando basicamente o modelo de nossa federação (fi) .em qUtJ
inexiste qualquer risco para a União federal, militam a favor daque1esvotos
vencidos. As disposições constantes da Constituição ficam incorporadas, nO
que couber, ao direito constitucional legislado dos Estados (art. 200). Por. aí
se estendem as prerrogativas que, tão-somente, adquirem forma. nos te~O&
estaduais. Por outro laào, as prerrogativas visam ao aprimoramento do exercI-
cio da representação política que, de acordo com a orientação contrária, estatia
a salvo apenas a nivel federal. Além disso, existe o princípio da federação.
Como justificar-se, diante dele, a intervenção nos Estados-MeIJlbro~ para pro-
ces9ar e julgar parlamentar estadual, sem licença prévia de .sua Casa, que repre-
senta um Poder no Estado-Membro? Esse caSQ não está previsto no rol ( numerus
clansus) das hipóteses de intervenção federaL Afinal, prover a execução de lei
federal, ordem ou decisão judiciária, constitui caso,de: intervenção (art.10,VI),
tanto quanto assegurar o livre exercício dos Poderes estaduais:(art. 10, IV),
bem como a exigência da observância do princípiO: da forma republicana repre-
sentativa (art. 10, VII, a). Do contrário, de nada valeriam as imunidades dos
deputados estaduais, pois, em tese, o governo estadual estaria autorizado a
mandar prender deputados, independentemente de licença da Asoombléia, toda
vez que estivesse em jogo um texto de .lei· federal, não alcançado pelas imuni-
dades estaduais, e cuja violação fosse julgada por órgão federal da justiça. Nos
dias de hoje, em que a federação brasileira adotou contornos especiais' e bem
diferentes daqueles originariamente concebidos pelos republicanos de 91.ha-
vendo a União federal aumentado em muito sua esfera de poder, f.ato que chega
a abalar o próprio conceito da existência federativa, restringir a imunidade
fonuaI dos deputados estaduais pode ensejar um abalo irrepa!lável ao -sistertla
representativo, uma das pedras angulares do nosso regime democritioo..JO
argumento da segurança nacional não po<le, no caso, ser _invocado, simplesmen-
te porque a ela não se estendetLinviolabilid:ade.

(4) Cf. BARBOSA LIMA SOBRINHO, op. cU., pp. 115 e segs.; ALCINO PINTO FAL-
CAO, op. cit., pp. 104 e segs.; CLAUDIO SOUTO, As Imunú:Ulde1J Parlamentare.,
ImprensaUnlversltár1a, Recae. 1962, pp. 12,4_e segs. _
(5) Hoje se fala. em "federaIlsmo de ln~graoÁo',~ ~ têrJlllnologlli. &,- ALFRimo.BUZÁID,
cf. seu "OEstadoFedera.lBra.sUetro"~'JD'·CO#fertncfag,DepartamentO .de Imprensa
Nacional, 1971, pp. 99 e segs. ~. _

R. Inf. legiSl; Bra.íliaa. 19 n. 74 ab•• /jlln.-1982


Por esses argumentos, as prerrogativas parlamentares se estendem aos
deputados estaduais, nos termos das Constituições dos Estados-Membros, inc1u~
sive quanto à justiça federal.

O outro problema, o da idéia de procuso no texto da Lei Maior requer um


exercício de exegese interpretativa.

Do ponto de vistla da interpretação da letra do texto constitucional, eviden-


cia-se a impossibilidade de o parlamentar ser processado, o que pode, pela
literalidade, significar possa ser intimado a prestar depoimento em inquérito
policial, mesmo quando houver fortes indicios de ele ser o autor do ato objeto
da instrução policial. A lógica pode enganar. Se a Constituição, que, em prin-
cípio, somente usa termos técnicos, emprega a expressão "processado", quis ela,
evidentemente, dizer que o parlamentar não pode ser réu em processo, isto é,
não pode ser o sujeito passivo da relação jurídico-processual, a ~ual só se perfaz,
s6 passa a ser processo, depois de aceita a petição inicial (denuncia ou queixa)
e efetivada a citação juridicamente válida. Ora, se as coisas são assim pela letra
da Constituição, o parlamentar não pode ser processado criminalmente seJna
prévia licença de sua Câmara, mas está obrigado, embora não se possa executar
essa obrigação, a atender intimação para prestar depoimento em inquérito po-
licial, ainda que suspeito do ato objeto do procedimento criminal. A isso está
obrigado, como qualquer cidadão, embora sua desobediência nada acarrete
nem crime. por força da inviolabilidade, nem condução forçada, porque, em
face da imunidade em discussão, não pode ser preso (freedom of arrest), salvo
em flagrante por crime inafiançável. Além disso, o parlamentar, no caso, se
distingue das outras pessoas, porque até como testemunha só poàe ser inquirido
depois de acertar local, dia e hora, com o juiz (art. 221 do Código de Proce"m
Penal), e, por maior razão, com a autoridade polici.'ll quc preside o inquérito,
uma vez que aquele princípio é aplicável também nos depoimentos prestados
em inquérito policial. Acrescente-se a isso a justa presunção de ser (1 represen-
tante do povo, por força de sua condição, o mais interessado em elucidar os
fatos, colaborando com a Polícia e cumprindo seu dever, quando testemunha e,
na hipótese de acoimado de haver perpetrado algum ato criminoso, o primeiro
a desejaT exercer o seu direito de defesa, pela produção dessas peças procedi-
mentais que se constituem no seu depoimento ou no seu interrogat6rio, passos
processuais criados para o seu resguardo.

Tal é a conclusão da lógica. Mas da 16gica tradicional, não daquela anun-


ciada por RECAsÉNS SICHES como superadora de todos os métodos interpretativos
do direito, o logos do humano ou da 16gica do razoável (6). Na verdade, a 16gica
tradicional não parece ser suficiente paTa a aplicação do direito. Neste caso,
até, ela poderia fevar o aplicador a algumas conclusões precipitadas. A interpre-
tação literal do texto da Carta Magna, no caso, embora do ponto de vista lógico
possa aparentar critérios justos, corre o risco de ser contrariada, na prática,

(6) Cf. Tratado General de Filoso/fll deZ Derecho, ed. Parroa. México, 1968, pp. 660/686:
lntroduceíón al Estudfo de! Derecho, ed. Porma, México. 1977, pp. 246 e segs.;
Nueva FílO8o/ta de la InterpretGcfón, deI Derecho, ed. Pi:Jrrua, México, 1973, Capo m,
pp. 131 e segs.

98 R. Inf. legial. Bralília a. 19 n. 74 obr./lun. 1982


pela realidade da vida. Aliás, o resultado prático da aplicação da norma de
êlireito constitucional é o que importa. Afinal, o Governo é uma coisa pritica.
O que interessa é o resultado da interpretação (1); as normas constitucionais
têm natureza política (8). Se é verdade, em direito público, ser a literalidade
muito importante (\I), não é menos certo que a interpretação extensiva somente
é admissivel em direito constitucional, se possibilitar O aumento das franquias,
pois, como escreve RUI em seu inefável magistério:

« ••• O direito sempre se subentende a favor daliherdade (este


axioma jurídico, vulgarizado entre nós durante a propaganda pela
emancipação dos escràVOS, não se pode obliterar quando propugnamos
a dos cidadãos). As regras mais e1ementl).res de hermenêutica se opõem
ao arbítrio de admitir por inferência condições restritivas da liberdade.
A regra, absolutamente sem exceção, é que, se a letra não obsta a
liberdade, não é lícito excluí-la pelo espírito da lei" (10).

Noutras palavras, a Constituição deve ser interpretada pela sua letra, por
força de sua natureza política, não sendo factível aplicar os métodos da exegese,
sobretudo da escola da livre interpretação do direito, para restringir direitos e
liberdades, mas admite a hermenêutica extensiva, se ela for para ampliar as
garantias e fortalecer o regime político. Por isso, RUI ora defendia a liberdade,
Ora admitia a extensão da exegese (11). Para o festejado STORY. a primeira
regra fundamental na interpretação da Carta Magna consiste em entender os
documentos formais de acordo com os sentidos dos termos e a intenção das
partes (povo e representantes, Estados-Membros) e um dos expedientes ele-
mentares reside em tomar a Constituição L'Omo um todo, em que as cláusulas
particulares recebem significado da finalidade conjunta e comum cor.porificada
nos princípioS essenciais do texto constitucional. A Constituição é, assim, um
todo l6gico. Se o texto for claro, não há necessidade de interpretação, a qual,
se necessário, deve ser cautelosa. Mas, por outro lado, não se deve interpretar
uma cláusula constitucional de maneira a frustr·ar-lhe os fins óbvios, se coubex
outra interpretação que os observe e proteja:

"A primeira e fundamental regra de interpretação de todos os


documentos formais está em analisá-los de acordo com o sentido de
seus termos e a intenção dos que os elaboraram.

Afirma {) Juiz Blacbtone. que a. intenção. de uma .lei .deve resultar


do conjunto das palavras, do contexto, do assunto em questão, efeitos

('1) Cf. CARLOS MAXIMILIANO, HeT1M1Jlut1c4 Ir Aplicaç40 do Direito, Freitas Bastos,


1965, p. 318.
(8) Cf. PAULO BONAVIDES, Direito .comU~~, Forense, RIo de Janeiro, 1980,
pp.29&e ....
(g) Cf. ALtPIO SILVEIRA, Hermenêutica no Direito Brarilelro, Ed. RT, S!o PaUlo,
1968, 29 vol., JlP. 6 e 6.
(10) RUI. "Haberu Carpu8. O Estado deSitlo"; na Beuista de Ju~, vol. 3, 1968,
(1ll Cf. ALíPIO DA SILVEIRA, 01', clt.. pp. 46/'1.

R. Inf. leglll. Bra.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 99


e {'!()]}Seqüências, com a razão e o espírito da lei. Para justificar tal
afirmativa, continua dizendo que as palavras devem, geralmente, ser
entendidas no seu signifi.caoo mais usual e mais l'onhecido, não tanto
oonsiderando-se a adequação gramaticaL mas seu uso geral e popular;
se aconteC'e de as palavras terem sentido dúbio, seu significado deve
ser fixado pelo contexto, ou pela comparação com outras palavras e
frases no mesmo documento; os exemplos ilustrativos devem exprimir
mais a derivação do assunto, em questão, em relação aos quais as
expressões são usadas; o efeito e a competência ueuma determinaàa
COIlliotroção devem ~er examinados, porque,· se o significado literal pode
envolver um manifesto absurdo, não deve ser adotado; e a ra.zã.o, o
espírito· da lei, ou as causas que levaram à sua elaboração, são fre.
qüentementc os melhores intérpretes das palavras (.' limitam sua apli.
cação" (I:).

E, ainda, STORY, mais adiante:

"A interpretação pode também ser estrita ou extensiva; apesM' de


nem sempre querermos expressar a mesma coisa, quando falamos de
uma interpretação estrita ou eKtensiva. Quando o uso popular deu dois
sentidos à mesma palavra, um dos quais é mais limitado ou inclui
menos detalhes que o outro, o primeiro é chamado seu estrito senso,
e o segundo, que é mais amplO, Ou que inclui mais particularidades,
é chamado seu sentido lato. Se achamos tal palavra numa lei e a usa-
mos em seu sentido mais limitado, dizemos que a interpretamos restriti·
vamente. Se tomamos esta palavra no seu sentido mais amplo. dizemos
que a estamos interpretando extensivamente. Mas, ainda que o façamos
em um outro senti<1O, ainda estaremos nos atendo à letra da lei.

T<;KIavia, as interpretaçõc"s restritiva ou extensiva são freqüente-


mente opostas uma à outra em sentido diverso. As palavras de uma lei
podem, algumas vezes, expressar d.e maneira imperfeita a intenção do
tf'gislador. Podem elas, em sua acepção comum, incluir algo amai';
oU" a inanOllqOO a sua intençã[). ·E se, por um lado. c.hamamos de inter-
pretação restritiva quando declaramos que a letra da lei deve a ela
se confonnar com precisão, por outro bâo, a chamamos extensiva, ao
declararmos que as palavras devem ser tomadas num sentido tal, que
o uso popular n~o. justificará plenamente, ou que.a intenção do legi~.
lador é algo .diferente do (Iue suas palavras, em qualquer maneira de
usar, poderiam signHioar. Neste sentido, a interpretação extensiva é
si.PÔnimo do que tem sido chamado de interpretação racional. E uma
restrítiva; neste sentido; hIdi.ii Únto a literal corrio a mista~ e pode,
para distinguir-se da primeira. ser chamada de fechad<.l, em oposição a
interpretação livre, ou liberal" (11).

(12) Trad. Uvre de JOSEPH STORY, LLD., Commentaries on tM con:rtítution 01 ~


.UftUed stat. (In two VDlumes), Brown and Company, Boston, 1905, vol. I, p. 306.
<l3} Idem, 1bfdem, p. S07.

100 R.lnf. "'111. 1"lmll a. 19 n. 74 a_./lun. 1912


E, noutro passo:

"Ao analisar a Constituição dos Estados Unidos, devemos"~í~


ramente considerar qual a sua natureza e seus objetivos, sua finalidade
f' intenção, entendida tanto a aparência de sua estrutura 'como documen-
to formal, vista como um todo, como também visando as partes que a
t'Ompõcrn. Onde as palavra... são simples. claras. e determinada&, .elas
niio requerem interpretação; deveria, entretanto, 3e!' admitida, se for
o caso, com grandes C'uidados, e apena~ plJT" necessidade., ou para es-
capar de alguma conseqücncia absurda, ou para a proteção contra.
algum desastre fatal. Onde as palavras podem ter dois sentidos, cada
um deles em conformidade com o uso popular, o sentido a ser adotado
será aquele que, sem se desligar do significado liteml das palavras,
melhor se hémIlonizar com a natureza e os objetivos, a finalidade e a
intenção do documento formal'" (14).

No caso da imunidade formaJ de não ser processado o parlamentar, ela se


justifica para impedir que o parlamentar seja hostiJi7..ado em prooesso orimina~
frl1to ele ewntllal paixão poHtica (15). Ora, a hi]?!>tese de hostilidade é suscetível
df' ocorrer com o simples inq~érito policial, onde dUigênc~s comuns, às vezes,
parecem desrespeito...as aos parlamentart>s. Se em termOs técnicos e· lógicos
nenhum privilégio Oll prerrogativa tem o deputado em relação ao inquérito
policial, diferente de processo, quer para colher o seu depoimento, a fim de
elucidar o~ fatos, quer para possibilitar-lhe defesa de fatos que lhe são impu-
~ados, a realidade está em que aquele mero procedimento não raro causa danos
superiores ao próprio processo. Ora, se a COnstituição não permite seja .0 par.
lamentar hostilizado. por processo criminal, em prejuízo da instituição parla-
mentar, por isso que condicionado a prévia licença da Assembléia, com maior
ra7.âo não admite ela as mesmas conseqüências em procedimento policial. Assim,
Se as conseqüendas que a Carla Ma~na pretende evitar, proibindo o processo,
forem efctivad:ls num simples inquérito policial. então .elas estão també~ proi-
bidas pela letra ~stituetonal. . _

~esses tennos, a Con<;tituição deve ser interpretada de maneira tal que a


imunidade em teta não seja frustrada por expf'dientes no fundo burocráticos; se
() inqm:'rito polidal possihilitar hostilidade e prejuízo ao exercicio do mandato
popular pelo representante, então ele -não está obrigado a prestar depoimento
naquele pt'OC'cdimento criminal, podendo eximir-s4"" até porque, como vimos,
à41uilo não pode ser coagido, pois não pode ser processado pot' crime de desobe-
diênda, sem licença da Casa Legislativa a que pertencer, e não pode $er levado
à força. porql1 ~ não pode ser preso, .pot fotça ·de su-as prerrogativas. .- :

Tal interpretação enscja alguns problemas, sobretudo para' a autoridade


polícial. Afinal, tem ela o dever de apurar os fatos c o de po6lSibilitar aos en.,

<14,) Idem, Undem, pp. 30'1/308.


(1~) Cf. MANOEL PERR.Em.A FILHO; ~t4rlO3' 4 ConStituiçãO, '19 vOt, s8ral~,
SP, 1972, P. 218.

---'-----
101
volvidos seus depoim('ntos de defesa. Nunca é demais rl"petir que os procedi-
mentos criminais, inclusive a própria ação penal, constituem também um direito
dos implicados injusblmente e dos réus a serem absolvidos. Dessa forma, caberia
no direito normatizar a atividade policial, quando, na prática, houver a neces-
sidade de colher-se o depoimento de parlamentar em inquérito policial. Não
se trata apenas de lei a ser feita, pois a legislação, não obstante importante e,
no Brasil, primordial, não constitui a única fonte do direito. A administração
também cria o direito, consubstanciado em seus atos administrativos. se confor-
mes aos princípios jurídicos. Assim a normatização requerida pode resumir-se
(lei ou orientação administrativa) em direção procedimental que consubstancie
a atitude policial de indagar do parlamentar se ele concorda em prestar seu
depoimento, O qual poderia ser colhido em dia e hora por ele detenninados, c
sempre nas dependências do Poder Legislativo e COm a presença do respectivo
Presidente da Casa a que pertencer.

E.m síntese:

a) as prerrogativas parlamentares, entre as quais se inclui a imunidade for-


maI de não ser processado o representant:c> do povo, se estendem aos deputados
estaduais, inclusive perante os órgãos adminhlTati\·(l~ (' jurisdicionais fedeTais,
nos tennos da C'Á.lnstituição federaf e das Constitlliçô('. dos Estados-Membros;

b) a abrangência da imunidade formal. pela 1,'gishl~'ã() da Constituição,


alcança apenas o proCCS'So, que não Soe confunde com o iIl<}uérito policial. es-
tando o parlamentar obrigado a depor para elucidar os fatos, ainda que pes-
soalmente com eles envolvidos, pois, além de tudo. o depoimento lhe convém
por constituir instrumento de defesa, enquanto a autoridade policial tem o devei
de apurar OS fatos e de possibilitar ao parlamentar o direito de ser ouvido;

c) não há, porém, COInQ constranger o parlamentar a depor, pois se cometer,


em tese, crime de desobediéncia. ele não ocorre por força de sua inviolabilidade,
nem pode ser por ele processado sem licença da Casa Legislativa coxrespon-
(l:.'ntc; e muito menos pode ser conduzido à força. pois nrlo pode ser preso;

d) a circunstância expressa nas letras b e c supra indicam que a Consti-


tuição deva ser interpretada de maneira que se11S fins não sejam frustrados,
isto é, se as conseqüências que a Lei :\faior intenta evitar com o processo são
suscetíveis de ocorrer com o inquérito, então aquelas também devem ser evi·
tadas. por força da C ()Ilstituição, cuja interpretação deve alargar-se para au-
mento das franquias c cumprimento de seus fins;

e} para resolver o problema do inquérito em termos práticos, convém a


edição de norma orientadora da atividade policial, para quc se proceda de
maneira a cumprir-se o espírito da Constituição, solícitando ao Presidente
da Casa Legislativa correspondente a gentileza de inda$ar do parla~entar se
ele COIK'Orda em prestar seu depoimento, para o qual poderá marcar dIa e hora,
e que será colhido sempre nas dependências do PodEI' Legislativo, com a
presença do Presidente da Casa a que peztencer.

102 R. Inf•. I..iII. Braília •• 19 n. 74 • •./1_. 1912


A educação e a cultura
nas Constituições brasileiras

ROSAL vo FLORENTINO

Professor de Históri&., Advogado e JorneJJsta.

SUMARIO

INTRODUÇÃO
EVOLUÇÃO DA POLlTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA
T..... da História do BrasIl
b primeira escolas no Brasll
Fundamemoa cuhura"
A ecIucaçto de D. PedrO
Id6l.. PoItUc.
CONSTITUiÇÃO DE 1824
A eclucaçIo no regime Imperial

OONSTITUIÇOES REPUBLICANAS
CONSTITUIÇÃO DE 1891
REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1926
Agnwtlctlmo
O amerlcaniMlO da Conetltu19lo de 1891
A colnlldo dos cinco
DacentralIz89Io
5epM'8Çio da Igreja do hWdo

A REVOLUÇÃO DE 1930
Retonnaa de enslno
CONSTITUiÇÃO DE 1934
Tratamento COfIIIlucIonaI

A CARTA CONSTITUCIONAL DE 1937


O novo lIItema polfllco
Enllno MCUIId6r1o e tjcnIco
Ensino prol......
EnsIno rellg10N
CIriter 1MIiCIClMI....

R. Inf. legill. Brasília o. 19 n. 74 abr./j.... 1982 103


A CONSTITUICAO DE 1946
Bre.. I'eC8pUuleçio
CenrrellzBçlo e deecentr1lllzeçio
DI educaçio e de cultura
Diretrizes e b.... de edUCIIÇio nacional
Enalno público e ensino plrtlculer
Uberdede de ensino
A educação é obre dlspendlo.e
Crise br8slleira de educeçio
A forma9io de professor..
A vez dll universidades

A NOVA CONSTITUiÇÃO DO BRASIL (1967)


A eduCllçlo
Prlnclplos fundamentais
Inovaç6ee

A EMENDA CONSTITUCIONAL N~ 1, DE 1969


A LEI N9 5.692/71
Objetivos delta lei
Convenllncl.. e acerto daaiplicsçio de reforma
ReconatruÇlo do Ilstema

SOBRE A EMENDA CONSTITUCIONAL N9 18/81


Diminui o tempo de MrYlço para apoeentadorla do
profeuor
BIBLIOGRAFIA

INTRODUÇAO

Não é preciso ressaltar a importância do tema que escolhemos para


esta despretensiosa monografia. Tão grande e tão vasto que nos sentimos
pequenos diante de sua grandeza e profundidade, para analisar todos os
seus aspectos e implicações na vida política, social, econômica e religiosa
do País. Resta-nos, entretanto, a esperança de, com este modesto trabalho,
despertar a atenção dos estudiosos sobre um dos mais empolgantes capí-
tulos da Carta Magna, que está espicaçando a inteligência nacionaL Quere-
mos, também, ressaltar que o nosso objetivo, senão o único mas o principal,
é chamar a atenção dos nossos estudantes para o grande documento his--
tórico que constitui, para cada povo e em todos os tempos, a sua Cons-
tituição, a sua Magna Carta. Cada especialista, em cada uma das atividades
humanas, encontrarã, em cada um dos capítulos da Constituição, tema e
inspiração para alentados estudos de interesse particular e geral, pois que.
constituindo um todo o Diploma Constitucional, o mesmo representa, em
um momento dado, o reflexo das aspirações nacionais. A comparação, em

104
tais termos, tem valor relativo, porque refletindo, como refletem, condi-
ções e contingências de épocas diferentes, as Constituições variam com o
tempo em que foram elaboradas, com a evolução das técnicas, das ciências
e das idéias, estas representadas pelas corrente~ da opinião pública e, es-
pecificamente, pelos homens que mais de perto participaram de sua
elaboração.

EVOLUÇAO DA POLlTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA


A evoluçâo da política educacional brasileira acompanha este racio-
cínio e tivéssemos nós engenho e arte, ciência e paciência, poderíamos
desvendar aspectos que, aos olhos do leitor comum, nâo são vistos nos
artigos das Constituições brasíleiras, nas diferentes fases da política nacio·
nal. Dentro desta orientação e de acordo com este ponto de vista, é que
desejamos, superficialmente embora, abordar alguns aspectos que vão da
herança colonial ao Império e da herança imperial à República.
Com referência ao período republicano, diremos das reformas edu-
cacionais que foram feitas - da política e da educação -, dois pontos
em conflito para o desenvolvimento cultural do Brasil, e da instabilidade
da política educacional brasileira nos últimos tempos, decorrente, dentre
outras causas, da "crise de crescimento" que atravessamos. Ao escrevermos
sobre cada uma das Constituições, abordaremos o problema, tendo em
vista os fatores jã apontados, a filosofia política do Estado e as trJ'lsfor-
mações politicas, sociais e econômicas do País.
Não é sem propósito, portanto, que transcrevemos aqui, para argumen-
tar, importantes e oportunas afirmações de SILVIO ROMERO, em sua
magnífica História da Literatura Brasileira:
"Não é de hoje uma simples suposição, mas um fato firmado
na História, que o estado de riqueza ou pauperismo de um povo
influi diretamente na formação de sua literatura."
E de sua cultura, acrescentamos nós. O florescimento da cultura em
Atenas, no século V a.C., que toma o nome de Péricles; o século de Augus-
to, que marca o apogeu do Império Romano, depois do nascimento de
Cristo; e o Renascimento europeu, entre os períodos medieval e moderno,
têm sólida base econômica. E com relação ao Brasil, nos seus poucos
400 anos de História, escreve aquele renomado critico:

"Basta·me abrir a nossa História de 400 anos, malbaratados


por aqueles que deviam dirigir a Nação e ver que a quatro se
podem reduzir os movimentos mais acentuados de literatura do
Brasil; a Escola Bahiana, do século XVII, que se aureola com
GREGÓRIO DE MATOS; a Mineira. do século XVIII, que se assina
com a firma de GONZAGA e DURA0; a Fluminense, da primeira
metade do século XIX, com MAGALHAES e MACEDO; e a Nacio·
nal, com movimentos isolados de uma ou outra província, reve-
lando a mutação social."

R. Inf. leglll. Brosílla a. 19 1'1. 74 abr./jun. 1982 105


E acentuando as influências de ordem econômica nesses movimentos
literários, acrescenta:
"Reconhece-se por trás desses acontecimentos literários ou-
tros tantos movimentos econômicos do Brasil:
1Q - nos primeiros séculos da colônia, o açúcar;
29 - no século XVIII, o ouro;
3<.J - mais tarde, o café;
4Q - e agora, com todos esses produtos desacreditados, es-
tamos à procura de um novo equiUbrio econ6mico" {l).
Vivesse hoje SILVIO ROMERO e ele acrescentaria à sua História da
Literatura O grande ciclo industrial brasileiro, como responsável pela va·
riada mutação econômica e social do Pais, responsável pela mudança de
suas Constituições.
l:: o que, em livro mais recente, A Cultura BrasiJeira, sa1ienta FER>-
NANDO DE AZEVEDO, estudando o meio físico, as origens e a composição
do povo brasileiro, o trabalho humano, as formações urbanas, os diferentes
ciclos de nossa economia, situando, depois, o café e o desenvolvimento
industrial para explicar toda a evolução da cultura brasileira, escrevendo:
" ... a cultura, nas suas múltiplas manifestações, sendo a expres·
são intelectual de um povo, não só reflete as idéias dominantes
em cada uma das fases de sua evolução histórica e na civilização
de cuja vida ele participa, como mergulha no domínio obscuro
c fecundo em que se elabora a consciência nacional" (2).
Sobre as influências européias na América, escreve SILVIO ROMERO:
"A literatura no Brasil, a literatura em toda a América, tem
sido um processo de adaptação de idéias européias às sociedades
do continente."

Teorias da História do Brasil


Enumera, depois, o ilustre crítico literário as principais teorias da
História do Brasil: de VON MARTIUS, que se coloca sob um ponto de vista
nacional e etnográfico; de H. T. BRUKLE, que divide as civilizações em
primitivas e modernas, sob a ação das leis físicas e geográficas, predomi-
nando naquelas a ação das leis físicas sobre o homem; e nestas sendo o
inverso a verdade; a de TEóFILO BRAGA, no qual o lirismo da Europa
meridional teve uma origem comum, que conseqüentemente se expandiu às
Américas; e a de OLIVEIRA MARTINS, que enxerga o interesse dramãtico
e filosófico da História nacional, na luta entre jesuítas e os indios, de
um lado, e os colonos e portugueses e negros, de outro. A teoria do positi-
vismo religioso, para o autor da História da Literatura Brasileira, citando
TEIXEIRA MENDES, é mais genérica que compreensiva.
(1) SILVIO ROMERO - HI.16rl. da Clvlllzaçlo Br"llllr••
(2) FERNANDO DE AZEVEDO - HI.16rl. d. Cullura Irlllleir••

106 R. Inf. legill. 8t'Gsílio o. 19 n. 74 obr.lJun. 1982


UA .Nação brasileira - escreve - é uma pátria colonial,
pertencente ao grupo das pátrias ocidentais. Era necessário, para
as pátrias ocidentais, que o português vencesse no Brasil o ho-
landês protestante; e que o inglês derrotasse nos Estados Unidos
o francês católico" (3).
Estas palavras do ilustre literato poderão justificar, plenamente, as
tendências da cultura nacional em sua formação e lenta evolução e encon-
tram apoio nas afirmativas dos sociólogos, dentre os quais destacamos
GILBERTO FREYRE (4):
irA sociologia histórica procura realizar pesquisas e interpre.
tações próprias das chamadas fontes históricas, vendo nelas ele-
mentos para uma história, tanto quanto possível natural, de ins-
tituições, grupos e pessoas sociais, ou antes, de instituição, grupo
ou pessoa situada em determinado espaço ou época social e estu-
dada nas suas relações de origem e desenvolvimento com outras
instituições, grupos ou ·pessoas sociais."
E noutra parte escreve o sociólogo pernambucano:
"Considerando de modo geral, a formação brasileira tem sido,
na verdade, como já salientamos nas primeiras páginas deste en-
saio (Casa Grande e Senzala), um processo de equilíbrio de an-
tagonismos. Antagonismos de economia e de cultura."
E muitos outros sociólogos e historiadores apontam e comentam os
antagonismos existentes. Todos são unânimes na afirmação da existência
de uma influência decisiva da economia e das ordens religiosas, particular-
mente da jesuíta, no setor da instrução pública:
UForam os jesuítas que criaram" - afirmava JOSÉ VERtSSIMO, no
livro do Centen6rio - "e, por dois séculos quase exclusivamente, man-
tiveram o ensino público no Brasil" (5).

As primeiras escolas no Brasil


A fundação das cidades de Salvador, na Bahia e de São Paulo, no
Planalto de Piratininga, confunde·se com a fundação das !?rimeiras escolas
no Brasil, os "colégios" dos padres jesuítas. Data da fundação de São
Paulo, portanto, da fundação de sua primeira escola ou colégio, levantado
juntamente com a capela, no mesmo local, onde durante muito tempo
esteve instalada a Secretaria da Educação, hoje reconstruída com a "Casa
de Anchieta". Construções rústicas, de pau a pique, cobertas de palha,
de acordo com os recursos da época. O quanto bastava para a missão
pacificadora dos jesuítas, de catequese e de instrução, que não precisa
de armas nem de fortalezas. Ao contrário dos colonizadores espanhol e
português que manejavam o bacamarte e a espada, escravizando o gentio
para o seu serviço, os padres jesuftas manejavam as duas poderosas armas

(3) SilVIO ROMERD - ob. clt.


(4) GilBERTO FREYRE - SOCIGlogl••
(5) JOS~ VERISSIMO In S~RGIO BUARQUE DE HOLANDA - A tpoc. CGlonr.I, IV, vol, I.

R.lnf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 107


que fizeram a grandeza do Brasil· - a cruz e o livro. Ao lado da capela,
a escola, secular atitude que serve para contestar todos aqueles que afir-
mam ser a igreja inimiga da cultura. Primeiro a escola primária, para
ensinar a ler, escrever e contar. A escola secundãria, a seguir, suprindo,
neste particular, ainda hoje, as deficiências do ensino oficial. E, como
coroamento deste plano nacional de educação, a escola superior, a Uni-
versidade.
A vinda dos padres jesuitas, em 1549, não só marca o início da His-
tória da educação no Brasil, mas inaugura a primeira fase, a mais longa
dessa história, e, certamente, a mais importante pelo vulto da obra realiza-
da e, sobretudo, pelas conseqüências que dela resultaram para a nossa
cultura e civilização. Por isso mesmo, corno bem acentua FERNANDO
AZEVEDO:
"Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, o que sofreu o Brasil
não foi uma reforma do ensino, mas a destruição pura e simples
de todo o sistema colonial de ensino jesuftico" (lI).
Disso resultou que, entre a expulsão dos jesuítas em 1759 e a trans-
plantação da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, abriu-se um parên.
tese de quase meio século, um largo hiato que se caracteriza pela desorga·
nização e decadência do ensino colonial e que vai se refletir profundamente
no período imperial.
Com a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, novo
surto de progresso atingiu o Brasil, inclusive no setor do ensino, sendo
criadas várias "cadeiras" e "aulas" notadamente na Bahia e no Rio de
Janeiro. Ao tempo da chegada de D. João, o Rio de Janeiro possuía duas
únicas escolas públicas. Nessa mesma época, a capitania de São Paulo, s6
na sua capital e nas poucas vilas mais importantes, mantinha escolas pri-
márias. Treze ao todo, no ano de 1821.
Proclamada a independência e fundado o Império, em 1822, a vitória
dos liberais sobre os conservadores e os debates travados na Constituinte
de 1823 anunciavam uma orientação nova na política educacional, sob o
impulso das idéias da Revolução Francesa, de que estavam imbuidos os
liberais.
Fundamentos culturais
Cremos ter demonstrado, com base em estudiosos do assunto, os
fundamentos culturais que influenciaram a feitura das Constituições brasi-
leiras, particularmente a primeira. As demais Constituições sofreram, do
mesmo modo, influências politicas, econômicas e culturais que marcam
a evolução histórica do País. Comecemos, assim, por assinalar alguns as-
pectos fundamentais da Constituição de 1824, para bem compreendermos
todo o seu contexto, e, particularmente, aquilo que se refere especifica-
mente ao tema que vimos desenvolvendo. Há que assinalar, de antemão,
a influência pessoal dos governantes ao tempo da elaboração das diversas

(6) fERNANDO DE AZEVEDO - 00. cíl.

108 R. Inf. legisl. Bra.i1ia a. 19 n. 74 abr.JJun. 1982


Constituições brasileiras, de Pedro I a Getúlio Vargas, e deste a Castello
Branco. Encontramos o pensamento político de Vargas em nada menos do
que em três textos constitucionais, o de 1934, de 1937 e de 1946.
Na fala do Trono, inaugural da Assembléia Constituinte, de 3 de maio
de 1823, D. Pedro I assim jã se referia à instrução pública:
"Tenho promovido os estudos públicos quanto é possível,
porém necessita-se para isto de uma legislação particular" (').
Realmente, a legislação particular supriu as deficiências da Constitui-
ção de 1824, no que se refere à instrução pública, sugerindo reformas
que foram feitas no decorrer do período imperial.
MARTIM FRANCISCO RIBEIRO DE ANDRADA, Deputado por São
Paulo, apresentou à Assembléia Constituinte de 1823 memorável parecer
sobre a reforma da instrução pública, propondo, entre outras coisas:
" .. , sou de parecer, na Capitania, se devem estabelecer 19 escolas
regidas cada uma por seu mestre, a saber: 10 na comarca de
São Paulo, 5 na comarca de Paranaguá e 4 na de Itu ... " (8).
E no projeto de Constituição apresentado na sessão da Assembléia
Constituinte em 19 de setembro de 1823, assinado por José Bonifácio,
Antônio Carlos, Araújo Lima e outros, a medida era adotada no seu
artigo 250, dispondo sobre a "criação de escolas primãrias em cada termo,
ginãsios em cada comarca e universidades nos mais apropriados locais".
Nenhum esforço real, entretanto, se verificou para a criação de uma uni-
versidade; apenas os dois cursos jurídicos de 11 de agosto de 1827 foram
instalados em Olinda e São Paulo.

A educação de O. Pedro
Exerceu acentuada importância na elaboração da primeira Constituição
do Brasil o Príncipe D. Pedro. Vejamos alguns traços característicos de
sua educação e que, por certo, tiveram influência na sua conduta e ação,
como homem politico, formador de um império. Aos cinco anos teve como
primeiro mestre ou professor de letras o Dr. J. Monteiro da Rocha,
que pertencera à Companhia dos Jesuítas, "mestre dotado de grande
cultura, de conhecimentos cientificos, de honra, prudência e desinteres-
se" (&). Entre outros primeiros mestres de D. Pedro figurou frei Antônio
de N. S. de Salete, franciscano, que o iniciara no latim, lingua por inter·
médio da qual, muito criança embora, se tornou familiar de Virgílio. E
o cônego Renato Briset, emigrado francês, que lhe ensinara a própria lín-
gua. Durante a viagem de D. Pedro para o Brasil. na agitada transferência
da corte de D. João VI, a sua leitura predileta foi Eneida. E, para chamar
a atenção do menino D. Pedro sobre o maior poema da literatura latina
e estimular-lhe o gosto pelas letras clássicas, estaria a seu lado, durante

(1) OTAVIO TARQUIN10 DE SOUZA """' A VIu-de "D. Pedro I.


(8) AIIala da A_IIIb16la eon.-llullâ da 1121.
111 OTAVIO TARQUINIO DE SOUZA - ob. cU.

R. '1". "leg'-l. Brasília a. 19 n. 74 abr./j.n. "1982


toda a viagem. e depois, um homem a quem se afeiçoaria e jamais deixaria
de respeitar: frei Antônio de Arrabadia. Não tendo podido o Dr. J.
Monteiro da Rocha acompanhar ao Brasil o real discípulo, o lugar do antigo
jesuita passou a ser exercido de preferência pelo franciscano, mais tarde
feito bispo titular de Anemória e coadjutor do capelão-mor, que era o bispo
do Rio de Janeiro. Frei Antônio de Arrabadia, que viajou de Portugal em
companhia de D. Pedro, aparece sempre como mestre e confessor do
príncipe.
Outro que igualmente figura como incumbido de ensinar-lhe o francês
é o cônego René Pierre Boiset, mais tarde professor de seus filhos. Para
a língua inglesa dois são os mestres apontados: o padre Guilherme Paulo
Tilbury e o padre irlandês João Joiyce, que exerceu o lugar de professor
régio de língua inglesa no Rio, tendo tido Evaristo da Veiga entre seus
discípulos.
Esta rápida síntese, tomada ao renomado biógrafo de D. Pedro I -
OTAVIO TARQUlNIO DE SOUZA - Bastaria para mostrar a formação
cultural de D. Pedro, que "sem uma educação sistematizada, obedecendo
a planos de antemão preparados, ia, contudo, recebendo de maneira pouco
formal, uma educação que talvez não fosse a pior. Educação em que a
paralisia de certos freios tradicionais facilitaria ao futuro monarca o ajus-
tamento às exigências do momento em que foi chamado a atuar" (lO).
A sua educação, portanto, e nem poderia ser de outro modo, era
européia, jesuítica.

Idéias políticas
D. Pedro estava imbuido das idéias liberais da época, aqui defendidas
por alguns brasileiros.
Quando repercutiu no Brasil a Revolução Constitucionalista do Porto.
de 1820, as tendências reformistas de D. Pedro se alvoroçaram e por amor
das novas idéias ia o príncipe encabeçar a emancipação do Brasil e tor-
nar-se seu imperador constitucional. Mais tarde, dez anos depois, aban-
donaria essas novas idéias por amor ao poder, desenvolvendo uma política
unipessoal e absolutista, copiando, até certo ponto, os monarcas europeus,
buscando em Carlos X, da França, um modelo que lhe seria fatal nos idos
de abril de 1831. A partir da restauração da monarquia francesa, em 1814,
os reis europeus encontravam-se diante de um verdadeiro dilema: ou
conceder um estatuto constitucional ou recebê-lo imposto pela nação, como
fizeram os constitucionalistas do Porto. E isto deve ter influenciado, e
muito, o ânimo de D. Pedro I, tão logo assumiu a responsabilidade de
dirigir o País: antes de receber uma Constituição, imposta pela nação,
D. Pedro I imporia a esta a Constituição de 1824, de cuja autoria participou
diretamente, tendo, inclusive, elaborado um anteprojeto - modelo d~ libe-
ralismo. cognome que se veio juntar à Constituição de 1824.

(tO) OTÁVIO TARQU1NIO DE SOUZA - ob. cito

110 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 obr./lun. 1982


CONSTITmçAO DE 1824
Preâmbulo
Dom Pedro I, por graça de Deus e unânime aclamação dos
povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil:
Fazemos saber a todos os nossos súditos que, tendo·nos re-
querido os povos deste Império, juntos em câmaras, que nós
quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o projeto da Cons-
tituição, que havíamos oferecido a suas observações para serem
depois presentes à nova Assembléia Constituinte, mostrando o
grande desejo que tinham de que ele se observasse já como
Constituição do Império, por lhes merecer a mais plena aprova-
ção, e dele esperarem a sua individual e geral felicidade política;
nós juramos o sobredito projeto para o observarmos, e fazermos
observar como Constituição, que dora em diante fica sendo, deste
Império; a qual é do teor seguinte:

EM NOME DA SANTlSSIMA TRINDADE


TITULO I
Do Império do Brasil, seu Território, Governo, Dinastia, e
Religião.
Art. 1Q - O Império do Brasil é a associação política de
todos os cidadãos brasileiros. Eles formam uma nação livre e
independente que não admite com qualquer outro laço algum
de união ou federação, que se oponha a sua independência.

Art. 59 - A religião católica apostólica romana continuará


a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão per-
mitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.

TITULO VIII
Art. 179 - A inviolabilidade dos direitos civis e politicos
dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segu-
rança individual e a· propriedade, é garantida pela Constituição
do Império, pela maneira seguinte:

Alínea 32 - A instrução primária é gratuita a todos os


cidadãos.
Alinea 33 - Colégios e universidades, onde serão ensina-
dos os elementos das ciências, belas-artes e artes.
Em outubro de 1828, determina-se a criação, em cada cidade e vila
do Império, de Câmaras Municipais, dispondo o seu art. 70 que "terão

R. Inf.legill. Brolília o. 19 n. 74 obro/jun. 1982 111


inspeção sobre as escolas de primeiras letras, e educação, e destino dos
órfãos pobres, em cujo número entram os expostos (... )" (11).

Lei de 12 de agosto de 1834


Ato Adicional à Constituição do Império:
"Art. 10 - Compete às Assembléias Legislativas provinciais
legislar:

Alínea 2 - Sobre a instrução pública e estabelecimentos


próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de me-
dicina, os cursos jurídicos, academias atualmente existentes, e
outros quaisquer estabelecimentos de instrução que, para o futuro,
forem criados por lei geral."

A educaçio no regime imperial


Documento que assinala a transição de uma corte à outra, a primeira
Constituição do Brasil sofreu as tendências políticas, sociais e religiosas da
corte portuguesa, transplantadas para o Brasil e aqui vigorantes até e
depois da Independência. Não poderia ser de outro modo, bastando assi-
nalar que o proclamador da Independência do Brasil era português e os
seus principais assessores possuiam cultura portuguesa, vale dizer euro·
péia. Dai a sãbia advertência de AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO:
"Os acontecimentos ligados à nossa História constitucional e
ocorridos no Brasil antes da partida de D. João VI para a Euro-
pa - ou seja, quando o Brasil era ainda sede da Monarquia lusi-
tana - não podem ser bem compreendidos se não os filiarmos
aos seus antecedentes peninsulares imediatos" (12).
o fato politico, que foi a Independência do Brasil, não implicou, evi-
dentemente, na "independência" da cultura brasileira. E foi com base na
cultura européia, na cultura dos homens de então, e que possuíam o poder
político, que se elaborou a primeira Constituição brasileira. E dentre estes,
sabemos, exerceu acentuada importância na elaboração da Constituição o
Principe D. Pedro, imbuído das idéias liberais da época, aqui defendidas
por alguns brasileiros ilustres.
"Sensível às idéias do tempo, apesar da sua deficiente for-
mação intelectual, o principe, logo que investido da Regência,
expediu leis bem condizentes com as mais novas e vitoriosas
teses do constitucionalismo liberal" (l3),

(11) lei de 1.° de outubro de 1828.


(12) AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO - Ai Fonnaçh ConIIIIIIoIoflII til....... 1.
(13) AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO - ob. clt.

112 R. Inf. lellill. Bralília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Começou D. Pedro o seu governo com uma proclamação na qual resu-
mia o programa das reformas que pretendia executar. Seu propósito era
antecipar "todos 05 beneficios da Constituição que chegasse de Portugal",
Cuidaria da educação pública, da agricultura, do comércio. Como príncipe
regente convocou a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, procurando
antecipar-se às Cortes de Lisboa e, proclamada a Independência, convocou
uma Assembléia Constituinte, instalada a 2 de maio de 1823 e dissolvida a
12 de novembro de 1823, seguindo-se a designação de um Conselho de
Estado, para a elaboração da Constituição. Dentro de 20 dias estava pronto
o projeto elaborado pelo Conselho de Estado, com a assistência direta de
D. Pedro. O redator principal do projeto, mas não o único, foi o conselheiro
José Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas. O juramento da
Constituição foi feito em ato solene, como requeria a importância do acon-
tecimento, no dia 25 de março de 1824, na Catedral do Rio, depois de missa
pontificaI.
No preâmbulo da Constituição de 1824 se identifica a sua filosofia polí-
tico-religiosa:
"Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus e unânime aclama·
ção dos povos, .. "
A influência da religião católica está consagrada no art. 59:
"A religião católica apostólica romana continuará a ser are·
ligião do Império."
Poucos são os dispositivos que tratam da instrução pública e isto por-
que a tradição e o costume eram de que à família cabia a educação dos
filhos, e a Igreja, velando pela conservação da familia, cuidava, especial-
mente, da educação da criança e da juventude, como vinham fazendo as or-
dens religiosas. Entretanto, o art. 179, que trata das garantias constitucio-
nais dos cidadãos, estabelece em duas alíneas que:
32 - "A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos."
33 - dispõe sobre a criação de "colégios e universidades on-
de serão ensinados os elementos das ciências, belas-artes e artes" .
Há, no primeiro caso, um interesse da Coroa pelo ensino primário gra-
tuito e, no segundo, pela criação de colégios e universidades para o ensino
de ciências e belas-artes. Não se cogitou, entretanto, da formação de pes-
soal docente, o que seria objeto de lei de 15 de outubro de 1827, a primeira
lei sobre a instrução pública no Brasil, a qual dispunha que:
"em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos haverá esco-
las de primeiras letras que forem necessárias".
Muito interessante o que dispunha essa lei sobre os professores:
"os presidentes de província, em conselho, taxarão interinamente
os ordenados dos professores regulando-os de 200$000 a 500$000
anuais, em atenção às circunstâncias de população e carestia dos
lugares e o farão presente à Assembléia Geral para aprovação. Os

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 113


professores que não tiverem a necessária instrução deste ensino
irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas
escolas das capitais" (14).
Uma lei de 1Q de outubro de 1828, em seu artigo 70, dispunha sobre "a
inspeção nas escolas de primeiras letras e educação".
Até aqui a supervisão nacional das questões de ensino, dentro do
espírito unitário da Constituição de 1824. O Ato Adicional, lei de 12 de
agosto de 1834, que reformou a Constituição, seguiu doutrina oposta, con-
ferindo aos Estados poderes de legislar sobre educação e ensino. ~ o que
dispunha o:
Art. 10: (Alinea 2) - "Compete às assembléias provinciais le-
gislar sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a pro-
movê-la (... )" .
Era a delegação completa às províncias para legislar sobre matéria de
ensino, passando-se da centralização para a descentralização administrativa,
defendida por uns e condenada por outros. A descentralização em matéria
de legislação educacional não melhorou a situação educacional do Brasil
pois que as províncias, carentes de recursos, não podiam criar, instalar e
prover as escolas com pessoal docente habilitado. Muitos são os relatórios
que se referem à carência de escolas e à ineficiência dos métodos de ensino
em todo o período imperial, enumerando: a) a falta de idoneidade do pes-
soal responsável; b) o profundo descontentamento em que viviam os mes-
tres, por falta de recompensa pecuniária suficiente e da quase nenhuma
proteção que dos poderes públicos recebiam; c) a deficiência de métodos
convenientes; d) a falta de edifícios apropriados.
Encontramos, nos faustos da história da educação no Brasil, a partir
de 1850, numerosos planos, reformas, sugestões e informações sobre a
instrução pública, destacando-se dentre todos o memorável parecer de RUI
BARBOSA, apresentado em 1882. O parecer de RUI reflete, com a menta-
lidade da época, a força poderosa dos seus ideais e do seu talento. E acen-
tuava o contraste entre a altura do ideal e a realidade do meio que o rejei-
tava. O parecer de RUI inspirou a última fala do Trono de 3 de maio de
1889, da última sessão do Parlamento do 29 Império, quando solicitava o
Imperador D. Pedro II a criação de um Ministério destinado aos negócios da
Instrução Pública.
"As aspirações largas e audaciosas daquele projeto de 1882 e o da úl-
tima Fala do Trono em 1889 não tinham para apoiá-las nem uma mentali-
dade nova, nem uma realidade social, maleável e plástica, nem um surto
econômico que favorecesse profundas transformações no sistema educa-
tivo" - assinala com agudeza de espírito o professor FERNANDO DE
AZEVEDO, de quem tantas vezes nos socorremos na elaboração desta mono-
grafia.

(14) Inspirado nessa Lei de 15 de outubro de 1827, foi Inslltuldo pelo Governo de 810 Paulo o "Dia do
Professor" •

114 R. Inf. legisl. B,asília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Em 1860, o inspetor-geral de Instrução Pública, do Municipio da Corte,
insistia em relatório:
"1: necessário multiplicar o número de professores na razão
direta da população e da extensão do território. Infelizmente as
circunstâncias do nosso País complicam e dificultam o remédio a
este mal.
A posição dos professores, que depois da reforma de 1854
o governo procurara melhorar, acha·se nas mesmas condições,
senão piores, pela depreciação da moeda e conseqüente carestia
dos gêneros alimentícios e de primeira necessidade. O mestre-es-
cola não tem o necessário para uma parca subsistência. Como,
pois, esperar que se apresentem, em número suficiente, pessoas
para o exercício do magistério? Assim temos visto abrirem-se con·
cursos para cadeiras vagas, e concorrerem dois ou três individuos,
que não reúnem as habilitações necessárias, sendo forçoso reno-
var-se o concurso para obter, às vezes, igual resultado" (15).
Até parece que estamos lendo um relatório atualíssimo. Faltam escolas
e faltam professores. E estes, como sempre e até hoje, mal remunerados.
Lembra o inspetor, em seu longo e minucioso relatório, a necessidade da
criação de um estabelecimento destinado a formar professores para o exer-
cicio do magistério público e insiste na criação de escolas normais. Motivos
apontados em diversos relatórios anteriores impediram a criação de escolas
de segundo grau. Os mesmos motivos - carência de professores, má
remuneração, falta de prédios - prevalecem ainda em 1861, 1862 e 1870.
Todos os relatórios ministeriais referiam-se à falta de escolas secundárias
e de escolas normais. O único estabelecimento de ensino secundário oficial,
sob a jurisdição da União, era o Colégio Pedro lI, tal como continua sendo
até hoje ... Nenhum colégio, e nenhuma universidade, como queria a Cons-
tituição de 1824, que continuava sendo "letra morta" neste particular.
O pessoal docente, para o ensino primário, quase todo constituído de
mestres improvisados, sem nenhuma preparação, não melhora sensivelmente
com as primeiras escolas normais que se criaram no Pais: Niterói, em 1835;
Bahia, em 1836; Ceará, em 1845; São Paulo, em 1846; Rio de Janeiro, em
1880. Todas com organização rudimentar, como a de São Paulo, que se
fundou em 1846, com um só professor (Dr. Manoel José Cbaves): desapare-
ceu em 1867, reabriu-se em 1874 com novo plano; fechou-se novamente
em 1877, para restabelecer-se, afinal, em 1880, com um curso completo
de 3 anos. Este "abre·fecha" bem revela as dificuldades de então, para
a sobrevivência das escolas.
As dificuldades de hoje são de outra ordem, mas continuam impe-
dindo a expansão do ensino no Pais, não obstante todas as leis, decretos e
Constituições.
Apenas para efeito de comparação e segundo uma estimativa da época,
no ano de 1867, a situação da escola primãrra no Brasil era a seguinte:
- matrícula nas escolas primãrias de todas as provincias: 107.500
alunos;
(15) PRIMITIVO MOACYR - A In.lruçAo e • RIpObIIaa - MES.

R. Inf. legid. Bra.íliCl CI. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 115


- população livre: 8.830.000 habitantes;
- indivíduos em condições de receber instrução: 1.200.000.
O antigo edifício·sede do Instituto "Caetano de Campos" completarã
88 anos de existência no mês de agosto deste ano, inaugurado que foi a
2 de agosto de 1894, quatro anos depois do lançamento da pedra fun-
damental, que se deu a 17 de outubro de 1890. Deve-se sua construção a
Prudente de Morais, com a colaboração do Prof. Caetano de Campos.
A solenidade inaugural da sede da então Escola Normal foi presidida
pelo Dr. Bernardino de Campos, já então presidente do Estado, estando
presente também o Dr. Cesário Mota Júnior, titular da pasta do Interior,
à qual estavam afetos, na época, os assuntos do ensino. Era diretor do
estabelecimento o Prof. Gabriel Prestes.
O atual Instituto de Educação Caetano de Campos foi criado como
Escola Normal de São Paulo em 16 de março de 1846, mediante lei sano
cionada pelo presidente da provincia, Manoel da Fonseca Lima e Silva, e
cujo artigo 1fi estabelecia:
"O governo estabelecerá na capital da província uma escola
normal de instrução primária, em que se ensinarão as seguintes
matérias em um curso de dois anos: lógica, gramática geral e da
língua nacional, teoria e prática de aritmética até proporções in-
clusive, noções gerais de geometria prática e suas aplicações
usuais, caligrafia, princípios e doutrina da religião do Estado, os
diversos métodos e processos de ensino, sua aplicação e vantagem
compatível."
Dizia ainda a lei que, "não achando o governo pessoa competente·
mente habilitada para o ensino da Escola Normal, poderá engajar quem
vá instruir-se na Europa nas matérias exigidas" (l6). Entretanto, o governo
achou o professor: durante 22 anos, como mestre único, o Dr. Manoel José
Chaves lecionou todas as matérias do curso!
A escola funcionou, sucessivamente, na Igreja da Sé (1846/1867), na
Faculdade de Direito, na Travessa do Tesouro e na Rua Boa Morte. Foi
denominada Instituto de Educação em 1933, sendo diretor o Prof. Fernando
de Azevedo, funcionou com esse titulo até 1938. De 1938 a 1939, foi seu
diretor o Prof. Antônio Firmino de Proença, denominando-se então Escola
Normal Modelo. A atual denominação data de 1946.
Um cálculo acima da estimativa mostra que apenas 120.000 pessoas
recebiam instrução primária, ou seja, a décima parte da população em
idade escolar, ou 1 por 80 habitantes.
Não estamos fazendo, e nem este é o nosso objetivo nos estreitos limi·
tes desta monografia, uma análise completa da Constituição de 1824. Mas,

(16) PoU.ntelll - publicação comemoraUva do 10 centenllrio da instituição do ensino normal em 510


Paulo. Editada sob 09 auaprcloa do Govamo de SAo Paulo.

116 R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


convém citar aqui, como conclusão, a autorizada opinião de AFONSO ARI-
NOS DE MELO FRANCO:
"Independentemente de qualquer anãlise critica, uma obser-
vação preliminar deve ser tranqüilamente feita a propósito da
Constituição de 1824: ela foi um grande Código político, dos
maiores produzidos pela ciência e experiência políticas do sé-
culo XIX. Não precisamos, a rigor, demonstrar juridicamente esta
opinião, porque ela se impõe, desde logo, como fato histórico. Com
todos os seus defeitos e insuficiências, o Império é uma pãgina
de glória na vida do Brasil e a sua Constituição, flexível, mode·
rada, liberal e prudente, praticada por uma série de verdadeiros
estadistas, se inscreve entre os mais felizes documentos políticos
do século passado" (17).

CONSTITUIÇõES REPUBLICANAS
Os historiadores assinalam com freqüência, e insistência, os fatores
predominantes na implantação da República: a transformação da economia
agrãría, em conseqüência da abolição dos escravos; o aparecimento do
exército com força política influente; a aspiração federalista; certas in·
fluências culturais como o positivismo; o isolamento em que se achava o
Brasil como única monarquia continental; a questão sucessória do Império.
A evolução dos acontecimentos decorrentes destes variados fatores e outros
de importância secundária levou o País à Revolução de 15 de novembro
de 1889, abolindo a Monarquia e instaurando a República. Como decoro
rência lógica do advento da República, a substituição da Constituição Mo·
nárquica de 1824 pela Constituição Republicana de 1891, primeira de uma
série que ainda procura a sua consolidação definitiva ou, pelo menos, maior
estabilidade.

CONSTITUIÇAO DE 1891
Preimbulo
Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em
Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e de·
mocrãtico, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte

CONSTITUlÇAO DA REPúBUCA DOS ESTADOS UNIDOS


DO BRASIL
TITULO I
Da Organização Federal
Art. 1Q - A Nação brasileira adota como forma de go·
verno, sob o regime representativo, a República Federativa,

(17) AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO - ob. clt

R. Il'If. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 117


proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se. por união
perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados
Unidos do Brasil.

CAPITULO IV
Das atribuições do Congresso
Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional:

Alínea 30 - legislar sobre a organização municipal do


Distrito Federal, bem como sobre a polícia. o ensino superior
e os demais serviços que na capital forem reservados para o
governo da União;

Art. 35 - Incumbe. outrossim, ao Congresso. mas não pri-


vativamente:

Alínea 2 - animar no País o desenvolvimento das letras,


artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria
e o comércio, sem privilégios que tolham a ação dos governos
locais;
Alínea 3 - criar instituições de ensino superior e secun-
dário nos Estados;
Alínea 4 - prover a instrução secundária no Distrito
Federal.

SECÇÃO II
Declaração de Direitos
Art. 72 . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . .. . . ..
~ ~

§ 69 - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos


públicos.
REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1926
Preâmbulo
Nós, os Presidentes e Secretários do Senado e da Câmara
dos Deputados, em obediência ao disposto no § 39 do art. 90
da Constituição Federal, fazemos saber. à Nação, e às autori·
dades a quem compete sua fiel observância, que, depois de in-
corporada ao seu texto, como parte integrante dele, a proposta
de emendas aprovada pelas duas Câmaras do Congresso Nacional
nas sessões ordinárias de 1925 e 1926, e já publicada, a Cons-

118 R. I"f. le~Í$I. Bresílio a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


tituição da República dos Estados Unidos do Brasil, conservados
os preâmbulos e as assinaturas dos constituintes de 1891, é a
seguinte:

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS


DO BRASIL

(Não houve nenhuma inovação quanto à educação e o ensino.


Do mesmo modo que na Constituição de 1891, não hã nenhuma
palavra sobre o ensino primário).

Agnosticismo
O agnosticismo da Constituição de 1891 e que também marca a sua
filosofia política está contido no seu preâmbulo:
"Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em
Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e demo·
crático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte
Constituição:"
Com a proclamação da República, a instrução pública no Pais tomou
um novo surto em conseqüência da nova orientação política que, para se
firmar sobre os escombros da monarquia, propõe reformas mais avançadas.
O Brasil possuía, nessa época, apenas 14.000.000 de habitantes, população
dispersa e rarefeita. A abolição da escravatura, um ano antes da república,
e o ensaio vitorioso da colonização estrangeira em São Paulo criam novas
condições de vida. Desenvolve-se o ensino particular, quer o primário, quer
o secundário. Sob o influxo das novas idéias, federalista e republicana, a
Constituição de 24 de fevereiro de 1891 institui a forma federativa e
retoma a tradição do Império que vinha do ato adicional de 1934, transfe.-
rindo a instrução primária aos Estados, aos quais ficou assegurada a orga-
nização do ensino em geral e reservando-se, mas não privativamente, a
atribuição de criar instituições de ensino secundário e superior nos Estados
e prover a instrução no Distrito Federal. A instrução secundária e superior
na capital do Pais foi posta diretamente sob a jurisdição do governo central
que transferiu à órbita dos poderes municipais do Distrito Federal o ensino
primário e profissional que estava, quanto ao Município Neutro, a cargo
da União, no Império (18).
"Em vez de arredar os obstáculos à organização de um sis-
tema geral, a República não fez mais do que agravã·los, repartindo
entre a União e os Estados as atribuições na esfera da educação
e renunciando ao dever que lhe indicavam as instituições demo·
cráticas de dar impulso e traçar diretrizes à política da educação
nacional" - critica FERNANDO DE AZEVEDO (19) e sugere me·

(111) Lei de 20 de novembro de 1892


(19) FERNANDO DE AZEVEDO - ob. cito

R. I"f. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 119


didas que depois são defendidas e aproveitadas pelos constituintes
que elaboraram a Constituição de 1946.
O período de 67 anos que vai da fundação do Império à implantação
da República trouxe, necessariamente, profundas modificações sociais e
econômicas, repercutindo, evidentemente, na situação política e educacio·
nal do País. Iniciou-se um primeiro surto industrial no último quartel do
século XIX; com novo ciclo agrícola pela extinção do elemento servil e
pela imigração de trabalhadores agrícolas o trabalho livre é organizado.
E tudo isto vai se refletir na Constituição de 1891.

o americanismo da Constituição de 1891


Muito se tem falado e escrito sobre o americanismo da Constituição
de 1891, que teria tomado como "modelo" a Constituição norte-americana
de 1787. Não há desdouro nenhum nisso. E é natural que assim fosse.
Acentua AFONSO ARINOS que a influência da Constituição dos Estados
Unidos já se manifestava mesmo no ato adicional de 1834, sob o ponto
de vista político, quando se institui a Regência Única, com soma de poderes
semelhantes ao de Presidente da República. E estávamos, ainda, em pleno
regime monárquico. Influência mas não cópia ou imitação. Há uma dis.
tância muito grande entre a Constituição americana, um modelo de síntese,
que deixa toda "regulamentação" para as leis ordinárias, e a minuciosa
Constituição brasileira de 1891, onde se esmerou RUI BARBOSA, o seu prin-
cipal redator e o melhor conhecedor da ciência jurídica no se~ tempo e
que não se conformaria em apegar apenas ao sistema americano. RUI, como
a documentação histórica confirma, examinou vários textos constitucionais,
antes de elaborar a Constituição.
Adotou-se a forma federativa, influência americana, conforme estava
expresso no Decreto n9 1, de 15 de novembro de 1889, o Ato Institucional
da República. E, dentro desse princípio, se elaborou a nova Constituição.
E não só os Estados Unidos, a França revolucionária, também, inspirou, e
muito, os constituintes brasileiros de 1891.
Além do problema da Federação, poucos foram os assuntos funda·
mentais que mereceram debates ou emendas importantes na Assembléia
Constituinte. Um deles, naturalmente, foi o sistema de governo adotado,
ou seja, o presidencialismo. A presença constante da organização político·
jurídica dos Estados Unidos no pensamento dos principais responsáveis
pela Constituição de 1891 se manifesta com mais vigor através das duas
teses básicas do federalismo e do presidencialismo.
O problema se restringe, portanto, quanto à forma jurídico-política no
novo Estado. Convém não esquecer que os princípios básicos da democracia
estão contidos na Constituição americana, como, por exemplo, quando se
refere à ampla "liberdade de religião, da palavra, de imprensa e direito
de petição", princípios estes que não podem ou não devem ser omitidos
em qualquer estatuto político, constitucional, e que também estão expressos
em vários dispositivos da Constituição de 1891. Seria conveniente eliminá·
los, para se evitar a "cópia"?

120 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


A Comissão dos Cinco
Antes mesmo da convocação da Constituinte, a 3 de dezembro de 1889,
o governo provis6rio constituiu comissão, composta de cinco membros}
especialmente incumbida de elaborar anteprojeto da Constituição. Foram
elaborados, então, três projetos, revistos e refundidos por RUI BARBOSA,
Ministro da Fazenda do Governo. A 22 de junho de 1890, concluída a revi·
são} dá-se a assinatura solene, pelo governo provisório, do projeto de Cons-
tituição. No mesmo dia foi convocada a reunião da Assembléia Constituinte,
encarregada de votá-Ia. A instalação solene da Assembléia verificou-se no
dia 15 de novembro de 1890, 1Q aniversário da República. Não havia a
menor dúvida de que o texto governamental seria o adotado com pequenas
modificações por uma assembléia onde o governo possuía maioria. Eram
os constituintes homens muito diversos por sua formação, predominando
entre eles os representantes das profissões liberais e militares. Havia de
tudo: republicanos radicais, positivistas, liberais, conservadores e até mo-
narquistas.
Descentral ização
Feitas estas rápidas considerações, verifiquemos os dispositivos cons-
titucionais referentes à educação e ensino, contidos na Constituição de
1891. Mantendo a orientação do Ato Adicional de 1834, a Constituição
de 1891 atribuiu aos Estados competência de legislar sobre o ensino, reser·
vando-se ao Congresso Nacional o direito de: Art. 34 - alínea 30: "legislar
sobre o ensino superior no Distrito Federal"; Art. 35 - alínea 2: "animar
no Pais o desenvolvimento das letras, artes e ciências"; alínea 3: "criar
instituições de ensino superior e secundário nos Estados"; alínea 4: "prover
a instrução secundária no Distrito Federal".
E, como corolário da separação da Igreja do Estado, rezava o § 6Q do
art. 72: "será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos".
Este dispositivo, estabelecendo o ensino laico, incentivou uma corrente
doutrinária no sentido de se eliminar, em definitivo, o ensino religioso
nas escolas e dando margem à séria polêmica sobre o assunto, que se
mantém até hoje, como teremos a oportunidade de nos referir. Refutando
a idéia de que a separação da Igreja do Estado tenha sido influenciada
pelo positivismo, escreve FERNANDO DE AZEVEDO: "O decreto que após
o 15 de Novembro separou a Igreja do Estado não teve origem, porém, no
desenvolvimento do positivismo sectário: foi antes uma vitória do movimento
laicista, com que se restaurou o princípio de neutralidade do Estado em
face do problema religioso" (20).

Separação d. Igrei- do Estado


Certo é que com a separação da Igreja do Estado e a laicização do
ensino administrado nos estabelecimentos públicos (art. 72, § 69) e, por·
tanto, o agnosticismo da Constituição Republicana, contido no seu preâm·
bulo, a política escolar da Igreja, que até então exercera quase o monopólio,
sofria os primeiros golpes resultantes das reformas educacionais do gover·
(20) FERNANDO DE AZEVEDO - ob. cU.

R. I_f. leGisI. 8ralilia a. 19 n. 14 abr./jlln. 1982 121


no provisório, sob a inspiração de Benjamim Constant. A reação contra
a ideologia do ensino leigo, consagrada pela Constituição de 91, tornou-se
vitoriosa 40 anos depois, quando a Constituição de 1934 restaurou o ensino
religioso nas escolas.
Verificou-se, em conseqüência dessa separação da Igreja do Estado,
um acentuado surto de desenvolvimento das escolas confessionais e que
iam ganhando prestígio na medida em que o Estado não dispunha de
recursos suficientes para instalar escolas públicas, principalmente no setor
do ensino secundário. Os católicos procuram conquistar o terreno perdido,
na área extra-oficial, encontrando aí a concorrência dos protestantes que,
igualmente, fundam e mantêm escolas.
E é sob a influência de ministros e educadores protestantes da América
do Norte, que se faz a reforma do ensino primário em São Paulo, de 1891
a 1895, introduzindo-se novas técnicas pedagógicas (Reforma Caetano de
Campos, Cesário Mota e Gabriel Prestes).
Sem indicar soluções para o grave problema do analfabetismo no
Brasil, a Constituição de 1891. entretanto, estabelece limites, quan-
do, pelo art. 70, exclui os analfabetos dos pleitos eleitorais. Indiretamen·
te, portanto, este dispositivo constitucional desperta o interesse pelo
ensino, pois ontem como hoje, muitos são os analfabetos que desejam
ocupar posições de destaque ou, pelo menos, de mando. Sabemos hoje
como os políticos demagogos exploram o problema do analfabetismo com
objetivos eleitorais e não será duvidoso que, se se tornar vitoriosa a cam-
panha pela extensão do voto aos analfabetos, em muito se arrefecerá esse
prurido educativo. Tratarão, então. os profissionais da política de encon-
trar meios de arregimentar os seus eleitores e, se necessário, mantê·los
na ignorância, para mais facilmente poder iludi-los.
Embora a arejada reforma Caetano de Campos, no setor do ensino
primário e normal, mantinham-se, em todo o País, as tradições do regime
imperial, em matéria de educação, sem nenhuma modificação de estrutura,
faltando, ainda, as universidades ou escolas para a formação de lentes e
pesquisadores, sendo maior a carência no setor do ensino secundário.
São poucos. como se vê, os dispositivos sobre educação e ensino, con·
tidos na Constituição de 1891, supridos por leis ordinárias que foram
promulgadas e reformas do ensino. A revisão constitucional de 1926, feita
mais no campo político, não trouxe nenhuma inovação.
Dir·se-ia, com base nestes poucos dispositivos, que a República me·
nosprezou o importante problema. Acontece, porém, que contingências po-
líticas e sociais obrigaram a Câmara a tomar medidas destinadas a "animar,
amparar e desenvolver o ensino". Daí as muitas reformas que vão de 1890
a 1930, cuja análise não nos compete fazer aqui, e que levou PRIMITIVO
MOACYR a afirmar:
"O Império caminhava de olhos vendados ao sabor das ciro
cunstâncias. Em 1891, coube à República a vez de regular os
destinos da instrução pública" (21).
(~1) PRIMITIVO MOACYR - ob. Cil.

122 R. Inf. legisl. Brosília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Esta tentativa de disciplinar e regular os destinos da instrução pública
no Brasil se acentua a partir de 1930 quando, depois da Revolução, se
cria o Ministério da Educação e Saúde, destinado a desempenhar papel
importante na História e no desenvolvimento da educação e ensino, con·
forme assinalaremos a seguir.

A REVOLUÇAO DE 1930
O movimento revolucionârio irrompido no Brasil a 3 de outubro de
1930, de norte a sul do País, liderado pelos Estados do Rio Grande do
Sul, Minas Gerais e Paraíba, assumiu caráter verdadeiramente nacional,
pôs por terra, em pouco menos de um mês, a Primeira República e marcou
uma etapa decisiva na evolução política do Brasil.
Dizia-se, então, que a Revolução de 30 era o ponto culminante de
um processo revolucionário assinalado pelas revoluções de 1922, 24 e 26.
Hoje, entretanto, em que pese às profundas modificações políticas e sociais
do Pais, decorrentes da Revolução de 1930, e a outros fatores correlatos,
ainda nos encontramos na crista desse movimento propulsor, com vistas
a novas modificações politicas e sociais, de modo a colocar o País em
consonância com o mundo moderno. Não nos compete, aqui, fazer a His-
tória da Revolução de 30, mas não nos furtamos à oportunidade de ressaltar
a sua importância, tendo-se em vista os seus ideais, as suas conquistas e
as inovações introduzidas nos quadros políticos nacionais. O voto secreto,
o voto feminino e o direito do trabalho são algumas dessas conquistas,
presentes nas Constituições que se seguiram.
No setor da educação foi bem pronunciada a ação da Revolução de
1930. Já na plataforma com que o candidato da Aliança Liberal, Sr. Getúlio
Vargas, se apresentou ao eleitorado brasileiro, lida na Esplanada do Castelo
do Rio de Janeiro, em 2 de janeiro de 1930, foi inscrito como programa
do candidato, que se tornaria, depois, o Chefe do Governo Provisório, o
seguinte:
"Tanto o ensino secundário quanto o superior reclamam
alterações que lhes arejem e atualizem os métodos e disciplinas.
Essa reforma é das que não comportam adiamento."
E, em manüesto à Nação, de 3-10-31, em que fazia o balanço do
primeiro aniversário do Governo Provisório, depois de verüicada a extensão
do problema, dizia o Chefe do Estado:
"Em matéria de educação nacional quase tudo está por fa·
zer-se. O ponto de partida é o ensino primário e, para ministrá-lo
com real aproveitamento, não adotamos ainda uma fórmula satis-
fatória. O Governo Provisório tem em alta conta o problema e
procura enfrentá·lo, dando unidade ao seu duplo aspecto: ensino
primário de letras e técnico-profissional. Seria, talvez, conveniente
interessar na sua solução, o Governo Federal, o Estado e o Muni·
cípio" (22).
(22) GETúliO VARGAS - A Nova Polftlca do .r."1

R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 14 abr./jun. 1982 123


Este trecho da fala governamental consubstancia todo um programa
de educação. Mostra-se o Chefe do Governo inteiramente preocupado com
o ensino primário e técnico-profissional, que vai ter prioridade. E, na busca
de uma solução para o importante problema, sugere a conjugação de
esforços da União, do Estado e do Município, empregando, com a prudência
que sempre caracterizou o seu governo, a condicional: "seria, talvez, con·
veniente ... " Princípio que foi adotado pelas Constituições de 1934 e 1946.
Criou-se o Ministério da Educação e Saúde, posteriormente desdo·
brado, e elaborou-se uma ampla e radical reforma do ensino, a chamada
REFORMA FRANCISCO CAMPOS, primeiro titular do Ministério da Educa·
ção, que, pelo Decreto nlj 19.851, de 11 de abril de 1931, reformou o ensino
superior, organizando o sistema universitário, e pelo Decreto nQ 19.890,
de 18 de abril de 1931, reformou o ensino secundãrio, "imprimindo-lhe a
melhor organização que já teve entre nós", segundo FERNANDO DE
AZEVEDO.
Reformas de ensino
Quanto ao ensino primãrio, reformas parciais vinham sendo feitas, com
alguns resultados. Sampaio Dória, em São Paulo, no ano de 1920; Lourenço
Filho, no Ceará, em 1924; Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, em
1928; Anísio Teixeira, na Bahia, em 1932 e depois no Distrito Federal,
em 1935. Mas foi a Reforma Lourenço Filho, em São Paulo, em 1930-1931,
primeiro ano do governo revolucionário, uma das iniciativas mais impor~
tantes, integradas no movimento renovador da educação, trazido pela Re-
volução de 1930. E o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, dentre
os quais se destacam como líderes os reformadores acima citados, e lançado
em 1932, propõe as diretrizes de uma política escolar inspirada em novos
ideais pedagógicos e sociais e planejada para uma civilização urbana e
industrial.
Na mensagem lida perante a Assembléia Nacional Constituinte, no ato
de sua instalação, em 15 de novembro de 1933, disse o Chefe do Governo
Provisório, dentre outras coisas:
"Todas as grandes nações, assim merecidamente considera·
das, atingiram nível superior de progresso, pela educação do povo.
Refiro·me à educação, no significado amplo e social do vocâbulo:
física e moral, eugênica e cívica, industrial e agrícola, tendo por
base a instrução primária de letras e a técnico-profissional" (23).
Vê-se a preocupação pela "educação do povo", educação sem privilé-
gio, como defendia Anísio Teixeira, e que tanto agradou a FERNANDO
DE AZEVEDO: "A Revolução de 1930 foi, nesse processo revolucionãrio,
uma das fases culminantes e decisivas, contribuindo poderosamente para
uma "democratização mais profunda". Vê-se, ainda, a preocupação do
Chefe do Governo pelo ensino técnico-profissional, o industrial e agrícola,
em decorrência do desenvolvimento das atividades, anunciando a intenção
de se instalar a universidade técnica. Não era preocupação do Governo

(23) GETúLIO VARGAS - Anil. di A... mbléll Con.UMnte di 193~/1934. Mensagem do Chele do Goverl'o
Provisório.

124 R. Inf. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr./....n. 1982


Provisório a instalação de outros tipos de universidades ou escolas supe-
riores. A educação física e cívica iriam ter ênfase no Estado Novo. E mais
adiante:
"A verdade é dura, mas deve ser dita: Nunca, no Brasil, a
educação nacional foi encarada de frente, sistematizada, erigida,
como deve ser, em legitimo caso de salvação pública" (U).
Verdade que ainda hoje continua sendo pregada pelos educadores,
sem resultados positivos. !: preciso que se faça uma cruzada nacional em
defesa da educação e ensino, em favor da sua difusão. Referindo-se aos
recursos indispensáveis para organizar e manter o aparelho educativo, de
acordo com as possibilidades financeiras do País, acentua, mais uma vez,
o Chefe da Nação:
"Nesse terreno, mais do que em qualquer outro, convém
desenvolver o espírito de cooperação, congregando os esforços
da União, dos Estados e do Município" (23).
Decreto regulando os poderes e atribuições dos interventores federais
jã determinava que os Estados empregassem 10%, no mínimo, das respec~
tivas rendas na instrução pública e estabelecia a faculdade de se exigirem
até 15% das receitas municipais para aplicação nos serviços de segurança,
saúde e instrução pública. E concluía o Chefe do Governo:
"Concertada a cooperação dos poderes públicos federais, es-
taduais e municipais, restaria, apenas, atribuir à União o direito
de organizar e superintender, fiscalizando-os, todos os serviços
de educação nacional" (23).
O princípio contido neste trecho da mensagem presidencial seria
objeto de consideração especial por parte dos constituintes de 34, sendo
o mesmo consagrado na Constituição desse ano. E, como último apelo aos
constituintes, disse o presidente Getúlio Vargas:
"O problema da educação do povo continua a ser ainda e
sempre o nosso magno problema. No momento em que se vai
organizar a vida política do País, torna-se de evidente oportuni-
dade lembrá-lo e trazê-lo à consideração da Assembléia Nacional
Constituinte que, certamente, procurará dar-lhe solução completa
e definitiva" (23).
Abria-se, assim, uma grande oportunidade para a elaboração das dir.
tri.s e bases da educação nacional. Na atmosfera social que envolveu
os trabalhos da Assembléia Constituinte, de composição heterogênea, os
constituintes encontraram apoio, em matéria de política educacional, nas
forças que vinham preparando o caminho para a reconstrução educacional
do Brasil. Em 1932, na V Conferência Nacional de Educação, realizada
em Niterói, foram aprovados um anteprojeto do capítulo "Da Educação
Nacional" para a futura Constituição brasileira e o esboço de Plano Na-
cional de Educação, em 1933. E em memorial apresentado à Comissão
Constituinte, os católicos apresentaram suas reivindicações. Recebiam,
assim, os constituintes, de interessados e técnicos experimentados, colabora-
ção efetiva e necessária para o encaminhamento do problema.
(24) ANISIO TEIXEIRA - A Educaçlo do 6 PrlYII6gID.

R. hd. legid. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982 125


CONSTITUIÇÃO DE 1934
Preâmbulo
Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa
confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Consti-
tuinte para organizar um regime democrático, que assegure à
Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e
econômico, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBIJCA DOS ESTADOS UNIDOS
DO BRASIL
TITULO I
Da Organização Federal
Art. 1Q - A Nação brasileira, constituída pela união per-
pétua e indissolúvel dos Estados, do Distrito Thderal e dos
Territórios em Estados Unidos do Brasil, mantém como forma
de governo, sob o regime representativo, a República federativa
proclamada em 15 de novembro de 1889.

Art. 59 - Compete privativamente à União:

XIV - traçar as diretrizes da educação nacional;

Ar!. 10 - Compete concorrentemente à União e aos Es-


tados:

VI - difundir a instrução pública em todos os seus graus;

TITULO IV
Da Ordem Econômica e Social

ArL 139 - Toda empresa industrial ou agrícola, fora dos


centros escolares, e onde trabalharem mais de cinqüenta pessoas,
perfazendo estas e os seus filhos, pelo menos, dez analfabetos,
será obrigada a lhes proporcionar ensino primário gratuito.

TITULO V
Da Família, da Educação e da Cultura

CAPITULO II
Da Educação e da Cultura
Art. 148 - Cabe à União, aos Estados e aos Municlpios
favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes,

126 R. Inf. legis!. Brasília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


das letras e da cultura em geral, proteger os objetivos de inte-
resse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar
assistência ao trabalhador intelectual.
Art. 149 - A educação é direito de todos e deve ser mi-
nistrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a
estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados
no Pais, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral
e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a
consciência da solidariedade humana.
Art. 150 - Compete à União:
a) fixar o plano nacional de educação, compreensivo do
ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializa-
dos; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo
o território do País;
b) determinar as condições de reconhecimento oficial dos
estabelecimentos de ensino secundário e complementar
deste e dos institutos de ensino superior, exercendo so-
bre eles a necessária fiscalização;
c) organizar e manter, nos Territórios, sistemas educativos
apropriados aos mesmos;
d) manter no Distrito Federal ensino secundário e comple-
mentar deste, superior e universitário;
e) exercer ação supletiva, onde se faça necessária por de-
ficiência de iniciativa ou de recursos e estimular a obra
educativa em todo o País, por meio de estudos, inquéri-
tos, demonstrações e subvenções.
Parágrafo único - O plano nacional de educação constan-
te de lei federal, nos termos dos arts. 5Q, XIV, e 39, nQ 8, letras a
e e, só se poderá renovar em prazos determinados, e obedecerá
às seguintes normas:
a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obri-
gatória extensivo aos adultos;
b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao
primário, a fim de o tornar mais acessível;
c) liberdade de ensino em todos os graus e ramos, obser-
vadas as prescrições da legislação federal e da estadual;
d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no
idioma pátrio, salvo o de línguas estrangeiras;
e) limitação da matrícula à capacidade didática do estabe-
lecimento e seleção por meio de provas de inteligência
e aproveitamento, ou por processos objetivos apropria-
dos à finalidade do curso;

R. Inl. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 127


f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de
ensino somente quando assegurarem a seus professores
a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remunera-
ção condigna.
Art. 151 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal or-
ganizar e manter sistemas educativos nos territórios respectivos,
respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União.
Art. 152 - Compete precipuamente ao Conselho Nacional
de Educação, organizado na forma da lei, elaborar o plano na-
cional de educação para ser aprovado pelo Poder Legislativo e
sugerir ao Governo as medidas que julgar necessárias para a
melhor solução dos problemas educativos bem como a distribui·
ção adequada dos fundos especiais.
Parágrafo único - Os Estados e o Distrito Federal, na
forma das leis respectivas e para o exercício da sua competência
na matéria, estabelecerão Conselhos de Educação com funções
similares às do Conselho Nacional de Educação e departamentos
autônomos de administração do ensino.
Art. 153 - O ensino religioso será de freqüência facultati·
va e ministrado de acordo com os principios da confissão
religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis e
constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias,
secundárias, profissionais e normais.
Art. 154 - Os estabelecimentos particulares de educação
gratuita primária ou profissional, oficialmente considerados idô-
neos, serão isentos de qualquer tributo.
Art. 155 - É garantida a liberdade de cátedra.
Art. 156 - A União e os Municípios aplicarão nunca me·
nos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca
menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na
manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos.
Parágrafo único - Para a realização do ensino nas zonas
rurais, a União reservará. no mínimo, vinte por cento das cotas
destinadas à educação no respectivo orçamento anual.
Art. 157 - A União, os Estados e o Distrito Federal reser·
varão uma parte dos seus patrimônios territoriais para a forma·
ção dos respectivos fundos de educação.
§ 1Q - As sobras das dotações orçamentárias acrescidas
das doações, percentagens sobre o produto de vendas de terras
públicas, taxas especiais e outros recursos financeiros, consti-
tuirão, na União, nos Estados e nos Municípios, esses fundos
especiais, que serão aplicados exclusivamente em obras educa·
tivas, determinadas em lei.

128 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982


§ 2Q - Parte dos mesmos fundos se aplicará em auxilias
a alunos necessitados, mediante fornecimento gratuito de mate-
rial escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e
médica, e para vilegiaturas.
Art. 158 - ~ vedada a dispensa do concurso de titulas e
provas no provimento dos cargos do magistério oficial, bem
como, em qualquer curso, a de provas escolares de habilitação,
determinadas em lei ou regulamento.
§ 1Q - Podem, todavia, ser contratados, por tempo certo,
professores de nomeada, nacionais ou estrangeiros.
§ 2l;l - Aos professores nomeados por concurso para os
institutos oficiais cabem as garantias de vitaliciedade e de ina·
movibilidade nos cargos, sem prejuizo do disposto no Título VII.
Em casos de extinção da cadeira, será a professor aproveitado
na regência de outra, em que se mostre habilitado.
Foi sob a pressão daquelas influências que trabalharam os constituintes
e elaboraram o capitulo "Da Educação e Cultura", da Constituição de 16 de
;ulho de 1934, capitulo esse, pela primeira vez, introduzido numa Cons-
tituição brasileira e destinado a ter larga repercussão, pelos seus objetivos,
pelos seus fins e pelos seus resultados. Ali se encontram os pontos fun·
damentais das reivindicações católicas, com o restabelecimento do ensino
religioso nas escolas e diversas aspirações mínimas por que se vinham
batendo os pioneiros da educação renovada. Refletindo essa nova orientação
politica, religiosa e filosófica, o preãmbulo da nova Constituição mudou
também para a seguinte fórmula:
"Nós, os repreoontantes do povo brasileiro, pondo nossa
confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituin-
te para organizar um regime democrático, que assegure à Nação
a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico,
decretamos e promulgamos a seguinte Constituição:"
E essa Constituição estabelecia no seu art. 5l;l, item XIV: "Compete à
União traçar as diretrizes da educação nacional."
Era a consagração, em termos constitucionais, de toda uma política
educacional a ser elaborada e cumprida. E, no art. 10, item VI: "Compete
à União e aos Estados difundir a instrução pública em todos os seus graus."
Dedicou a Constituição de 1934 todo um titulo, o V, à "Famflia, Educa-
ção e Cultura", (artigos 144 a 158).
O tratamento especial dado ao tema revela a importância que se quis
dar ao mesmo. O art. 149 reza que "a educação é direito de todos e deve
ser ministrada pela familia e pelos poderes públicos".
O que equivale a reconhecer a conjugação de esforços entre o poder
público e a iniciativa privada. E, sendo a educação o direito de todos, a
acabar com os privilégios, problema que tem sido objeto de muitos debates.

R. Inf........ lralUia CI. 19 •. 74 olH./jun. 1982 129


o art. 150 define a competência dos Estados, do Município e da União,
cabendo a esta "fixar o plano nacional de educação".
Verifique-se a preocupação em que se encontravam os constituintes
de se fixar o plano nacional de educação, competindo aos Estados e ao
Distrito Federal "organizar e manter sistemas educativos nos territórios
respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União".

Tratamento constitucional
A partir de então, o problema da educação, no Brasil, passa a ter um
tratamento constitucional. A Constituição de 1934 tornou livre o ensino
religioso; insistiu na gratuidade do ensino primário; garantiu a liberdade
de cátedra; estabeleceu percentagens a serem gastas pela União e os
Municípios (10% de sua renda) e os Estados e o Distrito Federal (20%)
para o desenvolvimento dos sistemas educativos. Para a execução do pro-
grama delineado neste capítulo da Constituição seriam instalados os
Conselhos Federal e Estaduais de Educação.
Antes da Revolução paulista de 1932, o Governo Provisório já havia
expedido decreto (o de nQ 21.404, de 14 de maio de 1932), fixando a
data de 3 de maio do ano seguinte para a eleição dos deputados à Assem-
bléia Constituinte. E, para que não se perdesse o pensamento do governo
revolucionário, foi, pelo mesmo decreto, criada uma comissão especial
incumbida de elaborar o anteprojeto da futura Constituição. Como método
de trabalho, os membros da comissão tomaram por modelo a Constituição
de 1891, no plano nacional, e a alemã, de 1919, e a da Espanha, de 1931,
no plano internacional, contendo idéias e doutrinas posteriores ao Tratado
de Versalhes. Instalada a 15 de novembro de 1933, a Assembléia Cons-
tituinte, depois de aprovado o seu regimento interno, organizou e instalou
as suas comissões técnicas. A Comissão Constitucional tomou como base
o projeto do Governo e apresentou substitutivo que foi aprovado pelo
plenário a 13 de março, seguindo-se, depois, acaloradas discussões sobre as
emendas apresentadas, chegando-se, finalmente, à sua redação final e pro-
mulgação a 13 de julho de 1934.
A Constituição de 1934 teve pouca duração, devido ao golpe de Estado
de 1937, que a revogou, sendo outorgada a Constituição de 1937. Marcou,
entretanto, o grande avanço e as vitórias conquistadas pelo povo brasileiro
no campo educacional, aceitando e oficializando princípios que seriam de-
fendidos e introduzidos no texto constitucional de 1946. Resultando de
uma revolução vitoriosa, a Constituição de 1934 teria, forçosamente, de
agasalhar no seu texto as conquistas politicas e sociais dessa Revolução, e
mais pronunciadamente, o pensamento politico do seu chefe, conforme já
salientamos.
De outra parte, os acontecimentos políticos na Europa, envolvendo
importantes nações - Rússia, Alemanha, Itália - repercutiram intensa-
mente em todo o mundo, precisamente na época em que o Brasil se pre-
parava para elaborar a Constituição de 1934, que em tais condições não
poderia deixar de espelhar, no seu texto, o entrechoque das forças que,

130 R. Inf. legi.l. Bro.mo o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


como sempre, vinha ecoar-se no Brasil. E foi o que aconteceu, a seguir,
com a Constituição, ou Carta Constitucional, resultante do Golpe de Estado
de 10 de novembro de 1937.

A CARTA CONSTITUCIONAL DE 1937


Preâmbulo
O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil,
Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz
política e social, profundamente perturbada por conhecidos
fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dis-
sídios partidários, que uma notória propaganda demagógica pro-
cura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos
ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, are·
solver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funes-
ta iminência da guerra civil;
Atendendo ao estado de apreensão criado no Pais pela infil-
tração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais
profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente;
Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispu-
nha o Estado de meios normais de preservação e de defesa da
paz, da segurança e do bem-estar do povo;
Com o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações
da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas
diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez
com que se vem processando a decomposição das nossas insti-
tuições civis e políticas:
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua
honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime
de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança,
ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte
Constituição, que se cumprirâ desde hoje em todo o Pais:
CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL
Da Organização Nacional
Art. 1Q - O Brasil é uma República. O poder político
emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse do
seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua
prosperidade.

Art. 15 - Compete privativamente à União:

IX - fixar as bases e determinar os quadros da educação


nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer a formação
física, intelectual e moral da infância e da juventude;
.oo .. oo • - .I .

R. IDf. "'111. Bra.ília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 131


Art. 16 - Compete privativamente à União o poder de le-
gislar sobre as seguintes matérias:

XXIV - diretrizes de educação nacional;

Art. 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever


e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse
dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para
facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da
educação particular.

Art. 127 - A infância e a juventude devem ser objeto de


cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará
todas as medidas destinadas a assegurar·lhes condições fisicas
e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas
faculdades.
O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da
juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda
e educação, e cria ao Estado o dever de provê-Ias do conforto
e dos cuidados indispensáveis à preservação fisica e moral.
Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxilio e
proteção do Estado para a subsistência e educação de sua prole.
Oa Educação • da Cultura
Art. 128 - A arte, a ciência e o ensino são livres à inicia-
tiva individual e à de associações ou pessoas coletivas públicas
e particulares.
É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para
o estimulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo
ou fundando instituições artísticas, cientificas e de ensino.
Art. 129 - À infância e à juventude, a que faltarem os
recursos necessários à educação em instituições particulares, é
dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela
fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus
graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às
suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. O ensino
pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favo-
recidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado.
Cumpre·lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de
ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados,
dos Municípios e dos individuos ou associações particulares e
profissionais.
É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar,
na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas
aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará

132 R. Inf. 11191,1. Bro.íUCI CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982


o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado,
sobre essas escolas, bem como os auxilias, facilidades e subsidias
a lhes serem concedidos pelo poder público.
Art. 130 - O ensino primário é obrigatório e gratuito. A
gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos me-
nos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da ma-
trícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente
não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição m~
dica e mensal para a caixa escolar.
Art. 131 - A educação física, o ensino cívico e o de tra-
balhos manuais serão obrigatórios em todas as escolas primárias,
normais e secundárias, não podendo nenhuma escola de qual-
quer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que
satisfaça aquela exigência.
Art. 182 - O Estado fundará instituições ou dará o seu
auxilio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas
e outras por fim organizar para a juventude períodos de tra-
balho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a
disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepa-
rá-la ao cumprimento dos seus deveres para a economia e a
defesa da Nação.
Art. 133 - O ensino religioso poderá ser contemplado com
matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e se-
cundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação
dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por
parte dos alunos.
Art. 134 - Os monumentos históricos, artísticos e natu-
rais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dota-
dos pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais
da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra
eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o
patrimônio nacional.

o novo sistema poIitico


A Constituição de 1934, promulgada pela Assembléia Constituinte,
convocada em 1933, instituiu, de fato, medidas tendentes a assegurar uma
politica nacional definida, em matéria de educação. Atribuiu à União, como
vimos, a competência privativa de traçar as Diretrizes de Educação Nacional
(art. SQ, item XIV) e de fixar o Plano Nacional de Educação (art. 150).
Aos Estados competia, nos termos do art. 151, "organizar e manter os seus
sistemas educativos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União". E,
com relação às dotações orçamentárias destinadas ao ensino, determinava
em seu art. 156, a aplicação de nunca menos de 10% por parte dos Muni-
cípios e nunca menos de 20% por parte dos Estados, da renda resultante
dos impostos na "manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos".

R. Inf. fe.itI. B...tíliGl CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 133


Com o Golpe de Estado de 1937, mudou-se o sistema polftico, mudou-se
a Constituição, mas não mudou a orientação delineada para o Plano Nacio-
nal de Educação, porque não mudou o governo. Mantiveram-se na Cons-
tituição de 1937 os principios consagrados na Constituição de 1934:
"~ de competência da União: "fixar as bases e determinar
os quadros da educação nacional. traçando as diretrizes a que
deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância
e da juventude" (art. 15, item IX).
E ainda no art. 16, item XXIV: "Compete privativamente à União, o
poder de legislar sobre diretrizes de educação nacional."
Manteve-se, ainda, na Constituição de 1937, o capítulo "Da Educação
e da Cultura", abrangendo os artigos 128 a 134. Enquanto durou o Estado
Novo pôde o Governo Federal legislar como quis, usando da atribuição que
lhe conferia o art. 180 da sua Constituição:
"Enquanto não se reunir o Parlamento Nacional, o Presidente
da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as
matérias da competência legislativa da União."
E assim se fez. Foi a época das "leis orgânicas" do ensino secundário,
comercial e industrial, com uma tumultuada inflação de portarias ministe·
riais e das suas respectivas diretorias que figuram em volumosa documen-
tação.
Ensino secund6rio e técnico
Cuidando especüicamente do ensino secundário e técnico profissional,
é interessante observar que a Constituição de 1937 não fala na formação
de professores especializados para esses ramos de ensino e nem menciona
o ensino universitário. Se a Constituição de 1934 diz, no seu art. 150, item d,
que é da competência da União "manter no Distrito Federal o ensino se-
cundário e complementar deste, o superior e universitário", estas duas
últimas palavras não aparecem na Constituição de 1937. Esta deu ênfase
à educação física e ao ensino cívico, como convinha a um Estado forte e
nacionalista (art. 131). O caráter centralizador da política nacional no
Estado Novo, em conseqüência, foi, talvez, um dos seus maiores defeitos.
num país da extensão territorial como o nosso. Esse erro veio a ser corri·
gido pela Constituição de 1946 e, particularmente, pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional. em 1961.
Em seu art. 125, estabelecia a Constituição de 1937: "A educação inte-
gral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado
não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsi-
diária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da
educação particular".
Este dispositivo constitucional mantido em seu espírito, na Constituição
de 1946, foi o mais discutido em sua aplicação quando se tratou de elaborar
a lei fixando as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em consonância
com o art. 135, estabelecia o art. 128 a liberdade do ensino: "a arte, a

134 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


ciência, o ensino são livres à iniciativa individual e à de associações ou
pessoas coletivas, públicas e particulares".
Indiscutivelmente a Constituição de 1937 concedeu acentuado privilé-
gio ao ensino particular, ficando o Estado com função suplementar. t o
que se depreende, por exemplo, do texto do art. 129: "À infância e à juven~
tude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições
particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar,
pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a
possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, apti-
dões e tendências vocacionais."
Mas a Constituição de 1937 não indicava, como na de 1934, quais os
recursos necessários postos em disponibilidade para que os respectivos
governos pudessem dar cumprimento a esse dispositivo, contrariando, as-
sim, o pensamento por várias vezes manifestado pelo Chefe do Governo,
quando preconizava uma efetiva colaboração da União, dos Estados e dos
Municípios, para a solução dos problemas da educação e do ensino.

Ensino profissional
Querendo dar ênfase ao ensino profissional, o art. 129 manteve um
preconceito que tem dificultado a difusão do ensino técnico profissional e
industrial no País: "o ensino pré-vocacional e profissional destinado às
c1àSses menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do
Estado" .
Esta expressão "destinado às classes menos favorecidas" oficializou o
preconceito, contra o qual inutilmente têm lutado as autoridades do ensino,
para convencer aos estudantes de que o ensino técnico-profissional se desti-
na à classe média, quando o texto constitucional diz que se destina aos
pobres ... Daí a relutância dos estudantes, provenientes das classes médias
brasileiras, em procurar a escola técnica industrial, que fica aberta à matrí-
cula de alunos provenientes das camadas mais baixas da população. Regra
geral, os alunos provenientes das classes médias e que se matriculam nas
escolas técnicas, profissionais e industriais, são de origem estrangeira, em
cujos países não há esse preconceito. :f: o caso, por exemplo, e bastante
significativo, de São Paulo, onde os japoneses preenchem, praticamente,
todas as vagas.
Este preconceito é reforçado pelo mesmo artigo que, visando preparar
profissionais especializados para a indÚstria, diz que: "é dever das indústrias
e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas
de aprendizagem destinadas aos filhos de seus operários ou de seus as~
dados" .
O grifo é nosso e esta é a razão, dentre outras, por que tem sido tão
grande no espírito da nossa gente a oposição às escolas industriais, quando
tanto carecemos de mão·de-obra especializada para o nosso parque indus·
trial.
Dispunha a Constituição, pelo seu art. 130: "ensino primãrio, obrigató-
rio e gratuito", mas, sem destinar verbas especiais para isso, por parte dos

R. Inf. legisl. BrClsíliCl CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 135


poderes públicos, deixava a cargo da solidariedade dos mais ricos, para
com os mais necessitados, o dever de contribuir para a "caixa escolar" .. ,
costume que, se até aqui tem constituído uma grande ajuda, não basta,
evidentemente, para resolver tão magno problema. Desse modo, o direito e
a gratuidade do ensino, de grande parcela da população escolar, ficaria na
dependência da generosidade dos mais ricos. E, como sabemos, nem sempre
os ricos são tão generosos assim.
O objetivo de preparar a juventude, segundo moldes fascistas ou nazis-
tas, estava perfeitamente claro no art. 132: "promover-lhe a disciplina moral
e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento dos seus
deveres para com a economia e a defesa da Nação",

Ensino religioso
O ensino religioso foi mantido (art. 133), facultativamente, nas escolas
primárias, normais e secundârias.
Embora seu espírito acentuadamente autoritário; embora não tenha
dado ao ensino público a preferência que deve ter sobre o particular; apesar
de todas as críticas que são feitas à sua rígida centralização, acham alguns
educadores, dentre os quais destacamos o prof. FERNANDO DE AZEVEDO,
que "a Constituição de 1937 reafírmou, levando mais longe do que a de 1934,
as finalidades e as bases democráticas da educação nacional, rompendo com
as tradições intelectuais e acadêmicas do País. Erigindo à categoria de pri-
meíro dever do Estado o ensino técnico-profissional, pode-se considerar a
mais democrática e revolucionária, não só nos objetivos que teve em vista,
de educar-se a mocidade pelo trabalho, como também nos meios que adotou
para atingi-los, o que constituiu transformação radical na estrutura do
ensino profissional" .
Nada mais natural quando o Pais adentrava um novo ciclo econômico,
exigindo formação profissional adequada de sua juventude, mas já acen-
tuada a resistência, que ainda hoje persiste no Brasil, a esse tipo de ensino.
E nem se cogitou do ensino agrícola, tão necessârio também, à economia
nacional.
Car'ter nacionalista
Destacando o caráter nacional da política educacional e o dever do
Estado para com os problemas da educação, assinala, ainda, aquele educa-
dor que: "as duas Constituições, a de 1934 e a de 1937, se orientaram numa
direção única ao decidirem romper sem reserva contra o abstencionismo
tradicional da União, em matéria de política escolar, atribuindo-se a compe-
tência privativa de fixar as bases, determinar os quadros e traçar as diretri-
zes da educação nacional", Essa política se firma e se consolida na Consti·
tuição de 1946 e ganha projeção com a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção, promulgada em 1961.
Nos dois textos constitucionais, de 34 e 37, encontraram agasalho as
conquistas, experiências, que marcaram o progresso humano no campo da
educação, na primeira metade do séc. XX, Uma variedade de pontos de
vista, por vezes concordantes ou contraditórios, contribuiu para a elabora-

136 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 14 abr./jun. 1982


ção da Constituição de 1934. Para a de 1937, além da vontade pessoal do
Chefe do Governo, muito contribuiu a versatilidade e capacidade de seu
principal redator, o jurista mineiro FRANCISCO DE CAMPOS, autor da
reforma do ensino, depois da Revolução de 1930.
O caráter personalista da Constituição de 1937, aliás, está contido no
seu longo preâmbulo que começa assim: "O Presidente da República dos
Estados Unidos do Brasil, atendendo às legitimas aspirações do povo brasi-
leiro ... "
A CONSTITUIÇÃO DE 1946
Chegamos, finalmente, à penúltima das Constituições brasileiras.
O preâmbulo da Constituição de 1946 é um modelo de sintese:
"Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a
proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um
regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte Cons-
tituição dos Estados Unidos do Brasil:"
Os constituintes, reconhecendo-se representantes do povo, em nome do
qual falariam, invocam a proteção de Deus, para a organização de um regi-
me democrático. O preâmbulo, por si só, afasta vãrios principios consubs-
tanciados na Constituição de 1937.
CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL
TITULO I
Da Organização Federal
Ar!. 19 - Os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regi-
me representativo, a Federação e a República. Todo poder ema-
na do povo e em seu nome será exercido.
§ 1Q - A União compreende, além dos Estados, o Distrito
Federal e os Territórios.
§ 29 - O Distrito Federal é a Capital da União.

Art. 59 - Compete à União:

xv - legislar sobre:
dI diretrizes e bases da educação nacional;
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Breve recapitulação
A nossa História constitucional, como se pode concluir pelo que já
ficou exposto, divide-se em várias fases: da primeira, monárquica, resultou
a Constituição de 1824, caracterizada por uma estrutura centralizada, ate-

R. Inl. 1.,i.J. anll.ma a. 19 11. 74 abr./jllll. 1982 1.17


nuada pelo Ato Adicional de 1834. O Poder Moderador e o mecanismo polí-
tico parlamentar só foram plenamente desenvolvidos no segundo Império,
dadas as características pessoais, o temperamento e a formação de D. Pe·
dro 11.
A segunda fase começou com a l.a Constituição Republicana de 1891,
mas nesse período - que vai de 1891 a 1966 - foram promulgadas ou
outorgadas quatro constituições, marcando, cada uma, distinta etapa evo-
lutiva da História da República. Assim tivemos, em vigor, de 1891 a 1930, a
Constituição promulgada pela Assembléia Constituinte que se reuniu de
1890 a 1891, cujas características eram um regime de liberdade, descentra-
lização e autonomia política e administrativa dos Estados, mas desfigurada
e violada na prática do sistema representativo, pela falta de educação poli-
tica, expressa na fraude eleitoral, deturpando, muitas vezes, a vontade po-
pular. Foi reformada ou "revista" em 1926, para "suprimir obstáculos opos-
tos ao progresso do Brasil", segundo a mensagem presidencial enviada ao
Congresso pelo Presidente Hernardes, mas tendo em vista, principalmente,
reforçar o Poder Executivo.
A terceira fase é marcada pela Constituição de 1934, resultante da
Revolução de 1930, que trouxe, com a plataforma da Aliança Liberal, um
programa de renovação política, do qual resultaram o voto secreto, a legis-
lação do trabalho, o voto feminino e um maior interesse pela causa da edu-
cação, conforme ficou consignada no seu texto. Nesse período de curta
duração, foi feita uma experiência de representação classista no Congresso,
sem resultados positivos. Termina com o Golpe de Estado de 10 de novem-
bro de 1937.
Com o Golpe de Estado de 1937, desfechado pelo Sr. Getúlio Vargas,
com o apoio das Forças Armadas, foi outorgada a Carta Constitucional no
mesmo dia e ano (10 de novembro de 1937), em que dissolveu o Congresso
e suspendeu os partidos políticos. Entra o País em recesso constitucional e
legislativo, expedindo o Governo sucessivos decretos-leis e atos institucio-
nais que reformavam ou regulamentavam dispositivos constitucionais. A
Carta de 1937, que deveria ser submetida à aprovação do povo por um ple-
biscito nacional foi reformada 17 vezes. Situação semelhante à atual, quando
o Chefe de Estado, resultante da Revolução de 31 de março de 1964, dispõe
do poder de legislar, embora a permanência e funcionamento do Congresso...
A Carta Constitucional de 1937 persistiu, apesar de haver suspenso o
curso de nossa formação democrática, até 1945, quando novo golpe de
estado derruba o Chefe do Governo. Durante a sua vigência, o que talvez
explica a sua longa duração, o mundo se achava envolvido na 2. 8 Guerra
Mundial, da qual participou também o Brasil. Foi um hiato, portanto, na
história constitucional brasileira, e, como tal, deve ser considerado, pois
que o País, nesse período de 37 a 45, que se convencionou chamar de Esta-
do Novo, esteve, realmente, sob regime ditatorial, autoritârio, sendo a
Carta um mero instrumento de sustentação das forças dominantes no
poder.
A quarta fase se inicia com a Constituição promulgada em 18 de setem-
bro de 1946, por uma Assembléia Nacional Constituinte, especialmente

138 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./lun. 1982


convocada pelo Presidente José Linhares, logo após a queda do governo
Getúlio Vargas. Esta fase foi praticamente interrompida com a Revolução
de 31 de Março, abrindo-se um novo hiato.
A Constituição de 1946 seguiu o modelo das Constituições de após-
guerra, notadamente o da Constituição alemã de 1919, na qual, aliás, já
se havia inspirado a Constituição de 1934, como assinala AFONSO ARINOS
DE MELO FRANCO:
"Ficou resolvido que se tomaria por base dos trabalhos o
texto da Constituição de 1934, visto que a Assembléia Constituinte
de 1946 foi a única das quatro, do mesmo gênero, existentes na
História do Brasil, que não recebeu um anteprojeto que servisse de
ponto de partida dos seus estudos."
A falta de um anteprojeto, "oficial", para discussão, evidencia o es-
crúpulo do governo de então, desejoso de afastar qualquer tendência inter-
vencionista que limitasse a independência do Legislativo. Entretanto, res-
saltando a influência do Chefe do Governo, no sistema presidencial, acres-
centa AFONSO ARINOS:
"No governo presidencial, da soma de poderes e influências
que se concentra nas mãos do Presidente da República, a prática
constitucional espelha em grande parte a personalidade do primei-
ro magistrado da Nação" (25).

Centralização e d~ntralização

No plano educacional, por exemplo, objeto do nosso modesto trabalho,


o que se destaca, entre a Constituição outorgada em 1824 e a Constituição
promulgada em 1946, é o seu antagonismo quanto à centralização e à des-
centralização administrativa, como acentua o professor FERNANDO DE
AZEVEDO:
"A descentralização do ensino fundamental, instituída pelo
Ato Adicional e mantida pela República, quanto ao ensino primá-
rio, atingindo um dos pontos essenciais da estrutura do sistema
escolar, não permitiu, durante um século, edliicar, sobre a base
sólida e larga da educação comum, a superestrutura do ensino su-
perior, geral ou profissional, nem reduzir a distância intelectual
entre as camadas sociais inferiores e as elites do País. O ensino
público estava condenado a não ter organização, quebradas como
foram as suas articulações e paralisado o centro diretor nacional,
donde se deviam propagar instituições escolares dos vários graus,
uma política de educação, e a que competia coordenar, num siste·
ma, as forças e instituições civilizadoras, esparsas pelo território
nacional. A Constituição reformada de 1824 estabelecia, em con-
seqüência, o fracionamento do ensino e a dualidade de sistemas:
o federal eos provinciais. Aquele e estes forçosamente mutilados e
incompletos" (26).

(25) AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO - ob. cito


(26) FERNANDO DE AZEVEDO - ob. clt.
R. Inf. 18gl,l. 8rC1sílla a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 139
Mas essa descentralização, como se pode verificar, à luz dos documen·
tos e dos relatórios dos "inspetores escolares't, referia-se, especialmente, ao
ensino primário, que estava condenado a não ter organização, pois que,
conforme já assinalamos, em matéria de ensino secundário e superior, os
debates na Constituinte pareciam marcar uma reviravolta na polftica edu·
cacional de D. João VI: em vez de projetos sobre escolas especiais, espe·
cialmente técnico-profissionais, surgem indicações e propostas sobre o ensi·
no universitário, dentre estas a do Visconde de São Leopoldo (Fernando Pio
nheiro), de 14 de junho, que propõe a criação, quanto antes, "de uma uni-
versidade pelo menos" em São Paulo. Em conseqüência, a profissionalização
do ensino superior, inaugurada por D. João VI e a fragmentação do ensino
consagrado pelo Ato Adicional, deviam marcar tão profundamente, através
de mais de um século, a fisionomia característica de nossa educação e todas
as tentativas para alterar o curso de sua evolução. E disso resulta uma das
maiores conseqüências verificadas a longo prazo e objeto de grandes deba-
tes: o impulso dado ao ensino superior profissional e ao regime da descen-
tralização instituída pelo Ato Adicional, foi o extraordinário desenvolvi·
mento do ensino secundário particular em quase todas as províncias, em
virtude da insuficiência dos recursos orçamentários dos poderes públicos.
E, em matéria de ensino, isto se transformou num dos mais apaixonantes
debates sobre a Constituição de 1946, como veremos adiante.
O desenvolvimento do ensino no Império não teria sido possível sem o
Ato Adicional de 1834, que atenuou o excesso de centralização da Consti-
tuição de 1824. E aqui invocamos, mais uma vez, a autoridade indiscutível
do prof. FERNANDO DE AZEVEDO:
"Em 1834, o sistema educativo e cultural em formação desde
D. João VI, e que se vinha organizando lentamente, de cima para
baixo, foi atingido, no seu desenvolvimento, por um ato de política
imperial que o comprometeu nas suas próprias bases e viria para·
lisar todos os esforços anteriores de unificação. Do ponto de vista
educativo, o Ato Adicional, aprovado em 6 de agosto de 1934, e
que resultou da vitória das tendências descentralizadas, dominan-
tes na época, suprimia de golpe todas as possibilidades de estabele·
cer a unidade orgânica do sistema em formação, que na melhor
hipótese (a de estarem as províncias em condições de criá-la), se
fragmentaria numa pluralidade de sistemas regionais, funcionan-
do lado a lado - e todos forçosamente incompletos - com a oro
ganização escolar da União na capital do Império e as instituições
nacionais de ensino superior, em vários pontos do território. Com
efeito, pelo item nl? 2 do art. 10 do Ato Adicional, com que se in-
troduziram importantes reforços na Constituição de 1824, se transe
feria às assembléias provinciais o encargo de regular a instrução
primária e secundária, ficando dependentes da administração na-
cional o ensino superior em todo o País e a organização escolar de
Município neutro" (27).
Como se vê, a tendência da descentralização vinha de longe, não obstan·
te não estarem as províncias em condições de atendê-la, deixando-se ao
(27) FERNANDO DE AZEVEDO - ob. clt.

140 R. I..'. legisl. Brasília a. 19 li. 14 abr./JulII. 1982


poder central, pelo menos quanto ao ensino superior, a administração e or-
ganização escolar. Poderiam, então, as províncias organizar os seus sistemas
de ensino, tal como prevê a Constituição de 1946, ou melhor, a sua lei com-
plementar, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Hoje, como
estipula a Constituição, a União reserva a si o poder de traçar as diretrizes
e bases da educação nacional, abrangendo o ensino superior e o secundário.

Da educação e da cultura
Repetindo as Constituições de 1934 e 1937, a de 1946 mantém o capí-
tulo lI, intitulado "Da Educação e da Cultura", compreendendo os artigos
de 166 a 175. Como se trata de assunto de muito interesse e dada a dis-
cussão que se levantou sobre o problema, em todo País, quando da elabora-
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, vamos reproduzi.lo,
na integra, para facilidade de argumentação.

CAPITULO II
Da Educação e da Cultura
Art. 166 - A educação é direito de todos e será dada no lar
e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos
ideais de solidariedade humana.
Art. 167 - O ensino dos diferentes ramos será ministrado
pelos poderes públicos e é livre à iniciativa particular, respeita-
das as leis que o regulam.
Art. 168 - A legislação do ensino adotará os seguintes prin-
cipios:
I - o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua
nacional;
II - o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino
oficial ulterior ao primário sê-lo·â para quantos provarem falta
ou insuficiência de recursos;
III - as empresas industriais, comerciais e agricolas, em
que trabalhem mais de cem pessoas, são obrigadas a manter en-
sino primário gratuito para os seus servidores e os ,filhos destes;
IV - as empresas industriais e comerciais são obrigadas a
ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores
menores, pela forma que a lei estabelecer, respeitados os direitos
dos professores;
V - o ensino religioso constitui disciplina dos horários das
escolas oficiais, é de matricula facultativa e será ministrado de
acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele,
se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável;
VI - para o provimento das cãtedras, no ensino secundário
oficial e no superior ou livre. exigir-se.ã concurso de títulos ou

R. Inf. I..id. Brasilia a. 19 n. 74 alM./jun. 1982 141


provas. Aos professores admitidos por concurso de titulos e pro-
vas será assegurada vitaliciedade;
VII - é garantida a liberdade de cátedra.
Art. 169 - Anualmente, a União aplicará nunca menos de
dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municipios
nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos
na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Art. 170 - A União organizará o sistema federal de ensino
e o dos Territórios.
Parágrafo único - O sistema federal de ensino terá caráter
supletivo, estendendo-se a todo o País nos estritos limites das
deficiências locais.
Art. 171 - Os Estados e o Distrito Federal organizarão os
seus sistemas de ensino.
Parágrafo único - Para o desenvolvimento desses sistemas
a União cooperará com auxilio pecuniário, o qual, em relação ao
ensino primário, provirá do respectivo Fundo Nacional.
Art. 172 - Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente
serviços de assistência educacional que assegurem aos alunos
necessitados condições de eficiência escolar.
Art. 173 - As ciências, as letras e as artes são livres.
Art. 174 - O amparo à cultura é dever do Estado.
Parágrafo único - A lei promoverá a criação de institutos
de pesquisas, de preferência junto aos estabelecimentos de ensi-
no superior.
Art. 175 - As obras, monumentos e documentos de valor
histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as pai-
sagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a prote-
ção do poder público.

Diretrizes e bases da educaçio nacional


E foi precisamente este capitulo da Constituição de 1946 que levantou
a maior celeuma, no Brasil, quando se tratou de regulamentar, através de
lei ordinária, o art. 59, XV, d: "Compete à União: legislar sobre diretrizes e
bases da educação nacional. "
O mesmo principio, aliás, já vinha expresso na Constituição de 1937,
mas não foi objeto de regulamentação ou discussão. O governo federal le-
gislava, como entendia, sobre matéria de educação, mantendo, como era
próprio do regime, a mais absoluta centralização administrativa. A questão
suscitou séria polêmica a partir do anteprojeto de lei enviado em 1948 pelo
então Ministro da Educação, Sr. Clemente Mariani, à Câmara Federal, no
governo do presidente Dutra. Estabeleceu-se, então, um verdadeiro divisor

142 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n.74 ollr.!Jlln. 19B2


de águas, colocando-se de um lado os que eram contra o anteprojeto (28) e,
de outro, os que eram a favor do mesmo. Por uma notável coincidência,
depois de examinado o anteprojeto de lei pelas comissões especiais, foi o
mesmo distribuído ao deputado Gustavo Capanema para relatá-lo. Era o
deputado Gustavo Capanema o autor, quando Ministro da Educação, no
primeiro governo Getúlio Vargas, da reforma de ensino que trouxe o seu
nome, a chamada "Lei Orgânica do Ensino Secundário", que dividia esse
ramo de ensino em dois ciclos - o ginasial e o colegial -, bifurcando-se o
segundo ciclo em clássico e científico. E não era de nenhum interesse do
Ministro que "a sua reforma" fosse assim tão rapidamente substituída por
outra, antes de suficientemente comprovada. Essa a razão principal por
que o relator demorou tanto tempo em apresentar o seu parecer e sempre
respondia com evasivas às perguntas dos repórteres, sobre o assunto. Nós
mesmos tivemos a oportunidade de entrevistá-lo por duas vezes, e a outros
deputados federais, enquanto o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases
dormia a sono solto nas gavetas das comissões parlamentares.

Ensino público e ensino particular


Renovando-se, entretanto, O governo da ReplÍblica, renovando-se a
Câmara dos Deputados e mostrando-se os setores educacionais mais interes-
sados na solução do problema, voltou o projeto a ser debatido dentro e fora
do Congresso, ocupando espaço cada vez maior nas colunas dos jornais e
atingindo amplas camadas populares, através do rádio e da televisão. Con-
gressos, entrevistas, conferências, simpósios e livros foram realizados e pu-
blicados, abordando o problema sob os mais variados ângulos. Ao projeto
original, de 1948, foi apresentado um substitutivo, em 1958, dez anos depois,
pelo deputado Carlos Lacerda. Duas questões fundamentais foram postas
em discussão: o ensino público e o ensino particular.
Os defensores do ensino público, defendendo, também a tese do laicis·
mo, acharam - e acham - que a educação é obrigação fundamental do
Estado, que a "educação não é privilégio" e só na escola pública e laica se
pratica a verdadeira democracia. Os defensores do ensino particular - que
por sua vez se bifurcam em dois ramos distintos, o confessional. e o leigo -
acham justamente o contrário: que a verdadeira democracia se encontra,
justamente, na livre iniciativa respeitada pelo Estado, deixando aos pais,
inclusive, a liberdade de escolha da escola de sua preferência. Ao contrário
disso, o que se pretende - afirmam - é o monopólio do Estado num setor
que, embora fiscalizado pelo poder público, sempre foi livre à iniciativa
particular. De um lado e de outro, envolvendo diretores de escolas, pro-
fessores, clérigos, jornalistas, deputados e pais de família, a discussão foi
apaixonante, chegando-se a extremos de linguagem e incoerências flagran-
tes. A questão fundamental, que animou os debates sobre o assunto, foi o da
aplicação dos recursos econômicos do Estado, em favor da educação. E aí,
novamente, as opiniões se dividiam: "só a escola pública deve receber re-
cursos econômicos do Estado" - dizem uns. "Mas o Estado não dispõe de
recursos econômicos suficientes para atender ao número cada vez maior de
candidatos que procuram as escolas" - dizem outros.

(28) ROQUE SPENCER MACIEL DE BARROS - DI,.IrIRI e a._ el' Ecluclçlo H.clone'.

IL I.f.... ,111. lra.Uia G. 19 n. 74 Gbr./jun. 1982 143


Liberdade de ensino
"E assegurado o direito paterno de prover, com prioridade
absoluta, a educação dos filhos; e dos particulares, de comunica·
rem a outros seus conhecimentos, vedado ao Estado exercer ou, de
qualquer modo, favorecer o monopólio do ensino."
Assim dispunha o art. 69 do substitutivo Carlos Lacerda, ao projeto de
Lei de Diretrizes e Bases, complementando os artigos 39 e 49 do mesmo
substitutivo, que diziam, respectivamente:
"A educação da prole é direito inalienável e imprescritível da
família. "
"A escola é, fundamentalmente, prolongamento e delegação
da família."
Já dispunha o projeto Clemente Mariani, em seu artigo primeiro:
"A educação é direito de todos, e será dada no lar e na es-
cola."
Em torno desses principios gerais, giraram as discussões sobre os dois
projetos, interpretando cada grupo, de modo diferente, as expressões "liber-
dade de ensino", "direito de Estado" e "direito da familia". Finalmente,
o projeto Carlos Lacerda foi aprovado em redação final, através do subs-
titutivo apresentado pela Comissão de Educação e Cultura, da Câmara dos
Deputados.
Define o seu artigo primeiro "os fins da educação" que devem ser
inspirados nos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana.
Reproduz em seu artigo 29 o que dispunha o artigo 19 do projeto Mariani:
"A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola", acrescen-
tando o seguinte parágrafo: "A familia cabe escolher o gênero de educação
que deve dar a seus filhos." E, no artigo 4Q, mantém o espírito do artigo 6Q
do projeto Carlos Lacerda: "E assegurado a todos, na forma da lei, o direito
de transmitir seus conhecimentos." (211)
Prevê a lei subvenções às escolas particulares, bolsas de estudo aos es-
tudantes carentes de recursos, que freqüentem essas escolas, pois que, na
falta de uma rede de ensino oficial, em condições de atender a matricula
escolar, principalmente nos cursos de nivel médio e superior, o ensino par-
ticular, de supletivo que é, passou a dominar, em grandes áreas do territó-
fio nacional. Mesmo em São Paulo, onde maior é a rede de estabelecimen·
tos de ensino oficial, é bem grande o número de escolas particulares e,
somados os dois, ainda assim não basta para atender a demanda do "mer-
cado".
Os defensores da escola pública e única acham que esta seria a manei-
ra mais rápida de se chegar a um completo atendimento da escolaridade no

(29) lei n.o ".02". de 20-12-61 qu. "'IM u Direlrizet e Base. da Educaçlo N«clonlll".

144 R. Inf. le!tisl. Bralília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


País, atingindo-se a todas as camadas sociais. Mas um dos seus mais arden-
tes defensores escreveu um disparate como este:
"A concentração do recurso e sua distribuição racional permi-
tirão a extensão gradual da rede de ensino oficial nos vários níveis
de instrução. A satisfação de todas as necessidades educacionais
será, naturalmente, demorada. Contudo, ainda que parcelas pon-
deráveis da população continuem sem ensino por muitos anos ou
com um ensino insatisfatório, a tarefa de estender a todos a edu·
cação, pelo menos no nível elementar e médio, será tarefa para
poucas gerações" (30).
O autor (prof. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO) reconhece que a
rapidez e a possibilidade de atender a toda a população dependerá, natural·
mente, do grau de prosperidade econômica e da capacidade dos grupos de
pessoas interessadas no ensino de obter verbas cada vez maiores para a
educação pública, não importando quanto demore o atendimento, por parte
do Estado, por gerações e gerações. Enquanto o Estado não puder manter
escola pública, que esperem. Os grifos são nossos, para demonstrar justa-
mente, as contradições da tese defendida pelo autor.

A educação é obra dispendiosa


Estamos plenamente de acordo em que o Estado deva gastar o máximo
dos seus recursos econômicos disponíveis, no setor da educação e ensino.
Mas, infelizmente, não é o que acontece. Ao que nos parece, há, para os
homens que assumem o poder neste País, uma certa alergia para com a
escola e o ensino. Muitos são os que falam e defendem propósitos de exten-
são cultural quando estão "em baixo". E poucos são os que se lembram
disso quando estão "em cima". Há um complexo de fatores que explicam
isso, os quais não nos compete analisar agora. No seu livro A Maior Herança,
SÓWN BORGES DOS REIS, professor e parlamentar, abordou muito bem o
problema:
"A educação é obra dispendiosa. No Brasil, desde 1934, que
a própria Constituição da República prevê a destinação de um
mínimo de recursos orçamentários para a manutenção e o desen-
volvimento do ensino . A Constituição brasileira de 18 de setembro
de 1946, atualmente em vigor, estabelece em seu capítulo "Da
Educação e da Cultura", que a União destinará nunca menos de
10% e os Estados e os Municípios nunca menos de 20% do total
da arrecadação resultante dos impostos, na manutenção e desen-
volvimento do ensino. Essas porcentagens representam o mínimo
que a Lei Magna no Brasil prevê em favor da Escola. Na prática,
nem sempre os poderes responsáveis gastam esse mínimo. Muitos
dos que o gastam, gastam-no como O máximo, não como o mínimo.
Outros computam essas despesas com a expansão cultural e até
recreação por conta das quotas constitucionais que se destinam
expressa e exclusivamente à manutenção e desenvolvimento do
ensino" (31).
(30) Apud ROQUE SPENCER MACIEL DE BARROS - ob. clt.
(31) SOLON BORGES DOS REIS - A M.lor HeJ'llnç.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 145


Ora, sendo dispendiosa, como é, a educação reclama recursos extraor-
dinários, e as porcentagens contidas na atual Constituição (1946) não bas-
tam para satisfazer, no Brasil, às necessidades da obra educativa. E antes de
se esperar por muitos anos e por algumas gerações, para que o Estado resol-
va o problema, nada deve impedir, sob a mais rigorosa fiscalização, que a
iniciativa particular participe da obra educativa. Citemos, mais uma vez, o
prol. SóLON BORGES DOS REIS:

"A Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação, que é um


diploma complementar da Constituição Federal, e que foi publica-
da a 27 de dezembro de 61, reserva boa parte do seu texto aos
recursos para a educação. Essa lei eleva de 10 para 12% o mínimo
que de sua receita de impostos a União aplicará anualmente na
manutenção e desenvolvimento do ensino. Prevê também para o
Estado, o DF e os Munic~ios, a pena de não receberem auxilios
nacionais destinados à manutenção e ao desenvolvimento do en-
sino, se deixarem de aplicar as porcentagens previstas para esse
fim na Constituição Federal. A mesma lei dispõe, ainda, sobre a
distribuição, em parcelas iguais, dos recursos federais destinados
à educação para constituir os fundos nacionais do ensino primário,
médio e superior. Este capitulo da LDBEN foi o que suscitou mais
controvérsias no Parlamento, na imprensa e nos meios escolares,
chegando a interessar, de certo modo, à opinião pública em geral e
apaixonou alguns setores da vida brasileira." E conclui: "Nem
sempre os homens de governo se conformam facilmente com os
gastos vultosos que a obra da educação reclama dos poderes pú-
blicos" (32).

Num "esforço concentrado" só puderam os nossos legisladores, ao pro-


mulgar a Lei de Diretrizes e Bases, aumentar de apenas 2% a porcentagem
de responsabilidade da União, para a tarefa educativa. Isto para um pais
onde cada vez mais se reclamam maiores gastos no setor do ensino, devido
à já conhecida e proclamada "explosão demográfica", que não é somente um
fenômeno, ou um problema brasileiro, mas de todo o mundo, conforme es-
tatísticas da UNESCO.

E por que não pode ser maior essa porcentagem? Porque a distribuição
das verbas públicas depende do "grau de prosperidade econômica do País",
que condiciona o montante da arrecadação nacionaL E há que se atender aos
demais setores da administração pública, com as verbas para isto disponí-
veis, para o funcionamento da máquina administrativa, em seu conjunto.

Crise brasileira de educação

A extensão do território, o crescimento demográfico da população em


ãreas isoladas, a falta de recursos econômicos e a carência de professores,

(32) SóLON BORGES DOS REIS - ob. clt.

146 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


têm sido causas determinantes da permanente crise brasileira de educação.
Vejamos alguns dados estatísticos bastante elucidativos:
Em 1854, a instrução pública remunerada, segundo relatório do Minis-
tro Couto Ferraz, apresentava o seguinte quadro:
Ensino primário - 1.500 escolas, com 61.700 alunos, das
quais 162 em São Paulo, com 5.559 alunos.
Ensino secundário - 20 liceus e 148 aulas avulsas com 3.713
estudantes; um liceu em São Paulo e 29 aulas avulsas com 275
estudantes.
Em 1870, em todo o Império havia 115.935 alunos matriculados nas
escolas primárias e 10.911 nas secundárias.
Em 1882, do Parecer e Relatório de Rui Barbosa, número de escolas
primárias - 5.661; alunos matriculados - 175.714.
Em 1908, segundo estatística escolar desse ano - Geral: 19.402 unida-
des com 624.064 alunos, sendo a seguinte a situação do ensino primário:
número de escolas, 11.147; número de alunos, 565.922. As escolas primá-
rias existentes estavam distribuídas: 7.089 estaduais; 1.815 municipais e
2.243 particulares. Era absoluto, nessas escolas, o predomínio do professor
leigo, por falta de preparo profissional adequado.
E a situação não se alterou fundamentalmente depois de 400 anos,
guardadas as devidas proporções. O censo escolar realizado em 1964 revela:
66,2% das crianças de 7 a 11 anos estão freqüentando escolas, sendo 81,3%
nas áreas urbanas e 51,5% nas áreas rurais. De acordo com a fonnação
profissional, existem 319.293 docentes do ensino primário, dos quais 289.863
são regentes de classes e 29.428 não regentes de classes e que se ocupam do
ensino de detenninadas disciplinas.
Entre os professores há absoluta predominância do elemento feminino,
tendo sido registrados 298.648 mulheres para apenas 20.645 homens. O
problema está ligado ao fator de ordem econômica; a baixa remuneração
"expulsa" o homem do magistério primário. Dos professores regentes de
classes, apenas 161.996 são normalistas diplomados: 7.666 com curso de pós-
graduação, 125.834 por curso normal de 29 ciclo e 28.486 por curso normal
de 1Q ciclo. Dos 127.879 professores leigos, isto é, não normalistas ou sem
formação profissional, 18.671 têm estudos de 29 ciclo concluídos; 8.739 com
estudos de 2Q ciclo não concluídos; 9.110 com estudos de 1Q ciclo não con-
cluídos; 65.022 com estudos primários concluídos e 26.587 com estudos pri.
mários não concluidos. Os dados estatisticos referentes aos períodos ante-
riores são incompletos para uma comparação com estes, resultantes do
primeiro censo escolar nacional feito no Brasil.

A formação de professores
Os dados são alarmantes, no que se refere à formação de professores e
às porcentagens de escolaridade em algumas áreas do País. O mais alto Ín-
dice de escolaridade se encontra na Região Sul, bem como o menor índice

R. Inf. legisl. Bl'Osília a. 19 n. 74 abr./iun. 1982 147


de professores leigos. O problema é apaixonante e, se nos estendermos mais
sobre ele, nos afastaremos do objetivo fundamental deste trabalho, que é
mostrar a evolução da educação brasileira através dos próprios textos
constitucionais, decorrentes das influências do meio, das épocas e dos
homens que elaboraram essas Constituições. Não comentemos as regulamen-
tações, as reformas e as suas aplicações, com a apresentação de resultados
positivos ou negativos, como, por exemplo, a análise e crítica da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em pleno vigor, e cuja experiência
vem tumultuando, de certa forma, o sistema educacional brasileiro, nesta
fase de transição. Fugiríamos, assim, ao tema principal. Por considerarmos
oportuno, entretanto, fizemos estas breves comparações, com base em
documentos e dados estatísticos, para demonstrar que "a crise brasileira de
educação" tem caráter permanente, devido a dois fatores fundamentais:
a) crescimento da população;
b) falta de recursos econômicos.
Estes dois fatores fundamentais estão, obviamente, interligados a ou-
tros, como, por exemplo, a extensão territorial, as dificuldades de comuni·
cação entre uma ãrea e outra, a irregular distribuição da população nas
áreas urbanas e rurais, a diversidade de recursos em cada área geográfica,
dificultando a construção de prédios escolares, a formação e remuneração
do pessoal docente, necessário à obra educativa. Já vimos que o problema se
agravou quando Pombal quebrou o "monopólio" que os jesuítas exerciam
neste setor:
" ... com a expulsão dos jesuítas, Pombal não se lembrou de in·
troduzir, ao menos para as colônias, uma instituição para cuidar
da instrução primária dos meninos pobres" (33).
" ... Foram os jesuítas que criaram e, por dois séculos, quase ex-
clusivamente, mantiveram o ensino público no Brasil" (3').
" ... As aulas régias espalhadas pelo interior do País, em substi.
tuição ao ensino dos jesuítas, deixaram uma triste lembrança de
estudos fragmentários, de professores negligentes, de cadeiras ana-
crônicas" (3~).
Em 4 de julho de 1903, AFRANIO DE MELO FRANCO apresentou im-
portante projeto de lei sobre a instrução pública, setor da administração
qne andava bastante descuidado. E diz o seu biógrafo:
"O grande problema educacional era então,. como hoje, a for-
mação dos mestres para a juventude. Desde 1776, a capitania de
Minas Gerais, por exemplo, pagava o chamado "subsidio literário",

(33) FRANCISCO ADOLFO VARNHAGEN - HIQSrl. d. Clvlllzaçlo do 8 ....11. vol IV.


l34) S~RGIO BUARQUE DE HOLANDA.- HI.16rl. 0 ....1 d. Clvlllz.oao B....II.I.... fPOC8 Colonial.
(35) PEDRO CALMON - HI.t6rl. Soei•• do 8r..lI.

148 R. Inf. legisl. Brasílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


mas este não passava de uma contribuição fiscal a mais, imposta
ao povo e não era destinada à aplicação direta no fomento da
ínstrução. (Isto nos faz lembrar o famoso selo da Educação). As
cadeiras de primeiras letras se instituíam por acaso, nas vilas mi-
neiras, ao sabor da presença de algum padre letrado, ou de algum
antigo estudante de Coimbra, como Silva Alvarenga, que foi
mestre-escola em São João Del-Rei. O projeto de Afrânio, dividido
em 47 artigos, e acompanhado de uma tabela de pessoal com os
respectivos vencimentos, visava orientar a formação de professores
primários, por meio de escolas normais de dois graus."

E, como muitos outros, o projeto de Mrânio não vigorou em plena


República.
Não se pode olvidar a importância cultural que teve para o Brasil a
vinda de D. João VI. A partir de então, o tema educação e cultura alcança
novas dimensões, nos limites da mentalidade da época e vai abrindo, suces-
sivamente, novos horizontes:
"A instrução pública no Império constitui o assunto predileto
dos debates e reformas políticas, em conflito permanente com a
mentalidade e as influências coloniais" (36).
No entanto, embora todo o esforço do I e do li Impérios, na exposição
de motivos justificativa de sua reforma, em 1911, escrevia RIV ADÁVIA
CORREA:
"O Império caminhava de olhos vendados ao sabor das cir-
cunstâncias. Em 1891, coube à República a vez de regular os des-
tinos da instrução pública" (37).
Criou-se o Conselho Nacional do Ensino, mas ainda os institutos de
instrução secundária e superior continuavam subordinados ao Ministério da
Justiça e Negócios Interiores. E em 1823, o Ministro João Luiz Alves
acentua:
"É incontestável a decadência do ensino secundário e a de-
ficiência do ensino primário" (37).
A reforma de RIVADAVIA CORREA, embora bem intencionada, e com
base no princípio da liberdade profissional, consagrada na Constituição da
República. abriu caminho para uma série de irregularidades. RIV ADAVIA
CORRE A justífica a sua reforma com o discurso pronunciado em 1910, pelo
presidente Hermes da Fonseca:
"O ensino chegou, no Brasil, a um tal estado de anarquia e
de descrédito que, ou se faz a sua reforma radical, ou preferível
será aboli·lo de uma vez" (37).

(36) PEDRO CAL.MON - HI.lórfa do Brun,


(37) PRIMITIVO MOACYR - ob. clt.

R. Inf. legisl. Brosilio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 149


E acrescenta PRIMITIVO MOACYR:
"De fato, o ensino desceu até onde podia descer: não se fazia
mais questão de aprender ou de ensinar, porque só duas preocupa-
ções existiam: a dos pais querendo que os filhos completassem o
curso secundário no menor espaço de tempo possível e a dos giná-
sios na ambição mercantil, estabelecendo as duas fórmulas: ba-
charel quanto antes; dinheiro quanto mais" (37).
A Lei Orgânica do Ensino, de 1911, propondo-se a negar valor aos títu-
los acadêmicos, produziu a mais famosa e.!lidemia de bacharelismo de que
há memória no Brasil, resultando, em conseqüência, como reação, a refor-
ma de 1915, visando pôr termo às aprovações facílimas em preparatórios,
que abriam a porta do bacharelado "a todos os ignorantes audazes do
Brasil" (37).
A nova Reforma, que tomou o nome do Ministro Carlos Maximiniano,
em suas linhas gerais, fez uma revisão completa da reforma anterior, limi·
tando o mercantilismo educacional.

A vez das universidades

A partir de 1923, começaram os governantes a se preocuparem com o


problema da formação dos professores, principalmente os do curso secun·
dário e superior. Foi criado o Departamento Nacional de Instrução Pública,
e foram estabelecidas normas para o recrutamento dos professores secun·
dários, de modo que "o corpo docente dos institutos de ensino oficiais e
equiparados será sempre escolhido pelo processo de concurso de provas",
medida saneadora que na prática não teve eficácia. Começam a surgir su-
gestões para a criação de escolas normais superiores, faculdades de Letras,
faculdades de Educação. Essas medidas todas e sugestões, aliás, são o resul-
tado das idéias e programas defendidos pelos educadores que vão se desta-
cando nessa década e que subscrevem o manifesto de 1920, o chamado
Manifesto dos Pioneiros da Educação.
Uma nova consciência nacional, relativa aos problemas da educação,
inspira as reformas de 1925, reforma Rocha Vaz e a de 1928, no Distrito
Federal.
A Revolução de 1930. com a criação do Ministério da Educação e Saúde,
abre novas perspectivas para o ensino no Brasil, e, em 1934, a criação da
Universidade de São Paulo, no governo Arnaldo Salles de Oliveira,
abre novos e mais largos horizontes para a renovação do ensino. A partir de
então, várias faculdades de Filosofia são criadas e instaladas, tanto oficiais
quanto particulares, e, se algumas destas últimas não preenchem, ainda,
suas finalidades principais, o padrão de ensino vai melhorando. A criação
da Universidade de São Paulo, tendo como centro a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, constitui um fator decisivo do desenvolvimento cultural
do País.
Outras universidades são criadas e muitas faculdades de Filosofia trans-
formam-se em centros propulsores do ensino e da pesquisa em todo oBra·

150 R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 obr.lJun. 1982


silo Essas faculdades mantêm entre si, e com outros centros universitãrios,
intenso intercâmbio cultural e de aperfeiçoamento de professores, consti·
tuindo, de outra parte, fator de solidariedade continental e internacional.
Estamos vivendo, portanto, uma fase de completa renovação do sistema
educaCional brasileiro, do que dão prova bastante os exames de seleção
promovidos pelo CECEM, em São Paulo, para ingresso nas faculdades de
Medicina, e que, por certo, se estenderão a outras faculdades e a outros
Estados.

A NOVA CONSTITUIÇAO DO BRASIL (1967)

Votada pelo Congresso Nacional, ao qual se atribuiu o poder constituin-


te pelo Ato Institucional nQ 4/66, e promulgada no dia 24 de janeiro de
1967, temos aí a nova Constituição do Brasil. com a qual se inicia uma nova
fase de política nacional. A data de entrada em vigor, do novo diploma
constitucional, foi, por isso mesmo, fixada para o dia 15 de março de 1967,
data da !?osse do presidente eleito, indiretamente, pelo mesmo Congresso
que aprovou, praticamente sem discussão, a nova COI1Stituição do Brasil.

A educação
Foi o capítulo relativo à educação e cultura, felizmente, o que sofreu
maiores alterações na proposta governamental, graças à manifestação de
educadores, de associações culturais e do magistério (38) de todos os Estados,
criticando a orientação governamental e apresentando sugestões. Muitas
destas foram aceitas pelo Congresso e pelo Governo, e, afinal, incluídas na
atual Constituição.
Nas muitas sugestões apresentadas e alterações feitas, permaneceu o
espírito da Constituição de 1946. A União ficou com a competê!lcia de legis-
lar sobre diretrizes e bases da educação nacional, acrescentando-se, também
"normas gerais sobre desportos". É interessante verificar como no mesmo
item sobre "educação" se acrescentou "desportos", dada a importância
educativa dos esportes.
Cabe, ainda, à União: "estabelecer planos nacionais de educação e
saúde".

Principios fundamentais
Pela nova Constituição, em seu capítulo destinado à educação e cultura,
verifica-se que foram mantidos os seguintes princípios fundamentais: a) o
direito de todos à educação; b) a unidade nacional; c) a liberdade de ensino;
d) ensino primário gratuito até 14 anos; e) ensino religioso nas escolas ofi-

(38) o Centro do Prolessorado Paulista recebeu do Ministério de Educaçao e Cultura cOpia do anteprojeto
da Constituição psra manifestar-se sobre o caDftulo "Da Educação a Cultura". o que loi feito pala
CPP depois de vArias reuniões da Diretoria e Conselho, das quais, como Conselheiro. parllclpou o
autor daste trabalho.

R. I"t. legisl. Brasílía a. 19 n. 74 abr./jun. 19í12 151


ciais; f) concursos de titulos e provas para provimento dos cargos demagis-
tério; 9) liberdade de cátedra; h) descentralização do ensino, devendo os
Estados organizar os seus próprios sistemas.
Alguns desses itens são polêmicos, como já tivemos a oportunidade de
acentuar, mas foram mantidos, tendo-se em vista, certamente, a realidade
nacional.

Inovações
Poucas são as inovações do novo texto constitucional, no que se refere
à educação e cultura, em relação à Constituição anterior. O item m do art.
168 mantém a gratuidade do ensino, mas dá ênfase à concessão das bolsas
de estudo, acrescentando:
"sempre que possível, o poder público substituirá o regime de gra-
tuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior
reembolso no caso de ensino de grau superior." (Texto original de
1967.)
:e mantido o concurso de títulos e provas para provimento das cátedras,
(item V do art. 168), suprimindo-se, entretanto, a vitaliciedade, assegurada
pelo item VI do art. 168 da Constituição de 1946.
O art. 169, da Constituição de 67, repete, em suas linhas gerais, o art.
171 da Constituição de 46, dispondo ambos sobre os sistemas de ensino.
Artigo 169 do texto de 67:
"Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas
de ensino, e a União, os dos Territórios, assim como o sistema fe·
deral, o qual terá caráter supletivo e se estenderá a todo o País,
nos estritos limites das deficiências locais."
E complementa com o § 1Q do mesmo artigo:
"A União prestará assistência técnica e financeira para o
desenvolvimento dos sistemas estaduais e do Distrito Federal",
retirando, entretanto, as porcentagens estabelecidas na Constituição ante-
rior, que era de 10% da responsabilidade da União e Estados e 20% para
os Municípios (art. 169 da Carta de 46). A exclusão das porcentagens poderá
dar margem a abusos, pois, como já se disse, não acreditamos que os gover-
nos gastem mais com a educação - o que seria um abuso benéfico, mas pas-
sarão a gastar menos ainda.
Enquanto o art. 168, item I1I, da Constituição de 46, dispunha que as
empresas industriais, comerciais e agrícolas, em que trabalhem mais de cem
pessoas, são obrigadas a manter ensino primário gratuito para os seus ser-
vidores e os filhos destes, a nova Constituição (art. 170) diz que eSSaS mes-
mas empresas são obrigadas a manter ensino primário gratuito de seus em-
pregados e dos filhos destes, sem limitação do número, o que constitui
uma obrigação séria e benéfica para o ensino.

152 R. lnt. ht!Jisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./lun. 1982


A EMENDA CONSTITUCIONAL N9 1 (1969)
A Emenda Constitucional n9 1, de 1969, tem o mesmo preâmbulo da
Constituição de 1967. Foi decretada (outorgada) pela Junta Militar, compos-
ta pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, que substituiu
o Presidente Costa e Silva. Essa emenda já estava sendo elaborada por ini-
ciativa do Presidente Costa e Silva, "que se empenhava de corpo e alma
na conquista do seu objetivo maior: a restauração da ordem democrática no
País através da outorga da emenda constitucional e da reabertura do Con-
gresso" (posto em recesso pelo Ato Institucional nQ 5). "Nada o detinha (o
presidente) na tarefa prioritária de coordenar, pessoalmente, a elaboração
da emenda constitucional. Os Ministros haviam recebido, por antecipação,
uma cópia do anteprojeto, para estudo e sugestões. Comigo mesmo ele dia-
logara a respeito de como, quando e onde efetuar a solenidade que tinha em
vista."
Os trechos acima citados foram transcritos do livro "O Brasil de Minha
Geração", editado pela Biblioteca do Exército, e de autoria do General
Aurélio Lyra Tavares, então Ministro do Exército e um dos compo-
nentes da Junta Militar que outorgou a Emenda de 1969, esclarecendo: "Tu-
do já estava previsto, até mesmo os termos da sua fala à Nação, já datilo-
grafada, embora se tratasse de simples esboço. O documento, apesar de
pronto, não chegou nunca, por força do destino, a adquirir caráter defini-
tivo" (3l1).
As alterações feitas pela Emenda Constitucional n9 1, ao texto da
Constituição de 1967, no capítulo da Educação e Cultura foram mais de
redação, com o acréscimo de palavras ou expressões que contribuem para
o melhor entendimento do texto constitucional. Não restringe, mas amplia
a ação do Estado no campo educacional. Já no capítulo n, art. 89 , que defi·
ne a competência da União, na alínea XIV, acrescenta, logo depois de
"estabelecer", a palavra "executar" (planos nacionais de educação), sem o
que, a alínea seria letra morta. Mantém-se todo o disposto no texto anterior.

Título IV (Educaçio e Cultura)

Nesse título, o artigo referente à educação tomou o n9 176, substituindo


o artigo anterior (168), sem alteração substancial. No § 29 do referido artigo,
a expressão contida no texto antigo "inclusive bolsas de estudo". ficou
assim redigida: "inclusive mediante bolsas de estudo". A alínea VII (que
substitui a alínea VI do texto antigo, e que dispunha sobre a liberdade de
cátedra) está assim redigida:
"t garantida a liberdade de comunicação de conhecimentos
no exercício do magistério, ressalvado o disposto no art. 154" (40).
(39) Este depoimento do Gsneral Lyra Tavares esclarece muílas dúvidas a respaito da Emenda Consti-
tucional n.O 1, de 1969.
(40) Texto constltuclona I vigente:
"Art. 154 - O ebuso de direito individuai ou poll1lco, com o propósito de subversAo do regime
democrático ou de corrupçAo, importará a suspendo daqueles direitos de dois a dez anos, a qual
será declarada pelo Supremo Tribunal Federal, medianle represenlaçAo do Procurador-Geral da RepIJ-
bllca, sem prejurzo da açllo clvel ou penal que couber, aasegurade ao paciente empla defesa."

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 153


o § 1Q do art. 177 (que substitui o 169) é mais explicito e está assim
redigido: "A União prestará assistência técnica e financeira aos Estados e
ao Distrito Federal, para o desenvolvimento dos seus sistemas de ensino."
O art. 178 dá nova redação ao art. 170, mantendo a obrigatoriedade do
ensino gratuito por parte das empresas aos filhos dos seus empregados e
institui o salário educação. E, pelo parágrafo único do mesmo artigo, além
da obrigação da aprendizagem industrial aos menores, institui a obrigato-
riedade do preparo do seu pessoal qualificado.

O art. 179, que substitui o art. 171, mantém o texto antigo: "As ciências,
as letras e as artes são livres", acrescentando: ressalvado o disposto no
§ 89 do art. 153" (41).

O art. 180 substitui e mantém o texto do art. 172.


Com exceção das alterações aí apontadas, todo o texto do capítulo rela-
tivo à Educação e Cultura, inserido na Constituição de 1967, é mantido pela
Emenda Constitucional nQ 1, de 1969.

LEI NQ 5. 692171
Da estrutura do ensino do 1Q e 29 graus, posterior à Lei nQ 5.692/71 (42),
que fixa novas diretrizes e bases, resultam as seguintes conclusões gerais:
1) a necessidade de se colocar o aluno no seio de uma sociedade consumi·
dora. tendo em vista a preparação de mão-de-obra, segundo os objetivos já
definidos nos arts. 1Qe 29, da nova lei; 2) redução dos quatro graus de ensi·
no, previstos na Lei anterior (4.024/61), para três graus; 3) aumento da
gratuidade do ensino (de responsabilidade do Estado), de quatro para oito
anos, ou seja, durante todo o 1Q grau (primário e ginásio).
O ensino de 1Q grau vem capitulado nos arts. 17, 18, 19 e 20 da nova
lei. A nova estrutura fundamenta-se na idéia da integração, enquanto a
velha estrutura se fundava no princípio de compartimentos estanques, de
tal modo que o progresso do aluno, nos estudos, era :eeito por espasmos
acentuados: admissão ao ginásio; seleção para o colégio; vestibular para o
ensino superior. A nova lei adota um princípio mais viável e lógico e psico-
logicamente evolutivo para a escolarização, não havendo saltos (ou espasmos)
de uma etapa para outra, na verticalidade do sistema. A integração se farã
vertical e horizontalmente. No primeiro caso, de baixo para cima, em três
graus, sem a superposição de um grau sobre outro. E no segundo caso, abrin-
(41) Texto constitccional vigente:
"Arl. 153 - A Constituição assegura aos brasilairos a aos estrangeiros residentes no PaIs a
inylolabllldade dos direitos concernentes 11 vida. 11 liberdede, à segurança e li proprledede, nos termos
seguintes:
- •••• ~ ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• , ••••••••••••••• I •

§ 8.0 _ E Ilvre a m.nifeslação de pensamento, de convirção polltlca ou filosó1ica: bem como


a prestaçao de InformaçAo independentemente de censura. salllO Quanto a diyersOes s sspel6culos
públicos. respondsndo cade um. nos lermos da lei. pelos abusos Que cometer. E esaegurado o
direIto de resposta. A publlcaçAo de livros, jornais e peri6dicos não depende de licença da autori-
dade. NAo aerAo. porém. toleradas a propagands de guerra, da 8ub\i8rsAo da ordem ou de precon-
ceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contnlrlas à moral e
808 bons costumes."

(42) Lei nO 5.692, de 11 de agosto de 1971, que "lixa Diretrizes e Base. para o Ensino de 1. e 2° Grau.".

154 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./lun. 1982


do-se em leque de tantas habilitações quantas forem susceptiveis de adoção
mediante escolha. Dai a implicação de uma terminllllidade geral, coincidindo
com as faixas etárias, e uma terminalidade real, ditada pelas capacidades ou
pelas possibilidades em cada sistema de ensino.
A implantação da reforma implica em estabelecer uma política educa·
cional corajosa, em termos nacionais, para ser aplicada com decisão, deven-
do ser especialmente considerados: a preparação e envolvimento do pessoal
que a executará; medidas legais complementares, de que dependerá o escla·
recimento; ordenação e adequação de planos de implantação às realidades
sociais, econômicas e de ensino; construções escolares, com equipamento
básico. destinadas a atender aos novos objetivos do ensino; preparação do
pessoal existente no sentido de que, conhecendo a lei e seus regulamentos,
possa atender à reforma do ensino, em função dos novos objetivos educacio-
nais e assim obter os resultados desejados.

Obietivos da lei
São objetivos da Lei nl? 5.692171: a auto-realização, qualificação para o
trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania (art. 1l?). Como
objetivo generalizado, o ensino de 29 grau destina-se à formação integral do
adolescente (art. 21). Além da cultura geral, objetiva preparar o aluno para
o exercício profissional de molde a facilitar a integração social do mesmo,
através de uma ocupação útil. Como se percebe, o ensino de 29 grau, além
da cultura geral, tem uma característica profissional'i:r:ante.
A Lei nQ 5.692171 vem responder a uma exigência da situação da rea·
lidade brasileira, com repercussões imediatas e mediatas em todo o sistema
educacional. Encaramos com otimismo a aplicação da lei, com as ressalvas já
mencionadas. Tendo em vista que o problema de uma sociedade em desen-
volvimento exige a participação viva e eficiente dos indivíduos na produção,
consideramos que a educação deve ser entendida como um investimento
positivo e um dos objetivos da segurança nacional.

Conveniincilll5 e acerto da apticação da reforma


Do exposto, ainda que sucintamente, concluímos pelo acerto e conve-
niência da aplicação da reforma do ensino, nos termos propostos pela WB.
Consideramos, entretanto, que, dadas as atuais circunstâncias nacionais, sob
o ponto de vista econômico, com a continuada falta de recursos materiais e
humanos, a sua implantação não se fará a curto prazo - constituindo o seu
primeiro decênio um mínimo de experiência feita - em virtude da comple-
xidade do problema, principalmente quanto ao ensino de 29 grau. ou seja,
o ensíno profissionalizante, objeto das maiores críticas ao sistema. Pela
anâlise da conjuntura educacional brasileira, concluímos que o Estado não
dispõe dos meios suficientes para a implantação da reforma, a curto prazo,
nos termos previstos pela lei. Ratifica essa nossa conclusão a autoridade in-
discutivel do Dr. NEY BRAGA, em pronunciamento feito quando Ministro:
":/1: necessário reformular o sístema porque o Ministério da Educação não
oferece condições para que esse tipo de ensino seja efetivamente implan-
tado."

R. Inf. I...... Brosília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 155


ReConstrução· do -sisteltla
Agora, quando tanto se fala em nova reforma do ensino, o Dr. VALNIR
CHAGAS, relator do anteprojeto de que resultou a Lei n9 5.692/71, em sua
mais recente publicação Educação Brasileira: O Ensino de 19- e 29 Graus,
com fundamentados argumentos, reconhece a necessidade de mudanças ao
que ele chama. judiciosamente, de "reconstrução". Dada a oportunidade do
assunto, e sem mais comentários, extraímos daquele importante livro data
maxima venia, umas p')ucas frases, numa tentativa de sintetizar o pensamen-
to desse ilustre educador: "a escola que virá será o que desde agora fizermos
para antecipá-la e torná-la possível" (pág. 345); " ... é impossível alcançar
tal objetivo com a escola formal de hoje. ainda calcada nos valores e crité-
rios de organização da Primeira Revolução Industrial. .. quando todos os
países do mundo se empenham na busca de novas fórmulas para a educa-
ção" (pág, 347). "Os avanços educacionais, como de resto quaisquer avan-
ços no campo social, representam mudanças que se operam dentro dos pro-
cessos considerados, na indispensável fricção do antigo com o novo. e nunca
por imposição vinda de fora" (pág. 347) ... E, para terminar: "As di:etrizes
têm o confessado sentido de uma abertura para dar a escolas e SIstemas
escolares a capacidade de atualizar-se constantemente (... ), refletindo a di-
nâmica da escolarização em face dos seus condicionamentos internos e ex-
ternos" fpág. 348). "A resistência à mudançà const~tui po.ssivelmente ~
obstáculo mais forte que as dificuldades econômfco-fmancerras, por ser In-
trínseca à natureza humana" (pág. 349).
Nos conceitos expendidos pelo professor VALNI'R CHAGAS, no seu
magnífico livro, didaticamente elaborado. encontramos a abertura necessá-
ria para a reconstrução do sistema.

SOBRE A EMENDA' CONSTITUCIONAL NÇl 18/81


Diminui o tempo de serviço para aposentadoria do professor
Não é preciso ressaltar que o professor é a peça fundamental para a
implantação de qualquer sistema ou método de ensino. Entendemos que,
para se dar cumprimento ao quanto dispõe a Lei nÇl 5.692/71, é necessário
proceder-se a um levantamento do pessoal existente nos quadros do ensino,
envolvendo, principalmente, o professor e sua respectiva formação.
Vários outros problemas estão ligados ao assunto, tais como: ao remune-
ração do profes:'?r; a sua constante atualização através de cursos especifi-
cas; a sua establlIdade no cargo e o tempo de serviço prestado no exercício
de suas funções para efeito de aposentadoria. Neste particular o disposto
no art. 101, item I1I, combinado com o art. 165, item XX, da Constituição de
1967, causou profundo descontentamento ao magistério de todos os graus
e níveis de ensino, com a exigência de mais cinco anos de efetivo exercício
no cargo, para efeito de aposentadoria. Desde então, uma luta intensa e
contínua se desenvolveu em todo o País, visando a revogação de tal dispo-
sitivo, o qual repercutiu negativamente na atuação do professor, de quem
tanto exige a sociedade. Durante 14 anos, portanto, o magistério enfrentou
essa dura realidade.

156 R. Inf. legisl. B.asília a. 19 n. 74 ab•.Ijun. 1982


A Emenda ConstitucionalnQ 18/81, que dispõe sobre aposentadoria
especial para professores e professoras, altera os artigos citados, restabe-
lece o disposto na Constituição de 1946, e vem atender, assim, a uma justa
reivindicação da classe do magistério.
. ' Pelo art.2Q da Emenda Constitucional nl? 18/81, o item XX do art. 165,
da Constituição de 1967, passa a ter a seguinte redação:
"XX ~ a aposentadoria p.ara o professor após 30 anos e, para
a professora, após 25 anos de efetivo exercício em funções de ma-
gistério, com salário integraL"
Este dispositivo. da Emenda Constitucional, promulgada pelas Mesas da
ÇâmaradosDeputados e do Senado Federal, é auto-aplicável em todo o ter-
ritório nacional, independentemente de qualquer regulamentação. .

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158 R. Inf. legisl. 8rosília a. 19 n. 74 abr./'un. 1982


o impacto de tratados e resoluções
nas relações internacionais na América Latina

ANTÔNIO AUGUSTO CAXÇADO TRINDADE

Ph,D (Cambridge), Professor da Universi-


dade de Brasilia e do Instituto Rio Branco
Utamaraty) , Ex-Assessor Jurídico do Escri-
tório da ONU em Genebra, Chefe do De-
partamento de Ciência Politica e Relações
Internacionais da Universidade de Brasflla

SUMARIO
I. Os tratados regionais tnteramericanos: o quadro
geral
n. A solução pacífica de controvérsias internacionais
no continente
111. A desnuclearização da América Latina
IV. A evolução de "Tratados Constitutivos": o caso da
Carta da OEA
V. BiZaterali$mo e multiZateralismo: aprectação critica
VI. Tratados e resoluções de órgãos internacionais
VII. A evolução do sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos
VIII. Conclusões

I. Os tratados regionais imeramericanos: o quadro geral


A julgar por seu número e incidência, aos tratados regionais interameri-
canos (1) estaria reservado um papel preponderante na conduçãG das relações
Trab&lhO de pesquisa apresentado pelo Autor, em forma de duas conferencias profe-
ridas no VIII Curso de Direito Internacional da Comissão Jurldica Interamerlcana, a
2Q e 21 de agosto de 1981, realizado na Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, sob
os auspicios da Consultoria Juridica. da Organização dos Estados Americanos (OEA).
(1) Já no inicio do skulo, somente na Segunda COnfel"êncla InteI'1lo11lericana (México, 1901-
19(2), por exemplo, foram assinados nove tratados sobre temas dlver808; cf. OEA, Série
sobre Trlltados; Trlltados e oonvenç6es Firmados na SegutIdG Oonferencia InternacionllC
Americana, volo 32, Washington, 8ecretaria-Geral da OEA, 1966, pp. 2-81.

R. Inf. legisl. Brasília O. 19 n. 74 abr./jun. 1982 159


internacionais em nosso continente. Em 1975, registravam-se por volta de ,,~
tratados que poderiam ser considerados coletivos, ou multilaterais gerais, mas
sua freqüência logo se mostra ilusória: daquele total, aproximadamente a
metade alcançou quando mu'to as ratificações de 11 ou menos Estados, e os
demais não lograram ultrapassar 7 adesões, o que os tornou virtuafmente mo-
pt'rantcs (2). Cada um dos países americanos não chegou individualmente
a ratificar nem sequer a quinta parte dos pactos existentes (3).

Há exatamente uma década atrás, o UNITAR (United Nations Institute


lar Training and Research) propós-se a investigar as "causas e fatores yue
.ltrasavam Ol! impediam a aceitação pelos Estados de tratados multilaterais"
(adotados sob os auspícios da ONU (4). Ü regi~tro geral de aceitação de tais
tratado~ pelos Estados latino-americanos (excluídos os países do Caribe), pon-
derou o relator da matéria, era de aproximadamente 23%, um pouco acima
do dos países recentemente emancipados; "um traço saliente do padrão de
accitação de alguns Estados lati:lO-americanos é que a proporção de assinatu-
ras ainda não seguidas de rat:'ficações é bem maior do que no nível mundial,
( ... ) restando verificar se procedimentos legislativos e constitucionais rela-
tivos à conclusão de tratados criam obstácul'os a ratificação mais rápida" (I').

Outro ponto importante é a grande diversidade de matérias regidas pdos


tratados gerais: poder-se-iam distinguir, por exemplo, os tratados constitutivos
de organismos internacionais regio:J.ais (como, e.g., a própria Carta da üEA
de 1948 refonnada em 1967, os pactos constitutivos do B!D de 1959 e da
ALALC de 1960), os tratados que pretendem estabelecer normas de tipo
geral (como, e.g., a Convenção sobre Direitos e Deveres dos Estados de 1933,
as Convenções sobre o Asilo de 19'28 e 1954, a Convenção sobre Privilé~ios
(' Imunidades da OEA de 1949), os tratados para solução pacífica de contro-
vérsias (como e.g., o Pacto de Bogotá de 1948), dentre outros {6).

A questão da revisão, atualização e avaliação de várias convençfJes i:lter-


naciO:J.ais foi objeto de parecer da Comissão Jurídica Interamericana em 1971.
A Comissão destacou dez tratados como "de interesse primordialmente jurí-
dico", sobre temas distintos como direito dos tratados, direitos dos estran~eiros
(' cidadãos naturalizados, nacionalidade, extradição, proteção contra ana:-:Juis-
mo, uniformidade do regime jurídico dos poderes, e mesmo uma conv~'1cão
(de 1936) para "coordenar, ampliar e assegurar a observância dos tratfldos
existentes entre os Estados americanos" (7). A Comissão destacou ainda nada
(2) CItSAR SEPCLVEDA, Las FlIentes dei Derecho Internactonal Americano, México, Ed. PolTÚa.
1975, p, 65.
(3) Ibld., p. 67.
(4) OSCAR SCHACHTER, Tou'ard Wider Acceptance of U. N. Treaties, N.Y., UNITAR, 1971. p. 9.
(5) Ibid., p. 28.
(6) Há igualmente os tratados sobre direito Internacional privac:lo (excluld08 do presente
estudo), e tratados sobre matérias dlveI'llllll (no mais das vezes admlnlstrativDl!l, relativoa a
relaçOl!ll postais, rádio, patentes e marcas, por exemplo); C. SEPOLVEDA, Las Fuentes .•• ,
01', cit., pp. 66-67. SObre a "revlsAo, atual1zaçl.o e avallaçl.o das convenç6ee interame-
rlcanas sobre propriedade IndWltrial", por exemplo, cf. Comité Juridlco Inte1'amerlcano,
Recomendaciones e Informes - DocumentOB 0lfcfales (1974-1977), vai. XI, Washington. Be-
cretaria-Geral da OBA, 1981, pp. 188-198.
(7) Comité Jurídico Intere.mertcano, RecomendlJclones e Infarmes - Documentos OlfclGleB
1961-1973, vol. X, WashIngton, Secretaria-Geral da 0&\, 1978, pp. 338-358.

160 R. Inf. legisl. Brasílía a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


menos de doze tratados em matéria de educação, ciência e cultura (8), e tam-
bém examinou a questão dos tratados que integram o "sistema interamerÍC'ano
de paz" (9).
A considerável diversidade dos temas regidos por tratados interamerica-
nos transparece do levantamento efetuado pe1a Secré'taria-Geral da üEA so-
bre o Estado de los Tratados y Convenciones lnteramericanos/Status 01 Inter·
American Treaties a:nd Conventíons, revisto em 8 de maio de 1980: estão ali
relacionados 49 tratados e convenções assinados em conferências interame-
ricanas e assembléias gerais, 46 tratados e convenções assinados em conferên-
cias especiais, 18 tratados e convenções abertos à assinatura na Secrebtria-
Geral aa OEA, 12 convenções assinadas nas congressos interamericanos de
rádio e 10 acordos postais, um acordo nuclear (o Tratado de TIateloIco de
1967), e nada menos de 101 acordos regionais (sobre temas variando desde
questões de direito privado até integração econômica regional e sub-regio-
nal) (10).

Há que se fazer igualmente referência aos inúmeros acordos bilaterais,


sobre assuntos os mais aiversos: um levantamento recente da Secretaria-Geral
da üEA, cobrindo o período 1949-1980, registra nada menos de 2191 acordos
bilaterais celebrados entre a OEA e 24 Estados americanos (11), além de vá-
rios outros acordos concluídos entre a OEA e diversos organismos internacio-
nais (12), e 12 acordos celebrados entre Estados-Membros e depositado~ na
Secretaria-Geral da üEA (13).

lI. A solução pacífica de controvérsias internacionais no continente


Dificilmente se poderia negar que tratados tenham tido um significativo
"impacto" na conduta das relações interamericanas no campo da solução pací-
fica de controvérsias internacionais, ainda que não lhes tenha cabido um m0-
nOpÓlio de regulamentação da matéria. A preocupaçãc com procedim~tos de
sofução pacífica refletiu-se em referências contidas nos primeiros tratados sa-
bre a matéria do século XIX e início do século XX (14); também uma resolu-
ção, adotada na Conferência Interamericana do Rio de Janeiro de 1906, roo-
(8) Cf. ibld., pp. 351-352, e cf. pp. 376-377.
(9) Cf. ibld., pp. 347-348 e 356.
(lO) Cf. OEA. SéIie soOre Tratados: Enado de 1ol1 Tratadol1 11 Conl'enClones lnteramerlcanos/
8tatul1 of lnter-Amerfcan Treatie8 (IM Convli!1lUonl1, vol. 5, Washington. 8ecretarla-Oaral
da OElA. 1980, pp. 1-51. - somente o relatório anual de 1976 doSecretáz'lo..Oeral da OEA
regiStra aaslnaturas. ratl!1caç6e6 e adee&es a dor.e "tratados InteraJnericaDOl!l" IlObre temas
diVerllOS; OAB, Annual Beport of tILe 8ecretQrV General - 19'/6. OEA doc. OEA/8er. DfIll.27,
1976, pp. 68-70. - Para um levantamento detalhado recéMe da atividade "legislativa"
corrente (convenç6es adotadas e projetos ele ootlvençG.o) tanto nOfl.planOtl reg1onai6 'intera-
mericano e europeu quanto no s1.IIteaa da ONU. cf. ISIDORO ZANOTI"I, "Report: Regional
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taria-Oetal da OElA. 1980, pp. 3-52. '
(12) 1bi4.. pp. 53-58 e ~. Quanto a acordllB sobre ob6ervadoree permanentes, d. tbld., pp.
60.a3; para acord06 celebrad08 entre a OBA e Universidades, cf. 1bid., pp. 69"70.
(13) 1bf4., pp. 71-74.

L Inf. I..ill. Brasília a. 19 n, 74 abr./jun. 1982 .. 61


clamava os Estados americanos a consagrarem o princípio da arbitragem (1r.).
Anos após as duas Conferências de Paz de Haia (1899 e 1907) (16), um
marco significativo foi a co:lClusão, na Conferência Interamericana de Santiago
de 1923, do "Tratado para Evitar ou Prevenir Conflitos entre os Estados Ame-
ricanos" (também connecido como Tratado Gondra).
Esse instrumento previa a pronta convocação de uma Comissão de Investi-
gação (assistida por duas "comissões permanentes") em caso de uma contro-
vérsia, e impunha o dever de não recorrer a hostilidades durante o período
de investigação (17). A mesma Conferê:lcia de Santiago de 1923 adotou duas
resoluções dignas de registro: a primeira, destacando os progressos recentes
no tocante à conciliação, arbitragem e solução judicial (naturalmente após
a criação da Liga das Nações), e a segunda, reafirmando a necessidade de
consagração da arbitragem como método de solução pacífica de controvérsias
de "caráter jurfdico" entre Estados americanos (l8). Estava assim preparado
() campo para a adoção, na Conferência de Washington de 1928-1929, das duas
Convenções Gerais de Conciliação e Arbitragem Interamericanas (19). Pouco
após, em 1933, era assinado no Rio de Janeiro o Tratado Antibélico de l\;ão-
Agressão e de Conciliação (também conhecido cOmo Tratado Saavedr::t La·
mas) (20).
Seria, no entanto, a Conferência Interamericana de Consolidação da Paz,
de Buenos Aire!, três anos depois, que se constituiria no "primeiro passo for-
mal" (21) conducente ao estabelecimento de um sistema interamericano de
segurança coletiva: dos cinco instrumentos então adotados (22), um deles, a
(14) Tratado de UnlAo (Panamá, 1828); tratados de Lima (1848 e 1864-1865), santiago e Wash-
Ington (18511); plano de arbitragem de Washington de 1890 (que Jamais entrou em vigor
por falta de ratificações); tratado de arbitragem obrigatória (México, 1902, ratificado por
seta Estados). ALBERTO HERRARTE. "SOIuclón Pacifica de 111II Controvéra1as en el Sl8tema
Interamerlcano", Sexto Curso de Derecho lnternlJclonal Organ/z/ldo por el Comtté Jur~fco
lnterllmerfcano. ORA doc. ORA,I8er.Q/V.C-II, CIJ·40, 1979-1980, pp. 210-211.
(15) CHARLI'8 G. P'ENWICK, The Drganlzattott of Amerlcan states, Washington, Kaufmann Pr.,
1983, pp. 173·174.
(111) A primeira Conferência de Haia adotou uma convençAo sobre soluçA0 pacifIca de con-
trové1'81as internacionais, que 80freu revlsAo na Segunda Conferência de Haia.
(17) Ch. G. PEN\VICK, The Organ/zllttott ... , cp. cit., p. 1711. O Tratado Gondra nAo derrogou
cláuawaa de tratados anteriores, e a ele sucedeu-se o Pa.cto de Bogotá de 1948 (Infra):
maa a nAo ser que ambas lia partes litIgantes tenham rat1tlcado este últImo, permanece
aquele aplicável e regendo indefinidamente. OI!lA, /nter-Ámerfcan Treatles and Con-
I>omttons, Waah1ngton, Secretana-Geral da ORA, 1980, p. 20.
(18) Oh. O. FJCNWICK, cp. cit., p. 178.
(19l A prImeira, lIObre a conclllaçAo, criava uma coJD1llBAo que fonaleda OB poderes InVBtl-
tlgatórlos da CoIn1.llaAo do Tratado Gondra; a segunda, o Tratado Geral de Arbltraaem
Interamerlcana, sucedla-ee aaslm ao tratado do México de 1902 (supra): A. HERRARTB, cp.
c~t., pp. 213.214. AlI numerosas reserVl\8 formuiadaa a este segundo Tratado Geral tomaram
necBllBárla a conclU8l.o de um Protocolo de Arbitragem ProgreS8lva: ibíd., pp. 214-215.
Também a OonvençAo Geral de Conc1l1aç40 teve um Protocolo Adicional (de 1933) pelo
qual se buscava dllr caráter permanente a com1ssOes de InveetlgaçAo e concUlaç40 (esta-
belecidae entre Estados signatários do Tratado Oondra): ~bíd., p. 2111.
(20) Combinava este, aos mecanlBmoe de palll eX1stentes. os prlnciplos derivados do Pacto da
LIga das Naç08s e do Pa.cto Brland-Kellogg, e pode-se dIZer que seu propósito básico
subjacente realizou-se com 11 adoçA0 da ConvençAo de Montevidéu de 1933 sobre Dtreltoa
e Deveres doe JIlstados; Oh. G. FENWICK, cp. cU., pp. 180-181.
(21) PRANCISCO ORREGO VIetmA, "El Sistema Intemmerlcano de 8egurldad COleetlva", In
Antecedentes, Balance 11 PenpecUvas deI Sutem~ /nteramericano (ed R. D1az Albon1co) ,
santiago, lnatituto de Eatudl08 Internaclonales de la Universldad de Chile, 1977, p. 109.
(22) convençAo sobre ManutençAo, PreeervaçAo e RestabelecImento da Paz; Protocolo Adi-
cional IIObre NAo.IntervençAo (em relaçAo ao principio collJlagrndo na OonvençAo de Mon-
tev1d.éu de 1933 IIObre Direitos e Deveres dos ErItad06); Tratado sobre PrevençAo de Con-
trové1'8IU; Tratado Interamer1cano sobre Bons OficIos e MedlaçAo; e OOnvençlo de ODor-
deDaOIO dOe tratados eX1steDteII (sobre a matéria) entre 08 B:Iltadoe aMeriean08 (cf. infra).

1'2 R. Inf. legá.l. Bra.ília o, 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Convenção sobre Manutenção, Preservação e Reestabelecimento da Paz, criou
o sistema de consultas mútuas em caso de ameaça à paz dos Estados america-
nos. Outro, intitulado "Convenção para Coordenar, Ampliar e Assegurar o Cum-
primento dos Tratados Existentes entre os Estados Americanos", se deveu à
preocupação com os tratados anteriores que ainda não haviam logrado ahter
assinaturas e ratificações em número suficiente; esperava-se, com o estabele-
cimento do sistema de consultas recíprocas, que os procedimentos de solução
pacífica até então acordados viessem a gozar de maior eficácia na consolida-
ção da paz (23).
Ainda a esse respeito, uma solução adotada na Conferência de Lim:! de
1938 ressaltava que os instrumentos jurídicos de prevenção de conflitos no
continente americano "dispersavam-se em numerosos tratados, conven~'ões,
pactos ·e declarações", e tornava-se necessário "coordená-los em um conjunto
organizado e harmônico" (24). Para tal, a Conferência de Montevidéu de 1933
se antecipara apresentando um "Código de Paz" (unificando os dispositivos
dispersos), que serviu de base para a Convenção de Coordenação dos trata-
dos existentes entre os Estados americanos (de 1936, já mencionada, supra);
a estes seguiram-se dois anteprojetos sobre o sistema interamericano de paz,
preparados pela Comissão Jurídica Interamericana (1943-1945), principai~ an-
tecedentes do Pacto de Bogotá de 1948 (25).
A institucionalização do mecanismo de consultas recíprocas se iniciaria,
no entanto, uma década antes, ao especificar a Declaração de Lima de 1938
que o processo de consultas (para adoção de uma ação comum face a ameaças
à paz dos Estados americanos) se faria através da Reunião de CODSult:l de
Ministros de Relações Exteriores. A primeira reunião (Panamá, 1939) consa-
grou a neutralidade dos Estados americanos (quanto à guerra que eclodi.\ na
Europa), a segunda (Havana, 1940) aprovou uma Declaração de Assistência
Recíprooa consagrando o "princípio da solidariedade continental face à agres-
são de origem extracontinental", e a terceira (Rio de laneiro, 1942) recomen-
dou a ruptura de relações com os países do Eixo (cada país procedendo r'on·
forme suas próprias circunstâncias); ao fim da guerra, o Ato de Chapultepec
(1945) sobre Assistência Recíproca e Solidariedade Americana. reportandc-se
aos mecanismos de consulta, já não mais cD:ltemplava tão-somente a hipótese
de agressão de origem extracontinental, mas também a de um pais americano
contra outro, completando assim o quadro da segurança coletiva anterior à
conclusão do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR ) em
1947 (26).
Vemos, assim, nesse breve relato dos experimentos de solução pacífica de
controvérsias que precederam o Pacto de Bogotá e o TIAR, que a contrihui-
ção de tratados foi decisiva, mas nem por isso deve ser exagerada. A multi-
plicidade de tratados nessa área pode inclusive ser tida como um sintoma de
(23) Oh. G. FENWICK, op. cit.• pp. 182-183; e cf. também A. BERRAR'I'E, op. cit.• pp. 216-218.
(24) Cit. In A. HBRRARTE, CY/I. cit., p. 219; Oh. O. P:ENWlCK, CY/I. cit., p. 184.
(25) Oh. G. FBNWICK, 011. cit•• pp. 184-18'1; A. HZRRARTE. op. cii., pp. 218-219. Para um
eetudo especl!1co da orbitragem D&8 Conferêncla8 Internacionais AmertcaJlM até o Pacto
de Bogot,A, cf. J. J. CAICEDO CABTILLA, "m ArbItra]e en 188 Conferencl&8 Panamertcanaa
hBBta 61 Pacto de Bogot& de 1948 sobre SOluciones PaciflcBB", 4 Boletim do Socfedade
BroaUewCl de Direito Inier1UJcionCll (1948) pp. 5-3:1.
(26) P. ORREGO VICV8A, CY/I. cit.. JlP. 1011-111.

R. Inf. leeill• ..... i1ia a. 19 n. 74 abr./JulI. 1982 163


sua insuficiência, senão, em alguns casos, ineficácia. De tempos em tempos,
àqueles tratados - e alguns não obtiveram o número suficiente de assinatu"ras
e ratificações - juntaram-se resoluções e declarações de Conferências Intera-
merioanas, tecnicamente desprovidas de efeitos jurídicos mandat6rios. EXem-
plo pertinente da cautela que se impõe em uma avaliação do "impacto" de tra-
tados nas relações interamericanas no campo da solução pacífica de contro-
vérsias internacionais é fornecido, e.g" pelo Tratado sobre Prevenção de Con-
trovérsias, de 1936 (supra).
Aquele instrumento chegou mesmo a propor o estabelecimento, pelas par-
tes contratantes, de comissões mistas bilaterais permanentes, destinadas a es-
tabelecer "as causas de futuras dificuldades ou controvérsias" e tomar assim
medidas adequadas a promover a "aplicação regular de tratados em vigor entre
as partes respectivas". Ora, a assinatura de um tratado contendo tais disposi-
tivos s6 poderia representar, no abalizado parecer de F'EN"WICK, uma "lofty
aspiration of the moment", que "deixava de levar em conta as dificuldades
práticas de sua aplicação. Ao meditar sobre isso, a maioria dos Estados ame-
ricanos parece ter reagido contra uma investigação desnecessária de situações
normalmente recaindo no âmbito da negociação diplomática. Embora quinze
Estados tivessem ratificado o tratado, mostrou-se este impraticável" (27). Isto
explica por que, em ocasião subseqüente, tenham os Estados americanos pre-
ferido tratar a questão por meio de resoluções, sem efeitos jurídicos obrigató-
Tios (28).
O Pacto de Bogotá de 1948, ou Tratado Americano de Soluções Pacíficas,
ao estipular de início a obrigação geral de solução pacífica de controvérsias
(cap. I), passa, em seguida, a dispor coordenadamente sobre procedimentos
distintos, como bons ofícios e mediação (cap. lI), investigação e conciliação
(cap. III), processos arbitral (cap. V) e judicial (cap. IV), inclusive o recur-
so à Corte Internacional de Justiça (caps. VI-VII) (29). Diferentemente do
TIAR e da Carta da OEA, cuja entrada em vigor condicionou-se à ratificllção
por dois terços dos Estados signatários, o Pacto de Bogotá, em virtude de
seu artigo LIII, "entrará em vigor entre as Altas Partes Contratantes de acordo
com a ordem em que depositem suas respectivas ratificações" (80). Temos,
assim, uma situação em que um tratado multilateral prevê sua entrada em
vigor mesmo no pIlmo das relações bilaterais dos Estados que o ratificaram
(cf. infra). Acrescenta o artigo LVIII que, à medida em que o Pacto de Bogo-
tá entrar em vigor pelas sucessivas ratificações das Altas Partes Contratantes,
cessarão para estas os efeitos de tratados anteriores sobre solução pacífica de
controvérsias (31) (cf. supra).
(27) Com1BBões mistas que vl6118eID a Investigar "causas de futUI'&S dificuldades ou contra-
vérslll8", ao invés de evitar tocar na questAo, "poderiam criar novos problemas"; Oh. G.
FENWICK. ol'. cU., p. 197.
(28) Resolução XV (Havana, 1940) sobre "SOluçA0 Pacifica de Confiitoll". e Resoluçlo XVI
(Havana, 1940) sobre "Mt\nutencAo da paz e UnlAo entre as Re\)úbllce.s Americanas", clt.
{Ilid., p. 198; cf. também o artigo 4 (b) da carta da OEA (Original de 1948).
(29) Cf. texto In: OEA, Série so!we Tratados: Tratado Americano de Soluefonos Pacificas,
"Pacto !te B09otd", vol. 17. Washington, 8ecretarla-Geral da OEA, 1966. pp. 29-39. SObre o
proc_o de elaboraçAo e conteúdo do Pacto de Bogoté.. cf., e.g.. J. M. YBPB8. "La Con-
férence Panam6rlcalne de Bogotá et le drolt Internatlonal amérlcaln", Revu6 Générale de
Droit lntl!7'714Uo714l Publlc (1949) pp. 52-74.
(30) Texto In: OEA, Série sobre Tratados: Tratado Aml!7'lcano de SolUciones Pacffictu ...•
011, ctt., p. 38.
(31) O artIgo LvnI enUIX1era oito desses tratadoe. convençOee e protocolos; cf. tuto ibicl" p, 39.

164 R. Inf. l..i.l. Bro.ilio o. 19 n. 74 obr./Jun. 1982


Ora, o quadro de aceitação do Pacto de Bogotá ao início da década de
oitenta não é dos mais alentadores: dos 21 Estados signatários, sete fOrol'lla·
ram reservas (Argentina, Bolívia, Equador, Nicarágua, Paraguai, Peru, Esta.dos
Unidos) (32); desses 21 Estados, apenas 14 o ratificaram até 1980, dos quais
três com reservas (Chile, Nicarágua, Peru), verificando-se um caso de de-
núncia (EI Salvador, 1973) (33). Desde que o Pacto entrou em vigor em 1949,
com a segunda ratificação, depositada por Costa Rica, têm sido justamente o
número insatisfatório de ratificações e as reservas que o têm transforoladoem
um instrumento "praticamente inoperante" ( 34 ), em "quase uma nulidade"
(3l'i). Por isso mesmo, vem o Pacto há muito sendo objeto de tentativaJS de re-
visão, com vistas a assegurar-lhe maior número de ratificações e, desse modo,
maior eficácia.
Assim, a resolução XCIX da Conferência de Caracas de 1954 urgiu Esta-
dos a que ratificassem o Pacto; três anos depois o Conselho da OEA concluiu
que a maioria dos governos não favorecia, na época, uma revisão do Pac-
to (36). Em meados da década de sessenta, quando dos trabalhos que prece-
deram a reforma da Carta da OEA, novamente voltou-se ao cogitar de uma
"revisão completa" do Pacto de Bogotá (37), e a resolução XIII da Conferên-
cia do Rio de Janeiro de 1965 urgiu os Estados americanos a que aderissem
ao Pacto de Bogotá (38).
O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR, ou Tratado
do Rio de Janeiro, 1947) prevê medidas em caso de ataque armado cemtra
um Estado americano assim como medidas em caso de agressão não armada
cootra um Estado americano (39). Ap6s o Protocolo de Reforma do TlAR, de
1915, a matéria passou a ser regulamentada mais detalhadamente pelos artigos
3 e 6 do TIAR, respectivamente (40). Ora, iá se alertou para o caráter «fic-
tício" da caracterização de um ataque armado extracontinental como um ata-
que contra "todos os Estados americanos" de modo a acarretar um "compro-
misso" de assistência automática, hipótese ainda mais remota na atual era da
détente (41); por conseguinte, em sua maior parte, as aplicações do TIAR têm
se originado no atual artigo 6, cobrindo a agressão distinta do ataque armado
(a exemplo dos casos de sanções contra Cuba, e da Guatemala, em 1954) (42).
(32) Texto ibid., pp. 39-42.
(33) OAS, lnter-American Treatie" anel convention.t, Washington, Secretaria-Geral da OEA,
1980, p. 45.
(34) A. HERRARTE, 01'. cit., p. 231.
(35) A. V. W. TROMAS e A. J. TRaMAS m., The OTganf.mtion 01 Americ/ln St/lte&, DaUas,
Bouthern Uethodlst Unlv. Pr1l8II, 1963, p. 297.
(36) Ibid, pp. 490-491: Oh. G. FENWIeB:, 01'. cU., pp. 192-193.
(37) CJ!:SAR BEPOLVEDA, "The Retorm o! tbe Cbarter o! the Ol'ganlzatlon o! American
statea", 137 Recuetl de& CotU'3 de l'ACGlUmfe de DTott lnternatiol'lal (1972) pp. 107-108.
(38) Ibid., p. 118.
(39) Cf. texto in: OEA, Série .sobre Tratado.t: Tratado Interamertcano de A38útllnckl Recfproc/l,
vol. 8, Washlngton, Bec:retarta-Gera1 da OBA, 1ge5, pp. 1-7.
(tOl Cf. texto in: OBA, Série .sobre TratadO.t: Protocolo de BelONlUJ, do Trctado Interamencano
de A3,iBtllnckl Reciproca (TIAR), vol. 48. WlUIb1ngton, 8ecretaria-Geral da OEA, 1975,
pp.3-10.
(41) Neue sentido, A. GóMEZ ROBLBDO, "m Protocolo de ReI'onnllll eJ Tratado Interamert-
cano de As1Btencia Reciproca", Tercer G'uno de Derec1w Internacional organizado por el
Comftll Juridlco lnteramerlc4no, doc. OBAl8er.Q/V.C-3. CU-3D, 1977, pp. 139-140 e 144.
(42) Cf. fbid., pp. 144-U5.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 165


o Protocolo de Reforma do TIAR, de 1975, bcorporou em seu artigo 9 a defi-
nição de agressão adotada pela Assembléia Geral da ONU em dezembro de
1974, restringindo a caracterização da agressão ao uso da força armada Ou
outros casos equivalentes determinados pelo Órgão de Consulta. O artigo 8
enumera sanções sob o TIAR (43), as quais podem tomar-se sem efeito por
decisão da maioria absoluta dos Estados-Partes (artigo 20); assim, o Proto~·olo
de 1975 possibilitou descartar, por decisão majoritária, sanções anteriormt'nte
adotadas por maioria de dois terços, emprestando maior elasticidade ao
TIAR (44).
Desse modo, poucos dias após a conclusão do Protocolo de 1975, a XVI
Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores facultava aos Esta-
dos-Partes no TIAR levantar as sanções existe:.tes em relação a Cuba; a pres-
são nesse sentido já se fazia sentir há al~m tempo, lembrando-se, e.g., que
em 1973 a Assembléia Geral da OEA adotara resolução sobre o pluralismo
ideológico (411).
Outra característica das emendas do TIAR diz respeito a uma "maior aber-
tura», por assim dizer, do Tratado do Rio ao sisteIJlQ de segurança coletiva da
ONU. O atual artigo 10 do TlAR dispõe sobre o recurso das partes contrllcan-
tes ao Conselho de Segurança da ONU, mas foi o novo artigo 2 do TIAR (lue,
ainda que reafirmando os processos e mecanismos interamericanos de solução
pacífica de controvérsias, não priva aos Estados-Partes o recurso aos mennis-
mos da ONU. Há os que têm identificado nessas modificações um interesse
dos Estados latino-americanos de debilitar um sistema regional de segmança
originado no período da guerra fria e de se distanciarem da influência dos
Estados Unidos (48); nessa perspectiva, o que estaria hoje em evolução seria
um sistema regional que, em última análise, não se basearia em tratado:, ou
instituições unicamente, mas, dadas as limitações do sistema bteramerlcano,
comportaria medidas ou atitudes complementares - a nível nacional - do
sistema de segurança (47).
Embora, como veremos mais adiante, ocasloes tenha havido de aplic,lção
do TIAR, há os que sempre defenderam métodos mais práticos e ágeis de
atuação (48). Caberia, a esse respeito, recordar aqui o exemplo da Comi<;são
Interamericana de Paz, criada por uma resolução e não por um tratado: quan-
do, em Havana em 1940 (Resolução XIV), a Reunião dos Ministros de Rela-
ções Exteriores criou aquela Comissão, formalmente constituída em 1948 e
que curiosame:lte passaria a coexistir -::om os procedimentos do Pacto de Bo-
gotá e do TIAR, jamais se imaginava que viesse ela a assumir função tão rele-
(43) Inter alia, rompimento de relaçlles dlplom6tlcas ou COnsularE!l!l, InterrupçAo (total ou
pardal) de re1açlles econômicas ou das comunlcaçl)es, emprego da torça annada.
(4.4) A. GóMl!:Z ROBLEDO, 01'. dt., p. 153. - PaTa um estudo geral do Protocolo de 1975 de
re1'onnas ao TIA.R. cf.• e.g., EDUARDO JIM:tNEZ DE ARECHAGA. "La Segur1dad Colectiva
en Amérlea Latina". Primertll Jornadas LaUnoamencrm48 de Derech.o Internacional. Ca-
raell8. Unlversldad Católica Andrés !lello. 1979, pp. 188-196.
(45) F. ORREOO VICURA, 01'. cit., pp. 119 e 12l.
(48) R. DtAZ ALBONICO. ''El 8!fltema de SegUrldad Interamerleanp, y sus Nuev08 Desarrolloe
a travéll dei Tratado de Tl.&telolco'" 13 Estudlo~ lfl.tertltICtcm.ct1u - Santte,gQ \19&\}) n.o
ll1, p. 347; P. ORREGO VICURA, op. cit.• :pp. 116 e 123.
(47) P. ORREOO VICOl'itA, op. cit., pp. 123-124.
(48) Ci.• e.g., C. SEP1lLVEDA, uThe Retonn ••. ". 01'. cit., p. 131.

166 R. Int. legls" Brasilia a. 19 n. 74 obr./Jun. 1982


vante na solução pacífica de controvérsias no sistema interamericano, A des-
peito de sua base não convencional, foi acionada em inúmeras ocasiões (49),
podendo-se atribuir o seu sucesso à sua flexibilidade de ação, sem as dificul-
dades dos I?rocedimentos do Pacto de Bogotá e do TIAR, e à rapidez de atua-
ção na ausencia de obrigações derivando de tratados, podendo a~r por hicia-
tiva própria (GO).
A Comissão Interamericana de Paz teve suas faculdades ampliada,> em
1959, e, quando da reforma da Carta da OEA (Protocolo de Buenos Aires de
1967), foi substituída pela Comissão Interamericana de Solução Pacífica, ::om
poderes mais amplos mas como órgão subsidiário do Conselho Permam-nte
da OEA (111). Mesmo recentemente, em 1979, observou-se que, enquanto per-
sistir a virtual inoperância do Pacto de Bogotá (cf. supra), a Comissão. "não
sujeita a ionterpretação e, portanto, menos ríg;:da do que qualquer pacto, pooe
continuar prestando seus serviços em prol da paz do continente" (52).
Recorde-se, ademais, que as origens da própria Reunião de Consultl de
Ministros de Relações Exteriores, órgão dos mais ativos (53), operando inclu-
sive como órgão de consulta na aplicação dos dispositivos do TIAR (<lrti-
go 6) (54), remontam à Declaração de Lima de 1938 (cf. supra) (\111). um
instrumento tecnicamente desprovido de efeitos jurídicos mandatários. Com
a adoção da Carta da OEA e do TIAR. possibilitou-se a coovocação da Reunião
de Consulta sob qualquer daqueles dJis tratados multilaterais (1\6).
A julgar pelo grande número de tratados relativos à solução pacífica de
controvérsias internacionais, seria de se supor que seu "impacto" nas relações
interamericanas haveria de ser considerável. À luz dos resultados obtidos, con-
tudo, há que se precaver contra conclusões indevidamente otimistas. Natural-
mente houve casos solucionados por procedimentos interamerica:los, como, e.g.,
a controvérsia entre o Haiti e a República Dominicana (1937). resolvida j1ela
Comissão de Investigação e Conciliação estabelecida sob o Tratado Gondra
de 1923 e a Convenção de Washington de Conciliação Interamericana de
1929 (117). Mas houve também casos resolvidos não pelos mecanismos do~ tra-
tados existentes, mas por Comissões ad hoc, como, e.~., os litígios fronteiriços
opondo Guatemala e Honduras (1930), e Equador e Peru (1942), assim ci'~mO
(49) Cf. A. V. W. TROMAS e A. J. TROMAS m .. 01'. cit.• pp. 125-128 e 301; Oh. a. :FBNWICK.
The Drgrmizatfon ... , op. clt., pp. 198-208.
(~) Oh. a. FENWICK, Th.e Organization ••. , 01', clt., p. 208: C. SEPOLVEDA. "The Reform ... ".
01', ctt., pp. 99-101; A. HERRARTE, 01'. cit., pp. 222-223. A atuaçA.o da Com1ssA.o lntera-
merlcana de Paz n08 casos opondo O Haltl 1\ República Dom.Inlcana ( 19411·1950), por
exemplo, demon8tra a preferência dos Estados envolvidos por uma "pronta soluçA0"
ao Invés dos proeedtmentos "complicados" do Pacto de Bogotá; A. V. W. Thomas e A. J.
Thomas Jr., 01', cit., p. 302.
(51) C. SEPCLVEDA, 'The Reform ...... op. cit., pp. 129·130 e cf. p. 118; A. HERRARTB, 01'. cte.,
p.323.
(52) A. HERRARTE, op. cit., p. 231.
(53) Cf. C. SBPOLVEDA, "The Reform ... ". op. cit., pp. 98 e 103.
(54) Pare. um exemplo recente, cf. DAS, Annual Beport o/ t1l.e Secretary General, 19'16, DAS
doc. OEA/Ber.D/lIl.27, de 1976. p. 4.
(M) A. V. W. TROMAS e A. J. TROMAS m., 071. cit.• pp. 23-24; Ch. a. FEKWlCK, Th.e Orl1a-
nwtion... , op. cit., p. 88; Ch. O. :PIl:NWICK, "m Sistema Regional Interamerlcano: Cln-
cuenta. MO/! de Progreso", AnU4!ríO Jurldíco lnteramerícano (1955-1957) p. 43.
(56) DAS, Annual Report o/ tlte SeeretaT1l ~era~. 191t1. clt. supra, p. 4.
(57) Oh. O. FBNWICK, 7'h.e Drganizafíoft •.. , op. crif. DD. 196-19'1'.

R. Inf. legill. Bralma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 167


o conflito do Chaco (1929) e a controvérsia de Letícia entre ColÔmbia e Peru
(1934) - estas duas últimas com a assistência da Liga das Nações (~8). Tam-
bém tem havido casos que culminaram na Corte Internacional de Justiça (mais
além dos procedimentos puramente interamericanos), como o casO do AYilo
entre Peru e Colômbia (1950-1951) (a9), e o conflito fronteiriço entIe Hon-
duras e Nicarágua relativo ao laudo arbitral do Rei da Espamha em 1906
(1960) (60).
No tocante ao Pacto de Bogotá, embora tivesse ele sido invocado no ('Oh-
flito limítrofe entre Honduras e Nicarágua em 1957 (61), vimos que, em razão
das reservas e do número insuficiente das ratificações, tem sido um instru-
mento virtualmente inoperante (cf. supra). Já o TIAR tem sido aplicado em
algumas ocasiões, documentadas na coletânea Tratado Interamerlcano de Asis-
tenda Recíproca: Aplicacianes (3 volumes): citem-se, inter alia, os casos Costa
Rica tl. Nicarágua (1M&-1949 e 19(5) (e2.), a situação da Guatemala
(1954) (M ), o famoso caso cubano (1962) (64), o caso El Salvado1' v. II on-
duras (1969-1976) (65), e novamente o caso cubano (1974-1975) (66). A apli.
cação do TIAR nessas ocasiões não tem passado sem críticas, chegando G6MEZ
ROBLEDO a comentar que o tratado muito necessitava das emendas de 1975,
pois era a "causa principal do crescente descrédito da OEA, tendo servido aos
interesses da potência hegemônica" na região (67). Talvez estejamos, mesmo
após as emendas de 1975, diante de uma mudança de ênfase, por parte dos
Estados latino-americanos, dos projetos de segurança e defesa para os progra-
mas de cooperação para o desenvolvimento econômico da região (68).
Dentre os diversos litígios ainda pendentes, aguardando solução, na Amé-
rica Latina (69), se tomarmos por exemplo os mais recentes, constatamos não
uma aplicação automática dos mecanismos institucionais do sistema intera-
(58) Ib1.d., p. 196.
(:19) ICJ Reports (19~O) pp. 286-289, e ICJ Reporta (1951) pp. 71.84.
(60) ICJ Reports (1960) pp. 192-217.
(61) J. C. LUPINACCI, "Los Proeed1mlentos Jurlsdicclonll1es en el Tratado Americano de 80-
luclonll8 Pacificas (Pacto de Bogotá)", Am~ario Uruguayo de Derecho InternacWn41 (1962)
pp. 2~206: A. V. W. maMAS e A. J. TRaMAS m., cp. cit., pp. 315-316: 1ISl!I1m, o envio
do Cl\IlO to COrte de Baia se 1~ to luz dOll d1epOllltiV08 a respelto do Pacto de Bogotá.
(62) TratGd() InterllmerUlllno de Asistenc14 Rectproca: Aplicaclonea, vol. I: 1948~1959, 5.• ed.,
W83hJngton, Secretaria-Geral da OEA, 1973, pp. 33·67 e 159-215.
(1l3) l!lid., pp. 153-156.
(64) TratadO lnteramertcano de Aristenma Reciproca: Aplicacionea, val. n: 1960~1972. 5.& 00.,
WaBh1ngton, Secretaria-Geral da OBA. 1973, pp. 103-158 e 215-247.
(6:5) Ib1.d., pp. 277-378; Inter.Amerfccm Treaf:Y of Reclprocal Aarlstance: AppUcatlon8, vaI.
UI: 1973-1976, Wa.&hlngton, Secretaria-Geral da OEA, 1977, pp. 17-59.
(66) Inter-American Treaf:Y ... o vol. m, cp. cit. o pp. 63-811.
(61) A. GOMEZ ROBLEDO, cp. cit., p. 133. Sobre o peso ou ln!1uêncla dos Betad08 Unidos no
sistema Interamer1cano, cf., e.g., I. L. CLAUDE JR., "Tbe O.A.S.• the U.N., and the United
Statea", 547 lnternetiOfl4l Cone!tfadCln (111M) pp. 3-63~ G. MES:K. "U.S. Infiuene<!. \.n. t.he
Organ1Zatlon of Amerlcan Statea", 17 JouT'1l41 of Inter-Amencan stu4tu Cln4 Worlc:t
Attatra (1975) pp. 311-325. ~ Sobre o TIAR em geral, cf., e.g.• A. GOMEZ ROBLBDO. La
Sevu1'fdad Colecttva em el Conftnente Amerjcano, México, Escuela Nac!onal de C1encla.s
Polltlcall Y Soclalea. 1960, pp. 100-158.
(68) WALTER SANCHEZ. "Tblrd World PerspectiVeli on Regional Arrangements for Peaee
and Security: the Latln Amerlcan Case", 5 Jerusalem Journal 01 /nternatlonal RelatfOns
(1981) pp. 1-15, esp. p. 6.
(69) Cf.: "Informe Especial: Lo6 VleJ03 Pleitos de Fronteru", 52 Vi8ión - Bel/Í8ta lntera-
merUla?14 (1979) n.o 4, pp. 6-15; 'I'ElXElRA SOARES. "Pontos de Prlcçf.o na América
LatIna", 14 Revista Brcmlelra ae POltttoo Internacional (1971) pp. 45-63.

R. lllf. legisl. Brasília CI. 19 n. 74 abt./lun. 1982


merieano, mas antes uma busca de soluções individuais adequadas para cada
caso (e.g., El Salvador 1981, Nicarágua 1978-1979 (70), crise Peru v. Equador
1981), ainda que transcendendo os meios de solução pacífica puramente re-
gionais (e.g., na controvérsia chüeno-argentina sobre o canal de Beagle, a
mediação da Santa Sé a partir de 1979, após o laudo arbitral de 1977). Não é,
pois, de se surpreender que já em seu primeiro período de sessões, em 1971,
tenha a Assembléia Geral da üEA se preocupado e se detido na questão do
"fortalecimento do sistema interamericano de paz" pelo estudo dos tratados e
convenções que integram tal sistema com base na experiência obtida em sua
aplicação (AG, Resolução nQ 54) (71) - objeto também de parecer, no meSmO
ano, da Comissão Jurídica Interamericana, em que esta recomenda a todos
os Estados·Membros da OEA a ratíficação do Pacto de Bogotá corno "o me-
lhor meio para consolidar e aperfeiçoar o sistema interamericano de paz" ('12).

lU. A desnuclearização da América Latina


A significação do Tratado para a Proscrição de Armas Nucleares na Amé-
rica Latina, ou Tratado de Tlatelolco, de 1967, que precedeu em mais de um
ano o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, é manifesta. O Tra-
tado de TlateloIco proíbe peremptória e permanentemente o uso, fabricação
e armazenamento de armas nucleares na América Latina (artigo 1Q), ao mes-
mo tempo que consagra a utilização da energia nuclear com fins pacíficos
(artigos 17-18) para o desenvolvimento econômico e social. Trata-se, em ma-
téria de desarmamento, do primeiro tratado do gênero dotado de um sist~ma
de controle efetivo com órgãos permanentes pr6prios de inspeção, e o primeiro
relativo a uma região de dimensão quase continental abrangendo territórios
de grande densidade populacional (73) (diferindo, assim, e.g., da zona de
aplicação do Tratado aa Antártida).
Embora se trate de um tratado regional, cria um regime jurídico bem
mais amplo em virtude de seu â.mbito geral de aplicação assegurado pelos
dois protocolos adicionais. Assim, são regulamentadas tanto as relações entre
Estados da região não dotados de armas nucleares, quanto as relações entre
Estados da re~ão e potências intra e extracontinentais possuidoras do poder
nuclear (74). O Protocolo Adicional II volta-se às potências nucleares (EUA,
URSS, França, Reino Unido, China Popular), ao passo que o Protocolo Adi-
cional I dirige-se aos Estados internacionalmente responsáveis por territ6rios
('10) Para dlscUll86es recentes de aspectoll Jurfcl1c06 do caso da NicarágUa (1978-1979), cf. A.
VAZQUEZ OARIl.IZOSA, "El Caso de Nlcaragua en la XVII Reunlõn de Consulta: los
Derechos Humanos como Fulldam.ento de la Acclón InternacIonal", AnUário Juríafco
/nter4meNc4no (1979) pp. 3-54; LABJdAN C. W'lLSON. "The Nlcaraguan Inaul'1'ectlon and
the Principie of Non·Intervention" (comun1caçlo apJ'elllllntada ~ Bell8lo anual da "Inter-
national 6tudlee A8soclatlon" de 1981). Phlladelpbla. 1981. W. 1-58 (mimeografado, clrcul.
1nterna) .
(71) Comité Jurídico Intel'8.mericano, Becom~e8 e Informes - .Documentos Oficiales
1967-1973, vaI. X, Washington, secretaria Qeneral de la OEA. 1978, pp. 3<17-348 e 356.
(72) 1bfã., p. 40'1, e cf, pp. 392-407.
('13) A. GARCiA ROBLES, "1Ie8ure6 de lÜ8lUmement dana des zonea ptlrticullues; le Tr&Ité
vl911.nt 1'1nterdlctlon des armes nucl68.lre8 en Amérlque Latlne", 133 Becueit des COUTS de
J'AcCldémie de DToit Inter1l4tionCll (1971) p. 71. Comenta o autor que embora também o
Tratado da Antártida vise a desnuclear1zBçlo e a desmlIltarizaçAo (a fins bellC08011)
daquela região, é esta uma zona lnabltada e coberta de neves eternas. o que assegura
lIII81m uma certa "superioridade" em Import&nç. ao Tratado de Tlatelolco; ibfã., p. 56.
(74) R. DtAZ ALBONIOO, "m Sistema de 8eguridad ... "o op. cit., p. 347.

R. Inf. "gitl. Braília ao 19 11. 74 abr./jun. 1982 169


situados na zona de aplicação do Tratado (EUA, França, Rebo Unido, Países
Baixos) com vistas a aplicar o estatuto de desnuclearização sobre tais territó-
rios; já as potências nucleares se comprometem, em virtude do segundo pro-
tocolo, a respeitar os dispositivos do Tratado e o. estatuto da desnucleartzação
e a não recorrer nem ao emprego de armas nucleare~ nem à ameaça de ~eu
emprego contra os Estados-Partes contratantes (75).
O Tratado de Tlatelolco estabelece uma "Agêncía para a Proscrição das
Annas Nucleares da América Latina" (OPANAL - artigo 79 ), e tem (Como
órgãos principais a Conferência Geral, o CD:1selho (de 5 membros) e a Se-
cretaria (artigos 79 alI). O Tratado prevê mecanismos de controle, compre-
endendo relatórios e inspeções especiais, referindo-se ainda às salvaguardas
da AIEA (artigos 12-16 e 18, §§ 29 e 3 9 ) (76). Constitui, com efeito, o primeiro
tratado multilateral sobre a matéria prevendo a aplicação de um sistema de
controle institucional e internac;onal tendente ao reconhecimento e aceibção
de garantias internacionais' (77). Tem-se ponderado a esse respeito que é pre-
cisamente no âmbito regional que maior progresso se tem logrado (78): n Tra-
tado de Tlatelolco, consagrado mais do que à não-proliferação de annas nu-
cleares, visa o não-armamento (mais do que o desannamento). um regim~ de
ausêncía total e pennanente de armas rJucleares no plano regional (79).
Para esse prOpÓsito, o Tratado de Tlatelolco estabelece, por assim dizer,
um sistema de "duplo controle", englobando não apenas os mecanismos de
controle do OPANAL (supra), como também os acordos multilaterais ou hila-
terais que cada parte contratante vier a negocíar com a Agência Internacional
de Energia Atômica para a aplicação das salva~ardas da AIEA a suas atividades
nucleares. As razões pam este "duplo controle" se devem ao próprio alcance
amplo do Tratado de TlateloIco. 'lue proíbe não anenas o ensaio, uso, fabrica-
ção ou aquisição de armas nucleares, como também a recepção, armazena-
mento, instalação, colocação ou qualQuer forma de posse de armas nucleares
(pelas próprias partes contratantes, direta ou indiretam e:l te. por mandato de
terceiros ou de qualquer outro modo) (80).
Segundo dados divulgados até 1980, dos 25 Estados signatários do
Tratado de Tlatelolco (81), 22 tornaram·se Estados-Partes contratantes
(75) A. GARCfA ROBLES. op. cito supra n. O 73. DP. 81·82.
(76) Texto do Tratado de 'I1atelolco reproduzido In, e.!!,.. 23 Boletim dI! Sociedade BrasHelra
de Dtrefto Internacronal (1967) n.Os 45-46, pp. 163-175.
(77) A. GARetA ROBLEB. op. clt. supra n.!> 73. p. 100.
('18) A exemplO nio apenas do Tratado de T1atelolco mas também da desmllltarlzaçAo l!6ta-
tuida pelo Tratado da Antártida: ibld., pp. 102-103.
(79) Ibü!., pp. 102-103; e, no mesmo sentido, R. DtAZ ALBóNlCO, op. cit.. p. 355. Para e!ltudofl
gerais do Tratado, cf., e.g.: H. GROS ESPIELL. "El Tratado de Tlatelolco y el Organismo
para la Proecr1pclón de las Armas Nucleares en la América Latina", Quinto Curso de
DeTecho Inter>UlC'ionl11 Organizado por el Comité Jurf4ico Int",.4meP'lc4no, OBA doc.
OEA/8er.QfV,C-5, CJI-38, 1979, pp. 195-246: H. GROS ESPIELL, "La Begurldad Colectlva
en América Latina y e1 Tratado de Tlatelolco", Prlmeras Jornad4, Latln04mericanas
de Derecho Internacional, CaraclUl. Unlversldad Católlca Andréa Bello, 19'19, pp. 221-235;
.r. L. HUSBAND6. "N\lclear Prollferatlon and the Inter-Amerlcan Sy8tetn", The Future
oI tAlIlftter-AfIIeriolIn SlIlItem. (ed. T. J. Farer), N.T., Praeger. 1979, pp. 204-231; A. GARCtA
ROBLB8, El Trotado de T14telo!co, México, E1 Coleglo de México, 1987, pp. 3-303; J. R.
RlllDlCK, ''The Tlatelolco Regime and Non-prollferatlon In Latln Amerlca", 3S Inter-
national Orgl1nization (1981) pp. 103-134.
(80) R. DtAZ ALBóNICO, cp. cit., p. 356.
(81) Dolll ElItad06 nAo-slgnatárlos aio Cuba e GuIana,

170 R. I"f. legisl. Brasílio a. 19 n. 74 ol»r.1lu". 1982


e 2 outros (82) ratificaram-no sem a dispensa prevista no artigo 28, § 2Q (83),
Ratificaram o Protocolo Adicional I o Reino Unido e os Países Baixos, sendo
signatários os Estados Unidos e a Fra':lça; quanto ao Protocol'o Adicional lI,
ratifi<laram-no os Estados Unidos, a China Popular, o Reino Unido, a França
e a União Soviét~ca (84). Naturalmente que o ,T.ratado tem uma existência ~u­
t6nomaem relaçao, e. g., ao seu Protocolo AdICiOnal II concernente às poten-
das nucleares, e a aceitação por parte dé:stas das obrigações contidas no Proto-
colo Adiciooal II estão longe de representar um pesado ônus para aquelas
potências, dado que tais obrigações estão em inteira conformidade com a pr6;lTia
Carta da ONU ( 8~) ,
Não é difícil de antever o "impacto" do Tratado de Tlatelolco (e PlCto-
colos) nas relações internacionais contemporâneas. A fórmula da zona desnn-
clearizada consagrada nesse Tratado pOT iniciativa dos Estados latino-america-
nos constitui um dos poucos progressos reais e positivos rumo ao desarmamento,
não excIude:lte do uso do átomo com fins pacíficos (86). Como ilustração do
"impacto" do Tratado nas relações internacionais, recorde-se, e. g., a "importân-
cia histórica" - no dizer do Secretário-Geral do OPANAL - da assinatura
pelos Estados Unidos do Protocolo Adicional 1, projetando-se sobre a posição
da França quanto ao mesmo Protocolo e sobre a decisão da União Soviética de
assinar o Protocolo Adicional lI; e se e quando os Estados Unidos se decidirem
a ratificar o Protocolo Adicional I, tal decisão incidirá certame:1te nas ne~(lcia­
ções em curso para que ce~tos Estados do continente se tornem tJartes contra-
tantes no Tratado de TIatelolco (87). Enfim, embora uma análise comparativa
entre este Tratado e o de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) escape
aos propósitos do presente estudo. o "relativo fracasso" da Conferência de Re-
visão do TNP (Genebra. 1975) "aumenta em conseqüência a ímportâncb do
Tratado de TIatelolco" (88).

IV. A evolução de "tratados contitutivos"; o caso da Carta da OEA

Os tratados constitutivos em particular, como a Carta da üEA, iustamente


por criarem organismos internacionais dotados de órgãos próprios, exercem um
papel de relevância para a própria produção de normas a regerem as relações
internacionais (89) - mas trata-se de uma categoria toda especial e redu7ida
de tratados. A evolução dos tratados desse gênero e do regime jurídico por
eles criado merece algumas reflexões.

(82) Brasil e Chlle.


(83) A Argentina é o Estado signatário que n,r.o ratl1lcou o Tratado. Cf. dados In OPANAL,
doe. CG/182, ConferenclB General. Informe dei Secretario General, maio 1977/abrll 1979,
po.rte II (Cl1'culaçlo Interna, mimeografado).
(84) Ibl.d., parte TI: e cf. OAB, Treaty Bertes n.o 9, lnter-Amerlcan Treaties and Conventions,
Washington, OAB General Becretartat, 1980, pp. 293-294.
(85) NeBlle sentido, r~oluçAo :>666 (XXV) da Aasembléla Geral da ONU, clt. In A. GARCtA
BOBLES, 011. clt. supra n.o 73, p. 104.
(88) S. GROS ESPIELL, "Estados Unidos y el Protocolo Adicionai I dei TrataClo de Tlatelolco",
1 Mundo N'UC'VO - C&n.cas {l9711), n.O 2, p. 94.
(87) Ibfd., pp. 108-110.
(8111 OPANAL, doc. CG/182, Informe del Secretario General, cít. 81J.pra, parte 11.
(89) Of., nesse sentido, e.g., C. SEPOLVElDA, Las Fuentes ... , 01'. cit., pp. 64 e 67-69.

R. '"t. legisl, Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln, 1982 171


Cedo na vida da Organização dos Estados Americanos colocou-se o pro-
blema da interpretação dos poderes atribuídos ao Conselho da OEA. A questão
de sua competência foi objeto de estudo, em 1949, a partir dos disposit'vos
do TIAR, da Carta da OEA e de resoluções adotadas na Conferência da OEA
(independentemente da Carta). t a partir do momento em que um Estado-
Membro da OEA solicita a realízação de uma reunião de consulta que se con-
figura a questão da competência do Conselho. Em estudo pioneiro a re5,lt'ito,
FENWICK defendeu a tese de que, a partir de então, possui o Conselho todas
as faculdades que necessite" para examinar um determinado caso (e verificar
se constitui ou não um problema de "caráter urgente"); mesmo em caso de
dúvida, poderá o Conselho realizar as investigações que julgar necessárias para
esclarecer a questão, inclusive nomear uma comissão especial para informá-lo
sobre a situação e atribuir as faculdades que julgar necessárias a esta Comissão.
Em suma, "a competência do Conselho nesta tarefa de investigar os fatos não
tem límitaçães, exceto as que ele pr6prio se impuser" (90).
No ano seguinte, foi a própria Comissão Jurídica Interamericana quem
emitiu parecer sobre o alcance das faculdades do Conselho da OEA. Come-
çou por atribuir aos pr6prios governos ~ interpretação da matéria, ressaltando
o caráter não compulsório do exercício das funções do Conselho e afirmando
que a hIstória do pan-americanismo e da própria Carta da OEA "se caracte-
riza por um respeito absoluto pela soberania de cada um dos Estados do
continente. ( ... ) A Organização dos Estados Americanos é uma associação ou
grupo de nações em que não há delegação alguma de soberania ( ... ) Antes
de a Carta mencionar os órgãos e estabelecer suas funções, reafirma os direitos
e deveres fundamentais dos Estados ( ... ) O sistema interamericano carece
em absoluto de órgãos executivos; só contém órgãos de cooperação" (lIl). Adver-
tiu a Comissão que nenhum dos órgãos da OEA desfruta de "faculdade-; ima-
nentes" e que nenhum deles pode ter faculdade para exercer funções de sobe-
rania, para obrigar os Estados por meio de tratado não ratificado, para impor
obrigações a cargo dos Estados por meio de resoluções ou outros acordos
(exceto os artigos 20 do TIAR e 54 da Carta), para exercer funções que não
lhes estejam expressamente outorgadas (ou que sejam atribuídas expressa ou
concretamente a outro órgão) (92).
A Comissão deixou ainda bem claro que o Conselho da OEA dispõe tão-
somente das faculdades que lhe tenham sido "positivamente outorgadas", dado
que niio se pode supor que possam ser elas "imanente ou tacitallllente conce-
didas" (93). Recordando o "sistema de cooperação voluntária" que anima não
apenas a Carta da OEA como o próprio pan-americanismo, acrescentou a Co-
missão que a extensão OU alcance das faculdades do Conselho da OEA (deriva-
(90) o que n40 slgnlflca que J)llMa o CoJlMlhO atuar como um tribunal judicial. Ch. O.
PEN'W'lCK, 14 Competmacl4 lt:~~ Ccm.n1o ~ la Orgllni.uulfón (te It» Bulidos AmerkllJnt»,
OEA, 1949. pp. 17, 19, 21, 26 e 28-29, eep. p. 29 (ed. mlmeografada). Toda vez que a Co-
mllleio Interamerlcan& de Paz. constltuída pelo Conselho em 1948, nf.o dlapWMlr de
facuIcladee para a BOIuçio de determinado caso, podarA o Conselho BBaumlr e exercer
88 funçoe& daque1& COmllleio para determinar se o caso se ajusta aos termOll do TIAR
(se considerado suficientemente Importante para a convocaçio da ReunlAo de Consulta).
l!rid., pp. 32-34.
(91) COmitê JUI1dlco Interamericano, Becom~fones e Informes - Documento. OffcfI;Jles
1949-1953, vol. m, Slo Paulo, Empr. Oráf. Rev. doa TribunBl.B. 1955, 1>1>. 191-192, e cf. pp.
188 e 190.
(92) lbiG" pp. 196-197.
(93) lbút., p. 201, e cf. pp. 208.209.

172 R. Inf. lagial. lroamo o. 19 n. 74 ••./Jun. 1982


das dos artigos 70, 64 e 74) está limitada pela "necessidade absoluta" de se ater
à "autorização e~ressa da Carta" na atribuição dos trabalhos aos órgãos capa-
citados da OEA (94,).
};; curioso observar que estas palavras da Comissão Jurídica Interamericana
datam de 1950, portanto o ano seguinte ao clássico Parecer da Corte Interna-
cional de Justiça no caso das Reparações de Danos (1949), em que logrou obter
reconhecimento judicial a doutrina dos poderes implícitos da ONU, forta~
ledda em 1962 pelo Parecer da Corte de Haia no caso de Certas Despesas da
ONU ... Parece ter havido, pois, naquela altura, um certo descompasso entre
o processo de interpretação dos poderes atribuídos aos órgãos da ONU e aos
da OEA.
Contudo, a matéria seguiria evolução distinta na OEA, ao voltar a ser
objeto de estudo da Comissão Jurídica Interamericana em 1900. Em nuvo
Parecer sobre o alcance das facufdades do Conselho da OEA, emitido naquele
ano, a Comissão introduziu modificações no Parecer de uma década atrás. A
matéria foi retomada pelo delegado norte-americano, defendendo a tese de que
cabia ao Conselho decidir sobre sua própria competência, não devendo fi-
xar-se regras rígidas a respeito (95); a proposta chegava a fazer referência
explícita a "funções impücitas" do Conselho da OEA (911). A Comissão Jurí-
dica Interamericana observou de início que, se não houver normas expre.•sas,
não pode o Conselho criá·las, faculdade reservada à Conferência Internacional
Americana; contudo, pode o Conselho da OEA interpretar se determinado caso
submetido a seu conhecimento recai sob sua competência (a chamada "compe-
tência da competência"), faculdade esta a ser exercida "dentro dos limites
expressos fixados pelas normas vigentes" (97).
Mais recentemente, voltou-se novamente a defender a tese de que, "do
ponto de vista estritamente jurídico e institucional, o Órgão de Consulta não
apenas tem a faculdade, como também a responsabilidade de tomar todas as
medidas ou ações que sejam necessárias, quaisquer que forem as matérias ou
assuntos sobre os quais versem, sem prejuízo de que tenha que se admitir que
o grau em que exerce sua competência depende, sobretudo, de considerações
e decisões políticas" (98). Assim, na ausência de dispositivos da Carta da üEA
ou do TIAR, limitando expressa ou tacitamente a competência do 6rgão de
çonsulta, está este "autorizado a tomar conhecimento das distintas categorias
de atos, fatos, situações e controvérsias contempladas naqueles dois illJtru-
mentos", não cabendo aqui objetar cOm base no princípio da não-intervenção
nos assuntos internos ou externos dos Estados ou no da inviolabüidade de seu
território (99).
(94) lbid-., pp. 210-213, e cf. também p. 215.
(95) comité Juridlco Interamerl.cano. BecommcfacloMa e lnforme!l - Docu.ment08 Oficw.Ul8
1960-1961. vo1. Vil, Rio de Janeiro, 1964, pp. 47-48.
(96) Ib&t., p. 49.
(97) Acreecentou a CODl1s8Io c&utelOll&D1ente que tal processo de lnterpretaçio n40 poderia
_ UIad.o no aentldo de "poIlIllbUltar uma ampl1aÇio" da capacidade legal do Conselho
de agir, e que 011 poes(ve18 erros no eurclclo daQ.Wl1a compet4!nc1a corrtgir-se-tam "pe1&
V1a hieI'lU'qutc&"; ib1d.• p. 50.
(98) P. V. GABotA AMADOR, "Marco Jurldlco e IDnltuctonal de 188 Relac10nee Inter&mert-
e&naa", QUinto Our80 de Derecho l n t ~ Org(Inizado por el Comité Juridico
InteramerfClJno. Washington, BeC!retar1a-Gera1 da OBA. 1979, p. 19.
(99) ~., p. 19.

R. Inf. leg". 1 ..lma a. 19 n. 74 ablo./;un. 1982 1-73


Ademais, levou a Comissão em conta a própria prática do Conselhu da
OEA como elemento para interpretação dos poderes a ele atribuídos ('00).
Assim, por exemplo, quando se apresenta uma solicitação para uma Reunião
do Órgâo de Consulta (sob () TIAR), deve o Conselho determinar se recai ou
não sob os artigos pertinentes do Tratado lnteramericano de Assistência Re-
ciproca (101). Enfim, em comentário significativo, ponderou a Comissão que,
se por ocasião do Parecer de 1950 (supra) "o tema da competência do Con~
selho apareceu como vinculado a orientações políticas diversas, essa circunstân-
cia não se apresenta hoje" (102), uma década após. Em explicação de voto, o
membro norte-americano referiu-se aos "poderes enumerados e implícit05" do
Conselho da OEA (103), ao passo que o argentino ponderou que a interpreta-
ção da Comissão equivalia à que prevaleceu na prática (]04).
A prática organizacional constitui, com efeito. importante elemento para
a apreciação da evolução dos regimes criados por traites-cadre ou constitutivos
de organismos internacionais (1O~). Senão vejamos dois exemplos. No sistema
da Carta da ONU, as funções do Conselho de Segurança estão claramente esta-
belecidas nos capítulos VI (solução de conflitos) e VII (cessação e prevenção
de hostilidades), cabendo, nesse setor, Ú Assembléia Geral formular recomen-
dações, mas sem o poder de decisão. Na prática, no entanto, a evolução seguiu
eaminho distinto: a partir da Resolução 377-A (V) da Assembléia Geral (reso-
lução "Uniting for Peace"), de 9 de novembro de 1950 - resolução tecnica-
mente sem efeitos mandatórios -. verificou-se uma gradual transferência à
Assembléia Geral da responsabilidade pela manutenção da paz, em decorrência
da paralisia do Conselho de Segurança pelo uso do veto (]OO).
Já no sistema da Carta da OEA (anterior ao Protocolo de Buenos Aires
de 1967), a Conferência Interamericana deveria reunir-se a cada cinco anos,
mas nos primeiros 19 anos de vida da OEA reuniu-se apenas uma vez, em
Caracas, em 1954. "O vácuo assim criado tem sido preencbido por freqüentes
Reuniões de Consulta de Ministros das Relações Exteriores para lidar ('om
questões urgentes confrontando o hemisfério"; assim, na prática, "a Reunião
de Consulta, o segundo na hierarquia dos órgãos da OEA, superou em gr,lnde
parte a Conferência lnteramericana na estrutura hierárquica" (107), a ponto de
ser tido como órgão mais ativo, desequilibrando todo o sistema (lOS),
(100) ABstm, a Comlssll.o estimou o Conselho como órgáo provisório de consulta sob o TIAR.
capaz de tomar conhecimento de ca506 urgentes ou outros casos cuja tmportll.ncla nAo
Just1flCl1S1Ml uma Reunill,o dos MlnlBtros das Relaç6ee Exteriores; tbld., p. 53.
(101) lbid., p. 54. Levantou li ComisaAo a possibilidade de se preparar um projeto de protocolo
ou resoluçlo esclarecendo a8 faculdades ou competênchl do Conselho; jbút., pp. 59-60.
(102) lbút., p. 59.
(103) lõút., pp. 60-61.
(104) lbút., p. 62. A luz tlo-somente das normas expressas vigentes, nlo se poderia no seu
entender deduzir que o Conselho atua como órgão de consulta. admitindo-se no entanto
que a prática corrobora. o parecer da ComissAo; tbld., p. 62.
(105) Ao A. CANÇADQ TRINDADE, "Desenvolvimentos Recentes no DIreito Internacional Con.
temporâneo", 24 Revista dG Faeuldade de Direito dG UFMG (1976) pp. 123-127.
(106) Tal mecanismo foi utlll~o em diversas crises (e.g., Suez 1956, Hungria 1956, Líbano
1958. Congo 1960). Mesmo a criaçãO das forças de paz da ONU se deu a partir de entAo
no mais das vezes por meio de recomendações da Assembléla Geral, diferentemente do
previsto no capItulo VII da Carta. J. CHARPENTIER. lnstitutjons tnternationales. 3e. M.,
Parls, Dalloz. 1970, pp. 54-55.
(107) W. MANOBR, "Reform of the OAS - The 1967 Buenos Alree Protocol of Amendment to
the 1948 Charter of Bogotá: An Appralsal", 10 JOUT1la1 o/ Inter-American Stuãies (1968)
pp. 7-8. e cf. pp. 1-14. para uma critica geral ao Protocolo de Buenos Ai~p.ll de 1987.
(108) C. SlllPlJ'LVEDA, "'I'he Reform ....., cp. ctt., pp. 98 e 103.

174 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 o.r./jun. 1982


Admite-se nonnalmente que os órgãos competentes para agir "sào compe-
tentes para interpretar os dispositivos do tratado que lhes digam respeito" e
assim determinar sua própria competência, mas como não podem impor judi-
cialmente sua interpretação aOs Estados-Membros, tal situação pode vir a criar
dificuldades, até hoje não resolvidas (109). Outro aspecto digno de nota é gue
a atividade por assim dizer "legislativa" dos órgãos internacionais não equivale a
treaty-making, pois é evidente que resoluções e declarações daqueles órgãos
distinguem-se de tratados e convenções ordinárias e não estão sujeitos a rati-
ficação; no entanto, contribuem decisivamente para a evolução e renovação do
direito internacional consuetudinário, processo este que é acelerado pela praxe
das organizações internacionais de consultar previamente os governos e obter
infonnações através de técnicas modernas de comunicação (110).
Enfim, cabe ressaltar que a própria implementação das competências dos
organismos internacionais requer por vezes a conclusão de acordos subseqüen-
tes (como é o caso, e. g., dos acordos militares sob o artigo 43 da Carta da ONU,
e dos acordos de tutela sob o capítulo XII, artigos 75-85, da Carta da
ONU) (111). Referência pode aqui ser feita também a acordos diversos entre
a Secretaria-Geral da OEA e governos dos Estados-Membros (112).

v. Bilateralismo e multiwteralismo: apreciação crítica


Na apreciação do "impacto" de tratados nas relações internacionais, tanto
o bilateralismo quanto o multilateralismo têm angariado adeptos. CertamE'Ilte
que a multilateralização dos contatos internacionais (113) é um fenÔmeno hodier-
no da maior importância, e muitos Estados têm identificado no multilateralismo
um fator até certo ponto compensador ou neutralizador de suas desigualdades
de poder no cenário internacional (IH). O multilateralismo acompanhou na·
turalmente a ascensão e expansão dos organismos internacionais (115). Em nosso
(109) M. VmALLY, "The Sourcea cf Intematlonal Law", ManU4! of PubHc InternatWnal LaVl
(ed. M. Sorensen), London, MacMllIan, 1968, p. 164.
(UO) L. B. BOBN, "The Development of the Charter ot the United Natlonll: the Present State",
The Present State Df lntern4tlonal L4V1 and Ot/ter Essays (Internatlonal Law A8soclation
Centenary 1873-1973). Deventer, Kluwer, 1973, pp. 52-53.
(lU) Y. SOULIOTIS, "La capaclté des organ1li6t1ons lntematlonales de conclure d.es accordB
d'apres leure actes constltutlfs et la pratique", 25 Revue Hellénique de Droit Intern«-
tkm4Z (1972) pp. 194-233.
(112) Cf., a respeito, ISIDORO ZANOTrI, "Acuerdos entre E$tad08 y Orge,ntzaclon811 Interna-
cionales y entre Organ!.zaclones Internaclonales, E$peclalmente las Intera.metlcana&",
Cuarto Curso de Dereeho Intern<lCWn1ll Organt1:ado por el Comité Jurídico Interamericano,
Washington, secretaria-Geral da OEA. 1977, pp. 324-338, e cf. pp. 317-338.
(U3) Para os Estados latino-americanos, cf., e.g.: E. 8. MILENKY. "Lat1n America's Multila-
teral Dlplomacy", 53 InternationaZ Aftalt's (1977) pp. 73-96; J. D. C<>ClIRANE, "Oharac-
ter1Btics of Contemporary Lat1n Amerlcan International Relatlons", 20 JournaZ Df lnter-
American Studles and World AffafT8 U978) 1'9. 455-467; F. PARKINSON, "Lat1n Ametlcan
Porelgn Policies In the Era ot Détente", 50 lnternatfon.al Aflairs (1974) pp. 439-450; F.
PARKINSON, Latín America, the Cold War, 4nd the World Powers 1945-1973, Beverly BUIs,
Sage PubJ., 19H, capo XIV: "Towards 110 New Diplome.cy", pp. 231-Me.
(114) A. A. CANÇADQ TRINDADE, "Posições Internaclonal6 do Brasil no Plano Multilateral", 52
Revista 8TIIIlUe1ra de Estl'OO8 PoUtfccn (1981) pp. :Ml9-211.
(115) Para um estudo de pos1ções adotadas pelos Eetados latino-americanos no 8810 das NaÇÕf!lJ
Unidas na primeira década de exl6têncla da ONU, Cf. J. A. HOUBTON, Latln Amerlc4 ~n
.tne Unfted NaUons, N.Y.. Carnegie Endowment for Internatlonal Peace, 19M, pp. 1-296;
sobre o tema, cf. também G. POPE ATKINS, América Lati_ en el Sistema Político Inter-
nackmlll, Méxtco, Bd. Gernaa, 1980, pp. 388-392, e cf. pp. 392·402 para o corpo de tratadoe
multlllloteralll de interesse Imediato lIoOIl Jt8tad08 latino-americanos.

R. Inf, l_liIi,l. Bra'ília a. 19 n. 74 abr,/jun. 1982 175


continente, há os que hoje vislumbram um gradual distanciamento do büatera-
lismo do passado (que se mostrava defensivo, COmo produto da confrontação)
e uma crescente tendência a atribuir maior importância ao multilateraUsmo
paralelamente ao surgimento de interlocutores "viáveis" vis-à.vis a superpotên-
cia na região (como, e. g., Argentina, Brasil, México e Venezuela).
Contudo, há também os mais céticos que consideram que a OEA, como
centro de diplomacia multilateral, não chega a afetar as relações bilateralmente
orientadas VÍ8-t:-w os Estados Unidos, favorecendo inclusive a conclusão de
acordos e acomodações bilaterais ()lO). Fala-se mesmo em um enfraqueci-
mento da ação multilateral interamericana de cooperação para o desenv r)lvi 4

mento (os programas multilaterais desde o início da década de sessenta) para-


lelamente a um processo de "bilateralização" (refletido, e. g., na "inclinação
das três últimas adnúnistrações norte-americanas para as relações bilaterais com
os pafses latino-americanos") (117).
Por outro lado, a nova Assembléia Geral da DEA (instituída quando da
reforma da Carta) visa justamente obter uma multilateralização da diplom'lcia
latino-americana, ainda que aparentemente esta não funcione bem dentro do
sistema interamericano (118 ). Consoante aquele propósito, o artigo 138 da
Carta (refonnada) da OEA minimiza o bifateralismo ( 119), ao dispor que a
assistência às reuniões dos órgãos permanentes da OEA ou às conferências
e reuniões previstas na Carta Ou realizadas sob os auspícios da DEA "obedece
ao caráter multilateral dos referidos órgãos, conferências e reuniões e não
depende das relações bilaterais entre o governo de qualquer Estado·Membro
e o governo do país-sede". Tem-se mesmo argumentado que vantagens econÔ-
micas seriam asseguradas pelos Estados latino-americanos antes pela via mul-
tilateral (se unidos nela) do que por transações bilaterais, recordando-se a
esse respeito que os mecanismos de cooperação econÔmica multilateral não
foram criados pela Carta da OEA, mas s6 surgiram bem depois (120). Ainda
a favor do mUltilateralismo poder-se.ia invocar a implementação, nos últimos
anos, de experimentos como os do Tratado da Bacia do Prata, do Pacto Andino
e do Pacto Amazônico, sobre os quais começam a florescer os primeiros estudos
comparativos (121).
O dilema acima é, porém, em grande parte, de interesse sobretudo acadê·
mico. Em termos práticos não apresenta dificuldades intransponiveis. Con-
forme bem acentua a Comissão Jurídica Interamericana em 1971, "muitos tra-
tados multilaterais funcionam primordialmente nas relações büaterais das par-
tes" (122). Assim, por exemplo, "coincidem os artigos VI do Tratado da Bacia
(116) C. BJilP'OLVEDA, "The Reform ... ". 01', ctt., pp. 102 e 104.
(117) F. V. GARC1A AMADOR, "Marco JurIdlco ... n. 01', ctt., pp. 13-14.
(118) C. SBPOLVEDA. "The Reform, ..... 01', clt., pp. 133-134.
(119) Iblã., p. 122.
(120) lbid., pp. 125-126 e 101.
(1211 Cf., e.g.. J. E. OREl"l"O VELASCO, "Pacto Amll.2lÓnlco y Tratado de la CUenca dei Plata:
Analogias y Diferencias", 165 RevÍlIta de Polttic4 Internacional - Madrid (1979) pp. 75-92;
E. O. FERRIB. "The Andean Pact and the Amazon Treaty: aenectlona of Cllanglng
Latin Amerlcan RelatlonB", 23 Journal of Il1teramerfcan Studtes anã World AlfaÚ's (1981)
n. o 2, pp. 147-175.
(122) COmité Jurldlco Interamerlcano. Recomend4cfonu e lnJDrnlea - Documenta. Oflcf4lu
1967-1973, vol. X, Washington. Becretarla-Qeral da OEA, 1978, p. 365.

176 R. Inf, legill. Brasília a. 19 n. 74 abr,/Jun. 1982


do Prata e XVIII do Tratado de Cooperação Amazônica ao declarar que o e'l1:a-
belecido no tratado não significará qualquer limitação a que as partes contra-
tantes celebrem acordos bilaterais ou multilaterais visando a consecução dos
objetivos comuns de cooperação" ( 123). Outro exemplo é fornecido pelo ar-
ligo 23 do Tratado de Tlatelolco, que toma obrigatória para as partes contra-
tantes a notificação ao Secretário do OPANAL de qualquer acordo internacional
porventura concluído sobre questões que são objeto do Tratado (124). Aliás, no
tocante à utilização da energia nuclear, já se percebeu como tendência na re~o
"a conclusão de acordos bilaterais que implicam transferência de tecnologia
nuclear, em alguns casos incluindo o ciclo completo" (125).

Sob o experimento do Tratado da Bacia do Prata, já se firmaram tratados


ou acordos entre as partes contratantes (t, g., o tratado de ltaiJpu, entre Brasil e
Paraguai, em 1973) (l~), e mesmo o seu Comité IntergovernamentaI Coordena-
dor (ClC) é tão-sometlte um veículo permanente de decisões governamentais,
executando decisões dos Ministros das Relações Exteriores (artigo IH), resguar-
dada a autonomia decisória de cada um dos governos. No caso do Pacto Ama-
zÔnico, prevê seu artigo XXIII que sua supervisão ou implementação está
a cargo de Comissões Nacionais Permanentes (dos próprios Estados) e não de
um 6rgão internacional (ou secretaria) que nem sequer é criado; tais Comissões
executariam decisões tomadas pelos Ministros das Relações Exteriores e uelo
Conselho de Cooperação Amazônica. Assim, apresenta o Pacto características
de "um amplo acordo-quadrô', estabelecendo as coordenadas gerais da coopna-
ção na região (127). Quanto ao experimento do Pacto Andino, observou-se
recentemente que os Ministros de Relações Exteriores dos países andinos estão
"negociando cada vez mais com atores externos como um grupo" e enfatizaudo
determinados temas tanto em suas relações bilaterais quanto em sua atuação
nos organismos multilaterais (128).

Ainda um outro exemplo poderia ser encontrado nos desenvolvimentos no


direito do mar contemporâneo: sabe-se, por exemplo, que o atual projeto de
Convenção da IH Conferência da ONU sObre Direito do Mar reserva um papel
importante a acordos entTe Estados na fixação de seus limites laterais maríti-
mos (artigos 74 e 83) (129), já se verificando exemplos recentes na prática de
alguns Estados latino-americanos. E, enfim, conforme já visto no campo da
solução pacífica de controvérsias internacionais, o Pacto de Bogotá, um tratado
multilatera~ prevê (pelo artigo LUI) sua entrada em vigor mesmo no plano
das relações bilaterais dos Estados que o ratificaram.
(123) J.E. GRERO VELASCO, "Pacto Amazón1co y Tratado de la Cuenca ... ", 01'. c~t•• ti. 91;
L. KARmAS OTERO, "El Tratado de Cooperaclón Amazónlca", 166 Revuta de Polftlca
Internacional - Madrid (1979) p. 68.
(124) A, GARCiA ROBLES, 01'. ctt. supra. n.O 73, p. 72. Também o artigo 13 faz ref'erêncla a um
e18tema de salvaguardas mediante acordos multUaterals ou bilaterais concluldoa com lo
AmA: R. DtAZ ALBONICO. 01'. cit., p. 358.
(125) R. DtAZ ALBONIOO, 01'. cU., p. 377.
(126) or. Italpu Blna.clonal. Natureza Jurldbs dG Ita~W, 1978, 1'1'. 9-101.
(127) RUBENS RICOPERO, "Tratado de Coopen\Ç6o AmazOnlca", 3 Re/(lçôes Internacfo7IGU -
BraaUla (1980) n.o 5, p. 5,
(128) E, G. l"EH.BJB, 01'. cit., p. llll1.
(129) U. N. Thlrd Conference on the Law of tbe Bea. Informal OompoBite Negonattnll Text -
RBlMfon. 2, UR. doc. A/CONF.62/WP.1O,tRev.2, de 10 de abt1l de 1980, 1'1'. 54 e 59..

R. Inf. l.,i". Bra.i1ia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 177


VI. Tratados e resoluções de 6rgãos internacionais
Historicamente, foi a partir das sucessivas Conferências Internacionais Ame.
ricanas que tratados multilaterais vieram a exercer sua função nas relações inte·
ramericanas (na criação de obrigações específicas); porém, ao surgirem pro.
blemas de insuficiência de ratiJicações e reservas, passou-se a recorrer a
resoluções e declarações (enunciando princípios gerais). Estas últimas logo
se tornaram bem mais numerosas que tratados, bastando lembrar que somente
na VIII Conferência em Lima, em 1938, foram adotadas 112 resoluções e
declarações (180). Tais instrumentos tiveram naturalmente grande importân-
cia no desenvolvimento do sistema interamericano. Do ponto de vista das
resoluções adotadas, destacaram-se como as três Conferências Interamericanas
mais marcantes as de Buenos Aires em 1936, Lima em 1938, e México em
1945 (131).
Muito embora, do ponto de vista jurídico, não tenham efeito estritamente
obrigatório, tais resoluções discorreram sobre aspectos organizacionais e che·
garam mesmo a criar órgãos permanentes, "transcendendo a duração das Con-
ferências que as adotaram, sem o apoio de um tratado constitutivo": lembrem-se,
e. g., a Declaração de Lima de 1938 t'stabelecendo um sistema de consultas
(para situações ameaçando a paz ou segurança continentais, ou a integridade
territorial de qualquer Estado americano), e a Resolução IX da Conferência do
México de 1945 criando órgãos periódicos (como as Reuniões dos Ministros das
Relações Exteriores) e permanentes (como o Conselho da União Pan-America-
na), e estabelecendo assim as bases para a criação da futura üEA (182).
O próprio "Ato de Chapultepec" (133) declarou inter alia que os Estados
americanos incorporaram, desde 1890, ao seu direito internacional, uma série de
principios, "por meio de convenções, resoluções e declarações" - não fazendo
distinção alguma acerca da contribuição de cada um desses instrumentos (134).
Mesmo com a criação da OEA, permaneceu indubitável a "necessidade prá-
tica" de tratar certas questões (menores) por meio de resoluções, dada a per-
sistente dificuldade. vemicada na ratificação de tratados (135). Há mesmo quem
hoje não hesite em considerar as decisões das Conferências Interamericanas
como "a foote do direito internacional americano por excelência", situando-se
suas resoluções - de indiscutível valor jurídico - "a meio caminho enh'e li
convenção e o costume." (136).
Uma significativa e rica amostra da importância de resoluções no sistema
interamericano é fornecida pelo Manual af Inter~AmeTican Relations (edição
(130) Ch. G. FlI:NWrCK, The Organtzauon ... , op. clt., pp. 151-153.
(131) JORGE CASTAREDA, l.egal E!!ect3 of United Nations llesolut1ons, N.Y.. Columbla Unl-
verslty Press, 1969, pp. 177-178, e cf. pp. 166-168.
(132) J. CABTA:REDA, op. clt., pp. 179 e 159-16D; a Resolução IX da ConferêncIa de 19411 lntl-
tulava...ee "ReorganlzaçlLo, ConsolldaçAo e Fortalecimento do Sistema Interamel1cano".
Relembm a1nda o autor o fato de que algumBll resoluções declaratórias lnteramerlcanas
têm efetIvamente sIdo lnvocad88 por tribunais nacionais e internacionais; cf. tbf4., p. 180.
(133) ResoluçlLo VIU, sobre "A!8istêncla RecIproca e SOlldarledade Americana", da conte·
rêncla do MéIlco de 1945.
(134) Oh. O. FENWICK, The Organtzatton, op. ctt., pp. 156-157. - PaI'll. uma referênc1a
recente lncUferenciada a convençl\ea (conclufdBll sob os ausplci08 da ONU) asdm como
r~luç6ee. declaraçOllll e recomendações (adotadaa pela ONU), cf. IBIDORO ZANOTTI.
"Report ... ", cp. cit., p. 611.
(135) Oh. G. FENWICK, The OrgClniZ4twn ... , cp. cit., pp. 157-158.
(130) O. SBPULvznA, Lw Fuentu ..• , op. cit., pp. 94-9:1, e cf. ilP. 9S-103.

178 R. laf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 alu./jua. 1982


revista, 1956), preparado pelo então Departamento de Direito Internacional da
União Pau-Americana (OEA): nele se encontram sistematicamente classificados,
de modo indiferenciado e seguindo o esquema da própria Carta da OEA, os
inúmeros tratados, convenções, resoluções, declaraçõe~ e recomendações ado-
tados em Conferências Interamericanas e Reuniões de Consulta (até a X Con·
ferência Interamericana, de. Caracas, em 1954), sobre todos os temas e questões
cobertos pela Carta da OEA e pela organização das atividades da União Pan,..
Americana (187).
A própria Comissão Jurídica Interamericana, em Parecer de 1950 sobre o
"Conteúdo das Declarações, Recomendações e Outros Atos Análogos das Con-
ferências e Reuniões de Consulta Interamericanas", ponderou que, a contrá-
rio de tratados devidamente ratificados criando obrigações, as resoluçõe~ não
se constituem em "compromissos" obrigatórios, mas nem por isso não há que
considerá-las como desprovidas de efeitos sobre a condução das relações inter-
nacionais no continente americano. Para a Comissão, "não é necessário atri-
buir valor íurídico algum a estas recomendações para aceitar como muito
provável que seu conteúdo tenha influído na política dos Estados americanos,
uns com relação a outros" (138). Tiveram elas considerável influência na evo-
lução histórica do pan-americanismo (cujas etapas iniciais excluíram todo pro-
pósito de "compromisso" internacional strido .wnsu), a exemplo da própria
criação de órgãos por meio de tais resoluções (139). Enfatizou a Comissão o
caráter de cooperação voluntária dos atos das Conferências e Reuniões de Con-
sulta Interamericanas em seus primórdios, distintos de obrigações e compro-
missos derivados de tratados ratificados, acrescentando, porém, que aqueles
atos (recomendações, declarações, dentre outros) contribuíram decisivamente
para a consagração de princípiOS do ohamado direito internacional americano
e abriram caminho para a conclusão de futuros acordos internacionais (140).
Com efeito, em mais de uma ocasião e em relação a matérias distintasl,
a pr6pria Comissão Jurídica Interamericana viu-se diante das duas alterna·
tivas entre tratados (natoralmente obrigat6rios) e resoluções (puramente re-
comendat6rias, do ponto de vista jurídico). Assim, por exemplo, em matéria
de reconhecimento de governos, a Comissão sugerira a adoção de uma Con~
venção a respeito, mas a Conferência do Rio de Janeiro de 1965 optou pela
aprovação de uma simples resolução sobre o tema (141). Anos antes, em 1959,
em seu projeto de estudos sobre a democracia representativa na América,
ponderou a Comissão que somente uma convenção a respeito poderia ter
efeitos mandat6rios para os Estados, dado que resoluções e declarações, por
múltiplas que sejam e pela relativa dificuldade com que são aprovadas, difi-
cilmente asseguram a observância e cumprimento de obrigações, verificandu-se
(137) Cf. DAS, Manual oI Inter-Amerlcem Re14t1ons (revised), Con!erences and Qrganlzatlons
Beries n.O 42, Washington. Pan-Amerlcan Unlon/Department of Internattonal Law, 1958.
pp. 1-3" em-XlV.
(138) COmité Juridico Interamericano, RecomendGclones e Inlormes - Documentos 0/lciales
1949-1953, vaI. m, 8A.o Paulo, Eef. Rev. doe Tr1bunals, 1955, pp. 172-173. Também b' 06 Q.ue,
de uma perspootlva b18tórica, atribuam a resoluções, como a ResoluçAo VIII da COnfe·
rêncla do México de 1945, uma "força jurldica obrigatória", F. V, GARCiA-AMADOR,
"Marco J'urfeUco •.. ", op. clt.. p. 18.
(139) Cf. tbUf.• p. 173.
(140) lbUf.• pp. 17f.183.
(141) J. J. CAICEIX> CASTILLA, La Obra l!eZ aomito!' JurUffco InterameTfcano, Rio de Janeiro,
C.J.L, 1966, p. 86.

R. Inf. legisl, Brosília a. 19 ft. 74 abr./jllft. 1982 179


uma considerável distância entre elas e a "realidade politica e internacional do
continente" (142), Em outras ocasiões verificou-se, em contextos distintos~ a
meSma antinomia entre tratados obrigatórios e resoluções recomendatórias (148).
Contudo, mesmo esta distinção não se presta a exageros: assim, por exem-
plo, a Secretaria-Geral da OEA foi de parecer - baseado no mstórico legisla-
tivo do artigo 53 e na prática - de que "as únicas decisões da Assembléia que
tinham força juridica obrigat6ria eram aquelas mediante as quais se aprovava
o programa orçamentário da Organizaçãú e se fixavam as quotas dos Estados-
Membros. Este parecer deve ser entendido, naturalmente, no sentido em que
foi solicitado, isto é, no sentido da validez que têm as dtcisões vis-à-ois os Es-
tados-Membros. Obviamente, a situação é completamente diferente quanto às
decisões que comportam mandatos ou instruções a outros ór&ãOS que depen-
dem diretamente aa Assembléia Geral, como ocorre com os tres Conselho$, ou
que tenham em relação a ela certo grau de dependência, como é o caso, entre
outros, das Conferências e dos organismos especializados" (14.).

VIII. Conclusões
Pela pr6pria amplitude do tema em estudo, a presente análise do "impacto"
de tratados e outros instrumentos nas relações internacionais na América La·
tina teve de ser sobretudo seletiva, enfocando determinados aspectos Cl)m a
preocupação voltada não propriamente ao exame isolado de um tratado em
particu1ax, mas antes a uma visão global do impacto dos tratados e outros ins-
trumentos regionais interamericanos no campo polftico da condução das rela-
ções internacionais no continente. O quadro geral mostra uma sensível distân-
cia entre o número e a incidência consideráveis de tratados regionais intera-
mericanos adotados sobre temas os mais distintos e o número bem mais reduzi-
do dos tratados regionais que efetivamente lograram alcançar o total l;ufi·
ciente de ratificação para entrarem em vigor e exercerem assim seu papel na
condução das relações internacionais na América Latina.
Observe-se, ademais, que certas questões de direito internacional se prr~stam
às relações predominantemente interestatais e a solução por meio do conten·
cioso diplomático, como é o caso, e. g., dos problemas ligados ao reconheci-
mento de 'governos e ao tratamento de estrangeiros e seus bens (145), dentre
outros; mas há também questões de direito internacional que se prestam às
relações que se desenvolvem sob os parâmetros de tratados internacionais e a
supervisão de 6rgãos por estes criados, como ilustrado e. g., pela solução pací-
fica de controvérsias internacionais.
Este último é, com efeito, um dos campos mais ricos para a apreciação
do "impacto" não apenas de tratados, pactos e convenções, como também de
resoluções e declarações nas relações internacionais no continente americano.
(142) lblã•• p. 57.
(143) Cf. iblã. pp. 32 e 55. e cf. pp. 80-82, e, no tocante à so1uçll.o de controvérslaa. pp. 21, 26 e
100-102. - Cf. também o relatório aprovado em 20 de fevereIro de 1974 sobre "o destino
dos projetos de convençll.o e outros estudos preparad06 pela Comlssll.o Jurldlca Interame-
rtcana", In: Comltfl Jurldlco Interamerlcano, .Recomendac~onea e Informes - Documen-
tos O/lcúdu 1974-1977, vol. XI, Washington, Secretaria-Geral da OEA, 1981. pp. 111-117.
(144) F. V. GARCiA-AMADOR. "MIltCO Jurldlco ... ", cp. cit., pp. 17-18.
(145) Cf" sobre estes doia pontos. e.g., C. N. RONNING, O Direito na Dtp/.Omacia lnterame-
rfcana, Rio. PorelUle, 19116, pp. 17-80.

180 R. Inf. legill. Brasília a. 19 n. 14 abr.lJ..n. 1982


Aqui, novamente, a multiplicidade de tratados (para solução pacífica de ron-
trOvésias) - a requerer sistematização - deve ser vista com cautela, dado
que por vezes houve os que não lograram o número suficiente de ratifícaçóes, a
eles se Juntando resoluções e declarações (das Conferências Interamericanas),
significativas mas tecnicamente desprovidas de efeitos jurídicos mandat6rios.
Ademais, a prática internacional a respeito aponta no sentido de uma busca
de soluções pacíficas individuais adequadas para cada caso concreto, nem
sempre pelos mecanismos dos tratados regionais existentes e vez por outra
transcendendo os meios de solução pacífica puramente regionais.
Em matéria de desarmamento, o Tratado para a Proscrição de Armas Nu-
cleares na América Latina (ou Tratado de Tlatelolco, de 1967) constitui-se no
primeiro tratado do gênero dotado de um sistema de controle institucional e
internacional com órgãos permanentes próprios de inspeção tendendo ao re·
conhecimento e aceitação de garantias internacionais; é, ademais, o primeiro
tratado do gênero relativo a uma zona de aplicação quase continental abran-
gendo - diferentemente do Tratado da Antártida - territórios de grande den-
sidade populacional. Embora se trate de um tratado regional, seu regime jurí.
dico é bem mais vasto em virtude do âmbito geral de aplicação assegurado por
seus dois protocolos adicionais (cf. supra). O Trat::.do de TIatelolco cresce
hoje em importância em decorrência dos resultados insatisfatórios da Confe-
rência de Revisão (Genebra, 1975) do Tratado de Não-Proliferação de Armas
Nucleares (de 1968).
No tocante aos tratados constitutivos, tomando como protótipo a própria
Carta da OEA, vimos que a evolução da questão da interpretação dos poderes
atribuídos aOS órgãos da OEA encontrou mais dificuldades do que no caso
da ONU. A questão ocupou a Comissão Jurídica Interamericana em mais
de urna ocasião, e curiosamente não tem até o presente sido suficientemente
analisada - ou tem mesmo passado virtualmente despercebida - pelos estu-
diosos do sistema interamericano. Admite-se hoje que a prática organizacional
constitui, com efeito, importante elemento para a apreciação da evolução dos
regimes criados por traités-oadre ou constitutivos de organismos internacionais,
e que os órgãos internacionais detêm competência para interpretar os dispo-
sitivos do tratado que lhes digam respeito. Observe-se ainda que a atividade
por assim dizer «legislativa" dos órgãos internacionais (resoluções, deda.rações)
- distinta do treaty--makmg - tem contribuído para a evolução do próprio di·
reito internacional consuetudinário, processo este acelerado pela praxe de tais
órgãos de consultar governos previamente e obter informações por meio de
técnicas modernas de comunicação.
Com efeito, o multilateralismo tem acompanhado naturalmente a ascensão
e expansão dos organismos internacionais, e muitos Estados têm identificado
no multilateralismo, no fenômeno hodierno da multilateralização dos contatos
internacionais, um fator até certo ponto compensador ou neutralizador de suas
dificuldades de poder no cenário internacional. O já clássico dilema entre
bilateralismo e mul.ti1ateralismo é de interesse sobretudo acadêmico, uma vez
que as soluções por via bilateral e as por via multilateral - ambas com adeptos
- não são necessariamente excludentes. Assim, muitos tratados multilaterais
têm se implementado basicamente nas relações bilaterais das partes contratan-
tes (e. g., Tratado da Bacia: do Prata, art. VI; 'Pacto Amazônico, art. XVIII;

R. Inf. legisl. Bratílio o. 19 n. 74 abr./jun. 1982 181


Tratado de Tlatelolco, art. 23; Pacto Andino). A própria Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados (de 19(9) contém dispositivos oscilando con&tan-
temente entre o bilateralismo e os interesses gerais da chamada "comunidade
internacional": assim, por exemplo, se por um lado consagra o fus eogens
(arts. 53 e 64), por outro lado não adota a tese de que um tratado poàeria
gerar um regime de caráter objetivo erga omnes em derrogação do princípio
clássico poeta tertiis nee noeent nee prosant (146).
Outro ponto importante é que questões de direito internacional podem ser
regidas por instrumentos de conteúdo e efeitos jurídicos distintos (e. g., trata-
dos e resoluções de órgãos internacionais). Na evolução do sistema interame-
ricano, dificilmente se poderia negar a importante função exercida por reso-
luções e declarações, dado o caráter de cooperação voluntária das Conferências
Interamericanas e face a persistentes dificuldades na ratificação de tratados;
não raro as resoluções - desprovidas de efeitos jurídicos mandat6rios - che-
garam mesmo a criar órgãos permanentes, abriram caminho para a conclusão
de futuros acordos internacionais e contribuíram decisivamente para a consa·
gração àe princípios do chamado direito internacional americano.
O desenvolvímento histórico do sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos, por exemplo, demonstra que é possível fortalecer a poslção
de particulares no plano internacional e facilitar gradualmente seu acesso às
instâncias internacionais mediante instrumentos de base convencional, ou mesmo
instrumentos tecnicamente não obrigatórios (resoluções internacionais), que
nem por isso deixam de exercer efeitos jurídicos em relação aos Estados Mem-
bros. A gradual ampliação dos poderes da Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos, por exemplo, deve-se sobretudo a um processo de interprt:1:a-
ção -ampla e liberal das normas regendo seu procedimento (já bem antes da
entrada em vigor, em 1978, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
de 1969) (147).
Experimentos contemporâneos os mais diversos de supervisão internacional
vêm recentemente desenvolvendo mecanismos eficazes e sOfisticados de controle
de sua observância. Os experimentos de proteção internacional dos direitos
humanos em geral, e o interamericano em particular, não fazem exceção a isso,
compondo-se de instrumentos de força e efeitos jurídicos variáveis e de órgãos
exercendo funções também distintas. Este é um dado significativo, particular-
mente hoje ao testemunharmos a gradual evolução da fase "legislativa" das dé-
cadas anteriores de redação dos instrumentos de proteção internacional dos di-
reitos humanos à fase atual de implementação de tais instrumentos (148).
(146) S. ROSENNE. "Bllateral1sm and Communlty Interest In the Codl1led Law of Treatles",
Tl'an.matfona~ Law in a Ohangbtg Society - ESS4YS tn HonOUT 0/ Ph.O. Jessup <ed, W.
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~at8 tlers". 143 RecueU des COUTS de l'Ac4démie de Droít Int"ffllltkmaL (1974) pp. 589-736.

(147) A. A. CANÇADO TRINDADE, "A EvoluçlLo do Sistema Interamertcano de ProteçAo dos


Direitos Humanos: Aval1açlLo Crítica", Revista de Informaç40 LegislGtiva - Senado Fe-
deral n.O 73 jan./mar. 1962.
(146) A. A. CANÇADO TRINDADE, "A Implementação Internacional dos Direitos Humsnos ao
F1na! da Década de Setenta", 25 Revista da FaeukUzde de Direito da UPMG (1979) p. 348;
A. A. CANÇADO TRINDADE. "Exhaustlon of Local Remedlee unc1er the U.N. Covenant
on Civil and Pol1tlclll Rlghts IInd rUi Optlonal Protocol", 26 Intern~twn~~ 1J1td Com.
parattv6 Law QuaTterly - Lonc1res (1979) p. 765.

182 R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Notas sobre a justiça
na Alemanha
F'RANasco DE PAlJLA XAVIER NErO
Juiz de DIreito no Estado do Paraná

A efellvldade dos predlcamentos da Ma-


gistratura e o fortalecImento estrutural do
Poder JudIciário, com seus positIvos reflexos
na prestação jurisdIcional. constituem Justa
medida da autentIcidade do regime democrá-
tico.

SUMARIO
r- PreAmbulo
11 - A Justiça alemã de hoje
III - A organlzaçio judiciária
1 - A Jurt-'lçlo constitucional
2 - A JurlMl1ç1o administrativa comum
3 - A JurlscllçlO de finanças
4 -A JurlMlIçAo ~cIa.
5 -A JurlMlIçIo trabalhista
6 -A 'uriscllçlo on:Ilnilria
IV - O r8CUI'lIO 80 JudlcfArIo no Imblto do direito prlveclo
1 - A H Inatlncla
2 - A 2f lnatancla
3 - A 3. 1nItAncla
V- A fonnaçIo do bacharel em dlreKo
VI - O Juiz
VII - O ad....11trador Judicial (der Rechtspfleger)
VII r - Breve reglmo da evoluçlo do proceaeo eMI alemlo
nos "ltIrnoe 190 anos
IX - O modelo de StutIgart (das Stuttgarter ModeIij
X - A novela da "'Iflcaçlo (dia Verelntachunganonlle)
XI - Sfntese procedlmenta.l
1 - O procecHmento monitório (do Mahnnrfahren)
2 - O pr6-procedlmento

R. Inf. legil/. Bresília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 183


XII - A aud1ênc11 prlnctpal (der Hauptt.,nIn)
XII r - o procedImentO 81C1'1to (daa IChrlftllehe Verfahren)
XIV - Os pronunclamentol Judlelall (dia gerlchtllehen
Entacheklungen)
xv - os recursos (dia Rechtemlttel)
1 - ConsIderaç08s geral.
2 - A reclamaçlo (der Elnapruc:h)
3 - A queixa (dle BelChw8J'de)
4 A apelBÇIo (di. Berufung)
-
5 A revi_ (dle Revlllon)
-
XVI - Despesa. procellUIII.
XVll - Aleflltêncla Judiciária
XVI1l - Condu.

I - Preimbuto
Este trabalho é o resultado de um estágio de 3 meses (de abril a
junho de 1981), realizado na República Federal da Alemanha, nas Uni-
versidacles de Bielefeld (cátedr;a do Prof. Dr. W. GRUNSKY), Gõt1!ingen
(cátedra do Prof. Or. W. HENGKEl), Erlangen (cátedra do Prof. Or. K. H.
SCHWAB). Tübingen (cátedra do Prof. Or. F. BAUR) e Konstanz (cátedra
do Prof. Dr. R. STORNER), bem como em Juízos Ordinários de 1Ç1 Grau
(Amtsgerichte), Tribunais Estaduais (landgerichte), Superiores Tribunais
Estaduais (Oberlandesgerichte) e Supremo Tribunal Federal (Bundesge-
richtshof), além de entrevistas com advogados, promotores de justiça,
magistrados, auxiliares da justiça, estudantes de direito, como também
visitas lao Max-Planck-Institut para Direito Pen'al Estrangeiro e Intemacional
em Freiburg e ao Ministério da Justiça da Baixa Saxônia em Hannover.
A experiência somente foi possivel, mercê de convite formulado pelo
governo alemão, awavés do DAAO (Deutscher Ak,aclemischer Austausch-
dienst), em convên'io c'oma CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento
do Pessoal de Nível Superior), do Ministério de Educação e Cultura, e,
frise-se, graças à compreensão do egrégio Tribunal de Justiça do Estado
do Paraná, no pertinente à importância da oportunidade.
A preocupação precípua, no decorrer do estágio, foi o estudo da
Organização Judiciária alemã, em especial no campo da jurisdição ordi-
nária e, dentro desta, o âmbito cível, inclusive com sintética incursão
no processo civil.
Procura-se dar uma visão da justiça alemã, acentuando-se algumas
peculiaridades e tendo-se como escopo fazer com que o leitor, afeito
à realidade brasileira, chegue às suas próprias conclusões, no pertinente
ao que poderia ser adotado no Brasil, para um aperfeiçoamento na pres-
tação jurisdicional. em especial no cível. lançam-se, porém, na parte final,
algumas sugestões.
Os frutos desta marcante experiência, em que foram deixadas de
lado indagações doutrinárias. para uma observação e análise eminente-

184 R. Inf. legisl. Brasili(l (I. 19 n. 74 obr./llln. 1982


mente práticas do dia-a-dia forense na Alemanha - tema como que des-
cooheoido no B~asil, 'ante a ausência de publicações específioas -, serão,
a seguir, e~postos, coHmando-se, ao menos, despertar o interesse daque-
les que, com maior tempo, possam se dedicar a uma pesquisa mais
profunda. Somente esta possibilidade constitui retribuição bastante.

11 - A justiça alemã de hoje


O cuidado do povo alemão e, em especial, dos advogados, magis-
trados e professores com a justiça, no campo do aceleramento da pres-
tação jurisdicional, tem sido uma constante nos últimos 100 anos. Note-se
que, já em 1885, ono BAHR - conhecido por suas críticas ao diploma
processual civil alemão de 1879 - previa tempos sombrios no respei-
tante à prestação jurisdicional no civel, tanto em decorrência de imper-
feições de certas normas processuais, quanto em razão da morosidade
de alguns magistrados e, inclusive, da incorreta exegese ou desconheci-
mento da própria lei,
A previsão, em parte, se concretizou, não sem se sentir uma veemente
reação que, aos poucos, foi produzindo resultados (1), mercê de o Estado
passar a atender os reclamos por uma justiça mais rápida e segura,
Apesar disto, no ano de 1965, mais precisamente no dia 8 de dezembro,
HANS SCHNEIDER, em palestra proferida na Cidade-Estado de Bremen,
assim se expressou:
"A justiça é o fundamento do Estado de Direito, Mas, para
o Ministro da Fazenda, os tribunais são sempre uma empresa
subvencionada, O terceiro Poder no Estado - como a justiça
é freqüentemente chamada - não possui dinheiro nem canhões,
e se ela merece crédito é a questão" (2) ,
Nos últimos 20 anos, porém, a situação parece ter mudado consi-
deravelmente, principalmente com o fortalecimento da infra-estrutura
material e pessoal do Judiciário, o que motivou, de imediato, uma agiliza-
ção na prestação jurisdicional. O Judiciário alemão de hoje, embora
ainda por demais ligado ao Ministério Federal da Justiça e aos Ministérios
Emadu'ais (3), não só no referente à dependência orçamentária, como tam-
bém nas nomeações e promoções de magistrados, é muito bem estrutu-
rado, inexistindo qualquer parcimônia do Estado, neste particular,
A justiça alemã atual, em termos comparativos com a brasileira, é bem
mais rápida e muito mais cara. A rapidez é resultado do número de
magistrados (4), juizos e tribunais, da especialização em todos os campos
(1) Vide o tópico "Breve registro da evoluçllo do proceslO civil alemão nos OIUmos '00 anos".
(2) SCHNEIOeR, Hans - Rlchler und Oerichle In der 8undesrepubllk - Angelllachsan - Varlag Bremen,
'966. pllg. 3.
(3) Os Ministérios Elltaduals da Justiça silo equlvalent.. às noa8BS Secrelarlaa Estaduais da Justiça.
(4) Para uma populaçAo de 60 mllhOes da habltanle., ou seja, eproximadamente a metade de brasileira,
no eno de 1980, 15.532 Juizes proflsalonala e8tavam a exercer a judlcalura ne Alemanha, valendo
reglslrar que 12.019 o faziam no campo da Jurladlçllo ordlnllrie. Tal número é constantemente alterado
quando ae atinge a cerga esUmeda como mblma para ceda magistrBdo, e qual, no Ambllo eeledual
e no campo clver. fica em tomo de 600 feltoe enuele, noa Juizos Ordlnérios de 1.° Grau, de 150 a
200 proces_ de compelAnc la originária ou recurao.. nos Tribunais Estaduais, e de 60 a BD reeu reos,
noe Superiores Trlbunell Esleduals.

R. Inf. leglll. Bra.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 lB5


e graus de jurisdição, bem como fruto do número de auxiliares qualificados
e do recurso aos mais modernos meios materiais (gravadores, fotocopia-
doras, máquinas de escrever eletrônicas, computadores etc.) e o custo
decor.re,dket-amente, da estrutura antes referida, servindo, também, con-
iorme se verá na ocasião oportuna, como freio inibidor a aventuras ju-
diciárias (5) .

Dessarte, embora ainda se possam ouvir algumas isoladas queixas,


com relação à morosidade da justiça alemã, as mesmas, considerada a
duração normar da tramitação processual (6) e, acima de tudo, levando-se
a efeito uma análise comparativa com a média brasileira, não parecem
ser inteiramente procedentes, a despeito de seu mérito, qual seja, fazer
com que o Legislativo e o Executivo estejam sempre atentos para o
assunto, iaté porque, em assim pr~do, zelam, de um l,ado, ?elo
direito de o cidadão contar com pronta prestação jurisdicional e, de outro,
contribuem para tornar o Judiciário mais respeitado.

r 11 - Organização judiciária

A organização judiciária, na República Federal da Alemanha, prima


pela especialização, a cada ano ainda mais notada.

Para um melhor entendimento, procurar-se-á 10rnecer uma "isão


geral, examinando-se mais detidamente a jurisdição ordinária e, nesta,
particularizando-se a jurisdição cível, objeto precípuo deste estudo (7).

Em primeiro lugar, impõe-se mencionar que, de acordo com a natu-


reza da controvérsia, estar-se-á no âmbito da jurisdição constitucional
(Verfassungsgerichtsbarkeit), da jurisdição administrativa comum (Verwal·
tungsgerichtsbarkeit) ou especial - financeira e social - (Finanzgerichts-
barkeit e Sozialgerichtsbarkeít), da jurisdição trabalhista (Arbeitsge-
richtsbarkeit) e da jurisdição ordinária (Ordentliche Gerichtsbarkeít).

1 - A jurisdição constitucional vela peJo respeito às Constituições


estadtuais (Lãnderverfassungen) e federal (Grundgesetz), queraprec'iando
a constitucionalidade de uma lei, quer analisando atos administrativos
no campo cons1itucional. Par:a tal fim, existem Tribunais C<>nstitucionais
E'staduais (Verfa,ssung'sgerichtshõfe der Lãnder), em número de 9 (8) e
um Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfa,ssungsgericht), situado
em Karlsruhe (9), os primeiros com juízes de carreira e honorários, va-

(6) VIde 0$ tóplCO$ "Dellpeaall P,ocessuals" e ",I,saistêncla Judieil,ia".


(6) Vide os tópicos "Primeira Instência", "segunda Inslênela" li "Terceira InsIAnela".
(7) Vide esquema no final deste tópico.
(8) Inexlslem no Estado de SChleswlg-Holstein e em Berlim Ocidenlal.
(91 Como curiosidade, registre-se que a declaraçllo de ~oto vencido somente 01 possr~el, ne Alemanha, no
âmbito da jurl8dlçllo constl1uclonel e unicamente perante o Tribunal Constitucional Federal, que é o
mais alto tribunal do pars a, !ls ~ezes, chega li funcioner como uma espécie de 4.• Inalllncla, pois
pode, no campo constitucional, verificar se uma decls!o do "Gemelnsamer Senat der Obertten
Gerlchtsh6le des Bundes" (Senado Conjunto dos Superiores Tribunais Federais) conlrarlou a ConsU.
tulçll.o Federal.

18' R. Inf. legisl. Brasilieo o. 19 n. 74 eobr.Jlun. 1982


ri ando a composição em cada Estado (10), de acordo com as Constituições
e leis respectivas, e o segundo integrado somente por juIzes de carreira,
distribuídos em dois Senados, sendo que 50% de seus componentes são
escolhidos pelo Congresso e o restante pelo Conselho Federal (11).
2 - No âmbito da jurisdição administrativa comum são dirimidas
as controvérsias surgidas entre o Estado e o particular, referentes a
relações entre os mesmos estabelecidas, quer sejam pertinentes a negócios
jurídicos, quer se refiram à ordem e segurança públicas, desde que não
estejam abrangidas pelos juízos de finanças e sociais.
A jurisdição administrativa comum é exercida por Tribunais Admi-
nistrativos (Verwaltungsgerichte) (12), Superiores Tribunais Administrativos
(Oberverwaltungsgerichte) e pelo Supremo Tribunal Administrativo (Sun-
desverwaltungsgericht). Os Tribunais Administrativos são sed-iados nos
!Estados (13) e decidem através de Câmaras compostas por juízes de
carreira e honorários, em 19 grau de jurisdição.
Os Superiores Tribunais Administrativos, em número de 10, locali-
zam-se, em regra, nas capitais estaduais (14), decidindo seus Senados (15),
compostos por juízes de carreira e honorários, em 2~ instância .
.Q Supremo Tribunal Administrativo, localizado em Berlim, julga as
revisões interpostas contra decisões dos Superiores Tribunais Adminis-
trativos, por seus Senados (16) - compostos unicamente por juízes de
carreira - e, por seu Grande Senado, dirime as controvérsias de interpre-
tação (questões de direito) que possam surgir entre os Senados.
Por derradeiro, refira-se que no âmbito da jurisdição administrativa
também são apreciadas as questões disciplinares e funcionais pertinentes
aos funcionários públ'icos em geral e, particularmente, as referentes a
atos praNoados por médicos, enfermeiros, laboratoristas e arqu:iteros, em
razão de seus respectivos ofícios e na condição de funcionários. Tais
controvérsias são tratadas, em 19 grau, pelas Câmaras Disciplinares (Dizi-
plinarkammern), Juízos para as Profissões Referentes à Saúde (Berufs-
gerichte für Heilberufe) (17) e Juízos Profissionais para Arquitetos (Berufs-
gerichte für Architekten) (l8); em 29 grau, pelas Cortes Disciplinares (Dizi-
plioorhofe), Coortes para as P,rofissões referentes à Saúde (Berufsgerichts-
hofe für HeHberüfe) e Co'rtes Profissionais para Arquitetos (Berufsgerich-
(10) Em médIa, cada Tribu nal tem carca de 9 ju Izes.
(11) Trata-se de um órgão onde os Estados têm representaçêo proporcional ao numero de habitantes,
sendo os representantes indicados pelos govamos respectivos.
(12) O lermo "Gerlcht" tanto vele para Juizo, quanto para tribunal.
(13) HIl Estados com mais de um colegiado e, atualmente, conta li Alemanha com 33.
(14) O Estado de Schleswlg·Holsteln nAo possui dito órgêo, utillzando-se do de Niedersachsen, que, por
sua vez, nAo é sediado na capital, Hannover, me em lüneburg.
(15) H4, na Alamanha, cerca de 120 Senados Administrativos com. om média. 5 Juizes cada.
(16) Silo 8 e cada senado ju Iga com 5 iu rze8 de curelra.
(17) A traduçAo literal "Juizos Profissionais para Profl8ll0es de Cura" - além de pleonástica, nllo daria
li Idéia correta.
(111) ,.,. ClImaras Disciplinares e os Juizos Proflll8ionals funcionam junto aos Tribunais Administrativos.

R. Inf. legid, Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 187


tshõfe für Arohitekten) (UI) e, em 3Q grau, pelo Supremo Tribunal Adminis-
trativo.
Registre-se que, no campo disciplinar e de responsabilidade profis-
siona\, os colegiaoos, do primeiro ao último grau de jurisdição, são com-
postos por juízes profissionais e honorários.
Ainda no aspecto disciplinar, é de se menci,onar a existência dos Tri-
bunais Funcionais para Juízes (Dienstgerichte für Richter), que funcionam
agregados aos Tribunais Estaduais (Landgerichte) e julgam causas rela-
tIvas a del,itos e contravenções perpetrados por juízes no desempenho
de suas funções; das Cortes Funcionais para Juízes (Dienstgerichtshõfe
für Richter) funcionando agregadas aos Superiores Tribunais Estaduais
(Oberlandesgerichte), e que julgam os recursos dos Tribunais Funcionais
para Juízes; dos Juizos de Tropas (Truppendienstgerichte), que se asse-
melham às nossas Auditorias Militares. Das decisões proferidas pelos
Juizos de Tropas cabe recurso ao Supremo Tribunal Administrativo, que
apreciará a questão por intermédio de Senados especializados
(Wehrdienstsenate), onde também participam juízes honorários.
3 - A jurisdição de finanças ocupa-se de um campo especial do
d/i1reito administrativo, qual seja o direito fiscal 5teuerrecht) (20). No
âmbito da su'a competência, está o julgamento de mandados de segurança
contra atos de autoridades fazendárias em matéria de tributos (inclusive
taxas aduaneiras).
Os Tribunais de Finanças (Finanzgerichte) (21), em número de 13,
acham-se sediados em todos os Estados (22) e decidem, por seus mais
de 100 Senados, compostos por juízes de carreira e honorários (5 em
cada), as questões antes referidas, em 19 grau de jurisdição.
A Corte Federal de Finanças (Bundestinanzhof), sediada em München,
8'preoia, em grau revisional (23), causas decididas pelos Tribunais de
Finanças, nas hipóteses em que a revisão é admissível, e julga, em
primeiro e único grau, mandados de segurança contra atos do M'ln'lstro
das Finanças (Bundesfinanzminister), bem corno ações relacionadas a
certas controvérsias aduaneiras, por intermédio de seus Senados isolados
e do Grande Senado (24), compostos somente por juízes de carreira.
4 - A jurisdição social também se ocupa de um campo especial do
direito administrativo, qual seja, o direito previdenciário (25). Perante a
mesma são apreciadas as controvérsias pertinentes a aposentadoria,
(19) As Cortes Plsclplioares e as Cortes Proriasionais funciooam junto aos Superiores Tribunais Adminis-
trativos.
(20) Nol8-se que a parte somente pode recorrer a um juizo de finanças, V.g., por Inconformismo com
relaçllo a delerminado imposlo ou taxa, após haver reclamado admJnlslratlvameote persnte a replr-
tlçllo fazendAria competente.
(21) Vide a noll nO 12.
(22) O ellado de Nordrhein-West1alen possui dois.
(23) Vela-ae que da declsllo de 1. a Ins!Ancia nAo cabe apelaçAo, maB somente revisAo, versando o recurso,
pois, apensl sobre questões ele direito, como se abordarA no tópico especifico (Revldo).
(24) Os Seoados isolados julgam com 5 juizes e o Graode Senado é composto por 7.
(25) o Dlrollo Provldenclarlo ti denominado. na Alemanha, Direito Social (SoZlalrechl).

188 R, Inf. le!Jisl, Brasília a, 19 n. 74 abr.lJun. 1982


pensões, pecúlios, auxíl io-desemprego, salário-família, salário-detenção,
auxilios de guerra, seguros sociais, enfim, todas as questões que digam
respeito à previdência social ou, em outras palavras, que se lastreiem no
"Princípio do Estado Social" (Sozialstaatsprinzip), que não tenham sido,
a juízo do interessado, resolvidas adequadamente pelas vias administra-
tivas. Os Juízos Sociais (Sozialgerichte) (26), em número de 50, acham-se
localizados em todos os Estados (27) e conhecem, em 19 grau, através
de suas Câmaras compostas de juizes de carreira e honorários, as
questões antes referidas.
Os Tribunais Sociais Estaduais (Landessozialgerichte), sediados um
em cada Estado, julgam, em grau de apelação, os recursos contra deci-
sões dos Juízos Sociais de 19 Grau, fazendo""'O por intermédio de Senados,
onde tomam parte juízes profissionais e honorários.
O Tribunal Social Federal (Bundessozialgericht), situado em Kassel,
tem competência originária em relação a certas questões entre os Es-
tados e a União ou entre um Estado e outro, que não digam respeito a
matéria constitucional, e, de igual, competência recursal ao apreciar
revisões contra decisões proferidas pelos Tribu nais Sociais Estaduais.
5 - A jurisdição trabalhista trata das questões reguladas pelo direito
do trabalho, devendo se salientar que dito ramo do direito, em suas linhas
básicas, se acha delineado no Código Civil (Bürgerliches Gesetzbuch).
Os Juizos Trabalhistas (Arbeitsgerichte) acham-se sediados em todos
0$ Estados da Alemanha (28) e apreciam, em 19 grau, as pendências la·
borais (29) .
Os Tribunais Estaduais do Trabalho (Landesarbeitsgerichte) funcio-
nam em todos os Estados da Alemanha (30) e, por suas Câmaras (31),
compostas por um juiz profissional e dois honorários, apreciam os recur-
sos interpostos contra decisões e sentenças dos juízos de 19 grau.
O Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht), sediado em
Kassel, decide, por seus Senados, as revisões interpostas contra julga-
mentos dos Tribun,ais Estaduais do Trabalho e, por seu Grande Senado,
possíveis divergências de interpretação entre os demais Sen'ados traba-
lhistas (32) .
(26) Poderia ser empregedo o termo "Tribunais Sociais", como se vê dae nolas 12 e 21, mas OptOU-M,
desta lelta, pela expressA0 "Juizos", para distinguir estes colegiados dos Tribunal. Soclalll ElItadualll
(Landellaozlslgerlchte).
(27) Estados de maior expre811ilo, como Nlederaachsen, Nordrhein-Wesllslen, Baden.Warttemberg, Hnsen e
Bayem, contam com 7 ou B Tribunais.
(2B) H6 Estadll9, como Nordrhein-Westlalen, com 29 sedell de ju Izos trsbslhi stas (ne Alemanha tods h6
cerca de 100) e o número total de julzell, em 1.- e 2.- InslAncies, ultrapassa 600, excluldo. 08 re·
presentantea dos trllbelhadores e os patronais.
(29) Em multo se assemelham às nossas Juntas. dlferenclando-se destas, em especial, pela clrcunslilncls
de nlo ser nece8116rla a presença dos rapresenlllnles doe empregadOlJ e empregsdores, ne eudlêncla
designada somenls para fins de concillaçlo, li qual comparece, apenaa, o juiz prolinlonal.
(30) H6 Estados com msls de um Tribunal, como Nordrheln·Wesllalen.
(31) Cerca de 130.
(32) Tania nos Senados. quanto no Grende senedo. 1\6 juizes prolissionais e representantes cfasaista•.

R. Inf. legisl. Brasília O. 19 n. 14 ob,./jun. 1982


6 - A jurisdição ordinária abrange a jurisdição penal e a clvel (quer
contenciosa, quer voluntária) (33), sendo prestada pelos Juízos Ordinários
de 19 Grau (Amtsgerichte), Tribunais Estaduais (Landgerichte), Superiores
Tribunais Estaduais (Oberlandesgerichte) e Supremo Tribunal Fedaral
(Bundesgerichtshof) (34).

Os Arntsgerichte (juízos ordinários de 19 grau) localizam-se em todas


as sedes de Comarca (Bezirke) da Alemanha, em número que se aproxi~
ma dos 550 (35), e são competentes para o julgamento, em 19 grau, de
causas cíveis, observado o valor e a natureza (conforme, oportunamente,
se verá), e de causas penais, nos dei itos mais levemente apenados e nos
processos relativos a menores.

No âmbito cível, todo processo é conduzido, em regra, por um juiz


singular (Einzelrichter), muito embora, nas questões relativas à agricultura,
funcionem, junto com o jujz profissional, 2 honorários.

No campo penal, a jurisdição é prestada por um juiz singular ou pelo


Schõffengericht (colegiado composto por 1 juiz profissional e 2 honorá-
rios). Já no campo dos menores, os processos infracionais são decididos
ou por um juiz de menores singular, ou por um Jugendschõffengerichl
(colegiado igualmente integrado por 1 juiz profissional e 2 honorários).

Os Landgerichte (Tribunais Estaduais) são 93 em toda a Alemanha (36),


com 1 .104 Câmaras Cíveis e 1.119 Câmaras Criminais. As primeiras jul-
gam com 3 juízes profissionais, em 19 e 29 graus, sendo que honorários
somente funcionam nas Câmaras Comerciais (Kammern für Handelssa-
chen) (37). As segundas são sempre compostas por juízes profissionais e
honorários, sendo que a Pequena Câmara Criminal (Kleine Strafkammer)
é integrada por 1 profissional e 2 honorários, a Grande Câmara Criminal
(Grosse Strafkammer) e o Tribunal do Júri (Schwurgericht), por 3 profis-
sionais e 2 honorários. As Câmaras do Landgericht funcionam, umas
em 1? instância e outras em 2~, estas apreciando recursos contra deci-
sões e sentenças dos Amtsgerichte (38) .

(33) A JurlsdlçAo voluntária é regrada por lei pr6pria (GeselZ Ober die Angelegenhellen der frelwllllgan
Gerlchtsbarkelt), de 17·5·1978, com alterações posteriores. Em seu campo, se fez senllr um cresci-
mento de atribuições do Rechtspfleger (auxiliar da Justiça, que é objeto de abordagem naste ea-
ludo, em capitulo pr6prlo). com a conseqüente retirada de atribuições do juiz, Inlervlndo este lO'
mente em casos especiais.

(3'4) Ao tratarmos da primeira. segunda e lerceira instâncias, no clvel, em tópico apartado, o lema ler'
continuidade.

(35) Este número Já foi superior a 600, mas, por lorça de uma tendência no sentido de unificar Co-
marcas, sendo aS menores absorvidas pelas maiores, nos últimos cinco allos operou-se conslderll-
vel dlmlnulçlo, tento que, em 1980, o anuário estallstlco respectivo registrou 557.

(36) A maioria dos Estados possui mais de um (Bayern. por exemplo, com uma populaçlo de aproxi-
madamente alio milhões de habitantes, tem 21; Baden-Württemberg, 17 e Nordrheln-Westfalen, 19).

(37) Os Juizes honorários são escolhIdos entre respellados comercIantes, os quais. em número de 2.
compõem uma Câmara. sob a presidência de um Juiz prollsslollsl e muilo auxilfam a esta, com a
vivência mercanlil que possuem. Os designados servem por determinados perlodos e somente têm
o direito de perceber o necessário para despesas de conduçlo. As Clmeras Comerclsls 140 reco-
nhecldes, na Alemanhs, como uma experiência altamente positiva.

(38) OB Landgerlchte. em 2," inatAnela. em muito se aSBemelhem aos Tribunais de Aloada do Brllall.

190 R. lnt. legislo Brosília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Os Oberlandesgerichte (Superiores Tribunais Estaduais) são 20 em
toda a Alemanha (39) e, por seus 379 Senados Cíveis e 81 Criminais,
decidem, em regra, os recursos interpostos contra decisões e sentenças
de 19 grau, normalmente proferidas pelos Landgerichte e, excepcional-
mente, pelos Amtsgerichte (40).
Os integrantes dos Senados são juízes profissionais, em sua maioria
magistrados de carreira, muito embora possam também ter assento pro-
fessores catedráticos que recebem uma carga menor de feitos para apre-
ciação e, de conseqüência, não comparecem a todas as sessões, perce-
bendo vencimentos inferiores (4.1).
Os Senados Criminais têm, excepcionalmente, competência originá-
ria, como acontece no respeitante a crimes catalogados como de traição
(ex.: espionagem).
O Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) localiza-se em
Karlsruhe, conta com 16 Senados - 5 criminais e 11 cíveis (42) - e
apreoiaas reViisóes interpostas contra julgamentos de 2~ instância. r:
integrado exclusivamente por juízes profissionais.
Além dos Senados isolados, há um Grande Senado para causas cri-
minais (Grosser Senat für Strafsachen), um Grande Senado para causas
cíveis (Grosser Senat für Zivilsachen) e os Grandes Senados Reunidos
(Vereinigte Grosse Senate), pelos quais se busca assegurar a unidade de
interpretação do direito.
O Supremo Tribunal Federal, no campo da jurisdição ordinária, é o
mais alto Tribunal do país, sendo de notar, porém, que, havendo divergên-
cia de interpretação entre duas ou mais Supremas Cortes Federais, po-
derá ser invocado o Senado Conjunto dos Superiores Tribunais Federais
(Gemeinsamer Senat der obersten Gerichtshõfe des Bundes), também
sediado em Karlsruhe e composto por juízes representantes de todas as
Supremas Cortes Federais.
Registre-se, de igual conforme já anteriormente mencionado (nota 9),
que o mais alto Tribunal alemão é o Tribunal Constitucional Federal
(Bundesverfassungsgericht), o qual pode rever uma decisão de qualquer
corte federal e, mesmo, do Senado Conjunto dos Superiores Tribunais
Federais, se dita decisão ferir a Constituição Federal (43).
(39) Neste nlimero está Incluldo também o Supremo Tribunal Esladual de Bayern (Bayerlsches Oberstes
landeegerlchl), colegiado que somenle exlsle em referido Estado, COm competêncIa civil e penal
especlllca, (lue o distingue dos demais Oberlandesgerlchte bávaros e em relação aos quais fun·
clona como Inslancia superior, em detennlnedaa caulas.
(40) Oe Oberlandesgerlchte e(lulvalem aos Trltluneis de Justrça brasileiros.
(41) Na Alemanha nlio se conhece o (lue convencionamos denominar de "qulnlo constitucional", multo
embora seja posslvel promotores passarem a ser juIzes e vlce-versa, Por outro lado, não rara·
mente julzea e promotores optam pelo trabalho em atividades técnicas ou edmlnlstrativas, quer n08
Trlbunala, quer nas secretarias de Justiça dos Estados, quer no Ministério da Justiça, onde podem
pennanecer alé a aposenladorla. Tal, porém, obedece a diferente regulamentaçlio, no ambllo de
cada E.lado.
(42) Um Senado criminal localiza·se em Berlim.
(43) O Bundesgerlchtshol somente equivale ao nOllo Supremo Tribunal Federal, poil, no IimbUo da juris-
dição ordiné.rla.

R. I"t. legi.1. BrosiliCl o. 19 ft. 74 Clbr./jllft. 1982 191


JURISDIÇAO JURISDIÇAO JURISDIÇAO JURISDIÇAO JURISDIÇAO
CONSTITUCIONAL ADMINISTRATIVA DE FINANÇAS SOCIAL TRABALHISTA

•••••I
I • • •2 Senados
I: •• •• ••Pleno•• •• •• : I I· • • • ·1 I· • • • ·1 lo. • • 01 lo • • • 01
Tribunal Constitucional Supremo Tribunal Corte Federal de Tribunal Social Tribunal Federal
Federal Administrativo Finanças Federal do Trabalho

Composição varia de Es-


tado para Estado. com
maior ou menor nOmaro
da Juizes honorários e
proflsslonals.
lO. • • 01 lO • • • 01 lO • • • 01 lo • 01
Tribunal Constitucional Superior Tribunal Tribunal de Tribunal Social Tribunal Estadual
Estadual Administrativo FInanças Estadual do Trabalho

[O • • • 01 lo • 01
Juizo Social
lO • 01
Juizo Trabalhista
Tribunal
Administrativo

lEGENDA:
• Juizes
O
Profissionais
Juizes Honorários
JURISDIÇÃO PENAL JURISDiÇÃO CIVEL

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

I· • - • -I
Senado para Causas
CriminaIs
I· • • • ·1
Senado para Causas
Crvels

SUPERIOR TRIBUNAL ESTADUAL

I· • - -·r
Senado Criminal l ' Instância -
I ••I
Senado Crvel

I • • - 2'I
Senaclo Criminal Instância

TRIBUNAL ESTADUAL

lO • - • OI
Tribunal do Júri
I •••I
Câmara Clvel

lO - • • O
Grande Câmara CrIminal
I I O• 01
CAmara ComercIai

I O • O] [!]
Pequena CAmara Criminal JuIz Singular

JUIZO OROINARIO DE 19 GRAU

lO • 01
Jurzo de Jurados
I ()
- C
I
Jurzo da Jurados
para Menores
[!]
Juiz SIngular

[!] [!]
Juiz Singular Juiz de Menores
IV - O recurso ao Judiciário, no âmbito do direito prlvado
Igualmente como se dá no Brasil, as partes e os advogados procuram,
sempre que possível, evitar as demandas judiciais, no campo do direito
privado. Assim, buscam o acordo extra-judicial como uma forma mais
célere e menos dispendiosa (44) para dirimi'r as pendências surgidas.
Quando tal não é alcançado e deixa-se de recorrer ao juízo arbitral (45),
a parte interessada, na hipótese de se julgar credora da outra, ao invés de
ajuizar ação para receber o seu crédito, pode optar - e em regra o faz
- pela interpelação judicial do devedor a satisfazer a obrigação, com o
que ou obtém essa satisfação ou um título executivo judicial ou ainda, na
hipótese de simples impugnação do devedor, poderá ter Início o processo
propriamente dito. Trata·se de um procedimento menos oneroso e, nor-
malmente, eficaz, denominado Mahnvertahren (procedimento monitório),
o qual será abordado no curso deste estudo.
Podem as partes, todavia, lançar mão, desde logo, da ação própria,
perante o juízo competente, ou porque não pretendam interpelar ou por
não ser admissível a interpelação. Neste particular cumpre abrir, aqui,
um parêntese para esclarecer que nem sempre as partes são obrigadas a
recorrer a um advogado, a fim de assisti-Ias judicialmente e, por outro
lado, têm que se valer, em algumas oportunidades, de mais de um pro-
fissional, se quiserem ter acesso a todas as instâncias.
Assim, nos Juizos Ordinários de 19 Grau, faculta-se às partes peti-
cionar diretamente, podendo, porém, se preferirem, ser representadas por
um advogado habilitado ou, mesmo, por quem - embora não seja advo-
gado - tenha conhecimentos jurídicos (ex.: bacharel não inscrito na
Ordem, ou estagiário).
Já nos Tribunais Estaduais - quer quando funcionam em 11}. ou em
2!]. instância - , nos Superiores Tribunais Estaduais e no Supremo Tribunal
Federal, é necessário que a parte esteja assistida por advogado legalmen-
te habilitado. Não basta, porém, a inscrição perante o órgão de classe,
sendo de mister o credenciamento junto ao Tribunal respectivo. Em certos
Estados, um advogado pode estar autorizado a funcionar perante um Tri-
bunal Estadual e o respectivo Superior Tribunal Estadual. Via de regra,
porém, ele se acha admitido apenas em um Tribunal.
Já no Supremo Tribunal Federal, somente um reduzido corpo de
advogados se acha credenciado (46).
Como conseqüência do antes exposto, no cível os advogados podem
militar sem impedimento perante os Juízos Ordinários de 19 Grau per-
tencentes à circunscrição do Tribunal Estadual para o qual estejam admi-
tidos. Para estes Tribunais Estaduais, dita admissão é alcançada sem
maiores dificuldades e praticamente decorre da habilitação e, bem assim,
da localização do escritório profissional, ou seja, um advogado inscrito

(44) Vide o t6pico relativo a despesas judiciais.


(45) O recurso , arbitragem lem 81do eltpresaivo, precipuamente em questOes mercantis de maior vulto.
(46) Atualmente alo apenaa 21.

194 R. Int. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./jun. 1982


no órgão da classe está automaticamente habílitado no Tribunal Estadual
em cuja circunscrição tem seu escritório (47).
A admissão aos Superiores Tribunais Estaduais, porém - nos Es-
tados que não permitem duplo credenciamento -, só é alcançada após
determinado tempo, observada a experiência e o renome profissional, o
mesmo se verificando, unicamente com maiores exigências, no referente
no Supremo Tribunal Federal.
Consigne-se, ainda, que um advogado habilitado em um Superior
Tribunal Estadual ou perante o Supremo Tribunal Federal, em princípio,
não milita em outros Juizos ou Tribunais.
A razão do sistema antes relatado parece residir na preocupação
de que a parte reste bem atendida. Este, acredito, é o fundamento do,
até certo ponto, rígido controle do exercício profissional da advocacia
na Alemanha. Ao que senti, não se visa impedir o trabalho do advogado
mas, sim, defender o interesse das partes e, ao mesmo tempo, premiar
aqueles que se destacam. Por outro lado, a circunstância de a parte
se encontrar bem representada tem, também, como supedâneo, servir à
administração da Justiça, pois, indubitavelmente, tal facHita a prestação
jurisdicional. Mencione-se, a propósito e infelizmente, ser até certo ponto
freqüente em nosso país a constatação, nos mais elevados Tribunais, de
advogados de renome, autênticos mestres do direito, estarem a assistir
a uma das partes, enquanto a outra é representada por um recém-for-
mado, o qual, por mais esforçado que seja, normalmente não está ao
nível do patrono da parte adversa, o que pode levar a desastrosas con-
seqüências, inclusive no campo do direito material, pois, a despeito dos
poderes concedidos ao magistrado brasHeiro na condução do processo
(arts. 130, 342 etc., do CPC), deles não poderá usar a ponto de compro-
meter a indispensável imparcialidade.
Observe-se que o exercício profissional da advocacia, na Alemanha,
na forma já referida, dá-se no âmbito da jurisdição ordinária e tão-somente
no cível.
A situação mencionada é encarada com a maior naturalidade pejos
próprios advogados, ao contrário do que poderia acontecer no Brasil e,
na prática, ao que tudo indica, são alcançados, de maneira geral, os ob~
jetivos pretendidos, certamente para tal resultado também contribuindo
o profundo sentido de especialização que está presente em todos os
campos na Alemanha, inclusive na advocacia (48) .
Por derradeiro, fechando o parêntese, mencione-se que o exercício
da advocacia, no cível, como relatado, em nada altera o alto respeito
que se devota ao "Prinzjp der freien Advokatur" (princípio da livre ad-
vocacia) .
(47) Excepclonalmenta. tembém eslar' credenciado paranta o Superior Tribunal Estadual respectivo, noa
poucos Estados que tal edmltem.
(48) Impressiona aos alemles como os /ulles e advogadOll brasileiros, em sua grande maioria, davem ter
bom conhecimento de todos os ramoa do dIreito. li. propósito, é comum, na Alemanha. que um con-
ceituado advogado ou, mesmo, um experiente magistrado, contasse não ter condlç6es de respondsr
a uma Indagação que escape ao ramo especlllco da respectiva milJtAneia, por mais singela qus
POlISa parecer a questão a um protlsalonal braallelro.

R. Inf. legisl. lroama a. 19 n. 74 abr./jlln, 1982 195


1 - A U instAncia
Os liUgios, no âmbito do direito privado, são resolvidos, em 1~ ins-
tância, através do já citado procedimento monitório ou, quando tal não é
alcançado, por intermédio da ação própria.
A prestação jurisdicional, em 19 grau, é exercida pelos Juizos Ordi-
nários de 19 Grau (Amtsgerichte) e pelos Tribunais Estaduais (Landge-
richte), através das Câmaras de 1~ instância.
Os Juizos Ordinários de 19 Grau são competentes:
8) para o procedimento monitório (Mahnverfahren), qualquer que seja
o valor do débito, mas, como ainda se verá, inocorrendo a satisfação da
obrigação e sendo a pretensão impugnada, o processo que poderá se
seguir nem sempre será da competência do Juízo onde foi processada a
interpeIação;
b) para causas de valor de até 3.000 DM (§ 23, n<? 1, GVG) (49),
muito embora a condenação possa ser superior;
c) para causas de valor superior a 3.000 DM, quando as partes con·
cordarem, expressamente, com a submissão da quaestio jurís ao Amtsge-
rlcht, ou na hipótese de não have-r 'impugnação específica do réu, o que
importa na prorrogação da competência;
d) quando a natureza da ação assim o determinar, independentemen-
te do valor da causa (ex.: locação) - § 23, n9 2 a - h GVG;
e) para as causas atinentes ao direito de família.
Os Tribunais Estaduais, por suas Câmaras de 1~ instância, são com-
petentes para todas as causas cíveis e comerciais que escapem à com-
petência dos Amtsgerichte, ou seja:
8) para causas de valor superior a 3.000 DM;
b) para causas de valor inestimável.
São, igualmente, competentes os Landgerichte, em 19 grau, para
processos de indenização contra o Estado, por força de atos praticados
por funcionários públicos em tal condição (§ 71, 11, n9 2, GVG).
O trabalho do juiz em um Juízo Ordinário de 19 Grau em muito
difere do trabalho de um magistrado brasileiro em semelhante situação.
Em primeiro lugar, há toda uma infra-estrutura em auxílio do juiz alemão,
a principiar pelas excelentes instalações (prédios amplos, mobiliados fun-
cionalmente, sem qualquer luxo, mas com todo conforto), pelo respaldo
pessoal (há assessores, datilógrafas e secretárias que servem a um ou
mais juízes) e técnico, com utilização de recursos modernos (gravações
com aparelhagem especial, máquinas eletrônicas, fotocopiadoras etc.).

(411) Gerlchlaverfll..ungllglleelZ. equivalente eo noeeo C6c:llgo de Orgenlzeçlo e Divido Judlclãtlae. No


referente eo velor em no..a moeda, a quanlia e. aproxima dos Cr$ 200.000,00 (mae nlo .. pode
lIeQUlIcer, por outro l.do, que um lrabalhador nlo especializado percebe, n. Alemanha. cerc. de
1.500 DM 10 mêe).

'96 R. Inf. lelili.l. Brasília G. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Tal se constata em qualquer Comarca, inclusive nas menores, que equi-
valeriam às de H entrância, no Brasil (entrãncia inicial, no Paraná).
Há que se ressaltar ser todo o edifício do Forum muito bem cuidado,
contando o respectivo Diretor com verba suficiente, anualmente fixada,
segundo o solicitado diretamente ao órgão competente da Secretaria da
Justiça, para comprar material (inclusive para aquisição de livros), cum-
prindo mencionar, apenas para se ter uma idéia, que em uma Comarca
com 53.000 habitantes, só para a biblioteca dos juízes, promotores e
advogados, são destinados 12.000 DM (cerca de Cr$ 780.000,00) anuais.
O trabalho do magistrado, por outro lado, é em muito facilitado pela
regra na Alemanha observada e que um dia, quiçá, também o será em
nosso País, segundo a qual um juiz é necessário para julgar e, assim,
somente deve pratícar os atos que demandem a sua apreciação de julgador
(decisões, coleta de prova oral e sentenças). Após o exame de dezenas
de autos, verifiquei que, desde o recebimento da inicial até a sentença
final, os mesmos são apresentados ao juiz, em regra, duas ou três vezes.
Tudo o que deve ser feito para cumprimento das normas procedimentais,
fica a cargo do cartório (Geschãftsstelle) e, às vezes, dos Rechtspfleger (SD).
A propósito, não vislumbro, dentro da nossa sistemática processual,
qual a razão de tanto trabalho infrutífero, que consome precioso tempo do
magistrado brasileiro. Ouso, a respeito, sugerir estar na hora de um
basta, sendo perfeitamente possível, sem qualquer reforma processual ou
delegação de jurisdição, bem como sem vilipêndio às normas legais -
ao contrário, cumprindo-as à risca -, determinar o juiz todas as provi-
dênoi'as que não demandem uma apreoiação judicial e integrem obrigato-
riamente o iter procedimental, sejam, de plano, tomadas pelo próprio
cartório, aboltndo-se o vaivém rnconseqüente dos autos.
Acompanhei o trabalho de um juiz ordinário de 19 grau, no cível,
fazendo-o de perto e por longo perfodo e, em srntese, observei que o
mesmo conta, em média, com 400 a 600 processos ao ano, o que lhe
possibílita uma plena lembrança de cada caso, à símples menção do
nome das partes, ao mesmo tempo em que lhe faculta a designação de
audiências no prazo máximo de um mês, permitindo que a sentença seja
proferida dentro de 90 dias, contados do ajuizamento (processos intrin-
oooos, com perldas etc., podem demandar 6 m~ses a 1 ano até o julga-
mento em 11i1 instância, quer no Amtsgericht quer no Landgericht). Notei,
outrossim. que, além de proferir o já referido diminuto número de despa-
chos, utiliza o magistrado alemão, ao prolatar suas decisões e sentenças,
formulários, que em nada desmerecem a prestação jurisdicional e facilitam
o trabalho do julgador.
Ainda no pertinente à preocupação com a simplificação, o Ministério
da Justiça distribui impressos a serem utilizados nas citações, intimações
(já acompanhados do modelo de resposta, se for o caso), ciente o inte-
ressado das providências que deverá tomar e das conseqüências de even-
lual inércia.

(60) Vlde Item ....pectlvo.

R. Inl. I.tis/. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 197


No respeitante às audiências, deve·se registrar a simplificação e cele-
ridade, em análise comparativa com o padrão brasileiro. No cível, em
regra, não está presente qualquer escrivão ou funcionário, utilizando o
magistrado sistema de gravação, somente se registrando, tanto nas toma-
das de depoimento, quanto nas alegações, o estritamente necessário,
deixando-se de lado formalismos supérfluos. Exemplifica-se:
a) dá-se a palavra às partes ou a seus advogados, para perguntas
diretas às testemunhas, sem que tal fique registrado, pois o importante é
consignar o que foi dito e não quem ou o que se perguntou, despre-
zando-se, no regIstro, perguntas e respostas impertinentes;
b) o juiz, ou a própria parte, pessoalmente ou por advogado, após
já haver formulado perguntas a uma testemunha, tornam a fazê-lo, que-
rendo. Mencione-se que tal é feito com informalidade e, ao mesmo tem-
po, com o máximo respeito, buscando-se, unicamente, a verdade.
Cumpre registrar, outrossim, o papel desempenhado pelo Correio ale-
mão na agilização da Justiça e que, diga-se de passagem, poderá ser
seguido pelo brasileIro. feitas pequenas alterações na legislação, de tal
sorte que não se possibilite às partes medidas procrastinatórias. As cita-
ções e intimações, na Alemanha, são feitas em prazo que oscila entre 24
e 48 horas da data em que foI postada a correspondência. Não sendo
encontrado o interessado, pessoalmente, vale o ato, por exemplo, desde
que uma pessoa da família receba a missiva. Ninguém sendo encontrado,
deixa-se um aviso de que há uma comunicação aguardando na agência
do Correio, por 14 dias, no entanto. findo tal prazo, também se considera
como realizada a cientificação e ao interessado incumbirá. se for o caso,
comprova,r. à saciedade, que, v.g., estava ausente, hospital'izado etc. Tal,
mencione-se, acontece com pouca freqüência.
Já o magistrado integrante do Tribunal Estadual, em 1{l instância,
julga como componente de uma câmara ou isoladamente, como juiz sin-
gular (Einzelrichter). As Câmaras de 1{l instância são. em regra, especia-
ljzadas (Câmaras para reparação de danos, para questões imobiliárias
etc.) e compostas, em média, por 5 juízes, embora somente 3 julguem.
de tal sorte que nem todos necessitam comparecer à integralidade das
sessões (cerca de 2 por semana), ficando livres para estudo, substituições
e para os processos em que funcionam como juizes singulares. Normal·
mente, um juiz de Landgericht recebe, como relator (Berichterstatter) e
juiz singular, um total de 150 a 200 feitos por ano. Cumpre, neste parti-
cular, registrar que os julgamentos dos colegiados são secretos, de tal
sorte que as partes não sabem se houve discordância, mesmo porque
não é possível lançar voto vencido (51).
Há, também, Câmaras Comerciais, compostas por 1 juiz profissional
que as preside, e 2 honorários. Nelas, que, por sinal. têm desempenho
excelente, o magistrado profissional recebe um menor número de pro-
cessos, em razão dos juIzes honorários não funcionarem como relatores.

\óT} Tal vale para a 1.8 e 2." instâncias a, Quanto a voto vencido. vide nola n. o ·9.

198 R. Inf. le!Jisl. Brasília CI. 19 n. 74 abr./jun. 1982


2 - A 2f Instlncla
Em 2~ instância, a prestação jurisdicional é fornecida pelos Tribunais
Estaduais (Landgerichte) e pelos Superiores Tribunais Estaduais (Ober-
landesgerichte).
Os Landgerichte, 'através de suas Câmaras Cíveis ou Comeroiais (Zi-
vilkammern ou Kammern für Handelssachen - §§ 60 e 93 e seguintes,
GVG), são competentes para o julgamento de queixas (Beschwerden) e
apelações (Berufungen) (52), interpostas, respectivamente, contra decisões
e sentenç·as dos Juízos Ordinários de 19 Grau (Amtsger.ichte), com exce-
ção da matéria atinente ao direito de família, que é da competência re-
cursal, dos Oberlandesgerlchte, segundo o § 119, 1, GVG.
Os Obertandesger1chte, através de seus senados (§ 116, GVG), são
competentes para o julgamento das queixas (Beschwerden) e apelações
(Berufungen) interpostas contra decisões e sentenças proferidas pelos
Landgerichte e, no âmbito do direito de família, pelos Amtsgerichte.
Tanto nos Tribunais Estaduais, quanto nos Superiores Tribunais Es-
taduais, depara-se com a espeoialização, de forma mais intensa do que
a que se verifica nos Arntsgerichte. Tal é exatamente o contrário do que
ocorre no Brasil, onde temos uma relativa especialização em 11i1 instância
e praticamente nenhuma em 2~ instância, agrupando-se os magistrados,
em regra geral, em Câmaras Cíveis e Criminais, apenas.
Na Alemanha, as Câmaras (53) e os Senados (54) são também divididos
em criminais e cíveis, mas, observada esta distinção, cada qual tem uma
ou certas especíalidades. Por exemplo, no âmbito cível, há Câmaras e
Senados para questões afetas a construção civil, de família, para inde-
nizações, para relações comerciais etc. Há, também, Câmaras especiali-
zadas somente para julgamentos de queixas (Beschwerden).
As Câmaras e os Senados julgam com 3 membros, muito embora
sejam integrados por 4 ou 5 juizes, dependendo do Estado, mas nem
todos os magistrados recebem a mesma carga de processos, pois alguns,
como visto, não são juízes de tempo integral, dedicando-se mais ao ma-
gistério superior, pelo que julgam menos e também percebem bem menos
(em torno de 25%). Em média, o magistrado em exercício no Landgericht,
com tempo integral, recebe e julga de 150 a 200 processos por ano, e o
juiz do Oberlandesgericht, de 60 a 80. As sessões (Sitzungen) são reaili-
zadas duas vezes por semana e o julgamento das apelações demora cerca
de 2 a 6 meses nos Lanclgerichte e de 4 'a 8 meses nos Obertandesgerichte.
O julgamento das queixas, porém, em ambos, é muito mais rápido, por
vezes não chegando a 1 mês. Cada grupo de 2 a 3 Câmaras e Senados
tem sua própria secretaria, com toda a estrutura necessária ao bom anda-
mento dos serviços.

(52) Vide tópicos e8peclflco8 sobre queixa e ape'açlo. onda slo tratadas as condlçlSe8 de adml8slblll·
dade e O processo respectIvo.
(53) Denomlnaçllo somente empragada para os Landgerlchte.
[54) Slo aa nossaa Cêmeraa de Tribunal de JUstiça, com denominação dllerente. para dlstlngul.las das
dos Tribunais Estaouals Inferiores. . .

R. Inf. legial. Bralília a. 19 n. 14 abr./jun. 1982 199


Como curiosidade, que bem demonstra a desburocratização e, mesmo,
a circunstância de ser a justiça alemã avessa a formalismos hipertrofia-
dos, tendo presente que o importante é a descoberta da verdade, cumpre
registrar não ser incomum que Câmaras se desloquem a outros Estados
e Pa{ses, para reaHzação. de sessões. O Land.gericht BiM&1"'ó, por exem~
pIo, apreciando processos contra nazistas, já esteve em Moscou, Israel e
até mesmo na Califórnia (USA), com os componentes da Câmara, auxi-
liares e advogados das partes.
Note-se que a 2~ instância, no pertinente às sedes dos Tribunais,
está descentralizada, facilitando as partes e constituindo um prêmio às
cidades de maior expressão, que não são capitais de Estado, criando-se,
também, empregos e elevando-se o padrão cultural e econômico da co-
munidade, além de se facilitar o Referendar (estágio obrigatório de estu-
dantes de direito em JuIzos e Tribunais). Esta observação, registre-se,
vale tanto para os Landgerichte como para os Oberlandesgerichte.

3 - A 3f InstAncla
A 3~ instância está a cargo do Supremo Tribunal Federal (Bundesqe-
richtshof), através de seus Senados, a eles incumbindo o julgamento das
revisões referentes às decisões proferidas pelos Oberfandesgerichte (~5).
Na 31il instância não se faz presente especialização mais acentuada,
ao menos no que pertine aos Senados, que são divididos em cíveis e
criminais, apenas se reservando a dois deles o julgamento dos conflitos
de competência (56).
Cada Senado é composto por 6 ou 7 jurzes, julgando com apenas 5,
o que facilita as substituições e permite a um juiz comparecer a apenas
uma sessão por semana, quando, em regra, são realizadas duas.
O relator ria revisão. após estudar o recurso, prepara uma minuta
de voto, que é encaminhada, com uma antecedência de 2 semanas da
e.essão. aos demais membros que partkiparão do julgamento. A.ntes mes-
mo da sessão de julgamento, podem os jurzes se reunir, reservadamente,
para verem esclarecidas certas dúvidas.
Um juiz recebe, por ano, 40 a 50 revisões e cerca de 5 recursos em
que há alegação de divergência de interpretação entre dois Tribunais
do pars. Os contritos de competência, que ficam em torno de 1.500 ao
ano, somente são julgados, como referido, por dois dos Senados, cabendo
pouco mais de 100 feitos para cada juiz.
Observa-se, assim, receberem os integrantes do Bunóesgerichlshot
uma carga de trabalho que lhes possibilita dedicar mais tempo ao estudo
das qunstões submetidas a seu julgamento, sem qualquer prejufzo à cele-
ridade processual. A propósito, em cada sessão são julgados de 8 a 10
feitos, ou seja, em média, 2 por julgador.

155) Vide tópico referente l revla40.


(110) Vide tópIco referente l Ol'llanlzaçllo JudlcI6r1a, Illlm Supremo Tribunal Federal,

200
Apesar de os Senados serem divididos tão-somente em cíveis e cri-
minais, cada grupo de dois juízes recebe processos de determinada natu-
reza, de acordo com sua especialização. Dessarte, por exemplo, em deter-
m~nado Senado, já se sabe que as revisões referentes a sucessão serão
relatadas pelo juiz A ou 8; as respeitantes ao direito de famfHa, pelo juiz
C ou D; as que abranjam pedido de indenização, pelo juiz E ou F etc.,
podendo um magistrado receber feitos de mais de uma natureza. Dita
distribuição é feita pelo presidente do Senado, atendidas a habilitação e
as preferências dos julgadores.
O julgamento da revisão dá-se de 10 a 12 meses após a fundamen-
tação do recurso (57).
Ainda no que pertine ao trabalho do juiz no Bundesgerichtshof, cum-
pre mencionar a figura do wissenschaftlicher M!tarbeiter (auxilriar científi-
co), que é um juiz estadual (de Amtsgerlcht ou de Landgericht), convoca-
do, por 3 anos, a prestar serviços no Supremo Tribunal Federal, auxilian-
do aquliles julgadores que estejam mais atarefados. Normalmente, em
cada Senado crvel hã 2 auxiliares cientificos, recebendo cada um 3 feitos
por mês para estudo e, realízado este, apresentam uma minuta de voto.
Aceita a minuta pelo juiz auxiliado, o feito será levado a julgamento,
normalmente. Se, porém, não for acolhida a conclusão do auxiliar, o rela-
tor terá que lavrar o seu voto e submetê-lo à apreciação do Senado, jun-
tamente com a minuta rejeitada. Neste caso, quando do julgamento, o
auxiliar, embora não possa votar, tem a oportunidade de defender seu
ponto de vista que, por sinal, na prática, em muitas oportunidades, resulta
vencedor. Resguarda-se, assim, a independência do juiz.
Os juízes prestam dito auxílio após indicação pela Secretaria de
Justiça de cada Estado, sendo escolhidos dentre aqueles considerados
maIs qualificados pelos respectivos Tribunais, observado o fichário indi-
viduar, dando-se especial atenção à capacidade de produção, sem se
desprezar o conhecimento jurfdico. Aceita a indicação pelo presidente do
Bundesgerichtshof, passam os juizes, no triênio, a exercer a tarefa antes
mencionada, percebendo vencimentos equivalentes aos de integrante de
um Superior Tribunal Estadual.
Frise-se que o magistrado é consultado antes da indicação e, a qual-
quer tempo, pode voltar à Comarca ou Tribunal de origem, se assim o
desejar.
Atualmente, há 25 wissenschaftllche Mitarb8iter no Bundesgerichtshof,
19 com atribuições no cível e 6 no crime.

v- A formação do bacharel em direito


Para se ter acesso a uma Faculdade de Direito, na Alemanha, são
necessários 13 anos de estudo básico, equivalente aos 19 e 29 graus brasi-
leiros. Ao término destes, é realizado um exame geral, o Abitur. A apro-
vação faculta o acesso aos cursos superiores, cumprindo mencionar que

(57) Vide o nem RevieAo. no capItulo doe recu raot.

R. Inf. legisl. BralÍlia a. 19 n. 74 obr./jun. 1982 201


o grau alcançado terá relevância quando da escolha da faculdade, pro-
cessando-se, assim, uma certa seleção, de tal sorte que, quanto mais
procurado o curso, melhor deve ter sido a nota obtida no Abitur, para
que o candidato seja admitido a freqüentá-lo.
Na Faculdade de Direito (58) são necessários, no mínimo, 7 semestres
para habilitar o estudante a prestar o 19 exame (erstes juristisches Staats-
examen). Em regra, porém, são completados 9 ~ 10 semestres antes da
submissão à mencionada prova.
A aprovação no 19 exame permite ao estudante o cumprimento de
uma segunda fase, por sinal das ma:s importantes em seu aprendizado
jurídico, qual seja, a formação prática (praktische Ausbildung), a ser efe-
tivada com estágio remunerado pelo Estado, em Juízos de 19 e 29 Grau,
no Ministério Público, na admin·istração pública e com advogados, por
um prazo total mínimo de 2 anos (59).
Nos Juízos e Tribunais há magistrados especialmente designados
como orientadores dos estagiários, que são denominados Referendare (80).
Ultimada a formação prática, submete-se o estagiário ao 2Q exame
(zweites juristisches Staatsexamen ou Assessorexamen), perante um Su-
perior Tribunal Estadual (OberJandesgericht).
A aprov.ação no 29 exame é que torna o estudante um jurista pleno
(VoJljurist), habilitando-o ao exercício da advocacia (61), bem como ao
ingresso na administração pública (cargos técnicos que exijam formação
jurídica), no Ministério Público e na Magistratura. Neste particular, repita-
se, adquire especial importância o grau alcançado no 29 exame, pois tão-
só a aprovação com nota mínima, embora permita a advocacia e, por
vezes, o 'ing,resso na adminiswação pública, não capacita o candidato a
fazer parte do Ministério Públíco e da Magistratura, já que para tal se
exigem conceitos mais satisfatórios. Por força desta circunstância, não
raras vezes um jurista pleno refaz parte do estágio e se submete a um
novo 29 exame, para tentar um melhor grau e, assim, por exemplo, ter
condições de ingressar na judicatura.

VI - O juiz
Aquele que. já aprovado no 29 exame, pretenda abraçar a judicatu-
ra (62) , deve pleitear sua admissão per'ante o Ministér,io da Justica (63) do
respectivo Estado, se tencionar ingressar na jurisdição ordinária (64).
(58) o.
pnuenl98 comentários têm em conta o que se pB889 na maioria das Faculdades de Olrelto da
Alemanha, sem análise de experiênclaa que estio sendo lavada. a aleilo. atualmente, em Blele/eld,
Hambulll li, HaMover. Augaburg, Bayreuth. Konatanz e Bremen.
(59) A parti r da 1982, a formação prálica lerá a duração m rnlma de 2 anos e me lo.
(60) Os Jurzas que têm esla Incumbência recebem um menor número de processos para julgamento.
(61) Sobre pecuilerldades referen1es ao exerclclo da advocacia, no crvel, vide o tópico "O racurao ao
Judiciário, no âmbito do Direito Privado",
(62) O Ingresso no Mlnl.térlo PQblico se proceasa da mesma fonna.
(63) Equivalente /I Secretaria de Estado da Justiça, no Brasil.
(&4) No presente estudo somente se aborda a carreira do juiz no imbUo da Jurfsdlç&o ordln""a, regi ..
trando-se, porém, que a admissão como iuiz social e do trabalho é plallaada perante o Ministério
Estadual do Trabalho. como juiz da Fazenda, perante o Mlnlalérlo Estadual da Fazenda etc.

202 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 obr./Jun. 1982


Existindo vaga e sendo a nota do 29 exame satisfatória, passa o
candidato a ser juiz em experiência (Richter auf Probe), por um perlodo
mínimo de 3 e mâx.jmo de 5 anos, em que exercerá a judicatura em um
Juízo Ordinário de 19 Grau (Amtsgericht) ou em uma Câmara de Landge-
richt, bem como desempenhará as funções de Promotor de Justiça (65),
sendo levado a exercer uma ou outra função, sem necessidade de reque-
rimento ou anuência. Esta circunstância e a de que está sempre o Richter
auf Probe sob o julgamento de um diretor de Amtsgericht ou Vorsitzender
(presidente) de Câmara, são pontos que tenho como criticas ao sistema,
pois podem pôr em risco a independênci's indispensável a todo mag,is-
tfado.
O período de prova poderá ser, excepcionalmente, inferior a 3 ailOS,
quando o juiz tiver exercido a advocacia ou cargos na administração pú-
blica, privativos de bacharéis em direito, mas, mesmo nestas hipóteses,
ainda se exige um estágio probatório mínimo de 12 meses.
Cumprida a fase experimental e considerando o Tribunal que o juiz
em experiência demonstrou aptidão para a magistratura, é ele nomeado,
por ato do Governador, juiz vitalício e inamovível.
Como juiz vitalício, a carreira inicia, indiferentemente, num Amtsge-
richl ou num Landgericht, de onde o magistrado somente sairá a seu pedi-
do, quer para outro Amtsgericht ou Landgericht, para o Obeflandesgericht,
como juiz auxiliar ou por força de promoção, para o Bundesgerichtshof,
como wissenschaftlicher Mitarbeiter (auxiliar científico), para o Ministério
PúbNco ou para exercer funções administrativas em Tribunais ou, mesmo,
nos Ministérios da Justiça dos Estados e, excepcionalmente, no Mi,nistério
Federal da Justiça.
A promoção propriamente dita apenas se dá para o Oberlanclesgerichl,
observado o critério de merecimento. Para tal ser apurado de maneira
objetiva, o magistrado, quando conta 35 a 40 anos de idade (66) e cerca
de 10 de judicatura, é convocado ao Tribunal, por um período de 6 meses
a 1 ano, passando a receber e julgar recursos, como se integrante fosse
do colegiado. Ultimada a convocação, desde que considerado o juiz apto
à promoção, tendo em conta não s6 os conhecimentos jurídicos, mas,
principalmente, a operosidade. estará qualificado para a indicação à no-
meação pelo PrãsidiaJrat (67). Dita indicação, porém, não é suficiente ~
e aqui se faz sentir, até certo ponto, a influência política - pois o
FHchterwahlausschuss (comissão eletiva de juízes), integrada não só por
juízes, como também por membros do Legislativo estadual (68) e presidida
pelo Ministro da Justiça do Estado (sem poder de voto), deve ratificá-Ia.
(65) Nola-se aqui. meis uma vez, um certo entrelaçamento entre as lunçlles de juiz e de promotor. o
que constitui uma constante, tanto que é pasalvel, a pedido do Interessado e no inleresse da ad·
ministração da Justiça, a mudança de carreIra. mesmo que se estefa exen:endo os mais elevados
cargos em uma ou outra, laeultando-se, outrossim, posterior reversAo ao estado anterior.
(66) Não há uma Idada limite, mas esta ê a média. pala o Ingresso na magIstratura dã,se entre os 25 e
os 27 anoa, cumpra-se o parlodo probatório por volta dos 30 e, aoa 35 ou 40, já conta o juiz com
a experiência necessArla à Judicatura em Oberlandesgerlchl.
(67) 6rgllo composto pe lo presidente do OLG a por alguna ju [zes de dito coleg lado - equ Ivalenle ao
Orgllo Especial dos Tribunais brasileiros (OLG= Oberlandesgericht).
(SS) Em alguns Estados fazem parte da referida comlssllo membros pertencentes ao Poder Executivo.

R. Int. le9.1. BrClsília a. 19 n. 74 abl./jun. 1982 203


Desde que o estágio não seja satisfatório, retornará o magistrado à
sua ocupação anterior, exercerá outras funções administrativas ou, ainda,
integrará o Ministério Público, mas não judicará no Oberlandesgerlchl.
Registre-se que, ao invés de ser promovido para o Ob6r\an<lesge\'(eht,
o ju,iz poderá ser nomeado Presidente de Câmara em Landgericht ou
Diretor de Amtsgericht, pois tais cargos são equivalentes, sendo viável,
inclusive, remoção de um a outro e, não raro, um juiz de Oberlandesgerfcht
opta pela presidência de Câmara em Landgerichl.
Após atingir tal degrau, o magistrado terá condições de nomeação a
Presidente de Senado no Obenandesgericht, o que o equipara a um Presi-
dente de Landgericht. Finalmente, ser-lhe-á possível, ainda, alcançar a
Vice-Presidência e a Presidência do Oberlandesgericht (69). Frise-se que
re1erida equivalência prevalece também para efeitos estipenáiais.
A nomeação de um juiz do Supremo Tribunal Federal (Bundesge-
richtshof) observa o seguinte processo: cada Estado, observadas as indi-
cações do Prãs;d1alral (Conselho Presidenc:al) e do Ministério da Justiça
respectivo, aponta 1 a 2 nomes (70), quase sempre dentre juízes de Ober-
landesgericht, Presidentes de Câmara em Landgerichl e, mesmo, conse-
lheiros do Ministério da Justiça (muitos dos quais juízes de carreira). A
seguir, os nomes são submetidos ao Richlerwahlausschuss (comissão ele-
tiva de jufzes), presidido pelo Ministro Federal da Justiça e integrada
reI os Ministros Estaduais da Justiça e por idêntico número de membros
Indicados pelo Parlamento. O ele:to será nomeado pelo Presidente da
República a, se não aceito, proceder-se-á a uma nova eleição.
Não há, na Alemanha, a aposentadoria por tempo de serviço e um
juiz pode ser jubilado ao atingir a idade de 62 anos, como se dá com os
plofessores catedráticos. Para as demais classes, a aposentadoria somente
é possível aos 65 anos.
A remuneração inicial de um mag:strado fica em torno de 3.000 DM
(cerca de Cr$ 200.000,00), com acréscimos de 210,37 DM (cerca de
Cr$ 14.000,00), a cada 2 anos, a partir dos 31 anos de idade do juiz. Nos
últimos degraus da carreira, os vencimentos podem chegar aos 10.000 DM
(mais ou menos Cr$ 650.000,00). Em tais valores não estão incluídas as
qratíficações por dependentes, Que são reais e não simbólicas, como o
nosso salário-família, podendo ultrapassar os 1 .000 DM. ~ de se reqistrar,
ainda, no aspecto remunerativo, que o magistrado tem direito ao 139 salá-
rio e ao auxflio-férias, que usufrui duas vezes ao ano.
HA que se frisar, ainda, a efetiva assistência social dis\>ensada pelo
governo a todos os habitantes da República Federal da Alemanha - e
que, de conseqüência, beneficia também os magistrados - abrangendo,

(69) O. cargos de Pres Idente e Vice de TrIbunais. bem como os de Presi dente de Camara ou Senado,
elo vltallcloa. Inexiste, por outro lado, um cargo equivalente ao de Corregedor da Juatlça, cuJaa fun-
çlles alo exercidas pelo Prealdente do Tribunal, o qual pode ser auxiliado por um Juiz convocado,
que desempenha, também, os misteres de diretor-geraI. Hã, ainda. a competência dos TribunaIs a dll
Cortes Funclonars para JuIzes, no êmbito disciplinar, como já tratado.
(70) Em regra, aguarda-se a ocorrência de 2 a 3 v.gu. p.ra f.ellit.r a seleção.

204 R. 'nt. '8gb\. BrcniUQ a. 19 n. 74 abr./lu•. 1982


dentre outras facilidades, o ensino gratuito (das creches aos cursos supe-
riores), a gratificação decorrente da esposa não trabalhar fora do lar,
bem como um perfeito atendimento médico-hospitalar, onde se inclui o
direito de freqüência a estações hidrominerais de tratamento.
Os juízes de carreira, outrossim, têm sua independência garantida
constitucionalmente (art. 97, 11 Grundgesetz), sendo especificada nos §§ 30
a 37 do DRiG (Deutsches Richtergesetz - Lei Orgânica da Magistratura
Alemã). Após vencido o período de prova, não pode o magistrado ser
removido, promovido ou convocado, sem anuência, e nem rebaixado (não
se considerando como rebaixamento o retorno a atividades anteriores, a
pedido ou findo o período de convocação). Só poderá perder o cargo
por força de processo.
Faz-se mister mencionar, pela importância na formação do magistrado,
a Academia de Juizes (Richterakademie), em Trier, mantida pelo Ministério
Federal da Justiça, com auxílio dos Ministérios Estaduais, que se destina
a um permanente aperfeiçoamento da magistratura sobre temas novos,
ma:s polêmicos ou complexos. Para tal, há uma programação anual, dis-
tribuída a todos os juízes do país, os quais, tendo interesse, se insc,re"em
e 530 convocados, observada prévia seleção que tem em conta a natureza
do curso, a especialidade e as aptidões do candidato. As despesas de
'Jiaoem são cobertas e, na Escola, obtêm alimentação e pousada. Numa
sadia concorrência, cada Estado é responsável pela organização de um
curso, o que faz todos se esmerarem por uma atuação destacada e dimi-
nui as despesas globais.

VII - O administrador judicial (der Rechtspfleger)


Como bem diz JÜRGEN BAUMANN (Grundbegriffe und Verfahrens-
prinzipien des Zivilprozessrechts, 2. Auflage Kohlhammer), o juiz é incapaz
de trabalhar sozinho, necessitando não só de infra-estrutura material, como
lambém de auxiliares, alguns dos quais chegam a praticar atos no pro-
cesso (de expediente), sem que exerçam jurisdição (pág. 105 - trad. do
original).
No Brasil, diversa é a situação, pois a infra-estrutu·ra não é, ao menos,
a mínima necessária, tanto material, quanto, e principalmente, pessoal.
A Alemanha, em verdade, enfrentou problemas semelhantes aos
atuais do nosso País, com a sobrecarga dos magistrados, e resolveu~os
Iião somente através de leis mas, precipuamente, com medidas efetivas:
infra-estrutura material e retkada do juiz de atos que, a rigor, não exigiam
3. participação do magistrado, na jurisdição contenciosa (ex.: alguns des-
pachos de expediente, visto de contas de custas ete.), como também e,
em especial, na jurisdição voluntária, passando tais tarefas a outros su-
jeitos do processo, principalmente ao Rechtspfleger (administrador judi-
cial) (71).

(71) Dada a natureza desta esl1Jdo. que visa precipuamente registrar Inovaçlles com pOllllvels adaplaçlles
ao sistema brasileiro, aqui lIOmente se discorrerá sobre o Rechtsplleger, sem referência mslor aos
dernais auxmares da Justiça.

R. Inf. lellill. aralílla a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 205


Os autores que comentam a respeito da evolução em referência (in-
clusive o antes nominado) fazem coro com os juízes e professores de
hoje, na Alemanha, no sentido de tal experiência ser positiva. Particular-
mente, inclino-me no mesmo sentido, após bem observar e analisar o que
ainda se comenta sobre os idos de 1920, quando principou a reação
alemã, e o que vi nos dias atuais.
Constatei, com desalento, que os problemas que assolaram o Ju-
diciário alemão na década de 20 eram semelhantes aos nossos de hoje
(60 anos passados). De outro lado, animou-me a idéia de que talvez, em
tempo bem mais exíguo que os alemães, possamos melhor aparelhar e
desburocratizar o nosso Judiciário, servindo-nos, inclusive, no que couber,
da positiva experiência germânica.

Voltemos à história, sinteticamente. Nos idos de 1920, começou a


transferência de tarefas para o antigo escrivãO. Ocorre que não eram
rodos os escrivães capazes para a prática de atos que, embora não juris-
dicionais, se apresentavam como fronteiriços e exígiam maiores conhe-
cimentos. Criou-se, então, a figura do Rech.spfleger, por lei de 8-2-1957,
que é um "administrador judicial", com formaçâo técnico-jurídica básica
em tramitação procedimental, por 3 anos.
Para a nomeação não é, pois, necessário o curso de díreito, mas,
atualmente, tal tem sido a procura de matrícul·as nas escolas técnicas de
nível superior (Fachhochschule) para o preparo do Rechtspfleger que,
por exemplo, na Baviera é mais dificil o acesso a tais estabelecimentos
de ensino do que às Faculdades de Direito, pois um grau de Abltur (72),
que enseja o ingresso nestas últimas não propicia a admissão naquelas.
Aprovado no exame final, o candidato pode se habilitar à nomeação
e, desde que a alcance, embora sem contar as garantias do juiz, tem
assegurada a independência nos seus atos, devendo obediência apenas
à lei.
No dia-a-dia forense, conforme constatei, é inestimá'Je\ a colaboração
prestada por mencionado auxilíar ao magistrado, não só no respeitante
à administração da serventia, como também na prática de atos processuais,
que dispensam, ao menos em princípio, a intervenção do juiz, o qual,
porém, poderá ser chamado a apreciar reclamações contra decisões dos
Rechtspfleger.
A experiência, como afirmado, foi posítiva, e lastreou uma am-
pliação nas atribuições dos Rechtspfleger (Leis de 5-11-1969, 27-6-1970,
21-6-1972, 14-6-1976 e 2-7-1976). Assim, hoje, dentre inúmeras outras ati-
vidades, tn<:umbe ao mencionado auxil·iar:
a) processar o Mahnverfahren (procedimento monitório), enquanto
não estabelecido o contencioso;
b) fixar e alterar alimentos;
c) verificar a exatidão das contas de custas;
(72) Vide roferêncla no tópico "A Formaç50 do Bacharel em Direito".

206 R. Inf. legisl. BrosiIJa a. 19 n. 14 abr./JuR. 1982


d) providenciar a efetivação dos atos cartorários necessários às cita·
ções, notificações e intimações;
e) processar a assistência judiciária, deixando a decisão final ao
juiz;
f) praticar atos na execução (atos de impulso processual e venda
judicial) (73);
g) decidir questões afetas ao registro imobiliário;
h) praticar atos em processos de tutela, adoção e falência.
O número de Rechtspfleger equivale ao de juízes em exercício na H
instância e, para se ter uma idéia do papel que representam, basta dizer
que são chamados de "segundo pilar do Judiciário".

VIII - Breve registro da evolução do processo civil alemão nos últimos


100 anos
A CPO (Código de Processo Civil) (74) alemã é de 1877, tendo entrado
em vigor em 1879, mas sofreu, nos pouco mais de 100 anos de sua vigên-
cia, um número considerável de modificações - mais de uma centena -
como lembra WOLFRAM HENCKEL em seu trabalho Pensamentos Sobre
I Origem e a História do Código de Processo Civil (75), que serviu de base,
juntamente com entrevistas com o próprio autor e pesquisas, para estas
observações preliminares.
As assim chamadas novelas (leis novas que reformam ou completam
diplomas legais até então em vigência, sem derrogá-los totalmente, muito
embora possam - e, em regra, tal acontece - revogar artigos e alterar
toda a estrutura do ordenamento) modificaram substancialmente o origi-
nai diploma processual de 1879.
Cumpre, pela importância, destacar as novelas:
de 1898 - adaptação da então cpa ao Código Civil de
1898;
de 1905, 1910 e 1975 - conhecidas como Revisions noveUen
(novelas revisionais);
de 1909 - a Amtsgerichlsnovelle (novela do Juízo Ordinário
de 19 Grau);
de 1924 - referida como Emminger.Novelle. bastante conhe·
cida por haver colocado um certo freio no poder de disposição
das partes, fortalecendo os do julgador, tendo introduzido o prin-

(73) Na execuçlo hA, também, a figura da um outro auxiliar da Juetiça, o Gerichlsvollzleher (execulor ju-
dicial).
(74) Note-ee que, origh'l.lmenle. o CPC alamlo em conhecido pela 81gl. CPO, am razão de "Zlvll" 1I8 es-
crever com c e nlo com Z, como passou a ler gralado, posteriormente.
(75) Gedanken zur En18lehunll und Geachlchla der Zlvllprozellordnung, extraldo da Gedlchlnlsachnllt fOr
Rudoll Brune - Verlag Vahlen - Mllnchen, 1880.

R. Inf. lellisl. 8rolma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 207


cípio da concentração e, também, o julgamento conforme o esta-
do dos autos, dentre outras inovações;
de 1933 - que incluiu o princípio da lealdade processual,
com especial enfoque para a exposição dos fatos em Juizo con-
forme a verdade, tendo, de igual, procurado agilizar o processo;
de 1976 - a conhecida Vereinfachungsnovelle, que será ob-
jeto de referência especial.
Apenas para registro, convém refer'r, pois também produziram aJtera-
ções consideráveis na CPc, as seguintes leis (dentre inúmeras outras,
que tiveram menor importância):
de 23-7-30 - alterou disposições reJativas à arbitragem (76);
de 21-2-36 - estatuto dos advogados;
de 12-9-50 - trouxe de volta a unificação do processo, nos
âmbitos civil e penal e a uniformidade de custas, tudo como
conseqüência do surgimento da Bundesrepublik de pós-guerra;
de 8-2-57 - criou a figura do Rechtspfleger, objeto de ou-
tras referências neste estudo;
de 21-3-74 - alterou os §§ 15, 29, 33, 38, 39, 40, 11, 331, I,
504, 11, e introduziu os §§ 696, a, e 700, a;
de 20~12-74 - Jei de desafogo dos Tribunais Estaduais (Land-
gerichte) e de simplificação dos registros de audiências e sessões,
modificando os §§ 159-165, 348-350, 510, a, 511, a, J, 567,11, intro-
duzindo o § 524 e revogando os §§ 298 e 507;
de 8-7-75 - lei de alteração do direito à revisão, no âmbito
do processo civil, modificando os §§ 545, 546, 547, 549, 55~ 555,
556, 559, 561 e 566, a, e introduzindo os §§ 554, b, e 565, é1;
de 14-6-76 - primeira lei de reforma do direito conjugal e de
família, alterando, entre outros, os §§ 78, 93, 97, 118, 324 e 328,
introduzindo os §§ 78, a, e 127, a, e estabelecendo, em questões
de família, um novo processo (§§ 606~630);
de 13-6-80 - lei de assistência judiciária, que entrou em
vigor em 19-1-81, alterando os §§ 114-127 e reintroduzindo, nos
§§ 516 e 552, os prazos peremptórios para apelação e revisão (77).
As antes mencionadas novelas, em parte, foram conseqüência de
modificações na lei substantiva e, de outro lado, produto da ânsia de
se alcançar caminhos mais adequados, no âmbito processual, visando-se
um aceleramento na prestação jurisdicional. Em verdade, nem sempre
as que buscaram a agilização da Justiça se faziam imprescindíveis, pois,
muitas vezes, as normas vigentes já possibilitavam uma solução mais sa-
(76) A arbllragem é um instituto que está a ganhar corpo na Alemanha, nOI Oltlmoa tempol, contrlbulndo.
de certa forma, para aliviar 11. carga do Judicilirio.
P7) A a.alat6ncla judiciária e oa prazol recuraala ailo Iratados no cura0 deste trabalho.

208 R. Inf. legi.1. Bralília a. 19 n, 74 abr./Jun. 1982


tisfat6ria - por outras ou semelhantes vias - somente não alcançada,
mercê de certos juízes e advogados não conhecerem os textos legais, de
malas interpretarem ou, mesmo, de deliberadamente os deixarem de
lado, procurando trilhar caminhos ma1s conhecidos e fáceis, que estabe-
leceram uma praxe judiciária à margem das normas vigentes. Por outro
lado, quando as novelas efet;vamente alteravam a sistemática processual,
trazendo algo de novo para maior rapidez na tramitação do processo,
nem sempre era atingida a meta, em razão da já mencionada ignorância
da lei ou de proposital não-cumprimento.
Para bem demonstrar a situação antes retratada, louvo-me no exem-
plo pessoal fornecido por W. HENCKEL em uma de nossas reuniões, em
rlbril de 1981. Narrou o mestre, então, que quando se preparava para
seu segundo exame, recebeu de um juiz determinada questão para estudo,
com a obsefV'ação de que se tra,tava de problema assaz difícil, demandan-
do, no mln:mo. uma semana para a necessária pesquisa. O então aluno
e hoje professor, ao estudar, encontrou pronta solução em determinado
parágrafo da ZPO, o que relatou ao ser examinado, dias após, quando
foi contestado pelo magistrado, que afirmava inexistir tal artigo de lei.
O examinando exibiu o seu código e o examinador reconheceu ignorar
o texto legal, em vigência há 6 anos. Cumpre mencionar que o exemplo
foi dado, não com caráter crítico em relação ao citado juiz, mas para se
demonstrar a ineficácia de uma lei, quando desconhecida e o que estava
a ocorrer na Alemanha de pós-guerra, quando o Judiciário não possuía
infra-estrutura e os magistrados não recebiam, como recebem atualmen-
te, os Hvros e publicações que lhes são propiciados, além de contarem,
como contam, com o por vezes mencionado respaldo operacional.
O parêntese é feito também com a finalidade de levar o leitor a uma
reflexão ante a situação do Judiciário brasileiro, carente de infra-estrutura,
e ainda merecedor do respeJto dos jurisdicionados ante a abnegação -
sacrifício mesmo - de juízes que, em sua maioria, trabalham por dias
e noites, aguardam finais de semana, fer:ados e férias para mais produ~
Zlfem, em regra não dispondo sequer de uma máquina de escrever e,
muito menos, de secretária, máxime em 1{l instância: obrigados a retirar
parte de seus vencimentos - nem sempre condizentes com a importân-
cia do serviço prestado - para aquisição de livros, códigos e publicações
especializadas, necessários ao perfeito exercício profissional.
No respeitante à evolução do Processo Civil alemão, impõe-se referir
a apreciação de WACH, o qual, embora tivesse certas reservas quanto à
CPO de 1879, após sua conhecida "Enquete" de 1886 (18), concluiu que
se estava no caminho correto. Ocorre que este caminho não foi fácil,
principalmente, repita-se, pelo já citado desconhecimento oU' intencional
não observância das normas processuais.
Ainda para exemplificar e levar o leitor a uma perfeita compreensão
do embaraço reinante, cumpre lembrar que o princípio da oralidade pura,
abraçado pela CPO de 1879 (§ 128), após ter sido atenuado peja praxe
forense, foi limitado pelas novelas de 1909 e de 1924, que admitiram a
(78) RelatOrlo publicado na Zeltachrlll tQr DeutsdMIn Çlwll~., 1887, vol. XI.

R. rnf. legill. Bra.alia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 209


apresentação de peças escritas, em h~póteses em que, até então, tal
não era tolerado. OCorre que o § 128 não foi alterado, expressamente,
em seu texto, que continuou, assim, com a mesma redação nas publica-
ções. Como conseqüência, os comentadores, em seus livros didáticos,
prenderam-se à exegese do texto e tal fez renascer a falsa concepção de
que nada mudara desde 1879.
Os motivos antes expostos foram os principais responsáveis por não
se ter alcançado, praticamente, uma transformação de vulto. no campo
da agilização processual, de 1879 até 1967 (inicio do Stuttgarler Modell) e,
de mane~ra mais ampla, até 1976 (Vereinfachungsnovelle) (79).
Refira-se, ainda, neste acanhado bosquejo histórico, que, de 1879 a
1976, travou-se uma autêntica batalha entre a oralidade e a escritura, com
reflexos no princípio da autonomia das partes 'e, principalmente, no siste-
ma de preclusões, até restar atingido, ao menos idealmente, com a Vereln-
fachungsnovelle, o meio termo que pode ser o justo termo, como lembra
HENCKEL (80), ou seja, tanta oralidade, quanto necessária para evitar um
sistema rígido de preclusões, e tanta escrita, quanto necessária a preparar
a parte oral, de tal forma que, em uma s6 audiência. se possa abarcar
toda a questão em Juizo discutida.
Impõe-se fflisar neste intróito, outrossim, que a questão da agiliza-
ção na prestação jurisdicional unicamente foi bem equacionada, na Ale-
manha, quando se chegou a uma conscientização no sentido de que,
para tal se alcançar, não bastava o trabalho do magistrado, sendo neces-
sário o auxilio das partes e, principalmente, dos advogados.
Mencione-se, neste particular, o que, em síntese, já disse FRANZ
KLEIN, o reformador do processo austríaco: reformas processuais s6 são
realizáveis quando há boa vontade de todos os participantes do processo
e quando, permanentemente, se persiste nesta boa vontade (81).
Ressalte-se, mais, que a agilização s6 será perfeita, quando aliada
à qualidade das decisões, e tal somente será alcançado na Alemanha, no
Brasil ou em qualquer outro país, com a perfeita formação do bacharel
em direito, com a escola de preparação e aperfeiçoamento de magistrados
e, repita-se, com a infra-estrutura adequada ao Judiciário.

IX - O modelo de Stuttgart (das Stuttgarler Modell)


Não se pode falar, ainda que sintenticamente, no Stuttgarler Modell,
sem uma referência obrigat6ria e justa, embora sucinta, sobre a fonte de
inspiração do referido "modelo", ou seja, a respeito do conhecido traba·
lho <lo Dr.h.c. FRITZ BAUR (ex-juiz <lo Supremo Tribunal Federal e pro-
fessor emérito da Universidade de TObingen, com quem estag1ei em
maio de 1981), dado a conhecer em conferência levada a efeito perante
a Associação Jurfdica de Berlim, em 13-10-65 e publicado por Walter de

(79) o Slulloarter ModaU a a Varalnlachunganollelle alo objeto de comentArloa neate eltudo.


(80) Artigo c Itado (vide nOla 75).
(81) "Aulal lobre a PrAtica de ProceallO Civil". 1900, relerldo por PETSCHEK-STAGEL, Dar llllerrelohr.cha
ZIvIIp_... Wlen. 1983.

210 R. Inf. legial. Brasília a. 19 n. 74 a.r./lun. 1982


Gruyter & Co. - Berlim, 1966, com o titulo Caminhos para uma Concen-
tração da Audiência no Processo (Wege zu einer Konzentration der münd-
lichen Verhandlung im Prozess).
O mestre, no referido estudo, após traçar o retrato do processo
civil 'alemão desde as duas últimas décadas do século XIX, atestava a
morosidade na prestação jurisdicional, resultante de duas razões principais:
11:1 - Insuficiência na formulação, pelas partes, da pretensão
respectiva, em especial em decorrência da inexistência de prazo
para apresentação de petições, dificilmente rejeitadas, resultan-
do que, até mesmo depois de colhida a prova oral, se ensejava,
mediante flOVO pedido, repetição da i'nstrução, ocorrendo, mais,
por vezes, que a real pretensão das partes só fosse aparecer,
de forma clara, na 2l! instância.
2' - separação da audiência propriamente dita daquela em
que se coletava a prova, repetindo-se audiências e mais audiên-
cias em cada processo, abarrotando-se as pautas, não tendo o
magistrado tempo hábll para tratar, com a profundidade neces-
sária, da tomada de depoimentos e da própria questão em Jurzo
debatida, restando ferido o direito material.
BAUR, ante a situação e inspirando-se no processo penal, que se
mostrava célere, mercê de uma adequada preparação da audiência prin~
cipal e de uma proibição de interrupção desta, que somente em casos
excepcionais poderia ser suspensa, devendo, porém, ser ultimada em 10
di,as (§ 229 StPO), sugeriu: a realização de uma só audiência, com coleta
de prova e debates na mesma ocasião, ponderando, porém, que para
tal ser alcançado, era de mister uma adequada preparação, com troca
de petições - em prazos determinados - culminando com uma pré-
audiência, estabelecendo-se, como sanção para o réu que não respon~
desse no prazo estabelecido, o julgamento à revelia, já no pré-procedimen-
to, e não apenas em decorrência ele seu não~compareoimento à audiência
principal. Opinou, ainda, que a admissão de novas petições ou arrazoa-
dos, após o pré-procedimento, só deveriam ser admitidos se a omissão
não resultasse de culpa, fazendo-se presentes os efeitos da preclusão
na hipótese de negligência.
Na audiência preliminar, para a qual seriam regularmente intimadas
as pa'rtes, <lec.dir.-se-iam todas as preliminares, e ficariam estabelecidos
os lindes da controvérsia, bem como deliberar-se-ia a respeito de provas
e seria tentada a conciliação.
Aquilo que veio a ser conhecido como Stuttgarter Modell, na prática,
surgiu no Landgericht Stuttgart, mas precisamente na então recém-criada
20l! Câmara Cível (em 1Q-1-67), pela iniciativa do juiz R. BENDER, que
procurou tornar realidade, com seus colegas de Câmara, o sugerido por
BAUR, tendo como principal meta a realização de uma única audiência (82),

(82) BENDER, Df. H.uPmlhlllldhlng In ZIYIINchen. DRIZ 68. pigs. 163 e seguintes, e DI. H.uplwrhllndlung
lo Zlvllucllu .In SCIllllt IUr .I1ISU_'onn, JA 71, pAgs. 689 e 8egulntes.

R. Inf. le,id. 8ralíllo o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 211


A principio, como em toda reforma, foram sentidas dificuldades na
preparação da audiência, decorrentes da sombra que os procedimentos
e praxes até então seguidos projetavam sobre as novas idéias, reagindo
alguns advogados e inconformando-se certos peritos (estes últimos, até
então, não tinham prazo para ultimação dos laudos). A firme disposição
dos componentes da Câmara, a compreensão, ao inicio, de um bom
número e, posteriormente, da quase totalidade dos advogados, e a co-
laboração de alguns expertos, os quais se propuseram a elaborar os lau-
dos num prazo máximo de 3 semanas, bem como e precipuamente o
alastramento da convicção de consistir o modelo em meio de acelerar
a prestação jurisdicional, de maneira segura e eficiente. superaram os
obstáculos iniciais. Consigne-se ter o Stuttgal1er ModeIl se espraiado
de tal maneira que, decorridos 11 anos da palestra de FRITZ BAUR,
quase uma centena de colegiados alemães já adotava a experiência pio·
neira da 20~ Câmara Clvel do Landgerlcht Stuttgart, levada a efeito em
janeiro de 1967.
Para adoção do modelo não foi de mister a alteração da lei pro-
cessual, procurando os juízes, nos dispositivos legais vigentes, respaldo
à nova idéia, quer fosse dito respaldo expresso, quer implicito, como
também valendo-se da ausência de vedação normativa.
Em slntese, o novel modelo consistia na adoção de um pré-procedi-
menta escrito, com observância de prazos pelas partes que, porém, po-
diam dilatá-los, de comum acordo. Normalmente, após a propositura da
ação, tinha o réu 14 dias, contados de sua ciência da inicial, para dar
conta ao Juízo de dita ciência e de sua intenção de responder. Apresen-
tada a manifestação, dispunha o réu de mais 14 dias para a resposta.
lnocorrendo o mencionado pronunciamento exordial do réu, era, desde
logo, designada a audiência, onde, em regra, vinha a ser proferido julga-
mento à revelia. Contestada a ação, o autor dispunha de 14 dias para a
confutação. Somente após a réplica ou o decurso do prazo respectivo
sem manifestação do autor, é que os autos eram apresentados ao
Vorsi,tzender. o qual os encaminhava ao relator (quando não se estava
em presença da hipótese de julgamento por juiz singular) (88). Seguia-se
uma reunião preliminar da Câmara. onde como que se saneava o proces-
so, verificando-se, inclusive, se os meios probatórios eram suficientes,
sugerindo-se os caminhos a trilhar, para que aflorasse a verdade e se
efetivasse a Justiça. Nesta mesma oportunidade era designada a audiên·
cia principal, intimando-se as partes e testemunhas e estabelecendo-se.
na hipótese de perlcia. que o laudo deveria ser entregue 10 dias antes
da audiência.
Pouco antes da audiência, os integrantes da Câmara se reuniam,
relembrando os pontos controvertidos do processo, examinando as peti-
ções, documentos e o laudo pericial, de modo a todos estarem perfeita-
mente aptos para a sessão e nesta, preliminarmente. após ouvidas as

(83) Deve-58 nolar que o Stultgarler Modell nasceu em um Landgerlcht que, como visto, funciona em
2.- 8 1.- Inallmclaa, em Clmara. 8 Julzoa alngularea, variando de tribunal para tribunal, de Ealado
para Eltado, prevalecendo, porém, como ji ocorria ao tempo do Stuttgarter Modell, o Julgamento
em ooh.glado.

212 R. Inf. I..ial. Brasília a. 19 n. 74 abr./j...n. 1982


partes, seguia-se uma reunlao secreta dos membros da Câmara, verifi-
cando-se se algo de novo surgira ou o que deveria ser feito ante o
controvertido. Após, era proposto acordo, podendo. mesmo, se alcançar
a desistência da ação ou o reconhecimento do pedido. Na continuidade,
falavam os advogados, precisamente sobre as questões em discussão,
e se coletava a prova, novamente se manifestando os advogados de
maneira sucinta sobre a instrução. findo o que novamente a Câmara se
reunia, igualmente em sessão secreta. Finalmente, ratificava-se a proposta
de conciliação e, não se a logrando, deveri'a a sentença ser proferida em
uma semana, muito embora o prazo, por vezes, não fosse respeitado.
Excepcionalmente, antes da sentença. poderia ser designada nova audiên-
cia, o que raramente ocorria, face à preparação.
A prática, ou seja, o Stuttgarter Modell, porém, em dois pontos se
afastou da sugestão de BAUR, isto é, deixou de abraçar a idéia da
audiência preliminar (Vortermin) - que não se confundia com a reunião
preliminar dos componentes da Câmara, antes mencionada - e o juiz
não recebia o processo antes de apresentada e confutada a resposta
(salvo na hipótese de decurso do prazo sem a prática de ditos atos).
A aparente complexidade procedimental. segundo o Stuttgarter
Modall, serve também para demonstrar dois fatos:
1 - a situação do processo civil alemão, antes do men-
cionado modero, era bem mais complexa, tanto é que a nova
idéia foi tida como revolucionária;
2 - a infra-estrutura material e pessoal do Judiciário
alemão, desempenhando papel decisivo o expressivo número
de juízes e o grau de especialização, já à época do Stuttgarter
Model!.
Mencione-se que o procedimento não era rígido e sofria pequenas
alterações numa e noutra Câmara, mas a idéia básica, os princlpios, en-
fim, coincidiam.
Observe-se, mais, que a despeito do Stuttgarter Moden ter nascido
e se desenvolvido no Landgerfcht, quer em 1{l, quer em 2~ instância.
espraiou-se também para o Amtsgerlcht (em Sollingen, 1970) (84).
Os resultados obtidos com o modelo podem ser facilmente com-
preendidos com as referências estatrsticas feitas por BENDER (8li), KRA-
MER (86) e BAUR (87), o primeiro registrando que, de fevereiro a dezembro
de 67. na 20~ Câmara Crvel do Landgerlchl Stuttgart, de 476 processos,
411 foram ultimados em uma única audiência principal, ou seja, 86%,
referindo. também, haver o tempo de tramitação médio, em H instância,
passado a ser de 2 e meio a 3 meses, contra os mais de 6 meses apurados
pelo segundo autor citado, como necessários à ultimação de mais de
(U) KOTTHAUS, Wolfgang: Stuttgertar 1Iode1l belm A~ht Erhlhrungab.rlchl Ober e'''' Erprobuft8,
DRIZ 72, piga. 303 e aegulntes.
(85) Dia HeuplWrtlandlunll In ZIvUnchen. DR1Z 68, p6;. 165.
(86) 8chreclcgupenat Pro_rschlepp.... BB 71. p6;a. sn e aegufnlea.
(l7) Wal. . . AnreguDgltll zur lIaachleunlllllllll darZhl~, JZ 89, p6;. 482.

R. Inf. 181111. Sr.ama a. 19 n. 74 abr./Jlln. 1982 213


62% dos processos, antes da nova experiência. Finalmente, BAUR fornece
importante revelação estatística, qual seja: na 20~ Câmara Cive! men-
cionada se registravam cerca de 9% de apelações, quando a média, no
Pais, era de 11,8%. Via-se, assim, que uma perfeita preparação conduz,
não s6 a um julgamento mais rápido, como também conforme aos anseios
das partes, isto é, mais convincente.

x- A novela da simplificação (dle Vereinfachungsnovelle)


Como antes tratado, a prática consagrou o Stutlgarter Modell, fazen-
do-se mister, porém, o disclplinamento legislativo para uma unificação
procedimental em todos os Juizos e Tribunais. Os esforços para tal prin~
cipiaram em 1970, mas o projeto de então, conhecido como Beschl8U~
nlgungsnovelle (novela do aceleramento), que não s6 aproveitava o
Stutlgarler Modell, como também propiciava ao julgador uma opção entre
o pré-procedimento escrito (que seria adotado para questões patrimoniais)
e o procedimento da audiência preliminar, não se tornou lei, porque as
discussões tanto se prolongaram que se encerrou o período legislativo
do Parlamento, sem apreciação final da matéria.
Em 10-7-74, o governo federal apresentou um projeto de lei mais
preparado e completo, para o aceleramento de procedimentos judiciais,
a chamada Vereinlachungsnovelle. A introdução total do Stuttgarter ModeU
também teve opositores, o que motivou, de igual, a adoção de uma solução
alternativa, no pertinente ao procedimento preparat6rio da audiência
principal, quedando-se a opção por um ou outro caminho a critério do
julgador, ao analisar cada caso submetido a seu julgamento.
A Vereinfachungsnovelle, que deveria entrar em vigor em 19-1-77,
s6 passou a viger em 19-7-77 e modificou profundamente a ZPO alemã,
de tal forma que, segundo PUTZO, pode ser considerada, no âmbito
normativo do processo civil, como a lei do século, muito embora o mesmo
autor, conhecido por seus concisos mas precisos e respeitados comen-
tários à ZPO (editora C. H. Beck, München), afirma que somente em
alguns anos se poderá emitir um juizo sobre a eficácia do novo ordena-
mento (88).
Os objetivos perseguidos pela Verelnfachungsnovelle podem ser as~
sim resumidos:
- concentração do procedimento, principalmente da au-
diência;
- instituição da possibilidade de julgamento por juiz sin-
gular nos Landgerlchte. em certas causas, desafogando-se as
Câmaras;
- alargamento da competência dos Juízes Ordinários do
19 Grau, tendo em conta o aumento do valor das causas subme-
tidas ao respectivo julgamento;

(88) "Dle VlIl'lllnfachunganovellll - aesetz zur VerelnfBchung une! BlIachleunlgung ger[chlllcher VerlBhren"
- In Nou J~rl.th;ho Wochensohrlft, n.o 1/2. 1977. p6g. 1.

214 R. Inf. legbl. Brasília a. 19 n. 74 obr./Jun. 19B2


- melhor disciplinamento do conteúdo da sentença;
- ordenamento mais adequado da execução provisória;
- simplificação do procedimento, na hipótese de revelia;
- racionalização do Mahnvertatlren (89), com maior prote-
ção ao devedor;
- introdução do sistema de gravação nas audiências.

Em verdade, ao que tive condições de constatar, referidas metas (90)


foram alcançadas, a despeito de dificuldades iniciais, e apesar de exis-
tirem, ainda, pequenos problemas de ordem legislativa, que poderão ser
corrigidos e não chegam a comprometer o mérito da Vereintachungsno-
velle.

Tal. porém, poderá ser ofuscado, se a preparação do procedimento


não for a adequada e, neste particular, o sucesso ou insucesso repousa
na estreita colaboração das partes e, acima de tudo, no agir do juiz,
desde o momento em que escolhe o melhor caminho a trilhar para dita
preparação até à maneira como conduz o pré-procedimento e a própria
audiência principal. Ainda nos dias de hoje, embora esta não seja mais
a regra, pode-se constatar que certos juízes continuam apegados a praxes
anteriores, incompatíveis com a idéia e os fins da novela, sabido existir
a lei processual para realizar o direito material, a ser buscado pelas
partes e pelo juízo, através do processo, estabelecendo-se o equilibrio
social. Assim, por exemplo, quando se faculta ao magistrado a opção na
escolha do procedimento adequado, tem-se em mira que o mesmo agirá
movido pelo interesse maior do Estado de prestar a jurisdição de maneíra
célere e apropriada e não tendo por escopo o caminho mais fácil ao
julgador, pois tal se confunde com comodismo e capricho.
Deve-se destacar, outrossim, como contribuição da novela, a intro-
dução, na ZPO, de prazos para a prática de atos processuais pelas partes,
bem como a sanção decorrente da sua inobservância. A respeito, regis-
tre-se, porém, que os magistrados alemães mostram-se, até certo ponto,
tolerantes com justificativas permitindo manifestações tardias em pro-
nunciamentos irrecorríveis, pois cabe recurso somente na hipótese de
rejeição da petição por serôdia.
Os defeitos, assim, são mais do homem do que do sistema, mais da
prática forense do que da lei em si.
É oportuno registrar o pensamento de um magistrado de LUbeck,
decorrido um ano da vigência da nova lei, e a conclusão do Presidente
do Oberlandesgericht Cetle, no trabalho de abertura do Congresso sobre
a Vereintachungsnovelle, realizado na Academia Alemã de Juízes, em

(89) E8Pécle de Interpelaçlo que pode leva r a se1l8taçlo da obrlg açlo, obtençllo de um trtulo Judicial
ou servir como Inicio do processo de conhecimento propriamente dUo (ylde capitulo XI, Item lI,
(90) Nem todos os motiYo8 supra referido. aqui terlo tratados, pol. a natureza e IInalldade de8te tra-
balho alo apenas dar uma visllo global sobre o usunto, com enfoqua especial, ainda qua nlo pro-
tunda, de uma slnlese procedimental no ImbUo do processo de conheclmenlo e com referência ao
procedimento recursal.

R. Inf. legisl. BrClsílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 215


Trier, em outubro de 1978. O Dr. PETER HARTMANN, juiz no Amtsgerichl
LUbeck, assim se manifestou: "A lei tem algumas falhas perturbadoras,
mas no geral, em verdade, teve seu valor" (91). Por seu turno, o magis-
trado de segunda instância, Dr. HARALD FRANZKI, concluiu: "Apesar de
numerosas falhas da novela, a prática, em verdade, no geral, teve em
mãos uma lei melhor. Ela só precisa saber como usá-Ia" (92).

Xl - Srnlese procedimental
Como já mencionado, as partes, quando não resolvem suas pendên-
cias amigavelmente ou, mesmo, através do jurzo arbitral - frisando-se,
neste particular, a tendência no sentido de maior uso do instituto, pela
rapidez e, acima de tudo, economia - recorrem ao Judiciário, através
do Mahnverfahren ou do processo propriamente dito.

1 - O procedimento monitório (das Mahnverfahren - §§ 688 a


700 ZPO)
Consiste, em resumo, o procedimento em referência, em sua atual
sistemática - pois a novela de 76 deu-lhe novos contornos - numa
interpelação que se faz a alguém, para que pague determinada quantia
em dinheiro, independentemente de fundamentação fático-jurrdica e, in-
clusíve, de qualquer comprovação do alegado débito. Note-se que referida
espécie de interpelação não se confunde com a dos artigos 867 e seguin-
tes do nosso Código de Processo Civil, pois o procedímento monitório
alemão pode gerar sérias conseqüências, com reflexo no direito material
das partes.
A interpelação é sempre levada a efeito perante o Amtsgericht, não
se considerando, neste particular, o valor da causa. Competente para
conhecer da interpelação não é o juiz de direito; ao contrário, quem tem
tal atribuição é o Rechtspfteger. O Jurzo competente é do domicrrio do
interpelante, muito embora o processo judicial, que poderá surgir, venha
a ser instaurado, mais tarde, no foro (Amtsgericht ou Landgericht) do
domicrlio do réu.
Recebida a interpelação, o Rechtspfleger determinará o envio da
correspondência ao interpelado, o qual, no prazo de 2 semanas, deverá
satisfazer a obrigação ou comunicar, utilizando-se de formulário, que
acompanha o expediente a ele endereçado, se pretende discutir a questão
em Jurzo. Na primeira hipótese, exaure-se o procedimento e, na segunda,
surgirá o processo propriamente dito, que incumbirá ao juiz ou Câmara
competente apreciar.
Pode, ainda, o interpelado não satisfazer a obrigação e, de Igual,
deixar de se manifestar nas 2 semanas. Tal terá como resultado a prolação
de uma "ordem de execução" (Vollstreckungsbescheid), que revestirá a

(91) "Eln Jahr Verelnfachungsno\l8l1e", In Neue Jurl,Usc:he Wochensc:hrlft, n. O 30, 1978. pég. f .457 - Irad.
do origInaI.
(92) "Dle Verelnfacllung,novelle und ihre bisherige Bewihrung In der Verlahrenawirkllcllkelt", In NIIII
Jurletleche Woçhenechrlft, n.c 12, 1979, pá9. 9 - Irad. do originai.

216 R. Inf. legisl. Brosí1ia a. 19 n. 74 allr./jun. 1982


interpelação de força execubva, com idêntico valor ao emprestado à sen-
tença decorrente da revelia, se, novamente cientificado o interpelado.
desta feita, já da ordem de execução, deixar de se manifestar.
Desde que o interpelado comunique pretender discutir (quer o faça
de plano, quer assim proceda ao receber a ordem de execução), o inter-
pelante - já perante o juiz de direito ou Câmara - fundamentará sua
pretensão e terá a oportunidade de responder, observando-se o processo
de conhecimento, com obediênoia aos princípios do pré..procedlmento
oral ou escrito, como se verá a seguir.
Frise-se que a interpelação tem sido largamente utilizada na Alema-
nha, conforme pessoalmente constatei, valendo referir a observação do
Prof. Dr. SCHWAB (com quem tive a honra de estagiar, no Instituto para
Direito Civil e Direito Processual Civil da Universidade de Erlangen-
Nürnberg, em abril/maio de 81): "o procedimento da interpelação tem
um grande significado prático. No ano de 1977, foram ,propostas 4 milhões
de interpelações. Somente em cerca de 11 % dos casos foram respon-
didas" (93).
Por derradeiro, neste particular, cumpre mencionar que, segundo
informações obtidas no Ministério da Justiça da Baixa Saxônia, em
Hannover, já se ultimam estudos para o processamento do Mahnverfahren
através de computadores eletrônicos, tal o volume crescente de proposi-
turas e o papel que desempenha na pronta solução de controvérsias,
sem despesas maiores e, acima de tudo, no desafogo do magistrado.

2 - O pré-procedimento
A utilização do Mahnverfahren é facultativa, mas, quer o interessado
dele se utilize e, em seu curso, venha o interpelado a formalmente se
opor - seja logo ao receber a comunicação, seja por ocasião da cien-
tificação referente à ordem de execução - quer desde logo recorra ao
processo, do'is itinera procedimentais podem ser trilhados na preparação
da audiência principal, que deverá, sempre que possível, em um só ato,
reunir todos os elementos necessários ao julgamento da causa. Estes
dois caminhos são os nominados pré-procedimento escrito (schriftliches
Vorverfahren) e o pré-procedimento oral (mündliche Verhandlung).
Antes de uma rápida consideração a respeito das duas modalidades
noticiadas, cumpre registrar que o processo civil alemão, na fase que
antecedeu ao Stultgarter Modell - que, em resumo, como já tratado,
constituiu uma reação à morosidade processual, da parte de jurzes de
Stuttgart - caracterizava-se por um grande número de audiências, a
primeira delas já sendo designada tão logo apresentada a petição inicial
(mais ou menos como no nosso sumaríssimo). Com o Stultgarter Modell
assentou-se a idéia de que a audiência principal, em obediência aos prin-
cfpios da concentração, da celeridade e da economia processuais, deve-
ria, se posslve!, ser una, proporcionando fosse, tão logo ultimada

(93) ROSENBERG/SCHWAB, Zlvllproze...'echt, 13. 8 ed., C. H. Beck, MDnchen 1981, pág. 1.003, § 165,
n.o I, 1 - Irad. do origineI.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 217


(preferencialmente em um único ato), proferida a sentença. Para tal,
preconizava-se o chamado pré-procedimento escrito. A idéia deu bons
resultados, como antes visto, mas, apesar disso, a prática veio a demons-
trar que, em determinados casos, recomendava-se uma audiência inau-
gural, onde, se não tosse alcançada uma preparação integral para o
julgamento, ao menos seriam fixados os pontos controvertidos, estabele-
cidos os meios probatórios e, sempre que posslve!, designada a audiência
principal, salvo se dispensável por estar, verbi gratia, o julgamento a
envolver apenas questões de direito.
Surgiu, então, a já citada VereinfachunglnOY811e de 1976, que pro-
piciou ao magistrado, de maneira clara - já que anteriormente não lhe
era vedado assim proceder - dois caminhos para a preparação da au-
diência propriamente dita. A opção é do julgador, muito embora possam
as partes sugerir, ou mesmo pleitear, um ou outro procedimento, o que
será ou não acatado, ad libitum do juiz singular (Richter no Amtsgericht
ou Elnzelrichter no Landgericht) ou do Vorsltzender nas Câmaras do
Landgericht, com competência para 1~ instância, não cabendo de tal
decisão qualquer recurso.

a) O pré-procedimento escrito

O pré-procedimento escrito, em regra utilizado nos casos mais


complexos, tem a vantagem de ensejar o julgamento à revelia, se o réu
não responder no prazo de 2 semanas - contado da data em que foi
cientificado da fundamentação (Begründung) do Mahnverfahren - ou
no prazo mínímo de 4 semanas do recebimento da petição inicial (Kla-
geschrifl) propriamente dita, se nas 2 semanas antes citadas comunicou
que iria se defender. Igualmente, dito procedimento possibilita que tudo
fique estabelecido por escrito nos autos (ex.: réplica, fixação de pontos
da demanda, prova pericial, decisão de eventuais incidentes), antes da
audiência em que será coletada a prova oral e terão lugar as manifesta-
ções das partes e seus patronos.
As vantagens são consideráveis e, às vezes, se alcança uma
prestação jurisdicional mais rápida, no entanto, em outras ocasíões, o
procedimento se alonga, quando tudo poderia ser resolvido com maior
celeridade, se trilhado o caminho do pré-procedimento oral.
Para uma melhor compreensão, é de se consignar que o pré-
procedimento escrito se apresenta, em muito, semelhante ao nosso
procedimento ordinário.

b) O pré-procedimento oral (ou a audiência preliminar - trüher


erster Termln)
O pré-procedimento oral, que não prescinde da forma escrita, tem
alguma semelhança com o nosso procedimento sumarfssimo, muito embo-
ra não conte com as imperfeições deste, ou, pelo menos, não possua a
maioria deles.

218 R. lnf. legisl. Brasilia a. 19 R. 74 ab,./)un. 1982


Neste iter, geralmente mais prático para questões de menor com-
plexidade, o magistrado, ao receber a petição inicial, marca uma audiên-
cia preliminar e manda cientificar o réu, fixando ou não um prazo para
resposta. Estabelecido um prazo, este deverá ser observado, podendo
ser ampliado ou renovado, não só nos casos de força maior, como tam-
bém na hipótese de aceitação da justificativa dada pela parte para o
seu proceder, sendo, neste particular, os magistrados alemães bem mais
tolerantes que os brasileiros, não fixando prazo; a resposta deverá ser
apresentada até a audiência preliminar, indicando-se os meios de prova
antes desta última. Pode acontecer, porém, que na audiência compareça
o réu ou seu advogado (no Landgericht, este deverá estar presente, obri-
gatoriamente), alegando motivo plausível para a não apresentação da
defesa, o que, em regra, ensejará uma nova audiência.
Abstraidas as exceções, ou seja, apresentada a defesa antes da au-
diência preliminar, nesta, se não alcançada a conciliação - que nem
sempre é proposta pelos magistrados, como no Brasil, por força dos
arts. 278, § 19, e 447, do CPC, quando se está em presença de direitos
patrimoniais de caráter privado -, o juiz fixa os limites da controvérsia
e pode, desde logo:
a) marcar a audiência principal, dizendo quais as provas a serem
produzidas;
b) marcar nova audiência (Termin für Verkündung etner Entschei-
dung), quando será publicada a sentença se, por exemplo, a questão for
somente de direito (excepcionalmente, se convencido da necessidade de
produção de prova, a determinará);
c) marcar nova audiência (audiência principal) - normalmente assim
se procede em questões que, com a resposta, se apresentam mais
complexas - , onde serão precisamente fixados os pontos controvertídos
e determinadas as provas necessárias (orais, documentais elou periciais).
Nota-se, assim, que, em certas hipóteses, o pré-procedimento oral
em análise pode ensejar, em questões mais complexas, um maior atraso
no andamento do processo, com a realização de duas ou mais audiências.
Na 2~ instância não há necessidade de um pré-procedimento (escrito
ou oral), porque já há um processo completo, vale dizer, preparado na
1? instância, mas, se os juizes do colegiado ou o Einzelrichter assim o
preferirem, poderão levar a efeito um novo pré~procedimento.

XII - A audiência principal (der Haupttermin)


Como já visto, após o Sluttgarter Modell e, em especial, com o adven-
to da novela de 1976, o procedimento tem seu ponto culminante na
audiência principal - oral - que deverá ser precedida de conveniente
preparação, escrita ou oral.
Para um melhor entendimento far-5e-á, a seguir, um sumário do que
se passa, normalmente, em uma audiência, na ordem em que se verifi-
cam os tópicos relatados, embora dita seqüência não seja de rigidez
absoluta.

R. Inf. legill. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 219


8) A audiência principal inicia, normalmente, com uma explanação do
jujz singular ou do Vorsitzender (94), a respeito dos pontos controvertidos
e daquilo que ele considera importante ficar estabelecido para o julga-
mento da causa, A preparação possibilita ao juiz o relatório (Einführung
in den Sach - und Streitstand), sem que constitua um prejulgamento.
As partes podem, porém, acordar em dispensar referido intróito a, mesmo
quando assim não procedem, alguns juízes deixam de levá-lo a efeito,
talvez com receio de um prejurgamento ou com objetivo de uma maior
rapidez.
Segundo constatado em Amtsgerichte e em Câmaras de Landgerichte,
quando efetivamente é cumprida, no intróito da audiência, a fase de ex-
planação, de um lado se facilita a prestação jurisdícional e, acima de
tudo, se propicia a conciliação,
b) Após o cumprimento ou não da referida introdução, são ouvidas
as partes, se o juiz considerar necessárta a providência, para esclareci-
mentos de fatos da causa (lembra a faculdade concedida pelo art. 342
do nosso CPC). Tal porém, não se confunde com o depoimento pessoal.
c) FeIta a explanação e ouvidas as partes, ressalvadas as hipóteses
em que a isto não se oporá, O j'IJiz, considerando viável um acordo, o
proporá. No processo civil alemão não há norma cogente, como a que
temos nos arts. 278, § 1Ç, e 447, do Código de Processo Civil e, assim,
nem sempre as partes são concitadas a pôr fim à demanda por meio de
avença.
Impõe-se registrar, no respeitante à conciliação, que muitos jufzes
são um tanto quanto avessos a propô-Ia, mas tal é uma questão pessoal,
que tem muito a ver com o temperamento de cada julgador. Tanto assim
é que, mesmo no Brasil, onde a fase conciliatória deve ser cumprida
obrigatoriamente nas hipóteses legais, a medida, por vezes, não surte
seus efeitos, porque certos juizes limitam-se a uma simples indagação,
deixando de explicar às partes as vantagens de uma avença, os perigos
de uma demanda, em especial os custos, inclusive os reflexos da correção
monetária, e, até mesmo, o tempo necessário a um julgamento definitivo,
com a possibilidade de recursos.
Em verdade - e a assertiva vale tanto para o Bras\l, quanto para a
Alemanha -, o sucesso da conciliação repousa na maneira apropriada
da condução da proposta pelo magistrado, demonstrando às partes a
utilidade, alertando-as, sem as forçar, convencendo-as, sem prejulgar. Em
resumo, é uma verdadeira arte, que a experiência molda e poderia, diga-se
agora, ser objeto de um cuidado maior, inclusive com abordagem mais
apropriada nos cursos de graduação e, acima de tudo, nos de preparação
ao ingresso na magistratura e de aperfeiçoamento de magistrados, tal a
importância da medida para as partes, para o próprio Judiciário (com
o conseqüente desafogo em ll;1 e, principalmente, em 2l;1 instância) e,
porque não dizer, para o breve restabelecimento do equilibrio social.

(94) Pelol II 495 e seguintes ZPO, observa-se o mesmo proçedimenlo - com pequenas variantes - no
AlIltJgfilrlcht e no Lllndgerichl.

220 R. Inf. legill. lralili<ll <li. 19 n. 74 a&r./fun. 1982


Na Alemanha, tem-se como excepcional o indice de 40 a 50% de
conciliações, como registrado pela 12~ Câmara do Landgericht Nürnberg
(onde também estagiei), o que é devido, seguramente, à maneira com
que o seu Presidente, Herr TAUTZ, conduz a fase conciliatória, seme-
lhante à de muitos magistrados brasileiros. Note-se serem até certo ponto
comuns os acordos parciais, continuando o processo no que pertine aos
demais pontos controvertidos.
A conciliação encontra, porém, um outro óbice, que já chega a preo-
cupar as autoridades judiciárias, ou seja, a Rechtsschutzvers!cherung. O
seguro de proteção ao direito, assim é chamado, surgiu como reflexo, de
um lado, da permanente preocupação com a segurança, e, de outro, foi
motivado pelos altos custos de um processo.
O instituto, para o seu desenvolvimento, contou e continua a contar
com a defesa de inúmeros juristas, os quais chegam a preconizar a sua
obrigatoriedade. Mesmo não sendo obrigatório, a cada dia é maior o
número de alemães que se socorrem da garantia mencionada e, dessarte
julgam-se no direito de, por fás ou por nefas, propor demandas e, inclu-
sive, sem muita segurança, de contestá-Ias, exaurindo, numa e noutra
hipótese, todos os recursos possfveis, afastando, em regra, a conciliação,
muito embora se pensasse, a princíp;o, que a cobertura de todas as
despesas processuais viesse, também, a facilitar um acordo, o que a
prática demontrou não ser a regra.
Frise-se que, embora se exija, para a utilização do seguro, um parecer
de advogado sobre a probabilidade de êxito da questão, a concorrência
entre as seguradoras, que procuram amealhar um número cada vez maior
de segurados, faz com que sejam pródigas na concessão da cobertura,
o que constitui excelente propaganda e, porque não dizer, "investimento",
que principa a aumentar, não só o número de processos ajuizados, como
também o tempo de sua tramitação.
Por derradeiro, no respeitante à conciliação, cumpre consignar que.
ao ser esta alcançada em audiência, o juiz ou o Vorsilzender pura e
simplesmente dita as cláusulas respectivas no gravador ou para a este-
nógrafa, o que mais tarde será datilografado no protocolo, sem qualquer
assinatura do magistrado, das partes ou advogados e. de igual, sem a
prolação de uma sentença homologatória - diga-se, de passagem, total-
mente desnecessári& - valendo o termo lavrado como título executivo
judicial.
d) Não sendo alcançada a conciliação, por não cabível, por não
proposta ou por recusada, tem a audiência seqüência, com debates orais,
concernentes ao pedido e à causa de pedir, bem como referentes à res-
pectiva contestação. tendo-se em conta a inicial e a resposta, fixados os
pontos controvertidos.
Nesta fase, nota-se a preocupação com a oralidade. tanto é que as
partes e/ou seus advogados (veja-se que mesmo no Landgericht, onde é
obrigatória a presença de advogados, podem as partes, pessoalmente, se
manifestar, desde que o peçam) devem oralmente se expressar e, excep-

R. Inf. 'etil!. Ira.iIla a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 Ul


cionalmente, recorrerão à leitura de escritos, somente quando a natureza
destes impuser tal leitura (ex.: testamentos, contratos etc.). Podem, tam-
bém, as partes ratificar o já constante de determinada petição (o que
acontece na prática).
e) Coleta de prova: antes da audiência principal, quer se trilhe o
caminho do schriftliches Vorverfahren ou do früher erster Term~n, podem
haver sido produzidas aquelas provas, que deveriam ter sido coletadas já
na preparação do Haupttermin, como, por exemplo, a documental, que
instru,ju 'a inicial, a resposta ou man1testações posteJ'Tiores, e a pericial.
Tal, inclusive, se impõe em homenagem ao princípio da celeridade pro-
cessual, pois nada adiantaria uma preparação visando conseguir a rea-
lização da audiência principal num só ato, se, por exemplo, em dita
audiência fosse deliberada a produção de prova pericial, o que importaria
em suspensão daquela.
A coleta de prova, prevista na audiência principal, é aquela que, a
. partir da novela de 1976, imediatamente se segue às manifestações das
partes (preferencialmente), poís, excepcionalmente, pode haver a neces-
sidade de suspensão da audiência, com designação de nova data para
a produção probatória, por qualquer motivo impraticável (prova teste-
munhal por excelência, depoimentos pessoais e, eventualmente, apresen-
tação de documentos). Na hipótese de suspensão, a continuidade é mar-
cada para breve (de 2 a 3 semanas, em regra, na prática).
No respeitante aos depoimentos pessoais, faz-se mister mencionar
que os mesmos constituem prova subsidiária, à qual as partes recorrem
à falta de outras, ou em razão de não estar perfeitamente esclarecida a
questão, cumprindo referir, como singular, que aquele a quem incumbe
o ônus da prova do fato constitutivo de seu direito pode pedir, além
do depoimento da parte ex adversa, o seu próprio, o que será admitido,
se não impugnado. Faculta-se, de igual, ao magistrado, quando as provas
ou os debates nada esclarecerem sobre a controvérsia, determinar, de
ofício, o depoimento pessoal de uma ou de ambas as partes.
f) Finda a instrução, o magistrado comenta, novamente, com as
partes, toda a questão de fato e de direito - é óbvio, sem prejulgar -
ouvindo, com informalidade, as opiniões de autor e de réu, pessoalmente
e/ou por advogados, dando a um e a outro a palavra tantas vezes quantas
solicitada e mandando reduzir a termo unicamente o indispensável (assisti
a inúmeras audiências e sessões e, em algumas delas, os debates se
prolongaram por 15 ou 20 minutos e apenas se registrou haverem sido
ratificadas as alegações constantes dos autos). Por vezes, a sentença é
proferida na própria audiência ou sessão (em julgamentos à revelia ou
presididos por juiz singular) e, quando assim não se procede, é marcada
uma data (o prazo não é rígido, oscilando, na prática, entre 1 a 3 se-
manas) para a publicação da sentença, que é feita pelo próprio juiz ou
pelo presidente da Câmara.
g) A reabertura da audiência: a regra consiste em não se reabrir a
audiência, após haver sido ultimada. No entanto, antes de prolatada a
sentença, pode o juiz ou o Vorsitzender - este, inclusive, após ouvidos

222 R. Inf. legisr. Brasília a. 19 n. 74 abr./JUII. 1982


os demais integrantes do colegiado, em especial o que recebeu o proces-
so para exame - marcar data para uma nova audiência, ou melhor, para
complementação da realizada.
Assim se procede, qundo, por exemplo, na audiência, deixou de se
perquirir a respeito de determinado ponto fático, importante para o es-
clarecimento da causa, em regra em decorrência de manifestação de uma
das partes na própria audiência e não devidamente considerada.
Este procedimento é pouco freqüente e, frise-se, não integra direito
das partes, mas, sim, faculdade do magistrado.

XII - O procedimento escrito (das schriftliche Ver1ahren)


°
procedimento escrito (§ 128, 11, ZPO), que nada tem a ver com
o pré-procedimento já tratado neste estudo (§§ 272, 11, 276 e 277 ZPO),
caracteriza-se pela não real"ízaçãoda audiência pr.nc~pal e, em regra,
decorre do interesse comum das partes, que tal manifestam em Juízo,
colimando, por exemplo, evitar despesas de viagem ou pagamento às
testemunhas. Dito procedimento, excepcionalmente, também pode ser
determinado de ofício (§ 128, 111), mas tal se dá somente no Amtsgeriçht
e em causas de valor patrimonial não superior a 500 DM. Recebeu inova~
ções com a Vereinfachungsnovelle e, embora fosse, antes de 1977, usado
com certa parcimônia, principia a ter alargada a sua prática, de fo-rma,
porém, ainda não significativa. Ele se resume no estabelecimento de pra~
zos, pelo magistrado, para apresentação de petições e para a própria
apreciação judicial, através de decisão ou sentença.
Note-se que no procedimento escrito não se admítem manifestações
tardias das partes, como se dá no procedimento com audiência.
O procedimento escrito, normalmente, se ultima com uma decisão
ou sentença do juiz. Excepcionalmente poderá, também, findar numa
das hipóteses seguintes:
a) quando uma das partes retira sua anuência à observância do iter
escolhido, nas raras hipóteses, em que tal é possivel;
b) quando o juiz entender necessária a realização de uma audiência;
c) quando decorrer o prazo de 3 meses - contado do acordo das
partes - sem que haja sido proferida uma decisão ou sentença.
FRITZ BAUR (95) refere casos não muito práticos de procedimento
escrito, os contemplados nos §§ 251 a, e 331 a, da ZPO, referentes à
decisão conforme o estado dos autos (Entscheidung nach Lage der
Akten).
Frise-se, a propósito da decisão conforme o estado dos autos, que
o instituto, na Alemanha, foi introduzido com a novela de 1924, mas não
alcançou, nem mesmo com as posteriores alterações legislativas - in-
clusive a nova redação dada ao § 251 a pela novela de 1976 - , a lar~

(95) ZlYllproze..rec/lt, 3. Auflage, Alfred "'el%l"I" Verlsg, pAg. 52 - trad. do original.

R. Inf. legill. Bra.Uia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 223


gueza de limites verificada no direito processual civil brasileiro, nos casos
dos arts. 267, 269, incisos 11 a IV, e 330 do Código de Processo Civil.
O dia~a-dia forense, conforme tive condições de constatar, não registra
um número expressivo de decisões conforme o estado dos autos, o que,
acredito, deve decorrer de duas circunstâncias:
H - o instituto está vinculado ao comportamento das partes no
curso do processo, em especial à omissão das mesmas, quer no com-
oarecer, quer na prática de determinado ato;
2. - constitui, sua adoção, uma agressão ao princípio da oralidade,
o que não é bem recebido por advogados e, mesmo, juizes, os quais,
podendo optar, preferem ver realizada uma audiência.

XIV - Os pronunciamentos judiciais (dia gerichtlischen Entscheidungen)


No âmbito do processo civil alemão existem 3 tipos de pronuncia-
mentos judiciais: despacho (Verfügung), decisão (Beschluss) e sentença
(Urteil), observado quanto a esta o sentido amplo, englobando o julga-
mento dos colegiados, ou seja, o nosso acórdão.
Praticamente, como salienta OTHMAR JAUERNIG (96), inexiste dis-
tinção entre Verfügung a Beschluss, como se verifica no Brasil, valendo
salientar não proferir o magistrado alemão, normalmente, despaohos sim-
plesmente de expediente, comuns no processo brasileiro (ex.: junte-se,
intime-se, digam as partes, conta e preparo etc.), e as suas Verfügungen,
em geral, integram um pronunciamento ordinatório, podendo ter, por
vezes, conteúdo também decisório (ex.: despacho que concede, ou não,
prorrogação de prazo para apresentação das razões de apelação -
(§ 519, 11, 3, ZPO).
As Verfü9ungen, mesmo quando têm certo cunho decisório, são, em
sua maioria, irrecorríveis. As recorríveis integram autênticos Beschlüsse,
apenas classificados como Verfügungen.
Deve-se, porém, distinguir a hipótese de Verfügung, que toma a forma
de decisão ou, mesmo, de sentença, quando da apreciação - liminar
ou final - das cautelares (einstweilige Verfügung).
Beschlüsse são decisões que, embora possam ter cunho ordinatório,
chegam. inclusive. a põr fim ao processo, sendo exemplo das primeiras
a que determina a produção de provas entendidas como necessárias
(Beweisbeschluss), a, das últimas, mais atuais. a decisão que rejeita o
Einspruch (97), sem realização de audiência. Quando recorrívels, o são
por Beschwerde (98).
Se realizada a audiência e julgado improcedente o Elnspruch, será
proferida sentença e caberá apelação.

(96) Zlvflpronnr.chl, 19. Auflage, 1981, p'g. 187.


197) Espécie de recul'8o. embora tecnicamente recurso nAo leja, que vise. perante o meamo Juizo, rever
Ju Igamento a revelia.
(98) ESPécie de agravo, e re.pelto do Qu.l .e Iratar' adlanlll (capitulo XV, Item 3).

224 R. Inf. legisl. Br.sílio o. 19 n, 74 obr./JuR. 1982


Nas hipóteses de audiência oral facultativa (fakultative rnündUche
Verhandlung - ex.: §§ 126, I, e 519, b), o Juiz profere um Beschluss e não
um Urteil, mesmo que tenha realizado a audiência, e, como conseqüência,
o recurso contra tal decisão é a Beschwerde e, não a Berufung (99).
Urteile são sentenças ou acórdãos prolatados por Juízes singulares,
Câmaras ou Senados, obedecendo forma determinada e, normalmente,
se seguem a uma audiência oral realizada obrigatoriamente, podendo,
mesmo, ser proferidos ao término desta. Excepcionalmente, no procedi-
mento puramente escrito, será proferida uma Urteil sem audiência. São
atacáveis por meio de apelação (Berufung) ou recurso extraordinário (Re-
vision).
Pelas Urteile, normalmente. se julga a questão controvertida em sua
integralidade (decide-se o processo em seu todo - VoU Endurteil) ou
paroialmente (TeU - Endurteil), porém, esta hipótese só é admi·tida quan-
do o julgamento da parte apreciada pode ser feito independentemente
do desfecho do restante da controvérsia (100) e (l01).
Há, ainda, as Zwischenurteile, que são decisões interlocutórias, dadas
sob a forma de sentença ou acórdão.
Frise-se, finalmente, que a distinção entre Beschluss e Verfügung e
entre Beschluss e Urteil nem sempre é palpável. Tanto assim é que,
algumas vezes, pronunciamentos judiciais com o mesmo conteúdo se
apresentam sob o rótulo de Beschluss e, outras, sob a forma de sentença
(ex.: rejeição da apelação, por inadmissível).

xv - Os recursos (die Rechtsmittel)


Os recursos, na Zivilprozessordnung, são os remédios utilizados pelas
partes, que consideram haver sofrido um gravame por um pronuncia-
mento judicial, co limando, através deles, obter da superior instância a
modificação total ou parcial do decidido ou, mesmo, a anulação da deci-
são. Assim, não constitui recurso, na acepção técnica do termo, o
Einspruch (reclamação objetivando a revisão dos procedimentos à reve-
lia) (102), mas, tão-somente a Beschwerde (queixa), a Berufung (apelação)
e a Rev:sion (recurso extraordinário).

1 - Considerações gerais:
Os recursos e, mesmo, o Einspruch, impedem o trânsito em julgado
da sentença ou decisão, quando formal e tempestivamente interpostos
(§ 705, ZPO). Observe-se que, mesmo na hipótese de o recurso atacar

(99) Apeleções (vide capitulo XV, ilem 4).


(100) "Bundesgerichlahol", in Meu. Jllrl.tI.che WodenlChrlft, 1960, pAg. 339.
(101) As hlpóte$9s mais correntiaa de Teilurteil ao oporam om açóos de indenização em que, provada a
culpa do réu na Instrução. somente se demonstrou, _rbE Slratla, ~ma parte do quantum pretendido
lex.: unicamente os danos materiais, nAo se preclll8ndo os pessoa.is, que sorlo posteriormente apu-
rados).
(102) Apesar do Einspruch não constituir um recurso propriamente dito, será tratado na seqÜência, por
suas relações Inlimas com °
tema.

R. Inf. legisl, Brasilia a. 19 n. 14 abr./jun, 1982 225


parte do decisório, dito efeito, chamado de suspensivo (103), se faz pre-
sente no respeitante à integralidade do julgado, o que permite a extensão
do recurso, quando de sua apreciação pela superior instância, até mesmo
às partes não impugnadas da sentença. Registre-se, neste particular, que
dita extensão fica condicionada a pedido do recorrente, na Berufungsins-
tanz (instância de apelação), até a audiência principal e, na instância de
revisão, até o momento da apresentação das razões de recurso.
Observe-se, que o efeito suspensivo referido, por si só, não impede
a execução provisória do julgado, valendo notar que o juiz, na sentença,
deve se pronunciar sobre a admissibilidade ou não da execução provi-
sória.
Todo recurso, outrossim, tem efeito devolutivo, ou seja. devolve à
superior instância o exame integral da controvérsia. Mencionado efeito,
saliente·se, é bem mais acentuado do que no Brasil, principalmente no
âmbito da Berufung, pois, como se verá, com base nele há possibilidade,
inclusive, de nova coleta de provas, sempre se procurando a perfeita
realização do direito mater:al, em cujo nome, por vezes, se afasta o ins-
tituto da preclusão (fala-se, a propósito, refe-indo-se a este assu nto,
em uma verdadeira "segunda H instância").
A ZPO também observa a proibição da reformatlo in pej:Js e prevê
o recurso adesivo nas queixas, apelações e revisões.

2 - A reclamação (der Einspruch)


Como já mencionado, tecnicamente, o Einspruch não é recurso, como
não o são o Widerspruch gagen den Mahnbescheld (§ 694, ZPO - im-
pugnação à interpelação); Widerspruch gegen Arrest und einstweilige
Verfügung (§§ 924 e 936 ZPO - impugnação ao arresto e à medida
cautel'ar); Widerspruch gegen die VolIstreckbarerklãrung von Schiedspruch
und Schiedsvergleich (§§ 1.042, c, 11; 1.044, I; 1.044, a, 111 ZPO - impug-
nação à declaração que dá força executória à decisão arbitral e ao
acordo alcançado por meio do Juízo arbitral).
O Einspruch é o remédio colocado à disposição da parte, que teve
contra si prolatada sentença à revelia (Versaumnisurteil) ou que se con-
sidere agravada com a ordem de execução (VolIstreckungsbescheid),
proferida no procedimento monitório (Mahnverfahren), tudo conforme se
vê dos §§ 338 e 700 ZPO.
Note-se que, por meio do Einspruch, procura-se a reforma da decisão
ou sentença desfavoráveis - observadas as hipóteses antes enuncia-
das - perante o próprio Juízo onde foram prolatadas. Excepcionalmen-
te, a admissibilidade, o processamento e a apreciação serão feitos por
outro Juízo. Tal ocorre, unicamente, na hipótese de o VoIIstreckungsbes.
cheid partir de Juízo que, embora seja competente para o Mahnverfahren,

(103) o efeito suspensivo impede a coisa julgada (Rechlskraft), mas não suspende s execução (Vollstre-
ckbarkelt).

226 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr.ljun. 1982


não o é para o processo principal, o que ensejará a este o conhecimento
da matér;a controvertida, observadas as regras gerais dos §§ 338 e se-
guintes e as especiais dos §§ 700 111, 2, e 697, I, a, IV, ZPO (lO"").
O Einspruch, como os recursos, pode ser parcial ou total. O prazo
para sua interposição é de duas semanas, contado da cientificação do
julgamento à revelia.
Embora deva o Einspruch ser fundamentado, a falta de fundamen·
tação não determina a rejeição, como ocorre com a apelação ou a revisão
não arrazoadas pela parte recorrente.
Na hipótese de o interessado rotular o Einspruch, equivocamente,
como Berufung, tal não impedirá seu conhecimento e apreciação (vige,
neste particular, a fungibilidade recursal).
O Juizo de admissibilidade pode ser proferido sem audiência oral
(através de decisão: Beschluss) ou, cumprida a audiência, sob a forma
de sentença ou acórdão: Urteil (105).
No processo de Einspruch é respeitado o contraditório e, em regra,
real iza-se a audiência oral.
Contra o Beschluss proferido no processamento do Einspruch, cabe
a Beschwerde e contra o Urteil, a Berufung, valendo observar, porém, que,
no caso de ocorrer uma rejeição, pelo Tribunal Estadual (Landgericht),
em 2~ instância, não caberá qualquer recurso, ao contrário do que se dá
com decisão do Oberlandesgericht, que concluir no mesmo sentido, a
qual poderá ser recorrível através de Beschwerde.
Por derradeiro, frise-se que o mérito do Einspruch deve ser tratado
em uma sentença final, onde o magistrado se referirá, obrigatoriamente,
ao julgamento proferido à revelia, mantendo, ou não, a sentença im-
pugnada.

3 - A queixa (die Beschwerde) (10~)

A Beschwerde é o recurso de que dispõe a parte contra o Beschluss


(decisão), em regra geral, e contra a Verfüngung (despacho), excepcio·
nalmente.
Repita-se, a propósito, que toda Verfüngung recorrível por Besch-
werde apenas veste a roupa de Verfüngung, sendo autêntica decisão,
como acontece, por exemplo, no campo da jurisdição voluntária (frei-
willige Gerichtsbarkeit). A rigor, no âmbito da ZPO, não há Verfüngung
recorrível.

(104) Os comentarios sobre a admissibilidade e o processamento do Einspruch, aqui feitos, slo perti-
nentes à impugneção da sentença à revelia, pois esta é a hip6tese que maior Interesse desperta.
mesmo porque não contamos, em nosso sietema processual, com o Mahnverfahren.
(105) Como o Julgamento à revelia pode se dar na 2. 8 Instllncla, nesla também terá lugar o Einspruch.
(106) Nes1e estudo não se observa a seqilància de perágrafos de ZPO. por se apresentar Importante que
o leilor conheça as regras atinentes à Beschwerde, antes da Berufung. Nota·se que, no CPC. o agravo
é disciplinado antes da apelação.

R. Inf. legisl. BrosíliCl CI. 19 n. 74 obr./jun. 1982 221


A Beschwerde é o meio normal de impugnação das decisões inter-
locutórias, que se aproxima do nosso agravo de instrumento, no entanto,
em alguns aspectos, dele muito se diferencia, como será visto mais
adiante.
Certos autores, como THOMAS PUTZO (10'), quando afirmam ser ca-
bível a Beschwercte contra Urteil, estão a se referir ao Zwischenurt'"
que, como visto, é uma decisão interlocutória - autêntico Beschluss -
apenas com a forma de sentença ou acórdão (Urteil),
A Beschwerde é expressamente prevista na lei, nas hipóteses em
que é admissível, tendo cabimento, também, contra decisões - proferidas
nos casos em que a audiência oral seja prescindível - que rejeitam
um pedido legítimo da parte, referente ao procedimento, com possivel
reflexo no esclarecimento da questão controvertida, e é interposta pe-
rante o Juízo em que foi prolatada a decisão recorrida.
Geralmente, não tem qualquer influência o valor patrimonial do gra-
vame, na admissibilidade da queixa, sendo uma exceção o preceituado
no § 567, 11, ZPO, que só admite o recurso em referência contra decisões
atinentes a despesas processuais (custas e honorários), se o valor do
objeto da queixa ultrapassar a 100 DM.
Há, no direito processual civil alemão, quatro espécies de Bes-
chwerde:
a simples (einfache);
a urgente (sofortige);
a primeira (erste);
a em seqüência (weitere).
A "queixa simples" não tem prazo para interposição, mas isto não
quer dizer que a parte interessada possa, indefinidamente, lançar mão
do recurso, mesmo porque o processo já poderá ter sido definitivamente
julgado ou - ainda que tal não tenha ocorrido - se reconhecido judi-
cialmente o comportamento abusivo do recorrente (abuso de direito). O
juiz pode reconsiderar a decisão recorrida e, caso não o faça, a questão
será apreciada pelo Tribunal Superior (§ 571, ZPO).
A "queixa urgente" tem prazo de 2 semanas para interposição
(§ 577, ZPO), mas em questões referentes a direito de família, dito prazo
é alargado para 1 mês (§ 621). Ela só é cabível nas hipóteses em que
se acha expressamente prevista na lei processual (exs.: §§ 71, 11; 99, 11;
319, 111 e 519, b). Nesta espécie de queixa, não há oportunidade para
eventual reforma da decisão pelo juízo a quo. Na prática, se apresenta
como a moda! idade mais usada.
A "primeira queixa" é a proposta contra decisão da 1~ instância, que
será apreciada pela 21i1 Logo, abrange as hipóteses de queixa urgente
e a simples, que, como visto, poderá vir a ser apreciada pela 2~ instância,
em não havendo reconsideração da decisão.

(t07) Zlvllproz:ealorclnung mil NebengeaelZen, 10." tld., C. H. Beck-München, comenltltio ao § 567. ptlg. 953.

228 R. Inf. legisl. Brasílill 11. 19 n. 74 abr./jun. 1982


A "queixa em seqüência", que, igualmente, pode ser simples ou
urgente, nada mais é do que uma nova Beschwerde, interposta contra
a decisão de 2~ instância, que apreciou a anteriormente proposta. Só
tem lugar, porém, quando a decisão antes referida partír de Landgericht.
Como única exceção ao enunciado no § 567, 111, ZPO, há a hipótese do
§ 568, a (decisão do Oberlandesgericht que apreciou uma Beschwerde
interposta contra rejeição de Einspruch, ajuizado por força de julgamento
à revelia).
Contra deliberações dos Rechtspfleger (lOS) não cabe Beschwerde,
mas, sim, em certos casos, um sucedâneo da mesma. ou seja, a Erinne-
rung (reconsideração), disciplinada pelo § 11 RPflG (100). Contra a decisão
judicial, que apreciar a Erínnenmg, poderá ser proposta, então, uma
Beschwerde.
A interposição da Beschwerde impede o trânsito em julgado da deci-
são, mas não a execução, que, em regra, não é afetada, sendo exceções
as hipóteses contempladas nos §§ 387, 572, I, e 900, 111, ZPO. Os Juízos
a quo e ad quem podem, no entanto, observado o poder de arbítrio,
declarar a suspensão da execução (§ 572, 11). Ao juízo ad quem, obser-
vado o mesmo critério, é facultado ordenar medidas cautelares, a fim
de que, de futuro, não se quede frustrada a prestação jurisdicional
(§ 572, 111).
Na queixa, ao recorrente, para conseguir o seu intento, é permitido
trazer fatos e provas até então não constantes dos autos (§ 570 ZPO).
Tal, porém, não é 'admitido na chamada queixa de direito (Rechtsbeschwer-
de), isto é, naquela que ataca uma decisão sob o pressuposto de ter sido
ferido o direito formal ou material do requerente, sem qualquer perqui-
rição sobre matéria fática. r: vedada, também, a incidência do § 570,
quando o magistrado, com base em seu prudente arbítrio, entender que
os novos fatos e provas somente embaraçarão a tramitação do processo.
Unicamente terá incidência o § 570 - mesmo que não presentes as
hipóteses restritivas antes enunciadas - se o recorrente demonstrar não
ter havido negligência manifesta de sua parte, ao deixar de trazer aos
autos, anteriormente, os fatos e provas que pretende ver apreciados na
tramitação da queixa.
A coleta de provas, no procedimento da Beschwerde, segue as mes-
mas regras do processo comum, A audíência oral não é obrigatória, mas
deve ser observado o contraditório, facultando-se ao recorrido o direito
de manifestação escrita, sempre que lhe possa resultar gravame da
decisão a ser proferida.
O julgamento da queixa toma a forma de decisão (Beschluss), mesmo
que o recurso tenha sido oposto contra uma sentença (ex.: um Zwischenur-
teil) e contra dita decisão, como visto, pode caber uma weitere Besch-
werde.

(108) Vide tópico respectivo.


(109) Rechlepflegergesetz (Lei do Administrador Judicial).

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 229


o número de Beschwerde, na Alemanha, já justificou que alguns
Landgerichte e Oberlandesgerichte instituíssem Câmaras especiais, com
competência específica para apreciá-las. em experiência que tem dado
bons resultados (presenciei julgamentos de Beschwerde em menos de 30
dias, embora o prazo médio seja de 3 meses). Nota-sa, novamente, presen-
te a preocupação com a especialização na 2~ instância.
Impõe~se referir, ainda, um general izado anseio no sentido de serem
diminuídas as hipóteses de admissibilidade da Beschwerde (110), e, bem
assim, de simplificação do procedimento (111). A intenção de restringir os
casos de cabimento de queixa se faz sentir, apesar de inúmeras decisões
serem irrecorríveis, bastando, para bem exemplificar, citar que toda aque-
la referente à admissibilidade ou nâo de prova não é passível de recurso,
como, também, é irrecorrível a que admite uma manifestação tardia da
parte (§ 296, I. ZPO),
Deve-se dizer que, embora alguns autores procurem vislumbrar um
nascedouro comum para a Beschwerde e para o nosso agravo, qual seja
a s;mplex querela do direito comum germânico, em muito semelhante à
querima do di relto português (112), os dois recursos, na atualidade, a des-
peito de possuírem pontos comuns, em muito se diferenciam, principal-
mente, no que pertine à já comentada possibilidade de o recorrente trazer
novos fatos e provas, com base no § 570, ZPO, e, de igual, porque a
Beschwerde sobe ao tribunal competente para o julgamento nos próprios
autos, enquanto que o agravo, como é sabido - ressalvada a hipótese do
retido - vai à superior instância, após a formação do instrumento res-
pectivo.

4 - A apelação (die Berutung)


A Berufung é o recurso cabível contra sentenças finais de 1~ instância,
proferidas pelo Amlsgericht ou pelo Landgericht. Tem cabimento, também,
excepcionalmente, contra alguns julgamentos à revelia e decisões inter-
locutórias (exs.: §§ 513, 11, 566. 280, 11, e 304, 11, ZPO), quando a lei ex-
pressamente o determína.
A apelação, como já mencionado. na sistemátca processual c:vil ale-
mã, não consiste em mero meio utilizado pela parte para ver corrigida a
decisão de 1~ instância, após um reexame das questões de fato e de
direito apreciadas na sentença recorrida. É, ao contrário, bem mais do
que isto, pois permite a integral discussão da controvérsia, como que
propiciando uma "segunda 1~ instância" (113), de tal sorte que, às vezes, a
2~ instância reforma uma sentença, mercê das provas produzídas perante
o Juízo recursal e, não, das coletadas na 1~ instância. Observe~se, porém,
que isto não enseja abusos procrastinatórios e se acha limitado pelas res-
trições dos §§ 527 a 530, ZPO, que, em resumo e de maneira genérica, são
as mesmas que impedem a incidência do § 570, na Beschwerde, acres-

(110) A prop6slto, seria de se pensar o mesmo, ante a exlensão do artigo 522 do Código de Processo Civil.
(111) Berlcht der Komlsalon lür da. Zlvllprozenrechl, Deulscher Bundesverlag, 1977, pag, 171.
(112) ALFREDO BUZAID, Do Agravo de Petlçilo, pág. 35, nota 18, Edição Saraiva, São Paulo, 1956,
(113) BAUR, Zlvllprozesarechl, DrlUe Aullage, Atfred Metzner Verlag, pAgo 18t,

230 R. I"f. legi51. Bra5ília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


cantando-se, mais, não ser facultada a repetição de meios de ataque e
defesa já regularmente repelidos na H instância.
Apelante é aquele que, quer seja parte ou não no feito, sofrerá um
gravame, se persistir um julgado de 1~ instância. Note-se só caber apela-
cão se o alegado prejuízo for patrimonial, quando este se apresentar su-
perior a 500 DM (neste total não se incluem os acessórios). A restrição
não tem lugar nos Juízos de naveqação e na hipótese de um segundo
julgamento à revelia (§ 513, 11, 2, ZPO).
A apelação é interposta perante o Juízo ad quem, no prazo de um
mês, a contar da intimação da sentença (§ 516), devendo ser instruída a
petição de recurso com cópia autenticada ou traslado da decisão recorri-
da. Note-se que a fundamentação, ou seja, as razões do apelo, serão apre-
sentadas posteriormente (114). O prazo para tal é de um mês, facultando-se
o aumento pelo Presidente da Câmara ou Senado, até 5 meses, bastando
um pedido razoavelmente justificado, inexistindo rigor judicial na apre-
ciação de escusa, de tal sorte que, em regra, o anseio é deferido.
O procedimento da apelação é, praticamente, o mesmo da 1~ instân-
cia, ou seja, observa-se o pré-procedimento escrito ou o oral (audiência
prellminar e principal). O prazo para resposta é de 1 mês, no pré-procedi-
mento escrito, e, em regra, de 3 a 4 semanas (nunca menos do que 2), no
oral, quando o juiz o fixa, po:s poderá deixar de fazê·lo, mas as alegações
do apelado deverão ser apresentadas, sempre, antes da audiência. Após a
resposta, terá o apelante a oportunidade de confutação (§ 520, 11, 1).
Como há possibilidade de um julgamento à revelia na 2~ instância,
faz-se imprescindivel o contraditório, o que já não é obrigatoriamente
observado na revisão, conforme se verá no tópico seguinte.
O prazo de apelação não é suspenso pelas férias forenses (115) (ver
§§ 222. 223, 11, e 516). No entanto, a suspensão se opera no respeitante ao
prazo de fundamentação (§§ 223, I, e 519, 11). Se o prazo terminar em
sábado, domingo ou feriado, será prorrogado para o 1Ç dia útil imediato
(§ 222, 'r), como acontece no sistema processual civil patrício.
Os autos, que se achavam na 1~ instância, são avocados, em razão da
interposição da apelação.
Presentes os requisitos da apelação, já ao ínício referidos, é a mesma
processada (llG). Caso contrário, será liminarmente rejeitada, em regra
através de um Beschluss (decisão) (§ 519, b), contra o qual poderá ser
interposta um':l Beschwerde (queixa), somente na h:pótese de a rejeição
partir de um Oberlandesgericht (Superior Tribunal Estadual), pois, se tal
se der perante um Landgericht (Tribunal Estadual), não caberá idêntico
remédio (§ 519, b, 11). Se o Tribunal expressamente receber a apelação -
e, quando o faz, tal se dá por Beschluss (117) - , a questão não poderá ser
(114) als'ema semelhente. no Brasil, ao procedimento da apeleção no êmbito do processo penal.
(115) As lérla.ll forenses vão de 15 de Julho a lS de selemblO. mas tendo em conta os interesses da Jus-
tiça e do próprio magl$trado, podem Ser gozadas em outras oportunidades B, mesmo. fracionadas.
(116) Nole-se que os pressupostos processuais devam ser analisados de oficio.
(117) Oito pronunciamento preliminar não é obrigatório.

It. fnf. fegi$f. Bro$ília a. 19 n. 74 abr./jun. J982 23J


reapreciada, seja através de Urteil (sentença) ou, mesmo, por outro
Beschluss. Registre-se que, na hipótese contrária, isto é, quando não há
o expresso recebimento exordial e, através de Urtell - de conseqüência,
após uma audiência oral - , acordam 05 integrantes do colegiado em não
conhecer da apelação (sem apreciação do mérito, pois), caberá rev'são.
Não rejeitada a apelação, por Beschluss ou Urteil (como antes refe-
rido), o julgamento da 2~ instãncia, em regra, aprecia o mérito do recurso,
anulando ou reformando a decisão recorrida. Raramente se determina a
baixa dos autos à W instância (ver §§ 538 e 539), após anulado o julga-
mento desta, preferindo 05 Tribunais, que já estão inteirados da questão,
enfrentar o mérito, evitando maior demora processual, inclusive com a
possibilidade de nova apelação contra a 2~ sentença que viesse a ser pro-
ferida.
As regras que ditam os requisitos da sentença (Urteil) da 1~ instância
também deverão ser observadas no acórdão (Urteil) da Cãmara ou Senado.
O original do acórdão permanece na superior instância e os autos,
instruídos com traslado ou cópia autêntica do mesmo, baixam ao Juizo
a quo, na hipótese de não ter sido interposta uma revisão.
Cumpre frisar que o julgamento em 2E.l instância se opera, em regra,
através de uma deliberação do colegiado perante o qual foi coletada a
prova. Com menor freqüência aparece o Einzelrichter (Juiz singular), que
somente prepara o processo da apelação, inclusive coletando provas e
decidindo questões referentes à tramitação procedimental, à produção de
provas, incidentes relativos a custas etc. Dito juiz singular, porém - res-
salvada a hipótese de ambas as partes acordarem que decida a apelação
(§ 524, IV) - , não emite julgamento, que fica reservado ao colegiado (m).
No acórdão em que se apreciou o mérito da apelação deve, e~pressa~
mente, o Senado (119) consígnar se é cabível uma revisão, mas unicamente
isto se opera quando o valor do prejuízo não é superior a 40.000 DM e
naqueles casos de valor inestimável.

5 - A revisão (die Revision) (120)


.É o remédio de que se socorre a parte agravada por um julgamento
da 2E.l instãncia. Abre-se, com a revisão, uma autêntica 3/il instância que
trata tão-só de questões de direito, pois a matéria fática já foi estabelecida
na instância de apelação, pelo Oberfandesgericht (Superior Tribunal Es-
tadual). Em verdade, por vezes, a questão de direito tem reflexos sobre a
parte fática, daí por que, em regra, quando o Bundesgerichtshof (Supremo
Tribunal Federal) constata um erro de direito no iulgamento de 2~ instância,
anula-o e l!le devolve os autos para nova apreciação - normalmente com
outra instrução - e julgamento, o qual, corrigido o erro de direito, poderá

(118) Na 1. 8 InstAncla. perante o Landgsricht, ao contrário, o Einzelrichter nlio tem somente a funçAo de
preparador, em regra julgando o leito.
(119) Tal somente tem lugar no Oberlandesgerichl.
(12il) Os apontamentos sobre revisão íá levam em conta as alterações ditadas pela lei de 8.7·75, chamada
Revislonsnovelle, em vigor desde T5-9-75.

232 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./illn. 198'1


favorecer ao requerente da revisão, mas isto não acontece, é óbvio, em
todos os casos (121).
A revisão serve ao interesse das partes e ao interesse público. Serve
ao interesse das partes, na medida em que o recorrente persegue uma
reforma da decisão recorrida, a seu favor, e, ao interesse público, na
medida em que também se presta ao estabelecimento da unidade do
direito e ao respectivo aperfeiçoamento.
Saliente-se que o Bundesgerichtshot só conhece da revisão, se o
julgado do Oberlandesgericht violou a lei (§ 549) (122).
Diversas são as espécies de revisão:
1) revisão tendo em conta o valor (Streitwertrevision): em questões
patrimoniais, a revisão somente é cabível quando o valor do gravame for
superior a 40.000 DM. Note-se que somente a circunstância de o alegado
prejuízo ser superior à cifra antes citada não é bastante, pois o Bundes-
gerichtshot pode rejeitar o recurso - através de Beschluss - se a ale-
gada questão de direito não contar com importância fundamental;
2) revisão admitida (Zulassungsrevision): nas hipóteses já referidas,
quando se tratou da apelação, em que o Oberlandesgericht, no acórdão
que aprecia o mérito, já se diz contra referido julgado cabe o recurso em
análise; (123).
3) revisão por rejeição de apelação (Revision wegen der Verneinung
der Zulãssigkeit der Berufung): nos casos de rejeição da apelação (sem
análise do mérito) pelo Oberlanclesgericht.
A revisão é um recurso ordinário e, como a apelação, é interposta
perante o Juízo ad quem - que, in casu é o Bundesgerichtshot no prazo
de um mês, contado da intimação do acórdão do Oberlandesgericht
(§ 552), devendo, também, ser instruída com traslado ou cópia autêntica
da decisão recorrida. Já no respeitante às razões de recurso (fundamen-
tação), o prazo é, igualmente, de um mês, mas, tal como ocorre na ape-
lação, pode ser prorrogado (lU).
Interposta a revisão, através de um dos advogados habilitados pe-
rante o Bundesgerichtshof, são avocados os autos.
Inexiste prazo para a resposta, o que não causa gravame ao recorri-
do, em primeiro lugar, porque, querendo, poderá responder à revisão
enquanto tal pronunciamento puder produzir efeitos, e, em segundo lugar,
em razão de inexistir revelia no âmbito revisional, em que se examinam,
como já visto, questões de direito.
(121) Mais de 60% dos casos de revisAo, no clver, conlêm alegação de erro de direito. com reflexos falicos.
(122) Entenda-se como lei toda norma de dirello, ou seja, nllo só lei no sentido lormal. como lambém.
por ex., as normas consuetudinériu. Faz-se mister. porém. para o cabimento da revisllo, o âmbito
fedaral da norma ou, pelo menos. que se espraie além da circunscrlçlO de um Oberlandesgericht.
(123) Cue.tOe. de valor patrimonial até 40.000 DM e de valor inestimável, em que se reconhece, em razão
da relevância da questlo de direito decidida elou pera o eslabelecimento da unidade de direito, a
admissibilidade da revisão. Quando tal se dê. o Bundesgerrchtshol nllo analise o cabimenlo da re-
vlslo, ficando, neste parllcular, jungido ao pronunciamento da 2. a instAncia.
(124) Conlorme lui inteirado, em vlsile que fiz ao Bundesgerichtshof em Karlsruhe, a prorrogação de prazo
para fundamenlaçllo é a regra, podendo-ae estimar a média em 4 meSes.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1981 133


Afora a hipótese da Zulassungsrevision, quando o Bundesgerichtshof
não mais examina a adm'ssibilidade ou não d3 revisão, o recorrido, em
regra, aguarda o pronunciamento preambular sobre o acolhimento do
recurso, para responder só naqueles casos em que o mesmo for recebido.
O procedimento da revisão segue, de mane:ra genérica, as mesmas
normas atinentes ao procedimento de H instância no Landgericht, com
uma audiência principal, respeitadas as exceções dos §§ 545 e seguintes
da ZPO, sendo de se salientar, como conseqüência dos lindes revisionais,
não poderem, normalmente, ser levantados fatos novos ln~,) e, de igual, ser
vedada a produção probatória.
Não há a figura do Einzelrichter, quer como preparador, quer como
ju iz singular.
Embora o Juízo revisional, como o da apelação, fique adstrito ao pe-
dido, podendo este, também, ser alterado nas hipóteses e até nas oportu-
nidades em que tal é consentido, há questões que devem ser analisadas
de ofício (von Amts wegen), como se dá, por exemplo, no respeitante aos
pressupostos processuais.
°Bundesgerlchtshof, nos casos em que o Oberlandesgericht não se
manifestou sobre o cabimento da revisão, como já visto, deverá, prelimi-
narmente, verif car se o recurso é admissível. Poderá, então, rejeitá-lo
(através de Beschluss, se a rejeição for pre\iminar, e de Urte", se tiver sido
realizada audiência). Tal não ocorrendo, o passo seguinte a verificar é
se a revisão se acha adequadamente fundamentada. Isto não acontecendo,
também se dará a rejeição, só que através de sentença final (Endurteil).
Desde que fundamentada com propriedade, a revisão será julgada pro-
cedente.
Nesta hipótese, o Bundesgerichtshof pode reformar o julgamento re-
corrido, outro proferindo em seu lugar. Em regra, porém, resulta anulada a
decisão atacada, devolvendo-se os autos ao juízo de 29 grau, para que
este reaprec\e a questão. Isto se taz porque, na maioria das vezes, é de
mister a coleta de provas, bem como a apreciação de matéria fática, o que
escapa aos lindes revisionais.
Cumpre mencionar ainda, embora sinteticamente, o conceito de "im-
portância fundamental da causa", ante as conseqüências que este tem nQ
campo da revisão.
Em príncípio, para um melhor entendimento, diga-se que o conceito
de "importância fundamental da causa" lembra, em muito, o de relevância
(Constituição Federal, art. 119, e Regimento do Supremo Tribunal Federal,
art. 308) (12 11 ).

(125) Permlte-so. porém, Serem carreados ao âmbito revisional, e.cercionalmen!e, falOS novoa que servem
como respaldo a uma alegação de direito e quando estes passaram a ter importância fundamenlal
com o advento de lei nova.
'~2t11 Ao semelhança acima noticIada é registrada por ARRUDA ALV1M, na note n. o 4 ao artigo "Admissi-
bilidade do Recurso a08 Tribunais AlemAes Superiores", de aulorla de HANS PflOTTING, publicado
na Revlauo de Processo, n. o 9, pags, 153 a 160. A propósito, ao referido artigo remeto o leitor. pois
o autor - que é professor asslslente lia Céledra do Prol. Dr. SCHWAB, com quem estagiei em
Erlangen - traia com multa propriedade da quesrao.

234 R. Int. legislo Bras/lia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


A importância fundamental deve dizer respeito a uma questão de
direito, a ser conhecida pelo Bundesgerichtshof (12i), matéria esta de rele-
vância, por ensejar dúvidas sérias a serem aclaradas, não só no interesse
das partes, como também no interesse púbrco, estabelecendo-se a uni-
dade do direito. A conceituação, porém, embora à primeira vista pareça
não ensejar maiores dificuldades, às vezes se apresenta extremamente
complexa, na análise de cada caso. A propósito, HANS PRüTTING (1~~)
chega a enumerar indicadores positivos e negativos para o reconhecimento,
ou não, da importância fundamental, tal a d:ficuldade de percepção.
Impõe-se referir, outrossim, que, pela revisão, se alcança, também, a
uniformização da jurisprudência, de sorte a evitar decisões divergentes
pejos senados, em matéria de interpretação de questões de direito. Neste
particular, desempenham papel relevante o Grande Senado para Questões
Cfveis (Grosser Senat für Zivilsachen) (1211) e os Grandes Senados Reuni-
dos (Vereinigte Grosse Senate) (1~iI).

XVI - Despesas processuais


As despesas processuais, na Alemanha, como já mencionado, são
muito superiores ao que se dispende, em média, com um processo cível,
no Brasil. Refiro-me à média, não só levando em conta o que normalmen-
te ocorre no curso dos processos, como tendo em vista a disparidade, no
que refere às custas propriamente ditas e taxas judiciárias, em cada
Estado de nossa Federação, enquanto não chega a anunciada e espe'ada
unificação, a ser tratada em lei federal.
Apenas para exemplificar, serão citadas duas hipóteses, para se veri-
ficar o caráter progressivo das custas e dos honorários advocatícios, o
que tem sido, inclusive, fator de redução do número de ações propostas,
principalmente de pequeno valor pecuniário, ressalvada a hipótese de o
interessado se achar coberto por seguro especffico (Rechtsschutzver-
sicherung), que passa a tomar corpo na Alemanha e já foi objeto de refe-
rência neste estudo, quando se tratou da conciliação.
Vamos aos exemplos:
1 - ação no valor de S01DM (aproximadamente Cr$ 32.000,00 - em
causas com interesse pecuniário de valor não superior a SOODM não há
aperação, como se viu):
a) honorários advocatícios:
SODM - quando da contratação e antes da propositura da
demanda (seria como que o preço da consulta);

(127) Confira-se lO nola n.O 122, refercnte ao vilipêndio à lei, como rCQuiSlto para a revISão.
(128) Trabalho citado.
(129) Hé, também, um Glande Senado para Queslóes Criminais (Grossar Senat fÜI Stralsachen).
(130) A unlfonnlzaçAo Jurisprudencial, no que pertlne à InterpretaçAo de questões de dileito pelos demais
Supremos Tribunais Federais (Oberslen Gerlch18hõfa das Bundes), tais como Bundesarbal18gerlcht,
BundesvalWaJlungsgerlcht. Bundessozialgelicht e o Bundestlnanzhol. é alcançada através do Senedo
Conjunto dos Supremos Tribunais Fedarais (Gameinsamer Senat der Obarsten Gerichtshõfa des Bun.
des), observado o preceituado na Lei da Contlole da Unidade da Jurisprudência dos Supremos Tri.
bunals Federais, de 19-6-68.

R. 'nt. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 235


50DM - pelo comparecimento à audiência preliminar, sem
coleta de provas (ex.: só esclarecimentos ou só debates);
SODM - pelo comparecimento à audiência em que se cole-
tam provas (Beweisaufnahme): esclarecimento de peritos, depoi-
mentos pessoais, inquirição de testemunhas etc.;
SOOM - se houver acordo (Vergleich), sendo de observar
que alcançada a avença só no final, a verba respectiva será de-
vida e somada às anteriores.
Em havendo apelação, os honorários advocatícios, para o procedi-
mento recursal, serão iguais ao. total dos honorários devidos na 1~ instân-
cia, mais 3/10 (três décimos), ou seja. no exemplo retro:
50 +50 +
50 (exclui-se a verba relativa ao acordo, pois se este foi
alcançado. não há, em princípio, interesse recursal) = 1S0+45 (=3/10
de 1S0) =19S0M (os honorários são devidos ao advogado que funcionar
na apelação, o qual, no cível, nem sempre é o mesmo que patrocinou o
interesse da parte em 1<:' iinstância, inclusive po-r imped+meoto legal, como
visto) .
Na hipótese de revisão, o advogado (não será o mesmo, pois no
Bundesgerichtshof, como mencionado, militam, apenas, profissionais pe-
rante ele habilitados e que não peticionam em outros Tribunais) perceberá
honorários iguais aos devidos pela apelação, ou seja, 1950M.
Acrescente-se que ainda são devidas as despesas pelos deslocamen-
tos do profissional, a fm de acompanhar atos processuais à razão de 40
Pfennige por quilômetro, e custo de pernoites, bem como 10% sobre os
honorários dev,idos, observado o teto de 300M, para cartas ex,pedidas,
telefonemas. telex etc., tenha ou não feito tais gastos, 6,5% de MehlWMts-
teuer (imposto pela prestação de serviço e que as partes pagam ao advo-
gado. É contado sobre os honorários deste no processo).
b) custas judiciais e outras despesas:
23DM - depósito inicial;
230M - quando da instrução (se houver);
230M - por ocasião da sentença.
Se houver acordo, não serão cobradas as custas da instrução (Beweis-
gebühr).
Em sendo necessária a produção de prova testemunhal, a parte deverá
depositar. com antecedência, o valor das despesas que a testemunha terá
com condução e o equivalente às horas de trabalho perdidas, computan-
do~se para tal, não só o tempo do depoimento, como, de igual, o do des-
locamento (131).
Sendo a testemunha funcionária do poder público só terá direito às
despesas com condução, mas estas não são pequenas, chegando, facil-
(131) Geselz über die En1schãdigung von Zeugen und Sschveratãndlgen (lei de Indenlzaçao a 1estemunhas
e peritos).

236 R. Inl. legisl. B.asília O. 19 n. 74 obr./jun. 1982


mente, a 300M. As horas são pagas à razão de 20M a 120M (Cr$ 130,00
a Cr$ 780,00), até o máximo de 10 horas diárias, e leva-se em conta o
rendimento bruto do testigo, fixando, porém, a lei, quantias precisas para
situações especiais. Ex.: uma dona-de-casa recebe 6DM por hora, fora a
condução.
Há que se acrescer, ainda, as despesas com intérpretes e peritos (de
200M a 50DM a hora de trabalho, de acordo com a capacidade técnica e,
no respeitante aos peritos, a maior ou menor dificuldade do exame).
Os peritos recebem o que lhes é devido, tão logo ultimada a perícia,
e os intérpretes e testemunhas, imediatamente após encerradas as respec-
tivas participações naaudiéncia (o próprio magistrado preenche, no ato,
uma guia e a entrega ao interessado, o qual se dirige à seção apropriada,
onde é prontamente reembolsado).
Em havendo apelação, mais 3/10 (23 23 23 = 69+ +
20,70 = +
89,70). Na hipótese de revisão, as custas serão iguais às da apelação.
2- ação no valor de 50.0000M (aproximadamente Cr$ 3.250.000,00):
a) honorários advocatícios:
1 .2350M - quando da contratação (aproximadamente
Cr$ 80.000,00);
1 .235DM - pelo comparecimento à audiência;
1 .235DM - pelo compareoimento à audiência em que se
coletam provas;
1.2350M - se houver acordo.
Em havendo apelação:
1.235 +
1. 235 +
1. 235 = 3. 705DM
3.705 +
3/10 = 4.816,50DM (cerca de Cr$ 310.000,00).
Na hipótese de revisão, quando admitida, conforme se viu, os hono-
rários advocatícios serão iguais aos devidos pela apelação. No caso em
exame, 4.816,50 DM.
b) custas processuais:
462 DM - depósito inicial (cerca de Cr$ 30.000,00);
462 DM - quando da instrução ;
462 DM - por ocasião da sentença.
Na hipótese de apelação:
462 +462 +
462 = 1.386 DM
1 .386 +
3/10 =
1 .801,80 DM (aproximadamente
Cr$ 117.000,00).
No caso de revisão, são devidas as mesmas custas da apelação (1S2).
(132) Valem as mesmas oblllOrvações referentes à produção de prova testemunhal, pericIal e emprego de
Intérprete, lançadas no exemplo anterior, sendo de aditar que. mesmo em 2.& InstAncla, por ocaslAo
do procedimento recursal da apelaçAo, com certa freqüência, hé colela probatÓria.

R. Inf. legisl. Brosília. a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 237


Analisados os do;s exemplos, chega-se à seguinte conclusão:
a) na primeira hipótese, a parte que perdesse a demanda e se tivesse
utilizado somente da apelação teria que dispender a importância de
848,70DM (mais ou menos Cr$ 55.000,00), correspondente aos honorários
advocatícios de seu patrono e do da parte contrária, mais as custas judi-
ciais, isto sem se falar em despesas com testemunhas, intérpretes, peritos
e imposto;
b) no segundo exemplo, utilizada, também, a revisão, e, de igual, sem
qualquer produção de provas, o vencido deverá desembolsar a quantia de
31 .665,60 DM (cerca de Cr$ 205.000,00).
Nas quantias supramencionadas não está incluída qualquer condena-
ção referente ao principal.
Evidentemente, com despesas processuais do vulto das referidas, não
se recorre ao Judiciário e deixam de se interpor apelações e revisões sem
uma boa probabilidade de vitória. Tal tem sido, como já comentado, freio
inibidor ao ajuizamento de demandas e à interposição de recursos, fazen~
do coro magistrados, advogados e processualistas, no respeitante ao acer-
to do posiCionamento alemão. Poderia restar, no entanto, uma dúvida, qual
seja: não se estaria como que impedindo o cidadão de recorrer ao Judi-
ciário? A resposta é negativa. De um lado, porque a maioria do povo ale-
mão está coberta por toda sorte de seguros e, de pouco tempo para cá,
por um específ.ico, ou seja, destinado a fazer frente a toda a despesa pro-
cessual que venha a ter o segurado, e de outro, porque a assistência ju-
diciária é uma realidade (reflexo da profunda preocupação do governo por
uma justiça social efetiva, que, diga-se de passagem, se constata a todo
momento e em todos os âmbitos).
Acrescente-se serem as custas processuais recolhidas ao Estado,
pois os auxiliares da Justiça são todos remunerados pelos cofres públicos.
Os notários, na Alemanha, têm situação funcional e estipendial que
varia de Estado para Estado. Assim, alguns são autênticos profissionais li-
berais - advogados notários -, outros são funcionários públicos, rece-
bendo, unicamente, vencimentos ou percebendo estes, em quantia infe-
rior, e custas, de acordo com a produção.

XVII - Assistência judiciária


Até dezembro de 1980, com base nos §§ 114 a 127 da ZPO alemã,
vigia o chamado Armenrecht (direito dos pobres), e, em função deste, a
parte deveria, preliminarmente, provar o seu estado de pobreza ou mise-
rabilidade, para merecer a assistência judiciária gratuita. A situação evo-
luiu e, em 19-1~81, entrou em vigor a Gesetz über dia Prozesskostenhilfe,
de 13-6-80, alterando os dispositivos antes citados, com o fundamento de
que constituía procedimento discriminatório exigir-se de algUém prova de
ser pobre. Passou-se, desde então, a falar em "ajuda de custas" e não
mais em "d ireito dos pobres", utilizando-se, inclusive, tabelas para se
aferir a necessidade de cada um.

238 R. Inf. legisl, Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982


A parte (inclusive pessoa ju rídica) que não puder arcar, total ou par-
cialmente, com as despesas do processo, requer o auxílio, explicitando os
seus encargos de família, suas posses, seus rendimentos e dívidas, expon-
do suointamente a ação a propor oua responder, dando suas razões e in-
dicando as provas (§ 117, ZPO). Havendo indícios de viablJidade da pre-
tensão - o que o juiz verificará de plano, após ouvida a parte contrária,
numa análise superficial e sem qualquer prejulgamento - , o interessado
obterá o auxílio, que cobrirá (no todo ou em parte) não só as custas judi·
ciais, como os honorários advocatícíos do profissional por ele indicado
ou simplesmente nomeado.
As únicas restrições que ouso fazer ao prOcedimento preparatório a
ser observado para obtenção da Prozesskostenhilte consistem em um te-
mor, no pertinente à referida análise superficíal do alegado direito do
pretendente ao benefício, pois, se o magistrado não tiver cU'idado, poderá
estar prejulgando, e, de igual, num abuso das partes que ao invés de con-
sultarem um advogado, previamente, de plano recorrerão à Justiça, asso-
berbando-a, para obterem uma espécie de diagnóstico preliminar sobre a
pretensão, valendo frisar que, mesmo não alcançando o colimado auxílío,
nenhum prejuízo sofrerão, pois não há custas no procedimento da ass:s-
tência judic:ária.
Urge, a propósito de assistência judiciária, lembrar que, em nosso
Pais, ela deveria ser mais efetiva e, para tal, carecemos não só de diplo-
ma legal atualizado, observado o nosso padrão de vida, mas, acima de
tudo, que os advogados sejam efetivamente remunerados pelo seu tra-
balho, pois a situação hoje vigente é injusta para com o pro~issional libe-
raI e, às vezes - poucas, diga-se de passagem - para com a própria
parte, que acaba não tendo o seu direito defendido de maneira apro-
priada.
O advogado do beneficiário perceberá o que, normalmente, percebe-
ria na representação de um cliente não assistido. Julgada a causa, o
nomeado, se aquele a quem assiste perder a demanda, receberá o
que lhe é devidO da tesouraria do Juizo ou Tribunal, e, na eventualidade
de sair o beneficiário vencedor, cobrará da p.arte contrária. Poderá, tam·
bém, na hipótese de vitória, receber seus honorários do Estado, voJtando-
se este contra o vencido, para o ressarcimento. Já no caso de derrota do
beneficiado, os honorários do advogado do vencedor nào sào pagos pelo
°
Estado, que configura, a meu ver, tratamento injusto, por desigual.
Por derradeiro, mencione-se que, se houver alteração na situação
financeira do assistido (enriquecimento, herança etc.), mesmo após findo
o processo, o Estado tem o direito de cobrar o que com o mesmo dis-
pendeu.

XVIII - Conclusão
A finalidade deste estudo, como já referi·do em seu preâmbulo, con-
siste em fornecer uma idéia sobre a organização judiciária alemã, bem
como a respeito do funcionamento da Justiça, no âmbito do direito privado.

R. 'nf. legi.l. Brosília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 239


Os temas tratados foram escolhidos, não apenas colimando propiciar
um quadro geral, mas, também, destacadas certas peculiaridades, buscan-
do soluções e idéias novas a auxiliarem a resolver alguns de nossos pro-
blemas, em especial, a morosidade na prestação jurisdicional. Sempre se
teve presente, porém, que a pura importação de soluções alienígenas não
satisfaz, sabido que um diploma legal se destina a determinado povo e,
embora excelente para este, pode não ser apropriado, em seu todo ou
parcialmente, para outro, mercê das divergências de costume e de com-
portamento.
Foi-me grato, na experiência, testemunhar, no curso de reuniões em
que se procurou estabelecer um paralelo entre o nosso processo civil e o
alemão, os comentários elogiosos à lei patrIcia, seguidos, porém, de illda-
gações revestidas de certa perplexidade, pois não se conseguia com-
preender como, a despeito de um bom diploma legal, os resultados se
apresentam, em regra, negativos. Tal perplexidade, no entanto, bem de-
monstra que o mal maior a afligir o Poder Judiciário brasileiro reside, a
par da burocracia, na deficiente ·infra-estrutura material e pessoal, em
especial na 1? instância. A propósito, pode-se dizer, quando, novamente
se trata da agilização da nossa Justiça, urgir a reforma da reforme, dis-
pensando-se a atenção necessária à 1~ instância, que, acercando-se do
ano 2.000, vive com instru mentos do passado.
O estágio possibilitou, de maneira insofismáve', verificar como é ca-
paz de se apresentar célere a prestação jurisdicional, quando se propiciam
condições a tal.
Cabe-me, por derradeiro, como fruto do observado em Juizos e Tri-
bunais alemães, do discutido e, de outro lado, do constatado em anos de
judicatura e de magistério superior - apesar de se pretender deixar as
ilações àqueles que se interessarem por este estuda - sugerir para um
aceleramento na prestação jurisdicional brasileira:
1 - Dotar o Judiciário, em especial a 1~ instAncia, de adequada infra-
estrutura pessoal e material, fazendo·se mister uma conscientização na-
cional da grave situação atual, obtendo-se prontas soluções. ~ imprescin-
dível, no particular, a compreensão, sem parcimônia, dos Poderes Exe-
cu.tivo e Legislativo da União e dos Estados no atendimento aos reclamos
do Judiciário, inclusive destinando a este, no orçamento, um percentual
mínimo (na Alemanha, a porcentagem oscila entre 3 a 4% do orçamento
do Estado). Melhor seria que o quantum fosse estabelecido constitucional-
mente, garantindo-se plena independência ao Poder Judiciário.
2 - Determinarem a Lei Orgânica da Magistratura Nacional e as Or-
ganizações Judiciárias dos Estados critérios estatísticos, de tal sorte a
serem imediatamente providos cargos de magistrados e correlatos, ante-
cipadamente criados, tão logo atingidos 05 índices de feitos pré-fixados
como máximos para um julgador.
3 - Levar a efeito a oficíalização dos cartórios (podendo-se abr·ir
exceção com os tabelionatos, se disciplinado convenientemente o notaria-
do), de maneira racional, que possibilite aos serventuários eaux·iliares re-

240 R. Inl. legisl. Brosília a. 19 n. 74 ah~./jun. 1982


muneração compatível, e, ao Estado, arrecadação a ser destinada, como
reforço, ao aparelhamento adequado do Judiciário.
4 - Unificar a taxa judiciária e as custas processuais, bem como al-
terar a Lei de Assistência Judiciária, tornando-se efetiva e assumindo o
Estado o papel que lhe compete.
S - Criar Tribunais para julgamentos de pequenas causas, nas Ca-
pitais de Estado e Comarcas de maior expressão.
6 - Aumentar o número de Tribunais de Alçada e de Tribunais de
Justiça, nos Estados de expressivo movimento forense, sediando-os em
Comarcas do interior.
7 - Pr,imar pela especialização, máxime na 2~ instânc;'a, estabelecen-
do-se a competência das Câmaras pela natureza da causa.
8 - Criar Câmaras para trato de questões comerciais e imobiliárias,
nelas tendo assento juízes honorários.
9 - Criar cargo semelhante ao do "administrador judicial" (Rechtsp-
fleger) alemão, retirando do magistrado tarefas que podem ser delegadas.
10 - Dar maior atenção à formação do bacharel em direi,to, apuran-
do-se, em especial, o estágio profissional em Juízos e Tribunais, se possí-
vel, com a real supervisão de magistrados e remuneração ao estagiário.
11 - Tornar efetivos os cursos de preparação e aperfeiçoamento a
magistrados.
12 - Corrigir os defeitos do procedimento sumaríssimo, principal-
mente as causas que determinam o adiamento das audiências, com esta-
belec;mento de um pré-procedimento.
13 - Criar procedimento semelhante ao monitório.
14 - Utilizar, para citações, notificações e 'intimações, o Correio, evi-
tando-se, porém, manobras procrastinat6rias, estabelecelldo-se, em prin-
cípio, a valid·ade do ato, se recebida a correspondência por pessoa da
família ou preposto do destin«rtário.
15 - Abolir os embargos infringentes, na 2~instãncia.
16 - Reduzir as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento.
17 - Condicionar a apelação - em matéria de direito disponível - à
alegação de gravame superior a determinado valor patrimonial, admitindo-
se, para sentenças não apeláveis, o reexame na H instância, quer por juiz
singular, quer por um colegiado formado por Magistrados da mesma Co-
marca ou secção Judiciária.
18 - Adotar, nas audiências e sessões, sistema de gravação ou de
taq u ig ratia.
19 - Utilizar impressos nas comunicações dos atos processuais a,
bem assim, em despachos, decisões e sentenças que tal possibilitem.
20 - ConScientizar os jurisdicionados, em especial a indústria e o
comércio, das vantagens do recurso à arbitragem.

R. Inf. legi.1. Bra.ília a. 19 n. 74 abr./jun_ 1982 241


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242 R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 19B2


Realidade jurídica atual
da empresa pública brasileira
VERA GALvÃo
Professora da Faculdade Cândido Mendes

SUMARIO
1 - órgãos da Administração Indireta
2 - Conceituação legal
3 - Análise dos conceitos legais
4 - Empresas públicas representativas
5 - Proposta de classificação atual das empresas públicas
6 - Ubiquação da empresa pública no sistema jurídico
7- Empresa pública: entidade regida pelo direito civil
ou comercial?
8 - A Lei das Sociedades Anônimas e a empresa pública
9- Derrogação da Lei das SIA no regime da empresa
pública
10 - Outras restrições à autonomia administrativa das
empresas públicas
11 - A solução de direito comparado: necessidade de um
estatuto para a empresa pública

1 - órgãos da Administração Indireta

o mesmo que a diretoria representa para as sociedades comerciais


e também para as não comerciais de fins lucrativos ou não, o "G0-
verno" representa para o "Estado". O Governo, pois, administra o Es~
tado, e, no âmbito desse trabalho de administração, exerce atividades
as mais diferentes, as quais nem sempre lhe são próprias, chegando até
mesmo a criar, em certos casos, a figura do "Estado comerciante".
Muitas vezes, exerce essas atividades de forma direta através de
suas próprias repartições. De outras, o exercício é feito de forma indi-
reta, isto é, através de entes ideais ligados ao Governo, mas dotados
de personalidade juridica própria, de direito público ou privado.

R. lnf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 243


No âmbito federal, o Decreto-Lei nl? 200, de 25-2~67, com as altera-
ções introduzidas pelo Decreto·Lei nl? 900, de 29-9-69, disciplinou a maté-
ria, enumerando e até mesmo conceituando os entes ideais que compõem
a administração indireta.
O art. 4Q dispõe o seguinte:
"A Administração Federal compreende:
I - a Administração Direta, que se constitui dos serviços
integrados na estrutura administrativa da Presidência da Re-
pública e dos Ministérios;
II - a Administração Indireta, que compreende as seguin-
tes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica
própria:
a) autarquias;
b) empresas públicas;
c) sociedades de economia mista.
§ 1Q - A13 entidades compreendidas na Administração In-
direta consideram-se vinculadas ao Ministério em cuja área de
competência estiver enquadrada sua principal atividade.
§ 2q - Equiparam-se às empresas públicas, para os efeitos
desta Lei, as fundações instituídas em virtude de lei federal e de
cujos recursos participe a União, quaisquer que sejam suas fi-
nalidades."
Note-se: o § 2Q, acima, foi indiretamente revogado pelo art. 3Q do
Decreto-Lei nQ 900, que dispõe:
"Não constituem entidades da Administração Indireta as
fundações instituídas em virtude de lei federal, aplicando-se-
lhes, entretanto, quando recebam subvenções ou transferências
à conta do orçamento da União, a supervisão ministerial de que
tratam os arts. 19 e 26 d.o Decreto-Lei n9 200, de 25-2-67."

2 - Conceituação legal
Quanto à conceituação, temos o art. 59 do Decreto-Lei n9 200, com
as alterações do Decreto-Lei nQ 900, que estabelece:
"Para os fins deste Decreto-Lei, considera-se:
I - autarquia: o serviço autônomo, criado por lei, com
personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para exe-
cutar atividades típicas da administração pública, que requei-
ram, para .seu melhor funcionamento, gestão administrativa e
financeira descentralizada;
II - empresa pública: a entidade dotada de personalida-
de jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital

244 R. Inf. legilt. 8Rlília a. 19 n. 14 abr./)UII. "82


exclusivo da União, criada por lei para a exploração de ativida-
de econômica que o Governo seja levado a exercer por força de
contingência ou de conveniência administrativa, podendo reves-
tir-se de qualquer das formas admitida.s em direito;
III - sociedade de economia·mista: a entidade dotada de
personalidade jurídica de direito privado, criad.a por lei para a
exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade
anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maio-
fia à União ou a entid.ade da Administração Indireta."
O Decreto-Lei nQ 900, em seu art. 59, estabelece mais o seguinte:
"Desde que a maioria do capital votante permaneça de pro-
priedade da União, será admitida, no capital da empresa pú-
blica (art. 59, inc. II, do Decreto-Lei nQ 200, de 25-2-67), a parti-
cipação de outras pessoas jurídicas de direito público interno,
bem como de entidades d.a Administração Indireta da União, dos
Estados, Distrito Federal e Municípios."
3 - Análise dos conceitos legais
Analisaremos, brevemente, os três conceitos que os Decretos-Leis nú-
meros 200 e 900 nos deram, com referência às entidades que compõem a
Administração Indireta, a saber: autarquias, empresas públicas e socie-
dades d.e economia mista.
A sociedade de economia mista é a mais fácil de ser compreendida.
Trata-se, substancialmente, de comum sociedade anônima que, como
qualquer outra, está sujeita às normas e aos princípios que regem a es-
pécie. Portanto: a denominação d.eve conter as palavras "sociedade anô-
nima" ou "companhia"; o capital deve ser dividid.o em ações; os acionis-
tas devem ser dois ou mais; deve ter diretoria e conselho fiscal; deve rea-
lizar assembléias ordinárias e extraordinárias; deve arquivar no Regis-
tro do Comércio seus atos constitutivos e as atas de suas assembléias;
deve ter os livros regulamentares; e assim por diante. A única diferença,
com relação às demais sociedades anônimas, é a de que na sociedade de
economia mista ocorre a conjugação de recursos públicos e privados, uma
vez que são admitidas, também na qualidade d.e acionistas, pessoas fisi-
cas e jurídicas de direito privado, estas últimas, porém, com participação
minoritária, a fim de que a sociedade possa ser enquadrada no Decreto-
Lei nQ 200. Exemplos: "Petróleo Bra:sileiJro S/A - PETROBRAS"; "Banco
do Brasil 51 A", no âmbito federal; "CESP - Centrais Elétricas de São
Paulo S/A", no Estado de São Paulo.
A autarquia também tem conceituação fácil de ser compreendida.
Trata-se, fundamentalmente, de "repartição" pública autônoma, isto é,
que se governa sozinha, não deixando, porém, de pertencer inteiramente
ao Governo que a constituiu. Tanto assim que a personalidade própria,
de que ela é dotada, é de direito público.
Note-se que estamos usando a palavra "repartição" em seu sentido
mais amplo, como parte, grande ou pequena, do sistema administrativo

R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 obr.jjun. 1982 245


do Estado. A título de exemplo, podemos mencionar as próprias Juntas
Comerciais, as quais, na qualidade de prestadoras de determinado servi-
ço público - o registro do comércio -, nasceram como repartições co-
muns e que, cada vez mais, estão sendo agora transformadas em autar-
quias. Como autarquia, a Junta Comercial continuará sendo, na prática,
uma repartição pública. Poderá, porém, resolver sozinha seus problemas
internos, sem interferências, uma vez que, em tais casos, o Governo res-
pectivo se limita, em linha geral, a nomear os ocupantes dos cargos de
direção.
Chegamos agora aJ ponto crucial da questão: a exata compreensão
do conceito que o leglslador nos deu da entidade administrativa indireta
que, de caso pensado, deixamos por último. Afinal, o que é realmente
uma "empresa pública"? Como distingui-la de outras entidades? Onde
enquadrá-la? Como classificá-la?
Antes de intentarmos respostas às cruciais indagações acima, cum-
pre, em rápida pesquisa, inventariar as opções assumidas pelo legisla-
dor para a regência de algumas das mais interessantes empresas públi-
blicas, sob o ponto de vista jurídico.

4 - Empresas públicas representativas


Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT)
No Decreto-Lei n9 509, de 20-3·69 (com as alterações introduzidas
pelo Decreto-Lei n9 538, de 17-4-69), encontramos os seguintes disposi-
tivos:
"Art. 4Q - Os Estatutos da ECT, que serão eJq)edidos por
decreto, estabelecerão a organização, atribuições e funciona-
mento dos órgãos que compõem sua estrutura básica."
"Art. 69 - O capital inicial da ECT será constituído inte-
gralmente pela União, na forma deste Decreto-Lei ( ... )
§ 49 - Poderão vir a participar dos futuros aumentos do
capital outras pes-soas jurídicas de direito público interno, bem
como entidades integrantes da administração federal indireta."
"Art. 11 - O regime jurídico do pessoal da ECT será o da
Consolidação das Leis do Trabalh::>, aprovada pelo Decreto-Lei
nQ 5.452, de 1Q-5-1943."

Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE) (*)


Na Lei nQ 5.662, de 21-6-71, encontramos os seguintes dispositivos:
"Art. 1Q - O Banco Nacional do Desenvolvimento Econô-
mico (BNDE), autarquia federal criada pela Lei nQ 1.628, de
(.) NR - o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) passa a deno-
minar-se Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e SOcial (BNDES) , f1cando
vinculado administrativamente à SEPLAN (Decreto-Lel n'l 1.940, de 25-5-82 - art. 59).
O BNDE fora vinculado ao Ministério da IndUstria e do Comércio, por força do Decreto
nO 83.3M, de 11-4-79.

246 R. Inf. legisl. BrasíliCl a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


20-6-52, fica enquadrado, nos termos e para os fins do § 20 do
art. 59 do Decreto-Lei nQ 200, de 25-2-67, na categoria de empre-
sa pública, dotada de personalidade jurídica de direito privado
e patrimônio próprio, com a denominação de Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico (BNDE) e vinculação ao Minis-
tério do Planejamento e Coordenação Geral, nos termos do art.
189 do Decreto-Lei nQ 200, de 25-2-67.
Parágrafo único - O capital inicial da empresa pública
Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE), divi-
dido em ações do valor, cada uma de Cr$ 10.000,00 (dez mil cru-
zeiros), pertence na sua totalidade à União Federal e é consti-
tuído pelo valor, na data desta Lei, do ativo líquido na autarquia
extinta, podendo ser aumentado através da reinversão de lucros
e de outros recursos que, na forma da legislação em vigor, a
União destinar a esse fim.
Art. 29 - Os dispositivos legais vigentes ou parcialmente
modificados da Lei nQ 1.628, d.e 20-6-52, e da Lei nQ 2.973, de
26-11-56, constituem, no seu conjunto, o Estatuto pelo qual se
rege a empresa pública Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico (BNDE), regulando os fins da empresa e a sua
estrutura administrativa, bem como os seus órgãos de direção
e de controle.
Parágrafo único - As alterações do Estatuto referido
neste artigo, necessárias ao funcionamento da empresa, serão
feitas, posteriormente à data desta Lei, através de decreto do
Presidente da República, que será arquivado no Registro do
Comércio competente."
"Art. 10 - A Agência Especial de Financiamento Indus-
trial - FINAME, autarquia federal criada pelo Decreto-Lei nQ
45, de 18-11-66, em cujo texto ficaram incorporadas, como parte
integrante, as disposições do Decreto nQ 59.170, de 2-9-66, é
também enquadrada, nos termos e para fins do § 2Q do art. 59
do Decreto-Lei nQ 200, de 25-2-67, na categoria de empresa pú-
blica, mantida a mesma denominação atual, com personalidade
jurídica de direito privado, patrimônio próprio e vinculação,
através do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, ao
MinÍ3tério do Planejamento e Coordenação Geral, nos termos do
art. 189 do Decreto-Lei nQ 200, de 25-2-67.
§ 1Q - O Estatuto da empresa pública de que trata este
artigo é o conjunto dos dispositivos, que forem aplicáveis, do
Decreto n Q 59.170, de 2-9-66, e do Decreto-Lei nQ 45, de
18-11-66, os quais regularão os fins da empresa e a sua estru-
tura administrativa, bem como os seus órgãos de direção e de
controle, podendo as alterações subseqüentes ser feitas por de-
creto do Presidente da República, arquivadas no Registro do
Comércio competente.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 247


§ 29 - O capital inicial da empresa pública criada por
este artigo, para suceder à Agência Especial de Financiamento
industrial - FINAME, é constituído pelo valor do ativo líqui-
do da autarquia extinta, apurado na data desta Lei, pertencen-
te, esse capital, na sua totalidade, à empresa pública, de pro-
priedade exclusiva da União, Banco Nacional do Desenvolvi-
mento Econômico (BNDE), sendo divldido em ações nomina-
tivas do valor, cada uma, de Cr$ 10,00 (dez cruzeiros) .
§ 30 - As ações da empresa pública Agência Especial de
Financiamento Industrial - FINAME, só poderão pertencer à
União ou a entidade da Administração Indireta.
§ 4Q - O regime jurídico do pessoal a serviço da empre-
sa pública de que trata este artigo é o do empregado sujeito
à legislação vigente para as relações de emprego privado."

Rede Ferroviária Federal SIA (RFFSA)


Na Lei n9 3.115, de 16-3-1957, encontramos os seguintes d.isposl-
tivos:
"Art. 10 - Fica o Poder Executivo autorizado a consti-
tuir, nos termos da presente Lei, uma sociedade por ações sob
a denominação de Rede Ferroviária Federal Sociedade Anôni-
ma (RFFSA), a qual serão incorporadas as estradas de ferro
de propriedade da União e por ela administradas, assim como
as que venham a ser transferidas ao domínio da União, ou
cujos contratos de arrendamento sejam encampados ou res-
cindidos."
"Art. 4Q - A União subscreverá a totalidade das ações
que constituirão o capital inicial da RFFSA ( ... )
§ 2Q - O Governo poderá desfazer-se das ações de sua
propriedade que excederem 51 % (cinqüenta e um por cento)
d.o capital da RFFSA, vendendo-as, por valor não inferior ao no-
minal, às pessoas jurídicas de direito público interno, às so-
ciedades de economia mista constantes do art. 6Q, n. ca I e lI,
e às pessoas físicas e jurídicas de direito privado, brasileiras,
neste caso até o máximo de 20% (vinte por cento) do capital
social."

Empresa Brasileira de Radiodifusão (RADIOBRAS)


Enfim, na Lei nl? 6.301, de 15 de d.ezembro de 1975, o art. 1Q au-
toriza:
"Art. 1Q - Fica a União autorizada a con.stitulr, na for-
ma desta Lei e do disposto no inciso II do art. 5Q do Decreto-
Lei nQ 200, de 25 de fevereiro de 1967, alterado pelo Decreto-Lei
nQ 900, de 29 d.e setembro de 1969, uma empresa pública que se

248 R. Inf. legisl. 8rosília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


denominará Empresa Brasileira de Radiodifusão e usará a
sigla ou abreviatura de RADIOBRAS, vinculada ao Ministério
das Comunicações, com o seguinte objetivo:
.......... , .
"Art. 39 - A RADlüBRAS será organizada sob a forma
de sociedade por ações e terá seu capital representado p~r ações
nominativas até pelo menos 51 % (cinqüenta e um por cento)
do seu valor pela União.
§ 19 - Será admitida no restante do capital da
RADIOBRAS a participação dos Estados, do Distrito Federal,
dos Territórios e d.os Municípios.
"
"Art. 5Q - O Ministro das Comunicações designará o
representante da União nos atos constitutivos da sociedade."
"Art. 79 - Observadas as ressalvas desta Lei e da legis-
lação de telecomunicações, a RADIOBRAS será regida pela le-
gislação referente às sociedades por ações, não se lhe aplican-
do os requisitos do § 59 do art. 12 do Decreto-Lei nQ 236, de
28 de fevereiro de 1967."

5 - Proposta de classificação atual das empresas públicas


Pelo que se c.epreende do DecretcrLei n9 200 e demais textos le-
gislativos citados até aqui, as empresas públicas brasileiras, apesar de
oferecerem à consideração dos estudiosos alguns elementos caracterís-
ticos constantes, não se apresentam dotadas de forma jurídica única,
rígida, com contornos bem definidos. Por isso é que devemos distin-
guir, entre elas, as seguintes espécies e subespécies:
1) empresa pública típica que se apresenta como sociedade anô-
nima regular (sociedade pluripessoal). tendo, porém, como acionistas
apenas pess<las jurídicas de direito público interno, as quais pod.em ser
da mesma esfera, como, por exemplo, o Estado mais autarquias esta-
duais - foi o modelo .seguido pela Caixa Econômica do Estado de São
Paulo SI A - CEESP, ou de esferas diferentes, como, por exemplo, a
União, mais Estados, mais Municípios, mais autarquias etc.
2) empresa pública atípica que ostenta a forma de sociedade anô-
nima, tendo, porém, apenas um acionista (sociedade unipessoal) , como
é o caso, por exemplo, da Empresa Brasileira de Radiodifusão -
RADIOBRAS, e da Rede Ferroviária Federal S/A, cujo capital per-
tence inteiramente à União, até agora, sua única acionista.
3) empresa pública extravagante, que, fugindo à letra do Decreto-
Lei nQ 200, não assume "qualquer das formas (de sociedade) admitidas
em direito", como é o caso, por exemplo, da ECT, em que o legislador,
desprezando a Reforma Administrativa, criou a empresa sem subordi.-
ná-la a modelo preexistente - restrita que está, sua regência, à pró-
pria lei de criação da pessoa jurídica.

R. Inf. leeill. Broaílio o. 19 n. 74 obr./julI. 1982 249


6 - Ubiquação da empresa pública no sistema juridico
Como fazer o enquadramento jurídico da empresa pública? Em pri-
meiro lugar, devemos descobrir a qual dos grandes ramos do direito
ela pertence. O Decreto-Lei n9 200, de 25-2-67, nos diz claramente que
é o do direito privado (art. 50, n9 lI: "empresa pública: a entidade dotada
de personalidade jurídica de direito privado ... "). Tanto assim que os
empregados estão sujeitos às leis trabalhistas comuns (Decreto-Lei nú-
mero 509, de 20-3-69, art. 11: "O regime jurídico do pessoal da ECT será
o da Consolidação das Leis do Trabalho ... ". Lei nQ 5.662, de 21-6-71,
art. 10, ~ 49: "O regime jurídico do pessoal a serviço da empresa pública
de que trata este artigo é o do empregado sujeito à legislação vigente
para as relações de emprego privado").
PAULINO JACQUES, em trabalho publicado na Revista de Informação
Legislativa n9 28, de 1970 - "A Administração Indireta no Estado Bra-
sileiro (Crítica Científica) ", já àquela época demonstrava ser intran-
sigente defensor da publicização, hoje admitida por todos os adminis-
trativistas brasileiros, descaracterizando a personalidade jurídica de di-
reito privada d.as empresas públicas, e aconselhando, inclusive, para dar
cobro a antinomia existente, a conveniência de um estatuto da empresa
pública: <la verdade é que o fato de deverem as "empresas públicas" ser
c~'iadas por lei, com o capital exclusivo da Uni.ão ou de suas entidades
de Administração Indireta, e ficarem adstritas à "supervisão ministe-
rial" ampla e profunda, que vai desde a "indicação ou nomeação pelo
Ministro de Estado dos dirigentes da entidade" até a "intervenção por
motivo de interesse público" (art. 26, parágrafo único, alíneas a usque
i, Decreto-Lei nQ 200, citado) - só por ficção, ou excessivo pragmatis-
mo, será privada a sua personalidad.e jurídica. Realmente, a sua origem
e o patrimônio estatais, bem assim a vigilância e a quase tutela que o
Estado exerce sobre essas empresas, levam a dotá-las de personalidade
pública, segundo as doutrinas examinadas nos caps. IH (a "origem aa
instituição") e VIII (a "vigilância e a tutela"). O pragmatismo na Ad-
ministração Pública, fruto de exagerado tecnologismo. está afastando
os f:erviços públicos. cada vez mais. de sua verdadeira fonte de legitimi.
dade, que é a eidética jurídica".
Sublinhou, tam·bém, as modificações que o Decreto-Lei nQ 900, de
1969, trouxe ao texto do Decreto-Lei nQ 200, de 1967, nelas entrevendo a
tendência d.e publicização: "as alterações feitas, embora não tenham mo-
dificado a orientação pragmática, vieram reforçar a nossa tese da perso-
nalidade pública dessas entidades, porque o seu capital é "exclusivo da
União", e jamais "de suas entidad.es de Administração Indireta", como
admitia o Decreto-Lei nQ 200 citado, e a exploração de "atividade eco-
nômica", tão·somente, e nunca de "natureza empresarial", antes fa-
cultada" .
Para dar maior relevo a sua posição, PAULINO JACQUES, depois de
citar alguns exemplos de empresas públicas, inclusive com personali-
dade jurídica de direito público, como a EMBRATUR - Empresa Bra-
sileira de Turismo (Decreto-Lei nQ 55, de 18-11-66), faz referência es-

250 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


pecial à Caixa Econômica Federal (CEF) , concluindo: "sendo tudo
estatal nessa entidade - origem. fim, organização e função, inclusive
a vigilância e a tutela, com capital pertencente à União - , já agora,
não por simples ficção ou excessivo pragmatismo, pode ser considerada
"pessoa privada", porém, por gritante aberratio juris, senão verdadeira
heresia jurídica",
WALDEMAR FERREIRA, em mordaz observação, declara que "a socie-
dade de economia mista, o que vale dizer, também, a empresa pública,
de pessoa de direito privado, só tem o gesto e o peito, No mais e por
tudo tem o ânimo e a alma, se é que tem isso, de pessoas jurídicas de
direito público interno",
Acentuou A. B. COTRIM NETO, ilustre Professor da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em d:versas oportu·
nidades, nas aulas que ministrou no curso de pás-graduação, a natureza
pública das empresas públicas, chamando a atenção para o § 2<:1 do art.
170 da Constituição Federal, que declara:
"§ 29 - Na exploração, pelo Estado, da atividade econô-
mica, as empresas públicas e as sociedades de economia mista
reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, in-
clusive quanto ao direito do trabalho e ao das obrigações" (gri-
fas nossos),
Na realidade, a empresa públka tão-somente rege-se pelas normas
de direito privado, o que não lhe tira o caráter público.

7 - Empresa pública: entidade regida pelo direito civil ou comercial?


No âmb'to de) direito privado, devemos distinguir o direito civil do
comercial. De lege terenda, a empresa pública poderia ser regida por
disposiLvos da lei civil? Vejamos. Não por uma "associação", uma vez
que é criada (diz o Decreto-Lei nQ 200) "para a exploração de atividade
econômica", "Sociedade civil" de fins lucrativos também não, d.evido ao
fato de a empresa pública jamais ter como objeto um fim meramente
civil, Por outro lado, não por uma "fundação", uma vez que esta, ao
menos aparentemente, não tem proprietário, ao passo que a empresa
pública o tem. Tampouco uma "cooperativa", pelo simples fato de que
esta é um tipo especial de sociedade de pessoas, sem fins lucrativas.
Temos, portanto, a desejada conclusão: a empresa pública não
pode ser regida por nenhum dos esquemas legais vigentes no âmbito do
direito civil.
A empresa pública é sem dúvida urna entidade comercial, uma vez
que exerce atividade de intermediação habitual, com fito econômico.
Há, porém, um problema: em qual dos esquemas legais vigentes
no âmbito do direito comercial pod.e ser enquadrada?
"Firma individual" não, uma vez que mesmo quando aparece como
pertencendo a uma só pessoa, essa pessoa é sempre jurídica, ao passo

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun.1982 251


que a firma individual, de acordo com os atuais princípios da legisla~
ção brasileira, só pode ter pessoa física como titular.
Devemos excluir, também, as antigas sociedades de pessoas, de que
ainda trata o Código Comercial Bra.~ileiro de 1850. É que na empresa
pública não se pode falar em affectio societatis intuitu personae.
A própria sociedade por quotas de responsabilidade limitada deve
ser excluída, uma vez que a empresa pública, para que pudesse por ela
ser disciplinada, deveria ser constituída de acordo com as normas cons~
tantes do Decreto nQ 3.708, de 10-1-1919; ademais, cremos, na limitada
prevalecem as pessoas.
Embora o Decreto-Lei nQ 200 tenha aberto o leque para qualquer
das formas em direito admitidas, na realidade o legislador ou não optou
por nenhuma delas (vide acima empresa pública extravagante) ou se
fixou, sempre, na sociedade anônima. Assim é que as empresas públi-
cas, de regra, apresentam capital dividido em ações de igual valor, com
a expressão "sociedade anônima" ou "companhia", completando sua
denominação com outros detalhes igualmente significativos. Não é raro,
inclusive, ostentar legitimamente a forma de sociedade anônima, por
ter, além das demais características, também dois ou mais acionistas.
Aliás, enquanto a legislação brasileira não sofrer modificações substan-
ciais, este último é o modelo que mais ou menos se aproxima do adequa-
do para a constituição de empresas públicas, inclusive na esfera federal.

8 - A Lei das Sociedades Anônimas e a empresa pública


A esta altura, coloca-se outra indagação da maior importância. Ao
escolher a forma de sociedade anônima, tem o legislador respeitado as
características formais deste tipo societário?
A sociedade se forma pela manifestação da vontade de duas ou mais
pessoas que se propõem unir os seus esforços e cabedais para a conse-
cução de um fim comum. Os juristas franceses deixam entrever o duplo
significado d.a palavra sociedade, pois tanto pode referir-se ao ato cons-
titutivo que lhe dá substância, como à pessoa jurldica, que lhe dá condi-
ção de sujeito de direito. A principio, como observa EscARRA,predomina-
va o aspecto contratual do ato constitutivo, ao paaso que hoje prevalece
o d.a pessoa jurídica que dele surge.
Hoje convém acentuar que não é mais incontroverso o princípio de
que a sociedade deve constituir-se necessariamente no mínimo de duas
pessoas. Teorias modernas, que se refletem em legislações positivas, como
a do Principado de Liechtenstein, ou de legislações de vários Estados nor-
te-americanos, introduzidas em outras legislações, começam a admitir
a possibilidade de sociedades empresariais, isto é, sociedades constituí-
das de um sócio apenas. No Brasil, por exemplo, leis especiais têm criado
sociedades desse tipo, como a NOVACAP S/A, o BNH, e outras já cita-
das no princípio deste trabalho, aspecto tão mais curioso quando o fa-
zem sob a forma de sociedades por ações.

252 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr'/jun. 1982


o Decreto-Lei nl? 2.627, de 26-9-40, em seu art. 38, estabelecia clara
e expressamente o seguinte: "Nenhuma sociedade anônima p::>derá cons-
tituir-se sem que se verifiquem, preUminarmente, os seguintes requi-
sitos: 1Q) a subscrição, pelo menos por sete pessoas, de todo o capital
social"; e no art. 137: "A sociedade anônima ou companhia entra em
liqüidação: ( ... ) d) pela redução do número de acionistas a menos de
sete, verificada em assembléia geral ordinária, e caso esse mínimo não
seja preenchido até a seguinte assembléia geral ordinária".
A Lei nQ 6.404, de 15-12-76, modificou a regra, ao estabelecer, em
seu art. 80, o seguinte: "A constituição da companhia depende do cum-
primento dos seguintes requisitos preliminares: I - subscrição, pelo
menos por duas pessoas, de todas as ações em que se divide o capital so-
cial fixado no estatuto." E no art. 206: "Dissolve~se a companhia: I -
de pleno direito: ( ... ) d) pela existência de 1 (um) único acionista,
verificada em assembléia geral ordinária, se o mínimo de 2 (dois) não
for reconstituído até à do ano seguinte ( ... )."
De qualquer forma, sete ou dois que seja o número mínimo de inte-
grantes de sociedade anônima, é certo porém que esse número deverá
necessariamente ser superior a um.
A empresa pública, no entanto, só pode ser constituída com capital
exclusivo da União, de acordo com os precisos termos do Decreto-Lei
nQ 200, art. 59, inciso II (redação do Decreto-Lei nQ 900). Posteriormente,
de acordo com o art. 59 do Decreto-Lei nQ 900, a União pode, desde que
não perca a sua posição de participante majoritária, admitir outros
part.icipantes, no âmbito do dire:to público interno.
Ora, na vigência do Decreto-Lei n9 2.627/40, se a empresa pública
tivesse menos que sete participantes, não poderia ser admitida como
sociedade anônima, ainda que ostentasse, em sua denominação, a ex-
pressão "sociedade anônima" ou "companhia".
O sistema societário brasileiro sofreu, entretanto, nesse particu\ar,
uma brusca alteração, ao se consentir, na Lei nQ 6.404/76, a constitui-
ção de sociedade anônima de um sócio apenas. A nova Lei de Sociedades
Anônimas admitiu e regulou a chamada subsidiária integral, constituí-
da mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade
brasileira (art. 251).
A incompreensão que comumente se manifesta a respeito das socie-
dades unipessoais provém da idéia arraigada pela tradiçáo de que a so-
ciedade se forma pelo contrato, sendo somente possível sua criação entre
duas ou mais pessoas. Mas, desde que se passe a sustentar que a socie-
dade, cemo pessoa jurídica, se constitui por um ato que não seja neces-
sariamente um contrato, o absurdo aparente se ameniza. O direito bra-
sileiro, todavia, não concebe, nem admite tal solução, pois o Código Co-
mercial considera sempre a sociedade formada pelo contrato. E as socie-
dades estatais constituídas somente pelo Estado são sempre criadas por
leis especiais, ocasionando uma anomalia jurídica ditada pela conve-
niência do poder público de escapar dos padrões burocráticos.

2.'53
o referido Decreto-Lei nQ 2.627/40, em seu art. 3Q, estabelecia o
seguinte: "A sociedade anônima será designada por denominação que
indique os seus fins, acrescida das palavras "sociedade anônima" ou
"companhia", por extenso ou abreviadamente". Parece que a Lei nú-
mero 6.404/76 não mais exige, necessariamente, a indicação dos fins,
pois, em seu art. 3(.>, dispõe que "a sociedade será designada por deno-
minação acompanhada das expressões "companhia" ou "sociedade anô-
nima", expressas por extenso ou abreviadamente, mas vedada a utiliza-
ção da primeira ao final".
Não cremos que essa dispensa da indicação d03 fins sociais funcione
na prática. É que as soc~edades comerciais costumam incluir, em suas
denominações, expressões registradas como marcas de indústria, co-
mércio ou serviços; e ocorre que o registro de marca só é admissível com
relação a uma única ativldade. Registrada uma marca em determinada
classe, outra sociedade pode registrar a mesma marca em classe dife·
rente. Ora, se duas sociedades usarem, em suas denominações, palavra
idêntica, por ser marca registrada de cada uma, deverão, para fins de
diferenciação, acrescentar expressão que indique os respectivos fins
sociais.
Temos, portanto, os seguintes três elementos, na prática obrigató~
Tios na composição das denominações: 1Ç» expressão diferenciadora -
nome de pessoa, sigla, expre~são de fantasia etc. - indispensável em
qualquer nome comercial; 2Q) expressão ou expressões alusivas aos fins
sociais, genéricas ou específicas, de acordo com a amplitude dos obje-
tivos da sociedade; 39 ) expressão indicadora do tipo de sociedade - "so-
ciedade anônima" ou "companhia".
Vejamos, agora, algumas denom:nações de empre,as públicas: Em-
presa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) , Caixa Econômica Fe-
deral (CEF). Casa da Moeda do Brasil (CMB), Serviço Federal de Pro-
cessamento de Dados (SERPRO), Empresa Brasileira de Turismo ....
(EMBRATUR), Banco Nacional da Habitação (BNH) , Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico (BNDE), Empresa Brasileira de Radio-
difusão - RADIOBRAS (RDB).
Em todas essas denominações encontramos, com maior ou menor
facilidade, os dois primeiros elementos, urna vez que, no caso, as pala-
vras "brasileira", "federal", "Brasil" e "nacional" podem ser tomadas
como expressões difenciadoras. Em nenhuma, entretanto, encontramos
o terceiro elemento.
Outro aspecto a con.siderar é que a Lei das Sociedades por Ações,
em seu artigo 132, inciso In, determina que a nomeação dos diretores
será feita através de assembléia geral; entretanto, o que se observa nos
dias que Cl)rrem é que empresas públicas que são regidas pela Lei das
SI A têm as nomeações de seus dirigentes feitas por ato do Poder Exe-
cutivo.

254 R. I"t. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./iun. 1982


o Decreto nQ 84.128, de 29-10-79 (art. 49, inciso lI), determinou,
outrossim, que os aumentos de capital das empresas públicas sejam
previamente autorizados pelo Presidente da República, ouvida previa-
mente a SEST; a hipótese revela um conflito com a Lei das S/A que
determina que os aumentos de cap~tal sejam realizados através de as-
sembléia geral (art. 166, I e lI) .

9 - Derrogação da Lei das S/A no regime da empresa pública


Qual a razão por que se observa o fenômeno de interferência, cada
vez maior, do Estado nas decisões que seriam, por força da lei que as
rege (no caso a das S/A), da exclusiva competência dos órgãos deli-
berativ(s das empresas públicas?
O fenômeno da concentração de poder nas mãos do Estado quando
se trata de paises em desenvolvimento, deve ser examinado atentamen-
te. Na maior parte dos casos, uma concentração de poder é inevitável,
e mesmo desejável, a fim de assegurar o desenvolvimento da economia.
É provável e quase certo que julgamentos corretos precedam, freqüen-
temente, erros. Deve ter-se, apenas, consciência de seu duplo papel.
Os objetivos e os fins de uma empresa pública estão estreitamente
vinculados. A forma jurídica de uma empresa pública depende, muito
freqüentemente, dos objetivos que lhe são atribuídos, e certas formas
convêm à realização de objetivos determinados. As empresas que visam
a fins lucrativos são criadas e organizadas na base do djreito público,
observando, contudo, disposições de direito privado no que concerne a
sua gestão.
Os principais objetivos diretos das empresas públicas podem ser
assim classificados: a) sociais; b) econômicos; c) políticos.
Não têm eles a mesma importância, de país para país. Isto depende:
1) do regime econômico e social de cada um deles; e 2) de se saber se
o país atingiu um estágio avançado de desenvolvimento econômico,
ou é um país em desenvolvimento.
Os objetivos sociais revestem formas diversas. P~dem ser criadas
empresas públicas para manter certos serviços, ou melhoramentos,
exercer atividades econômicas não lucrativas e que visem a promover
o progresso social ou a servir ao interesse da coletividade, para elimi-
nar o desemprego, elevar o nível de vida de segmentos da população,
para direcionar os esforços em determinadas áreas etc.
Numerosos são os países onde se perseguem objetivos econômicos
que variam segundo as necessidades: desenvolvimento da economia na·
cional ou de um ramo c.eterminado desta, organização de um setor na-
cionalizado da economia, desejo de estimular o setor privado, falta de
capitais privados para a realização de projetos importantes, atrativos
mínimos para a iniciativa privada para certos investimentos, riscos
que os capitalistas privados não podem assumir, passividade desse ou

R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 255


daquele setor privado, avocados pelas empresas públicas, em razão de
sua importância e de seu caráter indispensável para a economia etc.
Os objetivos políticos são revestidos de importância particular nos
países socialistas em face dos conceitos ideológicos e filosóficos relati-
vos à organização econômica e social.
Nos países em desenvolvimento, os objetivos politicos são conside-
rados fundamentais, quando a criação de empresas tem por fim asse-
gurar a independência econômica do país, eliminar o capital estran-
geiro de certos ramos da economia, nacionalizar, completa ou parcial-
mente, um setor econômico determinado - ainda que, neste último caso,
os objetivos acima citados revistam um caráter essencial, muito mais
no plano dos princípios do que no das realidades -, realizar objetivos
que interessam à defesa nacional etc.
Na realidade, no caso brasileiro, com a empresa pública o Estado
respira o ar da atmosfera do direito privado, entretanto não abre mão
de sua maneira burocrática de administrar.
RoGER PINTO, Professor da ,Faculdade de Direito de Paris, em seu
trabalho publicado na Revista de Direito Administrativo nl,) 87, sob o
título "A Empresa Pública Autônoma de Caráter Econômico, em Direito
Comparado", declara:
"A empresa pública autônoma é uma criação do Estado.
Submete-se, portanto, a estatuto definido pelo Estado. Sua exis-
tência depende do Estado, que a instituiu. Precisamente, po-
rém, em virtude dessa instituição, o Estado introduz, no setor
de economia pública, uma estrutura descentralizada. A con-
servação dessa descentralização supõe o respeito da autonomia
da empresa pública. Exige que não seja colocada sob a autori-
dade hierárquica de órgãos ou agentes do Estado (ministros,
por exemplo) .

De um modo geral, o equilíbrio entre a liberdade de ação


da empresa e os contrapesos necessários da intervenção do Es-
tado, não é fácil de ser alcançado. As leis em vigor não defi-
nem suficientemente. O exame da prática é indispensável. Cons-
tata-se uma verdadeira luta disfarçada entre a empresa e o
Estado. Aquela se esforça por neutralizar as intervenções es-
tatais que julga excessivas, o Estado por sua vez multiplica
obstáculos aos desregramentos da liberdade."

10 - Outras restrições à autonomia administrativa das empresas pú-


blicas
A análise perfunctória feita linhas atrás nos permite tecer algu-
mas considerações sobre o que ocorre no Brasil de hoje.
O Brasil apresenta uma tripartição. Até há pouco, em suas mais
claras e definidas posições encontravam-se as empresas privadas de

256 R. Inf. legill. Bralília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


um lado e de outro a atividade estatal, burocrática, por seus órgãos
de administração direta. As primeiras regidas pelo direito privado, a
última pelo direito público. Há, agora, um terceiro grupo intermediário,
estado crepuscular, onde se situam as empresas governamentais. Elas
têm um status de empresas regidas pelo direito privado mas visam a,
primaciaImente, atender aos desígnios do poder público.
A conseqüência dessa natureza bifronte é que, em períodos de crise
econômico-financeira como a atual, a liberdade de que desfrutam as
empresas estatais acarreta um desequilíbrio porque elas têm mitigado
o controle do Estado por gozarem de autonomia, como as empresas par-
ticulares, e desfrutam de privilégios junto à Administração Central.
No momento atual, comprovando a nossa assertiva, foi criada a Se-
cretaria de Controle das Empresas Estatais (SEST) , pela edição do De-
creto nQ 84.128, de 29 de outubro de 1979. A SEST, integrante da secre-
taria de Planejamento da Presidência da República, é órgão central do
subsistema de controle de recursos e dispêndios das empresas estatais, do
sistema de planejamento federal.
O Decreto nQ 84.128/79 conferiu amplos poderes, na matéria, ao
Ministro do Planejamento, e o art. 4Q autoriza a SEST a coordenar as
atividades das empresas estatais, a acompanhar-lhes a gestão, a par-
ticipar da fixação de preços e tarifas, a propor critérios de reajusta-
mento de remuneração de dirigentes, a manifestar-se sobre aumento
de capital etc.
Com tal instrumento o Governo vem tentando, com relativo êxito,
impedir que a Administração Indireta cause rombos no orçamento da
União, por sua liberdade de ação. Com isto, se fere fundo a Administra-
ção Indireta, pois, na realidade, ela passa a depender de um único
fundo de caixa. O Tesouro Nacional mantém uma única via de forneci-
mento de numerário ou crédito. Esse controle talvez seja o primeiro
passo para desmistificar a imagem da Administração Indireta, recolo-
cando o Estado em sua tradição primeva.
É de lembrar-se, ainda, o disposto no art. 205 da Constituição Fe-
deral - norma constitucional em branco - que exclui da apreciação
jurisdicional as questões entre as empresas estatais e a respectiva Ad-
ministração Direta. Embora o Supremo Tribunal Federal já tenha de-
cidido contrariamente, o art. 205 é mais um elemento de submissão das
empresas estatais a um controle enfeixado nas mãos do Executivo.

11 - Necessidade de um estatuto para a empresa pública: solução rk


direito comparado
Quem se propõe a realizar um estudo comparativo das leis auto-
rizativas da constituição das inúmeras empresas públicas em plena
atividade em nosso País, conclui com decepção que estamos à beira de
um caos, tal a antinomia que existe entre os seus princípios essenciais,
não se orientando a sua criação por um sistema legal, que assegure uni-
fonnidade ou, quando menos, coerência de principias.

R. Inf. legislo Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 257


Válida a tentativa do disciplinamento legal da empresa pública
realizada através do Decreto-Lei nQ 200 e, posterionnente, pelas modi-
ficações introduzidas pelo Decreto-Lei nQ 900. Porém, não é menos certo
que o texto legal editado se ressente de imprecisões, carências técnicas
e até de contradições.
O Decreto-Lei nQ 200 dispõe que a empresa pública poderá "reves-
tir-se de qualquer das formas admitidas em direito". Em nossa opinião,
isto determina que, apesar de ter liberdade de escolha, o legislador de-
veria escolher uma das formas preexistentes, admitidas em direito.
Afinal, ter um ordenamento jurídico significa, justamente, que todos,
inclusive o próprio Estado, devem adequar-se, em seus atos, aos esque·
mas legais vigentes, até que sejam modificados.
Tal coisa parece não acontecer com as empresas públicas. Como
exemplo, de passagem, para não adentrarmos no estudo do Decreto-Lei
nQ 200, afastando-nos do nosso objetivo, basta observar que o item II do
art. 59 do Decreto-Lei nQ 200 erigiu a entidade unipessoal como a mo-
dalidade única da empresa pública, não guardando compatibilidade com
o estabelecimento daquela modalidade ÚNICA a preceituação in fine
do novo texto legal editado, na parte que dispõe que a empresa pública
unipessoal poderá revestir-se de qualquer das formas admitidas em di-
reito, entre as quais, é sabido, inexiste formalização da empresa uni·
pessoal.
A conseqüência inevitável e exigfvel que a prazo médio podemos
vislumbrar é a edição de um estatuto para as empresas públicas, que
será a solução adequada e impositiva para sistematizar a institucionali-
zação desta entidade, pondo fim ao quadro legislativo caótico que se
instalou e continua prosperando. E os exemplos são flagrantes, não
obstante os esforços de aperfeiçoamento que se já fazem sentir em
algumas leis autorizativas da constituição de empresas públicas.
J. CRETELA JUNIOR, em sua obra Empresa Pública, ao abordar os
"problemas suscitados pela empresa pública brasileira", destaca espe-
cialmente a "ausência de estatuto da empresa pública", referenciando,
inclusive no direito comparado, a França, onde "todos os autores fazem
referência à falta de estatuto geral da empresa pública"; e lembra
OSCAR BARRETO FILHO que em sua obra observa que tttodos 08 autores
estrangeiros e nacionais afirmam, unanimemente, a necessidade da ela-
boração de um estatuto geral das empresas públicas, no qual seriam
atendidas as peculiaridades do regime jurídico dessas empresas, no to-
cante à constituição, funcionamento, contabilidade, controle, finalida-
des, órgãos de gestão, assembléias gerais. Esta necessidade prende-se
à circunstância notória de que as normas que regem as sociedades mer-
cantis são de manifesta insuficiência para atender estes pontos".
A unificação de todos os órgãos do Estado resulta, em última análise,
no próprio Estado. Munindo-se o Estado de inúmeros órgãos para a
consecução de seus objetivos e fins, e sendo a lei a expressão da vonta-
de estatal, o que se deve concluir é que o meio mais adequado para a

258 R. Inf. legial. BrClaíllo o. 19 n. 74 obr./Jun. 1982


atuação eficaz de vários órgãos semelhantes será, respeitadas as carac-
terísticas de cada um, a edição de diploma legal que os venha reger de
modo unitário, de sorte que, embora diversificados, possam ser unifi-
cados pelo menos para o fim de abrangência da lei.
Ante a carência de wn sistema legal adequado, a eclosão das empre-
sas públicas no Brasil, estimulada pela euforia da descentralização ad-
ministrativa, acabou por gerar uma problemática crucial - a necessi-
dade de se assegurarem os meios operantes para superintender o seu ten-
tacular gigantismo, com o objetivo de mantê-lo rigidamente subordinado
aos fins de interesse público.
PAULINO JACQUES, emprestando o brilho de sua cultura e autorida-
de no assunto que nos interessa mais de perto neste trabalho, alerta
quanto aos perigos a que está sujeita a economia nacional com a priva-
tização dos entes de serviços públicos, defendendo, com rara inteligên-
cia, nas conclusões finais de sua tese, certamente em face das incon-
tornáveis contradições, de forma e essência de nossa legislação, "a ne-
cessidade premente de ser elaborado um estatuto para as entidades de
Administração Indireta (autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia mista e fundações públicas), que venha disciplinar esses
entes à luz da boa doutrina, expurgando-os do excessivo pragma-
tismo que os desnatura e afeta a própria economia nacional". E sugere,
de imediato, a revogação do art. 59 e seus itens do Decreto-Lei nQ 200,
dos arts. 29, 39 e 59 do Decreto-Lei n9 900, e do Decreto-Lei n Q 991, de
21 de outubro de 1969, que, no seu entender, "subverteram por comple-
to as noções fundamentais de pessoa pública e privada, com suas im-
plicações, no afã de modernizar a administração pública no Pais".
A verdade é que a inclusão da empresa pública entre as entidades
de direito privado é bastante forçada, artificial. Tanto assim que, muitas
vezes, em nada se distingue uma empresa pública de uma autarquia,
o que, não raro, permite a passagem direta de um tipo para outro sem
qualquer mudança fundamental, como é o caso, por exemplo, do Banco
Nacional do Desenvolvimento Econômico, o qual, de autarquia que era,
passou diretamente a empresa pública (Lei n9 5.662, de 21-6-71), sem
qualquer mudança na estrutura da entidade, continuando com a mesma
denominação, o mesmo proprietário, as mesmas normas estatutárias e
o mesmo objetivo.
Não se pense, a esta altura, que somos contra a criação de empre~
sas públicas. Pelo contrário, as encaramos com muita simpatia, e o
fazemos por um motivo muito simples: os governos, em seu trabalho
de administração, encontram problemas os mais diferentes e é muito
justo que esses mesmos governos dIsponham de meios cada vez mais
adequados, acompanhando a evolução dos tempos, a fim de que possam
resolvê-los da melhor forma possível.
O que está errado, a nosso ver, é que o Estado começou a criar em-
presas públicas sem antes ter cuidado de incluir, no ordenamento ju-
rídico nacional, o tipo ou figura da "empresa pública", com suas ca-

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982 259


racteristicas essenciais. Isto porque, conforme já vimos, a empresa pú-
blica não pode ser enquadrada em nenhum dos esquemas jurídicos já
previstos pela legislação em vigor, no âmbito do direito privado. Só
poderia ser enquadrada num esquema novo, que o direito positivo bra-
sileiro ainda não aceitou.
O principio da responsabilidade subsidiária da pessoa jurídica de
direito público interno controladora da empresa pública já editado na
Lei das Sociedades por Ações, em seu capítulo XIX, que trata das so-
ciedades de economia mista, já seria o começo da justificação.
Assim o estatuto da empresa estatal guardaria compatibilidade
com a sistemática da sociedade anônima atual, que a empresa pública
pluripessoal poderá adotar.
É relevante observar que a Lei de SI A dispõe, em seu art. 235, que
as sociedades de economia mista estão sujeitas à sua disciplina insti-
tucional, in verbis - "sem prejuízo das disposições especiais da lei
federal", o que viabiliza o atendimento de suas peculiaridades, sem li-
mitações ou conflitos.

BIBLIOGRAFIA

BARRETO FILHO, Oscar - Apud CAIO TACITO - obra citada.


CAETANO, Marcello - Manual de Direito Administrativo. Coimbra Editora
Limitada, 1951, 3~ edição.
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Livraria Freitas Bastos, 1966.
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JACQUES, Paullno - "A Administração Indireta no Estado Brasileiro" (Crí-
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in Revista Forense, vaI. 248.
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260 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 14 abr./jun. 1912


Os efeitos da falência
sobre a alienação fiduciária
ARNOLDO W ALD
Advogado no Rio de Janeiro e em
Brasflia. Professor Catedrático da Fa-
culdade de Direito da. Universidade do
Rio de Janeiro

1. O Decreto-Lei nl? 911, de lQ-lO-1969, equiparou o devedor ou alie-


nante fiduciário ao depositário para o fim exclusivo de admitir, no seu artigo
49, a conversão da busca e apreensão em ação de depósito. Trata-se de
uma norma excepcional que amplia a responsabilidade do devedor que,
para este fim, passa a ser considerado depositário. Após algumas hesitações,
os tribunais reconheceram a constitucionalidade dessa norma, sempre fri-
sando, todavia, que a sua interpretação devia ser declaratória ou restritiva,
por ser a prisão do depositário uma exceção ao princípio geral constitucional,
que não admite a prisão por dívida (art. 153, § 17), inspirando-se de uma
tradição do direito romano que vem da Lei Petélia.
2. Determina o art. 49 do Decreto-Lei que:
"Art. 49 - Se o bem alienado fiduciariamente não for en-
contrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá
requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mes-
mos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capitulo II,
do Titulo I, do Livro IV, do Código de Processo Civil" (*).
3. Na realidade, a norma somente é aplicável no caso de caber a
busca e apreensão, que a legislação não admite no caso de falência, regula-
mentado de modo específico no art. 79 do mesmo diploma, de acordo com
o qual:
"Art. 79 - Na falência do devedor alienante, fica assegurado
ao credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir, na forma
prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciariamente."

(.) N.R.: Redação dada pela Lei nº 6.071, de 3-7-74, que "adapta ao Código de Proces-
so Clvll as leis que mencl>ona" (art. 49).

R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 261


4. Há, assim, evidentemente, dois regimes distintos para a execução
da alienação fiduciária, que são os seguintes:
a) não havendo falência, cabe a busca e apreensão, que pode
ser convertida em ação de depósito;
b) ocorrendo a falência do devedor, deve ser pedida a res-
tituição, que não admite a sua conversão em ação de depósito,
pois a lei não consagrou essa possibilidade que exigiria a formu-
lação de texto legal expresso.
;,. Aliás, a própria Exposição de Motivos do Decreto-Lei trata das duas
situações como sendo distintas e merecendo soluções próprias. Assim, o
eminente Ministro Delfim Netto, ao apresentar o Decreto-Lei nQ 911, teceu
as seguintes considerações, que comprovam qual deve ser a interpretação
autêntica do texto legal:
"O proieto admite que, não sendo encontrado o bem dado
em garantia, possa ser intentada a ação de depósito. O credor
preferindo, também poderá renunciar à garantia e executar os
bens do devedor, nos termos do contrato. Na hipótese de con·
cordata ou falência, o adquirente fiduciário - dada a sua condi·
ção de credor privilegiado - terá direito à restituição do bem,
podendo, em seguida, proceder à venda do mesmo."
6. A exposição ministerial reserva explicitamente a hipótese de ser
admissível a ação de depósito ao caso da busca e apreensão, que presume
a inexistência de concordata ou falência. A contrario sensu, se impetrada
a concordata ou decretada a falência, a hipótese é de restituição que se
resolve, nos termos da lei falimentar, in natura, pela efetiva devolução, ou
em dinheiro, pelo pagamento do equivalente. O legislador não previu que,
tendo ocorrido a falência, fosse possível propor a ação de depósito que,
em tese, somente caberia contra o administrador da massa falida, ou seja,
ú síndico, mas jamais poderia ser proposta contra os antigos administra-
dores que perderam o poder de dispor dos bens sociais, em virtude da
arrecadação dos mesmos nos termos da Lei de Falências.
7. Na realidade, a posição do legislador foi lógica e coerente, pois a
lei falimentar dá ao síndico os poderes necessários para arreeadar todos
os bens sociais, sejam eles onerados ou não com gravames em favor de
terceiros. Entre esses bens, se incluem os alienados fiduciariamente que,
após a arrecadação, poderão ser objeto de restituição.
8. Aliás, a própria restituição pressupõe a arrecadação, SÓ se podendo
pedir a devolução daquilo que efetivamente foi arrecadado pelo síndico em
favor da massa. Se os bens não foram arrecadados. os terceiros interessa-
dos poderão intentar contra o síndico as ações cabíveis para obrigá-lo a
proceder à arrecadação ou responsabilizá-lo pelas suas omissões. O que
não é possível é pretender constranger, pela ação de depósito, os antigos
administradores, que não mais podem intervir na gestão da massa falida
e. conseqüentemente, não têm legitimidade para reaver de terceiros os
bens sociais restituendos.

262 R. Inf. legisl. Bro,mo o. 19 n. 74 obr./Jun. 1982


9. Toda a sistemática processual vincula. aliás. a prisão do depositário
à busca e apreensão, como também se verifica pelo art. 905 do Código de
Processo Civil que considera ambas as medidas como complementares, ao
determinar que:
"Art. 905 - Sem prejuízo do depósito ou da prisão do réu,
é lícito ao autor promover a busca e apreensão da coisa. Se esta
for encontrada ou entregue voluntariamente pelo réu, cessará a
prisão e será devolvido o equivalente em dinheiro."
10. Ao contrário, na falência, não cabendo mais a busca e apreensão,
a prisão não pode ser pedida nem contra o síndico, que deve arrecadar
os bens da empresa, nem contra os antigos administradores, que perderam
a legitimidade para praticarem qualquer ato em relação aos mesmos bens.
11. Comentando o Decreto-Lei n9 911, na sua monografia sobre a
garantia fiduciária, esclarece o magistrado PAULO RESTIFFE NETO que,
após a decretação da falência, deixa de ter aplicação o art. 49 do mencio-
nado diploma, não mais se admitindo nem a busca e apreensão, nem a ação
de depósito, Escreve a este respeito o juiz paulista que:
"Na falência do devedor não se admite a ação de busca e
apreensão, uma vez que o art. 79 do decreto·lei assegura o pedido
de restituição, na forma da Lei de Falências, como já decidiu com
descortino o Tribunal de Justiça de São Paulo, através da 1:;1
Câmara Civil, assentando: "Vindo a falir o devedor de bem alie-
nado fiduciariamente, o direito do credor é o de pedir a restitui-
ção com base no art. 76 da lei falimentar, acrescentando: "Em
razão da diversidade de ritos processuais, impraticável a conversão
do pedido de busca e apreensão em restituição" (RT 427/136),"
12. E acrescenta:
"O legislador demonstrou sábia coerência ao dar a solução da
restituição em caso de falência. Remédio eficacíssimo, traz a
vantagem de retirar a autonomia das medidas reservadas normal-
mente ao credor e proprietário fiduciário, conferindo ao pedido a
conotação de incidente da falência, subordinado à competência do
foro falimentar. Ao arredar, de outra parte, a ação de busca e
apreensão, teve em vista a absoluta incompatibilidade da ação de
depósito, que lhe sucede quando negativa aquela, com o regime
falimentar, em face das disposições dos artigos 40 e 59 da Lei de
Falências.
Com efeito, desde o momento da abertura da falência, perde
o devedor o direito de administrar os seus bens ou deles díspor
(art. 40), passando a administração da falência a ser exercida
pelo síndico, sob a imediata direção e superintendência do juiz.
Não se compreenderia como pudesse quem já não dirige os negó-
cios e nio tem a disponibilidade dos bens ser compelido, sob pena
de prisio, a praticar C1fos que por lei está proibido, como restituir
os bens da massa ou o seu equivalente em dinheiro (art. 1.287
do Código Civil e art. 902 do novo Código de Processo Civil).

R. Inf. _egisl. BrasíliCl a. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 263


Admitir-se a ação de depósito do art. 41,'1 do Decrefo.Lei
n9 911 contra o devedor fiduciante em regime de falência seri.
aceitar que o comando legal envolva uma impossibilidade iurídicl
que conduz ao absurdo. Sem se falar que não passaria pela ca-
beça de ninguém que, estando a administração dos bens da massa
a cargo do síndico, sob imediata direção e superintendência do
juiz, pudesse a dita ação ser intentada contra os titulares legais
da administração da falência.
É o que foi por nós mostrado em decisão proferida na 9\1
Vara Cível em princípio de 1972, que alcançou grande repercussão
(Diário do Comércio & Indústria, de 5·4·1972, pâg. 4; O Estado
de S. Paulo, de 9-4-72, pág. 166), porque mais radical ainda nosso
entendimento, uma vez que a ação de busca e apreensão fora
ajuizada antes da declaração da falência e mesmo a conversão da
ação de busca e apreensão em ação de depósito se dera momentos
antes da quebra.
Enfeixamos o decisório na seguinte súmula: "Alienação fidu-
ciária - Ação de depósito contra diretor de firma falida - Inc.·
bível quando sobrevenha a falência porque perde o devedor, desde
o momento da decretação da quebra, a administração e disponi-
bilidade dos seus bens, que passam a ser exercidos pelo sindico,
sob imediata direção e superintendência do juiz (arts. 40 e 59 da
Lei de Falências). Ao credor cabe o direito de pedir a restituição
dos bens alienados fiduciariamente em garantia, na forma do art. 79
do Decreto-Lei n9 911, combinado com o art. 76 da Lei de Falências,
e não mais a prisão do devedor como depositário infiel, por não
aplicação, ao caso, do art. 49 do Decreto-Lei n 9 911, de 1969. A
única possibifidade de decretação de prisão do falido é por um
dos motivos relacionados à falta de cumprimento de deveres im-
postos pela ui de Falências, nos termos do art. 35, entre os quais
não se enquadra, evidentemente, a prisão por infidelidade depo-
sitária, pelo simples fato de já não ter o falido a guarda ou dis-
ponibilidade dos seus bens ou direitos. A falência prejudica o
andamento das ações de busca e apreensão e de dep6sito. E, exa-
tamente, para resguardo do superprivilégio inerente aos créditos
garantidos por alienação fiduciária, é que a lei assegura ao credor
ou proprietário fiduciário, na falência do devedor, o direito de
pedir restituição, na forma da Lei de Falências, com preferência
sobre todos os créditos, por mais privilegiados que sejam."
Essa orientação foi fixada em outro caso pela 1~ Câmara do
29 Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, em 26-2-1973, no Agravo
de Instrumento n9 2.836, cujo acórdão vem relatado pelo Juiz
Nóbrega de Salles.
Mesmo declinando da competência daquele Tribunal em favor
do Tribunal de Justiça, em face da competência privativa deste,
por força da Lei de Organização Judiciária do Estado para apre·

264 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


ciação dos recursos que envolvam interesse de massa falida, não
deixou passar a oportunidade de manifestar-se contra o anda-
mento e solução dados à ação de depósito em primeira instância.
É a seguinte a íntegra do julgado:
"Acordam, em Iª- Câmara do 29 Tribunal de Alçada Civil,
por votação unânime, não conhecer do recurso e ordenar re-
messa dos autos ao Tribunal de Justiça, que é o competente
para apreciação do recurso, desde que se trata de massa
falida."
"Rebela-se a recorrente contra despacho que decretou
a prisão de seus representantes legais, em ação de depósito
que lhe move a firma omissis."
"Vê-se da certidão que o Juízo da 6ª" Vara Cível desta
Capital decretou a falência da agravante, ante impossibilida-
de de cumprimento da concordata, nomeado síndico, aguar-
dando-se diligência de arrecadação de bens, dentre os quais,
provavelmente, se encontram aqueles objetos da ação de
depósito."
"Assim, como salienta a Procuradoria da Justiça, a refe-
rida ação não poderia ter continuado, desde que importa em
verdadeira execução individual, cabendo à agravada ingressar
na falência com pedido concernente" (PAULO RESTIFFE NE-
TO, Garantia Fiduciária, 1975, pág. 220).
13. Uma vez decretada a falência, entendeu a Egrégia Terceira Câ-
mara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que devia ser
ordenada "a suspensão do processo de depósito, revogando-se a prisão dos
sócios da falida", conforme decisão unânime da qual foi relator o
atual Presidente daquela Corte, o eminente e culto Desembargador Young
da Costa Manso (Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São
Paulo, voI. 25, pág. 220).
14. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, pela sua Egrégia Se-
gunda Turma, teve o ensejo de decidir que, decretada a falência, não mais
pode prosperar a ação de depósito, só podendo o credor requerer a restitui-
ção. Efetivamente, ao apreciar o Recurso Extraordinário nQ 79.384, em
12-11·74. ·a Egrégia Turma acompanhando o eminente e culto relator, o
Ministro Leitão de Abreu, não conheceu do recurso contra decisão do Tri·
bunal de Justiça de São Paulo cuja ementa era a seguinte:
"Falência. Proferida a sentença declaratória, suspende-se ação
de depósito movida contra sócios da falida, revogando-se a prisão
decretada nos autos da execução individual. O credor interessado
deverá pedir a restituição dos bens ou de seu equivalente em di-
nheiro, no processo da falência. Agravo de instrumento a que se
dã provimento" (fl. 74).

R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 265


15. O acórdão confirmado tinha salientado que:
"Trata-se de recurso interposto contra a decisão que, numa
açào de depósito, ordenou a prisão dos representantes legais da
sociedade falida. Alega a agravante, com esse objetivo, que os
bens estão sob a tutela e administração do síndico, não podendo
exigir-se que a falida, pelos seus antigos gerentes, entregue a
coisa depositada, sob pena de prisào.
Os bens, doutro lado, estavam sob garantia fiduciária, ca-
bendo, pois, simplesmente, o pedido de sua restituição, na falência,
conforme o disposto no art. 7Cf, do Decreto-Lei nl? 911, de 11?-10-69"
(fl. 74).
A falida tem interesse em que se declare suspensa a ação de
depósito, em virtude da falência, cassando-se, por via de conse-
qüência, o mandado de prisão dos sócios, tidos como deposi-
tários infiéis.
E, realmente, decretada a falência, no curso da ação de d.
pósito, esta não deveria prosseguir.
Caberia à agravada pedir. na falência, a restituição dos bens
ou de seu equivalente em dinheiro.
O que não se concebe é que, aberta a falência, ainda se pros-
siga numa execução individual coercitiva, dirigida contra os sócios
da falida.
Pelo exposto. sem divergência, o Tribunal de Justiça, em Ter-
ceira Câmara Civil, provê ao agravo, para ordenar a suspensão do
processo do depósito, revogando-se a prisão dos sócios da falida"
(fl. 75).

16. O parecer da Procuradoria-Geral da República, da autoria do Pr0-


curador Walter José de Medeiros, com aprovação do Procurador-Geral, subs-
tituto, Oscar Corrêa Pina, está assim concebido:
"Cuida-se de saber se, sobrevindo a declaração de falência
quando em curso ação de depósito contra o devedor de bem alie-
nado fiduciariamente, deve esta última demanda ser sustada, ou
não, assegurado ao credor fiduciário o direito de pedir a restitui-
ção do bem em cuja posse se achava o falido.
Sustenta a recorrente, contrariamente ao entendimento es-
posado pela r. decisão recorrida, que a ação de depósito deve
prosseguir com o síndico, pois, como credor de titulo não sujeito
a rateio, à demanda deu inicio antes do decreto de quebra do
devedor. .
Com arrimo na letra a da norma constitucional permissiva,
acoima de vulnerado o art. 24, § 29, da lei falimentar.

266 R. Inf. legisl. Bro.ílio o. 19 n. 74 obr./jlln. 1982


Não lhe socorre, porém, razão.
Sobre razoável, a interpretação dada pela decisão atacada
ao art. 79 do Decreto-Lei n9 911/69 parece a mais acertada, tendo
em vista a nova regulamentação legal sobre a alienação fiduciá-
ria, que, no particular, sofreu flagrante modüicação em face da
vetusta lei falimentar.
Com efeito, dispõe o Decreto-Lei n':' 911;69 em seu art. 79:
"Na falência do devedor alienante, fica assegurado ao
credor ou proprietário fiduciário o direito de pedir, na forma
prevista na lei, a restituição do bem alienado fiduciariamente!'
Ora, tudo quanto se assegura ao credor fiduciário é o direito
de pedir a restituição do bem alienado. E isto foi o que decidiu
o v. acórdão combatido.
Não há, assim, lugar para a invocação ao art. 24, § 2Q, do
Decreto-Lei n9 7.661, de 1945, genericamente citado pela recor-
rente, que não especifica sequer a natureza de seu crédito para
enquadrá-lo em qualquer das várias hipóteses ali previstas.
Ademais, a orientação embalada pela decisão recorrida tem a
respaldá-la o magistério de ORLANDO GOMES, quando sobre a
matéria assim preleciona:
"Produzindo a falência o vencimento antecipado do con-
trato de financiamento, cumpre à financeira pedir a restitui·
ção do bem em cuja posse se achava o falido" (Alienação
Fiduciária em Garantia, pág. 133).
Trata·se, como se vê, de interpretação razoável que tem a
confortá-la a opinião da doutrina, não merecendo por isto, o v.
acórdão recorrido, a censura que se lhe quer impor.
Com o apoio na. Súmula 400, opina-se, pelo não conheci-
mento do apelo último ou, eventualmente, pelo seu improvimento"
(fls. 115-17).
17. Finalmente, o voto do relator acompanhado por unanimidade pela
Turma foi do seguinte teor:
"Razoável também se me afigura a exegese emprestada pela
decisão recorrida ao art. 79 do Decreto-Lei n Q 911, de 1Q-IQ.69.
Na Lei de Falências, art. 24, § 2Q, se prescreve, por certo, não fi·
carem suspensas, prosseguindo com o síndico, as ações e exe-
cuções que, antes da falência, hajam iniciado os credores por
títulos não sujeitos a rateio.
O Decreto-Lei n9 911, que alterou a redação do art. 66, da
Lei n9 4.728, de 14·7-65, dispositivo no qual se disciplinou a alie-
nação fiduciária em garantia, estabeleceu, no art. 7Q, em caso de

R. Inf. legid. Brasília a. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 267


falência do devedor alienante, regra na qual não se faz a dis-
tinção estabelecida pela Lei de Falências. Ao proceder dessa ma·
neira, assegurou, entretanto, plenamente, o direito do credor fi·
duciário, que é o de pedir a restituição do bem alienado fidu-
ciariamente. Essa regra se aplica ainda que tenha sido movida
contra o devedor, antes da falência, ação de depósito. Responde
o alienante, porém, no juízo criminal. como é evidente, pelos ilí·
citas penais de caráter falimentar, em que houver incorrido, não
havendo falar-se, por conseguinte, em vantagem que possa ele
tirar da própria quebra.
Por estes fundamentos, não conheço do recurso" (Revista
Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, voI.
72, págs. 274 a 277).

18. Se no caso de ação de depósito já julgada procedente, o Supremo


Tribunal Federal entendeu que a prisão devia ser revogada e que a única
alternativa, para o credor, consistia em pedir a restituição, a fortiori a
tese se aplica, no caso em que, julgada a restituição, pretendeu, posterior-
mente, o credor obter a prisão civil dos antigos administradores da deve·
dora.

19. Acresce que os poderes dos sócios gerentes sobre os bens sociais
desaparecem com a decretação da falência, sendo evidente que os sócios
llão os podem arrecadar para entregá-los ao banco credor, pois somente o
síndico poderá fazê-lo.
20. É preciso atender, no particular, ao que dispõe o art. 40 da lei
falimentar de acordo com o qual:
"Art. 40 - Desde o momento da abertura da falência, ou
da decretação do seqüestro, o devedor perde o direito de adminis·
trar os seus bens e deles dispor.
§ 1l} - Não pode o devedor, desde aquele momento, prati-
car qualquer ato que se refira, direta ou indiretamente, aos bens,
interesses, direitos e obrigações compreendidos na falência, sob
pena de nulidade, que o juiz pronunciará de ofício, independente-
mente de prova de prejuízo."

21. Assim sendo, a atuação dos sócios gerentes para apreender os bens
dados em garantia importaria em violação da lei e responsabilidade pessoal.
A violação da lei consistiria, no caso, no comportamento do gerente que,
após a decretação da falência, fosse buscar em mãos de terceiros os bens
allenados fiduciariamente, numa atuação que, nos termos da lei falimentar,
é da competência exclusiva do síndico a quem cabe, entre outros deveres, o
de "arrecadar os bens e livros do falido, e tê·los sob a sua guarda, confor-
me se dispõe no título IV, fazendo as necessárias averiguações, inclusive
quanto aos contratos de locação do falido ... " (art. 63, inciso lU, do Decreto-
Lei nl} 7.661, de 21-6-1945).

268 R. I.,f. legisl. Brasília O. 19 n. 74 obr,/jun. 1982


22. Não há, pois, qualquer dúvida quanto à impossibilidade jurídica abso-
luta que têm os sócios gerentes de proceder à arrecadação dos bens da
falida para, em seguida, entregá-los ao credor garantido pela alienação
fiduciária.
23. Tanto a doutrina como a jurisprudência reconhecem que não existe
qualquer dúvida razoável que possa ser suscitada na interpretação do art. 40
da lei falimentar acima transcrito.

24. TRAJANO DE MIRANDA VALVERDE, autor do projeto que veio


a transformar-se na Lei de Fatências, escreve a este respeito que:
"Tirando-se ao falido o direito de administrar seus bens e
deles dispor, perde ele a posse direta de tais bens, que passa para
o síndico, e cuja tomada se faz pela arrecadação, que equivale,
assim, à penhora das execuções singulares. O síndico, como o
inventariante no espólio, é que fica com a posse corporal e a
administração dos bens, competindo-lhe dispor do ativo do pa-
trimônio do falido, pelo modo e forma determinados na lei" (TRA-
JANO DE MIRANDA VALVERDE, Comentários à Lei de Falências,
Rio, Forense, 1948, vaI. I, pág. 230, nQ 248).
25. Por sua vez, WALDEMAR FERREIRA esclarece que o desapossa-
mento dos bens do falido não depende de entrega dos mesmos ao síndico
"porque opera desde logo, ex vi legis, da data daquela sentença (declara~
tória da falência) ... Este desapossamento tem caráter imperativo. t de
ordem pública. Reveste-se, por isso mesmo, do caráter de generalidade"
(Tratado de Direito ComerC'Íal, S. Paulo, Saraiva, 1965, voI. 14, pág. 494,
n9 3,709).

26. O Tribunal de Justiça de São Paulo pela sua Egrégia Quinta Câmara
C1vel já teve o ensejo de decidir, interpretando o art. 40 da lei falimentar,
que "desde que o falido perde a administração e disposição dos seus bens,
não pode dar execução a contrato de crédito pela ação de depósito" (acór-
dão unânime da 5~ Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, no
Agravo de Petição nl? 166.526, do qual foi relator o eminente Desembar-
gador Toledo Piza, in Revista dos Tribunais, voI. 394, pág. 184).
27. Na realidade, em todas as restituições e nas ações que contra ela
são propostas, a massa falida é sempre representada pelo seu síndico e
não pelos seus antigos administradores. Contra eles não pode ser intentada
a ação de depósito após a decretação da falência. A opção que a lei atribui
ao devedor, nos casos de alienação fiduciária, entre pagar o valor devido
(art. 3Q e seus parágrafos do Decreto-Lei nQ 911) e entregar os bens dados
em garantia, deve ser sempre exercida pelo síndico, como bem salienta parte
da doutrina que admite essa alternativa (RUBENS REQUIAO, Curso de
Direito Falimentar, Saraiva, São Paulo, 1975, 19 volume, pág. 244, nQ 226).
28 . A totalidade da doutrina reconhece, outrossim, que o bem dado
em alienação fiduciària deve ser arrecadado pelo síndico, embora possa
não integrar a massa falida, pois tratar-se-ía de posse exercida em nome
alheio (nomine alieno), conforme salientam ORLANDO GOMES (Alienação

R. Inf. legis'- 81'OsíliD D. 19 n. 14 Dbr'/jun. 1982 269


Fiduci'ria em Garantia, 41,\ Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975,
pág. 144, nQ 103) e JOst CARLOS MOREIRA ALVES (Da Alienação Fidu-
ciária em Garantia, 11;\ edição, S. Paulo, Saraiva, 1975, pág. 167).
29. Acresce que, nos termos do art. 36 da lei falimentar, o falido pode
intervir nas ações contra a massa na qualidade de assistente. A contrario
~nsu, não pode ser, no caso, nem réu, nem autor. Conseqüentemente,
uão é admissível que a ação de depósito possa ser intentada contra os
antigos sócios gerentes da empresa falida e a fortiori que contra eles seja
julgada procedente.
30. Verificamos, assim, que, de acordo com a letra, o espírito e a
~istemática da lei:
a) não pode ser intentada ação de depósito contra a massa
falida, só cabendo no caso a restituição legalmente prevista;
b) se, em tese e ad argumentandum, a ação de depósito pu-
desse ser intentada, somente poderia sê·lo contra a massa falida
representada pelo síndico e nunca contra os antigos administra-
dores (Revista dos Tribunais, voI. ne? 394, pág. 184, e 427, pág. 136,
e Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo,
voI. 25, pág. 220).
31. A prisão do depositário infiel prevista pelos artigos 1. 287 do Có-
~lÍgoCivil e 904 do Cóuigo de Processo Civil, que não se confunde com as
sanções penais, nem com a prisão administrativa, constitui uma medida
coercitiva para obrigar o devedor a cumprir as suas obrigações, nos casos
excepcionais de depositário infiel ou de alimentando.
32. O Repertório Enciclopédico esclarece neste sentido que:
"A prisão civil não objetiva, desta maneira, a imputação de
uma penalidade ou castigo, mas a compelir o faltoso ou inadim-
plente a realizar determinada obrigação não observada, seja pres-
tar alimentos devidos, devolver o depósito, ou pagar a dívida ru-
ral. Em síntese, se impõe para coagir o faltoso ou omisso a fazer
o que é de sua obrigação ou dever, não importando, pois, em
condenação criminal, uma vez que é tão-somente meio legal com-
pulsório de obter o cumprimento de determinado dever. Não é
uma pena" (CARVALHO SANTOS e outros, Repertório Enciclo-
pédico do Direito Brasileiro, Rio, Borsoi, voI. XXXIX, pAgo 216).
33. Por sua vez, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ao analisar
a prisão do depositário infiel, ensina que:
"Para a decretação da prisão, que não é propriamente uma
pena, mas medida compulsória de nature%a civil ou administrativa,
não importa que o depositário tenha agido com culpa ou dolo.
Só pode ser decretada, porém, no curso da ação de depósito, em
que se assegure plena defesa ao devedor, desde que existam segu-
ros elementos comprobatórios da infidelidade."
•• ' + .. oi .

270 R. Inl. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


"O processo de' habeas corpus não comporta apreclaçao da
legitimidade da referida sanção. Ainda que haja responsáveis
solidários, só o verdadeiro depositãrio deve sofrer as conseqüên-
cias da relapsia" (Curso de Direito Civil, Direitos das Obrigações,
2\1 parte, 10;,\ edição, S. Paulo, Saraiva, 1975, págs. 236 e 237).
34. Do nosso lado, já tivemos o ensejo de escrever a este respeito que:
"Protegendo de modo particular a confiança que é o funda-
mento do contrato de depósito, a lei civil admite a prisão do depo-
sitário infiel, como medida coercitiva a fim de obrigá.lo a devolver
a coisa depositada.
A medida é cabível tanto no depósito voluntário, como no de·
pósito necessário, sendo prevista pelo art. 1.287 do CC, que fixa
um prazo máximo de um ano para a prisão administrativa. Em-
bora a Constituição Federal proíba a prisão por dívida, reconhece
de modo expresso a possibilidade de prisão do depositário infiel
e do devedor de alimentos (art. 153, § 17, da Emenda Constitucio-
nal n9 1, de 1969).
Entende-se que a palavra depositário empregada pela lei civil
não deve sofrer interpretação extensiva, diante da severidade da
sanção estabelecida. Assim, a jurisprudência não tem equiparado
o inventariante ao depositário e tem havido oscilação no tocante
à situação do comprador com reserva de domínio, especialmente
quando o contrato não o considera explicitamente como depositá-
rio da coisa até o pagamento da totalidade do débito. Leis espe-
ciais equiparam ao depositãrio o leiloeiro, em relação ao preço
por ele recebido na venda em hasta pública e o alienante fidu-
ciário, no tocante ao bem alienado fiduciariamente (art. 49 do
Decreto-Lei n9 911, de 19-10-1969)" (ARNOLDO WALD, Obriga.
ções e Contratos, 5\1 edição, S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1979,
págs. 324 e 325, n9 156).
35. CLóVIS BEVILAQUA esclarece que a prisão do depositário infiel
tem as suas origens nas Ordenações Filipinas (Livro 4, 76, § 59) e no
art. 284 do Código Comercial que determina:
"Não entregando o depositário a coisa depositada no prazo
de quarenta e oito horas da intimação judicial, será preso até que
se efetue a entrega do depósito ou do seu valor equivalente."
36. Acrescenta o autor do projeto do Código Civil que o art. 1.287
t3mbém encontra as suas raízes nos artigos 2.060 do Código de Napoleão
e 2.094 do Codice Civile italiano de 1865 que, ambos, admitem a prisão
como medida coercitiva para obrigar o depositário infiel a devolver o bem
no caso de ter ocorrido depósito necessário.
37. Conclui CLóVIS BEVILAQUA que:
"A prisão de que tratava este artigo (1.278), era meio coerci-
tivo para obter-se a restituição do depósito. Terminava, logo que

R. Inf. 1.,111. lra.ílía a. 19 n. 74 ahr./jun. 1982 271


esta se dava" (Código Civil Comentado, 6~ edição, Rio, Edição da
Livraria Francisco Alves, 1947, voI. V, pág. 27).
38. E, assim, evidente que, tratando-se de medida coercitiva ou com-
pulsiva destinada a alcançar um fim determinado, a prisão civil não pode
ser aplicada a quem evidentemente não tem condições jurídicas e fãticas
de devolver o objeto do depósito, por estar o mesmo comprovadamente
em mãos de terceiros, importando a decretação da falência em retirar dos
:-:ócios gerentes da empresa qualquer legitimidade para reaver aquilo que,
nas suas mãos, foi depositado, mas que, pela sua própria natureza, se des-
tinava a ser utilizado e repassado para terceiros dos quais somente o síndico
pode obter a sua devolução.
39. Não constituindo a prisão civil uma pena, mas uma medida que
se destina a obrigar o depositário a restituir o que lhe foi entregue, é evi-
dente que somente se concebe a sua aplicação quando o depositário ou
quem a ele legalmente foi equiparado tem condições de devolver, pois,
ad impossibilia nemo tenetur.
40. O nosso direito não admite que o depositário possa reaver de ter-
ceiros os bens depositados, após a decretação da falência, quando a repre-
sentação da massa passou a pertencer exclusivamente ao síndico. Outras
soluções existem em legislações que permitem, em todas as oportunidades,
ao depositãrio reaver os bens de terceiros, como ocorre na jurisprudência
francesa que cuida das relações entre depositário e "subdepositário" (HEN-
RI, LÉON ET JEAN MAZEAUD, Leçons de Droit Civil, 4{l. edição, Paris,
Éditions Montchrestien, 1974, Tomo m, voI. 2, pág. 749, nQ 1.501).
41. Assim sendo, não tendo o depositário condições legais de reaver
de terceiros os bens depositados, a medida coercitiva não lhe pode ser
aplicada por completa impossibilidade de ser alcançado o objeto que a
medida legal visa a alcançar.
42. Pelo exposto concluímos que:
a) uma vez decretada a falência, a lei determina que não mais pode
~er intentada a ação de depósito, só admitindo a restituição, conforme
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e das demais Cortes do País;
b) se a ação de depósito pudesse ser intentada, deveria sê-Io contra
a massa falida representada pelo síndico e jamais contra os antigos admi·
nistradores da empresa, de acordo com o que dispõe o art. 40 da lei fa-
limentar e demais disposições do mesmo diploma legal;
c) a prisão civil é medida coercitiva ou compulsiva, não constituindo
uma pena, e destina-se a obrigar o depositãrio a devolver o bem depositado.
Assim sendo, se aquele que a lei ou o contrato equipara ao depositãrio
não tem condições jurídicas de reaver os bens dos terceiros, nas mãos dos
quais se encontram, para devolvê-los ao depositante, é evidente que desca-
be a prisão civil nos termos em que foi definida pela Constituição e pelo
Código Civil.

272 R. Int. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Publicação, reprodução, execução:
direitos autorais
ANTÔXIO CHAVES
Direror da Faculdade de D1reiro da Uni-
versidade de SP. Presidente do InsUtuto
fInteramerica.no de Direito de Autor
(lIDA). Vice-Presidente do Conselho Na-
cional do D1reJto de Autor (CNDA)

SUMARIO
1. A criação literária, artística ou científica é essencial-
mente comunicativa
2. A comunicação pode ser direta ou indireta
2.1 Publicação, reprodução, ezeeução
2.2 A ezecução por meio de instrumentos mec4-
nicos
2.3 Os elementos subjetiVo e ob1ettvo do ato da pu-
blicação
2.4 Evoluiu muito o conceito de reprodução
3. A primeira das trés esferas de direitos oriundas da
publicação: a do autor e do artista-intérprete
3.1 A segunda é a do adquirente do uemplar; a ter-
ceira, do público globalmente considerado

1. A crUJ.çiio literária, artística ou cientifica é essencialmente comunicativa


O que é comunicação?
Num sentido amplo, tudoI
Basta volvermos o olhar ao redor de nós para verificarmos que vivemos
mergulhados num mar de comunicação. Expressamos mais do que respiramos,
pois começa a transmitir a criatura, poucos meses depois de concebida, ainda
no ventre materno naquela inefável ligação que só as mães entendem; prorrom·
pe nUin extravazamento de protesto, com o seu choro, tão logo inicia seu pri-
meiro instante de vida, e não deixa mais de participar em momento algum,
com seus gestos, seu comportamento, seu olhar, nem mesmo após exalar o
último suspiro, com seu exemplo, sua lembrança, suas obras.
.:E: comunicação o sorriso da criança, a saudação do estranho, o burburinho
das ruas, a exposição das vitrinas, as linhas arquitetônicas, a mão estendida
do mendigo, os pregões, os cartazes, a carta que recebemos, a profissão que
exercemos, sem falar no jornal, no livro, na revista, no telefone, na radiodifu-
são, na televisão. Comunica a natur~za: que mensagens mais lindas pode ha-
ver do gue o nascer ou o pÔr-do-sol, o arco-íris, as plantas, e as flores com o
seu perfume, os pássaros com sua garrulice e seu co1orido, o cão com OS "eus
latidosI

R. Inl. 111gb'. Bro.mo o. 19 n. 74 obr./;lIn. 1982 273


Tinha, pois, razão CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, ao eleger a comunicação
em divindaae exótica dos nosSOs tempos: o Deus Koro Unik Assão, cuja ado-
ração implica Cla deglutição das noticias, prostrando-se a massa diante do
Deus Imoecilizante:
"Eis-me prostrado a vossos peses
que sendo tantos todo plural é pouco ...
Genucircunflexado vOS adouro
vos amouro, a vós sonauro ...
Vossa pá lavra o chão de minha carne
e planta beterrabas balouçantes
de intenso carneiral belibalentes" (As Impurezas do Branco,
Rio, José Olympio - MEC, 1973).
Existe, todavia, um setor da atividade humana em que a participação
assume um papel mais significativo e mais duradouro do que a própria tran·
sitória peregrinação pela terra. ~ setor dos mais nobres: o da obra e do pe.asa-
mento dos grandes poetas, dos escritores, dos artistas, dos cientistas, que mais
e mais se comunicam à medida que o tempo vai passando, mais e mais, mesmo
depois que sua voz material silenciou. ARISTÓTELEs, PLATÃO, DANTE, SHAKES-
PEAlIE, CAMÕES, MACHADO DE AsSIS, EUCLIDES DA CUNHA, nunca se comunica-
ram tanto como hoje, e muito mais irão fazê-Io pelos séculos sem fim.
A criação artística, literária e científica é, na verdade, essencialmente c0-
municativa, no sentido que nenhum escritor, nenhum artista, nenhum sábio dedi-
ca-se anOs a fio à sua atividade para seu uso exclusivo, sim com a finalidade de
transmitir a outrem, através da sua divulgação, o resultado de seus esforços.
Mas esse anseio de levar as realizações e as conquistas do espírito ao co-
nhecimento dos nossos semelhantes reveste.se, nos dias de hoje, de grande
complexidade, graças ao reconhecimento da importância fundamental do di.
reito de autor a preservação de5ses conseguimentos.
Em primeiro lugar pelos aspectos imateriais que o caracterizam: direito
de inédito, direito ce reivindicar a paternidade da obra, direito a não vê-la
alterada na sua integridade, direito de arrependimento, de modificar a obra,
de acabá-la, de considerá-Ia acabada, de opor-se a que outrem a acabe etc.,
isto é, o denominado direito moral.
Em segundo lugar, pelos proventos ou vantagens que possa proporcionar,
e que devem ser amplamente protegidos contra ambições injustificadas ou
desonestas de terceiros: direito pecunwrio.
A Lei ar&entina n9 11.723, no art. 29 , enumera as seguintes faculdades
patrimoniais: 'O direito de propriedade de uma obra científica, literária ou
artística compreende para seu autor a faculdade de dispor dela, de publicá-
la, de executá-Ia, de representá-la e expô-la em público, de aliená-la, de tra-
duzi-la, de adaptá-Ia, ou de autorizar sua tradução e de reproduzi-la em qual-
quer forma".
Esses "publicá-la", "executá-la" e "representá-la" formam a tríade funda-
mental, os três meios mais importantes de que dispõe o autor de comunicar
suas obras, na conformidade da natureza de cada uma: obras literárias e ciEU-
tíficas; obras musicais; comédias e dramas.

274 R. Inf. legisl. Ira,Uia a. 19 n. 74 abr./julI. 1982


2. A comunicação pode ser direta ou indireta
As leis mais modernas, como a lei alemã, estabelecem distinção entre duas
modalidades diferentes de utüização da obra: sob forma incorpórea - recita-
ção, execução, representação e exposição pública; sob forma corpórea - re-
produção,marcan3o ainda separação entre transmissão direta da obra intelec-
tual, quando a criação é transmitida pessoalmente a um público presente 00
local: discursos, orações, sermões, conferências, recitais, representações mllsi-
cais, exposições de quadros ou de e~cuIturas etc.
~ indireta (embora nem sempre a separação seja muito nítida) quando
exige a intermediação de um instrumento material qualquer: um livro, um
disco, um aparelho de rádio, de televisão, de projeção cinematográfica ptc.,
incluindo-se, nesse conceito, todas as possibilidades técnicas que realizam o
objetivo, t3J:lto pelo sentido da vista, como pelo do ouvido, separada ou con-
juntamente.
A comunicação ótica verifica-se por meio das edições gráficas, da proje-
ção de filmes, da fotografia, dos decafques e das cópias das obras de arte figu-
rativa, das exposições das obras de arte. A acústica, pela leitura em público de
obras literárias, pelas recitações, pelas execuções, pelas representações, pelas
ra.diodifusões das obras musicais, pelas execuções de obras gravadas em dis-
cos. A comunicação pelos dois sentidos combinados, pelos filmes sonoros e
pela televisão.
A comunicação que se verifica por meio de representação e de execução,
COmO as demais modalidades, encontra-se amplamente protegida pela nossa
lei, à vista dos termos genéricos do art. 153, § 25, da Constituição vigente, do
art. 64Q do Código Civil e do art. 29 da Lei n? 5.988, que asseguram ao autor
de obra literária, artística ou cientHica o direito de utilizá-la, fruí~la e dela
dispor, bem como de autorizar sua utilização ou fruição por terceiros, no todo
ou em parte.
Bem se percebe que 'nO conceito da comunicação já se insere outro: 'I da
reprodução, isto é, o da multiplicação da obra em tantos exemplares quantos
seja possível ou, pelo menos, provável colocar utilmente à disposição do pú-
blico.
Esta reJÍrodução tanto pode verificar-se diretamente de um manuscrito
original (edição gráfica), como indiretamente através de uma cópia obtida
do original (edição gramofônica).

2.1 Publicação, reprodução, execução


Tanto a Convenção de Berna, art. 3Q, aI. 3ª', 1ª' parte, como a de Washing-
ton, art. 11, a exemplo da nossa antiga Lei oÇl 496, art. li, letra a, assimilam
a palavra publicação à edição.
O invento de Gutemberg fez da imprensa a maneira mais importante de
tomar conhecida uma obra literária ou cientifica.
Mas a recitação de uma obra diante de um grupo de pessoas, sua trans-
missão pelo rádio, peIo cinema, pela .televisão, uma representação teatral, tam-
bém nã() tornam dl.vulgada a respectiva obra? .

R. Inf. legi.t. Ira.ma a. 19 n. 74 abr./jun.1982 275


Certamente que sim. J:;: a razão ~or que o conceito teve que ser melhor
delimitado de maneira a distinguir-se 'publicação-edição" das demais "publica-
ções" de uma obra intelectual.
Assim o art. 89 da lei austríaca de 1006 já considerava a obra como pu-
blicada quando ela se põe à disposição do público com o consentimento do
titular do direito; a lei italiana de 22-4-1941, no art. 12, última parte, tem
como primeira publicação a primeira forma do exercício do direito de utiliza-
ção, e para a Lei pátria n 9 5.988, da 14·12~1973, que "regula os direitos auto-
rais, e dá outras providências", nossO diploma fundamental na matéria, art.
49, I, publicação é "a comunicação da obra ao público, por qualquer forma
ou processo".
Percebe-se, assim, que a palavra publicação deixou de ter a precisã.) de
que se revestia quando a única difusão de uma obra era pela imprem,l; já
não tem, hoje em dia, o mesmo sentido tradicional e restrito de impressão, mas
o de divulgação por qualquer meio ao alcance do homem, seja por via indireta,
seja por via direta.
Já é tempo, no entanto, de disting'lir nitidamente o momento importantís-
simo que assinala o surto de uma obra nova, marco a partir do qual estabelece
o autor a intenção de levá~la ao conhecimento do público, com o conceito da
própria comunicação, que é diferente, pois ocorre com mais freqüência ('oro
obras antigas do que com obras novas. Sendo embora de relevo o comt'nti-
mento do autor para a utilização da mesma, não se compara com o que tem
aquele primeiro ato do lançamento para o mundo exterior, expressivamente
comparado ao nascimento de uma criatura.
Bem por isso o projeto BARBOSA-CHAVES, em que se inspirou largaml'nte
<l Lei o') 5.988, estabelecera distinção, consignando:
"Art. 79 - Publicação e divulgação. Entende-se, para efeitos des-
ta lei, publicada a obra que, com o consentimf'nto do titular de direito,
é tornada acessível ao público por qualquer meio que permita sua
utilização,
Parágrafo único - Entende-se divulgada a obra, publicad:l ou
não, quando for amplamente conhecida."
Até por uma questão de coerência com lei internacional à qual se subme-
teu o nosso País, devia a Lei n9 5.988 ter-se atido ao conceito do art. 49 , alí·
nea 4~, da Convenção de Berna, que revisão de Paris manda entende" por
"'obras publicadas"
"as obras editadas, seja qual for o modo de fabricação dos exempl.\res,
os quais devem ser postos em quantidade suficiente à disposição do
público",
e complementando exatamente em sentido oposto ao consignado pela lei pátria:
"Não constituem publicação: a representação de obras dramáticas,
dramiltico-musicais OU cinematográficas; a execução de obras mllsi-
cais; a recitação pública de obras literárias; a transmissão ou a !adio-

276 R. IlIf. 1.,i.1. ••a.ma a. 19 ... 74 abr./julI. 1982


difusão de obras literárias ou artísticas; a exposição de obras de arte
e a construção de obras de arquitetura."
O conceito do próprio texto constitucional, ao substituir a expressão
reproduzi-la, constante da Carta Magna anterior, por utiliuí~ln, muito mais
ampla e abrangente, art. 153:
-§ 25 - Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas per-
tence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por
herança, pelo tempo que a rei fixar",
demonstrou maior sensibilidade do que a lei específica.
A impressão de um livro ou a gravação de um disco não esgotam, por
s) mesmas, a sua finalidade. O livro não é impresso, o disco não é ~avado
porque existe a imprensa, e sim para que a obra seja multiplieada justame::Jte
para o fim de ser divulgada entre um público que é tão indeterminadl' no
tempo e no espaço que poderá mesmo existir ou não.
Não é, COm efeito, suficiente o simples fato de o livro ser ed;tado, ou
de a canção popular ser gravada em disco ou cassete, para que a obra dE'ixe
de ser inédita, isto é, embora materialmente impressa, Ou gravada, não ainda
publicoda, nunca vista - passando a ser "puhlicada", manifesta, notória, só
depois de tornada conhecida do público em geral.
Pode, ria verdade, um autor multiplicar Slla produção intelectual e arma-
zená-la em algum porão, sem divulgá-la, ou à espera de uma oportunidade
melhor para fazê-lo, como ocorre com as teses de concurso, cuja propagação,
até à data de realização do mesmo, é severamente proibida sob pena de anu-
lação do certame.
Também tem sido considerado não existir publicação quando o autor te-
nha mandado imprimir somente poucas cópias da obra, destinadas a servir a
algumas pessoas por ele indicadas, o que acontece com a assim chamada edi-
ção fora de comércio. reservada para o autor e para seus amigos.
São os casos das apostilas, datilografadas, mimeografadas ou multiplicadas
por sistema análogo, muitas vezes mera cópia ou compilação de trechos de
trabalhos alheios, que certos estabelecimentos de ensino distribuem ou admi-
tem sejam distribuídas aos seus alunos, no recinto escolar, e, ainda, a impressão
de poucas cópias de uma comédia ou drama, para uso teatral, isto é, para
poder comunicá-los a um diretor de companhia para serem distribuídas dOS
atores. O público não tem nenhum acesso ao texto, cujos poucos exemplares
são considerados reprodução manuscrita.
Mas não é isso o que ocorre na generalidade dos casos, em que a multi-
plicaçãO, por si só, exprime a intenção da sua efetiva divulgação.
Do exercício, pelo autor, do seu direito exclusivo de divulgar sua obra,
surge, então, em virtude da lei positiva, um direito diferente: o de impedir
publicações feitas por outrem, que o defraudariam da justa retribuição do seu
trabalho. Este direito tem natureza eminentemente patrimonial, cuja idéia fu~­
damental pode ser simplificada para a de um monopólio econÔmico.

R. IlIt. lelid. lra.ília a. l ' 11. 74 abr./julI. 1'82 277


Considera a lei publicação reservada ao autor da obra:
19) o impresso ou outro semelhante tnodo de publicação dos improvisos,
das leituras e dos ensinamentos orais desde que feitos em público e transcritos
por meio da taquigrafia, gravação ou algum outro modo;
2(1) o impresso ou outro semelhante modo de publicação das obras ou com-
posições próprias ou espetáculo público de uma ação coreográfica e de qual.
quer composição musical tanto inédita como publicada;
39 ) a execução de obras de arte feita sobre esboço do autor.
Como se inserem nesse contexto os CO:1ccitos de representação ou de exe-
cução? .
Não os define a nossa lei. Mas, do art. 73, caput, e seu § 1Q, deduz-se
que, assimilando as duas idéias, considera como tais os espetáculos públicos e
audições públicas: drama, tragédia, comédia, composição musical com letra ou
sem ela, ou obra de caráter assemelhado, "em locais ou estabelecimentos, como
teatros, cinemas, salões de baile ou concerto, boates, bares, clubes de qualquer
natureza, lojas comerciais e industriais, estádios, circos, restaurantes, hotéis,
meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial OU aéreo, ou
onde quer que se representem, executem, recitem, interpretem Ou transmitam
obras intelectuais com a participação de artistas remunerados, ou mediante
quaisquer processos fonomecânicos, eletrônicos ou audiovisuais".
Deixa bem patente, assim, a importâncía que liga ao conteúdo econÔmico
do contrato. E, com efeito, pouco interesse apresentam para o direito de autor
as execuções ou representações que não visem lucro direto ou indireto.
"O aproveitamento de uma obra dramática e, até um certo ponto, tam-
bém o de uma obra musical" - assinala J. HEIFETZ - verifica-se com a sua
pública execução. Essas obras exercem suas influências culturais sobre graa-
des massas de povo, não pera leitura, que se pode fazer delas, mas através de
sua representação cênica, e o proveito, portanto, que delas possam obter os
respectivos autores decorre não da difusão das obras, mas do seu sucesso tea-
tral. Do ponto de vista literário podem, assim, estas obras não ter um grande
valor, embora sejam capazes, ao mesmo tempo, de constituir objeto do con-
trato de edição. Uma outra série de obras, como pantomimas, coreografias etc.,
pode, porém, constituir somente objeto do contrato de representação: o texto
eventual não terá n~huma difusão pela imprensa, nem valor algum cultural.
O direito de execução é reconhecido pela legislação de todos os países.
Nem mesmo a legislação soviética eximiu-se de fixá-lo:
"Ao autor de uma obra inédita dramática, musical-dramática,
pantomímica, coreográfica e cinematográfica, cabe o direito exclusivo
da pública execução da mesma" (art. 8, p. l, rei fundamental de
1928).
o conceito de public!dade acompanha, portanto, os da edição e da gra-
vação.
Manifesta-se, no entanto, de maneira diferente de acordo cOm a compo-
sição intelectual. O romance, a poesia, o conto, as aventuras policiais passam,
em geral, por um s6 processo para entrar em contacto com o público: a ediçio.

278 R. Inf. legisl. BrClsílíCl a. 19 n. 74 abr.fiun. 1982


A composição teatral ou radiof6nica atravessa duas fases, embora nem
sempre: a edição e a execução em teatros, cassinos, estádios e outros locais
públicos, ou a tomada de sons, de imagens, ou de ambos, através de aparelhos
apropriados.
Nas obras dramáticas e musicais, anota LAUDO F'ERREmA DE CAMARGO, em
decisão de 14-9-1929 (Rev. dos Tribunais, voI. 74/388), acompanhando a lIção
de CLÓVIS BEVlLAQUA, cumpre distinguir o direito de publicar e o de executar.
Sem autorização, não se publicam. Publicadas, mediante consentimento,
quem as adquire pode usá-las, salvo execução por dinheiro.
O direito de reprodução - que pode ser defÉlida como todo processo que,
retirando a obra da esfera de influência pessoal do seu criador, Ieva-a ao c0-
nhecimento do público, que adquire assim o direito de conhecê-la - não é,
portanto, único, indivisíve1, mas acompanha a produção em todas as fases pe-
las quais chega em contacto com o público pagador.
Enquanto a obra não for publicada, ninguém, além do autor, tem direito
sobre ela, reconhecendo-se àquele até mesmo a possibilidade de, embora com
ato de última vontade, impedir a sua divulgação.

2.2 A execução por meio de instrumentos mecânicos


Constitui um dos problemas mais sérios e mais importantes dos direitos de
autor e do artista-intérprete e executante saber se a reprodução de uma deter-
minada obra por meios mecânicos deva ser considerada como edição ou como
representação (ou execução).
A dúvida deve-se principalmente à facilidade com que um toca-dis<.:'Os
ou um radiorreceptor, por exemplo, permitem obter a reprodução de obras
musicais ou literárias.
Apesar das vacilações iniciais tanto da doutrina como da jurisprudência
internacionais, de há tempo chegou-se à conclusão de que a reprodução por
essa fonna também é execução, salientando-se ser somoote necessário que jlara
o meio meclnico haja um ato de vontade e uma ação, por mais simples 'lue
$eja, que dê àquele meio a possibilidade de entrar em funcionamento.
E como para O toca-discos é exigida, para que se efetue a execução, uma
ação materiaf que o ponha em funcionamento, incumbindo-se ele de reprodu-
zir os sons obtidos pela gravação, assim o radiorreceptor necessita, para fun-
cionar, de um conjunto de atos materiais que, por limitados e modestos, são
essenciais para que as ondas sejam captadas e, portanto, se verifique a repro-
dução dos sons.
"A melodia que o artista em contacto com o público sabe con-
seguir das cordas do seu violino com O qual confundiu a alma" -
salienta G. CARRELLI - "é execução da mesma maneira que uma re-
produção mecânica obtida com o disco por meio de uma máquina
fonográfica. ~ que a lei considera o fato, não o meio que daquele
fato é a causa, o resultado, e não o modo."

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./iun. 1982 279


Indaga MARCEL BoUTET, comentando (na revista Le DrOit cf Aute"r, 1931,
págs. 88 e segs.) a jurisprudência francesa relativa à reprodução por meio de
discos gramofÔDicos, qual seria o elemento constitutivo do caráter público de
urna execução. A finalidade, conforme sejam ou não visados lucros? O Ju~ar
em que a execução se efetue?
Uma execução dá margem à percepção dos direitos de autor mesmO quando
tenha caráter gratuito, desde que se verifique em local público, porquanto é
justamente a noção de local público que constitui, nessa matéria, o elemento
relevante do ponto de vista jurídico.
Não entra, portanto, na análise do conceito do público o número das peso
soas que assistem ao espetáculo, o local em que se encontram, ou a finalidade
da reunião. Tanto é verdade que a execução musical efetuada numa lancho-
nete tem caráter público mesmo quando não assume a importância de um
verdadeiro entretenimento, como é pública a execução que se verifica na rua,
numa igreja, num enterro.
O fato de essa execução ter sido gravada num disco não altera a situação:
para que possa ser apresentada ao público, terá que haver o prévio assenti·
mento do autor, do artista, da empresa gravadora de discos, o que deixa bem
patente que a execução sonora fixada é, sem dúvida alguma, um bem material,
na sua corporificação, e imaterial no seu conteúdo, ambos juridicamente pro-
tegidos.
Daí a conclusão de que cometerá execução abusiva quem quer que, sem
autorização do autor, ou do artista, de seus sucessores ou cessionários, execute
em público uma obra sua.
:e preciso, pois, estabelecer com toda clareza a distinção entre o conceito
de execução pública e o da reprodução de uma obra musical ou literária.
Por reprodução entende-se a faculdade que cabe ao autor de multipHcar
materialmente, sobre discos, fios, fitas, rolos etc., a obra musical ou oral. Exe-
cução pública será a que se efetue diretamente ou a obtenção da reprodução
acústica, por meio do aparelhamento próprio, dos sons gravados nessas matri-
zes, que se verifique em local de acesso público.
A reprodução já está efetuada no disco: qualfldo ele é posto no prato
giratório, não se verifica mais nenhuma reprodução, mas simplesmente uma
execução med.nÍCa, que também deve ser amparada pelo direito de autor,
independentemente do meio empregado para executar uma composição, ou do
fato de ser pessoal ou mecânica.

2.3 Os elementos subjetivo e objetivo do ato da publicação


A importância do conceito de publicação consiste em que é, ao me\mo
tempo, meio de comunicação da obra à coletividade e ponto de partida para
o exercício das demais prerrogativas que competem ao autor.
A obra, que até então ficava ao seu arbítrio exclusivo, não s6 de diV11 1gá-
la ou não, mas até mesmo de destruí-la, passa a proporcionar-lhe evenb'ais
benefícios patrimoniais, mas, ao mesmo tempo, sofre todas as Hmitações ;ne-
rentes ao aproveitamento da mesma por parte dos usuários.

280 R. InF. legill. Brasília a. 19 n. 74 ailr./J..n. 1982


t nesse sentido que observa PIOLA CASELLI (Nuovo Digesto Italiano) que
a obra intelectual, com a publicação, entra no campo jurídico patrimonial;
atenua-se o senhorio pessoal e assume particulares modalidades de exercício que
se entrelaçam com as formas das novas faculdades patrimoniais. Os requisitos
do ato de publicação e a verificação do momento em que ele existe juridica-
mente assumem, por isso, a maior importâ~cia.
Distingue no ato de publicação dois elementos diferentes: um subjetivo,
outro objetivo.
"Subjetivamente, este ato representa uma determinação de vonta·
de, justificada pelo absoluto senbor!o jurídico sobre a obra e que se
destina a retirar a própria obra da esfera particular da pessoa para
levá-la, num modo particular, ao conhecimento e ao gozo da coletivi-
dade. Esta determinação de vontade compete exclusivamente à pe~soa
do autor, de modo que uma publicação feita por quem não seja o
autor, ou por quem não represente a pessoa do autor por co:ltrato, ou
por ato de última vontade, é juridicamente destituída de valor. Além
disso, tal determinação de vontade cumpre revista-se dos caracteres
gerais de qualquer ato de vontade juridicamente válido, não dever.do,
portanto, ser afetada por erro, violência ou dolo.
Finalmente, a natureza pessoal do direito que se exerce torna
revogável este ato de vontade até que a publicação não tenha ocorrido
efetivamente. Por isso o ato de vo:ltade não tem valor em si, mas em
união ao fato da publicação e ressalvados os casos nos quais " lei
atribui efeitos jurídicos ao ato preliminar da destinação à puhlici-
dade."
Quanto ao elemento objetivo, o aproveitamento econômico realiza-se atra-
vés das duas modalidades principais já aludidas:
a reprodução, que se manifesta através da multiplicação da obra em exem-
plares de papel, telas, plásticos ou metais (fitas, fios, rolos, discos) etc.;
a representação, ou execução: apresentação da obra através das modali-
dades pelas quais pode ser oferecida ao público, visualmente, auditivamente,
ou audiovisualmente, ao vivo ou mediante gravações: leituras, conferências,
discursos, sermões públicos, execuções, representações, projeções, exposü,;ões
públicas etc.

2.4 Evoluiu mudto o conceito de reprodução


O conceito de reprodução evoluiu muito nos últimos anos, em consequen·
cia dos novos aparelhos que a tecnologia coloca à disposição do público.
Ocorre reprodução, no quadro do direito de autor. toda vez que uma ,)bra
do espírito preexistente for fixada num suporte material. }Ias a reprodução
que no caso interessa não é, pelo menos, em geral, a de um único exemplar,
obtida pelo pr6prio interessado, para uso pessoal, mas a de muitos, que, não
sendo autorizada, possa ocasionar dano. haceitável, por isso, devido à ~ua
ambigüidade, a definição do art. 4 Q, IV, da Lei n\> 5.988: "c6pia de obra lite-
rária, científica ou artística, bem como de fonograma".

R. IlIf. legisl. lrasilia a. 19 n. 74 abr./iun. 1982 281


A condição de preexistência exclui do conceito de reprodução a primeira
fixação por ocasião aa criação da obra, por exemplo, a reaação escrita de um
texto, a composição de um quadro, a realização de uma obra cinematográfica.
"Sob esta reserva," - assinala GEORGES KOUMANTOS - "dir-se-á
que toda fixação pode-se fazer, seja a partir de um suporte já existen-
te (manuscrito ou texto impresso, banáa magnética, disco), seja a par-
Ur de uma apresentação da obra sem suporte material (p. ex. emissão
radiofônica ou televisual).
Ocorre igualmente reprodução quando um texto é memorizado
(i[ltegralmente Ou em resumo, mas sem fonnulação autÔnoma) num
computador, bem como quando este texto é. em seguida, recuperado
num suporte material, por exemplo, sobre filme ou ficha ou papt'll im-
presso.
Em contraposição, a recuperação visual fugidia sobre écran não
constitui uma reprodução da obra, mas antes uma representação desta,
representação que, normalmente, deveria ser considerada como pú.
blica."
Insiste:
"O direito de reprodução é reservado ao autor da obra ou ao seu
sucessor ou cessionário. Este princípio foi reconhecido pela Conven-
ção de Berna, por ocasião de sua penúltima revisão em Estocolmo
(1967), e pela Convenção Universal, por ocasião de sua última revisão
em Paris (1971)."
Aludindo aos modernos meios de reprografia, aos quais se acrescentam os
filmes e as fichas, especialmente sob forma de microfilmes e microfichas, fitas
magnéticas, cassetes, videocassetes e outros suportes audiovisuais, bem como
ao armazenamento de textos e esquemas gráficos na memória dos computado-
res, podendo ser reproduzidos em papel impresso a pedido de qualquer inte-
ressado, observa o Professor da Universidade de Atenas:
"Assim, milhares e milhares de páginas, milhares de seqüências
musicais e um grande número de obras cinematográficas ou videográ-
ficas são subtraídos diariamente ao direito de reprodução atribuído
aos autores, reduzindo o proveito que eles poderiam obter de sua obra.
Mas os autores não são os únicos a sofrerem dessa situação; quan-
do seu direito de reprodução foi transferido a um editor, é o editor
que passa a ser a vítima principal desta evolução técnica.
Diante dos autores e dos editores, encontram-se os utilizadores
dos novos processos, os pesquisadores privados, as bibliotecas ou cen-
tros de documentação, as empresas, as administrações, os estabeleci-
mentos de ensino - ou simplesmente usuários que utilizam as novas
possibilidades."
:e
o problema da reprografia, de interesse fu[\damental em nossa época,
em que as máquinas multipl'icadoras com tanta rapidez e a baixo custo permi-

282 R. In'. leglsl. Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982


tem obter cópias das passagens fundamentais dos livros, causando grande pre·
juízo aos autores e aos editores, O mesmo ocorrendo com as gravações sonoras
"piratas", com tanta facilidade obtidas e comercializadas ilegalmente aos mi-
lhões de c6pias no mundo inteiro.
. Esse problema somente agora começa a ser solucionado entre nós, graças
à Lei n Q 6.895, de 17-12-1980, que substituiu as expressões por demais vagas
e amplas do art. 184 do Código Pe:lal: "Violar direito de autor de obra iite-
rária, científic;l ou artística", por uma indicação bem mais precisa:
"Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de
obra intelectual, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem
autorização expressa do autor ou de quem o represente, ou consistir
na reprodução de fonograma e videofonograma, sem autorização do
produtor ou de quem o represente ... "
Estabeleceu, em lugar das penalidades de simples detenção e de uma muI.
ta irrisória, as de reclusão de um a quatro anos e multa de Cr$ 10.000,00 a
Cr$ 50.000,00.

3. A primeira das trü esferas de direitos oriundas da publicação: a do autor


e do artista-intérprete
Nunca se insistirá suficienteme:1te na importância do fato de que o in-
teresse do escritor e do artista, ao criar a obra, é essencialmente o da comuni·
cação ao público, condição primordial para que eles possam obter a remune·
ração a que fazem jus. Enquanto uma obra não for, de al~ma maneira, divul·
gada, ela praticamente não existe. ];;, portanto, com a publicação que a obra é
retirada do âmbito pessoal do seu criador para ser levada ao conhecimento da
coletividade mais ou menos extensa.
Bem se percebe o relevo da determinação da forma e do mome:1to d~ di-
vulgação, que desencadeia, então, uma tríplíce esfera de direitos e de obriga-
ções.
A primeira, mais ampla de todas, é a do próprio autor, de divulgar a c>-ia·
ção a que deu a luz, pela caneta, pela máquina de escrever, pelo pincel, buril,
cinzel, voz, instrumento musical, máquinas foto ou cinematográficas etc., ob-
tendo, por essa forma, os proventos econômicos e outros que sua obra possa
proporcionar.
Em seguida, as mais restritas: a de cada adquirente do exemplar em co-
mércio, e, finalmente, a do público, globalmente considerado.
O autor é o árbitro absoluto da COClveniência, da ocasião, do modo e do
lugar da divulgação da obra.
Enquanto isto não ocorrer, ninguém, a não ser ele, tem qualquer direito
sobre a mesma, reconhecendo-se-lhe até mesmo a possibilidade, embora por
ato de última vontade, de impedir a sua divulgação.
Aponta ALAIN LE T ARNEC, em primeiro lugar, o caráter absoluto e exclu-
sivo desse direito, o que significa que o escritor, o compositor, o artista, têm

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 283


discriclonariedade no que diz respeito à autorização ou recusa da reprodução
de suas obras, seja qual for o processo técnico dessa reprodução, seja qual
for sua forma.
Encontra, no entanto, uma limitação, por exemplo, no exercício do direito
de citação de trechos de sua obra, a todos recrohecido dentro de limites ra·
zoáveis, isto é, em proporção que não venha a estabelecer concorrência ('om
a obra original.
Tem ainda um caráter geral. Se, a princípio, o direito de reprodução rlizia
respeito apenas às obras escritas, às musicais e às de arte figurativa, hoje em
dia tomou uma extensão notável, aplicando-se também às gravações fono~á.
ficas, às obras cinematográficas e de televisão, às traduções e às adaptações.
:e, ainda, alienável, característica que o distingue, nitidamente, do di:-eito
moral.
"Quando o autor exerce essa faculdade, limita para o futuro a sua
liberdade de ação. Ele pode, não obstante, aproveitar ainda a mesma
idéia que forma a base da obra alienada, e até, a rigor, cuida~ do
mesmo tema, mas sob condição de que confusão alguma seja suscetí-
vel de se produzir com a primeira obra, cujo direito de reprodução
foi, por hipótese, cedido. Em outros termos. é claro que ele não se
pode entregar a uma reprodução servil dessa obra."
Demonstra o professor da Faculdade Livre de Direito e das Ciências Eco-
nômicas de Paris que a alienação do direito de reproduçãO, como, de restQ, a
do direito de representação. é medida de uma certa gravidade, em razão das
conseqiiências que daí decorrem, particularmente, da limitação que acarreta
,\ liberdade do autor.
No que consiste a edição, todo mundo sabe: na multiplicação de exem-
plares materiais, em impressos, desenhos, discos, fitas, fios, filmes etc., que
representam o seu suporte físico, o corpus mechanicum, em cCY.ltraposição ao
espírito, à alma da obra, o corpus my8tícum, sobre o qual ninguém, a não ser
o autor, ou excepcionalmente alguém por ele indicado, tem qualquer acesso.
Mas essa multiplicação em exemplares não é suficiente ainda: deve ser
(.'Omplementada pela distribuição dos exemplares, para a sua difusão junto ao
público.
Distinguem-se, pois, na edição (ou na gravação) dois atos diferenh)\; a
multiplicação dos exemplares e a sua difusão.
Além da divulgação das obras impressas. existem outras, cuja natureza
diferrote exige a exteriorização por meio de som da voz do autor ou do ar-
tista, ou por meio de instrumentos, como ocorre nas obras orais, nas dramá-
ticas, melodramáticas, coreográficas, mímicas, cinematográficas.
"Todas estas formas e modos de publicação da obra devem" -
acentua PIOLA CASELLI -, "para constituir publicação, ser acompanha-
das pelo elemento da publicidade, vale dizer, é necessário que a c0-
municação seja feita em favor de um determinado número de pessoas,
as quais possam, gratuitamente ou mediante pagamento, intervir Já
onde se cumpre, se realiza a execução, representação, leitura etc.

284 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. '982


A intervenção de artifícios químicos, físicos ou mecânicos pode
dar publicidade a um modo de exteriorização de que, originariamente,
estava privado, ou combinar, de várias formas, ou transformar estes
modos de publicação, Assim, o fonógrafo, o cinema e a radiodüusão
podem tornar pública uma representação privada e dar lugar, ffit';.mo
em seguida, a formas especiais de edição da obra.
A exposição é, em geral, uma fonua particular de publicação das
obras da arte figurativa. Com relação à arquitetura, ela resulta da
construção levada a efeito da obra em lugar que a ponha à vista do
público. Para as outras obras da arte figurativa, é duvidoso que baste
a exposição e mostras provisórias, nas quais a intenção é de submeter
a obra ao juízo preventivo do público, e dos críticos de modo pJrti-
cular, antes do que entregar a obra de modo definitivo ao conheci-
mento público."
Conclui não restar dúvida, por outro lado, que constitui publicação a ex-
posição permanente ou definitiva, por exemplo, nas salas de um museu ou de
uma academia. Aponta, para estas obras, uma outra forma de publicação:
a constituída pela entrega d~s mesmas ao adquirente, dando lugar à possihili-
dade de um conhecimento indefinido por parte do público, que o autor não
poderia mais impedir ou regular.
Vigora, em matéria de publicação, li independência das formas de publi-
cação, no sentido que O autor, que tenha escolhido um determinado meio, não
perde o direito exclusivo a uma publicação diferente, e este postulado, de que
se podia duvidar antigamente, está amplamente confirmado pela declaração
do art. 19 da lei italiana de 22-4-1941.
Da exclusividade do direito do autor de divulgar sua obra. deduz a dou-
trina dois princípios: 19 ) o autor é livre de qualquer liame jurídico; 29 ) o autor
fica vinculado a certas obrigações.
Na primeira hipótese, o autor ou artista decide soberanamente: ningllém
pode fazer da obra uso algum sem que haja seu consentimento expresso. :€ o
que encarece ROBERT PLAIsANT, tr3:lscrevendo diversos casos jurispruden(';ais.
O pintor CAMOIN tinha rasgado uma tela e atirado fora os pedaços. O
quadro foi reconstituído e adquirido pelo escritor CARCO, que fui obrj~ado
a devolvê-lo ao seu autor.
De acordo com outro acórdão francês, a reconstituição de um filme J par-
tir de restos que foram jogados e sua utilização constitui uma contrafação.
Mesmo a venda ou doação manual do corpus mechanicum de uma obra
não comporta qualquer cessão de direito de autor.
Cabe, ainda, ao autor o direito de elaboração, isto é, de modificar a "or-
ma interna e exterior da obra, de maneira a fazer com que dela resulte uma
obra nova, embora decorrente da anterior. A esta categoria pertencem a tra-
dução, a redução em drama, a redução em filme de uma obra, a dramatização,
a adaptação radiofônica etc.

R. ... f. leela:l. B_rIIa a. 19 n. 74 abr./l_n. 1982 285


3.1 A segunda é a do adquirente do exemplar; a terceira, do público, global-
mente considerado
Vêm, em seguida, os direitos, muito limitados, de cada ad~irente do
exemplar em comércio, de um livro, de uma gravação musical: poderão fazer
uso individual de caráter restrito e particular.
Quando muito, como concedem algumas legislações, dentro do círculo or-
dinário de uma família, de uma escola, de um internato, usos esses que, por
extensão, ainda se consideram privados e subtraídos à exclusividade do autor,
(l11e s6 se manifesta sobre os qualificados como públicos.
Não poderá, no entanto, cada adquirente servir·se desse exemplar para
orgMlizar execuções com caráter público, sem que para tal consiga especial
licença do autor. .
f: isso porque trata-se, como vimos, de faculdade distinta, proporcionando
a edição um gozo meramente individual, isolado, ao passo que a execução e a
representação possibilitam uma forma de aproveitamento público e contem·
porâneo, cuja exploração também deve ser autorizada pelo autor.
A diferença característica entre a edição e a execução consiste em que a
obra editada, uma vez posta em circulação, não está sujeita a qualquer verifi·
cação, pois seus adquirentes - em localidades e em momentos diferentes - se
reúnem numa idealidade orgânica, cO"1correndo a formar aquele público ao
qual justamente se dirigia.
"A execução, ao invés" - é G. CABRELLI quem estabelece a dis-
tinção -, "não é mercadoria que circula: somente quem a ela assiste
pode gozá-Ia. Ele não vive seaáo a hora fugitiva da sua atuação: o
seu público deve ser imediato, não existem, pois, dificuldades de tem-
pos ou de espaços para distingui-lo. Está lá, recolhido para aquele
determinado escopo e naquele determinado lugar, e deve estar ai na·
quele instante ou nunca mais."
Segue-se, finalmente, o aproveitamento da obra por parte da comunidade,
também sujeito a um balanceamento de pesos jurídicos que delimitam entre o
autor e o público os direitos e os deveres, a bem de uma complementação ne..
cessária de interesses tanto na ordem individual comu na coletiva.

BmLIOGRAFIA
CARRELLI, Gustavo - "L'esecuzlone pubbllca di opere radiodlffuse", 11 Df-
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CHAVES, Antônio - Direito Autoral de Radiodifusão. S. Paulo, Ed. Rev. doa
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286 R. In'. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Os processos modernos de comunicação
e o Direito de Autor
CARLOS ALBERTO BITTAR
Doutor em Direito pela Universidade de
São Paulo. Membro Efetivo do Conselho
Nacional de Direito AutoraJ..

SUMARIO

I - O DIREITO DE AUTOR NAS COMUNICAÇõES


1) Delimitação e importância do lema
2) O Direito de Autor: conceito, sujello e objeto
3) Alcance: direitos de autor e direitos conexo.
4) Extensão: direitos morais e direitos patrtmanla.
5) Níveis de incidência nas comunícaç6e8, na crlaçlo,
na reprodução e na representaçAo de obras inte-
lectuais
11 - OS PROCESSOS MODERNOS DE COMUNICAÇAO E O
DIREITO DE AUTOR
6} Os processos modemos de comunIcação e a postura
do Direito de Autor: posição Iniciai e evolução
7) As novas técnicas de expressão e de comunlcaçio e
os problemas suscitados: na criação (a publicidade);
na r ~ i o (o c\nema, a \ellMaio, o u\Mfte
de comunicação); e na reprodução (a fotocópia, a xe-
rocópia, a microfilmagem, a computação, os casseles
e os videoC8Slletes)
s) A inadequação das normas e doa "&temas e demall
fatores que dificultam a concretiz~i1o doi direitos de
aulor e conexos em certos campos
111 - NOSSAS PROPOSTAS E SUGESTõES PARA O EQUA-
CIONAMENTO DOS PROBLEMAS EXISTENTES
9) Propostas com relação à criação (a soluçA0 p818. a
publicidade)
10) Propostas com relaçio à representação (as qu.-t6es
do cinema, da televisão e dos satélites)
11} Proposta. com relação à reproduçãO (respostas à re-
prografla e • denominada "piralarla" de fonognlmae
e de Y1deofonogramas)
12) ConcIudo

Tese ao X Congresso Mundial de D.\reito, São Paulo, agosto de 1981.

1.. lnt. 'egdt Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 287


I - O DIREITO DE AUTOR NAS COMUNICAÇOES

1) Delimitação e importância do tema

O século presente caracteriza-se, sobremaneira, pelo extraordinário


avanço das técnicas, que têm introduzido, na fenomenolog'ia das comuni~
cações, novos e sofisticados aparelhos e máquinas de reprodução e de
representação de escritos, imagens e sons, suscitando uma extensa gama
de problemas no campo dos direitos da personalidade e, em especial, do
Direito de Autor, um dos direitos fundamentais do homem, reconhecido
em órbita internacional (v., a respeito, o nosso artigo "Os direitos da per·
sona/idade e o Projeto de Código Civil brasileiro", in Revista de Into.m.
çio Legislativa, n. 60, p. 105).
Da fotografia ao cinema, do rádio à televisão e ora aos satél.ites, das
impressoras manuais às máquinas de reprodução xerogránca e à micro-
filmagem, o homem moderno tem assisUdo a uma notável expansão dos
meios de comunicação, que lhe invadem a privacidade, mudam-lhe con~
ceitos e impõem-lhe novos hábitos, influendando, pois, de modo indelével,
a sua vida e o seu modo de ser.
Ora, na base desse progresso está o próprio engenho humano, em
sua mais alta expressão, que é a criação intelectual, que faz nascer os
aparatos necessários à comunicação e, depois, alimenta-os com suas ma-
nifestações, pOr meio de uma plêiade de escritores, artistas, poetas, com-
positores e outros intelectuais, possibilitando, não só a sua existência,
°
como também seu próprio desenvolvimento.
Mas o inarredável conflito entre as forças cri:a1ivas e o capital que as
movimenta ou dirige e, mesmo, o choque entre os interesses individuais e
os coletivos vêm introduzindo, continuadamente, inúmeras e diferentes
questões no oampo do Direito e em especial do Direito de Autor, em cujo
âmbito se protegem as criações intelectuais dos dominios literário, artis-
tico e científico, como universalmente se reconhece.

Daí por que nos voltamos para essa problemática - em que temos
desenvolvido estudos e pesquisas, ferindo vários de seus aspectos, em
sucessivos estudos -, procurando ora mostrar, à luz da realidade atual, a
posição dos direitos autorais frente às técnicas de comunicação, culmi-
nando por oferecer propostas e sugestões que temos ideado para o equa-
cionamento dos pontos de conflito existentes e a efetiva concretização
prática desses direitos, de suma importância no mundo juridico, porque
respeitam ao próprio homem em sua essência criadora.
Para tanto, partiremos da enunciação de certas noções 1undamentais
sobre O Direito de Autor, para a exata compreensão de sua dimensão a,
em seguida, descerraremos a temática proposta, em suas mais significa-
tivas nuances, enfatizando, nesse contexto, a já expressiva experiência
brasileira na matéria.

288 R. h.f. 'C/9i.l. 8rcrdfút G. 19 11. 74 .6r./jun. 1982


2) O Direito de Autor: conceito, sujeito e objeto

Conforme salientamos em nosso livro-tese Direito de Autor na Obra


Feita sob Encomenda (publicado em São Paulo, pela Editora Revista dos
Tribunais, p. 1), o Direito de Autor é o ramo da ciência jurídica que prote-
ge, sob os aspectos moral e patrimonial, o criador de obra ,intelectual,
literária, artística ou científica (v., também, o verbete "Direito Autoral", de
nossa autoria, in Enciclopédia Saraiva de Direito, valo 25, p. 363, e extensa
bibliografia ali referida).

Constitui-se de um conjunto de princípios e de normas, estratificados


qu'sse sempre em leis especiais, destacadas das codificações, em que se
objetiva cercar de amparo jurídico os autores de obras de espírito.

São esses, pois, os titulares dos direitos em questão, podendo, no


entanto, obedecidos os pressupostos necessários - erigidos em sua de-
fesa -, negociá-los com terceiros para sua utilização, por meio das dife-
rentes figuras contratuais existentes nesse campo. E isso ocorre com fre-
qüência na prática, mediante, principalmente, contratos de cessão de di-
reitos e de encomenda de obras intelectuais, que permitem aos empresá-
rios do setor colocar a obra à disposição do público, pelos meios possí-
veis, como edição, gravação, execução, exposição e demais processos
existentes (v., a respeito, nosso livro citado, pp. 27 e seguintes).

As obras protegidas por esse direito são as criações intelectuais de


feição estética, dos domínios literário, artístico e científico (MÁRIO ARE:
L'Oggetto dei Diritto di Autore, Mil.ano, Giuffrê, 1963, pp. 29 e seguintes;
PAOLO GRECO e PAOLO VERCELlONE: I Oiritti sulle Opere del'lngegno,
Torino, Torinese, 1974, p. 36; TULUO ASCARElLl: Teoría de la Concurren-
ela y de los Bienes Inmateriales, trad., Barcelona, Bosch, 1970, pp. 634 e
seguintes, dentre outros escritores. Em nosso direito positivo e a exemplo
de outros, existe enumeração legal exemplificativa de obras protegidas:
L'ai nQ 5.988, de 14-12-1973, artigo 69).

Ampara esse Direito a fo'rma original criada pelo autor, desde que o
substrato ideológico é comum a todos (v. dentre outros autores: EDUARDO
PIOLA CASELLI: Trattato dei Oiritto di Autore e dei ContraUo di Edizione,
Torino, Torinese, 1927, pp. 205 e 5egs.; VAlt:RIO DE SANCTIS: Contratto
di Edizione - COntratti di Rappresentazione e di Esecuzione, Milano,
Giuffre, 1965, p. 7; RENEE PIERRE LEPAULE; "Le Oroit d'Auteur sur SOR
Oeuvre. Paris, Dalloz, 1927, p. 21; ALAIN LE TARNEC: Manuel de la
Propriété Littéraire et Arlistique, Paris, Dalloz, 1966, p. 177; ANDRÉ
FRANÇON: La Propriété Littéraire et Arlistique, Paris, PUF., 1970, p. 9;
HENRI DESBOIS: Le Droit d'Auteur en France, Paris, Dalloz, 1966, pp. 20 e
segs.; CLOVIS BEVILAQUA: Código Civil Comentado, Rio, Editora Rio,
1978, v. I, p. 1.115; e PEDRO VICENTE 808810: O Direito de Autor na Cria-
çlo Musical, S. Paulo, lex, 1951, pp. 13 e segs.), protegendo-se as obras in-
dependentemente do mérito ou da destinação (PlOlA CASElLl, op. cit.,
pp. 62 e segs; MÁRIO ARE: op. cit., pp. 163 e se95., dentre outros escri-
tores) .

R. Inf. letill. Brasília a. 19 n. 74 C1br./jun. 1982 289


3) Alcance: direitos de autor e direitos conexos

Fruto do liberalismo, ·como os demais direitos do homem - que o


descartou do editor, conferindo-lhe foros de di·reito positivo -, apresenta
o Direito de Autor uma ratio especial: a da proteção do criador intelec-
tual. Volta-se, pois, essencialmente, para o amparo ao autor de obra de
engenho (v. o nosso artigo "O Direito de Autor do plano das I,iberdades
públicas", na Rev·ista Justitia, nC? 98, pp. 165 e segs., em que analisamoti,
em profundidade, a essência e a evolução do Direito de Autor; V., tam~
bém, ~DOUARD SILZ: "La notion juridique de droit moral de I'auteur", in
Rev. Trim. de Droit Civil, XXXII, p. 394; GEORGE MICHA~L1DES NOUA-
ROS: Le Droit Moral de l'Auteur, Paris, Arthuf Rousseau, 1935, p. 50; 151·
DRO SATANOWSKY: Derecho Intelectual, Buenos Aires, Tipográfica Ar~
gentina, 1955, pp. 14 e 5egs.; HERMANO DUVAL: Direitos Autorais nas
Invenções Modernas, Rio, Andes, 1956, pp. 11 e 12).

Mas, por assemelhação e em função da estreita relação existenl~ l,;01ll


os direitos de autor, são reconhecidos, ainda, no contexto desse direito,
os denominados "direitos conexos", "análogos" ou "vizinhos", que alber-
gam certas categorias de criadores intelectuais, que contribuem para a
difusão ou para a realização das obras de engenho.
Assim, compreendem-se em seu âmbito os direitos de autor (como
os dos escritores, poetas, compositores, pintores, escultores e outros) e os
que lhes são conexos (como os dos artistas, intérpretes, executantes, pro-
dutores de fonogramas e empresas de radiodifusão) (v. o verbete "Direitos
Conexos", de nossa autoria, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 28,
pp. 116 e se9s., e a ampla bibliograf,ia especial 'ali citada).

4) Extensão: direitos morais e direitos patrimonlals

O Direito de Autor lobriga prerrogativas de ordem moral e de ordem


patrimonial, aquelas relativas ao vínculo pessoal e perene que une o cria-
dor à sua obra, e, estas, referentes ao aproveitamento econômico da obra,
mediante a participação do autor em todos os processos de utilização pos-
síveis (v. ANTONIO CHAVES: Direito Autoral de Radiodifusio, São Paulo,
Max Limonad. 1952, pp. 311 e segs. e 328 e segs.; PEDRO VICENTE
BOBBIO: op. ciL, pp. 7 e 8, dentre outros escritores).

Defluem dessa noção vários e distinto's direitos. Os direitos morais


estendem-se desde o direito de inédito até os de defesa de paternidade,
de correção, de modificação e outros. Os direitos patrimoniais consubs-
tanciam-se na faculdade de o 'autor usar ou autor:izar a utilização da
obra no todo ou em parte, dispor desse direito a qualquer título, transmi-
tir os direitos a outrem, no todo ou em parte, entre vivos ou por sucessão
(fórmula da Convenção de Washington, 1946) (v. verbete "Direito Autoral",
citado, p. 366). A respeito, ainda, dentre inúmeros outros autores: VA-
LI:RIO DE SANCTIS: "Diritto di Autore", in Enciclopedia dei Diritto, vaI.
IV, pp. 378 e 5eg5.; GIUSEPPE PADELLARO: 11 Diritto d'Autore. La Diseipli.

290 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


na Glurklica di Strumenti di Comunicazione Sociale, Milano, VaHardi, 1972,
pp. 7 e 5egs.; PAOLO GRECO e PAOLO VERCELLONE: op. cit., pp. 103 e
5egs.; ANDR~ FRANÇON, op. cit., 1970, pp. 45 e segs.; STIG STROMHOLM:
Le Droit Moral de l'Aul9ur en Droit Allemand, Français et Scandinave,
Stockholm. P.A. Norstedt & Soners, 1966, v. I, pp. 1 e segs; PONTES
DE MIRANDA: Tratado de Direito Privado, S.?, RT, 1977, v. XIV, pp. 10 e
seg5.; CARVALHO SANTOS: Código Civil Brasileiro Interpretado, Rio,
Freitas Bastos, 1963, vol. VIII, pp. 403 e segs.
Esses dir.eitos são independentes entre si, fazendo nascer para o
autor, cada qual, a remuneração correspondente, como, p. ex., os direitos
de gravação e de execução pública, para as composições musicais; as
edições gráficas e as representações para as obras teatrais; os direitos de
adaptação ao cinema e à televisão, para as obras literárias, e assim por
diante.
Realizam-se, na prática, por formas as mais d'iversas, dentro dos dois
processos fundamentais - a representação eareprodução - , com a ex-
tensa especificação hoje existente, em virtude do progresso das comuni-
cações (v. a nossa tese cit., pp. 27 e segs., em que os enunciamos).

5} Níveis de incidência nas comunicações: na criação, na reprodu-


ção e na representação de obras intelectuais

Representa o Direito de Autor um complexo sistema, em que se reco-


nhecem direitos nos criadores intelectuais, em três nivais distintos de rea-
lização e de comunicação das obras de engenho, e que se completam, a
saber: a) na croração da obra; b) em sua reprodução (como, por exemplo,
nas diferentes formas de edição: gráfica, fonográfica, fotográfica etc.) e
c) em sua representação (no cinema, no rádio, na televisão, em satélite
etc.) .
Decorre daí um verdadeiro feixe de direitos, de cunho moral e patri-
monial, desde o nascimento da obra, como, dentre inúmeros outros, os de
paternidade, o de inédito, e o de perceber a remuneração ajustada para
sua elaboração e para a sua utilização.
Direitos incidem depois na reprodução ou na representação da obra,
e, em qualquer caso, necessária se faz a prévia e expressa autmização
do autor para a sua efetivação. Ademais, em cada forma di'stinta de utr-
Iização deve haver a remuneração correspondente ao autor (assim, verbi
gratis, na reprodução em fita de música gravada em disco; em suainser-
ção em outro disco; em sua execução no rádio, ou na televisão, e assim
por diante). Em cada processo de utili~ação nasce o direito à remunera-
ção autoral, em face da independência entre as d'iferentes formas de co-
municação da obra.
Dessa mane,ira, a cada meio de comunicação corresponde um direito
ao autor (como, p. ex., na adaptação de texto literário para o cinema; para
a televisão; para o rádio, e assim por dtante).

R. Inf. legill. Brasília o. 19 n. 74 abr,/jun, 1982 291


Isso se deve à estreita interligação entre o Direito de Autor e as for-
mas pelas quais a obra se comunica ao público, e que vem desde os pri-
mórdios de sua manifestação, concretizando-se depois em convenções
internacionais, as quais, exatamente por ,imposição do desenvolvimento
das técnicas, vêm sofrendo revisões periódicas, para que cada novo pro-
cesso ingresse no circuito protetor do Direito de Autor.
Já na primeira convenção internaoional, de Berna, em 1886, se sentiu,
a nível positivo, o impacto das técnicas nessa matéria, quando se tna'lfa-
ram longas discussões sobre o alcance ou não da fotografia no âmbito do
Direito de Autor, e que terminaram por sua inserção, bem como a do ci-
nema e de outros processos depois -integrados.

11 - OS PROCESSOS MODERNOS DE COMUNICAÇÃO E O


DIREITO DE AUTOR

6) Os processos modernos de comunicaçlo e a postura do Direito


de Autor: posição inicial e evolução

Com efeito, o Direito de Autor está ligado, indelevelmente, desde o


seu surg'imento, às formas de comunicação, cuja evolução acompanha,
influenciando-as e sofrendo a sua ingerêncla, em um processo contfnuo a
°
inelutável de mútua independênoia, que, a um passo, propicia extraordi-
nário desenvolvimento desse direito a, paradoxalmente, cria óbices, às
vezes intransponíveis, para a sua preservação e, mesmo, para a sua con-
cretização prática.
De fato, vislumbrado, sob certo aspecto, no mundo antigo, esse direito
passou, com a invenção da imprensa e a conseqüente possibilidade de re-
produção de textos em série, a traduzir-se em um sistema de privilégios
que se concediam aos editores para a exploração econômica de obras li-
terárias (v., dentre outros autores, EUGi:NE POUILLET: Traité de la Pro-
priété Littéraire et Artistique, Paris, Lib. Générale, 1908, pp. 1 e segs.;
i:DOUARD LABOULAYLE: ~tudes sur la Propriété Littéraire en France et
en Angleterre, Paris, A. Durad, 1858, 'Pp. 8 e 59g5.; LUIGI DI FRANCO:
Proprietà Industriale, Lelteraria ed Artistlca, Milano r Società Editrice Li-
breria, 1936, pp. 527 e segs.; PAOLO GRECO e PAOLO VERCELLONE: op.
cit., pp. 1 e 5egs.; CARLO CRISTOFARO: Tratatto dei Diritto di Autore e
d'lnventore, Torino, Bocca, 1931, pp. 8 e seg5.; SAMUEL MARTINS: Direito
Autoral, seu Conceito, sua História e sua Legislação entre Nós, Recife,
Livrari'a Francesa, 1906, pp. 6 e 7; ODOO BUCCI: Interesse Pubbllco e
Oir:"o d'Autore, Padova, Cedam, 1976, pp. 13 e segs.; K. STOYANOWITCH:
Le Orait d'Auteur dans 181 Rapports entre la France et 185 Pays Sociallstes,
Par:s, Lib. Générale, 1959, pp. 21 e segs.).
Evoluiu depois, no entanto, para, com a Revolução francesa, vir a
proteger o autor da obra, como direito Hgado à criação intelectual, graças,
principalmente, ao labor que, naquele país, se desenvolveu em defesa dos

292 R. Inf. legisl. Braeilio o. 19 n. 74 obr./jlln. 1982


direitos inerentes ao homem (v., dentre outros inúmeros autores, MARIE
CLAUDE OOCK: ~tude sur le Oroit d'Auteur, Paris, Ubrairie Générale.
1963, pp. 150 e seg5.) ..

Em função de sua importância e de seu dinamismo, o Direito de Au-


tor expandiu-se de tal sorte a alcançar, em fins do século XIX, consagra-
ção universal, tendo insp·ira,do a realização de várias convenções interna-
cionais, desde a de Berna (citada), em que se criou 'a designada "União de
Berna" - que hoje congrega dezenas de países - , bem como de trata-
dos e de conclavesinternaoionais em nosso século.

No plano nacional, tem merecido a edição de leis especiais para a


sua regulação, em que se vêm acentuando os princípios e regras que hoje
lhe conferem o 'cunho de direito especial e que lhe realçam o caráter de
poderoso instrumento de defesa das culturas locais, gerando, inclus:ve,
a criação de organismos nacionais de regulação e de fiscalização, como
entre nós, o Conselho Nacional de Direito Autoral (criado pela Lei
09 5.988/73: arts. 116 e segs.), que vem trabalhando arduamente para
s implantação, em certos casos, e o aperfeiçoamento, em outros, desses
direitos, desde a sua reestruturação ocorrida no inicio do ano passado.

Ademais, acompanhando a própria evolução experimentada nas co-


municações, o Direito de Autor tem-se afirmado em concreto nos dias
atuais, ganhando, dentro do Direito privado, foros de autonomia, para
inserir-se, consoante a doutrina, no contexto dos denominados "direitos
~ntelectuais", ao lado do "direito de propriedade -industrial" (v. ARMINJON,
NOLDE e WOLFF: Traité de Oroit Compare, Paris, Ub. Générale, vaI.
li, n9 40; JEAN ESCARRA: Droits Intellectuels, Paris, Ub. Del-ag'rave, 1933,
pp. 230 e segs.; CARLOS MOUCHET e SIGFRIDO RADAELLI: Derechos
Intelectuales sobre las Obras Literarias y Artísticas, Buenos Aires, Abeledo
Perrot, 1960, pp. 71 e segs.; MARIO ARE: op. cit., p. 17; ISIDRO SATA-
NOWSKY: op. C'it. v. I, p. 113; MARCEL CRIONNET: Les Droits Intellee-
tuBls et 188 Régimes Matrlmoniaux en Oroit Français, Paris, Ub. Géné-
rale, 1975, 'D. 1; FILADELFO AZEVEDO: Direito Moral dos Escritores, Rio,
Alba, 1930, p. 10, dentre inúmeros outros autores).

7) As novas técnicas de expressA0 e de comunicação e os proble-


mas suscitados: na criação (a publicidade); na representação
(o cinema, a televisão e o satélite de comunicação); e na repro-
dução (a fotocópia, a xerocópia, a microfilmagem, a computação,
os cassetes e os videocassetes)

Mas, no século presente, em que ocorreram verdadeiras revoluções


no plano das comunicações, com a eclosão de diferentes e fantásticos
processos de expressão e de reprodução e de representação de obras
intelectuais, inúmeros problemas vieram a povoar o campo do Direito
de Autor, desafiando a argúcia dos estudiosos e dos interessados na
matéria, de governantes e de legisladores, de administradores e de titu-
lares de direitos, na busca de soluções.

R. Inf. leg!.!. Bro.íIiCll a. 19 n. 74 obr./jun. 1982 293


Com efeito, a expansão da publ,icidade; a sedimentação dos pro-
cessos de fotografia, em múltiplas novas utilizações; o desenvolvimento
do rádio e do cinema, em novas dimensões; a explosão da televisão a,
mais recentemente, dos satélites de comunicação; a a disseminação dos
processos de 'reprodução por xerografi'a, por microfilmagem, por compu-
tação, por cassetes e por videocassetes, imprimiram feições novas e mais
amplas ao Direito de Autor, descerrando diferentes canais de comunica-
ção às obras intelectuais e agora de proporções infinitas.
Isso tudo abriu perspectivas amplíssimas às criações intelectuais,
gerando, para os autores, novos campos de atuação e novas fontes de
receitas, e permitindo uma crescente expansão do Direito de Autor a
nível internacional, com revisões periódicas das convenções existentes
e a celebração de inúmeros novos acordos e a realização de estudos
sobre a matéri'a, sob a égide de duas organizações internacionais que
se dedicam a essa temática, a UNESCO e a OMPI.
Conseguiu-se, com isso, a sua penetração, mesmo nos parses ainda
em desenvolvimento, que, embora, de pequenas proporções econômicas
e situ'ados em longínquos rincões, contam com legislação espec:fica e
com mecanismos de efetivação desses direitos.
Mas, em contraponto, vem o Direito de Autor sofrendo o influxo
dessas mesmas técnicas que, a par de permitir a reprodução e a repre-
sentação de obras intelectuais ao infinito, exig,indo renovados esforços
criativos, acabam, de outra parte, expondo a toda sorte de lesões e viola-
ções as obras protegida8, pela crescente disseminação dos respectivos
aparartos por todo o universo e pelas faomdades com que se operam.
Em conseqüência, vêm sendo compl1imidos e mesmo desrespeitados
os direitos de autor, sob o impacto das tel,evisões, dos satélites, dos
computadores, das máquinas de microfilmagem e de xerografia e outros
tantos engenhos que povoam o extraordinário mundo das comunicações.
Com efeito, dependendo de criações intelectuais para sua movimen-
tação, esses aparatos, que são domi:nados por vultosos capitais, empre-
gando os criadores ou, mesmo, obtendo a cessão de direitos sobre suas
obras, di,fundam-nas a centenas de milhares de pessoas em toda parte,
seja para sensibilização visual, seja auditiva, seja audiovisual e demais
formas possfveis.
Permitem, ademais, a sua reprodução continuada e em seqüência
~nfinita,expondo as obras a tO<la espécie de violação que o uso das
máquinas permite, como, por exemplo, a gravação não autorizada de
obras musicais em fita; a gravação em teipe de programa de televisão
ou de filme; a reprodução por satél,ite de obras de cinema ou de televisão;
a reprodução em xerocópi,a de livro ou outro escrito; a micrommalgem
de textos, e assim por diante.
A técnica põe em risco, pois, as cri'ações intelectuais, possibilitando
utilizações não autorizadas, com vultosos prejurzos para os autores e,
mesmo, editores, <lesvi'ando os usuários da aquisição dessas obl1ss e
furtando aos autores a justa remuneração.

294 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Esses problemas extstem nos três níveis de rel'aoionamento entre o
Direito de Autor e os processos de comun'icação. Assim, tanto na criação
(principalmente na publ,icidade), como na reprodução e na representação
(principalmente com a reprografia, a televisão e o satélite) de obras in-
teJectua,js há pontos de conf1itos e inúmeros interesses em questão, a
saber: dos autores, dos empresários, do setor, e dos usuár.ios dos sistemas
correspondentes.

Esses conflitos têm sido apontados pelos doutrinadores, em todos 00


países civilizados e, mesmo, debatidos em conclaves internacionais e
internos sobre Direito de Autor - inclusive nos organismos de controle
e de regulamentação da matéria -, em que se vêem refletidas as preo-
cupações de todos os que se dedicam a esse campo, tntentando-se
alcançar soluções que atendam aos interesses em jogo.

De nossa parte, a par de aplicação a casos concretos no exercício


profissional, temos desenvolvido, para o equacionamento dos problemas
apontados, estudos e pesquisas, chegando à formulação de propostas e
sugestões concretas tendentes à sua solução, que oferecemos em vários
trabalhos já publicados ou em publicação, de que nos permitimos c'itar:
Direito de Autor na Obra Feita sob Encomenda (livro), São Paulo, RT,
1977; Direito de Autor na Obra Publicitária (livro), São Paulo, RT, 1981;
"Reprografia e Direito de Autor" (tese), in Revista de Informação Legisla..
tiva, n9 58, pp. 181 e segs.; "O Direito de Autor no pr'sno das liberdades
públicas", in Justitia n9 98, pp. 165 e segs.; "I nterpretação no Direito de
Autor", in Rf 266, pp. 67 e seg5.; "Direito Autoral" (verbete) e "Oabovisão"
(comun,jcação por satélite) (verbete), ,in Enciclopédia Saraiva do Direito,
dentre outros (nos quais apresentamos a rica bibliografia específ,ica exis-
tente).

8) A Inadequação das normas e dos s:stemas e dema!s fatores que


dificultam a concretização dos DÚ'eitos de Autor e conexos em
certos campos

Mas, inobst8lnte os esforços despendidos em todos os países e,


mesmo, a edição de normas específicas, persistem ainda inúmeras pen-
dências para a efetiva concretização prática dos Direitos de Autor e
conexos, em vários (praticamente todos) países que os reconhecem.

Com efeito, restam ainda sem concretização vários setores do Direito


de Autor, cujos titulares não conseguem, pois, haurir os proventos que
por justiça lhes pertencem.

Fatores vários contribuem para esse estado de coisas e muitos de


caráter local, insuscetíveis, pois, de elencação exaustiva.
Mas, dentre as causas não poderíamos deixar de destacar algumas
que, normalmente, estão na base de qualquer debate sobre a matéria, a
saber: a) inadequação das nor:mas e dos sistemas, seja pela inexistênoia

R. Inf. 1.9111. Bra.ma a. 19 n. 74 ab,./jUIl. 1982 295


ou pela ineficácia das normas, seja pela inexistência ou pela insuficiência
de mecanismos de arrecadação ou de controle de direitos; b) um certo
desconhecimento da matéria; c) renitência de empresários pouco respon-
sáveis e outros.
Com isso, deixam os autores e demais titulares de receber a remu-
neração autoral devida; ou ocorre evasão sensfvel de rendas, ou sim-
plesmente escapa a matéria à sistemátioa de cobrança. Inexiste, pois,
implemento total ou parcial - conforme o caso - dos direitos patrimo-
niais de autor, que se vê privado dos rendimentos que a utilização de
sua obra produz (sem falar-se - é claro - de outras violações, que
existem, na área do direito moral, não inseridas, no entanto, no contexto
do presente trabalho).
Com efeito, embora paradoxal, em função do grau de universalidade
e especificidade alcançados, o Direito de Autor ainda não conta com
legislação adequada em certos aspectos, bem como se mostra desconhe-
cido em certos setores.

Arestas existem quanto à formulação de certas naromas, que susoí1am


dúvidas na aplicação; certos campos se encontram ainda não regulados;
e em muitos casos as normas existentes não são de molde a possibilitar
pronta e eficaz concretização (assim, por exemplo, no campo da televisão,
da reprografia, da publici·dade, dentre outros), exig'lndo minu-ciosa regu\a-
mentação.
De outro lado, inobstante existam organismos próprios de controle
e de arrecadação, mesmo de cunho estatal, ou não se tixaram mecanis-
mos adequados para a sua cobrança (como na publicidade). ou a.inda não
se alcançou nível de aperfeiçoamento suscetível de abranger um número
ma;or de integrantes no respectivo sistema de arrecadação (como na
música), que, ao revés, deixa à margem grande parcela de contribuintes.

A par disso, na vacância de normas, ou na inexistênda de disposI-


ções adequadas, infiltram-soe as diferentes formas de reprodução de obras
(espec;almente, a xerografia e a gravação em fitas) e de representação
(principalmente a televisão e o satélite), que acabam por apartar-se dos
sistemas de cobrança existentes, ou por minar ,as fórmulas propostas,
ou em execução, d'e pagamento de direitos autorais.
Paira, outrossim, certo desconhecimento do Direito de Autor, mesmo
no mundo da atividade empresarial e - pasmem - no mundo advocatrcio
e judicial. Ditada por deficiências do ensi'no e outros fatores ligados à
vida profissional e empresarial, a verdade é que, em muitos campos, não
se tem conhecimento ou mesmo perfeita compreensão d'aexistêncla e
do sentido desse direito. Às vezes, ,até por comodismo e ,por forma de
escape, tem esse desconhecimento sido invocado no terreno empresarial.

Mas ainda temos que anotar a renitênc:'a de empresários pouco res-


ponsáveis que, ávidos de lucro, e, dentre outros expedientes, sob a falsa
premissa de que a remuneração paga ao autor contratado, ou mesmo

296 R. lnl. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


como empregado, cobre qualquer utilização de sua obra, negam-se a
satisfazer os direitos autorais devi<Jos, ou crram obstácu:los jurfdicos ou
políticos à sua concretização, com sacrifícios para os criadores e deses-
timulo para o aperfeiçoamento cultural, artístico ou literário do próprio
País.

Tudo isso, pois, tem obnubilado o resplandecer do Direito de Autor


na prática, em certas áreas, gerando conflitos, que permanecem sem
solução, inobstante muitas sejam de fácil reaHzação, desde que haja a
integração necessária dos interesses em causa. Mas, mesmo os direitos
de difícil efetivação podem, no entanto, ingressar em sistemas de cobran-
ça e de controle perfeitamente exeqüíveis.

Deter-nos-emos, no presente trabalho, em áreas a respeito das quais


já tivemos ,a oportunidade de oferecer propostas concretas para a reali-
z·ação desses dire.tos.

111 - NOSSAS PROPOSTAS E SUGESTOES PARA O EQUACIONAMEN-


TO DOS PROBLEMAS EXISTENTES

9) Propostas com relaçlo à criaçlo (a soluçA0 para a publicidade)

Assim, na problemática da criação, analisamos profundamente a


publicidade, em que sugerimos (no livro-tese citado) a instituição de sis-
tema de pag'arnento e de controle desses -direitos nos próprios contratos
de publicidade, nos quais se inseriam cláusulas especiais de direitos
autorais, desde os contratos entre o anunciante e aagénc'a; a agêncta
e os criadores; e a agência e a produtora de fonogramas (ou de filmes).

Estipular-se-iam em contratos - que poderi·am ser padronizados -


os direitos autorais, que girariam em torno da verba publicitéria, fixan-
do-se proporcionalmente em função do custo da campanha e cobrando-se
antes da respectiva veiculação (nesse sentido, eI'aboramo's, sob encomen-
da da Associação Brasileíra dos Anunciantes, modelo's de contratos nos
termos propostos, acompanhados de amplas explicações sobre os direitos
autorais na publicidade, recentemente editados e distriburdos pela enti-
dade às empresas f.iHadas).

Em cada renovação da campanha, inoidiria a cobrança dos direitos,


em razão do quantum def,i'l1i<io no contrato, com a respectiva correção
monetária e ,pelos rndices legais vigentes.

O sistema abrangeria todas as criações individualizadas ou individua·


Iizéveis na publicidade, inclusive a obra publicitária final (exemplo: texto
no anúncio; tela em um visual; participação de ator em filme etc.), des-
cartando-se, é claro, as já integradas em outros sistemas (como o de
execução de obras musicais).

R. Inf. l_glII. Brasília a. 19 n. 74 abr./iun. 1982 297


o controle seria feito pela agência ou pela produtora, com os meios
de que dispõem, valendo-se inclusive das anotações das empresas de
controle de anúncios em rádio e em televisão.
Esse sistema já está sendo posto em prática em São Paulo, no rela~
cionamento entre o Sindicato das Agências de Publicidade e o dos Arti~
tas, que se fundam em contrato-base por nós elaborado e proposto à
aprovação das refer;das categorias. São previstos os direitos autorais e
conexos, por ajuste entre os contratantes, com correção monetária na
reexibição, a par de outras disposições específicas (v., sobre publicidade,
além do livro citado, 05 artigos de nossa autori'a: "Direito de Autor nBlS
obras publicitárias", in O Estado de S. Paulo, de 5~10~78t p. 39; e "Contra-'
tação de artistas para publicidade", in Diário Legislativo 10B, nQ 784,
pp. 390 e seg5.).

10) Propostas com relação à representação (as questões do clne~


ma, da televisão e dos satélites)

No terreno da representação, problemas existem, principalmente no


cinema, na televisão e na comunicação por satélite (que envolve também
reprodução).
O mesmo sistema de pagamento e de controle por meio de contratos
poderia ser erigido pa,ra os processos em questão, afastando-se as obras
já inclurdas em mecanismos próprios de arrecadação (como as obras
musicais, que segu,em o si,stema de pontuação).
A autorização autoral poderia ser obtida em contrato (ou nota con~
tratual ou documento equivalente), dos próprios titulares, ou d'as associa~
ções representantes, sejam autores, diretores, atores, in1érp'retes e de-
mais criadores, fixando~se a remuneração em função dos parâmetros
apontados.
O contrato poderia prever inclusive a remuneração pela reexibição da
obra, com a necessária correção monetária, ou instituir sistema de par-
ticipação percentual nas diferentes utilizações em função da receita, por
venda, locação de cópias e demais negócios jurfdicos que se realizem.
Para efeito de d1inamização, os titulares poderiam represent'ar-se pelas
associações existentes e o ,acordo perfazer-se a n[vel de categorias, ar-
recadando~se os direitos pelas associações, para distribuição pela entidade
de direito (estatal ou privada, conforme o caso; no Brasil, pelo Escritório
Central de Arrecadação e de Distribuição).
Nesse sentido preparamos, 'inclusive, protocolo de acordo que, infe-
lizmente, por desajustes no setor, não chegou a firmar-se.
Mas a solução permanece perfeitamente adequada e exeqüível, po-
dendo mesmo ser adotada a nivel de imposição pelos organismos de
regulação da matéria, se ~s partes se não compuserem, para que 0$
titulares gozem de direitos expressamente assegurados em lei (v., 'a res~

298 R. Inf. legill. Brasília a. 19 n. 74 obr./jun. 1982


peito, os nossos artigos "Artistas: a constitucionalidade da cessão de
direitos de autor", in O Estado de S. Paulo, de 14-2-1980. p. 33, e "As
Empresas de Comunicação e o Direito e a Imagem", in Diár10 Legislativo
108, nQ 770, pp. 197 e segs.).

11) Propostas com relação à reprodução (respostas à reprografia


8 à denominada "pirataria" de fonogramas e de videofon~
gramas)

Já com respeito à reprodução, o mais grave desafio aos direitos de


autor é o da reprografia (reprodução de obras por processos mecânicos,
em que inserimos todos os meios possíveis, como a xerografia, a compu-
tação - em que já se f.ez, por exemplo, reprodução da célebre tela,
"A Mona Lisa" - a microfilmagem; a gravação em fita ou em videocasse-
te e outros).

A esse propósito, sugerimos, em congresso internacional realizado


em São Paulo, um conjunto de medidas, consubstanciadas em fixação
de princípios. reqras e fórmulas práticas, partindo da instituição de licen-
ça legal, dada a verdadeira e indiscriminada avalanche de reproduções
oue se fazem a cada passo. em todas as partes do mundo. por meio até
de empresas e bancos de dados que exploram atividades de reprodução,
como as de xerox. de microfilmagem. a saber: a) a fixação da necessi-
dade de participação do autor ou do titular dos direitos de exploração
econômica da obra (editor, concessionário e outros) na reprodução, por
qua,lquer processo, de sua produção intelectual; b) a possibilidade de
instituição de regime de licença legal para a reprografia (incluindo-se
microfilmagem, computação, gravação), em que se conciliariam os inte"
resses dos titulares com o da difusão da cultura; c) o controle das cópias
extraídas mediante registro das máquinas reprodutívas e <Ias i'nstituições
que as possuírem ou locarem; fixação da remuneração do autor por
folha extraída e de conforrntdade com os preços previamente fixados
pela entidade controladora, depois de estudos específicos em cada setor
(livros, fitas, discos etc.); instituição de formulário especial para anotação
de pedidos de cópias, com a indicação da obra, do autor, do número de
cópias reproduzidas e a remuneração devida, cobrada na fonte pela enti-
dade extratora; recolhimento mensal através de documentos próprios ao
órgão ou entidade arrecadadora (estatal ou privada, conforme o caso);
atribuição de competência a. uma entidade (estatal ou privada,) para a
arrecadação ea distri'buição desses direitos a seus titulares; e destinação
do produto da arrecadação a fundo especial para assistência a autores
(a exemplo do Fundo de Direito Autoral existente entre nós: Lei
nQ 5.988173: arts. 119 e 120) quando desconhecrdo ou não encontrado
o autor ou titular de direitos, ou quando do domínio público a obra.

Excetuar-se...i·am do pagamento, a tftulo de incentivos à pesqu·isa e à


cultura, as universidades e entidades congêneres, como biblio·tecas, cen-
tros de informações sem fins lucrativos (definidas, por expresso, em lei),
mas que deveriam cumprir as formalklades enuncradas, para efeito de

R. Inf. legil!. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 299


estatrstica e de controle geral efetivo, doas reproduções, nãopodenclo as
cópias ultrapassar um número que, na leg-islação especial, for consk:ferado
razoável.
A par das providências acima, deverão ser estabelecidas medidas
de severa repressão através de instrumentos efetivos, nos planos civil e
penal, dos abusos porventura verificados (v., a respeito, os nossos traba·
lhos, "Reprografia e Direito de Autor, uma proposta para a regulamen-
tação legal da matéria", in RPGE n9 10, pp. 457 e segs., e RlDt nQ 1,
pp. 108 e segs; e "Reprografta e Direito de Autor", 'In RevliSta de Informa.
çAo Legislativa nQ 58, pp. 181 e segs.).
As sugestões continuam plenamente adequadas e exeqürveis, para
a resolução dos problemas existentes nessa área, e a sua implantação
poderia perfazer-se por meio ele lei especial ou de ,ato do organismo
regulador (conforme o caso).
A respeito do fenômeno particular da "pirataria" de fonogramas e
de vkleofonogramas, med,icta que algumas legislações têm adotado é a
da cobrança de um plus, a trtulo de direitos autorais, na venda de fitas
vtrgens, partíndo, pois, do sistema de licença legal.
Poderta, em nosso entender, ser abraçada a orientação por outros
parses, desde que também nesse passo é prática de enorme e indiscr!-
mlll8da difusão, com prejurzos vultosos para autores e produtores.

12) Concfuslo

Em razão da estreita interl:igação entre o Direito de Autor e as formas


de comunicação de obras ifltelectuais, direitos deconem para os titulares
em todos os diferentes processos, cuja realização prática, no entanto,
tem encontrado óbices, em certas áreas, ditados por fatores diversos, de
que enunciamos os de maior realce.
Mas, soluções eX'istem para a sua concretização, muitas dependentes
apenas da conJugação dos interesses em Questão - de au1ores, empre-
sários e usuários das obras - em fórmu~as simp-Ies e perfeitamente ex&-
qüfveís, conforme mostramos, nos campos da publicidade, do cinema,
da televisão, do satélite e da reprografia em geral, em teses e trabalhos
que apresentamos para o equacionamento dos problemas existentes.
Nesse debate, indiscutivel é que, para o própnio bem da cultura em
geral e para um desenvolvimento mais expedito das nações em fase de
expansão, devem ser envidados todos os esforços daspesso~as conscien-
tes, no sentido de uma plena satisfação prática dos di,rei1OS autorais, n'a
sagração da mais 'nobre e expressiva manifestação do gênio humano,
que é a criação intelectual.
Em última anál'ise, será o próprio homem que se estará afirmando,
na proteção da mais ino;siva expressão de sua personalidade e em con~
sonância com o-s ditames de sua própria natureza!

300 R. Inf. legisl. Brasílio o. 19 n. 74 abr./lun. 1982


o problema fundiário no Distrito Federal.
Enfoque histórico e jurídico

JOSÉ DILERMA:"DO MEIRELl':S

Procurador-Geral da Justiça do DF

o problema fundiário no Distrito Federal pode ser dividido em três


fases distintas:

PRIMEIRA FASE

A primeira fase compreende o período anterior à própria mudança da


Capital federal, época em que o Governo de Goiás constituiu a "Comissão de
Cooperação para Mudança da Capital Federal", inicialmente presidida pelo
médico, empresário e homem de letras, Dr. Altamiro de Moura Pacheco, e,
posteriormente, pelo jurista Inácio Bento de Loyola.
Nessa fase, foi efetuado o levantamento completo e o estudo meticuloso
e altamente técnico de todos os imóveis rurais localizados na área demar-
cada para o atual Distrito Federal, com base nos quais foi efetivada a
desapropriação de mais de cinqüenta por cento desse território, possibili-
tando, assim, a pacífica projeção e edificação da Capital, seus primeiros
núcleos satélites urbanos e rurais.
Têm seus nomes indelevelmente ligados a essa fase histórica, além
dos já citados, os juristas goianos, integrantes da Comissão: Drs. segis·
mundo de Araújo Melo, Moacyr Ribeiro de Freitas, Marcelo Caetano da
Costa, Hamilton de Barros Velasco, Luís Honório Ferreira, Arquelau Au-

R. Inl. legisl. Bra.mo o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 301


gusto Gonzaga e Domingos Juliano. Como engenheiro assistente, compu-
nha·a o Dr. Joffre Mozart Parada.
Além do mapeamento completo da área integrante do novo Distrito
Federal, da lavra do engenheiro Joffre Parada, a Comissão elaborou exaus-
tivo exame da documentação imobiliária da região, reconstituindo as ca·
delas dominiais dos imóveis, a partir de seu lançamento no registro paro-
quial, na década de 1850, por força do que dispunha a Lei nl? 601 e seu
Regulamento, Decreto nl? 1.318, de 1854, ou, em muitos casos, até mesmo
anteriormente, de tudo elaborando completos e pacientes relatórios, hoje
em poder da Procuradoria do Governo do Distrito Federal, trabalho esse
de tão alta significação e relevância, que só o vejo comparável ao de Luiz
Cruls, com seus relatórios sobre a escolha do local para a implantação da
nova Capital. Pena que esse precioso material não tenha sido ainda divul-
gado por inteiro para conhecimento de quantos se interessem pelo estudo
do assunto.
Do meritório trabalho dessa Comissão, as únicas referências biblio-
gráficas que conheço são: uma, de minha autoria, no livro que publiquei
em 1978, intitulado Oeste Planalto Central. " O Histórico e o Pitoresco,
em que registro a importância do trabalho do Dr. Altamiro Pacheco e sua
equipe de juristas; outro, do próprio Altamiro Pacheco, sob o título Primór-
dios de Brasília, ensaio histórico publicado em o nl? 4 da Revista do Insti.
tuto Histórico e Geográfico de Goiás, 1975; e, finalmente, a referência de
Adirson de Vasconcelos, em seu livro A Mudança da Capital, em que não
mais de duas ou três páginas são dedicadas à Comissão e, mesmo assim,
talvez por falta de maiores informações a seu respeito ou de acesso ao
trabalho por ela realizado, sem dar-lhe o enfoque e o destaque que certa-
mente merece.
Vale a pena reler, a respeito da "Comissão de Cooperação para Mu·
dança da Capital Federal", esta brilhante página de seu ilustrado inte·
grante, jurista Domingos Juliano, em relatório enviado ao seu Presidente
e divulgado na íntegra no citado ensaio de Altamiro Pacheco:

"O nosso trabalho foi o de conhecer a matéria-prima, a argi-


la bruta, que servirão de base territorial ao mármore de Brasí·
lia.
Esse grande mosaico sobre o qual, durante longo tempo,
pousou angustiada a nossa vista, sequiosa de esclarecimentos, e
que é o novo Distrito Federal, na parte a nós entregue, constituiu
a princípio o mistério, o silêncio que se opõe ao estudioso que
interroga o tempo, os papéis, os livros, os processos e a memória
dos coevos, em busca da resposta: a quem pertenceu tudo isto;
como circularam na ordem do tempo as frações dessa imensa
área: que ficou por fazer: a quem pertence, hoje, enfim, tudo isto?

302 R. Inf. fegisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


o que foram os obstáculos e as dificuldades por nós encon-
trados, nem é preciso repetir. Vossa Excelência os viu a quase
todos e conheceu, desde o princípio, a dramática indigência do-
cumental com que todos nós lutamos, nos Municípios de Luziânia
e Planaltina.

Nem sempre valeram as nossas incursões pelas fazendas, em


busca de papéis, que avaramente nos foram exibidos, ou que,
ordinariamente, nos foram negados.

Tantos e tão invencíveis óbices teriam que afetar a extensão e


a exatidão do nosso trabalho, que, por vezes, teve de ser parcial-
mente interrompido, ante os vácuos abertos pela ausência de pro-
cessos, principalmente de inventários, e de outros documentos.
Doze (12) dos grandes imóveis a nosso cargo, constituindo
maioria, nunca foram divididos, nem demarcados judicialmente.
Outros há que vieram a ser objeto de inventários de pessoas fale-
cidas recentemente, sem que os acervos dos primitivos proprie-
tários e de seus sucessores imediatos e mediatos fossem liquida-
dos, através do insubstituÍvel juizo divisório e partilha, o que fez
com que se perdesse, em conseqüência da treva imposta pelo
decurso do tempo, a verdadeira linha de sucessão hereditária.
Outros imóveis existem, ainda, sobre os quais há mais de
cem (100) anos nenhum documento tornado público se assinou,
nenhum inventário se realizou.
Não adiantariam tentativas de vencer, à outrance, as dificul-
dades, porque, em matéria de direito, não há terreno para expe-
rimentos, nem a imaginação pode funcionar para suprir, com
criações da fantasia, aquilo que na realidade não existe, ou que
está oculto.
Num serviço como este, inteiramente singular na história do
Brasil, tivemos que ser autodidatas em muitas passagens, mas,
invariavelmente, procuramos 'dar soluções e opiniões uniformes
sobre problemas e dúvidas comuns, que se nos apresentaram,
evitando, assim, a aplicação de pesos e medidas diferentes, para
questões da mesma natureza.
Já em agosto de 1957, após alguns meses de contato com o
serviço, escrevíamos ao Ex.mo Sr. Governador do Estado, propondo
uma lei:
"Como sabe Vossa Excelência, as terras do Município de
Luziânia, até agora, na história de Goiás, passaram por dois

.R. Int. legisl. a,osília O. 19 n. 74 abr./jun. 1982 303


ciclos de valorização. Aquele primeiro veio da agitação sete·
centista do ouro em Goiãs, até a abolição da escravatura, de-
corrente da exploração das ricas jazidas auríferas da região,
as quais tiveram o dom de valorizar as terras locais, pelo
conteúdo do subsolo. Nesse período de tempo, pelo que se
pode ver da documentação existente na atualidade, cuidou-se
com certo zelo, tanto quanto tinha cabimento naquela época,
dos titulas de propriedade, da documentação, embora nas
precárias medidas da legislação reinol, que vigorava.
A promulgação do Regulamento de 30 de janeiro de 1854,
que criou o Registro Paroquial, se seguiu verdadeira corrida,
em Luziânia, ao soi-disant Cartório eclesiástico, onde de 1857
a 1858, se fizeram registros de nada menos de trezentas e
trinta e três fazendas, no Município!
A esse ciclo de valorização imobiliária, ou, pelo menos,
de cuidados com a situação legal da propriedade imóvel, en·
cerrado com a abolição da escravatura negra, se seguiu um
período de desinteresse quase generalizado pela apuração de
titulas e liquidação judicial de heranças e legados. Largo foi
esse lapso, em que as terras do Planalto, de pouca fecundi-
dade e produtividade, ficaram esquecidas. Nem mesmo o
irrompimento vulcânico de Goiânia, no mapa do Estado, ope-
rousensível modificação no cenário que vimos de descrever,
linhas volvidas.
Bastou, no entanto, que fosse lançada no Planalto a se·
mente de Brasília, para que um outro ciclo de valorização
das terras rurais eclodisse, o segundo, desta vez com mais imo
peto e com verdadeiro transbordamento."
Essa foi a primeira fase, a fase áurea, construtiva, idealista, acalentada
pelo sonho mudancista, podendo-se afirmar, mesmo, decisiva para a con-
cretização da mudança da Capital, sem o desassossego de impugnações
judiciárias ou de embaraçantes entraves administrativos.

SEGUNDA FASE

A segunda fase, que poderíamos cognominar de bisantina, tais as fili-


granas de interpretações juridicas no recém-criado Judiciário de Brasília,
eclodiu de modo imprevisto e inesperado. O recém-instalado Tribunal com·
punha-se de eminentes magistrados, mas todos eles arrebanhados fora do
meio, ao qual não tinham ainda nenhuma vinculação. Analisando essa sin-

304 R. Inf. f.till. Iralma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


guIar situação, na época, em modesto ensaio intitulado O Planalto Central
do Brasil no Passado, no Presente e no Futuro, edição do Ministério Público
do Distrito Federal, tive ensejo de escrever:
"No trato dos assuntos relacionados com os interesses da ve-
lha comunidade do Planalto, o Judiciário de Brasília, em regra
geral, tem funcionado sem condicionamento.
.",.'1.-:
A justiça e a política, por mais contraditória que possa pare-
cer a afirmação, não podem ser exercidas sem o condicionamento
e as pressões das forças de atuação social.
o fim do direito é a paz e o progresso social. sem ouvir e
sentir os anseios mudos e palpitantes do meio ambiente, as deci-
sões judiciárias não passam de extravagantes peças de lógica, enfa-
donhas e nefastas.
A falta de identificação do magistrado com o meio, ao qual
não se prenda por laços de ancestralidade, nem de tradição, nem
de afeto, nem de interesse econômico ligado à terra, com raizes
no passado, faz com que a figura humana do pré-brasiliense não
se lhe apresente na porfia judiciária senão como o espectro de
uma raça extinta ou em vias de extinção."
A gênese da grande polêmica travada em torno do domínio privado
sobre as terras do Planalto, segundo se veio a saber, teve origem em des-
pretensioso incidente poUtico: o deputado mineiro Pedro Aleixo, adversário
de Juscelino, em arroubo tribunicio, acusa-o de mau emprego do erário,
ao promover a desapropriação de terras, no Planalto, as quais já seriam de
domínio da União, por força do disposto no art. 39 da Constituição de 1891-
O Judiciârio de Brasilia, onde tramitavam diversas ações de desapro-
priação propostas pelo Estado de Goiás, substituído processualmente pela
NOVACAP, ao tomar conhecimento da impugnação do político, teve sua
atenção despertada para o art. 3Q da Constituição de 1891 e, em conse-
qüência, passou a trancar, por falta de objeto, as ações em curso.
A Corregedoria da Justiça, por sua vez, baixou provimento fechando
as portas dos Cartórios de Registro de Imóveis para ingresso de qualquer
título relacionado com imóvel rural no Distrito Federal, que não proviesse
do Poder Público, proibindo até mesmo que os oficios cartorários protoco-
lizassem os títulos dos interessados em registros.
o homem da região, que havia mais de dois séculos transacionava com
seus imóveis de modo tranqüilo e indiscutível; que portava documentação
revisionada pelo crivo de uma comissão de juristas de alto nível, selecionados
entre magistrados, membros do Ministério Público e catedráticos goianos,

R. Inf. 1.,1sI. Brasília a. 19 n. 74 a.r./Jun. 1982 305


pairava agora perplexo e atônito ante a explosiva descoberta de um poli-
lico, pressurosamente acatada pelo Judiciário.

Longos anos de sáfaros debates alimentaram essa falaciosa polêmica.


Jurisconsultos os mais eminentes do País tiveram que ser convocados para
o seu desate. Descobriram-se pareceres específicos de Clóvis Bevilaqua e
Vieira Ferreira, anteriores a 1930, apaziguando a controvérsia. Outros fo-
ram elaborados, com novos enfoques, por Orosimbo Nonato, Frederico
Marques, Linhares de Lacerda, Dario Cardoso e Onofre Gontijo Mendes, to-
dos passando em revista o direito imobiliário brasileiro desde as suas origens
mais remotas, numa reciclagem de vários séculos de história. Sobre o assun-
to, publiquei também um trabalho, intitulado "Um Estudo sobre o Domínio
das Terras do Planalto Central do Brasil", na Revista de Informação Legis-
lativa do Senado, ne? 35, pág. 59, republicado na Revista da OAB/DF ne? 5 e
na revista Justitia, 6rgão do Ministério Público do Estado de São Paulo.

TERCEIRA FASE

Ao final, chegou-se a conclusões assaz simples e óbvias: a primeira


delas é que a palavra de Pedro Aleixo não era autorizada, eis que sendo
embora eminente penalista, nada o recomendava como civilista; a segunda,
que sua opinião era suspeita, porque expressa em caráter político parti-
dário; a terceira, que o regime jurídico brasileiro é uniforme, não podendo
existir no Planalto um direito imobiliário diferente do que vigora no resto
do País; a quarta, que a Constituição de 1891 era marcadamente liberal,
não sendo razoável interpretar um de seus isolados dispositivos como con-
fiscatório da propriedade particular em determinada região da Pátria; a
quinta, que o seu art. 3e? objetivava excepcionar o que dispunha o art. 64,
que determinava passassem ao domínio dos Estados as terras de proprie-
dade da União existentes nas antígas Províncias; a sexta, que os registros
a serem feitos em Brasília eram secundários, meramente continuativos dos
anteriormente efetuados nas antigas comarcas goianas de que o Distrito
Federal se originou e, como secundários, nenhum gravame poderiam acres-
centar aos que porventura já se achassem consumados; a sétima, que a
demora na solução do impasse estava se tornando mais prejudicial aBra-
sUia do que o preço ínfimo que, à época, vinha sendo pago pela desapropria-
(;ão. E assim por diante.
Desse modo, a tempestade cessou, entrando-se na fase atual, em que
não mais se põe em dúvida a questão. Existe apenas resistência adminis-
trativa quanto às tentativas de parcelamento do solo rural, em loteamentos
inferiores ao módulo, o que é natural e salutar, para que o território de
Brasília não venha a transformar-se em colcha de retalhos, o que seria
altamente danoso a toda a comunidade.

306 R. Inf. legisl. Brosília a. 19 n. 74 abr./ju". 1982


Notas sobre o
posicionamento social da mulher
no tempo e no espaço
PAULO DE FIGUEIREDO
ConsUltor-Geral do senado Federal

SUMÁRIO
I - Preliminares. II - A mulher na Suméria. III - A
mulher na Babilônia. IV - A mulher na Assíria. V -
A mulher na lndia. VI - A mulher na China. VII - A
mulher no Egito. VIII - A mulher na Grécia. IX -
A mulher na Pérsia. X - A mulher na Etrúria. XI - A
mulher em Roma. XII - A mulher na Gália. XIII - As
Amazonas. XIV - A mulher em países e povos da A/ri-
ca. XV - A mulher no Japão. XVI - A mulher entre
os povos da Oceania. XVII - A mulher entre os esqui-
mós. xvm - A mulher na Sibéria. XIX - A mulher
na Rússia. XX - A mulher entre os mongóis. XXI - A
mulher entre os citas, os germanos e os "bárbaros" em ge-
ral. XXII - A mulher entre os viqutngues. XXII - A mu-
lher na Ilha da páscoa. XXIV - A mulher no mundo is-
Zdmtco. XXV - A mulher na Armt'!nia. XXVI - A mu-
lher em Bizdncto. XXVII - A mulher entre os incas.
XXVIII - A mulher entre os maias. XXIX - A mulher
entre os astecas. XXX - A mulher entre os indígenas.
XXXI - Da antiguidade à era contempordnea. XXXII
- O eterno retorno.

I - Preliminares

E Deus disse à mulher: "Eu multiplicarei os trabalhos dos teus


partos. Tu parirãs teus filhos em dor, e estarás debaixo do poder de
teu marido, e ele te dominará" (1).
Foi essa a sentença que veio do alto. E que selou o destino da
mulher.
(1) Btb~~ Sagrada - Trad. do Pe. ANTONIO PEREIRA DE FIGUEIREDO - Edlçio BII1'lla - 1H7.

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o dogma religioso balizou e distinguiu, pelos tempos afora, os cami-
nhos do homem e da mulher. A crença em Deus ditou os rumos a seguir.
Estava no Livro Sagrado o juízo supremo. A verdade. E assim, desde
os começos dos tempos, o sexo foi tido como uma determinante da
diferenciação social entre o homem e a mulher. Mais: consagrou o
dominio do macho sobre a fêmea.
Mesmo hoje, quando se reconhece, pelo cristianismo, que a mulher
é uma pessoa e, como tal, igual ao homem, feita como este à imagem
e à semelhança de Deus, indica-se a ela uma posição de subalternidade:
"A mulher é, sob todos os aspectos, igual ao homem. So-
cialmente, está coordenada ao homem, mas em posição subor-
dinada, como seu complemento e auxílio" (Gên. 2, 20-24 -
I Cor. 11,9) (2).
Mas não somente no mundo católico as coisas são assoim. Em outras
religiões o mesmo acontece. Com o pensamento bíblico afina o do livro
sagrado dos muçulmanos. Diz o Alcorão, igualmente seguido por milhões
de fiéis:
"Os homens são os encarregados das mulheres. porque
Deus os preferiu a elas e porque eles as sustentam de seu
pecúlio" (8).
Observando que foram homens que disseram o que está na Bíblia
e no COrão, aí vemos por que as mulheres, já entre os povos dos tempos
bíblicos, pagãos ou religiosos, eram tratadas com desdém, consideradas
seres inferiores e, como tal, marginalizadas da vida politica e social.
Aqui e ali, certamente, gozavam de alguma consideração, mereciam
um pouco mais de respeito, tinham alguma proteção. Até mesmo, em
algumas culturas mais antigas, como a sumérica, a cretense e a babil~
nica, chegaram a uma situação de d.estaque na sociedade. De um modo
geral, entretanto, à mulher foi designado, desde a aurora da história
humana, um papel secundário no processo social:
"No imenso período de mais de cem mil anos que esten-
de-se do precursor humano, primata terciário, à fase industria-
lista encetada pelo homem atual, a mulher foi uma propriedade
do homem, um animal doméstico. Deve-se entender pela ex-
pressão somente, unicamente o que ela diz - um aníTTUl!. d0-
méstico. A mulher é a primeira propriedade, o primeiro animal
a serviço do homem" (Trro LÍVro DE CASTRO) (4).
Um objeto do homem. Sim, isso tem sido a mulher. Uma coisa de
que o homem se utiliza para satisfação de seus prazeres, de suas neces-
sidades, de seus interesses. Um bem que ele usa para compra, venda,
troca, empréstimo.
(2) "DlclonA.rlo Pré.tlco de Cultura Católica, Ribl1ca e Geral" - ILl Bíblia Sagrada. - ob. cLt.
(3) Alcor~ S4(Jf'tJda - versão portugUe6a de SAMIR EL HAYEK - Otto Plerre Editores - Rio,
Brull - 1980.
(4) CASTRO, Tito Llvlo de - A Mulher e a Sociogenia - .Francisco Alves e Cla. - Rio, BrB.8l1.

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Do nascimento à morte, o ciclo existencial da mulher estava mar-
cad.o pelo fatalismo de um destino dependente. E.9tá no Rig-Veda dos
brâmanes:
"Durante a infância uma mulher deve depender de seu
pai; durante a mocidade, de seu marido; morrendo seu marido,
de seus filhos; não tendo filhos, dos parentes próximos de seu
marido, ou em falta destes, dos parentes de seu pai; se não
tiver parentes paternos, do soberano. Uma mulher nunca deve
ser livre" (5).
De novo•. no misticismo religioso. um ambiente sufocante para a
mulher. Mas também foram homens que redigiram o Rig-Veda.
Fora, porém, dos sistemas religiosos, mesmo entre as gentes das
mais longínquas eras, e ainda antes dos tempos históricos, já os agrupa-
mentos humanos se distinguiam socialmente em função do sexo. sendo
este um elemento condicionante do posicionamento social do homem
e da mulher, e valendo, também, como um critério de valor.
É indiscutível, pois os fatos o demonstram, que em todas as épocas
o sexo serviu como ponto de referência para a diferenciação de tarefas
e de status. Como uma determinante de atividades e de condutros.
Diferentes somática e fisiologicamente, homens e mulheres teriam,
por isso, de ter colocações diferentes na sociedade.
A mulher, procriadora. fiSicamente mais frágil e psicologicamente
mais dócil. teria funções de caráter sedentário, doméstico, incumbindo
ao homem um papel mais dinâmico. porque vinculado a uma vida mais
nômade.
Esse entendimento, em regra pacífico, nem sempre corresponde à
realidade. Houve, sempre, exceções. Assim, em determinados povos, as
mulheres tiveram primama sobre os homens em atividades sociais, como
sucedeu com as amazonas.
Sabe-se, outrossim, que as mulheres iroquois, por exemplo, nada
tinham de suaves ou generosas. As arapesh mostravam mais força do
que os homens.
Seja como for, inferiorizadas, dominadas, em situação subalterna,
em geral, mesmo assim, em todas as sociedades, de todas as eras e
lugares, houve mulheres diferentes, que destoavam d.o meio e se im-
punham, de algum modo. Foram as feministas de todos os tipos; e
mesmo mulheres bem femininas. que, por astúcias próprias do sexo,
lograram posições e privilégios.
Tudo isso, no entanto, foram exceções. A constante. no tempo e
no espaço, é a mulher mais sedentária, passiva, no lar, e o homem
mais ativo, na sociedade. É o homem sempre privilegiado pelos códigos
e pelas leis, em detrimento das mulheres. Códigos e leis sempre elabo-
rados pelos homens. Isso, mesmo nas sociedades mais evoluídas.
(5) CASTRO, T1to Llv10 de - ob. clt.

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Dessa maneira, direitos e deveres, posicionamento no lar e na
sociedade, tipo de trabalho, funções polfticas, tudo isso tem sido, inva-
riavelmente, vinculado ao sexo. Com a permanente supremacia dos
homens. RALPH LrNTON (6) teceu, a propósito, esse expressivo comentário:
"Parece que a divisão de status relativamente ao sexo
é básica em todos os sitemas sociais. Todas as sociedades
prescrevem aos homens e às mulheres atitudes e atividades
diferentes. A maioria delas tenta racionalizar estas prescri-
ções em termos de diferenças fisiológicas entre os sexos, ou
entre seus diferentes papéis no processo da reprodução. Mas
um estudo comparativo dos status atribuídos às mulheres e
aos homens em culturas diferentes parece mostrar que ao
passo que esses fatores talvez tenham servido como ponto de
partida para o desenvolvimento de uma divisão de status, as
atribuições de fato são quase inteiramente determinadas pela
cultura. Mesmo as características psicológicas atribuidas aos
homens e às mulheres em diferentes sociedades variam tanto
que só podem ter pequena base fisiológica. A idéia que nós
mesmos fazemos das mulheres, como sendo anjos de bondade,
contrasta nitidamente com o espírito inventivo d.as mulheres
iroquois como torturadoras e com o prazer sádico que elas sen-
tem em torturar. Mesmo em nossa sociedade, as duas últimas
gerações presenciaram uma modificação nitida nos padrões
psicológicos femininos. A senhora delicada, sempre pronta a
desmaiar, do meado do século passado, desapareceu tão com-
pletamente quanto o dodó.
Ao tratar da atribuição de ocupações, que afinal é parte
integrante do status, encontramos diferenças ainda mais pro-
nunciadas, nas várias sociedades. As mulheres arapesh carre-
gam regularmente pesos maiores que os homens, "porque suas
cabeças são muito mais duras e fortes". Em algumas socieda-
des as mulheres fazem parte do trabalho normal; em outras,
como nas Dhas Marquesas, cozinhar, tomar conta da casa e
cuidar das crianças são ocupações próprias dos homens, en-
quanto as mulheres passam a maior parte do tempo pavo-
neando-se. Mesmo a regra geral, de que o handicap constituído
pela gravidez e pela amamentação indica ocupações menos
ativas como femininas e as mais ativas como masculinas, tem
muitas exceções. Assim, entre os tasmanianos, a caça da foca
era trabalho feminino. As mulheres nadavam até as rochas
das focas, seguiam os animais e os gol!leavam com a clava.
Também caçavam o opossum, para o que eram obrigadas a
escalar grandes árvores.
Embora a atribuição real de ocupações segundo as linhas
do sexo varie muito, o padrão da divisão por sexos é constante.
Muito poucas eão as sociedades nas quais toda atividade lm-
(6) LINTON. Ralpb - o Homem: uma Introduç4o 4 Antropologt4 - Trad. de LAVINIA VlLELA
- lAvraria Mart1tl11 Editora - SAo Paulo, BrasU - 1959.

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portante não é definidamente atribuída aos homens ou às
mulheres. Mesmo quando ambos os sexos cooperam numa
ocupação particular, o campo de cada um é geralmente deli-
mitado de maneira clara. Ass'm, na cultura de arroz de Ma-
dagascar, os homens fazem as sementeiras e os terraços e pre-
param os campos para transplantação. As mulheres transplan-
tam, o que é trabalho árduo e derreante. Limpam as planta-
ções, mas os homens é que ceifam. Levam-n:3.s para os terreiros
de malhar onde os homens as malham, enquanto as mulheres
as joeiram. Finalmente, as mulheres socam os grãos no almo-
fariz e os cozinham.
Quando uma sociedade adota uma nova indústria, há
freqüentemente um período de incerteza durante o qual o tra-
balho pode ser feito por qualquer sexo. Logo, porém, cairá no
domínio de um ou d.e outro. Em Madagascar a cerâmica é
feita em algumas tribos pelos homens, em outras pelas mu-
lheres. A única tribo em que é feita por ambos os sexos é
aquela onde esta arte foi introduzida nos últimos sessenta
anos. Disseram·me que durante os quinze anos anteriores à
minha visita a essa ilha, o número de ceramistas masculinos
tinha decrescido de maneira muito acentuada, porque muitos
homens que antigamente praticavam a arte a abandonaram.
O fator de baixa de salários, usualmente apresentado como
razão para homens deixarem uma das nossas ocupações,
quando as mulheres nela penetram à força, certamente não
agia neste caso. O campo não estava superlotado e os preços
eram os mesmos para os produtos feitos por homens e mulhe-
res. A maioria dos homens aue abandonaram essa ocupação
davam razões vagas, mas alguns disseram francamente que
não gostavam de competir com mulheres. Parece que a pene-
tração feminina diminuíra o prestígio da ocupação. Já não era
próprio o.e um homem ser ceramista, embora fosse ótimo ar-
tífice."
Vê-se, pois, que, seja considerando fatores biológicos, religiosos ou
culturais, a verdade é que o sexo, distinguindo o homem da mulher,
assinalou-lhes posicionamentos sociais definidos. A desigualdade sexual
motivou uma desigualdade social. Não só desigualdade: também uma
superioridade social, como se o fato de ser homem pudesse ser inter-
pretado como uma razão suficiente para decretar o seu domínio sobre
a mulher.
Cabe, a propósito, evocar ENGELS (7). Partindo da verificação dessa
discriminação social em função dessa diferenciação sexual, interpretou
o evento à feição de suas convicções rnanctstas, salientando o antago-
nismo de situações e a hierarquização social do homem:
"Num antigo manuscrito inédito, trabalho realizado por
MARx e por mim, encontrei esta frase: "A primeira divisão do
---
(7) ENGELS, Frederico -
Ltda. - Rio, Bra81l -
A Origem da FamfU4, da Proprietfade e ao Estlldo -
1934.
Editorial Alba

R. Inf.legi.1. Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 311


trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a
procriação de filhos." Hoje, posso acrescentar: o primeiro an·
tagonismo de classes que apareceu na história coincide com
o d.esenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher
na monogamia, e a primeira opressão de classe a do sexo
masculino contra o feminino."
Abstração feita do aspecto de sectarismo doutrinário, que forçou
ENGELS a situar homem e mulher em termos de competição e a ver
no domínio do homem sobre a mulher a opressão de uma classe sobre
outra, essa interpretação marxista serve ao menos para demonstrar,
na espécie, o reconhecimento do problema, sem dúvida universal, da
diferenciação social dos papéis do homem e da mulher, em decorrência
e em função de uma discriminação de caráter sexual.
Assentou-se e aceltou·se que, pela ordem natural das coisas, o ho-
mem, tido como superior à mulher, teria de mantê-Ia sob seu domínio.
Todo o erro do "machismo" resulta dessa incompreensão original,
como - diga-se de passagem - todo o erro do "feminismo" - tão
bem qualificado por BE'ITY F1uEDAN como (8) "machismo da fêmea" -
nasceu dessa pretensão de determinadas líderes de confundir ou inverter
as funções e as missões especificas do homem e da mulher, como se não
fossem distintas, e, imitando os "machistas", procurarem substituir o
homem em seu papel dominador.
A realidade histórica nos revela, de maneira quase constante, uma
estruturação política, social e econômica dos agrupamentos humanos
feita de acordo com essa pretensa superioridade masculina.
Por ser fisicamente mais forte, o homem teve a seu encargo tarefas
mais duras: as de enfrentar os perigos da caça e da guerra, para sobre-
vivência sua e de sua familia. Daí o seu posicionamento hierárquico no
contexto grupal. De sua força física maior, do tipo de seu trabalho -
mais arriscado e considerado vital para a continuidade do grupo -
decorreu a sua predominância no lar e na sociedade. Donde o seu
comando. Era natural que valessem mais aqueles de quem dependesse
a segurança e o sustento da comunidade. É ainda RALPH Lm'I'ON (9)
quem ensina:
"A superioridade física do macho humano tem tido sobre
o desenvolvimento das instituições sociais efeito muito maior
que o que costumamos reconhecer. Combinada aos papéis dife-
rentes dos dois sexos na procriação e nos cuidados a dispensar
aos filhos, essa superioridade física fez que se delegassem aos
homens as tarefas de caça e defesa. Ambas estas tarefas são
de importância capital para a sobrevivência do grupo não civi-
lizado e assim a imoortância social dos individuos tornou-se
cada vez maior. As -funções de governo são exercidas pelos
homens, em quase todas as sociedades. Pode acontecer que
(8) FRIEDAN. Betty - entrevista concedida a Sonia Velasco Perreira, !,ubllcada em O Globo,
Rto de Janeiro, edlçAo de 3 de Janeiro de 1982.
(9) LINTON. Ralph - ob. clt.

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oficialmente o chefe de uma sociedade seja uma mulher, mas,
o exercício dos poderes corre9pondentes a essa posição são
quase sempre delegados a um homem ou grupo de homens.
De maneira semelhante, o controle da unidade famílial pelo
homem é quase universaL Há certas sociedades em que as
mulheres são oficialmente reconhecidas como elemento domi-
nante na relação conjugal, mas esta circunstância não é
compatível com padrões mais inclusivos do domínio masculino."
Todos estão acordes em que, nos primórdios da história do homem,
a caça era a atividade essencial, sendo a sua prática uma condição de
sobrevivência.
Ora, caça é movimentação incessante, é dinamismo, é astúcia, é
luta, é imprevisto, é risco, é bravura. Nômade por imposição existencial,
o homem não tinha uma base física, estática, permanente e, assim,
nessas populações movediças e inquietas, o homem, sendo o mais forte,
teria que prevalecer, mandar, hierarquizar-se.
A mulher só começou a impor-se quando a vida dos grupos passou
a ser mais sedentária e isso aconteceu quando aprenderam a tirar da
terra, de modo sistemático, os meios de sobreviver. A agricultura valori-
zou a mulher que, nela, encontrou um começo de libertação. O arado,
a plantação e colheita, que deram estabilidad.e ao grupo, deram, igual-
mente, um status à mulher. Prestigiou-a. Sim, ela ficou valendo pelo
que produzia. Constituiu-se um fator de riqueza. Um "dado" econômico.
Que, inclusive, "se comprava". Quanto mais poderosos os homens, mais
mulheres possuíam, pois delas se serviam, nelas encontravam não so-
mente uma fonte de prazer como um instrumento de trabalho.
A estabilidade, pelas atividades agrárias, mas sem prejuízo do exer-
cício de caça e das guerras, pelos homens, aí a gênese da divisão do
trahalho: a mulher, mais estática, procriadora, fisicamente mais fraca,
no lar; o homem, mais forte, mais dinâmico, na caça, na pesca, nos
combates. Entrementes, ao trabalhar a terra, ao produzir alimentos,
ao contribuir para o bem-estar da família e do grupo, a mulher vai-se
firmando, se djferençando, se afirmando, se valorizando:
"EI individualismo deI cazador no admite organízación so-
cial sino como caso transitorio, y no como base general, y evi-
dente de una vida común. En cambio, la vida agrícola es
in1maginable sin tal organización. Primeramente es alcanzada
por ella la mujer, cuya posición en la vida cultural es funda-
mentalmente distinta; su pasividad en el período de la caza
se convierte en actividad y colaboración igual en el período
agrícola; la mujer, de objeto se convierte en sujeto. übserva-
ciones hechas sobre los hallazgos y conclusiones sacadas,
comparando los idiomas indogermánicos, nos enselÍan que esfe-
ras completas de la vida quedaban adstritas a la mujer, no
oolamente las ocupaciones que más tarde siguieron, estándole
reservadas, como guisar, tejer, hllar, sino también la prepara-
ción de la cerámica y deI suelo durante la ausencia deI hombre,

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ocupado, en la ganaderia y en la caza. La translaci6n a la
mujer de tan importantes actividade.s debió actuar sensible-
mente en el cuadro tot:3.1 de la vida" (FRIEDRICH BEHN) (10).
Assumindo atribuições mais próprias e definidas, no lar e no tra-
balho, a mulher, fazendo-se necessária, foi aos poucos deixando de ser
escrava para tornar-se companheira do homem, valorizando-se e ga-
nhando uma posição na sociedade.
Recorde-se, contudo, que, seja nas eras pré-históricas, seja nas ci-
vilizações mais modernas, os preconceitos persistem, os prejuízos atuam,
o egoismo subsiste, a vaidade permanece, e, por isso, sendo o homem
que faz a.s leis, ele é sempre posto em lug:ll' mais alto do que o da
mulher, como se realmente lhe fosse superior em natureza, e as con-
cessões feitas às mulheres apresentam-se assim como um favor que elas
dele recebem.
De qualquer modo o sexo atua como uma balança onde se pesam
direitos, os pratos pendendo invariavelmente para o lado do macho.
É o que registram RICHARD LEAKEY e ROGER LEVIN (11) :

"Voltemo-nos agora para um outro aspecto da sexualidade


humana que é, do mesmo modo, uma mistura extraordinária
de fatores biológicos e sociais - o quase universal dominio
social e político dos homens sobre as mulheres. Esse d.ominio
pode manifestar-se tanto na organização cultural estritamente
formalizada de muitos países do Oriente, como nas normas
sociais aceitas como rottna na vida suburbana ocidentaL As
origens do status diferencial dos sexos são, nos dias de hoje,
o objeto de acirrada disputa, com linhas de batalha definidas
em extremos opostos. Os naturalistas reivindicam uma exclu-
siva base biológica para a "superioridade" masculina, com hor-
mônios sexuais característicos e propensões psicológicas que
reforçam as diferenças. Já os ambientaUstas insistem em que
as mulheres são exploradas e oprimidas por uma conspiração
masculina e que o condicionamento social é o mecanismo para
perpetuar um injusto statu quo."
Há, evidentemente, diferenças biológicas entre o homem e a mulher.
Há qualidades de homens e há qualidades de mulher. Mas não há hie-
rarquia nessas qualidades naturais específicas do homem e da mulher.
Nada justifica que o homem queira ser mais do que a mulher, nem
que a mulher queira ser mais do que o homem. São diferentes, somente.
E, por serem düerentes, têm missões próprias a cumprir no mundo. Em
pé de igualdade, porém. Completando-se e complementando-se um ao
outro. Porque são necessários um ao outro. Um, sem o outro, não é. In-
clusive têm missões comuns a desempenhar, cada um dando o que sua
condição, de homem ou de mulher, permite que dê.
(lO) BEHN. Friedrich - "Pre-hllltórla e hIstória prlmlt1Vl'." - In Históri4 Universal - Tomo I
- "Bl despertar de la huma.nldad" - versl6n llllpaftola de MANUEL GAP.CtA MORENTE -
Bepa.8a Ca.lpe S.A. - Madrid, Espa:l\a - 1975.
(11) LEAKEY. Rlchard e LEVIN, Roger - Origens - Trad. de MARIA LUIZA DA COSTA O. DE
ALMEIDA - Eclltora Universidade de Brasllla - llN1O.

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Verifica-se, todavia. que os homens não se conformam com facili-
dade em renunciar a seus privilégios, que procuram manter, como se
diferenças fisiológicas pudessem valer como suporte lógico de um domí-
nio injustificável. Porque em verdade está demonstrado pelos fatos que
a eliminação de pressões sociais, de cunho religioso, político ou eco-
nômico. permite à mulher realizar suas potencialidades e posicionar-se
na sociedade em igualdade com o homem.
Não se trata de competir. Competição é para adversários. Homem
e mulher não podem ser postos como inimigos. São companheiros. Assim,
não há por que se equacionar o problema da emancipação da mulher
em termos de contenda e de rivalidade, senão de ajuste, harmonia,
complementação, com seu parceiro.
Homem e mulher não nasceram para se guerrear, mas para se
amarem, se fazerem um só, cumprirem um destino comum. Ninguém
é mais. ninguém é menos, os dois valem o mesmo, conquanto diferen-
tes: "embora verdadeiras diferenças entre homens e mulheres pareçam
ter sido inseridas em nossos genes, mediante o processo de seleção, isso
não pod.e ser usado como pretexto para continuar sustentando as de-
sigualdades sociais e econômicas entranhadas em tantas tradições
culturais. O que era biologicamente correto há 100 mil ou 2 milhões
de anos atrás não pode servir de base para o equacionamento da justiça
social em nossos dias" (LEAKEY e LEVIN) (12).
Certo. pois, é que. nas sociedades primitivas, o sexo era um fator
mais forte de diferenciação social. Porque d.eterminou uma diferencia-
ção no trabalho. E essa divisão de trabalho valeu, por sua vez, como
um fator de condicionamento psicológico <!ue, a seu turno. refletiu-se
em formas de comportamento que se projetaram na organização social
dos grupos. A diferenciação de atividades estimulou uma diferenciação
d.e faculdades. O tempo fez o resto. sedimentando situações. Valorizou-se
o homem num plano, a mulher distinguiu-se noutro. Se é exato que
"a função faz o órgão", a caça deu ao homem um status específico, o
mesmo sucedendo com a agricultura, em relação à mulher. Definiram...se
os papéis de um e outro, através do labor de cada um. A economia
motivou configurações psicológicas, e estas foram incidir na morfologia
e na fisiologia da sociedade. Eis como LEAKEY e LEVIN (13) analisam
os fatos:
"Tomando por base as sociedades de caçadores - colhe-
dores contemporâneos - e parece não haver uma boa razão
para não fazê-Io -. já sugerimos que a caça a animais de
grande porte era empreendida só pelos machos. enquanto que
as fêmeas colhiam plantas alimentícias. Considerando essa
divisão de trabalho, não é talvez sem significado que as fun-
ções intelectuais que comandam as chamadas habilidades vi-
suais-espaciais tenham se desenvolvido muito antes e estejam
muito mais profundamente arraigadas nos meninos d.o que nas
(12) LEAKEY, Richa.l"d e LEVIN, Roger - ob. clt.
(13) LEAKBY. Richard. e LEVIN. Roger - ob. cit.

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meninas, enquanto o desenvolvimento verbal tende a ultrapas~
sar o dos meninos."
E mais:
"O status das mulheres nessas sociedades de caça é
inversamente proporcional à quantidade de carne caçada e ao
envolvimento delas na caça. Por exemplo, entre os hadza e os
bambuti, existe algo que se aproxima da igualdade social entre
homens e mulheres, com pouca preocupação relativa ao status
geral. Os homens e as mulheres têm igual liberdade de escolher
seus cônjuges, ou de ter seus amantes e de se separarem, se
assim o desejarem. Entre os caçadores do tipo i kung, nos quais
o prestígio adquirido pela distribuição de carne separa 05 ho-
mens das mulheres e cria uma consciência muito maior de
status, o homem de maior statws é aquele que se mostrou ca-
çad.or exímio e eficiente - e é, portanto, muito bem cotado
como noivo em potencial. Entre comunidades tradicionais,
como a dos esquimós, as mulheres sofrem terrivelmente na
escala social, sendo tratadas, sobretudo, como objetos sexuais,
com pouco controle sobre o próprio destino."
Os informes confirmam: o sexo determina a atividade e esta esta-
belece a distinção entre a posição do macho e da fêmea na estrutura
social da tribo. O hábito do trabalho transformou-se em costume social.
O sexo, que estava na base da divisão das tarefas, acabou por impor todo
um posicionamento social, que a tradição consolidou e consagrou.
Naquelas sociedades primitivas, "certamente as mulheres não de-
viam tomar grande parte na caça, a não ser durante as grandes batidas
coletivas, para assustar as renas com gritos e gestos desordenados ou
para nelas jogar pedras e paw. Todavia, a mulher tinha outro papel
a desempenhar na provisão de víveres: fazia a colheita de frutos selva-
gens e plantas alimentícias, elementos indispensáveis para quando a
caça ficava difícil" (ANDRÉ SENET) (14).
Haveria, portanto, uma adequação do social ao natural, este se
projetando naquele, o que explicaria e justificaria a diferente colocação
social das mulheres e dos homens, estes e aquelas se dedicando a se-
tores de trabalho compatíveis com a sua estrutura psíquica e orgânica,
dai surgindo, também, vantagens e privilégios para o homem, fisica-
mente mais forte e que tinha missão mais importante, do ponto de
vista da segurança e sobrevivência do grupo. O destino de inferioridade
social da mulher seria, dessa maneira, uma fatalidade biopsicológica.
Como, também, estaria inscrita nas leis divinas. A Bíblia, o Alcorão,
o Rig-Veda, as religiões pagãs, a fisiologia, a anatomia, tudo isso teria
conspirado contra a mulher. Mas esta, através dos séculos, não desistiu
de lutar, e vai vencendo. Desmascarando conceitos. Destruindo tabus.
Retificando verdades. Transformando valores. Hoje está, praticamente,
em posição igual à do homem. Porque mostrou que, C011W mulher, é
(l41 SBNET. André - O Homem Descobre seus Antepass«d03 - Trad. de PIERRE SANT06 -
Livraria Itatiaia. Limitada. - Belo Horizonte, Bra4l1 - 195fl.

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também capaz de muita grandeza. Suas conquistas desmentiram pre-
conceitos religiosos e prejuízos científicos inventados pelos homens para
mantê-Ia acorrentada.
O caminho palmilhado pela mulher, através dos milênios, até chegar
ao estado atual, foi longo e penoso. Em cada pedaço dos quatro can-
tos da terra a sua luta foi heróica. Tudo foi tremendamente difícil, em
todas as partes e em todos os tempos. E só um ser rico em qualidades
poderia vencer, como a mulher venceu, tão formidáveis obstáculos.
A sociedade de caça já se perde na noite dos tempos. Depois dela
outras sociedades vieram: a agrária, a pastoril, a industrial. Mas em
todas elas, na antigüidade, na Idad.e Média, na Renascença e nos tempos
modernos, a mulher continuou esquecida e maltratada, sempre posicio-
nada numa condição inferior. Só agora, em pleno século XX, e mesmo
assim ainda não de maneira total, conseguiu sua emancipação.
O certo é que, embora nem sempre na estrada certa, também
cometendo erros, às vezes praticando abusos, não raro até mesmo se
negando, soube no entanto a mulher, tropeçando aqui e ali, caindo
acolá, reerguer-se, equilibrar-se, e, espanando a poeira, "dar a volta por
cima" e aproximar-se da meta final.
Vejamos, agora, como, desde a pré-história, vivia a mulher nas
diversas civilizações, para, depois, saber como foi a sua luta, como se
afirmou, o que conseguiu.

II - A mulher na Suméria
Na Suméria, onde, cerca de três mil anos antes de Cristo, existiu
uma notável civilização, o sistema familiar era patriarcal. A autoridade
do chefe era absoluta. Em conseqüência, a mulher estava em um degrau
muito baixo na esc1la social. Havia, no entanto, alguma consideração
para com ela. Inclusive, figuras de deusas eram veneradas.
Sobre o assunto, escreve AMAR HAMDANI (15): "o paterfamüias go-
zava, no seio da célula d.e base, de um status comparável ao do grande-
sacerdote da cidade, ou do rei no país. Ele governava tudo, sem limites".
Prossegue:
"Em uma tal sociedade era natural que a posição da mu-
lher fosse inferior à do homem. A prova é esta lei que fixava
o regulamento de alguns conflitos matrimoniais:
- Se uma mulher diz a seu marido que detesta: "Tu não
és meu marido", deve-se jogá-la no rio.
- Se um marido diz à sua mulher: "Tu não és minha
mulher", ele deve pagar meia mina de prata.
Dois pesos e duas medidas. Contudo, a mulher mesopotâ-
mica estava longe de ser desprezada. Nunca será demasiado
(15) HAMDANI. Amar - Suméria. a Primetra Gral'Wle Cttljljzaç40 - Trad. de MARIA LUlSA DE
ALBUQUERQUE SILVA - otto Pierre Bdltoree - Rlo. Bralill - 1978.

R. Inf. I.". Bralílla a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 317


repetir o quanto a sociedade dos homens era calcada na dos
deuses. Ora, o panteão mesopotâmico transborda de deusas de
todas as categorias, desde a "grande geradora" até a infeliz
empregada em lágrimas. E estas deusas, pelo menos as mais
importantes, eram objeto de cultos devocionais."
E não era só. Em sua condição de mãe, a mulher recebia homena~
gens especiais. Até, em certas circunstâncias, substituia o chefe na
direção do lar. É o que divulga, também, AMAR HAMDANI (16):
"Além disso parece ter sido venerada, na mulher, acima de
tudo, a sua função de mãe", acrescentando:
"Parece também que a mulher-mãe pode por vezes substi-
tuir o homem em todas as suas funções de chefe de familia."
Havia mais, ainda. Ao contrário do que sucedia nas civilizações suas
contemporâneas, na sumérica a mulher chegou a exercer práticas co-
merciais, enriquecendo, e até na política obteve algum sucesso:
"De resto" - divulga aquele escritor (17) - "a mulher me-
sopotãmica da época antiga era talvez mais livre do que foram
algumas de suas descendentes. Cita-se muitas vezes o caso de
uma famosa proprietária de cabaré chamada Kubabá: a lista
real da Suméria afirma que ela conseguiu subir ao trono de
Kish, por pouco tempo, é verdade. Uma outra, que era esposa
do rei Lugalanda, lançou-se nos negócios e construiu uma das
mais colossais fortunas do reino."

lU - A mulher na Babilônia
Na época do apogeu da Babilônia, ao tempo de Hamurabi, a situação
da mulher era razoável. Já não significava apenas um bem a mais do
patrimônio do marido, já era uma parceira do marido. Discutia os as-
suntos do lar e participava de sua direção. Afora isso, administrava os
seus bens particulares e cooperava com o marido na gestão dos bem
comuns. ANDRÉ AYMARD e JEANNINE AUBOYER (18), em seus estudos,
informam:
"É notável que o regime farnllial garanta à mulher a inde-
pendência de sua personalidade jurídica, particularmente para
a gestão de seus bens. Aquilo que o futuro marido dá ao sogro
no momento da promessa de casamento não pertence à mulher,
Mas esta permanece proprietâria única do dote que traz para o
marido e, quanto aos presentes que normalmente deve receber
dele mais tarde, não os pode alienar, embora possa usufrui-los
livremente. Dispõe sozinha, com inteira liberdade, de tudo o que
lhe pertence como próprio, sejam bens móveis ou imóveis. O
- ---
(16) HAMDANI. Amar - ob. clt.
(17) HAMDANI, Amar - ob. clt.
(18) AYMARD, André e AUBOYER, Jeannlne - "Clv1l1zaÇoes 11nperialll do oriente" - In Hl8tó~
na Gerczl das Oh'UiHç6e3 - 1.0 volume - Trad. de PEDRO MOACYR FRANCO - D1fUBOr&
Européia do Livro - 8âo Paulo, BraeU - 1957.

318 R. Inf. legisl. Bro.ílio o. 19 n. 74 abr./jun. 1982


contrato, sem o qual não há verdadeiramente casamento, pode
proibir que os credores do marido se apoderem de sua pessoa.
Esta proibição só incide, ordinariamente, em relação às dívidas
contraídas antes da união, mantendo-se a solidariedade para
as que surgirem depois do matrimônio. Mas o marido, então,
não administra sozinho os interesses comuns, cabendo à mu-
lher interferir, pelo menos como testemunha, por ocasião das
vendas. Se, sendo soldado, o marido for mobilizado, competir-
lhe-á, na ausência do filho maior, a administração dos bens do
casal, tendo direito, então, a um terço das rendas."
Uma situação, como se vê, quase invejável e da qual não desfrutam,
ainda hoje, muitas mulheres.
Tinha outras prerrogativas, ainda, a mulher babilônica, enquanto
em vigor o Código de Hamurabi: acontecendo o divórcio, seus direitos
eram iguais aos do marido. Mas, no tocante ao adultério, a discrimina-
ção persistia, e de maneira cruel. Com a palavra, novamente, A. AYMARD
e J. AVBOYER (l9) :
"Sem dúvida, a mulher pode ser repudiada pelo marido;
mas é resguardada contra uma decisão arbitrária deste último,
que deve recorrer aos tribunais, invocando, perante estes, moti-
vos reconhecidos como válidos em apoio de sua decisão. Ainda
mais, a má conduta do marido autoriza a mulher a intentar
uma ação semelhante para voltar ao recesso de sua própria
família. Em ambos os casos leva consigo tudo o que lhe pertence
e freqüentemente, além disso, uma indenização fixada por lei.
Resta, é verdade, o caso de flagrante delito de adultério: o do
marido, ao que saibamos, não é considerado pelo Código, en-
quanto a esposa culpada pode ser lançada à água com o seu
cúmplice, a menos que o marido a perdoe. Mas nisto consiste,
ao que parece, a única desigualdade."
A poligamia era permitida, não a poliandria: "Além da mulher ou
mulheres legítimas - diz GEORGES CONTENEAU (20) - há a concubina,
tomada pelo marido quando ele não tem filho da mulher, e que tem
quase os mesmos direitos que a esposa."
Assim, ou por tradição ou por carência de mulheres, o homem podia
ter o seu harém, praxe até hoje adotada na maioria dos países árabes.
Considere-se, outrossim, que, em vigor a legislação de Hamurabi -
é ainda GEORGES CONTENEAV (21) quem o divulga - "quando a mulher
obtém o divórcio sem falta de sua parte, ela tem o direito de tornar a
casar-se. O fato dela ser vítima de uma moléstia crônica não é caso de
divórcio. Com a morte do marido, a mulher pode ficar na casa do fale-
(19) AYJ4ARD, André e AUBOYER, Jeannlne - ob. clt.
(20) OONTENEAU. Oecrgea - A ClvUlzaçilo ae Assur e Bal)jlOnÚl - Otto Plerre Ed.1torea S.A. _
RIO, Br88U - 19'19.
(21) CQNTENEAU, Georges - ob. clt.

R. IM. legill. Brosília a. 19 n. 74 abr./j...n, 1982 319


cido e nela viver, mantida pelos filhos, ou deixar o domicilio e tomar a
casar-se, isto por sua própria responsabilidade e sem recair sob a de sua
família, com a condição de que seus filhos jã estejam em condições de
dispensá-la".
Isso aconteceu ao tempo de Hamurabi, ou, pelo menos, enquanto
vigente a sua legislação. A mulher tinha, portanto, direitos, garantias,
proteção. Em outras épocas, porém, a sua situação foi bem diferente.
Quando não gozava, ainda, dos benefícios do código do grande legisla-
dor, era considerada um simples objeto, que se podia, inclusive, vender.
Humilhada e ofendida, era vil a sua condição. Basta considerar as terrf-
veis privações a que as moças estavam sujeitas:
"Os pais não as faziam casar de maneira usual em outras
regiões - levavam-nas ao mercado e vendiam-nas em leilão,
sendo que o produto revertia a uma caixa comum. Isso tinha
o seu motivo: jovens ca.sad.oiros, mas que não possufssem meios
suficientes para comprar uma noiva bonita, recebiam da caixa
uma compensação, caso concordassem em levar uma jovem me-
nos atraente" (HERBERT WENDT) (22).

IV - A mulher na Assíria

Em outro país da Mesopotâmia, a Assíria, vizinho e rival de Babi-


lônia, a mulher estava ainda em pior situação. Casada, era uma escrava
do marido; solteira, do pai. Não era mais, em verdade, que simples obje-
to nas mãos do homem.
HERBERT WENDT (23) fala desse país:
"As esposas não tinham direitos. Se um homem raspar o
cabelo da esposa, declara a lei, não incorrem em falta ... se
quiser deixã-la, não terá que dar-lhe coisa alguma. As filhas
eram igualmente desprotegidas, ao pai assistia o direito de as
vender como escravas conforme lhe aprouvesse."
Por seu turno, noticiam A. AYMARD e J. AUBOYER (24) :
" a mulher dispõe de uma capacidade civil mais redu-
zida" "Pode ser repudiada sem indenização e sem interven-
ção dos tribunais. A morte do marido acarreta-lhe a obrigação
de desposar um irmão ou um filho do primeiro leito do de-
funto."
Era isso, a mulher na Assíria: uma simples "coisa". sem direito,
sem vontade, sem dignidade.
(22) WENDT. Herbert - Tud<J começou em Babel - Trad. de LEONID ItRIPMAN - 1baa& -
810 Paulo, Brasil - 1962.
(23) WENDT, Herbert - ob. clt.
(24) A YMARD. André e AUBOYBR, Jeannlne - ob. cit.

320 R. Inf. legisl. Brasília G. 19 n. 74 abr./jun. 1982


v- A mulher na tndia
Na índia antiga a mulher prossegue em sua via crucis. Lá, diz
PANYELLA (25), as mulhere.'3 são tão desprezadas que "la mayoria de las
niílas son muertas aI nacer tl

A familia tinha importância, mas tão-somente na medida em que


servia para fortalecer o homem, fornecendo-lhe uma base de segurança.
incumbindo à mulher um papel secundário, pois era tida apenas como
uma máquina de fazer filhos. É o que ensina ALFRED WEBER (2.6) :
"El brahmá-11 estata muy próximo ai cielo y alejado de la
vida cotidiana ordinaria. Para él y para las demás capas socia~
les superiores, cuál era eI papel que desempefiaba la famUia
-la familia que hemos visto que era la base de la China? Pues
certamente tenia la mayor importancia. Pero estimada desde
un punto de vista masculino y aristocrático; es decir, enfocada
esencialmente desde el punto de vista de que la mujer paria
reglamentariamente los herederos indispensables a la grandeza
de la casta", e, desse modo, "la mujer casada es tan sólo fun-
cionaria encargada de la propagación de la estirpe; y el sexo
femenino está expuesto a todo aquello contra lo cual tuvo y tiene
todavia que Inchar la administración inglesa, a saber: matri·
manias infantiles, supresión de las nifias, cremaci6n de las viu-
das, en suma, contra todas las instituciones brutales creadas
por el hombre e inspiradas por el punto de vista masculino."
A hegemonia do homem, já nas mais remotas civilizações hindw,
parece comprovada; seu poder, absoluto, só tinha por freio a sua von-
tade. e esta variava confonne o seu temperamento. No lar. é "o pai que
exerce todas as prerrogativas, mas seu nome evoca a idéia de bondade,
não de autoridade", pondera GASTON CoURTILLIER (27). e acrescenta:
"O homem é monógamo, ainda que os chefes pratiquem a
poligamia. A poliandria é desconhecida."
O regime familiar era. por conseguinte, discriminatório. Inferior,
nele, a condição da mulher.
Cabe advertir, contudo, que houve diversas fases diferentes para a
mulher, na tndia, variando em cada uma delas a sua situação social.
Assim é que, à época da chamada "civilização védica", as coisas lhe
corriam mais favoravelmente, como se deduz desse relato de A. AYMARD
e JEANNINE AUBQYER (28):
"Embora o marido seja teoricamente o senhor, o papel da
esposa é de importância. Os termos védicos a ela referentes alu-
(25) PANYELLA, Augusto - Pueblos 11 BCUlGI 4el Mundo - Edlclonll8 Danae - Barcelona, JDspaAa
- 19'12.
(28) Wlmll:R, Allre<!. - HtBtorw. <te la Cultura - venl16n espafiola de LUlS RECAS~S SICHl!'8 _
Fondo de Cultura Econ6mica - MéXIco, ~
(2'1') COURTILLIB&. Gaaton - A8 Antlgu Cf\lfl~ da India - Otto PLene Bclltores - Rio.
BruU - 19'18.
(28) AYMABD, André e AUBOYER. Jeanniue - ob. cito

R. I.f. lelill. Bro.ilia G. 19 n. 74 a.r./julI. 1982 321


dem, quase todos, à sua utilidade, à sua capacidade de conce-
ber, a seu sentido maternal."
Os dados que possuímos a respeito da condição da mulher na época
védica são muito contraditórios; no conjunto, entretanto, as moças não
parecem ter sido maltratadas; antes do casamento ajudam a mãe nos
serviços caseiros, levam água do poço para a casa em jarros equilibrados
sobre a cabeça, tecem vestimentas e bordam-nas. O estado conjugal é
mais atraente para elas, mas, quando não se casam, podem ficar moran-
do com o pai e zelar pelos interesses deste. O irmão é, por definição, o
protetor de sua irmã, e é com desprezo e compaixão que se fala da "moça
sem irmão"; é, de fato, o "filho que herda do pai e perpetua a sua auto-
°
ridade", que é confirmado por FuSTEL DE COULANGES (29): "Depois da
morte do pai, diz o Código de Manu, que os irmãos partilhem o patrimô-
nio entre si. .. " recomendando ainda o legislador aos irmãos que dotem
suas irmãs, o que mostra que elas nada herdavam.
Prática cruel, inaugurada na Idade Média da história hindu, era a
da queima da viúva, que sofria a morte ritual sobre a pira de seu marido.
Esse costume bárbaro foi abolido na índia védica, mas restaurado no
período bramânico.
Aliás, na Idade Média, ou seja, ao tempo dos gruptas, a condição
feminina era um pouco mais favorável, pois a mulher recebia maior
atenção e até gozava de um certo prestígio. Mas, a rigor, concebem-na,
ainda, como algo que só vale pelo que vale para o homem de que é con-
siderada uma parte complementar. Já lhe dão algumas migalhas de
direito, porém continua enclausurada e submissa e a sua maior glória
está em ser uma sati, que vai para a fogueira quando o marido morre.
Em ser uma "cara metade" autêntica. São dois num só, mas apenas no
que toca à mulher. Os homens não precisavam ir para a fogueira onde
ardia o cadáver de sua esposa. É o que escreve ÉDOUARD PERBOY (30) =
"A mulher é tratada pelo seu marido como uma matrona,
uma conselheira, uma amiga. Desta forma, pode exercer pro-
funda influência sobre a família; confinada quase sempre em
casa, sai apenas com a maior reserva, envolta num véu que
dissimula suas formas graciosas. Se não tem filho, perdoe muito
de sua influência; quando viúva, deixa de governar a família,
e a esposa do filho toma então o seu lugar. A viúva não herda,
recuperando apenas o dote e os presentes pessoais feitos pelo
marido, especialmente as jóias, inalienáveis durante sua vida.
É nesta época que surge - atestado em 510 por uma estela
comemorativa encontrada em Eran - o costume da "mulher
fiel" (sati) que se deixa queimar na fogueira funerária de seu
marido. As viúvas que não seguem este rito condenam-se, volun-
tariamente ou não, a uma vida reclusa: sem pintura, com os
(29) COULANGES, FulItel de - A Cidade Antiga - Trad. de SOUSA COSTA - Livraria Clássica
llld1tora - LisbOa, Portugal - 1937.
(30) PB:RROY, ltdouard- "A Idade Média", In Htttõ7i4 GeTCl! oos C~vlltzClções - VaI. VI ~
Trad. de PEDRO MOACYR CAMPOS - D1fusora Européia do Livro - 8AO Pattlo, Braall
- 1956.

322 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 ab,'/jun. 1982


cabelos atados, vivem à parte, de maneira ascética. Se contraem
novas núpcias, sofrem a censura unânime, a menos que esc0-
lham seu novo esposo no seio da mesma família, isto é, que
desposem o parente mais próximo do defunto."
Em síntese: na índia antiga, em geral, era de submissão e inferio-
ridAde a posição da mulher no lar e na sociedade, conquanto, às vezes,
alvo de atenções românticas. Na realidade, estava quase que irretratavel-
mente vinculada ao homem, tanto na vida quanto na morte.
Hoje, porém, o vendaval do progresso está destruindo preconceitos e
tabus, a ponto da índia ter na chefia do governo uma mulher, Indira
Gandhi, que, por sinal, ainda desfruta de grande prestígio no país.

VI - .A mulher na China

Na sociedade chinesa antiga a situação da mulher foi cheia de altos


e baixos. Sua posição social variou de dinastia a dinastia. TORNELL (31),
por exemplo, escreve que "las mujeres se hallan siempre supeditadas", ao
passo que MARCEL GRANET (32) informa:
"Num momento indeterminado da história chinesa, os cos-
tumes quase que foram matriarcais. As mulheres transmitiam
seu nome aos filhos. Os maridos não eram mais do que cônju-
ges anexados ao grupo de esposas. Na nobreza feudal, desenvol-
veu-se uma moral oposta. O casamento parecia colocar a mu-
lher sob a sujeição do marido."
ALFRED WEBER (33) também refere-se ao cunho matriarcal da socie-
dade chinesa:
"La cultura china fué fraguada en ese senso matriarcal. Y
está embebida y penetrada de una atm6sfera democrática anti-
sefiorial y anti-guerra. La cultura china descansa en grado
extremo sobre la família formada por la mujer. Apesar de todo
el alarde de paterfamilías que hagan siempre su hechura tan
5610 de la mujer."
Assente parece estar, portanto, que a mulher chinesa nem sempre
esteve subordinada ao homem e que, ao contrário, teria existido, na
China, o regime matriarcal, quando, então, os homens é que estariam
submetidos às mulheres.
De inicio, parece, a importância maior teria sido, em geral, a da
mulher; mais tarde, ao menos nos meios aristocráticos, a situação teria
se invertido, subindo o homem ao plano superior e descendo a mulher
ao inferior. Passa a prevalecer, então, a concepção clássica, romântica,
(31) TORNELL. R. V. - HUtorla de la mvUización - Tomo I - Editora H1Bpano Bopefl.& S.A.
- Barcelona, Bspalia - 1974-
(32) GRANBT, Mareei - .oi Cillillzeçllo ChineM - Otto Plene Ed1toree - Rio, BraB1l - 19'1ll.
(33) wzmm, Alfred - ob. cito

L Inl. le,I". lra.ma a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 323


da mulher, figura suave, deUcada, feita exclusivamente para o lar. Para
isso, elas recebiam uma educação toda dirigida no sentido da obediência
e da domesticidade:
"As jovens não são feitas para a vida pública e para a guer-
ra, mas para os trabalhos e os serviços do gineceu. Elas serão
esposas e tecelãs", diz MARcEL GRANET, (34) que adianta:
"A menina aprende a obedecer com ar doce, a granar o
cânhamo, a dobrar os casulos, a fiar o fio, a tecer as fazendas,
a trançar os cordões, a confeccionar as vestimentas. Ela é ini-
ciada também na arte de preparar e arrumar as refeições de
cerimônia oferecidas aos ancestrais."
Nenhuma novidade: a mesma tradicional condição da mulher em
quase todas as sociedades antigas. Um preparo para o lar, apenas. Para
a "profissão" de esposas e de mães. Tudo muito lírico e conservador. E a
mulher continuando marginalizada da vida pública. A viver em casa,
para a famma, dócil, obediente, subrni&sa, que essa é a sua sina. Antes de
casada, subordinada ao pai; casada, sujeita ao marido. A integração da
mulher na sociedade se fazia como filha e como esposa, pois era como tal
que se afirmava:
"O marido não substitui inteiramente os direitos do chefe
da famma natal. A mulher passa da obediência (tsong) deste
chefe para a obediência do marido. Sem dúvida, a autoridade
do marido (chamado senhor) tende, como a autoridade pater-
na, a tomar um caráter senhorial. Entretanto, é preciso enten-
der por obediência (tsong), sobretudo, a idéia de que a mulher,
atingida por uma espécie de menoridade, só tem lugar na socie-
dade como filha ou como esposa. Viúva, ela é colocada sob a
obediência (tsong) do filho, o que não quer dizer que este possua
sobre ela o menor poder de. comando. Ele é simplesmente,
depois do pai e do marido, uma espécie de tutor responsável. A
transferência da tutela não suprime, de maneira alguma, os
direitos do pai, nem mesmo sua responsabilidade, sobre uma
filha casada: os ritualistas, é verdade, declaram que há ai um
caso de usucapião dos direitos e dos deveres matrimoniais"
(MARcEL GRANET) (31i).

Essa a realidade: depois dos primórdios matriarcais, a mulher chio


nesa passou à condição de simples dependente do homem - pai, primei-
ro, e, depois, o marido. Casando, trocava de "tutor", não de situação.
Continuava submissa, pois considerada em Permanente menoridade.
Afinal, assim tida como incapaz, .sempre sob a guarda de alguém, a
mulher nem sempre mesmo tinha direito ao filho, em certas circunstân-

(34) ORANET. Mareei - ob. clt.


(3:1) ORANJ:T. Illarcel - o)). clt.

3201 R. Inf. legi.l. Ira.ília a. 19 n. 14 abr./;un. 1982


cias, pois, se repudiada pelo marido, perdia os direitos de mãe. A rigor,
portanto, era uma mulher objeto. Uma "coisa" do uso pessoal do ho-
mem:
u ••• a ruptura dos vínculos entre a criança e a mãe repu-
diada parece ser natural. Atribui-se ao neto de CONFÚCIO, tam-.
bém grande filósofo, esta frase rigorosa: "Aquela que era mi-
nha mulher era também a mãe de meu filho. Deixando (pelo
repúdio) de ser minha mulher, ela deixou de ser a mãe de meu
filho" (MARCEL GRANET) (36).
Onde se vê que a própria maternidade foi colocada em função da
condição de esposa. "Desaparecia" com a separação, quando a mulher
era rejeitada pelo marido.
Contrariamente, a situação da esposa sofria uma completa revira-
volta quando ela enviuvava. De subalterna, passava à chefia do lar, com
enormes poderes:
"Serva no tempo em que era nora, ela é depois que a morte
a libertou do seu marido, uma rainha-mãe à qual nenhum
poder na família pode se opor. Mas uma mulher não adquire e
não aumenta seu poder a não ser passando sua vida confinada
no gíneceu. Esta reclusão surge como o principio da judicatura
feminína" (MARCEL GRANET) (37).
A valorização da mulher se dava, assim, enquanto e o quanto mais
ela se integrasse em sua condição feminina. E essa condição, na velha
China, era o lar. Só nele, presa nele, vivendo nele e para ele, a mulher
se afirmava, "crescia", ganhava status, se valorizava. O sexo, como sem-
pre, era um fator importante, na espécie. Determinava a categoria social
da mulher.
Recordemos, porém, que a situação da mulher, no velho país asiãti-
co, variou de dinastia a dinastia, ora surgindo ela em posição importan-
te, ora aparecendo em completa subalternidade. Ao tempo de Chou, por
exemplo, "as mulheres eram vendidas publicamente a particulares e
havia também cortesãs de estado cujos talentos eram exibidos nas festas
dadas pelos grandes senhores", recorda EDWARD SCHAFER (3S), que lem-
bra, .ainda:
"Os imperadores chineses e seus cortesãos tinham grupos
de esposas e concubinas, das quais se esperava que fossem mo-
delos de correção. Suas atitudes não eram deixadas ao acaso. AJ;
damas eram instruídas por uma preceptora, cujas regras per-
feccionistas constavam de um pomposo folheto intitulado: "Os
conselhos da Preceptora das damas da Corte". Corrija seu ca-
ráter corrw se fosse com um machado, embeleze-o como se fos-
se com um cinzel, recomendava, em parte, o texto."

(36) GRANET, Marcel - ob. clt.


(37) GRANET, Mareel - ob. clt.
(38) SOHAll'ER, llldward H. - A China Antiga - Trad. de MARIA DE LOUR.DE8 CAMPB:LO -
Livraria José Olymplo Editora - R1o, BruU - 19'13.

R. Inf. legial. 8fl1aíliCl CI. 19 n. 74 abr./jun. 1982 325


Como se vê, queria-se uma mulher moralmente perfeita. Só assim
estaria em condições de bem servir aos nobres. A mulher era preparada
para o lar e para o seu senhor. A sociedade, em suma, tinha um caráter
eminentemente machista. Esse "machismo" estava todo no preceito do
Código, que rezava: "Um marido é o céu, e o céu não pode ser evitado".
A aspiração maior da mulher consistia em sentir-se realizada e feliz
quando alcançasse o seu céu... Toda a sua preparação se orientava nesse
sentido:
"Quase desde o berço as mulheres chinesas eram ensinadas
a ser subservientes. Nos velhos tempos, os bebês do sexo femini-
no eram colocados no chão, para simbolizar sua inferioridade:
isto, esperava-se, ajudá-Ias-ia a formar um padrão ideal de doci-
lidade virtuosa" (EnwARD SCHAFER) (39).
Assim acontecia na cidade. Na zona rural as coisas corriam de modo
diferente. O trabalho .separava, em tarefas árduas e bem definidas, ho-
mens e mulheres. Os camponeses encarregavam-se das labutas do cam-
po, onde permaneciam longas horas, competindo às mulheres os serviços
da casa - onde o homem ia pouco - e de tecelagem. Sozinha no lar, a
mulher tinha mais responsabilid.ade e, também, mais autonomia.
A educação da menina tinha uma direção certa: fica com os me-
ninos até a idade de dez anos; é depois fechada no gineceu, sendo-lhe
ensinados os trabalhos femininos, a obediência e a função que lhe caberá
exercer nas cerimônias religiosas. Aos vinte anos, ou mais, faz um retiro
de três meses no templo ancestral e depois recebe o alfinete de chin6
(Ki), ao mesmo tempo que um novo nome" (A. AYMARD e J. Au-
BOYER) (40).

Dos dados colhidos conclui-se, pois, que, excluida a era do matriar-


cado, a mulher na antiga China esteve sempre relegada a um plano in-
ferior, de um ente submisso, sem liberdade, "robotizado", simples objeto
de ornamentação ou de uso do homem em seus desejos e interesses. Mes-
mo quando alguma prerrogativa se lhe dava, fazia-se isso, invariavel·
mente, no interesse do homem, pois era só no lar e nele reclusa, que se
via algo de importante na mulher, ali cuidando das coisas do marido. Os
poucos direitos que ela possuía, possuia-os na condição de casada, visto
que, solteira, nada lhe era dado.

VII - A mulher no Egito


Revela-nos KURT !ANGE (41) que as virtudes da rainha, no Antigo
Império, eram cantadas assim:
"Contempla Horus e Beth
grande pelo seu encanto,
grande pela sua graça ...
(39) SCHAFER, Edward B. - ob. clt.
(fO) AYMARD, André e AUBOYER. Jeannlne - ob. clt.
('l.) LANGE, Eurt - Pirdmjdes. Esfinges e Faraós - Trad. de OSCAR MENDES - Editora Itatiaia
- Belo Honzonte. BrasU - 1961.

326 R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


A amiga de Horus,
A mulher do rei, por ele amada."
E no Novo Império:
"A esposa do deus.
A mãe do deus.
A mulher do grande rei,
A senhora dos dois países."
Eis aí: uma consagração à mulher. Esta, pelo menos na pessoa da
soberana, era a própria esposa e a própria mãe do deus, cheia de graça,
amada do rei, senhora dos dois países, encantadora e poderosa.
Tudo indica, ademais, que essa con.sideração pela mulher não ficou
limitada à rainha, antes era uma constante na sociedade egípcia.
Na família do Egito antigo a mulher tinha, efetivamente, um lugar
de destaque. Sua posição no lar era importante. Valia como real compa 8

nheira do homem. ANDRÉ AYMARD e JEANNINE AUBOYER (42) escrevem, a


respeito:
"A família egípcia parece apresentar a marca de antigos
usos que davam à mulher um lugar muito amplo, talvez mesmo
de preponderância. Invocava-se freqüentemente, por exemplo,
a filiação materna, pelo menos em pé de igualdade com a as~
cendência paterna. Em caso de morte do marido, se não havia
um filho adulto, a mulher assumia a chefia da família, inclusi~
ve no que dizia respeito às relações com o Estado."
Havia, porém, naquela sociedade, marcas de "machismo". Dessarte,
enquanto a poligamia era permitida ao homem, a "monoandria era exi~
gida à mulher, constituindo o adultério plena justificação para o assas-
sínio, mesmo inexistindo o flagrante d.elito" (43).
De um modo ou de outro, contudo, a mulher, tão influente no lar,
às vezes até projetava a sua importância na vida pública:
"Sem pretender generalizar, convém, entretanto, assinalar
o papel político desempenhado, ocasionalmente, por certas mu~
lheres da família real, das quais a rainha Hatchepsut, em mea~
dos do segundo milênio, é apenas a mais célebre. Assim, no sé-
culo VIII a.C., "ad.oradoras de Amon" sucederam, tanto no setor
espiritual como no temporal, aos grandes sacerdotes de Amon,
junto dos quais, durante muito tempo, as grandes sacerdotisas
apenas tinham ocupado uma posição muito apagada. Podemos
afirmar com certeza que o antigo Egito não considerou, em
princípio, a mulher como um ser -inferior" (44) ..
(42) AYMARD. AÍldré e AUBOYER. Jeannlne - ob. clt.
(43) AYMARD, André e AUBOYER. Jeannlne - oJ:). clt.
(44) AYMARD. André e AUBOYER. Jeannlne - ob. clt.

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Esse papel político da mulher egípcia, com real participação na vida
pública do país, naqueles recuados tempos da história, é também salien~
tado por LIONEL CASSON (411), que infonna:
l'As mulheres serviam como sacerdotisas em tempo par~
daI e às vezes exerciam funções idênticas às dos seus colegas
masculinos. Por exemplo, durante a 18\\ dinastia, o faraó no-
meou a sua rainha para um dos mais eminentes cargos religio-
sos do país - o de segundo grão-sacerdote do deus Amon, em
Carnaque. De um modo geral, porém, as sacerdotisas se limi-
tavam a desempenhar o papel de cantoras e musicistas."
Verifica-se do exposto que, sem ter chegado à posição atual, de
igualdade com o homem, a mulher no Egito antigo, ao contrário do que
se verificava com as mulheres de outros povos daquela época, gozavam
de alguma liberdade e possuíam direitos e prerrogativas que lhes asse-
guravam uma colocação honrosa na sociedade. Isso, malgrado os inegá~
veis privilégios do homem, sempre se posicionando vantajosamente
numa sociedade por ele mesmo modelada e dirigida. Donde o reconhe-
cimento de que "somente a cretense gozava de uma situação melhor"
(48) do que a egípcia, no mundo antigo.

VilI - A mulher na Grécia


A) Em ereta
Escreve IVAR LISSNER (4.1) :

"Os cretenses adoravam suas mulheres, a julgar-se pelas


facilidades que lhes concediam para se enfeitar e embelezar;
era a cretense cercada de Uil11 luxo e de um gosto aos quais a
própria egípcia não estava habituada. E se a Grande Mãe era a
mais alta divindade cretense, não se devia isso certamente ao
acaso."
Em verdade, foi tal vez na sociedade de ereta que a mulher conse-
guiu alçar-se à mais elevada posição, entre todas as antigas civilizações.
Tanto no lar quanto na vida pública, ela sobressaía-se, sempre pres·
tigiada e admirada, altamente conceituada pela sua gente.
Até mesmo exageros houve, na liberdade que se lhe concedeu, eis
que os afrescos nos edifícios da cidade faIam de mulher enfrentando
touros na arena:
a mulher, se não governa, certamente reina sobre a
OI • • •

sociedade cretense,e essa supremacia confere à Ilha uma pro-


(t5) OASSOM. Llonel - o Antigo EgIto - Livraria José 01ymplo Editora - Trad. de PINHEIRO
LEMOS - lUo, BrasU - 1971.
(40) Hutor<lm<l- A Grnnde Aventur4 do Homem - SupervlsAo de JACQUES PRANCIS ROLLAND
- Bditora Oodmr:: - Tomo I - "Da Pré-História ao Primeiro Império Untvel'lla1" - 1972.
('7) LI88NBR, Ivar - brim Viviam Nossos AntepaS440s - Trad. de OSCAR MENDES - Livra-
ria Itatiaia Ltaa. - Belo HorlIiIOnte. BraIlll - 11181.

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funda originalidade em todo o mundo antigo. Quando enfrenta
temerariamente os chifres do touro, na sua ousadia não é igual
ao homem?" (48).
Tão influente era a mulher que até a riqueza da terra era simboli-
zada e glorificada na figura d.e uma mulher. E esta deusa era única.
Não tinha companheiro. O que induz à impressão de que a primazia, na
nha, era realmente da mulher:
"Só era exaltada a fertilidade do solo, e parece certo que
foi venerada uma espécie de deusa - mãe representada com
largos quad.ris e as mãos às vezes cruzadas no seio nu. Serpen-
tes se enrolavam ao longo do corpo, pássaros esvoaçavam em
torno de sua cabeça. Não ficou nenhum traço de um deus-
homem que corresponda a esta deusa, e isto parece estranho.
Creta, na verdade, não era governada por um rei, e Zeus, o
primeiro dos deuses, não tinha nascido na Ilha? l!: claro que a
representação do d.eus é simbólica, invisível aos nossos olhos. A
mulher parece de qualquer modo ter ocupado o primeiro lu-
gar." (49).
O mesmo divulga PAUL ULRICH (50) :

"Se a mulher desempenha um papel discreto na vida gre~


ga, é ama e senhora em ereta. Em todas as circunstâncias, é
ela o ponto de mira, o centro das atenções. Elegante, coqueta,
autoritária, é igualmente desportiva."
E SINcLAIR HOOD (51), que diz:
"Qual a posição da mulher em Creta na Idade do Bronze?
A preponderância das deusas na religião significa que lhe era
dada parte importante nos ritos e cerimoniais religiosos, o que
se prolongou no culto das deidades femininas descendentes das
da Idade do Bronze em Atenas e nos outros Estados da Grécia
clássica. Parece que as mulheres participaram até nas toura-
das, que tinham origem religiosa ou mágica."
E acrescenta:
"Em pinturas murais de Cnossos vêem-se mulheres rica-
mente vestidas em lugares de honra, enquanto outraa se mis-
turam com os homens da multidão que observa rituais de vá-
rios gêner08. Estas pinturas contribuem para rerorçar a idéia
de que as mulheres gozavam de mais respeito e liberdade na
Idade do Bronze do que mais tarde na Grécia."
(48) matoroma - ctt.
(49) Hl8toromll - clt.
(50) lrL.lUCH, PaUl - Os Grandes Enigmaa MS Civtlfzações Desaparecit1c.s - otto Plerro Ltda.
- 810 PaUlo, BI1I8ll.
(51) HOOD, Blnclalr - Os Minóicos - Trad. de RODRIOO MACHADO - Editorial Verbo -
LlBboa. Portugal - 1973.

R. Inf. leglll. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 329


Também A. AYMARD e JEANNINE AUBOYER (~2) confirmam essas in-
formações:
"No que diz respeito à família, um fato sobressai nitida-
mente de nossa documentação: na sociedade cretense, a mulher
ocupava uma posição de relevo e gozava de uma liberdade que,
então, ela desconhecia em outras regiões, e que só recobraria
depois de muito tempo. A grande divindade ou, pelo menos, as
divindades mais numerosas, são femininas, cabendo às sacer-
dotisas o principal papel nas cerimônias. As representações fi-
guradas mostram-nos, muitas vezes, mulheres fora de casa,
em praça pública, no teatro, na arena circense. Mas devemos
limitar-nos a constatar a originalidade destes costumes, sem
pretend.er explicá-la."
Corroborando esses pontos de vista, dizem outros pesquisadores (fia):
"As mulheres, muito consideradas na sociedade min6ica,
tinham uma situação semelhante à dos homens. Usavam o ca-
belo comprido e trabalhosamente penteado e pintavam os lá-
bios e os olhos. A liberdad.e desfrutada pelas mulheres min6icas
era quase desconhecida em qualquer outra região do mundo,
onde as mulheres eram geralmente consideradas como proprie-
dade do homem."
Em conclusão: Creta foi quase uma exceção na antigüidade, no que
d.iz respeito à forma como enquadrava socialmente a mulher, a qual,
como se demonstrou, conquistou uma situação de muito relevo na civi-
lização, por sinal brilhante, da lendária ilha.

B) Em Atenas

Todos sabem que em Atenas desenvolveu-se uma das mais esplên-


didas civilizações antigas, marcada por conquistas imorredouras do ho-
mem nos setores das artes, <!as letras e da ciência.
Entretanto, lamentável e paradoxalmente, a situação da mulher.
na famosa cidade, ficou muito distante da grandeza geral, antes pode,
até mesmo, ser considerada como uma mancha negra naquele painel
luminoso que foi a cultura ateniense.
Lado a lado com a escravidão, a colocação inferior da mulher na
sociedade grega, em geral, e na ateniense em particular, foi o grande
pecado dos helênicos, tanto maior porque até mesmo justificado por
figuras exponenciais da sua intelectualidade.
Já entre os d6rios (1100 até 750 a.C.) o domínio masculino se fazia
notar, como nota PIERRE LÉVÊQUE (<14) :
(52) AYM.ARD, André e AUBOYER, Jeannine - ob. clt.
(53) AUtores diversos - História do Homem - Seleções do Reader'5 Dlgest - Portugal - 1975.
(M) Ll::V"tQUE, Plerre - "A aventura grega" - In Rumos do Mundo - Trad. de RAUL MIGUEL
ROSADO FERNANDES - EdIÇÓes COSIDOS - L1lIbaa. Rio - 19l17.

330 R. Inf. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


"O homem possuía incontestável superioridade em relação
à mulher, o que era devido ao seu papel primordial, que era o de
guerreiro. Havia neste caso uma troca espetacular da situação
no que respeita aos reis aqueus, que se tinham deixado influen-
ciar fortemente pelo matriarcado cretense."
O quadro social da Grécia ofereceu, como uma de suas característi-
cas, um posicionamento inferior da mulher em relação ao homem, por
este sempre explorada e amesquinhada, porque servindo sempre, e ape-
nas, como objeto de prazer ou simples máquina geradora de filhos.
Narra TOYNBEE (~~) :
"O estadista Péricles, em seu discurso em honra dos ate-
nienses mortos em ação no primeiro ano da grande guerra do
Peloponeso de 431-400 a.C., advertia as mulheres de Atenas,
segundo conta o historiador TuCÍDIDES, filho de Oras, de que
seu dever primeiro e único consistia em se fazerem despercebi-
das e gerar mais filhos para substituir as perdas de guerra da
comunidade."
Ora, Pêricles - que, por sinal, viveu com uma mulher notável, a
hetaira Aspásia, que exerceu grande influência sobre ele e de quem ele
teria sido um apaixonado - foi um dos homens mais célebres d.e Atenas,
e se ele, o maior estadista ateniense, pensava assim, imagine-se o que
pensariam da mulher os outros homens.
Essa compreensão depreciativa da mulher estava sem dúvida gene-
ralizada. Donde ser fácil conceber como era baixa a cotação da mulher
na sociedad.e ateniense. No lar e na vida pública ela estava, efetiva-
mente, colocada em situação subalterna e obscura. Sem direito, sem li-
berdade. Oprimida, vilipendiada. Até os filhos que gerava poderiam ser
rejeitados pelo marido, as filhas principalmente, porque, sendo mulhe~
res, representavam um "peso morto" para o pai:
"Na sua casa o homem era dono e senhor incontestável.
Podja repudiar a esposa, com a condição de lhe devolver o dote.
Tinha também o direito de recusar os filhos que nasciam, ex-
pondo-os em via pública. Este direito foi principalmente apli-
cado às filhas, bocas a serem alimentadas, que não rendiam no
trabalho e que, além do mais, necessitavam de dote quando se
casavam" (56).
Nenhuma participação tinham as mulheres na vida pública, da
qual eram totalmente marginalizadas. Eram educadas para ser d.onas de
casa e para ter filhos. Só raramente adquiriam algum preparo. A preo-
cupação dos pais era arranjar marido para as filhas. Casadas, as mulhe-
res ficavam encerradas no gineceu, de onde só saíam para assistir às
(55) TOYNBEE, Arnold J. - Helenismo - Trad. de WALTENCm DUTRA ~ Zahar Editores -
lUo, BralIll - 1960.
(li6) HtrtoramG - A Grande Aventura do Homem - Supervisão de JACQUES FRANCIS ROLLAND
- vai. n - "A Grécia Clássica e o Impérlo Romano" - Editora Codex LUla. - 19'12.

R. Inl. legiil. Irasilla a. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 331


solenidades religiosas. Especialmente as burguesas da cidade, pois, na
zona rural, as camponesas trabalhavam no campo e já tinham uma cer-
ta presença na vida da comunidade.
Sobre o assunto, diz R. M. CooK Fi) :
" ... durante toda a história grega dos tempos arcaicos e
clássicos, às mais consideradas mulheres raramente se atribuia
qualquer importância para além do seu papel dentro do matri-
mônio:'
E pormenorizando:
"Em Atenas - e, provavelmente, o costume era geral -
uma mulher solteira, qualquer que fosse a sua idade, com todos
os seus bens, ficava à guarda do parente consangüíneo mais
próximo, do sexo masculino; quando se casava, os bens passa-
vam a ser administrados pelo marido, que, entretanto, não par-
tilhava da respectiva propriedade."
Nem do que lhe pertencia pod.eria, portanto, a mulher cuidar, fosse
menor ou maior. Sua condição permanente era a de uma incapaz. Dai
a tutela a que estava sujeita: primeiro, à do pai; depois, à do marido.
Nem mesmo podia sair sozinha à rua: "As mulheres não saíam sem ser
acompanhadas por uma escrava; em casa permaneciam sob severa vigi-
lância", escreve ENGELS (68), que observa, também, com muita proprie-
dade, que "em Eurípedes", a mulher é designada como oikourema, um
objeto para uso caseiro, e, além da obrigação de procriar filhos, só servia
para criada principal dos atenienses."
Custa, certamente, acreditar que naquela Atenas grandiosa, orgu-
lho do engenho humano, a mulher fosse assim tão baixamente concei-
tuada. Mas era. E IVAR LISSNER CII) nos fornece, em detalhes, outros in-
formes que patenteiam o estad.o de verdadeira escravidão imposto à
mulher:
"As mulheres ficam a maior parte do tempo em suas casas.
Se são jovens estão mesmo proibidas de freqüentar e até de ver
homens que não sejam seus parentes próximos" ... "Ninguém
consultava a opinião de uma moça antes de seu casamento;
impunha-se-lhe um marido que, bem muitas vezes, ela jamais
vira" .. , "Sua única utilidade consistia em servir ao homem e
dar-lhe uma progenitura." ... "Perante um tribunal, o ato co-
metido por um homem por instigação de uma mulher era tido
como nulo" ... "A sorte oas moças atenienses limitava-se a. is-
to: casar com um homem desconhecido, ficar-lhe fiel até a mor-
te, dar-lhe filhos e, à sua morte, fazer parte de sua herança."
(57) COQK, R. M. - 08 Crl'egos - Trad. de LUta PIZARRO DE MELLO SAMPAIO - Edltorial
Verbo - Portuga.l. 19'11.
(581 ENOEL6, Frederico - Â Origem da FamiZia, da Propriedade e de Estado - Editorial Alba
Ltda. - Rio, Brasil - 1934.
(:i9) LIB8NBR, Ivar - ob. cit.

332 R. Int. legisl. Bra.ília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


Foi isso a mulher em Atenas, a imortal Atenas dos grandes filósofos,
dos grandes poetas, dos grandes artistas ...
O gênio grego não foi capaz de sentir as potencialidades da mulher,
que explodiram, em outras sociedades e outras épocas, em criações mag-
níficas em todos os campos de atividade humana.
Para encerrar: na Grécia toda, mas também, e principalmente, em
Atenas, a mulher cumpre o seu destino apenas no lar, porém sempre
dominada e tutelada pelo homem: "Os deveres primordiais da esposa
- frisam ANDRÉ AYMARD e JEANNINE AUBOYER (60) - são: dirigir as
questões internas da casa, zelar pelas vestes, ocupar-se dos filhos, sendo
que os do sexo masculino escapam à sua autoridade ao atingirem os
sete anos e as meninas ficam-lhe submetidas até o casamento. Isto por-
que as relações sociais e as preocupações, a fortiori as preocupações po-
l1ticas, não lhe dizem respeito, desde que ela não pretenda fazer es~
cândalo".
É certo que nem todos concordam com esse estado de coisas. Al-
guns pais chegaram a permitir que suas filhas recebessem instrução.
Muitas mulheres se rebelaram. Os preconceitos, todavia, estavam pro-
fundamente enraizados na mente dos atenienses, que não conseguiram
libertar-se de seus prejuízos. E as mulheres que romperam os grilhões
que as acorrentavam e conseguiram afirmar-se em sua personalidade
ficaram moralmente comprometidas. É o que salienta BELLOCH (61):
"Puesto que la nueva educación enderezaba ante todo a
fines prãcticos, permaneció limitada aI sexo masculino. No fal-
taron voces que reclamasen también una mejor educación de
las muchachas; pero esta exigencia no podia prevalecer fácil-
mente sobre los prejuicios dominantes. Sin duda habia muje-
res que tuvieran el valor de afrontar esoa prejuicios y ponerse
a la escuela de los sofistas; pera con e110 hacian peligrar su buen
nombre y no podían quejarse si la opinión pública las confun-
dia con las hetairas."
Em resumo, e como acentua BOWRA (~2), "a sociedade ateniense
era organizada preemineI1Jtemente como um mundo masculino".

C) Em Esparta
Esparta foi uma Cidade-Estado do tipo totalitário. O indivíduo, lá,
pouco valia como indivíduo. O valor maior era o Estado, de que o indi-
víduo era um mero instrumento.
Homens e mulheres tinham de agir, em sua vida pública e privada,
exclusivamente em função dos superiores interesses do Estado.
(60) AYMARD. André e AUBOYER, Jeannlne - ob. clt.
(81) BBLLOCB. Carlos Jllllo - "História da Grécia", in H'btóna Universal - vetll1ón espafiola
de llABUBL GARC1A MORENTlf - -ro.no II - BiIpMa Calpe S.A. - Madrid, ll:&paAa - 197ã.
(a) BOWRA, C. M. - A Grécia C'lda~ - Tracl. de PINHEIRO DE LEMOS - LIvraria J. Olym-
pio Eclltorv. - RIo, BrB8U - 19'11.

R. Inf, lellisl. Brasília CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 333


Essa filosofia totalitária refletiu-se na estrutura da família e no
relacionamento entre os sexos, condicionando e concatenando direitos
e deveres.
A civilização espartana, sob esse aspecto, foi singular, à época.
Para começar, note-se que não somente os rapazes, mas também
as moças, prestavam serviço ao Estado. A educação que elas recebiam
não visava o seu preparo exclusivo para os afazeres do lar. Nem mesmo
se fazia a separação, nas escolas, entre meninos e meninas. Queria-se
uma mulher antes de tudo forte. É o que ensina TOYNBEE (6S):
"La concepción era, para las ninas espartanas, como para
los ninas, universal; y a las muchachas espartanas no se las
adiestraba en la obtenci6n de fines femeninos especiales, ni
se las mantenía separadas de los varones, como sucedia en la
sección femenina de la casa de esclavos deI .padisha otomano.
A las muchachas espartanas se les adiestraba, como a los mu-
chachos, dentro de un sistema de concursos atléticos; y las
ninas competían desnudas, con los varones, ante un público
masculino."
A preocupação com a perfeição física era, em Esparta, obsessiva.
Sabe-se que os meninos que nasciam defeituosos eram sacrificados. E
essa obsessão chegou a tal ponto que ao marido era perdoado - e até
elogiado - permitir que sua esposa tivesse relações com outro homem,
desde que daí se garantissem filhos mais sadios. Como se vê, empresta-
vam-se esposas. E já existiam, de certa forma, bebês de proveta...
Mais ainda: se o marido não estivesse em condições de fazê-Io, a
mulher poderia, legalmente, tomar a iniciativa de arranjar um homem
capaz de lhe dar um filho.
Máquina de produzir soldados, tal era a mulher espartana. Enco-
rajava-se, por isso, o casamento, punia-se o celibato. Buscava-se o maior
número possível de cidadãos para servir ao Estado. Mas esses cidadãos
tinham que ser perfeitos. Fala TOYNBEE (64):
"Un esposo espartiata obtenía la aprobación general, em
vez de esponerse aI repudio público, si se preocupaba por mejo-
rar la calidad de la descendencia de su esposa disponiendo que
é.sta tubiese hijos con un reproductor que fuese mejor hombre
- o mejor animal humano - que el propio esposo. Y hasta
parece que una esposa espartiata podía disponer impunemente
por su propia cuenta si el esposo, em caso de ser deficiente, no
tomSlba la iniciativa proporcionándole un reemplazante."
Se bem que mais considerada por gerar filhos, e talvez por isso
mesmo, a mulher teve educação semelhante à do homem e chegou, in-
(63) TOYNBEE, Arnold J. - Estudio de la HistoTf4 - Traducclón de VICBNTB FATONE -
vol. UI - Emecê Editores. B.A. - Buenos AIres, Argentina. - 1958.
(64) TOYNBEE, Arnold J. - Estu4roa de 14 Hútorla, clt.

334 R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


clusive, em determinado momento da história de Esparta, a ter pre-
eminência na direção dos negócios do Estado:
"Otro notable fenómeno social de la decadencia espartana,
como de la mahometana, fue "el monstruso gobiemo de las
mujeres". Como la mala distribución de la propiedad, esta
mala distribución de la influencia y la autoridad entre los dos
sexos ya advertía en Esparta en tiempos de Aristóteles; y en
leyenda de los Reyes Salvadores, Agis y Cleómenes, que reinaran
en Esparta un siglo más tarde, el papel asignado a las mujeres
que inspiran, alientan, consulan y lloran a los héroes es tan
preponderante como el que se les asigna en el Nuevo Testamen-
to" (TOYNBEE) (65).
Essa hierarquia da mulher na sociedade espartana foi, parece, in-
discutível, e teve como causa, precisamente, o fato de haver ela sabido
gerar e criar homens para servir ao Estado.
Para terminar, e a propósito dessa singular situação da mulher no
Estado espartano, vejamos esse expressivo trecho de PIJOAN (66):
"La mujer tenía grau ascendiente sobre el marido. Voso-
tras sois las únicas mujeres que gobernáis a los hombres, la':!
decían. A lo que eilas contestaban: Somos también las únicas
que criamos verdaderos hombres."

IX - A mulher na Pérsia
As informações sobre a situação da mulher na antiga Pérsia são
contraditórias.
Em A Grande Aventura do Homem (67) está escrito:
"A sociedade persa, baseada na família, dava aos homens
os principais direitos. Existiam duas categorias de mulheres:
as privilegiadas e as servas. As primeiras tinham direito a ser
nutridas e sustentadas durante toda a sua existência e a re-
ceberem sustento para os filhos até a maioridade e para as
filhas até o matrimônio. As segundas eram sustentadas pelo
marido, mas só os filhos do sexo masculino eram reconhecidos
pelo pai."
E ainda:
"A mulher devia obediência absoluta ao marido."
TORNELL (68) é da mesma opinião, pois assevera que a mulher, na
Pérsia, era "puesta en un plano de inferioridad social".
(65) TOYNBEE, Arnold J. - Estudios de l4 HistOfilZ, clt.
(lIIl) PLJOAN - HtstQTjjJ ael Mundo - Salvat· EdItores S.A. - Barcelona, EsPada - 1971.
(87) H"tor4f1UJ. - A Gr4Me Aventura do Homem - ob. clt., vol. m.
(68) R. V. TORNBLL - ob. clt.

R. Inf. lellli,J. Bra.ma a. 19 n. 74 abr.1jun. 1982 335


Bem diverso, no entanto, é o que se divulga na mesma obra HistCYrQ.-
ma - A Grande Aventura diJ Hamem, editada sob a supervisão de JAC-
QUES FRANCIS RoLLAND (69):
"A mulher não tem nunca uma situação de inferioridade:
anda livremente na cidade e pode até dar conselhos, que são
levados em conta. 11: preciso assinalar que, na época inferior,
será distinção, nas familias ricas, ter a mulher trancada em
casa; mas isto não ocorrerá nunca a mulheres nas outras clas-
ses sociais."
IVAR LISSNER (1") comprova essa afirmação:
"As mullieres se locomoviam livremente e não usavam
véus; dirigiam a casa e tinham o direito de assinar contratos em
nome de seu marido. Somente as mulheres nobres tinham proi-
bição de sair em companhia de outro homem que o seu es-
poso, ainda mesmo que se tratasse de membro de sua famiUa."
Semelhantes são os ensinamentos de JEAN MOURREAU (71):
"Circulando livremente e sem véu, a mulher persa ocupa
uma situação elevada. Como no mundo escandinavo primiti-
vo, ela pode dispor de sua fortuna pessoal e geri-la a seu modo.
Ela tem, igualmente, o poder de dirigir os negócios de seu ma-
rido em sua morte."
Mas ressalva:
"Mas, depois de Dario, o Grande, sua condição se degra-
dará lentamente."
Ai estão os dois pontos de vista, antagônicos, acerca da posição
social da mulher na Pérsia antiga.

x- A mulher na Etrúria
Como em Creta e no Egito, também na Etrúria a mulher era bas-
tante considerada.
Os etruscos, alegres e boêmios, gostavam de viver bem. Divertiam-se,
sua mesa era farta, bom vinho. As festas, freqüentes e animadas, e nelas
não podia faltar a mulher, que de tudo participava.
Riqueza, fartura, prazeres, mulheres. Esse o mundo etrusco, divi-
dido em doze cidades que formavam uma espécie de Confederação, na
qual os problemas comuns se decidiam em assembléia, democratica-
mente.
Nesse mundo a mulher, altamente valorizada, tinha autoridade
real no seio da família. Mantinha, outrossim, uma presença social e
política efetiva.
(89) HutOTGma - A Grande Aventura do Homem - ob. cit.
(70) LI88NER, lvar - ob. clt.
(71) MOURREAU, Jean Jacques - .4 nnlG c1Qs GrAMeS Rets e de ZQroattro - Otto Pleno
Editores - Rio, Braa1l - una.

336 R. Int. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1912


Essa posição de realce da mulher etrusca foi às vezes mal interpre-
tada pelos seus contemporâneos que sobre ela expuseram juizos talvez
precipitados.
Não se cuidava de matriarcad.o, a mulher não tinha supremacia em
relação ao homem, apenas a sociedade etrusca lhe concedia um lugar
condigno, reconhecendo-lhe direitos e aceitando sua participação na
administração do lar e nos negócios públicos.
Tinha, pois, a mulher na Etrúria uma posição de igualdade com o
homem, e isso serviu para ser vilipendiada pelos reacionários da época.
Vejamos, agora, com PAUL ULRICH ('2), qual a situação da mulher
naquele povo, assim retratada por ele, em largas pinceladas:
"O estatuto familiar dos etruscos é sobretudo notável pelo
lugar concedido à mulher, infinitamente mais importante do
que em Roma até aos últimos tempos da República. Nas ins-
crições funerárias, a menção da filiação maternal é prova disto,
assim como a consideração, rara na época, atribuída ao "sexo
fraco". Não que, segundo os autores gregos ou romanos, as
mulheres tenham sido modelos de virtude. Apresentam-nas pelo
contrário como debochadas, procurando continuamente a com-
panhia de homens. Plauto escrevera que era da prostituição
que tiravam o dote. Digamos antes que as mulheres da Etrú-
ria gozavam de uma liberdade desconhecida das suas irmãs
helênicas ou latinas, submetidas à autoridade do chefe da
família, o que tanto bastou para lhes criar uma tão má repu-
tação. Está em todo caso estabelecido que participavam dos
banquetes e assistiam aos espetáculos e aos jogos, outras tan-
tas causas de escândalo para as pudicas - e prudentes - con-
temporâneas. Pretendeu-se que se entregavam à bebida: neSlte
aspecto límitavam-se a seguir o exemplo dos maridos e dos
pais, inclinados a abusar dos prazeres da mesa, como de todos
os outros.
Esta promiscuidade com os homens devia quase fatalmen-
te levar a mulher etrusca a desempenhar um papel social."
Tinha, assim, a mulher, na Etrúria, uma presença ativa na vida
pública e uma posição de importância no seio da família. Livre, d:ma
de si, companheira e não escrava do homem, ela com ele colaborava
nos negócios de casa e nas coisas de interesse coletivo.
RAYMOND BLOCH ('3), em estudo especial sobre aquele povo, com-
prova os informes de PAUL ULRICH:
"A posição que a mulher ocupava entre os etruscos era
privilegiada e sem nada de comum com a condição humilde
(72) ULRIeB, Paul - ob. clt.
(73) BLOCH. Raymond - Os Etru8CO~ - Trad. de MARIA HELENA PIRES NORONHA e FER-
NANDO NORONHA - EdItorial Verbo - Lisboa, Portugal - 1970.

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun.1982 337


e subordinada da mulher grega. Isto é um indício de civili-
mção que também observamos na estrutura social de Creta
e Micenas. Lá, como na Etrúria, a mulher assiste aos espetá-
culos, às representações, aos jogos, e não vive enclausurada
nas salas tranqüilas do gineceu helênico. A mulher etrusca
participa dos banquetes ao lado do marido, e afrescos etruscos
freqüentemente ilustram o seu hábito de virem reclinar-se à
mesa do banquete junto ao dono da casa. Este costume fez
com que ela fosse erradamente acusada de imoralidade pelos
gregos e depois pelos romanos. Há inscrições que confirmaram
o estatuto de igualdade, de que parecia gozar a mulher etrusca.
Freqüentemente, o dedicante ou o defunto menciona, ao lado
do nome do pai, ou mesmo sem que este seja indicado, o nome
da mãe. Ora, este uso de matronímicos está atestado na Ana-
tólia, e especialmente na Lídia. Talvez possamos ver nele tra-
ços de um antigo matriarcado."
Vê-se, do exposto, que a história da emancipação da mulher teve
na Etrúria um ponto positivo de referência.

XI - A mulher em Roma
"A mulher romana gozava um tanto mais de liberd.ade que a grega e
não vivia tão hermeticamente enc1ausurada à moda oriental", diz IVAR
LISSNER C4 ), e acrescenta: "As moças de boa família aprendiam não só
a ler, escrever e contar, mas a cantar, dançar e tocar cítara. Instruíam-
se, além disso, nas literaturas grega e latina."
Essa diferença de situação entre a mulher romana e a grega come-
ça pelo começo, ou seja, quando o homem e a mulher se unem pelo
matrimônio, que, em Roma, os punha em real comunhão, com igualda-
de de direitos: "O casamento", segundo o jurista MODESTINO, era "uma
união do homem e da mulher, uma parceria para toda a vida, uma par-
tilha de direitos humanos e deveres", escreve MOSES HADAS (7á).
Mas isso era somente em tese. Em suas minúcias, a situação modi-
ficava-se um pouco, e, embora melhor do que a da grega, sofria a mu-
lher romana, também, de algumas restrições.
Basta ver que havia três tipos distintos de casamento, em cada
qual possuindo a mulher um status determinado:
Prossegue MOSES HADAS:
"Das três diferentes formas de casamento em voga na
época do primeiro império, a mais formal, usada apenas por
patrícios, era a confarreatio. Mediante esse tipo de contrato,
(74) LlSSNER, Ivar - ob. clt.
(7:;) DADAB, Meses - Roma Imperial - Trad. de GULNARA LOBATO DE MORAES PBREmA
e IOLANDA STEIDEL PE TOLEDO - Livraria José 01ymplo EdItora S.A, - Rio, Bl'Ulll
- 1971.

338 R. Inf. leli.l. Bra.ília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


a pessoa da mulher e suas propriedades eram entregues ao ma-
rido. Para as mulheres que exigiam maior liberdade por parte
dos esposos, havia outras formas de casamento menos rígidas.
No coemptio, o noivo simplesmente "comprava" a noiva de si
própria. No USUS, até certo ponto semelhante aos nossos mo-
dernos casamentos civis, o casal comprometía-se a viver como
marido e mulher, sem nenhuma cerimônia religiosa. Depois
de um ano eram considerados legalmente casados. Por esse
tipo de união, a mulher podia reter praticamente o direito
às propriedades que porventura tivesse, contanto que se abs-
tivesse de partilhar a cama e mesa do marido três noites por
ano."
Se no lar era assim favorável a posição da mulher romana, em con-
fronto com a da grega, no que tange à educação, as coisas lhe corriam
mais vantajosamente ainda:
"A não ser nos primeiros anos" - continua MOSES HADAS
- "não havia ensino misto em Roma: os meninos recebiam um
tipo de educação e as meninas outro. Isso não significa que as
mulheres romanas fossem menos cultas que seus maridos;
muito pelo contrário, elas dispunham de mais tempo para es-
tudar e aproveitaram-no ao máximo. Muitos comentadores
eontemporâneos consideraram a mulher romana mais instruída
do que os homens.
Talvez uma das razões que explicam porque as mulheres
eram tão cultas fosse o fato de só lhes ser ministrado o en-
sino formal até os dez anos, depois do que passava a receber
instrução particular, em casa. Tanto os filhos como as filhas
das famílias ricas freqüentavam classes primárias dirigidas por
um litterator, que os ensinava a ler, escrever e contar. Aos 12
ou 13 anos, as meninas voltavam para casa a fim de recebe-
rem uma educação especial."
Recebendo instrução e usufruindo de certas prerrogativas no ca-
samento, a mulher romana posicionava-se razoavelmente na sociedade.
É de observar-se, entretanto, que as alterações políticas se refle-
tiam nas estruturas sociais, de modo que, conseqüentemente, também
a situação da mulher sofria oscilações, ora para melhor, ora para pior.
Ao tempo dos etruscos, era privilegiada a posição da mulher na
península, mas, advindo a república, piorou, só vindo a melhorar com,
paradoxalmente, a restauração do império. PAUL ULRICH (76) acusa essas
flutuaçõeS:
"Curiosa marcha do tempo: a República repudiara o C<lS-
tume etrusco tendente a dar à mulher um papel social e cí-
vico. A Roma imperial adota a atitude oposta: institui o cog-
- ---
(76) ULRICH, Paul - ob. clt.

R. Int. legill. Brasília a. 19 n. 14 obr./jun. 1982 339


natio, ou parentado pelas mulheres, que vai adicionar-se ao
agnatio, até então o único parentado legitimo e que criava a
descendência masculina. Do mesmo modo, a mulher ascende
ao direito da sucessão!'
Não consistiram só nisso, no entanto, as mudanças que o Império
introduziu no sistema familiar. Elas foram mais profundas e mais am-
plas, e sempre se encaminhando no sentido da libertação e da afirma-
ção da mulher. É o que se aprende, com PAUL ULRICH ('7) que explica:
"A forma do casamento sofre também transformações.
Também neste ponto a patria potestas recebe um profundo gol-
pe. O casamento passa a ser precedido por um noivado que
consagra, pelo compromisso recíproco dos interesses, a parte
finalmente concedida ao sentimento, sendo o consentimento
mútuo dado no dia da cerimônia pela famosa fórmula: Ubi tu
Gaius, ego Gaia."
Mais:
"A partir de então, a mulher romana, entrada de livre
vontade no lar, passou a viver nele em igualdade com o marido."
E ainda:
"Um perigo, no entanto, não pode muitas vezes ser evi-
tado. Emancipadas, certas mulheres romanas sucumbirão a
taras de "libertação". O número de nascimentos diminui, uma
vez que a gravidez reduz demasiado os divertimentos, assim
como o aleitamento e mais tarde a educação dos filhos. As mu-
lheres de negócios, as literatas, as "preciosas" abundam, pre-
tendendo imiscuir-se até em domínios onde são totalmente
incompetentes, e JUVENAL denunciará as "mulheres sábias" de
palrar insípido, assim como aquelas que se entregam a exer-
cícios físicos que, em sua opinião, não são do seu sexo: caça
com facão, esgrima, luta. Passando da liberdade à libertinagem,
outras encontrarão os seus prazeres nos excessos de mesa, sem
falar das indignas que soçobrarão no deboche. Em Roma, sob
o Império, o adultério da mulher será prática corrente, que já
não é punida com a morte e nem sequer, na prática, legalmente
reprimida."
É verdade que o divórcio, substituindo o repúdio da mulher pelo
marido, irá, a partir do século lI, pela facilidade com que é obtido, pôr
um termo feliz a uniões tornadas impossíveis ou escandalosas. O pró-
prio Augusto divorciar-se-á, e chegará uma altura em que SENECA po-
derá escrever:
"As mais ilustres damas de Roma tomaram o hábito de
contar os seus anos, jã não pelos nomes dos cônsules, mas pelos
(77) ULRICH, Paul - ob. clt.

340 R. Int. legislo Iraliria a. 19 n. 74 abr'/jun. 1982


dos seus maridos. Divorciam-se para se casarem: casam-se para
se divorciarem."
Esses excessos se explicam pela situação em que anteriormente se
encontrava a mulher, oprimida, pressionada, sufocada. Não só é uma
lei física, mas também política: a toda pressão corresponde uma reação.
Humilhadas, ofendidas, vilipendiadas, as mulheres, uma vez liberta-
das, com direitos amparados em lei, livres, excederam-se no gozo da
nova situação, e, então, a liberdade foi confundida com licenciosidade,
a emancipação com o desregramento dos costumes. A maior integraçã::>
social da mulher, tendo se processado sem um suporte moral adequado,
redundou em desvios e distorções lamentáveis.
Cuidando dos negócios públicos, a mulher negligenciou seus afa-
zeres no lar. Esqueceu os cuidados com os filhos. Alienou-se de sua con-
dição natural de fêmea, exerceu maIos seus direitos, usou mal a sua
liberdade, degradou-se física e moralmente.
Pelos abusos praticados ao se sentirem livres, as mulheres romanas,
durante o império, passaram a ser escravas de vícios. A prostituição
aumentou. Cresceu o número de adultérios e de divórcios. A mulher de-
caiu de sua dignidade.
Em Roma, portanto, durante o império, a sociedade ofereceu à
mulher condições e meios legais para se emancipar e se valorizar e ela
dispôs de recursos legais bastantes para bem se integrar na sociedade,
mas, por força de distorções no exercício de seus direitos, nem sempre
ela soube dignificar sua condição.

XII - A mulher na Gália


Segundo alguns autores, a mulher na Gãlia usufruiu de completa
igualdade de direitos com o homem, ao passo que, consoante outros,
sua situação na sociedade não fugia à regra: era de inferioridade.
Como os celtas se espalhavam por vastas e distintas regiões da Eu-
ropa, é possível que essa divergência de opiniões decorra não só de ob-
servações feitas junto a grupos dessa ou daquela zona, como em momen-
tos diversos.
ANDRÉ VARAGNAC (78), reportando~se aos protoceltas, no segundo mi-
lênio antes de Cristo, e partindo da diferenciação do trabalho decorren-
te da diferença de sexos, mostrou como logo se estabeleceu, entre eles,
o regime patriarcal, em substituição ao matriarcal, cuja existência, an-
teriormente, foi admitida:
"As comunidades neoliticas haviam herdado da pré-histó-
ria a organização tribal por classes de idade, que estabelecia
uma rigorosa repartição de funções segundo os sexos e as ida-
des. O caráter feminino das atividades sedentãrias fundava a
(78) VARAGNAC. André - "O homem antes da eecrtta" - Livro IV - "00 caçador ao cam-
ponê&" - in Rumos do Mundo - Tra4. de BRNBSTO VEIGA DE OLIVEIRA - Edições
Coemos - LIsboa, Rio - 1963.

R. Inf. legilJ. Bra.íIiCII CII. 19 n. 74 CIIbr./jllft. 1982 341


autoridade materna. O homem era pastor, caçador ou guer-
reiro, enquanto a mulher cavava a terra com a enxada, amas-
sava a farinha, confeccionava a louça e os tecidos. Atrelando
os bois ao arado, e depois os cavalos ao arado de rodas - a
charrua (invenção ulterior dos celtas) - os homens passavam
a ser 08 senhores da produção de alimentos: a Europa sub-
meteu-se ao patriarcado."
E explicita:
"Com eles (os celtas) por toda a Europa, a lavoura passa
a ser incumbência dos homens, enquanto antes o trabalho de
enxada era sobretudo feminino. Essa revolução técnica parece
ter sido acompanhada pela decadência do matriarcado."
É que produção é alimento, alimento é sobrevivência. Dominando a
produção, o homem dominou a sociedade. Como diz o matuto mineiro:
quem dá o pão, dá o pau . ..
De um modo geral parece que prevaleceu, entre os celtas, o regime
patriarcal rígido, o chefe de família sendo senhor de uma autoridade
absoluta.
Havia, no entanto, variações nos estilos de vida dos celtas desta
ou daquela região. Entre alguns deles, por exemplo, certos túmulos lu-
xuosos de mulheres indicam que elas eram possuidoras de grandes ri-
quezas. Outros dados, colhidos aqui e acolá, revelam que elas eram bas-
tante consid.eradas, desfrutando em algumas tribos de grande liberdade
e de uma condição S'Ocial favorável. É o que ensina T. G. E. POWELL (79) :
"Quanto ao poder absoluto do chefe da família sobre as
mulheres e filhos, os povos da Gália e da Irlanda são concor-
dantes, e ilustram o princípio indo-europeu da autoridade pa-
triarcal. Podemos talvez arriscar ainda aqui algumas conside-
rações sobre a pooição social da mulher e a sua capacidade
para dispor de propriedade. Supõe-se geralmente que o direi-
to de uma esposa à posse de propriedade pessoal, ou de uma
filha a herdar, são de evolução recente, aparecida sob formas
paralelas nos diferentes sistemas legais indo-europeus. Por
outro lado. uma prática mais liberal, mas ainda comum, pare-
ce ter-se mantido em efeito, em épocas muito variadas, nos
costumes legais ariano, romano e celta. Há também a questão
dos riquíssimos túmulos de mulheres celtas, como os de Vix e
Reinheim, para só referir dois exemplos descobertos há pouco
tempo. Neles foram concedidos a mulheres, enterradas indivi-
dualmente, as mais esplêndidas câmaras funerárias e os adOl"-
nos e acessórios mais suntuosos. O prestígio pessoal e o direito
à posse de propriedade podem explicar esses casos. embora o
conjunto de todas estas considerações pareça indicar que tal
(7{1) POWELL, T. G. E. - Os Celtas - Editorial Verbo - LIsboa. Portugal - 1971 - Trad. de
RODRIOO MACHADO.

342 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


incapacidade das mulheres não era mais do que um reflexo
das condições primitivas, que imperavam nos tempos de emi-
gração, ou de dificuldades, embora o sistema legal estivesse
sempre suficientemente elástico, aqui e ali, em períodos de
prosperidade, para permitir uma maior liberdade feminina na
vida pública e familiar."
Essa "elasticidade" a que alude POWELL serve para explicar as in-
formações que sobre os celtas nos dá OLIVIER LAUNAY (80), em confor-
midade com as quais tanto no lar como na sociedade a mulher estaria
em pé de igualdade com o homem. Diz ele:
"Seu lugar preeminente na sociedade, sua igualdade em to-
dos os planos com os varões é uma das características marcantes
da civilização céltica e uma das que iriam atravessar os séculos
para se impor novamente à sociedade moderna."
E especifica, no atinente ao casamento:
a) "O celta era fundamentalmente monogâmico, mas sem
hipocrisia. Uma amante torna-se oficialmente concubina, mas
sem qualquer prejuízo aos direitos da esposa legítima;"
b) "O casamento era dissolúvel por consentimento mú-
tuo."
Esclarece, ainda, particularizando:
" ... as irlandesas eram sujeitas ao serviço militar, com-
batendo quando possuíam bens de raiz."
Deduz-se, desses dados, que a mulher na Gália, senão em todas as
tribos, ao menos em algumas delas, fruia uma situação favorável.

XID: - As Amazonas
Figuras quase lendárias, as amazonas no entanto existiram, e sua
civilização singular até hoje é objeto de polêmica.
Em sua organização social eram elas que tinham as rédeas do grupo,
reservada ao homem uma posição subalterna.
Guerreiras, as mulheres viviam em constante atividad.e, enquanto
os homens se dedicavam aos serviços domésticos. O comando era delas,
que só se sernam dos homens, praticamente, para a perpetuação da es-
pécie.
SERGE HUTIN (1l1) assim retrata as amazonas:

"Quem eram estas amazonas? Intrépidas guerreiras vo-


tadas desde a adolescência ao manejo das armas; algumas,
(80) LAUNAY, Olivler - A CivU1ZQ;ç/lo ckn CeJtaa - Otto Pierre Edltoree - Rio, BrasU - 1978.
(81) HUTIN. Serge - Homemr e Civilf2açõe" Femtd.tUc08 - Trad. de TORRIERI OUIMARAES -
Hemus Livraria Editora Ltda. - Slo Paulo, Brasll - 1972.

R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 343


mesmo, cortavam um dos seios para não ser incomodadas quan-
do estendiam o seu arco. Entre elas, os homens eram reduzi-
dos a uma condição servil, desempenhando as tarefas domés-
ticas, além de sua evidente necessidade no processo de pro-
criação."
Onde viviam? Responde ele:
"As tradições apontam de fato as duas extremidades do
mundo mediterrâneo: de uma parte, a este da Asia Menor, a
região do Cáucaso, sem dúvida; da outra parte, a extremidade
ocidental da Africa setentrional."
Que faziam? HUTIN explica:
"As mulheres costumavam fazer o serviço da guerra du-
rante um tempo determinado, conservando a sua vir~indade.
Quando passa o termo do serviço militar, elas mantêm rela-
ções com os homens para deles ter filhos; elas ocupam as ma-
gistraturas e todas as funções públicas. Os homens passam a
vida inteira dentro de casa, como entre nós as donas de casa,
e apenas se entregam a ocupações domésticas; são mantidos
longe do exército, da magistratura e de qualquer outra função
pública que poderia inspirar-lhes a idéia de escapar ao jugo das
mulheres."
Entre as amazonas existiu, pois, definido e atuante, o regime ma-
triarcal, que tantos contestam, mas que muitos aceitam e reconhecem
como uma realidade histórica.
Aliás, uma forte corrente se inclina, modernamente, pela preexis-
tência do matriarcado como um sistema social generalizado, admitindo
que o sistema patriarcal só mais tarde passou a vigorar entre os povos
primitivos.
A propósito, declara, ainda, SERGE HUTIN (82):
"O filósofo suíço, JOAHN JACOB BACHOFEN, morto em Ba-
siléia em 1887, foi quem desenvolveu - reunindo abundante
documentação tecnográfica - a tese segundo a qual o patriar-
cado, isto é, o estado social em que a predominância completa
pertence ao homem, ao pai, esteve longe de ser o estado pri-
mitivo de toda sociedade humana. O matriarcado, onde, ao
contrário, era a mulher, a mãe, que assumia a primazia social
e familiar, antecipou o patriarcado."
E aprofundando o assunto:
"Conhece-se a antiguidade e importância do culto da
Mãe Divina em diversas tradições religiosas. E não há nada de
absurdo, muito ao contrário, em imaginar uma etapa cultu-
ral em que o primado, em todos os planos, pertenceu à mulher.
Os exploradores e os etnólogos estudaram com o maior cuidado
(82) HUTIN, Berge - ob. cit.

344 R. Inf. legisl. Bruilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


as diversas remlmscencias do matriarcado. O folclore de nu-
merosos países europeus evoca a lembrança de uma época dis~
tante em que as mUlheres desempenhavam papel dominante na
religião e na magia: as designações tão freqüentes no folclore
de "grutas" (ou rochas) das Fadas. de "grutas" (ou rochas)
das Mães, são por si mesmas reveladoras."

XIV - A mulher em países e povos da A/rica


A mulher, nas civilizações africanas, viveu sempre, de uma maneira
geral, em uma condição inferior. Houve e há exceções, mas tanto nos
tempos antigos quanto na atualidade, ela não desfruta de direitos pró-
prios de um ser livre. Inclusive é, ainda, em certas tribos, usada como
objeto de comércio. Está, porém, se rebelando, e provavelmente obterá
os mesmos êxitos das mulheres dos países mais evoluídos.
MAURICE CROUZET (83) assim nos dá, em largas pinceladas, um qua-
dro da situação da mulher nas sociedades africanas:
'lNa antiga economia baseada na troca e na reciprocida-
de de serviços, a mulher era um liame entre as famílias e o ma-
trimônio decidia-se pelo acord.o dos grupos familiais; hoje, a eco-
nomia monetária converte a mulher num objeto de competição
e lucro, que sua família leva ao casamento com o fito de re-
ceber o dote, transformado em simples preço de compra sus-
cetível de atingir somas consideráveis (no Camerum, 100.000
fr. C.F .A., em 1956). Muitos jovens não podem pagá-lo, por
isto aumenta o número de celibatários, sendo favorecidos, por
outro lado, os homens ricos e idosos. Por sua vez, as missões
combatendo a poligamia e a administração, pretendendo re-
conhecer em matéria de abonos e pensões apenas indivíduos e
casas, favorecem este individualismo. A mulher tira proveito
desta situação: já não quer obedecer ao chefe da família ou às
mulheres mais velhas, deseja ser considerada como companhei-
ra que exige d.espesa para sua manutenção."
Há, todavia, muitas diferenças entre as situações das mulheres, con-
forme as tribos a que pertençam.
Vejamos, em detalhes, o que acontece, na espécie, em algumas delas:
a) O povo de Méroe
Méroe se integra na civilização do Sudão. Localiza-se entre o norte
deste pais e o sul do Egito. De seu povo, que viveu do século VI
a.C. até o IV de nossa era, diz P. L. SHINNIE (84):
"As rainhas desempenhavam um papel importante na vida
do pais, e, por vezes, governavam por direito próprio. Se, como
(83) CROUZET, Maurlce - "A ~ca Contemporânea" - in RfstóriG Geral aa Clviltzcçao -
vol. XXII - Trad. de PEDRO MOACYR CAMPOS - DlfUsora Burop,lia do Livro - BAo
Paulo, BrasU - 1958.
(84) BIIINNIE, P. L. - MéToe - Trad. de MARIA DA MADRE DE DEUS PIMENTA DE SOUZA
- Edltortal Verbo - L1Bboa, Portusal - 1974.

R. Inf, legi". Brasília a. 19 n. 74 abr./j..n. 1982 345


parece, a sociedade era matriarcal, a elas pertencia o trans-
mitir os bens de raiz e assegurar a sucessão ao trono. Sem do-
cumentos escritos, é difícil uma certeza a este respeito; exis-
tem todavia algumas provas, da época de Napata, de que a
família real era matriarcal; sabemos, ainda, que, no estado cris-
tão da Núbia, que sucedeu a Méroe, prevalecia o mesmo sis-
tema e que as rainhas-mães eram objeto de veneração especial."
A mulher em Méroe tinha, dessarte, uma posição de destaque na
sociedade.
b) Os bambutis
Os bambutis são anões congoleses, representantes atuais dos anti-
gos pigmeus. "Vivem em matrimônio fiel e não possuem nem tempo,
nem inclinação para quaisquer excessos; obedecem a regulamentações
bastante severas que dificultam aos esposos o divórcio. Mulheres e mães
são objeto de grande respeito."
Há assim, consideração pela mulher.
c) O povo fang
Esse povo vive na costa oeste da Africa.
Como de praxe, pratica a poligamia. Desde que disponha de recur-
sos, o homem pode possuir quantas mulheres queira. Por sinal, o in-
vestimento nelas é lucrativo, porque são elas que trabalham, que pro-
duzem, e, conseqüentemente, quanto mais mulheres possui, maior ri-
queza e poder terá.
As esposas - exceto a principal - podem ser emprestadas aos vi-
sitantes.
A submissão da mulher ao homem é total. Trabalha no lar e fora
do lar e só pode usufruir de uma pequena parte do que produz.
O código moral é rigoroso para com as mulheres casadas.
É isso o que ensina PANYELLA (Sá), dizendo, sobre o casamento:

"EI matlimonio suele ser polígamo; cada hombre puede


tener tantas esposas como le permitan sus medias econômicos,
pero hay que tener en cuenta que, siendo las mujeres las que
trabajan la tierra, a mayor número de esposas, mayor riqueza."
A respeito das esposas:
"Hasta, hace poco, estaba también bastante extendido el
préstamo de esposa, especialmente a los huéspedes que debian
pasar unos dias en el poblado. Sin embargo, jamás se presta-
ba la primera esposa y esa curiosa co.stumbre, por regIa gene-
ral, sólo se realizaba con las concubinas."
(85) PANYELLA - ob. cito

346 R. Inf. 14;'~isJ. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Acerca do trabalho:
"La situación de la mujer fang no e& precisamente envi-
diable: debe obediencia total aI marido, a la suegra, a todos
los parientes masculinos deI marido y a todos los miembras
deI clan deI marido. Debe cultivar los campos deI esposo, quién
por su parte sólo se preocupa de la restauración y desbroce de
los mismos. La esposa debe dedicarse también a la recolección
y a la pesca para complementar la dieta diaria de la familia, a
la que el marido contribuye en menor cuantía con los productos
de la casa. Debe así mismo cuidar de la casa, preparar la co-
mida y sobre todo tener muchos hijos: ésta es precisamente su
principal obligación."
Quanto à liberdade:
"La mujer casada goza de escasa libertado: en caso de adul-
teria puede ser castigada con penas terrtbles, tales como ser
atada desnuda ya pleno sol durante varias horas sobre un hor-
miguero, e incluso ser condenada a muerte. Antes deI matri-
monio, sin embargo, las muchachas gozan de gran libertad
sexual, de forma que no está mal visto tener un hijo antes de
casarse.
En cambio, pueden dispor con relativa libertad de sus bie-
nes materiales; en principio disponen de los frutos de su tra-
bajo, especialmente de los productos deI campo, pera han de
entregar la mitad al marido. La otra mitad que les correspon-
de pueden gastarIa o invertela a su voluntad."
Conclusão: a mulher vivia em estado de verdadeira escravidão.
d) O povo etíope
Descobertas arqueológicas em antigos países marginais do Mar Ver-
melho mostraram ao mundo uma surpresa: em algumas daquelas an-
tigas civilizações, ao contrário do que ordinariamente sucedia entre os
povos daquela época, a mulher usufruía de uma situação geral muito
boa.
o prestígio feminino foi real, naquela região. Inclusive teria havi-
do, por lá, um longo reinado de mulheres, senhoras de grandes riquezas
e poder.
Assím, na Etiópia, era elevada a condição da mulher, gozando ela
de liberdade e de direitos, acatada, obedecida, lisonjeada.
GUY ANNEQUIN, falando da situação da mulher entre os etíopes, os
sudaneses e também os árabes, assim se manifesta (86):
"A autoridade feminina é primordbd em toda a região sul
do Mar Vermelho durante milênios. Sem ser possível falar em
(86) ANNEQUIN. Guy - As O-ivilfzações do Mar Vermelho - Otto Plerre Edltores - RIo, Brasil
- 1978.

R. Inf. legisl. Brasília 11. 19 n. 74 abr./jun. 1982 347


matriarcado tipicamente africano, não podemos deixar de cons-
tatar, porém, que a condição feminina era importante. Esposas
reais ou mães de rei, ocorre que as Candaces governavam sobe-
ranas. E mais de um autor antigo o diz sem rodeios, como os
relevos dos templos nos mostram em atitudes reais ou militares,
como a de quebrar ritual e simbolicamente as cabeças de uma
penca de prisioneiros presos pelos cabelos. Com efeito, sobre os
pilares dos templos. elas são a réplica simétrica de seus espo-
sos, com os quais dividem as atribuições. Sobre o pilar do tem-
plo de Naga, um pouco mais ao sul de Mussanarat, vemos a pri-
meira das duas rainhas Candace acompanhada de seu leão
familiar: ela se chama Amanetere e viveu na passagem de
nossa era."
Diz ainda:
"Mais do que rainhas-mães, como se supunha anterior-
mente, devemos provavelmente acreditar que essas Candaces
fossem esposas de soberanos que parecem reduzidos ao papel
de príncipes-consortes. Efetivamente, são elas que parecem
deter o poder real."
E completa:
"Recentes escavações efetuadas por pesquisadores das Uni-
versidades de Yale e Pensilvânia, na região de Abu Simbel (na
localidade de Toshke Arminna) mostram que cinco séculos
após o aparecimento da rainha Bartare, a primeira Candace,
no século li antes de nossa era, é ainda uma soberana com o
título de Candace que figura numa estela do século nr de
nossa era. É possível então falar-se de uma dinastia de rainhas?
De uma realeza matrilinear? Nada realmente autoriza a fa-
zê-lo. Podemos apenas afirmar que as mulheres que usavam
o título de Candace tinham uma sólida autoridade, dispondo
de uma corte, de um séquito e de bens nada negligenciáveis."
Essas observações de ANNEQUIN, válidas para sudaneses, árabes e
etíopes, povos circunvizinhos do Mar Vermelho, são, no que tange a
Abissínia, ratificadas por PANYELLA (87), que nos fala, também, de uma
situação social da mulher bastante favorável:
"La mujer goza de una situación importante en la socie-
dad; tiene bienes propios de los que puede disponer libremente;
tiene sus propios servidores y en la historia de los reyes etíopes
aparecen varias enperatrices que jugaran un papel importante
en los destinos deI reino.
La virgindad de las jóvenes ha de ser conservada celasa-
mente. Las mujeres casadas, por eI contrario, gozan de gran
libertad sexual, hasta aI punto de que la paternidad de los hijos
(87) PANYELLA - ob. clt.

348 R. Inl. legisl. Brosília a. 19 n. 74 abr./ju... 1982


resulta dificil de determinar y se establece por designación,
bajo juramento, de la madre."
Viveu, pois, livre e prestigiada a mulher na sociedade etíope.
e) Os kongo
Entre os kongo, povo que habitava a região do curS::l inferior do rio
Congo, o estado social da mulher oferece aspectos interessantes, dos
quais nos dá conta PANYELLA (Ri!).
A primeira curiosidade, no caso, está em que, para os kongo, a
alma vem da mulher, eis que ela reside no sangue, o qual, em maior
parte, o homem recebe da mãe:
" . .. el elemento más curioso de la sociedad lo constituye
el matrilinealismo. En efecto, eI parentesco se regula por linea
femenina, no masculina; pera esto no presupone ni matriarca·
do, ni matrilocalismo, ya que si bien los hijos pertenecen aI
linaje y aI clan de la madre, ésta carece de autoridad sobre los
hijos y el poblado y cuando se casa va a residir a la vivienda
deI marido (patrilocalismo).
La causa de esta particular situación reside en la idea
de que la sangre "en donde reside eI alma se recibe en su ma-
yor parte de la madre, y solo en pequena porción deI padre;
por esto motivo el hijo pertenece aI linaje materno."
A poligamia, como de hábito, prevalece no casamento. Por motivos
políticos, eugênicos e, principalmente, econômicos: são as mulheres que
trabalham, e os homens que as possuem em maior número têm, por-
tanto, possibilidades de maiores ganhos:
" . .. el matrimonio es polígamo: la 'poligamía tiene eu
gran parte bases económicas, ya que siendo la mujer la que
trabaja la tierra, el gasto que la dote de las mujeres representa
es luego compensado con las pingues ganancias que proporcio-
nan tantos brazos. Pero existen otras razones: siendo el matri-
monio un sistema de alianzas, poseyendo varias esposas se au-
mentan las relaciones y con elas el prestigio. Otro motivo es
la prohibición de mantener relaciones sexuales con una mujer
mientras esta cría a su hijo" (PANYELLA) (89).
A mulher é, desse modo, um mero bem econômico, usado segW1do
o critério e os propósitos de lucro. Ela é um simples objeto, de que se
servem seus pais e seu marido ,para aumentar seu patrimônio. Um
objeto que, inclusive, se herda. A preocupação econômica é tão priori-
tária que, morrendo a mulher, ou sendo estéril, seus parentes são obri-
gados a devolver o dote que receberam do marido ou a oferecer a este
uma irmã, para ocupar o seu lugar:
" ... el matrimonio se realiza mediante entrega de una
dote elevada por parte deI marido a los padres y aI tío materno
(88) PANYll:L.LA - ob. clt.
(89) PANYELLA - ob. clt.

R. Inf. leglsl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 349


de la esposa. Esta dote crea una serie de derechos y deberes
escrupulosamente respetados. Así, por ejemplo, si un marido
ya viejo no puede tener hijos, el clan de la mujer se siente de-
fraudado; por lo tanto exige que el marido sea reemplazado
por algún hermano más joven. Si el marido muere, ya con
la misma finalidad, la mujer pasará a pertenecer a un herma··
no más joven deI marido. Por otra parte, si la mujer faIlece
o resulta estéril, sus parientes deberán devolver la dote, o en-
viar a otra de las hermanas a ocupar su puesto."
Em suma: entre os kongo a mulher não é mais, também, que um
mero objeto, utilizado pelo homem conforme suas necessidades e seus
interesses.
/) O povo ngoni
Tribos do grupo ngoni habitam as cercanias dos montes Draken-
burg e o mar, nos territórios de Natal e da Província do Cabo, na Afri-
ca do Sul. Esse povo foi estudado, também, par PANYELLA (110) que sobre
ele nos transmitiu as informações que se seguem.
A família ngoni é "patriarcal, polígama, compuesta por un hom-
bre, sus esposas y los hijos habidos con todas eIlas", A primeira espo-
sa "tiene un papel mucho más importante que las demás, las cuales
gozan de un orden más o menos referente, según se vean más o menos
favorecidas por el e~poso", e, além disso, goza de privilégios de trato
por parte de su marido y puede disponer libremente de medias econó-
micos. Las demás esposas deben servila y obedecerIa; la vida cotidia-
na de estas mujeres aparece plena de tabús y prohibiciones: no pueden
mencionar el nombre de su marido ni de sm; parientes, ni deben usar
palabra que empice por la misma sílaba que los nombres de todos eIlas,
deben dejar que les precedan en el camino el esposo y los suegros, no
pueden comer en su presencia y deben retirarse cuando ellos entran en
la misma habitación en que están eIlas".
Em síntese: tirania do homem, escravização da mulher.
Como curiosidade, e para ilustração, vejamos agora, sumariamente,
qual a situação da mulher em algumas nações africanas às quais per--
tenciam os negros que para aqui vieram e dos quais nos fala ARTHt.1R
RAMOS (91):

Negros do grupo gege, da nação daomeana:


"A sociedade daomeana é constituída no modelo estrita-
mente patrilinear."
Negros maoemetanos (mandingas):
"A organização social é estritamente patriarcal."
(90) PANYEJ.,LA - ob. clt.
(91) RAMOS, Arthur - Int'roduç40 à Antropologia Bra:n!eira - Edição da Casa do Estudante
do Brasil - Rio, B:-a;1J - 1943.

350 R. Inf. le:is'. !hosflia a. 19 n. 74 abr./iun. 1982


Negros malês:
"O status social da mulher era inferior."
Negros de Angola:
"A mulher obedece inteiramente à ordem dos chefes mas-
culinos: aos pais, aos maridos. Os pais entregam a filha ao
pretendente que pague o maior alambramento; isto é, o preço
do noivado."

xv - A mulher no Japão

No Japão antigo a situação da mulher não fugh à regra.


Como em geral nas sociedades daqueles tempos, ela vivia margina-
lizada e enclausurada, inteiramente dominada pelo homem.
Mesmo as mulheres de boa estirpe não passavam de objeto de luxo
e, se bonitas, mais isoladas eram:
"As mulheres bem nascidas descritas por Sei Shoanagon
(Livro do Travesseiro), de modo especial as jovens e bonitas,
teriam de levar urna vida de isolamento, ocultando-se dos olhos
indagadores, em seus "quichos" fechados par cortinas, exibin-
do os rostos apenas às criaturas e aos parentes próximos" (Jo-
NATHAN NORTON LEONARD) (n).

No século VIII, porém, as coisas se modificaram inteiramente e


a mulher alcançou um status elevado, senão em todas as camadas so-
ciais, pelo menos nas classes mais altas:
"No sistema do governo Saga, a mulher japonesa gozava
de um estatuto de plena igualdade com os homens. O próprio
Tenno foi uma mulher, em 539, a Princesa Suiko. Esta igual-
dade de sexos era principalmente observada no ambiente dos
poderosos do Império. Entre o povo a mulher não gozava dos
mesmos direitos" (93).
Durante todo o período da Idade Média foi mantido esse estado de
coisas, a mulher sendo devidamente considerada e participando não só
dos negócios do lar como também da vida pública.
Da Renascença para cá a situação da mulher foi p~orando, agra-
vando-se no século XVIII.
Já nos tempos correntes ela integrou-se no movimento libertário
das mulheres do ocidente e vem alcançando sucessivos êxitos em suas
reivindicações, sem, no entanto, perder as caracteristicas que fizeram
(92) LEONARD, Jonathan Norton - Jepáo Anttgo - Trad. de THOMAZ SCOTI' NEWLANDS
NETO - Livraria José 01Y1llPio l!ll1ltora - Rio, BraBll - 1973.
(93) Hisforame - A Grande Aventura do Homem - vol. !lI - cito

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R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n, 74 abr./jun. 1982 351
dela uma figura singular no mundo. PANYELLA (94) assim desenhou
essa linha sinuosa seguida pela mulher, no Pais do Sol Nascente:
"En la corte medieval japonesa la mujer tuvo un papel
sobresaliente y destacó en el cultivo de las artes y de las le-
tras. La gran novela Genjé deI sigla XI, fue escrita por una
mujer, Nurasaki, que demonstrá, además de un arte excelso,
grandes dotes psicológicas. En cambio, las tradiciones con-
fucionistas y budistas, que recobraran su vigencia a partir
deI sigla XIV, desminuyeron el poder de la mujer. Ekken, en
el sigla XVIII, estableció que la mujer debe obedecer siempre,
primero a sus padres, luega aI esposo y a los suegros y si enviu-
da, a sus hijos varones. Según este moralista los defectos fun-
damentales de la mujer son: de::obediencia, cólera, adio, male-
dicencia, envidia y estupidez. La obra de Ekken, El Gran Saber
de las Mujeres (Onna Daigaku) codificó o provocó eI estado de
sumisión de la mujer.
La educación actual comprende todavia una serie de for-
mas de conducta, saIudo y movimientos tan refinados como 108
que acompafian a la ceremonia deI tê, y aI cuidado y dispos!-
ción de los jardines y las flores.
En los últimos afias la mujer, especialmente en las ciu-
dades, ha modificado profundamente sus formas de vida, sus
normas de conducta y, en consecuencia, su relación con los
padres y marido, pero sigue siendo la exquisita e incomparable
mujer admirada en todo el mondo."
XVI - A mulher entre povos da Oceania
Na antiga Austrália, entre os nativos, a mulher não passa de uma
coisa como outra qualquer. Completamente subjugada pelo homem, que
pode, até, "negociá-la" com parentes e amigos, ou "emprestá-la" a seus
hóspedes. Porque o homem tem, sobre ela, todos os direitos. A poliga-
mia é aceita e a infidelidade da mulher é punida com a morte:
"Una vez efectuado el matrimonio, que puede o no ser poli gamo,
la esposa queda sometida aI marido, qui tiene todos los derechos sobre
ella, pudindo intercambiala con los amigos y hermanos, o prestarIa a
vecinos y viajeros. Eu cambio las infidelidades de la esposa, si se deben
a la voluntad de ésta y no a la deI marido, son castigadas invariable-
mente con la muerte", salienta PANYELLA (9~) que nos transmite, sobre
paises e povos da Oceania, outras interessantes informações.
Assim, no tocante aos altas ou negritos, das Filipinas:
"E! matrimonio entre los altas, en general, es monógamo.
Las muchachas guardan estricta castidad prematrimonial, 50
pena de no halIar marido. Contrariamente a lo que suele su-
ceder en otras comunidades primitivas, las muchachas dan 1i~
~---
(901) PANYELLA - ob. clt.
(95) PANYELLA - ob. Clt.

352 R. lnf. leé:isl. Brosilia a. 19 n. 74 abr./;un. 1982


bremente su consentimiento aI matrimonio, pudiendo recha-
zar a los pretendientes indeseables."
As moças são, portanto, donas de seus corações. Contudo, "si la
mujer es infiel, el jefedel grupo la condena a muerte, pera si el marido
si toma ju.sticia por su mano, es castigado con la pena capital, por con-
siderarIa culpable de asesinato".
A respeito dos dayak, pigmeus da ilha de Bornéu:
"La estructura social se basa en el patriarcado, pera en
algunas tribus deI norte existen algúns restos de matriarcado",
mas "la mujer es libre de elejir el marido que más le plasca, y
antes deI matrimonio, y con su consentimiento, es raptada por
su prometido, el cual debe pagar a la família de la mujer una
indemnización."
Desse modo, apesar da supremacia do homem, a mulher merece
certas atenções e, ao menos no que concerne ao casamento, pode esco-
lher livremente o seu parceiro.
Em relação aos papuas:
Os papuas vivem em ilhas do arquipélago melanésio. Há, entre eles,
revivescências do matriarcado. Também praticam a poligamia, mas
desta só se beneficiam os chefes e os ricos. Diz PANYELLA (D6):
"De gran interés son también las costumbres existentes
entre los papuas derivados deI matriarcado, como son la he-
rencia siguiendo la línea femenina y la elevación de la catego-
da de la mujer, pasando el padre a ser un simple miembro
más de la família de la mujer. EI matrimonio, realizado ge-
neralmente por cambio o compra, y raramente por rapto, es
por lo general de tipo monógamo, y únicamente entre los jefes
y gente de gran posición económica se da eI caso de poseer dos
o más mUjeres,"
Ilhas polinésias:
Nas ilhas polinésias, em geral, a mulher tem o valor de um bem ne-
cessário e de que se é proprietário. Pode ser emprestada, porém o é como
uma dádiva especial concedida a hóspedes a quem o anfitrião deseje
homenagear. São as mulheres o objeto mais valioso que os homens têm
para oferecer ao forasteiro. Eles usam suas filhas e esposas como um
meio de se afirmarem socialmente e para angariar as boas graças dos
visitantes. É o que divulga HERBERT WENDT (D'):
"Um hóspede é algo especial, não somente aos olhos dos
povos naturais, mas também para muitos civilizados: ele vem
de outras terras, pode ser uma ameaça, mas também portador
de felicidade, mensageiro divino. Urge, pois, acautelar-se, pres-
tar-lhe homenagem: a homenagem máxima consiste em ofe-
recer-lhe as mulheres da família."
(96) PANYELLA - ob. clt.
(97) WENDT, Herbert - Tudo ComeÇOU em Babel, cit.

R. Inl. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982 353


Outro autor que se dedicou ao estudo dos povos polinésios é ADEL-
BUT VON CHAMISSO (98), deles nos dizendo, no livro Viagem de Circuna-
vegação:
"Numa sociedade mais natu!'al a castidade é somente im-
posta à mulher pelo esposo, cuja propriedade exclusiva ela se
tornara. O homem vive da caça, a mulher cuida de suas armas
e de sua presa - cabe-lhe servir e submeter-se. O homem não
tem obrigações para com o forasteiro, onde o encontrar pode
matá-lo e apropriar-se dos seus haveres. Mas quando o deixar
viver é obrigado a lhe fornecer o que ele necessita para conti-
nuar vivo. A refeição está preparada, o estrangeiro precisa de
mulher. A hospitalidade torna-se uma virtude em grau su-
perior, e o dono da casa aguarda o forasteiro à beira do caminho
e leva-o ao aconchego de seu lar para que ele, o viajante, traga
à habitação a bênção do Ser Supremo. Assim procedendo, é
provável que ofereça ao hóspede também sua mulher, e seria
então uma ofensa recusá-la."
No Havaí:
Também no Havai a mulher era completamente subordinada ao
homem. Havia, entre marido e esposa, completa separação. E o trata-
mento da mulher era discriminatório, sendo ela posta em plano inferior.
CARLETON COON (99) escreveu sobre os habitantes da ilha:

"Cada conjunto familiar constava de cinco casas de um


só quarto cada: a câmara nupcial, a sala de refeições do ho-
mem, a sala de refeições da mulher, o quarto de trabalho da
mulher e a sala em que o homem guardava os seus ídolos.
Exteriormente havia duas cozinhas separadas para os alimentos
do marido e da esposa. A mulher não podia entrar na sala de
refeições do marido, ou no seu oratório, sob pena de morte."
Finalmente, cumpre registrar, em relação aos povos da Melanésia
e da Austrália, um fato que, lendário para uns, para outros constitui
uma verdade histórica: a existência de "esposas coletivas". Assim,
mulheres pertencentes a determinado grupo mantinham relações, indis-
criminadamente, com todos os membros de um mesmo clã. Quer dizer:
eram esposas comuns a todos os homens de uma tribo. Quem o díz é
IVAR LISSNER (100):

" ... em certa época, as mulheres que pertenciam a um


grupo dado eram as "esposas coletivas" dos membros de um
clã determinado. Esta hipótese foi formulada por alguns etnó-
logos que, em apoio de sua argumentação, invocam o fato
de, nas línguas melanésias, as palavras que designam a mãe,
a mulher, a esposa e o filho só existirem no plural".
----
(98) CHAMISSO, Adelbut Von - clt. por HERBERT WENDT.
(99) COON, Carleton B. - A H~t6rla do Homem - Trad. de MILTON AMADO - Editora. Itatiaia
- Belo Horizonte, Brasil - 1960.
(100) LIBBNER, Ivar ~ ob. clt.

354 R. Inf. legisl. Brasí!;" D. 19 n. 74 abr./jun. 1982


XVII - entre os esquimós
A mulher
Os esquimós vivem nas costas do Oceano Glacial Artico. Entre eles
a mulher é, também, em realidade, um simples pertence do marido.
Dela se serve para seu prazer e para os trabalhos do lar. Pode ser trocada
ou emprestada. Os laços de família são frouxos: -
" ... nn concepto muy laxo acerca deI vínculo matrimonial,
siendo frecuente el cambio e incluso el préstamo de esposas"
(PANYELLA) (101).

XVIII - A mulher na antiga Sibéria


A situação das mulheres entre os diversos povos da Sibéria diferia
da em que geralmente estavam colocadas nas civilizações de antanho.
Tinham certos privilégios, eram acatadas e respeitadas. Principalmente
as anciãs. É o que informa HERBERT WENDT (102) :
"As mulheres ocupam situação de relevo entre os contcha-
tas, tchuctches e outros antigos povos da Sibéria. Em contraste
com os hábitos de outros povos, os samoielos, por exemplo,
não eram consideradas impuras, mas, pelo contrário, presi-
diam às ativIdades diárias. Envelhecendo, muitas vezes torna-
ram-se sacerdotisas, de maneira semelhante ao que se dava
entre os germanos; considerava-se que estas anciãs "se trans-
formavam em homens" e a tribo devia-lhes obediência. Elas
passavam a usar roupas masculinas, falavam com voz grave,
aprendiam a usar o arco e a lança e eram peritas em preparar
venenos, em hipnotizar, em sugestíonar. Empunhando peque-
nos tambores e ostentando enfeites esquisitos na cabeça, con-
vocam o povo para cerimônias de encantamentos, derradeiras
representantes do matriarcado lítico."
Eis aí: mais valiam as mulheres quando "viravam" homem. Quando
deixavam de ser mulheres. No fundo, é o "machismo" de sempre ...

XIX - A mulher na Rússia


Tão ou mais deplorável do que entre outros povos em que foi tão
oprimida e humilhada, era a situação da mulher, antigamente, entre
os povos eslavos em geral.
Inferiorizada, marginalizada, tiranizada, não tinha nenhum di-
reito, dela se utilizando o homem como um traste sem mais valia.
MARIZA GIMBUTAS (103) dá-nos o seguinte flagrante desses povos naqueles
tempos:
"A condição da mulher era bastante baixa, principalmente
na zadruga russa, onde o pai da casa podia aplicar castigos
----
(101) PANYELLA - ob. c1t.
(02) WENDT, Herbert - Tudo Começou em Babel - clt.
(03) GIMBUTAS, Mariza - Os Eslavos - Trad. de ANTONIO LAVRADOR DA SILVA - Edltorlal
Verbo - Lisboa, Portugal - 1975.

R. Inf. legisl. Brasília o. 19 n. 74 abr./jun. 19&2 355


corporai8 à mulher e aoo filhos, e até cometer adultério com
as noras. Reza a Primeira Crônica Russa (Laurentius Letopis)
que os homens <ias tribos d.revljane, radinuchi, vjatichi e se-
verjane tinham duas e três esposas."
Diz mais:
"Por morte do marido, a mulher não tinha direito a quais-
quer bens que ele tivesse deixado; poderia, se assim o desejasse,
continuar a viver na casa, onde lhe dariam de comer e de vestir
e de onde um dia sairia a enterrar. Se deixasse a casa do ma-
rido, perderia esses direitos."
Mesmo em tempos relativamente recentes era degradante o estado
social em que as mulheres eram enquadradas no grande pais euro-
asiático.
Em casa, eram tratadas como menores, incapazes, ou servas, sem
direito. Viviam em total e rigorosa submissão. Até chicoteadas eram,
às vezes.
Abria-se uma exceção na zona rural, onde a mulher desfrutava de
alguma consideração, pois a sua presença nas atividades agrícolas lhe
possibilitava uma certa participação na vida das comunidades campô-
nias.
ROGER PORTAL (104), reportando-se ao que acontecia, a esse respeito,
na Rússia do século XVI, assim se expressa:
"Metade da população permanece na sombra: as mulheres,
sobre as quais pesam a lenda do pecado original e uma legisla-
ção que é obra dos homens, não possuem direitos, estão sub-
metidas à vontade dos pais e do marido.
Colocada ao nível da menor e da criada, a mulher deve
obediência ao chefe da família. No entanto a sua situação difere
muito, segundo se trate da cidade ou do campo, de ricos ou
pobres. A participação nos trabalhos agrícolas, a ruptura. com
o meio de origem nestas migrações que a todos os instantes
lançam sobre os caminhos da Rússia tantas familias de cam-
poneses, asseguram à mulher uma relativa liberdade e uma
autoridade de fato, que podemos suspeitar mas não exatamente
avaliar.
Além disso, na ausência dos homens a mulher participa
da assembléia comunal das aldeias. A sua situação inferior,
nascida do descrédito que sobre ela lança a religião, e freqüen-
temente agravada pela grosseria, pela brutalidade e pelos de-
sejos do marido, encontra compensação no papel necessário
e tão importante que ela desempenha na economia dos campos.
(104) PORTAL, Roger - "Os eslavos, povos e naçOes" - ln Rumos do Mundo - Trad. de NATA-
LIA NUNES - Edições COlImos - LlBboa, Rio - 1968.

356 R. lnf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr'/jun. 1982


Na cidade e nas famílias abastadas, a mulher vive em
maior reclusão e cada vez mais à medida que se sobe na escala
social"
E remata:
"O Domostrói mostra-nos bem, pelas suas recomendações,
o que poderia ser no século XVI a atmosfera que rodeava as
relações do casal:
Se o marido verificar que a ordem é perturbada pela mulher
ou pelos seus servidores, ou porque não se sigam as regras
prescritas por este livro (governo da casa, orientação da cria-
dagem), deverá chamar a mulher à razão e instrui-la. Se esta
se submeter e sujeitar a sua conduta às instruções do marido,
este deverá amá-la e recompensá-la.
Se a mulher, o filho ou a filha não atenderem às palavras
ou às instruções do pai de familia, se não o ouvirem com do-
cilidade, se não o temerem, se não fizerem o que o marido, o
pai ou a mãe ordenam, é preciso chicoteá-los segundo a sua
falta."
O homem era, para sua familia, não só o senhor, mas também o
juiz. Ou, melhor: o feitor e o carrasco. E assim continuou, ordinaria-
mente, na Rússia, durante toda a época tzarista.

xx - A mulher entre os mongóis


A vida das mulheres entre os mongóis diferia bastante da que
levava entre os povos da mesma época. Uma vida dura e de submissão,
o homem mandando.
Mas, pelas características de seus labores tinha uma posição mais
importante no grupo a que pertencia.
O regime familiar é o patriarcal. A mulher, sem liberdade e sem
vontade, constitui simples bem integrante do patrimônio masculino.
Bem que até pode ser herdado, passando de pai para o filho, como
outro bem qualquer. Mas, repitamos, apesar desse caráter absolutista
do sistema, já apareciam na família mongol leves indicios favoráveis
à mulher, que PANYELLA (l0~) ressalta:
"La familia, siempre polígama y de base patriarcal, per-
mite el marido tantas mujeres como pueda mantener; el cri-
tério de elección es amplio, pues el enlace con una viuda deI
padre, excepto la propia madre, o con la viuda de un hermano
u otro pariente, es frecuente, y aun "aconcejable". La mujer
goza, siu embargo, de una cierta consideración y tiene sus
ocupaciones propias: las atenciones domésticas, operaciones de
compra y venta, y labores que proveen a los suyos de diversas
(105) PANYELLA - ob. clt.

R. Inl. legisl. Brosílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 357


prendas li objetos necesarios, como la reparación de tiendas,
hilado, tejido, coroelería y confección deI vestido."
Mais do que por essas tarefas, as mulheres mereciam um maior
apreço pelo fato de acompanharem os maridos em seu trabalho e na
guerra:
"Uma vez casadas, as mulheres mongóis levam a vida rude, nômade
e guerreira de seus maridos. Suas responsabilidades são múltiplas:
vida doméstica, roupas, crianças. seus caracteres se moldam nas difi-
culdades de sua rude vida cotidi:ma", comenta PHILLlPP CONRAD (1 06),
e acrescenta:
"A poligamia é norma geral, sendo possível possuir tan-
tas mulheres quantas se possa comprar. O filho herda as mu-
lheres de seu pai, como seus outros bens, e pode esposá-las, se
lhe convier, à exceção, entretanto, de sua mãe. A mesma prá-
tica vale para as cunhadas vivas."
Ao tempo de Gengis Khan, que elaborou e promulgou um Código
(Yasa), as mulheres tomaram-se mais livres e conceituadas:
"A mulher, pelo Yasa, ganhava plena autonomia, figuran-
do também nas funções militares, não só porque atendia aos
deveres familiares como também porque acompanhava o ma-
rido nas expedições. Durante os combates as mulheres eram
protegidas atrás dos carros, mas grande número também par-
ticipava dos combates" (l07).
De qualquer forma, a mulher mongol fugia ao lugar comum. Não
era somente a dona de casa tradicional, às voltas com a criação dos
filhos e as labutas caseiras. Sua vida t:nha mais atrativos. Apesar
dos pesares, participava dos negócios da cJmunidade. Tinha, mesmo,
alguma autoridade. Daí um certo prestígio e um status mais razoável,
indicado por EOOUARD PERROY (1O~):
"O papel das mulheres, incumbidas das tarefas domésticas,
é considerável nesta sociedade: montam e desmontam as ten-
das, conduzem os car:'os, ordenham o gado, batem a manteiga,
preparam o leite seco (gri-ut), ajudam os homens a preparar
as peles, a fabricar os calçados, calanchar o feltro e compram
por troca tudo que a casa necessita. Acompanham mesmo os
chefes à guerra e, durante o combate, efetuam o trabalho dos
homens. Destarte, estes últimos solicitam-lhes de bom grado
conselhos; a história conservou os nomes daquelas que influí-
ram nas decisões de certos chefes. No demais, a mulher que
enviúva assume a tutela dos filhos menores, dispõe soberana-
mente dos bens da família, toma o comando do c9.mpo e até
conduz os guerreiros."
(106) CONRAD, Pblllppe - As Ctvmzaç6es das Estepes - Otto Plene Editores - Rio, Br&Illl - 1978.
(107) Histora11l4 - A Ch"ande Aventura do Homem - clt.
(108) PERRQY, Itdouard - "A Idade Média", In Hutórt4 Gera! das CivUtzaçóes - Trad. de J. GU-
NISBURG e VITOR RAMOS - D11usore. EuropéIa do Livro - 510 Paulo, Bra8U - 1~7.

358 R. Inf. le~isl. Brasília a. 19 n. 74 abr.l;un. 1982


Essa, a mulher mongol. "Amélia" perfeita. Dela até poderíamo.s
dizer, com Ataulfo Alves: aquilo, sim, é que era mulher de verdade ...
Realmente, foi ímpar o lugar da mulher na sociedade mongol.
A poligamia, como vimos, existiu. Entre os mongóis, porém, a poli-
gamia representava mais um processo de sobrevivência e de integração
não tendo o caráter tradicionalista de outras sociedades. Tanto que as
esposas e as concubinas tinham seus filhos postos em um plano de
igualdade. As mulheres eram, sim, bens que se herdavam. Mas eram
famosas por sua austeridade. De qualquer modo, eram alvo de certa
consideração e eram ouvidas nas decisões do chefe da família. Ouçamos
o que, a respeito, traru::mite D. PmLIPS (100) :
"Dentro da ordem patriarcal que descrevemos, a posição da
mulher, apesar das pesadas tarefas que lhe impunham e da
instituição do casamento polígamo, não era assim tão desfa-
voráveL Para se dispor da garantia de meios de subsistência em
todas as circunstâncias da vida era preciso pertencer a uma
famma, e a poligamia tornava isto mais fácil. se bem que
houvesse concubinagem, não se fazia a menor distinção de le-
gitimidade entre filhos das esposas e das concubinas. As zangas
entre esposas eram raras. A prática segundo a qual o herdeiro
ficava com todas as mulheres do pai, exceto a própria mãe, sem
necessidade de novo casamento, chocava os chineses e outros
povos, mas era prática das mais vulgares entre os nômades
altaicos. Dava às viúvas e aos filhos segurança contra a escra-
vização virtual e exploração dos bens e animais. Em todas as
questões, menos a guerra e a caça, se pedia continuamente opi-
nião às mulheres, e nos últimos tempos viúvas de cãs serviam
como regentes. As mulheres mongóis eram notadas entre todas
pela sua lealdade e castidade."

XXI - A mulher entre os citas, os germanos e os "bárbaros" em geral


Os citas eram um povo bárbaro que vivia na Mesopotâmia e chegou
até ao Egito e a índia.
Também entre eles a mulher tinha pouco valor. "Coisa" do marido,
que os filhos herdavam. As vezes, como sucedia na índia, acompanhava
o marido em sua viagem para o Além ...
É O que nos ensina T. T. RrCE (110) que, em suas pesquisas sobre
esse povo, anotou:
"Os citas eram polígamos, herdando muitas vezes os filhos
as mulheres dos próprios pais, embora em qualquer caso uma
(109) PHILIl'B. E. D. - Os Mong61s - Trad. de RODRIGO MACHADO - EdItorial Verbo - L16boa.
Portugal - 1974.
(110) RICE, Tamllra Talbot - Os Citas - 'I'Bd. de RODBlOO MACHADO - Editorial Verbo _
L1sboa, Portugal - 1974.

R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 359


delas tivesse geralmente de morrer quando do falecimento do
marido, de modo a acompanhá-lo no outro mundo. n
Registrou mais:
" ... todo o material existente tende a provar que as mulhe·
res citas, afora vestirem-se de uma forma mais variegada do
que os homens, eram mantidas em subserviência, forçadas a
viajar em galeras com os filhos pequenos, em vez de cavalga-
rem ao lado à.os maridos, obrigadas a devotarem-se inteira-
mente às ocupações domésticas e, em alguns casos, compelidas
a morrer com os consortes."
Aliás, o que acontecia entre os citas ocorria. de modo mais ou menos
semelhante, entre todos os chamados povos bárbaros. De fato, em todas
aquelas tribos nômades e guerreiras que invadtram a Europa, como uma
avalanche, em determinado momento da história, a mulher era tida
em pouco apreço. Vivia em dependência total, quando solteira, dos
pais e dos irmãos, e, quando casada, do marido. Este poderia abando-
ná-la quando bem quisesse. As mulheres não herdavam, não negocia-
vam, não participavam das deliberações do grupo. Só o homem tinha
voz ativa. É o que lembra GERALD SIMONS (111):
"O baixo valor atribuído à vida feminina refletia a condi<;ão
insignificante da mulher numa época dominada por homens
guerreiros. A primeira verdade aprendida por qualquer mulher
era a de que ela possuía pouquíssimos direitos. Não podia herdar
imóveis se existisse qualquer parente do sexo masculino, nem
podia vender ou comprar por sua conta objetos de valor. Teo-
ricamente. os únicos motivos para o divórcio eram o adultério,
a prática da bruxaria ou a profanação de um túmulo ou igreja.
Porém poucas mulheres ousariam dar início a um processo de
divórcio, enquanto que muItos maridos se descartavam de suas
mulheres por mero capricho. Casada ou solteira, a mulher
"livre" não podia, em lugar algum, governar sua própria vida.
Dizia a lei lombarda que ela deve permanecer sempre sob o
poder dos homens, e, em último caso, sob o poder da lei. u
Idêntico conceito da mulher tinham as tribos germânicas. Era
um ente que não podia ser livre, carecendo sempre da tutela do homem.
Seu tutor é que lhe dirigia os negócios. A viúva, inclusive, ficava su-
jeita ao filho, à sua família ou a alguém nomeado pelo rei para prote-
gê-Ia:
"La mujer germânica necesitaba más que nadie de este
mundium o protección. EI código de los longobardos dice tex-
tualmente: "No será legal para una hembra vivir según au
propia voluntad, sino que permanecerá siempre sujeta aI poder
(111) SIMONS. Oerald - Os Barbaro3 1Ia Europa - Tmd. de VERA MARIA TEIXEIRA SOABES
- L1vnu1& JOllé Olympio Editor& S.A. - Rio, Brasil - 19'11.

360 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


de un hombre, marido e pariente. No poderá tampoco tras-
pasar su propiedad, mueble e imueble, sin el con.sentimiento
de aquel bajo cuya protección (mundium) vive, observa
PIJOAN (112) e acrescenta:

"La esposa vivia bajo el mundium o protección deI ma-


rido, y aI morir éste, deI de su hijo mayor. Si no tenía ningún
hijo, recaía bajo el mundium de su família, y en caso de no
tener pariente alguno, el rey sefíalaba su mundium para de-
fenderIa."
Como se vê, dentro de toda essa tirania sobre a mulher, havia, no
fundo de tudo, um certo sentido cavalheiresco na conduta dos germanos,
pois a mulher, em qualquer hipótese, tinha sempre alguém para prote-
gê-la.
XXII - A mulher entre os viquingues
Os viquingues, povo nórdico, foram piratas, invasores, coloniza-
dores. Sobressaíram-se por suas atividades no mar. Sua epopéia, na
história, verificou-se entre os séculos VII e XIII. Estiveram em Paris,
deixaram lembrança na Inglaterra e na Itália, colonizaram a Islândia e
a Groenlândia, participaram da functação de Novgorod e Kiev, na Rússia.
Entre esse povo aventureiro, forte e valente, a mulher tinha uma
vida diferente e heróica:
"La época de los vikings tiene sus doncellas fuertes, guer-
reras, de rojos cabellos, que cen frecuencia, se hacen a la mar
para d.edicarse ai rapto y a la pirataria" (VALDEMAR VE-
DEL) (113).

Como se vê, a condição feminina não impediu a mulher viquingue


de viver perigosamente.

XXIII - A mulher na Ilha da Páscoa


Na misteriosa Ilha da Páscoa, onde alguns etnólogos e arqueólogos
admitem ter existido uma civilização antiqüíssima, a situação da mulher
não teria sido tão ruim. Teria ela sido mais livre, com algumas prerroga-
tivas, e até teria cooperado com os homens na solução dos problemas
coletivos.
Entretanto, existia d.iscriminação entre os sexos, em detrimento do
feminino. E, como da tradição, a mulher devia obediência ao marido:
"As mulheres de Hang·roa geralmente são bem tratadas e gozam
de muita influência. Elas não hesitam em exprimir livremente sua opi-
nião durante as discussões, mas não ousam resistir abertamente demais
(112) PIJOAN - ob. clt.
(113) Vl!lDEL. Valc1eD1l\f - 14eQlet d.e la EclGd Media - Edit.orial Labor S.A. - Barcelona, Espana.
- Traducelón de MANUEL SANCHEZ SARTO - 1ll35.

R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 361


à vontade de seus maridos", informa ALFRED METRAUX (114), que diz,
também:
"A divisão do trabalho entre os sexos é eqüitativa. As mu-
lheres não dão a impressão de estarem sendo sobrecarregadas
de trabalho."
E ainda:
"Os homens e as mulheres comem separados em várias
sociedades da Polinésla oriental. Este tabu talvez não fosse tão
rígido na Ilha da Páscoa, mas o costume mandava que os
homem fossem servidos em primeiro lugar. As mulheres e as
crianças contentavam-se com os restos das refeições."

XXIV - A mulher no mundo islâmico

Dá-se a denominação de "mundo islâmico", em geral, ao conjunto


de povos que, em diferentes partes, seguem a religião de Maomé. Esse
"mundo" é constituído, em sua maior parte, de povos árabes.
A tradição, entre os muçulmanos, quanto ao casamento, é do regime
poligâmico. Como sempre, o homem, desde que disponha de recursos,
pode possuir mais de uma mulher. Esta, normalmente, é isolada da
vida social. Inteiramente submissa ao homem. A educação que recebeu,
inspirada nos preceitos do Alcorão, modelou-a assim, passiva e obediente,
a tal ponto que aceitava a condição de uma entre outras mulheres do
marido.
Em tempos idos, a noiva, sem nem sequer ser ouvida, era negociada
com o seu futuro consorte:
"Geralmente" - ensina DE5MONT S'TEWART (I"') - "um homem
tomava sua primeira esposa aos 20 anos e lhe era permitido tomar
mais três, mas apenas se lhes pudesse oferecer moradia própria, com
as comodidades e conforto adequados e escravos para que o servissem".
Prossegue:
"Um bom número de formalidades precedia o casamento
muçulmano, mas a jovem delas nunca participava diretamente,
nem era necessário seu consentimento para a realização do
mesmo. Os arranjos preliminares eram feitos pelas respectivas
mães; então o candidato se aproximava do pai da moça. Final-
mente, redigia-se um contrato, confirmando a idade da jovem
(geralmente de 12 a 20 anos) e sua virgindade, assim como o
preço a ser pago pelo noivo por sua noiva, e que a esta perten-
ceria se se divorciasse."
(114) METRAUX. Al!red - Â Ilha da Pá8coa - Tra.d. de EDITH BARROS MARTINS - Otto
P1erre Editores - Rio, BrasU - 1978.
(115) STEWART, Desmond - Antigo IBM - Trad. de IRACEMA CASTELLO BRANCO - Livraria
José Olymplo Editora B.A. - Rio. Brasil - 1973.

362 R. Inf. legislo Brasília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


Mas não era só. A mulher vivia enclausurada:
"A sociedade muçulmana era um mundo d.e homens. En-
quanto as mulheres eram mantidas fechadas atrás das portas,
o homem da casa passava a maior parte das horas de lazer na
cidade."
Também PHILIPPE AZIZ (llij), discorrendo sobre a civilização moura
na Espanha, one.e foi ampla e intensa a influência árabe, confirma essa
triste situação da mulher no Islamismo:
"A célula familiar é um microcosmo onde o pai é o senhor
absoluto e inconteste. Sua mulher considera-se como sua humil-
de servidora e só lhe fala com o maior respeito."
Assim foi no mundo islâmico, durante séculos.
Hoje, contudo, aquele estado de coisas está sofrendo profundas
transformações. Os países muçulmanos estão modernizand.o suas estru-
turas sociais. A televisão, o rádio, o telex, os mísseis, os aviões super-
sônicos, tudo isso vai estreitando o mundo, irmanando os homens,
confundindo problemas, facilitando contatos, uniformizando critérios,
aproximando pontos de vistas, aparando arestas, reduzindo diferenças,
igualando posições, univer~alizando campanhas. Os povos se intercomu-
nicam com extrema facilidade, se interligam, se influenciam reciproca-
mente. Certas causas deixam de ser nacionais, passam a ser universais.
O humano supera o nacional. E é assim que o movimento feminista de
libertação agita todos os país,es, entre os quais também os árabes. Na
Síria, no Egito e no Líbano, principalmente. mas, ainda, nas demais
nações islâmicas, a mulher vai a pouco e pouco se emancipando e ga-
rantindo um lugar ao sol:
"Em nenhum outro aspecto os efeitos desse movimento renovador
são mais sensíveis do que no status da mulher. Os defensores de maiores
direitos e uma participação social mais efetiva para as mulheres argu-
mentam, com muita propriedade, que o estado de sujeição a que se
viram reduzidas nunca foi negado pelo Carão. E assinalam o importante
papel por elas desempenhado nos primeiros tempos do Islamismo: além
de acompanharem os guerreiros árabes em suas campanhas de conquLs-
ta, suas esposas lutavam lado a lado com eles nos momentos mais
difíceis; os reformistas lembram ainda que, nessa época, as mulheres
não assumiam uma atitude de total submissão diante d.os homens",
comentam os autores de Povos e Países (117), que adiantam:
"A partir do século VIII, entretanto, a participação da
mulher foi sendo progressivamente cerceada. Sobretudo nas ci-
dades, entre as classes dominantes; no campo onde as mulhe-
res trabalhavam lado a lado com os homens, os haréns e o
antigo costume do véu não chegaram a ser implantados em
larga escala."
(lUI) AZIZ. PhUippe - A ClvUlzaçdo Hispllno-Moàerna - Otto Pierre Editore5 - Rio, Brasil
- uns.
(117) Povos e Pabes - ob. cito

R. Inf. legisl. Brosilia a. 19 n. 74 ab,./jlln. 1982 363


E falando nos dias atuais:
"Em países como o Egito, um número cada vez maior de
mulheres disputa com os homens as mais diversas profissões,
desde a advocacia e o jornalismo até a engenharia, a medicina
e a pesquisa científica.
Hoje, no terreno econômico-social, as mulheres gozam
praticamente dos mesmos direitos que os homens, pois recebem
salários idênticos pelo mesmo tipo de trabalho. E, ao contrário
de muitas de suas irmãs ocidentais, já têm assegurada, há lon-
gos anos, a plena posse de suas propriedades,"

xxv - A mulher na Armênia

Na Armênia, que, no século VI a. C., pertenceu ao Império Persa,


no século I, também antes de nossa era, esteve sob o domínio romano
e hoje integra a URSS, a mulher, no período medieval, desfrutava de
uma situação que destoava bastante da em que estavam posicionadas
as mulheres na maioria dos países daquele tempo. Apesar das tradições
e dos exemplos "machistas" a condição feminina naquele país era ra-
zoável, valendo registrar o fato, justamente por ser uma exceção.
Sem dúvida, os homens eram, como sempre, privilegiados, mas as
mulheres, d.e qualquer modo, não eram tão sacrificadas:
"Os direitos das mulheres foram reconhecidos nos raros casos em
que não houve descendentes masculinos diretos ou em que não havia
varões na linha dos mais velhos", diz SIRARPIE DER NERSESSIAN (118).
Não viviam ilhadas. Marcavam sua presença na sociedade. Iam a
festas, participavam da vida pública. Houve, mesmo, mulheres que
exerceram a diplomacia e até o governo, assinala o referido autor (119) :
"As mulheres tinham os seus próprios apartamentos nos
palácios e habitações dos ricos, mas não estavam segregadas e
participavam na vida social. Assistiam ao teatro e estavam mui-
tas vezes presentes nos banquetes dados pelos maridos, espe-
cialmente durante os primeiros séculos. Não houve mulher
alguma que reinasse sozinha na Armênia ou na Cilícia, mas
nuns quantos casos a rainha governou o reino por um certo
período durante a ausência do rei ou durante a menoridade
do seu filho, depois da morte do rei. Por vezes atuavam como
embaixadoras e intercessoras."
Ainda mais: as mulheres podiam ter ben$ em seus próprios nomes
c administrá-los por conta própria:
"As mulheres controlavam uma certa quantidade de bens
e tinham propriedades. Numerosas inscrições mencionavam
---~
(118) NBRSESSIAN, 81rarple Der - Os Arml!níos - Trad. de VICENTE MARTINS - Ec1Itorlal
Verbo - Lisboa. Portugal - 1973.
(119) NERSESSIAN, 8lrlU'ple Der - ob. clt.

364 R. Inf. legisl. 8rosílio o. 19 n. 74 obr./jull. 1982


doações de quintais e aldeias feitas por elas aos mosteiros. Vá-
rias igrejas foram inteiramente construícT.as com fundos dados
por mulheres" (NERSESSIAN) (120).

XXVI - A mulher em Bizâncio

No Império Bizantino, onde a cidade de Bizâncio alcançou dias de


grande esplendor, a mulher chegou a ser colocada, socialmente, em uma
posição bastante favorável. Foram-lhe reconhecidos alguns direitos e a
tratavam com distinção. Tinha liberdade, agia em certos planos em
igualdade com os homens e atuava ativamente na sociedade, inclusive
no trato de negócios:
" ... elas moviamMse livremente em sociedade e os seus di-
reitos quanto à propriedade eram iguais aos dos homens. Po-
diam servir de tutoras de menores, e no divórcio os seus inte-
resses eram considerados semelhantes aos do marido. Podiam
(e fizeram-no muitas vezes) ilustrar-se, e em certas ocasiões
dirigiram propriedades com grande eficiência. A sua posição
geral é provavelmente avaliada com exatidão pelo número de
mulheres que governavam como poderosas regentes, ou mesmo
como imperatrizes" (DAVID TALBOT RrCE) (121).
Também PHILIP SHERRARD e~~) realça esse aspecto da civilização
bizantina, mostrando o progresso verificado na situação jurídica da
mulher, ali já usufruindo de proteção e liberdade, gerindo bens e divi-
dindo com o homem a responsabilidad.e na educação dos filhos:
"A condição jurídica da mulher na estrutura social de
Bizâncio era relativamente prestigiada. Seu dote era protegido
por uma lei que exigia que o marido lhe trouxesse bens sufi-
cientes para igualar o valor do dote. Em certas circunstâncias
podia ela controlar os bens próprios e os do marido, e em rela-
ção aos atos do filho gozava de autoridade igual à do marido."
Cabe observar que o posicionamento oocial da mulher estava ligado
à classe a que ela pertencia, diversificando-se sua condição e seu status
conforme fosse nobre ou plebéia. Explica P!iILIP SHERRARD (12:1) :
"O papel da mulher na sociedade variava de acordo com
a sua posição. A imperatriz, naturalmente, tinha importantes
oportunidades de ação e influência independentes do impera-
dor; as mulheres das famílias nobres tinham funções próprias
nas cerimônias imperiais, correspondentes às dos seus equiva-
(l2Cl) NERSESSIAN. Slrarple Der - ob. clt.

(121) RlCE. David Talbot - Os Biwntino8 - Trad. de MARIA ONDINA - Edltorlal VerbO -
- L1sboa, Portugal - 1970.
(122) BBBR.RARD. PbUlp - Bizdncfo - Ttad. de JOSS LAURlI:NCIO DE MELO - Livraria JllI!ê
01ymplo Editora S.A. - RIo, Bras1l - 1972.
(123) SHERRARD, Ph1l1p - ob. clt.

R. Inl. legi.l. Bra.íIia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 365


lentes masculinos. Nos degraus mais baixos d.a escala social
as mulheres criavam os filhos, socorriam os pobres, e muitas
vezes se preocupavam com as suas alunas."

XXVII - A mulher entre os incas

A grandeza da civilização incaica não alcançou a mulher. Esta, no


antigo Peru, nada mais significava, também, que um objeto. Existia
exclusivamente em função do homem que poderia, igualmente, possuir
tantas concubinas quantas pudesse manter.
Como novidade, é de notar que a esposa principal do inca era se-
lecionada entre suas próprias irmãs. É o que nos transmite SIEGFRIED
HUBBER (I~~) :

"O inca mantinha um harém; mas, no antigo Peru, a mon:Jgamia


era a norma. Em compensação, os altos personagens tinham tantas
concubinas quantas sua riqueza permitisse", acrescendo: "A esposa. legi-
tima do inca reinante, a coya, era sempre escolhida entre suas irmãs."
Outra singu}aridade da sociedade incaica, também assinalada por
SIGF1UED HUBBER, eram as acUa huasi, espécies de conventos, mas, na rea-
lidade, casas de mulheres, não de prostitutas, porém de mulheres con-
venientemente preparadas para servir, de várias maneiras, aos deuses,
ao inca e aos nobres. De certa forma, o que se verificava, em parte,
com aquela instituição, era como que um modo romântico de se fazer
um harém. A acHa talvez valesse como a sublimacão do concubinato.
Mas, oferecia outros aspectos interessantes. Eis ô que diz SIEGFRIED
HUBBER C~;') :

"As aclIa huasi são, sem dúvida, as instituições mais curio-


sas do império inca."
E especifica:
"A aclla huasi de Cuzco, que se comunicava com o templo
de Inti pelo montículo do Sol, era um vasto conjunto de edi-
fícics que fonnavam um quadrilátero de cem metros de lado."
Prosseguindo:
"O interior estava dividido em duas partes: uma, sem
clausura, compreendendo os locais de administração e os aloja-
mentos das criadas e dos eunucos, e a clausura propriamente
dita, onde ninguém podia penetrar, à exceção do inca. do grão-
sacerdote, da esposa do soberano e de suas filhas. Lá viviam as
aclla, as isoladas."
(124) HUBBER, 51egfrled - o Segreão dos Incas - Trad. de MILTON AMADO - Editora Itatiaia
~ Belo Horizonte, Brasil - 1961.
l125) HUBDER, Blegfrlecl - o]). clt.

366 R. inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Continua:
"Com o intuito de convencer seus leitores do alto nível es-
piritual de seus ancestrais incas, GARCILOSO DE LA VEGA chama
as aclla "virgens do 801". A denominação "esposas do Sol" é,
entretanto, mais conforme à realidade, pois, escolhidas entre
as filhas das famílias nobres, as adIa eram as esposas de Inti
e, por conseguinte, as d.e seu filho, o inca reinante. seu ver-
dadeiro nome era intip acUas, que significa "eleitas do 801."
Diz, mais:
"Na qualidade de "esposas do Sol", as aclla se ocupavam
da casa do inca e do templo de Inti,"
E conclui:
"As aclla não deviam conhecer outro homem além do inca;
a regra era inflexível e a pena capital castigava as infrações.
Não só o culpad.o como os membros de sua família eram exe-
cutados."
Como se vê, havia, na espécie, uma mistura de sexo e relig'ião, de
etiquetas sociais e de amor, mas, ao fim, o que na realidade existia
era o uso da mulher pelo homem, fosse para fins religiosos ou para a
satisfação de seus prazeres. Porque, em verdade, as mulheres incas não
eram donas de si. Viviam sujeitas ao homem. Selecionadas pela beleza,
as mais belas eram justamente as reservadas aos sacrifícios, e, as outras,
distribuídas a03 nobres e aos guerreiros ou destinadas a outros serviços.
De qualquer modo, o que parece positivado era a condição de ver-
dadeira escravidão em que vivia a mulher, na verdade um bem a mais
no patrimônio d.o homem, que dela se utilizava como lhe aprouvesse.
O que os peruanos fizeram, através da Casa das Mulheres, foi, embora
em tom místico e poético, apenas sublimar a prática de dominação da
fêmea pelo macho. BUSCHNELL (l~t!) nos d.escortina, a propósito, essa
paisagem edificante:
"As mulheres também eram submetidas a organização e
a vigilância. Um funcionário inca visitava as aldeias a interva-
los regulares para inspecionar todas as moças que tivessem
atingido mais ou menos os dez anos. Ele dividia-as em duas
classes: as de beleza especial ou aparência prometedora eram
educadas pelo Estado em instituições especiais, ou reservadas
para sacrifícios em ocasiões especiais ou em emergências, como
durante um ataque ou na doença grave de um imperador; as
restantes ficavam para que o curaca escolhesse para elas, na
c.evida altura, um esposo entre os rapazes da aldeia. As sele-
c~onadas ingressavam em conventos chamados Adla Huasi, as
Casa3 das Mulheres Escolhidas, nas capitais provinciais ou em
(126) BU8CBNELL, G. H. S. - Peru. - Trad. de GUSTAVO ANJOS PEREIRA - EdItorial Verbo
- Lisboa, Portugal - 1972,

R. Int. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./íun. 1982 367


CUZCO, e lá aprendiam fiação, tecelagem e cozinha. As destina-
das a sacrifícios eram consideradas como afortunadas, pois lhes
estavam, na outra vida, assegurados tranqüilidade e conforto.
Das outras, umas seriam dadas por graça do imperador, como
esposas, a nobres ou guerreiros vitoriosos, e das outras algumas
seriam esposas secundárias ou servas do imperador, e as res-
tantes, guardando a castidade perpétua, destinavam-se ao ser·
viço dos templos e santuários."
sexo, misticismo, política, mistério ...
IVAR LISSNER (I~;) confirma esses informes:

" ... tornadas Virgens do Sol, eram (as moças), umas


destacadas para o serviço do deus Sol, outras tornavam-se
concubinas dos dignitários e dos chefes militares. Promovidas
a "mulheres escolhidas", algumas consagravam-se ao inca;
preparavam-lhes as refeições, costuravam suas roupas e parti-
lhavam seu leito."
o mesmo falam os colaboradores de "Reader's Digest" (l2g) :
"A maioria das mulheres casava com plebeus e comparti-
lhava a sua vida rotineira. No entanto, as jovens mais belas
eram escolhidas aos 10 anos e enviadas para escolas especiais,
nas capitais das provincias, onde, depois de aprenderem a cozi-
nhar, a tecer etc., se procedia a nova seleção. Umas iam para
a corte, a fim d.e servirem o deus vivo ou serem dadas por ele
a nobres de sua preferência; outras, conhecidas por virgens do
Sol, eram dedicadas ao serviço doo templos e faziam votos de
castidade."

XXVIII - A mulher entre os maias

Ao que parece, a vida da mulher, entre os maias, obedecia aos


padrões tradicionais: dedicava-se ao lar e aos afazeres domésticos,
incumbindo ao marido as atividades fora de casa.
Ao contrário do habitual, o regime matrimonial era a monogamia.
Sobre esse povo nos conta GUY ANNEQUIN (I~9):
"Geralmente, e diferente dos lacandoses de hoje, os maias
eram monógamos" ... "As mulheres se levantavam muito cedo,
lá pelas três ou quatro horas, e preparavam uma refeição de
bolachas de milho, feijão ou simples atoles, para os homens,
que, ao alvorecer, partiam para os campos, para a caça ou para
outras atividades."
(127) I.ISSNBR. lvar - ob. clt.
(128) Hístóri4 tÜl Homem - clt.
(129) ANNEQUIN, GuY - A CitJtlização dos Maias - Trad. de ALBERTO PINHEIRO JUNIOR -
Otto Plerre Editores - Rio, Brasil - 1978.

368 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Informações semelhantes nos são transmitidas por MICHAEL
CoE (180):

"Praticava-se a separação dos sexos. As raparigas eram


educadas exclusivamente pelas mães e todas as faltas de cas-
tidade eram .gravemente punidas. A monogamia era costume
generalizado, mas os homens importantes, com poderes para.
tanto, poderiam ter mais que uma mulher."

XXIX - A mu1Jl.er entre os astecas


OUtra grande civilização americana foi a asteca, no México, ainda
hoje motivo de admiração, sob certos aspectos, para os que a estudam.
Nela, observa PAUL ULRICH (181):

"São poucas as mulheres que trabalham, dedicando-se


estas na maioria das vezes ao lar e aos trabalhos domésticos.
Mas participam da vida da tribo e assistem às refeições em pé
de igualdade com os homens."
Assim, a asteca não estava marginalizada. Pelo· contrário, tinha
uma certa participação na vida comunitária, inclusive exercendo fun-
ções importantes, como a de sacerdote. Em determinadas ocasiões che-
gava a prevalecer no lar, como acentua JEAN MARCILLy(132), aludindo
às atividades da parteira:
liA parteira tinha uma importância capital no mund.o·8&
teca, pois não somente ajudava a criança a nascer, c:)rtava-lhe
o cordão umbilical, pronunéiando as palavras do ritual de
boas-vindas, mas, com efeito, exercia as funções de sacerdote.
Um mês antes do nascimento, dirigia toda a casa, inclusive
seus moradores; era responsável por tudo."
Atribuia-se, pois, um valor muito grande à vida, donde esse ritual.
E era a mulher (parteira) a figura central de tudo.
A valorização da vida correspondia a valorização da mulher-mãe.
Por isso, o parto era comparado a uma guerra e tanto !Se enaltecia a
mãe que dava à luz um ser como se honrava a que morria de parto, o
que era como morrer em combate e propiciava à morta. as mesmas
homenagens prestadas ao guerreiro tombado na batalha. Continua
MARCILLy (133) :

"Se a mulher morria de parto, logo chegava à mesma se-


midivindade que podia conhecer o guerreiro morto no combate
----
(130) COE, Michael D. - Os Maias - Trad. de ARMANDO LUZ - Editorial Verbo - LiSbOa.
Portugal - 1971.
(131) ULRICH, Paul - ob. clt.
(132) MARCILLY• .Jean - A Ctvtl~ç40 M! An-. - Trad. de LUiZA Tll:RTULIANOVIEmA -
Otto Pierre Edltores - Rlo. BruU - Iln8.
(133) MARCILLY, Jean - ob. c1t.

R. Int. lelill. Irolília a. 19 n. 14 abr./iun. 1982 369


ou sacrificado aos deuses" ... "A mulher morta de parto recebe
mesmo honras excepcionais. De certa maneira, torna-se santa
e mártir" ... "Os guerreiros diziam que a mulher morta de
parto não ia para o inferno, mas sim para o palácio do sol,
e que este a tomava consigo por causa da sua carruagem."

A mulher-mãe era,. portanto, venerada, quase idolatrada.

Entrementes, o destino natural da mulher cumpria-se no lar e aqui


na terra. A parteira dizia à recém-nascida: "É necessário que sejas na
casa como o coração no corpo, não deves sair de casa. . . deves ser como
a cinza do fogão".

Como sempre, a diferenciação social pela diferenciação do sexo.· A


mulher nascerá só para alar. .

Concementemente ao matrimônio, eram os pais que cuidavam dos


filhos, e sempre consoante suas conveniências. Conquanto o casamento
fosse um só, o asteca também podia ter mais de uma esposa, desde que
pudesse fazê-Io. Essas esposas secundárias tinham um lugar no lar, e
eram respeitad.as por todos, embora a principal reinasse sobre as outras.

seja como for, o regime familiar era o patriarcal, logo com a


supremacia do pai e do marido. Malgrado isso, a mulher tinha alguns
direitos, não apenas em relação à sua posição no lar como sobre os
bens comuns do casal. Com a palavra, novamente, MARCILLY ( 34 ) :

"Embora vivendo sob um regime patriarcal, a mulher não


é sua vítima. Suas liberdades são grandes, seus privilégios bem
estabelecidos, perfeitamente defendidos. Assim, basta que uma
esposa. se queixe, diante do tribunal, de ter um es!>OSO brutal,
que lhe bate, que não lhe dá tudo a que tem direito para o
bom equilíbrio material do lar ou que, mau pai, negligencie
seus filh08, para que sua queixa seja aceita. O tribunal decide
confiar à esposa. a guarda dos filhos, ordena o inventário do
casal, decide a partilha por igual e pronuncia. o divórcio. A
mulher estã, então, livre para se casar novamente."

Ai está: até parece que a mulher asteca vivia nas sociedades con-
temporâneas ...

xxx - A mulher entre os indígenas

Variou enormemente a situação da mulher entre os indígenas de


diferentes regiões e raças e, sobretudo, de culturas d.iversas.

(134) MARCJLLY. Jean - ob. clt.

-- -~. ---_._"---------'--=-----'------'------'----------
.170 R. I"t. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abl'./jlln. 1982
Não se pode, por isso, falar de urna situação da mulher entre os
indígenas, mas de distintas situações da mulher, no meio das tribos
indígenas, espalhadas por diversos continentes.
Deasa maneira, entre os ona, habitantes da Terra do Fogo, na Amé-
rica, é possível que, num tempo muito longínquo, existisse o matriar-
cado, do qual o homem libertou-se mais tarde. A este entendimento
somos levados pelo que, sobre esses indígenas, narra PANYELLA (IM):
"Las mujeres estaban excluidas deI KIoketen (sociedad.e
secreta): en realidad la esencia misma deI Kloketen era anta-
gonismo a la mujer. Según una leyenda, eI Kloketen fue ins-
tituido por eI Hombre 8'01 para acabar con la tirania de las
mujeres capitaneadas por la Mujer-Luna."
A reação dos homens, se é que existiu o matriarcado, foi extremada.
Sabe-se que, na Terra d.o Fogo, em período posterior, a mulher passou
a ter menoo valor do que um cão, e era este o poupado se, em alguma
circunstância, o homem tivesse de optar pelo sacrifício de um deles.
Já entre os jívaros, povo guerreiro que vivia na região do Alto
Amazonas, no Equador, a mulher tem uma baixa condição: não passava
de uma coisa do homem:
"La mujer tiene prácticamente la condición de esclava:
debe cuidar deI campo, de la comida, de los anlrnales, y eIla es
también quien debe recoger la lefia para el hogar, fabricar su
própia cerámica y cuidar de los hijos y deI esposo. Eu el caso
de que hayan de empreender un viaje por la noche, el1a deberá
preceder aI marido para aluceyentar las serpientes y alejar los
peligros" (PANYELLA) (136).
O casamento· era poligâmico.

Situação semelhante era a da mulher entre os índios shipibo, loca-


lizados na Amazônia peruana. Mas apenas no que tange ao trabalho:
ela quem cuida do campo, dos animais, da casa, do transporte de gêne-
ros, da educação dos filhos, da tecelagem, da cerâmica. Todavia, dife-
rentemente do que sucedia entre os jívaros, o fato de a mulher tanto
trabalhar e produzir lhe propiciou uma posição de destaque no povoado
e, especialmente, no lar.
PANYELLA P3i) assim descreve os costumes dessea indígenas:

"También entre estas indios es la mujer la que carga con


la mayor parte deI trabajo deI poblado; ella as quien cuida de
los campos, una vez preparados, de la casa, de los animales
domésticos, deI transporte de la lefia y deI agua para el hogar,
- ---
(135) PANYELLA - ob. clt.
(1311) PANYELLA - ob. clt.
(137) PANYII:LLA - ob. clt.

R. Int. leglll. Brasília o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 371


y de los hijas. Además las mujeres shipibo son. hábiles tejedo-
ras y ceramistas" ... uAsi como entre los jivaros la mujer, ape-
sar de cargar con todo el trabajo deI poblado y quizás por eso,
es considerada casi como una esclava, entre los shipibo la mis-
ma callila origina un feto contrario. Por ser precisamente ella
que lleva en la práctica la economia deI poblado, es también
la que en realidad manda en el hogar, aunque no sea. el jde de
la comunidad.
El hombre, ai casarse, abandona el hogar de los padres y
va a vivir con su esposa en casa de los padres de ésta, a los
que ayudará en SUB tareas Y vivirá alli hasta que tenga varios
hiJos; entonces construirá una casa en el mismo poblado,
donde se trasladará a vivir con su familia y asi quedará incor-
porado ai clan de la esposa (matrilocalismo). La residencia,
pues, es matriarca1 y la descendencia matrilineal, ya que los
hijos pertenecerân a la faroUia de la madre; el esposo debe en
todo momento un respeto a los suegros y no puede dirigirles
la palabra directamente, sino que lo hará por med.iación de
su esposa, hasta tal punto que si eI hombre no acatase esta
ley y su suegro le contestara en voz airada, el que ha cometido
la falta. deberá abandonar la casa. En el hogar es la mujer
quien manda y el marido se dirige a eIla hablando en tono
bajo, sumido y con respeto.
Son poligamos, pero por el predomínio femenino, el hom-
bre, aI contraer nuevos matrimonios, deberâ hacerlo con las
hermanas de su espooa, es decir, practican la p')ligamJa so-
rorra1."
Em síntese: a mulher shipibo tinha bastante prestigio. Mas não
era um prestigio gratuito, e, sim, adquirido à custa de um trabalho
hercúleo ...
Situação oposta à que tinha entre os indios shipibo era a que lhe
estava reservada entre os esmeralda e os manta, encontrados na costa
norte do Equador. É ainda PANYELLA (lall) quem nos instrui a respeito:
"Las mujeres ocupaban un lugar muy secundaria entre
los manta. a llegada de los espafioles, pues era común entre ellos
el vicio de la sodomia, deI que hacian alarde público maltra-
tando a las mujeres y e:xhibiendo a los nIDos. objeto de su vicio
adornados con joyas de oro y piedras."
Transportando-nos aos indígenas que viviam no Brasil, cabe adver-
tir, como o fizemos com referência aos indios em geral: numerOS8iS e
distintas eram as nações espalhadas pelo território brasileiro, haven-
do diferenças na organização social de cada um, inclusive no atinente
aos direitos e deveres da mulher.
(138) PANYlI:LLA - ob. clt.

372 R. Inf. I.,il" Bralmo a. 19 n. 74 abr./jun. '9'~


.AlrrHUR RAMOS (139), que analisou a fund.o a vida dos nossos aoo-
rigenes, forneee-nos OS seguintes dados acerca das várias tribos que
aqui existiam:
Sobre os tupi.!, em geral:
"Muitos cronistas falam da existência da poligamia entre
os antigos tupis, embora eles considerassem a primeira mulher
a verdadeira esposa, a quem as outras deviam obediência."
Sobre os tupinambás:
"O status social da mulher tupinambá, a deduzir-se dos
textos históricos, era muito baixo. Ela tinha que trabalhar
para o marido e sujeitar-se às tarefas que ele lhe detenninasse."
Sobre os apinagés:
"A família apinagé é matriarcal: a casa pertence à mulhe:-
do construtor. Em caso de divórcio, em vez da mulher, é o ma-
rido que tem de deixar a casa"... "O casamento solene e públi-
co, com uma virgem, é considerado indissolúvel. As únicas ra-
z~ para o divórcio de um casamento solene são o adultério
de parte da esposa e grosseiro mau trato da mulher por parte
d.o marido" ... "Na divisão do trabalho 'social, as atividades
de coleta, caça e pesca são essencialmente masculinas. Nas ta-
refas agrícolas, os homens cortam as árvores e preparam o
campo, sempre ajudados pelas mulheres no plantio e na co-
lheita."
Sobre os aruaques:
..As mulheres casam-se jovens. São tratadas com certo des-
prezo. São segregadas de muitas cerimônias. Não podem ver
081nstrumentos sagrados. No entanto, às mulheres estão afetos
todos os trabalhos agrícolas e domésticos."
Sobre os baicariB:
"As atividades agrícolas surgiram com as mulheres. En-
quanto OS homens iam à caça e à pesca, as mulheres tomavam
conta dos mantimentos e iniciavam uma rudimentar faina
agrícola e coletavam também os frutos e tubérculos. A cozinha
vegetal é o seu domínio. Posteriormente elas vão lavrar a terra
com a enxada de pau, colher os grãos e preparar a farinha. n
Sobre os bor6ros:
"As práticas de noivado e casamento entre os borôros pa-
recem estar ligadas à importância da mulher na tribo. Segundo
COLBA.CClilNI, a iniciativa do pedido de casamento cabe à mulher,
que faz suas corurnltas à sua mãe ou à irmã mais velha. Estas
----
(139) RAMOS, Arthur - IntT04uç40 ~ Antropologia !h'CI8UWa; - ll:c11çlo dJl, Cll8a 110 Elltuc1antcl do
Brasil - RIo, Bra8U - 1943.

R. Inf. legill. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 373


tomam todas as provid.ências junto à família feminina do ra-
paz. No caso que este aceite, a mãe do pretendente, oU,-na
falta desta, a irmã mais velha, vai à procura do rallaz com um
cesto de presentes, fazendo então (} pedido oficial. Aceito o
presente, está conclufdo o ajuste. Prepara-se então a choça da
noiva para receber o noivo, que como já ficou dito, deve habitar
em casa da mulher (matrilocalidade)."
No trabalho "enquanto os homens caçam, as mulheres dedicam-se
a atividades de coleta, procurando frutos silvestres na floresta ou desen-
terrando raízes por meio de um pau pontudo".
Sobre os nambiquaras:
"O status social da mulher nambiquara parece ser melhor
do que o das outras incHgenas do Brasil. Trabalha muito, é
certo, "mas é tratada, em regra, com muita ternura". " "Os
maridos são ciosos de suas esposas."
Sobre o carajcú;:
"Os homens preparam o terreno e plantam a mandioca e
o cará, enquanto que as mulheres se encarregam do plantio do
algodão, do milho, da batata~oce e do urucu" ... "As mulhe-
res fazem também utensílios de cerâmica muito grosseiros e
preparam várias peças de fibras e algodão. Cuidam da roça e
fazem colheita,"
Discordante da informação de ARTHUR RAMOS em torno dos tupi.
nambás é a que nos comunica FLORESTAN FERNANDES (140), pois, segundo
este, observa-se, entre os tais indígenas, "a proteção permanente asse·
gurada à mulher pelo homem. Isso, tanto na maloca e no grupo local,
contra os ataques inimigos, como nas viagens, contra animais ferozes
ou ainda inimigos". Além disto, "o homem realizava a parte mais árdua
do trabalho agrícola: a derrubada e a queimada". No tocante ao ca;..
sarnento, o homem só possuía mais de uma esposa quando era "grande
principal" e "valente", o que valorizava, igualmente, suas mulheres.
Quanto ao divórcio, sua iniciativa podia ser tomada "tanto pelo:homem
quanto pela mulher". No lar, o regime era o patriarcal, mas reconhe-
ciam-se "certos limites à autoridad.e do marido", visto que "a mulher
era indispensâvel ao homem",
Se bem que se dispensasse, assim, à mulher tupinambá alguma
consideração, não seria possível atribuir-se-Ihe maior destaque, e isso
IX>r força da natureza - para aqueles índios inferior - da mulher. Os
atributos femininos impediam a mulher de maiores favores, ao passo
que os masculinos punham o homem no toIX> da sociedade: FLoRESTAN
FERNANDES (141) focou o problema da seguinte forma:

"Segundo a cosmologia dos tupinambás, via de regra s0-


mente os homens - e nem todos - atingiram o tipo de perso-
(140) FERNANDES, Florestan - Organização Social dos Tup/nambás - DifusAo Européia do
Livro - 8ão Paulo. BraaU - 1963.
(141) FERNANDES. Florestan - ob. clt.

374 R. Inf. le;is!. Brc:síl:\1 o. 19 n. 74 abr./ju". 19S2


nalidade considerado ideal. As mulheres e as crianças, bem
como os homens covardes e pusilânimes, dificilmente o conse-
guiam. Assim se explica a exclusão desses inctivíduos da socie-
dade sobrenatural dos antepassados. As diferenças de persona-
lidade ligadas ao sexo eram, pois, muito imlX>rtantes na
determinação da conduta d.os tupinambás, sendo os atributos
considerados masculinos encarados como atributos supremos e
ideais."
Dessa maneira, a condição social inferior da mulher era tida como
'..lllla fatalidade biológica ...
Muito diversa da comum entre os aborígenes brasileiros era a
condição da mulher na tribo dos carajás, onde tinha liberdade e mere-
cia, com os filhos, a devida assistência de seu companheíro. CoUTO DE
MAGALHÃES (142), que os visitou, divulga, a respeito, os seguintes comen-
tãrios, discordantes com os d.e outros autores:
"A mulher, desde que atinge à idade em que lhe é permiti-
do entrar em relação com o homem, concebe daquele que lhe
aprazo No 'período de gestação e amamentação é sustentada pelo
pai do menino, o qual pode exercer igual encargo para com
outras, as quais, durante períodos idênticos, moram na mesma
cabana. Desde que a mulher começa a trabalhar é livre de
conceber do mesmo homem, ou de procurar outro, passando
para este o encargo da sustentação da prole anterior."
Em outra tribo que conheceu, a dos guatós, COUTO DE MAGA-
constatou um sistema "machista" radical:
LHÃES (143)

"Os guatós do Paraguai brasileiro são um tipo exagerado


dos direitos d.o homem sobre a mulher."
Entretanto, por imperativo do sexo, que conduz à diferenciação
de labores sociais, a mulher não é demasiado onerada, como diz MAx
SCHIMIDT (144), que também conviveu com os guatós:

"Os apetrechos para caça e pesca são preparados pelo ho-


mem, assim como a própria caça e pesca constituem seu pIi~
vilégio. É ele ainda quem faz a comida. As mulheres ocupam-se
exclusivamente em fabricar panelas e outras coisas d.e barro.
Também fiam e tecem.
Assim, vê-se que a maior parte do trabalho compete ao
homem, .enquanto as mulheres, conforme pude observar, levam
uma vida bastante ociosa. Entretanto, durante as viagens na
canoa costumam auxiliar o homem na direção da mesma."
,(14:1)_ MAOALRAÉS. Couto de - O Selvagem ' - Comp. ,Editora Nacional - 810 Paulo, Brasil - 1940.
(1431 MAGALHAm. Couto-de - ob. olt.
{lU} SCHDUDT, Max - Es.t.udo8 Ik Etnolog'a Br4llUelra - Trad. de CATJlARINA BARATZ CAB-
NABRAVA - Comp. Editora Nacional - SAo Paulo, BrasU - 1942.

R. Inf. legi.1. BrasílíCl CI. 19 n. 74 Clbr./jun. 1982 375


Já no seio dos índios pereci3 ,a mulher estava relegada a um estiado
verdadeimmente vil. Tratada com desdém, marginalizada, submetida a
toda espécie de pressões, escravizada, sua sorte era realmente lastimável.
Eis como RoQuETTE PINTO (145) retratou tal situação:
"Tratam. as mulheres com certo desprezo" (... ) "só con-
sentiam que elas comessem quando já estavam absolutamente
saciados" ( ... ) "segregam-nas das cerimônias do seu cul-
to" ( ... ) "escondem dos seus olhos os instrumentos sagrados
das tribos" ( ... ) "elas se ocupam em trabalhos de toda sorte:
socam o mUho, plantam, fiam, lavam a roupa, cozinham, tra-
tam dos filhos."
O regime familiar era o patriarcal e o casamento poligâmico.
Deduz~e, do exposto, que variaram as condições de vida da mulher,
nas diversa8 nações indígenas que habitaram o Brasil, oscilando, con·
seqüentemente, a sua posição social, aqui de escrava, acolá em destaque.
Certos traços eram, contudo, comuns à maioria das culturas aborí-
genes. ANGIONE CosTA (146), por exemplo, falando de nos.sos autóctones
de maneira generalizada, diz, em relação ao matrimônio:
"casavam com uma ou várias mulheres, mas cada uma
dispunha de seu próprio fogo, na oca, e de sua plantação de
raizes. A esposa. mais velha, entre certas tribos, exercia como
que uma função de matriarcado. Dispunha de autoridade sobre
as outras e sobre os filhos de todas."
Quanto ao relacionamento entre o macho e a fêmea., prevalecia, em
regra, a lei do mais forte. Escreve RUGENDAS (ln):
"As mulheres são tratad.a.s como escravas e a única prova.
de amor que recebem de seus maridos são ferozes acessas de
ciúme, durante os quais são bastante maltratadas, como o de-
monstram as profundas cicatrizes que se vêem em seus corpo.s."
E no que se relaciona com o trabalho:
"Cabe às mulheres preparar os petiscos e cuidar das n~
sidades domésticas. Elas constroem. as cabanas, carregam a
caça, e acend,em o fogo, o qual, como entre a maioria dos sel-
vagens, é feito esfregando-.se uma. na outra duas espécies de
madeira."
A propósito do casamento é oportuno registrar que a mulher era
ouvida sobre o mesmo, que só se realizava com o seu consentimento, o
(146) PINTO, E. Boquette - Bond6nf4 - Campo Ec11tora Nactonal - l!IIo Paulo. Bru1l - 1938.
(1411) COSTA, Angioo. - Intf'oduç40 A ArqueoloQiG BTlIrileV'1I - COmp. 1Id1ton. Nacional - BIo
Paulo, BrasIl - 1934.
(14'1') Bt1OBNDAS. loI&urlclo - Villgem PUorUC4 A~raVé3 do Bnm.l - Trad. de SERGIO !4ILLIlIlT
- Livraria MartlDB - Sio Paulo, BrBlIll - 1941,

376 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./Jun. 1982


que já representava uma conquista, desconhecida de povos antigos,
entre os quais, como vimos, algUIliS de brilhante civilização. A informa-
ção é de JEAN DE LERY (148).
" ... quem quer ter mulher, seja viúva ou donzela, dndaga
d.e sua vontade e em seguida dirige-se ao pai ou, na falta deste,
ao parente mais próximo, para pedi-la em casamento. Se lhe
respondem afirmativamente, leva consigo a noiva como legíti-
ma mulher sem que se lavre nenhum contrato."

XXXI - Da antigüidade à era contemporânea

Da exposição feita do posicionamento social da mulher entre os


povos de todas as partes do mundo, tanto das grandes civilizações como
das civilizações rudimentares, vê-se que não se pode estabelecer, no
tempo, uma linha evolutiva que leve à conclusão de que a mulher partiu
de um determinado tipo de vida até alcançar certos padrões de existên-
cia, em tais ou quais períodos históricos, nos diferentes países.
Tanto ou mais do que hoje, mesmo nas eras mais remotas, até
mesmo na pré-história e na proto-história dos povos, constatamos dife-
renças marcantes no posicionamento social da mulher, conforme esti-
vesse localizada nessa ou naquela cultura, nesse ou naquele espaço
político-geográfico.
Observamos, igualmente, que a situação da mulher foi-lhe mais
favorável, às vezes, na história de um mesmo povo, em tempos mais dis A

tantes do que em outros II1.aÍ5 próximos, bem como averiguamos que,


numa mesma época, mulheres de povos diferentes tinham condições
de existência bastante diversificadas.
A religião dominante, o sistema político adotado, a situação eco-
nômica, o grau de desenvolvimento cultural, a riqueza do solo, o clima.
tudo isso, bastante diferenciado de povo a povo e de tem'l)O em tempo,
contribuiu para que não fosse possivel desenhar uma visão geral do
posicionamento da mulher em termos cronológicos ou espaciais.
Seja como for, e descontadas as exceções já apontadas, comprovou-
se que, de um modo geral, a situação da mulher, nos períodos ma.i8
recuados da história da humanidade, era bastante precária, eis que
ela valia, normalmente, como um simples objeto, de que os homens se
serviam. segundo seus desejos e interesses.
Sem direitos, quase, sem liberdade, marginalizada da vida social;
sujeita a tod.a sorte de pressões, ofendida e humilhada, enfim, inferia--
!URda, a mulher não passava de uma escrava.
Outra constante na história das gentes está em que se tomou a
diferença de sexo como sinônimo de diferença de natureza entre o ho-
(l.) L1:BY. Jean - Viagem ti Terra ao Brufl - Tra4. de slCRoro MlLLIET - Livraria Martilll
- Bio Paulo, BraeU - 1941.

R. Inl. legilJ. Brasília ao 19 n. 74 abr./jlln. 1982 377


memea mulher, mas uma diferença em termos de hierarquia de virtu-
des~pondo-seo homem em plano superior e d.efinindo-se essa pretensa
superioridade, assim de caráter biOlógico, como verdadeira fatalidade.
Daí um enquadramento específico da mulher no lar e no trabalho,
predominando a idéia de que a mulher "foi feita" para o lar e que
certas atividades lhe são defesas, porque próprias do homem.
Politica, conhecimentos, esportes, nada disso seria "coisa para
mulher". E esse estado de espírito, vindo da noite dos tempos, atraves-
sou a Antigüid.ade, transpôs a Idade Média, passou pelos tempos mo-
dernos e chegou até a nossa época, Conquanto apresentando tonalidades
distintas em cada um des5€S periodos e embora, em todos eles, houvesse
sempre aqueles que tentassem modificar· as coisas, dando à mulher o
seu devido valor.
Vimos, em pormenores, a situação da mulher na Antigüidade. Pas-
semos, agora, às outras eras. .
Na chamada Idade Média, por exemplo, lembra ANNE FREMAN (1411),
"o fidalgo era senhor absoluto do seu castelo e de sua esposa", e, na
classe burguesa, no que diz respeit.Q ao trabalho, a mulher, "além de
preparar a comida, tomava conta da casa, dirigia as criadas, cuidava
das crianças e ainda achava tempo para cultivar rosas... rezar o rosário,
dançar e cantar".
Havia uma forte discriminação entre os sexos, ao homem se conce-
dendo tudo, nada ou muito pouco se dando de concreto à mulher. Esta,
conforme sua classe, ou era fXlSta numa redoma, ou constituia apena.s
uma máquina de trabalhar e de produzir filhos.
ZoÉ OLDENBOURG (150), que estudou aquele período histórico em ex-
tensão e profundidade, diz, a propósito:
"O homem tinha todos os direitos, enquanto a mulher,
mesmo legalmente, não tinha praticamente nenhum,sendo
uma eterna menor. A mulher nobre estava, sob pena de morte
violenta, obrigada à virtude e a uma fidelidade conjugal abso-
luta, enquanto o homem, considerado poli gamo por natureza,
se concedia uma liberdade .sexual quase total; se devia abster-se
de desonrar as mulheres e filhas de outros nobres, o fazia por
respeito à propriedade alheia." . .
Dessarte, considerada um bem do marido, quando casada, e, quan-
do solteira, simples marionete nas mãos do pai, a mulher era utilizada
pelo homem para negócios e alianças entre fidalgos, servindo para
(149) FREMAN, Anne - A Idade d<J Fé - Trad. de RACHEL DE QUEIROZ - Livra11a JoM Olym-
pio Editora S.A. - Rio, Brasl1 - 1972.
(150) OLDENBOURG. ZOé - Aa Cru2ad48 - Trad. de VANIA PEDR08A e MOURA amE:íiiO-SAR-
DINHA - Editora Civ1l1zaÇllo Brasl1elra S.A. - Rio, Brull - 1968.

378 R. Inf, legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr,/jun. 1982


restauração de patrimônios ou para composições políticas; Não passava,
pois, de um ente secundário. É o que recorda, ainda, ZoÉ OLDEN~
BOURG. (151) :
"A mulher nobre era - em geral - despoSada por ques-
tões de interesse e conveniência, servinc.o de laca entre duas
famílias, garantia de amizade entre beUgerantes -reconciliados.
O cavalheiro ofereda sua filha ou irmã (às vezes a mãe) a
qualquer senhor com o qual procurasse concluir uma aliança.
A viúva era dada por seu soberano a um homem capaz de defen:-
der a terra, a herdeira a um vassalo que se queria recompensar
e - não havia sentimentalismo naquela énoca - a filha podia
reclamar e obter a mão d(} assassino de seu pai."
Acrescentem-.se os casamentos por interesse, de fidalgos ameaçados
de falência e que se utilizavam de suas filhas ou irmãs para equilibrar
seus negócios.
Chamou-se, a essa época, a Idade da Fé. A Igreja realmente domi-
nava. Mas não se vivia, às vezes, o Cristianismo, Como neste caso, isto
é, em relação à mulher. Porque "pelo cuidado e atenção especial que
teve para com as mulheres, particularmente por sua mãe, Cristo é um
especial redentor das mulheres" (152). Realmente, o Cristianismo, al-
çando a mulher à condição de pe.s&:la, d.eu-lhe uma dignidade igual à
do homem. Entretanto, os Cavaleiros da Cruz, na Idade da Fé, não
pareciam possuídos do verdadeiro sentido da religião de Cristo.
Insistamos, porém, na análise da posição da mulher, nesse período
que, do ponto de vista religioso, lhe deveria ser favorável, mas que lhe
foi tão ingrato. Com todo o "cavalheirismo" reinante nessa época. sob
certos aspectos tão "romântica", a verdad.e é que, ao invés da mulher,
foi o homem o endeusado. Mesmo quando se procurava lisonjear a
mulher, em. a figura do homem que lhe apontavam como o modelo a
imitar. Para ela engrandecer-se, deveria arremedar as qualidades
masculinas.
Seja como for, contudo, a mulher ainda possuía algumas prerroga-
tivas, chegand.o mesmo, algumas, a alcançar alta posição social, valendo
isso, porém, como exceção, num estada social em que ela não se dis-
tinguia muito da mulher na antigüidade.
Fala ZoÉ QLDENBOURG (1":1):
"As chans01lS de toile, único vestígio do que poderia ter
sido a sensibilidade feminina na época das primeiras cruzadas
(compostas para as mulheres e talvez pelas mulheres) nos
mostram uma adoração pelo homem quase comparável à de
uma certa imprensa sentimental de nossa éooca: o homem é
o mestre e o bem e o mal pelo qual se respira. Entretanto a
moça nobre, educada com certa liberdade, lado a lado com seus
(151) OLDENBOURG, ZOé - ob. clt.
,152) Bíblia Sagrada - clt.
(53) OLDENBOURG, Zoé - ob. clt.

R. Inf. legisl. Brosília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 379


irmãos, grande amazona, às vezes, especializada nos esportes
menores, tais como o lançamento de dardo, tinha muito natu-
ralmente tendência a adotar, como seus, os valores masculinos,
pois esses eram, em princípio, reconhecidos como superiores.
A mulher nobre, por pouca personalidade que tivesse, apossa-
va-se dos direitos que a lei lhe recusava, mas, em geral, só
exercia sua autoridade sobre as mulheres do povo ou da pe-
quena nobreza. Entretanto, não era raro ver a esposa ou a mãe
do senhor governar o castelo e o domínio na ausência daquele,
defender uma praça em tempo de guerra e comandar sol-
dados."
Como o cão, que lambe a mão do dono que lhe bate, a mulher
medieval, maltratada pelo homem, ainda achava meios de servir ao
seu senhor. Tipo da mulher de malandro...
Na esplêndida fase que suced.eu à Idade Média, a Renascença, a
situação da mulher só aparentemente melhorou, ela continuou me-
nosprezada e submissa, dominada pelo homem.
i certo que algumas figuras femininas conseguiram romper os gri-
lhões que as subjugavam e impor-se, mas isso valeu, repitamos, como
exceção para confirmar a regra, e esta consistiu numa con9tante preo-
cupação de se manter a mulher numa condição de inteira subordinação
ao homem, como demonstra JOHN R. RALE (IM), nesses flagrantes do
Renascimento :
" ... as conversas devem ter ocupad.o um papel de destaque
nas reuniões sociais da Renascença, tanto as formais quanto
as informais. E foi assim, na realidade". ( ... ) "O papel ativo
e desinibido dado às mulheres nesses diálogos pareceu melhorar
consideravelmente a posição feminina durante o Renascimento.
Na verdade, com raras exceções, não foi bem assim. O acidente
da herança ou casamento colocou em foco mulheres ínteligen-
tes e corretas como Isabel d'Este e Catarina Sforza, a prlmeira
tornou-se uma das mais apaixonadas protetoras das artes, a
segunda defendeu sua cidade, Forli, contra Cêsar Bórgia, com
o vigor ea ingenuidade de um soldado nato. Mas de mulheres
comuns ainda se esperava que se conservassem quietas e não
exibissem seus conhecimentos ou liberdade de pensamento. No
século XIV um comerciante florentino escreveu: "A mulher
é uma coisa. etérea e vã ... se você tiver mulheres em casa,
con.serve-as calao.as tanto quanto possível, volte freqüentemen-
te a casa e as mantenha amedrontadas e trêmulas". No final
do século XV o livreiro florentino Vespasiano da Bisticci, se-
guindo duas regras principais enunciadas por São Paulo, diria
essencialmente o mesmo: "A primeira é que elas conservem
suas crianças no temor a Deus, a segunda que elas se conser-
vem caladas na igreja, e eu acrescentaria que elas parassem
de falar em outros lugares também." .
(541) RALE. John R. - Be1'I4.fCenca - Trad. de RONALDO VERAS - Livraria José Olymplo &U-
tora S.A. - Rio, BralIU - 1972.

380 R. Inf. Il19isl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Ainda no crepúsculo da era renascentista, já ao raiar da Idade
Moderna, os homens, orgulhosos de suas criações, suas descobertas e
de suas conquistas, a situação da mulher permanecia precária. pois es-
truturada num contexto social atrasado e preconceituoso. A sociedade
da então famosa Veneza, por exemplo, d.aquele tempo, dá bem uma
idéia das condições humilhantes em que se movia a mulher:
"As mulheres mal deviam incluir-se na categoria dos seres oprimi-
dos, tratados desumanamente e privados de direitos", comenta P. S.
CHAMBERs (155). que escreve, mais:

"As filhas dos patrícios e eLos cidadãos passavam do am-


biente .infantil para as fechadas convenções do, casamento.
compendiadas pelo untuoso De Re Uxoria, de iFRANCISCO BAR-
BARO, escrito em 1410; se os pais não podiam fornecer um dote
razoável, quer reunido pela família. quer proveniente de uma
fundação caritativa. o futuro que as esperava era o de freiras
ou de prostitutas."
Se a mulher tentava, pelo trabalho, maior autonomia, ainda aí
era discriminada e explorada:
"Mesmo as mulheres de trabalho estavam em condições
desvantajosas. As que, no arsenal, trabalhavam em velas d~
tinadas aos navios ganhavam uns 12 ducados por ano (menos
do que um moço ajudante de carpinteiro naval) enquanto seu
capataz masculino recebia cerca de três vezes mais" (CHAM-
BERS) (I:i6).

Para se ter uma idéia da estupidez vigente. no tangente aos direitos


da mulher, basta evocar o que aconteceu com a filha do célebre Tin-
toretto, caso bastante ilustrativo de uma situação, também mencionado
por CHAMBERS (157):
"Era dtiicil a uma mulher mostrar o seu gosto artístico,
o seu talento intelectual. A filha de Tintoretto, Marletta, era
uma pintora talentosa; mas o pai (classificado como cidadão)
infrtngiu-Ihe, diz-se. o duplo ·insulto de a obrigar a vestir-oo
de rapaz e de a proibir de deixar a casa e seguir a sua carreira.
apesar de prementes convites de cortes estrangeiras."
Ê claro que muitas mulheres reagiram e até algumas delas con-
seguiram afirmar-se, mas. quando isso acontecia, elas passavam a ser
vistas com desconfiança pela sociedade.
Certamente, nem em toda a parte a situação da mulher, na era
renascentista, era igual à que ela tinha em Veneza, mas. em principio.
era assim mesmo que ela vivia, mesmo naqueles templos de esplendor
artístico e cultural. .
(155) CHAMBERS, P. 8. - Vene.ro lmpericl~ - Trad. áe ANTONIO OONÇALVBB I4ATTOSO -
1m.
Eclltor1al Verbo - LIsboa, Portugal -
(156) CHAMBll:R8 P. 8. - ob. clt.
(157) OKAMBJmS, P. 8. - ob. clt.

R. Int. legisl. Bralília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 381


Com o correr dos séculos, contudo, o progresso das ciências, o sur·
gimento de ideologias libertárias, as guerrM, as revoluções, as trans--
fonnações econômicas, sociais e políticas, a renovação filosófica e a
humanização das religiões, a mulher, sempre batalhando por seus di-
reitos e por sua cllgnidade, foi, a pouco e pouco, alcançando um lugar
ao sol.
Assim, chegando ao século XVIII, vamos encontrar na França (país
padrão da civilização, à época), com Luis XIV, uma sociedade onde a
mulher já é colocada em uma ~ição bem mais razoável:
"Por toda a Europa, as raparigas que recebem uma educação su-
perior devem-na a damas instruídas das escolas religiosas, a parentes
ou amigas. A ed.ucação útil, prática, que lhes reservam é-lhes dada,
muitas vezes (nos paises protestantes), em casa pelos preceptores ou
mestres; aprendem especialmente a música e as linguas vivas. A falta
de uma educação 'mais formal não significa, porém, necessariamente,
que a posição social da mulher seja inferior. Tudo parece indicar que
partilha da posição do marido e da família em geral. Governa a casa
e, muitas vezes, gere os negócios do marido - quer se trate da quinta,
da oficina ou do domínio - quando ele viaja ou está em guerra"
(RAGNHILD HATTON) e~B).

Certamente, naqueles tempos, nem todos os países eram como a


França, e em muitos deles, evidentemente, as mulheres não teriam
ainda conseguido uma semelhante situação. No entanto, pelo papel que
sempre desempenhou no mundo, a França, paradigma da civilização,
pode ser tomada como ponto de referência. E lá, vimoo, sob o reinado
de Luis XIV, o Rei Sol, a mulher já começara a ver clareados os seus
caminhos no mundo.
No século XIX melhorou ainda mais a "imagem" da mulher, como
ressalta ARTHUR CONTE (159) :
"Comme le XVIIle siecle, autre époque joyeuse et gour-
mande, le II Empire adule la femme. Elle rêgne sur la mede,
le théâtre et la politique. L'Empereur, le prenli'er, a donné
l'exemple: en faisant un mariage d'amour et en appelant sur
le trône Eugénie de Montijo, une créature de simple noblesse
mais belle. II s'inclinait ainsi devant la royauté féminine."
Um novo e largo horizonte começou, pois, a descortinar-se à mulher.
Essa evolução da condição feminina quase que se restringia às
camadas sociais superiores. Nas classes média e popular as coisas eram
diversas, mas, mesmo nelas, as mulheres já se movimentavam no sentido
de sua emancipação, fosse pela educação ou pelo trabalho.
(158) HATTON, .Ragnhlld - A l;poca de ·Luis XIV ~ Trad. de ANTONIO GONÇALVES MATTOSO
- Editorial VerbO - LlBboa, Portugal - 1971.
(159) OONTE, Arthur - L't1Jopée Mondiale d'un SUcle - Llbralrle Hachette - P"rlll, France
- 1970.

R. Int. leg/sl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Os códigos e as leis em geral ainda estavam, mesmo na França,
repletos de disposições restritivas, em relação à mulher, que, só recente-
mente, e mesmo assim nem em toda parte, conseguiu libertar-se do
jugo masculino.
De qualquer mod.o, é do alto que as coisas descem, e, no cume da
sociedade, a figura da mulher, em França, já começava a se projetar
em sua real grandeza.
O século XX foi marcado, logo em seus primórdios, pela grande
guerra de 14/18, a que se seguiu, a curto intervalo, o grande conflito
mundial de 38/45. Essas duas tragédias abalaram os alicerces políticos,
sociais, econômicos e até religiosos d.as nações, modificaram-lhes as
estruturas, alteraram a visão das coisas, substituíram valores, impuse-
ram ao homem novos procedimentos, determinaram uma revisão de
princípios, indicaram novas posições, levaram a uma nova concepção
do homem, das coisas e do universo.
No cadinho em que passou a fundir....se o novo mundo, forjou-se,
então, a nova mulher, aquela que se vai firmando e afirmando como
capaz d.e partilhar paritariamente com o homem das responsabilidades
da criação de uma sociedade mais livre, mais fraterna, mails digna,
mais cristã.
OLIVEIRA LIMA (lBH), tratando da primeira Grande Guerra, assim
sereferiu à incidência do conflito no reposicionamento social da mulher:
"A mobUização geral, continuada por anos, teve de levar
a mulher aos ofícios e atividades antes reservados aos homens.
Muitas da13 profissões tiVeram de abrir, assim, nas artes, nas
indústrias, no funcionalismo público, lugar para as mulhe-
res - fenômeno a que muitos observadores atribuem grande
valor como fator de desequilíbrio econômico e social do mundo
contemporâneo. Por outro lado, o emprego da mulher em tais
atividades levou, em grande parte, a uma sensível modificação
na vida do lar e na educação dos filhos, com o enfraquecimento
dos laços de família. Todos esses fatos se refletiam e se refle-
tem, nas concepções e teorias da educação, que passaram a
exaltar o papel organizador da escola e, em conseqüência, o
papel d.o Estado como educador."
A última Grande Guerra, atingindo mais larga e fundamente as
estruturas tradicionais da sociedade, alterou ainda mais a organização
dos Estados, e, no que concerne à mulher, ela teve, então, abertas todas
ás estradas, por onde pudesse livremente caminhar rumo à sua defi-
Il.itiva afirmação.
Realmente, o resultado dessa renovação total que se processou e
ainda vem se processando nas sociedades de tod:ct3 os países foi a mulher
sair da "toca" e aparecer, corajosa e voluntariosa, em campo livre, dis-
posta a consolidar seus direitos. Hoje, às vezes em prejuízo do lar, ela
(11lO} -LIl4A, OlL'felra - m,tórla da CI.vllfZação - Edlç6es MelhoramentOlJ - 810 Paulo, Brasil
- 19l17.

R, Inf. legl,1. Brasília a. 19 n. 74 cb,.!jun. 1982 383


está nas universidades, nos laboratórios, nas lojas, nas fábricas, nas
escolas, nos escritórios, nos Ministérios, nos gabinetes, nos Parlamentos.
Tem uma ~ção social firme e clara. Compete com o homem quase
em todos os setores, em igualdade de con.diçÕe5. Passou a ser vista
como, também, uma figura feita à imagem e à semelhança de Deus.
COmo uma pessoa. humana.
FREDERICO SoPENA (l~I) versou o tema com senso e aculdade:
" . .. otl'O de los signos más característicos de nueetra épo-.
ca: la promoción de la mujer, el crecimiento real y legal de su
personalidad, de su actividad, <re su influencia. Y, cosa curiosa,
es en los nuevoo Estados, en eI mundo menos desarrollado
económicamente, donde ese crecimiento de la mujer se realiza
con más fuerza. No se trata de un fruto o de Wla oonsequencla
de las viejas, pintorescas campaftas feministas: es la. práctica
igualdad de la mujer. En si, como la misma Iglesia ha dicho
por boca de Juan XXIII en la encíclica Pacem in Terri8, es
un bien, un autêntico bien, un índice de crecimiento vital, pero
un bien amenazado de muy grandes pelligros."
Em todos os países, mas principalmente na França, na Inglaterra,
nos Estados Unidos e na Rússia, multiplicaram-se, consolidaram-se e
fortaleceram-se as organizações femininas, CUj08 programas, aos poucos,
foram sendo incorporados às legislações dos diversos Estados. "Após a
II Guerra Mundial, principalmente desde o inicio dos anos 60, o moVi-
mento das mulheres tomou novo alento. A palavra de ordem era agora
a emancipação. As mulheres exigiam a libertação do papel de simples
dona de casa e mãe, detenninada pelo sexo, e cuja. retribuição sa1ar1al
era complementar do orçamento famiMar. Lutaram pela plena equipa.-
ração com o homem no setor profissional e pela legaJizaçio do abor-
to" (1412).
Não há dúvida de que a mulher está saindo vitoriosa em sua
campanha. Em todas as nações verifica-se um movimento vigoroso de
integração social da mulher, que, dessa maneira, realiza-se como pessoa,
ao mesmo tempo que coopera, lado a lado e em pé de igualdade com
o homem, para o progresso geral do mundo.
As coisas não se passam da mesma forma em todos os países. Em
muitos ainda existem inconformismos e resistências. Até "quinta colu-
na" existe, como na Suíça, onde as mulheres se organizaram para
combater a extensão do direito do voto à mulher ...
Tradições milenares não podem desaparecer de um momento para
outro. Mas o mundo, hoje, com o aperfeiçoamento verdadeiramente
fantástico dos meios de comunicação, facilitou a. universalização da.
campanha pela libertação da mulher, e, desse modo, ela está se afir-
(leI) SOPENA. Frederico - "Panolllma espirItual de nuestro tlempo" - In Hidorls U"i~'1Jl -
Tomo XI - "sn lOEl mnbrales de una nueva edad" - ll:Bpasa Calpe. 8.A. - Madrid.. IlIpatla
- 1ll8ll.
C·1G) O. Qronllu AoonUctmentQ,'J do Stculo X X ~ Ild.lI;l\ode ~ (\(I ''Readel''' aa-'~ -
1979 - L1sboa, Pnrtugal.

384 R. Inf. legisl. B"ralília CI. 19 n, 74 abr./jun. 1982


mando e se finnando, embora em ritmos diversos, nos diferentes países,
adequando o movimento às caracteristicas de cada povo.
Na Itália, por exemplo, a mulher, essencialmente feminil, tem
um jeito todo seu de reagir e levar avante as suas conquistas. Ali,
ela, muito femininamente, estimula as veleidades masculinas, mas, em
silêncio, "mineiramente", vai conseguindo o que quer: "Se há alguma
grandeza na mulher italiana, está na dócil serenidade com que, através
da história, ela tem parecido não somente aceitar como até incitar as
ilusões de superioridade dos homens" (103). É assim, fazendo-se cada
vez mais mulher, que a mulher italiana vai triunfando: "Conquistas
legais como o direito do voto (1948) e a recente lei do divórcio (1970)
certamente ajudaram a debilitar velhos preconceitos. E ainda mais im-
portante é a gradual abertura de setores do mercado de trabalho para
as mulheres. Há apenas alguns anos, o casamento era o único emprego
para as italianas da classe média. Mas quando descobriram que podiam
viver de seu trabalho, a idéia de libertar-se das limitações da vida do-
méstica se tornou cada vez mais atraente" (104) .
O exemplo mais edificante é o da China, de cuja antigüidade já
falamos. Vimos que a mulher, lá, era uma verdadeira escrava.
Mas esses tem}X)S de escravidão acabaram. Primeiro, com a presença
de missões religiosas na China. Os nUssionários, quando verdadeiramen-
te a serviço de apostolado cristão, contribuíram para, conceituando a
mulher como uma pessoa, valorizá-la, dignificá-la e libertá-la um pouco
do jugo masculino.
De}Xlis, aconteceu a H Grande Guerra. Estalaram as estruturas
tradicionais das sociedades humanas. Valores foram reconceituados. ~
siçães novas foram assumidas. Uma nova filosofia de vida passou a vi-
gorar. Novos caminhos foram tentados. O mundo mudou. As mulheres
participavam da luta, editavam revistas, e, sob a influência d.as idéias
ocidentais e por um impulso da natureza, pugnaram por seus direitos,
que a pouco e }Xluco foram sendo conquistados, a começar pelo ensino
primário e universitário.
De lá para cá, primeiro com o governo nacionalista, depois com o
socialista, foram conseguindo novos triunfos, até obterem a emancipa-
ção total, depoiiS da II Grande Guerra.
Foi completa a vitória da mulher chinesa, tanto na cidade como no
campo. As leis promulgad.a.s consagraram a igualdade dos sexos. E a
mulher chinesa, que já participava das atividades produtivas, culturais
e científicas do país, até tem um dia que lhe é dedicado e em que é na-
cionalmente exaltada. PANYELLA (165) assim traçou a linha evolutiva da
independência da mulher chinesa.:
"Si bien la sobrevalorización de los jóvenes, corno elemen-
tos sociales de valor activo propio, ha resultado factor de pri-
- ---
(163) Povor e Paires - 00. ott.
(1M) l'OfI08 e Poires - ob. clt.
(UI5) PANYBLLA - ob. clt.

R. Inf. legi.l. Bra.ília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 385


mera importancia en la modificación de la vida china, sin
duda transfonnaci6n de mayor transcedencia ha sido aún la
emancipación de la mujer, con lo que la disgregaci6n deI clan
tradicional se ha consumado em forma seguramente defini-
tiva.

Para la China clásica, la posesi6n de las virtudes actívas


deI Cielo correspondía aI hombre, mientras las pasivas de la
Tierra pertenecían a la mujer. La desigualdad de sexos y por
tanto su separación eran principias ancestrales. Su equipara-
ci6n, inconcebible.

En tal iSÍ'tuación, la mujer quedaba apartada de la activi-


dad exterior de la familia, carecía de derechos de sucesi6n,
abandonaba a sus parientes a partir deI matrimonio, y exi-
gendas morales o de la moda (pies pequenos) contribuían a
definir unas posibilidades peculiares y específicas.

En el hogar, en cambio, su actuaci6n resultaba preponde-


rante: casad.as j6venes, su influencia llegaba a ser la de un
poder casi absoluto en su vejez y las matronas disponían los
asuntos familiares, induso de 100 matrimonios, con lo que su
influjo se extendía sobre toda la vida privada de China. Las
jóvenes solteras, desprovistas de toda ind.ependencia, queda-
ban en peor situación, y fue precisamente de ellas de onde
partió el movimiento emancipador.

Su origen debe situarse en el labor educativa de los mi-


sioneros ocidentales; pera solamente después de la Revolu-
ción de 1911 llega a constituirse el feminismo china. Se abre
por la incorporación de la mujer aI movimiento de protesta
y se expresa, por escrito, en tonos francamente decidid06. Ha-
cia 1920 se publicaban ya varias revistas feministas y se había
logrado el acceso a la ensefianza primaria y a las universida-
des nacionales.
A partir de este momento, el gobemo nacionalista fue
legalizando una serie de conquistas dirigidas a consagrar la
plena igualdad civil entre ambos sexos. Y, en definitiva, aI
menos ante la ley, una sociedad de base conjugal sustituye a
la sociedad sobre base patriarcal.

Esta situación, introducida en la práctica más bien en las


grandes ciudades, se completa en un segundo avance produci~
do bajo el régimen actual y consolidado mediante la propaga-
ción de los princípios femenistas por todo el ámbito rural. Las
disposiciones legales simplifican el procedimiento matrimo-
nial y tienden a concebir la sociedad conyugaI como una uni~
dad de acción sobre la igualdad de ambos esposos. La mujer

386 R. I"f. legisl. Brosilia a. 19 n. 74 abr./;un. 1982


se ve entonces solicitada a cambiar definitivamente su esta-
tuto tradicional, en cuanto la nación precisa de su plena cola-
boración, y tod.os los organismos de la nueva China consideran
objetivo primordial la aplicación de las nuevas condiciones.
Así aparecen innovaciones antes insuspechadas: la joven es-
tudiosa que dedica la vida a su carrera, lo mismo que el varón;
la igua1dad de trato entre las mujeres de la família; la sus-
tracción d.e los hijos de la pertenencia de 1m abuelos paternos
etc.
Por lo último, en los recientes municípios populares, la
mujer participa, como el hombre, en la producción (campo,
comedores, talleres de confección). Y, actualmente, aumenta
su participación en actividades científicas (investigación, me-
dicina) míentras es menor el porcentaje de obreras fabriles.
Las diretrices gobernamentales siguen asignándole un papel
destacado y cada afio el Dia de la Mujer exalta su misión a
la vez que presenta los fines más convenientes de su futura
contribución a la sociedad."
Edificante, pois, é o exemplo da China. País milenar, onde as tradi-
ções têm realmente força de lei, e onde, durante séculos, viveu pratica-
mente escravizada, hoje a mulher ali se situa e atua em um plano de
relevo:
"A China contempJrnnea trata de libertar a mulher - o
elo que suporta o peso mais opressivo dOIS hábitos e costumes
obsoletos. Essa libertação, entretanto, não é feita através da
entrega de máquinas de lavar, de cozinhas automatizadas ou
de utensílios eletrodomésticos. Como toda a vida tornou-se
mais simples, o trabalho do lar também foi simplificado e é
menos penoso para a dona de casa: todos os membros da fa-
mília colaboram nos afazere3 domésticos. Mas a base da liber-
tação feminina tem sido alicerçada pela criagão de oportuni-
dades que dão à mulher nova função social, um estatuto que
realmente a iguala ao homem em todos os aspectos da comu-
nidade. Além de gerir sua casa e de dirigir a educação dos fi-
lhos menores, a mulher chinesa está participando diretamen-
te na prod.ução, nas oficinas mecânicas, no& 'servigos sociais,
nas equipes rurais, na administração dos negócios públicos.
Aprende a orientar uma cooperativa, uma comuna popular,
um comitê político, uma fábrica. S'eu reduzido círculo de ati-
vidades ampliou-se, ultrapassou plenamente todas as fron-
teiras da tradição" (166).
Onde, fora dos países comunistas, a mulher talvez tenha conse-
guido maior liberdade, atingindo um status praticamente idêntico ao
do homem, foi na Suécia, em que, até, "homens e mulheres são con-
siderados igualmente livres e responsáveis em sua vida sexual" (1117). A
maioria das suecas trabalha, mas ainda há certa discriminação quanto
(166) POf!OS e Pa{ses - clt.
(167) POVOlI e Paúea - clt.

R. Inf. le9i'l. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 387


aos sexos, para efeitos salariais. Há, todavia, no país, uma campanha
interna visando a conscientizar a todos de que não deve haver diferen-
ça de tratamento entre homens e mulheres. Essa campanha, intensa e
extensa, visa às bases da sociedade, começando pelas crianças:
" ... mais de 55% das mulheres suecas trabalham. Pela
lei, deveriam receber salários iguais aos dos homens, mas ain-
da existe uma diferença de 17%. Por outro lado, elas ainda
estão limitadas aos empregos tradicionalmente femininos (lo-
jas, hospitais, escritórios, indústrias têxteis). O governo desen-
volve uma campanha para abrir novas frentes de trabalho fe-
minino. Esta preocupação está atingindo a escola, onde se
procura acabar com os estereótipos a respeito do papel d.06
sexos. Meninos aprendem a cuidar dos bebês enquanto meni-
nas freqüentam as oficinas mecânicas" (168).
Já falamos da situação da mulher na Rússia antiga.
Vejamos, agora, o que acontece, a respeiro, na URSS, onde se
comprovou que o imperativo categórico da realidade humana forçou o
legislador soviético a recuos, a fim de evitar abusos ideológicos que, na
prática, estavam, não emancipando a mulher, e, sim, aviltando-a, de-
sagregandD a família e desestimulando a sociedade.
Em 1917, vitoriosa a revolução socialista, a situação sofreu uma
guinada de cento e oitenta graus. Obedientes aos postulados marxistas-
leninistas, 0& dirigentes soviéticos procederam a uma revisão integral
da situação, e as mulheres passaram a gozar de completa liberdade,
com seus direitos igualados aos dos homens.
Como sói ocorrer em ocasiões semelhantes, aconteceram exageros.
Negligenciou-se a diferença real dos sexos, desconsiderou-se por isso a
natureza feminina e, malgrado algumas legítimas conquistas, a ver-
dade é que houve abusos de conseqüências desastrosas, especialmente
no tocante ao desprezo pela família (instituição burguesa) e ao abor-
to (a mulher é dona de seu corpo). A reação, necessária, surgiu. Vol-
tou-se ao bom senso. Os imperativos da natureza foram respeltados.
Nova legislação foi elaborada, mais equilibrada, mais humana. O abor-
to e o divórcio foram disciplinados com mais seriedade. Deu-se mais
atenção à estabilidade da família. Hoje, na URSS, a mulher tem um
status elevado, é assistida, respeitada em sua dignidade, é livre, proje-
ta-se social e politicamente, afirma-se, mas sem fugir à sua condição
feminina.
MAURICE CROUZET (1lI 9) focalizou o problema nos seguintes termos:
"Com a Revolução, a família tradicional, baseada na in-
ferioridade feminina, no caráter religioso e indissolúvel do ca-
(168) PO'OOB e PafBes - clt,
(l611) MAURICE, Crouzet - "A Il:poca Conternporll.nea" - In Hl$tórf4 Gerlll d48 CttrlltHç(leB _
Trl'ld, de J. GUNSIBURG e VtCTOR RAMOS - DICusora Européia do Livro - Silo Paulo.
BraeU - 1958.

388 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 obr./;un. 1982


samento e na onipotência paterna, foi destruída pela secula-
rização do casamento e o desaparecimento da onipotência ma-
rital; no tocante às crianças, os direitos de guarda e repre-
sentação, os deveres de manutenção, educação e instrução,
acentuam-se; <surge uma nova concepção nas relações entre
esposos e de parentesco, baseada na igualdade perfeita dos
cônjuges; a legislação do casamento de fato é dispensada de
qualquer registro e adota-se o divórcio por consentimento mú-
tuo ou pelo desejo expresso de um dos cônjuges, bem como a
supressão da distinção entre filhos naturais e filhos legítimos.
Uma lei de 1920 sobre a "proteção à saúde da mulher" pre-
tende suprimir o aborto clandestino, autorizando-o, legalmen-
te, em certas condições. Assim, a mulher e os filhos alf~J.rriam­
se de seu status inferior, enquanto a criação de creches, jar-
dins d.e infância, assim como de múltinlas cantinas de em-
presas e restaurantes sindicais e cooperativas, de lavanderias
industriais etc., aliviam os encargos que pesam sobre a mãe
de família e libertam-na das servidões da vida doméstica, no
intento de realizar a absoluta igualdad.e de sexos inscrita na
lei. Isto permite às mães constituírem um contingente impor-
tante - por vezes majoritário - na indústria, mesmo na
pesada, onde a percentagem atinge 50%, ascender a ofícios
considerados nos outroo países como exclusivamente masculi-
nos (maquinistas de locomotiva, por exemplo) e exercer fun-
ções de direção nos Kolkozes (20 % dos diretores são mulhe-
res) ou nas fábricas, ou ainda nos sovietes, nos seus diferentes
escalões. Principalmente nos países asiáticos, esta libertação
da mulher, "oprimida pelos oprimidos", como dizia Lenine,
foi uma revolução que pôs fim à sua reclusão e ao uso do véu,
abrindo-Ihe a porta das escolas, das universidades, das fábri-
C3IS e da vida -pública. Numerosas medidas, melhorando a si-
tuação da mulher grávida ou da mãe de família, a estabiliza-
ção da sociedade pela aplicação dos planas qüinqüenais que
exigem um recurso, em massa, à mão-de-obra feminina e um
aumento do potencial humano, provocam mesmo a elabora-
ção de uma política natalista e familiar que se manifesta, em
1936, pela proibição do aborto, salvo em casos excepcionais,
bem especificados, e por medid.as tendentes a estabilizar o
casamento, limitando o número e a freqüência dos divórcios
(já não é autorizado o divórcio por desejo apenas de um côn-
juge e as despesas legais aumentaram) instituindo penas se-
veras para o abana.ono de família e a falta de pagamento de
pensão familiar."
Esses informes são ratificados e completados em Povos e Paí-
ses (I70) :
"O Código Civil de 1918 reconhecia como legal e legítima a
união matrimonial consagrada pelo ca:samento civil, abolindo
a necessidade do consentimento paterno para que o matrimô-
(170) Povoa e Países - cit.

R. Inf. legi". Brasílio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982 389


nio fosse válido. Oito anos mais tarde, dando um passo à fren-
te, uma nova lei colocava em igualdade de condições o casa-
mento civil registrado e o matrimônio de fato: o registro civil
continuava sendo a forma legal de efetuar-se o casamento,
mas não era indispensável para que este fosse considerado vá-
lido, com isso deixando de existir qualquer d.iferença possível
entre filhos legítimos e naturais. O divórcio passou também a
ser facilmente obtido, bastando uma simples comunicação por
escrito ao oficial do cartório civil.
EsS€ conjunto de medidas legais foi mal compreendido no
exterior, suscitando na imprensa ocidental extensas divaga-
ções sobre o "amor livre na União Soviética". Na verdade,
porém, o governo soviético tratava apenas de completar a
emancipação jurídica da mulher, dando-lhe acesso aos direi-
tos políticos e econômicc,s do homem."
E ainda:
"O novo Código Civil (1936) institucionalizou uma con-
cepção menos livre e mais estável da família: a orática do
aborto foi novamente abolida (só retomanO.o à legãIidade em
1955), o divórcio tornou-se mais dificil de ser obtido e o Esta-
do ampliou sua ajuda financeira e social à família."
Como se vê, doutrinas e leis não têm força para distorcer a realida-
de das coisas. Evidentemente, houve uma evolução elogiável da situa-
ção da mulher, da Rússia tzarista para a Rússia social·ista. A mulher
integrou-se em sua personalidade, ganhou dignidade, finnou-se e afir-
mou-se. Mas aquilo que é permanente nas aspirações do homem - como
a instituição da família - venceu teorias e invencionic-es e se impôs,
como valor básico, na estrutração so~ial do país.
A adequação da legislação familiar soviética à necessidade da condi-
ção humana faz com que concordemos com VILMA FIGUEIREDO (171)
quando diz que "há limites ideológicos para a emancipação da mulher".
Na Inglaterra e na França, países vanguardeiros da civilização, a
mulher posicionou-se socialmente em destaque, sendo mínimas as limi-
tações ainda a romper.
Curioso, no entanto, é o que acontece na Suíça. Ali, a mulher enten-
de que a sua maior conquista é ser a mulher trad.icional, que não se
mete em poUtica, que deve viver no lar, que julga ter o marido sob
controle .. : "Os homens governam a Suíça, mas nós, mulheres, gover-
namos os homens", assegura a Senhora Hanna Seiler, funcionária de
uma das mais estranhas organizações que hoje existem no país: a "Socie-
dade das Mulheres Suíças contra o direito do voto" (172).
(171) l"IGUElREDO, VUma - "Bonecas e Amél1as" - tese preparllda para a FundaçCLo Naelonal
de Clênclall PoUtlcll.ll, da França - referida por ANY BOURRIER, em entrevlllta com a
autora - O Globo, Rio de Janeiro, de 6-1-82.
(172) Povos e Patses - cit.

390 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


No Brasil, sem muito alarde, a mulher subiu muito. Na teoria e na
prática. No magistério, no comércio, nas indústrias, nas repartições pú-
blicas, nos esportes, nos laboratórioo, nas artes, nas ciências, nas letras,
nos gabinetes, no Parlamento, na magistratura, em todos os setores de
atividade a mulher já está presente, útil, operosa, capaz, afirmando-se
com um valor positivo. Já existem deputadas e senadoras. Já há corpos
femininos na Marinha, na Aeronáutica e nas Polícias civil e militar. Já
há mulheres ocupando cadeiras na Academia Brasileira de Letras. Já
existe o divórcio. E a Constituição e o Código Trabalhista lhes dão, no
que diz respeito ao trabalho, garantias especiais, adequadas à sua na-
tureza.
Enfim, o movimento feminista, pelo menos no que apresentou de
realmente feminino, está quase totalmente vitorioso em todo o mundo
civilizado.
R~onhecidas na mulher as suas amplas potencialidades, poderá
ela, se estimulada e amparada, contribuir efetivamente para o advento
de uma nova civilização, cooperando com o homem neSS€ mister.
Urge, porém, que se evitem distorções, a que podem conduzir os exa-
geros, ou seja, certas pretensões descabidas que, rotuladas de feministas,
nada têm de femininas, por antinaturais e, como tais, ind.esejáveis.
Em n05SO anedotário político há um fato que aqui merece ser lem-
brado, pois se encaixa bem em nosso tema. Cuida-se do seguinte: presi-
dia a Câmara dos Deputados o famoso político mineiro Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada, quando, em Eessão com grande freqüência, discur-
sava, em plenário, uma deputada - a única, na época - pregando jus-
tamente a necessidade do reconhecimento dos direitos da mulher, então
muito limitados.
Por ter talento, mas, sobretudo, por ser mulher, e a única, no Par-
lamento, a deputada era ouvida com atenção e respeito, no maior si-
lêncio.
Entusiasmada, a deputada foi-se empolgando cada vez mais com os
aplausos, até que, exagerando as coisas, asseverou:
- Pois é, senhor Presidente e Senhores De~':>utados, é pre·
ciso reconhecer que o homem e a mulher são absolutamente
iguais ...
Aí, então, teria entrado em cena o Presidente Antônio Carlos, obtem-
perando:
- Vossa Excelência tem certeza de que eles são absoluta-
mente iguais?
E a deputada, vacilante e encabulada:
- Existem pequenas diferenças superficiais ...

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 391


Ao que o manhQS() p:>lítico teria respondido, maliciosamente:
- Pois vivam essas pequenas diferenças superficiais...
O plenário teria gozado o incidente, que talvez nem seja senão uma
invenção a mais para enriquecer a tradição por vezes pitoresca que en-
volve a biografia política do grande brasileiro, pois talvez naquele tem}X>,
como hoje, não pudesse haver diálogo, no plenário, entre o parlamentar
e o presidente da sessão.
O evento vale, entretanto, como um chamamento à realida.de. :s:
necessário que o movimento feminista seja um movimento autentica-
mente feminino, isto é, de afirmação plena da mulher como mulher.
Porque, infelizmente, em toda a parte, o Brasil incluído, esse movimen-
to tem extrapolado de seus legítimos objetivos, buscando para a mulher
certas conquistas que longe estariam de valorizá-la.
Não há negar que o homem é o homem e a mulher é a mulher. Nada
de unisex. Nada de reconhecimento do "terceiro sexo". Homossexualismo
e lesbianismo são casos de clínica médica. Não é só. Mulheres jogando
box, levantand.o barras de ferro, lutando capoeira, jogando futebol, em
armas nos campos de batalha, tentando musculaturas de Tarzan, repu-
diando o lar, esquecendo os filhos, masculinizando-se, são mulheres que
estão, não se afirmando, mas se negando, porque fugindo à sua condição
feminina. Deixam, com essas práticas, de ser mulheres, mas não viram
homem. Transformam-se numa coisa ridícula e d.esprezível. FREDERICO
SOPENA (1.:1) denunciou, com inteligência e clarividência, o perigo desses
desvios:
"EI peligro fundamental en este crecimiento de la persona-
lidad de Ia mujer está en lo que pueda suponer de masculiní-
zación: no se trata de pérdida sino de ganancia de femininidad
cuando se habla netamente de "crecimiento" de la personalidad
de la mujer. La crisis entre padres e hijos es mayor con la in-
tervención de las hijas. En esas rebeldias juveniles, pero tam-
bién en el conformismo de la masa, se puede a~reciar el doble
peligro que afecta rud.amente a las relaciones entre los sexos y
que tiene su índice en las perversiones como "epidemia": la
masculinización de la mujer y el afeminamiento deI varon."
Por outro Lado, ALEXIS CARREL (174), dentro de um pOnto de vista
estritamente científico, explica: -
"A mulher é, na realidade, profundamente diversa do ho-
mem. Cad.a célula do seu corpo tem o sinal do seu sexo. O mes-
mo acontece com os seus sistemas orgânicos, e sobretudo com o
sistema nervoso. As leis fisiológicas são tão inexoráveis como as
do mundo sideral, e é impossível substitui-las pelos desejos hu-
(173) SOPDA, Frederico - ob. clt.
(174) OARREL, A1exIB - O H;;mtem. eue desconhecido - Trad. de ADOLP'O CASAIS MONTBlRQ
- Porto, Portugal - Editora Educaç'o Nacional - 1937.

392 R. lnf. legislo Brasília a. 19 n. 74 abr./jlln. 1982


manos; temos de as aceitar tais quais são. As mulheres devem
desenvolver as suas aptidões no sentido da sua natureza pró-
pria, sem procurar imitar os homens. O seu papel no progresso
da civilização é mais elevado do que o dos homens, e é preciso
que não abandonem as suas funções específicas."
É preciso, pois, não embaralhar valores, nem contrariar a natureza,
nem negar diferenciações entre os sexos. É necessário, sobretudo, não
confundir liberdade com licenciosidade, direitos com abusos.
O homem não pode ter o direito d.e deixar de ser homem, nem a
mulher pode ter o direito de deixar de ser mulher.
Ser homem e ser mulher são condições existenciais irretratáveis. O
estado feminino é um, o masculino é outro. Que haja igualdade, no que
tange às oportunidades para que homem e mulher se firmem e se afir-
mem como valores humanos. Não se busaue, nem no lar, nem na socie-
dade, disposições hierárquicas entre eles~ A mulher pode, socialmente,
chegar sempre até onde o homem chegou. Na política, nas artes, nas
ciências, nas letras, na administração. Só o que não pode - e não deve
- é renunciar à sua condição feminina, pois, então, decai de sua digni-
dade, se degrada, se ínferioriza.
Foi pelo trabalho que a mulher iniciou e é pelo trabalho que ela
está consolidand.o o seu processo de emancipação. Preparada, ela soube
lutar e vencer. Hoje, a vemos em todos os setores de atividade, em igual-
dade com o homem.
Essas vitórias que ela alcançou não devem, no entanto, desviá-la de
sua outra missão, natural e mais alta, que não é, somente, procriadora,
mas, sobretudo, cr·iadora: a sua missão de esposa e de mãe. Que ho- °
mem vale, quase sempre, pela mulher que tem, ou pela mãe que o criou.
Já Abrahão Lincoln reconhecia e proclamava que tudo que foi deveu a
sua madrasta. E Nietzsche, que tanto desprezou as mulheres, teve em
sua irmã um anjo da guarda extraordinário. ISSD, para só citar dois
exemplos.
Certamente, os tempos antigos não mais voltarão. O triunfo da mu-
lher é definitivo. Mas urge, que, nessa sua escalada social, seja ela cer-
cada de garantias e cautelas que evitem desvios e distorções que possam
comprometer os seus êxitos. É ainda SOPENA (17;;) quem adverte:
"Es unbien, indudablemente, que la mujer adquiera con-
ciencia de si misma e independencia a través deI trabajo: para
la mujer soltera es, primero. una grau defesa en la libertad de
la elección amorosa, una superación deI matrimonio como "sa~
lida", un arrinconamiento de la resentida situación de la "801-
rerona", si bíen es no menos indudable que algo tan típicamen-
te femenino, mimado hasta la exageración !lar la burguesía,
como la cultura deI hogar, corre un muy grave peligro, seiiala-
do por psiquiat.ras y pedagogos aI referirse especialmente a la
educación de los hijos."
(175) SOPERA, Frederico - ob. clt.

R. Inf. 1.9it1. Bra.í1io o. 19 n. 74 obr./;un. 1982 393


E quem aconselha;
"La apertura de nuevas carreras típicas de la mujer, el des-
censo de la jornada laboral, la misma automación pueden y
deben ser dirigidas hacia una defensa contra la masculiniza-
ción de la mujer."

XXII - O eterno retorno

Deixamos para o fim falar sobre a mulher nos Estados Unidos, país
onde ela atingiu, praticamente, sua plena emancipação, não apenas no
lar mas, também, no contexto social.
De vitória em vitória, a mulher estadunidense foi alcançando tudo
que queria, e, agora - quem sabe nostálgica de sua condição natural-
busca um retorno a essa condição, talvez comprometida com os triunfos
ohtidos.
Realmente, o fenômeno que no momento ocorre nos Estados Unidos
d.a América é edificante e mostra a força invencível da natureza.
Sem prejuízo c.e suas conquistas, a mulher norte-americana acabou
por entender que, melhor que tudo, seria conquistar-se a si própria,
c~mo mulher.

E o movimento feminista, na grande repúhlica setentrional, hoje


opera em sentido bem diferente do que o fazia, pois ultrapassou, em sua
fogosidade, a5 raias do bom senso, e, agora, almeja um ponto de equi-
líbrio.
Esse fenômeno foi bem exposto pela jornalista Sonia Nolasco Fer-
reira, que, a propósito, entrevistou, para O Globo (l7U), a grande líder
feminista daquele país, Betty Fried.an.
Narra a correspondente de O GlODo em New York:
"No início dos anos 60, Betty Friedan publicava um livro
que se tornaria um dos pontos de referência para o movimento
feminista, no mundo inteiro: A Mística Feminina. Ela criticava
a falsa realização da mulher confinada ao lar e chegava a dizer
que ser dona-de-casa era como "estar num campo de concentra-
ção confortável". Fried.an entra no ano novo de cabeça nova-
em Seccmd Stage (Segunda Etapa.), publicado recentemente,
admite que as feministas erram ao não levar em conta as neces-
sidades emocionais das mulheres, carreira apenas não realiza
ninguém e não vale a pena insistir na confrontação entre os
sexos."
Em entrevista coletiva, a que esteve presente a jornalista brasileira,
Betty Friedan fez comentários sensatos e judiciosos, que vale trans-
crever.
(176) PRlEDAN, Betty - in O Globo, Rio de Janeiro, ediçf.o de 3 de jl'.nelro de 1982.

394 R. Int. legi,l. Bro,ilio o. 19 n. 74 obr./jun. 1982


Assim, respondendo à pergunta como, tendo denunciado a "mística
da feminilidade", agora procurava uma nova colocação do problema fe-
minista, em termos de "conciliação" do homem e da mulher, declarou:
"Certo. Mas o que chamei de "mística da feminilidade" em
1963 - a mulher limitada aos confortoo do lar, marido, filhos,
sem outras opções - agora chamo de "mística da feminista",
porque a mulher mudou de valores, mas não se sente realizada.
Ela, tendo suas satisfações emocionais substituídas par valores
materiais de profissão e independência financeira, e-stá negan~
do uma parte de sua personalidade, da mesma forma que a mu-
lher da década de 50. Ela está numa armadilha, também. Por
trás dessa liberação, existe uma amargura silenciosa. crescente,
uma espécie de acusação ao movimento feminista, como se dis-
sessem: "Vocês nos sobrecarregaram com essas metas difíceis.
E agora, o que fazemos com nossas necessidades emocionais?"
A mulher, como se vê, falou mais alto do que a feminista. É que
ninguém transgride impunemente os desígnios da natureza ...
Betty Friedan aborda, ainda, o problema do trabalho e da inde-
pendência financeira da mulher, também mãe e esposa. E, em resposta
ao que lhe foi perguntado, disse:
"Da forma como as coisas foram estruturadas, as mulheres
descobriram que não podem tudo. Elas estão tentando dirigir a
casa, criar filhos, pelos mesmos moldes que foram estabelecidos
por mulheres de outras gerações, que encontravam poder e
status integrais desempenhando papéis domésticos. A isso eu
chamo de "machismo da fêmea". Ao mesmo temoo, elas estão
tentando preencher funções externas, em carreu-as complica-
das, seguindo modelos de realização profissional estabelecidos
por homens que sempre tiveram dentro de casa uma esposa
para cuidar de todos os detalhes domésticos da vida deles. Não
pode dar certo. Enquanto isso, as feministas radicais decidiram
que a mulher deve realizar-se sozinha na vida, o homem é o
grande vilão opressor, o inimigo. Se você casa bem, o homem
não é o inimigo."
Ela tocou no ponto crucial da questão: a mania das feministas, de
equacionarem o problema da mulher em termos de competição com o
homem. Ora, homem e mulher não foram feitos para competir, mas
para se completarem. Por isso, são diferentes. Querer vê-los iguais é pro-
por luta, mas isso é falso, pois foge à realidade do homem e da mulher.
Betty Friedan, ciente dessa verdad.e, reconhece ter sido uma das
responsáveis pelo "impasse" a que se chegou, relativamente à questão
feminista. Confessando embora a sua culpa, ela diz, com inteligência:
"Desde que a mulher sempre se definiu em termos de casa-
mento e família, era preciso ignorar essa parte. Denunciar sua

R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982 395


limitação. Mas não carregar a idéia a ponto de criar uma ideo-
logia separatista, "abaixo o homem". Isso assustou a maioria
das mulheres. Nós tivemos muitos erros na nrimeira fase do
movimento, mas é preciso notar qu P foi d.Herente. No início,
nossos objetivos eram de particioação, ooder e voz, no centro
da luta. Havia um processo polítíco, as profissões, o mundo dos
negócios, tudo isso se abria para as mulheres. Em seguida,
fomos desviadas de nossos sonhos pela política sexual, que eti-
quetou o homem como inimigo e parecia repudiar os valores
traeJ.icionais da família.
Em relação à "mística da feminilidade", foi criada uma po-
larização entre as feministas e as mulheres que ainda encontra-
vam sua identidade na família. A própria forma como lutamos
pelo aborto, contra o estupro, ou contra a pornografia, parecia
expressar um ódio cego aos homens e uma falta de reverência
pela maternidade que ameaçava es.sas mulheres voltadas para
o lar."
Batendo no peito a "mea culpa", Betty Friedan indica, a seguir, os
rumos a trilhar, e o faz com clareza, objetividade, equilíbrio e sensatez,
tentando caminhos únicos a serem seguidos pelo homem e a mulher, não
competindo, porém solidários, visando a um objetivo comum:
°
"Antes de mais nada, precisamcs incluir homem na luta
e trabalharmos com ele, não contra ele. O movimento feminista
com as mulheres sozinhas já foi o mais longe que podia. Agora,
precisamos sair desse confinamento dos papéis sexuais e nos
associarmos aos homens. Fugir das armaeJ.ilhas do poder mas-
culino mas, ao mesmo tem!>Q, transcendendo a polarização en-
tre feminismo e família. Precisamos compreender os limites do
poder feminino como o poder de um gru!X> de interesse defini-
do e nos apropriarmos das possibilidad.es de gerar uma nova
forma de poder. A segunda etapa não tem uma agenda fixa. É
mais um processo que revalorizará qualidades denegridas pelas
feministas, tais como cuidado com os filhos, partilhad.o por ho-
mens liberados de preconceitos. Precisamos evoluir numa har-
monia de relação entre os sexos para o mundo da vida pública.
Ao mesmo tempo, precisamos entender que a família não é ape~
nas um vademecum dos reacionários."
Betty Friedan, líder feminista dos anos 60, é, agora, líder feminina
dos anos 80. Sua palavra, sábia e prudente, lúcida e equilibrada, deve
ser considerada uma palavra de ordem, a ser seguida por todas as mu-
lheres.
A emancipação da mulher acabou. Mas que a sua libertação não se
transforme em outra forma, talvez ainda pior, de escravidão. A mulher
jamais sem realmente livre fugindo à sua- condição de mulher. É como
mulher que ela está vencendo, como mulher que terá o seu mais alto
posicionamento social.

396 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 11. 74 abr./jlllt. 1982


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(legislação; pareceres; comentários). Histórico da Lei (tramitação legis-
lativa) .

"CO;'\JSTITUIÇÃO DA REPúBLICA FEDERATIVA DO BRASIL"


(7\1 edição - março de 1982) _. . . . . . . . . . . . . . .. 200,00

Constituição do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, COm a redação


dada pela Emenda Constitucional nl? 1, de 17-10-69, e as alterações
feitas pelas Emendas Constitucionais n 9s 2172 a 21/81.
Emenda Constitucional n'! 22, de 1982, em encarte.
~finucíoso índice temático.

398 R. Inf. legisl. Brasília a. 19 n. 74 abr./jun. 1982


Cr$
"CÓDIGO PENAL" (edição 1982) . 400,00
- Decreto..Lei n9 2.848, de 7-12-40 - texto atualizado e ano-
tado
- lndiee temático

"PROCESSO LEGISLATIVO" (3~ edição atualizada (' ampliada - 1982) 350,00


Iniciativa das Leis. Instrução, discussão e votação das pro..
posições na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Sam;ão, promlllgaçãoe veto.
Emendas à Constituição. Leis Complementares. Leis Ordi.
nárias. Leis Delegadas. Decretos.. Lei~. Decretos Legislativos.
Resoluções.
Normas constitucionais e regimentais. Questões de ordem,
decisões da Presidência, Pan'Cl'res das Comissões Técnicas
e pronunciamentos parlamentares.
Competência privativa do Senado Federal.
- Requerimentos que podem ser apresentados no Senado Fe-
deral.
- Comissão Parlamentar Mista de Inquérito.
Impedimento de Parlamentar.
:\'ova designaç'ão do número de ordem das legíslaturas (his-
tórico do Decreto Legislativo n9 79, de 1979).

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