O Tempo Saquarema - Ilmar Matos

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Àtário
Coleção Estudos Históricos
'001

Coleção Estudos Históricos

Através desta nova coleção, visa-se a dar maior limar Rohloffde Mattos
divulgação
às mais recentes pesquisas realizadas
entre nós, nos domí-
nios de Clio, bem como, através de
cuidadosas traduções,
pôr ao alcance de um maior público ledor as mais
tivas produções da historiografia mundial.
significa-
No primeiro ca-
O TEMPO SAQUAREMA
so, játemos selecionadas várias teses universitárias, que
vi-
nham circulando em edições mimeografadas; no
segundo,
preparam-se traduções de autores como P. Mantoux
e Mo-
reno Fraginals. Entre uns e outros, isto entre Prêmio Literário Nacional, 1986, Gênero História
é, a historio-
grafia brasileira e a estrangeira, a coleção também Instituto Nacional do Livro
procura-
rá divulgar trabalhos de estrangeiros sobre
o Brasil, isto é
de brasilianistas bem como estudos brasileiros mais
,

abrangentes, que expressem a nossa visão de mundo.


Em
outras etapas, projeta-se coletâneas de textos para
o ensino
superior. A metodologia da história deverá ser
devidamente
contemplada. Como se vê, o projeto é ambicioso, e se
desti-
na não apenas aos aprendizes e mestres do ofício de
histo-
riador, mas ao público cultivado em geral,
que cada vez
mais vai sentindo a necessidade e importância dos
estudos
históricos. Nem poderia ser de outra forma:
conhecer o
passado é a única maneira de nos libertarmos dele, isto
é,
destruir os seus mitos.

Este livro foi editado em regime de co-edição com o MinC/PRÓ-


MEMÓRIA/Instituto Nacional do Livro e passará a integrar os
acervos de bibliotecas públicas, estaduais e municipais, que rece-
bem da PRÓ-MEM ÓRI A/INL assistência técnica e bibliográfica
por efeito de convênios por ela firmados com Prefeituras Muni-
cipais e Secretaria de Estado em todo o Território Nacional.
I
P.iiu pu retia considerável dos homens que

habitavam o Império do Brasil, e também


paia umas poucas mulheres, os anos que se
'K^uiram á abdicação do primeiro imperador
l< uam anos vividos intensamente. No dizer de
um « nntemporâneo, foram anos de ação, de
rniçrto e, por fim, de transação. Foram tam-
Iwm unos de levantes, revoltas, rebeliões e
insurreições negras; de sonhos frustrados e de
intenções transformadas em ações vitoriosas.
Foram, sem dúvida, anos emocionantes,
e mbora nem sempre disto nos apercebamos,
liste trabalho procura captar, ao menos em
parte, as trajetórias daqueles que viveram
esse tempo singular —
o Tempo Saquarema.
Todavia, a marca de distinção deste tra-
balho reside, antes de tudo, nos objetivos
principais que o norteiam: compreender os
processos de construção do Estado imperial
e de constituição da classe senhorial, nos ter-
mos de uma restauração e de uma expansão,
e demonstrar a relação necessária, mas não
natural, entre ambos os processos, relação
propiciada pela intervenção consciente e deli-

berada de determinada força social, a qual se


forja a si própriacomo dirigente no movi-
mento dessa intervenção: os Saquaremas.
Se podemos entender o Tempo Saquarema
como uma singularidade é porque, de um
lado, ele se apresenta como produto daqueles
processos, isto é, como resultado das inten-
ções e ações dos Saquaremas, porque a dire-
ção que eles procuravam exercer, e efetiva-
mente exerceram, impunha que os Saqua-
remas se constituíssem também em “produ-
tores” ou “controladores” do tempo. E, de
outro, porque ele resulta das questões que
foram selecionadas e traduzidas sob a forma
de objetivos do trabalho, isto é, as questões
referentes ao Estado imperial à classe senho- ,

rial e aos dirigentes saquaremas como cons-

trução historicamente determinada, e não


como noções e conceitos previamente dados.
Tempo emocionante, e também intrigante!
Falamos dos Saquaremas; os Saquaremas nos
fa/.rm falar de nós —
revelando e sublinhando
0 que permanece no fluxo que caracteriza a
1 Estória.
ESTUDOS HISTÓRICOS

títulos publicados

(1777-1808), Fernando
Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial
a
A. Novais. 4. edição

As Ferrovias de São Paulo ( 1870-1940 ), Flávio A. M. de Saes


-
* if

Emâni Silva Bruno (3 volumes). Pt ,VC


' •

História e Tradições da Cidade de S5o Paulo,


3* edição
Condição Feminina no Rio de Janeiro no Século X/X,
Míriam Moreira Leite
A
Metamorfoses da Riqueza (São Paulo 1845-1895 ), Zélia Maria
,
Cardoso de Mello
1 ;
rj r j /
História da Guerra do Peloponeso, Tucídides

Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada ,


Iraci Galvão Salles
O TEMPO SAQUAREMA
Vieira e a Visão Trágica do Barroco , Luís Palacin

A Conquista da Terra no Universo da Pobreza ,


Luiza Rios Ricci Volpato

[ %
ILMAR ROHLOFF DE MATTOS
/'O*

O TEMPO SAQUAREMA

Prêmio Literário Nacional, 1986, Gênero História


Instituto Nacional do Livro, MinC

BSCSH/UFRGS
EDITORA HUCITEC
Com o apoio técnico e financeiro do
MinC/PRÓ-MEMÓRIA
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
São Paulo, 1987
limar Rohloff de Multo». Direitos de publicação
(g Direitos autorais, 1987, de “Hucitec” Ltda.,
reservados pela Editora de Humanismo, Ciência o Tecnologia
Rua Comendador Eduardo Sarai», 344 • 04602 São Paulo, Brasil. Telefone:
(011) 61-6319.

Capa: Luís Diaz (projeto); Estúdio Hucitec (arte).

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mattos, limar Rohloff de, 1944-


M391t O tempo Saquarema / limar Rohloff de Mattos. — São Paulo :

HUCITEC ;
[Brasília, DF] INL, 1987.
:

(Estudos históricos)

Bibliografia.
ISBN 85-271-0034-7
Originalmente apresentada como tese do autor (doutoramento
— Universidade de São Paulo).

1. - Condições econômicas - Império, 1822-1889 2.


Brasil
Brasil Condições sociais - Império, 1822-1889 3. Brasil - História
-

- Império, 1822-1889 4. Brasil - Política e governo - 1822-1889


I Instituto Nacional do Livro (Brasil). II. Título. III. Série.
CDD: 981.04
320.98104 :

330.98104 :

CCF/CBL/SP-87-2057 CDU:981“19”

índices para catálogo sistemático:

1 Império
.
Brasil Condições econômicas 330.98104
: :

2. Império Brasil Condições sociais 981.04


: :

3 Império, 1822-1889
.
Brasil História 981.04
: :
I V
4 Império, 1822-1889 Brasil Política 320.98104
: :
.
Para Mareia Rodrigo e João,
,
5 Saquaremas
. Brasil : História 981.04
:

porque com a alegria


tecem um tempo diferente .

Para Selma,
Foi feito o depósito legal.
por ser a vida presente
e o presente da vida.

Jfs 1817
NOTA DE EDIÇÃO

Em sua versão original, O Tempo Saquarema foi apresentado como


tese de doutoramento ao Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
em agosto de 1985, perante banca examinadora constituída pelos
professores doutores Francisco José Calazans Falcon, Margarida de
Souza Neves, Suely Robles Reis de Queiroz, Fernando Antônio No-
vais e Eduardo d’01iveira França.
Em 1986, recebeu o Prêmio Literário Nacional — Gênero Histó-

ria, na categoria de obras inéditas, do


Instituto Nacional do Livro

(Ministério da Cultura), tendo sido a Comissão Julgadora formada


pelos professores doutores Francisco Iglésias, José
Murilo de Carva-
lho e Déa Ribeiro Fenelon.

IX
SUMÁRIO

NOTA DE EDIÇÃO IX

APRESENTAÇÃO 1

I / O IMPÉRIO DO BRASIL 9

1. A moeda colonial 18
2. A região de agricultura mercantil-escravista 33
3* A moeda colonial em restauração 80

II / LUZIAS E SAQUAREMAS: LIBERDADES E


HIERARQUIAS 103
1. Um império e três mundos 109
2. A direção saquarema 129

III / A TEIA DE PENÉLOPE 193


1 . Os olhos do soberano 193
2, A restauração limitada 218
3* A formação do povo 251

IV / CONCLUSÃO 281

BIBLIOGRAFIA 289
APRESENTAÇÃO

Para uma parcela considerável dos homens que habitavam o Império


do Brasil, e também para umas poucas mulheres, os anos que se
seguiram à abdicação do primeiro imperador foram anos vividos
intensamente.
No Parlamento, nas casas, nos pasquins e até mesmo nas ruas
e praças públicas, aqueles que pretendiam dirigir os destinos de
uma sociedade que julgava ter completado sua emancipação da
tutela metropolitana, expunham suas idéias e programas, procura-
vam viver seus sonhos e utopias, expressavam seus temores e angus-
tias, Servindo- se de imagens e conceitos cunhados em países distan-
tes, buscavam referências para a compreensão do quadro em que se
moviam, assim como procuravam ser semelhantes ás nações que se
apresentavam como portadoras de uma civilização, Áo lado dos que
pretendiam dirigir, e até mesmo por vezes dos demais que suporta-
vam o peso de uma dominação, não se envergonhavam de recorrer
à força que insistiam em monopolizar como recurso para restaurar
uma ordem que entendiam como justa, mas que insistia em lhes
escapar.
Em muitas ocasiões, muitos daqueles homens que formavam o
que era visto como a “boa sociedade” sentiram-se ultrajados em sua
honra, como resultado da política britânica de repressão ao tráfico
negreiro intercontinental, que se manifestava quer por meio de notas
e de pressões diplomáticas, quer através dos navios de guerra que
invadiam as águas continentais do Império,

1
6

Para quase todos, aqueles foram tempos de inquietação e temor. efetivamente exerceram, impunha que os Saquaremas se consti-
Nas cidades, a agitação da “malta” não cessara de todo, embora já tuíssem também em “produtores” ou “controladores” do tempo.
não contasse com a ajuda indireta dos batalhões mereenários. No De outro lado, a singularidade deste Tempo Saquarema resulta
meio rural, e mais particularmente por aquelas áreas por onde se também do caminho que elegemos, das questões que selecionamos
espalhavam os cafezais que enriqueciam plantadores, comissários e e traduzimos sob a forma de objetivos, isto é, as questões referen-
traficantes negreiros, intensificaram-se as lutas pela posse da terra. tes ao Estado imperial, à classe senhorial e aos dirigentes saquare-
Nos dois ambientes, as fugas e insurreições dos escravos alimentavam mas como uma construção historicamente determinada, e não como
o pânico entre a população “branca”, erigindo as figuras de um conceitos e noções previamente dados. E, na verdade, neste ponto
Manuel Congo e de uma Luísa Mahin em símbolos de uma camada não fazemos senão repetir lições há muito aprendidas, tão simples
que, desde então, passou a ser considerada “inimigo inconciliável”* quanto fundamentais: a de que não podemos modificar o passado
Os anos que se seguiram à Abdicação foram, no dizer de um mas podemos modificar o conhecimento que dele possuímos a par-
contemporâneo, anos de açao, de reação e, por fim, de transação. tir de interrogações diversas, e a de que um trabalho de tese é

Foram também anos de levantes, revoltas, rebeliões e insurreições. menos um tema em busca de um autor, e sim uma ou mais ques-
De sonhos frustrados e de intenções transformadas em ações vitorio* tões requerendo soluções.
sas. Foram, sem dúvida, anos emocionantes para aqueles que viviam Nestes termos, e por estarem referidos à idéia de construção, os
no Império do Brasil. conceitos de Estado imperial e classe senhorial apresentam-se inti-
Todavia, disto nos apercebemos, E, em que pesem
nem sempre mamente articulados e postos em relação entre si pela intermedia-

nossas intenções, este trabalho reproduzirá, por certo, a tendência ção do conceito de dirigentes saquaremas. Ao mesmo tempo, sofrem
prevalecente em inúmeros estudos históricos, não conseguindo captar um “deslocamento” ou “ampliação” as significações mais comuns
as emoções daqueles que viveram esse tempo emocionante: 0 Tempo que ambos costumam encerrar, quer no que se refere ao caso par-
Saquarema .
ticular da sociedade brasileira, quer no que diz respeito aos seus

Mas não se distingue apenas por intenções não com-


este trabalho conteúdos mais gerais e abstratos.
pletamente concretizadas. Sua principal marca de distinção reside, Assim, quando operamos com o conceito de Estado imperial não
sem dúvida, nos dois objetivos principais que o norteiam. estamos considerando nem única nem exclusivamente os aparelhos
de construção do de coerção possibilitadores e garantidores de uma dominação, e
f) O primeiro deles é compreender os processos
de constituição da classe senhorial, nos termos de sim operando com um conceito de Estado que tem como um dos
Estado imperial e
elementos fundamentais o fato de ser o locus dos dirigentes saqua-
uma restauração e de uma expansao^ 0 segundo consiste na demons*
remas, isto é, daqueles que por meio de uma ação estatal exercem
tração da relação necessária, embora não natural, entre ambos os
processos, relação propiciada pela intervenção consciente e deliberada
uma direção intelectual e moral. 1 Ora, se quando assim procede-
uma determinada força social, a qual se forja a si própria como mos o Estado deixa de ser entendido unicamente como um apare-
de
intervenção: os Saquaremas lho de dominação, também não deixamos de “deslocar” ou “am-
dirigente no movimento dessa .

pliar” o conceito de dirigentes (propriamente falando, de dirigen-


Ora, a enunciação desses objetivos nos conduz a algumas consi-
tes saquaremas), os quais não mais se restringem aos “empregados
derações.
públicos” encarregados da administração do Estado nos seus dife-
Assim, o que denominamos Tempo Saquarema não deve ser to-
rentes níveis. Por dirigentes saquaremas estamos entendendo um
mado como o período de tempo que se estende, em linhas gerais,
senado- —
4 conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial
dos últimos anos do período regencial até o denominado renascer
res, magistrados, ministros e conselheiros de Estado, bispos, entre
liberal” dos anos sessenta, período esse que conteria aqueles pro-
cessos, de tal forma que este trabalho deveria narrar os eventos
outros —
quanto os proprietários rurais localizados nas mais diver-
sas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas que orien-
relacionados a eles e, por definição, contidos naquele intervalo.
Pelo contrário, se este período de tampo possui uma singulari-
dade é porque ele se apresenta, em primeiro lugar, como um pro- 1 Cf. Àntonio Gramsci —'

“À formação dos intelectuais", in Os intelectuais


duto daqueles processos, isto é, como um resultado e condição da e a organização da cultura. Rio de Janeiro, 1969: e CiiTÍstine Bu ci glilckânuuit)
ação saquarema, porque a direção que eles procuravam exercer, e — Gramsci et Vétat. Paris, 1978.

2 3
nexos entre Vida e História por meio de uma Educação em Histó-
tam suas ações pelos parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais,
ria? quanto assinalar a gratidão por nossos alunos, interlocutores
além dos professores, médicos, jornalistas, literatos e demais agen-
tes “não públicos” — um
conjunto unificado tanto pela adesão aos insubstituíveis e construtores apaixonados também desta Aula.
Anotemos, agora, que da primeira parte deste texto emerge o
princípios de Ordem e Civilização quanto pela ação visando a sua
Império cio Brasü^ por meio de um jogo de semelhanças e diferen-
difusão.
desconti-
ças, complementaridades e contradições, continuidades e
De outro lado, quando operamos com o conceito de classe se-
nuidades, e também de inversões. Nela procuramos demonstrar como
nhorial estamos operando com uma categoria histórica, e não com
o lugar destacado e único ocupado pela cidade do Rio de Janeiro
uma mera classificação que leva em consideração o lugar ocupado
a Corte; a formação das regiões e a preponderância da
região
por um conjunto de indivíduos no mundo da produção e a relação
de agricultura mercantil-escravista; o papel desempenhado pela
Co-
que mantêm com uma outra classe fundamental. Estamos conside-
roa no momento de restauração da “moedà colonial”; e a consti-
rando, antes de mais nada, uma trajetória assinalada por inúmeras
tuição dos monopólios, a fusão dos monopolizadores e a transforma-
lutas, trajetória essa à qual não é estranha a direção saquarema.
Assim, a natureza da classe e seus elementos de coesão —
sua iden- ção do plantador escravista em classe senhorial resultavam tanto

tidade, em suma —
aparecem como resultados de experiências co- do fundo histórico constituído por uma colonização de exploração
muns vividas por determinados homens, experiências essas que lhes na Idade Moderna quanto da restauração dos nexos coloniais, sob
a égide do capitalismo, em meados do século
passado.
possibilitam sentir e identificar seus interesses como algo que lhes é
como referência as hierarquias que dis-
comum, e desta forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos Na segunda parte, tendo
“Império de mundos” e tomando em^çonsidera-
interesses são diferentes e mesmo antagônicos aos seus, conforme tinguiam este três
liberdade, pro-
nos ensina E. P. Thompson
2 . ção as diferentes significações emprestada*^ idéia de
curamos demonstrar como se construiu a direção saquarema a
partir
Neste ponto, uma última consideração se impõe, a respeito do
do pequeno núcleo de políticos da província fluminense que tinham
modo como se organiza a exposição deste trabalho.
como elementos norteadores os princípios de Ordem e Civilização;
A adoção de um procedimento construtivista não se esgota na
como os Saquaremas erigiram a Coroa em Partido, reservando-lhe
recuperação e restauração dos conceitos de Estado, Classe social e
Dirigentes como categorias históricas. Ela transborda para a expo- um monopólio particular: o monopólio da responsabilidade.
sição sobre o Tempo Saquarema, fazendo do texto uma espécie de A terceir£_parie se propõe a demonstrar a ação dos dirigentes
Aula animada pelo objetivo da construção do conhecimento histó- saquaremas, caracterizando os traços que a distinguiram e os entra-
rico. ves que enfrentou, de tal modo que a tarefa que empreendiam
Como numa aula, a discussão das questões teóricas e da produ- impunha um permanente recomeçar, como se os Saquaremas teces-
ção historiográfica, assim como a avaliação e análise da documenta- sem uma nova Teia de Penélope. No item inicial, a análise da
ção, não aparecem em parte destacada e especial do texto, mas nos Administração revela tanto a descaracterização da política quanto
momentos em que o desenvolvimento do assunto as requer. Ora, se os mecanismos utilizados para efetivar uma centralização, ao mesmo
tal proceder talvez sirva para sublinhar a importância delas para tempo que sublinha a ampliação do conceito de agentes administra-
uma compreensão, ele poderá contribuir também para esmaecer o tivos. No segundo item, procura-se compreender como a ação polí-

brilho que tais discussões geralmente possuem, uma vez que, ine- tica desenvolvida com a finalidade de alcançar uma restauração im-

vitavelmente, o virar da página do trabalho corresponderá ao final punha a estreita articulação entre as políticas de mão-de-obrà e de
de uma discussão determinado pelo término da aula. terras, destacando a necessidade de “poupar a escravidão” e o trá-

Por outro lado, assumir a postura de expor como uma Aula pos- fico interno de escravos. No terceiro item, por fim, o estudo da
sibilita tanto reafirmar em cada uma das linhas do texto nossa política de instrução pública no “laboratório saquarema” tem por
sempre renovada decisão de ser professor, buscando restaurar os

2 E. P. Thompson — “La sociedad inglesa dei siglo XVIII: lucha de clases 3 B. C. Brandão, I. R. de Mattos, M. A. Pamplona e M. A. R. Carvalho —
sin clases?”, in Tradición, revuelta y conciencia de clase. Trad. espanhola. Bar- “Para uma educação em História (o lugar da História no processo pedagógico)”.
celona, 1979. Boletim Contacto-Humanidades. Rio de Janeiro, 1980, n.° 33.

5
4
finalidade a compreensão de um dos principais meios de que se Edmilson Martins Rodrigues, Marcelo Gantus Jasmin, Maria da
serviram os saquaremas para a expansão da classe.
Graça Salgado, Marcos Waldemar de Freitas Reis e Rachel Soihet;
a Anair de Oliveira
a Tomoko Paganelli, por ter sempre confiado;
e Cleusa Ventura, porque sendo insubstituíveis em inúmeros mo-
“nossa vida departamental” também assim se mostraram
mentos de
auxiliadas por
na tarefa de datilografia dos originais, no que foram
O tempo de elaboração e redação deste trabalho foi também o tempo há muito
Lindinalva Barreto; e a Selma Rinaldi de Mattos, porque
de dimensionamento da importância dos colegas, companheiros e
caminhamos juntos.
amigos na consecução de um objetivo. Hoje, posso revelar que não
poucas vezes, nos momentos de desânimo, o incentivo e apoio dife-
Morada do Sol
renciados de cada umdeles foi fundamental; posso confessar tam-
outubro de 1983-dezembro de 1984
bém que, naquelas ocasiões, inevitavelmente me vinha à memória
o canto do poeta —
“um galo só não tece a manhã”.
Será possível agradecer a todos sem correr o risco de algum esque-
cimento ou mesmo de não ser completamente justo? Aceitando cor-
rer o risco, sou grato ao Professor Doutor Eduardo d Oliveira Fran-
Ça, não apenas pela orientação deste trabalho, mas ainda pelas
lições que transmitiu de seriedade profissional, compreensão e
me
tolerância, aliadas a atos de permanente incentivo; a Francisco José
Calazans Falcon, por tudo que me tem ensinado e pela amizade de
muitos anos; a Berenice de Oliveira Cavalcante, pelo permanente
e sempre carinhoso incentivo; a Margarida de Souza Neves, pela
amizade irrestrita, colaboração integral e “torcida” sempre emocio-
nada e emocionante; a Maria Alice Rezende de Carvalho, Marco
Antonio Villela Pamplona e Ricardo Benzaquem de Araújo, por-
que, entre muitas outras coisas, permitem-me viver cotidianamente
uma das mais caras “teses” de minha vida, uma vez que tendo sido
alunos não tardaram a se tornar meus mestres; a Maria Fernanda
Baptista Bicalho, pelo trabalho de pesquisa documental, assinalado
por método e seriedade insuperáveis porque sustentados pelo amor
de
ao ofício, no que foi sucedida por Kátia Valéria Maciel Toledo,
não menor competência; e Clóves Dottori, João Rua, Luiz Antônio
de Morais Ribeiro, Edmundo Fernandes Dias e Roberto Gusmão,
o
sobrinho, porque comprovam que a “região da amizade se cons-

trói apesar das divisões acadêmicas e das


distâncias espaciais; ao

Professor Isaac Kerstenetsky, decano do Centro de Ciências Sociais


da PUC-RJ, a Herman Jankowitz, diretor acadêmico da Fundação
Cesgranrio, e à Professora Célia Machado de Carvalho, diretora do
Laboratório de Currículos da SEE-RJ, por me terem dispensado de
meus encargos no momento mais crítico desta elaboração;
parte de
a Maria Célia Azeredo Souza Falcon, porque
sempre solidária; aos
Iglésias, pelas
professores Fernando Antônio Novais e Francisco
aos colegas dos Departa-
palavras de incentivo e atos de amizade;
mentos de História da PUC-RJ e da UFF, em especial Antônio

7
6
I / O IMPÉRIO DO BRASIL

“A importância política e comercial de uma


nação depende necessariamente da bondade de
suas instituições civis, das produções do seu
solo e indústria, e primeiro que tudo de sua
posição geográfica. Apliquemos ao Brasil a
última destas proposições, que é de uma evi-
dência manifesta, e viremos a entender que
poucos são os Estados, que considerados de-
baixo deste ponto de vista, ocupam um tão
distinto lugar entre as demais nações. Colo-
cado no centro do mundo civilizado, cercado
pela Europa, América do Norte, México e
mais Estados das índias Ocidentais, os portos
do mar Pacífico, a Oceania, a Austrália, as
índias Orientais e a China, este vasto conti-
nente, (...) com perto de 900 léguas de
costa, parece que havia sido predestinado pela
Providência para ser o centro das transações
comerciais de todo o mundo civilizado.
“Seus portos são arribada cômoda e indis-
pensável, (...) por isso que se acham a 50
dias de viagem dos de Portugal, França, In-
glaterra e mais nações mercantis da Euro-
pa, a 25 para 30 do cabo da Boa-Esperança,
60 a 70 de Java, 70 a 80 da China, 33 a
40 de Valparaíso pelo cabo de Horn, 40 a 50
de Lima, 55 a 60 da Nova Zelândia, e 60
a 70 da Nova Holanda, e tal é a vantagem
de sua posição geográfica que podemos afoi-
tamente afirmar que uma esquadra brasileira
e atraídos da salubridade do clima, da ferti-
que cruzasse entre o cabo de Santo Agosti- lidade do solo, e da hospitalidade do governo
nho e a costa ocidental da África, em sendo e dos habitantes do Brasil, novos colonos se
de forças suficientes, interceptaria dentro
de
determinarão a povoar os sertões de um
ir
pouco tempo o comércio marítimo da Euro- país tão da natureza, (...) de
favorecido
com demais partes do mundo. Pelo
pa as um país onde com qualquer indústria e com
que diz respeito às instituições civis deste mui pouco trabalho podem ter a certeza de
novo Império, quem bem as estudar, (...) viverem numa abastança, de que nunca des-
conquanto sejam elas de bem recente data, frutariam no encerro das cidades da Europa.
confessará que se não correm parelhas em “Para tão útil fim nada pode contribuir
perfeição com as das nações mais civilizadas com mais eficácia do que o divulgarem-se
da Europa, bem pouco lhes ficam devendo; pela Europa e pelas demais partes do mundo
demais que não foram elas compradas à as excelências de um tão ditoso clima. (...)
custa de tanto sangue, nem com o sacrifí-
Era mister, e o interesse do Brasil estava
cio e violação do direito sagrado da proprie- imperiosamente reclamando, que saísse à ltiz
dade. No concernente às produções do seu uma obra que encerrasse, não já uma notí-
solo, qual delas há e por mais preciosa e cia sucinta desta ou daquela província, desta
rara que seja que a terra do Brasil não
ofe-
ou daquela outra cidade ou vila, mas sim
reça em grande cópia? (...) Se no que
diz de
uma descrição geral e circunstanciada
relação à indústria fabril ainda muito se
de- todo o Império. (...) Uma obra a todos os
seja, pede também a razão que se levem
em respeitos única no seu gênero, (...) digna
conta os obstáculos invencíveis que encontra- da nação para que é especialmente destina-
va todo o gênero de progresso no antigo sis- da, e do Monarca ilustrado que a governa,
tema colonial, e o raro contato que em con- e debaixo de cujos auspícios tem de sair à
sequência dele tinham os povos do Brasil com luz".
as nações industriosas da Europa; estado
de
coisas que não há ainda meio século que
to- (Trecho do “Prólogo do tradutor" ao Dicio-
mou diversa face. O em que
ainda está
atraso nário geográfico, histórico e descritivo do Im-
a agricultura deve imputar-se essencialmente pério do Brasil, de Milliet de Saint-Adolphe,

à sede de ouro que lavrava na maior parte 1845.)!


dos aventureiros portugueses que primeiro se
estabeleceram no Brasil, os quais em vez de
entregaram exclusi- Àqueles que, por dever de ofício, estão obrigados a percorrer as
amanharem as terras, se
vamente à mineração; inconveniente que se páginas deste trabalho, apresento desde já minhas desculpas por
aumentou com a lavra e busca dos diaman- iniciá-lo recorrendo a tão extensa citação. Confesso, porém: não a
tes,a qual privava a agricultura de uma quis evitar.
grande quantidade de braços. \ erdade é que Eis por quê. Exagero se disser que, por meio de um prólogo que
a população do Império não corresponde com
a vastidão de seu território; que com serem
sublinhava uma disposição ao conhecimento “uma descrição —
numerosos os povoados ainda são poucos se geral e circunstanciada de todo o Império” apresentavam-se — ,

se comparam com os que seria mister que aqueles cidadãos que de maneira ativa viviam o momento de con-
houvessem; porém com a imigração européia, solidação do Império do Brasil, e que não se furtavam de incluir
a boa fé com que o Governo Brasileiro tem entre suas tarefas empenhar-se para que o maior número possível
religiosamente cumprido com os ajustes que
com diversos colonizadores; o de homens livres da sua condição também se apresentassem da-
tem feito os

desvelo com que em todo o tempo tem favo- quela maneira? Incorro em erro se afirmar que ali vem proposto
recido e alentado quantos hão contribuído um tipo de jogo que, recorrendo a semelhanças e diferenças, visava
para aumento de sua população e indús-
o conduzir à concretização de uma individuação ou ao recorte da
a bondade com que repe-
tria fabril e rural;
tidas vezes tem generosamente acudido até
identidade de um corpo político —
o Império do Brasil?

aqueles que hão cavado a sua própria ruína,


por se haverem embarcado em especulações
1 J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe — Dicionário geográfico, histórico e
edição. Paris, 1863, pp. VII-XIII.
a
descritivo do Império do Brasil. 2.
temerárias, tudo nos afiança que convidados

11
10
Um que enfatizava as semelhanças, Era preciso que os
jogo ocupam um tão distinto lugar", e, assim, acabava por proporcionar

do Império tanto se reconhecessem quanto se fizes- a ligação, no campo particular da manifestação literária e por cima
homens livres
sem reconhecer como membros de uma comunidade o ‘mundo — 4

r da fratura expressional, entre dois períodos: o que se constitui a


civilizado", o qual eraanimado, então, pelo ideal do progresso. De partir da segunda metade do século XVIII, e que se expressa sob
a forma do Arcadismo, e aquele outro que, relacionado aos
sucessos
modo diverso dos Fundadores da jovem República americana, ciosos 2
de seu isolacionismo, os cidadãos do Império não deveriam perder da emancipação política, se traduziria no Romantismo ,

de vista a pluralidade das nações e Estados —


referidas, sem dúvi- Por certo, tal exageração cumpria o papel de pôr em relevo um
da, a uma prévia unidade cultural —
> como condição mesma
para determinado corpo político —
o Império do Brasil, assim como o

se obter um lugar nela, em termos de igualdade. Deveriam ainda “Monarca ilustrado que o governa". Seus arautos poderiam justi-
não se esquecer que apenas alguns dias ou uns poucos meses dis- ficada olhando para o passado, mas também referindo-se aos anos
teria se seguido a de
tavam o Império das “nações industriosas da Europa" e dos demais em que viviam: à fase de “consolidação
“apogeu do Império", no dizer de Capistrano de Abreu Com efeito,
3
Estados, por via marítima. (Parecia não ser importante, todavia,
.

os anos cinqiienta não se teriam distinguido apenas pela estabili-


que estivessem informados do tempo que se gastava para atingir
pela Conciliação; assinalam-nos também
os pontos fornecedores de escravos negros no litoral africano! ) dade política, simbolizada

Um jogo que sublinhava as diferenças, também. Se as institui- a extinção do tráfico negreiro intercontinental, as bem-sucedidas
intervenções militares na área platina, a liqíiidação da onerosa
he-
ções civis do Império não corriam “ parelhas em perfeição com as
das nações mais civilizadas da Europa", distinguiam-se, não obs- rança ibérica dos limites; e, ainda mais, a regularização das comu-
nicações por vapor com a Europa, ao lado dos inúmeros empreen-
tante, quer pelo modo pacífico como foram erigidas, quer pelo
dimentos que demonstravam o avanço do “progresso" e as conquis-
que sempre os habitantes do Império haviam guardado pelo
respeito
“direito sagrado de propriedade", no curso de uma
transformação. tas da “civilização
11

como a construção de vias férreas e os me-
lhoramentos urbanos, aos quais o nome de Mauã quase sempre apa-
Ao mesmo tempo, fazia-se crer a quantos fosse necessário que se o derramava-
rece associado* No momento em que a lavoura cafeeira
Império ocupava “um tio distinto lugar entre as nações tal de-
— pelo Vale, “o Imperador sentir-se-ia bem", diz aquele autor: em
,

se
corria de sua posição geográfica “no centro do mundo civilizado". sua pro-
uma sua homenagem, obras eram compostas: outras surgiam de
(A ninguém parecia digno notar que a razão fundamental de dos Tamoios
teção. Gonçalves de Magalhães concluía a Confederação ,

diferença residia tia persistência da escravidão!)


Varnhagen redigia a História Geral do Brasil Gonçalves Dias com-
Um jogo de semelhanças e diferenças que conduzia a uma exa-
punha os Timbiros, mas deixaria inacabada Meditaçao* um escrito
geração: o Império fora "predestinado pela Providência para ser
provavelmente inspirado em À Voz do Profeta de Alexandre Her-
o centro das transações comerciais de todo o mundo civilizado".
culano, e que significativamente tem como eixo um diálogo
entre
Chegava-se mesmo a acreditar que se poderia interceptar o comér- progresso, velhos e novos 4
passado e presente, oonservantismo e .

ciomarítimo da Europa com as demais partes do mundo. (De . ,

Ora, por tudo isso e muito mais acreditava-se que urgia


“divul-
maneira irônica, o ano da edição da obra em tela seria o mesmo Europa e pelas demais partes do mundo as excelên-
garem-se pela
em que o governo de um ou!ro império decretaria o bill Aberdeen.) cias de um tão ditoso clima". A exageração se constituía também
Uma exageração que, segundo muitos, constituía uma manifes- num jogo de inversões 5


.

tação do nacionalismo, o qual de modo até certo ponto ingênuo,


-

mas expressando as reais condições da sociedade —


era obrigado i
— Formação da literatura brasileira ( momentos decisi-
2Antônio Cândido
a recorrer à posição geográfica. Conforme nos ensina Antônio Cân- 4* edição, São Paulo, 1971 (2* vol.), pp. 9-22.
vos).
dido, este nacionalismo englobava o nativismo em sentido estrito, 3 J. Capistrano de Abreu — t4
1

Fases do Segundo Império' , in Ensaios e


no qual predominava o sentimento da natureza, de afeto pelo país estudos (crítica e história ), 3.
1
série, 2/ edição. Rio de Janeiro, 1969, pp. 69-82.
— “um país tão favorecido da natureza.,, onde com qualquer 4 Cf. Antônio Cândido — - Op. cif., pp- 51-52.

5 Poderíamos lembrar aqui que a literatura romântica talvez tenha se


cons-
indústria e com mui pouco trabalho podem ter a certeza de vive- Império a partici-
tituído no meio mais eficaz de levar os ativos cidadãos do
rem numa abastança" —
e o patriotismo, isto o sentimento da
parem deste jogo de inversões. Em O Tronco do Ipe f e pela voz do Conselheiro,
polis, o apreço pela jovem nação —
“poucos são os Estados que, * *
José de Alencar propõe uma comparação, maneira de
efetuar uma exageração.

12 13
Nas falas daqueles que se mostravam orgulhosos de uma posição, processamento de matéria-prima para exportação, como máquinas
para o beneficiamento da cana-de-açúcar. Mas sobretudo eram
cada vez mais ocupavam lugar de destaque termos como Civiliza- im-
ção, Utilidade, Luzes, Associação, Razão e Progresso, como se eles portados tecidos: entre 1850 e 1854, eles representaram
quase 3/4
em de libras de
tivessem j;anho importância função primordialmente da traje-
de todas as importações; do valor total de 2,5 milhões
também traçavam, importações da Grã-Bretanha em
tória que percorriam e que, sem dúvida, não e 1850, os produtos têxteis repre-

tivessem sido tomados de empréstimo às “nações industriosas da sentaram quase dois milhões, e destes, 1,5 milhões de libras eram
Europa ’, que trilhavam um caminho diverso. Estava-se a “50 dias de algodão. Os fardos e caixas chegados ao porto do
de produtos
encaminhados para
de viagem de Portugal, França, Inglaterra e mais nações mercan- Rio de Janeiro no primeiro mês de 1850 foram
tis da Europa”, mas nem sempre se considerava que tudo e todos
quarenta e um eram ingle-
sessenta e três comerciantes, dos quais
que para lá seguiam, assim como tudo e todos que de lá vinham, demais portos do Império, onde as fir-
ses. O mesmo acontecia nos
faziam-no em navios que não tinham a bandeira do Império do importadoras também se dedicavam à exportação dos produ-
mas
Brasil: em janeiro de 1850, por exemplo, todos os navios chegados tos brasileiros.
ao porto do Rio de Janeiro vindos da Grã-Bretanha eram ingleses, Café e açúcar seguiam para o estrangeiro em navios cobertos por
assim como o era também grande número daqueles provenientes seguros feitos em Londres, frequentemente por Lloyds. Muitos
arma-
de outros portos. dores obtinham apólices de seguro no Rio de Janeiro, em 1860,
Uma inversão, pois, em relação às “nações civilizadas' da Europa, recorrendo a companhias britânicas, como a Marine Insurance Com-
em geral; em
relação à Inglaterra, particularmente. pany, Ltd. ou a Home and Colonial Marine Insurance Company,
Uma inversão que retirava do centro do mundo o seu armazém Ltd.
e a sua oficina; e isto justamente no momento emque, segundo Quando em 1850 foi estabelecida a primeira linha regular de
um autor, começava a se fazer sentir de maneira inequívoca o vapores entre a Grã-Bretanha e o Brasil, o privilégio coube à Royal
Mail Steam Packet Company. No ano seguinte, esta mesma com-
6
conjunto de repercussões da Revolução Industrial.
A grande Exposição do Trabalho Industrial de Todas as Nações, panhia inglesa inaugurava o serviço de transporte de malas do cor-
realizada em Londres, em 1851, atestava o poderio do Império bri- reio britânico para o Brasil.
tânico. No decorrer do século XIX, e mais particularmente em sua Em 1854, Irineu Evangelista de Sousa inaugurava nas ruas cen-
segunda metade, a Inglaterra expandiria seus interesses sobre a face trais da Corte o serviço de iluminação a gás

“dir-se-ia que em
da Terra, tanto em termos estritamente comerciais, nos quais o capi- parte da cidade era dia, e em parte era noite”, noticiava um con-
tal começava a aparecer como a mais importante das mercadorias temporâneo. Algum tempo depois, passou a concessão a uma com-
exportadas, quanto no que diz respeito a idéias e valores. (De modo panhia inglesa —
a Rio de Janeiro Gas Company Limited, a pri-
sintomático, nenhuma delegação oficial brasileira compareceu ao
meira companhia estrangeira de melhoramentos urbanos a se ins-
Crystal Palace, concebido pelo empresário e paisagista Josep Paxton.) Em 1857, um contrato foi firmado com a City Im-
talarno Brasil.
O Império do Brasil manteria relações profundas com o arma- provements objetivando a instalação de uma rede de esgotos na
zém e a oficina britânicos. Deles eram importados produtos alimen-
tícios —manteiga, queijo, batatas, biscoitos, mostarda, presunto e
capital imperial.
Capitais ingleses propiciavam a construção das primeiras ferro-
toicinho entre outros; remédios e cosméticos; relógios, móveis e ins-
assim como haviam contribuído para a abertura da primeira
trumentos musicais; ferragens em geral —
enxadas, fechaduras,
vias,
rodovia ligando a raiz da serra de Petrópolis a Juiz de Fora; deste
dobradiças, pás, facas, navalhas, canivetes, sacarrolhas, plainas, pre-
modo, os produtos destinados ao mercado externo, em especial
o
gos, cravos, bigornas e muitos outros utensílios; maquinaria para o em menor intervalo de
café, podiam chegar aos portos exportadores
tempo e em melhores condições.
ao dizer que “queria que os filantropos ingleses assistissem a este espetáculo, Não obstante, a presença inglesa se fazia sentir sobretudo no con-
para terem o desmentido formal de suas declamaçÕes, e verem que o proletariado
trole da atividade exportadora. No momento que estamos conside-
de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso escravo”. In Ficção completa.
Rio de Janeiro, 1965 (3.° volume), p. 315.
rando, as maiores e mais solidamente estabelecidas firmas exporta-
6 Eric J. Hobsbawn — Las revoluciones burguesas. Madri, 1964, pp. 47-77. doras britânicas eram as localizadas na área nordestina, que negocia-

15
14
. .

vam com o açúcar ainda exportado em grande quantidade para a “o comércio entre dois países é movimentado com capital
Grã-Bretanha. inglês,em navios ingleses e por firmas inglesas. Os lu-
As crescentes exportações de café para os E.U.A. não alterariam cros,. os juros sobre o capital,.
. . o pagamento dps prê- . .

este predomínio. Em 1850, a Inglaterra importou apenas 9 libras mios de seguros, as comissões e os dividendos provindos das
de café brasileiro, remetendo em troca cerca de 3.000.000 de libras operações financeiras, tudo é carreado para o bolso dos in-
de produtos manufaturados para o Império brasileiro. As firmas gleses”. 12
exportadoras inglesas de produtos brasileiros para os Estados Uni-
dos, a Alemanha e outros países europeus —
como Philips Brothers Ocomentário não apenas rompia com o jogo de inversões. Ele
& Co. e E. Johnston &
Co. —
compensavam esta diferença por sintetizavatambém o processo de restauração do pacto coloniaL, sob
meio de créditos vantajosos que recebiam: na década de 1840, elas novas condições, uma restauração que não apenas demonstrava a
controlavam cerca de metade da exportação brasileira de açúcar, plena constituição do sistema capitalista e o papel que nele ocupa-
7
metade da de café e quase 60% da exportação de algodão. va a Inglaterra, mas também aparecia como um dos traços distin-
Assim, as casas exportadoras e importadoras britânicas assumiam tivosdo Império do Brasil. Ora, um pacto é sempre um acordo entre
progressivamente o papel dos antigos colonizadores reinóis, tenden- as partes, mesmo que a relação que se estabelece possa se distin-
do a monopolizar o setor de comercialização da economia do Im- guir por uma assimetria. O pacto colonial que então se restaurava,
pério americano. Monopolizavam o setor de financiamento, sem também o era: a presença dos interesses ingleses predominantemente
dúvida, por meio da concessão de empréstimos, de que os Rothschilds como um dos contratantes pressupunha a presença de interesses
haviam sido nomeados agentes exclusivos para o Brasil em 1855. determinados do lado do Império do Brasil, não sob a forma de
13
Empréstimos foram concedidos em 1824-25, 1825, 1829, 1839, uma justaposição, e sim de modo complementar e contraditório.
1843 e 1852; outros seriam negociados em 1858, 1859, 1860, 1863, O jogo de inversões cumpria o papel de mascarar a moeda colonial ,

8
1865, 1871, 1875, 1883, 1886 e 1888, aprofundando o processo (no momento de sua restauração. Caso queiramos conhecer
como se
de internacionalização da economia brasileira iniciado no século operou esta restauração, não basta considerar as transformações vivi-
anterior, 9 e que tomara forte impulso desde a instalação da Corte das pela “nova metrópole” e a posição que desfrutava no
mercado
portuguesa no Rio de Janeiro.
10
mundial, que progressivamente reordenava em proveito próprio,

A preeminência britânica 11 motivaria o comentário de Sérgio


Teixeira de Macedo, ministro brasileiro na Grã-Bretanha, em 1854, início da segunda me-
sugestivo depoimento em sua correspondência oficial, no
de que tate do século. (Cf. Nelson Werneck Sodré

História da burguesia brasileira.
Rio de Janeiro, 1964, p. 96.)
12 Citado por Richard Graham — Op. cit., p. 79.
7Informações c dados colhidos sobretudo in Richard Graham Grã-Breta- — 13 Ao que parece, aos formuladores da “teoria da dependência” cabe o mé-
nha e o início da modernização no Brasil (1850-1914) São Paulo, 1973; cf. rito de propor, pela primeira vez, uma análise dos nexos
entre sociedades cen-
também Pedro Calmon — História social do Brasil —
Espírito da sociedade
trais” e “periféricas” por meio da consideração, quer da
relação de complemen-
imperial. São Paulo, 1937. taridade e contradição entre elas, quer sobretudo —
e aí parece residir o traço
8 Cf. Valentim Bouças — História da dívida externa. 2.
a
edição. Rio de
mais significativo —
dos interesses sociais que se constituem e tornam possível
Janeiro, 1950, p. 61. reprodução da dependência em cada uma das sociedades periféricas Assim, .

9 Cf. Carlos Guilherme Mota — “A idéia de revolução no Brasil”, in Joel


a
“o reconhecimento da historicidade da situação de subdesenvolvimento
requer
Serrão (dir.) — Dicionário da História de Portugal. Porto, s.d., vol. VIII mais do que assinalar as características estruturais das economias subdesenvol-
(apêndice) vidas. Há que se analisar, com efeito, como as economias
subdesenvolvidas
10 Cf. sobretudo Olga Pantaleão — “A presença inglesa”, in Sérgio Buarque vinculam-se historicamente ao mercado mundial e a forma em que se constituí-
de Holanda (dir.) — História geral da civilização brasileira tomo II, O Brasil
a
,
ram os grupos sociais internos que conseguiram definir as relações orientadas
monárquico, vol. 1 ( 2. edição). São Paulo, 1965, pp. 64-69. para o exterior que o subdesenvolvimento supõe. Tal enfoque implica reconhecer
11 A expressão provém do trabalho clássico de Alan K. MancHester — que no plano político-social existe algum tipo de dependência nas situações de
Britisk Preeminence in Brazil publicado em 1933. (Tradução brasileira. Preemi- subdesenvolvimento e que essa dependência teve início historicamente com a
,

nência inglesa no Brasil. São Paulo, 1973.) A preeminência britânica era acom- expansão das economias dos países capitalistas originários” Fernando Henrique—
panhada por elementos de outros países, como James Watson Webb, represen- Cardoso e Enzo Faletto —
Dependência e desenvolvimento na América Latina
tante dos Estados Unidos junto ao governo imperial, que deixou dela — Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, 1970, p. 26.

16 17
num procedimento que se distinguiria por uma exterioridade, e Todavia, uns e outros se assemelhavam por identificar, por meios
que reserva ao “mundo colonial” um papel marcadamente passivo. diversos, um momento anterior de dominação; por isso mesmo, dis-
Caso queiramos compreender os nexos complementares e contradi- tinguiam-se dos habitantes da Colônia nos primeiros séculos, os
tórios que a definem no momento da restauração, torna-se necessá- quais embora levassem adiante a tarefa da colonização não tinham
rio, primeiro, proceder à cunhagem da moeda colonial, numa consciência da situação colonial. E assim deveria ser.
traje-

tória cuja extensão é compensada pela compreensão das continui- Com efeito, se a relação colonial se tornava possível pela diferença
dades e descontinuidades que assinalam o trânsito do processo de essencial entre a Metrópole e a Colônia, o ato de produção e repro-
colonização aos de emancipação política e constituição do Estado dução desta relação acabava por mascarar não só o nexo colonial
imperial .
14 como também a violência que garantia e possibilitava a expropria-
ção, de tal modo que não se tornava explícito na consciência daqueles
que construíam um “Novo Mundo” —
a Nova Lusitânia, o Novo
México, Nova Granada ou Nova York —
o caráter de exploração
1. A MOEDA COLONIAL que ela encerrava em proveito de outro mundo — “Antigo”, dizem
“Notei somente quanto me pareceu necessá-
alguns.
rio para fazer conhecer o diverso rumo que
se deve seguir e a diversidade que há mais Somente a partir da crise do sistema colonial, a partir do último
sensível no País, ou ela seja natural ou civil. quartel do século XVIII, tornou-se possível a constatação daquela
E para estes fins, separando o que respeitava diferença. Lento reconhecimento, num processo não linear, que
ao tempo e direção do caminho, ajuntei como
tanto supõe a distinção inicial entre mazombos e reinóis, quanto a
em Notas a descrição de tudo o mais que
pudesse ser interessante”. constatação do antagonismo entre interesses dos habitantes da Colô-
nia e da Metrópole, para finalmente se constituir na condição subje-
Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania tiva fundamental do processo de emancipação. As constatações de
14 do Piauí. Vilhena —
“não é das menores desgraças o viver em colônias” —
e do autor anônimo do Roteiro do Maranhão a Goiás “as colônias —
são estabelecidas em utilidade da Metrópole” —
o demonstram 15 .

No momento em que o Dicionário de Milliet de Saint-Adolphe era


Sabemos, pois, que as colônias eram estabelecidas em proveito da
publicado, muitos dos habitantes do Império do Brasil ainda de- Metrópole. Mas estabelecidas como?
monstravam aversão e profundo desprezo pelo elemento português, Surgindo como um desdobramento da expansão marítima e co-
do que resultavam, não raro, conflitos que alteravam a vida modor- mercial, a colonização portuguesa na América assumiu caráter um
renta das cidades imperiais; uns poucos, como o redator do “Prólo- essencialmente comercial. Como que reproduzindo em escala amplia-
go”, concentravam já suas críticas na pretérita dominação colonial,
da o que ocorrera nas ilhas do Atlântico, também aqui a atividade
sustentando que os atrasos da indústria fabril deviam-se aos obs- econômica dos portugueses ultrapassou os seus objetivos iniciais,
táculos invencíveis que encontrava todo o gênero de progresso no
não mais se circunscrevendo — como acontecia nas índias, por
antigo sistema colonial”. exemplo — ao âmbito da circulação das mercadorias. A colonização
implicava a intervenção direta no âmbito da produção, e a grande
lavoura da cana-de-açúcar seria sua primeira efetivação; uma pro-
Tomando como referência, explícita ou não, o caráter distinto assumido
emancipação política do Brasil no conjunto da independência das colônias
dução subordinada aos interesses mercantis, uma estrutura de pro-
pela
ibéricas na América, a produção historiográfica tende a se dividir: para uns, lfi
apenas a descontinuidade: Paula Peiguelman nos diz, por exemplo, que o co- dução que conferia o sentido da colonização .

nhecimento do Brasil Moderno, cuja formação situa-se no século XIX impe-


rial, dispensa o conhecimento do período colonial (cf. Formação política do

Brasil São Paulo, 1967; especialmente o segundo volume: “Contribuição à 15 Luís dos Santos Vilhena — A Bahia no século XVIII. Salvador, 1969
teoria da organização política brasileira”); para outros, somente continuidades: (cf. “Carta XXIV”); e “Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí”
de acordo com José Honório Rodrigues “não houve ruptura do regime colo- ( Revista do Instituto Histórico Brasileiro vol. LXII, tomo I, p. 60).

,
a
nial”, por ocasião da emancipação política (cf. “Prefácio” à quarta edição de 16 Cf. Caio Prado Júnior Formação do Brasil contemporâneo. 7. edição.
Aspirações nacionais. Interpretação histórico-política. Rio de Janeiro, 1970). São Paulo, 1963, pp. 13-26.

18 19
Todavia, não basta destacar o caráter mercantil da colonização. Consideremos primeiro a esfera da circulação, tomando como
Torna -se necessário ir mais além, frisando aquilo que distingue a exemplo sumário a expansão em direção às índias. Por se ter em
atividade comercial nesta época determinada, isto é, o seu traço mira o exclusivo de certas mercadorias (os “produtos orientais”),
monopolista, essência da prática mercantilista. monopólio define O tornava-se necessário deter a exclusividade dos roteiros que condu-
a atividade comercial; no monopólio comercial reside a medula do ziam a elas (a finalidade principal do Tratado de Tordesilhas era
Antigo Sistema Colonial ; 17 com o monopólio comercial define-se o controle da Rota do Cabo). O monopólio das mercadorias e dos
um dos traços que particularizam a Idade Moderna, o período de roteiros se desdobrava no monopólio da produção de uma mercadoria
transição do feudalismo para o capitalismo ou de acumulação primi- por uma determinada região, ainda que no interior de um mesmo
tiva de capital. 1 *
império colonial (e, por isso, a sugestão de Brandônio ao Rei no
Por ser tanto a referência quanto o elemento estruturante daque- sentido de que se plantasse pimenta também no litoral brasileiro
le desdobramento, o monopólio se constitui no elemento que une as
não foi considerada). 20 Todos esses monopólios resultavam, por sua
duas faces da moeda colonial, assim como lhe confere o valor. De vez, do monopólio do financiamento.
21

um lado, a “cara” ou a face metropolitana, apresentando-se por Monopólio sobre os homens, também. A expansão da atividade
meio do Reino ou do Estado Moderno; de outro, a “coroa” ou a comercial é correlata ao fortalecimento do Estado absolutista, sendo
face colonial, sob a forma da Região face geralmente oculta, impos-
,
que ambos os processos se reforçam reciprocamente. A unificação e
sível de ser pensada isoladamente da primeira, mas guardando tam-
o fortalecimento do Estado absolutista implicava o monopólio do
bém uma existência própria, um processo particular que não se Soberano sobre os súditos, incluindo aqueles que habitavam as regiões
restringe à mera reprodução da História metropolitana ou dos su-
coloniais, e a maneira de tal se efetivar consistia tanto na consti-
cessos de outra região qualquer.
tuição de um corpo de funcionários quanto na redefinição das
Vejamos a face metropolitana primeiro. relações entre o Estado, representado pelo Soberano, e a Igreja, o
Nela, o Reino em processo de centralização monárquica, servin-
que no caso do Reino Português assumiu a forma do regalismo.
do-se da política mercantilista. Esta apoiando-se, em larga medida, Por isso mesmo, a Igreja esteve intimamente associada à empresa
na exploração colonial. 0 monopólio a anima, em seus múltiplos colonizadora, mas de modo subordinado, aparecendo ela também
aspectos e desdobramentos, pondo a descoberto a ação dos detento- como um instrumento do monopólio metropolitano.
22

res do capital mercantil, numa sociedade em processo de transição em consideração antes de tudo
Na face metropolitana, e tendo
para o capitalismo. 19 a “aventura colonial” levada a cabo pelo Reino, o monopólio produ-
zia o colonizador; este o reproduzia, ao ditar a política colonial que
17 Cf. Fernando A. Novais —
Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema visava a assegurar a transferência da renda para a Metrópole. Colo-
Colonial ( 1777-1808 ). São Paulo, 1979; especialmente o cap. II, “A crise do nizadores eram todos aqueles elementos ligados à esfera administra-
1
Antigo Sistema Colonial’ pp. 57-116.
tiva; se leigos, encarregados precipuamente do fiscalismo; se ecle-
18
,

Ver principalmente: Maurice Dobb —


A evolução do capitalismo. Rio
de Janeiro, 1965; Theo Santiago (org.) —
Capitalismo: transição. Rio de Ja- siásticos, empenhados na monopolização das almas. Eram também
neiro, 1974; e Carlos Marx —
El capital. Crítica de la economia política. 4.*
edição. México, 1966. (cap. XXIV, “La llamada acumulación originaria”, pp.
607-649). que o equilíbrio das forças que o compunham variava de um país para outro
19 Acompreensão do movimento da “cara” da moeda o Reino —
pres- — também como resultado da posição relativa que ocupavam naquele quadro geral.
supõe, por certo, a consideração do quadro mais amplo de transição da socie- 20 Cf. Ambrósio Fernandes Brandão —Diálogos das grandezas do Brasil.
dade européia para o capitalismo, a qual não foi um processe linear e contí- Salvador, 1956, p. 170.
nuo, atravessado indistintamente por todos os Estados europeus, do século XVI 21 Celso Furtado —
Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro, 1959;
ao XVIII. É preciso não esquecer que enquanto alguns países parecem assumir Fernando Novais —
Op. cit ., loc. cit.; Roberto Simonsen — História econômica
a “dianteira” neste processo, outros “se atrasam”, e tudo isto não deixaria de a
do Brasil (1500-1822). 4. edição. São Paulo, 1962.
repercutir na própria moeda colonial. Recordemo-nos, por exemplo, da nítida 22 Francisco J. C. Falcon — A Época Pombalina (política econômica e Mo-
situação de dependência de Portugal em relação à Inglaterra, sobretudo a narquia ilustrada). São Paulo, 1982 (especialmente a segunda parte: “Mercan
partir da Restauração (1640), e das repercussões daí decorrentes na evolução tilismo e ilustração em Portugal — A Época Pombalina (1750-1777)”, pp
da Colônia americana. De outro lado, ao se considerar o papel do Estado abso- 147-481); Eduardo Hoornaert et al. — —
História da Igreja no Brasil Primeira
lutista neste mesmo processo, como instância privilegiada, é preciso considerar época. Petrópolis, 1977.

20 21
J

e sobretudo oscomer cwzníes, especialmente os negociantes de grosso de Antonil era mais amplo, ao menos espacialmente, do que o de
trato ou homens de negócio. Recorda Boxer que, embora teorica- Fernandes Brandão. Mesmo quando este diz que está falando do
mente desprezados, tráfico e comércio eram levados à prática por “estado do Brasil todo”, fala apenas do litoral nordestino à época
todos aqueles elementos ligados à administração quanto o conse- lavoura
da União Ibérica, área cuja ocupação assentava na grande
guiam fazê-los, do vice-rei para baixo. 23 Sem dúvida, as vicissitudes 25 O “Brasil que Antonil
produtora de gêneros para a exportação.
de seus negócios e carreiras ligavam-se intima mente ao movimento lavoura (da
nos mostra, por sua vez, recobre as áreas de grande
do Império americano. cana-de-açúcar e do tabaco), de mineração e pastoril, mas ignora
Na primeira face da moeda, o Reino aparecia, pois, como o locus completamente a área de coleta das drogas do sertão, no vale ama-
gerador do monopólio e de seus agentes. Ali, a figura do Rei — 26 Deste modo, devemos estar prevenidos sobre a abrangência
“Pai da Pátria"' e “o maior dos mercadores". a um só tempo — zônico
conteúdo). de determinadas expressões em épocas distintas,
(isto é, o
simbolizava o monopólio pelo colonizador tanto de mercadorias, ro- caso queiramos efetivamente compreender a
forma que a coloniza-
teiros, regiões e créditos quanto dos corações e mentes dos habitantes demonstram termos como “Estado”, "Impé-
ção assumiu, como nos
do Reino e suas possessões. 2 rio, “País” e “Continente .
11

A face colonial, agora. Nela, e numa primeira abordagem, a Vejamos um único exemplo.
região: face oculta, já o sabemos, como resultado, em larga medida, Um autor do final do século XVIII comentava que os proprietá-
da maneira como se constituiu a historiografia brasileira em parti- rios de terras
“ formão em aquella Comarca hum Corpo respeitável
cular, e a latino-americana de um modo geral, porque se o surgi- de per si .e tão -nobre por natureza, que em nenhuma outra corpo-
mento dessa historiografia, no decorrer do século passado, foi marca- a ella: em
1

/ ração, e em nenhum outro Paiz se encontra outra igual


do pela influência do positivismo e suas regras de erudição, foi si comprehende as melhores famílias deste, e de todo mais Conti-
também assinalado por um desenvolvimento em conjunção com a nente. .”. 27 Ora, as expressões “Paiz” e “Continente”
.
não dizem
formação dos novos Estados, constituindo-se o pensamento historio- respeito aqui, como poderíamos julgar de imediato, ao Brasil e^ à
gráfico num dos pilares de sustentação de uma “consciência nacio- América como um todo, respectivamente, mas a regiões e possessões
nal'' —o exemplo do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, portuguesas na América. 2
®

sendo ilustrativo —
e, como decorrência, num instrumento dos Desta forma, em que pesem os esforços de muitos em identificar
grupos dominantes e dirigentes que timbravam em destacar o geral uma gestação desde o período colonial, a reali-
unidade nacional em
11
(o “nacional ) e esmaecer o particular (a região). dade construída pelo processo de colonização foi bem outra, e não
O recurso àqueles que nos informam sobre o processo de coloni- escapou a alguns. Viajando pelo Brasil, em 1815, o francês Horace
zação talvez nos ajude a recuperar o “lugar 11 da região. Nas páginas Say diria que o nome Brasil constituía, de certo modo, a designa-
Sul, mas
dos cronistas, encontra-se a referencia constante ao Brasil e às suas ção genérica das possessões portuguesas na América do
2^
grandezas e opulência. Assim, e tomando apenas dois exemplos, Am- que não existia, por assim dizer, unidade brasileira h

brósio Fernandes Brandão nos iUt os Diálogos das Grandezas do


Brasil e Antonil nos informa sobre a Cultura e Opulência do Brasil
por suas Drogas e Minas.
Entre a redação dos dois textos, quase cem anos de diferença, 25 Ambrósia Fernandes Brandão — Diálogos das grandezas do Brasil. Sal-

intervalo que medeia entre o momento de montagem da coloniza- vador, 1976. .

ção e aquele outro de cristalização de suas formas, de tal modo que


26 Antonil André João —
Cultura e opulência do Brasil por suas drogas
e mirtos. São Paulo, 1969.
as informações que deles extraímos parecem completar-se: o “Brasil” 27 “Discurso preliminar, histórico e inlrodutivo com natureza de descrição
econômica da Comarca e Cidade da Bahia *, Apnd Caio Prado Júnior Op.
1

cif,, p. 287.
Como observa Mare Bíoch. “para grande desespero dos historiadores, os
2S
homens não têm o hábito de mudar o vocabulário de eada vez que mudam
23 Cf, C. R, Boxer —
A idade de furo do Brasil. São Paulo, H63, p. 108. os costumes* Marc Bloch —- Introdução à História. Lisboa, 1965, p. 35.
1

24 Cf. limar Rohloff de Mattos — l


* Sobre c monopólio na História da Co-
,

29 Àpud Sérgio Buarque de Holanda


*
À herança colonial —
Sua de-
l

lónia". ia Cantacto-Humanidades. Rio de Jineiro, 1977, d,° 21. pp. 18-20. sagregação
1
*, in História geral da civilização brasileira* op. cit

22 23
mente físicos existem enquanto limites sociaig .
31 A região, assim,
Se todas essas informações põem em destaque a diversidade, e
como uma construção que se efetua a partir da vida social dos
não a unidade, elas nos impõem também uma questão: o que constft
homens, dos processos adaptativos e associativos que vivem, além
tui uma região no espaço colonial?
das formas de consciência social que lhes correspondem. A região
Anotemos, de imediato, que a região não deve ser reduzida a de-
colonial como um espaço vivo, em movimento, expressando a domi-
terminados limites administrativos, como o das capitanias. Ela não
nação exercida pele colonizador sobre um território, mas sobretudo
deve ter também como referência apenas a distribuição de seus habi-
uma dominação sobre os demais agentes participantes da aventura
tantes em um determinado território, definido como uma área eco-
colonizador a. Reafirmando a cada instante o caráter militar ou guer-
lógica, pois não é o fato de um grupo de pessoas habitar um mesmo
reiro que o empreendimento colonizador sempre guardou, a região
território que determina o estabelecimento de uma rede de relações
se apresenta unida a uma noção militar e fiscal. Ela recupera por
sociais e o desenvolvimento de uma consciência comum de perten-
uma meio da ação do colonizador seu primitivo valor: regere, comandar 32 .

cer a um mesmo mundo, embora seja certo que região não


30 Não por outra razão, a contestação de uma dominação deve ganhar
prescinde de uma base territorial .

também o conteúdo da contestação da organização espacial que a


Ora, a pergunta feita acima constitui-se no primeiro indicador
possibilita: à região colonial contrapõe-se, assim, o quilombo negro.
para a sua resolução quando localiza a região numa colonização de
exploração, nos quadros do Antigo Sistema Colonial, isto é, quando
A região colonial, em suma, como resultado da ação colonizadora,
dos processos adaptativos dos seus agentes ao território americano,
impõe o cruzamento das dimensões espacial e temporal e procura
das formas de associação estabelecidas a partir dos interesses da
apreender a região como algo dinâmico. E isto oorque, sc a região
face metropolitana e, por fim, das representações em permanente
possui uma localização espacial, este espaço já não se distingue
elaboração, entre as quais ganham destaque as noções de grandeza
tanto por suas características naturais, e sim por ser um espaço
e opulência.
socialmente construído, da mesma forma que, se ela possui uma
Ora, grandeza e opulência tornavam-se possíveis pela efetivação
localização temporal, este tempo não se distingue por sua localização
do desdobramento acima referido, da empresa marítima e mercantil
meramente cronológica, e sim como um determinado tempo históri-
‘'ja empreendimento colonizador.
co, o tempo da relação colonial. Deste modo, a delimitação espácio-
CJm desdobramento que se apresenta, de imediato, na organização
temporal de uma região existe enquanto materialização de limites
da produção. Na colonização de exploração, a região será sempre a
dados a partir das relações que se estabelecem entre os agentes,
combinação particular de dois setores de produção: o setor de mer-
isto é, a partir de relações sociais.
Ou dizendo de outra maneira: a região — a partir dos referen-
cado externo ou setor exportador .por meio do qual a Colônia preen-
,

che a sua função histórica, e por isso mesmo o setor dominante; e


ciais primários espaço e tempo, entendidos em sua dimensão social
— só ganha significação quando percebida k luz de um sistema
o setor de subsistência dedicado à produção de gêneros de subsis-
,

tência e à criação de gado, que tanto complementa quanto nega o


de relações sociais que articula tanto os elementos que lhe são inter-
anterior 33 Todavia, importa destacar ainda que, na consideração
.

nos quanto aqueles externos. É a partir dessa articulação, por inter-


destes dois setores, o fundamental reside não na determinação do
médio de um jogo de identidades e oposições, que se torna possível
que cada um deles produz ou mesmo quanto produz e comercializa
traçar os limites da região, que muito mais do que limites mera-
em determinado momento, e sim de como produz isto é, as relações ,

30 Nestes termos, nos colocamos em posição distinta da de E. Willems para


compreendida como uma “cidadezinha e seu
31 Cf. Armand Frémont —
A região, espaço vivido. Coimbra, 1980; e Doris
quem a
território
comunidade (ou região)
administrativo —
é
seu município” (in Cunha: tradição e transição
Rinaldi Meyer —
A terra do santo e o mundo dos engenhos. Rio de Janeiro,
1980.
em uma cultura rural no Brasil ) e de Cook para quem ela resulta de “uma
reunião de população, habitando um território contíguo, integrado através da
32 Cf. Michel Foucault —
“Sobre a Geografia”, in Microfísica do poder.
Rio de Janeiro, 1979, pp. 153-165.
experiência comum, possuindo um certo número de instituições de serviços bá-
sicos, conscientes de sua unidade local” ( citado por Maria Laís Mousinho Guidi
33 Cf., entre outros, Celso Furtado —
Formação econômica do Brasil, op.
cit. Especialmente a segunda parte: “Economia escravista de agricultura tropi-
— Elementos de análise dos “ Estudos de Comunidades realizados no Brasil de

cal (séculos XVI e XVII)”, pp. 53-87.


1948 a 1960 Y Reunião Brasileira de iYntropologia. Belo Horizonte, 1961).
,

25
24

9SCSH / UFRGS
que engendra tanto no nível da produção quanto no da comercia- do monopólio, que os tornam proprietários em condições monopo-
lização. listas.

Um segundo desdobramento, muito mais significativo: o do colo- Consideremos as relações entre o colono e o colonizador, inicial-

nizador em colono pois se a colonização é, antes de tudo, a monta- mente.


,

gem de uma estrutura de produção, o colono aparece como o pri- A relação metrópole-colônia, no momento considerado, funda-se
meiro produto da produção colonial, o agente gerador de uma opu- no pacto colonial, ou seja, no compromisso recíproco das partes,
lência. O colono é, assim, o proprietário colonial, aquele que, em embora em proporções desiguais. Deste modo, o colono está obrigado
condições determinadas —as condições de uma colonização de ao cumprimento do monopólio que distingue o colonizador, há muito
exploração na época de acumulação primitiva de capital, tornava o sabemos; o colonizador, por seu turno, está obrigado a resguardar

possível a existência da atividade produtiva colonial. o monopólio do proprietário, fato nem sempre evidenciado pela
Um desdobramento do monopólio, em suma e no essencial, que historiografia.

tornava o colono o seu agente na face colonial, porque somente eram Vejamos, de maneira sucinta, como o colonizador cria e repro-

colonos aqueles que eram proprietários —


de mão-de-obra, de terras, duz, até certo ponto, o monopólio do colono. Isto ocorre, em primeiro
dos meios de trabalho, em cada uma das regiões surgidas com a lugar, no interior do próprio mundo colonial de uma determinada
atividade colonizadora. metrópole, conforme referimos no caso da pimenta indiana. Asse-
Recorramos a Antonil, de novo. Ao nos falar “Do cabedal que gura-se o monopólio do proprietário, em segundo lugar, no interior

há de ter o senhor de um engenho real”, 34 ele nos informa não sõ da própria Colônia, quer pela concessão de vantagens e privilégios
sobre os diferentes colonos numa região da Colônia —
a qual deno- aos colonos —no caso que vimos considerando, poderíamos citar o
minaremos, desde agora, de região de agricultura mercantil-escravis- privilégio de montar moenda e engenho de água, e sobretudo o de

ta; ele também nos fornece elementos para compreender a relação


impenhorabilidade destes — quer proibindo o desvio dos fatores
,

hierarquizada que se estabelece entre eles, tomando por base a pro- de produção daquela que era considerada a atividade principal. De-
priedade. Assim, e dispondo os colonos num continuum teríamos ,
fende-se o monopólio do proprietário, ainda, ao evitar-se a concor-

num de seus extremos (menos propriedade) os lavradores de parti- rência do estrangeiro, quer por acordos diplomáticos, quer por ope-
dos (proprietários apenas de mão-de-obra); viriam depois os fazen- rações guerreiras. Criam-se as condições, por fim, para a reprodução
deiros, com “cana obrigada” ou independentes (proprietários de da propriedade do colono quando recursos militares são mobilizados
mão-de-obra e de terras); e, no outro extremo (máximo de proprie- para o combate às insurreições das massas de escravos e para a
dade em situação colonial), os senhores de engenho (proprietários destruição dos quilombos.
de mão-de-obra, de terras e de meios de trabalho, em especial da Assim, da relação entre colono e colonizador resultava o mono-
Casa-do-Engenho) Das relações que travavam, e no plano estrita-
. pólio deste sobre a mão-de-obra, as terras e os meios de trabalho.
mente da produção, apareciam como expressão a renda escravista da Vejamos um
segundo feixe de relações mantidas pelos colonos.
terra e a renda industrial escravista 35 .
Talvez não seja difícil perceber que se colonizadores e colonos
Não obstante, é preciso ir além, qualificando melhor estes colo- aparecem como detentores do monopólio, é porque existem aqueles
nos, por meio da atribuição de um conteúdo mais preciso às suas que, no processo de colonização, sofrem a exclusão que a existência
propriedades, em situação colonial. E, para tal, o primeiro passo é do monopólio supõe, embora nos termos que vimos considerando. A
tomar em consideração que os colonos apenas, em suas relações entre estes excluídos denominaremos colonizados isto é, a vasta gama
si, não constituem uma região, e sim as relações que mantêm com
constituída tanto pelos escravos — “da Guiné” ou
,

nativos — quanto
os demais agentes. São tais relações, informadas pelo desdobramento pelos agregados, quer pelos “homens que servem a outros por solda-

da”, quer pelos índios bravos.


O desenrolar cotidiano da colonização tecia as relações entre
34 Op. cit ., p. 139. colonos e colonizados, estabelecendo discriminações entre estes. Para
33 Cf. Jacob Gorender —O escravismo colonial. São Paulo, 1978. Espe- o trabalho nas grandes propriedades açucareiras surgidas com a
cialmente o cap. XIX, “Renda escravista industrial e renda escravista da terra”,
colonização, o braço escravo foi o agente de trabalho historicamente
pp. 391-408.

26 27
possível e adequado .
36 “Mãos e pés do senhor de engenho”, sobre escravas, ao lado de muitos outros movimentos, distinguiam cada

as costas do escravo foi erigido o edifício colonial; sua condição, to- uma das regiões coloniais, dando vida a colonizadores, colonos e
davia, fazia com que colonos e colonizadores o encarassem como colonizados.
coisa , fazendo com que os demais colonizadores assim também pro- Nelas, as relações entre colonos e colonizados tinham como locus

cedessem. privilegiado aquilo que Caio Prado Júnior denominou de grande


A existência de grandes propriedades só parcialmente ocupadas unidade produtora o Engenho, a Fazenda ou a Data. Em cada uma
por uma agricultura trabalhada pelo braço escravo, possibilitou que delas a casa grande
:


ou de modo mais genérico, a Casa aparecia —
as terras sobrantes fossem ocupadas por uma camada de “homens como o símbolo do poder do proprietário sobre a própria família,
livres e pobres” —
isto é, indivíduos que se distinguiam dos escra- o capelão, os agregados e a massa de escravos
38 .

vos por serem “donos de suas pessoas”, mas que não eram proprie- Por sua vez, os monopólios de colonizadores e colonos tinham
tários de terras. Ligando-se a um grande proprietário, colocando-se seu ponto de interseção na cidade colonial. De modo diverso da
sob a dependência de um senhor, eles tinham acesso à posse da cidade clássica, que se distingue por ser núcleo político e mercado,
terra, realizavam uma agricultura de subsistência e permaneciam sendo assim um local referido às noções de liberdade e igualdade, a
à margem da produção mercantil desenvolvida nas grandes proprie- cidade colonial se distingue, antes de tudo, pelas funções de porto
dades. Os colonos os reconheciam como pessoas; as relações mantidas e centro administrativo, caracterizando, desta forma, o poder do
39 Num
entre ambos tinham como centro o favor num “sistema de contra-
,
colonizador e expressando a assimetria do pacto colonial .

prestações de benefícios recebidos e serviços prestados


7 V
Dependente do colonizador, produzindo para um mercado sobre
38 Cf. sobretudo os trabalhos de Gilberto Freyre — Casa grande &
senzala.
o qual não exercia qualquer controle, o colono operava com fatores Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 11. edição
extremamente rígidos. Somente monopolizando-os, e também aos brasileira. Rio de Janeiro, 1964; e Sobrados e mocambos. Decadência
do pa-
a
triarcado rural e desenvolvimento do urbano. 4. edição. Rio de Janeiro,
1968.
homens livres e pobres, podia adaptar-se às oscilações sobrevindas,
39 A hipótese defendida aqui a respeito da cidade colonial se opõe, sem
quer em termos de expansão, quer em termos de retração. As rela-
dúvida, a de uma parte da historiografia, e por certo a mais difundida, que
ções entre colonos e colonizados pressupunham também o monopólio
sustenta a pequena ou nula importância da cidade no quadro da colonização,
dos homens e da violência. quer como resultado do caráter de exploração agrária que ela assumiu, quer
Monopólio da mão-de-obra, das meios de trabalho; e
terras, dos como expressão do poder metropolitano, enfraquecido ou desinteressado pela
também a tendência a monopolizar os homens, durante a vida e colônia americana. Emcontraste, a importância das vilas e, nelas, das câmaras

após a morte deles —


eis como o monopólio se apresenta na segun-
municipais, sendo que estas, de acordo com Caio Prado Júnior, encarnariam
um Estado Colonial, porque seriam o instrumento do Poder político das classes
da face da moeda colonial, por intermédio do colono. De maneira dominantes locais ( Evolução política do Brasil e outros estudos. 6. edição. São
exemplar, Antonil sintetizaria a situação e a posição daquele que Paulo, 1961, p. 28). Se este autor restringe tal fato até meados do século
se constituía no mais importante dentre os colonos: “o ser senhor XVII, Maria Isaura Pereira de Queirós estende-o pelos tempos afora, chegando
de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o mesmo ao Brasil de Dom Pedro II (O mandonismo local na vida política brasi-
leira. São Paulo, 1969, p. 35): “a autoridade de capitães e governadores era
ser servido, obedecido e respeitado de muitos”. Riqueza, poder e
mínima, e quando os senhores rurais entendiam tomar uma atitude, faziam-no
prestígio o distinguiam. sem ligar ao que determinava o governador”. Ao que parece tais conclusões
As disputas entre mercadores e senhores de engenho pelo controle derivam de duas razões principais: a primeira relaciona-se ao privilegiamento
das câmaras municipais; as revoltas contra os estancos e as taxaçÕes de uma fonte, e à sua utilização de maneira acrítica (trata-se de João Fran-
cisco Lisboa e de sua marcada posição “liberal”, isto é, de oposição à política
excessivas; os conflitos entre colonos e autoridades religiosas; as
centralizadora levada a cabo tanto pela Metrópole quanto pelo Governo Geral
expedições contra os quilombos e as tribos indígenas rebeladas; os
durante o Segundo Reinado, e que conduzia à defesa do localismo conforme te-
,

tratos entre negociantes e proprietários rurais; e as insurreições remos ocasião de ver com mais vagar na Parte II deste trabalho); a segunda
diz respeito à não consideração do caráter complementar e contraditório do
36 J. Gorender — Op. cit.; Maria Sylvia de Carvalho Franco —
Homens I
pacto colonial, que põe em evidência a cidade. O estudo de Eulália Lobo sobre
livres na ordem escravocrata. São Paulo, 1972 e “Trabalho escravo, trabalho o Rio de Janeiro é suficientemente ilustrativo a este respeito, caracterizando
livre”, in História do Século 20. São Paulo, 1972 (vol. 1). uma diferenciação (dissemos acima, um desdobramento), embora o veja pelo
37 Maria Sylvia de Carvalho Franco —
Homens livres na ordem escravo-
u “lado do avesso”. . Lê-se, na p. 56: “os negociantes do Rio de Janeiro tinham
.

crata. São Paulo, 1972, p. 95. constituído em fins do século XVIII um forte grupo de pressão, individuali-

28 29
.

41 No de-
certo sentido, ela sintetiza o exercício da dominação metropolitana à ilharga. Quase não havia festas, somente as religiosas.
sobre a região colonial: ela é sobretudo núcleo administrativo — correr do século XVIII, sua população crescera significativamente:

isto é, fiscal e militar — na região de mineração-escravista; e sobre- segundo Joaquim Caetano da Silva, seriam 12.000 habitantes em
tudo porto —
pólo de convergência obrigatório dos portos menores 1720; Baltasar da Silva Lisboa estimava em 25.000 almas, em
— na região de agricultura mercantil-escravista. Nesta, os núcleos 1750; por ocasião da transferência da sede do governo, seriam 30.000
de Recife-Olinda, Salvador e Rio de Janeiro cumpriam o papel de no cálculo do Barão do Rio Branco; e, de acordo com o Padre Pere-
dominação, já identificado por Gregório de Matos no século XVII. reca, 60.000 no momento da chegada da Família Real. Tal cresci-

Falando da Bahia (Salvador), o poeta destacava no seu Romance :


mento expressava, sem dúvida, a intensificação da atividade comer-
42
cial com a região miner adora, a Metrópole e o litoral africano.
Não obstante, os Vice-Reis nela sediados distinguir-se-iam, antes
“Senhora Dona Bahia,
de mais nada, pelas medidas que visavam a melhorar e defender
nobre e opulenta cidade.
o porto, assim como a parte da Cidade que lhe era circun jacente;
Dizei-me por vida vossa, 43
distinguir-se-iam por privilegiar os interesses do colonizador.
madrasta dos Naturais,
Assim, na cidade colonial, e caracterizando a relação assimétrica
e dos Estrangeiros madre.
do pacto colonial, a presença privilegiada dos comerciantes reinóis
Em que fundais o ditame e dos funcionários do Estado absolutista. A relação entre as duas
de exaltar os que aí vêm,
faces da moeda não se apresentava correspondente em forma, gran-
que nascem?” 40
e abater os
deza e posição. E, por isso, ao definir o pacto colonial, o seu modo
ali

de funcionamento e reprodução, o bispo Azeredo Coutinho já aler-


Do Rio de Janeiro, sede do governo do Estado do Brasil desde iJ j
tava que
1763, pode-se dizer que preservava as características de uma quase
aldeia ao encerrar-se o período colonial. Ruas estreitas, escuras e “quanto os vassalos são mais ricos, tanto o soberano é muito
sujas; não havia remoção de lixo, sistemas de esgotos, qualquer mais”.
noção de higiene pública. As casas eram térreas em sua maioria,
ocupadas pelos próprios donos. Obras públicas, somente o passeio As duas faces do monopólio se completavam, se alimentavam e

público e o aqueduto do Carioca. Seus habitantes anotara Mar- — se reforçavam; não obstante, também se antagonizavam, tendendo
tius, entre 1817 e 1821 guardavam — um certo ar oriental. As a se excluírem. Os interesses do colonizador engendraram a coloni-

mulheres sempre embuçadas, sentadas no chão ou sobre esteiras; zação, criando na segunda face da moeda a propriedade colonial e,

os homens com um poncho ou um manto, e os nobres com espada como decorrência, os proprietários coloniais. Ao mesmo tempo,
porém, aqueles mesmos interesses acabavam por limitar a expansão
dessa propriedade, ou porque controlavam os mecanismos de comer*
zado e independente dos grandes fazendeiros, capaz de fornecer crédito ao Rei
e aos proprietários rurais e que se fazia representar na Câmara Municipal e
diretamente junto ao Rei e aos órgãos de cúpula da administração da metró- 41 Cf. José Honório Rodrigues — “O destino nacional da Cidade do Rio
pole.” E. Lobo — História do Rio de Janeiro. Do capital comercial ao capital de Janeiro”, in Vida e história. Rio de Janeiro, 1966, pp. 126-150.
industrial e financeiro. Rio de Janeiro, 1978 (especialmente o cap. I, “Confor- 42 Cf., entre outros. Ferreira da Rosa — Rio de Janeiro. Notícia histórica
mação da burguesia mercantil no Rio de Janeiro: 1760-1800”). Sobre a cidade e descritiva da Capital do Brasil. Rio de Janeiro, 1905 (Edição fac-similar. Co-
colonial, ver ainda os trabalhos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda
— leção Memória do Rio, RJ, 1979); Eulália Lobo — Op. cit .; José Luiz Wer-
Raízes do Brasil. 3.
a
edição. Rio de Janeiro, 1956 (cap. II — “O semeador e neck da Silva — “A polícia no Município da Corte: 1831-1866”, in Gizlene
o ladrilhador”); Nelson Omegna —
A cidade colonial. Rio de Janeiro, 1961; Neder et al. — A polícia na Corte e no Distrito Federal 1831-1930. Rio de
,

Fernando Henrique Cardoso —


“A cidade e a política: do compromisso ao Janeiro, 1981, pp. 1-227.
conformismo”, in Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro, 1975; Nestor 43 A esse respeito é extremamente ilustrativo o “Relatório do Marquês do
Goulart Reis Filho —Evolução urbana do Brasil. São Paulo, 1968; e Richard Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando o Governo a Luís de Vas-
Morse — Formação histórica de São Paulo (de comunidade a metrópole) São concelos e Sousa, que o sucedeu no Vice-Reinado”, transcrito em João Armi-
Paulo, 1970. tage — História do Brasil, desde o período da chegada da família de Bragança
40 Apud Gregório de Matos —
Literatura comentada. São Paulo, 1981, p. 18. em 1808 até a abdicação de D. Pedro / em 1831. Rio de Janeiro, 1965.

30 31
cialização e financiamento que o permitiam,44 ou porque o peso do
fiscalismo conduzia muitos dos colonos à ruína. Uma contradição
prietários em situação colonial — senão romper com a dominação
metropolitana.
que aquele analista da situação colonial buscava resolver por meio
Ou dizendo de maneira diversa. No final do século XVIII,
de uma proposição:
abriam-se duas possibilidades aos colonos: ou romper com a moeda
colonial para que ela pudesse voltar a ser cunhada, sob condições
“Só teme quem tem que perder; quem mais tem que perder
novas que permitiriam a reprodução da propriedade colonial; ou
mais teme; quem mais teme, mais obedece; é, pois, necessá-
romper com a moeda colonial sem a finalidade de uma recunhagem,
rio que os interesses da Metrópole sejam ligados com os
comprometendo, assim, a própria existência da propriedade colonial.
das colônias, e que estas sejam tratadas sem rivalidade.” 45
Os acontecimentos dos últimos anos do século XVIII e dos primei-
ros do século seguinte conduziram a uma terceira possibilidade, im-
0 estudo de diferentes momentos nessa relação demonstra como a primindo um colorido particular à emancipação, conforme a histo-
reprodução de uma das partes implicava tanto a reprodução da
riografia não deixa de assinalar. Um dos procedimentos que permi-
outra quanto impunha-lhe obstáculos. Fora assim por ocasião da
tem percebê-lo consiste em pôr em evidência a região de agricultura
Insurreição Pernambucana e também da Revolta de Beckman, para
mercantil-escravista .

darmos dois exemplos. Seria assim no momento privilegiado da


crise do sistema colonial, no qual os conjurados de Minas Gerais,
por exemplo, pretendiam “restaurar uma ordem perdida”, isto é,
46
restaurar as propriedades que os distinguiam.
Observemos, contudo, que as análises mais difundidas sobre a 2. A REGIÃO DE AGRICULTURA MERCANTIL-ESCRAVISTA
crise do sistema nem sempre a entendem assim, enfatizando ou
apenas destacando um dos lados da questão, ao insistir numa visão
na qual os colonos aparecem como os responsáveis pelo rompimento “quem caminho
vai por este

do pacto. Ora, podemos dizer que somente em situações próximas se sempre transforma
passa
o nome, o tamanho, o corpo
ao limite os colonos dispuseram-se a tal.
na coisa em que a estrada faz”.
No fundo e no essencial, quem rompe com o pacto colonial são
João Cabral de Melo Neto.
os agentes metropolitanos, seus fundadores, pela própria dinâmica
do sistema colonial de base mercantilista. Ao intensificarem os 47
Estimava o estatístico brasileiro F. Nunes de Sousa, em artigo pu-
mecanismos e as formas de sua atuação, eles tendiam a invadir a
blicado n’0 Diário do Rio de Janeiro em fins de 1847, que a po-
face colonial da moeda, confiscando mesmo as propriedades dos
pulação do Império do Brasil alcançava o total de 7.320.000 indi-
colonos endividados. Tal contradição tendia a se agravar, por sua
víduos. Estimava também que, deste total, 2.120.000 eram bran-
vez, em função da situação de decadência da metrópole portuguesa,
cos; 1.100.000, mulatos livres; 3.120.000, negros, escravos; 180.000,
no quadro europeu. Desde então, aos proprietários coloniais não
restava outra alternativa —
caso desejassem continuar sendo pro- libertos africanos; e 800.000, índios.47
Na classificação empreendida, não constitui tarefa difícil perce-
44 Cf. Celso Furtado —
Formação econômica do Brasil op. ,
cit., especial- ber o cruzamento de critérios raciais e jurídicos, então prevalecen-
mente o cap. IX, “Fluxo de renda e crescimento”, pp. 62-69. tes na sociedade. Todavia, eles não eram os únicos critérios utili-
45 J. J. da Cunha Azeredo Coutinho — “Ensaio sobre o comércio de Por- zados quando se buscava conhecer a diminuta população do Im-
tugal e suas colônias”, in Obras econômicas (org. de Sérgio Buarque de Ho- pério, a qual —
como frisara o redator do “Prólogo” acima trans-
landa). São Paulo, 1966, p. 156.
46 Cf. Carlos Guilherme Mota —
Atitudes de inovação no Brasil 1789- — crito —
“não corresponde com a vastidão de seu território”. Caso
1801. Lisboa, s.d. (especialmente o cap. VI, “Propriedade, nacionalismo e re-
consultemos o Relatório do Ministro da Justiça, referente ao ano
volução”); para uma discussão sobre o valor e preço de monopólio, como sub-
sídio para o que vimos comentando, ver J. Gorender —
0 escravismo colonial ,

op. especialmente o cap.


cit. ( XXIV, “Financiamento da produção e circulação
Apud Gilberto Freyre — Vida social no Brasil em meados do século
mercantil”, pp. 489-523).
XIX. Recife, 1977, p. 44.

32 33
de 1841, encontraremos ali uma nova classificação, distinguindo Conforme referia o presidente da Província do Rio de Janeiro,
os habitantes do Litoral dos demais do “Sertão”: em 1844, num país de escassa população (e ameaçado com a ex-
tinção do tráfico negreiro intercontinental, poderíamos acrescentar)
“Essa população que não participa dos poucos benefícios urgia incentivar a colonização, isto é, a obtenção de mao-de-obra
da nossa nascente civilização, falta de qualquer instrução livre para a grande lavoura, pois "a colonização de indivíduos mo-
moral e religiosa, porque não há aí quem lha subministre, rigerados, trabalhadores e industriosos, alargando a escala dos re-
imbuída de perigosas idéias de uma mal-entendida liber- cursos do país, e criando novas indústrias e trabalho, dará emprego
dade, desconhece a força das leis, e zomba da fraqueza das àqueles de nossos cidadãos, que à falta de meios se lançam na car-
autoridades, todas as vezes que vão de encontro aos seus reira dos crimes”. 50
caprichos, Constitui ela. assim, uma parte distinta da so- Uma outra autoridade —
o deputado fluminense Rodrigues Tor-
ciedade do nosso litoral e de muitas de nossas povoaç5es res — havia dito, no ano anterior, em defesa de um projeto de
e distritos, e principalmente por costumes bárbaros, por colonização de sua autoria, e do qual resultaria a denominada Lei
/' AB
atos de ferocidade, e crimes horríveis se caracteriza de Terras de 1850, que

11

Se a população do “Sertão' distinguia-se pela barbárie, a “so- “se não tomarmos alguma providência que proteja os inte-
ciedade do Litoral” caracterizava-se por uma civilização, acredi- resses da agricultura, única indústria do Brasil ficaremos
,

tan do-se que tal se devia, em larga medida, aos contatos desta úl- bem depressa reduzidos à classe de proletários”.51
tima com as nações civilizadas, das quais distava apenas cinquenta
dias,Já o sabemos. Num
contraste evidente, a precariedade das Os exemplos se multiplicam de associação entre Civilização e
e o Litoral: em meados do século,
1

comunicações entre o “Sertão" Agricultura. Talvez mais significativo do que transcrevê-los, seja
no momento em que eram construídas as primeiras ferrovia e ro- lembrar que a associação referida, e também a defesa da atividade
dovia na Província do Rio de Janeiro e os vapores começavam a agrícola, colocavam as autoridades imperiais lado a lado daqueles
ligar de modo regular as capitais provinciais litorâneas à Corte, que, na antiga Metrópole e três quartos de século antes, apareciam
eram gastos ainda tiés meses para ir do Rio de Janeiro à capital como os arautos da fisiocracia em contraposição a um mercanti-
da Província de Goiás e cerca de cinco para atingir a de Mato lismo declina nte. constituindo a Academia Real das Ciências, fun-
Grosso; e embora já se utilizassem barcaças e outros tipos de em- dada em
1799: em Antônio Henriques da Silveira, Domingos Van-
barcações para a navegação fluvial, o lombo das mulas ainda eTE delli,Luís Ferrari de Mordau e alguns mais, a defesa da produção
o meio de transporte mais difundido, para mercadorias e pessoas agrícola; em Azeredo Coutinho e Rodrigues de Brito, a desilusão

— penosamentel 4 ® quanto às minas de metais preciosos.52 Lia-&e em Vandelli: “As


Fábricas não podem subsistir, nem prosperar, senão em proporção
Por outro lado, julgava-se também que a diferença do Litoral
resultava das atividades industriosas ali realizadas, particularmen- do estado florescente da Agricultura. Todas as Fábricas precisam
te a agricultura. Entendiam muitos que, apesar do atraso em que abundância e barateza das primeiras matérias-primas, e particular-
ainda se encontrava — devido
“essencialmente à sede de ouro que mente da mao-de-obra, que depende absolutamente da abundância
lavrara na maior parte dos aventureiros portugueses que primeiro das produções da Agricultura”; dizia Rodrigues Torres, ocupante
se estabeleceram no Brasil” —
a agricultura de gêneros para a do cargo de ministro da Fazenda em 1850: “Não se entenda po-
exportação era a fonte de Civilização.
téncias de viagens e permanências no Brasil {províncias do Sul). São Paulo,
1972.
48 fíefcitorio do ministro da Justiça, 1841, Paulino lose Soares de Sousa, 58 Jteíafório do presidente da Província do Rio de Janeiro, ano de 1844,

p. 19. j. C, Viana, p. 4.
49 Cf, entre outrts: Gilberto Frejre —
Pula social no Brasil em meados dmiLs do Parlamento Brasileiro Câmara dos Deputados (daqui em diante,
— —
,

do século XIX, cit.; Pedro Calmoi História social do Brasil Êspriío APB-CD ), Sessão de II de agosto de 1843, p. 717,
da sociedade imperial, op. cit.; Daniel P. Kidder —
Reminiscências de viagens 52 Cf. Vitoriso Magalhães Godinho — A estrutura na antiga sociedade
e permanências no Brasil f províncias do Sorte). São Paulo, 1972; e jRemmis- portuguesa. Lisboa, 1971, pp. 95-115.
rém ser minha opinião que devamos ou possamos promover desde expansão. 54 Mas, muito mais do que tudo isso: fora por meio da
já todos os ramos de manufaturas à custa e com sacrifícios da atividade agrícola que a moeda colonial alcançara sua efetivação
indústria agrícola. (...) Nenhum ramo de indústria manufatureira a mais acabada no quadro da colonização portuguesa na América,
ou fabril deve no meu conceito ser protegida, ao menos por ora, enriquecendo colonizadores e gerando colonos; era por meio da
cujas matérias-primas não são ou possam vir a ser facilmente pro- atividade agrícola cafeeira que a moeda colonial encontrava sua
duzidas no Brasil”.53 melhor possibilidade de restauração, integrando os interesses do
A descoberta de uma semelhança entre momentos e espaços dis- novo colonizador inglês aos dos colonos transmutados em cidadãos,
tintos quase sempre nos induz ao estabelecimento de uma conti- particularmente aqueles ligados à expansão cafeeira.
nuidade; no caso que vimos abordando, entre os que levavam a Por certo, a produção científica não se tem mostrado indiferente
cabo a consolidação monárquica e aqueles que haviam vivido a à importância dessa atividade que, pelos tempos afora, parece en-
crise do Reino no momento da crise do Antigo Sistema Colonial. contrar a sua razão no mercado externo. Deixemos de lado aqueles
As idéias defendidas por José Bonifácio em trabalho apresentado à autores excessivamente preocupados com os “ciclos” da economia
Academia Real de Ciências, em 1815 —
“Nação alguma é inde- brasileira, até mesmo porque eles nos impossibilitam a visão da
pendente se precisa de sustento estrangeiro, Nação alguma é rica moeda colonial. Sem uma preocupação exaustiva, tomemos três
e poderosa se o terreno onde mora anda inculto e baldio; e se
a outros que se orientam por uma ética diversa. Para Leo Waibel,
pouca Agricultura que possui depende inteiramente dos esforços esta atividade constitui uma plantage isto é, “um grande estabe-
e desvelos únicos da classe a mais pobre e menos instruída
— ,

lecimento agro-industrial, que, via de regra, sob direção de euro-


parecem reforçar a proposição de alguns, segundo a qual os ho- peus produz, com grande emprego de trabalho e de capital, pro-
mens que realizaram a emancipação política do Brasil representa- dutos agrícolas valorizados para o mercado mundial”. 55 Seguindo
riam o elo de ligação entre os elementos portugueses, engajados os passos do geógrafo, mas ao mesmo tempo buscando referir esta
num projeto reformista, do qual faria parte, de modo ativo, a alta unidade de produção a seu contexto histórico, Caio Prado Júnior
burocracia, e os políticos imperiais forjadores de uma unidade _e nos fala da grande lavoura uma das manifestações da grande uni-
,

de uma centralização. Uma proposição que sublinha unicamente a dade produtora que distingue o empreendimento colonial: seu traço
continuidade, num processo no qual as descontinuidades é que essencial é “a exploração em larga escala. Cada unidade produtora,
constituem o pano de fundo que possibilita perceber o que per- conjugando áreas extensas e numerosos trabalhadores, constiiui-se
manece. como uma usina, com organização coletiva do trabalho e mesmo
outro lado, devemos referir a posição que a atividade agrí-
De especializações”. Sua importância resulta, antes de tudo, do fato
cola ocupava no pensamento dos grupos dirigentes ao papel que de que deste tipo de organização “derivou toda a estrutura do país:
desempenhara e continuava desempenhando na economia do país, a disposição das classes e categorias de sua população, o estatuto
e, como decorrência, aos interesses das forças que ajudara a cons- particular de cada uma e dos indivíduos que as compõem”.56 Para
tituir, de um lado, e consolidara, de outro. Jacob Gorender, ela constitui a forma plantagem, a forma de orga-
Com a “solução açucareira” possibilitara tanto a defesa
efeito, nização dominante no escravismo colonial e que apresentava como
do quanto a valorização econômica das terras americanas
litoral traços mais característicos a especialização na produção de gêneros
pertencentes ao Rei de Portugal desde a assinatura do Tratado de para o mercado mundial, o trabalho por equipes sob comando uni-
Tordesilhas; de outro lado, mesmo no momento de apogeu da ati- ficado, a conjugação das atividades agrícola e de beneficiamento
vidade mineradora, o valor da exportação do açúcar suplantou o no mesmo estabelecimento, além da divisão do trabalho quantita-
daquele metal; por fim, era por intermédio da lavoura cafeeira
que, a partir da quaTta década do século, a economia do Império
conseguia reintegTar-se nas linhas do comércio mundial em plena 54 Cf. entre outros: Roberto Simonsen — História econômica do Brasil
( 1500-1820 ), op. cit.; Celso Furtado — Formação econômica do Brasil op. cit.;
Caio Prado Júnior — ,

História econômica do Brasil 6. a edição. São Paulo, 1961.


Waibel —
,

5a Leo Capítulos de geografia tropical e do Brasil. Rio de Ja-


53Domingos Vandelli, apud V. JVÍ. Godinho —
Op. cit ., p. 101; Rodrigues neiro,1958, p. 41.
Torres —Relatório io ministro da Fazenda 1850, p. 32.
,
56 Caio Prado Júnior — Formação do Brasil contemporâneo ,
op. cit., p. 137.

36 37
f

“a posse de um engenho confere aos lavradores dos arre-


tiva e qualitativa. Segundo Gorender, desta forma de organização
dores do Rio uma espécie de nobreza. Só se fala com con-
o trabalho escravo irradiou a outros setores da
produção e se difun-
sideração de um senhor de engenho e vir a sê-lo é a ambi-
,

da vida social. E, ainda mais significativo,


diu na generalidade
categoria fun-
ção de todos. Um senhor de engenho tem geralmente um
“juntamente com a escravidão, a plantagem constitui
aspecto que prova que se nutre bem e trabalha pouco. Quan-
damental do modo de produção escravista colonial do está com inferiores, e mesmo com pessoas da mesma
Por certo, os três autores se distinguem pela preocupação
em
categoria, impertiga-se, mantém a cabeça erguida e fala com
distinguiria a agri-
caracterizar uma unidade de produção, a qual essa voz e tom imperioso que indica o homem acostumado
cultura realizada pelo europeu nos trópicos,
para o primeiro; seria .” 58
a mandar em grande número de escravos
da colonização para o se-
uma expressão imediata do “sentido ,

gundo; e possibilita ao último identificar uma das categorias


fun-
também Pelas relações que mantém na região, as quais, por seu turno,
damentais do modo de produção escravista colonial. Somos propiciam uma delimitação, e sobretudo pelo lugar que ocupa num
tentados a dispô-los numa espécie de seqüência,
na qual passaría-
determinado sistema de produção social, o senhor de engenho é,
descritiva à análise cate-
mos progressivamente de uma tendência antes de tudo, um plantador escravista. A ele se contrapõe, em ca-
gorial-sistemática, de forma que, sobretudo para os dois últi-
tal 59 Ora, tal situação rea-
ráter fundamental, o escravo de plantação
unidade de produção cumpre também
,

mos, a identificação desta


firma a moeda colonial, dando vida à região. Expliquemos isto,
0 papel de identificação de
um fundamento a partir do qual se com mais vagar.
colonial. E aí reside
erige o conjunto das relações sociais no espaço Se não há mercado externo, não há grande lavoura, por um lado;
um aspecto fundamental para a constatação de uma diferença.
àque- se não há trabalho compulsório (neste caso, trabalho escravo), não
Deixemos claro, de imediato, que não negamos importância há produção colonial, por outro. De modo distinto do escravismo
Todavia, o fato de termos trazido para o primeiro
plano
las análises.
antigo (e reside justamente aí uma das diferenças essenciais entre
a região —
e, neste caso particular, aquela que já denominamos

faz com que
o escravismo clássico e o colonial), os proprietários de escravos co-
acima de região de agricultura mercantibescr avista
tomemos o que chamamos de face metropolitana apenas como loniais — aí incluídos os plantadores escravistas —
não tinham
não acesso e controle das fontes fornecedoras de escravos, caracterizando
a propiciadora de uma gênese, a qual
tendo cumprido o seu papel
aquilo que um autor denomina de extraterritorialidade do mercado
produção, sintetizadora e irradia-
cederia lugar àquela unidade de
que caracterizariam a de trabalhop 0 isto é, e em termos ainda estritamente geográficos,
dora, ao mesmo tempo, das relações sociais
a sua localização fora da região e da Colônia como um todo. Não
Como atualização, num determinado espaço- tempo, das re-
Colônia.
57 obstante, esta extraterritorialidade era, antes de tudo, uma interdi-
lações distinguem a moeda colonial, a região não se reduz
que ^ ção. Como lembra Fernando Novais, em função dos interesses me-
àquela unidade, embora se deva ter em consideração a
posição pri-
tropolitanos, era interditado aos da Colônia o apresamento e a es-
vilegiada que ela ocupa no seu interior. Como resultante dos pro-
cravidão de homens da própria Colônia 61 Uma interdição que não
.

engendrados por colonizadores, colonos e colonizados na faina


cessos
desse movi- era senão o funcionamento do próprio pacto, sublinhando a subor-
da colonização, a região possibilita, pela consideração dinação dos interesses do colono aos do colonizador.
mento, dar vida e conteúdo precisos a cada um desses agentes, es-
termos, num primeiro momen- Na região de agricultura mercantil-escravista, o plantador escra-
capando generalização
à que aqueles
vista vivia, a cada instante, a reafirmação de sua subordinação ao
to, encerram.
senhor
Assim, na região de agricultura mercantil-escravista, o
de engenho aparece como o mais importante dos colonos, homem 58 Auguste de Saint-Hilaire — Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro
referindo-se aos pro-
de cabedal e governo” no dizer de Antonil, e Minas Gerais. Belo Horizonte, 1975, p. 38.
prietários da área nordestina. Viajando pela
Província do Rio de 59 Cf. Jacob Gorender — O escravismo colonial op. cit. (especialmente o
,

que cap. XXV, “Plantadores e mercadores”, pp. 524-537).


Janeiro, no início do século passado, Saint-Hilaire diria 60 Cf. Luiz Felipe Alencastro —
UEmpire du Brésil. Comunicação ao “Col-
loque sur le concept d’Empire”, realizado no Centre d’Études compares des
systèmes politiques, Université de Paris I, março de 1978, mimeo.

— 89.
61 Fernando A. Novais — Op. cit., p. 105.
Jacob Gorender Op. cit ., p.

39
38
“A única coisa que compreendem é que o restabelecimento
colonizador, que tanto monopolizava o tráfico negreiro e os crédi-
do sistema colonial lhes causaria dano, porque se os portu-
tos que possibilitavam a aquisição desta mercadoria fundamental,
gueses fossem os únicos compradores de seu açúcar e café,
quanto possuía os elementos político-militares que permitiam levar
não mais venderiam suas mercadorias tão caro quanto agora
a cabo a expansão que garantia terras para a monocultura,
fazer
o fazem. Professam, como outrora, o mesmo respeito pela
frente às insurreições negras, destruir os quilombos e combater as
autoridade, falam sempre do Rei como árbitro supremo de
tribos indígenas. Ora, esta subordinação conduzia a uma
hierarqui-
suas existências e da de seus filhos. É sempre ao Rei que
zação em cada uma das faces da moeda: no lado da Região, o
pertencem os impostos, as passagens dos rios, etc.” 63
escravo passava a se constituir no mais importante dos monopólios
que distinguiam o plantador escravista; no lado do Reino, o tráfico Antes de buscarmos uma explicação para essa mudança, talvez
negreiro transformava-se no principal dos monopólios que caracte- seja interessante acompanhar a evolução desta região, caracterizando
rizavam o comerciante. assim as próprias vicissitudes da moeda colonial. Destaquemos, con-
Na medida em que eram proprietários em condições coloniais; tudo, que tomaremos como referência apenas uma parte dela
em que ao complementar por meio de uma produção os interesses — o “Sul”, como se dizia no tempo do Império, ou o “Sudeste”,
metropolitanos acabavam por se contrapor a eles por estarem obri-
gados a um consumo; em que se relacionavam antagonicamente
como dizemos hoje —
por ser nela que as transformações mais
significativas e que mais nos interessam tiveram lugar.
com os escravos de plantação no processo de produção; em que se Consideremos três situações diversas.
relacionavam de modo contraditório, por meio da ideologia do fa-
vor, com os homens livres e pobres; e em que opunham seu modo a) A cunhagem da moeda e a fundação da região:
de vida e suas concepções aos de outros contingentes sociais; os
plantadores escravistas construíam lentamente sua individuação, Os colonos e colonizadores que ocuparam a baixada espremida
possibilitavam o recorte de uma região e pareciam mesmo consti- entre a serra e o mar, e que se estende do rio Itabapoana até a
tuir uma classe social. Não obstante, a forma que a colonização angra dos Reis, durante os dois séculos iniciais da colonização,
assumiu, o isolamento das regiões, o próprio isolamento entre os corroboravam a observação de frei Vicente do Salvador de que os
plantadores e, antes de mais nada, a própria efetivação do pacto portugueses, embora fossem grandes conquistadores de terras, no
colonial limitavam aquela constituição. Nas câmaras municipais, os Brasil
plantadores escravistas reafirmavam os nexos complementares e
contraditórios
62
que os uniam aos colonizadores; quase ao mesmo “contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar
64
tempo, questionavam o preço do monopólio e reivindicavam meios como caranguejos.”
para sustentar a ordem escravocrata. Expressavam sua organização
uma determinada De modo semelhante ao que ocorria na costa oriental do Nor-
no plano meramente económico-corporativo de ,
re-
62 deste e no Recôncavo Baiano, também na Baixada Fluminense o
lação de forças políticas.
desdobramento da empresa mercantil lusa em atividade coloniza-
As observações de Saint-Hilaire, no ano de 1822, talvez demons-
dora ocorria por meio da agroindústria açucareira, que acabava por
trem uma mudança na qualidade desta organização. Dizia o natu-
comandar, em larga medida, a distribuição dos grupos humanos,
ralista que
ao mesmo tempo que requeria a atividade pastoril que a comple-
operaram em Portugal no Rio de mentava. O desdobramento da faina lusitana se expressava no des-
“As revoluções que se e

menor influência sobre os habitantes dobramento do colonizador em colono, deixando-se ficar ambos no
Janeiro não tiveram a
litoral ao lado dos colonizados.
desta zona paulista; mostram-se absolutamente alheios às
nossas teorias; a mudança de governo não lhes fez mal nem
bem, por conseguinte não se tem o menor entusiasmo. 63 Auguste de Saint-Hilaire — Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas
Gerais e a São Paulo. Belo Horizonte, 1974.
64 Frei Vicente do Salvador —
História do Brasil. Rio de Janeiro, 1888,
p. 8 (a primeira edição da obra é de 1627).
Antonio Gramsci — Antologia. México, 1970, pp. 409-422.

41
40
“pelo que se vê esta Cidade, (...) pela sua situação e
Pela baixada estendiam-se os canaviais e as fazendas de criação
porto deve ser a cabeça do Brasil”, 66
de gado, desde fins do século XVI. A população nativa submetida
a escravidão ou reduzida à catequese pelas ordens religiosas
e,
e se expressavano termo da cidade-capital, que abrangia vastas áreas
num segundo momento, os negros africanos também escravizados
da baixada e do “interior”. 67
constituíam a força de trabalho necessária àquela expansão, cuja Não obstante o início da ocupação do interior, a Baixada Flumi-
orientação era dada pelas condições naturais da região, ao menos nense continuava a ser a parte mais significativa da Capitania do
até as primeiras décadas do século XVIII. Assim,
pelas zonas de
Rio de Janeiro, e sobretudo durante a segunda metade do século
matas estendiam-se os engenhos e engenhocas, sobretudo no Recôn- XVIII sublinharia a sua importância como centro produtor. No
cavo da Guanabara — ou “Recôncavos do Rio de Janeiro”, como seu decorrer, a lavoura canavieira expandiu-se extraordinariamente,
referia o Marquês de Lavradio —
enquanto os currais ocupavam
,
em particular pelos terrenos de “barro fino, branco ou loiro” dos
as áreas de campos naturais, como os de Santa
Cruz, de Bacaxá e
Campos dos Goitacases. Desde então, torna-se possível distinguir
aos jesuítas e benedi-
os Campos Novos de São João, pertencentes na Baixada Fluminense duas áreas bem caracterizadas de produção
dos Campos dos Goitacases que a
tinos. Contudo, seria na região açucareira: uma antiga, com terras já cansadas, matas escassas e
atividade pastoril mais se expandiria nestes primeiros tempos, cons-
dos engenhos
fraca produção —a do Recôncavo da Guanabara; e outra nova,
tituindo os seus currais a verdadeira “retaguarda com terras férteis e produção elevada, que permitia compensar os
dos Recôncavos do Rio de Janeiro.
6,>
altos preços do açúcar —
a dos Campos dos Goitacases.
68

Se a ocupação da Capitania do Rio de Janeiro nos dois primeiros Embora cultivada em


propriedades de tamanho menor do que
séculos se restringira praticamente à baixada, o descobrimento das aquelas existentes no litoral oriental do Nordeste e no Recôncavo
minas no centro do território possibilitou o início do povoamento Baiano, a lavoura canavieira dominava amplamente a atividade
do seu interior, no decorrer do século XVIII. agrícola na Baixada Fluminense, eliminando a concorrência de
De um lado, ocorreu o crescimento da cidade de São Sebastião outras culturas, como o anil e a cochonilha, introduzidas e incenti-
do Rio de Janeiro, tornada centro polarizador também da região vadas pelas autoridades coloniais.
mineradora por determinação régia. A abertura do “Caminho Novo” Um importante plantador escravista nesta área foi o Dr. Francisco
por Garcia Rodrigues Pais, no início do século, permitia à cidade de Macedo Freire de Azeredo Coutinho (1747-1823), bacharel em
exercer sua função de escoadouro da produção dos centros minera- Direito pela Universidade de Coimbra e capitão-mor de Cabo Frio.
65
dores, ao mesmo tempo que a de porta de ingresso dos artigos
Era proprietário da Fazenda da Tiririca, na freguesia de Araruama,
vindos do exterior. e dos engenhos de Fora e Sant’Ana. Daquela fazenda, cujo engenho
De outro lado, a abertura do novo roteiro até as minas e o sur- de açúcar era servido por numerosos escravos e gados, trafegava
gimento de suas variantes permitiram o rompimento da barreira os seus produtos para à cidade do Rio de Janeiro por meio de lan-
da serra, que parecia aprisionar os grupos humanos no litoral, e chas que navegavam pela lagoa de Araruama e saíam para o oceano
a intensificação do povoamento da parte central do interior da ca- pela barra de Cabo Frio. De seu primeiro casamento teve uma
pitania. Ao longo dos caminhos, surgiram fazendas onde a produ- única filha; esta casou-se, por sua vez, com o proprietário do Enge-
ção de gêneros de subsistência e mesmo de cana-de-açúcar desti- nho Itapacorá, e duas de suas filhas esposaram Joaquim José Rodri-
nava-se ao abastecimento da cidade e dos viajantes e das tropas que gues Torres, futuro Visconde do Itaboraí, e Paulino José Soares de
69
por eles transitavam. Sousa, futuro Visconde do Uruguai, no início do Segundo Reinado.
A importância adquirida pela cidade motivaria a observação do
Conde da Cunha —o primeiro vice-rei no Rio de Janeiro, para 66 Citado por A. C. Ferreira Dias — “A Província do Rio de Janeiro e
onde a capital da Colônia fora transferida em 1763 —
de que o município neutro”, in História geral da civilização brasileira (dir. Sérgio Buar-
que de Holanda), tomo II, vol. 2.°. São Paulo, 1964, p. 316.
67 Talvez seja interessante assinalar, aqui, a quase correspondência espacial
entre o termo da cidade em 1763 e a área da atual Região Metropolitana.
Dados a respeito do número de engenhos existentes no Rio de Janeiro 68 Renato da Silveira Mendes —
Paisagens culturais da Baixada Fluminense.
e de cabeças de gado criadas nos diferentes campos da região podem ser en- São Paulo, 1950, p. 51.
contrados no trabalho já referido de Antonil, nas páginas 228 e 310 da edição 69 Cf. Antonio Joaquim Macedo Soares (Comendador) —
Nobiliarquia flu-
citada.

43
42
Digna de destaque é também a pessoa de José Carneiro da Silva “tão faltas de gente e tão cheias de miséria que não são vilas
(1788-1864), tornado Visconde de Araruama, cavaleiro da Casa mais que no nome.”72
Imperial e grande do Império. Proprietário da fazenda de Quiçamã,
visitada por Ribeyrolles na segunda metade do século passado, foi b) A diferenciação na região e a gênese da classe:
encarregado pelo intendente-geral de Polícia da Corte e do Estado
do Brasil, Paulo Fernandes Viana, em 1811, da limpeza e conser- Excessivamente presos à perspectiva dos “ciclos econômicos” e
vação dos rios que esgotam para a lagoa Feia e esta para o mar. atraídos pela atividade mineradorá, os trabalhos historiográficos ten-
Membro correspondente do Instituto Histórico de Paris, redigiu a dem a construir um hiato entre o “ciclo do açúcar” e o “ciclo do
73 E, ao
Memória Topográfica e Histórica sobre os Campos dos Goitacases café”, no que diz respeito a uma “história da agricultura”.
e aMemória sobre canais e estradas e a utilidade que resulta à civili- assim proceder, deixam à margem o conhecimento de processos fun-
70
zação, à agricultura e ao comércio da construção dessas obras .
damentais que não só explicam a ampliação dos limites da região
A expansão da lavoura açucareira pela Capitania do Rio de de agricultura mercantil-escravista, em particular na parte que esta-
Janeiro, como expansão da colonização, era a reprodução das con- mos considerando, como também permitem a compreensão da ex-
dições em que esta colonização se organizava. Se o número de enge- pansão ocorrida no momento seguinte e que conduz, ao cabo, quer
nhos crescia, os trabalhadores escravos multiplicavam-se, ao mesmo ao aprofundamento das diferenças entre esta região e as demais
tempo que não ampliar a massa de homens livres e
cessava de se surgidas com a colonização de exploração, quer à constituição de
pobres, e dentre eles os “vadios” e “facínoras” identificados pelas uma diferença no interior da própria região de agricultura mer-
autoridades coloniais. No Relatório em que transmitia o governo cantil-escravista, diferença esta fundamental, mas que, via de regra,
a seu sucessor, em 1779, o Vice-Rei Marquês do Lavradio infor- somente é considerada pela vertente da historiografia preocupada
mava que com os processos econômicos, a qual passará a opor uma nova
74
lavoura” às “lavouras tradicionais”.
“foi muitos anos aquele distrito [Campos dos Goitacases] o Comecemos pela consideração da grande mobilidade da população
asilo de todos os malfeitores, ladrões e assassinos, que ali neste momento, particularmente no Sudeste, como decorrência em
se recolhiam vivendo com um despotismo e liberdade, que larga medida, embora não exclusivamente, do esgotamento das jazi-
quase não conheciam sujeição de pessoa alguma, todos viviam das auríferas.
em bastante ociosidade, contentando-se só de cultivarem A partir dos centros mineradores em decadência, os “generalistas”
71
pouco mais do que lhes era preciso para sua sustentação”. tomaram ganhando relevância duas delas no po-
direções diversas,
voamento da capitania, logo depois província, do Rio de Janeiro.
De modo semelhante se manifestara o já referido Conde da Cunha, De um lado, eles avançaram para oriente de Minas Gerais, dando
ao responder à solicitação régia no sentido de providenciar o esta- origem a uma importante zona agrícola, e ao infletirem para o sul
belecimento de povoados de pelo menos cinqüenta fogos, onde pu- acabaram por se encontrar com a corrente de povoamento prove-
desse recolher os vadios e criminosos que infestavam a capitania.
Após informar que nela existiam uma única cidade —
Cabo Frio,
e cinco vilas —São Salvador dos Campos dos Goitacases, São João 72 Citado por A. C. Ferreira Reis — Op. cit.
da Barra, Parati, Ilha Grande e Macacu, o vice-rei concluía serem 73 Para uma avaliação crítica desta postura, ver Alcir Lenharo Rota

todas menor —o movimento mercantil da economia de subsistência no Centro-Sul


do Brasil (1808-1831)”, Anais do Museu Paulista vol. XXIII, 1977-78. Para
,

o conhecimento da expansão da economia colonial neste período, cf. José Jobson


tle A. Arruda —O Brasil no comércio colonial. São Paulo, 1980. Em Caio
minense. Genealogia das principais e mais antigas famílias cia Corte e Província Prado Júnior — História a
econômica do Brasil 6. edição. São Paulo, 1961, en-
,

do Rio de Janeiro. Niterói, 1948. contra-se também pequeno resumo destes processos, embora não particular-
um
70 Cf. Charles Ribeyrolles — Brasil pitoresco. Belo Horizonte-São Paulo, mente referidos à parte da região que estamos considerando (ver cap. 10, Re-
1980. 2.° vol., p. 28; e M. Vianna de Castro — A aristocracia rural flumi- nascimento da agricultura”, pp. 81-93).
nense. Rio de Janeiro, 1961, p. 13. 74 Cf., p. ex., Caio Prado Júnior — História econômica do Brasil , op. cit.,

71 “Relatório do Marquês de Lavradio. .”, cit.* p. 327.


. p. 161.

44 45
niente do Rio de Janeiro, e que tinha como ponto de dispersão Um dos pioneiros na área foi também o Capitão João Pinheiro
Cantagalo. de Sousa (1787-1860), casado com uma das filhas do Major Wer-
Barão
De outro lado, os “generalistas” avançaram dos centros minera- neck e tio de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, futuro
Tornado proprietário por meio da concessão
dores para o sul, em direção da Mantiqueira, onde se estabeleceria do Pati de Alferes.
de uma sesmaria que requerera às margens do rio Paraíba
do Sul,
importante atividade agrícola e pastoril, voltada sobretudo para o
abastecimento do mercado da cidade do Rio de Janeiro,
7,>
além do teria seu nome assinalado pelos cargos que
ocupou e serviços que
foi remu-
cultivo do fumo realizado em Baependi, Airuoca e Pouso Alto. prestou, sobretudo na tropa de segunda linha, pelo que
78
Esta corrente, que ocupou o que ficaria conhecido como o Sul de nerado pelo imperador com o oficialato da Ordem da Rosa.

Minas, avançaria ainda mais em direção ao curso médio do Paraíba, Figuras de relevo eram também o Marquês de São João Marcos
que, em 1818, já alcançara o título de barão; e José
Gonçalves
acabando por se encontrar com duas outras: a procedente da Capi-
tania de São Paulo, através do vale do Paraíba, e aquela outra que de Morais, Barão do Pirai, um dos pioneiros de São João Marcos,
do Império, por
saíra do Rio de Janeiro, mas que apenas de modo ralo ocupava a e que, em 1845, era tido como o maior fazendeiro

área onde, na passagem do século, existiam três pequenas vilas: Pati reunir cerca de 1.500 escravos e obter uma produção de café de

do Alferes, São João Marcos e Resende. 120.000 arrobas. 79


Percorrendo esta área no início do século XIX, Saint-Hilaire Ora, esta área localizada no curso médio do Paraíba, onde se
visitou o engenho de Pau Grande, do qual diria ser o engenho
encontravam as três correntes de povoamento referidas, não só for-
de açúcar mais importante que vi no Brasil, excetuando talvez os maria uma das principais zonas produtoras de café, na primeira
do Colégio, perto de S. Salvador de Campos, construídos pelos metade do século passado. 80 Ela marcaria também, e muito cedo,
jesuítas”. Ao mencionar o processo de sua fundação, em 1770,
por
sua presença na vida política do Império, por meio das reivindica-
Antônio Ribeiro de Avelar, o viajante francês fornece uma informa- ções de autonomia provincial. Numa primeira oportunidade,
em
ção que retrata os acordos entre colonizadores e colonos. Diz Grande,
ele
1829, Resende, Valença, Parati, São João Marcos e Ilha
municípios da Província do Rio de Janeiro, Campanha e Baependi,
Rodrigues da Cruz, possuía
que o sócio e irmão do fundador, José
originariamente uma légua de terras incultas em Pau Grande; da Província de Minas Gerais, e Bananal, Areias, Cunha e Guaratin-
associou-se a dois comerciantes do Rio de Janeiro que lhe fornece- guetá, da Província de São Paulo, reivindicaram a constituição
de
ram capitais; levantou em suas terras o engenho que ainda existe uma nova província: a Província de Resende, que teria o núcleo
aí, e começou a administrá-lo.76 Posteriormente, o mesmo Rodrigues urbano do mesmo nome como capital.
81

fazenda de
da Cunha fundaria, em área próximo ao rio Paraíba, a Ao mesmo tempo que tinha início a ocupação de modo mais
sobrinho, João Rodri-
regular do interior da Capitania do Rio de Janeiro e, na
Ubá, a qual à época da visita pertencia a seu vizinha
gues de Almeida, futuro Barão de Ubá, e que seria membro
do das áreas que ficavam na periferia do núcleo
de Minas Gerais,
Conselho do Imperador. 77 minerador, em especial as localizadas a leste e ao sul, mudanças
Todavia, o que logo distinguiria a área seriam os interesses gera- extremamente significativas também ocorriam na Capitania de São
Paulo, a qual se caracterizava, até esse momento, por ser uma
Ribeiro
dos pela produção cafeeira. Muitas deles filiavam-se aos espé-

de Avelar e aos Wernecks, sendo que estes teriam como origem, vimos
ao contato entre as regiões da Colônia: aquela que
cie de zona de
Werneck, proveniente das
que consta, o Major Inácio de Sousa
Minas Gerais.
78 Cf. Dr. Nogueira de Barros e Dr. Luiz G. de Souza Telles
— Tributo
Rio de Janeiro,
de gratidão à memória do Capitão João Pinheiro de Souza.
75 Cf. Alcir Lenharo — As tropas da moderação. São Paulo, 1979. E tam- 1860. (AN -códice 112 vol. 1).
bém Auguste de Saint-Hilaire —
Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas 79 Cf. Alberto Ribeiro
,

Lamego — O homem e a serra. Rio de Janeiro,


52 e 64
Gerais e a São Paulo (1822). Belo Horizonte-São Paulo, 1974, pp. 1963, pp. 249 e 256.
(referências à produção de base escravista voltada para o abastecimento do 80 Para uma descrição mais detalhada dos deslocamentos dos ‘generalis-

mercado do Rio de Janeiro). tas”, cf. Caio Prado Júnior — Formação do Brasil contemporâneo , op. cit.,

76 A. de Saint-Hilaire —
Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e
pp. 68-72.
Minas Gerais. São Paulo, 1975, pp. 25-27. 81 Sérgio Buarque de Holanda — Vale do Paraíba — Velhas fazendas.
77 Cf. M. Vianna de Castro —A aristocracia rural fluminense , op. cit., p. 8.
São Paulo, 1973, p. 35.

46 47
cuidando até agora, a de mineração-escravista e a pastoril esta na ,

sua parte do Extremo-Sul. rios.82 Deles constituem exemplos o negociante Francisco Antônio
Sem embargo, o território vicentino distinguira-se por fornecer de Sousa, pai de Francisco Inácio de Sousa Queirós, e que já obtinha
alternativamente escravos nativos às duas primeiras regiões men- de seus engenhos em São Carlos de Campinas, no ano de 1817,
cionadas, por ser ponto intermediário no comércio de tropas de uma produção média orçada em 12 mil arrobas; o Brigadeiro Manuel
muar que unia o Continente do Rio Grande e áreas vizinhas à re- Rodrigues Jordão e seu sobrinho Antônio da Silva Prado, futuro
gião mineradora-escravista, e sobretudo por uma atividade agrícola Barão de Iguape, que após acumular recursos no comércio algodoeiro
instala um engenho de açúcar em Jundiaí, naquele mesmo ano;
pouco expressiva, distribuída entre o litoral, onde se destacavam os
cultivos da cana-de-açúcar e do arroz, com uma finalidade mercantil, e o Brigadeiro Luís Antônio de Sousa, tio e sogro de Francisco
Inácio.
e o planalto onde predominava uma economia de subsistência, a
qual as exportações em quantidade restrita de milho, trigo e tou- Da com o advogado Nico-
associação do Brigadeiro Luís Antônio
lau Pereira de Campos Vergueiro, em 1816, resultou uma vasta
cinho para o litoral não conseguia abalar.
empresa para a criação de gado e o fabrico de açúcar e aguardente.
Mercê sobretudo dos esforços envidados pelos governos do último
Quando a sociedade foi desfeita em 1825, por um ajuste levado
quartel do século XVIII, no sentido de melhorar os caminhos que
a efeito por José da Costa Carvalho — o qual, pouco antes, despo-
ligavam o planalto ao litoral, isto é, ao porto de Santos, ocorreria
uma expansão inusitada da agricultura mercantil nas “terras de sara a viúva do brigadeiro, falecido em 1819 — entre as proprie-
,

dades que se dividiram entre seus herdeiros, “origem de muitas


serra acima”. Em muito pouco tempo, os canaviais expandiram-se
fazendas e fortunas do século XIX, incluía-se o engenho cujo nome
por Itu, Porto Feliz, Piracicaba, Jundiaí e pela freguesia de Cam-
vai se incorporar aos títulos com que, desde 1841, será agraciado
pinas, rivalizando e superando os núcleos litorâneos, especialmente
Costa Carvalho, sucessivamente barão, visconde, marquês de Monte
São Sebastião e Ubatuba: em 1798, a produção das vilas de “serra
Alegre”, informa o mesmo autor. 83
acima” alcançou o total de 131.584 arrobas, ao passo que as do
Não demoraria muito para que aqueles que são vistos como
litoral chegavam apenas a 21.584 arrobas; no ano seguinte, esses
“homens de uma espécie nova”, assumissem um lugar de destaque
totais subiam para 158.350 e 40.135 arrobas, respectivamente.
na vida da Província. Eles procurariam fazer valer
social e política
Embora não tenha conseguido jamais competir com a produção
os interesses da grande lavoura por meio das reivindicações do libe-
açucareira das áreas do “Norte”, a expansão da lavoura paulista
ralismo; pugnariam pela emancipação política e combateriam toda
provocou transformações profundas na Capitania, como se este fosse
e qualquer medida considerada arbitrária partida dos “corcundas’ .

o preço por sua integração na região mais importante no quadro


da colonização.
Ao lado de Vergueiro, apareciam Francisco de Paula Sousa —
concunhado do Brigadeiro Luís Antônio, e depois de Costa Carva-
O em paralelo ao avanço dos cana-
trabalho escravo expandiu-se
lho; o padre Diogo Antônio Feijó —
“homem perigoso e cheio das
abalada pela retração miner adora, sofreu
viais; a atividade pastoril,
idéias criminosas de liberdade”, no dizer de um contemporâneo; e
novo impacto, e foi obrigada a esperar a expansão cafeeira pelo 84
Álvares Machado como os seus representantes mais conspícuos.
Vale para recuperar-se; o porto de Santos reafirmou seu monopólio
Por sua ação contribuíam, sem dúvida, para o estabelecimento de
sobre a área, por meio de medidas legais, reproduzindo assim o
uma nova relação de forças, como tivemos ocasião de observar nas
que acontecia em outros pontos do litoral. Nenhuma transformação,
palavras de Saint-Hilaire que deixamos algumas páginas acima.
contudo, se comparava com os interesses que a nova expansão esta-
belecia.
De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, o que se encontra, 82 Sérgio Buarque de Holanda — “São Paulo' , in História geral da civili-
de fato,na origem do que denomina de “dinastias canavieiras e zação brasileira , tomo II, vol. 2. São Paulo, 1964, p. 454.
83 Idem, p. 455.
cafeeiras do século XIX”, em São Paulo, é quase sempre um nego-
84 Sobre a Capitania, logo depois Província de São Paulo, consultar também
ciante ou um soldado, ou ambas as coisas ao mesmo tempo; às Maria Thereza Schoerer Petrone — A lavoura canavieira em São Paulo. Expan-
vezes, algum advogado ou magistrado, europeus de preferência ou são e declínio (1765-1851). São Paulo, 1968; da mesma autora, O Barão de
brasileiros de primeira geração, que firmaram sua posição contrain- Iguape. Um empresário da época da Independência. São Paulo, 1976. Para um

do núpcias com filhas da terra e aplicando a renda em bens fundiá- perfil dos personagens mencionados, cf. Daniel P. Kidder —
Reminiscências
de viagens e permanências no Brasil (províncias do Sul), op. cit., pp. 237-250.

48 49
0 processo que se abre com a instalação da Corte Portuguesa no nunca, a cidade tornava-se o ponto de encontro de
burocratas e mi-
Rio de Janeiro viria reforçar os elementos dinâmicos dos processos litares, de negociantes e capitalistas, de nobres e delegações diplo-
que vimos considerando e também alterar os seus rumos pelo esta- máticas; a todos eles logo se agregariam os plantadores escravistas.
belecimento de uma subordinação. Ora, esta subordinação era apenas A atividade comercial tornou-se febril na cidade, tanto em decor-
o resultado da inauguração de uma relação distinta entre as duas rência da extinção do monopólio comercial
quanto da necessidade
faces da moeda que aquela instalação propiciava. Assim, não apenas de abastecer o núcleo urbano que crescia de modo acelerado. Fixe-
foram aprofundadas algumas das tendências que se delineavam nesse segundo aspecto, tornado crucial. De ime-
mos nossa atenção
nesta parte da região, desde o último quartel do século XVIII, no diato, o problema do abastecimento
provocara a inversão do fluxo
humanos, das atividades
comercial tradicional a partir do porto, como também
que diz respeito à distribuição dos grupos orientaria a
econômicas e das categorias sociais; elas também ganharam um “Sul”. Se ordens foram expedidas
política joanina de integração do
caráter distinto como decorrência da associação às transformações capitanias mais próximas para “socorrer a Cidade
para os portos e
de natureza política então desencadeadas, e que conduziram ao de mantimentos”, cuidou-se também de providenciar a abertura de
enraizamento dos interesses metropolitanos, isto é, dos colonizadores, o escoamento da produção interiorana
para
estradas que facilitassem
no Sudeste. 85 Podemos, aqui, não só repetir o que dissemos acima,
mas também ir além: este conjunto de transformações tanto gera- Para o Rio de Janeiro convergiam correntes diversas.
De Lisboa
vam a gradual individuação do “Sul” dentro da região, pondo em e do Porto vinham gêneros alimentícios, assim como do Prata. Esta
destaque o papel da cidade do Rio de Janeiro, quanto propiciavam fonte externa de abastecimento era
complementada pela interna,
um traço particular à independência política do país no conjunto tanto por meio da navegação de cabotagem quanto por via terres-
ao porto do Rio de
8()
da emancipação das colônias americanas .

tre. Pelo comércio de cabotagem chegavam


Vejamos, em primeiro lugar, as transformações sofridas pela ci- procedentes do Rio Grande do Sul, de Santa
Janeiro mercadorias
dade-capital. A sua população que era de 43.376 habitantes em Catarina e de pontos vários do litoral paulista e
fluminense atuais,

1799, elevou-se para cerca de sessenta mil em 1808; em 1819 já era como Cananéia, Iguape, Santos, Parati, Itaguaí, Ilha Grande, Gua-
de aproximadamente oitenta mil pessoas, alcançando o total de ratiba, Cabo Frio, Macaé e Campos. As embarcações que transita-
112.695 habitantes no ano do regresso da Família Real para Por- vam pela baía de Guanabara recolhiam em suas
margens hortali-
tugal. 87 Parece-nos que crescimento não pode ser creditado ape- 88 terrestre chega-
tal
ças, animais de pequeno porte e pescado. Pela via
nas ao número de indivíduos desembarcados com D. João, e sim quantidades crescentes de gado
vam ao mercado do Rio de Janeiro
ao aprofundamento das funções que a cidade exercia, e que teria em pé, porcos, galinhas e carneiros, além de toucinhos, queijos e
significativas repercussões na constituição do espaço que buscamos sobretudo no Sul de Minas, mas também na
cereais, produzidos
recortar. Como nova sede da monarquia portuguesa, a cidade am- nas Minas Gerais.
parte paulista do Vale e na região de Paracatu,
pliou suas funções de centro administrativo, além daquelas emi- substancialmente anima-
Esta via terrestre de abastecimento fora
nentemente mercantis. A criação do primeiro Banco do Brasil lan- da pela abertura de estradas, como a do Comércio e a da Policia,

çava as bases de um embrionário sistema monetário. Mais do que que cortavam a área entre os rios Paraíba e
Preto, ainda ralamente

povoada na passagem do século, em direção ao Sul de Minas.

85 Cf. sobretudo Maria Odila da Silva Dias —


“A interiorização da me-
trópole (1808-1853)”, in Carlos Guilherme Mota (org.) —
1822: Dimensões.
88 Para maiores detalhes, consultar John Luccock
—Notas sobre o Rio
Horizonte, 1975 (especialmente
São Paulo, 1972. de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo
86 Talvez seja desnecessário lembrar como os diversos autores, filiados às
o cap. XII, p. 363).
mais diversas tendências e correntes historiográficas, não deixam de sublinhar 89 Cf. Auguste de Saint-Hilaire — ,.
Viagem pelo distrito dos diamantes e

este traço particular. Gostaríamos de assinalar, todavia, que durante muitos Belo Horizonte-São Paulo, 1974. E também Alcir Lenharo
litoral do Brasil.
anos, e sobretudo na literatura didática, este fato foi registrado por uma deno- As tropas da moderação , op. cit., p. 25.
minação tão incomum quanto o processo que se desencadeava: a Transmigração. 90 “Grandes estradas ligam a capital do Brasil a Minas e a Sao Paulo; mas,
87 Dados fornecidos por Roberto Macedo — Efemérides cariocas. Rio de
à época de minha viagem, não existia nenhum caminho entre o Rio de Ja-
Janeiro, 1943. Op. cit ., p. 128.
neiro e as províncias do norte”. A. de Saint-Hilaire

50 51

S9üjn / hsosíi
Destaque-se, ainda que a abertura de estradas se fazia acempa- ce-Ihes umhomem rico, com o título que recebeu na ves-
nhar de uma política de doação de sesmarias cuja finalidade era pera, expulsa-os e aproveita o fruto do seu trabalho* 11 92
incentivar o povoamento e a colonização da área acima menciona-
da. Nessa ocasião, vastas glebas foram concedidas aos burocratas, 0 próprio viajante francês nos diz quais eram alguns desses be-
grandes comerciantes e nobres que gravitavam ao redor da Corte neficiários.Paulo Fernandes (Viana) era o intendente de Polícia
— “infame, corrupta, depravada", no dizer de um contemporâneo. da Corte, que colaborara na construção de uma das estradas que
E, desta forma, definia-se o sentido da política de integração do unia o Sul de Minas à Corte, cortando suas propriedades estrada —
91 e que pode ser per- significativamente denominada de Estrada da Polícia, Manuel Ja-
Sudeste que a Corte buscava implementar,
cebido nas observações do sempre arguto Saint-Hilaire: cinto pertencia â família Nogueira da Gama, e seria depois Mar-
quês de Baependi. Sendo “empregado do tesouro" —
escrivão do
“Nada equipara à injustiça e â inépcia graças às quais
se Real Erário e um dos responsáveis principais pela política econó-
foi até agora feita a distribuição das terras. É evidente que, mica seguida por D. João —
teve acesso a grande quantidade dc
sobretudo onde não existe nobreza, é do interesse do Estado terras em Sao João Marcos e Valença, enquanto seu irmão José
que haja nas fortunas a menor desigualdade possível* No Inácio reuniu dezessete sesmarias, com aproximadamente vinte mil
Brasil, nada haveria mais fácil do que enriquecer certa hectares de terras, em solo fluminense e mineiro, a partir de doa-
quantidade de famílias. ções, heranças e compras. 93

“Era preciso que se distribuísse, gratuita mente, e por pe- Poderosa também se apresentava a família dos Carneiro leão,
quenos lotes, esta imensa extensão de terras vizinhas à capi- à qual se uniram pelo casamento os dois personagens menciona-
tal, e que ainda estava por se conceder quando chegou o dos pelo naturalista. Grandes negociantes no Rio de Janeiro desde
Rei. Que se fez, pelo contrário? Retalhou-se o solo pelo o século XVI II, progrediram significativamente desde a abertura
sistema das sesmarias, concessões que só se podiam obter dos portos, ampliando suas trocas, negociando com o Real Erário,
depois de muitas formalidades e a propósito das quais era concedendo créditos. Cunhado do intendente-geral da Polícia, Fer-
necessário pagar o título expedido. nando Carneiro Leão colocaria à sua disposição os recursos neces-
“O rico conhecedor do andamento dos negócios, tinha pro- sários à organização daquela repartição e à realização das obras
tetores e podia fazer bons favores; pedia-as para cada mem- que então lhe competiam, como a abertura de ruas e estradas, a
bro de sua família e assim alcançava imensa extensão de iluminação e calçamento de logradouros. 9^
terras* Alguns indivíduos faziam dos pedidos de sesma- Assim, muitas das realizações materiais que viabilizavam a po-
ria verdadeira especulação. Começavam um arroteamento do lítica da Corte de integração do Sudeste —
e de construção de um
terreno concedido, plantavam um pouco, construíam uma "Império americano", veremos depois —
somente se tornaram pos-
casinhola, vendiam em seguida a sesmaria, e obtinham outra. síveis pelos recursos fornecidos pelos elementos que a cercavam* Em

O Rei dava terras sem conta nem iredida aos homens a troca, aqueles a quem Dom João "imaginava dever serviços", rece-

quem imaginava dever serviços. Paulo Fernandes viu-se biam benefícios materiais e também títulos nobiliárquicos. 95

cheio de dons desta natureza. Manuel Jacinto, empregado


do tesouro, possui, perto daqui, doze léguas de terras conce-
didas pelo Rei. 3® À. de Saint-Hilaire — Segunda viagem do Rio de janeiro a Minas Gerais
e a São Paulo (1822), op. cit., p. 23.
“Os pobres que não podem ter títulos, estabelecem-se nos ter- 33 Cf. A. Lenharo — Op, cif., p. 23; Emitia Violti da Costa — “Introdu-
renos que sabem não ter dono. Plantam, constroem peque- ção ao estudo da emancipação política do Brasil”, in C. G. Mota (org.) —
nas casas, criam galinhas, e quando menos esperam, apare- Brasil em perspectiva Sao Paulo. 1963. p. 133; Luic Damasceno Ferreira
. —
História de Valença. 2/ edição. Valença. 1978.
94 Cf, sobretudo J. F. de Almeida Prado — D. João VI e o início da classe
91 “Todos o® grandes fidalgos da corte de D, João VI poluíam grandes
dirigente do Brasil— 1815-1889. São Paulo, 1968, p. 152.
3® “Ainda esta para ser estudado mais a fundo o processo de enraizamento
extensões de terras na antiga capitania do Rio de Janeiro. Fundaram então
grandes fazendas'’. Affonso de E. Taunay —
História do café na Brojií. Rio
da metrópole na colónia, principalmente através da organização do comércio de
abastecimento do Rio e consequente integração do Centro-Sul; as in ter- relações
de Janeiro, 1939, vol. V t p. ISO.

52 53
0 procedimento e os objetivos da doação de sesmarias não deixa- “os habitantes do Brasil não pensavam intrometer-se nos
vam de contrastar vivamente com a experiência colonizadora leva- negócios públicos, nem julgar os atos dos seus dominado-
da a efeito, na mesma ocasião, na zona serrana
próxima à sede res; foram os governos da Europa que lhos ensinaram, por

do Reino-Unido. meio de proclamações ao povo e de apelos à opinião, a qual,


loca-
Com efeito, na pequena colônia de suíços de língua francesa, até então, não tivera talvez sequer o sentimento de sua pró-
lizada em Morro Queimado, com o nome de Nova Iriburgo, em pria existência.” 97
a terra com o seu
1820, os pequenos proprietários que cultivavam
de suas famílias não alcançaram prosperidade. Não obstante, a fusão que se processava entre os antigos agentes
próprio trabalho e o
E tenderam a abandoná-la. do monopólio em ambas as faces da moeda —
decorrente sobretudo
Quando foi nomeado ministro plenipotenciário no Brasil pelo go- da progressiva exclusão dos comerciantes reinóis do comércio inter-
verno da Confederação Helvética, em 1860, com a
missão especial nacional e alimentada pelos projetos reformistas da burocracia agora
de estudar os problemas da imigração suiça no Império do Brasil, estabelecida no Rio de Janeiro —
não escapava a muitos contempo-
qualidade das terras que haviam sido reser- râneos. Dela excluídos, não usufruindo os benefícios, muitas vezes
J. J. Tschudi lastimou a
vadas àqueles primeiros imigrantes, cujo destino chegava a ignorar: até mesmo por estarem localizados em pontos distantes da sede do
Reino-Unido, insistiriam em denominar o Rio de Janeiro de “Nova
“Não sei escolha tão infeliz do local da
a que atribuir a Lisboa”, denunciando desta maneira uma diferenciação. Por oca-
colônia, se à ignorância ou ao desleixo. Estou, entretanto, sião da Revolução Pernambucana de 1817, por exemplo, seus líde-

inclinado a crer que se procedeu de acordo com frio um res se apresentariam como “nativistas” ou “nacionais”, opondo-se

cálculo e idéias preconcebidas, que se podem resumir da aos “portugueses” ou “pés-de-chumbo” que dominariam o governo

seguinte maneira: essas terras não têm para nós nenhum do Rio de Janeiro.
valor, mas os pobres colonos suíços as tornarão
cultiváveis e Uma diferenciação que não escapou também —
e é importante

as aproveitarão, pois a miséria os obrigará a tal. 96


que isto seja ressaltado —
àqueles que a construíam, isto é, os
interesses mercantis, financeiros, burocráticos que se expandiram

O contraste entre as observações de Saint-Hilaire e Tschudi nos desde a chegada da Corte, e nos quais se incluíam os plantadores
permite perceber de modo mais nítido a transformação de buro- escravistas, potencializados com aquela permanência. No momento

cratas e negociantes em grandes proprietários rurais, a aproximação em que a Revolução do Porto triunfou em Portugal, definindo uma
dos 96grupos nativos economicamente dominantes da Corte por meio política recolonizadora para o Brasil, esses interesses passaram a

de negócios, a união de famílias proprietárias através da conclusão se apresentar sob a forma do que Silvestre Pinheiro Ferreira cha-

de alianças matrimoniais, além da nobilitação de todos aqueles que mou de partido brasileiro 98 ,

circulavam ao redor da Família Real. Possibilita perceber como na Em defesa dos privilégios que haviam obtido desde o estabeleci-
área polarizada pela cidade do Rio de Janeiro foi-se constituindo o mento da Família Real no Rio de Janeiro, pugnariam, inicialmen-
feixe de forças políticas que concretizaria o rompimento com as te, pela manutenção do estatuto de Reino-Unido alcançado em 1815,

Cortes portuguesas em 1822. conforme pode ser visto, por exemplo, nas Instruções do Governo
Por muitos continuarão julgando que esta constituição era
certo, Provisório de São Paulo aos Deputados da Província às Cortes Por-
o resultado apenas de uma interferência externa, seguindo a opi- tuguesas para se conduzirem em Relação aos Negócios do Brasil
, ,

nião de João Maurício Rugendas, à época da Independência, de que de autoria de José Bonifácio, datado de 1821, e onde se defende
a fórmula da monarquia dual. 99 Expressando a unidade de cons-

de interesses comerciais e agrários, os casamentos com famílias locais, os inves-


timentos em obras públicas e em terras ou no comércio de tropas e muares do
Sul, no negócio de charque processo este presidido e marcado pela buro-
. . .
97 João Maurício Rugendas — Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo,
cracia da corte, os privilégios administrativos e o nepotismo do monarca 1967, p. 119.
Maria Odila da Silva Dias —
Op. cit p. 171. 98 Silvestre Pinheiro Ferreira — Idéias políticas. Rio de Janeiro, 1976.
J. J. Tschudi —
Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. 99 Cf. José Bonifácio de Andrada e Silva — São Paulo,
Escritos políticos.
Belo Horizonte, 1980, p. 101. 1964, p. 13.

54 55
:

ciência do grupo que buscava consolidar-se em torno da Corte, a meiro instante, apareciam com destaque, elas deixavam de ser o

questão do Estado é posta. Tinha-se por objetivo alcançar o reco- adversário exclusivo. Os interesses ingleses contrários ao tráfico ne-
nhecimento de uma igualdade jurídico-política, que garantia o di- greiro intercontinental; os plantadores escravistas de outros pontos

reito de participar na legislação e na administração. Uma reivindi- da região de agricultura mercantil-escravista; aqueles produtores
cação de igualdade no momento mesmo em que, por uma ironia, interioranos, sobretudo do Sul de Minas, ligados ao abastecimento

o que se apresentava como a face metropolitana não era senão um da cidade do Rio de Janeiro, e que se haviam projetado politica-
fantasma; todavia, se tal fantasma parecia ganhar vida era porque mente em âmbito local e provincial; os colonos das demais regiões;

as forças que o criavam temiam avançar além dos


marcos novos em os escravos insurretos; e a malta urbana eram outros adversários de

que prosperavam. uma mesma luta que, em sua cotidianidade, abria um caminho que
possibilitava uma integração diversa. A vivência de experiências
0 processo de constituição de uma unidade se aprofundaria como
decorrência da “política das Cortes”. Em
Representação datada de comuns, experiências essas que lhes possibilitavam sentir e identi-

23 de maio de 1822, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro opu- ficar seus interesses como algo que lhes era comum, e desta forma
nha-se ao contrapor-se a outros grupos de homens cujos interesses eram dife-
rentes e antagônicos aos seus 102 constituía-se,
mesmo sem dúvida,
“devastador projeto de tornar a fazer em Lisboa o Empó- na condição para uma transformação. Intimamente ligados ao apa-
rio e exclusiva feira do Comercio do Brasil, com ruína cer- relho de Estado, expandiam seus interesses, procuravam exercitar

ta de nossa agricultura, oposição ao levantamento de nossas uma direção e impunham uma dominação. No momento em que
fábricas e violenta infração da propriedade dos nossos lavra- se propunham a tarefa de construção de um Estado soberano, leva-
dores que um direito inviolável têm de vender os gêneros vam a cabo o seu próprio forjar enquanto classe, transbordando da
100
de sua colheita a quem lhes oferecer melhor mercado.” organização e direção da atividade econômica meramente para a
organização e direção de toda a sociedade, gerando o conjunto de
A idéia de emancição política começava a se impor àqueles que elementos indispensáveis à sua ação de classe dirigente e dominante.
reunidos n’0 Apostolado opunham-se tanto às Cortes quanto ao Não se constituindo unicamente dos plantadores escravistas, mas
grupo de Gonçalves Ledo, que predominava na loja maçónica Gran- também dos comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes, com
de Oriente e exercia grande influência junto ao Príncipe-Regente eles se confundiam de maneira indiscernível, além dos setores buro-
Dom Pedro. Diziam eles ter por objetivo cráticos que tornavam possíveis as necessárias articulações entre
política e negócios, a classe senhorial se distinguiria nesta trajetória
“procurar a integridade independência e felicidade do Bra-
e por apresentar o processo no qual se forjava por meio do processo
sil como Império constitucional, opondo-se tanto ao despo- de construção do Estado imperial.
101
tismo que o altera quanto à anarquia que o dissolve.” O campo em que se dava esta constituição definiria seu conteú-
do, de maneira inequívoca, num momento seguinte, aquele no
No momento em que o conjunto dos interesses que se haviam qual por meio da expansão cafeeira a parte da região que vimos
constituído como decorrência da fusão dos antigos monopolizadores considerando, e dentro dela particularmente a Província do Rio de
começava a colocar ao lado da questão do Estado a da Nação, tam- Janeiro, viveria de modo intenso a restauração da moeda colonial.
bém como resultado da brusca aceleração de um movimento, anun-
c) A parte ( da região ) no todo ( do Império )
cia-se uma mudança de perspectiva e a constituição de um campo
diverso: deixavam de olhar apenas para a Corte, espaço de seus Emsua “Fala” à Assembléia Provincial, em março de 1838, o
interesses imediatos, e, por fazê-lo, ampliavam o espectro das for- presidente da Província do Rio de Janeiro, Paulino José de Soa-
ças contra as quais combatiam. Se as Cortes de Lisboa, num pri- res Sousa, frisava:

102 Cf. E. P. Thompson — The Making oj the English Working Class.


100 Apud Emília Viotti da Costa — Op. cit ., p. 127. Londres, 1982; e também “La sociedad inglesa dei siglo XVIII: lucha de clases
101 sin clases?”, in Tradición, revuelta y conciencia de clase. Barcelona, 1979.
Idem, p. 131.

56 57
“O café desta Província, cuja concorrência no mercado es- um centro de grande importância, logo unido a Resende. Daquele
trangeiro era no ano de 1810 apenas sensível, forma hoje ponto, a lavoura se expande em direção a Bananal, encontrando-se
o seu principal exportação, a qual presentemente
ramo de com os cafezais da parte paulista do Vale. 10 *
excede a muito mais de dois milhões e trezentas mil arro- Embora cultivado na região do Mendanha e em São Gonçalo,
bas. quase todas de primeira qualidade. Sertões., outrora que se constituíram mesmo em pontos de dispersão da lavoura,
incultos, ermos e cobertos de matas virgens, acham-se hoje conforme foi assinalado, o café não conseguiria substituir o pre-
em grande parte roteados, povoados e cobertos de estabele- domínio da cana-de-açúcar na Baixada Fluminense. Local ízan do-se
cimentos rurais, que daqui a alguns anos poderão talvez nas encostas das montanhas e nos morros, os cafezais bordavam os
106
dobrar ou triplicar a nossa exportação e atual riqueza.
103 limites da lavoura canavieira, sem concorrer.
Se a expansão canavieira pela Baixada dependia fundamental-
mente do transporte fluvial, a expansão cafeeira pelo Planalto fazia-
lavoura cafeeira constituía-se, assim, na atividade que permi-
A
1
nas primeiras
-11
se por meio de vias de transporte terrestre. Enquanto barcos, canoas,
tia a ocupação efetiva das áreas de '"serra acima ,

saveiros, sumacas, alvarengas e outros tipos de embarcações, impul-


décadas do século passado. Desde a cidade do Rio de Janeiro, e
sionadas a vela ou a remo. percorriam os pequenos rios que drenam
em larga medida incentivada pela política joanina. 111 * ocorria a
a Baixada, escoando a produção açucareira e de artigos de subsis-
expansão dos cafezais. Vencida a barreira da serra, a expansão não
em tência, eram as tropas de muar que articulavam o planalto ao lito-
tardaria a definir as diretrizes de sua irradiação, que teria tido
ral, transportando as sacas de café, e permitindo, assim, superar a
Resende, segundo Taunay, sua "encruzilhada notável ,

barreira da serra. Com efeito, até o surgimento das ferrovias em


De um lado, os cafezais avançam pelo Vale em direção a leste,
meados do século, era por meio das tropas e tropeiros que a pro-
indo ao encontro das ires vias de penetração do território flumi-
dução interiorana de café chegava aos pequenos portos do litoral,
nense acima referidas. Em Barra do Pirai ocorre a junção com
SanPAnna, tinham ocupado as sendo daí levada ao Rio de Janeiro. Comentaria um dos correspon-
as lavouras que, pelo vale do rio
dentes do barão de Vassouras que
terras de Vassouras e Paraíba do Sul. Daquele ponto de encontro
deu-se a expansão do setor vassourense por Valença até atingir,
“foram esses desfiladeiros, essas devesas, esses resvaladou-
além- Rio Preto, as terras mineiras. Em Paraíba do Sul os cafezais
ros,o cemitério de milhares, de dezenas de milhares de po-
encontram um novo ponto de dispersão, ao utilizar a via central
bres muares naqueles caminhos, do que havia de ruim, e
de penetração: ao ocupar o vale do Paraibuna, em direção a Juiz
onde muitas bestas de sela e de cangai ha quebravam as per-
de Fora. a lavoura cafeeira reforçava o traçado da futura Estrada 107
nas e o pescoço.”
União e Indústria. Às margens mineira e fluminense do rio Paraíba
encheram-se de cafezais, que não tardaram a encontrar-se com a via
A
importância das tropas projetava socialmente os tropeiros, que
de penetração de leste, que desde Sao Gonçalo se dirigia a Cantagalo,
se tornaram não raro grandes proprietários de terras e de escravos,
e daí a Aldeia de Pedra (ItaocaraJ. e logo depois a Cambuci e
e também titulares do Império, dos quais o mais conhecido talvez
São Fidélis.
tenha sido o Barão de Antonina.
lado, e em direção oeste, a partir de Mendanha e Ita-
De outro
De qualquer modo, importa ressaltar que a expansão cafeeira
guaí os cafezais galgaram a serra, fazendo de São João do Príncipe
recolocava a cada momento para as autoridades provinciais a ne-
cessidade de abertura e melhoria dos caminhos. Dirigindo-se aos
IG3 Apud À. C. Ferreira Reis — Op. cí£-, p. 350. membros da Assembléia Provincial, o primeiro presidente da Pro-
104 ' l
ÀAndrade contou o Conde de Baependi, neto de Brás Car-
Elói de víncia — Joaquim José Rodrigues Torres —
lembrava, em 1836,
neiro Leão, que em 1817 D. Joio VI recebera, vindas de Moçambique, abun-
dantes sementes de cafeeiro. Chamando a palácio os grandes proprietários de
terras, e com aquele aspecto bonacheirão que tanto o caracterizava tratando-se
de cousas do Brasil, distribuiu as sementes em pacotes, recomendando-lhes que
1° 5 Cf. A. E. Taimaif —
Op. cif., vol. V, p. 148.
nos seus pomares fizessem viveiros oom as mudas provindas de tais sementes
8, da Silveira Mendes —Op. cif., p, 60.
para depois transplantá-las já arbustos para as lavouras". A, E. Taunay
— 107 Apud A. E. Taunay —
Pequena história da café no Brasif. Rio de Ja-

V, ISO. neiro, 1945, p. 98.


Op. cil., vol. p.

58 59
que na impossibilidade de recuperar todas as estradas da Província possessões britânicas, desde a abolição da escravatura. no Prosse-
ao mesmo tempo, devia-se reparar prioritariamente aquelas que ser- guindo sua trajetória ascendente, as exportações de café alcança-
ni
viam à expansão cafeeira, pois riam cerca de 54% das exportações do Império em 1 854-55.
Neste total, a participação mais expressiva era a da Província
“uma simples vista d’olhos sobre o mapa da Província, e do Rio de Janeiro. De acordo com Taunay, em 1836-37 a produ-
o incremento que progressivamente vai tendo o mais valio- ção fluminense alcançou 2.321.710 arrobas, elevando-se a 4.547.312
so produto da nossa agricultura nos diferentes Municípios em 1839-40. Nos seus Elementos de Estatística editado em 1865, ,

de cima da Serra, justificam esta escolha.” 108 o Dr. Sebastião Ferreira Soares diria que

A
expansão cafeeira ganharia novo alento com o surgimento das “a Província do Rio de Janeiro é a maior produtora de
estradas de ferro. Em 1854 surgia o pequeno trecho construído pelo café do Brasil; (...) a sua lavoura só produz mais de
112
futuro Visconde de Mauá, unindo o porto de Mauá à raiz da serra 3/4 partes de todo o café que se exporta.”
da Estrela, e que logo se articularia à estrada de rodagem cons-
truída por Mariano Procópio, e que atingia Juiz de Fora a — Comparemos tais dados com o que ocorria na vizinha Província
União e Indústria. A estrada dé ferro unindo Porto das Caixas de São Paulo. Em 1836, a produção paulista alcançou o total de
a Cantagalo, surgida sobretudo devido à iniciativa do Barão de 584.486 arrobas, isto é, 25% da produção fluminense de então.
Nova Friburgo, facilitaria a expansão na direção oriental. Mais Anote-se, contudo, que deste total cerca de 72% provinham do
significativa seria a construção da Estrada de Ferro Dom Pedro II, “norte”, onde assumiam relevo Areias, onde então já existiam 238
cujos trilhos já alcançavam, em 1858, a base da serra do Mar; fazendas de café, Taubaté, Guaratinguetá e Moji das Cruzes. A
após inúmeras dificuldades para vencer a serra, a ferrovia atingiria produção do “norte” paulista contribuía, por certo, para reforçar
Barra do Pirai em 1864, Entre Rios em 1867 e Barra Mansa em a imagem que então se forjava de que se o Império era o café,
1871. A construção de ferrovias unia de modo mais íntimo os o café era o Vale. Por outro lado, a parte paulista do Vale onde —
centros cafeeiros do interior ao porto do Rio de Janeiro, ampliando se destacava a Fazenda de Pau d’ Alho —
contrastava vivamente,
a importância da cidade e conduzindo ao declínio os pequenos por- nos anos finais das Regências, com o Oeste campineiro, onde ape-
tos disseminados pelo litoral. 109 nas se iniciava a penetração cafeeira. Em Campinas, por exemplo,
Pelo porto do Rio de Janeiro, quantidades crescentes de sacas a produção cafeeira era de apenas 8.801 arrobas em 1836, o que
de sessenta quilos de café seguiam para o consumo no estrangeiro. colocava
110 o município em nono lugar na produção da Província,
No decênio de 1821-1830, 3.178.000 sacas foram exportadas, no bastando lembrar que os oito primeiros localizavam-se no “norte”.
valor total de 45.308 contos de réis (o equivalente a 7.189 mil Todavia, dezoito anos depois a produção de Campinas se elevaria
libras-ouro ) no decênio seguinte, o número de sacas exportadas
; a 335.000 arrobas, isto é, cerca de quarenta vezes mais, situando
triplicou, o mesmo acontecendo com o valor alcançado, em que o município em quarto lugar dentro da Província, atrás de Bana-
pese a queda dos preços no mercado internacional. nal, Taubaté e Pindamonhangaba. Ao que parece, a extinção do
Dado mais significativo ainda. Enquanto naquele primeiro decê- tráfico teve o efeito de acelerar o processo de concentração pelos
nio as exportações de café representaram cerca de 18% das expor- fazendeiros do Oeste de suas escravarias na atividade cafeeira mais
tações totais do Império, no decênio seguinte elas já representa- lucrativa, de tal forma que o mesmo Ferreira Soares acima men-
vam cerca de superando amplamente os demais produtos na
44%,
tábua de exportações, dentre eles o açúcar, não obstante o momen-
tâneo crescimento verificado na sua exportação, a partir de 1835, Cf. Tavares Bastos — Cartas do solitário. 3.
a
edição. São Paulo, 1938,
carta XI, pp. 167-180.
Hl Dados retirados de Heitor Ferreira Lima — “Evolução da produção ca-
feeira no Brasil”, Boletim Geográfico , ano XII, nov.-dez. 1954, n.° 123, pp.
384-408.
108 Fala do presidente da Província à Assembléia Legislativa Provincial , 1.* 112 Sebastião Ferreira Soares —
Elementos de estatística, compreendendo
de março de 1836. Rio de Janeiro, s.d., p. 18. a teoria da ciência e da sua aplicação à estatística comercial do Brasil.
109 A. E. Taunay — Pequena história do café no Brasil, op. cit., p. 101 Rio de Janeiro, 1865, tomo II, cap. II. /

61
cionado anotaria que, desde 1854, mais de 54 engenhos de açúcar nas Gerais. Aqui, os limites da região que vimos considerando é
teriam sido desmontados em Campinas. 113 traçado pela linha que une as cidades participantes do movimento
Por terras mineiras os cafezais também avançavam, levados pelas liberal de 1842, as quais não se vinculavam necessariamente aos
mãos dos escravos negros, desde o início do século. Os municípios interesses cafeeiros, embora se erigissem pelo trabalho dos escravos
da Zona da Mata e os do Sul de Minas constituíam uma espécie de africanos.
extensão da seção fluminense do Vale. Neles, embora não tenha No momento oportuno, retomaremos estas duas observações. Vol-
cessado de crescer durante a primeira metade do século, a produção temos, agora, à expansão cafeeira.
cafeeira ainda era extremamente pequena, se comparada com as Lembra Celso Furtado que esta vigorosa expansão assinalava a
das províncias que já mencionamos: 9.739 arrobas na safra de reintegração do país “nas correntes em expansão do comércio mun-
1818-9; 163.000 na de 1834-35; 757.773 arrobas vinte e quatro dial.” 116 Com efeito, se a participação brasileira no mercado mun-
anos depois. No decorrer da segunda metade do século, a produção dial do café fora “apenas sensível”, em 1810, como assinalava o
mineira cresceria consideravelmente, alcançando 2.149.354 arrobas presidente da Província do Rio de Janeiro, e girava em torno de
em 1867-68, tendo contribuído para tanto a melhoria dos meios de 20% em 1826, colocando-se atrás das produções das regiões asiá-
comunicação com o porto do Rio de Janeiro. Não obstante, dentro ticas e africanas, além da antilhana, ela se elevaria a 40% no de-
da província mineira a área ocupada pelos cafezais não ultrapas- correr dos anos trinta, superando então a produção de Java, chega-
saria a cerca de 5% da superfície total. ria a 53% em 1852-3 e a 60% dois anos depois. Ora, o que
Sem dúvida, um contraste com o que ocorria nas províncias flu- estes dados nos mostram é que a produção brasileira* possuía o
minense e paulista; um contraste que se aprofunda pela conside- monopólio virtual do mercado mundial de café, o que lhe garantia
ração de novos dados. De acordo com Roberto Martins, a Província preço de monopólio, ainda que na faixa de café de qualidade infe-
de Minas Gerais foi aque concentrou a maior população escrava rior. Desta forma, e num intervalo de tempo relativamente longo,
entre todas as do Império, além de que esta população apresentou os interesses ligados à produção cafeeira pareciam ter restaurado
um vigoroso aumento no decorrer do século, pois se em 1819 a em proveito próprio o lado do pacto colonial que, nos tempos da
província possuía cerca de 170 mil cativos, em 1873 o número deles Colônia, assegurava ao colono o monopólio da produção na região
114
era de 380.000, isto é, 24,7% do plantei de escravos do Império. colonial como decorrência da monopolização do mercado consumi-
Ora, tal contraste nos conduz, neste ponto, a duas observações. dor pelo colonizador. Não obstante, uma mudança fundamental ocor-
A primeira se refere à necessidade de não associar a expansão rera: a reintegração da região de agricultura mercantil-escravista
da escravidão sob o Império, e particularmente no “Sul” ou Su- que possibilitava um monopólio virtual, não se processava nas “cor-
deste, exclusivamente à expansão cafeeira. Sabemos, hoje, que o rentes em expansão de um comércio mundial” qualquer, e sim
grande contingente de escravos da província mineira nao se apre- num mercado mundial que era reordenado de acordo com os inte-
sentou, em momento algum do século XIX, fundamentalmente resses do capitalismo concorrencial, e cuja lógica —
teremos oca-
ligado à atividade cafeeira, assim como também sabemos que a sião de ver com mais vagar adiante —
não era mais dada pela
Província de Minas Gerais foi, durante a maior parte do século, acumulação primitiva de capital, mas pela acumulação capitalista
grande importadora de escravos. 115 A segunda observação diz res- propriamente dita. 117
peito ao seguinte: se a expansão cafeeira ampliava os limites da Mas a expansão cafeeira significava, também, a expansão das
região de agricultura mercantil-escravista nas províncias do Rio de grandes propriedades, e com elas o predomínio das grandes famílias
Janeiro e São Paulo, tal não acontecia de modo marcante em Mi- e o domínio da escravidão.
Em Vassouras, dominavam duas grandes famílias: a de Francis-
co José Teixeira Leite, Barão de Vassouras, e a de Laureano Correia
tl3 Apud S. B. de Holanda —
Vale do Paraíba — Velhas jazendas. São
Paulo, 1973, p. 38.
114 Roberto Martins —A economia escravista de Minas Gerais no século 116 Celso Furtado — Op. cit ., p. 139.
XIX. Belo Horizonte, 1980. —
117 Cf. entre outros Christian Palloix A economia mundial de iniciativa
115 Idem, Ibidem, p. 4; cf. também Roberto Conrad — Os últimos anos da privada. Lisboa, 1972 (volume I, “A fase de concorrência”; especialmente pp.
escravatura no Brasil. Rio de Janeiro, 1975, p. 348. 293-312).

62 63
e Castro,Barão do Campo Belo. 0 primeiro procedia da comarca no combate aos rebeldes de Minas Gerais e São Paulo em 1842,
do Rio das Mortes, como o Visconde de Ipiabas e o Marquês de recebeu do governo imperial o grau de cavaleiro da Imperial Ordem
Valença; era fazendeiro, capitalista e grande banqueiro, no dizer da Rosa; quando da ascensão do ministério conservador de 29 de
de Taunay. Foi ainda um dos idealizadores e patrocinadores dos setembro de 1848, o Major Peregrino José Pinheiro foi nomeado
estudos iniciais para a construção da Estrada de Ferro Dom Pedro cavaleiro da Ordem de Cristo; quatro anos depois, era nomeado
II, que pretendia passasse pela sede do seu município. Embora não comandante superior da Guarda Nacional dos municípios de Valença
tendo obtido êxito em seus propósitos, até mesmo por contar com e Paraíba do Sul. Ligado ao Partido Conservador na província flu-
a descrença do chefe do gabinete imperial, o Visconde de Itaboraí, minense, o Visconde de Ipiabas era chefe político local, tendo pre-
Francisco Teixeira Leite pôde reunir em torno do chamado “Movi- sidido a Câmara Municipal de Valença por vários anos. Proprietário
mento de Vassouras” figuras de grande projeção no comércio co- da fazenda dos Campos Elísios, fora casado com uma filha do
missário e bancário, além de inúmeros plantadores escravistas. O Comandante Francisco das Chagas Werneck. 121
último, irmão do Barão de Tinguá, era fundamentalmente um plan- Empenhar-se na luta contra os rebeldes de 1842 era empenhar-se
118
tador escravista, e chefiava o Partido Liberal do município. na “santa causa que defendemos”, dissera Francisco Peixoto de
Ao lado da ferrovia, destacam-se as propriedades da Marquesa Lacerda Werneck, Barão do Pati do Alferes. Aquele que foi um
de Baependi, viúva do marquês do mesmo nome e filha de Brás dos poucos agraciados com títulos nobiliárquicos pelas Regências,
Carneiro Leão; de Oliveira Roxo, Barão de Vargem Alegre; e a possuía grandes propriedades em Vassouras e Iguaçu, tendo se dis-
de José Pereira de Faro, Barão do Rio Bonito, que disputara com tinguido também por ter redigido a Memória sobre a fundação e
Teixeira Leite o traçado da estrada de ferro, conseguindo afinal custeio de uma fazenda na Província do Rio de Janeiro em 1847.
que ela chegasse a Barra do Pirai, e não a Vassouras, para o que Cavaleiro da Ordem de Cristo, cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa
com o apoio do Barão de Vargem Alegre. 119
contou e fidalgoda Casa Imperial, o Barão do Pati do Alferes foi também
Na comarca de Valença ocupava lugar destacado a família de comandante superior da Guarda Nacional da Comarca de Vassou-
Estêvão Ribeiro de Resende, Barão, Conde e Marquês de Valença. ras, e não hesitou em unir seu destino ao da força política que
Natural de Minas Gerais, formou-se em Direito pela Universidade levava a cabo a política do Regresso na Corte: em 1838 atendera
de Coimbra e seguiu a magistratura, tendo sido desembargador da ao pedido de Paulino José Soares de Sousa para que apoiasse a
Relação da Bahia, da Casa de Suplicação e do Paço. Foi ainda candidatura de Pedro de Araújo Lima à Regência; em 1842, tão
deputado por Minas Gerais, ministro de Dom Pedro I e senador. logo o triunfo militar se anunciava, diria que aquela era notícia
Sua fortuna provinha do casamento com D. Ilidia Mafalda de Sousa “de prazer a mim e a todos os amigos da boa Ordem”.122
Queirós, filha do Brigadeiro Luís Antônio. Fundou a Fazenda das Em campo oposto, nesta mesma ocasião, colocara-se o Comendador
Coroas, onde além de quinhentos escravos reuniu numerosos colo- Joaquim José de Sousa Breves, proprietário das fazendas de São
nos portugueses, por ter sido um dos seguidores da experiência da Joaquim da Grama, Conceição, Olaria, Confiança, Bela Aliança,
parceria proposta pelo Senador Vergueiro. Por ocasião do movi- São Sebastião, Fortaleza e de mais uma dezena, além de cerca de
mento liberal de 1842, prestou valioso auxílio às forças do gover- 6.000 escravos. Por ter apoiado o movimento liberal na Província
no para a repressão do movimento. 120 do Rio de Janeiro, forçou o Governo Geral a adotar medidas espe-
Em Valença também ocupava posição de relevo Peregrino José ciais, em coordenação com o presidente da Província, tal era o
de Américo Pinheiro, Barão e Visconde de Ipiabas, que se distin- número de agregados que tinha sob seu mando e controle. Do pode-
guiria por sua participação na Guarda Nacional. Por sua atuação rio daquele que ficaria conhecido como o “Rei do Café”, falam
também os trapiches, cocheiras e enormes armazéns que possuía em
118 Cf. A. E. Taunay — História do cajé no Brasil , op. cit., vol. V, pp. 164-
175; A. R.. Lamego — O homem a e serra cit., p. 265.
119 Cf. A. E. Taunay — Op. cit., loc. cit.;
,

A. R. Lamego — Op. cit., p. 257; 121 Cf. Manoel Peixoto de Lacerda Werneck — Perfil biográfico do Vis-
E. Viotti dia Costa — Op. cit., 133.
p. conde de Ipiabas. Rio de Janeiro, 1882. AN -Códice 112, vol. 1.
120 Cf. A. E. Taunay — Op. cit., loc. E. Viotti da Costa
cit.,; Op. cit., — 122 Cf. Augusto V. A. Sacramento Blake — Dicionário bibliográfico brasi-
p. 133; Francisco Ferreira de Rezende — Minhas recordações. Rio de Janeiro, leiro. 2.
a
edição. Rio de Janeiro, 1970, vol. III, p. 85; A. E. Taunay —
1944, p. 153. Op. cit., loc. cit., p. 49. AN -Códice 112, doc. n.° 76.

64 65
.

Mangaratiba, assim como os portos de Marambaia e Mangaratiba Para defesa de seus interesses, essas famílias ampliaram ainda as
por onde introduzia os escravos de que necessitava, antes e depois formas de solidariedade horizontal, estando presentes nas Misericór-
de 1850, até a total extinção do contrabando de africanos. Sem qual- dias, frequentando as lojas maçónicas, constituindo sociedades polí-
quer sombra de dúvidas, o Comendador Breves constituiu o tipo ticas —dentre as quais sobressaía a Sociedade dos Defensores da
exemplar do colono que assumira as funções do colonizador, na Liberdade e Independência Nacional 125 —
e formando na Guarda
região de agricultura mercantil-escravista, num movimento inverso Nacional. Uniram-se também para fazer frente às ameaças reais e
ao que fora deflagrado, e ao cabo se afirmaria, desde a instalação potenciais de insurreições negras, como em 1854 no município de
dos colonizadores junto com a Corte no Rio de Janeiro. Embora Vassouras, ocasião em que reunidos em assembléia os plantadores
possuidor de um palacete próximo à Quinta Imperial, Breves sempre escravistas resolveram constituir uma comissão permanente, sob a
deu preferência à vida em suas fazendas, tendo mesmo mantido presidência de Laureano Correia e Castro, “encarregada de recomen-
numa delas um teatro onde em diferentes oportunidades João Caeta- dar e insistir com os fazendeiros na observância das medidas e pro-
no teria se apresentado para deleite de toda a família. 123 vidências lembradas” para não só combater como também prevenir
As divisões partidárias, contudo, não foram suficientemente pro- aquelas insurreições. 126 Enobrecidas e condecoradas pelo Estado
fundas, salvo em raras ocasiões, para romper os laços criados pelos imperial, essas famílias ligaram suas vidas a ele, ao qual não raro
casamentos entre famílias proprietárias; laços tão poderosos que concebiam como instrumento de seus interesses corporativos; em
apagavam mesmo os já tênues limites provinciais, tendendo a trans- que pese a opinião contrária de parte da produção historiográfica,
formar num único bloco o terreno por onde se espalhavam os cafe- mesmo antes dos movimentos liberais de 1842, muitas delas já se
zais fluminenses, paulistas e mineiros, em quase contigüidade com haviam ligado às propostas do Partido Conservador, em ascensão na
as áreas mais antigas de lavoura canavieira. Por meio de uma Corte. 127
“política de casamentos”, essas verdadeiras “dinastias cafeeiras”, Se estavam na Corte, muitas famílias não deixavam de assistir às
assim como suas similares açucareiras, também tendiam a atrair representações das comédias de Martins Pena, reconstituição dos
para a sua órbita jovens oriundos de famílias não proprietárias de seus próprios costumes que propiciava a ampliação da compreensão
terras, bacharéis em Direito quase sempre, formados em Coimbra do seu lugar na sociedade que se esforçavam por ordenar; 128 se
ou egressos dos Cursos Jurídicos de Olinda e de São Paulo, os quais permaneciam em seus domínios, os romances que lá penetravam por
obtendo ingresso na alta burocracia e no Parlamento constituir-se- meio das mulheres faziam as vezes de conhecimento sociológico,
iam em seus representantes políticos. 124 propiciando a auto-representação de cada qual. 129 Em daguerreótipos,
ambrótipos e mesmo fotografias, buscavam preservar, em imagens

123 A. R. Lamego — Op. cit ., pp. 249-253; A. E. Taunay — Pequena his- 125 Cf. Augustin Wernet — Sociedades políticas ( 1831-1832) São Paulo,
.

tória do café no Brasil, op. cit., p. 206; AIHGB lata 748, pasta 32; Arquivo
, 1978; Moreira de Azevedo — “Sociedades fundadas no Brasil, desde os tempos
do Visconde do Uruguai. Coleção Leão Teixeira doc. n.° 1 (carta de Honó-
, coloniais até o começo do atual reinado”, in Revista Trimensal do Instituto
rio Hermeto Carneiro Leão, presidente da Província do Rio de Janeiro, a Histórico Geográfico e Etnográfico do Brasil, tomo XLVIII, parte II, pp. 265-
,

Paulino José Soares de Sousa, ministro da Justiça, em 10/XII/1841) 322. Rio de Janeiro, 1885.
124 Conforme lembra Stanley Stein, as biografias e memórias desses bacharéis 126 Instruções para a Comissão Permanente nomeada pelos fazendeiros do Mu-
constituem excelente material para o conhecimento do processo de formação nicípio de Vassouras. Rio de Janeiro, 1854.
da representação política dos interesses dominantes sob o Império, nos termos 127 A correspondência mantida entre o ministro da Justiça, Paulino José
que vimos considerando. Cf., entre outros, Francisco de Paula Ferreira de Re- Soares de Sousa, e o Barão do Pati do Alferes, desde 1838, demonstra, entre
zende — Minhas recordações, op. cit.; Wanderley Pinho — Cotegipe e seu outras coisas, que os plantadores escravistas ligavam seus destinos ao Partido
tempo. Primeira fase, 1815-1867. São Paulo, 1937; Albino José Barboza de Conservador desde aquela época (ver AN-Seção de Documentos Históricos. Có-
Oliveira — Memórias de um magistrado do Império, São Paulo, 1943; Renato dice 112, vol. 4, doc. n.° 76 e 77). A opinião contrária aparece em S. Buarque
de Mendonça — Um diplomata na corte da Inglaterra. O Barão de Penedo e de Holanda —
“São Paulo”, op. cit., p. 464.
sua época. São Paulo, 1942; José Antônio Soares de Sousa — A vida do Vis- 128 Cf. limar Rohloff de Mattos e Selma Rinaldi de Mattos —“O juiz
conde do Uruguai. São Paulo, 1944; S. A. Sisson — Galeria dos brasileiros ilus- de paz na roça ou uma aula sobre a vida social e vida política sob as Regências”,
a
tres (os contemporâneos). 2. edição. São Paulo, 1949. Ver S. Stein — “A his- in Contacto-Humanidades. Rio de Janeiro, 1981, ano IV, n.° 41 (109-115).
toriografia do Brasil, 1808-1889”, in Revista de História, ano XV, vol. XXIX, 129 À. Cândido — Formação da literatura brasileira ( momentos decisivos),
n.° 29. São Paulo, 1964. op. cit.

66 67
posadas, sua opulência: vestidos de acordo com a última moda euro- Fonte !33
Ano Número de escravos
péia, encostados em móveis também importados, os “barões de café”
e sua jprole se deixavam retratar, fixando uma memória que investia 146.060 a
1819
na posteridade, de modo a serem para sempre reconhecidos. 130 Só não
1821 173.775 b
imaginavam que fixavam também os momentos do processo em que
1823 150.549 a
a classe senhorial forjava a si própria, pelos nexos que tecia com
o Estaido, espelhando-se na Europa capitalista. 1840 224.850 c

Tanto mais ligavam-se ao mundo, quanto mais aprofundavam 1851 293.554 d


as características coloniais da produção que lhes dava vida. Os arti- 292.637 a
1872
gos de luxo europeus eram adquiridos na Rua do Ouvidor com os
;

1873 301.352 a
rendirrftentos gerados pelo trabalhador escravo. E tudo isto confundia
visitar uma fazenda de café 1880 289.239 a
ao meinos aos viajantes estrangeiros: ao
em meados do século —
“o verdadeiro estabelecimento colonial no 1882 268.881 a

Brasil’


, Charles Ribeyrolles anotaria que a miséria e a infelici- 1885 218.000 a
dade encontradas nas senzalas se assemelhavam às que existiam nos 162.421 a
1887
bas-forflds de Lille e de certos quarteirões de Paris e Londres:

“Miséria além, miséria aqui. Entre nós há falta de trabalho. Evidentemente, a população escrava não se distribuía de modo
Nas fazendas do Brasil há falta de liberdade. (...) Ambos uniforme pelo espaço da província. As áreas do Vale e da Baixada
os mundos têm os seus grandes males.” 131 Campista tendiam a concentrar a massa de escravos, por serem re-
giões vinculadas à agricultura mercantil-escravista. Nelas, o número
Sem embargo, a expansão cafeeira implicou a expansão da escra- de escravos quase sempre constituía ao menos metade da população
132 particularmente na Província do Rio de Janeiro, conforme elevado contingente de escravos nestas áreas explica ainda
vidão, total. O
pode s£r constatado pelo quadro da página seguinte: o elevado contingente de população não branca, de tal forma que
negros e mulatos constituíam cerca de 3/4 da população do muni-
cípio de Vassouras na época que estamos considerando. Por outro
130 ff. Retratos quase inocentes. São Paulo, 1983. lado, no interior dos próprios municípios a distribuição demográfica
131 (Charles Ribeyrolles —
Brasil pitoresco. Belo Horizonte-São Paulo,
não se apresentava uniforme, bastando recordar —
ainda a partir
1980, 2.-° volume, p. 47.
132 ]Levando em consideração o fato de que não teriam sido as mesmas, de dados levantados por Stein —
que mais de 50% da população
em toda a primeira metade do século XIX, as condições de produção agrícola município de Vassouras estava localizada nas paróquias de Nossa
do 133
e manuíatureira do país, Maurício Goulart acha evidente que as entradas de Senhora da Conceição e Pati do Alferes, que reunia 71% de todos
negros pelos nossos portos, de 1801 até a efetiva extinção do tráfico, os escravos. O mesmo autor constata ainda que a freguesia de Sacra
não tenhai11 obedecido a ritmo uniforme. “Penso por isso mesmo que o
Família do Tinguá, que abrangia a região acidentada da serra do
período <em apreço tem de ser dividido em três fases bem distintas. A primeira,
até ao r^dor de 1820, quando o café começou realmente a contar como riqueza Mar, menos propícia ao cultivo do café, tinha uma população menos
na nossa1 economia. (...) Sob seu signo [do café], cada vez mais marcado a
partir de 1820, é que ponho a segunda fase do período. A terceira, finalmente,
5

ainda ctfni o café como principal força propulsora do tráfico, vai verificar-se ção, Sérgio Buarque de Holanda confirma os totais estimados
pelo autor, a partir
Curtin
por voltí3 de 1835, quando a crise da produção açucareira nas colônias ingle- de estudos recentes. Entre estes avulta, sem dúvida, o de Philip D.
sas provoca n ° Brasil novo interesse pelo produto”. Diz ainda que se da The Atlantic Slave Trade, a Census (Madison, Wisconsin, 1969): nele, o autor
segunda fase beneficiou-se o Rio de Janeiro, “a terceira, embora não perdendo estima que dos escravos entrados no Império entre 1817 e 1843, cerca de
80%
o porto da capital a primazia, vai refletir-se nas importações da Bahia e desembarcaram nas províncias cafeeiras, enquanto o restante teria se dirigido para
Pernambuco”. Estima o mesmo autor que no período em questão teriam entrado as províncias do Nordeste, particularmente a Bahia.
no país 1.350.000 peças, das quais 570.000 pelo Rio de Janeiro. Cf. Maurício Fontes: (a) Stanley Stein — Op. cit.; ( b ) J. J. Queiroz — Op. cit.;
Goulart — A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. (c) J.C. R. Milliet de Saint-Adolphe —
Op. cit.; (d) H. Handelmann —
edição* São Paulo, 1975, p. 271-2. Observe-se ainda que no prefácio à edi-
a a
3. História do Brasil 3. edição. São Paulo, 1978.
,

69
densa, com mais elevada proporção de
gente livre. Ora, como muitos
dos homens livres que nela se localizavam cava a multiplicação daquele contingente da população
eram ex-escravos, e como sem ocupa-
mais de 50%
dos libertos do município aí se
seja possível concluir que havia
localizavam, 134 talvez ção nos quadros da grande lavoura —
os “vadios” ou a “pobreza”.138
uma tendência para expulsar os Localizados em pequenas aldeias ou mesmo em
determinados pontos
libertos das areas mais férteis. das vilas e cidades, reservavam-se-lhes os trabalhos
mais perigosos,
Deste modo, as áreas cafeeiras do planalto algumas atividades artesanais; à “pobreza” pertenciam
tendiam a reproduzir ainda muitos
as areas de produção canavieira escravos alforriados, os indigentes e todos aqueles
da baixada. Nas grandes proprie- que viviam da
dades, exercia-se de modo inconteste caridade alheia.
o domínio do senhor de enge-
nho e dos barões de café, que a obtenção da O momento da expansão cafeeira foi também o momento de in-
emancipação política
transformara de colono em cidadão. Ao tensas lutas e conflitos, geradores de profunda
seu lado, situavam-se os intranquilidade para
lavradores, devendo ser destacado os setores dominantes da sociedade, embora
que a diferença entre as duas na memória historiográ-
categorias situa-se
muito mais na quantidade de escravos fica que nos legaram deste percurso raramente
que cada tenham registrado
umpossuía do que na extensão de suas
propriedades territoriais os inúmeros distúrbios nas ruas da Corte e
de outras cidades do
muito embora entre os lavradores se Império; as lutas pela apropriação das terras entre
encontrassem aqueles que’ os grandes pro-
somente possuindo escravos, tomavam terras prietários e os posseiros, de um
em arrendamento para lado, e contra a população nativa,
o cultivo da cana-de-açúcar. 135 de outro, na Província do Rio de Janeiro e demais
Exploravam todos a massa de escra- áreas do “Sul”
vos, alem de submeter a seus por onde o café se derramava; as insurreições
interesses, sobretudo de natureza negras em vários
polí-
C ° ntÍngente de a re a dos. Eram pontos da região de agricultura mercantil-escravista
StiST g g eles, no dizer de
Império; as disputas quase sempre violentas entre
e também do
os setores domi-
nantes pelo controle do Estado que se constituía. 139
“indivíduos que nada possuem de seu e Deixemos de lado a luta permanente e surda contra os
que se estabelecem índios
em terreno de outrem”, 13 ® “os indolentes habitadores do Brasil”, no dizer de
uma autoridade.140
Na Província do Rio de Janeiro —
caracterizada por Milliet de
e nao se confundiam com os sitiantes
pequenos cultivadores — Saint-Adolphe,^ entre todas as do Brasil a mais
bem agricultada e
— não cessava de diminuir o número dos primeiros
nao escravistas independentes —
que o mesmo viajante encontrou,
na Província do Rio de Janeiro, em
hortada”
habi-
sua parte norte e no vale do tantes americanos, mesmo
nas aldeias que lhes tinham sido destina-
raraiba. Ubservando que os sitiantes das. Em
seu relatório à Assembléia Provincial, em
1836, o presi-
dente da Província Paulino José Soares de
Sousa relacionava tal
“não possuem escravos e são eles próprios fato ao confronto com “as raças civilizadas
e conquistadoras”, à
que plantam e
colhem, vivendo, geralmente, em perda das terras ou por alienação pelos próprios
grande penúria’’, 137 índios ou por ocupa-
ção pelos intrusos, além de sustentar que
Saint-Hilaire notaria os vínculos de
natureza política que uniam
*** plantad ° r escravista ’ em especial por ocasião dos pleitos “talvez não tenha contribuído pouco para esse
fenômeno a
eleitorais má direção, a irregular e desleixada administração
a que os
De outro lado, e conforme já índios têm estado sujeitos, além do seu
foi assinalado para
momento um caráter inerte e
distinto, a multiplicação das
unidades de produção escravista provo- indolente.”141

13 138 Stanley Stein,


São pauIo,
nl
r96f, p
te n
~l
GrandeZa * deCadénCla do Ca > é ™ do Paraíba. 139
p. 154.
Uma relação não exaustiva dos conflitos ocorridos, excetuando-se as lutas
ac< ’k Gorender — O escravismo colonial, op. cit., p. 394.
pete posse das terras, pode ser encontrada em
José Honório Rodrigues —
136 A j
Saint ' Hilaire — Viagem, à Província de São Paulo. São Paulo, liação e reforma no Brasil. Rio de Janeiro,
1964.
Conci-
1972, p 95
*37 Idem, Ibidem,
p. 249.
T D ^
e at0Tl° d° presidente da Província do Rio
}
Jose Rodrigues Torres, p. 12 (de agora em

de Janeiro 1835: Joaquim
diante citadoscomo RPP-RJ).
RPP-RJ — 1836: Paulino José Soares de Sousa,
p. 8.
70

71
Não nos ocupemos também, ao menos nesse
passo, com a popula-
belecimentos agrícolas de todos os portes que por este meio
ção indigente. Como lembrava uma
outra autoridade, ao mesmo
tempo que revelava a concepção que fazia da sociedade na qual tem-se formado”.
convivia,
Acrescentava, todavia, que

“os ébrios e mendigos, vadios, arruadores, jogadores de pro-


fissão, órfãos desvalidos, filhos sem pai, moços sem
“um germe fecundíssimo de desordens e de crimes tem sido
ofício,
a confusão dos limites das propriedades rurais, tanto as
donzelas sem amparo, são outros tantos parasitas da árvore
social que é mister extirpar-lhe do tronco oportunamente,
adquiridas por sesmarias primitivamente, como as havidas

convertendo-lhe a aptidão em trabalho, que é riqueza.” 142 por titulo de posse com cultivados efetivos. As divisas prin-
cipalmente dessas últimas só são firmadas e respeitadas por
A ação das autoridades —
fornecendo instrução, promovendo o
armas de fogo desfechadas de emboscadas de trás dos gros-
sos troncos de nossas árvores seculares.” 143
recrutamento e forçando ao trabalho nas obras públicas, entre outras
medidas —
parecia a muitos a maneira mais eficaz de extirpar
Como muitas outras autoridades, Caldas Viana entendia que a
este mal.
Deixemos de lado ainda as disputas entre os setores dominantes, maneira de atender aos interesses e “clamores da classe mais nume-
não tanto porque a historiografia tem-se esforçado por dar conta rosa da família fluminense, e que concorre em grande escala para
deles como é por demais conhecido, mas sobretudo porque a riqueza pública e particular da Província, e para a sua progressiva
preten-
demos referi-las a um conjunto diverso, no qual os conflitos que grandeza”, era a edição de “leis agrárias bem meditadas e confeccio-
nadas.” 144
consideraremos a seguir ocupam uma posição de destaque, conjunto
este do qual nos ocuparemos na próxima parte. Ora, a existência desses conflitos revela que a própria questão do
Fixemos, portanto, nossa atenção nas lutas pela posse das terras, modo como a economia do Império se expandia deve ser reavaliada.
nos levantes da “plebe urbana”, particularmente contra o monopólio Não basta ter em conta, numa comparação com o que ocorria nos
do comércio varejista pelo elemento português, e nas lutas das E.U.A., que o seu crescimento era puramente extensivo, isto é, que
massas escravas, que nesta conjuntura quase sempre se apresen- “consistiaem ampliar a utilização do fator disponível a terra — —
taram sob a forma de insurreições. mediante a incorporação de mais mão-de-obra”. E que por isso mes-
Por certo, lutas pela posse das terras marcaram o processo de mo, no dizer de Celso Furtado, “a chave de todo o problema eco-
ocupação do território, na região que consideramos e também nas nômico estava na oferta de mão-de-obra.” 145 É preciso pôr em ques-
demais. Não obstante, na primeira metade do século passado, a tão esta “disponibilidade de terras”, como ensina José de Sousa Mar-
área
por onde ocorre a expansão cafeeira é o local por excelência tins, 146
trazendo para o primeiro plano o equilíbrio de forças polí-
desses
conflitos, sobretudo por se constituir numa área
de “fronteira de poder que as tornavam disponíveis para alguns,
ticas e as relações
142
aberta isto é, de estrutura fundiária ainda não definida, e não para todos. A reivindicação de “leis agrárias” era, antes de
,
até mesmo
em termos jurídicos. tudo, a reivindicação da classe senhorial, no processo de restauração
Destacava João Caldas Viana, presidente da província fluminense, da moeda colonial. Sob condições diversas, tratava-se não só de pre-
em 1843, que servar os monopólios que fundavam aquela classe, mas também de
operar uma redefinição do equilíbrio e da importância relativa de
terrenos devolutos quase todos têm sido há doze anos a cada um deles; tratava-se de estabelecer uma relação estreita entre
esta parte explorados, invadidos e apossados por uma o monopólio da mão-de-obra, no momento de crise da escravidão.
alu-
vião de pessoas e convertidos em fazendas e situações com
diversos gêneros de cultura. Maravilham os inúmeros esta-

143 RPP-RJ — 1843: João Caldas Vianna, p. 4.


144 RPP-RJ — 1843: João Caldas Vianna, p. 4.
RPP.RJ — 1841: Manuel José de Sousa França,
14 5 C. Furtado —
Op. cit., p. 143.
p. 12.
146 Cf. José de Souza Martins — 0 cativeiro da terra. São Paulo, 1979. -
72
73
.

e o monopólio da terra, conforme veremos na terceira parte deste se passara anos antes na República de São Domingos. 150 Em 1835,
trabalho. o ministro da Justiça alertava o chefe de Polícia do Rio de Janeiro
Por outro lado, a questão da “oferta de mão-de-obra” (escrava) sobre a descoberta de “um livro em caracteres africanos” e sobre a

não se reduz a um aspecto quantitativo, devendo ser situada no con- necessidade de “maior vigilância, para que não se propaguem entre
texto da crise do escravismo colonial. Ela guarda íntima relação, os escravos, e menos se levem a efeito, doutrinas perniciosas que
nesta conjuntura, tanto com a política inglesa de repressão ao trá- podem comprometer tem exemplo em algumas
o sossego público, que
fico internacional quanto com a intensificação da luta dos escravos províncias, principalmente na Bahia”. 151
pela obtenção da liberdade; e, desta forma, põe em evidência a ne- Reais ou imaginários, os movimentos de rebeldia escrava propicia-
cessidade de uma política de Estado que equacione o problema do vam a aproximação dos setores proprietários: plantadores trocavam
monopólio da mão-de-obra em relação com o dos demais monopólios. amiúde correspondência entre si, advertindo uns aos outros sobre
152 associavam-se para combater e
Cuidaremos deste aspecto também adiante. Anotemos, por ora, a os perigos de fugas e revoltas;
intensificação da rebeldia negra, particularmente na região de agri- prevenir as insurreições, como no caso da Comissão Permanente de
cultura mercantil-escravista. A resistência passiva, os atos de violên- Vassouras que vimos anteriormente; transferiam ao Estado o mono-
cia e os crimes cometidos contra os feitores sobretudo, o suicídio e pólio da violência que os distinguia, malgrado seus interesses mais
as fugas apareciam como as formas principais da reação pessoal. imediatos.
Na primeira metade do século XIX, contudo, elas foram superadas Ao mesmo tempo, profundamente agitada também se mostrava a
pelas reações coletivas, que segundo Édison Carneiro assumiam vida nos principais núcleos urbanos. Capoeira, soldados mercenários,
três formas principais: a revolta organizada visando a tomada do caixeiros, vadios e muitos outros homens “sem qualidade”, além de
poder, como a dos negros malês na Bahia, no período entre 1807 e uma quantidade insuspeitada de mendigos, misturavam-se aos olhos
1835; a simples revolta armada, como a de Manuel Balaio no Ma- dos cidadãos ativos na produção de uma anarquia, obrigando os
ranhão, denunciadora da organização escravista; e a fuga que con- juízes de paz a empunharem suas bandeiras verdes para dispersar os
duzia à formação de quilombos, como o de Manuel Congo, em Pati ajuntamentos ilícitos, fazendo com que as matracas soassem convo-
do Alferes, e do qual se dizia não só que os negros possuíam “todas cando os guardas nacionais, forçando a intervenção dos guardas ur-
as ferramentas necessárias para abrir uma nova fazenda” como tam- banos ou municipais. 153 O elemento português aparecia muitas ve-
148
bém que “enfrentaram o fogo do mosquetão” da polícia local. zes como o catalisador dessa anarquia. Os gritos de “mata marinhei-
Destruído pelas tropas comandadas pelo Marquês de Caxias, ele per- ro” e “morra português” enchiam as ruas, precedendo as reivindi-
maneceria durante muito tempo na memória dos plantadores da cações de nacionalização do comércio a retalho. Acontecia assim no
área: após três décadas do momento que estamos considerando, um Recife, onde tal situação parece ter chegado ao auge em meados do
jornal da província fluminense comunicava que em determinada século e animava os praieiros acontecia assim também na Corte,
;

cidade fluminense “todos os fazendeiros e suas famílias receavam onde o ódio ao comerciante português era somado ao ódio pelos
ataques a qualquer momento. Em vista da atitude dos escravos, sua elementos lusitanos que, acreditava-se, dominavam o Paço; não
existência e segurança pessoal corriam grandes riscos”.
149 alcançava maior expressão em São Paulo, talvez porque ali o co-
Insurreições reais confundiam-se com levantes imaginários. José
Vieira Fazenda relata que em certa ocasião do período regencial “um
boato horrível circulou”: teria sido fundada uma Sociedade Grego- 150 José Vieira Fazenda —
“Aspectos do período regencial”, in Revista do
riana para o assassinato das pessoas brancas, à semelhança do que Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1914-5, tomo LXXVII,
p. 48.
151 Citado por José Luís Werneck da Silva —
Op. cit., p. 192.
152 Cf. carta de Joaquim José Teixeira Leite Paulo Gomes Ribeiro de
a

147 Edison Carneiro —O quilombo dos Palmares Rio de Janeiro, 1966. Avelar, subdelegado de polícia da paróquia de Pati do Alferes, em 19 de abril

148 Jorge Pinto — Fastos vassourenses. Vassouras, 1935, p. 133; e também de 1848, citado por Stanley Stein Grandeza e decadência do café no vale
Stanley Stein — Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba , op. cit., pp. do Paraíba, op.
153 Cf.,
cit.,

entre
p.
outros,
175.
Vieira Fazenda — Op. cit., loc. cit.; José Luís
170-2. J.

149 Citado por S. Stein — Ibidem, p. 176. Werneck da Silva — Op. cit., loc. cit.

74 75

^CSH/urpnc *
Mk,.
mércio varejista já se encontrasse em larga medida em mão de ele- habitantes, sendo que 205.906 viveriam nas freguesias “de dentro”
156
mentos nacionais. 154 ou urbanas e 60.560 nas “de fora” ou suburbanas”.
De qualquer modo, o que nos interessa reter neste momento é o A população permanecia habitando uma cidade feia, que pouco
fato de que o sentimento antilusitano —
propiciador de uma cons- diferia da sede colonial. As ruas ainda eram estreitas, escuras e

ciência fundamental por ocasião das lutas da Independência e im- imundas. Como nas demais cidades do Império, a remoção do lixo,
pulsionador da malta que agitava os núcleos urbanos —
constituía- das coisas podres e dos excrementos humanos era feita em pipas ou
se, em fins do período regencial, num elemento divisor dos grupos barris, carregados às cabeças dos escravos, e derramados “em certas

dirigentes: para uns, na necessidade de subjugar o elemento portu- partes da baía, todas as noites, de modo que não só era inseguro
guês residia a questão fundamental do Estado que se pretendia cons- mas desagradável andar pelas ruas depois das dez horas”, de acordo
truir com plena soberania; para outros, esta era uma questão secun- com o depoimento de Thomas Ewbank que visitou o Rio de Janeiro
dária, subordinada à questão da restauração e expansão dos mono- em 1846. Os primeiros serviços públicos de saneamento e água sur-
pólios que fundavam a classe senhorial, e na qual avultava a crise giriam poucos anos depois, e deles se encarregaram principalmente
da escravidão. engenheiros franceses e técnicos ingleses.
anarquia, contudo, não dominou as cidades do Império. A ela
A A morte sitiava a cidade, pois acampara no Império em meados
se impôs, às vezes a duras penas, a ordem imperial, que no espaço do século. Epidemias de febre amarela ocorreram em 1850, 1852,
urbano se confundia com a ordem do capital mercantil. Vejamos 1853 e 1854, vitimando sobretudo os estrangeiros; 1856 foi sobre-
mais de perto o exemplo que mais nos interessa, o da cidade do tudo o ano do cólera, que matou os escravos principalmente. Chama-
Rio de Janeiro, capital do Império e principal porto do país. dos pela família daqueles que se encontravam desesperadamente en-
0 crescimento da cidade, no momento que temos em vista, ligou- fermos, os padres ajudavam os brasileiros a morrer; os funerais
se, evidentemente, ao surto cafeeiro e às funções que desempenhava eram pomposos, marcando a vida da cidade em muitas ocasiões.
com mais intensidade à medida que se estabelecia a centralização po- Vida insegura. O mesmo viajante disse dos policiais que “são
157
lítico-administrativa . considerados eficientes e tanto quanto eles os ladrões”.
Crescimento populacional, em primeiro lugar. Dos 124.978 habi- Expansão das funções tradicionais da cidade colonial, também.
tantes de 1830, dos quais 89.293 viviam nas freguesias urbanas
— De um lado, a permanência da dominância do capital mercantil,
isto é, na “cidade”, no sentido estrito do termo

e o restante nas o qual se subordinava então, no plano internacional, à reprodução
freguesias suburbanas, saltou-se para 1838,
134.078 habitantes em capitalista. Ora, esta subordinação, expressando a posição da econo-
dos quais 57,3% eram homens livres e 42,7%, escravos, sendo que mia do Império na divisão internacional do trabalho que se afirma-
do total destes, 63,5% viviam na cidade e 36,5% estavam ocupados va, tanto reforçava a dominância do comércio quanto impunha a
em De acordo com
atividades nos subúrbios. 155 Milliet de Saint- submissão dos negociantes ao crédito externo.
Adolphe, em 1843 a população do Rio de Janeiro era de 170.000
156
A dominância do capital mercantil se expressa na comparação
almas, das quais 60.000 eram “brasileiros por nascimento ou ado- com a cidade de Nova York, nesta mesma época: enquanto a Corte
ção”, 25.000 eram “estrangeiros de diversas nações” e 85.000, “es- imperial tinha um único banco, com um capital de 2.500 contos,
cravos de toda cor e sexo”; para o final da década, o imperfeito no ano da Maioridade, a cidade norte-americana possuía cerca de
censo efetuado por Roberto Jorge Haddock Lobo, por solicitação do 312.000 habitantes e dispunha de 24 bancos, com um capital total
ministro da Justiça Eusébio de Queirós, indicava o total de 266.466 de 50.394 contos. 158 Uma dominância que se expressa também nas

156 J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe — Op. cit., p. 429; Eulália Lobo —


Joaquim Nabuco
154 Cf. — Um estadista do Império 4.* edição. Rio de
, Op. cit.,pp. 223-231.
Janeiro, 1975 ( especialmente pp. 92-116); J. H. Rodrigues — Op. cit ., loc. cit.; 157 Cf. Thomas Ewbank — Vida no Brasil. Rio de Janeiro, 1976, p. 322;
S. Ferreira Soares — Op. cit.; S. B. de Holanda — “São Paulo”, op. cit. Gilberto Freyfe —
Vida social no Brasil. . ., op. cit., pp. 99-107.
Cf. Eulália M. L. Lobo — História do Rio de Janeiro (do capital 158 Apud C. Pelaez e W. Suzigan — História monetária do Brasil. Rio de
comercial ao capital industrial e financeiro ), op. cit., vol. I, pp. 121-6. Janeiro, 1974, p. 67.

76 77
4.734 casas de “comércio de diferentes gêneros”, apontadas por Mil- De outro lado, predomínio das funções administrativas, as quais
liet de Saint-Adolphe em 1843. Deste total, sete pertenciam a bel- objetivavam, no essencial, viabilizar a circulação do capital mercan-
gas, noventa e cinco a ingleses, trezentos e vinte e oito a franceses e til, mesmo que em muitas oportunidades tal objetivo pareça subme-

o restante a portugueses, ter-se ao combate à anarquia. Tomemos como exemplo a divisão da


cidade em freguesias, em 1849: oito eram as freguesias urbanas ou
“os quais estão de posse do comércio de ferragens, quinqui- “de dentro”— Sacramento, Candelária, São José, Santa Rita, San-
lharias, mercearia, e vendem juntamente por miúdo aguar-
tana, Lagoa, Glória e Engenho Velho — e nove as suburbanas ou
dente, vinho, azeite, manteigas, especiarias, conservas, carne-
“de fora” — Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande, Inhaúma, Gua-
159
seca e outros comestíveis.” Santa Cruz, Governador, Paquetá e Santo Antônio. Dentre as
ratiba,
freguesias urbanas, as quatro primeiras relacionadas formavam as
Não obstante, era no controle do grande comércio que melhor
freguesias do “centro”, e nelas se localizavam as instituições e ins-
se expressa aquela dominância. Os “negociantes importadores os ,

talações que tornavam possíveis a reprodução dos interesses domi-


comissários e os traficantes de escravos eram os seus personagens
nantes: o Paço, o Senado, a Câmara dos Deputados e a Câmara
principais. Dos primeiros diria Ferreira Soares que
Municipal; a Escola Militar, a Academia de Marinha, os quartéis
“vendem suas mercadorias a prazo de 4 a 12 meses, rece- e a casa de saúde; as inúmeras igrejas católicas, a igreja episcopal

bendo em pagamentoletras, ou então contas assinadas com inglesa e a igreja alemã protestante; a Tipografia Nacional, os tea-

a obrigação de prêmios no caso de excedência do prazo”. tros de São Pedro de Alcântara e de São Januário; o Correio e a
162
Caixa de Amortização; o porto e os diversos trapiches.
A respeito dos comissários, comentaria que recebiam dos planta- A expansão da cidade não transformara, pois, o seu caráter; rea-

dores os gêneros que estes produziam, no tempo das safras, e que firmara-o, embora num quadro novo. Nas freguesias do “centro”,

pelo fato de terem estes no coração do Império, situavam-se uma Praça do Comércio e uma
Praça da Constituição, mas a cidade permanecia não sendo um local
“anterior mente sacado as somas em que estimam importar de mercado e nem mesmo centro político. Nela, burocratas, nego-
as suas colheitas, resultando disso virem indiretamente os ciantes e plantadores entrecruzavam seus interesses, urdindo uma
produtores a exercer grande pressão nas transações de cré- preponderância. A Joaquim Nabuco não escapou esse quadro, no
dito do mercado; porquanto os comissários tomam os capi-
qual mudanças se erigiam a partir de permanências, ao descrever
tais de que precisam nos seus banqueiros, e como garantia a chegada do pai deputado ao Rio de Janeiro, em 1843:
160
carregam aos produtores mais 2% que o juro corrente .

“Como tudo estava transformado! Entre a Corte do Primeiro


Dos traficantes de escravos, localizados quase sempre na Rua Di-
Reinado, que ele conhecera menino, e a que vinha encon-
reita, uma autoridade norte-americana diria que entrelaçavam seus
trar homem feito tinham mediado grandes acontecimentos.
interesses com os dirigentes imperiais.
Uma nova camada social alastrava tudo, o próprio Paço; as
antigas famílias, o resto da sociedade que se reunia em torpo
“Os Ministros & Conselheiros de Estado & Senadores e de Pedro I, agora tratavam de ocultar do melhor modo que
Delegados nas Câmaras estão, sem dúvida, envolvidos neste podiam sua irremediável decadência. Aquela sociedade, em
tráfico tão ousado quanto horroroso”, com seus hábitos, sua etiqueta,
uma palavra, desaparecera,
sua educação, seus princípios e os que figuravam agora no
dizia em carta Henry A. Wise, ministro dos Estados Unidos do Rio fastígio eram ou os novos políticos saídos da revolução ou
de Janeiro, a James Buchanan, em 12 de abril de 1847. 161

159 Milliet de Saint-Adolphe —


Op. cit ., p. 431. 162 Para a localização das instituições e instalações mencionadas, consultar,
160 Sebastião Ferreira Soares —
Op. cit. p. ex., aPlanta da Cidade do Rio de Janeiro novamente erecta pelo Vede. de
161 Citado por R. Conrad —
Op. cit., p. 32. Villiers de Ulle Adam ,
publicada por G. Leuzinger. Rio de Janeiro, 1850.

78 79
os comerciantes enriquecidos. Tudo mais recuava para o se- um jogo de inversões, o acontecimento da Maioridade não
levar por
gundo plano: a o dinheiro eram as duas nobrezas
política e deixava de preencher de maneira exemplar sua função: em si mes-
163 mo, como todo e qualquer acontecimento, ele não era o criador de
reconhecidas, as duas rodas do carro social.” r* *

uma mudança; enquanto idéia de acontecimento todavia, ele se cons-


,

Talvez não cometamos um equívoco se dissermos que a Corte sin- tituía em revelador e acelerador, sua ação sendo o de concatenador
tetizava, então, a parte da região que consideramos todo esse tempo. de um certo número de mudanças que se apresentavam isoladas uma
Estaríamos equivocados se disséssemos que os interesses ali prepon- das outras. 165 Com todo o seu aparato e encenação, a Aclamação e
derantes se esforçavam para que os demais interesses do Império nela a Coroação do jovem imperador assinalavam para quantos a viviam
se reconhecessem? uma ruptura e uma espécie de criação de um tempo novo; embora
nem sempre disso se dessem conta, representava também uma con-
tinuidade.
Ao ocupar a face complementar da moeda colonial em restaura-
ção, a Coroa preenche, em
primeiro lugar, uma função simbólica.
3. A MOEDA COLONIAL EM RESTAURAÇÃO A Coroa se confunde com a figura do Imperador; a antecipação da
Maioridade simboliza a sua consolidação. Como já foi magnifica-
“Nós ligamos, uma vez mais, a América à
mente assinalado por um autor, de acordo com a teologia jurídica
Europa/’
consolidada na Idade Média, o “corpo do rei” reveste-se de um duplo
George Canning, 1823. caráter, ao comportar um elemento transitório, que nasce e morre,
e outro que permanece através do tempo, mantendo-se como funda-
0 momento da Maioridade de Dom Pedro II é também o momento mento a um só tempo físico e intangível do reino. 166
no qual a moeda colonial começa a completar uma recunhagem, a De modo complementar, o Imperador concretiza a idéia de Impé-
primeira desde então. No lado da “cara”, o Reino cede lugar às Na- rio, numa trajetória de quase meio século.
ções Civilizadas, particularmente aquelas que foram o cenário da Esta se insinuara desde o final do século XVIII, no interior da
“dupla revolução”; 164 na outra face, a Coroa se impõe à região. crise do sistema colonial, sendo utilizada pela burocracia reformista
Não deixa de ser ao menos intrigante que do primeiro aconteci- do Estado absolutista português em oposição ao que se denomina uma
mento conservemos uma memória, ao passo que do último tenhamos “via revolucionária” que também despontava, a qual, em suas pro-
quando muito pálidas informações. Da Maioridade sabe ao menos posições, ameaçava os fundamentos de colonizadores e colonos. 167
um estudante secundarista que pôs fim ao período das Regências, A vinda da Corte para o Rio de Janeiro daria novo alento aos
sempre encarado de modo negativo; daquela recunhagem quando propositores da criação de um “império americano”. Conta-se que,
muito se toma consideração uma de suas faces, por meio da referên- em 1811, o cônsul austríaco no Rio de Janeiro procurou mostrar
cia ou à preponderância britânica desde a vinda da Corte para o ao Conde da Barca, ministro de Dom João, a inconveniência e o
Rio de Janeiro ou a uma nova que se instaura à medida que o final risco de menosprezar Portugal, donde poderia resultar a sua separa-
do século se aproxima, como decorrência da preponderância do capi- ção, e que teria ouvido em resposta estar o governo do Príncipe-Re-
talismo monopolista: em ambos os casos, uma aproximação grossei- gente preparado para essa eventualidade, e que tal não o assustava.
ra, que não consegue preencher um hiato. Algo tão intrigante quanto
paradoxal, sobretudo quando nos lembramos que, hoje, estamos mais
atentos ao segundo tipo de acontecimento do que ao primeiro, por
darmos a ele um valor explicativo essencial. Não obstante, para aque- —
Cf. Jacques le Goff Reflexões sobre a História. Lisboa, s. d., p. 26
les brasileiros que viviam o momento da Maioridade e deixavam-se 16 6 Cf.Kantarowitz — The King’s two Bodies. Apud Michel Foucault —
Vigiar e punir. Rio de Janeiro, 1977, p. 30.
167 Cf. Kenneth Maxwell — “The Generation of the 1790’s and the Idea
of Luso-Brazilian Empire”, in Colonial Roots of Modern Brazil, org. por Dauril
Joaquim Nabuco — Op. cit ., p. 76. Alden. Berkeley, 1973, pp. 107-144; e também Fernando Novais —Op. cit
16-1 Cf. Eric J. Hobsbawm — Las revoluciones burguesas, op. cit. pp. 236-238.

80 81
-

“e que de coração leve renunciaria à Europa, ficando de todo ameri- relho centralizador de uma “monarquia ilustrada” aparecia não ape-
cano”. 168 nas como a mais eficaz das maneiras de se evitar os perigos e
A opinião não era exclusiva do ministro francófilo de Dom João. sobressaltos de uma revolução, como também se apresentava como a
Na Corte, muitos dela participavam, em particular Dom Rodrigo de melhor possibilidade de alcançar os ideais máximos da prática ilus-
Sousa Coutinho. A transferência para o Brasil conferira à Corte uma trada: a beneficência e o bem-estar. 172 De um outro ponto de vista,
sensação de força e prestígio havia muito não desfrutada, e que se não se deixava de reverenciar a Constituição do ano VIII pela dis-
expressava na atração que ela exercia sobre as áreas americanas vizi- tinção crucial que ela estabelecia entre liberdade e igualdade polí-
nhas. De outro lado, a idéia de criação de um “império americano” ticas e liberdade e igualdade civis. Concebidas como realidades exis-
traduzia de modo crescente o processo de enraizamento dos antigos tentes em si mesmas, as quais não se tornava necessário estabelecer
colonizadores no Sudeste. As relações instáveis, irregulares e vacilan- nem confirmar, mas tão-somente respeitar, a liberdade e a igualdade
tes que, desde então, a burocracia reformista manteve com os inte- civiseram, na realidade, as únicas mantidas ali. Ao mesmo tempo
resses metropolitanos dominantes, e que tiveram naquilo que Emí- que o Império napoleônico fortemente centralizado e autoritário ga-
lia Viottida Costa chamou de “a política liberal de Dom
João VI rantia a todos os seus cidadãos a mesma situação jurídica, retira-
169 a sua melhor expressão, denunciavam a cada va-lhes a liberdade e igualdade em
e suas limitações” suas dimensões política e públi-
passo o projeto que se urdia, e que parecia tomar forma em 1815 ca: era-se livre na medida que se usufruía de uma igualdade civil
com a elevação do Brasil à categoria de Reino-Unido. e de uma liberdade de consciência individual, 173 numa quase ante-
O rompimento com as Cortes em 1822 anunciava o fracasso das cipação daquilo que o Romantismo aprofundaria.
propostas de uma monarquiadual; consolidava, por outro lado, a O
impulso transformador e revolucionário das Regências não foi
idéia de Império. Por sugestão da Maçonaria, que se inspirava em suficientemente forte para deslocar o princípio monárquico. Com a
Napoleão Bonaparte, ofereceu-se a D. Pedro o título de Imperador, antecipação da Maioridade, voltavam a se reunir na face comple-
170 Se o “ petit caporaF por meio de seu título afir- mentar da moeda colonial o Imperador e a idéia que encarnava.
e não o de Rei.
mava sua superioridade em relação aos reis-vassalos, o imperador do Desde esse momento, e mais do que nunca, a idéia de Império seria
novo Império americano afirmava sua autoridade sobre as províncias associada à garantia de uma unidade e de uma continuidade.
— originalmente, território vencido (do latim vincere ), como acon- Vejamos primeiro a unidade de um território, que se confunde a
tecera com Pernambuco, em 1824. Nesta ótica, a idéia de Império cada passo com a de um corpo político.
se sobrepunha às ameaças republicanas, servindo como um compro- Comentando o texto constitucional referente à divisão do Impé-
171
misso entre a soberania popular e os direitos da realeza. rio em províncias, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São
Do império napoleônico, contudo, não se guardaria tanto a gran- Vicente, salientava que
deza, sobretudo o modelo. Com sua hierarquia de funcionários
mas
públicos, de tribunais e do sistema escolar, ao lado das “carreiras” “o território do império não constitui somente a sua mais
na vida pública, ele aparecia para muitos como a forma mais aca- valiosa propriedade; a integridade, a indivisibilidade dele é
bada da monarquia administrativa que entusiasmara os reformistas de mais a mais não só um direito fundamental, mas um
da Ilustração, e tinha justamente na França o seu modelo. 0 apa- dogma político. É um atributo sagrado de seu poder e de sua
independência; é uma das bases primordiais de sua grandeza
interior e exterior.”

Apud Oliveira Lima —


Dom João VI no Brasil. Rio de Janeiro, 1908.
169 Cf. Emília Viotti da Costa —Op. cit., loc. cit.
170 Cf. José Honório Rodrigues — Independência: Revolução e contra-re-
volução. Rio de Janeiro, 1975, vol. I, “A evolução política , p. 260.
171 A idéia de Império também não deixa de se insinuar através da expe-
172 Francisco José Calazans Falcon —
“História moderna: dois temas cris-
parte: O “Despotismo Esclarecido”, in Boletim Contacto-Huma
a
as tentativas talizados, 2.
riência mexicana: em maio de 1822, procurando deter tanto
nidades , ano II, n.° 26, 1979 (11-14).
espanholas de recolonização quanto os movimentos republicanos, o alto clero e
a aristocracia mexicana proclamaram imperador do México, sob o titulo de 173 Cf. Jacques Ellul —
Histoire des institutions. Paris, 1956, vol. V, “Le
XIXe siècle”, p. 156.
Agostinho I, o General Itúrbide.

82 83
inglesa ao tráfico intercontinental; de um ponto de vista estrutural
Por isso mesmo, ao mecanismo de financiamento da grande lavoura, assentado na
garantia hipotecária da mercadoria negra, particularmente no mo-
“a divisão do império em províncias. não é nem devia ser
. .

Estados distintos, ou fede-


mento em que a sua escassez propicia uma valorização e acirra as
de ordem constitucional; não são
locais, ou par-
contradições entre compradores e vendedores de escravos negros,
rados, sim circunscrições territoriais, unidades
entre plantadores e comissários. 175
ciais de uma só e mesma unidade geral.
Em segundo lugar, por se entender o Império como “um e único”,
se o entende também como um continente que, sob a direção de uma
E daí concluía que
elite ilustrada, deve conter a Nação brasileira “a associação de —
“por isso mesmo que o império é um e único, que ele não todos os brasileiros” ,
até —
mesmo porque tem-se clareza da sua
frágil coesão, como resultante da instituição que a fundamenta e
é dividido em províncias senão no sentido e fim
de distribuir
modo que que, não obstante, deve ser preservada: a escravidão. Velha preocupa-
convenientemente os órgãos da administração, de
ção, recordemos, já expressada por José Bonifácio nos idos da Inde-
adequados e próxi-
em toda a extensão do país haja centros
mos para o serviço e bem ser dos respectivos habitantes.” 174 pendência —“ ,
amalgamação muito difícil será a liga de tanto
. . .

material heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escra-

Tais comentários nos permitem, ao menos, três observações


refe-
vos, índios, etc., em um corpo sólido e político.
” 176 e que . . — ,

ainda permanecia, reproduzindo-se porque reproduzia os interesses e


ridas aos nossos propósitos.
A importância atribuída ao território —
“a mais valiosa proprie-
as concepções dos grupos dominantes e dirigentes da sociedade. Se

dade” do Império —
conduz à associação feita pelo artigo 6.° da
Constituição do Império entre nacionalidade e cidadania , à
maneira
contra- 175 Os mecanismos de financiamento da economia colonial tendem a opor,
das constituições francesa de 1791 e portuguesa. Associação
por definição e desde os primeiros tempos, compradores e vendedores de negros
ditória,sem dúvida, no quadro do Império brasileiro, porque negava escravos, plantadores e mercadores, seguindo muitas vezes as oscilações dos
princípio jurídico essencial à escravidão. Assim, e tendo em
con-
um preços dos gêneros coloniais no mercado internacional e as flutuações na oferta-
sideração o primeiro termo de uma relação instituída pela escravidão procura de mão-de-obra escrava. No momento que mais de perto nos interessa,

o homem livre —
os filhos de brasileiros nascidos no estrangeiro
,

vierem estabe-
o encaminhamento dessa oposição está referido tanto à relação expansão cafeei
ra-escassez crescente de mão-de-obra escrava como decorrência da limitação
-

se tornariam brasileiros e cidadãos quando


,

somente progressiva do tráfico intercontinental, quanto à posição relativa das forças no


lecer domicílio no Brasil” negando-se, pois, o princípio
que os filhos interior do Estado imperial. Nestes termos, dois momentos ou “equilíbrios”
seguem as condições dos pais, e transformando-os no dizer daquele podem ser considerados, caracterizando a relação em
curso: o primeiro é tra-

mesmo comentarista, numa espécie de servos da gleba. A extensão duzido pela lei regencial de 30 de agosto de 1833 que fez cessar o privilégio
termo de impenhorabilidade de minas, engenhos e escravos, incluindo entre as coisas
possível do princípio que fundamentava esta disposição ao
174
complementar da relação o escravo — —
expunha uma contradição:
passíveis de execução os escravos maiores de catorze anos e as escravas maiores
de doze anos, e por meio desta decisão pÕe em evidência os interesses daqueles
de um lado, abria-se a possibilidade da negação da hereditariedade que detinham o capital mercantil-usurário, em especial os comissários; o último
é representado pela lei hipotecária de 1863, e os decretos complementares de
daquela que se constituía de modo efetivo tanto na mais valiosa
pro-
na sua mais importante mercadoria, a 1865, que estipulava que nenhum empréstimo podia ser superior à metade do
priedade do Império quanto
valor da garantia real, e que, em caso de execução, o credor devia receber o
partir da negação do principio do partus sequitur ventrem de outro, ;
imóvel mas ficava obrigado a restituir ao devedor em dinheiro a diferença
a proposição implícita de uma vinculação à terra
poderia erigir-se entre o montante da dívida e o preço avaliado da. propriedade, determinação
como um obstáculo: de um ponto de vista conjuntural, à constitui- que, no fundo, transformava os devedores em credores dos seus credores. Ano-
no momento temos, ainda, que se esta determinação assinalava um predomínio dos interesses
ção de um mercado interno de escravos, de restaura-
dos plantadores, nesta conjuntura, ela assinalava ainda um deslocamento na
ção da moeda colonial, assinalado pela intensificação da repressão hierarquia dos monopólios, no momento em que atribuía à propriedade terri-
torial um valor hipotecário.
176 “Representação à Assembléia-Geral Constituinte e Legislativa do Im-

Direito Público e análise da Constituição do Império . Brasília, 1978, pp. pério do Brasil sobre a Escravatura”, in Octávio Tarquínio de Sousa — O
pensamento vivo de José Bonifácio. São Paulo, 1944.
20 e 22.

85
a Nação não se apresentava como um corpo uno e indiviso, e assim O dito amplamente difundido naqueles tempos — “o Império e
negava a sua definição moderna e revolucionária, o território do o café” —
talvez sintetize este privilegiamento; ele também nos aler-
Império devia ocupar o seu lugar, sendo a sua integridade e indivi- ta para a necessidade de ter em consideração o fato de que sendo
sibilidade um “dogma político”. a Coroa uma espécie de grande agência administrativa, a ela tam-
E, por fim, é preciso considerar que a defesa desta indivisibilidade bém incumbe a relação com o mundo exterior —
ou, dizendo
— referida tanto às ameaças internas, como a Cabanagem e a Far- melhor, com na primeira face da moeda.
os interesses presentes
roupilha, quanto às externas, como as questões platinas — , fazendo Ora, esta nova e fundamental incumbência criava para a Coroa
das províncias meras circunscrições territoriais, conduz a uma des- uma situação paradoxal, sem dúvida. De um lado, o virtual mono-
qualificação da política e a um realce da ação administrativa. Ela pólio da produção mundial de café, em meados do século, era uma
reserva ao centro — à —
ao mesmo tempo que o justifica,
Coroa , das fontes de sustentação do jogo de inversões já referido, gerando
o papel de gestor dos interessesdominantes que se distribuem de a sensação de estar “no centro do mundo civilizado”. De outro,
maneira irregular pela imensidão do território. a crise do escravismo colonial —
relacionada tanto a uma escassez
a Coroa ocupa, agora, o lugar da região; mas se
Sem embargo, resultante da política britânica quanto às crescentes insurreições
o faz, devemos acrescentar, não é para qne ela desapareça, e sim negras — revelava a fragilidade de um Estado que ao procurar
justamente para assegurar a sua continuidade. No quadro novo defi- levar adiante uma expansão dos interesses fundamentais que repre-
nido pela constituição de um mercado mundial animado pelo capi- sentava era obrigado a assumir uma atitude defensiva.
talismo em
sua fase concorrencial, e no qual tendencialmente cada Expliquemos com mais detalhes este segundo aspecto que tinha o
vez mais o comércio e a economia envolvem as nações, atrelando-as efeito de limitar a construção de um novo monopólio o do —
a uma política mundial, a ação da Coroa deve orientar-se no sentido imperium , definidor da “coroa” no momento que consideramos. No
da preservação dos interesses que se estabeleceram em cada uma das seu esforço pela instituição de uma ordem legal, pela criação de uma
regiões, e que a crise do sistema colonial de base mercantilista por burocracia, pelo exercício de uma jurisdição compulsória sobre um
um momento ameaçara de modo agudo. À Coroa compete, pois, efe- território e pela monopolização do uso legítimo da força, a Coroa

tuar uma restauração: ela reivindica o monopólio desta execução. não deixava de se aproximar daquelas características que, de acordo
A unidade do território simboliza a unidade que deve presidir esses com alguns, 177 definem um Estado moderno. Todavia, se esse novo
interesses em restauração. O papel sempre desempenhado nas socie- monopólio aparecia então como a condição para a restauração da-
dades escravistas pelo Direito —
entendido, por certo, enquanto Lei queles monopólios gerados pela colonização, ele próprio sofria uma
e processo de aplicação ,

somado ao espírito conservador que, aqui limitação pela dependência em que se encontrava dos interesses pre-
e agora, anima esta atuação, faz com que a Coroa reivindique não sentes na “cara” da moeda.
só o monopólio da elaboração das leis, mas também o da sua execução Por certo, essa limitação nao residia fundamentalmente na depen-
e fiscalização, no processo de unificação dos interesses dominantes. dência do consumo internacional de produtos primários, como mui-
Magistrados e bacharéis em Direito ou burocratas-bacharéis são os tas vezes se crê. 0 monopólio virtual da produção cafeeíra restringia
agentes privilegiados de uma restauração. ao menos em parte essa dependência, embora o setor de comercia-
lização e de financiamento tendesse a escapar progressivamente do
Masà Coroa —isto é, às forças políticas e sociais predominan-
controle dos elementos brasileiros e, assim, reforçasse as relações de
tes no Estado imperial, no conjunto dos interesses dominantes sob uniam duas
complementaridade e contradição que. por definição, as
o Império —
compete também efetuar uma expansão. Uma unida-
faces da moeda.
de não devia ser confundida com uma igualdade. Lançando mão de
A limitação residia, fundamenta Imente, naquilo que definia a
políticas específicas, embora intimamente articuladas, a Coroa não
modernidade do escravismo surgido no mundo colonial no decorrer
só promovia a restauração da hierarquia existente entre os interesses
dominantes nas diferentes regiões, herdada do processo de coloniza-
ção, como também aprofundava a diferença no interior da região
177 Cf» etilrt milra*. as definições- de Mas, Ueber —
Economia y sttciedad:
Esbozo de sociologia compreeiisiva* México. 1964; Reinturd flendax —Max
de agricultura mercantil-escravista, por meio do privilegiamento dos IPeber, An inteUeciual Portrmt. Garden City, 1962: e Imnumuel Wallewlein
interesses ligados à expansão cafeeíra. — The Modern World System. Nuva York. 1974.
da Idade Moderna. Seguindo ainda uma vez as indicações de Fer- conflitavam abertamente com os interesses expostos por Bernardo Pe-
nando Novais, aprofundadas por Décio Saes, 178 podemos afirmar que reira de Vasconcelos em discurso no Senado em abril de 1843: “A
esta modernidade consiste numa interdição uma interdição que de- , África civiliza a América!” 181
fine também a essência do colonial. Consiste na interdição ao colono Interdições com finalidades diversas, importa que não nos esque-
da efetivação de uma
conquista , entendendo-se por conquista o con- çamos. Se a primeira delas visava a manutenção de um dos princi-
trole das fontes abastecedoras de mão-de-obra escrava. Deste modo, pais monopólios que distinguiam o colonizador, propiciando assim
e diferentemente do escravismo antigo ou clássico, no qual os pro- uma acumulação que, em seu movimento completo, pressupunha a
prietários de escravos representados pelo Estado escravista levavam reprodução do colono, embora preservando uma assimetria, a última
a cabo uma política de conquista de territórios como maneira de asse-
tem em vista tanto manter em seu continente de origem as popula-
gurar a continuidade e reprodução das relações escravistas sobre as ções negras, quanto forçar um reordenamento de economia do Im-
quais erigiam sua dominação, no escravismo colonial ou moderno pério, de tal forma que a substituição do trabalhador escravo pos-
o colono não deve e não pode controlar os pontos de abastecimento sibilite a obtenção de produtos agrícolas de grande consumo pelas
de negros africanos, conforme vimos acima. No decorrer da Idade economias centrais a baixo preço, o que conduz à baixa do valor da
Moderna, os interesses do colonizador —
isto é, os interesses do capi-
força de trabalho, contribuindo assim, ao lado de outros elementos,
tal mercantil resguardados pelo Estado absolutista se sobrepuse- — na luta contra a baixa tendencial da taxa de lucro. Como que inver-
ram aos interesses do colono. Agora, na primeira metade do século tendo a proposição de Vasconcelos, vinte anos depois Tavares Bas-
XIX, e mais particularmente no momento da Maioridade, caracte- tos traduziria essa nova relação, gerada no bojo de uma interdição,
rizando a crescente subordinação do capital mercantil ao capital in- ao dizer que “o Brasil tem a mesma missão que pertence em geral
dustrial em âmbito mundial, 179 cada vez mais a conquista deve ceder à América: é o celeiro da Europa”. 182
lugar à expansão a qual não implica nem pilhagem temporária nem
,
Por mesmo, para o capitalismo em expansão em meados do
isso
assimilação duradoura. 0 colono que não tivera acesso às praças e
século, e que reordena as relações entre as economias centrais e
portos africanos nos séculos anteriores, permanecerá distante deles,
periféricas, a questão do tráfico negreiro —
e, por extensão, a do
apesar da sua transmutação
dos antigos colonizadores.
em cidadão e da associação com muitos trabalho escravo —
não se reduz, como quer Paula Beiguelman, a
uma relação de indiferença, como decorrência do fato de que desde
A diplomacia britânica expulsaria o novo Império das terras afri-
a Revolução Industrial o capitalismo pôde prescindir daquele comér-
canas, por meio do tratado firmado entre D. Pedro I e seu pai, D.
cio para a sua acumulação; não deve ser associada também de ma-
João VI, que reconhecia a Independência do Brasil, e do qual ela
neira simplista aos interesses pela ampliação do mercado consu-
aparecia como fiadora. Por meio deste instrumento punha-se um midor para os produtos manufaturados ingleses. 183
freio à crescente presença “brasileira” no continente negro, desde
No intervalo de tempo entre as proposições de Vasconcelos e de
1816, e frustrava-se o plano de tornar Angola independente, incor-
porando-a ao Império do Brasil. 180 Os interesses expansionistas do
Tavares Bastos —
propriamente falando, o Tempo Saquarema —
a Coroa se empenha por garantir uma restauração, e também poi
capitalismo, que atingiriam seu ponto máximo sob o imperialismo,
possibilitar uma expansão. Contudo, a interdição que sofre não ape-
nas limita a sua soberania como também imprime um caráter marca-
damente defensivo à ação que procura desenvolver.
178 Décio A. M. Saes —
A formação do Estado burguês (1888-1891).
Campinas, 1982 (mimeo), pp. 47-176.
179 Afirmar a crescente subordinação do capital mercantil ao capital in-
dustrial em âmbito mundial não implica negar o papel dominante que ele
181 A propósito da diferença entre conquista e expansão no decorrer do
continua exercendo na economia do Império, o qual, no caso específico da
economia cafeeira, põe em destaque, no momento em questão, a figura do
séculoXIX, cf. Hannah Arendt — Imperialismo. Rio de Janeiro, 1976: *‘A ex
pansão como objetivo permanente e supremo da política é a idéia central do
comissário. Para maiores detalhes sobre o papel dominante do capital mercan-
til, cf. Stanley Stein —
Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba ,
imperialismo”.
182 Tavares Bastos —
Cartas do solitário op. cit.
op. cit.,
180 Cf.
pp. 97-140.
José Honório Rodrigues — Brasil e África: outro horizonte. 2.*
183 Cf. Paula Beiguelman — ,

“A destruição do escravismo moderno como


questão teórica”, in Pequenos estudos de ciência política. São Paulo, 1967,
edição. Rio de Janeiro, 1964, especialmente pp. 131-181.
pp. 9-14.

88
89
Nesse quadro, a política imperiail está fundamentalmente referi- de confiança para que possa dominá-las e neutralizar as suas
da à crise do escravismo colonial, nos seus dois aspectos que há pouco exagerações. Se representais o princípio conservador, como
referimos: a política inglesa e as insurreições crescentes. Nesse qua- quereis destruir a influência que se funda na grande pro-
dro, administrar os interesses dominantes converte-se, em larga me- priedade?” 184
dida, em ordenar as grandes famíliais mesmo que em certos momen-
,

tos isto signifique colocar-se contra alguns dos privilégios e mono- Observemos, contudo, que se esta oposição se constitui no pen-
pólios que as distinguiam. A Coroa procura proceder a esta ordena- samento de muitos, daí saltando para as explicações sociológicas, foi
ção por meio de políticas diversas, c«omo uma política de terras, uma porque a missão de dominar, dirigir e neutralizar as exagerações
política de mão-de-obra — que conitemple tanto a questão do traba- das “influências que se fundam na grande propriedade, na rique-
lhador escravo quanto a da imigraçíão européia — uma política tri-
, za, nas importâncias sociais”, como propunha Nabuco, implicava

butária, uma política monetária e uma política creditícia; a elas se tanto o esvaziamento do monopólio sobre os homens pelo colono
somava uma ação repressiva que, lançando mão dos corpos policiais em proveito da Coroa, quanto uma transformação como decorrên-
e das guardas nacionais, buscava conter as insurreições negras e as cia do caráter defensivo que a política imperial era obrigada a guar-
agitações da malta urbana. A Coroa se esforça por administrar ho- dar. Com da estreita articulação entre as políticas levadas
efeito,

mens, empenhando-se muitas vezes em civilizá-los por meio de um a cabo redundaria o progressivo deslocamento da importância do
sistema escolar; e também coisas, inccluindo-se entre estas os escravos. monopólio da mão-de-obra para o monopólio da terra, o que, em
Ela entende também que a condüção para levar adiante esse con- termos imediatos, era visto como lesivo por aquelas influências.
junto de ações reside na centralização administrativa. E, neste ponto, Assim, na face complementar da moeda colonial em restauração,
não nos devemos deixar iludir pela crítica liberal do final do Im- a Coroa se apresenta como o agente propiciador de uma restaura-
pério, liderada muitas vezes por Tavares Bastos: à progressiva cen- ção e de uma expansão dos monopólios que fundavam a classe
tralização administrativa, no momento que consideramos, correspon- senhorial.
deu, sem dúvida, quer a restauração dos monopólios, quer a expan- Nestes termos, e somente nestes termos, a garantia da unidade
são da classe senhorial, pondo em xeque aquelas explicações que, do Império se constituía na garantia de uma continuidade, tam-
informadas por uma concepção dicotômica, insistem em opor o pú- bém. O caráter de permanência que o “duplo corpo” do rei encer-
blico ao privado. rava, simbolizando a continuidade dos monopólios que se consti-

Por certo, muitas vezes aqueles interesses ergueram-se contra a tuíram havia muito.
Ora, esta unidade e esta continuidade sublinham, ainda, a íntima
direção imprimida pela Coroa, julgando-a lesiva a seus interesses
relação entre a construção do Estado imperial e a constituição da
mais imediatos. Por certo também, «em algumas oportunidades assim
classe senhorial. Ligada ao Estado que forja, a classe senhorial deve
ocorreu. Todavia, disto não se deve concluir por uma irredutibili-
proceder a uma espécie de atualização, forçada pelos nexos que man-
dade entre os interesses e a ação do poder privado e aqueles do
poder público. De maneira exemplar, Nabuco de Araújo caracteri-
tém com a outra face da moeda: a condição de sua continuidade
reside na preservação da combinação com os interesses capitalistas
zou o elo entre a Coroa e a região, entre os interesses da região pre-
dominantes nas “nações civilizadas”, a condição de uma unidade
dominante e os das demais regiões, e ainda entre os grupos dirigen-
reside na preservação de sua singularidade, a qual aquela relação
tes e os grupos dominantes como uma “Ponte de Ouro”. Falando
por si mesma constitui, mas que, neste momento, impõe à classe
dos interesses atingidos pela Praieira, ele sublinharia, em 1853, que
senhorial uma atitude defensiva. Por isso mesmo, no dizer de
“a missão do governo, e principalmente do governo que re- um autor, seus componentes se apresentam como “demônios bi-
presenta o princípio conservador, não é guerrear e extermi- frontes”. 185
nar famílias, antipatizar com nomes, destruir influências que
se fundam na grande propriedade, na riqueza, nas importân-
Joaquim Nabuco —
Op. cit ., p. 145.
cias sociais; a missão de um
governo conservador deve ser 1 R5 Cf. Fernando Henrique Cardoso — “Classes sociais e História: consi-
aproveitar essas influências no interesse público, identificá- derações metodológicas”, in Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro,
las com a monarquia e com as instituições, dando-lhes prova 1975, p. 111.

90 91
A íntima relação entre a construção do Estado imperial e a cons- Coroa enquanto um partido político não se reduz à figura do impe-
tituição da classe senhorial, por outro lado, sublinha a diferença qua- rador. O partido
litativa entre o plantador escravista e a classe senhorial. Já
vimos que, de acordo com Gorender, os pantadores escravistas eram, “só pode ser um organismo, um elemento complexo da socie-
nos limites da Colônia, a classe dominante, definindo-se, antes de dade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma
tudo, pela relação antagônica que mantinham com os escravos. E vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente
na ação.” 187
assim efetivamente devemos considerá-los, sempre que nos ativer-
mos à consideração da estrutura de produção gerada pela coloniza-
ção: as classes sociais surgem, então, como realidades referidas exclu- E, enquanto um partido, a eficácia da Coroa deve ser demons-
sivamente a uma determinada correlação de forças sociais. 186 Toda- trada a cada instante na capacidade de criar acontecimentos, assim
via, a consideração de um tipode correlação de forças
diverso como de impedir que outros se verifiquem; na competência de levar
— a correlação de forças políticas —
pressupondo a anterior mas
,
a efeito uma atualização, preservando uma singularidade. Como
nela não se esgotando, nos permite aprofundar alguns dos pontos um partido, a Coroa deve lidar com as fissuras e divergências no
vistos acima (cf. p. 57), no momento em que a Coroa passa a interior da classe, com os afastamentos daqueles que se constituem
ocupar a posição privilegiada na face complementar da moeda. em aliados, com os movimentos daqueles contingentes que se lhe
Diferentemente dos plantadores escravistas, que restringiam sua opõem, dando-lhes o tratamento de divisão entre governantes e
atuação quase que exclusivamente ao exercício de uma dominação governados, dirigentes e dirigidos, e, ao assim proceder, propicia a
nos limites de suas propriedades, a classe senhorial serve-se do Estado unificação e homogeneização dos representantes políticos da classe
imperial para construir a sua unidade e levar a efeito uma expansão. senhorial, habilitando-os para o exercício de uma direção e de uma
De um lado, a Coroa une aos interesses agrários, mercantis e buro- dominação. 188
cráticos que se expandiam com a lavoura cafeeira aqueles detento- Revela-se, assim, no papel de partido reservado à Coroa a razão
res de monopólios que, de modo e em graus diversos, haviam se cons- fundamental do empenho pela preservação de uma unidade terri-
tituído nas demais regiões e mesmo na região de agricultura mer- torial. Não esgotando nas questões relacionadas à vida parlamen-
se
cantil-escravista, fazendo-os superar, muitas vezes, as atitudes de des- tar e política em
sentido estrito, ele é tanto o empenho dos represen-
confiança que nutriam em relação ao aparelho de Estado desde o tantes da classe senhorial pela preservação da concepção da unidade
tempo da luta contra a antiga metrópole. Em sua ação, a Coroa pro- estatal quanto o empenho pela manutenção do consentimento dos
cede a uma expansão horizontal da classe senhorial. De outro lado, governados à ação que a Coroa desenvolve.
ela atrai para a órbita dos interesses da classe senhorial aqueles ele- E a “cara” da moeda? Como nela se apresentam as “Nações
mentos que, no Império escravocrata, detêm uma única propriedade, Civilizadas”?
a de suas pessoas, procedendo assim a uma segunda expansão, ver- Inglaterra e França —
as “Nações Civilizadas” simbolizam, —
ticalmente. Entenda-se, todavia, que levar a cabo esta dupla expan- sintetizam e concretizam a um só tempo, na primeira face da
são não significa apenas e nem principalmente obter uma submissão, moeda, os interesses do capitalismo triunfante e em expansão. O
e sim proceder a uma incorporação, a qual se apresentava, nos ter- reordenamento da economia mundial, a que já nos referimos, deve
mos da própria proposta iluminista, como a difusão de uma civi-
lização.
A íntima relação entre a construção do Estado Imperial e a cons-
187 Antonio Gramsci — Maquiavel , a política e o Estado moderno. Rio cie

Janeiro, 1968, p. 6.
tituição da classe senhorial faz com que a Coroa assuma, deste modo, 188 Nestes termos,afirmamos nossa distinção com relação àqueles autores
o papel de um Partido nos termos em que Antônio Gramsci o propõe.
, — como R. Faoro —
que consideram os grupos dirigentes imperiais (o “es-
E este papel define a sua modernidade. Por se constituir na expressão tamento burocrático”) um simples prolongamento ou transposição dos grupos
e forma mais avançada dos interesses da classe em constituição, a dirigentes da antiga metrópole, insistindo pois numa
continuidade, e também
com relação àqueles outros — como de Carvalho ( A construção
José Murilo
da ordem. A elite política imperial) —
que referem a homogeneidade deles
aos aspectos de formação e treinamento, ao invés de buscá-la no conjunto do
Antonio Gramsci — Antologia. México, 1970, pp. 409-422. sistema de relações no qual as atividades de direção se inscrevem.

92 93
ser entendido como a articulação complexa das formações sociais, Das Conjurações coloniais à Maioridade, a trajetória percorrida
propiciada neste momento pelo capitalismo concorrencial e sob a transformou o colono em cidadão ativo, elevou o plantador escra-
sua preponderância, articulação essa que recobre os planos econô- vista à condição de uma classe, restaurando seus interesses e fa-
mico, político e ideológico. zendo-o construir uma auto-imagem que lhe permitia unir pontos
Se Inglaterra e França ocupam uma posição privilegiada na “ca- descontínuos na fixação de uma memória. Das transformações revo-
ra” da moeda é porque desempenham um papel privilegiado naquela lucionárias do final do século XVIII aos movimentos de 1848,
nova articulação. E devemos atribuir tal papel, sem dúvida, à “du- quando se começa a viver de maneira inequívoca a era do capital
pla revolução” que as distinguiu —
a Revolução Industrial inglesa a burguesia ainda ascendente também percorre uma trajetória, no
,

e a Revolução Francesa —
assim como ao lugar que ela ocupa no
.
decorrer da qual não apenas ela define seus interesses como também
processo de transformação revolucionária que caracteriza o “mundo discute,em termos políticos e teóricos, a função do mercado externo
ocidental” ou o “mundo atlântico” desde o último quartel do no desenvolvimento capitalista ou o papel das relações internacionais
século XVIII. de produção na negação da contradição que caracteriza o capitalis-
Ora, esta posição privilegiada contrasta vivamente com as reper- mo concorrencial —
a lei da baixa tendencial da taxa de lucro.
cussões alcançadas, em termos internacionais, pelos sucessos revo- Sublinhemos, neste ponto, que por negação da contradição não se
lucionários da jovem república norte-americana, conforme já foi deve entender a sua eliminação, e sim o deslocamento para o plano
assinalado por alguém. 189 Sem embargo, os ideais democráticos da da economia mundial da contradição presente naquelas “nações
Revolução de Independência permaneceriam, durante um largo civilizadas” entre as relações de produção capitalistas e o nível das
intervalo de tempo, como um fenômeno vital apenas para os pró- forças produtivas, a qual se caracteriza, no nível do processo de
prios E.U.A., expandindo-se unicamente à medida que se expandiam conjunto, pela contradição criação-realização do produto social em
suas fronteiras nacionais. Observemos, neste ponto, que aos constru- geral e da mais-valia em particular. 191
tores do Estado imperial, seguidores e aprofundadores da linha re- E, a esse propósito, sobretudo a trajetória da burguesia inglesa
formista que a idéia de Império continha, parecia muito mais se- demais ilustrativa. Naquilo que mais de perto nos interessa,
é por
guro adotar o modelo constitucionalista francês e belga do que se ela se inscreve em dois momentos sucessivos à desagregação do
aventurar por princípios democráticos sempre por demais incertos. antigo sistema colonial, como ressalta com justeza Florestan Fer-
Nessa ocasião, como em muitas outras, a recorrência à nossa forma- nandes ao caracterizar os padrões de dominação externa na Amé-
ção e tradições — “ . self Government é o hábito, a educação o
. .
rica Latina. 192
costume. Está na tradição, na raça, e quando faltam estas condições Ponhamos em evidência o caso do Império do Brasil, revelando
não pode ser estabelecido por leis. sustentava em 1862 Paulino
.
o avesso do jogo de inversões que há muito deixamos.
José Soares de Sousa, que então já era o Visconde do Uruguai — No primeiro momento, que recobre quatro ou cinco décadas —
parecia constituir-se no mais poderoso dique contra aquelas trans- desde o final do século XVIII até as primeiras três ou quatro déca-
formações entendidas como excessivamente radicais, 190 e tinham a
finalidade de mostrar os nexos estreitos entre as duas faces em
das do século XIX —
a política inglesa traduz de forma nítida a
,

arrancada inicial do processo de industrialização e também a situa-


restauração de uma moeda que, por isso mesmo, também estava em ção conjuntural do continente. Limitada internamente e no mer-
transformação. cado europeu, a burguesia inglesa procura garantir na América os
Sob a determinação última dos interesses das “nações civilizadas”, mercados necessários à produção fabril, e para tal age buscando
esta transformação seguiu uma longa trajetória, qualquer que seja substituir o antigo colonizador, restaurando em proveito próprio,
a face considerada. por meio de acordos diplomáticos e comerciais e de modo unilateral,
a prática do monopólio sobre os mercados. Os tratados de 1810 fir-

189 Cf. Hannah Arendt —


Sobre a revolução. Lisboa, 1971.
199 Cf. Maria Odila L. da Silva Dias —
“Ideologia liberal e construção 191 Cf. Christian Palloix — Op. cit ., p. 210.
do Estado do Brasil”, in Anais do Museu Paulista. São Paulo, 1980-81, tomo 192 Florestan Fernandes — Capitalismo dependente e classes sociais na
XXX, pp. 211-225. América Latina. Rio de Janeiro, 1973, pp. 13-20.

94 95
mados ainda com a Coroa lusa, embora já em território brasileiro, mas de articulação entre a economia inglesa — cujo modelo de
demonstram o sentido desta ação, não apenas porque fixavam tarifas industrialização é caracterizado como um modelo imperialista, na
prefei enciais para as mercadorias inglesas ou transportadas em medida em que a supressão das limitações internas é alcançada por
navio* de bandeira inglesa, mas também porque fixavam privilégios uma reorientação das exportações 195 —
e a economia do Império

como o do Juiz Conservador da nação britânica. do Brasil começam a se definir a partir da quarta e quinta décadas
As palavras do ministro inglês em Portugal, Lord Strangford, do século XIX, e como frisa F. Fernandes, tendo em vista o plano
por ocasião da vinda da Corte para o Brasil, traduziam com preci- global, “converteram-senuma realidade inexorável nas últimas qua-
são as relações, interesses e práticas deste primeiro momento, carac- trodécadas daquele século”.
terizadores muito mais da desagregação da moeda colonial do que Conforme dissemos acima, o momento da Maioridade é o mo-
propriamente de uma restauração: mento no qual a moeda colonial começa a completar uma recunha-
gem; e aí reside a diferença básica com o momento anterior. As mu-
“Defendi para a Inglaterra o direito de estabelecer com o danças ocorridas no velho Império propiciam uma mudança no pa-
Brasil relações de soberano e de vassalo, e de exigir obediên- drão de relacionamento com o Império do novo continente: de um
cia a ser paga como o preço de proteção.” 19 lado, a revogação das com laws dos navigation acts e uma reforma
,

tributária interna que substituía as taxas sobre os fluxos do comér-


De ação no sentido de assegurar o controle sobre os
resto, esta cio exterior por impostos sobre os lucros e o consumo assinalavam,
novos mercados americanos não deixava de ser refletida pelos cori- em graus diversos, o deslocamento dos interesses protecionistas e o
feus da economia clássica. Para Adam Smith, o comércio externo triunfo dos interesses industriais e livre-cambistas; de outro, opera-
desempenharia o papel do mercado “possível” do setor manufaturei- va-se o progressivo deslocamento do foco da acumulação da indústria

ro, uma certa exigüidade do mercado agrícola; ao pos-


limitado por têxtil para a de bens de produção, abrindo caminho para a exporta-

sibilitar odesenvolvimento industrial, o comércio internacional per- ção de uma nova mercadoria: o capital. 196 Registremos ainda que
mitiria também o aprofundamento da divisão social do trabalho e até aproximadamente 1873, às vésperas da Grande Depressão, a

da setorialização da economia. Para David Ricardo, o comércio exportação de capitais estará intimamente associada à exportação de
externo cumpriria o papel de fazer baixar o valor da força de traba- mercadorias e que o mais importante tipo de investimento dos seto-
lho, através do fornecimento de bens de subsistência, baixa esta res capitalistas ingleses era a construção de ferrovias, as quais se

necessária à elevação da taxa de lucros. Ora, as diferenças entre as constituíam num agente do aprofundamento da divisão internacio-
análises de Smith e Ricardo no que diz respeito ao papel do comér- nal do trabalho. 197
cio externo, e que aqui vão indicadas de modo extremamente sumá-
rio, não deixavam de caracterizar, para além das postulações teóri-
cas, a evolução das disputas entre os setores agrários e industrial dessa polêmica. . . explica-se pelas da época. Por um lado, a
circunstâncias
grande indústria mesma apenas começava da sua infância, o que se
a sair
dentro da Inglaterra, referidas â questão do protecionismo. 194
comprova pelo fato de que só com a crise de 1825 ela inaugura o ciclo pe-
O segundo momento não poderia deixar de se vincular necessa- riódico de sua vida moderna. Por outro lado, a luta de classes entre capital
riamente ao anterior. Ele é preparado pela situação privilegiada e trabalho ficou restrita a segundo plano, politicamente, por meio da contenda

que os interesses ingleses desfrutaram no primeiro momento, evi- entre os governos e interesses feudais agrupados em torno da Santa Aliança e
a massa popular conduzida pela burguesia; economicamente, por meio da
dentemente não apenas no mercado brasileiro, a qual se constitui
disputa do capital industrial com a propriedade aristocrática da terra, que se
num elemento dinamizador da revolução industrial. As novas for- escondia, na França, atrás da oposição entre minifúndio e latifúndio e que, na
Inglaterra, irrompeu abertamente desde as leis do trigo”. Karl Marx O —
capital. Crítica da economia política. São Paulo, 1983 —
Posfácio da segunda
193 Apud Caio de Freitas — George Canning e o São Paulo, 1958.
Brasil. edição, p. 17.
195 A —
194 “Na Inglaterra, o período seguinte, de 1820 1830, destaca-se pela
a expressão é de Christian Palloix Op. cit ., esp. p. 294.
vivacidade científica no campo da Economia Política. Foi tanto o período de
196 Cf. E. J. Hobsbawm — Industry and Empire. New York, 1969, pp.
expansão e vulgarização da teoria de Ricardo, quanto de sua luta contra a 109-122.
velha escola. Celebraram-se brilhantes torneios. Do que então se fez, pouco
1 97 Cf. Ana Célia Castro — As empresas estrangeiras no Brasil: 1860-1913.
chegou ao conhecimento do continente europeu. O imparcial Rio de Janeiro, 1979, pp. 21-56.
(...) carátei

96 97
Ação transformadora e, podemos dizer assim, dissolvente a das Ricardo, no que diz respeito ao papel do comércio externo, Marx a
ferrovias,mesmo no Império do Brasil: elas permitiam o acesso recupera para atribuir-lhe um sentido diverso. Para ele
das mercadorias inglesas aos pontos recônditos do interior, arruinan-
do a pequena e incipiente produção local, como se fossem novos “na medida em que o comércio externo faz baixar o preço
tratados de 1810; elas permitiam que grande lavoura se libertasse,
a dos elementos do capital constante ou o dos meios de subsis-
pela primeira vez, da faixa litorânea, apagando ou ao menos fazen- tência nos quais se converte o capital variável, ele produz
do com que recuassem os limites do “sertão”; elas permitiam que o resultado de fazer subir a taxa de lucro ao elevar a taxa
os gêneros coloniais chegassem aos portos em melhores condições e de mais-valia e ao fazer baixar o valor do capital cons-
mais rapidamente, contribuindo para o barateamento dos custos tante”. 199
daqueles que eram consumidos na Inglaterra; elas não tardariam a
levar até as plantações distantes os imigrantes que chegavam aos Ao mesmo tempo, aos humanitaristas que combatiam a escravi-
portos do Império para substituir o trabalhador escravo. dão no Novo Mundo somam-se os interesses livre-cambistas da
E foi justamente esse conjunto de fatores que permitiu, logo nos burguesia industrial, empenhados em baratear o custo dos gêneros
primeiros tempos deste segundo momento, burguesia industrial
à tropicais que compunham a cesta do operário inglês.
inglesa prescindir da monopolização jurídica ou formal do mercado Revelam-se, assim, o sentido da restauração da moeda colonial
brasileiro (sem dúvida, é somente ao se ter como referência o mo- e o elemento que une as duas faces, conferindo-lhes um novo valor.

nopólio real do mercado mundial pela indústria inglesa que se pode Uma restauração que repõe, sob condições novas, a relação comple-
entender o “sucesso político” da tarifa Alves Branco de 1844). Por mentar e contraditória entre ambas as faces.200 Nestes termos, os
outro lado, esses mesmos interesses se empenharão pela primeira vez interesses presentes na “cara”, animados pela ideologia e pela prá-
198
numa luta sem tréguas contra o tráfico negreiro intercontinental. tica do livre-cambismo, ajudam a erigir o monopólio que define

Sem embargo, à medida que os interesses capitalistas progrediam, a Coroa na face complementar, porque a existência desta se cons-
também ocupando o primeiro plano na “cara” da moeda a con-
ia titui em condição necessária para a sua própria reprodução. Por

tradição essencial do capitalismo concorrencial a lei da baixa— •toda parte, à medida que se desenvolvem a produção e a acumula-
198
tendencial da taxa de lucros —
e que se apresenta sob a forma do
,
ção capitalista, desenvolvem-se em termos proporcionais a concor-
“espectro que ronda a Europa”. Por essa via, a questão do comér- rência e o crédito, e estes se constituem, sem dúvida, na mais
cio externo ou da função das relações internacionais de produção poderosa alavanca da centralização: numa das faces, de capitais;
retorna, quer sob a forma de uma questão teórica quer assumindo na outra, da gestão administrativa.
importância dentre as discussões políticas. Tomemos alguns exemplos, como o da expansão ferroviária. A
Enquanto John Stuart Mill se opunha â teoria de Smith e de Coroa assegura aos investidores um conjunto de garantias, parti-
cularmente desde a legislação de 1857. Elas abrangem subsídios
para a importação de trilhos, máquinas, instrumentos, gratuidade
no transporte de carvão, etc.; as concessões do direito de explorar,
Em “O encaminhamento político do problema da escravidão no Impé-
por um prazo de até noventa anos, as terras “vizinhas” à ferrovia,
rio”, in: Pequenos estudos de ciência política op. cit., p. 15, n.° 1, Paula Bei-
,

guelman sustenta que a ação repressiva exercida pela Inglaterra sobre o tráfico do uso de madeiras, da desapropriação de minas de carvão, areia
intercontinental se consubstanciou na imposição às potências escravistas de su- e pedreiras; e sobretudo a garantia de juros de 7% sobre o custo
cessivos tratados, cujos termos foram se tornando progressivamente mais exi-
gentes. Assim, numa primeira fase o governo britânico se limitou a restringir
as áreas do tráfico lícito; na segunda fase, tendeu a impor a admissão da
199 Citado por Christian Palloix
200
— Op. cit., p. 255.
visita e busca em navios suspeitos de comércio negreiro ilícito, bem como a
O que importa destacar, neste ponto, é que o caráter complementar e
contraditório da relação entre as duas faces da moeda, a um só tempo, foi
estipular um prazo para o encerramento do tráfico; e, na terceira e última
restaurado a partir de um sentido e uma qualidade distintos. Como uma rela-
fase, passou a exigir a dispensa da prova da presença efetiva de africanos a
ção dialética, a moeda colonial não era apenas solidariedade no período mer-
bordo, bastando o apoio em evidências indiretas para caracterizar a atividade
cantilista, vindo a se tornar apenas oposição no período posterior à Revolução
de tráfico negreiro. Podemos acrescentar que, enquanto as duas primeiras fases
estão referidas ao primeiro momento que mencionamos acima, a terceira está
Industrial, conforme nos faz crer João Manuel Cardoso de Mello —
O capita-
lismo tardio. São Paulo, 1982, p. 44.
relacionada, de maneira estreita, aos interesses da burguesia industrial.

98 a 99
estimado da ferrovia, o que, independentemente do resultado alcan- tos de um lado e de jovens e agitados Estados, com os Esta-

çado, assegurava o retorno do investimento-^^ Por certo, esse


oon- dos Unidos, do outro lado. Nós nos intrometemos entre eles
junto de garantias valia para nacionais e estrangeiros, assim como e firmamos o pé no México. Os Estados Unidos, inutilmen-

alguns dos privilégios concedidos às ferrovias estrangeiras eram co- te, venceram-nos na iniciativa, mas nós ligamos, uma vez
muns cm várias partes do mundo. Todavia, o que melhor carac- mais, a América ã Europa.” 20a
a atuação da Coroa é a associação que ela patrocina
entre
teriza
nacionais e estrangeiros, num primeiro momento, e a opção que, A moeda colonial em restauração é também isso: a ligação polí-
depois, da América à Europa, dos interesses dominantes
via de regra, acaba por fazer pelos investidores estrangeiros, tica e ideológica

embora seguindo os mais diversos caminhos e procedimentos, como no Império do Brasil aos interesses predominantes do Velho Mundo.
se torna possível conhecer, por exemplo, pela leitura da Autobio- Progressivamente depurado, o liberalismo cimenta a união das duas
grafia de MauáJ202 faces: após eliminar as trevas da dominação colonial, ele ilumina os

Coisa semelhante acontecia quanto aos empréstimos externos, A caminhos por onde deve se movimentar com o máximo de agilidade
Coroa competia negociá-los, oferecendo as garantias para o cum- o capital.
primento dos compromissos assumidos, como a hipoteca das ren- À era do capital 204 que apenas se inicia, anunciando intensas
das da alfândega do principal porto do Império. transformações, corresponde o tempo saquarema como um momento
Relações complementares entre as duas faces da moeda, assim, de chegada, sublinhando uma conservação. Neste, o jogo de inver-
possibilitando que se efetive e reproduza a articulação económica sões revela suas razões ao põr em evidência diferenciações: de um
que gera a divisão internacional do trabalho; mas. relaçao contra- lado, ele era a maneira de o Império encontrar e delimitar o seu
ditória erige a Coroa que se opõe à extinção do
também, que lugar numa comunidade de nações assinaladas pela civilização; de
tráfico negreiro intercontinental e da própria escravidão, contrarian- outro, era a maneira de utilizar as diferenças como uma espécie de
do assim os interesses prevalecentes na primeira face da moeda. escudo ideológico Justificador da permanência de uma dominação,
Todavia, a relaçao complementar e contraditória entre as duas traduzida no exercício dos monopólios.
faces da moeda colonial em restauração não se reduz ao plano eco-
nômico. Ela recobre também os planos político e ideológico.
As palavras de George Canning em carta a um amigo por oca-
sião do reconhecimento dos governos de Buenos Aires, do
México
e da Colômbia, revelam a importância da adesão a princípios e
sistemas políticos que, embora tivessem abolido o absolutismo mo-
nárquico, não compactuavam com os princípios democráticos, igua-

litários e revolucionários:

4
*A um ato que, em face do mundo, sig-
coisa está feita.
. .

nificará uma
modificação tão grande como a da descoberta
do continente, agora, libertado. Os yankees gritarão em
triunfo, mas serão eles que perderão mais com a nossa de-

cisão. O
grande perigo do momento — perigo que o
siste-

ma europeu poderia ter estimulado seria a —


divisão do
mundo entre duas partes, uma européia e outra americana,
republicanismo e monarquismo. uma liga de governos gas*
2G3 Cf. Caio de Freitas — Op, ctf.
201 Àna Célia Castro — Op. cii., pfu 47-56. Eríc Hobsbawm — A do «pifai. Rio de Janeiro. 1977, "O triunfo
era
202 Visconde de Maui — AutobUgrtfic. Rio de Janeiro. 1942, especiai- global do capitalismo é
,T
o lema mais importante da história nas décadas que
menle pp, 245 e 147. sucederam 184& (p. 21).

100 101

; ufrGS
II / LUZIAS E SAQUAREMAS; LIBERDADES
E HIERARQUIAS

Era comum ouvir-se dizer, em meados do século passado, não haver


nada tão parecido com um saquarema como um luzia no poder.
0 provérbio imperial chegou até nós. Não raro, políticos, homens
de Estado, historiadores e demais cientistas sociais evocam-no para
caracterizar, a partir de uma ótica negativa, os partidos políticos no
Brasil, quer estejam falando daqueles do Segundo Reinado, quer
estejam se referindo aos de época mais recente. Tomemos, por
exemplo, Oliveira Viana. Ao sublinhar a semelhança entre os par-
tidos políticos imperiais, recorrendo ao provérbio mencionado, en-
fatizando a ausência de opinião e de programa deles, o autor de
O Ocaso do Império husca a explicação para tal em sua constitui-
ção: “simples agregados de clãs organizados para a exploração co-
mum das vantagens do Poder”. 1 E, ao assim proceder, ele contri-
buía a seu modo para engrossar o caudal da argumentação contra
os partidos políticos, justificadora também de um Estado autori-
tário e centralizado, característica dos anos trinta de nosso século, 2
mas que, sem dúvida, aí não se deteve.
Não obstante, acreditamos que ótica distinta pode ser adotada,
caso evitemos não só a semelhança que o dito insinua, como também
efetuar uma comparação em busca de uma igualdade entre épocas
em tudo e por tudo distintas. Trilhando um caminho diverso, nor-
teado pela diferença e construído a partir do movimento daqueles
que se apresentavam como os atores privilegiados do drama impe-
rial, talvez se torne possível chegar a conclusões distintas, recupe-

1 Oliveira Vianna — O ocaso do Império. 3. a edição, Rio de Janeiro, 1959,


p. 19.
2 Cf. Maria do Carmo Campello de Souza — Estado e partidos políticos no
Brasil. São Paulo, 1976, p. 65.

103
r
rando as circunstâncias como as denominações luzia e saquarema rais,no intervalo de tempo decorrido entre o final das Regências e
surgiram, dando atenção aos tempos diversos em que se impuseram, o fracasso do movimento praieiro em 1848, e à sua posterior unifi-

como e porque se impuseram, de tal modo que, ao cabo, se torne cação sob a denominação de luzia desde então equivalente a liberal.
,

possível compreender a subordinação a uma direção que o provérbio Ora, ela permite põr em destaque o interesse prevalecente entre os
liberais àquela época de conduzir a política de modo a assegurar o
não se preocupa em ocultar.
Comecemos pela maneira como as denominações surgiram, e predomínio de cada grupo em seu âmbito provincial, e que deveria
como se impuseram logo depois, lembrando que tal começo nos im- expressar-se numa distribuição tendencialmente mais equilibrada do

põe a consideração dos movimentos liberais de 1842. aparelho de Estado pelo território imperial. Observe-se, contudo,
Conta-se, a propósito deles, que foram tramados na Corte pelos que esta unidade de propósito em torno de uma monarquia descen-

componentes do Clube dos Patriarcas Invisíveis, os quais embora tralizada— apresentada por defensores como o equivalente
seus a

tivessem a pretensão de unir as forças liberais de três províncias, democracia quase sempre assim reproduzida, de maneira
e acrítica.

além de alguns setores da província fluminense, acabaram por optar — não


,

pela historiografia para


era suficiente uma estabelecer uni-

pela deflagração do movimento na Província de São Paulo, por sua dade de ação, termos da política geral do Império. E isto porque
em
proximidade com o Rio Grande do Sul, havia muito conflagrado não apenas os liberais divergiam a respeito dos fundamentos e dos
pelos farrapos. Conta-se também que além dos liberais gaúchos não modos de agir em direção àquele propósito —
como se manifestara,
por exemplo, na tibieza dos praieiros por ocasião dos movimentos
poderem vir em ajuda dos paulistas, aqueles da Comarca de Curi-
de 1842; mas também e sobretudo como decorrência da prevalência
tiba se retraíram, seduzidos pela promessa de desligamento de São
3
Paulo, efetivamente cumprida alguns anos depois com a criação da dos interesses mais imediatos e particulares dos grupos locais

Província do Paraná. Aos liberais em armas de São Paulo juntar- como é possível constatar, por exemplo, na atitude dos liberais de
se-iam, imediatamente depois, os mineiros liderados pelo tímido José Curitiba.
Feliciano Pinto Coelho e pelo intrépido Teófilo Otôni, enquanto Não obstante, os movimentos de 1842 eram vividos pelos liberais
que os da Província do Rio de Janeiro teriam sido imobilizados pela de modo intenso, como uma verdadeira revolução. Uma revolução
ação enérgica do Presidente Honório Hermeto Carneiro Leão. Conta- porque objetivava, de um lado, livrar o Brasil da "‘Oligarquia tur-
se ainda que os “liberais do Norte*”, particularmente os de Pernambu- bulenta e pretensora” que o oprimia, além de garantir “Liberdade
4 Uma
co, não encontraram meios materiais nem argumentos político-ideo-
e Segurança ao Povo, respeito e Liberdade para a Coroa ,

revolução porque, de outro lado, abria a possibilidade de concreti-


lógicos para juntarem-se aos do “Sul”, persistindo em sua pregação
antigovernamental nas páginas do Diário Novo , editado na Rua da zação de um propósito: o início de um tempo novo!
Praia, razão por que seriam chamados praieiros. Conta-se, por fim, O triunfo conservador reduziria as pretensões e ilusões liberais a
que derrotados pelas forças do Barão de Caxias no combate de Santa quase pó. O triunfo conservador iria impor a unificação das diver-
Luzia, os liberais mineiros passaram a ser chamados pelos adversá- sas denominações dos liberais, a partir da referência a uma derrota,
estigmatizando-os pelos tempos afora. Derrotados, os luzias deveriam
rios políticos pelo nome do local onde ocorreu o seu maior revés:
santa-luzias ou simplesmente luzias. Aos de São Paulo, igualmente sofrer os rigores da redução de sua pretensão —
uma revolução —
derrotados, passou-se a atribuir a denominação de Venda Grande ,
à dura letra do Código Criminal —
uma rebelião. Uma rebelião

local do triunfo conservador.


3 porque não só reunira “uma ou mais povoações, compreendendo
Entre as várias considerações que estas breves menções aos mo- todas mais de vinte mil pessoas”, mas também porque era entendida
vimentos de 1842 possibilitam, privilegiaremos, neste momento, como tendo tido por finalidade tentar destruir a independência e a
aquela que diz respeito às diferentes denominações dadas aos libe- integridade do Império, a sua constituição política, além de opor-se
5
à pronta execução dos decretos expedidos pelo governo.

Cf. Francisco Iglésias— “O Cônego Marinho 1842'", in José Antonio


e
Marinho — História do movimento político de 1842. Belo Horizonte, 1977, pp. 4 Cf. “Proclamação de José Feliciano Pinto Coelho aos Mineiros’

in José
,

13-42. Paulo Pereira Castro — “Política e administração de 1840 a 1848”, in Antonio Marinho Op. cií., p. 98.
dir. Sérgio Buarque de Holanda, 5 Cf. Coleção das leis do Império do Brasil de 1830. Rio de Janeiro, 1876,
História geral da civilização brasileira ,
t. II,

vol. II (São Paulo. 1964), p. 526. parte I, pp. 142-200.

104 105
como imprescindível punir proprietários de terras e de escravos, teriam conseguido livrar seus
No calor dos acontecimentos, aparecia
com severidade os responsáveis
k
por *uma rebelião aberta e devas- protegidos dos desmandos daquela autoridade, e que, desde então,
tadora’
1
nas palavras do ministro da Justiça, Paulino José Soares a denominação saquarema passou a ser dada aos protegidos deles.
,

de Sousa, e que pretendera que “a Vontade Nacional, legitimamente Relatam, por fim, que muito rapidamente a nova denominação foi
representada, se curvasse diante do capricho de representantes de estendida aos adeptos do partido em todo o Império, de tal modo

interesses provinciais, exorbitando das suas atribuições


meramente
6 1

. que no ano seguinte surgia o jornal 0 Saquarema na Província


Contra a pretensão dos luzias, a força vencedora defendia a neces- de Pernambuco, e dois anos depois órgão homônimo na de São
sidade de “armar o poder com os meios indispensáveis para eman- Paulo,10
propugnando, assim, uma distri- À semelhança dos movimentos liberais de 1842.
relatos sobre os
cipar-seda tutela das facções
aqui também são possíveis algumas considerações, como a que se
buição desigual do aparelho de Estado pelo espaço territorial do
refere à extrema rapidez com que o termo passou a designar os
império.
O Cônego Marinho — partícipe do movimento e autor de relato elementos ligados ao Partido Conservador em todo o Império, e a
sobre ele — refere-se às torturas e perseguições ferrenhas sofridas que diz respeito ao caráter particular que a denominação sempre
pelos revolucionários transmutados em rebeldes. Confrontado com guardou, apesar daquela difusão.
outros depoimentos, mesmo de fonte liberal;9 o seu parece evidente- Por certo, a rápida expansão do termo saquarema se explica pelo
mente exagerado. A concessão de anistia a todos os rebeldes, dois predomínio liberal, entre 1844 e 1848. Carregando um sentido de-
1

preciativo, na medida em que lembrava "'protegido ou ""favoreci- '

anos depois, parecia confirmar a opinião de um contemporâneo de


que, efetivamente, **as leis criminais fizeram-se para os pobres".® do”, sendo que alguns, com maior maledicência, chegavam a rela-
Os liberais - —
como foi dito acima —
sofreriam punição mais rigo- cionar a origem do nome ao verbo sacar (de onde derivaria sacare-
11 a expressão parecia atender aos
rosa: deveriam ficar conhecidos não apenas pelo local de sua derrota mos, saquaremos, saquaremas),
— luzias! Deveriam adotarem as pro-
ficar conhecidos ainda por

anseios dos luzias, ávidos por revidar o apelido que os estigmatizava.
postas de seus vencedores, sempre que retornassem ao governo De outro lado. porém, não se pode deixar de relacionar aquela difu-
nada tão parecido com um saquarema como um luzia no poder/
,
são à maneira como se apresentavam as forças constitutivas do Par-
Mas, por que saquaremas ? tido Conservador naquela conjuntura. Às vésperas do movimento
Relatam uns poucos que, nos idos de 1845, quando os liberais praieiro, elas tendiam a uma coesão crescente em tomo de um de-

ocupavam de novo o governo do Império e a Província do Rio de terminado projeto político para o Império, não obstante os interesses
Janeiro era presidida por Aureliano de Sousa Coutinho, um certo regionais sempre presentes. E esta coesão facilitava, sem dúvida, a

Padre José de Cea e Almeida exercia as funções de subdelegado de disseminação deuma denominação que não so a reforçava como
Polícia na vila de Saquarema. Querendo garantir o triunfo nas também cumpria o papel de particularizar uma política, sobretudo

eleições também naquela localidade, o Padre Cea teria expedido uma porque na sua direção se destacavam os políticos fluminenses que a
ordem onde autorizava até mesmo o assassínio do eleitor que re- motivaram. Ora, esta orientação política se apresentava de tal forma
cusasse as listas do governo. Relatam também que Joaquim José Ro- avassaladora enquanto força, que, em 1848, ao renunciar à chefia
drigues Torres e Paulino José Soares de Sousa, chefes conservado- do gabinete, pondo fim ao predomínio liberal, Paula Sousa um —
res, com grande parentela naquela localidade, onde eram também dos remanescentes do '"velho liberalismo paulista ’, no dizer de
Sérgio Buarque de Holanda 12 discursaria —
evocando a imagem

6 Relatório da Repartição dos Negócios da justiça apresentada ã


bléia-Geral Legislativa, na sessão da 5* íegisEoXwa pelo respectivo Ministro
10 Cf. Carta de Rodrigues Torres, datada de 6 de setembro de 1844. ao
e Secretário de Estado Paulino José Soares de Souza. Fio de Janeiro* 1343, p. 5. Jornal do Com mercio (7 die setembro de 1844). Luís da Câmara Cascudo
s
7 Idem, Ibidem, p. 3. Dicionário do folclore brasileiro. 2. edição. Rio de Janeiro, 1962. vol. II, p. 683.
® Cf., entre outros. Francisco de Paula Ferrara de Rezende — Minhas re~ Paulc Pereira Castre - Op. cií., p. 524.
11 Luís da Camara Cascudo
cordfdçôea. Rio de Janeiro. 1944 (especialjnente, o cap. XVI, pp. 152-158). Op, cif., loc. cit,
9 Martios Pena —
'*0 noviço”, in Comédias de Martins Pena, Rio de Ja-
j 12 Cf. Sérgio Buarque de Holanda —
'Sao Paulo” in História geral da
melro. 1966, pp, 301-348. civilização brasileira, t. II, vol. II, p. 472.

106 10 7
de um índio a lutar contra a correnteza, até que, exausto, desfaz-se vado pelos demais na explicação do jogo político imperial, numa ati-
dos remos, abandonando-se ao que já não pode evitar. A atitude de tude que só parece encontrar paralelo, e assim mesmo para um
Paula Sousa —a “quebra dos remos” pelos liberais revelava a — intervalo de tempo bastante menor, no destaque concedido à “facção
impossibilidade de reverter uma direção que tornava, dia a dia, áulica”. Recuperado hoje, esse privilegiamento possibilita que, de
cada um dos luzias semelhante aos saquaremas. 13 um lado, recortemos as diferenças entre luzias e saquaremas e
Todavia, o apelido saquarema não deixou de guardar para sem- também no interior dos próprios saquaremas, além de, por outro
pre um traço marcadamente particular. Por saquaremas se deno- lado, e pela consideração de uma direção, hierarquizar estes diver-
minariam sempre e antes de tudo os conservadores fluminenses, e se sos segmentos: saquaremas, conservadores de todo o Império, luzias.
assim ocorria era porque eles tendiam a se apresentar organizados Ora, é justamente a identificação de uma diferença e de uma
e a ser dirigidos pela “trindade saquarema”: Rodrigues Torres, hierarquia —
de modo inverso à proposição da leitura corrente do
futuro Visconde de Itaboraí, Paulino José Soares de Sousa, futuro
Visconde do Uruguai, e Eusébio de Queirós. A propósito dos três,
provérbio imperial — que cria a possibilidade de nos interrogarmos
sobre a direção que os saquaremas exerciam, assim como de investi-
comenta Joaquim Nabuco que, na Sessão de 1843, “se não tinham gar a força que representavam. Todavia, e embora podendo parecer
o renome dos chefes do Senado, Olinda, Vasconcelos e Honório, ti- incoerente, caso queiramos elucidar estas novas questões, devemos
nham já de fato a direção do partido”. 14 retornar à semelhança que o provérbio sugere.
Efetivando muitas das proposições “regressistas” de Vasconcelos,
tendo a seu lado a figura ímpar de Honório Hermeto Carneiro
Leão, e contando com o apoio de José da Costa Carvalho na provín-
cia paulista, a “trindade saquarema” constituiria o núcleo do grupo 1. UM IMPÉRIO E TRÊS MUNDOS
que deu forma e expressão à força que, entre os últimos anos do
Período Regencial e o renascer liberal dos anos sessenta, não só alte-
rou os rumos da “Ação” 15 mas sobretudo imprimiu o tom e definiu “Havia um pais chamado Brasil; mas abso-
lutamente não havia brasileiros”.
o conteúdo do Estado imperial.
Por isso mesmo, não nos devem causar espanto o papel que eles Auguste de Saint-Hilaire, 1833.
desempenhavam nas representações elaboradas pelos contemporâ-
neos, aliados ou adversários. Em certa ocasião foi dito que forma- O movimento real que nos permitiu restabelecer em parte as dife-

vam a “Oligarquia”, ao lado de alguns poucos mais; noutra, que renças entre os agentes responsáveis pela condução da vida política
17
eram a “Patrulha”; no Velho Senado de Machado de Assis apare- do Império, e mesmo hierarquizá-los em certo momento, possibi-
cem compondo o “Consistório”; para uns eram os “legítimos defen- lita-nostambém recuperar as semelhanças entre ele^, sem que
sores da Monarquia”, enquanto para outros eram os “inimigos necessariamente adotemos uma perspectiva negativa como a de Oli-
invariáveis da Liberdade do Brasil”. 16 0 que todas essas denomina- veira Viana.
ções e expressões denotam é o lugar destacado que lhes era reser- Voltemos, por um instante, aos movimentos liberais de 1842.
Preocupado em narrar com “escrupulosa exatidão” os aconteci-
mentos daquele ano na Província de Minas Gerais, o Cônego José
13 Idem, Ibidem. Antônio Marinho sublinharia “o entusiasmo e a dedicação com que
14 Joaquim Nabuco — Um estadista do Império. 4.
a
edição, Rio de Janeiro, os ricos proprietários, fazendeiros abastados, grossos negociantes,
1975, p. 78. fortes capitalistasapoiavam o movimento”. Não deixaria de fazer
15 Cf. o panfleto de Justiniano José da Rocha — “Ação; reação; transação.
referência, contudo, ao lado do governo: “podia-se dizer com ver-
Duas palavras acerca da atualidade política do Brasil”, in Raimundo Magalhães
Júnior — Três panfletários do Segundo Reinado. São Paulo, 1956. dade que, tanto no campo legalista, como nas fileiras insurgentes,
16 Cf., entre outros, Visconde do Uruguai — Ensaio sobre o Direito Admi- existiam as mesmas convicções: proprietários, capitalistas, pais de
nistrativo. Rio de Janeiro, 1862, tomo I, p. 249; José Antonio Marinho Op.— família”. 17 Se censurava o governo, era por ter-se servido de gente
cit ., p. 69 e 95; Anais do Parlamento Brasileiro Senado , 1941 —
discursos dos
,

Senadores Paulo Sousa, Vergueiro e Vasconcelos; Machado de Assis —


“O velho
Senado”, in Obra Completa — Rio de Janeiro, 1962, tomo II, p. 639. José Antônio Marinho — Op. cit., passim.

108 109
. :

sem bem como de “pretos da Costa


qualificação, assassinos e ladrões, de distinguir entre o que ocorria no Rio Grande do Sul e a rebe-
d’África, em cujasmãos depositou as armas da nação, para irem lião que “em tão breve tempo rebentou nos Sertões do Pará, Mara-
bater os industriosos mineiros (...) nuvens de nagôs e minas, que nhão e Piauí”, diferenciando com nitidez entre crimes políticos e
levavam a toda a parte a devastação e o saque”. 18 aqueles “horrores friamente perpetrados pela barbaridade, pela las-
Alguns anos depois, falando da Praieira e colocando-a ao lado cívia, pela vingança e por outras paixões alheias à política”. 22 Afi-
dos movimentos de 1842, o acrimonioso Timandro insistia numa nal, naqueles Sertões, rebelava-se “uma massa enorme de homens
distinção, nas folhas do seu O Libelo do Povo “nas revoltas subse- ferozes, sem moral, sem religião e sem instrução alguma, eivados
qüentes à abdicação, o que aparecia era o desencadeamento das de todos os vícios da barbaridade! (...) Nem o sexo, nem a idade,
paixões, dos instintos grosseiros da escória da população; era a luta nem a propriedade, nada respeitavam!” 23
da barbaridade contra os princípios regulares, as conveniências e 0 que os depoimentos de luzias e saquaremas nos permitem per-
necessidades da civilização. Em 1842 pelo contrário o que se via à ceber, de imediato, é que dos inúmeros movimentos que abalaram
frente do movimento a braços com o soldado mercenário, era a flor o Império do Brasil durante duas décadas, desde a abdicação de
da sociedade brasileira, tudo que as províncias contavam de mais D. Pedro I, participaram tanto “proprietários, capitalistas, pais de
honroso e eminente em ilustração, em moralidade e riqueza; espe- família”, quanto “uma massa enorme de homens ferozes, sem mo-
táculo que se renova hoje em Pernambuco, com o mesmo séquito ral, sem religião e sem instrução alguma”, além de “nuvens de

de atrocidades e infâmias”. 19 nagôs e minas”. Observemos, contudo, que embora movidos por
Vejamos mais um depoimento luzia. Referindo-se aos “Partidos razões diversas e perseguindo objetivos distintos, todos esses elemen-
e Eleições no Maranhão”, o jornalista e historiador João Francisco tos eram vistos de maneira idêntica pela violência institucionalizada.
Lisboa distinguia entre as “grandes massas da população” e a “ca- Eram vistos como cometendo crimes públicos na classificação do
,

mada superior”, lembrando que se as primeiras se caracterizavam Código Criminal: conspirações, rebeliões, sedições e insurreições. 24
por sua “indiferença, apatia e abstenção para os misteres da vida Todavia, em que pese a dura e fria classificação legal, os depoi-
pública, civil e política”, a última “não procura meios de vida senão mentos de luzias e saquaremas nos mostram algo mais significati-
na carreira dos empregos, não tem outro entretenimento que a luta vo: a distinção que ambos estabeleciam entre os movimentos leva-
que o da ciência política”. 20
e agitação dos partidos, outro estudo dos a efeito pela “flor da sociedade brasileira” —
como o dos farra-
Os saquaremas também possuíam opiniões a propósito desses pos no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845, os de São Paulo e
acontecimentos Minas Gerais em 1842, ou ainda a própria Praieira em Pernam-
Tratando de 1842, o ministro da Justiça Paulino José Soares de buco, em 1848 —
e os demais, da “escória da população”, propugna-
Sousa lamentava que os rebeldes tivessem apelado para “homens de dores de uma oclocracia, nos termos de um contemporâneo. 25
pouca importância social, porém audazes, ativos e decididos”, os Ora, a constatação dessa diferença essencial não era senão a face
quais propagandeavam “a muitos homens do interior dai província, complementar da identificação efetuada por luzias e saquaremas de
de cor e ignorantes [que] iam ser reduzidos ao cativeiro”, enquanto uma semelhança entre ambos, semelhança esta que conduziu mes-
“àqueles que tinham filhos, fazia-se crer que iam ser recrutados em mo, em não raras ocasiões, a acusações recíprocas de utilização de
virtude da lei da reforma”. 21 “gente sem qualificação” para a consecução de seus propósitos.
Em momento mesma autoridade buscara explicações
anterior, a
para as rebeliões que agitavam o Império. Mostrara, então, o cuidado

22 Relatório do ministro da Justiça ,


1841 ,
Paulino José Soares de Sousa,
p. 7.
18 Francisco Iglésias — Op. cit ., p. 34. 23 Relatório do ministro da Justiça, 1841 , Paulino José Soares de Sousa,
19 Francisco de Sales Torres Homem — “0 Libelo do Povo”, in R. Maga-
P- 9 *
lhães Júnior — Três panfletários do Segunde Reinado. São Paulo, 1956, p. 82. 24 Cf. Coleção das leis do Império do Brasil de 1830. Rio de Janeiro,
20 João Francisco Lisboa —“Partidos e eleiçães no Maranhão”, in Obras 1876, parte I, pp. 142-200.
escolhidas. Rio de Janeiro, 1946, p. 158. 25 A expressão é do comandante-coronel do Batalhão dos Bravos da Pátria,
21 Relatório do Ministro da Justiça, 1843 , Paulino José Soares de Souza, J. P. dos Santos Barreto, em 1831. Apud Octavio Tarquínio de Souza —
p. 8. Fatos e personagens em torno de um regime. Rio de Janeiro, 1957, p. 251.
Contudo, parece-nos que mais importante será sublinhar que a especialmente do momento que muitos consideram ser seu prolon-
identificação que luzias e saquaremas procediam, em termos de gamento ou degenerescência: as rebeliões ou a guerra.
diferenças e semelhanças, era apenas a expressão, nesse aspecto Voltemos às Minhas Recordações de Ferreira de Resende. Ali,
,

particular, da visão que possuíam e veiculavam da política e da so-


os apontamentos da memória que se apresentam ao leitor, à primeira
ciedade, visão essa que —
podemos afirmar —
vinha-se constituindo
vista, oscilando entre a ingenuidade e a idealização do “passado
desde o próprio forjar do processo de colonização, e que no momento imperial”, podem ser tomados como a construção de um padrão
que ora consideramos tendia a se apresentar de forma cristalizada das regras de coexistência social, como a construção de um tipo
como decorrência sobretudo dos processos complementares de cons- ideal “selvagem” no qual aquelas regras aparecem “exageradas” ou
trução do Estado imperial e de constituição da classe senhorial. 28
“absolutizadas”, de acordo, aliás, com a proposição weberiana .

Cuidemos com mais vagar deste aspecto, até mesmo porque sa- Ali, destaca-se a cada página o sentimento aristocrático já mencio-
bemos da importância de se considerarem as visões de mundo e os nado. Após observar que “onde a desigualdade mais depressa desa-
sistemas de classificação que lhes correspondem, e que se impõem
parece ou menos se observa, é na religião ou no prazer”, o autor
ao conjunto da sociedade que pretendemos conhecer. No essencial,
anotaria que, naqueles tempos, “não só cada uma das classes procu-
são essas representações que acabam por dirigir a conduta social,
rava ter sempre a sua igreja própria, mas que ainda os próprios
porque é através delas que cada indivíduo ou grupo social toma santos dos céus pareciam não pertencer a todos ”,
29 a mesma distin-
26
consciência de sua relação com os demais e com o próprio mundo
ção ocorrendo por ocasião das festas e festividades. As clivagens
.

Recordando a sociedade imperial em meados do século passado, entre os elementos constitutivos da sociedade imperial não se re-
Francisco de Paula Ferreira de Resende dizia ser “inteiramente
duzem às considerações de natureza estritamente política. A cada
aristocrático o sentimento que então dominava”, enfatizando que
passagem das Recordações , uma combinação particular de condi-
“não só as diversas raças confundiam mas que muito pelo
nunca se
ções sociais e matrizes raciais distingue as
envez disso, cada raça e cada uma das classes nunca deixavam de
mais ou menos manter e de conhecer o seu lugar ”. 27 Ora, sem
“três seguintes classes: a dos brancos e sobretudo daqueles
dúvida, era este sentimento aristocrático que referenciava os dife-
que por sua posição constituíam o que se chama a boa so-
rentes critérios que permitiam não só estabelecer distinções entre — ciedade; a do povo mais ou menos miúdo; e finalmente a
a “flor da sociedade” e a “escória da população”, no dizer do Ti- 30
mandro, por exemplo —
mas também e antes de mais nada hierar-
dos escravos.”
,

quizar os elementos constitutivos da sociedade — cada qual e todos


Podemos dizer, porum lado, que este sentimento aristocrático
“nunca deixavam de mais ou menos manter e conhecer o seu lugar”.
Recuperemos a exposição de Paulino, por exemplo. Nela, a dis-
— síntese da visão da política e da sociedade prevalecente à época

criminação se apresenta a partir de uma dimensão espacial: os habi-


tantes do Sertão — “ferozes, sem moral, sem religião, sem instru- 28 Cf. a observação de Moacir Palmeira —
“Casa e trabalho: nota sobre as
ção”: bárbaros, em suma; e os habitantes do litoral, civilizados. Re- relações sociais na plantation tradicional”, in Contraponto ano II, n.° 2 (nov.
,

tomemos João Francisco Lisboa, no qual a distinção se constrói a 1977), p. 104.


partir do interesse pelos “misteres da vida pública, civil e política .
29 F. P. F. de Resende —Op. cit., p. 176.
30 Idem, Ibidem, p. 185. São inúmeros os depoimentos nos quais é possível
Em ambos, o sentimento aristocrático rastreando a visão da política. resgatar a combinação particular entre condições sociais e matrizes raciais, no
Império do Brasil em meados do século XIX. Escrevendo em 1834, o Dr. Hen-
rique Félix de Dacia “bacharel e advogado público”, insurgia-se contra o pre-
26 Cf. Georges Duby —Historia social y ideologias de las sociedades. Bar- conceito de se reservarem “as sciencias e os cargos” para os brancos: “querem
celona, 1976, p. 43. Ver também, numa outra perspectiva, a posição de Mari- que um pobre homem de cor não passe de um simples artista”. Posição crítica
lena Chauí: “as representações que os sujeitos sociais e políticos farão acerca semelhante aparece no Bosquejo histórico, político e literário do Brasil do Ge-
,

da sua própria ação vão constituir o pano de fundo no qual os agentes sociais neral José Inácio de Abreu e Lima publicado em 1835. Essas e outras posições,
e políticos pensarão a si mesmos, pensarão as instituições, pensarão as relações caracterizando que “a subordinação da gente de cor, baseando-se na diferença
de dominação, pensarão o social e político no seu todo” (“Crítica e ideologia' ,
de raça, era também uma subordinação de classe”, são desenvolvidas por Gil-
in Cadernos SEAF, ano I, n.° 1, agosto de 1978, p. 19).
27 Francisco de Paula F. de Resende —
Op. cit., p. 176.
berto Freyre — Sobrados e Mocambos —Decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. 4. a edição, Rio de Janeiro, 1968, p. XIX.

112 113
da Maioridade —expressava um fundo histórico forjado pela colo- litarista —
quer por meio de Thomas Hobbes, quer por intermédio
nização, que as forças predominantes na condução do processo de da escola de pensadores e publicistas britânicos associados aos no-
emancipação política não objetivaram alterar: o caráter colonial e mes de Jeremias Bentham e James Mill 32 —
tais idéias permitiam
,

escravista dessa sociedade. Anotemos, contudo, que tomar em consi- sublinhar com maior ênfase os monopólios que fundavam e distin-
deração esse fundo não significa recolher apenas seus aspectos mais guiam a classe senhorial: os monopólios da mão-de-obra e da terra;
estritamente econômicos, mas também evidenciar o papel que as dos negócios e da política; e também dos homens por meio da admi-
relações pessoais e raciais cumpriam nessa sociedade. nistração civil e militar, leiga e eclesiática.
também que ele reponta como manifes-
E, por outro lado, dizer Emancipar-se da tutela metropolitana, organizar o novo Estado
tação da importância que o liberalismo possuiu no duplo movimento soberano e reproduzir a estrutura da sociedade apareciam como
que distinguia esta sociedade no momento em questão: a construção processos cor relatos que propiciariam a satisfação dos interesses de
do 31Estado imperial e a constituição da classe senhorial. cada um dos componentes da “boa sociedade”. Acompanhando de
Não pretendemos discutir se as idéias do liberalismo burguês perto as formulações de Bentham, entendia-se que “a maior felici-

estavam ou não no lugar, no Império do Cônego Marinho, do dade do maior número” era o único critério defensável de bem
Timandro, de Francisco Lisboa, de Paulino Soares de Sousa, de social, sendo que a felicidade era igual à quantidade de prazer indi-
Ferreira de Resende e de inúmeros outros luzias e saquaremas 31 . vidual menos sofrimento. E Bentham não deixava de evidenciar
Gostaríamos de destacar, contudo, que sobretudo em sua versão uti- que a posse de bens materiais era tão fundamental para a obtenção
das demais satisfações não materiais que podia mesmo ser tomada
como a medida de todas elas: “cada parcela de riqueza tem a sua
Reafirmamos aqui a nossa intenção de não participar da discussão a correspondente parcela de felicidade ”. 33
respeitodo lugar das idéias liberais no Brasil do século passado, sendo forçados Assim, o aumento da felicidade, a restauração dos monopólios e
a optar entre os que defendem que elas encontravam suas raízes nos funda-
a expansão da riqueza constituíam-se em objetivos fundamentais
mentos econômicos de uma sociedade centrada na produção do lucro, e assim
mantinham a função primordial de encobrir e inverter as coisas (cf. princi- para luzias e saquaremas, a razão essencial que os distinguia tanto
palmente Maria Sylvia de Carvalho Franco — “As idéias estão no lugar”. do “povo mais ou menos miúdo” quanto dos escravos. E tais obje-
Cadernos de Debate n.° 1. S. Paulo, 1976) ou os que afirmam que a ideologia
, tivos acabavam por colocar em destaque dois atributos fundamentais
cumpriu o papel de realçar o essencial, servindo pois como elemento de afirma-
ção da distinção (cf. Roberto Schwarz — “As idéias fora do lugar”. Estudos
nesta sociedade: liberdade e propriedade.

CEBRAP n.° 3. S. Paulo, 1973). Numa certa medida, parece-nos mais perti-
,
Neste ponto nos desobrigamos de retornar, mais uma vez, às di-
nente o posicionamento de Florestan Fernandes ( A revolução burguesa no Brasil. versas classificações acima transcritas. Basta-nos recordar que em
Rio de Janeiro, 1977) ao sublinhar que “o Liberalismo foi a força cultural viva todas elas apresentam-se como elementos privilegiados todos aqueles
da revolução nacional brasileira” (p. 38). Ao afirmar que embora não preen-
que eram possuidores de liberdade e propriedade, ao passo que, e
chesse aqui as funções de dinamizador cultural de consolidação de uma ordem
social autônoma, o ideário liberal concorreu para “precipitar a formação e para de modo complementar, constituíam-se em elementos desprivile-
orientar o desenvolvimento de uma ordem social nacional, mas heteronômica giados todos aqueles que não eram portadores desses atributos.
(ou dependente)” (p. 36), o autor acaba por apresentar como seus dividendos Que os atributos de liberdade e propriedade existiam de modo
positivos, tanto o fato de ter concorrido para revolucionar o horizonte cultural
articulado nesta sociedade, de tal forma que o último fundava o
das elites nativas, propiciando-lhes categorias de pensamento e de ação que
conduziram ao desmascaramento do “esbulho colonial”, quanto o de ter in-
fluenciado na separação e superposição dos planos da organização do poder, reser-
vando ao “poder central” um plano independente e superior enquanto os mo- definir a organização do Estado imperial enquanto uma “dualidade estrutural”,
delos de dominação patrimonialista se faziam sentir apenas de maneira indireta constituída por “formas de dominação consagradas pela tradição” e por “formas
além de, por fim, ter desencadeado uma vaga de idealismo político que reper- de poder criadas pela ordem legal” dualidade que, no essencial, possibilitaria
cutiu de modo construtivo na organização, funcionamento e aperfeiçoamento da o papel civilizador desempenhado pela ideologia liberal. Adiante, e no momento
Monarquia constitucional. Evidentemente, o fato de nos aproximarmos das posi- devido, retornaremos a cada uma destas restrições.
ções de F. Fernandes não significa a concordância integral com as suas con- 32 Cf. Eric J. Hobsbawm — Las revoluciones burguesas. Madri, 1964 (espe-
clusões. No que diz respeito apenas a esta parte do alentado trabalho, subli- cialmente cap. XIII, “Ideologia secular”) e C. B. Macpherson — A democra-
nharíamos nossas discordâncias tanto no que diz respeito ao fato de ele pôr em cia liberal —Origens e evolução. Rio de Janeiro, 1978.
questão a existência de uma sociedade nacional como decorrência do seu traço 33 J. Bentham — “Principies of the Civil Code”, parte I, cap. 6. Apud
heteronômico ou dependente, quanto no que se refere à insistência do autor em C. B. Macpherson — Op. cit., p. 31.

114 115
primeiro, expressão da felicidade, é possível perceber pela recorrên- derão a se apresentar divididos entre os que são apenas proprietá-
cia ao próprio texto constitucional de 1824. rios de suas pessoas e aqueles outros que são também proprietários
Nele é estabelecida a distinção entre cidadãos e não cidadãos de outrem. No texto constitucional, tal divisão ganha o conteúdo
pois —
no dizer de um de seus comentadores mais eminentes — ,

da diferença entre aqueles que são cidadãos ativos e os que são


“é evidente que a sociedade civil não poderia existir sem qualificar, cidadãos não ativos a partir da capacidade eleitoral censitária ou,
,

sem fixar previamente os caracteres segundo os quais pudesse reco- como já foi dito, da “metáfora da renda”. 37
nhecer os membros de que se compõe e os que lhe são estranhos”. 34 Aponta o Marquês de São Vicente que a diferença entre cidadão
Todavia, “estranhos” não eram apenas e nem principalmente os ativo e cidadão não ativo é a própria diferença entre sociedade civil
nascidos em outros estados nacionais, a que o texto de 1824 fazia e sociedade política , explicando que “a sociedade política ou massa
referência, ainda que por exclusão, em seu Título 2.°. Era a partir dos cidadãos ativos não é senão a soma dos nacionais, que dentre o
dos atributos de liberdade e propriedade que, de maneira implícita, todo da nacionalidade reúne as capacidade e habilitações que a lei
eram definidos os principais “estranhos” à sociedade civil: os escra- constitucional exige: é a parte a mais importante da naciona-
vos. Talvez valha a pena lembrar, nesse ponto, que a palavra escravo lidade”. 38
não aparece em um único trecho dos cento e setenta e nove artigos Acreditamos ter reunido, agora, um número suficiente de ele-
que compunham a Carta de 1824. mentos que nos possibilitam compreender de modo diverso porque
A transcrição um pouco extensa de outro trecho daquele comen- “cada raça e cada uma das classes nunca deixavam de mais ou me-
tador —
o saquarema Marquês de São Vicente talvez ajude a — nos manter e de conhecer o seu lugar”. Referido aos atributos de
compreender melhor como os atributos referidos construíam uma liberdade e propriedade, o sentimento aristocrático não apenas servia
diferença no nível das relações jurídicas e, por extensão, da cons- para discriminar entre os diversos elementos constitutivos da socie-
ciência social: “a liberdade é o próprio homem, porque é a sua dade imperial; servia sobretudo para determinar a posição e o papel
vida moral, é a sua propriedade pessoal a mais preciosa, o domínio de cada um deles.
de si próprio, a base de todo o seu desenvolvimento e perfeição, a Assim, pelas “capacidades e habilitações” de seus membros, sem-
condição essencial do gozo de sua inteligência e vontade, o meio de pre “brancos”, a “boa sociedade” tende a se confundir com a socie-
perfazer seus destinos. É o primeiro dos direitos, e salvaguarda de dade política — “a parte a mais importante da nacionalidade”. Por
todos os outros direitos, que constituem o ser, a igualdade, a pro- ser portadora de liberdade e propriedade, a ela compete governar ,

priedade, a segurança e a dignidade humana”. 35 isto é, “dirigir física ou moralmente”, nos termos mesmos em que
Expropriados da “mais preciosa” das propriedades, excluídos do já aparecia no Dicionário de Morais, em 1813. Governar é “reger
“primeiro dos direitos”, os escravos não eram considerados pessoas , bem”, quer a Casa —
“regulando a sua economia e administração”,
não tinham reconhecida a capacidade de praticar atos de vontade. quer o Estado — “dando Leis, e fazendo-as executar”. 39 Diremos,
Eram entendidos como coisas; não eram, pois, cidadãos. 36 desde agora, que a “boa sociedade” constituía o mundo do governo ,

Caso dissociemos, agora, aqueles dois atributos, privilegiando a um mundo que não apenas se via como tendendo a ser naturalmen-
propriedade —
e sobretudo a propriedade fundamental dessa so- te ordenado, mas também portador da incumbência de ordenar o

ciedade: a propriedade escrava —


veremos que os cidadãos ten-
, conjunto da sociedade.
Se retormarmos aqui o diagnóstico contundente de Joaquim Na-
buco a respeito do escravo e do senhor —
“dois tipos contrários, e
34 José Antônio Pimenta Bueno
Constituição do Império. Brasília, 1978, p. 440.

Direito Público Brasileiro e análise da
no fundo os mesmos” 40 —
talvez não seja difícil perceber que o
,

35 Idem, lindem, p. 383.


36 A distinção entre pessoa e coisa é desenvolvida, entre outros, por Jacob 37 A. E. Martins Rodrigues, F. J. Calazans Falcon,e M. de Sousa Neves —
Gorender —
O escravismo colonial. São Paulo, 1978, p. 63. A leitura do tra- A Guarda Nacional no Rio de Janeiro 1831-1918. Rio de Janeiro, 1981, p. 15.
balho de Perdigão Malheiros possibilita acompanhar o desenvolvimento da con- 38 J. A. Pimenta Bueno — ,

Op. cit ., p. 461.


tradição entre coisa e pessoa no Direito imperial, e que parece ter o seu ponto 39 Antonio de Moraes Silva —
Diccionario da Lingua Portuguesa recopi-
mais significativo na distinção estabelecida para o escravo entre sujeito de de- lado dos vocabulários impressos até agora, nesta segunda edição novamente
lito e objeto de delito (A escravidão no Brasil. Ensaio histórico ,
jurídico ,
social. emendado e muito acrescentado. Lisboa, 1813.
3.
a
edição. Petrópolis, 1976, parte primeira, p. 28). 40
,

Joaquim Nabuco — O abolicionismo ,


4.“ edição, Petrópolis, 1977, p. 68.

116 117
.

ção entre os mundos do governo e do trabalho como uma relação


lugar e a função que os componentes do mundo do governo reser-
de força, que existe em ação, exercendo-se a cada instante: o poder
vavam para si próprios, estavam definidos* antes de tudo* pela Tela-
ção que estabeleciam com aqueles que se apresentavam como os
eomo combate* confronto e guerra. Como propõe Foucault, também
seus simétricos —
os escravos negros, e que eram vistos como cons-
aqui trata-se de inverter “a posição de Clausewitz, afirmando que a
política é a guerra prolongada por outros meios *.45
1

tituintes do mundo do trabalho O dia-a-dia da vida nas fazendas,


.

Governar a Casa. Na passagem do século XVII para o XVIII,


nos núcleos urbanos e na sociedade como um todo, nos permite
Àntonil assinalara que o senhor de engenho “deve ser, homem de
perceber que as relações entre estes dois mundos, que ora se inter-
penetravam ora se tangenciavam, não estavam assentadas num con-
cabedal, e governo**. 46 Um século e meio depois, na Me morto sobre
a fundação e custeio de uma fazenda na Província do Rio de Ja-
trato, como supunham os constituintes de 1823, embalados pela
41 nem se reduziam à manutenção e reprodu- neiro. o Barão de Pati de Alferes frisaria coisa idêntica, lembrando
teoria política liberal,
a seu filho que governar é ser “ativo, inteligente, organizado e
ção das relações econômicas, como pretende uma perspectiva da
42 poupado”. 47 Governar a Casa era sobretudo governar a família, e
funcionalidade econômica do poder*
nesta se incluíam os próprios escravos, pois estes, como lembra S. B.
O existir cotidiano da sociedade imperial, na primeira metade do
de Holanda, então “constituíam uma simples ampliação do círculo
século passado, assinalado pelas manifestações várias de rebeldia
familiar, que adquiria com isso todo o seu significado original e
negra* 43 fazia com que os homens livres, e particularmente os
integral”. 45 Governar a escravaria consistia em não apenas fiscali-
segmentos proprietários, não mais encarassem os escravos apenas
zar o trabalho da massa de escravos, 49 ou em escolher com acerto os
como as “mãos, e os pés do senhor de engenho \ mas sobretudo
1
*, no dizer de umfazendeiro da feitores e saber evitar-lhes as exagerações, 55 mas sobretudo em criar
como “nosso inimigo inconciliável
era tal existir que destaca para nós a rela- as condições para que poder inscritas na ordem escra-
as relações de
região de Vassouras.44 E
vista fossem vivenciadas e interiorizadas porcada um dos agentes,
dominadores ou dominados. 51 Governar a Casa era exercer, em toda
a sua latitude, o monopólio da violência no âmbito daquilo que a
41 Cf. Caio Prado Júnior — Evicção poíítica do Brasil e outros estudos.
3.“ edição. S. Paulo, 1961, p. 54,
No que diz respeito à questão da manutenção da ordem escravista, a posi-
ção mais característica, e da qual inúmeras outras decorrem, parece ser a de
Hermes Lima: Estou em que a centralização monárquica representou, no plano
41 45 Michel Foucault —
Micro física do poder. Rio de Janeiro, 1979* p. 176.
político, um dos pontos de apoio e defesa da organização servil do trabalho’
4
. 46 Joio Antônio Andrecmi (Antonil) —
Cultura e opulência do Brasil por
(“Prefácio à Queda efo Império, de Rui Barbosa, p, XIV). Apud Victor Nunes suas drogas e minas. Rio de Janeiro, 1963, p. 10.
55

Leal — Coranefismí), enxada e voto. 2.* edição. S. Paulo. 1975 p. 78. 47 Francisco Peixoto die Lacerda Werneck (Barão do Pati do Alferes) —
43 Sobre as insurreições de escravos ao século XIX, cf. entre outros; Arthur Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na Prot/íncia do Rio de
Rimos — 0 negro na civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1956.; Qovis Moura

Janeiro. Rio de Janeiro, 1863. Segundo A. Taunay, a primeira edição da obra
— itebeííõej tio senzala. São Paulo, 1959; José Aíípio Goulart Da fuga ao é de 1847.
5

a Thomas Davatz Mfmó- —
suicídio Aspecto da rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro, 1 972; Lana
48 Sérgio Buarque de Holanda '‘Prefácio ’


.

Lage Gama Lima RebeWia negra e úhoEtcionisrno- Rio de Janeiro, 1981. rias de um colono no Brasil São Paulo, 1972, p* XXXVII.

Berenice Cavalcante Brandão, limar Rohloff de Mattos e Maria Alice Rezende 49 João Maurício Rugendas —
Viagem pitoresca atravéis do Brasil. São
de Carvalbo — A Policia e a força policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, PauJo, 1954, p, HO; “O colono reservava para
escravos, e como suas propriedades
si, pessoalmente, o encargo de
o mais das vezes, muito
1981 (especialmente o Cap. 2, *A Polícia e o mundo do trabalho: a necessidade fiscalizar os
(
são,

de organizar"), vastas,essa ocupação basta para absorver-lhe grande parte do dia".


4+ (i Se o receio de uma insurreição geral ainda é remato, sem. embargo, o 50 u 0j braços de que se vale o senhor do engenho para o bom governo da

temor de levantes parciais é sempre iminente, parliculannente nos dias


atuajs gente e da fazenda são os feitores. Porém, se cada Um deles quiser ser cabeça,
em que nossas fazendas estão sendo povoadas de escravos vindos da Norte, que será o governo monstruoso". Antonil —
Qp. cif., p. 15.
sempre tiveram má reputação, Houve insurreições parciais em diversas locali- 51 '‘Prudêncio, um
moleque da casa, era o meu cavalo de todos os dias;
dades, e, mfelizmente, essas não serão as últimas". Instruções para
& Comissão punha as mios no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, en
Permanente nomeada pelos fazendeiros do Município de Vassouras. Bjo de Ja- trepava-lhe ao dorso, com uma na varinha mão, fustigava-o, dava mil voltas
neiro, 1954. De outro lado, a extensa legislação coibindo os
diferentes mani- a um e outro lado, c ele obedecia, —
algumas vezes gemendo, mas obede- —
cia sem dizer palavra, ou, quando muito, um 'ai, nhonhô!
1

festações da rebeldia negra, individual ou coletiva, lambem atesta o


exercício ao que eu retor-
poder como combate* confronto e guerra (cf. para uma síntese desta legislação, quia: Cala boca, besta
15
Machado de Assis
E

“Memórias póstumas de Brás
J. M. Goulart — Da palmatória ao políbwfe. Rio de Janeiro. 1972).
- Cubas 5*, tn tíhra completa. Rio de Janeiro, 1962, tomo I, p, 524.

118 JJ9
historiografia de fundo liberal convencionou denominar de poder razão por que existia. Fazendeiros, comerciantes e negociantes, capi-
privado» talistas, membros da alta burocracia leiga e eclesiástica, tabeliães,
Governar o Estado. Aos componentes da “boa sociedade” tal tare- médicos, engenheiros e advogados — acompanhados por lavradores
fa se propunha numa conjuntura que se distinguia tanto pela sua e sitiantes, artífices e artesãos, vendeiros e caixeiros, além de peque-
ascensão à direção daquilo que a historiografia convencionou deno- nos funcionários —
discutiam sobre a intensidade e a duração da
minar de poder público, quanto pela pressão inglesa visando a extin- desordem, discordando se pelo privilegiamento da Casa ou do Estado
ção do tráfico negreiro intercontinental e pelas insurreições cres- melhor poder-se-ia eliminá-la ou circunscrevê-la. Tendiam quase
centes dos escravos, em diferentes pontos do Império. Governar o todos a ver tais manifestações como uma anarquia somente conju-
,

Estado consistia, pois, em não só coibir as exagerações daqueles que rável pela ação daqueles que eram o governo 54 E, ao assim proce-
.

governavam a Casa, tanto no que diz respeito ao mundo do gover- der, não faziam senão legitimar o lugar que ocupavam e o papel
53 mas em sobre-
no 52 quanto no que tange ao mundo do trabalho , que se reservavam.
tudo empreender as tarefas que eram entendidas como transcenden- Todavia, a colonização não produzira apenas colonizadores, colo-
tes às possibilidades daqueles, entre as quais avultava a de propiciar nos e escravos, já o sabemos. Em escala crescente, ela criara uma
a continuidade dos monopólios que fundavam a classe. Governar o massa de homens livres e pobres, que se distribuíam de maneira
Estado era, no fundo e no essencial, elevar cada um dos governantes irregular pela imensidão do território e povoavam as mentes e escri-
da Casa à concepção de vida estatal. tos de cronistas, autoridades governamentais e demais componentes
Entender o mundo do governo e o mundo do trabalho como da “boa sociedade”, desde o século XVIII. De maneira preocupante,
mundos atravessados pela noção de ordem não significa dizer que
, quase sempre.
a “boa sociedade” excluía a noção oposta de desordem até mesmo , Não tinham lugar, nem ocupação; não pertenciam ao mundo do
porque o movimento da sociedade imperial não deixava de subli- trabalho, e muito menos deveriam caber no mundo do governo.
nhá-la, já referimos várias vezes. Não obstante, as manifesta-
como Predominantemente mestiços e negros, estes quase sempre escravos
ções de desordem não eram suficientes para modificar a concepção que haviam obtido alforria. Vagavam desordenadamente, ampliando
prevalecente de que aqueles mundos distinguiam-se por uma ordem a sensação de intranquilidade que distinguia a crise do sistema
que resultava do próprio modo como a sociedade se constituíra e da colonial, estendendo-se pela menoridade 55 .

Agregados ou moradores se conseguiam a posse de um pedaço


,

de terra por favor do grande proprietário, entre as terras impróprias


52 Se voltarmos aos movimentos liberais de 1842 e 1848, veremos que os
Saquaremas os encaravam como uma ameaça ao mundo do governo e, por ex-
tensão, a toda a ordem social vigente, partida do interior dele próprio; não 54 Cf., dentre vários outros depoimentos, o de Bernardo Pereira de Vas-
por outra razão, aqueles que na Província de Pernambuco combateram os concelos, em
1838: “Sinto profundamente dizer-vos que o império da Lei ainda
praieiros se apresentavam como membros do Partido da Ordem. Cf. também se não acha restabelecjdo èih todas as nossas províncias: desgraçadamente a
Relatório do ministro da Justiça, 1843 Paulino José Soares de Sousa.
,
rebelião, a anarquia, continuam por ora a assolar alguns pontos”. Relatório
53 Aqui, mais do que em qualquer outro ponto, situa-se uma das princi- do ministro da Justiça, ano de 1838, Bernardo Pereira de Vasconcelos, p. 3.
pais contradições entre o governo do Estado e o governo da Casa, entre uma 55 Sobre os homens livres e pobres, cf. sobretudo Maria Sylvia de Car-
política de Estado— que procura preservar e expandir os interesses comuns valho Franco —Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo, 1969 (espe-
dos proprietários de escravos, numa conjuntura que se define tanto pelas in- cialmente os capítulos I, “0 código do sertão” e II, “A dominação pessoal”);
surreições quanto pela escassez de mão-de-obra resultante da política inglesa para a região da mineração, Laura de Mello e Souza — Desclassificados do
— e os interesses particulares e imediatos de cada um dos proprietários escra- ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, 1982; para a sen-
vistas. E tal contradição reponta na legislação imperial: veja-se, por exemplo, sação de inquietação que distingue a crise do sistema colonial, Carlos Guilher-
o Aviso n.° 263 — Justiça— Em 25/11/1852, sobre o modo como proceder me Mota — Atitudes de inovação no Brasil, 1789-1801. Lisboa, s.d. A parti-
com os escravos que depuserem em Juízo contra seus senhores, no qual ao cipação do contingente de homens livres e pobres nas lutas que caracterizam
lado do reconhecimento de que “não há lei alguma que permita privar os a Independência foi destacada por Nestor Duarte
a
— A ordem privada e a
senhores da propriedade de seus escravos”, é reconhecida a possibilidade de organização política nacional. 2. edição. São Paulo, 1966, especialmente
abuso, além do direito conferido por lei ao senhor de “castigar moderadamen- pp. 97-102; todavia, a Caio Prado Júnior coube a tentativa pioneira de inseri-
te” a seus escravos, possibilidade essa que não só obriga o senhor a “assinar los na explicação do processo histórico da Emancipação, particularmente no

termo de segurança”, como também abre ao escravo, nos casos de infração pelo momento que denominou de Menoridade (cf. Evolução política do Brasil e
senhor, a possibilidade de intentar ação e exigir venda. outros estudos, cit.).

120 121
servindo para os homens escarrarem na rua. 59 Desforra amea-
para o cultivo comercial; vadios se contrastavam com os homens
las
,

çadora!
de cabedal, preenchedores do sentido da colonização, nas regiões
de grande lavoura e de mineração; a pobreza se viviam da caridade
,

“Há mil armas de fogo e munição entregues nas mãos


seis
alheia, das mulheres das famílias abastadas ou das Misericórdias; a
dos bons, porém se isto é capaz de conter a canalhacracia
mais vil canalha aspirante para o dicionarista Morais, porque se
enfurecida é o que eu não sei; e os efeitos do estado duvi-
aproveitavam dos movimentos antimetropolitanos dos setores do-
doso que começa a aparecer de rusgas anunciadas para tal
minantes, como o de 1817 na área nordestina, para colocar em ris-
e tal dia, vai produzindo o que querem os malvados: a emi-
co as estruturas do regime político e social por meio de “idéias de
gração de capitalistas, e a estagnação do Comércio, e por
igualdade, embutidas aos pardos e pretos”, como dizia uma auto-
ridade —
constituíam um mundo à parte, no entender dos setores
conseqüência a falta de Rendas na Alfândega e outras Esta-
ções Públicas.” 60
dominantes: o mundo da desordem.56
Porque embora produtos da colonização de base mercantil-escra- sempre que a desordem parecia conjurada. Um eminente
Alívio,
vista, os homens encontravam-se desvinculados de
livres e pobres representante do mundo do governo, ao falar da Sabinada, diria
modo direto das atividades que conferiam sentido à ocupação do que “a derrota dos rebeldes foi um triunfo da lei, da civilização,
território. Eram vistos como não tendo lugar nem ocupação na da humanidade, sobre o crime, a barbaridade”. Ao menos ali, a
ordem legada pela Colônia, dando margem a observações como a casa voltava a se impor sobre a rua, tragicamente: na Rua da Pie-
de Luís d’Alincourt que “o geral do povo, como não pode exportar, dade, as janelas de algumas casas foram ornadas com caveiras das
e não é animado pelo interesse, mola real do coração humano, tem- cabeças dos rebeldes! 61
se entregado à indolência e preguiça, causas fatais à população”.
57
Governo Trabalho e Desordem
,

os mundos constitutivos do
Eporque, imersos na crise do sistema colonial, esses homens li- Império do Brasil, 62 mundos que se tangenciavam, por vezes se
vres e pobres expressavam por meio da violência aberta a humani- interpenetravam, mas que não deveriam confundir-se, por meio da
dade que cotidianamente lhes era negada. Dizia-se: a “ralé de todas diluição de suas fronteiras, mesmo que os componentes da “boa
as cores” saqueia os engenhos dos proprietários nordestinos em sociedade” fossem obrigados a recorrer à repressão mais sangrenta a
1817; uma “massa enorme de homens ferozes” agita os sertões do fim de evitar que tal acontecesse. Anotemos que, por ocasião do esma-
Pará, Maranhão e Piauí; a “malta” ocupa as ruas da Corte e de gamento da Sabinada, um deputado progressista referiu-se aos eventos
outros núcleos urbanos do Império, e não raro engrossa os levantes sangrentos, de modo a denunciá-los, como ato de restauração.
da tropa, como aconteceu na Setembrizada no Recife, em 183 1-32. 58 Governo, Trabalho e Desordem —
mundos que individualizavam
No entender de muitos dos componentes do mundo do governo, a sociedade no século passado, e que tanto motivaram a exortação

a desordem das ruas contrastava vivamente com a ordem da casa. de José Bonifácio sobre a necessidade imperiosa de “formar em
Por meio dos vadios, indolentes e desordeiros, as ruas pareciam
desforrar-se do menosprezo que as casas sempre lhes haviam votado, 59 Gilberto Freyre —
Sobrados e mocambos, op. cit., p. XXIII.
60 Carta do futuro Barão do Rio Vermelho a Paulino José Soares de Sousa,
nelas escoando as águas de que se serviam e lançando os dejetos e
restos de comidas, fazendo das calçadas picadeiros de lenha, as jane- em 1831. Apud José Antônio Soares de Souza — A vida do Visconde do Uru-
guai. S. Paulo, 1944, p. 90.
61 A fala é de Bernardo Pereira Vasconcelos, então ministro do Império,
por ocasião da discussão da resposta à Fala do Trono, na Sessão de 1838 da
56 Maria Sylvia de Carvalho Franco — Op. cit., pp. 94-107; Laura de Câmara dos Deputados. Coube ao progressista Teófilo Otôni denunciar a “a bar-
Mello e Souza — Op. cit., pp. 215-223; Stanley Stein — Grandeza e deca- baridade por ocasião da restauração da Bahia”. Anais do Parlamento Brasileiro,
dência do café no vale do Paraíba. S. Paulo, 1961, p. 154; Carlos Guilherme Câmara dos Deputados. Sessão de 1838. pp. 169 e 177, respectivamente (de
Mota • — Nordeste , 1817. S. Paulo, 1972, p. 144. agora em diante, citados como APB).
57 Luís D’Alincourt — Memória sobre a viagem do Porto de Santos à Ci- 62 É tempo de dizer que a sugestão dos três mundos nos foi dada pelo

dade de Cuiabá. Belo Horizonte, 1979, p. 65. artigo de Antônio Cândido “Dialética da malandragem” ( Revista do Instituto
58 Cf. C. G. Mota — Nordeste, 181 7, cit., p. 140; Relatório do ministro da de Estudos Brasileiros. S. Paulo, 1970, n.° 8, pp. 67-92), tendo tido um pri-
Justiça, 1841, Paulino José Soares de Sousa; Joaquim Nabuco — Um estadista meiro desenvolvimento em I. R. de Mattos e M. A. R. de Carvalho — A Polícia
do Império, op. cit., p. 56. e a força policial no Rio de Janeiro, op. cit.,

122 123
poucas gerações uma Nação homogênea”, 63 quanto nos possibilitam, ria entre a Nação e o Cidadão. A esse respeito, talvez não seja
agora, uma observação a respeito do que se deve entender por uma ocioso lembrarque o conceito moderno de Nação foi precisado pouco
sociedade nacional —
e, por extensão, por um Estado nacional — antes da reunião dos Estados Gerais, na França revolucionária,
no Brasil do século passado, à semelhança das “Nações civilizadas”. tendo em Sieyès o seu grande intérprete: “a Nação é o conjunto
Notemos, de imediato, que uma lógica informada pela identidade dos indivíduos”, 66 livres e iguais.
— que se distingue por reservar para a sociedade brasileira a Ora, não era assim que a “boa sociedade” compreendia a Nação
mesma trajetória das sociedades da Europa ocidental, considerando saída das lutas pela independência; e também não era assim que
unicamente uma diferença no tempo —
faz com que toda uma esta sociedade se apresentava. A existência dos três mundos era,
vertente historiográfica desqualifique esta questão, dando por evi- em primeiro lugar, a existência da distinção entre coisa e pessoa.
dente que à “sociedade colonial” (isto é, aquela constituída no O Povo e a plebe eram pessoas, distinguindo-se dos escravos por
tempo do Brasil colônia de Portugal) deve suceder uma “sociedade serem livres. Todavia, Povo e plebe não eram iguais, nem entre
nacional”, assimcomo a obtenção da emancipação política em 1822 si nem no interior de cada dos seus mundos. À marca da liber-
um
conduz necessariamente à existência de um “Estado nacional”, isto dade que distinguia ambos dos escravos acrescentavam-se outras,
é, soberano. que cumpriam o papel de reafirmar as diferenças na sociedade im-
A própria História, contudo, se encarregaria de denunciar tantas perial, como o atributo racial, o grau de instrução, a propriedade
simplificações e idealizações, possibilitando uma reavaliação. Tome- de escravos e sobretudo os vínculos pessoais que cada qual conse-
mos empreendida por Florestan Fernandes em A Revolu-
a análise guia estabelecer. E, desta forma, a sociedade imprimia-se nós indi-
ção Burguesa no Brasil exemplo não exclusivo desta reavaliação.
,
víduos que a compunham, distinguindo-os, hierarquizando-os e for-
é possível perceber na
67 Como
Para o autor, inexistiria uma sociedade nacional como decorrência çando-os a manter vínculos pessoais.
do traço heteronômico dela, embora de modo contraditório a cons- leitura das “Comédias” de Martins Pena, somente quando se encon-
tituição de um Estado nacional independente, na primeira metade trava a quem proteger, podia alguém afirmar:
do século XIX, tivesse representado o primeiro passo para que ela
se constituísse. 64 “Agora sou eu gente!” 68
Sem querer negar importância ao atributo destacado por Fernan-
des, gostaríamos de seguir caminho diverso, argüindo sobre a exis- Os Fundadores do Império do Brasil —
Bonifácio, D. Pedro I,

tência de uma sociedade nacional a partir da compreensão que os Vasconcelos, Evaristo, Feijó e alguns mais haviam herdado os —
seus próprios componentes possuem a respeito de uma nação.
65 Ora, fundamentos dos três mundos. A geração seguinte a “geração —
o privilegiamento das diferenças nos conduz, inevitavelmente, à de 1800-1833”, 69 da qual faziam parte tanto a “Trindade Saqua-
comparação entre as concepções dos componentes da “boa sociedade” rema” quando Nabuco de Araújo, Saraiva, Zacarias, Cotegipe,
do Império do Brasil e aquelas dos habitantes das “Nações civi- Paraná, Rio Branco, Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José
lizadas”. de Alencar, Varnhagen. João Francisco Lisboa, Vítor Meireles e
Com cada vez mais a Nação se constituía
efeito, nestas últimas
como resultado dp uma
sociedade que abolia toda e qualquer seg- 66 Cf. Jacques Ellul — Histoire des institutions. Le XlX. e siécle. Paris,
mentação, de tal forma que inexistia qualquer instância intermediá- 1969, p. 7.
67 Cf. Roberto da Matta — “Você sabe com quem está falando?”, in Carna-
vais, malandros e heróis — para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
63 Cf. Octávio Tarquinio de Sousa —O
pensamento vivo de José Bonifácio. Janeiro, 1980, pp. 139-193.
São Paulo, 1944, p. 42. 68 Sobre as Comédias de Martins Pena como uma forma de reconstrução
64 “O desenvolvimento prévio da sociedade, sob o regime colonial, não cria- das relações pessoais na sociedade brasileira no século passado, cf. limar Rohloff
va, por si mesmo, uma Nação”. Florestan Fernandes — A revolução burguesa de Mattos e Selma Rinaldi de Mattos —
“O juiz de paz na roça ou uma aula
no Brasil. Rio de Janeiro, 1977, p. 55. sobre a vida social e vida política sob as Regências”. In Contacto-Humanidades.
63 Cf. Pierre Vilar —
Iniciación al vocabulário dei análisis histórico. Bar- Rio de Janeiro, 1981, ano IV, n.° 41 (109-115).
celona, 1980, pp. 143-200. Sobre o conceito moderno de Nação, cf. Marcei Mauss 69 Cf. José Honório Rodrigues —
Teoria da História do Brasil. São Paulo,
— “La Nación”, in Sociedad y ciências sociales. Obras 111. Barcelona, 1972, 1975, p. 398. Ver, na mesma obra, a crítica à periodização da História a partir
p. 290. da simples consideração das “gerações”.

124 125
outros mais — deu forma aos trés mundos e empenhou-se em con- Os olhos na Europa acompanharam o curso da Revolução, as
servá-los, ao empenhar seus ideais e suas forças na "consolidação conquistas da liberdade, o nacionalismo ascendente, as garantias
monárquica ".70 Sem dúvida, quase sempre estamos mais atentos constitucionais; miravam o Povo enquanto “multidão organizada \
para esta consolidação do que para aquela conservação; esquecemo- Às luzes da Razão revelaram a essência do absolutismo* levando a
74
-nos que elas não se apresentavam dissociadas, em seu movimento. Vontade Geral a repudiar o despotismo e o clericalisrao .

Fundar o Império do Brasil, consolidar a instituição monárquica e Os pés na América como resposta às rebeliões, sedições e insur-

conservar os mundos distintos que compunham a sociedade faziam reições; sublinhando a particularidade da sociedade imperial* ao
parte do longo e tortuoso processo no qual os setores dominantes e apresentar os elementos constituintes, distintos e hierarquizados,
detentores de monopólios construíam a sua identidade enquanto uma dos mundos do Governo, da Desordem e do Trabalho: o Povo* a
classe social. Plebe e os Escravos, respectivamente. Sociedade singular porque ao
Fundadores e consolidadores do Império do Brasil tinham os Povo, somente ao Povo —
entendido de modo semelhante ao popolo
olhos na Europa e os pés na América —
eis o segredo da trajetória
1
florentino ("cidadãos economicamente ativos' ) e ao povo da repú-
75 ’ 1

de individuação de uma classe, e que se revestia da forma de cons- blica holandesa (“homens honestos, trabalhadores e responsáveis )
trução de um "Corpo Político soberano.
11
— competia a sua direção, o princípio monárquico impondo-se ao
Uma trajetória de individuação em relação aos "interesses princípio republicano. Uma sociedade cuja individualidade coube ao
metropolitanos \
1
Romantismo destacar, ao recuperar criativamente as características
Os olhos na Europa porque tinham como ideal erigir um Impé- raciais, a língua, os costumes e as instituições que distinguiam o
rio soberano, à semelhança dos estados nacionais europeus. Tendo Brasil — a esse respeito, a proposta de José de Alencar na apre-

como referência a antiga metrópole, pugnaram por uma igualdade sentação de Sonhos tFOitro 76 podendo ser tomada como uma sín-
que tanto repelia a subordinação colonial quanto almejava o reco- tese .77 Uma sociedade diferente daquelas da Europa por se apre-
nhecimento do Império "como Reino irmão e como Nação grande sentar tendendo à desagregação e anomia, e assim motivando na-
e poderosa 71 Reclamaram um lugar na Civilização, por se con-
11
. queles que a dominavam e pretendiam dirigi-la, ao lado de medidas
siderarem também da Ilustração. estritamente políticas, a criação de imagens, logo traduzidas em
filhos
Os pés na América porque ameaçados pela "nova metrópole A , ações, objetivando a preservação da coesão de seu conteúdo
— um
cada investida da política britânica, no sentido de uma ação geral
e comum para a extinção do tráfico negreiro intercontinental, tor-
nava-se necessário marcar a singularidade deste Reino americano,
enfatizando que "a África civiliza**. Afirmavam que no conjunto
74 Cf, Costa
Emitia Yiottí da —
“Introdução ao estudo da emancipação

da civilização, constituíam uma cultura singular, como a própria


Carlos Guilherme Mota (org.)
política*', in —Brasil em perspectiva. São Paulo*

Monarquia — "flor exótica na América 73


**
1978, pp. 73-140.
73 Cf. Mariíena Chaui —0 nacional e o popular na cuitura feraatteira —
Mas uma trajetória de individuação em relação à sociedade inclu- S^minártoi. São Paulo* 1983, p. 26.
78 “A literatura nacional que outra cousa é senão a alma da pátria, que
siva, também.
transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui, impregnou-se da
seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece
ao contacto de outros povos e ao influxo da civilização? (...) Sobretudo com-
70 J. Capistrano de Abreu —'‘Fases do Segundo império", a Ensaios e
1
i
preendem os críticos a missão dos poetas* escritores e artistas* nesse período
esludus (crítica e história ). 3.“ série. 2. edição. Rio de Janeiro, 1969, pp. 69-82. especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários
71 '"Manifesto" de 6 de agosto de 1B22, Apud Oclaciano Nogueira (org.) — incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçan-
Obra política de José Bonifácio Brasília, 1973* p. 294.
.
do no viver do povo" —José de Alencar —‘"Sonho® dOuro' in Ficção com.-
,

"2 Paula Beiguelman — Formação política do Brasil. São Paulo* 1967. E pleta. Rio de Janeiro, 1963, voL I, pp. 495 e 497.
ainda, como indicação, Luiz Felipe Alencaslro —
‘"Casamento de velhos", in 77 '*0 Romantismo brasileiro foi (...) tributário do nacionalismo. (...)
"Livro" — Suplemento do Jornal do Brasil (edição de 20 de setembro de 1980), Tais necessidades de individuação nacional iam bem com as peculiaridades da
73 Sobre a oposição entre civilização e cultura, referido ao pensamento con-
estética romântica". Antônio Cândido —
Formação da literatura brasileira (mo*
sevador, cf. Karl Mannheim — 11
‘"0 pensamento conservador * in José de Souza
mentos decisivos )* 4.* edição. São Paulo, 1971* vol. lí, l>- 15- Ver também Ro-
Martins (org.) — /nlrodução crítica à Sociologia Rural São Fauío* 1981, pp,
.
natd de Carvalho — '"Bases da nacionalidade brasileira", in Carneiro Leão

77-131. À margem da História da República. Rio de Janeiro, 1924* pp. 201-224.

126 127
território unificado, num continente sem comoções,
78 a sua conti-
sobretudo uma hierarquização que tanto define uma direção como
nuidade —
na figura do imperador, 79 e na coexistência fraterna dos revela seus conteúdos.
seus elementos constitutivos —
a miscigenação e a confraternização
racial. 80
Consideremos, por fim, a distância que a expressão “olhos na
Europa e pés na América” encerra em si mesma. Podemos afirmar 2. A DIREÇÃO SAQUAREMA
que ela traduz o intervalo de tempo da trajetória de individuação
que vimos considerando: a distância entre os fundadores e os con- Nenhum homem duvida da verdade da
solidadores do Império do Brasil, entre os princípios do liberalismo seguinte afirmação: quando uma coisa está

iluminista e os do nacionalismo romântico, entre a soberania popu- imóvel permanecerá imóvel para sempre, a
momento que é con- menos que algo a agite. Mas não é tão fácil
lar e a soberania nacional. Nesta trajetória, o
aceitar esta outra, que quando uma coisa
siderado como o seu ponto de chegada permite explicitar as dife-
está em movimento, permanecerá eternamen-
renças entre luzias e saquaremas, as semelhanças entre ambos, e te em movimento, a menos que algo a pare,
muito embora a razão seja a mesma, a
saber, que nada pode mudar por si só. Por-
78 À Historiografia nascente, de base conservadora, coube também a tarefa que os homens avaliam, não apenas os outros
de fixar temas, cristalizar noções e difundir imagens. Assim, os acontecimentos homens, mas todas as outras coisas, por si
do Período Regencial, ao insistirem em contrariar um “desenvolvimento mesmas, e, porque depois do movimento se
natural” (isto é, período colonial — Reino Unido — emancipação política — acham sujeitos à dor e ao cansaço, pensam
Estado nacional centralizado e território unificado), devem ser entendidos como que todo o resto se cansa do movimento e
“ilógicos”, expressão de uma “crise” (ou seja, de um perigo) que deverá ser procura naturalmente o repouso, sem medi-
superada para que o destino nacional se possa cumprir. A integridade do terri- tarem se não consiste em qualquer outro
tório, a unidade nacional e a centralização político-administrativa (temas recor- movimento esse desejo de repouso que en-
rentes na Historiografia sobre o Império) correspondem, já o vimos, à segu- contram em si próprios.
rança da base territorial. Lê-se em Varnhagen, um dos fundadores da Historio-
grafia brasileira, em meados do século passado: “Por toda a extensão do Brasil
Thomas Hobbes.
continental não se encontra um só vulcão, nem têm aparecido formações vul-
cânicas; donde procede o ver-se quase todo este grande império isento do flagelo Os saquaremas não se limitaram a impor aos luzias uma derrota
dos terremotos, que tanto afligem aos povos das nações limítrofes”. Francisco no campo de batalha. Empenharam-se por reduzir as pretensões de
Adolfo de Varnhagem — a
História geral do Brasil. 9. edição integral. São Paulo,
uma “revolução” à condição de “rebeliões”; 81 reclamaram maiores
1978, vol. 1, p. 14.
79 Cf. a propósito Georges Balandier — O poder em cena. Brasília, 1982: poderes para o governo; 82 e, mais do que tudo, buscaram imprimir
“[O poder] não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justifi- uma direção ao predomínio que exerciam no Mundo do Governo,
cação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção desde então.
de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro Discursando na Câmara dos Deputados, no início de 1843,
cerimonial” (p. 7).
Paulino sustentava
“(...) e é muito de supor, que no fim de mais alguns séculos a popu-
80
lação toda do Brasil não se componha senão dessa raça única. (...) tornando-
se cada vez mais numerosa e com ela crescendo ao mesmo tempo e como que “que não bastava que o governo tivesse maioria nas câma-
‘pari passu’, as idéias da mais completa democracia’ F. P. Ferreira de Rezende
.
ras; que era preciso que essa maioria fosse forte, que tives-
— Op. cit ., p. 175. A Historiografia em constituição não estaria ausente deste
tipo de formulação: a Insurreição Pernambucana seria erigida como uma espé-
cie de alegoria da identidade nacional, pela união das “três raças”, (cf. Revista 81 APB-Câmara dos Deputados. Sessão de 7 de fevereiro de 1843. Rio de
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1839, tomo XXVI, Janeiro, 1881, p. 559.
e Maria Alice Rezende de Carvalho — Cidade e fábrica. A construção do mundo 82 “Que a câmara se pronuncie sobre os fatos importantes que tiveram
do trabalho na sociedade brasileira. Campinas, 1983, mimeo). Paia uma análi- lugar: que, no estado em que estão os negócios públicos, ela faça sentir que
se crítica do mito da democracia racial, cf. entre outros: Roberto da Matta
— detesta as rebeliões, que nada poupará para extinguir as causas que as têm
Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro, 1981. produzido, e para assegurar eficazmente a paz pública; ou então que diga ao
pp. 58-85 e Fernando Henrique Cardoso — Capitalismo e escravidão no Brasil país: —
está tudo perdido!” —
Paulino José Soares de Souza. APB-Câmara
Meridional. São Paulo, 1962, pp. 119-132. dos Deputados. Sessão de 23 de janeiro de 1843. Rio de Janeiro, 1881, p. 559.

128 129
se uma
vontade decidida e firme, e uma direção proveitosa: ora sublinha apenas a diferença entre conservadores e liberais ; 85
que era indispensável que, ao mesmo tempo que esta câma- quase sempre ignora a relação hierarquizada que se estabeleceu
ra exercesse, segundo as condições do governo representa- entre ambos. 8^
tivo, uma ação indireta mas eficaz sobre os negócios públi-
cos, o governo pudesse ter também sobre ela aquela
saudável influência que é indispensável para que haja políticos imperiais, divergem quando se referem à estrutura social e o sistema
de poder vigente no Império, e dos quais aquelas agremiações seriam a expres-
acordo e as coisas possam marchar / 583
são. Assim, para Oliveira Viana tratava-se de uma sociedade feudal; para
Caio Prado Júnior de um império burguês: Maria Isaura Pereira de Queiroz
A um só saquaremas deixavam claro por que eram
tempo, os vê o predomínio do mandonismo, expressando o domínio do latifúndio, enquanto
diferentes dos luzias,embora ambos fizessem parte do Mundo do Nestor Duarte tudo refere ao caráter patriarcal da sociedade: Vicente Licínio
Governo- mareavam a posição de vencedores, propondo uma rela- Cardoso, por sua vez, entende ser a escravidão o que distingue a sociedade,
seguindo os ensinamentos de Gilberto Amado em "As instituições políticas e
ção distinta entre o Executivo e a Câmara, maneira de também
o meio social no Brasil'*, in Carneiro Leão —
À margem da História da Re-
levar a cabo uma direção * —a um só tempo, repetimos. publica, op. cit,, pp- 57-78; para Sodre, a questão partidária é a expressão do
À Historiografia, contudo, ainda hoje parece não perceber assim. transito do escravismo para o feudalismo. Para uma visão de conjunto dessas
Ora insiste unicamente na semelhança entre luzias e saquaremas^ posições, cf. José Murilo de Carvalho —A construção da ordem Rio de Janeiro,
.

1980, especialmente pp. 155-177.


Entre os autores que sustentam a diferença entre os partidos políticos
83 APB-Cãmara dos Deputados. Sessão de 23 de janeiro de 1843. Rio de imperiais, encontram-se os que relacionam tal diferença quer a origem regional
Janeiro, 1881, p. 347.
rural ou urbana —como é o caso de João Camíllo de Oliveira Torres Os —
®4 Seguindo as pegadas de Oliveira Vianna, Caio Prado Junior diz que
coitsíruíores d!o império São Paulo, 1968, pp, 31-34, Fernando de Azevedo
.

"os nossos partidos do regime passado tem uma significação ideológica muito Canaviais e engenhos na vida política do Brasil. 2* ed, São Paulo, 1963,
11

restrita”, caracterizando-se ambos pelo "espírito retrógrado’ ; enfatiza, porém,


— pp. 105-140 e Manoel Maurício de Albuquerque —
Pequena história da forma-
que não devem ser confundidos com os grupos burgueses "progressistas” e ção social brasileira. Rio de Janeiro, 1981, pp. 392*395, entre outros e —
“conservadores-retrógrados"', cuja luta preenche o cenário político da segunda aqueles que referem a diferença ã origem social de seus membros como —
metade do século passado (cf. Ecoíuçõo política do Brasil e outros estudos.. é o caso de Azevedo Amaral — O Estado autoritário e realidade naciofial, Rio
op. cit., p, 89, especialmente nota n,® 89). Para Maria Isaura Pereira de de Janeiro, 1938, p. 33, Raymundo Faoro - Os— donos do poder, Formação do
Queiroz (O mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo, 1969) "Os patronato político brasileiro. Porto Alegre, 1959, e Jose Murilo de Carvalho
partidas imperiais foram o manto sob o qual se escondeu a força dos chefes — Op, cit,, loc, cit* Em Faoro, a diferença entre os partidos —
“malgrado
locais; sua realidade como ‘partido político’, no sentido de arregimentação de
a relativa indistinção ideológica” (p. 196) —
não é senão a reprodução da
pessoas em tomo de um programa ou de um Ideal, não existiu; liberais, con- "antiga antinomia Metrópole-Colónia [que] persistia, com novos quadros, na nova
servadores., as idéias de seus membros não apresentavam diversidade palpável” antinomia Estado-Nação” (p. 196): o Partido Conservador representaria, fun-
(p* 15)* Em Nestor Duarte, liberais e conservadores —
"o pequenino corpo damentalmente* o "estamento burocrático, expressão da monarquia portuguesa
dos governantes propriamente ditos'", formados na cultura e educação literária colon izadora e civiliradora, com a preocupação de absorver e cunhar interior-
européia — aparecem também como representantes dos interesses agrários, dessa mente a sociedade", enquanto o Partido Liberal representaria a sociedade colo-
"reunião de famílias” que formava a “classe política do Império”. Não chegava nial, por meio da "classe proprietária e, ocasienulmente, duas ordens guerreiras:
a abalar os fundamentos da ordem imperial "a luta que entre eles e ela se tra- o caudilho e o bandido’* (p, 179), Quanto a José Murilo de Carvalho, após
vava” por ser ^exclusivamente ideológica* no campo do pensamento abstraio frisar que "os partidos imperiais, em sua liderança nacional, oompunham-se de
(...) sem forçr de continuidade no campo da ação pragmática” (A ordem intrincada combinação de grupos diversos em termos de ocupação e de origem
privada e a organização política nacional , op. cit,, p. 96), Em
Vicente Licínio Não cabem a seu respeito divisões e classificações simplifi-
Cardoso — À margem da História do Brasil. 3.* edição. São Paulo, 1979, p. 75
social e provincial.
cadas” {p. 177), acaba por concluir que do Partido Conservador faziam parte
tanto a denúncia da "ilusão dos partidos’* e da “miragem enganadora da política "burocratas, principalmente magistrados, e setores de proprietários rurais, prin-
imperial parlamentar”, quanto a constatação de que se "os problemas essen- cipa] mente do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, além de comerciantes das
ciais e decisivos da nacionalidade'* não tiveram solução foi porque os partidos grandes cidades’* (p. 171)* enquanto o Partido Liberal era constituído, funda-
eram representantes exclusivos da escravidão Para Nelson Werneck Sodre* mentaimente, por profissionais liberais, em particular advogados e jornalistas,
preocupado em recuperar a "gênese” da burguesia brasileira, se o Partido Con- por magistrados "que se tinham tornado liberais após filiação inicial ao Partido
servador congregava em suas fileiras sobretudo aqueles defensores do síaíus quo , Conservador” (p. 175) e por proprietários rurais, especialmente das províncias
enquanto do Partido Liberal faziam parte os que pretendiam algumas reformas, do Sul do Império. Anotemos que na tentativa de cruzar o maior número
pode-se dizer que* no essencial, "essa divisão partidária é evidentemente frouxa possível dos critérios utilizados pelos demais autores para distinguir os partidos,
e precária e corresponde a divergências dentn» da mesma classe*' (História da José Murilo acaba deixando de fora um elemento considerado fundamental por
burguesia brasileira. Rio de Janeiro, 1964, p. 102)* Assinalemos, neste ponto, nós: o momento da “consolidação monárquica”*
que embora estes autores concordem a respeito da semelhança entre os partidos 88 Talvez apenas Paula Beiguelman —Formação política brasileira , op. cit..

130 131
Como queremos além destas formulações, assumiremos uma
ir do cortsíitucíoraaiismo ^ a maneira de estabelecer a fronteira entre
postura diversa. Tentaremos compreender como luzias e saquare- a área da vida privada e a da autoridade pública.
mas, em sua pretensão de monopolizar ambas as faces do mundo Podemos, desde então, propor um primeiro par analítico: de um
do governo, podiam apresentar-se —
a um só tempo semelhan- — lado. Casa Liberdade e Colono ( depois Cidadão Ativo) = Libe-
= ,

tes, E
para tanto desenvolveremos uma
diferentes e hierarquizados. rol; de outro, e de modo complementar, Estado = Ausência de

espécie de exercício, no decorrer do qual deverão explieitar-se os Liberdade (ou Autoridade) e Colonizador (ou "Pês-de-Chumbo” )
conteúdos de luzias e saquaremas, as relações que mantinham com — Não ZiòeraL
as forças presentes no mundo do governo, os modos como buscavam Esta primeira proposição nos coloca, sem duvida, no mesmo
representar estas forças e os procedimentos de que se serviram nas campo de reflexão de parte considerável da Historiografia, que ten-
relações com os demais mundos. de a reduzir a dinâmica do Império, e mais particularmente a dos
primeiros anos do Segundo Reinado, à luta entre Liberdade e Auto-
l.°) Por estarem luzias e saqua remas referidos ao Mundo do ridade, dando à primeira os conteúdos de ordem privada, localismo
Governo, voltaremos a considerar as duas faces complementares e e descentralização político-administrativa e à última os conteúdos
contraditórias que o compunham: a Casa e o Estado . Por termos de ordem pública, poder central e centralização político-adminis-
na memória as lutas contra a dominação metropolitana, de início, trativa.
11
e contra o que era entendido como o “absolutismo do primeiro Observemos também que esta produção historiográfica encontra
imperador, a seguir, colocaremos em evidência os conceitos de Li- suas raízes no panfleto de Justiniano José da Rocha Ação Rea- — ;

berdade e Revolução. ção; Transação. Duas Palavras acerca da Atualidade Política do


Ora, ambos os procedimentos nos permitem resgatar a indaga- Brasil —
editado em 1856, e cuja abertura tanto sintetiza a evo-
ção —
“Quanto sou governado?’'
1


sintetizadora daquilo que Ben-
,

lução política do Império quanto explicita a perspectiva evolucio-


jamim Consta nt denominou em seu Cours de PoUtique Constitu- nista adotada, e em larga medida seguida pela produção referida:
tionelle de liberdade moderna,®7 e que pode ser caracterizada tam-
bém como uma liberdade negativa f m a qual encontrou na defesa “O estudo refletido da história nos patenteia uma verdade,
igualmente pela razão e pela ciência do político demonstra-
da. Na luta eterna da autoridade com a liberdade há perío-
dos de ação; períodos de reação; por fim, períodos de tran-
sação em que se realiza o progresso do espírito humano, e
aproxime da idéia de uma hierarquização entre os partidos políticos, a que
se
estamos fazendo referência. Após referir a organização política do Império ao se firma a conquista da civilização
^ . '

sislema escravista nacional do século XIX, a autora dns que os partidos políticos
imperiais eram partidos de palranagem, sublinhando a relação assimétrica entre 2.°) Segundo J. J. da Rocha, o período da Ação foi o período de
ambos como resultado da ação da Coroa: "‘mantendo um deles na dianteira, e, predomínio do principio democrático , estendendo-se de 1822 a
oorrelalamente, criando no outro uma relativa ansiedade pelo poder, de forma
a emular a competição pelos seus favores” (voL II, p. 57). Destaquemos, toda-
1836. Nele, o jornalista conservador distingue dois momentos: luta
via, que além de não ser possível reduzir uma hierarquização a uma assimetria, e triunfo, separados pela Abdicação. No primeiro momento, ao lado
a autora confere um papei privilegiado à Coroa na explicação da política impe- do nacionalismo exacerbado, a desconfiança do Poder: “havia ho-
rial, o que tanto acaba por isolar quase que completamente a instância política
mens que por amor da liberdade viviam em permanente descon-
das demais instâncias do social que ela tomara em consideração, quanto parece
recuperar a explicação do ""poder pessoal do imperador embora sob um novo fiança da autoridade’’. 91 No segundo, a conquista do Poder pela
manto. Esta e outras observações sobre o trabalho pioneiro de Paula Beiguelman
aparecem desenvolvidas em limar Bohloff de Mattos —il
0 tempo saquarema 89 Raimundo Fauno — Assembféia Constituinte: a legitimidade recuperada.
— Ação política e forças sociais na consolidação do Estado imperial^ (projeto São Paulo, 1982.
de tese). São Paulo, 1932, mimeo, pp. 41-45. 99 In Raimundo Magalhães Júnior —TVés pcm/íeldrios do Segundo Rei-
^ Cf, Benjamin Constant —"
De la liberte des anciens comparée a celle
l
nado São Paulo, 1956, p. 163.

.

des modemes”, in Cours de PoUtique Constitutionelie Apud Celso Lafer


,
9* Idem. Ibidem, p. 169. Lê-se também na p. 174: ‘"Uma singularidadie: a
Ensaios sobre a liberdade. São Paulo, 1980, pp. 11-48. oposição rio buscava a conquista das- pastas; estava convencida que seu fim era
C£. Isaiah Berlin — '"Dois conceitos de liberdade”, in Qwoíro ensaios abnegar-se, renunciar à direção do governo, lutar penuanentcrneiUe, uio tendo
sobre a Uberdade. Brasília, 1981, pp. 133-176, par fim do combate, por vitória, senão a mina do poder”.

132 133
,

sível também ir além de nossa primeira proposição. Teríamos,


Liberdade, chegando à exageração: “estava senhora do governo a
democracia: a câmara dos deputados formava como o seu grande então, no momento da Abdicação:
51
conselho diretor: regência, ministério, tudo era ela .92
0 segundo momento era aquele no qual nas palavras vibran- — Casa ( = Liberdade ) * Estado (= Autoridade)
tes de um memorialista —
“o Brasil vivia muito mais na praça
pública do que mesmo no lar doméstico 93 Imagem forte, se nos
111
. Rua {
— Revolução)
lembrarmos da oposição Casa x Rua. acima referida. O que era
Tinha-se, assim, de um lado. aqueles que. embora alçados ao go-
'
1 1

entendido como o “triunfo do princípio democrático fazia repon-


tar as contradições da Liberdade, estabelecendo as clivagens entre verno do Estado após o Sete de Abril, continuavam a entender a
os primeiros Liberais: a Casa não se opõe apenas ao Estado; ela se Liberdade como um não impedimento —
“o direito de fazer tudo
opõe também k Rua.
11
o que as leis permitem , no dizer de Montesquieu
94
, os pro- —
Todavia, easo queiramos apreender efetivamente o movimento pugnadores de uma liberdade moderna ou negativa, asseguradora
real da sociedade, nos moldes de um exercício, torna-se necessário do predomínio da Casa. E, de outro, aqueles que empunhavam uma
que procedamos a um rompimento, ImpÕe-se que rompamos com bandeira diversa, a de uma liberdade antiga 95 ou uma liberdade

a concepção de tempo que ordena a análise de Justiniano, e que positiva 96


.

nos obriga a entender os conflitos e contradições que se apresen- Cuidemos pouco mais destes outros, para quem a preocupa-
um
tavam nessa sociedade, num determinado intervalo de tempo, nos ção fundamentai não parecia residir na conquista de uma distri-
termos de uma sequência temporal, produtora ao final de uma sín- buição tendencial mente mais equilibrada do aparelho de Estado
tese superior. Torna-se necessário criticar naquela exposição clás- pelo território do Império, e sim na reconstituição da associação
sica a imposição do pensamento evolucionista prevalecente no século entre Liberdade e Igualdade,
XIX, o qual não apenas estabelece uma relação de implicação entre Nos tempos iniciais das Regências, na rua e na praça pública, a
pensar e ordenar, como ainda, quando em face do “social
11
e na indagação - —
“Por quem sou governado?
11
parecia impor-se. —
impossibilidade da construção de séries que permitiam a explicação reivindicando uma distribuição democrática do poder entre os cida-
do “mundo natural'
1
, recorre às oposições desorganizado-organizado dãos que participavam ou pretendiam participar da feitura das leis.
e inferior-superior. Ao mesmo tempo que o Jornal do Comércio anunciava que se en-
Ora, na efetivação deste rompimento podemos ser ajudados por contrava à venda em casa de Émile Seignot-Plancher a Biblioteca
Constitucional do Cidadão Brasileiro , em sete volumes e ao preço
11
um contemporâneo. No calor dos acontecimentos da Abdicação.
Evaristo da Veiga sustentava que — “Queremos a Constituição, não de IS360 rs.,97 as discussões políticas tendiam a ser referenciadas
queremos a Revolução!
11

deixando perceber que as forças im- pelos princípios de isonomia e isegoria — isto é. pela igualdade de
,

pulsionadoras da Liberdade ou da Ação oao se sucediam temporal- todos os homens perante a lei e pelo igual direito de falar — , e

mente em termos da “luta 11 e “triunfo 11 , e sim se apresentavam ao aquecidas pelos distúrbios da malta e pela insubordinação dos bata-
mesmo tempo e no mesmo campo, numa correlação: o Campo da lhões mercenários estrangeiros. Os defensores da liberdade antiga
Honra, em abril de 1831. tinham os olhos na Europa He tomavam a reconstrução que os revo-
Seguindo de perto a proposta de Evaristo da Veiga, torna-se pos- lucionários de 1789 haviam feito do passado romano, ao recuperar
o modelo de uma república que afirmava encontrar no Povo o prin-
cípio político ou o legislador. Ora. se tal modelo implicava a distin-
92 Idem, Ibidem, p. 179.
^ '‘‘Nasci e me criei no tempo da regência; e nesse tempo o Brasil vivia,
por assim direr, muito mais na praça pública do que mesmo no lar doméstico; Montesquieu —
^Do espírito das leis", livro XI. cap. III, In Os pensa-
ou, em outros tempos, vivia em uma almosfeia ião essencialmente folítica que dores Sio Paulo, 1973, vol.
. XXL
p. 156.
o menino, que em casa muito depressa aprendia a falar liberdade e pátria, 95 Cf. Benjamrn Constant —
Op. eíí., loc. cit.
quando ia para a escola, apenas sabia soletrar a doutrina crista, começava logo 96 Cf. baiah Berlin. — *
Qp. cií-, 0 sentido ^positivo' da palavra 'liberdade*
l

a ler e aprender a constituição política do império'


1
Ferreira de Hesende
. — tem oriçem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor (p, 142).
Op* eíf., p. 67. 97 Apud Jornal do Comércio Rio de Janeiro, 2*6 de setembro dc 1831.

134 135
,

çao entre Povo e plebe implicava também a existência de um con-


que desconhecendo os verdadeiros interesses da nação, iam
junto de dispositivos institucionais e legais que garantia à plebe a
levar o susto, o terror e a consternação ao seio das famílias
expressão de suas reivindicações sem que ela própria assumisse
dos cidadãos pacíficos. 192
a direção política e o poder judiciário. 98 O princípio democrático
ganhava, pois, o conteúdo de uma República —
fosse o soberano
Eles se empenhavam também em expandir os interesses políticos
um monarca constitucional ou uma assembléia popular , nos ter- — daqueles setores interíoranos dedicados aos negócios de abasteci-
mos em que ela era definida por Rousseau; 99 todavia, tal princípio
mento da Corte. 198
não se confundia, necessariamente, com a forma republicana de na Sociedade Federal,
Por sua vez, nas ruas, na praça pública e
governo,
a concepção de Liber-
os Exaltados esforçavam-se por fazer triunfar
Propugnadores da Liberdade: moderados ou modernos, uns; exal-
dade que adotavam. A votação do Ato Adicional em 1834, expres-
tados ou antigos, outros. A presença da plebe desunia os exaltados,
sando um compromisso entre Moderados, Exaltados e Restaurado-
pois a associação entre Liberdade e Igualdade entre os homens livres
res, não se constitui numa vitória de suas forças, como muitos
tomava tênues os limites entre a Revolução de cunho republicano
supõem. Caracterizado por Tavares Bastos como a apequena centrali-
e a Desordem. Á inclusão do Povo, por meio da proposição do reco-
zação”, uma vez que submetia os interesses locais às forças domi-
nhecimento de uma igualdade, opunha exaltados a moderados,
nantes no âmbito provincial, o Ato Adicional acabava por tornar
acirrando as disputas na Câmara temporária, Esta “tudo era”, mas
legítimas as desigualdades no interior do Povo.
não conseguia romper o sítio imposto pelos batalhões restauradores,
Por outro lado, alguns dentre os Exaltados procuravam aprovei-
os quais expressavam o espírito conservador que, segundo Nabuco.
tar em benefício de suas posições as pressõe» que a plebe exercia
ainda prevalecia na sociedade. 100
sobre a ja mencionada tênue linha que limitava a Liberdade, pro-
Reunidos nas diversas seções locais da Sociedade Defensora, os
pondo medidas logo consideradas “revolucionárias” e de “fundo
Moderados não sé buscavam conter as medidas que expressavam o 104 Por
anárquico”, como o plano do Grande Fateusim Nacional.
“triunfo” da Liberdade, como a lei de criação da Guarda Nacional
isso mesmo, mais de que Exaltados, eram vistos como Republi canos.
que ao determinar a elegibilidade para os postos da oficialidade
Neste ponto, podemos estabelecer uma primeira conclusão, a qual
abria a possibilidade, ainda que meraraente legal, de um liberto
tornar-se comandante de seu antigo senhor, ou o Codigo do Processo
nos conduz ao abandono de nossa proposição inicial: os Liberais —
ou para garantir a Liberdade da Casa ou para assegurar a Igualdade
Criminal que reforçava o papel do Juiz de Paz, também de eleição
popular 191 —
medidas que motivariam o comentário de Evaristo
eníre o Povo —
devem estar no governo do Estado. E dizer isto
significa dizer também que nao mais devemos considerar as rela-
da Veiga de que
ções entre Liberdade e Autoridade apenas em termos de oposição.
Ora, tal conclusão nos coloca em posição radicalmente distinta
“não havendo a nação sofrido o despotismo de um só, não
daquela que caracteriza toda uma vertente historiográfica, e com
sofreria também o despotismo popular de homens iludidos.
a qual, conforme dissemos acima, até então nos assemelhávamos.
Começamos, sem dúvida, a romper com a questão principal que
Marilena Chauí — Op* cií-, p, 26. norteia tais trabalhos e que, conforme Ja anotara com agudeza Fer-
Jean-Jacques Rousseau —
“Do contraio socUI”, livro segundo, cap. II, nando Uricoechea, diz respeito à identificação do elemento respon-
in Os pen^ídWes. São Paulo, 1973, vol. XXIV, p. 61: “Chamo de República
sável pela organização de um sistema nacional de instituições e pela
todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa
conhecer, pob só nesse caso governe o interesse publico e a coisa pública passa definição de uma ordem pública; o burocrata ou o senhor de ter-
a ser qualquer coba? *. ras. E tal questão não só destaca um postulado monista para a
1°° Joaquim Nabuco — Um
estadista do império^ op. rit., p, 62,
t01 Coleção de do Império do Brasil de IS3L Rio de Janeiro, L874.
leis
Lei de IS de agosto de 1831; e Coleção de do Império do Brasil. Rio de 102
Janeiro, 1874. Lei de 29 de novembro de 1832. A esse respeito, cf, as observa-
ÂPB-Câmara dos Deputados. Sessão de 25 de maio de 1831.
Cf. Alcir Lenharo —
Aj tropas da moderação. São Paulo, 1979.
ções de Sérgio Buarque de Holanda no “Prefácio” à obra de Jeanne Berraoee

- Â
104 Cf. Justíniano José da Rocha —
Âção, Reação. Transição, op. cit.,
de Castro milícia cidadã: a Guarda Pl acionai de 1831 a 1850. São Paulo,
1977, especialmente pp. XX-XXIL
p. 180. Oetávio Tarquinio de Souza —Fatos e personagens em torno de um
regime Rio de Janeiro. 1957, pp. 243-247.
.
,

caracterização da sociedade — de tal forma que ou se tinha um entendimento da Nação como um conjunto de indivíduos e do
Estado forte e uma Sociedade fraca, ou um Estado fraco, instru- Império como a associação política do Povo. Uma concepção que,
mentalizado, e uma Sociedade forte —
como também não deixa de neste momento, se opõe à concepção dos Regressistas, para além
das
se desdobrar nas tentativas de definição do caráter da sociedade contradições que em si mesma encerrava, quer no que diz respeito
brasileira no século passado feudal ou nao— discussão essa, , à plebe, quer no que se refere à igualdade que insinuava para o
por sua vez, sempre muito mais referida a prévios posicionamentos Povo, conforme já vimos.
do que a elementos mais estritamente científicos. Talvez
políticos Guardemos, contudo, que o contexto do Regresso não se distin-
seja desnecessáriolembrar que os trabalhos de Raimundo Faoro guiria apenas pelo avanço do princípio da autoridade, o qual im-
Os Donos do P oder —
e de Nestoi* Duarte A Ordem Privada e a — plicava a recuperação do prestígio da Coroa e o aumento das prer-
Organizaçao Política N acionai —
podem ser tomados como repre- rogativas do Executivo. Guardemos ainda que esta recuperação
sentativos dessas tendências polares. 106 não implicava a eliminação da Liberdade, e sim a sua requalifica-
Todavia, se tal rompimento pode ser iniciado Ção, que não deve ser confundida com um Absolutismo. Guardemos
é porque adotamos
duas premissas analíticas diversas, as quais consistem em, primeiro, também que o contexto da Reação distinguir-se-ia ademais pelo
conceber a relação entre o governo da Casa e o governo do Estado ascenso das insurreições dos negros escravos, dos distúrbios da mal-
como uma relação dialética e não como uma relação dicotômica; e, ta em diferentes pontos do Império e das rebeliões que
ameaçavam
segundo, por não estarmos fundamentalmente preocupados com o a sua integridade. Umcontexto, pois, que evidenciava os limites,
conhecimento da essência dos elementos em questão, ou seja, em fraquezas e contradições da política de Estado até então empreen-
saber o que cada um é ou o que é esta sociedade, e sim por estar- dida, objetivando preservar as características que definiam a socie-
mos interessados no conhecimento do que se passa do que acontece , .
dade imperial, o que motivaria, sem dúvida, a observação na Fala
do Trono de abertura da Assembléia-Geral Legislativa de 1838 de
3.°) No
contexto da Reação ou do Regresso Conservador que — que
X* J- da Rocha localiza entre 1836 e 1852 a distância entre o —
discurso e a ação dos propugnadores da Liberdade ampliou-se pro- a pátria espera que. resolvais o problema de aliar a
. .

gressivamente, como uma decorrência direta dos interesses que não maior soma de liberdade com a maior e mais perfeita se-
só procuravam como deveriam preservar. gurança.” 107
0 avanço do Regresso forçava o deslocamento da cristalização
propiciada pelo Sete de Abril. Tornavam-se, agora, Progressistas;
— Anotemos que a Sessão de 1838 —
inaugurando a Quarta Legis-
logo depois, Liberais sempre por contraste, ao mesmo tempo que
se evidenciava o elemento comum que sustentava as indagações
latura (1838-1840) —
assume particular importância caso queira-
que, mos reconstituir as vicissitudes dos conceitos de Liberdade e Re-
até então, os diferenciavam. Com efeito, ou referidos à questão volução. Nas duas casas do Legislativo travaram-se acirradas
“Quanto sou governado?” ou à indagação “Por quem sou gover-
nado? os Liberais que haviam ascendido desde 1827 não deixavam
discussões entre os Progressistas ou Liberais —
Limpo de Abreu,
, Teófilo Otôni, José Antônio Marinho, na Câmara temporária; Feijó,
de se tocar, na medida em que se interrogavam sobre a quantidade Barbacena, Vergueiro, Alves Branco e Alencar, no Senado e os —
de interdição que sofriam ou de participação que podiam ter.
concepção quantitativa da Liberdade
Uma arautos da nova orientação regressista —
Paulino, Rodrigues Tor-
os unia, expressando-se no res, Clemente Pereira, Honório Hermeto Carneiro Leão, entre ou-
tros em torno de temas candentes, como o da Lei Interpretativa
,

do Ato Adicional de autoria do futuro Visconde do Uruguai. Estes


*>
Cf. Fernando Uricoechea — ‘‘Coronéis e burocratas no Brasil Imperial: últimos não visavam senão criar as condições parlamentares para
crônica analítica de uma síntese histórica”, in Edson Oliveira Nunes (org.) a efetivação da ação desencadeada pelo Ministério de
A aventura sociológica. Rio de Janeiro, 1978, 1837, e no
pp. 201-255.
106 Para uma avaliação crítica
das obras de Raimundo Faoro e de Nestor
Duarte, assim como da produção de Oliveira Viam que, em
larga medida, lhes
serve de apoio, cf. limar Rohloff de Mattos
34-40.

0 tempo saquarema op.r cit., ,
107 APB-Sessão Imperial
da abertura da Assembléia-Geral Legislativa em 3
pp. .
,
de maio de 1838, vol. I, p. 43.

138
139
qual pontificava Bernardo Pereira de Vasconcelos. Comenta Na mente”. 110 Eis a reafirmação do princípio democrático, em 1849,
buco que. então. após o esmagamento da Praieira. Tratava-se de garantir a Liberdade
>
pela subordinação da Coroa e do Executivo ao poder que era a Re-
“a força da reação era invencível, uniam-se no mesmo mo- presentação Nacional; lutava-se para evitar, mais uma vez, o “estrei-
vimento os vellios reacionárias do Primeiro Reinado, os tamento do círculo das garantias” 111 que o Regresso parecia anun-
principais fautores do 7 de abril, e o grupo que em torno ciar, até mesmo por sua denominação; pugnava-se para que à Repre-
dos Andradas pretendia representar a verdadeira tradição sentação Nacional coubesse a “escolha da política, a aprovação do
liberal do país.”1 08 sistema de administração”, pois “tal ou tal ministério não pode mar-
char sem o corpo legislativo, e o corpo legislativo pode marchar sem
112
Vasconcelos sintetizaria, em parte, as motivações desta nova força tal ou tal ministério”, no dizer de Limpo de Abreu.

que se constituía no interior do Mundo do Governo — formada em- Ora, aí os Liberais julgavam encontrar sua força. Porque a Câma-
bora por velhas figuras, em parte —
ao declarar que fora liberal, e ra dos Deputados, enquanto Representação Nacional, aparecia como
que agora tornava-se regressista para poder melhor servir à socieda- a expressão de um contrato que, se de um lado implicava a perda
de uma liberdade natural que distinguiria cada indivíduo e cada
1

de que corria risco “pela desorganização e pela anarquia '.


As noções de organização e oreferrt voltavam a se impor, referidas Casa, de outro significava a garantia de um mecanismo que permi-
à Monarquia, isto é, ao governo do Estado, e colorindo nossa propo- tia neutralizar o Poder, sempre entendido como despótico, quanto
sição, àqual devemos retornar. o ganho da “liberdade civil e da propriedade de tudo que possui",
Devendo estar no governo do Estado, os Liberais se empenharam na formulação de Rousseau. 113
tanto em marcar sua diferença com relação aos Regressistas, quanto Não obstante, justamente aí residia uma das razoes de sua fra-
em dissociar o princípio democrático do conteúdo republicano. queza. A sua concepção de Liberdade nao deixava de implicar uma
De um lado, buscavam definir de modo mais preciso a importân- Igualdade, que se nem sempre ameaçava romper as fronteiras que
cia dos poderes políticos previstos pela Carta de 1824 e a hierar- separavam os mundos constitutivos da sociedade imperial, conduzia
quização que deveria^ presidi-los. Sustentavam como premissa da Li- virtualmente ao aniquilamento das diferenças que também deveriam
berdade a prevalência do “Corpo Legislativo” ou “representação Na- distinguir o interior do Mundo do Governo, segundo eles próprios
cional” (entenda-se, da Câmara temporária), pois somente assim reconheciam. À Igualdade que se insinuava não apenas conduzira à
estaria garantida a soberania nacional, permanentemente ameaçada defecção de antigos aliados, como ainda ameaçava a todos com uma
— quer pela presença ainda avassaladora do elemento português, desordem. Praticamente imobilizados desde a renúncia do primeiro
visto como absolutista e recolonizador, e que emprestava o colorido regente uno, incapazes de conter as sucessivas rebeliões e insurreições
à “Restauração dos Saquaremas”, ao firmar o “pacto de aliança dos que ocorriam fora dos limites da Casa, eles acabariam por aderir ao
inimigos da liberdade com os inimigos da nacionalidade”, na denún- discurso daOrdem.
cia contundente do Timandro; 109 quer pelo crescente fortalecimento Opunham-se com veemência ao programa Regressista, mas apre-
do Executivo, defendido pelos Regressistas como a condição para sentavam como alternativa para uma restauração antes “averiguar
superar a anarquia. bem quais são as causas dos males públicos, e trazer-lhes então remé-
Recorramos ao Timandro. mais uma vez. Dizia ele que o poder dio apropriado”. 111 Defendiam a limitação dos poderes do Executivo,
do imperador “é emprestado, convencional, subordinado ao parecer
e à vontade da Nação, que é a origem de sua superioridade artificial,
e na qual exclusivamente reside a força real, a majestade verdadeira,
Idein. Ibidem, p, 110.
e o poder sem condições. Só ela é soberana; só ela é augusta; só ela llt À expressão é do Deputado Nunes Machado na sessão de 1838 procuran-
é perpétua; é perante ela que os reis devem inclinar-se respeitosa* do definir a política do Regresso. ín Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara
dos Deputados, vol. I. p. 128.
112 APB-Câmara dos Deputados. Sessão de 1838* vol, L p. 156.
11 3 Jean-Jacques Kousseau —Op. «t., p. 42.
1ÜS Joaquim JVabuco — Um estadista da império* op. cit., p 114 ÀPB-Câmara dos Deputados. Discurso de António Limpo de Abreu.
109 Francisco de Sales Torres Homem — Op. p. 94, Jdem. Ibidem.

J40 14i
,

sem se aperceberem que uma limitação não é uma solução, sobre- chamava uma alvorada. Comenta também que, de acordo com a
tudo se o instrumento de que se serviam continha ele também uma importância das casas, as luminárias e lanternas variavam de tipo
limitação. e de tamanho.
I A
cada instante, eram forçados a dissociar o princípio democrático A festa transformava, sem dúvida, a Maioridade numa conquista
de seu conteúdo republicano, repetindo suas profissões de fé monár- de todos os que amavam a Liberdade, ao mesmo tempo que toda
quica. Após rechaçãfem os exaltados, repeliriam veemente as tímidas aquela iluminação, como em muitas outras oportunidades, não dei-
propostas de incorporação daqueles poucos elementos declaradamente xava de simbolizar o triunfo sobre as trevas do despotismo. Não
republicanos, como a apresentada por Limpo de Abreu na Sessão de obstante, também ali a festa não deixava de cumprir sua função de
I

183 8. 115 Ao trocarem os tribunos e senadores romanos pelo índio mecanismo de reforço; inversão e neutralização. 120 Com efeito, em
brasileiro em suas representações da Liberdade, os Liberais defen- meio ao congraçamento geral, talvez somente os tipos e tamanhos
diam as fronteiras de seus privilégios, as estreitas fronteiras da Re- diversos das luminárias registrassem o lugar de cada qual naquela
presentação Nacional que não só negava voz à plebe 116 como tam- sociedade.
bém restringiria drasticamente a participação do Povo, bastando lem- Caminhando com suas contradições, os Liberais não conseguiam
brar para tanto que o Município Neutro que possuía 170 mil habi-
tantes em 1844, dos quais cerca de 50% eram “escravos de toda cor
evitar — à época da Maioridade — que a Liberdade que defen-
diam da Ordem e à Monarquia, aos quais
fosse atrelada ao princípio
117
e sexo”, tinha um colégio eleitoral de apenas 256 eleitores!
também aderiram. Impotentes para resistir, julgavam que somente
Assim, a desigualdade na política correspondia à desigualdade na
refluindo para os âmbitos local e provincial poderiam criar as con-
sociedade. Importava não confundir a Liberdade com a Igualdade,
dições necessárias para o governo da Casa. Dividiam-se, e às suas
mesmo que por vezes desta pudessem servir-se para a consecução forças. Seriam unificados por uma denominação: Luzias.
de seus propósitos e a manutenção dos privilégios sociais. A Casa Praticamente sem ter o que opor ao avanço do Regresso, os Li-
deveria permanecer distinta da Rua e da Praça pública, embora
berais tenderam a insistir na velha crítica ao elemento português.
nelas pudesse derramar-se em determinadas circunstâncias como
Este era não só acusado de estar fossilizado —
“são hoje entre nós
recurso para alcançar seus objetivos.
o que eram há meio século; ficaram imóveis, enquanto o tempo cor-
Recordemos os acontecimentos ligados à antecipação da Maiori- reu”, caracterizava o Timandro, traduzindo a expressão popular
dade de D. Pedro II, pois eles demonstram o que vimos expondo. “pés-de-chumbo” — ;
era visto ainda como ameaça às conquistas
Querendo deter o Regresso, os Liberais foram às ruas, reivindican-
liberais e nacionais —-agora como antes, no governo do filho como
do aquela antecipação. 118 A obtenção desta proporcionou a oportu- no reinado do pai. 121 Opressores como o passado que representavam:

nidade para festividades em vários pontos do Império. Relata Fer- da crítica ao colonizador passava-se à avaliação negativa do proces-
reira de Resende que, naqueles tempos, “quando se tratava de ma-
so de colonização! 122
nifestar o regozijo geral por qualquer ato político ou público, ape-
Urgia, pois, não só eliminar o elemento português como tam-
nas a noite começava a escurecer, toda a vila tratava logo de ilu- um profundo corte com o passado colonial. No
bém estabelecer
minar-se”, 119 servindo-se de lanternas e luminárias: era o que se
discurso liberal, à medida que o Regresso progredia a idéia de Re-
J volução se cristalizava, sublinhando que o tempo presente é o co-
meço do tempo futuro. Assim, “a revolução da independência. . .

devolveu-nos à posse de nós mesmos”; de forma semelhante, “não


115 Idem, Ibidem.
116 Cf., por exemplo, a opinião do Timandro transcrito no item 1 desta é poispara maravilhar. a primeira regência, governo eletivo
. .

Parte (p. 160). e inoculado pela revolução do espírito do povo”; e, ainda mais,
11 7 Dados retirados de J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe —
Dicionário geo-
buscava-se unir o destino do Império ao destino da história dos
gráfico, histórico e descritivo do Império do Brasil. 2.* edição. Paris, 1863,
429.
p.
118 Cf., entre outros, Paulo Pereira Castro —
“A experiência republicana,
1831-1840”, in História geral da civilização brasileira Sérgio Buarque de Ho-
, 120 Cf. Roberto da Matta —Op. cit., especialmente capítulos 1, 2 e 3.
landa (dir.), t. II (op. cit.), p. 64.
— 121 Cf. Francisco de Sales Torres Homem — Op. cit., p. 115.
119 Francisco de Paula Ferreira de Resende Op. cit., p. 68. 122 Cf., entre outros, João Francisco Lisboa — Op. cit., p. 169.

142 143
j
povos: “Rápida vista d’olhos sobre os sucessos da Europa em 1848: “governo representativo como o nosso nenhuns frutos pode
Timandro tira do estado atual do mundo risonhas esperanças para produzir favoráveis à liberdade se não existe uma política,
os oprimidos, e prediz a queda da tirania”. 123 se essa política não tem um ministério que a execute, se
Passava-se a viver o mito da Revolução, com toda a força que não há uma câmara que lhe preste o seu assenso, o seu
a Revolução de 1789 lhe imprimira ao redefinir a esfera do poder apoio.”
em nossas sociedades, conferindo-lhe o estatuto de instrumento de
esperança das mudanças sociais, vistas como necessárias e genero- Retomando as palavras da Fala do Trono de abertura dos traba-
Passava-se a viver o mito da Revolução, até mesmo porque
sas. 124 lhos legislativos da sessão de 1838, Bernardo Pereira de Vasconcelos
esta sempre aparecia traída —
vejam-se 1822, 1831 (uma “journée — que então ocupava os cargos de ministro da Justiça e do Império
des dupes”), 1842 ou 1848 —
ou incompleta. — frisava:

“Quando raiará o dia da regeneração? Quando estiver com- “entendo que a política de um ministério em geral reduz-
pleta a revolução, que há muito se opera nas idéias e sen- que ele considera mais urgen-
se à satisfação das necessidades
timentos da nação”, tes. Reconheceu o ministério que a primeira necessidade dos

brasileiros era a maior soma de liberdade com a mais per-


ensinava o Timandro. 125 E tal mito possibilita-nos diagnosticar, hoje, feita segurança, e está também convencido de que este gran-
a esperança que movia aqueles Liberais, ao lado de um isolamento de benefício só pode ser conseguido sob os auspícios da mo-
crescente que tanto sublinhava em cada um deles uma pureza de narquia constitucional, que está em absoluta dependência da
propósitos quanto à impossibilidade de perceber no momento em integridade do Império.” 126
que viviam o que era concretamente novo e diferente, embora da
idéia do novo utopicamnte se nutrissem. Cuidava-se tanto de dar um novo conteúdo à Liberdade “pois —
Imagens, conceitos e comportamentos diversos os dos Regressistas. houve tempo em que se julgava que o liberalismo consistia em der-
Opunham-se aos Liberais por discordarem que aos Representan- rubar tudo quanto nos legaram os nossos antepassados” quanto —
tes da Nação deveria caber a escolha da política a ser seguida “para de definir com nitidez o Regresso —
“como sinônimo de recurso,
fazer o bem do país”. Sustentavam que, se assim fosse, o Poder Exe- ao menos é esta a inteligência que lhe dão os clássicos portugueses
cutivo tornar-se-ia uma simples comissão do Poder Legislativo, e que eu mais considero”. Como é possível perceber das palavras de
daí decorreria não só a confusão entre os poderes mas também a Vasconcelos, associava-se a Liberdade à Segurança (isto é, à noção
irresponsabilidade do Executivo; sustentavam também que, a pre- de Ordem), à Monarquia constitucional e à manutenção da integri-
valecer aquela opinião, o Poder Moderador estaria atingido em sua dade territorial. Ficava claro também que a maior soma de liber-
definição constitucional, pois não mais teria a necessária liberdade dade estava em correspondência direta com a força do governo, isto
126
para demitir um ministro que estivesse executando uma política é, o Poder Executivo.
alheia. Discursando na mesma sessão, José Clemente Pereira não só defi-
Pela voz de um de seus mais eminentes representantes, os con- niria com clareza o que era o princípio monárquico em oposição ao ,

servadores ou regressistas não se empenharam apenas em caracte- princípio democrático, como também procurava mostrar que medidas
rizar os distintospoderes políticos e definir-lhe a hierarquização; se faziam necessárias para a plena vigência da Liberdade. Elas con-
esforçaram-se sobretudo por articular aquelas caracterização e defi- sistiam no fortalecimento do governo —
por meio da “reforma da
nição a uma determinada política, pois um legislação reformada”, de modo a emendar a legislação criminal; da
organização do Exército e da Armada; e da dotação do país de uma
circulação monetária uniforme —
e na existência de membros na

123 Francisco de Sales Torres Homem — Op. cit p. 47.


124 Roberto da Matta — Relativizando: uma introdução à Antropologia
Social. Rio de Janeiro, 1981, p. 131. APC-Câmara dos Deputados. Sessão de 1838. Discurso de Bernardo Pereira
125 Cf. O Libelo do Povo op. cit., p. 126.
,
de Vasconcelos, vol. I, p. 102.

144 145
Câmara temporária que não se envergonhassem de “ser deputado mi- Se Hobbes aparecia, sem dúvida, como o grande inspirador des-
nisterial”. A Vasconcelos acrescentaria a importância
tais propostas, tes últimos, em Bentham os Regressistas encontravam a formulação
de “difundir as luzes” como maneira de consolidar entre os cida- atualizada que justificava forçar os eus empíricos identificados —
dãos os hábitos e costumes constitucionais que “são, sem dúvida, como “representantes de interesses meramente provinciais, exorbi-
a mais alta sanção que se pode dar a leis justas e à fé do jura- tando das suas atribuições” 131 —
a se adaptarem a um padrão con-
mento”. 127 siderado certo, entendido como liberação e não como tirania. Com
No calor das discussões então travadas, mencionavam-se a cada Bentham eles aprendiam ainda que o objetivo das leis era restrin-
instante os “doutrinários”; recorria-se a Rousseau e a Montesquieu; gir, não liberar — “toda lei é uma infração da liberdade” — , e
citavam-se Lamartine e Benjamin Constant; fazia-se referência a que esta infração conduzia a um aumento da liberdade, visto que
Tocqueville e eram recuperados os “clássicos portugueses”. No essen- esta não é incompatível com a autoridade, antes com ela se con-
cial,porém, o pensamento e a ação dos Regressistas pareciam guiar- funde: “a missão dos governantes consiste em promover a felicidade
se pelas proposições de dois pensadores: Thomas Hobbes e Jeremy da sociedade, punindo e recompensando”. 132
Bentham. De uma apreensão particular dos ensinamentos do autor de Le-
Daimportância do último encontramos um “vestígio” 128 na obra viatã e de Sobre o Cidadão os Regressistas retiraram os elementos
,

de Joaquim Nabuco. Ao se referir ao Curso Jurídico de Olinda, que lhes permitiram colocar no centro das discussões políticas a no-
comenta que enquanto aqueles “que se tinham formado em Coimbra ção de Ordem, por meio da recuperação dos conceitos de Guerra
desdenhavam desse arremedo da velha universidade”, a “geração de Civil e Soberania, da doutrina da Razão de Estado e da diferença
1800-1833” que o freqüentou, ou ao da capital da Província de São existente entre as dimensões privada e pública em cada indivíduo. 133
Paulo, distinguir-se-ia por uma instrução jurídica Se se pretendia, efetivamente, “a maior soma de liberdade com
a maior e mais perfeita segurança”, entendia-se que se tornava ur-
“quase exclusivamente prática; aprendiam-se as ordenações, gente extinguir a guerra que dilacerava a sociedade, interrogando-se
regras e definições de direito romano, o código Napoleão, a sobre as causas dos conflitos entre seus cidadãos, os quais estimula-
praxe, princípios de filosofia do direito, por último as teo- vam as rebeliões, sedições e insurreições nos demais mundos, tor-
rias constitucionais de Benjamin Constant, tudo sob a ins- nando cada vez mais distante a obtenção da paz. E, seguindo os en-
piração geral de Bentham .” 129 sinamentos de Hobbes, tais causas pareciam residir no apetite ou
desejo dos indivíduos, 134 devendo-se, pois, estar atento e combater
Ora, tal inspiração era tão mais significativa quanto nos recorda- a “tutela das facções” e “calar as vozes mesquinhas de influências
mos do peso até então representado pelo conceito moderno ou nega- locais e de interesses particulares”, conforme preconizava o minis-
tivo de liberdade e das discussões propiciadas pelas divergências en- tro da Justiça, em 1843, a propósito dos movimentos políticos do
tre os teóricos que o sustentavam quanto amplitude da área de
à ano anterior. 135
não interferência, pois se, de um lado, os partidários do livre-arbí-
trio, como Locke, Mill, Constant e Tocqueville, defendiam uma certa
131 Relatório do ministro da Justiça 1843
área mínima de liberdade pessoal que não devia ser absolutamente , , Paulino José Soares de Sousa,
p. 5.
violada, sob risco de o despotismo se instalar, de outro se apresen- 132 Jeremy Bentham —
“Uma introdução aos princípios da moral e da
tavam aqueles que argumentavam ser necessário ampliar a área de legislação”, cap. VII, in Os Pensadores. São Paulo, 1974, vol. XXXIV, p. 25.
controle centralizado e reduzir a do indivíduo, como condição da pró- 133 Sobre Thomas Hobbes, cf. sobretudo: Reinhart Koselleck Crítica y —
pria preservação deste. 130 crisis dei mundo burguês. Madri,
1965 (especialmente a parte I, pp. 25-92);
C. B. Macpherson —
La théorie politique de Vindividualisme possessif de —
Hobbes à Locke. Paris, 1971 (a primeira edição em língua inglesa é de 1962);
Gérard Lebrun — O que é poder. São Paulo, 1981.
127 Idem, Ibidem. Discursos de José Clemente Pereira e Bernardo Pereira 134 Cf. Thomas Hobbes —
“Leviatã ou matéria, forma e poder de um esta-
de Vasconcelos, vol. I, pp. 144 e 303, respectivamente. do eclesiástico e civil”, in Os Pensadores. 2. a edição. São Paulo, 1979, primeira
128 Marc Bloch —Introdução à História. Lisboa, 1965, p. 52. parte, cap. VI, p. 32.
129 Joaquim Nabuco — Op. cit ., p. 51 (grifo nosso). 135 Relatório do ministro da Justiça, 1843, Paulino José Soares de Sousa,
130 Cf. Isaiah Berlin — Op. cit., p. 137. p. 6.

146 147
Se se desejava a supremacia da Razão Nacional —
"única e ver- Esta distinção fundamentai seria resgatada pelo pensamento con-
1
dadeira indicadora do pensamento e necessidades públicas’ * no dizer servador. Ela nortearia ainda a ação dos Regressistas, por meio do
da mesma autoridade —
tornava-se necessário reforçar o Poder, conceito qualitativo de Liberdade^ o qual acabaria por deslocar o
,

colocando-o acima dos interesses partidários, “porque como fri- — conceito revolucionário, quantitativo e igualitário, e que nos tempos
sava Bernardo Pereira de Vasconcelos —
discussões entre partidos iniciais das Regências parecia produzir a “desordem 11 *
são infructuosas”. Retoma va-se Hobbes, para quem a Razão exigia Consideremos, primeiro, a dimensão privada.
e reclamava a existência do Estado, mas somente a partir da exis- Ao afirmar serem os homens desiguais, em seus dotes naturais
tência deste a Razão tornava-se tanto política quanto moral* “É a e habilidades, até o mais profundo cerne de seus seres, 140 o conceito
autoridade, não a verdade, que faz a lei”, ensinara o autor de Levia - de Liberdade adotado pelos Regressistas lhes permitia não apenas
ícL ao mesmo tempo que deixava claro que se a Razão era o término se desembaraçar da noção de igualdade que tanto conf undia os Libe-
da guerra civil, o Estado era, por sua vez, quem tomava possível o rais; também permitia que a desigualdade natural entre os homens

contrato entre os indivíduos: ‘ninguém tem suficiente poder para se desdobrasse em desigualdade na sociedade, reservando a cada
4

estar seguro de que possa conservar-se, enquanto permanecer em indivíduo um lugar distinto* Anotemos, contudo, que à desigualdade
estado de guerra”. 13* entre os homens somava-se a desigualdade entre estes e a massa de
Nestes termos, e assinalando um deslocamento, a Soberania do escravos, a distinção tantas vezes já referida entre pessoas e coisas,
Império não mais se constituía apenas peia referência aos demais distinção que, ao cabo, não deixava de construir uma igualdade
Estados, as “Nações civilizadas”. Ela era construída tendo como entre os homens desiguais porque livres. Em discurso na Câmara
referência principal a própria sociedade — 64
uma multidão de dos Deputados* em 183B* Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Ma-
homens, unidos numa pessoa única por ura poder comum, para sua chado e Silva* traduziria esta dimensão privada ao frisar que
paz, sua defesa e seu proveito comuns” - —
e fazia do Soberano ou
do Poder o responsável pela manutenção da paz e da ordem, outor- "quem diz Uberdade diz todas as garantias do homem so-
gando-lhe um
monopólio: o monopólio de uma responsabilidade.^ cial ( * . * ) a liberdade de pensar, a liberdade de culto* a segu-
Destaquemos, contudo, um outro aspecto. Ao mesmo tempo que rança da pessoa, a segurança da propriedade.” 141
exigia a submissão dos súditos, o monopólio da responsabilidade pelo
Soberano sublinhava, na formulação de Hobbes* a cisão de cada A dimensão pública, agora*
indivíduo, a divisão de cada qual nas dimensões privada e pública, Nela, o conceito qualitativo de Liberdade cruza-se com o de Res-
entre o “homem” e o “cidadão”* pois se as ações e os fatos perma- ponsabilidade, imprimindo novas significações â desigualdade e
neciam sujeitos à lei do Estado, as convicções íntimas, por seu turno, reafirmando certas cH vagens. De um lado, a distinção entre cida-
restavam livres* Justamente porque livre era a consciência de cada dãos ativos e cidadãos não ativos ganhava o conteúdo da naturali-
um — súdito e cidadão a um só tempo —
que se apresentava como zação da distinção entre sociedade política e sociedade civil* fazendo
instância de controle do dever de obediência, ao mesmo tempo que da primeira o espaço natural onde os cidadãos legitimavam o mono-
fazia com que ficasse isento de toda e qualquer responsabilidade: pólio da Responsabilidade e da última o espaço naturalizado ocupado
por outro lado. o refúgio em seu mundo interior de convicções, ga- por meros súditos* De outro, construía-se uma desigualdade no inte-
rantia-lhe a itberdade para expandir aquelas ‘‘coisas que graças à rior do próprio conjunto dos cidadãos ativos isto é, do Mundo —
sua força e engenho é capaz de fazer”, 13* a expansão das suas vir-
tualidades que, também entre nós, o Romantismo sustentaria. 13&
com o mundo (retorno à mãe-natureza, refúgio no passado, reinvenção do bom
selvagem, exotismo) e no das relações com o próprio eu (abandono à solidão,
136 Thomas Hobbes — Op. cit segundu parte* cap. XVII, p. 104. ao sonho, ao devaneio* às demasias da imaginação e dos sentidos}”. Alfredo
137 Cf, Idexn, Ibidem, especialmente o cap. XVI II, “Dos direitos do sobe-
1
Bosi —
História concisa da literatura brasileira. 2 .* edição. S3o Paulo* 1979,
rano por instituição ', pp. 107-114. p. 101.
rdem, Ibidem* segunda parle. cap. XXI, p* 129* 14& Cf. KarlMannheim Op — , cit., loc. cit,
139 u Como os seus ídolos europeus, os nossos românticos exibem fundos 141
ÃPB-Cãmara dos Deputados . Discurso de António Carlos Ribeiro de
traços de defesa e evasão, que os leva a posturas regressivas: no plano da relação Andrade, vol. I, p 200. .

148 149
do Governo —
por meio da discriminação entre votantes e eleitores, nientemente desenvolvidas não o são menos. Aquela sem
pela hierarquização das relações entre o Executivo e a Câmara dos estasnão pode produzir bons resultados”, 144
Deputados, e sobretudo pelo fato de reservar o topo da pirâmide da
organização e da vida política —
devendo ser lembrado, neste ponto, sustentava o Visconde do Uruguai em seu Ensaio Sobre o Direito
que elas praticamente se confundiam com a dimensão pública — Administrativo publicado em 1862, e no qual não só sintetizava a
,

ao Imperador, abaixo do qual todos apareciam como súditos. trajetória de uma atuação política como também demarcava o cam-
Dentre os Regressistas, os Saquaremas foram, por certo, os intér- po de uma discussão, no momento mesmo que a Historiografia re-
pretes privilegiados desta dimensão pública. Eles não se cansariam corta como o de “renascer liberal”. 145
de dizer que a máxima —
o Rei reina, mas não governa não — Observemos, por fim, que a consideração conjunta dos dois aspec-
deveria ser tomada em
termos absolutos e abstratos. Os Saquaremas tos da dimensão pública acima mencionados permite concluir que
reafirmavam a importância de considerar as singularidades, lem- a hierarquização nela presente unia, de um lado, todos os súditos ao
brando que era preciso ter em conta as “circunstâncias do país”, imperador, desde o mais pobre dos cidadãos da mais distante fre-
dentre as quais avultavam a “educação, hábitos e caráter nacionais”. guesia do “Sertão” até o senador do Império ou o conselheiro de
Por isso mesmo^o Visconde do Uruguai lembrava que no Império Estado; e ligava, de outro, cada um dos homens livres tanto àqueles
do Brasil “o Imperador exerce as atribuições que a Constituição lhe que se encontravam acima quanto aos que se encontravam abaixo
confere”, 142 o que se traduzia em máxima distinta — o Imperador na escala hierárquica, por meio de uma cadeia de lealdades e fide-
reina governa e administra
, . lidades, gerada por um
processo cumulativo de favores e encargos
E mais do que isso. Pelas mãos dos Saquaremas aprofundava-se recíprocos, que “não só promovia, sucessivamente, a
cadeia essa
uma nova distinção na dimensão pública, a qual nutria-se, no essen- eliminação de um existir autônomo”, 146 como também conferia a
cial, no próprio movimento do pensamento europeu que, então, se cada um daqueles que se distinguiam por serem homens isto é,—
distinguia pelo deslocamento do primado do “político” para o do livres —
um lugar no cosmos social —
lugar esse que os Liberais
“social” como expressão da emergência da “sociedade natural” ou pareciam não conseguir atribuir aos cidadãos não ativos sempre
da “sociedade civil”. 143 A
expansão da economia mercantil e das que as fronteiras da Casa, onde se comportavam como um despotés
relações capitalistas emancipavam
a economia da política, fazendo à maneira dos gregos, eram transpostas. 147
com que ela deixasse de ser entendida apenas como um conjunto de Deste modo, no transcurso da “Reação” e no momento seguinte
regras para bem governar a família ou a casa; tornavam-na, pelo da “Transação”, por meio de uma conceituação distinta de Liber-
contrário, a estrutura que move a sociedade, tendendo a submeter a dade, os Saquaremas fizeram com que as pretensões dos Liberais se
política a seus interesses, desde então, tanto na formulação do pen-
samento liberal quanto na do socialista que se lhe seguiu. Resgatando,
aqui, o aspecto que mais nos interessa, erigia-se como ideal reduzir
144 Visconde do Uruguai — Op. cit., p. IV.

a política — em
particular, a má política —
à simples administração
145 No momento que costuma denominar de “renascer libe-
a Historiografia
ral’, no último quartel do século XIX, Tavares Bastos aparecia como o principal
— boa administração. Os Saquaremas se interessavam por
isto é, à crítico da centralização imperial e da obra do Visconde do Uruguai, sustentando

administrar “coisas” e “homens”, por meio da distinção na esfera que a centralização era a causa de quase todos os males do país, pois “a grande
questão que no Brasil se agita, resume-se na eterna luta da liberdade contra a
do Estado entre Governo e Administração. a
força, do indivíduo contra o Estado (
a
A província. l. edição, 1865. São Paulo,
1975, 3. edição, p. 10). Todavia, se nesse momento o indivíduo começa a subs-
“Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é tituir a Casa ou as Famílias na luta contra o poder do Estado, entendido como
avassalador, numa substituição que não deixava de manifestar as profundas trans-
essencial para a felicidade de uma Nação, boas instituições
formações estruturais que a sociedade começava a sofrer, ela não é suficiente
administrativas apropriadas às suas circunstâncias e conve-
ainda para romper com a problemática fundada pelos Saquaremas, imprimindo
um sentido distinto à discussão política e, por extensão, à própria produção
historiográfica.
146 Maria Sylvia de Carvalho Franco —
Homens livres na ordem escravo-
crata , op. cit., p. 90.
142 Visconde do Uruguai — Op. cit., p. 157. 147 Cf. Hannah Arendt —
Entre o passado e o futuro.
143 Cf. Norberto Bobbio
— Qual socialismo? Rio de Janeiro, 1983, p. 27. p. 158.
São Paulo, 1979,

150
151
esvaíssem, sublinharam as contradições de suas propostas e impu- não se deteve aí. Aos seus desígnios e interesses foi submetido o
seram-lhes uma direção. Assim, à “ Representação Nacional” opuse- próprio conceito de Revolução, que os Liberais entendiam como uma
ram a “Soberania”; a “Vontade Nacional” submeteram à “Ordem”; ruptura, o início de um novo tempo no quai depositavam suas espe-
ao “Princípio Democrático” contrapuseram o “Princípio Monárqui- ranças. O percurso do Regresso foi também assinalado pela redefi-
co” —
sempre vitoriosamente. Nao obstante, o triunfo maior resi- nição semântica de Revolução, tendo os conservadores se empenhado
diria no esvaziamento da problemática nativista, que insistia em em restaurar a significação que o termo possuía antes de 1789.131
opor brasileiros a portugueses como o cerne da questão política, 148 E também aí triunfaram, fazendo valer os sentidos que ainda apa-
e na imposição da questão da escravidão, no momento de consoli- reciam na segunda edição do Dicionário de Morais, em 1831.
dação do Estado imperial. Resgataram, antes de tudo, a significação que foi emprestada ao
Os Saquaremas foram além. Uniram a seus propósitos os demais termo por ocasião das mudanças políticas por que passavam os Esta-
Conservadores. Reafirmaram, a cada passo, a hierarquização que dos europeus no século XVII, em especial a Inglaterra em seu final:
presidia os tres mundos, mas também aquela que devería presidir a revolução como uma restauração* Assim, se os Conservadores enca-
as relações entre o Poder e a Nação, o Estado e a Casa, Governantes ravam a emancipação política de 1822 como uma revolução —
e Governados, as quais encontravam sua expressão simbólica mais “uma grande revolução de princípios: o povo foi o vencedor, o
marcante na restauração pelo próprio Regente Araújo Lima do ato governo absoluto foi o vencido”, no dizer de Clemente Pereira —
de beijar a mão do imperador! 149 faziam- no porque entendiam que ela fora a possibilitadora da
Neste ponto, talvez valha a pena lembrar que, por um caminho restauração de uma ordem que vinha em processo de constituição
diverso, a questão do que entender por uma sociedade nacional como decorrência da colonização e que ameaçara se perder pela
retorna, pois se por meio de Hobbes tornava-se possível defender a ação despótica da Metrópole. 152 Uma restauração que imprimia um
importância do Soberano, e por extensão da instituição monárquica, traço distintivo à emancipação, conforme a observação de Vascon-
como elemento propiciador da coesão e da continuidade do Corpo celos Drumond: “a Independência do Brasil respeitou todos os direi-
Político e da própria sociedade, também fica evidente que esta não tos, mal ou bem adquiridos. Não há exemplo que em nenhum outro
país acontecesse outro tanto no meio de uma revolução”.
153
era entendida como socieíos, isto é, como associação voluntária ou
por contrato de indivíduos objetivando a formação de um grupo, Ora, a compreensão da revolução como uma restauração impli-
por meio de leis fixas e iguais para todos. 159 Ao Estado monárquico cava uma concepção distinta do tempo e da própria História. De
no seu momento de consolidação competia “construir a Nação”, de- um lado, ela não era entendida como uma ruptura ou o início de
vendo-se entender por tal a preservação da existência da diferencia- um novo tempo, e sim como o ponto de chegada, o coroamento de
ção entre pessoas e coisas, por um lado, e da desigualdade entre as um movimento de constituição da sociedade, de modo muito seme-
pessoas, de outro, de tal forma que se uns eram considerados cida- lhante como a Revolução Francesa era vista pela historiografia da
dãos e súditos, outros deveriam ser apenas súditos. Restauração — - Guizot, Mignet e Augustin Thierry, em especial o
Mas a trajetória do pensamento conservador e de seus fautores primeiro —
e. mais tarde, por Tocqueville.
154 De outro, o passado

era instituído em elemento de explicação do presente, de tal forma


148 Veja-se a respeito a observação de Justiniajio José da Rocha —
Op. cit.,
""Nesse sentido, o caráter das. primeiras lutas do Brasil pode antes ser conside-
1,

rado social do que político' (p. 171). e logo foi voa constante, foi opi-
nião feita que, por mais liberal que fosse o Português em sua terra, no Brasi] Cf. Haniiah Àrendt — Sobre a revolução. Lisboa, 1971 ( especiahnente
eta profundamente corcunda" (p. 174). Observe-se, Lambem, que para o Timan- o capítulo f, significado da revolução'', pp. 21-57); e AUce Gérard — La
dro esta continuava a ser a questão fundamental, trinta anos depois, conforme révolution française, m
ythes et ínterprétations: 17&9-I970. Paris, 1970.
pode ser percebido pelos inúmeros trechos acima transcritos. 152 Sobre a sensação de ordem perdida, cf. Carlos Guilherme Mata — Âli
-

149 ll ue sensação imensa produziu na cidade, de exultação em uns, de


Q tudes de inovação no Brasil op. cit.
Mattos —
,

indignação em outros, de surpresa em lodos, quando se soube que na festividade Àpnd Francisco José Calazans Faloon e limar Rohloff de
da Cruz, à porta da igreja, diante de numerosíssimo concurso, havia-se o re- ‘"O processo de independência no Rio de Janeiro", in Carlos Guilherme Mota
gente inclinado, e beijado a mão do Imperador H
Jiistiniano José da Rocha — (org.) — 1822 —
Jhmensõej. Sio Paulo, 1972, p. 339.
Op cü., p, 194.
. 154 Cf. Alice Gérard —
- Op, cit. (especialmente o cap. 2, “Le trioxnphe du
159 Cf. Roberto da Matta — Canxatms, malandros e herms^ op, cit., p. 174. myihe ( 1 815.1853)”, pp. 29-47).
.

que se tornava essencial “que se aproveite as lições do passado para destrói, mata a liberdade, a qual somente pode prosperar
a segurança do futuro”. 155 com a ordem”,
Ora, esta lógica da continuidade não apenas recuperava positiva-
mente a obra da colonização e a permanência entre nós da Família segundo a opinião de Paulino. 157 De maneira também irresistível,

Real portuguesa. 156 Ela também fazia da Revolução enquanto Res- à “Ação” deveria suceder a “Reação”, restaurando o elo entre o

tauração o momento privilegiado de redefinição das “existências passado e o presente.


individuais” e das “instituições públicas”, como termos complemen-
tares, da “Liberdade” e da “Ordem”, conforme os ensinamentos de 4.°) A partir do que foi exposto até aqui, podemos afirmar: os
Guizot. Como no ciclo revolucionário dos astros, caracterizado por Liberais — ou para garantir a Liberdade da Casa ou para assegurar
uma irresistibilidade, tornara-se imperioso romper com o Poder me- a Igualdade entre o Povo — devem estar no governo do Estado,
tropolitano, como condição para a restauração e posterior expansão mas não o conseguem E
o fracasso dos Liberais já ao final do Pe-
.

dos monopólios que fundavam a classe senhorial; e era justamente ríodo das Regências anuncia a derrota dos Luzias logo após a
este movimento que era entendido como a redefinição das “existên- Maioridade.
cias individuais” e legitimava o momento de luta da “Ação”. Não Ora, ao dizermos que os Liberais não conseguem estar no governo
obstante, o rompimento com o Poder metropolitano não deveria ser do Estado, estamos enfatizando um novo rompimento, desta feita
confundido com o rompimento, aniquilamento ou mesmo enfraque- com aquela corrente historiográfica sobre o Império que se distingue
cimento de todo o Poder centralizado, herdado do período colonial por destacar a sucessão dos gabinetes e arranjos palacianos e por se
e reforçado durante a estada da Corte no Rio de Janeiro, o qual preocupar com o rodízio dos partidos, as lutas entre eles e no inte-
significava a construção de nossas “instituições públicas”. E, por rior de cada qual, além das questiúnculas parlamentares, quer sob

isso, tornava-se necessário não só “parar o carro da revolução”, co- a forma mais comum da simples narrativa, quer recorrendo à mo-
mo propusera Vasconcelos, mas também derna metodologia estatística, a qual ao permitir determinar a fre-
qüência de permanência de cada um dos partidos políticos imperiais
“empregar todos os meios para salvar o país do espírito no Executivo e na Câmara temporária, ou ainda a composição do
revolucionário, porque este produz a anarquia, e a anarquia Senado e do Conselho de Estado, pretende esclarecer sobre o caráter
liberal ou conservador das instituições e do Estado Imperial. 158
Se insistimos nesse novo rompimento não é porque nos preocupa
155 APB-Câmarados Deputados Discurso de Paulino José Soares de Sou primordialmente sublinhar a diferença ou a novidade de nossa pro-
sa. Sessão em 7 de de 1843, p. 559. A esse respeito, não é extre-
fevereiro posição. Ajuntemos também que seria um mau procedimento meto-
mamente significativo que para dizer “duas palavras acerca da atualidade polí- dológico ver nela uma possibilidade de completar as insuficiências
tica do Brasil” Justiniano José da Rocha recupere toda uma trajetória, até pro-
daquelas explicações. Se insistimos no rompimento é porque nos
duzir uma síntese?
156 Lê-se na História da Independência do de Francisco Adolfo Jc
Brasil ,
interessa, em primeiro lugar, destacar que aquela produção histo-
Varnhagen, redigida por volta de 1877: “(...) se bem que, segundo a ordem
natural dos acontecimentos, ao Brasil devia, como a quase todas as colônias, che-
gar o dia da sua emancipação da metrópole, a apressaram muito a vinda a ele
da família real; depois da retirada de El-Rei D. João VI, contribuíram a
e,
APB-Câmara dos Deputados. Discurso de Paulino José Soares de Sou-
157
sa. Sessão em 7 de fevereiro de 1843, p. 568.
facilitá-la a promulgação das instituições constitucionais e os arbítrios injustos e
158 Ainda que correndo o risco da simplificação excessiva, podemos dizer
despóticos, em meio destas, resolvidos pelas Cortes de Lisboa, e não menos o
apoio generoso e franco, que veio a dar-lhe o próprio herdeiro da Coroa, levado,
que as obras que melhor distinguem esta vertente historiográfica são tributárias,
providencialmente, de concessão em concessão, na certeza de com isso contri- em primeiro lugar, do texto de Justiniano José da Rocha —
Ação. Reação. Tran-
buía a evitar maiores males.
sação: Duas palavras acerca da atualidade política do Brasil ,

embora dele
“E meditando bem sobre os fatos podemos deixar de acreditar
relatados, não não guardem o brilho e a argúcia da análise, e, secundariamente, dos trabalhos
que, sem a presença do herdeiro da Coroa, a Independência não houvera ainda do Visconde do Uruguai —
Ensaio sobre o Direito Administrativo de 1862, de
talvez nesta época triunfado em todas as províncias, e menos ainda se teria
Tavares Bastos —
especialmente, A Província , editada em 1865 — ,

e de Joaquim

levado a cabo esse movimento, organizando-se uma só nação unida e forte, pela
Nabuco —
Um estadista do Império, de 1896. E, nesta vertente, situam-se tanto
a
edição, São Paulo, os textos que insistem em reconstituir a história a partir das biografias, quanto
união, desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul” (6.
aqueles que se preocupam com a descrição minuciosa dos eventos políticos. No
pp. 258-259).

154 155
.

riográfica não se distingue tanto por uma insuficiência, e sim por “a unidade histórica das classes dirigentes é produzida no
uma interdição, obstáculo que ela erige, impossibilitando a
pelo Estado, e a história dessas classes é essencialmente a história
compreensão tanto da dinâmica da política imperial quanta de toda dos Estados e dos grupos de Estados.” 159
a sociedade. Ao insistir na presença dos Liberais no governo do
Império, no momento em que se completa a construção do Estado, Todavia, quando dizemos — estar no governo do Estado — esta-
ao enfatizar o rodízio dos gabinetes e assim sustentar a participação mos nos referindo também à capacidade de exercer uma direção:
dos Liberais, aquelas obras produzem uma ocultação, camuflando uma direção política, uma direção “intelectual e moral”, no dizer
não a derrota dos Liberais nos movimentos de 1842 e 1848, e sim daquele mesmo pensador. Estamos tentando ir além das concepções
o fracasso de um projeto de direção, não obstante o provérbio impe- prevalecentes, sobretudo nos estudos referentes à ordem imperial,
rial — conforme vimos tentando demonstrar —
ironicamente o que apenas consideram no Estado os aspectos referentes à dominação
revele. e aos aparelhos de coerção que a tornam possível, como a polícia,
Afirmar que os Liberais não conseguem estar no governo do a burocracia, os tribunais, concepções estas que, embora em alguns
Estado significa afirmar também —
por meio de uma complemen- casos reconheçam a existência da luta de classes, reduzem-na ao
taridade que se constitui a partir da consideração do Estado imperial conflito entre as duas forças sociais fundamentais.
consolidado —que os Saquaremas nele estão, assim como os demais No quadro da sociedade imperial —
a sociedade dos “três mun-
Conservadores que a estes se mantêm unidos. Significa dizer ainda
mais: os Saquaremas para exercerem uma Autoridade, isto é, para
dos” — o exercício cotidiano de uma direção pelos Saquaremas esta-
va referido precipuamente aos cidadãos ativos, e, por extensão, à
estar no governo do Estado, devem estar no governo da Casa. E,
“boa sociedade”. Tratava-se, no dizer de Bernardo Pereira de Vas-
efetivamente, o conseguiram. concelos, de “difundir as luzes”. Tratava-se também de promover
Sem dúvida, ambas as afirmações — primeira sublinhando um
a o “espírito de associação”, recorrendo diretamente ou não aos meios
fracasso e a última, um triunfo — destacam a importância de estar que o aparelho de Estado fornecia, pois como lembrava Mauá
no governo do Estado, reafirmando os ensinamentos do filósofo mar-
xista italiano de que
“o espírito de associação é um dos elementos mais fortes da
prosperidade de qualquer país e, por assim dizer, a alma do
progresso.” 160

primeiro caso, a História dos fundadores do Império do Brasil , de Octávio Tar-


quínio de Souza; as inúmeras biografias de D. Pedro II, como o trabalho em Mas era um exercício que, servindo-se de meios diversos e tendo
três volumes de Heitor Lira — A vida de Dom Pedro II (1938-1940); e ainda por finalidade principal alcançar o reconhecimento de uma locali-
o trabalho de José Antonio Soares de Souza — A vida do Visconde do Uruguai zação, estava referido também aos demais homens livres, aos cida-
(1944), excelente manancial de informações, mas nitidamente inspirado no tra-
balho de Nabuco, e que ao pretender fazer da figura de Paulino o estadista
dãos não ativos especialmente, de modo a melhor destacá-los da
do Sul correspondente àquele do Nordeste, acaba por esconder a sua significa- massa de escravos.
ção real tal o anseio da exaltação. No segundo caso, as narrativas preocupadas Assim, os Saquaremas eram dirigentes —
diríamos melhor, inte-
com a sucessão dos gabinetes, com o rodízio dos partidos e as questiúnculas
parlamentares, sempre reforçando uma periodização previamente dada, e sem a
lectuais da classe senhorial em constituição —
porque, estando no
preocupação maior de relacionar, ao menos indiretamente, tais eventos àquilo governo do Estado, não se limitaram ao exercício de uma dominação.
que poderíamos denominar de os fundamentos sócio-económicos da ordem impe- Por meio da “difusão das luzes” e da promoção do “espírito de
rial e as formas de pensamento que lhes correspondem. Aqui, os exemplos se associação”, puderam estar no governo da Casa. Não deixaram de
sucederiam, indo dos trabalhos mais antigos do Barão do Rio Branco, de João
estar também, quase que por decorrência, nas ruas e na praça públi-
Ribeiro e de Oliveira Lima, passando pela produção de Hélio Viana (veja-se,
por exemplo, Vultos do Império ), até a obra recente de Vamireh Chacon, Histó- ca. Processo crucial em cujo decorrer os Saquaremas, intimamente
ria dos partidos políticos brasileiros (1981). Repletas de “fatos”, beiram à crôni- ligados ao Estado, a si próprios se elaboravam, ampliando seus qua-
ca dos grupos dirigentes; insistindo no relato de eventos políticos, acabam por
reforçar uma periodização tradicional e, evidentemente, plena de repercussões
e poder, além de insistir na continuidade inevitável e mecânica entre o período !59 Antonio Gramsci — Antologia. México, 1970, p. 491.
colonial e o período imperial. 160 Visconde de Mauá — Autobiografia Rio de Janeiro, 1942, p. 127, nota 33.

156 157
j

y
dros e suas perspectivas, por meio de uma operação que consiste na do Estado imperial. Ora, a consideração da relação entre as idéias
transformação daqueles nascidos na esfera da vida econômica e, até e as forças sociais que as sustentam, neste momento, significa uma
então, a ela ligados de modo quase exclusivo, fazendo de cada qual inflexão na exposição que vimos desenvolvendo, significa realizar
um elemento qualificado, em seu respectivo lugar, para uma direção uma passagem que nos impõe, de imediato, uma observação e um
e uma organização que estão pressupostos no desenvolvimento de procedimento.
uma sociedade que faz parte do conjunto das “Nações Civilizadas”. Quanto à observação, a relação que ora propomos significa ter em
Os Saquaremas não são, deste modo, apenas a alma da Reação conta que, muito provavelmente, sem a pressão das forças sociais as
monárquica, confundida com a força. Eles são também os constru- idéias teriam morrido em seu próprio nascedouro; significa também
tores da Transação norteadores de um consenso cujo perfil já se
, considerar que essas mesmas forças se não revestidas de idéias per-
delineia naquele momento intermediário identificado por J. J. da maneceriam destituídas de orientação, não tomariam consciência de
Rocha. Aqui também não se trata de pensar em termos de uma seus conflitos, não se constituiriam em sujeito de sua ação.
sucessão o texto clássico do jornalista conservador, e sim de buscar No que diz respeito ao procedimento, consiste em recuperar o con-
compreender o equilíbrio instável e contraditório entre força e con- junto de informações que reunimos na Primeira Parte, em particular
senso que permite a difusão do princípio monárquico, desde o final sob o conceito de região.
da regência de Feijó. 161 Voltemos, pois, a colocar em evidência a região.
Em contrapartida, os Liberais não conseguem estar no governo do Acreditamos ser dispensável, neste momento, a repetição das razões
Estado porque insistem em privilegiar o governo da Casa, e ao fazê-lo que tornavam a região de agricultura mercantil-escravista a mais
distinguem-se tanto por uma negatividade quanto por um embaraço. destacada das regiões geradas pelo processo de colonização. Acredita-
Negavam o Poder —
tanto o do Imperador, titular do Poder mos também não ser necessário retomar o conjunto de diferenciações
Moderador, quanto o de seus Ministros, qcupantes do Poder Execu- que assinalam a região em questão desde o segundo momento que
tivo; negavam o elemento português —
visto como retrógrado, reco- consideramos, diferenciações essas que conduzem a classificações: de
lonizador e açambarcador do comércio a retalho, do que resultava um lado, as lavouras “do Norte” em contraste com as “do Sul” —
tanto o desemprego da plebe urbana quanto a elevação do custo de ou, como parte significativa da historiografia ainda hoje anota, as
vida, particularmente dos gêneros de primeira necessidade; negavam “lavouras tradicionais” contrastando com a “nova lavoura de outro,
os Regressistas —
vistos como os propiciadores do estreitamento do
;

e tendo como critério o destino da produção, a distinção entre as la-


círculo das garantias individuais; poderíamos dizer ainda, e por vouras produtoras de gêneros para o mercado externo e aquelas
certo não incorreríamos em equívoco, que se acusados de negar a outras vinculadas ao abastecimento do mercado interno, em especial
escravidão, em meados do século, muitos dentre eles responderiam o da Corte, e entre as quais sobressaíam as localizadas no Sul de
com mesmas palavras dos revolucionários pernambucanos de
as Minas e na Zona da Mata, desde o declínio da atividade mineradora
1817: “Perdoamos uma suspeita que nos honra!” (cf. Parte I, item 2).
Se eram afirmativos, embaraçavam-se na questão da Igualdade. Resumindo, teríamos:
Então, os Liberais não apenas se dividiam; refluíam para os limites
da Casa, onde exerciam uma dominação, comportando-se como
j para o conjunto do território do Inpério
despotés.
Região de Agricultura Mercantil- Demais Regiões =
0privilegiamento da Casa, contudo, resultava também da situa-
Escravista = CIVILIZAÇÃO * BARBÁRIE
ção e da posição das forças que buscavam representar na correlação
(Litoral) (“Sertão”)
contraditória que definia o equilíbrio da conjuntura da consolidação

ii) no interior da Região de Agricultura Mercantil-Escravista:


Lavouras voltadas para o mercado Lavouras com pro-
161 “No longo e importantíssimo período histórico que vamos perpassar
[o triunfo monárquico], nem sempre estiveram no governo os homens da opinião externo: x dução destinada ao
conservadora, por muitos anos o poder foi dado aos seus adversários, aos liberais: — “tradicionais” mercado interno
e entretanto a obra da reação monárquica continuou, por eles próprios servida
ou auxiliada” — Justiniano José da Rocha — Op cií., p. 200.
.
— “novas”
158 159
Podemos, agora, animar este esquema, caso recuperemos o pro- ção Farroupilha, na memória das forças liberais —
é a expressão do
cesso de individuação do “Sul” dentro da Região de Agricultura desenvolvimento particular da província, como lembra Fernando
Mercantil-Escravista e de todo o Império, processo esse que se rela- Henrique Cardoso, pois se no plano econômico a lenta reorganiza-
ciona, ao mesmo tempo que se aprofunda, à medida que a moeda ção das atividades econômicas encaminhou-se no sentido de trans-
colonial está em restauração, pondo em destaque a Coroa, confor- formar a economia local, baseada na produção do charque, em sub-
me já sabemos. Ora, a Coroa aparece, então, como a propiciadora sidiária da Região de Agricultura Mercantil-Escravista, em especial
tanto da fusão de antigos colonizadores e colonos, por meio da asso- do segmento cafeeiro em plena expansão, no plano social e político
ciação entre negócios e política, quanto da construção do “novo a prosperidade econômica serviu de base para a formação de uma
pacto colonial”, expressão da preeminência britânica. camada social nova que passou a exigir participação na vida políti-
162 Premidos
Defrontando-se com aqueles processos em sua cotidianidade, as ca e controle das decisões que afetavam a província.
forças sociais que se faziam representar pelos Liberais — localiza- pela concorrência do charque platino, os Liberais sulinos pegaram
das dentro da região e fora dela — tenderam dubiedade, em
a uma em armas, antes de tudo, por negarem a política tributária do Im-
que pese o papel aglutinador e transformador exercido por seus re- pério, à qual imputavam a razão de suas dificuldades. A proclama-
presentantes, que colocavam para elas a questão crucial do Estado. ção de repúblicas independentes atestava, sem dúvida, uma potên-
Tentavam restaurar em proveito próprio a unidade dos diferentes cia militar; não deixava de sublinhar, contudo, uma incapacidade
aspectos do capital comercial, imposta pelo modo como ele exercia de unir seus propósitos aos dos demais Liberais localizados quase
sua dominância na economia do Império, ou negando o papel do sempre no interior da região a que se vinculavam cada vez mais
antigo colonizador, até mesmo porque esse parecia se perpetuar nos em termos estritamente comerciais. E tal fato transparece na opinião
“portugueses” que controlavam o Paço, ou ambicionando exercê-lo do liberal Feijó, manifestada em dezembro de 1835:
com exclusividade, isto é, assumindo o controle do pólo dominante
da relação que o sistema colonial engendrara, e que, agora, se rede- “0 que mais me assusta é o Rio Grande. Vai-me pare-
. .

finia em proveito dos interesses britânicos. cendo inevitável a separação da Província”. . .

Empunhando do nativismo e da liberdade, os Li-


as bandeiras
berais denunciavam todos os atos e medidas que atestavam a fusão Ora, tal opinião contrastava com a posição do saquarema Paulino
dos antigos monopolizadores, colonos e colonizadores, e que se ser- Soares de Sousa, que em discurso na Câmara dos Deputados em
viam das benesses da Coroa. Se conseguiam, por vezes, competir 1843 defendia que
com estes últimos vantajosamente pelo controle do mercado interno
de abastecimento, não conseguiam substituí-los, por exemplo, no “se logo que rebentou a rebelião no Rio Grande do Sul se
ramo mais significativo do comércio externo, e o único que restava tivessem aplicado meios eficazes e fortes para a sufocar ter-
aos antigos colonizadores desde a abertura dos portos: o tráfico se-iam evitado o derramamento de muito sangue, muitas
negreiro intercontinental, condição primeira para a expansão de desgraças, os deploráveis resultados que aquela rebelião
suas atividades e monopólios, mas que esbarrava, ainda, nos inte- trouxe consigo para nós, e as enormes despesas que tanto
resses britânicos. Pareciam meio caminho, sempre que pro-
ficar a têm agravado a nossa posição financeira.” 163 ;
curavam estar no governo do Estado: haviam sacudido o jugo me-
tropolitano, mas não conseguiam unir à sua representação nem os ii ) os interesses ligados à expansão açucareira na Capitania,
diferentes segmentos da classe senhorial em constituição, nem os logo depois Província, de São Paulo; aqueles elementos ligados à
demais elementos livres da sociedade, porque ao invés de soldá-los produção de gêneros alimentícios e à criação de animais no Sul de
por meio da referência à oposição à massa de escravos, insistiam
em dividi-los por meio da clivagem de cunho nati vista.
Refluíam para a Casa, buscando garantir-lhe a Liberdade, e des- 162 Fernando Henrique Cardoso — Capitalismo e escravidão no Brasil Me-
de ali se apresentavam: ridional.São Paulo, 1962, especialmente pp. 169-185.

i) fora dos limites da região, os farrapos talvez constituam o


163 Trechos transcritos de Sérgio Buarque de Holanda (dir.) —
História
geral da civilização brasileira , tomo II, “0 Brasil Monárquico”, vol. 2, “Dis-
exemplo mais característico. A luta que desencadeiam —
a Revolu- persão e unidade”. São Paulo, 1964, respectivamente, pp. 51 e 465.

160 161
.

Minas e na Zona da Mata para o abastecimento do mercado da ci- lerado avanço destes à consolidação junto à Corte dos interesses dos
dade do Rio de Janeiro; alguns daqueles plantadores escravistas traficantes negreiros. Teofilo Gtôni denunciaria que
de café no curso médio do Paraíba que haviam reivindicado, ainda
em 1829, a formação da Província de Resende, e tentariam treze “fora do parlamento, não se descuidavam os oligarcas de
anos depois aderir ao movimento de Minas Gerais; os setores que aviventar a fé dos traficantes da costa d*Ãfrica, que eram
compunham a ala urbana do Partido da Praia em Pernambuco, os seus mais prestimosos aliados. Neste ponto, o arrojo tocou
opostos ao pequeno contingente que formava a ala agrária, liderada a meta do delírio, e, para dar arras de sua adesão ao tráfico,
por Holanda Cavalcanti, e que tendia a compor com o Partido Con- ura senador do Império fez entrada triunfal em uma povoa-
servador na província; os numerosos interesses escravistas na Pro- ção importante da província do Rio, escoltando uma ponta
víncia de Minas Gerais, em expansão na primeira metade do século, de moleques de tanga e barrete vermelho, em um domingo,
embora não vinculados à grande lavoura destinada à exportação — à hora em que o povo estava reunido para ouvir a missa
eis os principais contingentes liberais dentro da região de agricultura
conventual,” 165
mercantil-escravista 164 ,

Apresentando sempre uma grande dificuldade em unir suas for- Não se conclua, todavia, da denúncia de Otôni e de muitos
ças, as trajetórias dos diferentes segmentos liberais seriam marcada-
outros depoimentos semelhantes que os Liberais se opunham à escra-
mente diferenciadas. vidão ou mais particularmente ao tráfico negreiro. Não obstante,
Tomemos como exemplo aqueles interesses localizados na provín- podemos concluir que nao deixavam de diagnosticar com exatidão a
cia paulista, e que se haviam consolidado a partir da expansão
aliança entre os Saquaremas e os traficantes negreiros, ramo mais
canavieira e das lutas pela emancipação política. De acordo com significativo dos antigos colonizadores, a relação entre a ação dos
Sérgio Buarque de Holanda, à medida que avançamos pela primeira
Saquaremas e a política de Estado escravista que estava implícita
metade do século, e fica caracterizado o retrocesso da lavoura açu- na consolidação do Estado imperial*
4
careira e a correlata expansão cafeeira, ocorre ‘substituição para-
Ao defenderem a Liberdade da Casa, os Liberais defendiam so-
lela na conduzindo à adesão ao Regresso
política”, —
o elemento
bretudo a liberdade do senhor —
enquanto um despotés no go- —
principal neste novo momento será José da Costa Carvalho, Barão verno da escravidão e de participação no tráfico negreiro, sem a
de Monte Alegre, e casado com a viúva do Brigadeiro Luís Antônio ingerência britânica e sem o privilégio dos antigos colonizadores,
de Sousa —
e ao isolamento crescente dos representantes do Velho
'
*

agora ligados â Coroa. Nas praias de Mangaratiba e da Marambaia,


liberalismo paulista”, isolamento esse que culminaria na aventura
o Comendador Joaquim José de Sousa Breves recebia os lotes de
desastrosa de 1842. As mortes de Feijó em 1843, de Martim Fran-
escravos que mandara bnscar nas costas africanas, deixando apreen-
cisco no ano seguinte, seguidas das de Antônio Carlos e Álvares
sivas as autoridades imperiais e provocando medidas repressivas,
Machado em 1845 e 1346, respectivamente, fariam de Vergueiro e especialmente após 18 50. 166 Para as Minas Gerais, no decorrer de
Paula Sousa os últimos representantes de uma tradição que se
todo o século, teriam afluído levas crescentes de negros escravos,
esfuma*
vindos de outros pontos do Império e da própria África, contrarian-
Procuram construir uma unidade, por meio da negação das pro- do assim, de acordo com o estudo de Roberto Martins, a opinião
postas dos Saquaremas. Insistem em relacionar o progressivo e ace-
corrente na produção historiogrãfica de que aquela província fora
fornecedora de mão-de-obra para outras áreas, especialmente a

A produção historiográíica sobre esses diferentes segmentos é estrema-


mente variada, em termos quantitativos e sobretudo analíticos. Apenas como
indicação, e seguindo a ordem da exposição, cf, Sérgio Buarque de Holanda — — ‘'Circular dedicada aos srs. eleitores de senadores
“São Paulo", op. cit*; Alcir Lenbaro — Âs tropas da moderação, op, rit*; Sérgio
lí* 5 Cf. Teófilo ültoni
pela província de Minas Gerais no quatriênio atual e especialmente dirigida aos
Buarque de Holanda —
Vate do Paraíba. Velhas fazendas, op. cit.; Izabel Andra^ srs. eleitores de deputados pelo 2* distrito eleitoral da mesma província para a
de Marson —
Mooíirtenlo Praieiro. Imprensa, ideologia e poder político. São
próxima Paulo Pinheiro Chagas — Teófilo Ottoni
Paulo, 1980; Roberto B. Martins — A economia escravista de Minas Gerais no
legislatura"
ministro do povo 3,"
(1860), in
edição. Belo Horizonte. 1978, p. 73.

.

século XIX Belo Horizonte, 1980.


,
ÁN. Tráfico de africanos — IJ* 470, 472, 521 « 522.

162 163
cafeeira. 167 Todavia, tão importante quanto esta conclusão é estar- como antigos colonos, procurando agir fora do controle da Coroa,
mos atentos para a denúncia referente ao tráfico negreiro, feita como era o caso do Comendador Breves, mas se permite a atuação
pelo jornal 0 Universal de Ouro Preto, ainda em 1835, e ao qual de João Neto Carneiro Leme, tio e sogro de Honório Hermeto Car-
se ligava Bernardo Pereira de Vasconcelos, de que “nem os seus neiro Leão, Marquês do Paraná, o qual comprava negros no cais
condutores procurem apresentar nos distritos, por onde passam, os do Valongo e os revendia à lavoura do Vale em franca expansão.
seus despachos aos Juízes de Paz como encarregados da Polícia, e Por isso também, aos praieiros foi interditado o acesso aos cargos
sem que estes, em razão de seu ofício, procurem conhecer e averi- policiais e políticos locais e da província que permitiriam, sem
guar semelhantes negócios, que não podem deixar de ser criminosos, dúvida, o contrabando de negros, ao mesmo tempo que a reforma
embora apareçam à primeira vista acobertados com alguma capa de do Código do Processo Criminal era efetivada com a finalidade de
legalidade”. 168 Dos praieiros, pode-se dizer, ao menos de sua ala subordinar de maneira estreita a ação judiciária e policial ao Go-
agrária, que foram à revolta na tentativa extrema de controlar os verno-Geral, possibilitando assim que ele exercesse uma fiscalização
governos locais e provincial, os cargos políticos e policiais, de modo sobre os traficantes e atravessadores, embora pudesse permitir
o co-

a poder assegurar a continuidade do contrabando de africanos. 169 mércio negreiro. Por isso ainda, entre 1834 e 1844 a Eusébio de
em 1844, o Diário Novo apregoava que “a Praia é ( )um par-
. . . Queirós Matoso da Câmara coube a chefia da Polícia da Corte, o
tido poderoso, que tem por si quase a unanimidade da província; que lhe permitiu reunir os recursos necessários não apenas para
um partido que absorve em si toda a política livre e nacional; que discriminar entre aqueles que poderiam exercer um monopólio e
nas comarcas tem em seu favor todos os proprietários e senhores de os demais que deveriam ser excluídos, mas também para
promover
engenho, estreitamente ligados contra uma ou outra individualida- o encerramento do tráfico intercontinental em 1850, ocasião
em
um partido que contém tanta ilustração, crédito, força e ri- a pressão britanica
de; que ocupava o cargo de ministro da Justiça e

queza.” 170 atingia níveis intoleráveis, e ainda apresentar tal decisão


como
171
Ilustração, crédito, força e riqueza também distinguem os Sa- fruto da honra e da soberania nacionais.
quaremas, os mais acabados representantes da fusão dos antigos Todavia, os Saquaremas estão no governo do Estado — ligados à

monopolizadores sob o patrocínio da Coroa, no “Sul” do Império. Coroa e, por isso mesmo, num determinado momento, entrando em
Por meio da condução dos negócios do Estado, os Saquaremas se disputa com a facção áulica — não apenas porque se apresentam
ligados àqueles que procuram preservar o monopólio do
apresentam como os preservadores dos monopólios que fundam uma tráfico

classe; por isso mesmo, não deixam de ser também os preservado- negreiro. Mas porque estão também no centro da região principal,

res do monopólio do tráfico. Ora, em que pese o traço defensivo unindo de modo cada vez mais íntimo seus destinos aos da lavoura
que distingue a ação da Coroa como decorrência da restauração em cafeeira expansão. Tomemos, neste ponto, um único exemplo,
em
retirado da correspondência entre o futuro Visconde do Uruguai
curso da moeda colonial, o monopólio não perde sua característica e

elementar: o proveito de alguns, a exclusão de muitos; o enfraque- Francisco Peixoto de Lacerda erneck, We no qual se destaca o
cimento da Casa, o reforço do Estado. E tal característica se apro- esforço do primeiro em ligar, desde 1838, as propostas de sua facção
funda, acirrando os conflitos entre uns e outros, na proporção em aos destinos do Império e os destes aos da lavoura que avançava
que a interdição fundamental que define o escravismo colonial vai pelo Vale,
em processo de redefinição como decorrência da implantação da
ordem capitalista e da preeminência dos interesses britânicos. Por
isso, devem ser excluídos do tráfico todos aqueles que se apresentam

171 “Politicamente, o ano de 1850 é caracterizado por grandes contratempos.


nesse ano que o cruzeiro inglês começa a fazer presas em nossos
portos e
É
167 Cf. Roberto Martins— Op. cit. águas territoriais em cumprimento da Lei Aberdeen, o que mostra que a
Lega-
168 Citado por Marina de Avellar Senna — Compra e venda de escravos ção inglesa estava convencida de que com o Partido Conservador tinham
subido
em Minas Gerais. Belo Horizonte, 1977, p. 109. ao poder os protetores do tráfico e que era preciso fazer maior pressão
sobre
109 Esta é a hipótese central do trabalho de Izabel Marson— Op. cit. (cf. eles do que sobre os Liberais, que tinham provocado no governo o ódio dos
especialmente as pp. 6-7 e 103-111). grandes traficantes”. Joaquim Nabuco — Um estadista do Império ,
op. cit.,
170 Apud Izabel Marson — Op. cit., p. 100. p. 119.

164 165
“pois todo o bom cidadão se deve interessar no negócio da valho, Visconde de Monte Alegre, a que há pouco nos referimos
eleição do Regente porque da boa ou má escolha dependem — quanto os ministros da Justiça, dos Estrangeiros e da Fazenda,

os destinos do país.” 172 respectivamente Eusébio, Paulino e Rodrigues Torres a “trindade
saquarema”.
Algum tempo depois, Paulino voltaria a se dirigir ao Barão do Seria ocioso lembrar também que ao mesmo Rodrigues Torres,
Pati de Alferes para falar das ainda ministro da Fazenda, coube a que considerava
iniciativa,
“necessidade imediata”, de fundir o segundo Banco do Brasil —
“tristes apreensões que me inspira o mau estado das coisas refundado por Mauá e outros “comerciantes e capitalistas”, como
e principalmente da Câmara dos Deputados, onde reconhe- então se dizia, dentre eles Darrigue Faro e Pimenta Bueno, em
cidos demagogos cobertos com a capa da monarquia, para 1851 —
com o Banco Comercial, em 1853, fusão esta que deu
melhor acabarem com a monarquia, somente tratam de exa- origem à denominada terceira fase do Banco do Brasil?
cerbar as paixões, de embaraçar a marcha dos negócios com Ora, este feixe de relações talvez nos permita concluir que os
intermináveis arengas, e parecem querer preparar tudo para Saquaremas não se limitaram, estando no governo do Estado, à
a dissolução da União das províncias.” 173 repressão dos movimentos liberais de 1842. Enquanto foi possível,
buscaram garantir os privilégios dos antigos monopolizadores do
Os Saquaremas se apresentam ligados ainda àqueles que, detento- tráfico negreiro; recorrendo a meios diversos, incentivaram os plan-
res de capital, não apenas cedem os créditos para a expansão agríco- tadores escravistas ligados à expansão cafeeira; por meio de várias
la, mas também promovem o Progresso e possibilitam uma Civili- medidas, incentivaram a expansão dos negócios de “comerciantes
zação. Vejamos um depoimento de Mauá, entre muitos, revelador e capitalistas”.
desta ^ssociação: A partir deste feixe de relações fundamentais, os Saquaremas
levam a cabo expansão. Horizontalmente, confundindo-se com
uma
“Desde que o estabelecimento da Ponta da Areia ficou mon- a constituição da própria classe: de maneira lenta e progressiva, por
tado para produzir em grande escala, havia-me eu aproxi- vezes individualmente e em outras oportunidades por meio dos
mado dos homens de governo do país em demanda de tra- blocos originados das redes de alianças familiares, ocorre a incor-
balho para o estabelecimento industrial, cônscio de que poração de outros monopolizadores, no interior da Região de Agri-
essa proteção era devida, mormente precisando o Estado cultura Mercantil-Escravista — plantadores, negociantes, capitalis-
dos que eram solicitados, em concorrência com
serviços tas — demais regiões do Império
e nas —
como os charqueadores
encomendas que da Europa tinham de ser enviadas, e já sulinos, por exemplo. Verticalmente, confundindo-se com a própria
foi dito quanto o estabelecimento prosperou no período em consolidação do Império: para seus desígnios são atraídos tabeliães,
que essa proteção lhes foi dada. As relações adquiridas médicos, advogados, professores, jornalistas, guarda-livros, caixeiros,
então puseram-me em contacto com quase todos os homens mas sobretudo os contingentes sempre crescentes dos empregados a
eminentes; de quase todos mereci atenções, e de alguns fui serviço do Estado, entre os quais se inclui o funcionalismo leigo e
amigo sincero, merecendo-lhes igual afeto. Em
1851 com- eclesiástico, civil e militar.
175

punha-se o ministério em sua totalidade de homens de Esta- Uma expansão que, partindo do coração da região, reproduz, sob
do que me tinham no mais alto apreço.” 174 o prisma da representação política, a hierarquia presente no inte-
176
rior da região, assim como aquela existente entre as regiões.
Aqueles que no Ministério em 1851 tinham Mauá “no mais alto
apreço”, eram tanto o presidente do Conselho — José da Costa Car-
175 Cf. Joaquim Nabuco — O abolicionismo , op. cit., pp. 162-3.
176 Uma parte da historiografia se aproxima desta conclusão, embora tenha
172 ^47V-Seção de Documentos Históricos, código 112, vol. 4, documento referências distintas. Por não romper com os limites provinciais, José Honório
n.° 76 (25 de março de 1838). Rodrigues conclui que “o comando foi sempre mais mineiro-fluminense que cte
173 Idein, Ibidem, documento n.° 77 (15 de julho de 1840).
homens saídos de outras regiões do país, embora contasse com o apoio auxiliar
174 Visconde de Mauá — Op cit ., pp. 117-8.
.
de baianos e pernambucanos” (“Teses e antiteses da História do Brasil”, in

166 167
mo do pater famílias na vida brasileira”, no decorrer do século
Mas somente conseguem porque estão no governo do
fazê-lo
XIX; ressaltam as “posturas (...) no sentido de limitar os abusos
Estado, reforçando o papel e posição que a restauração da moeda
do particular e da casa e de fixar a importância, a dignidade, os
colonial reserva à Coroa. E a presença dos Saquaremas era tão mar-
direitos da rua, outrora tão por baixo e tão violados”; delineia-se
cante e avassaladora que, por ocasião da eleição de 1860, quando
“o declínio do poder político do particular rico”, em correspondência
são derrotados, Mauá escreveu a um amigo e antigo sócio comen-
com “o aumento de poder político público, encarnado por órgãos
tando que aquele resultado se explicava, antes de tudo, pela 178
judiciais, policiais ou militares ou simplesmente burocráticos”.
Devemos lembrar também que, sob este ponto de vista, e pondo
“ansiedade de governar demais.” 177
em evidência um aspecto particular, uma nova produção vem se
Mas conseguem fazê-lo também porque, estando no governo do
constituindo, privilegiando a política médica —
“conjunto de teo-
rias, políticas e práticas que se aplicam à saúde e bem-estar
da
Estado, conseguem estar no governo da Casa. De modo lento e
progressivo, o monopólio de responsabilidade pelo Soberano vai se
população” —
como o principal meio de introjeção das normas que,
ao lado da Lei, tornam possível a construção de um Estado mo-
impondo: em alguns poucos casos,
ele tende a organizar, dirigir e,
derno. 179
substituir o monopólio sobre os homens e da violência que distin-
Todavia, basta estarmos atentos para a ação dos Saquaremas, a
guira o/éolono.
partir do controle do Executivo, no momento que tradicionalmente
Ora, entender os processos de construção do Estado imperial e
é conhecido como o de “apogeu do Império para perceber e com-
,

de constituição da classe senhorial como processos recíprocos é jus- desempenharam, a


preender o papel de direção e dominação que
tamente compreender esta dupla dimensão do ato de governar, é
organização e a expansão que proporcionaram.
ter em consideração o Estado em suas funções de dominação e de
direção, é conceber a Coroa como um partido.
Em 1843, já o sabemos pelo depoimento de Nabuco, a “trindade
saquarema” possuía “de fato a direção do partido”. Cinco anos
Acreditamos não incorrer em exagero se dissermos que, via de
depois, por meio da formação do gabinete de 29 de setembro, não
regra, a produção historiográfica tende a dissociar ambos os pro-
mais apenas aqueles três, e sim o conjunto dos Saquaremas exerce,
cessos, assim como pouco considera a ação do Estado, direta ou
uma direção sobre os cidadãos ativos do Império, daí transbordando
indiretamente, sobre o governo da Casa. Uma exceção a tal postura
para toda a sociedade.
talvez resida na obra de Gilberto Freire, a qual se apresenta, na
Deste ministério, disse Nabuco que
própria definição do autor, sempre menos preocupada com um
tempo cronológico e muito mais com um “tempo sociológico”. Das
“era um dos mais fortes e homogêneos que o país teve; fazia
páginas de Sobrados e Mocambos emerge a dissolução do “absolutis-
lembrar o de 1837.”

177 Em sua organização inicial, ao Visconde de Olinda coube a pre-


Conciliação e reforma no Brasil. Rio de Janeiro, 1965, p. 116). Por outro lado,
sidência do Conselho e as pastas da Fazenda e dos Estrangeiros; a
por ter como referência que “não há tipos sociais fixos, e sim ambientes sociais
fixos’’, e por concluir que o sertanejo e o gaúcho, representantes respectivos
da sociedade dos sertões e da planície e pampa, são tipos regionais, enquanto o
matuto por ser “homem de formação agrícola” é o único portador de uma his-
178 Gilberto Freyre — Sobrados e mocambos. Desenvolvimento do patriar
a
*

cado rural e desenvolvimento do urbano. 4. edição. Rio de Janeiro, 1968 (os


tória “mais nacional”, Oliveira Viana concluiu ainda que foram “os homens
trechos transcritos encontram-se no tomo I, páginas 122, XXIII e LI, respecti-
saídos dos chapadões do centro-sul e não os saídos do norte e do extremo-sul,
vamente).
os que, depois de 1822, carregaram as maiores responsabilidades na organização
179 Cf., entre outros, os trabalhos de Roberto Machado et al. — Danação
e direção da nacionalidade e dão maiores contingentes ao escol que dirige o país
durante os dois impérios” ( Populações meridionais do Brasil 4. a edição. Rio de da norma — Rio de Janeiro, 1978 e de Jurandir Freire Costa — Ordem médi-
,

Janeiro, 1973). A avaliação crítica da obra de Oliveira Viana foi feita por nós
ca e norma familiar — Rio de Janeiro, 1979. Este último autor sublinha como
in limar Rohloff de Mattos — “O tempo saquarema —
Ação política ex forças
a família patriarcal, “esse potencial de desobediência civil, notavelmente con-
centrado nas redes de relações familiares, vai ser atacado pela propaganda nacio-
sociais na consolidação do Estado Imperial” (projeto de tese mimeo), op. cit., mas
nalista em todo o século XIX. Ataque obviamente comandado por políticos,
pp. 37-40.
Apud Anyda Marchant — “A sorte não o permitiu”, in RIHGB CXCI
,
fortemente auxiliado por literatos e pelos novos agentes de domesticação fami-
liar, os médicos” (p. 62).
91946), 46.

169
168
mais significativos e porter preservado sua orientação. Desses quase
José da Costa Carvalho, Visconde de Monte Alegre, competiu a
Pasta do Império; a Eusébio de Queirós Matoso da Câmara, a da cinco anos de ação governativa e administrativa, resultou a conso-
Justiça; enquanto as pastas da Marinha e da Guerra couberam ao lidação da direção saquarema, que o gabinete seguinte do Marquês
oficial superiordo Exército, Manuel Felizardo de Sousa e Melo. de Paraná —
o Ministério da Conciliação completaria.—
Cerca de um ano depois, o Visconde de Olinda se retiraria do
ministério. Monte Alegre assumiu a presidência do Conselho, “O período da transação está começando; dizei-nos onde
enquanto Paulino e Rodrigues Torres ocuparam as pastas dos param as antigas parcialidades, onde os seus ódios? Já de

Estrangeiros e da Fazenda, respectivamente. Pela primeira e única há muito desapareceram. Em


testemunho disso vede aí que
vez, a “trindade saquarema” ocuparia em conjunto um gabinete palavra puseram por diante os parlamentares, quando se

imperial. Cedamos a palavra, mais uma vez, a Joaquim Nabuco: levantaram contra o ministério que precedeu ao atual? A
conciliação. E esse mesmo ministério, como o seu predeces-
“Com a retirada de Olinda a coesão se firmou ainda mais. sor, como o seu que tendências mostravam senão
sucessor,
Olinda não podia ser chefe de chefes, nem servir com o Im- as de uma conciliação que ao menos quanto aos indivíduos,
perador senão pouco tempo; faltava-lhe a flexibilidade pre- punha em perfeito olvido todo o passado? E que movimento
cisa para ceder. Ele tinha em tudo idéias próprias, senti- social era esse que todos os políticos pressentiam, a que
mentos ou antes preconceitos que ninguém podia modificar. obedeciam, que lhes fazia abandonar as suas posições de
(...) Não podia exercer o comando por se sentir (...) vencedores, senão o resultado da convicção íntima do país
homem de outra época.” de que estavam extintas todas as paixões, acabadas todas as
lutas do passado? E essa extinção das paixões, esse esqueci-
A coesão do ministério —
que sublinhava o perfil de Olinda mento de ódios, o que são senão os sintomas evidentes de
como “homem de outra época” —
se completava com a homoge-
que a sociedade tem chegado a esse período feliz de calma
neidade da Câmara, a qual não apenas respondia aos anseios de e de reflexão que pode e deve ser aproveitado para a grande
Paulino, frisados acima, de ter uma maioria forte e uma vontade obra da transação?” 181 ,

decidida e firme. Ela também timbrava uma nova orientação:

comentava J. J. da Rocha, temperando esperanças e temores nas


“A sessão abriu-se em de janeiro de 1850. Era uma Câ-
l.°
frases finais de seu opúsculo, numa expressão viva do equilíbrio
mara conservadora, tendo apenas para quebrar a unanimi-
instável entre força e persuasão.
dade a figura de Sousa Franco. A Câmara para Nabuco
era muito diferente já da de 1843. (...) Ouvia-se apenas
Com efeito, ao gabinete de 29 de setembro de 1848 coube tanto
reprimir o movimento praieiro quanto reformar a Guarda Nacional,
de vez em quando alguma voz do puro timbre antigo, como
a de Maciel Monteiro, que recordava os dias da Regência;
em 1850. E se, por um lado, esta reforma tinha como finalidades
subordiná-la ao Ministério da Justiça e aos presidentes de províncias
os sobreviventes do primeiro reinado, como Abrantes, Olin-
e reafirmar uma hierarquização no interior da corporação por meio
da, estavam no Senado; a Câmara era toda segundo reinado,
da nomeação para os postos da oficialidade, o que rompia com o
os moços que tinham começado depois da Maioridade, repre-
mito da democracia que a lei de criação forjara ao determinar uma
sentavam os primeiros papéis.” 180
elegibilidade, de outro ela reforçava as linhas que separavam os
Ao período de governo do gabinete de 29 de setembro de 1848 — “mundos” da sociedade imperial por meio tanto da ênfase na fun-
o qual era, então, o de mais longa duração da Monarquia, pois ape- ção ritualítisca e no papel organizativo de uma instituição “cuja
nas três haviam ultrapassado dois anos de duração, desde a Inde- missão é mais elevada” justamente porque formada por cidadãos
pendência —podemos ajuntar o do gabinete de 11 de maio de ativos, quanto da proposição de utilizar aqueles “cidadãos que não
podem ser guardas nacionais”, mas que poderiam engrossar o mun-
1852 que lhe sucedeu, por ter conservado três de seus membros

*80 Joaquim Nabuco — Um estadista do Império, op. cit., p. 118. 181 Justiniano José da Rocha — Op. cit., p. 216.

170 171
li

do da desordem, nas funções repressivas que competiam às institui- n.° 601, de 19 de abril de 1849) e da Armada (Decreto n.° 739,
ções policiais. 182 de 25 de novembro de 1850); uma comissão de melhoramentos do
Se atos de cunho repressivo, como o Decreto n.° 708, de 14 de material do Exército foi criada (Decreto n.° 663, de 24 de dezembro
outubro de 1850, assinado pelo ministro da Justiça, estabelecendo de 1849); foi regulado o acesso aos postos de oficiais das diferentes
medidas para a extinção do tráfico negreiro intercontinental, ca- armas do Exército (Lei n.° 585, de 6 de setembro de 1850); uma
racterizavam uma destruição, medidas como a Lei n.° 601, de 18 de escola de exercícios práticos de artilharia e de outras armas para o
setembro de 1850, que dispunha sobre as terras devolutas do Impé- Corpo de Imperiais Marinheiros foi estabelecida (Decreto n.° 713,
rio e sobre as que eram possuídas por título de sesmarias, se cons- de 18 de outubro de 1850); foram determinadas as penas e o pro-
tituíam, por sua vez, num esforço de construção, ao propor uma cesso para alguns crimes militares (Lei n.° 631, de 18 de setembro
organização que se desdobrava ainda na definição de uma política de 1851); e um curso de infantaria e cavalaria foi criado na Pro-
de colonização, como é possível perceber no Decreto n.° 537, de 15 víncia do Rio Grande do Sul (Decreto n.° 634, de 20 de setembro
de maio de 1850, que aprovava o contrato celebrado com a socie- de 1851).
dade colonizadora de Hamburgo para a fundação de uma colônia Diz ainda J. J. da Rocha que naquele mesmo momento de triun-
agrícola em terras pertencentes ao dote da Princesa Dona Francisca, fo monárquico, “o juiz municipal, o juiz de órfãos, o promotor
em Santa Catarina. público cessaram de ser escolhas da câmara municipal; foram esco-
Ao mesmo tempo em que eram levadas a cabo as intervenções lhas do governo: o juiz de paz eletivo cedeu as suas atribuições
contra Oribe e Rosas, reafirmando a opinião de Mauá de que “o policiais e a sua jurisdição criminal a delegados e subdelegados,
Brasil tem o dever de exercer no Rio da Prata a influência que tiomeados, demitidos a arbítrio do governo; (...) o júri viu cer-
lhe dá direito sua posição de primeira potência na América do ceada a sua jurisdição em um grande número de casos”. 184 Agora,
Sul”, o ministro dos Estrangeiros, Paulino José Soares de Sousa, completava-se a obra de reforma do Código de Processo Criminal,
organizava o corpo diplomático brasileiro, por meio da Lei n.° 614, imprimindo-se-lhe maior organicidade: pelo Regulamento n.° 624,
de 22 de agosto de 1851, enquanto o Decreto n.° 855, de 8 de no- de 29 de junho de 1849, ficava estabelecida a maneira pela qual
vembro do mesmo ano, regulava as isenções e instruções dos agentes no Supremo Tribunal de Justiça se devia verificar a antigüidade
consulares no Império e o modo como deveriam proceder na arreca- dos magistrados; o Decreto n.° 559, de 28 de junho de 1850, mar-
dação e administração das heranças dos súditos de suas nações dado cava as classes em que ficavam divididas as comarcas do Império
o caso de reciprocidade. e os casos em que podiam ser removidos os juízes de Direito; o
Medidas eram tomadas objetivando uma melhor eficácia dos Decreto n.° 887, de 26 de julho de 1850, estabelecia regra sobre
aparelhos de coerção. Assinalara J. J. da Rocha que no momento as nomeações, remoções e vencimentos dos juízes de Direito, e
do triunfo monárquico “as necessidades das guerras intestinas em classificação das comarcas nas três diferentes entrâncias; enquanto
permanência trouxeram a restauração do exército de linha, consti- o Decreto n.° 707, de 9 de outubro de 1850, regulava o modo como
tuído sobre bases mais seguras e depuradas; a marinha foi igual- deviam ser processados pelos juízes municipais e julgados pelos de
mente restaurada: e tanto esta como aquele compreenderam e de- Direito os crimes referentes ao tráfico ilícito de negros escravos.
sempenharam o seu dever na defesa da ordem pública”. 183 Agora, Em paralelo, houve um esforço — frustrado por manifestações
tratava-se de melhor organizá-los: foram estabelecidas as regras por de protesto surgidas em diversos pontos do Império — para melhor
que deveriam ser feitas as promoções nos diferentes corpos do Exér- conhecer a população do Império (Decreto n.° 797, de 18 de junho
cito (Decreto n.° 572, de 9 de janeiro de 1849); foi aprovado o de 1851, mandando executar o regulamento para organização do
plano para a organização do corpo de saúde do Exército (Decreto censo geral do Império; Decreto n.° 798, da mesma data, mandando
executar o regulamento do registro dos nascimentos e óbitos; e
Decreto n.° 907, de 29 de janeiro de 1852, suspendendo a execução

182 A opinião é do bacharel Antônio Manuel de Campos Melo, deputado pela


Província de São Paulo, por ocasião da discussão da reforma da Guarda Nacio-
nal, em 1846. APB. Sessão de 28 de julho de 1846, p. 159.

183 Justiniano José da Rocha
Óp. cit., p. 208. 184 Idem, Ibidem, p. 206.

172 173
dos dois regulamentos), esforço esse que se orientava, em larga de Minas Gerais e São Paulo (Decreto n.° 641, de 26 de junho de
medida, pelo trabalho levado a efeito, em 1847, por Roberto Jorge 1852), e a Irineu Evangelista de Sousa privilégio exclusivo por dez
Haddock Lobo na Corte. 185 anos para navegação por vapor entre a cidade do Rio de Janeiro e
Ocorreu também a tentativa de melhor organizar a divisão admi- o porto da Estrela, onde começaria o caminho de ferro que ele se
nistrativa do Império, por meio da elevação da comarca do Alto propunha construir até a raiz da serra (Decreto n.° 987, de 12 de
Amazonas, na Província do Grão-Pará, à categoria de província, junho de 1852), o privilégio exclusivo por trinta anos para nave-
com a denominação de Província do Amazonas (Lei n.° 582, de 5 gação a vapor no rio Amazonas (Decreto n.° 1.037, de 30 de
de setembro de 1850). agosto de 1852) e o privilégio exclusivo por oitenta anos para a
Por outro lado, um conjunto de medidas administrativas buscava construção de uma estrada de ferro de Petrópolis até o rio Paraíba,
incentivar a expansão dos negócios e assegurar o fluxo de recursos nas imediações do porto denominado Três Barras e daí até o porto
para o Tesouro, cujas necessidades financeiras cresciam em para- Novo da Cunha (Decreto n.° 1.088, de 13 de dezembro de 1852).
lelo à organização a que os Saquaremas se propunham e à Coroa Joaquim Nabuco comentara que “as Faculdades de Direito eram
competia. Impulsionou-se a atividade comercial por meio do esta- as ante-salas da Câmara”. Podemos acrescentar que, além de centros
belecimento das regras para a incorporação de quaisquer sociedades formadores de dirigentes políticos, eram também geradoras de agen-
anônimas (Decreto n.° 575, de 10 de janeiro de 1849) e da pro- tes da administração imperial, ou seja, dos elementos que, de acordo
mulgação do Código Comercial do Império do Brasil (Lei n.° 556, com o Visconde do Uruguai, punham o Poder Executivo “em con-
de 25 de junho de 1850); e também os seus agentes, através dos tacto com os particulares, que lhes transmite as suas ordens, que
decretos n.° 648, de 10 de novembro de 1849, que mandava execu- estuda as suas necessidades e recebe as suas reclamações”. 186 O
tar o regulamento sobre corretores, e n.° 806, de 26 de julho de
Decreto n.° 608, de 16 de agosto de 1851, autorizava o governo a dar
1851, que estabelecia o regimento para os corretores da praça do novos estatutos aos cursos jurídicos, assim como a criar as cadeiras
comércio do Rio de Janeiro. Medidas procurando regulamentar o
meio circulante — como o Decreto n.° 625, de 28 de julho de 1849,
de Direito Administrativo e Direito Romano.
devia-se proceder à “difusão das luzes” pelo conjunto dos
Ao mesmo tempo,
homens
marcando o peso, toque e valores das moedas de ouro e prata que
livres, operando uma civilidade e marcando uma distinção, através
haviam sido cunhadas desde 1847, e a Lei n.° 542, de 31 de maio
do ensino primário e secundário, que o Decreto n.° 630 (17 de
de 1850, autorizando o Governo para substituir algumas ou todas
setembro de 1851) reformava no município da Corte, por exemplo.
as classes de valores de papel que serviam de meio circulante por
notas de giro limitado — animavam os negócios, o mesmo se po- Das relações entre uma política médica e a ampliação dos pode-
dendo dizer do Decreto n.° 801, de 2 de julho de 1851, que autori- res do Estado nos falam, nos termos que vimos aqui tratando, tanto

zava a organização do Banco do Brasil e aprovava seus estatutos. A o Decreto n.° 598, de 14 de setembro de 1850, que concedia ao

redução a 5%da taxa de direitos de exportação (Decreto n.° 1.133, ministro do Império um crédito extraordinário de duzentos contos
de 23 de março de 1853) beneficiava a todos que monopolizavam de réis para ser despendido com os trabalhos de melhoramento
os negócios relacionados à lavoura para exportação, penalizando o sanitário da capital e das outras povoações do Império, e o Decreto
Tesouro, o qual buscara uma compensação por meio da reforma do n.° 583, de 5 de setembro de 1850, mandando executar a resolução
Tesouro Público Nacional e da Tesouraria de Fazenda (Decreto legislativa que autorizava o Governo para determinar o número e
n.° 736, de 20 de novembro de 1850). Por meio de uma ação dis- localidades dos cemitérios públicos que convinha estabelecer nos
criminatória, a Coroa desenvolveu os meios de transporte ao conce- subúrbios do Rio de Janeiro, entre outras medidas administrativas,
der a uma ou mais companhias a construção total ou parcial de quanto o papel desempenhado pelo Dr. Jobim, médico do Paço e
um caminho de ferro, unindo o município da Corte às províncias da Faculdade de Medicina, que não só mantinha relações de ami-

185 Cf. Roberto Jorge Haddock Lobo — Reflexões acerca da mortalidade 186 Visconde do Uruguai — Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de
na cidade do Rio de Janeiro em todo o ano de 1847. Rio de Janeiro, 1848. Janeiro, 1862, p. 23.

174 175
,

zade
ricórdia,
com José Clemente Pereira, diretor da Santa Casa de Mise-
como também se associava aos Saquaremas.
187
te, O Verdadeiro Regenerador, O Espelho e O Eleitor , classifi- —
cados significativamente por J. J. da Rocha como ressurreições de
Assinalemos, por fim, o aprofundamento de uma política de O Repúblico, surgido na Corte em 1830 em oposição ao primeiro
Estado objetivando organizar a escravidão, e que se explicitava, imperador. 188
entre outras medidas, nos diferentes Avisos do ministro da Justiça: Se a O Brasil competia travar uma guerra sem tréguas contra
o de 9 de agosto de 1850 refere-se à substituição da pena de galés não lhe era reservada, contudo, a exclusivi-
os adversários liberais,
temporária pela de prisão com trabalho; o de 14 de fevereiro de dade da difusão do princípio conservador. Quase que inteiramente
1851 disciplina a aplicação da pena de morte instituída pela Lei alheio às paixões e disputas partidárias, mas difundindo opiniões
n.° 4 de 10 de junho de 1835; o de n.° 263, de 25 de novembro e valores que agiam e reagiam sobre a sociedade, o Jornal do Co-
de 1852, diz respeito ao modo como proceder com os escravos que mércio ganhava um prestígio crescente, em especial junto à “boa
depusessem em juízo contra os seus senhores; e o de n.° 264, de sociedade”. Dizendo que a ele se pode aplicar com absoluta justiça
27 de novembro do mesmo ano, sobre a não permissão de recurso a expressão “quarto poder”, Alcindo Guanabara destacaria que o
por parte dos escravos no caso de assassínio de seu senhor e de insur- Jornal do Comércio “não é partidário, mas pesa deliberadamente
reição —uma política que não impedia que as contradições entre na concha das instituições. É conservador, nesse sentido; é mode-
o proprietário e o governo se manifestassem, no momento de crise rado, em todos os sentidos”. 189
da instituição escravista. Mas, retornemos ao ministério de 29 de setembro de 1848.
Esta pletora de leis, decretos, regulamentos, decisões, avisos, regi- Do pedido de demissão que seus membros encaminhariam cole-
mentos e outras normas jurídicas não deixa de caracterizar tam- tivamente em novembro de 1851, e que só seria aceito pelo impe-
bém, como em outras sociedades, a prevalência de um princípio rador quase seis meses depois, é possível extrair tanto o balanço de
conservador. Ela não esgota, todavia, os meios pelos quais os
uma
uma proposta de direção —
e, a esse respeito, não deixa de ser
Saquaremas exerciam uma direção e efetivavam centralização. significativo que não se faça qualquer referência ao movimento
Ora, nesta construção, em que força e consenso se apresentam praieiro, embora se mencione a época revolucionária vivida pelo
lado a lado, um papel significativo foi desempenhado ainda pela mundo, aconselhando a que “em vez de irritar, convém acalmar”
imprensa.
em meados
de 1840 cada vez
— quanto as razões que conduzem àquele pedido, as quais se con-
Para fazer frente aos Liberais, que sideram as forças adversárias não deixam também de avaliar a
mais se engajavam na campanha pela antecipação da Maioridade, composição dos próprios Saquaremas.
o futuro Visconde do Uruguai propôs, no curto intervalo de tempo Tendo como um suposto que
em que fez parte do ministério de 19 de setembro de 1837 diri-
gido por Vasconcelos, a criação de uma folha que explicasse e “há, em todos os partidos, muitos homens que os seguem,
defendesse os atos do governo, contrabalançando as críticas da opo- não por convicções e princípios, mas por paixão ou conve-
sição. Para tanto, convocou Justiniano José da Rocha e Firmino niência”, 190
Rodrigues Silva, de cujas penas conservadoras emergeria O Brasil.
Por mais de uma década, combates intensos foram travados em
188 Cf. José Antonio Soares de Souza —
A vida do Visconde do Uruguai.
suas páginas: contra os liberais maioristas, que se apresentavam São Paulo, 1944, pp. 91-94; Nelson Werneck Sodré —
A história da imprensa
por intermédio d’0 Despertador num primeiro momento; contra no Brasil. Rio de Janeiro, 1966, p. 153-210; e Nelson Lage Mascarenhas —
as proposições de Francisco de Sales Torres Homem, logo depois; Um jornalista do Império (Firmino Rodrigues Silva). São Paulo, 1961. João
contra os diversos jornais e pasquins lançados por Borges da Fon-
Francisco Lisboa faz uma interessante descrição da imprensa —
“outro grande

seca, em Pernambuco, enltre 1843 e 1848 —


O Nazareno O Fogue-
instrumento que nossos partidos manejam de contínuo” —
em “Partidos e
,
eleições no Maranhão” in Obras escolhidas. Sobre as denúncias liberais a res-
peito das “relações financeiras” entre os políticos saquaremas e os redatores
d’0 Brasil cf. Joaquim Nabuco
, —
Um estadista do Império op. cit., pp. ,

184-185.
187 Cf. Paulo Pereira Castro — “Política administração
e de 1840 a 1848”, 189 Apud Nelson Werneck Sodré — A da imprensa no
in Sérgio Buarque de Holanda (dir.) — História da
geral civilização brasileira. op. cit., p. 218.
história Brasil ,

São Paulo, 1964, tomo II, voll. 2, p. 538. 199 Arquivo do Museu Imperial de Petrópolis, março 116, n.° 5.771.

176
177
aqueles que então entregavam seus cargos — no que eram viva- Nestes termos, a colocação em destaque da Coroa permitia ope-
mente reprochados por Honório Hermeto Carneiro Leão 191 — rar com as clivagens que resultavam não só em posições partidárias
sustentavam que entre os Saquaremas que haviam apoiado o minis- distintas, mas também com aquelas permaneciam no
outras que
tério no momento de sua ascensão encontravam-se interior de um
agrupamento privilegiado, com o objetivo de elimi-
ná-las. No novo conjunto que se esperava constituir, a partir de
“alguns pelo natural desejo de vingança, outros pelo de uma nova distinção entre dirigentes e dirigidos, se tornaria possível
verem consolidado o domínio de suas idéias, outros por que- exercer também a relação entre governantes e governados.
rerem recuperar as posições que ocupavam. (...) Não Resultando também da restauração em curso da moeda colonial,
faltou quem esperasse e reclamasse uma inversão nas posi- esta colocação em evidência da Coroa conduz à projeção da figura
ções oficiais igual àquela que havia feito o Ministério de do imperador, a qual eclipsa cada um dos Saquaremas, no mesmo
2 de fevereiro.” movimento. E, deste modo, se constitui na maneira mais adequada
para aperfeiçoar os dirigentes —
a “elite imperial” e sua capa- —
Ora, desta avaliação emerge, de um lado, uma constatação: os cidade de direção, de tal modo que evitem imaginar que a ação que
Saquaremas não se restringem à “trindade”, já tantas vezes men- desempenham se explica e justifica por si mesma, ignorando os
cionada, ou mesmo ao conjunto dos políticos do Partido Conser- interesses imediatos daqueles que representam. Constitui-se ainda
vador, que dela se aproxima ou afasta em determinadas circuns- no modo de conduzir uma Transação, por meio da superposição
tâncias.Os Saquaremas se espalham desde a Corte, passando pela da Razão às Paixões, a qual permite apresentar os interesses de um
Província do Rio de Janeiro, por toda a superfície do Império, evi- segmento da classe como os interesses de toda a classe, de uma parte
denciando seus interesses imediatos e proclamando suas idéias. da região como o de toda a região e o das demais regiões, além de
Emerge, de outro, uma nova proposição, que reserva ao imperador fazer com que os demais homens livres tomem sempre o imperador
e à Coroa uma posição privilegiada, porque neutra e capaz de não e o Império como referências, quer a ambos adiram, quer a eles
se deixar levar pelos sentimentos de reação ou vingança e pela se oponham.
política de concessões de benefícios e favores pessoais. E na medida em que os Saquaremas se apresentavam como os
propositores de um
Império centralizado e dotado de um Poder
“Ninguém possui em mais elevado grau do que Vossa Ma-
Executivo forte para preservar a ordem —
isto é, a reprodução da
jestade Imperial verdadeiro
justo e do honesto.”
amor da Pátria e as noções do
sociedade dos três mundos —
todos os demais que se identificavam
com o imperador não deixavam de se transformar em Saquaremas.
Francisco de Sales Torres Homem —
o intrépido Timandro, reda-
Esta nova proposição consistia na tarefa do imperador de efetivar
uma conciliação entre as facções partidárias, entre os cidadãos ati-
tor d’0 Libelo do Povo —
tornou-se deputado, ministro da Fazenda
do gabinete de 1858, senador, diretor do Banco do Brasil, “chargé
vos e monopolizadores da “sociedade política”;em termos imedia-
d’aífaires” em Paris e Visconde de Inhomirim. A Francisco de Paula
tos, o monopólioda responsabilidade pelo governo deveria ser
Ferreira de Resende restou sublimar seus ideais: comprou uma
exercido através da organização de um novo ministério. 192
fazenda com seus escravos e mudou-lhe o nome para Filadélfia,
Cf. Helio Vianna — Vultos do Império. São Paulo, 1968, p. 148. A
desaprovação de Honório é feita em carta dirigida de Montevidéu a Paulino, “lembrança da república para a qual sempre vivi sem
datada de 25 de novembro de 1851. esperanças.” 193
192 A conciliação dos partidos políticos e das elites dominantes é um dos
temas recorrentes na historiografia sobre o Período Imperial. A propósito, cf.
Paulo Mercadante — A consciência conservadora no Brasil — Rio de Janeiro, 5.°) “Nesse regímen, tudo se espera do Estado, (...) única
1965 e José Honório Rodrigues — Conciliação e reforma no Brasil, op. cit., associação ativa”.
autores que veem na conciliação e/ou no ecletismo a melhor resposta adaptativa
às condições do país, ao mesmo tempo que têm como pressuposto a natureza
não inerente, e sim o caráter temporário, do conflito nas relações sociais. Talvez
seja dispensável dizer que nos colocamos em posição oposta à destes autores. 193 Ferreira de Rezende — Op. cit.

178 179
O 194 podemos aqueles contingentes que, vivendo em cidades de diverso porte,
comenta Nabuco em Abolicionismo , E, desde aí, co-
exercem atividades no comércio a retalho, no tabelionato e no fun-
meçar a concluir.
cionalismo, entre outras. As alianças familiares combinadas com o
Com efeito, Saquaremas conseguem estar no governo do
se os
compadrio tanto os aproximam quanto os afastam entre si, levando
Estado e no governo da Casa é porque eles também forjaram a
,

a que, por ocasião das disputas eleitorais, os elementos se dispo-


Coroa em Partido, a quem incumbe organizar a Casa e conter como
aliados aqueles homens livres cuja aspiração é tornarem-se proprie-
nham em grupos fiéis aos chefes locais, reforçando as linhas divi-
sórias que, não obstante, tendem a se apagar pelo culto ao impe-
tários condições monopolistas. À Coroa incumbe
em ainda tornar
rador e pela fidelidade à Coroa.
cada dos Luzias parecido com todos os Saquaremas.
um
Falemos dos “mais próximos”, agora. No dizer de Gramsci,
sua ação como um Partido, a Coroa promove associações e
Em
constituem “o elemento de coesão principal, que torna eficiente e
difunde uma civilização. Ela se apresenta por meio da figura do
imperador —
homem culto e ilustrado, de cuja formação se cui- poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas,

dara com esmero —


mas não se resume a ele. Ela deve conter,
,
representariam zero ou pouco mais”. No Império do Brasil, em
que era praticamente nula a diferenciação entre o poder formal
e efetivamente contém, diversificados elementos, agrupados em
e o poder real, 196 são os deputados gerais, os presidentes de pro-
segmentos, os quais, neste Império que tem o seu território reificado
víncia, os ministros de Estado, os senadores e conselheiros de Esta-
por aqueles que o dominam e dirigem, parecem estar dispostos
do. Anima-os a convicção da necessidade de preservação de uma
em círculos concêntricos traçados a partir do Paço. E, sem dúvida,
ordem que concebem como natural. Comungam a idéia de que
da confluência desses elementos e segmentos, propiciada pela ação
o fundamental para o Império reside no exercício pleno e eficiente
saquarema, resultam a força da Coroa e o prestígio do imperador.
do poder administrativo, e não no jogo político.
Vejamos, embora de modo sucinto, cada um desses segmentos,
Há, por fim, um estrato intermediário, constituído por aqueles
servindo-nos da metáfora espacial.
Um
primeiro —
“mais distante” — se apresenta constituído por elementos que articulam os “mais distantes” e os “mais próximos”,
colocando-os, no dizer do mesmo autor italiano, “em contato não
“um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participa-
só ‘físico’, mas moral e intelectual”. Servem-se para tanto da rede
ção é oferecida pela disciplina e pela fidelidade, não pelo espírito
19,)
Como de instituições que o Estado imperial fora tecendo pelos tempos
criador e altamente organizativo”, no dizer de A. Gramsci.
afora, assim como das alianças familiares que mencionamos há
regra, não estão vinculados diretamente ao que denominamos de
pouco. Como um Visconde de Ipiabas, exercem o comando da
vida política, num sentido estrito; deixam-se absorver pelo seu exis-
Guarda Nacional em seu município; como um Barão do Pati do
tir cotidiano, mas passam a constituir uma força no momento em
Alferes, não só exercem o comando superior da Guarda numa co-
que existe algo que os centraliza, organiza e disciplina. Há muito
escravistas, em especial aquele
marca, como também procuram orientar a produção econômica, por
falamos dele: são os plantadores
meio da redação de memórias; como o Marquês de Valença, são
conjunto das áreas novas de produção cafeeira, a que fizemos refe-
membros da seção local da Sociedade Defensora, criam instituições
rência na Primeira Parte deste trabalho, e também os das mais
e grêmios locais, como as Misericórdias, patrocinam a fundação de
antigas ligadas ao cultivo da cana-de-açúcar, do algodão e do taba-
de gado jornais em seus municípios, e neles muitas vezes comparecem como
co; são também os charqueadores sulinos e os fazendeiros
inúmeros proprietários de colaboradores.
dos “sertões do Norte”; são ainda os
Fixemos, contudo, nossa atenção nos “mais próximos”, os ele-
escravos na Província de Minas Gerais, não vinculados às ativida-
mentos fundamentais na geração do papel que a Coroa exerce.
des exportadoras, e cujos interesses se expandiram desde o final do
Sigamos as trajetórias de Paulino, Rodrigues Torres, Eusébio e
movimento 1842; são, por outro lado, os inúmeros sitian-
liberal de
Honório, não só por serem representativas das de quase todos os
tes, espalhados por diversos pontos do Império; e, por fim, são
demais elementos desse segmento, mas também por razões que,
neste ponto, acreditamos não ser mais necessário repetir.

194 Op. cit., loc. cit., p. 163.


195 Anlonio Gramsci —
Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de
196 Cf. José Murilo de Carvalho — A construção da ordem , op. cit., p. 41.
Janeiro, 1968, p. 26.

180 181

SSCSN/UFRG3
oportunidades, enquanto Eusébio foi chefe de Polícia do Rio de
Possuem todos educação velha Universidade de
superior. Na
Janeiro durante dez anos consecutivos. Todos os quatro foram titu-
Coimbra., o futuro Visconde de Itaboraí tornou-se bacharel em Ma-
lares de pastas ministeriais, em diversas oportunidades, sendo que
Marquês do Paraná tornou-se bacharel
temática, enquanto o futuro Torres e Honório presidiram o Conselho* Rodrigues Torres foi
Paulino iniciou o seu curso jurídico, concluin-
em Direito; nela ainda presidente do Banco do Brasil e Eusébio, inspetor-geral da
do-o na nova Faculdade de Direito de São Paulo, no
ano da abdi-
Instrução Pública da Corte* Os quatro foram membros do Conselho
cação de D. Pedro I; Eusébio, por sua vez, tornou-se bacharel
em
de Estado e fizeram parte do Conselho do Imperador.
Direito por Olinda. Uruguai* Itaboraí e Paraná eram sócios do Instituto Histórico e
Sem dúvida, a educação superior foi um poderoso elemento de Geográfico do Brasil; o primeiro deles fazia parte também da Socie-
imperial, sobretudo por meio da
1

unificação ideológica da “elite


'

dade Auxiliadora da Indústria Nacional, de onde saíra a proposta


formação jurídica, que fornecia um núcleo homogêneo de conhe- para a criação daquela primeira instituição nos anos finais das
cimentos e habilidades. 197 Não nos interessa tanto saber se esta Regências*
formara-se em Coimbra ou nos recém-criados
1
*
“elite de letrados Honório, Torres e Paulino eram oficiais da Ordem do Cruzeiro;
cursos jurídicos do Império; parece-nos relevante, contudo, assina- £l|íü
Paulino e Eusébio eram comendadores da Ordem da Rosa,
lar a permanência da orientação da universidade
portuguesa refor-
Exerciam, assim, funções diversas, que ainda transbordavam
mada* onde as interpretações jurídicas tradicionais foram suprimi- para o jornalismo e a literatura* Chamavam-se a si mesmos de
das. o Direito Romano quase proscrito como modo de se atingir, in- 11
“escritores públicos , caracterizando a utilização dos jornais, pan-
diretamente* o Direito Canónico, e afirmada a superioridade do Di-
fletos, pasquins, folhetos e livros que redigiam para unir a seus
reito pátrio, ao lado do Direito natural e das gentes, como maneira e
ideais e proposições os demais componentes da “boa sociedade
19a
de afirmar a primazia da razão .

muitos homens livres, proprietários unicamente de suas pessoas*


Ora, esse elemento unificador encontrava um desdobramento
Se seguirmos, hoje, pelas páginas d’0 Brasil, veremos o papel de
quase natural na carreira da magistratura, que quase todos percor- guia e censor que ali exercitavam, indicando aos eleitores os inimi-
reram. Paulino foi juiz municipal em São Paulo e juiz de Direito gos a enfrentar, as forças que deveriam apoiar, os perigos que de-
na Corte; Eusébio foi juiz-de-fora, logo após sua formatura; Honó- veriam ser evitados, sempre por meio da recorrência às qualificações
rio percorreu todos os cargos da carreira, faltando-lhe
unicamente 11 1 201
“bem “mal *, “tirania", "liberdade", entre outras*
o último degrau da hierarquia judiciária, o Supremo Tribunal de ,

encontravam
Não se dirigiam, contudo, apenas àqueles que se
Justiça, o qual certamente não galgou porque então a carreira polí-
também a seus
fora do segmento dos “mais próximos". Dirigiam-se
tica já suplantara a da magistratura. unidade de propósitos e de comportamen-
iguais, objetivando uma
E assim de fato ocorria com quase todos os elementos constituti- tos* que se construía pelo confronto com os princípios e atitudes
vos deste segmento: saltavam da magistratura para a política, sal- E o faziam por meio de obras que ou abordavam
dos adversários,
tando também para um sistema de relações que, efetivamente e as questões políticas candentes ou tomavam como referência os
antes que qualquer outro fator, lhes proporciona homogeneidade. jurídicos da ordem imperial* Se no primeiro con-
pressupostos
Neste processo, tornam-se dirigentes, embora jamais se digam
políticos 19&
.

Paulino, Rodrigues Torres, Eusébio e Honorio foram deputados 200 Dados biográficos retirados princípalmente de: Augusto Vitorino Alves
gerais; no decorrer do Regresso, tomaram-se senadores. Paulino, Sacramento Blake — a
Dicionário bibliográfico brasileiro. 2, edição. Rio de Ja-
Torres e Honório foram presidentes de província em diferentes neiro* 1970, 7 vofs. Anlonio Joaquim Macedo Soares —
Nobiliarquia fluminense
— Genealogia das principais e mais antigas famílias da Corte e Província do

Hh de Janeiro. Niterói, 1948: Sebastião Augusto Sisson Galeria dos brasilei-
ros ãuslres (os contemporâneos )* 2* edição. São Paulo, 194&.
2 vols.; Célio
1B7 Idem, Ibidem. (Ver esperialmenle o cap. 3 ‘‘Unificação da elite: uma
de letrados”, pp. 51-72.)
Borja —
41
Alguns parlamen tares fluminenses no Império’*, Anuário do Museu
ilha
Imperial vol. 3741 (1976 1980), pp. 121 143; José Antônio Soares de Souza
198 Cf. Francisco José Calasans Falcon — A Época Pombalina (Política A
,

vida do Visconde do Uruguai op. eit.



,

econômica e monarquia ilustrada). São Paulo, 1982, especiatmenle pp. 422441, Cf Antônio Cândido o públíeo in A literatura no
199 Antonio Gramsci — “A formação dos intelectuais , in Os intelec*
201
flrasil. Rio de Janeiro, 1968, vol,
'‘O
1,
escritor e .

íuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, 1968, pp. 3-23.

183
182
junto de obras podemos colocar os textos de J. J. da Rocha Ação — São governantes, e por isso se apresentam diferentes daqueles
Reação Transação; Duas Palavras Acerca da Atualidade Política do
, elementos que constituem os demais “mundos” da sociedade impe-
Brasil (1856) e Monarquia- Democracia (1860), do último fazem rial. Não deixam de insistir em se apresentar diferentes também
parte, sem dúvida, a obra de José Antônio Pimenta Bueno (Mar- ^ dos governantes dos países latino-americanos que, por essa mesma
quês de São Vicente) —
Direito Público Brasileiro e Análise da época, também se empenham num processo de organização de seus
Constituição do Império (1857), a de Brás Florentino Henrique estados.
de Sousa —
Do Poder Moderador (1864), e sobretudo as de Pau- São dirigentes, e por isso também marcam sua diferença no inte-
lino José Soares de Sousa (Visconde do Uruguai) —
Ensaio sobre rior do mundo do qual procedem: o mundo do governo.
o Direito Administrativo (1862) e Estudos Práticos Sobre a Admi- Percorramos a “Galeria” de Sisson. Ali, as figuras de Paulino,
nistração das Províncias do Brasil (1865). Rodrigues Torres, Eusébio e Honório em nada se distinguem dos
No “Preâmbulo” ao Ensaio Sobre o Direito Administrativo o , demais “contemporâneos”. Fisionomias sisudas e indiferenciadas
Visconde do Uruguai anota que roupas escuras fazem com que as diferenças entre Saquaremas e
Luzias se esvaneçam. Todavia, quanto mais se assemelham, mais
“o estudo das nossas instituições tem-me convencido de que, tendem a se apresentar diferentes dos demais componentes da “boa
felizmente, as largas e liberais bases em que assentam são sociedade”, dos quais são os representantes privilegiados. Sublinham
excelentes. (...), O desenvolvimento que temos dado àque- suas marcas de distinção, que têm sua expressão a mais acabada
las instituições, mais teórico do que prático, é que tem sido no monopólio do discurso gerado na Casa, burilado nas academias
,

defectivo, inçado de lacunas, pouco acomodado mesmo a de Direito e exercitado nas tribunas formais e informais, nos salões
certas circunstâncias (algumas temporárias) do país.” 202 e no Parlamento. Um
discurso quase sempre assinalado pelas idéias
liberais, elas também uma marca de distinção, mas caracterizado
Se a obra tomada em seu conjunto não deixa de ser uma res- sobretudo pelo tom hiperbólico, pela tendência à oratória, pela lin-
posta ao trabalho de Zacarias de Góis e Vasconcelos Da Na- — guagem grandiloqüente e pelo transbordamento emocional que aca-
tureza e Limites do Poder Moderador —
publicada dois anos antes,
,
bavam por apagar as já pálidas fronteiras entre a prática política
ela se constitui ainda e sobretudo num manancial de informações e a atividade literária.
e numa orientação tanto para aqueles que já se encontravam quanto Por isso, ontem como hoje, parecem constituir um corpo à parte,
para os que se iniciavam na direção do Império. E o Visconde do que se reproduz endogenamente, tangenciando uma sociedade que
Uruguai não deixa de alertar que insistem em dirigir mas com a qual não se devem confundir. Por
isso também, permitem que se construam, ontem como hoje, inter-
“não se tem procurado esclarecer e interessar a opinião do pretações em campos diversos que, mesmo quando atribuem sinais
público, chamando a sua atenção sobre esses assuntos que opostos, se complementam, como a “Teoria do Medalhão” de Ma-
tão de perto o tocam, preparando-o pela imprensa e pela chado de Assis e o “estamento burocrático de Faoro. 204
Tribuna, para formar o seu juízo, e auxiliar com a força Ora, esta tendência a confundir a realidade com as imagens que
que este tem quaisquer reformas e melhoramentos que pos- a seu respeito são elaboradas faz com que, cada vez mais, a linha
sam ser necessários.” 203 verticalque cindia o mundo do governo entre Saquaremas e Luzias
ceda lugar à linha horizontal que separa dirigentes e dirigidos, o
Formação, carreira, titulação
e relações pessoais não deixavam de Estado e a Casa.
constituir uma
identidade entre os elementos que formam o seg- Por essa razão, insiste-se tanto na distinção entre a vida pública
mento que vimos denominando de “mais próximos”. Construíam e a vida privada dos estadistas do Império, muito embora o triunfo
também uma diferenciação.

204 Em “Partidos e eleições no Maranhão”, por meio do Dr. Afrânio —


202 Visconde do Uruguai — Op. cit ., p. XV.
“um dos chefes mais consideráveis do partido Cangambá” — , João Francisco
-
Lisboa faz a crítica de viés liberal à formação e carreira dos “estadistas do Im-
203 Idem, Ibidem, p. XVI. pério”. Cf. Obras escolhidas. Rio de Janeiro, 1946, especialmente pp. 177 a 125.

184 185
E assim também eram vistos. Por ocasião de sua primeira via-
da proposta saquarema resulte justamente da capacidade de estar
gem à Corte, em 1839, o ainda menino Francisco de Paula Ferreira
no governo do Estado e no governo da Casa a um só tempo, de Resende visita a casa do futuro Visconde do Uruguai e cria uma
Sísson nos diz, na abertura de sua Galeria: imagem que permaneceria por muitos anos:
>#**•

“Em nossos trabalhos biográficos, esmerilhando cuidadosa*


“a sua vida [a de Paulino] era de tal forma fatigante e
mente a vida pública do homem, suspenderemos nossos pas- acabrunhadora, a velar noites e noites, quando todos os
sos diante do lar doméstico; e cerraremos os olhos ao pro- outros dormiam.
”200
, .

ceder particular: não pertence ao escritor a vida íntima do


cidadão.*
1
^ Não se conclua, todavia, que formação, carreira, titulação, rela-
ções pessoais, monopólio do discurso e aplicação aos negócios do
postura do autor do necrológio do Marquês do
Não Estado, ao produzirem uma diferenciação, criavam também um
difere a
Paraná: divórcio intransponível entre os “mais próximos” e os demais seg-
mentos. Pelo contrário, essa diferenciação era a própria condição
“Nada diremos do nascimento, da família, da educação de
para que uma relação entre eles se estabelecesse e exercesse,
Honório Hermeto Carneiro Leão: só temos que entender
reafirmando uma hierarquização no interior do mundo do governo,
com o homem político,’ 1206 que já continha a hierarquia entre Saquaremas e Luzias acima
referida, e colocando em plano destacado o papel de Partido exer-
Por caminho ainda, aqueles que parecem nao estar no gover-
esse
cido pela Coroa.
no da Casa, devem apresentar-se como incansáveis, e assim proceder, Múltiplos foram os meios utilizados para tecer essas relações, que
no trato dos negócios do Estado. não resultavam nem necessária nem prioritamente da origem social
Em carta dirigida a Paulino em 18 de abril de 184-6, em plena
dos representantes. Paulino, Rodrigues Torres e Eusébio, assim co-
situação liberal, Honório censurava a atitude de Rodrigues Torres, mo Nabuco de Araújo e muitos outros, não procediam das grandes
que se deixava permanecer em casa num momento em que temas famílias proprietárias. Nelas ingressariam.
209

fundamentais para os Saquaremas eram discutidos: A atração pelos títulos outorgados pela Coroa constituiu-se sem-
pre num meio eficaz, Podemos ter um exemplo no relato de Fer-
“Em meu entender a lei de eleições, a lei de colonização, o
reira de Resende de que
Código do Comércio, a questão do art. 61 são objetos muito
interessantes de que tem de tratar o Senado no corrente
“tendo Honório organizado o ministério da conciliação, logo
ano. O Senador que não tem irrevogavelmente resolvido re-
a 2 de dezembro houve uma concessão em ponto muito
tirar-se dos negócios públicos, não pode voluntariamente
grande de títulos e condecorações, que foram dadas sem
permanecer em santo ócio na presente sessão, e deixar resol- nenhuma consideração para as crenças políticas dos agra-
ver tão importantes questões sem nelas tomar parle. Se o ciados,”210
Sr. Torres quer deixar de ser figura proeminente no partido
que tem seguido fique-se em casa com medo de gastar saú-
207
de, dinheiro e tempo.”
208 Francisco de Pauta Ferreira de Resende —
Op. dl,, p. 100.
2O0 O fato de muitos dos dirigentes imperiais não se originarem das gran-
des famílias proprietárias faz com que alguns autores defendam a opinião de
que eles não só procediam da classe média, como também defendiam-lhes os
205 Sebastião Augusto Sísson — Galeria dos brasileiros ilustres (os contem-
interesses: e, desta condição, fazera derivar a adoção por eles do liberalismo
porâneos ), op. ciL, p. 11. doutrinário, que tinha em Guizot e Royer-Collad suas fontes principais (cf-
206 Jornal do Commercio. Rio de Janeiro 13 de setembro de 1856, '*Bio- “*0 Viscoude do Uruguai e o liberalismo doutrinário no Império’*, in A. Crippa
grafia do Marques do Paraná'* {costuma-se atribuir a Justíniano José da Rocha
coo rd.) As idéias poíííicas no Bnwií- São Paulo, 1979, pp. 193 a 231),
a autoria do texto)!.
(

210 Francisco de Paula Ferreira de Resende — Op. cit ,, p. 218.


207 AIHGB+ laita 748. pasta 32.

287
186
Instituições como a Guarda Nacional também se constituíam em tiva — fala-se de um Poder Administrativo
mesmo sobre os —
mecanismos privilegiados não só de consolidar essas relações, na homens e as coisas, sendo que nestas estão contidos os escravos.
medida em que unia por meio de uma cadeia de hierarquias o ofi- Entenderemos melhor a hierarquização que preside o segmento
cial de mais baixa patente e localizado no mais distante ponto do dos “mais próximos” caso resgatemos os elementos que o compõem,
Império ao presidente da Província e ao ministro da Justiça, como e foram deixados acima, distribuindo-os por um continuum a partir
também de difundir regras e concepções que propiciavam uma da noção a que nos referimos há pouco. Teríamos, então, num dos
centralização. extremos os deputados gerais seguir-se-iam os presidentes de Pro-
;

Seria por meio dos casamentos, contudo, que se estabeleceriam víncia, os ministros de Estado, os senadores e os conselheiros de
sólidas e frutuosas relações entre as grandes famílias, preocupadas Estado; no outro extremo, o imperador. No primeiro dos extremos,
em preservar os monopólios que as distinguiam, e os elementos que o máximo de política, entendida como “paixões partidárias incon- ,

as representavam, e a quem caberia ordenar esses mesmos mono- troláveis porque ligadas aos interesses locais, mesquinhos e imedia-
pólios, como forma de forjar uma
tantas vezes já assinalamos. Tal tistas;no outro extremo, a ausência de política, o predomínio da
relação fundamental para a constituição de uma classe, não deixava razão, dos interesses gerais que se confundem com os interesses da
de pôr em relevo a figura da mulher, precioso capital de que lan- Pátria.
çavam mão pais monopolizadores e que, de modo irônico, contri- Do primeiro extremo, Paulino emite uma opinião ao comentar
buía para a acumulação de poder pelo Estado em consolidação. 211 as eleições de 1852 ao se referir ao parlamentarismo vigente no
E, convém frisar, quanto mais o Estado leva a cabo uma centraliza- Império:
ção, mais se aprofundam as relações entre os diferentes segmentos
que estamos considerando, e mais aqueles que se constituíam em “A oposição disputou aqui a eleição com grande fúria, e
cidadãos ativos tinham condições de restaurar e, sob condições com grandes meios. Batemo-la completamente porque esta-
novas, expandir os monopólis que ainda os distinguiam. mos no Governo. Se ela estivesse no Governo teria vencido
Todavia, um último aspecto deve ser considerado antes de encer- completamente. Assim está o país, e assim é o sistema. Ando
211
rarmos este exercício. Se uma diferenciação e uma hierarquização muito enjoado do tal sistema, à vista do que se passa entre
estão presentes na sociedade —
conduzindo ao recorte dos “três nós, e do que tem passado e passa na Europa. Não se conclua
mundos”; se elas estão presentes também no mundo do governo — daí que sou absolutista, não senhor, o que aborreço é uma
conduzindo ao recorte dos “mais próximos”; elas também não cloaca a que chamarei parlamentarismo, excelente coisa para
deixam de se apresentar no interior destes últimos. os ambiciosos, turbulentos, faladores, audazes, sem-vergo-
212
Aqui, elas se constroem a partir da noção de neutralidade, que nhas, trapalhões, etc., etc.”

desqualifica o exercício da política e ressalta a prática administra-


Mas nem tudo se apresentava assim. À medida que seguimos
pelo continuum, os cargos, as instituições e as próprias pessoas pare-
“Foi em grande parte devido ao seu casamento que Paulino, em breve,
cem sofrer um aperfeiçoamento. Do “Velho Senado”, descrito por
se tornará um dos chefes conservadores de maior prestígio na província do Rio
de Janeiro. Sua mulher era cunhada de Rodrigues Torres e tinha parentesco e
Machado de Assis, ouvia-se dizer que “não faz política”. 213 0 liberal
relações de família com os principais faze.ndeiros da baixada, que representavam Zacarias de Góis e Vasconcelos costumava afirmar que
então uma das mais consideráveis forças políticas da província”. José Antonio
Soares de Sousa —A vida do Visconde alo Uruguai, op. cit., p. 45. Nas memó-
rias do Conselheiro Albino José Barbosa ide Oliveira, há inúmeras referências a 212 Carta a Firmino Rodrigues Silva (27 de dezembro de 1852). Apud Nel-
casamentos não concluídos que poderiam lhe ter arruinado a carreira (cf. Me- son Laje Mascarenhas —
Op. cit., p. 172.
mórias de um magistrado do Império. São Paulo, 1943). Destaquemos ainda 213 “(...) refiro-me a um princípio por mim já estabelecido algumas ve-
que, também a esse respeito, a literatura se constitui em fonte imprescindível zes, e éque o Senado não pode fazer política, que o Senado não se pode envol-
para o conhecimento da trama social, como o demonstram, por exemplo, os ver na torrente das parcialidades militantes, sem provocar conflitos com a Câ-
textos de Joaquim Manuel de Macedo. Erm “Romance de uma velha”, Dona Vio- mara dos Deputados, sem derrogar o princípio conservador que o coloca entre
leta comenta: “Minha sobrinha, agora nao há mais amor, há cálculo; não há a Coroa e o Povo, entre a imobilidade e o progresso, entre a ordem e a liber-
mais amantes, há calculistas; não há maiís amadas, há calculadas”. Em O Moço dade”. Nabuco de Araújo —discurso no Senado, na Sessão de 1863. Apud
Loiro é possível encontrar observação sennelhante. Joaquim Nabuco — Um estadista do Império , op. cit., p. 373.

188 189
“o centro de gravidade política deste país está no
Senado,
porque ele se acha mais perto de São Cristóvão “A uma hora da tarde uma girândola lançada do Rocio da
do que a
Câmara dos Deputados.”214 Cidade Nova, anunciou aos Fluminenses que o seu adorado
monarca entrava na sua boa cidade do Rio de Janeiro. 0
Melhor ainda era a opinião a respeito do Conselho imenso concurso do povo que apinhava as ruas por onde
de Estado,
instituição mais próxima do extremo oposto ao que se tinha de passar o luzido préstito, teve pouco depois a ven-
encontrava a
Camara dos Deputados. De acordo com Nabuco, era tura de contemplar o jovem monarca e de saudá-lo com
repetidos e entusiásticos vivas.
“o crisol dos nossos estadistas e a arca das
tradições do “Desde a imperial quinta da Boa Vista até o largo do Paço,
governo.” 215 se achavam as casas ricamente ornadas, as janelas cheias
de senhoras vestidas com as mais ricas galas e as ruas alcati-
Chegamos, por fim, ao outro extremo, no qual pontifica fadas de folhas e apinhadas de povo.
o impera-
dor.Sua presença ó a garantia de uma neutralidade, “Nada faltou para tornar este dia brilhante e gravá-lo para
o afastamento
das paixões partidárias que ameaçam a
continuidade das instituições sempre na memória dos Fluminenses. 0 tempo era dos mais
e dos monopólios que elas objetivam
preservar. Por isso, deve-se belos daqueles com que a Providência mimoseou o belo céu
depositar em suas mãos o monopólio fundamental
que a restauração dos trópicos; o monarca partilhava geral satisfação de seus
em curso da moeda colonial pressupunha: o monopólio fiéis súditos; as augustas princesas brilhavam em todo o
da respon-
sabilidade. De
outro lado, sua figura expressa também
um pacto esplendor de sua beleza e candura, o povo mostrava-se feliz.
distinto entre o Povo e o Soberano, no
qual ambos como forças S. M. I. depois de ter feito oração na capela imperial, e de-

— a administração—dopor meio de iyn instrumento,


sociais vivasrepartem a Constitui- pois de entoado o Salvum fac imperatorum, seguiu para o
çao Estado. paço, onde se dignou dar bei j a-mão ao grande número de
Ora, reconhecer essa neutralidade significa
não só colocar de lado pessoas que ali se tinham reunido.
a noçao de soberania popular, mas também
reconhecer como legí- “0 préstito desceu pelas ruas de S. Pedro e Direita na forma
tima a hierarquia presente no segmento dos
“mais
próximos”. do programa que publicamos. As carruagens que acom-
Recordemos, por fim, que no momento em que o panhavam, tudo era elegante
jovem impera- e as librés dos criados, e
dor respondeu afirmativamente à consulta se
desejava assumir ime-
diatamente o comando do Império, pondo fim ao
Período Regencial,
os Liberais exultaram. Voltavam ao
governo, isto é, ao Poder Ali, na comemoração preparada pelos Saquaremas, não deixavam
Executivo, e foram às ruas comemorar a
aclamação do imperador de estar presentes muitos dos pressupostos que sustentavam o prin-
acendendo luminárias.
cípio conservador: fausto e nobreza; a submissão ao superior, ex-
Os Saquaremas não decepcionaram completamente: perdiam
se pressada na concessão do bei j a-mão; as casas, destacadas por suas
o governo, ganhavam Monarquia. Quando, oito meses depois, re-
a ornamentações, ordenando e limitando as ruas; o desfile cadenciado
tornaram ao governo pelas mãos do próprio
soberano, promoveram e organizado, reservando um lugar para cada personagem, como
também uma comemoração: a Coroação e a Sagração símbolo da ordem triunfante.
do imperador,
assim descrita, no dia seguinte, pelo Jornal
do Comércio- A luminosidade do dia, a que se acrescentava o clarão das girân-
dolas, punha em evidência esplendorosa a figura do imperador. Não
“S. M. o Imperador fez ontem a entrada
solene na capital deixava, contudo, de projetar sombras sobre os reais construtores
do Império. do Poder que ali se apresentava. Ofuscava também as pálidas lumi-
nárias dos Liberais.
À sombra da magnificência imperial, Luzias e Saquaremas pa-
reciam semelhantes.
Apud Oliveira Vianna — 0 ocaso do Império , op.
Joaquim Nabuco — Op. cit., p. 876.
cit., p. 38.

21 6 Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 17 de julho de 1841.


190
191

I
"I

III / A TEIA DE PENÉLOPE

Cuidemos de demonstrar, agora, a ação desenvolvida pelos Sa-


quaremas. Os procedimentos de que lançaram mão para expandir
a capacidade regulatória do Estado que ajudavam a forjar, parti-
cularmente no que dizia respeito aos cidadãos ativos; os esforços
que desenvolveram com a finalidade de alçancar a restauração do
monopólio da mão-de-obra; e, por fim, a maneira pela qual busca-
vam emprender uma expansão, tecendo também com os fios da
civilização os nexos entre os homens livres.
Em qualquer dessas ações, e também em muitas outras, um
proceder que revelava um sentido, ao mesmo tempo que sublinhava
uma construção que, por se efetuar no marco de uma defensividade,
parecia não se completar.

1. OS OLHOS DO SOBERANO

“É pois da mais rigorosa obrigação do Poder,


a quem incumbe olhar pelos interesses da
sociedade, empregar todos os meios que esti-
verem a seu alcance”.
Joaquim José Rodrigues Torres, 1850.

Comecemos retomando alguns pontos já considerados.

193
m
Os Saquaremas aborreciam um poder fraco. A prevalência das
paixões partidárias, o predomínio das influências locais e a persis- Da associação entre unidade do poder e unidade da Nação, assim

tência das lutas entre famílias —


“o verdadeiro cancro de nossas como da associação entre Poder forte e centralização, os Saquare-

localidades”, no entender de um deles 1 — eram vistos como as mas faziam derivar a conclusão sobre a inaplicabilidade ao Império

razões de um poder fraco, e nele se nutriam. do Brasil da fórmula “o Rei reina, mas não governa”. Sustenta-
Os Saquaremas proclamavam as excelências de um poder forte, vam, ao invés, e na formulação do Visconde de Itaboraí por ocasião
destacando sua eficácia e utilidade. Somente um poder forte pode- da crise de 1868, que aqui “o Imperador reina, governa e adminis-
ria tanto oferecer “suficientes garantias à ordem pública e a bem tra”. E ao fazê-lo não apenas defendiam para o imperador confor- —
entendida liberdade”, quanto tornar audível a voz da “Razão na- me sublinhavam —
o exercício das “atribuições que a Constituição

cional, única e verdadeira indicadora do pensamento e necessidades lhe confere”. Iam ainda mais longe: tornavam claro que entendiam
públicas”, no entender de Paulino Soares de Sousa. 2 que qualquer ordem social não ocorria naturalmente, e sim resul-
tava da ação política coordenada, o que impunha a expansão da
0 poder fraco era associado aos interesses particulares da Casa.
capacidade regulatória acima referida por meio da criação de um
0 poder forte, aos interesses comuns e gerais da sociedade; ele era a
possibilidade de propiciar a maior felicidade ao maior número, o que aparato administrativo, subordinado a um comando único.5
no entender de Bentham, em quem também se inspiravam, era o Afirmar que “o Imperador governa e administra” não
reina,

único critério defensável de bem social. 0 poder fraco guardava implicava a negação da independência dos poderes políticos inscri-
com a descentralização, política e administrativa; o poder tos na Constituição de 1824. Mas implicava, certamente, o reco-
relação
relacionado à centralização, e tinha no governo do
estava nhecimento de uma hierarquia entre eles o Poder Moderador —
forte
Estado o seu instrumento natural, o qual não se empenharia em como “a chave de toda a organização política” assim como na —

,

“exterminar as famílias”, e sim em impedir as lutas entre elas, atribuição ao Poder Executivo do qual o imperador era o chefe,

em “neutralizar suas exagerações”, conforme dissera Nabuco de exercendo-o pelos seus ministros —
de um papel fundamental na
Araújo na “Ponte de Ouro”, em 1853. constituição de um poder forte e centralizado. Implicava ainda
No momento em que se empenhava em punir os responsáveis o estabelecimento de relações bem definidas entre os poderes polí-
pelos movimentos de Minas Gerais e São Paulo, o futuro Visconde ticos e o que denominavam de Poder Administrativo, de modo a

do Uruguai dizia não haver nada “mais funesto e desmoralizador tornar possível uma eficácia —
para um país do que um poder fraco.” 3 Duas décadas mais tarde,
quando não só procurava sistematizar uma experiência mas tam- “a administração é a ação vital do Poder político e o seu
bém prescrever normas de comportamento, Uruguai insistia em indispensável complemento. 0 poder político é a cabeça, a
lembrar que não existiria Império se não existisse centralização e, administração o braço” —
inspirando-se em Trolley, dizia que
e alcançar uma utilidade —
“a centralização é a unidade da Nação e a unidade do poder. “há em todas as sociedades um número de necessidades co-
É ela que leva às extremidades do corpo social aquela ação muns, maior ou menor segundo o seu desenvolvimento e
que, partindo do seu coração e voltando a ele, dá vida ao civilização, às quais o Poder público deve satisfazer. É o fim
mesmo corpo.” 4 da administração pública prover a essas necessidades coletivas,
6
e dirigir os interesses sociais, quer gerais, quer locais.”
1 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro (de agora em diante,
RPP-RJ), 1844: Presidência de João Caldas Viana, p. 3. Sigamos o pensamento do Visconde do Uruguai, pois não deixa
2 Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado à Assembléia- de sintetizar o pensamento dos Saquaremas a esse respeito. Até
m a
Geral Legislativa na l. sessão da 5. legislatura pelo respectivo ministro e se-
,

cretário de Estado Paulino José Soares de Sousa. Rio de Janeiro, 1843.


,

3 Idem, Ibidem.
4 Visconde do Uruguai —
Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Ja-
5 Cf. Wanderley Guilherme dos Santos — Ordem burguesa e liberalismo polí-

tomo tico. São Paulo, 1978, p. 50.


neiro, 1862, II, p. 164.
6 Visconde do Uruguai — Op. cit., tomo I, pp. 18 e 11, respectivamente.

194
195
, ; ; ;;

mesmo porque quanto mais ali aparece sublinhado o caráter apolítico e o Poder Administrativo, entre o Direito Constitucional e Político

da administração pública, mais se revela a concepção de poder e do e o Direito Administrativo.

governo que os Saquaremas possuíam e difundiam, uma vez que E também as relações entre ambos. Assim, ainda que vivessem
e se movessem separadamente, a organização, formas e ação admi-
como parte da atividade do Estado, a administração pública subor-
dina-se aos objetivos, à estrutura e ao próprio poder de que o Estado estavam intimamente ligadas à organização, formas e ação
nistrativas

dispõe 7 .
dos poderes políticos. Uma organização política sólida e duradoura
É nas páginas do Ensaio sobre o Direito Administrativo que o pen- repousava na centralização, muito embora a organização adminis-
samento do Visconde do Uruguai se apresenta de maneira mais trativa pudesse dispensá-la em parte. Todavia, quando a centrali-

clara e articulada, deixando perceber os ensinamentos recolhidos zação administrativa aparecia reunida à centralização política ou
10
daqueles que no Velho Mundo dedicavam-se ao estudo da “ciência governamental, esta tornava-se uma força imensa .

do Direito administrativo”, como Maçarei, Laferrière, Cabantous, Neste ponto, uma definição mais precisa do Poder Político e do

Trolley, Foucart, Dalloz, Pradier e outros 8 que quase sempre tinham


,
Poder Administrativo permitia fixar o padrão de relação entre
como referência a França que a Revolução revelara, além de autores ambos, pondo em relevo o caráter apolítico que atribuía ao Poder
que não estando preocupados especificamente com a questão do Di- Administrativo, permitindo-lhe ser o elemento de conservação e
reito Administrativo, tinham em conta a da administração como um progresso acima das disputas políticas e das agitações revolucioná-
11
elemento fundamental na constituição de um Estado forte, como rias que atingiam o Poder Político .

Montesquieu e Tocqueville. De acordo ainda com Uruguai, nos Governos Representativos o

Seguindo de perto as proposições de Tocqueville em A Democra- Poder Político reparte-se entre o Poder Executivo e as Câmaras
cia na América o Visconde do Uruguai estabelecia a distinção entre Legislativas. Mas não o Poder Administrativo, visto que as Câmaras

duas espécies de centralização: a política ou governamental e a não administram.


administrativa. A
primeira consistia em concentrar em um mesmo Destas repartição e distinção deveriam resultar a prevalência do
lugar ou na mesma mão
o poder de dirigir os interesses que são Executivo no Poder Político. Todavia, para que houvesse ordem
comuns a todas as partes da Nação; a última, em concentrar o e garantias para o cidadão, tornava-se indispensável que a legislação

poder de dirigir os interesses particulares de cada parte da Nação 9 .


decompusesse o Poder Executivo.
E, desde então, aprofundava as diferenças entre o Poder Político De uma parte, ele se constituía em Poder Executivo puro, político

ou governamental. Era o Governo ,


exercido pelo Chefe do Poder
Executivo e seus Ministros, direta e indiretamente. Ele era
7 Cf. Mário Wagner Vieira da Cunha — O sistema administrativo brasileiro.
Rio de Janeiro, 1963, pp. 5-11. “encarregado e depositário do pensamento político e da di-
8 “Reuni e estudei, senão todos, quase todos os escritores que escreveram
reção moral dos interesses gerais da Nação e das suas rela-
sobre o Direito Administrativo da França, que é o mais completo e desenvolvido.
ções com as outras. (...) Sua ação deve ser livre, e o seu
Procurei, para comparar, inteirar-me das principais feições e do jogo das insti-
tuições administrativas em Portugal, na Espanha, na Bélgica, na Inglaterra e nos poder mais ou menos discricionário, sujeito somente às leis
Estados Unidos”. Visconde do Uruguai —Op. cit., tomo I, p. IX. As prin- (em cuja confecção intervém), à opinião e à Representação
cipais obras utilizadas como referência foram: Maçarei — Cours d’administration Nacional .” 12
et de Droit Administratif Laferrière —Cours de Droit Public et Administratif
Cabantous —
Répétitions écrites. Notions préliminaires Trolley — Traité de la
em
hierarchie administrative; Foucart — Éléments du Droit Public et Administratif
De outra, ele se constituía Poder Administrativo
Dalloz —
Répértoire de legislation et de jurispruden.ee; Pradier
,
— Précis de
Droit Administratif. À época da redação de sua obra, o Visconde do Uruguai “secundário e subordinado ao Poder Político. Organiza o
mencionava que já “possuímos duas obras sobre o Direito Administrativo”: 13
pensamento destee o põe por obra”
Elementos de Direito Administrativo comparados com o Direito Administrativo
francês segundo o método de Pradier Foderé de autoria de Vicente Pereira do
, ,
10 Idem, Ibidem, p. 167.
Rego, lente da Faculdade de Recife, e o Direito Administrativo Brasileiro, do
11 Idem, tomo I, p. 19.
Conselheiro Veiga Cabral, que fora professor do Visconde do Uruguai na Aca-
12 Idem, Ibidem, p. 17.
demia de São Paulo.
9 Visconde do Uruguai —
Op. cit., tomo II, pp. 164-172.
13 Idem, Ibidem, p. 18.

196 197
seguindo a proposição de Montesquieu. Por certo, este Poder Admi-
dele era o “braço”; e “braço” em relação ao Moderador, que dele
nistrativotambém se relaciona com o Legislativo, ao qual também
era o “cérebro”, detentor da Razão, indicadora dos interesses de
estava subordinado, uma vez que os seus atos não tinham valor se-
toda a sociedade.
não enquanto eram conseqüências que daquele emanavam. Era a
Recuperando o que há muito evidenciamos, o imperador devia
Administração que tinha por órgãos uma série de agentes responsá- porque sua figura sintetizava o papel
,
reinar, governar e administrar
veis e amovíveis. Por isso, a Administração deveria ser entendida
de Partido que a restauração da moeda colonial atribuía à Coroa.
como
Como uma espécie de grande agência administrativa, a Coroa de-
veria conduzir tanto as relações externas quanto as internas, e o
“o complexo dos agentes de ordens diferentes, hierárquico
fazia por meio de seu “braço”: o Executivo.
ou não, nomeados pelo Governo ou de eleição popular, es-
Vejamos, em primeiro lugar, as relações externas.
palhados por todo o território nacional, aos quais incumbe
Referida a uma defensividade, como decorrência da política re-
cuidar daquelas necessidades, direitos e interesses que não
pressiva britânica, a atuação da Coroa objetivava prioritariamente a
pertencem à ordem política ou ao Direito Civil e que não
preservação do mais importante dos monopólios que fundavam a
são da competência do Poder Judicial.” 14
classe senhorial: o monopólio da mão-de-obra escrava. Conduzir a
política externa era, nestes termos, resistir à pressão britânica, o que
Interrompamos por um momento a exposição da argumentação se constituía em argumento poderoso na defesa do fortalecimento do
do Visconde do Uruguai, de modo a podermos demonstrar que ela Governo-Geral. Assim, e no que diz respeito a este aspecto particular
não se norteava apenas por formulações gerais e abstratas, e sim e prioritário da política escravista do Império até meados do século
tinha em consideração sobretudo “as circunstâncias do país, da — a questão do tráfico negreiro intercontinental —
as negociações ,

educação, hábitos e caráter nacionais”, no dizer do próprio autor, e decisões deveriam incumbir com exclusividade ao Governo-Geral.
no que reafirmava a sua associação ao estilo de pensamento conser- E a esse respeito um único exemplo é por demais ilustrativo: no
vador, 15 além de expressar as condições reais em que se processava momento da Ação, o “projeto de Lei sobre as reformas da Consti-
a restauração da moeda colonial.
tuição”, saído da Câmara dos Deputados, e do qual resultou o Ato
Com efeito, ele nos fala dos poderes políticos, distinguido-os de Adicional de 1834, propunha que deveria competir às Assembléias
um poder administrativo; por outro lado, ao submeter a Adminis- Legislativas Provinciais legislar “sobre as pessoas não livres”, mas
tração ao Governo, isto ao Poder Executivo puro, ele reafirmava
é, não deixava de sublinhar —
“exceptuado o que diz respeito ao seu
a importância deste, marcando suas relações com o Legislativo. Talvez não seja ocioso recordar que em sua versão
tráfico externo”. 16
Uruguai não menciona o Moderador ao falar dos poderes políti- definitiva o Ato Adicional não atribuiria às novas assembléias a
cos; todavia, por ter em consideração “as circunstâncias do país”,
capacidade de legislar sobre “pessoas não livres”, apesar da exceção
tem por assentado que o imperador, titular exclusivo do Poder prevista.
Moderador, deve reinar, governar e administrar. Reservava, assim, Por sua vez, e como em outras oportunidades, a defesa de um
para o Moderador —
acima das disputas políticas e das paixões Governo forte e centralizado se desdobrava na defesa da necessidade
partidárias —
o monopólio da responsabilidade no mundo do go- da ampliação dos recursos financeiros, de modo que se pudesse
verno. Não obstante, o exercício deste monopólio deveria dar-se por constituir um eficiente aparelho administrativo. 17 Procurava-se jus-
meio de um poder político — o Executivo, por essa razão necessa- tificar, assim, tanto a política financeira seguida, em particular os
riamente forte e centralizado, além de dividido em Governo Admi-
e empréstimos externos, quanto a atribuição com exclusividade ao
nistração. Nestes termos, enquanto Governo o Executivo cumpria Governo-Geral das rendas provenientes das taxas cobradas sobre os
um duplo papel: era “cérebro” em relação à Administração, que produtos importados. 18

44 Idem, Ibidem, p. 11.


— *6 Cf. Visconde do Uruguai — Op. cit ., tomo II, p. 283.

Martins
Cf. Karl
(org.)
Mannheim

“O pensamento conservador”, in José de Souza Fernando Uricoechea
17 Cf., p. ex., — “A formação do Estado brasileiro no
Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo 1981. século XIX”, Dados. Rio de Janeiro, 1977, n.° 14, pp. 85-109.
pp. 77-131. 48 Cf. o art. 12 da Lei de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional).

198 199
Mas a Coroa reivindicava também o monópolio da condução das À medida queSaquaremas foram consolidando suas posições
os
relações internas. E neste campo sua atuação era norteada por dois
no interior do governo, unindo a seus propósitos mesmo
mundo do
grandes referenciais que destacavam o papel que lhe competia de
aqueles homens livres não proprietários, o tema da Ordem passou
não só garantir a restauração e a reprodução dos monopólios, mas
a ser secundário, sendo suplantado pelo da necessidade de difusão
também de preservar as diferenças no interior da própria classe um
de uma Civilização. A
este deslocamento correspondeu relativo
senhorial, de tal forma que os interesses dominantes na região de
esvaziamento da Pasta da Justiça, que só manteria com exclusivida-
agricultura mercantil-escravista deveriam impor-se aos das demais
de as decisões referentes às questões de manutenção da ordem inter-
regiões, assim como aqueles que se haviam constituído na área da
na, em proveito das pastas do Império e da Agricultura.
Corte deveriam ser privilegiados no interior daquela região. Esses
Caracterizando o novo equilíbrio de forças, à Secretaria de Estado
eram a manutenção da Ordem e a difusão de uma Civi-
referenciais
dos Negócios do Império competia conhecer a população do Impé-
lização:foram eles que ditaram o equilíbrio e a hierarquia, sempre
rio, por meio da organização do registro civil, da realização de
mutável, entre os ministérios ou pastas que compunham o Exe-
recenseamentos e da regulamentação dos direitos civis e políticos
cutivo. 19
dos estrangeiros; cuidar dos assuntos referentes à saúde pública e
As Falas do Trono, os relatórios do ministro da Justiça e dos
ao controle sanitário; organizar o ensino primário na Corte e o
chefes de Polícia, assim como os relatórios dos presidentes de pro-
superior em todo o Império, além do ensino de cunho profissional;
víncias e outras autoridades, faziam referência freqüente à necessi-
estabelecer regulamentos para as diferentes profissões, com exceção
dade de “manutenção da segurança interna e da pública tranquili-
da magistratura; administrar os hospitais e regulamentar as habita-
dade”, sobretudo nas duas décadas posteriores à abdicação do pri-
ções urbanas (cortiços); supervisionar os templos de cultos não ca-
meiro imperador, quando cresceram em número as insurreições
tólicos; regulamentar as eleições e supervisionar os presidentes de
negras, as disputas pelas terras, os levantes urbanos, a insubordina-
ção da tropa e as diversas rebeliões. Esse conjunto de ocorrências
províncias —
entre inúmeras outras atribuições que propiciavam a
difusão entre os homens livres do Império do Brasil dos valores,
conferia lugar destacado, ao lado da Pasta da Fazenda, 20 ao Minis-
normas e padrões que distinguiam as “Nações civilizadas”, mas de
tério da Justiça, ao qual estavam afetas, então, não apenas as ques-
tal forma que, pela recuperação de um jogo de inversões, estes
tões referentes à manutenção da ordem interna, mas ainda aquelas
que, de modo direto ou indireto, a ela se relacionavam, como as
homens deveriam ver na civilização a face complementar da escra-
vidão.
da propriedade da terra e a da força de trabalho. 0 titular da Pasta
da Justiça dividia ainda com o titular da Pasta do Império as
Ora por meio do privilegiamento do Ministério da Justiça, ora
por meio do privilegiamento da Pasta do Império; ora pela utili-
decisões das questões referentes à distribuição de honrarias e ao que
zação em maior escala dos mecanismos coercitivos, ora pela obtenção
poderíamos denominar de controle da opinião, e que se expressava
na organização das eleições e no controle da imprensa, questões de um consentimento —
a Coroa exercitava suas atribuições, rea-

essas que, sem dúvida, não deixavam de guardar relação


firmando a cada instante o papel destacado por Rodrigues Torres,
com a
logo no início desta Parte: olhar pelos interesses da sociedade E .

questão mais abrangente da manutenção da ordem interna.


este olhar era entendido fundamentalmente como o exercício de uma
vigilância, os olhos do imperador confundindo-se com o olho do

19 Em seu primeiro ano de existência,


poder, de modo muito semelhante ao que lhes sugeria Bentham por
o Império tinha as seguintes pastas 21
no Poder Executivo: Império e Estrangeiros; Fazenda; Guerra; Marinha; e Jus- meio do Panopticon conjunto dos cidadãos e
ter sob o olhar o
tiça. Em 12 de outubro de 1823 foi criada a Pasta dos Estrangeiros, dos não-cidadãos, a totalidade implicava exercer
do território,
e em 28 de
julho de 1860, a da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. uma visibilidade organizada, 22 e essa organização de um olhar do-
20 Em seus “Conselhos
à Regente”, o imperador lembrava: “Cumpre (...)
concorrer para a maior economia, que não consiste em gastar pouco, mas de
minante e vigilante pressupunha a centralização.
modo o mais produtivo. Para isso convém que seja quase sempre Presidente do
Conselho o Ministro da Fazenda, para que esse Ministério, onde se regulariza e
examina por fim toda a despesa, tenha mais prestígio em relação aos outros Mi- 21 —
Cf. Jeremy Bentham Le panoptique. Paris, 1977.
nistérios .Citado por João Camillo de Oliveira Torres — A democracia coroada. 22 Cf. Michel Foucault — “O
-

olho do poder”, in Microfísica do poder. Rio


Teoria política do Império do Brasil. 2. a edição. Petrópolis. 1964, p. 190.
de Janeiro, 1979, pp. 209-227.

200 201
Talvez seja interessante retomar, neste momento, o pensamento Poderia ter mencionado ainda uma política médica e os médicos
do Visconde do Uruguai, de maneira a melhor percebermos como seus agentes,25 além da literatura romântica que penetrava na Casa
a centralização —
o modo de o olhar se exercer possibilitava uma— sobretudo por meio dos folhetins e do teatro* ^ E se o fizesse men-
vigilância que tanto era um controle sobre as infrações das regras cionaria, certamente, as “Comédias” de Martins Pena, pois cons-
impostas quanto uma moldagem daqueles que se tinha em vista trastando com a sisudez do Poder forte e centralizado o riso se
civilizar. constituiu muitas vezes na maneira de a Casa olhar para si mesma,
1
Olhando certamente para os pontos do território distantes da comparando o modo de agir, pensar e sentir da “roça' com aquele
Corte, e sobretudo localizados fora da região de agricultura mercan- prevalecente na “ Corte”, até o ponto de internalizar os padrões e
til-escravista, ele afirmava, em defesa da centralização, que normas considerados civilizados e que pareciam ter na Corte o seu
ponto de irradiação.
"o Poder central administra melhor as localidades quando Esta combinação de meios de coerção e elementos de persuasão,
estas são ignorantes e semi bárbaras e aquele ilustrado; quan- entre aparelhos “privados” e “públicos”, de realizações materiais e
do aquele é ativo e estas inertes; e quando as mesmas loca- ações não materiais, deveria assumir no Império do Brasil um con-
lidades se acham divididas por paixões e parei alidades teúdo e uma forma singulares, como decorrência do privilegiamento
odientas que tornam impossível uma
administração justa e da Coroa, encarregada de uma restauração e de uma expansão. Os
regular. Então, a ação do Poder central que está mais alto sempre vigilantes olhos do imperador eram a condição para o triunfo
e mais longe, que tem mais pejo e é mais imparcial oferece da Ordem, possibilitando a difusão da Civilização; o triunfo da
mais garantias/ 123 Civilização era a condição para a difusão dos valores de uma Ordem.
Sob o olhar dominante e vigilante do Poder, o Progresso era a
A consideração das condições do Império —
a topografia do país, Conservação.
sua extensão, as divisões territoriais, a dispersão da população, a A ação de vigilância pedia que o Poder estivesse localizado “mais
dificuldade de comunicações, o pequeno número de homens habili- alto e mais longe”, de modo a estar capacitado a olhar todo o terri-
tados para a gerência dos negócios nas localidades, a pequena inte- tório. abrangendo todos os súditos que ele continha. Na Corte a —
gração econômica entre as províncias —
impunha, no seu entender, cidade do Rio de Janeiro —
, estavam
os olhos do poder; o Municí-
o abandono das experiências descentraliza doras inspiradas nos mo- 27
pio Neutro era sua expressão administrativa.
delos inglês e norte-americano. Estes olhos vigilantes se apresentavam como a garantia da liber-
De outro lado, absorvendo o processo de construção da hegemonia dade. impedindo tanto o movimento furtivo daqueles que preten-
burguesa na Europa ocidental, enfatizava: diam restaurar as trevas da dominação colonial quanto os atos dos

“Às causas da centralização são intelectuais e mo-


e agentes
rais, governamentais, administrativos, físicos e
religiosos, acusação de centralistas? Porque na nterpretação do Ato Adicional atribuíram
i

materiais. Tais são nas Sociedades modernas a imprensa, a ao governo-geral algumas funções que eram exercidas pelas províncias. Não há
instrução pública, o Culto, a guarda nacional, o Exercito, o oulros fato* que possam fundar uma acusação contra os Saquaremas'. Citado
pelo Visconde do Uruguai — Op. cil., lomo II, p, 20 8.
Orçamento, a Dívida pública, o Supremo Tribunal de Jus- 25 Cf., p. ex., Roberto Machado et aJii — Danação da norma. Medicina socraí
tiça, o Tesouro Nacional, as Câmaras Legislativas, o Conse- e constituição ãa psiquiatria no Brasil. Rio de janeiro, 1978; e Jurandír Freire
lho de Estado, as estradas gerais, a navegação a vapor, os Costa — Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, 1979.
Telégrafos elétricos, os caminhos de ferro, 8 c.” 24
26 Cf., entre outros, Nelson Werneck Sodré — História da literatura bra-
sileira. 4.* edição. Rio de Janeiro, 1964 ( especialmente pp. 199-254).
27 A esse respeito são ilustrativas as recorrentes propostas e discussões a res-
peito da transferencia da capital do país para um ponto “mms central Nas .

“Instruções do Governo Provisório de São Paulo aos Deputados da Província às

34
Cf. Visconde doUruguai —
0p. c.íf. tomo II, p. 174.
5 Cortes Portuguesas, para se conduzirem em relaçao aos Negócios do Brasil . redi-
idem. íbidem, p. 176. Discursando no Senado, na sessão do dia 5 de gidas em 1821. José Bonifácio dizia “Parece-nos também muito útil que se
:

acosto de 1845, Bernardo Pereira de Vasconcelos lembrava a razão da associação levante uma cidade central no interior do Brasil para assento da Corte ou da
entre os Saquaremas e a centralização: SÍ,
Mas por que se faz aos Saquaremas a Regência (...) Deste modo fica a Corte ou assento da Regência livre de qualquer

202 203
w

c[ue colocavam sempre em


primeiro plano suas ambições pessoais e
cularmente as “do centro” —
Sacramento, Candelária. São José e
particulares. Como um olhar vigilante, e que assim se
sede de
apresentava, a cidade parecia recuperar o valor que a tradição oci-
Santa Rita ,
—que continham as instituições e instalações que tor-
navam possível a reprodução dos interesses dominantes, conforme
dental lhe atribui de foro da liberdade» e que o pacto colonial sem- 29 Mais do que em qualquer outro, por ele circulava
jã mencionamos.
pre insistiria em negar.
o “carro social" descrito por Nabuco, cujas rodas eram a política e
No essencial, contudo, esse papel de vigilância reafirmava o
o dinheiro. Ali, onde o governo do Estado se apresentava com o
caráter que a moeda colonial lhe atribuíra. O momento de restau-
máximo de força, a desordem não podia ser representada pelos
ração dessa moeda era também o momento em que a cidade tor-
interesses que de tudo dispunham para se expandir; ela era repre-
nava a sublinhar sua diferença em relação à das “Nações civiliza-
sentada pela “população perigosa”, no dizer do ministro da Justiça
das sd que em proveito» agora, da classe que se constituía no
Manuel Alves Branco, em 1835: 30 os vendedores, artesãos, empre-
bojo daquela restauração. Ela permanecia sendo uma fundação do
gados domésticos e marinheiros: e sobretudo as “pessoas sem ofício",
capital mercantil, que em sua circulação e reprodução entrelaçava
os vadios e os escravos negros.
de modo real os interesses de burocratas, negociantes e plantadores»
No mais distante dos círculos, preenchido pelas ""freguesias do
além de permitir que os dirigentes saqua remas traçassem círculos
Sertão”, o máximo de força era representado pelo governo da Casa,
concêntricos a partir do "‘Centro da cidade, círculos esses que
que parecia tudo poder sobre os homens e as coisas, e por isso mesmo
expressavam o alcance e a força de um olhar em sua tentativa per-
manentemente renovada de submeter um território sempre repre- era visto confundindo-se com
desordem» a barbárie e a anarquia.
a

sentado em sua integridade e indivisibilidade. E desta associação o Visconde do Uruguai fazia derivar os argu-
Assim, o primeiro dos círculos —
“mais alto e mais longe" — mentos sobre a necessidade e utilidade da centralização, como o
que transcrevemos hã pouco.
era formado pelas freguesias urbanas da Corte, e dentre elas parti-
Por tudo o que jã foi dito até aqui, é possível concluir que não
se defendia a substituição do governo da Casa, por meio da centra-
chama para as províncias centrais t> excesso da po-
assalfo e surpresa externa e se lização. O que se tinha como objetivo era estar em contato perma-
voação vadia das cidades marítimas e mercantes. Desta Corte central dever-se-ão nente com ele, romper seu isolacionismo, para poder vigiá-lo e diri-
logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar.
para que se co- gi-lo. E entendia-se que a maneira de fazê-lo era a constituição de
muniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do governo, e se favoreça
por elas o comércio interno do vasto Império do Brasil 11 Talvez seja interessante
.
uma rede administrativa, pois
lembrar que, logo em seguida, o autor das “Instruções...” cita Jeremias
Ben-
tham. José Bonifácio de Àndrada e Silva —
Éscriías pali tiros. São Paulo. 1964. “é por meio do complexo dos agentes que formam a admi-
pp. 13-26.
nistração que se põe ele em contacto com os particulares,
Contrastando vivamente com uma cidade cujo pulsar expressava, no
essencial, as geradas na redefinição dos nexos coloniais, a cidade das
forças que lhes transmite as suas ordens, que estuda as suas neces-
“Nações civilizadas 1 caracterizava-se, cada vez mais, pelo jogo das forças geradas 3Í
sidades e recebe as suas reclamações,
'
'

pela ordem capitalista. Com efeito, nas sociedades européias do


século XIX, em
particular na inglesa, o debate então travado sobre a chamada “revolução
constituía uma demonstração da superação do predomínio dos
urbana'
padrões agrários
1

Todavia, a constituição desta rede — expressão e extensão de um


nestas sociedades» ao mesmo tempo que revelava as faces contraditórias
do tecido olhar dominante, vigilante e dirigente, além de causa e efeito da
urbano: cidades como sinônimo de iniciativas, vitalidade política e Inovação,
[ambem de
mas
turbulência e desordem. Recorde-se, ainda, que naquelas sociedades
centralização —
nao poderia deixar de ter em consideração as
o triunfo da cidade sé foi definitivamente anunciado quando
circunstâncias de um país, uma vez que a organização política,
foi operada uma
identificação incontestável entre urbanização e atividade fabril,
de tal modo que administrativa e judiciária de um país sofria, no entender do diri-
as discussões sobre as cidades não deixavam de explicitar, no
fundamental» os
diferentes entendimentos sobre a afirmação da ordem capitalista
naquelas socie
d ades. Cf. a respeito o trabalho de Maria ALice Rezende de
Carvalho -- Cidade
e fábrica. A construção do mundo do trabalho na saciedade brasileira.
Campinas,
19B3. mimeografado (esperialmente a Introdução,
pp. l-Xl) e também Asa Briggs 29 CL acima p, 79.
' ^iciorian Cities. Londres, 1968. em quem aquela autora se
apoia, em &15
Relatório do mimsíro da Justiça, 1835, Manuel Alves Branco.
larga medida.
M Visconde do Uruguai — Op. cit ., tomo I, p, 13.

204
205
n
,

gente saquarema, a “insuficiência da divisão territorial, população Guerra do Paraguai, porque sua metamor-
funções, ao menos até a
e riqueza ”.32 não de normas endó-
fose essencial decorria de razões práticas e
Um território extenso, uma população excessivamente dispersa e
genas 36
. Umconjunto de características que, no essencial, se erigia
uma escassez quase generalizada de recursos financeiros combina-
como um
obstáculo à plena burocratização de um
Estado que, em
vam-se a todo momento e em cada local, dificultando a ação daque- e nos moldes que vimos considerando, pretendia
sua constituição
les que deveriam constituir-se em agentes do poder central, impondo
estar ao lado das demais “Nações civilizadas”.
limites ao objetivo centralizador e possibilitando a ascendência real
Assim, para Maria Sylvia de Carvalho Franco a pobreza isto —
do governo da Casa —
isto é, dos interesses particulares sobre — é, a escassez de recursos

impossibilitava o desenvolvimento da
os do governo do Estado. pública, pois embargava o processo de
burocracia na administração
Os estudos mais recentes sobre a organização e o caráter do Estado expropriação do servidor público dos meios materiais da adminis-
imperial não deixam de considerar estes elementos sempre que se
tração, da qual resultaria a nítida separação entre os recursos oficiais
empenham por efetuar uma classificação. Para alguns, como Maria e os bens privados dos funcionários. Como decorrência, o controle
Sylvia de Carvalho Franco e Fernando Uricoechea 33 eles estariam
,
pessoal tendia a estender-se a todo o patrimônio do Estado, encaran-
na base do caráter patrimonialista prevalecente, não só por impedir
do-se o papel deste como a maneira de expandir os interesses pri-
a separação entre os patrimônios público e privado dos agentes, mas
vados. 3 ^ Para Fernando Uricoechea, o elemento limitador desta buro-
também por determinar a sua forma de recrutamento, sempre dis- cratização residia sobretudo na presença da grande propriedade
tante dos critérios de competência e muito próxima dos laços de
rural, em larga medida refratária à ação do Estado por se constituir
parentesco. Marcariam ainda de modo indelével determinadas carac-
em verdadeira “instituição total”, no sentido que a esta atribui
terísticas, como uma certa indistinção entre a norma geral e sua
Erving Goffman 38 .

aplicação concreta pelo funcionário, entre a atividade do juiz e a 39 todas estas características apenas
Para outros, como Décio Saez ,

do legislador 34 ou ainda a instabilidade dos cargos e funções admi-


,
sublinhavam o caráter pré-burguês do Estado imperial, o qual se
nistrativas, sempre sujeitos às derrubadas e transferências arbitrá-
definia fundamentalmente pela interdição do acesso ao aparelho de
rias de seus ocupantes 35 além da tendência desta burocracia patri- 40
,
Estado aos membros da classe explorada fundamental: os escravos .

monial a continuar, e não crescer, a expandir-se, sem desenvolver-se estavam, por


Nestes termos, os cargos da administração pública
essência, reservados ao contigente de homens livres em geral, quer
nos termos de especialização, hierarquização e despersonificação das

fossem detentores de monopólios, quer fossem apenas proprietários


de suas pessoas. Na prática, contudo, a combinação desta inter-
32 “O território, naturalmente invariável, fixa a mobilidade dos outros dois
elementos, riqueza e população, que variam continuadamente, porque a massa da
riqueza e da população raramente é estacionária. Aumenta ou decai”. Visconde
do Uruguai — Op. cit., tomo II, p. 52. 36 Cf., p. ex., Fernando Uricoechea — “A formação do Estado brasileiro no
1

33 Maria Sylvia de Carvalho Franco — Homens livres na ordem escravocrata. século XIX”, Op. cit.
São Paulo, 1969; Fernando Uricoechea — O minotauro imperial. São Paulo, 1978.
_
37 “Não obstante essa tendência, a espinha dorsal na formação do Estado
34 Cf., p. ex., na obra de Maria Sylvia os diferentes relatos em que tanto os dos recursos privados, mais o exercício
moderno (a separação dos fundos públicos
juízes quanto os jurados transformam-se, no decorrer do júri, em legisladores
despersonalizado das funções públicas e sua definição por normas gerais)
não
(pp. 128-135). A esse respeito, as “Comédias” de Martins Pena fornecem, mais encontrava condições para se completar”. Maria Sylvia de Carvalho Franco

uma vez, significativo exemplo: em O Juiz de Paz na Roça no momento em “0 homem
Op. cit., p. 162. A respeito do tema, ver principalmente o capítulo III,
que um requerente protesta contra a decisão da autoridade judicial que o comum, a administração e o Estado”, pp. 111-162.
ameaçara prender por não estar de acordo com a decisão de uma audiência, 38 Cf. Fernando Uricoechea — O minotauro imperial, cit. (especialmente o
alegando que a Constituição não permitia que se prendesse à toa, o juiz de paz
cap. I, “A gênese do contexto patrionial”, pp. 21-54).
não titubeia em proclamar: “Eu, o Juiz de Paz, hei por bem derrogar a Consti-
tuição!” (cf. Comédias de Martins Pena. Edição crítica por Darcy Damasceno.
39 Décio Saez — A formação do estado burguês no Brasil (1888-1891).
Campinas, 1982 (mimeografado).
Rio de Janeiro, 1966, p. 46). 40 Apoiando-se em Perdigão Malheiro (A escravidão no Brasil), Décio Saez
35 Um único exemplo: Carlos Maximiliano observou que, num único dia do
sublinha que não só era proibido ao escravo servir como praça no Exército e na
ano de 1843, foram removidos, por motivos políticos, 52 juízes (citado por Marinha, como também inúmeras decisões determinavam, até o ano de 1865,
Victor Nunes Leal — Coronelismo enxada e voto. 2. a edição. São Paulo, 1975,
, a restituição aos senhores dos escravos recrutados ou apresentados voluntaria-
p. 197). mente quer para o Exército quer para a Marinha.

206 207
dição fundamental com os elementos que acima
foram apontados, em vista compreender, além de não considerar a diferenciação inter-

particularmente a escassez de recursos, acabava por discriminar na que aquela ordem privada passou a comportar.
entre os dois segmentos de homens livres, tendendo a reservar as Em verdade, a colocação em evidência deste Poder Administra-
ao seg-, tivo constitui-se em mais uma oportunidade para reafirmarmos uma
funções fundamentais e estratégicas aos que pertenciam
mento dos monopolizadores, como uma extensão entendida como construção.
natural, aliás, de seus monopólios.
**
1
E poderemos entender melhor esta postura caso voltemos a con-
De uma forma ou de outra, com um caráter ou outro, tudo isto siderar tanto o momento crucial de uma inflexão nas relações entre
que é apresentado sob a forma de “obstáculos ou entraves era as duas faces da moeda colonial, propiciado pela instalação da Corte

vivido cotidianamente por aqueles que se empenhavam


por ampliar portuguesa no Rio de Janeiro, quanto o momento seguinte de restau-
o alcance do olho do Poder. Referindo-se a um aspecto particular, ração dessa moeda, que passa a reservar à Coroa uma posição e um
o Visconde do Uruguai acabava por caracterizar de uma maneira papel privilegiados. Assim, se aquele primeiro momento se distin-
geral o quadro de constituição de uma organização e de uma direção guiu pela fusão dos monopólios de colonos e colonizadores, a qual
ao lembrar que se expressava na diferenciação de um espaço no interior da Região
— a área da Corte, o momento seguinte foi aquele em que os inte-

“cada mudança de Ministério e de administradores, como são resses gerados naquela fusão, consolidados pela expansão cafeeira e

os nossos Presidentes, traz uma inversão às vezes


completa potencializados pela ação da Coroa, passaram a apresentar seus
só do pessoal administrativo, como no modo de
encarar objetivos mais imediatos sob a forma dos objetivos do próprio
não
e decidir as questões administrativas. O administrador que Império.
começava a tomar pé nos negócios da Província é mudado, Ora, o que se apresentaria, desde então e cada vez mais, como
leva consigo o que a custo aprendeu, e aí vem outro, o
qual, representação dos interesses gerais, assumindo a forma do governo
apenas concluídas as primeiras apalpadelas, é também do Estado em oposição aos interesses particulares, não era senão
mudado. Et sic de coeteris. É assim que somos adminis- uma forma superior de organização de um segmento desses últimos,
trados! A cada mudança tudo fica suspenso, posto em objetivando uma restauração e mesmo uma expansão. Ou dizendo
dúvida, para começar a ser examinado de novo, com grande de outra maneira, aquilo que se constituía e é apresentado como
desânimo, desespero e prejuízo das partes. Assim todos os público emergia dos interesses particulares, do que é apresentado
grandes interesses a cargo da administração estão sujeitos como privado No fundamental, a aparente
. irredutibilidade entre
a uma constante instabilidade, e a administração
torna- a ordem privada e o poder público não deixava de ser a expressão
se, como tem sido entre nós, uma verdadeira teia de das tensões inerentes a uma constituição, a tensão dos caminhos
Penélope.” 42 tortuosos trilhados pelo plantador escravista, ao lado dos negociantes
e burocratas, em sua transmutação em classe senhorial.

Assim, na produção científica recente como na avaliação pelos A propósito, as dúvidas e inseguranças de uma autoridade judi-
contemporâneos, os interesses particulares aparecem como um cial não deixam de expressar, no que diz respeito à sua esfera de
gerais. atuação, as contradições que assinalavam esta constituição:
“obstáculo” à ação daqueles que representavam os interesses
caminho também, retorna a explicação sustentada na
E, por esse
oposição entre a ordem privada e o poder público, sempre
enten- “0 que é certo (...) é que hoje em dia é penosa a condi-
didos como irredutíveis e previamente dados à situação que se
tem ção de quem é autoridade: para uns é tido por relaxado e
subornado e para outros é tido por perseguidor e intolerante,
41 Falando do não cumprimento da Lei de 7 de novembro de 1831, Joaquim desde que não se preste a ser instrumento passivo de von-
homens
Nabuco caracterizava também o predomínio do segmento privilegiado dos tades alheias.” 43
livres nos cargos e funções fundamentais e estratégicas.
Dizia ele: “O escândalo
magistra-
continua, mas pela indiferença dos Poderes públicos e impotência da
tura, composta, também, em parte de proprietários de africanos”.
O abolicionismo.
a
4. edição. Petrópolis, 1977, p. 118.
42 Visconde do Uruguai — Op. cit ., tomo I, p. 22.
43 Citado por Maria Sylvia de Carvalho
Franco — Op. cit., p. 162.

208 209

.
,

Nestes termos, a força de um olhar vigilante, dominador e diri- foram levantadas, procurando-se articular a “riqueza” de cada uma
gente era proporcional à capacidade de forjar o que se entende por das províncias às necessidades materiais do governo do Estado.
público de delimitar um espaço correspondente ao da área da Corte
,
Quanto aos homens, importava conhecer sua distribuição pelo
no interior do privado Como se fossem olhos menores, extensões
. território, a composição étnica da população, os misteres em que

dos olhos do imperador, tendo como objetivo não se opor aos inte- se ocupavam, o que foi tentado por meio da realização de censos,

resses particulares, porque fossem diferentes, e sim dirigi-los, em diferentes oportunidades. 47Mas importava ainda conhecer o
porque eram distintos. seu existir cotidiano, e nessa tarefa assumiria destaque o chefe de
Esta busca de uma similaridade ou correspondência vom a área Polícia, cujas atribuições foram definidas de modo preciso por
da Corte —
o Município Neutro —
fez com que a constituição do ocasião da reforma do Código de Processo Criminal, em 1841. 48
público assumisse o conteúdo, muitas vezes, da construção de novos Competia ao chefe de Polícia tomar conhecimento das pessoas
espaços “neutros”, isto é, fora do alcance dos monopólios que distin- que de novo viessem habitar o Distrito: conceder passaporte; obrigar
guiam governo da Casa. A leitura dos Relatórios dos presidentes
o os vadios, mendigos, bêbados, prostitutas e turbulentos a assinar
de províncias, por exemplo, permite constatar as inúmeras recla- termo de bem viver, e aos legalmente suspeitos da pretensão de
mações e observações referentes à necessidade de construção de cometer algum crime, termo de segurança; vigiar as sociedades
44 Falava-se
prédios públicos: cadeias, escolas, câmaras municipais. secretas e coibir os ajuntamentos ilícitos; inspecionar os teatros e
também da necessidade de construção de estradas, pontes e canais espetáculos públicos; além de organizar a estatística criminai da
públicos, não só porque se acreditava que tais melhoramentos mate- província e, por meio dos seus delegados, subdelegados, juízes de
4 ® mas também porque desde
riais propiciavam riqueza e civilização, paz e párocos, o arrolamento da população,
a época joanina estes constituíam numa
empreendimentos se 4&
0 conhecimento da população por aqueles que exerciam um olhar
maneira eficaz de monopolizadores de
estreitar as alianças entre os vigilante desde a Corte 49 se completava com as medidas referentes
terras e de escravos e aqueles que detinham capital, além de
apro- ao controle de sua movimentação. Assim, os cidadãos poderiam
ximar a Casa do Estado* viajar pelo Império sem passaporte, mas “neste caso ficam sujeitos
Mas a construção do público —
que aqui se confunde, em larga
impunha —
às indagações dos Subdelegados”. Os escravos, os africanos livres

medida, com a constituição de um


Poder administrativo
ainda um esquadrinhamenta. Do território e dos homens que ele
La mio mencionar como um exemplo significativo a Caria coro gráfica do Império
continha. Mapas, plantas, cartas topográficas e corográficas foram
do Brasil de autoria de Conrad Jacob Niemeyer, publicada em 1846. Sobre a
f

elaboradas, permitindo a delimitação do território, das circunscrições importância que era atribuída a esta produção pelos dirigentes imperiais, cf. os
administrativas, judiciárias e eclesiásticas: possibilitando conhe- um Relatórios dos Presidentes da Província do Rio de Janeiro, p. ex,

cimento mais detalhado das potencialidades do território imperial;


47 Cf. a respeito as observações do Visconde do Uruguai no cap. IX —
“Influência da divisão territorial, população e riqueza”, Op cit ., tomo I, pp, 51-65.
.

tornando mais ágil a movimentação dos agentes da centralização e, Cf. Coleção de Leis do império do Brasil 1841 tomo IV, parte I, p. 101:
46 Informações estatísticas
assim, franqueando os limites da Casa, Lei n. p 261, de 3 de dezembro dc 1841 (Reforma do Código do Processo Crimi-
nal) e Coleção de Leis do Império do Brasil de 1842 (de agora em diante CL1B),
tomo V, parte II, p. 39: Regulamento n.* 120, de 31 de janeiro de 1842 (Re-
44 Em sua “Fala” na abertura dos trabalhos da primeira legislatura flumi- gula a execução da parte policial e criminal da Lei n.c 261 de 3 de dezembro
nense, dizia o Presidente Rodrigues Torres: “Faltam também a grande número de 1841).
de Vilas casa para reunião de seus Conselhos e de Tribunal de Jurados 49 Â reforma do Código do Processo Criminal expressava de maneira nítida
Em outro trecho lembrava que “a Câmara da Vila de Barra Mansa indica como a hierarquia que estava sendo fixada pelo Governo-Geral, desde a Corte, ao
necessário no seu Município, além de Cadeia e casa de Câmara ( necessidade que, definir as incumbências para o exercício da Polícia administrativa e judiciária:
como já disse, é comum a quase todas as vilas da Província)”.

RPP-RJf, o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça “como primeiro Chefe
1835: Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, pp. 12 e 24, respec- e centro de toda a Administração policial do Império; os Presidentes das Pro-
tivamente. vínciaSy “como seus primeiros Administradores e encarregados de manter a se-
45 “Ninguém há aí que hoje desconheça quanto a riqueza e a civilização de gurança e tranquilidade pública, e de fazer executar as Leis”; os Chefes de
um País cresce na razão direta de seus meios de comunicação '. RPP-RJt 1835: Policia no Município da Corte e nas Províncias; os Delegados de Polícia e Sub-
Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, p, 15- delegados nos Distritos de sua jurisdição; os Juízes Municijyais nos Termos; os
45 Seria ocioso enumerar, aqui, alguns dos mapas, plantas e cartas então Juízes de Paz nos Distritos; os Inspetores de Quarteirões.- e as Câmaras Muni-
produzidos, especialmente no intervalo de tempo que estamos considerando, bas- ripais nos Municípios.

210 211
e os libertos não poderiam transitar sem passaporte, mesmo em
ciai ou geral, tornaram-se peças estratégicas no jogo de constituição
companhia de seus senhores, a não ser que fosse conhecido por do Estado imperial e da classe senhorial, um jogo que não se
alguma autoridade local ou estivesse percorrendo o caminho habi- travava exclusivamente entre o governo da Casa e o governo do
tual de uma fazenda para outra ou para uma povoação. Coi^Y
Estado.
exceção daqueles empregados no serviço público do Império, e dos A enumeração que acabamos de fazer permite perceber que não
funcionários de representações de nações estrangeiras e da tripulação
consideramos unicamente os empregados públicos como agentes da
de qualquer navio, nenhum estrangeiro poderia viajar sem passa- administração pública, e também da centralização. E se assim proce-
50 E, como expressão do máximo controle,
porte pelo Império.
demos é porque estamos estendendo a eles a postura que adotamos
quando em alguma província, comarca ou termo aparecesse compro-
em relação ao Estado na parte anterior, o qual não foi considerado
metida gravemente a segurança e a tranqüilidade pública, ou fossem apenas e nem principalmente em seu aspecto de dominação ou
cometidos inúmeros e graves crimes, o governo do Estado poderia
coação, mas sobretudo de direção. Por isso mesmo, o conjunto dos
ordenar que “temporariamente não se permita o trânsito em toda agentes administrativos deve ser entendido como um conjunto de
a Província, ou em parte dela, a pessoa alguma sem passaporte,
dirigentes, em que pese as diferenças internas e o grau relativo de
sob pena de ser preso todo aquele desconhecido, que não o
homogeneização
trouxer”. 51 Neste sentido, o redator de uma folha local não raro se constituía
Construção de prédios públicos, realização de melhoramentos
num agente da centralização muito mais significativo do que um
materiais, levantamento de dados e confecção de mapas, exercícios
empregado público. Os valores de Ordem, de adesão ao Império e
de vigilância e controle punham em contato, a cada passo, o ele- ao imperador, de respeito à Constituição e aos Poderes Políticos
mento particular e o governo, até mesmo porque não raras vezes que as folhas locais difundiam, ao lado das campanhas em prol dos
este último era obrigado a recorrer ao primeiro, como decorrência
melhoramentos materiais, cumpriam um papel conservador e inte-
da escassez de recursos, da extensão do território e da dispersão da grador que não encontrava comparação no desempenho do mais
população, a que fizemos referência.
diligente dos empregados públicos. 52 Em seu âmbito e com os
Todavia, não nos parece que o mais importante neste contato
recursos de que dispunham, tais redatores não deixavam de contri-
consiste na colocação em relevo dos “obstáculos ou entraves que
buir para a superação das concepções localistas e particularistas em
se erguiam, como uma pesada herança do passado impedindo a proveito de uma concepção de vida estatal, e nestes termos é que
plena constituição de um Estado Moderno. Se estamos preocupados devem ser incluídos entre os agentes públicos .

em compreender o que se passa, devemos pôr em evidência, antes 52


De outro lado, esta ampliação do conjunto dos agentes adminis-
de tudo, o elemento que efetivava este contato; o agente da admi-

no dizer de Uruguai —
o agente da
trativos —
como decorrência da ampliação do conceito de admis-
nistração pública que era
centralização.
,
tração dos homens —
permite que também percebamos de modo
diverso o papel daquelas instituições que, via de regra, são enten-
Presidentes de províncias e chefes de legião da Guarda Nacional;
didas como meramente ligadas às tarefas de repressão. Tomemos o
bispos e juízes municipais, de paz e de órfãos; membros das Relações
exemplo da Guarda Nacional, ela também um agente centralizador.
e redatores de jornais locais; empregados das faculdades de Medi-
cina, dos cursos jurídicos e academias e juízes de Direito; coman-
Sem dúvida, a reforma de 1850 —
em contraste flagrante com
a organização inicial de 1831, fruto da “Ação” que produzira a
dantes superiores da Guarda Nacional, párocos e médicos; chefes
de Polícia e professores —
todos esses e alguns mais, em graus
Abdicação —
contribuiu para esta centralização ao subordinar a
Guarda Nacional ao ministro da Justiça e aos presidentes de provín-
variados e em situações diversas, nos níveis local, municipal, provin-
cias, ao substituir a eleição dos oficiais pela nomeação por aquelas
autoridades e ao estabelecer uma legislação unificada para a insti-

50 Cf. Berenice C. Brandão, limar R. de Mattos e Maria Alice R. de Car- tuição em todo o Império.
valho — A Polícia e a força policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1981,
p. 109.
51 CLIB, ano de 1830. Lei de 16 de dezembro de 1830 — Código Criminal
Cf., p. ex., as indicações contidas em Luiz Damasceno Ferreira — História
do Império do Brasil. de Valença.
a
edição. Valença, 1978
2. (especialmente pp. 99-107).

212
213
Não obstante, parece-nos que a ação centralizadora que a insti-
tidos pelos empregados públicos “contra a boa ordem e adminis-
tuição desenvolveu não se prende necessariamente àquelas regula-
tração pública” e “contra o Tesouro Público e propriedade pública”,
mentações, e sim à sua rotina e ritual, poderosos e eficientes meios
— crimes esses que, de uma maneira geral, buscavam coibir quer
de difundir uma “civilização” isto é, os princípios conservadores
infrações de natureza “moral” — como prevaricação, peita, suborno,
que também os Saquaremas professavam. Entre os cidadãos ativos
— os eleitores obrigados ao serviço nas principais cidades do Impé-
falsidade e outras — quer de natureza “funcional” — como con-
cussão, falta de exação no cumprimento dos deveres, apropriação
rio, e que eram os principais portos exportadores; os votantes nos
indébita de bens e propriedades etc. 55
demais municípios — a Guarda Nacional foi o mais eficiente e
Estas determinações do Código Criminal, que tanto buscavam
poderoso agente difusor das noções de ordem, disciplina e hierar-
garantir os agentes da administração em seus diferentes níveis de
quia, da associação entre unidade do Império e unidade da Nação,
atuação quanto estabeleciam um controle sobre eles, eram comple-
do estabelecimento da relação entre Tranqüilidade e Segurança
mentadas por uma infinidade de leis, decisões, regulamentos, regi-
Pública e Monarquia. 53
mentos, avisos e demais textos legais, quase sempre de caráter norma-
Todavia, se os jornais, a Guarda Nacional, o teatro de Martins
tivo, dirigidos aos corpos policiais, aos guardas nacionais, às autori-
Pena, os médicos, os professores e outros agiam no sentido de uma
dades judiciárias, aos professores e demais funcionários civis e
adesão de um contingente significativo dos homens livres aos valores
eclesiáticos.
professados pela classe em constituição, um papel também estava
Ora, esta sofreguidão normativa não deixava de contrastar viva-
reservado aos empregados públicos.
mente com o cotidiano das funções, sempre marcado pela forma
E o governo do Estado procurou privilegiá-lo por diferentes
de preenchimento dos empregos públicos e pelas paixões partidárias.
meios.
E deste embate entre o exercício da administração e as normas que
De uma procurando cercar de garantias a ação dos empre-
parte,
insistiam em disciplinar a atuação daqueles por ela diretamente
gados Assim, o Código Criminal de 1830 classificava
públicos.
responsáveis resultava a leia de Penêlope. E também a estratégia
entre os “crimes contra a segurança interna do Império e pública
que os Saquaremas definiram para, neste campo particular, alcan-
tranqüilidade” os crimes de sedição e resistência. No primeiro caso,
çar uma centralização, ao mesmo tempo que a justificava.
sempre que mais de vinte pessoas, armadas todas ou parte delas, se
Com efeito, à medida que consolidavam suas posições no Governo-
reuniam com a finalidade de obstar a posse do empregado público
Geral, assegurando os interesses do segmento dentro da região de
nomeado legalmente, de o privar do exercício do seu emprego ou
agricultura mercantil-escravista que mais diretamente represen-
de impedir a execução e cumprimento de qualquer ato ou ordem
tavam, os Saquaremas definiram uma das estratégias para “estar no
legal; no último, sempre que alguém se opunha, servindo-se da
54 governo da Casa”. Tendo como referência os “círculos” traçados,
força, à execução das ordens legais das autoridades competentes.
a distância entre a Corte e a Casa, e a diferença entre o Município
De outra, procedendo a uma inversão: ou porque permitia que
Neutro e o município dominado pelos “interesses mesquinhos”,
os empregados públicos fossem olhados por aqueles que, em princí-
pio, deveriam ser vigiados; ou porque ele próprio o governo do — eles privilegiaram os cargos intermediários, geralmente localizados
no “círculo provincial”. 56 A estratégia consistia em unir do modo
Estado —
olhava aqueles que eram extensões dos seus próprios
mais estreito possível ao Governo-Geral os cargos nas províncias,
olhos. O Código Criminal também permite entender melhor esta
cujos ocupantes poderiam ser “empregados gerais” ou “empregados
operação inversa. No primeiro caso, ao determinar que “não se
provinciais e municipais criados por leis gerais para execução das
julgará sedição o ajuntamento do povo desarmado, em ordem, para
o fim de representar as injustiças e vexames e o mau procedimento
dos empregados públicos”. No último, quando previa crimes come-
55 Idem. Parte segunda, títulos V e VI (art. 129-178).
56 Talvez seja interessante lembrar como o Visconde do Uruguai, apesar de
reconhecer que “não temos uma divisão territorial conforme aos princípios que
53 Cf. a respeito: Antônio Edmilson M. Rodrigues, Francisco José C. Falcon
Margarida de Souza Neves — A Guarda Nacional no Rio de Janeiro: 1831-1918.
um devem regular”, recusava a solução da criação de novas províncias ou de
e
Fernando Uricoechea — O minotauro imperial
lerritórios, a partir do desmembramento das existentes, como solução para melhor
Rio de Janeiro, 1981; e ,
op. cit.
controlar o que denominamos de governo da Casa. Cf. Ensaio sobre o Direito
54 Cf. Código Criminal de 1830 (art. 112).
Administrativo, tomo I, pp. 51-66.

214 215
H

leis também gerais”, conforme vinha indicado no parecer da câmaras municipais e às assembléias provinciais, e tornar indepen-
comissão encarregada da interpretação do Ato Adicional, 57 e que dentes as leis policiais judiciárias das sanções dos presidentes das
acabou por se transformar na Lei de Interpretação de 1840. províncias; e a negação às Assembléias Provinciais do poder
O estabelecimento desse nexo estreito tinha como finalidade últi- de suspender e demitir os membros das relações e tribunais
ma transformar esses empregados públicos em dirigentes saqua- superiores”. 59
remas, o que acabou sendo facilitado pelo fato de eles já estarem em Umoutro passo foi dado por meio da reforma do Código do
correspondência, quando não se confundiam, com aquele segmento Processo Criminal em 1841, que não apenas esvaziava o poder do
intermediário dos dirigentes imperiais a que fizemos referência na juiz de paz —
o qual na avaliação dos Saquaremas “era tudo”
segunda parte deste trabalho (ver acima p. 181), e que na província desde 18 3 2 60 —
como também redefinia, nos termos de uma
fluminense era representado por um Visconde de Ipiabas, por um ampliação, as atribuições dos chefes de Polícia, nomeados pelo
Barão do Pati do Alferes ou por um Marquês de Valença. imperador e localizados no Município da Corte e nas capitais
O estabelecimento desse nexo estreito, por outro lado, acabava por das províncias.
revelar a outra face da proposição prevalecente na produção histo- A
reforma da Guarda Nacional, em 1850, não deixava de cons-
riográfica, uma vez que aqueles empregados —
embora muitas vezes tituirum novo passo, visto que guardava sentido idêntico, muito
saídos da Casa ou a ela ligados intimamente —
acabavam por se embora caracterizasse também um novo equilíbrio entre força e
tornar a “cunha” do governo do Estado naqueles espaços entendidos consenso, conforme vimos há pouco.
não só como “privados” mas também” obstaculizadores”.58 “Cunha” Assim como houve passos que não passaram de cogitação, con-
de penetração superficial e muitas vezes lenta, sem dúvida, mas forme é possível perceber da leitura do documento que o Visconde
também ela propiciadora de uma centralização que, de resto, carac- do Uruguai dirigiu ao Marquês de Olinda, presidente do Conselho
terizava o Estadoque se construía, ao definir o padrão de relação de Ministros em 1858, e no qual eram aventadas medidas “para
entre dois governos ou entre dois monopólios. melhor organização das administrações provinciais”. 61 Nele apare-
Sigamos, rápida e sucintamente, a trajetória da construção desse ciam duas proposições: a criação de um conselho de presidente de
nexo estreito pelos Saquaremas. província e a criação de agentes administrativos como comissários
Um primeiro passo foi dado, sem dúvida, pelo parecer da comissão desses mesmos presidentes.
acima mencionada, constituída por Paulino José Soares de Sousa, No “um corretivo dos incon-
dizer do propositor, o conselho seria
Miguel Calmon du Pin e Honório Hermeto Carneiro Leão. Defini- venientes que traz a instabilidade e falta de permanência dos presi-
ram-se, então: a discriminação entre os empregos públicos provin- dentes, [por ser] o depositário das tradições, e contribuindo para
ciais e municipais criados por leis gerais para execução de leis imprimir nas diversas administrações presidenciais que se forem
gerais e aqueles outros criados por leis provinciais ou mesmo gerais, seguindo uma coerência e seguimento que, infelizmente, não “têm
mas sobre os quais podiam legislar as assembléias das províncias, tido e não têm”. Quanto à segunda proposição, aos novos agentes
com o objetivo de conservar “a unidade, harmonia e uniformidade seriam delegadas certas atribuições, nos lugares mais distantes das
da legislação geral em todo o império”; a distinção entre polícia capitais das províncias.
administrativa e judiciária, de tal modo que a primeira, a quem No fundamental, todavia, os passos propostos tanto revelavam a
incumbia tarefas relacionadas sobretudo à conservação da “urbani- avaliação pelos Saquaremas da obra que empreendiam quanto reno-
dade”, era definida como de competência do governo municipal, ao
passo que a última deveria ser subordinada ao Governo-Geral, tendo
em vista que não fora “intenção do ato adicional entregar a polícia 59 Cf.o Parecer “da comissão das assembléias legislativas, propondo um
judiciária, que pode e deve ser uniforme em todo o império, às projeto de decreto, interpretando vários artigos do Ato Adicional à Constitui-
ção”. Op. cit.
60 “A autoridade de eleição popular era tudo; a única de nomeação do go-
57 Anais do Parlamento Brasileiro (de agora em diante APB-Câmara dos verno [o juiz de Direito], nada”. Visconde do Uruguai —
Op. cit., tomo II,
Deputados). Sessão em 10 de julho de 1837, pp. 68-73. p. 205.
58 Cf. a respeito as interessantes observações de Gilberto Freire, em Sobrados 61 “Projeto para melhor organização das administrações
provinciais”. Rio de
a
e mocambos. 4. edição. Rio de Janeiro, 1968, tomo II, pp. 573-631. Janeiro, 1858.

216 217
r
vavam a postura de permanecer olhando os cidadãos ativos, e, por que enumerar agora aqueles trabalhos que, a
seria inútil e ocioso

extensão, os demais habitantes do Império. Não deixavam de carac- tomando ou não como referência
partir de perspectivas diversas e

terizar também a Teia em seu permanente movimento, pois espe- aquela expansão, procuram explicar a crise do escravismo colonial
rava-se que os ocupantes dos novos cargos fossem homens que gozas- e, em alguns poucos casos, apreender as transformações signifi-

sem de consideração pública, letrados e dotados de imparcialidade, cativasque distinguem aquele subconjunto da sociedade que denomi-
além de que servissem gratuitamente. namos acima de mundo do trabalho.
Visto em perspectiva, torna-se possível perceber como esse olhar Sem dúvida, o mesmo não podemos dizer do lugar ocupado pela
vigilante, dominador e cumpria o papel de constituir
dirigente, questão da terra na produção historiográfica, embora ela se relacione
uma classe. Torna-se possível perceber ainda como, ao tentar abran- de maneira íntima com as transformações que distinguem aquele
ger todo um território, esse mesmo olhar tanto sublinhava uma período. Quase sempre apenas referida pela maior parte dos autores,
unidade quanto na condição necessária para a recria-
se constituía ela é desenvolvida com rigor e profundidade em alguns poucos
ção das condições que geravam as regiões, as diferenças entre elas trabalhos, os embora a coloquem lado a lado
quais, todavia,
e no interior da principal delas —
a região de agricultura mer- da questão da mão-de-obra nem sempre estabelecem entre ambas
cantil-escravista. Torna-se perceber sobretudo como esse
possível todas as relações possíveis 62
Numa certa medida, somente o trabalho
.

olhar era a maneira de privilegiar alguns no conjunto dos interesses de José de Souza Martins —
O Cativeiro da Terra procura apro- —
dominantes de um Império constituído por “três mundos”, con- fundar as relações entre as transformações ocorridas no mundo do
forme poderá ser melhor percebido no item seguinte, a propósito trabalho e aquelas que se processam na regulamentação jurídica da
do encaminhamento dado a questão do tráfico negreiro intercon- propriedade da terra, e aí se encontra, com certeza, uma das razões
tinental. da repercussão alcançada pela obra 63 Procurando demonstrar a .

Os olhos do Soberano expressavam, assim, a restauração em curso cada passo como ocorre “a produção capitalista de relações não-
da moeda colonial, a qual pressupunha a reprodução das diferenças capitalistas de produção” e enfatizando ter sido a renda capitali-

e hierarquias em
sua face complementar. E, ao cabo, essas diferen- zada “a principal forma do capital na fazenda cafeeira”, o autor
ças e hierarquias se constituíam na limitação do alcance de um deixa-se trair, contudo, por uma frase de efeito, ao dizer que “num

olhar, pois se o Império a todos deveria conter, a Coroa, por seu regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime
turno, somente a alguns poderia privilegiar por meio da associação de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”, pois ao buscar sinte-
que permanentemente promovia entre política e negócios, as rodas tizar as transformações em curso, acaba por negar um dos elementos

do “carro social”. que definiam o colono.


Os olhos do Soberano teciam a Teia de Penélope. Numa outra perspectiva, podemos dizer que a quase totalidade
dos trabalhos que se ocupam com as transformações que assinalam
a segunda metade do século passado apresentam duas outras carac-
terísticas marcantes e, até certo ponto, articuladas. De um lado,

2. A RESTAURAÇÃO LIMITADA eles tendem a apresentar aquele período de tempo nos termos de
uma sucessão de transformações sócio-econômicas, encadeadas por

“Você poderia me dizer, por favor, que ca-


minho devo seguir para sair daqui?”, disse
Alice.
62 Além dotrabalho essencialmente jurídico de Ruy Cirne Lima Pequena —
história do Brasil. 2. a edição. Porto Alegre, 1954 (especialmente o
territorial
“Isto depende muito de onde você quer che-
gar”, respondeu o gato.
cap. IV), merecem destaque os textos de Emília Viotti da Costa “Política —
de terras no Brasil e nos Estados Unidos”, in Da Monarquia à República: Mo-
Lewis Carrol — Alice 110 País das Maravilhas. mentos decisivos. São Paulo, 1977, pp. 127-148, o de Warren Dean “Lati- —
fúndios y política- agraria en el Brasil dei siglo XIX”, in Haciendas latifúndios ,

A segundo metade do século XIX no Brasil constitui um dos y plantaciones en América Latina. México, 1975, e o de Maria Yedda Linhares

momentos privilegiados pela historiografia. Nela, a expansão cafeei-


e Francisco Carlos Teixeira da Silva —
História da agricultura brasileira.
São Paulo, 1981.
ra e a questão da mão-de-obra aparecem com destaque, de tal forma 63 Cf. José de Souza Martins —
O cativeiro da terra. São Paulo, 1979.

218 219
uma relação de causa-efeito, sucessão essa iniciada com a extinção proposta; mas recordemos que ambas não se definiam e forjavam
do tráfico* negreiro intercontinental em 1850 (sintomaticamente, por si mesmas, e sim no calor da luta contra os interesses da bur-
jamais com a aprovação da denominada Lei de Terras, no mesmo guesia industrial inglesa, contra as propostas e interesses de outros
ano) e concluída com a emancipação total dos escravos e a queda segmentos da classe senhorial, que geralmente se apresentavam ou
da Monarquia. Um
período que é apresentado em sua unidade eram apresentados como “os Luzias”, e ainda contra as insurrei-
porque, em paralelo ao desdobrar espacial dos cafezais pelo Sudeste ções negras freqüentes. Lutas tão mais interessantes de serem reme-
— do Vale ao Oeste Velho, e daí ao Oeste Novo —
suceder-se-iam
, moradas quanto um triunfo, por maior que fosse, não deveria signi-
no tempo,, de modo natural e necessário (embora assim não seja ficar a liquidação do oponente — pelo contrário!
dito), os momentos tanto de crise da ordem escravista (entendida Por isso mesmo, explicar a consolidação do Estado imperial como
em termos estritamente jurídicos) quanto de introdução de imi- condição para a restauração dos monopólios que distinguiam a
grantes estrangeiros (à fracassada experiência do “sistema de par- classe senhorial nos impõe, mais do que em qualquer outro mo-
ceria” teria sucedido a imigração subvencionada, com êxito), che-
mento, a consideração da ação política dos Saquaremas. O que sig-
gando-se mesmo a insinuar que o progressivo esvaziamento do “esto-
nifica também romper tanto com uma seqüenciação quanto com
que de escravos”, à medida que os cafezais avançavam, era compen- excessivamente comprometidas com os processos
as explicações
sado pelo progressivo aumento da chegada de mão-de-obra européia.
econômicos.
De outro lado, na descrição desta trajetória espacial e temporal, são
muitas vezes ignorados os conflitos e tensões que a impulsionaram, Ora, na ação desenvolvida pelos Saquaremas, a busca de uma
a começar pelas lutas e insurreições das massas escravas. Ora, tais restauração nos quadros de uma defensividade ganhou, quase sem-
omissões não apenas ignoram o papel determinante dos grupos pre, a formulação da garantia da Soberania Nacional. Sem embargo,
os Saquaremas não apenas impuseram a questão da
soberania
sociais fundamentais, como também esmaecem as lutas e disputas
que dividiam os grupos dirigentes e a própria classe senhorial. nacional e sobrepuseram a questão da escravidão à questão nati-
vista. No momentode consolidação do Estado imperial, eles
Se cruzarmos, neste ponto, a pequena relevância dada à questão Nacional à questão da escravidão e, por
da terra com as duas características que acabamos de apontar — articularam a Soberania
meio da Coroa, levaram a cabo políticas específicas, estreitamente
uma seqüenciação espácio-temporal e uma omissão —
veremos que
articuladas entre si, caracterizando a direção e a dominação que
a memória dada à sociedade pela historiografia não apenas esvazia
a significação dos interesses em presença —
proprietários de escra-
exerciam.
Em meados do século, foi a questão do tráfico negreiro intercon-
vos x escravos; monopolizadores x antimonopoliza dores; dirigentes
— como ainda impossibilita a percepção de um tinental que possibilitou, num primeiro momento, a articulação há
x dirigidos
por em evidência os dois aspectos que, então,
,

“momento” diferenciado naquele período indiferenciado, “momen- pouco mencionada, ao


distinguiam a crise do escravismo colonial: a política repressiva
to” esse assinalado por um esforço de restauração num quadro inter-
inglesa e as insurreições crescentes. Neste momento, a questão da
nacional que impunha, conforme já destacamos, uma defensividade.
Soberania Nacional se apresentava, pois, referida tanto às relações
Em meados do século passado —
com mais precisão, entre os entre os dois Impérios quanto à ordem e segurança internas.
últimos anos do Período Regencial e o início dos anos sessenta, Vejamos, em primeiro lugar, como ela se apresentava no que diz
os Saquaremas se distinguiram por uma atuação que objetivava, a respeito às relações com o Império britânico.
partir da Coroa, uma restauração, o que, por si só, talvez já distin- Acreditamos não ser necessário repetir os interesses que moviam
guia o “momento” que criam de outros “momentos” posteriores. a política britânica, particularmente naquele que denominamos
Tendo em vista uma restauração, mas limitados por uma defensivi- como o “segundo momento” da trajetória da burguesia industrial
dade, eles se distinguiram por tomar em consideração de maneira inglesa, ao ter em consideração a restauração em curso da moeda
conjunta aquelas “questões” que a historiografia ainda hoje tende colonial, e que se cristalizam na aprovação do bill Aberdeen pelo
a tratar dissociadamente: a terra e a mão-de-obra; o tráfico negreiro Parlamento britânico, em 1845 (ver acima, Parte I, p. 95). Basta

externo e o tráfico interno; a corrente imigratória africana e a euro- recordar, talvez, a repressão crescente, mesmo em águas territoriais
péia; a Casa e o Estado. Uma ação que procurava tornar real uma do Império de tal modo que, entre 1849 e 1851, foram tomadas,

220 221
à
uma relação de causa-efeito, sucessão essa iniciada com a extinção proposta; mas recordemos que ambas não se definiam e forjavam
do tráfico negreiro intercontinental em 1850 (sintomaticamente, por si mesmas, e sim no calor da luta contra os interesses da bur-
jamais com a aprovação da denominada Lei de Terras, no mesmo guesia industrial inglesa, contra as propostas e interesses de outros
ano) e concluída com a emancipação total dos escravos e a queda segmentos da classe senhorial, que geralmente se apresentavam ou
da Monarquia. Um
período que é apresentado em sua unidade eram apresentados como “os Luzias”, e ainda contra as insurrei-
porque, em paralelo ao desdobrar espacial dos cafezais pelo Sudeste ções negras freqüentes. Lutas tão mais interessantes de serem reme-
— do Vale ao Oeste Velho, e daí ao Oeste Novo —
suceder-se-iam
, moradas quanto um
triunfo, por maior que fosse, não deveria signi-
no tempo, de modo natural e necessário (embora assim não seja do oponente
ficar a liquidação —
pelo contrário!
dito), os momentos tanto de crise da ordem escravista (entendida Por isso mesmo, explicar a consolidação do Estado imperial como
em termos estritamente jurídicos) quanto de introdução de imi- condição para a restauração dos monopólios que distinguiam a
grantes estrangeiros (à fracassada experiência do “sistema de par- classe senhorialnos impõe, mais do que em qualquer outro mo-
ceria” teria sucedido a imigração subvencionada, com êxito), che-
mento, a consideração da ação política dos Saquaremas. O que sig-
gando-se mesmo a insinuar que o progressivo esvaziamento do “esto-
nifica também romper tanto com uma seqüenciação quanto com
que de escravos”, à medida que os cafezais avançavam, era compen- excessivamente comprometidas com os processos
as explicações
sado pelo progressivo aumento da chegada de mão-de-obra européia.
econômicos.
De outro lado, na descrição desta trajetória espacial e temporal, são
Ora, na ação desenvolvida pelos Saquaremas, a busca de uma
muitas vezes ignorados os conflitos e tensões que a impulsionaram,
a começar pelas lutas e insurreições das massas escravas. Ora, tais
restauração nos quadros de uma defensividade ganhou, quase sem-

omissões não apenas ignoram o papel determinante dos grupos pre, a formulação da garantia da Soberania Nacional. Sem embargo,
os Saquaremas não apenas impuseram a questão da
soberania
sociais fundamentais, como também esmaecem as lutas e disputas
que dividiam os grupos dirigentes e a própria classe senhorial. nacional e sobrepuseram a questão da escravidão à questão nati-
vista. No momento de consolidação do Estado imperial, eles
Se cruzarmos, neste ponto, a pequena relevância dada à questão Nacional à questão da escravidão e, por
da terra com as duas características que acabamos de apontar — articularam a Soberania
meio da Coroa, levaram a cabo políticas específicas, estreitamente
uma seqüenciação espácio-temporal e uma omissão veremos que— articuladas entre si, caracterizando a direção e a dominação que
a memória dada à sociedade pela historiografia não apenas esvazia
exerciam.
a significação dos interesses em presença —
proprietários de escra-
Em meados do século, foi a questão do tráfico negreiro intercon-
vos x escravos; monopolizadores x antimonopolizadores; dirigentes
num primeiro momento, a articulação há
x dirigidos , —
como ainda impossibilita a percepção de um tinental que possibilitou,
pouco mencionada, ao pôr em evidência os dois aspectos que, então,
“momento” diferenciado naquele período indiferenciado, “momen-
distinguiam a crise do escravismo colonial: a política repressiva
to” esse assinalado por um esforço de restauração num quadro inter-
inglesa e as insurreições crescentes. Neste momento, a questão da
nacional que impunha, conforme já destacamos, uma defensividade.
Soberania Nacional se apresentava, pois, referida tanto às relações
Em meados do século passado — com mais precisão, entre os entre os dois Impérios quanto à ordem e segurança internas.
últimos anos do Período Regencial e o início dos anos sessenta, Vejamos, em primeiro lugar, como ela se apresentava no que diz
os Saquaremas se distinguiram por uma atuação que objetivava, a respeito às relações com o Império britânico.
partir da Coroa, uma restauração, o que, por si só, talvez já distin- Acreditamos não ser necessário repetir os interesses que moviam
guia o “momento” que criam de outros “momentos” posteriores. a política britânica, particularmente naquele que denominamos
Tendo em vista uma restauração, mas limitados por uma defensivi- como o “segundo momento” da trajetória da burguesia industrial
dade, eles se distinguiram por tomar em consideração de maneira inglesa, ao ter em consideração a restauração em curso da moeda
conjunta aquelas “questões” que a historiografia ainda hoje tende colonial, e que se cristalizam na aprovação do bill Aberdeen pelo
a tratar dissociadamente: a terra e a mão-de-obra; o tráfico negreiro Parlamento britânico, em 1845 (ver acima, Parte I, p. 95). Basta
externo e o tráfico interno; a corrente imigratória africana e a euro- recordar, talvez, a repressão crescente, mesmo em águas territoriais
péia; a Casa e o Estado. Uma ação que procurava tornar real uma do Império de tal modo que, entre 1849 e 1851, foram tomadas,

220 221
'

condenadas e destruídas pela marinha inglesa cerca de noventa


tadas M e das diferentes políticas em implementação; ou Soberania
embarcações suspeitas de trafico, na denuncia do ministro dos
Nacional ou tráfico negreiro intercontinental .

Estrangeiros 64 repressão essa que em contrapartida, provocou o militante, ao fazer


, :
Perdigão Malhei ro, emancipacionista convicto e
aumento assustador da introdução de africanos no Império 65 conduziu à extinção do tráfico em 1850,
.
um balanço da ação que
0 que talvez seja importante destacar, nos lermos de nossos pro- não deixaria de confundir, como quase todos em seu tempo, a atua-
pósitos, é como a política britânica passou a ser encarada como uma de efetivar a disjun-
ção desenvolvida pelos Saquaremas, no sentido
agressão e ameaça a soberania do Império, mesmo por aqueles poucos vontade da Nação. Comenta-
ção referida, com a sempre anódina
que, até então, julgavam legítima a política da Velha Albion por
ria que
serem contrários ao tráfico e à escravidão.
“a opinião decidiu-se contra ele. A imprensa prestava
Ora, se a questão da Soberania Nacional poderia reforçar, por um o seu
lado, a atuação dos traficantes, como efetiva mente ocorreu, de outro imenso foi o im-
poderoso e mágico auxílio a tão nobre fim;
ela também se constituiu num recurso político utilizado pelos grupa- pulso: imenso o resultado. O espírito de associação contra o
mentos partidários para se recomendarem junto à Coroa e aos elei- 6!>
tráfico se desenvolvia.’
tores: Luzias e Saquaremas acusavam-se reciproca mente de conduzi-
rem com inabilidade as negociações com a Inglaterra, do que resul-
verdade, o “poderoso e mágico auxilio da
imprensa foi sobre-
Na
tava a afronta à honra nacional, conforme destacou em seus traba- Brasil por J. J. da Rocha,
tudo a campanha encetada nas páginas d’0
lhos Paula Beiguelmann, 66 Assim, e para dar um
único exemplo, os de negros. Por sua vez, o espírito
contra o tráfico e os introdutores
Luzias que, como já vimos, insistiam em denunciar as relações in- incentivado por meio do Aviso de 31 de a g° slD de
de associação era _
timas entre os traficantes negreiros e os Saquaremas, foram acusados contra o Trafico
1850. aprovando a criação na Corte da Sociedade
ainda
por estes últimos de terem provocado a edição do bill Aberdeen, não
e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas. E.
só por agirem com inabilidade nas negociações com o governo bri- após a promulgação
mais significativo, quando, cerca de dois anos
tânico mas também por estarem comprometidos com elementos li- de 1850, Eusébio de Queirós compareceu
da Lei de 4 de setembro
gados ao comércio negreiro. Defenderam -se* então, com a bandeira Deputados para expliear a medida que tomara, os di-
à Câmara dos
e argumentos de seus adversários e acusadores: o ministro dos Es-
rigentes saquaremas fizeram imprimir em
avulso o seu depoimento,
trangeiros do Gabinete Liberal de 1845 (26 de maio), Antônio Pau- Legações Estrangeiras.
distribuindo-o até mesmo pelas
lino Limpo de Abreu, em uma nota de “Protesto do Governo Impe empenho por tornar legítima essa disjunção ou Sobera- —
rial contra o Bill sancionado em 8 de agosto de 1845, relativo aos
Ora. o
nia Nacional ou tráfico negreiro intercontinental

desdobrava
se
navios brasileiros que se de encerrar
empregarem no tráfico'*, caracterizou a po- no empenho em atribuir ao Governo Imperial a decisão
lítica britânicade atentatória do Direito das Gentes, da Soberania
o tráfico, evitando apresentá-la, assim, como
uma decisão derivada
e dignidade da Nação. 67 a correspondência entre o ministro
da pressão britânica. Percorrer
Todavia, a colocação da Soberania Nacional no centro da discussão Gabinete que promovera a extinção do trafico.
dos Estrangeiros do
referente ao tráfico negreiro acabou por cumprir um outro papel na Soares de Sousa, e o representante diplomático britâ-
Paulino José
ação desenvolvida pelos Saquaremas. Ela propiciou uma disjunção,
nico. James Hudson, nesses anos, é
deparar-se a cada instante com

a disputa por uma atribuição. Em


justificadora perante o Povo das medidas repressivas que foram ado- seu relatório de 1851, o ministro

do Império do Brasil insistira que


Relatório do ministro dos Estrangeiros, ano de 1851,
^ armado com aquela lei, obtido em
Cf M entre outros, L^slie Belheil -— d oboliçoo do tráfico de escravos no “tem o governo do país*
Brasil. São Paulo, 1976; Robert Coorad —- Os últimos amos da
-
escravatura no
Brasil, Rio de Janeiro, 1975; Maurício Goulart —
A escravidão africana no
Brasil — doa origens ã exíinção do tráfico 3* edição. Sio Paulo, 1975,

.

^ Gf-
^au^ a Beiguelman Formação política do Brasil (Primeiro volume: 6S Cf. o discurso do Conselheiro Eusébio de Queirós Coutiüho^
Matoso Ga-
Teoria e ação do pensamento abolicionista) São Paulo, 1967.
de 1852. APB Camara dos Deputados. Sessão de 16 de
mara, em julho
67 A nota é Eranscrila
Ensaio histórico jurídico,
ío Perdigão Malheiro —
A escravidão no Brasil.
16
julho de 1852.
de

social. 3.“ edição. Petrópolis, 1Í76, vol. II, pp. 193-200.


,
69 Op. cit-, p. 54.

222 223
menos de um ano o que em muitos nunca puderam conse-
teiramente nacional”, que o governo encaminhara, como muitas ou-
guir todas as violências dos cruzadores britânicos.” 70
tras, em termos administrativos.
De acordo com Eusébio, a continuação da importação de africa-
Em seu depoimento, há pouco referido, Eusébio não deixaria
de nos ameaçava a soberania do Império de duas maneiras principais.
insistir também na atribuição ao mencionar que
Em primeiro lugar, porque

a Nação brasileira tinha prestado um relevante serviço à


“os escravos morriam, mas as dívidas ficavam, e com elas
causa da humanidade.” 71
os terrenos hipotecados aos especuladores, que compravam os
africanos aos traficantes para os revender aos lavradores
Como quer que seja, quando em junho de 1852 o embaixador
(Apoiados). Assim a nossa propriedade territorial ia passan-
inglês no Brasil, Henry Southern, comunicou a Paulino que o go-
do das mãos dos agricultores para os especuladores e trafi-
verno britânico decidira que os cruzeiros britânicos continuariam
cantes (Apoiados).”
“agora somente em alto mar, e não mais dentro dos limites territo-
riais do Brasil”, é certo que a questão da atribuição
não estava so- era utilizado pelo ministro da Justiça
lucionada. Todavia, ocorria o reconhecimento de que o Governo Im-
Argumento poderoso, o que
que extinguia o tráfico após tê-lo permitido por longos anos como
perial exercia uma jurisdição sobre o conjunto do território ou,
para
sermos mais precisos, de que controlava de maneira efetiva o exten- chefe de Polícia da Corte. Poderoso porque apelava para as imagens
que, havia muito, sustentavam o Império do Brasil: de lado,um um
so litoralque limitava a região de agricultura mercantil-escravista,
território que estava ameaçado de passar para o controle dos espe-
principal consumidora de escravos africanos.
Por outro lado, é no discurso de Eusébio de Queirós perante a Câ- culadores, que passava das mãos dos agricultores “nacionais” para

mara dos Deputados que aparecem cristalizadas as relações entre a os especuladores e traficantes “estrangeiros”;
72 de outro, trân-um
sito que ameaçava a agricultura em sua estabilidade, fonte de ci-
Soberania Nacional e a extinção do tráfico, em seus aspectos inter-
nos. Proferido em 16 de julho de 1852, ele não deixava de vilização.
caracte-
rizar também de forças que conduzira ao pedido de de-
a correlação Em segundo lugar, porque tendo sido intensificado desde a edição
missão do gabinete de 29 de; setembro de 1848, e que aparecia em do bill Aberdeen, o tráfico estava provocando um crescente desequi-
parte na referência â existência em todos os partidos políticos de líbrio entre as categorias da população —
livres e escravos —
amea-,

homens que os seguem apenas “por paixão ou conveniência”, con- çando a existência dos primeiros. Crescia o
forme já vimos, pedido esse que tinha como objetivo, sem dúvida,
como o discurso do ex-ministiro da Justiça, a restauração de um con- “receio dos perigos gravíssimos a que esse desequilíbrio nos
sentimento ativo para uma expunha. (...) Alguns acontecimentos ou antes, sintomas
direção.
Sigamos a argumentação de Eusébio, pois. Segundo de natureza gravíssima, que se foram revelando em Campos,
ele, a Lei de
1850 representava o atendimento a um reclamo da no Espírito Santo, e em alguns outros lugares como nos im-
portantes municípios de Valença e Vassouras, produziram
“opinião que vê na continuação do tráfico um terror, que chamarei salutar.” 73
um grave perigo
contra a nossa segurança interna.”
tema da ordem e da segurança interna reaparecia, mas não da
O
Assim, ela não resultava cdo “canhão britânico”, e também não maneira como os Luzias sempre haviam insistido em apresentá-lo.
devia ser entendida nem como questão de política, nem como ques-
tão de partido. Era, antes de tudo, a expressão de uma questão
“in- 7 2 De acordo com Calógeras, em 1850, “dos 38 negociantes de escravos mais
importantes que se citavam no Rio, 19 eram portugueses, e 12, apenas, brasilei-
ros. O mesmo se dava quanto aos navios”. J. Pandiá Calógeras
— “O Brasil por
70 Relatório do ministro
dos Esstrangeiros, ano de 1851.
1840”, in O Jornal —
Edição comemorativa do Centenário de D. Pedro II,
71 APB-Câmara dos Deputados.
ano VII, n.° 2135, 1925.
Sessão de 16 de julho de 1852.
73 Todas as citações são do discurso de Eusébio de Queirós (Cf. nota 68).

224
225
-

Não era o elemento português quem ameaçava nossa tranquilidade Deoutro lado, as informações que o ex-chefe de Polícia da Corte
e aviltava nossa soberania, e sim o número excessivo de escravos, reunira em seus dez anos de atuação foram valiosas, por certo, para
que resultava da cobiça dos traficantes e especuladores. alcançar aquela eliminação. Por certo ainda, foram essas informa-
Mas o discurso de Eusebio nos possibilita perceber muito mais ções que permitiram, antes da edição da lei, a eliminação dos depó-
quando menciona que sitos de africanos nos arrabaldes da Corte, assim como notificar os
traficantes das disposições do governo, de modo a provocar um mo-
“distinguíamos os introdutores dos compra dores vimento de desistência de continuação da atividade. Ajuntemos, por
fim, as medidas tomadas objetivando reforçar as autoridades incum-
Com efeito, ele evidencia não só como o gabinete saquarema se bidas da repressão, como a reorganização da Guarda Nacional, de
armara de recursos para efetivar aquela extinção, como também modo a prevenir os incidentes que as medidas repressivas pudessem
deixa claro quem deveria ser reprimido. originar, e as pequenas reformas do aparelho judiciário, como a que
De um lado, como vinha dito na “Exposição de Motivos “ que por meio de um critério de classificação de comarcas e de remoção
apresentou ao ministério, e que Eusébio lê por ocasião do discurso dos juízes de Direito estimulava esses magistrados vitalícios à iden-
na Câmara: 75 e a que am-
tificação com as diretrizes administrativas do governo
mesmas autoridades, 7** abrindo caminho para
pliava as funções dessas
“para reprimir o tráfico de africanos, sem excitar uma revo- a entrega aos auditores de marinha (juízes de Direito) da formação
lução no país, faz-se necessário: l.° atacar com vigor as da eulpa e do processo referente ao contrabando de africanos, como
novas introduções, esquecendo e anistiando as anteriores à de fato aconteceu.
lei; 2,° dirigir a repressão contra o tráfico no mar, ou no Todavia, a repressão ao tráfico aão deveria aparecer como obra
momento do desembarque, enquanto os africanos estão em saquarema. e sim como uma ação civilizadora da Coroa, sempre
mãos dos introdutores,'^4 acima dos partidos e dos interesses particulares e imediatos, e preo-
cupada em depurar sua maior criação —
o Império, face iluminada
Procede-se, aqui, a uma distinção no tempo — antes e depois da da classe senhorial*
Lei de 1850, e no espaço —o trafico no mar e o escravo no terri- A criatura, não obstante, parecia não compreender o seu criador,
tório do Império, como maneira de melhor caracterizar os agentes: O discurso de Eusebio a ela se dirige, caracterizando os percalços
o introdutor e o comprador sendo que este era fundamentalmente
, de uma direção* A
distinção entre introdutores (donos de embar-
o plantador escravista, o principal interessado no mercado de escra- cações, capitães, pilotos, etc.) e compradores não era suficiente para
vos desde o momento em que, com as transformações do quadro ex- distinguir os interesses dos últimos, que desde a fusão entre coloni-
terno, o trafico perdera sua função para a face metropolitana. zadores e colonos propiciada pela instalação da Corte no Rio de Ja-
Ora, essa caracterização nítida de um agente o introdutor— — neiro possuíam interesses diversos no tráfico negreiro, quer como
completava uma trajetória de quase uma década. Ãs derrotas dos compradores, quer como financiadores* Do Vale —
por onde se ex-
movimentos liberais de 1842 e da Praieira haviam possibilitado a pandiam os cafezais, consumindo escravos partiram —
os protestos,
quase completa monopolização da atividade negreira por aqueles ele- daqueles Saquaremas que foram vistos como estando no partido ape-
mentos que se escoravam na ascensão saquarema, Era a esses poucos nas “por conveniência”; 77 Luzias, como o Comendador Breves, in-

e alguns mais que competia reprimir, neste momento, para que,


de modo até certo ponto contraditório, a escravidão pudesse conti-
nuar, livre das ameaças britânicas e de perda das propriedades, e junho de 1850* n* 887, de 26 de julho
75 Cf* Decretos n." 599, de 28 de e
enfraquecendo as insurreições negras. Dizendo de outra maneira, de ISSO.
tentava-se eliminar a extraterritorialidade do mercado de trabalho 76 CL Decreto n.° 562, de 2 de julho de 1850,
77 Para Vicente Licmio Cardoso, a política e o gabinete da conciliação encon-
como condição para a preservação do mundo do trabalho.
tram aí as sti as origens, isto é, nos políticos fiéis à Coroa de ambos os partidos
desagregados ou enfraquecidos, um pela derrota na Praieira. outro pela cisão
lh
Exposição de motivos", inseria no discurso de Eusébio de Queirós* na provocada pela extinção do tráfico intercontinental (À margem da História do
Sessão do dia 16 de julho de 1852. BrasiL 3.* edição, São Paulo, 1979, pp. 74-76.

226 227
sistiam no tráfico ilícito, exigindo medidas extremas das autoridades razões residiam em fatores estritamente económicos, Ela se susten-

imperiais. 78 também na concepção de uma sociedade constituída por “ três


tava
Ora, esta separação momentânea entre os “mais distantes’' e os mundos” diversos, isolados e antagónicos. A tentativa de estabelecer
“mais próximos”, no proprio coração da força saquarema, fez com um mercado interno de escravos era também a opção por deixar
que se erigisse o mito do imperador e da Coroa como os agentes praticamente intocado o amplo contingente de homens livres e po-
principais da emancipação dentro do Brasil, mito esse que a muitos bres, sempre entendidos como os principais componentes do mundo

ainda hoje confunde na tentativa de explicar como um Estado es- da desordem. Neste momento, porque eram livres não eram vistos
cravista podia promover uma política antíescra vista, como substitutos possíveis de um contingente cujo número tendia a
Na verdade, o Estado imperial não foi um agente antiescra vista. diminuir; porque eram pobres, reservava-se-lhes um “lugar” próprio
Pelo contrário, ele foi o agente privilegiado na procura da preser- na sociedade civilizada do Império. 79
vação do monopólio da mão-de-obra, ao lado de outros monopólios, Comecemos peio tráfico interno, que em seu fluxo repõe de ma-

por uma classe que ele é obrigado a forjar para tanto, no momento neira nítida a hierarquização dos interesses no interior da região de
de restauração de um nexo que era não só a razão de sua existência agricultura mercantil-escravista e entre esta e as demais regiões, eco-
como a da própria classe. Forçado a uma defensividade. ele pro- nómica e politicamente.'80
cura eliminar ou restringir as razões de sua vulnerabilidade, a co- Os lucros obtidos nos negócios cafeeiros faziam do Rio de Janeiro

meçar pela extraterritorialidade do mercado de trabalho. Por isso o principal centro de convergência do tráfico interno, elevando a um
mesmo, a extinção do tráfico intercontinental era a maneira de pre- nível “fabuloso” —para recuperar a expressão utilizada pelo mi-
servar a escravidão ou o monopólio da mão-de-obra. nistro da Justiça, em seu relatório de 1852 —
os preços das peças

Dizendo de outra maneira: a disjunção ou Soberania Nacional ou de ébano, Com efeito, somente nos quatro primeiros meses daquele
tráfico negreiro intercontinental acabou por impor a associação ín- ano, foram registradas 1,660 entradas de negros escravos no porto
tima entre Império e Escravidão, Uma associação que implicava um do Rio de Janeiro, dos quais 1,376 provinham de portos do “Norte”,
desdobramento em políticas especificas e profundamente articuladas, especialmente da Bahia, e 114 das províncias do Extremo-Sul. No
de um lado; uma associação que era toda a força e toda a fraqueza final deste mesmo ano, o total se elevava a 3.801 entradas, dos quais

do Estado imperial —
e dos Saquaremas —
ao mesmo tempo, por 3.461 e 3.401 provinham, respectivamente, do “Norte” e do Ex-
outro lado. tremo-SuL 81
à extinção do tráfico intercontinental correspondeu, assim, tanto O volume do tráfico permaneceu praticamente o mesmo nos anos
um incentivo ao tráfico interprovincial e intr a-regional quanto uma seguintes, de tal forma que um representante diplomático dos
política de terras que, regulamentando a colonização, produzisse os E.U.A., James Webb, além de nao se furtar a estabelecer certas com-
trabalhadores necessários à poupança da mão-de-obra escrava. E não parações entre o que ocorria no Império e em seu país, anotaria o
deixemos de sublinhar: proposições e ações articuladas, assim como crescente desequilíbrio entre as províncias do “norte” e as do “sul”,
motivadoras de deslocamentos das contradições que a direção saqua- no que diz respeito à distribuição da população escrava:
rema encerrava.
Todavia, em meados do século, a opção política pela internaliza- Apenas como ilustração, no momento de desagregação da ordem escravista,
ção do mercado de trabalho, como maneira de preservar os mono- no último quartel do século, caracterizado também pela entrada massiva de imi-
grantes europeus, o homem livre e pobre porque livre deve compelir com o
pólios e garantir a soberania do Império, nao era uma opção cujas
trabalhador europeu num mercado de trabalho cuja lógica é dada, então, pela
liberdade de competição: porque pobre na acepção maia ampla do qualificativo,
atribui r-lhe por antecipação um fracasso nessa competição, juslificandose assim
a introdução do elemento europeu,
A do Gabinete Saquarema. particdarmente sobre a movimen-
vigilância
SQ ríg 0 deixa de causar estranheza como a historiografia, ainda hoje, tende a
laçáo de Joaquim José de Sonsa Breves, pode ser acompanhada pela documen-
tação existente no Arquivo NacionaL especialmente IJ° —470, 521 e 522. relegar a plano secundário o tráfico interno de escravos, que segundo Rohert

Intre outros, um relatório anônimo de 1853 faz referência a “uma sociedade


4
Conrad, ‘foi, na realidade, surpreendentemente semelhante m que se desenvolveu
composta do* Breves e de Lúcia no Antônio de Almeida organizada com o fim
1
nos Estado® Unidos sob circunstâncias comparáveis* ( Robert Conrad — Os
últimos anos da escravidão no Brasil, op. cit p. 63).
de fazer o contrabando de africanos, e que a essa sociedade também pertencem
alguns indivíduos da Estrada de Ferro'* {IJ 6 — 522),
81 Dados retirado® de R. Conrad — ,

Op. cit^ p. Ó6 e tabela 8 (p. 350).

228 229
m
“Cada navio costeiro leva de dez a trinta escravos para venda n atividade dentro do Império não carregavam contra si a mesma
no Rio, para abastecimento de mão-de-obra nessa região e opinião antiescravista que permitira a eliminação da atividade inter-
nas plantações de café; e escutam-se as queixas das provín- continental. Pelo contrário, assiste-se então —
para espanto de muitos
cias do Pará, Maranhão, Piauí, Paraíba, Pernambuco e até e horror de uns poucos —
o recrudescimento da opinião escravista,
da Bahia de que estão sendo despovoadas para o benefício compondo aquilo que Joaquim Nabuco denominou de “idéias da
das províncias do sul, pela inevitável lei da procura e da época”. 86
oferta”. 82 A Escravidão e sua Razão voltavam —
triunfantemente ao —
centro da cena imperial. E o governo saquarema provocava capita-
Evidentemente, fortunas continuaram a ser feitas com a atividade lizar em proveito próprio os saldos positivos da extinção do tráfico

negreira, agora interna. Fato observado por Thomas Ewbank, que intercontinental e da intensificação do tráfico interno. Do primeiro,
viajava pelo Império em meados do século,
83 e denunciado no Par- por meio da liberação de capitais que permitia impulsionar os “me-
lamento por João Maurício Wanderley, em 1854: lhoramentos materiais”, como então se dizia, que caracterizavam
tanto o Progresso quanto a Civilização. 87 Do último, por meio da
“Note-se que esse resultado [o desequilíbrio entre as provín- restauração dos nexos com os plantadores escravistas ligados à ex-
cias] não é devido exclusivamente às necessidades econômi- pansão cafeeira, que tinham saciada sua fome de escravos, ao menos
cas; é também devido a uma forte associação e à combinação imediatamente, e, por extensão, com os novos (ou antigos?) trafi-
de novos traficantes quase iguais aos que negociavam para cantes, localizados agora na Rua Direita, próxima ao Paço. . .

a África. (...) Aqui na corte e nas províncias existem com- Esta preeminência da Escravidão também provocava, sem dúvida,
panhias organizadas que espalham agentes pelas vilas e po- 0 desaparecimento, no mesmo ano de 1852, da Sociedade contra o
voados até os menos importantes; esses agentes andam de Tráfico e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas,
porta em seduzem com o engodo do
porta pelas fazendas; assim como do jornal O Philantropo que a ela se ligava. Somente
maior preço a pobre viúva e o pequeno lavrador, que possui cerca de uma década depois ressurgiriam as organizações e a cam-
um ou dois escravos ... (...) Ide à rua Direita, esse novo panha antiescravistas.
Valongo, e ficareis indignados e compungidos com o espe- Ora, essa insistência na associação entre Império e Escravidão,
táculo de tantas misérias! E isto passa-se na corte do Im- de modo que todos a percebessem como obrigatória e necessária,
pério! 84 apresentava um duplo desdobramento.
De uma parte, apresentava-se também como necessária, porque

0 deputado pela Bahia defendia a proibição do tráfico interno, resultado de uma


defensividade, a organização ou administração do
em projeto apresentado naquele mesmo ano. 85 Mas, sua opinião não mundo do trabalho pelo governo do Estado, a presença deste no go-
88
prevaleceria. Nesse momento, os traficantes que agora dedicavam-se verno da Casa, limitando e ordenando o poder do proprietário.

82 Carta a Seward, Petrópolis, 20 de maio de 1862. Citado por Robert Conrad 86 “Não se deve entretanto supor que as idéias do governo em matéria de
— Op. 73. Uma semelhante aparece em Tavares Bastos
opinião — escravidão eram as mesmas que dez anos mais tarde prevaleciam no país.
cit., p.
Cartas do solitário. 3. edição. São Paulo, 1938 (especialmente o apêndice IV
a — As decisões de Nabuco nesse assunto ainda se ressentiam de certa submissão às
A escravidão, pp. 453-461). ideias conservadoras dos antigos conselheiros de Estado e à razão de Estado que
83 “J (...) diz que as maiores fortunas aqui feitas, com poucas exceções, lhes servia de espantalho”. Joaquim Nabuco. V. —
Um estadista do Império.
são produto do tráfico de escravos” —
Thomas Ewbank —
A vida no Brasil ou edição, Rio de Janeiro, 1975, p. 210.
1
1

diário de uma visita ao país do cacau e das palmeiras. Rio de Janeiro, 1973, 87 Um
depoimento por demais conhecido de Mauá nos informa sobre esta
vol. I, p. 127. relação: “Reunir os capitais que se viam repentinamente deslocados do ilícito
84 APB-Câmara dos Deputados. Sessão de 1 de setembro de 1854 (p. 348). comércio, e fazê-los convergir a um centro donde pudessem ir alimentar as
85 Projeto apresentado à Câmara dos Deputados proibindo “o comércio e forças produtivas do país, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter a
transporte de escravos de umas para outras províncias do Império. Excetuam-se certeza de que aquele fato era irrevogável” —
Autobiografia. Exposição aos
os que viajarem em companhia dos respectivos senhores, em número marcado i redores e ao público. Rio de Janeiro, 1942, p. 126.
em regulamento do governo”. APB-Câmara dos Deputados. Sessão em 11 de 88Algumas das medidas que visavam “regular a escravidão”, como então
agosto de 1854 (p. 124). rrn costume ser dito, foram arroladas por nós na Parte II. Joaquim Nabuco

230 231
De outro, subordinavam-se os demais interesses presentes no inte- cravos, bois,máquinas e outros utensílios que serviam para o cul-
rior da principal região do Império aos interesses do segmento ca- tivo da cana e o fabrico do açúcar gozasse do privilégio de incorpo-
feeiro, tanto no que diz respeito à continuação do tráfico interno de ração ao fundo de terras. 90 Os defensores do projeto apelavam, por
escravos, quanto no que tange ao abandono da experiência da par- fim, ao Estado como meio de corrigir e evitar as distorções geradas
ceria. Vejamos alguns aspectos dessa subordinação. pela atividade negreira.
No que diz respeito ao tráfico interno, aqueles que se lhe opu- Aqueles que se opuseram ao projeto e, afinal, o derrotaram, não
nham e conseqüentemente apoiavam o projeto apresentado pelo fu- representavam com exclusividade os sequiosos plantadores escravis-
turo Barão de Cotegipe, em 1854, não se opunham também à con- tas do Vale. Como é possível perceber pelos argumentos de que lan-
tinuação da Escravidão. Pelo contrário, opunham-se ao tráfico para çaram mão, representavam os múltiplos interesses articulados pela
poderem continuar sendo monopolizadores de mão-de-obra, da terra dominância do capital mercantil na economia do Império, em que
e da violência — como os antigos colonos; opunham-se ao tráfico
pese a sua crescente subordinação ao capital industrial em âmbito
interno utilizando os mesmos argumentos justificadores da escravi- mundial, articulação essa que ganhava o conteúdo da relação entre
dão e — contraditoriamente —as mesmas razoes que os Saquare-
Política e Negócios e propiciava a constituição da classe.
mas invocavam para sustentar, em termos novos, o conjunto de mo- Combatendo o projeto, o lente de Direito e deputado pela Pro-
nopólios no momento de crise. E, ao assim agirem, não deixavam víncia de São Paulo, Silveira da Mota, argumentava que ele
de caracterizar tanto uma adesão geral à direção imprimida pela
Coroa quanto um afastamento momentâneo, fruto do movimento e “afeta radicalmente a propriedade, porque a propriedade
das contradições que aquela direção deveria encerrar. cresce ou diminui de valor pela deslocação, e é como pode-
Dizia Wanderley que seu projeto buscava atender “o grito quase mos pelos princípios da economia política explicar o valor
unânime de todos os nossos grandes lavradores [do “Norte”] ”. Seus que dá o comércio à propriedade, porque uma cousa que
defensores no Parlamento argumentaram com base em dois pontos nada vale em um lugar pode valer muito em outro, e o pro-
principais: a segurança do Estado e a qualidade da propriedade. jeto destrói essa condição de vida da propriedade.”91
Quanto ao primeiro ponto, diziam que o progressivo despovoa-
mento de braços do “Norte” ameaçava o equilíbrio político e eco- Mota expunha, assim, uma concepção distinta, que
Silveira da
nômico do Império, comprometia a segurança das províncias do se opunha frontalmente tanto à caduca impenhorabilidade dos en-
“Sul” pela extrema concentração de escravos, inibia a colonização genhos quanto à extinção do mercado de escravos do “Norte”, con-
estrangeira no “Sul” e, mais do que tudo, votava o “Norte” à de- tida no projeto de Wanderley. Seus opositores diriam que ele se
cadência, à miséria e à barbárie, afetando, por conseguinte, a pró- encontrava “completamente imbuído das idéias dos economistas in-
pria renda do Estado. 89 Quanto ao segundo ponto, a partir da ale- gleses.” 92
gação de que se tratava de uma “propriedade especial ou sui gene- Na verdade, os argumentos de Silveira da Mota traduziam um
ris” e sujeita ao abuso do proprietário, reclamavam para o projeto equilíbrio novo, resultante da restauração em curso damoeda colo-
o mesmo estatuto da antiga lei de privilégio à lavoura, que equipa- nial: de um lado, a tentativa de internalização do mercado de tra-
rara certos bens móveis aos bens de raiz ao determinar que os es- balho; de outro, as condições novas em que o capital mercantil se
movia e reproduzia, exigiam agora a mediação pelo mercado dos
antigos monopólios da mão-de-obra e da terra. Ora, por meio de uma
anotaria um aspecto partiicular desta problemática ao dizer que “na história da
ação administrativa, o Estado imperial esforçava-se por controlar, a
escravidão ver-se-á que o»s júris de senhores primeiro condenavam sistematica-
mente os escravos, depois conluiavam-se para absolvê-los, em uns casos para não
ser lesada a propriedade, em outros, para eles serem castigados exemplarmente
perante os outros escravos. Nada irritará tanto o imperador como esses conluios
de jurados para substituírem a justiça pública pela dos próprios senhores" 5,0 Cf. discurso de João Maurício Wanderley, na sessão de 1 de setembro de
(Op. cit ., p. 212). 1854. Cf. também a nota 175, da Parte I.
89 Cf., sobretudo, os idiscursos dos deputados Raimundo Ferreira de Araújo 91 APB-Câmara dos Deputados. Sessão em 22 de agosto de 1854, p. 243.
Lima (CE) e João Maurítcio Wanderley (BA), nas sessões dos dias 25 de agosto 92 Cf. APB-Câmara dos Deputados. Sessão em 25 de agosto de 1854. Discurso
e 1 de setembro de 1854, respectivamente (pp. 274-7 e 345-50).
, do deputado pela Província do Ceará, Araújo Lima, p. 274.

232 233
,1

qualquer preço, este mercado, 93 fazendo com que as duas caracte- Vejamos, agora, a questão da imigração européia, intimamente
rísticas, que neste momento destacamos, se cruzassem: definia, assim, articulada à questão do tráfico interno.
a sua intenção de substituir a conquista externa, embargada pelos No que diz respeito à experiência do sistema de parceria, impul-
interesses da burguesia inglesa, pela “expansão” interna, gerando sionada pelo Senador Vergueiro na Província de São Paulo, seu
um mercado interno de escravos. fracasso resultou do fato de estar referida a uma conjuntura que se

Dando razão a seus críticos, porque profundamente embebido dos define pela associação entre Império e Escravidão, nos termos postos
princípios da economia clássica, Silveira da Mota desenvolvia sua pelos Saquaremas. Isto é, um fracasso que é, antes de tudo, uma
oposição ao projeto de Wanderley, ao mesmo tempo que caracteri- derrota política, e não apenas nem principalmente um
fracasso re-

zava o sentido da política saquarema. Talvez não exageremos se lacionado à organização escravista da grande lavoura, conforme é
dissermos que, por meio da oração final, voltava a ter “os pés na geralmente apresentado. 95
América”: Podemos dizer que, derrotados em Venda Grande, os interesses
que se haviam constituído a partir da expansão da grande lavoura
“O que o legislador deve cuidar e querer é que os serviços na província paulista não assistiram unicamente à derrota do “velho
produtivos da indústria sejam empregados nos lugares em liberalismo paulista” nos anos subseqüentes, como vimos acima. Vi-
que dão maior rendimento; e o que se segue, considerado veriam também a impossibilidade de controlar, como os Praieiros
o projeto pelo lado econômico? Segue-se que nas províncias logo depois, os poderes locais que assegurariam a realização do trá-
onde estão os escravos empregados na produção, nessas pro- fico negreiro intercontinental sem a intermediação dos grupos do-
víncias se deve deixar que os escravos procurem o nível por minantes na Corte, e que tendiam a uma aproximação com os Sa-
si mesmos, isto é, que as indústrias fiquem com os braços quaremas. A derrota de 1842 anunciava uma subordinação.
que são correspondentes aos lucros que aí há; verbigratia, No que diz respeito ao problema do abastecimento de mão-de-obra
nas províncias onde a cultura da cana dá menos renda que — vital para uma economia que não apenas se orientava para a

a cultura do café, quando os braços escravos diminuírem e lavoura de exportação, mas também transitava da produção açuca-
não forem substituídos o que se seguirá é que os salários reira para a cafeeira mais lucrativa , —
a maneira de contornar
correspondentes aos braços escravos crescerão. Por con- . . aquela subordinação passou a se apresentar sob a forma do recurso
seguinte, o lucro que se tem em vista não é favorecer nem ao imigrante europeu, cuja presença no Império se justificaria ainda
esta nem aquela indústria, nem esta nem aquela província, pela referência permanente às noções de Progresso e Civilização.
o que devemos ter em vista é chamar os braços para aquelas A derrota do movimento de 1842 na Província de São Paulo
indústrias de maior proveito, qualquer que sejam os braços, erigia, assim, um novo conflito entre Luzias e Saquaremas, na me-

agora porém tratamos dos escravos .”94 dida em que a experiência do sistema de parceria não só reafirmava
a importância da extraterritorialidade do mercado de trabalho para

9-3 Cf., entre outras medidas, aquelas referentes às políticas monetária e


financeira, na qual se destacavam as orientações de Rodrigues Torres, Visconde
95 Cf., entre outros, os trabalhos de Emília Viotti da Costa —
Da senzala
de Itaboraí, ministro da Fazenda do gabinelte de 29 de setembro de 1848, no à colônia. São Paulo, 1966 (especialmente, o cap. II, “Primeiras experiências
sentido de reforço do metalismo e da monoptolização dos serviços bancários pelo do trabalho livre”, pp. 65-123); e “Colônias de parceria na lavoura de café:
Primeiras experiências”, in Da Monarquia à República: Momentos decisivos,
Banco do Brasil. Para maiores detalhes sobre estas políticas, cf. Carlos Manuel
Peláez e Wilson Suzigan —
História monetária do Brasil. 2. a edição. Brasília, op. cit., pp. 149-178. Sobre o sistema de parceria, consultar também —
Thomas
1981 (especialmente, pp. 33-108). Para uma visão da questão pelos contem-
Davatz — Memórias de umcolono no Brasil. 2. edição. São Paulo, 1972, em
a

porâneos, cf. Joaquim Nabuco — Um


estadista do Império, op. cit. (especial- especial o “Prefácio do tradutor”, Sérgio Buarque de Holanda (pp. XV-XLV).
Numa outra ordem de considerações, é justamente a referência por nós da
mente, livro II, cap. VI, “Política financeira”, pp. 216-223).
94 APB-Câmara dos Deputados. Sessão em
22 de agosto de 1854, p. 244. experiência da parceria a uma conjuntura que se define pela associação entre
Na ofcra de Paula Beiguelman —particullarmente em Formação política do Império e Escravidão que impede que a tomemos como “um momento de

Brasil, op. cit. — encontra-se uma primeira tentativa de associar a organização uma seqüência da “história da imigração para o Brasil”, visto que o “outro
— — está relacionado, sem dú-
política imperial, isto é, a “ordem” e a centralização, à existência de “um mer- momento” a saber, a imigração subvencionada

cado nacional de escravos”. vida, à não escravidão (logo depois, à negação do Império).

234 235
a economia do Império, como também parecia negar a própria es- tura mercantil-escravista ou das demais regiões, mas sempre dentro
cravidão, ao menos a longo prazo. A derrota do movimento de 1842, dos limites da soberania rpiperial. Ora, manter a unidade do Impé-
por outro lado, continha em si a derrota do experimento de Ver-
rio —isto é, o equilíbrio econômico e político entre os diferentes
gueiro, na medida em que as forças que o propunham eram aquelas interesses escravistas —
implicava, sem dúvida, evitar que determi-
que, havia pouco, foram derrotadas militar e politicamente, sendo, nadas áreas fossem esvaziadas de seus escravos em proveito ime-
por isso mesmo, incapazes de quebrar a cadeia de interesses escra- diato de outras. Nesta mesma ordem de considerações, se nos lem-
vistas que a centralização imperial representava, apesar das tensões brarmos ainda que a economia escravista apresenta uma tendên-
internas que ela carregava, como a provocada pelos setores que se cia ao decréscimo absoluto da mão-de-obra em operação, do que
opunham ao tráfico interno. Recordemos, neste momento, que se resulta, aliás, a necessidade de um fornecimento permanente de
tais tensões eram contidas isto ocorria porque a defesa da escravi-
novos escravos,97 e se não nos esquecermos também que o cresci-
dão criava uma unidade entre aqueles que usufruíam de uma forma mento da lavoura cafeeira era um crescimento em extensão, como
particular de monopolização da mão-de-obra. Ora, o sistema de par-
o da grande lavoura em geral, requerendo quantidades crescentes
ceria era, antes de mais nada, uma ameaça a essa monopolização de mão-de-obra, compreenderemos como a contradição que se apre-
em si mesma: ao menos em princípio, ele criava para o trabalhador sentava entre áreas fornecedoras e áreas consumidoras de escravos
de origem européia a possibilidade de abandonar a propriedade e, dentro do Império se desdobrava também na contradição entre con-
com os recursos amealhados, tornar-se um pequeno proprietário. Os sumidores —os plantadores escravistas, principalmente —
e os for-
conflitos entre plantadores escravistas e colonos, no interior das pro-
priedades rurais, não tinham outro fundamento. 96
necedores —o traficante e o financiador *, no —
interior da área
consumidora, isto é, mais uma vez no coração do poder saquarema.
A decisão de colocar o tráfico interno de escravos, no momento Conforme vimos acima, elevaram-se os preços dos escravos. Como
de consolidação do Estado imperial, no centro da questão da mão- eram também fonte de capital, o aumento de valor dessa pro-
estes
de-obra alimentava, assim, as contradições entre os interesses mais priedade permitiu ao plantador ampliar sua capacidade de obter cré-
imediatos dos Saquaremas —
entendidos evidentemente, neste ins- dito, podendo expandir as plantações. De outro lado, porém, a ele-
tante, como o conjunto dos interesses forjados nas relações com a
vação dos preços, combinada ou não com a expansão dos cafezais,
Corte e sustentados pela expansão cafeeira —
e os dos segmentos impunha uma imobilização de parcelas crescentes dos rendimentos
que se opunham ao tráfico interno, embora defensores da manuten- monetários, aumentando consideravelmente a dependência dos plan-
ção da ordem escravista, e os daqueles outros que defendiam o re- tadores escravistas junto aos financiadores da atividade cafeeira: os
gime de parceria, revelando as dificuldades de uma restauração e financiadores de cativos, em particular; os comissários, de uma ma-
expondo os limites da expansão que a Coroa se propunha efetivar. neira geral.
Por outro lado, esta mesma decisão não deixava de ressaltar para Uma maneira de contornar ou mesmo eliminar essas contradições
os próprios Saquaremas —
entendidos, agora, como dirigentes que talvez se encontrasse na formação de áreas dedicadas à produção de
não apenas deviam considerar os interesses imediatos do segmento
que mais diretamente representavam —
a contradição que encer-
escravos.
Na Memória que redigiu em 1847, o Barão do Pati do Alferes
rava, uma vez que se o tráfico interno pressupunha consumidores
recomendava a seus pares que dispensassem tratamento especial à
— em especial, o Vale por onde os cafezais se espalhavam ele — “preta que estiver criando”. Viajantes estrangeiros como Ribey- —
pressupunha também fornecedores — dentro da região de agricul- rolles, que nos anos de 1859 e 1860 percorreu os municípios de
Vassouras, Valença, Paraíba do Sul, São Fidélis e Campos, na Pro-
víncia do Rio de Janeiro —
mencionam medidas adotadas por pro-
96 A esse respeiito, os pronunciamentos do magistrado
Francisco Diogo Pe- prietários objetivando a procriação de seus plantéis. Em O Aboli-
reira de Vasconcelos e do padre Venâncio Henrique de Resende, ambos depu- a frase dos fazendeiros de
cionismo, Joaquim Nabuco nos recorda
tados pela Província de Minas Gerais, por ocasião da discussão do projeto de
Rodrigues Torres s<obre Colonização, do qual resultaria a denominada Lei de
Terras, são ilustrati vos de posições polares a respeito da questão da monopoliza-
ção da mão-de-obra. Cf. APB-Câmara dos Deputados. Sessões em 24 de julho e 97 A proposito, Cf. Jacob Gorender— O escravismo colonial. São Paulo,
18 de agosto de 184*3 (pp. 389-91 e 805-6, respectivamente). 1978 (especialmente, cap. XVI, “Lei da População Escrava”, pp. 318-332).

236 237
Pirai, às vésperas da lei de 1871, de
que “(...) a parte mais pro-
dutiva da propriedade escrava é o ventre sempre são feitas referências ao fato de que as discussões travadas
gerador”. 98
Todavia, a produção desta mercadoria a respeito das soluções alvitradas, particularmente as que tinham
especial não vingaria, es-
tabelecendo um vivo contraste com a República norte-americana, por cenário o Parlamento, eram enriquecidas pelas referências ao
muitas vezes tomada ou referida como exemplo na época. Talvez não que ocorria, por aquela mesma época e em termos até certo ponto
seja um grave equívoco afirmar que, de uma maneira mais semelhantes, na República norte-americana, 101 nas Antilhas ingle-
siste-
mática, ela somente foi tentada no “Sul” sas 102 e até na distante Irlanda. 103
cafeeiro, e por isso mesmo
dos plantadores desta area partiriam Seria demais repetir, agora, que a historiografia insiste em deixar
os maiores protestos contra a
lei de 1871." escapar uma articulação essencial, proposta pelo segmento principal
Ora, a aprovação da Lei de 28 de setembro dos dirigentes imperiais, no momento de constituição da classe se-
de 1871, que decla-
rava de condição livre os filhos de nhorial, e que justamente em função também dessa proposição é
mulher escrava que nasceram
desde a data desta lei, libertos os escravos da que se tornava necessário proceder a essa constituição?
Nação e outros”, talvez
seja uma evidência significativa de que alguns Com efeito, a partir do momento em que os defensores de um
penais — vale dizer, os “mais próximos”
dos dirigentes im-
— não se haviam inte-
Estado imperial centralizado começaram a sentir e viver o controle
ressado de maneira efetiva pela produção que exerciam dentro do mundo do governo, podendo desfrutar em
de escravos, ao contrário
do que acontecera com muitos dos plantadores sua plenitude do monopólio da responsabilidade pelo Soberano, eles
escravistas vale
“mais distantes”. Não se esforçaram para que
dizer, os puderam também propor uma articulação entre as políticas de mão-
prosperasse
aquilo que Silveira da
Mota denominava, em 1854, de “indústria de-obra e de terras. Redigido por Bernardo Pereira de Vasconcelos
de reprodução de escravos”! Anotemos, porém, e José Cesário de Miranda Ribeiro, um projeto de colonização foi
que necessariamente
nao devemos ver em tal proceder uma postura apresentado pelo Conselho de Estado, em meados de 1842. Nitida-
antiescra vista.
tal fato, sem dúvida, não deixava de agravar para o conjunto mente inspirado no plano exposto por E. G. Wakefield em Letters
dos dirigentes —
dos “mais próximos” aos “mais distantes” — uma from Sydney do que, a propósito, não se fazia segredo, o projeto foi
questão que, por sua cotidianidade, acabaria apresentado à Câmara, em junho do ano seguinte, pelo deputado e,
por se impor também
a produção historiográfica: a questão da escassez de mão-de-obra. então, ministro da Marinha Rodrigues Torres, o qual destacou ser
Desde então, opiniões e sugestões foram ministerial o projeto.
formuladas. Os estudos
histoncos tenderam a recolhê-las; em alguns
casos, insistiram mais A trajetória saquarema não deixaria de se confundir, em parte,
uma vez em sequenciá-las. Mencionam-se as propostas com a trajetória de lapidação do projeto entre 1843 e 1850, 104
de imigração
asiatica (os coolies), de introdução quando foi finalmente promulgada a lei que
de “colonos” africanos, de imi-
gração europeia; relatam-se as razões da
opção por esta última, su-
blinhando as tendências racistas que unificavam
os diversos segmen-
tos dos dirigentes 100 e revelando suas 101 APB-Câmara dos Deputados. Sessão em 11 de agosto de 1843. Discurso
próprias preferências. Nem
do Deputado Manuel Antônio Galvão (BA), pp. 711-6.
102 Idem. Sessão do dia 18 de agosto de 1843. Discurso do Deputado Pe.

APB Câmara
retiradas de Jacob

dos Deputados. Sessões em


Gorender - ° escra

12 de julho e 9 de agosto
~ Venâncio Henriques de Resende, pp. 805-6.
103 Idem. Sessão em 24 de julho de 1843. Discurso do Deputado Joaquim
Otávio Nébias (SP), p. 393.
104 Apresentado à Câmara dos Deputados em 10 de junho de 1843, o Pro-
de mi* jeto de Colonização sofreu acirrada discussão, sendo aprovado na sessão de 16 de
PeÍX °-t0 de Lacerda dizia que os ehineses “per- setembro do mesmo ano e encaminhado ao Senado. A ascensão do Gabinete
tencem como todas as nações asiaticas,
tencem, ..
a essas raças que estão condenadas liberal, logo em seguida, talvez explique o adiamento da discussão da matéria
a
STSít T? \
cas e neolatmas
a CÍe terra (
V •> a0 ' mer0
(Ideias sobre colonização,
das nações germânh por aquela casa vitalícia até o retorno da facção conservadora ao governo, em

^
,
precedidas de uma sucinta exposição 29 de setembro de 1848. Já sob a direção da “trindade saquarema”, o novo

vLZrrM eerMS S qUB regem “ P0pulaf5 °- Ri° de


em Cer,a °C
J»”eiro, 1855 p o
gabinete repõe a necessidade da discussão do projeto de colonização, subordinan-

ato ÍÍir, J P U ^T°


defendera 8 im P° rla Ção de coolies,
men ‘e C0lO"ÍZar ° BraSÍ1 C°m CSSa
diria,

do-a, todavia, à questão da extinção do tráfico intercontinental, pela qual então
fora obrigado a se decidir, e à questão do tráfico interno, pela qual optara como
M o6ioWm,
Uí o7cit p m) ra ' a
um recurso político. A “lapidação” do projeto — isto é, as diferenças entre a
versão original e aquela aprovada em 1850 — encontra aí a sua razão.
238
239
ir “dispõe sobre as terras devolutas do Império e acerca das cultores e Civilização brotavam os argumentos quer para defender
que são possuídas por 106
título de sesmaria sem preenchimento 0 tráfico interno de escravos quer para combatê-lo.
das condições legais, bem como por simples título de posse Por mão-de-obra escrava para uma determinada
certo, reservar a
mansa determina que, medidas e demarcadas
e pacífica; e atividade implicava a sua não utilização naquelas outras atividades
as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso assim para
que, direta ou indiretamente, derivavam sua existência da atividade
empresas particulares como para o estabelecimento de colô- agrário-exportadora, e que, em muitos casos, lhe serviam de suporte.
nias de nacionais e de estrangeiros, autorizado o Governo a Poupar o trabalho escravo implicava assim, de um lado, patrocinar
promover a colonização estrangeira na forma que se de- os “melhoramentos materiais” — expressão de civilização e incen-
clara”. 105 tivadores do espírito de associação — melhoramentos esses que dis-
,

tinguiram também o Império no momento do seu apogeu carac-


,

Então, a articulação entre a política de mão-de-obra e não — terizando aquilo que muitas vezes denominamos de “a época de
deixa de ser fundamental que recordemos que no momento da apro-
vação da denominada Lei de Terras os Saquaremas haviam posto
Mauá” — esse personagem também contraditório quando se trata
107
de questão do trabalho escravo.
a questão do tráfico interno no centro da questão da mão-de-obra — Acreditava-se, pois, que os escravos não mais utilizados nos ser-
e a política de terras tinha como objetivos tanto poupar imediata-
viços urbanos — como a remoção de lixo e de esgotos, de transpor-
mente o consumo de mão-de-obra escrava quanto sujeitar os novos tes, de vendas domiciliares e inúmeras outras
atividades — pode-
e futuros ocupantes do mundo do trabalho, fossem eles ex-escravos,
riam ser transferidos para o meio rural. Propiciar a construção de
elementos nacionais ou imigrantes, como decorrência de uma trans- ferrovias, melhorar os caminhos que conduziam aos Sertões e abrir
formação que era vista e apresentada como inevitável fruto do Pro- rodovias eram tantas outras maneiras de liberar mão-de-obra escra-
gresso e da Civilização. va, cara e escassa.
108

Vejamos, em primeiro lugar, como se pretendia poupar no con- discussão a respeito dos meios de melhor utilizar o trabalhador
A
sumo do trabalho escravo. escravo não deixava de assinalar também a discussão a respeito dos
Poupar significava, antes de tudo, utilizar o trabalhador escravo “meios de proteger a Indústria”, conforme pode ser visto no Rela-
o mais possível naquela atividade entendida como fundamental para tório do ministro da Fazenda, Rodrigues Torres, referente
ao ano
o Império: a Agricultura —
isto é, a grande lavoura produtora de de 1850. Ao mesmo tempo que reafirmava seus compromissos con-
gêneros para a exportação. Poupar significava transformar o maior
número possível de escravos em escravos de plantação.
106 “Essa emigração constante de braços escravos do norte para o sul do
Era por meio da lembrança de que a atividade agrícola era fonte províncias,
Império há de trazer a falta da produção e a infelicidade daquelas
de rendas para o Estado, assim como de que dela derivava a Civili-
porque a produção aumenta a riqueza e esta é que civiliza um povo, o torna
zação, que se justificava não só a atribuição de uma prioridade na mais brando e o faz feliz (...)” — APB-Câmara dos Deputados. Sessão em
1 de setembro de 1854. Discurso de João Maurício
Wanderley.
utilização do braço escravo, mas também a própria existência da
escravidão. Conforme salientamos há pouco, da
107 Cf. Visconde de Mauá — Autobiografia op. cit. (em especial o item
,

associação entre Agri- “Serviços prestados à agricultura”, pp. 218-230). Talvez seja ilustrativa a se-
guinte passagem, referente à Lei de 1871: “Não sou suspeito; então, agora e
sempre, ambiciono ver desaparecer o elemento escravo da organização social do
meu país. A questão porém não era essa, nem então, nem mais tarde, quando os
poderes competentes vibraram o golpe mais fundo e certeiro no regímen em
105 Coleção das Leis do Brasil 1850
,
— Lei n.° 601, de 18 de setembro de que assentava o trabalho do país, decretando o ventre livre, que acaba com a
1850. Consulte-se também o Decreto n.° 1318, de 30 de janeiro de 1854, que
escravidão em prazo curtíssimo” (p. 221).
mudava a Lei n.° 601, diando-lhe regulamento; o Regulamento de 2 de maio de 108 “Quanto mais se vão com o tempo reconhecendo os males provenientes
1854, que dispunha provisoriamente sobre as medições e demarcações das terras da diminuição de braços para a lavoura, em conseqüência da cessação do tráfico,
devolutas; a Portaria n.° 395, de 19 de dezembro de 1855, mandando observar
tanto mais se reconhece a necessidade de adotarem-se outros meios para suprir
provisoriamente as instnuções práticas organizadas pela Repartição-Geral das
essa deficiência de braços. (...) A câmara, creio que está mais que convencida
Terras, para execução do>s artigos do Regulamento de 8 de maio de 1854; e o
da necessidade de nos ocuparmos quanto antes deste objeto [a discussão do pro-
Decreto n.° 6129, de 23 <de fevereiro de 1876, que organizava a Inspetoria-Geral
jeto sobre a construção de uma ferrovia]. APB-Câmara dos Deputados. Sessão
das Terras e Colonização..
em 26 de julho de 1851. Fala do Deputado Barreto Pedroso, pp. 329-330.

240 241
lil

servadores —“não sou partidista dos princípios de liberdade ilimi-


cravo no seio da família branca citadina. E ao fazê-lo contribuía não
tada de comércio e indústria aplicados ao nosso País” como con-— só para o esforço das pálidas tendências emancipacionistas em mea-
dição para defender a proteção a novas atividades —
“cumpre pois dos do século; levava água também para o moinho daqueles que
excitar novas forças produtivas, procurando conseguir que parte de
advogavam a presença dominante do elemento escravo no ambiente
nossa população se aplique em fabricar alguns dos artigos de con-
rural. 110
sumo que recebemos dos estrangeiros” —
aquela autoridade reafir-
,
Esse deslocamento progressivo da mão-de-obra escrava de uma
mava que não só a atividade industrial não deveria vingar “à custa
área para outra, de diferentes atividades para uma atividade enten-
e com sacrifícios da indústria agrícola”, como também era preciso
dida como fundamental, dos núcleos urbanos para as grandes pro-
distinguir as categorias de estabelecimentos manufatureiros e fabris
que, até então, eram confundidos sob a designação genérica de “fá-
priedades rurais —
ou a intenção de o fazer, ao menos —
produzia
um “vazio”, implicava a produção de outro tipo de trabalhador,
bricas nacionais”. Assim,na opinião daquele Saquarema, somente
conduzindo à articulação entre a política de mão-de-obra e a de
deveriam receber alguma proteção governamental aqueles empreen-
terras, uma vez que se tinha em vista a preservação dos monopólios
dimentos cujas matérias-primas poderiam ser produzidas no país,
que distinguiam uma classe.
excetuando-se “desta regra unicamente as indústrias indispensáveis
Todavia, não residiam apenas aí as razões que impunham esta
à segurança e defesa do Estado”, assim como não mais convinha
articulação, conduzindo à definição legal das terras apropriadas por
isentar de direitos alfandegários todas as matérias-primas destinadas
meios diversos. Conforme vimos anteriormente (cf. Parte I, p. 72),
à produção industrial.
os anos imediatamente seguintes à obtenção da emancipação polí-
Ora, as propostas de Rodrigues Torres objetivavam tanto fortale-
tica foram anos de lutas violentas pela posse da terra, particular-
cer mais uma vez, por meio dos recursos alfandegários, o sempre
mente nas áreas de “serra acima” por onde ocorria a expansão dos
combalido Tesouro Nacional, em especial no momento que se dis-
cafezais. Elementos poderosos, que muitas vezes se havia apossado
tinguia pela ampliação do quadro de empregados do Estado imperial,
das terras de sitiantes e pequenos lavradores por meio da força, re-
quanto “conciliar essa proteção com os interesses da agricultura”,
por meio de uma ação discriminatória entre estabelecimentos que
clamavam —
agora —
o reconhecimento legal das propriedades que,
quase sempre, haviam conseguido por meios escusos. Conflitos aber-
deveriam ser protegidos e os demais, a qual não apenas propiciava
tos não só ameaçavam a continuidade da faina agrícola, mas também
uma concentração como também permitia que a mão-de-obra escrava favoreciam as fugas e revoltas dos negros escravos.
ainda prevalecente naquelas indústrias que não poderiam prosperar
Retomando as preocupações de diversas autoridades, nos diferen-
fosse transferida para outros empreendimentos, em especial o agrí-
tes níveis da administração imperial, o deputado pela Província da
cola, que “se não definha, também não apresenta por certo aparên-
cia de prosperidade
” 109 Bahia José Antônio de Magalhães Castro —
província onde os con-
. . .
flitos pela terra não alcançavam a dimensão do que acontecia, por
De outro lado, uma política médica sempre preocupada em esqua- exemplo, na província fluminense —
lembrava que
drinhar o espaço urbano, em eliminar as razões dos males que afli-
giam a cidade, que ela confundia permanentemente com a socieda- “a necessidade de regular a concessão de terras tem-nos sido
de, não deixaria de questionar a existência da escravidão, ou ao repetida por diferentes vezes nos diversos relatórios dos mi-
menos, a presença do escravo no espaço urbano. Brutalidade, vai- nistros da Coroa; a confecção de uma lei sobre sesmarias,
dade, egoísmo, doenças, paixões, desordem, sexualidade desregrada que tivesse conexão com a colonização, foi-nos lembrada no
e muitos outros males e desvios eram atribuídos à presença do es- início da sessão.” 111

109 Proposta e relatório apresentados à Assembléia-Geral Legislativa na m


110 Cf. Roberto Machado et alii — Danação da norma. Medicina social e
l. constituiçãoda psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, 1978 (especialmente,
sessão da 8. m legislatura pelo ministro e secretário d*Estado dos Negócios da Fa-
pp. 353-372).

,

zenda, Joaquim José Rodrigues Torres 1850. Ver também Nícia Vilela Luz Hl Talvez seja interessante lembrar que durante o período da Colônia a
— A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo, 1961 (especialmente, concessão de terras pelo rei aos colonos era regulada pela “lei de sesmarias”, e
pp. 20-23). que entre os requisitos para a obtenção de uma sesmaria encontravam-se não

242 243
I

E completava:
obra, dificultava a obtenção de braços para a agricultura, além de
entravar a civilização. 113
“O Brasil, cujo território é imenso, e que, podemos dizer,
Reclamava-se a presença do Estado, como condição para salvar da
está em grande parte por ser descoberto, nem por isso devia
falência “nossa única indústria”.
continuar, como até aqui, sem üma
da ordem desta que
lei
Ele deveria monopolizar a venda das terras devolutas, para tal
temos em não somos nem
vista confeccionar: tão miseráveis
fim definidas (art. 11), em porções nunca inferiores a um quarto
nos achamos para que consentíssemos que qualquer indiví-
de légua quadrada, a vista e “por justo preço” (art. 22). Com os
duo, pondo a mão em uma porção de território brasileiro se
recursos arrecadados, acrescidos daqueles provenientes de impostos
apropriasse dela na quantidade que lhe parecesse, muitas
que o projeto também propunha, ele deveria importar “colonos livres
vezes por mero luxo ou ambição, abandonando-a logo depois
de qualquer parte do mundo” (art. 24), os quais seriam obrigados
de uma posse de um ano e um dia.” 112
a trabalhar nos estabelecimentos rurais por um tempo mínimo de
três anos, a menos que indenizassem as despesas com o seu translado
O deputado e magistrado baiano não reclamava uma lei qualquer.
Como a maioria da Câmara em 1843, ele defendia o projeto apre- para o Império (art. 26). Competia-lhe também a revalidação das
sentado por Torres, em particular o seu artigo inicial que determi- sesmarias e posses que tivessem mais de um ano e um dia, desde
nava que as terras devolutas do Império não poderiam ser adquiri- que estas não ultrapassassem em superfície meia légua quadrada nos
das, desde então, senão por meio de compra, excetuando-se unica- terrenos dedicados à agricultura e duas léguas quadradas nos campos

mente as terras situadas nos limites do Império e aquelas necessá- (art. 3.°), obrigando seus proprietários a efetuarem medição e titu-

rias para a colonização de indígenas. Ele defendia sobretudo os pres- lação, além do pagamento de um imposto correspondente a 1/4 de

supostos que sustentavam o projeto, os quais —


como já dissemos real por braça quadrada (arts. 2.°, 3.° e 8.°). Competia-lhe ainda

— derivavam da “teoria da colonização” de Wakefield. cobrar, anualmente, um imposto correspondente a quatro mil-réis

Argumentava-se que a dispersão da população por um território por légua quadrada dos proprietários de terrenos cultivados ou não
tão vasto, combinada com o livre acesso à terra, encarecia a mão-de- (art. 12), além de verificar se eles tinham declarado a extensão de
suas propriedades (art. 13). Às autoridades policiais, supervisiona-
das pelos juízes de Direito, competiria conhecer os delitos cometidos
apenas aqueles de natureza econômica — a capacidade de aproveitá-las, o que por todos aqueles que, desde então, derrubassem matas alheias ou
nas condições coloniais de produção significava a capacidade de ter escravos — devolutas e dos que se apossassem de terrenos devolutos, obrigando-
mas também aqueles ligados à capacidade de prestar serviços relevantes ao sobe- os a despejo e providenciando para que fossem punidos com a pena
rano, o que no caso da colonização significava ter condições de empreendê-la, de
defender a terra e de difundir a religião cristã. Lembremos também que as de dano e a perda das benfeitorias (arts. 9.° e 10.°). Competia ao
terras do ultramar eram concebidas como domínio da Coroa, e que embora a Estado, por fim, reservar terras para a colonização dos indígenas
doação pelo soberano conferisse prestígio social àquele que a obtinha, ela não e para a construção naval (art. 19).
criava laço algum de dependência pessoal entre o cedente e aquele que recebia.
As sesmarias eram propriedades alodiais, isto é, plenas, obrigados apenas seus
O atendimento do reclamo se dava de forma inequívoca.
proprietários ao pagamento da dízima à Ordem de Cristo, do que resultava De um lado, e seguindo à risca as proposições de Wakefield que
também que elas podiam ser alienadas. Lembremos ainda que, ao lado das podem ser sintetizadas na implicação “terra cara, trabalho barato”,
doações de semarias, e no decorrer de toda a existência da Colônia, a população pensava-se em garantir um amplo contingente de mão-de-obra ba-
livre e pobre recorreu à posse como maneira de acesso à terra, procurando con-
rata para a grande lavoura, por meio do fechamento da fronteira
servá-la quando chegavam os colonos poderosos e juridicamente garantidos.
Lembremos, por fim, que são estes mesmos pressupostos jurídicos que norteiam nas férteis terras do “Sul”, por onde se expandiam os cafezais, no
a política de concessão de terras por Dom João, no início do século XIX.
Podemos dizer que foram justamente o aumento desmesurado do número de
posses e a desordem existente na doação de sesmarias, aliados à situação de
emancipação política, que conduziram à Resolução de 17 de julho de 1822, 113 Idem. Sessão em 8 de agosto de 1843. Discurso de Rodrigues Torres:
suspendendo toda e qualquer concessão de sesmarias. Desta data até a pro-
“Outro mal nasce daqui, e é que uma pequena população se espalha sobre uma
mulgação da Lei de Terras, em 1850, a posse tornou-se a única forma de acesso
vasta superfície. Homens assim disseminados, que não podem comunicar-se uns
à apropriação legítima das terras devolutas.
112 APB-Câmara dos Deputados. Sessão do dia 24 de julho de 1843, p. 379
com os outros, trocar as suas idéias, os seus pensamentos, que não podem
coadjuvar-se mutuamente, tomam-se bárbaros em lugar de civilizar-se” (p. 664).

244 245
i

momento em que a pressão inglesa e as insurreições negras amea- “Sou levado a crer que esse projeto tem um fim especial,
çavam de colapso o fornecimento de mão-de-obra escrava. Em defesa que esse projeto tende somente a regularizar os interesses da
do projeto, Rodrigues Torres fala como se o tráfico intercontinental Província do Rio de Janeiro.” 116
já estivesse extinto:
.i

Ora, uma direção que tem em vista uma expansão não pode apre-
“Antigamente compravam-se os escravos entre nós para cul- sentar-se como função de interesses particulares. Tornava-se necessá-
tivar as terras; mas hoje isso não acontece, e é muito difícil rio, pois, reformular a proposta saída do Conselho de Estado.
que os particulares possam mandar vir colonos por sua conta O projeto de colonização somente voltaria a ser objeto de discussão
para empregá-los nos trabalhos de suas fazendas, força é que em meados de 1848, na Câmara vitalícia. Tendo ocupado o governo
o governo se encarregue disso.” 114 do Império entre 1844 e 1848, aqueles que Bernardo Pereira de
Vasconcelos denominou de “liberais exclusivistas” haviam procura-
De outro, buscava-se legalizar a propriedade daqueles plantadores do embargar a marcha da discussão recorrendo a diversos procedi-
que haviam obtido terras, conseguido preservá-las e mesmo ampliá- mentos, bastando lembrar que em certa ocasião o Visconde de Abran-
las com a expansão cafeeira, no decorrer e por meio de lutas vio- tes alegou como razoes da impossibilidade de ser efetuada a discussão,

lentas e cotidianas. Com seu tradicional senso administrativo, Pau- solicitando mais uma vez o adiamento, o não comparecimento do
lino diria na Câmara que se tratava, antes de tudo, de definir o que presidente do conselho ao Senado para os esclarecimentos necessários
117
se entendia por posse, enunciando sua definição: e a não publicação da tradução da obra de Wakefield. . ,

Finalmente, no mês de agosto o Senado retomou o projeto, pre-


“A posse consiste na faculdade natural de deter uma coisa nunciando talvez a próxima queda da situação liberal. Por certo,
com o ânimo de a haver para si, e como pode um indivíduo ao fazê-lo tinha em consideração a crescente pressão inglesa para
com um ou dois filhos ter a faculdade natural de deter meia a extinção do tráfico, assim como o seu resultado imediato e contra-
ditório, isto é, o aumento até certo ponto incomensurável das intro-
légua, uma légua de terra?”
duções de africanos no Império, que propiciavam a formação de
Não deixaria também de estabelecer uma hierarquização de direi- uma espécie de “reservatório de escravos”, característico do que uma
autora denomina de economias escravistas amadurecidas. 118 De outro
tos, a qual, no essencial, garantia os interesses do plantador escra-
lado, talvez se possa dizer ainda que a retomada da discussão tam-
vista :

bém expressava uma certa consolidação dos Saquaremas nos órgãos


fundamentais do Império: naquele momento, no Senado, ao lado
“Preferir o sesmeiro que tem posse ao simples posseiro, e o
de Vasconcelos, Carneiro Leão, Clemente Pereira, Costa Carvalho
simples posseiro ao simples sesmeiro, que é aquele que apenas
e alguns outros intransigentes defensores do princípio conservador,
tem título de demarcação, sem confirmação e sem posse.” 115
já se encontrava Rodrigues Torres; no ano seguinte, nele ingressaria
Paulino. Tendiam todos, sem dúvida, a assumir o perfil traçado mag-
Contra o projeto, contudo, ergueram-se protestos diversos. Uns ii ficamente por Machado de Assis para uma década depois: “Acha-
referentes às imposições de revisão dos títulos de propriedade e de va-lhesuma feição particular, metade militante, metade triunfante,
impostos; outros, às custas e dificuldades de demarcação, prováveis um pouco de homens, outro pouco de instituições”. 119 O Conselho
causadoras de novos conflitos; terceiros, à defesa de toda e qualquer de Estado, onde se encontravam os mesmos Vasconcelos, Carneiro
posse. A restrição maior viria de Ângelo Muniz da Silva Ferraz depu- Leão e Costa Carvalho, completava e reforçava aquela tendência.
tado pela Província da Bahia:
*16 Idem. Sessão em 31 de julho de 1843, p. 494.
11 7 Anais do Senado do Império do Brasil. Sessão em 15 de julho de 1848,
p. 374.
118 Cf. Paula Beiguelman — Op. cit., p. 22.
114 Idem. Sessão do dia 26 de julho
115 Idem. Sessão do dia 27 de julho
de 1843,
de 1843,
p. 410.
445.
119 Machado de Assis — Obra completa. Rio de Janeiro, 1962, tomo II,
p. p. 636.

246 247
Por ocasião da discussão do artigo que determinava que ao Go- pela Lei de 1850 ao Estado permanecia competindo a venda das
verno competia estabelecer a maneira de distinguir as terras públi- terras devolutas; a vigilância e a punição dos infratores; a determi-
cas das particulares, Vasconcelos pediu a palavra não apenas para nação dos prazos para medição das propriedades revalidadas e das
opinar a respeito dele, mas para firmar também a nova posição sa-%^ posses legitimadas; a medição, divisão e demarcação dos lotes a se-
quarema a respeito da colonização. Disse então: rem vendidos; a reserva de terras para fins como a colonização dos
indígenas, a construção naval, a fundação de povoações, abertura de
“o que hoje urge é extremar o domínio público do particular, estradas e localização de estabelecimentos públicos. E passavam a
e não vender.” ser de sua competência o estabelecimento do modo como as proprie-
dades públicas seriam distinguidas das privadas; a fixação das con-
E completou: dições para a venda das terras devolutas; a designação das reparti-
ções provinciais nas quais os posseiros deveriam tirar os títulos das
“como dizia, nós entendíamos que não podíamos substituir terras que lhes passavam a pertencer, e sem o que não as poderiam

os braços africanos senão por este método, senão vendendo hipotecar ou vender; a criação das condições necessárias para que os
as terras devolutas, e procedendo com o seu produto a im- adquirentes estrangeiros pudessem ser naturalizados após dois anos
portação de braços livres. É uma medida muito precária. . . de residência no Império, se assim o desejassem, desobrigando-os do
Eu não sei se já declarei a Y.Exa. que sempre me inclinei serviço militar, mas valendo para que participassem da Guarda Na-
muito pelos africanos; entendo que são os braços mais úteis cional de seus municípios; e a organização da Repartição-Geral de
que o Brasil deve ter. Até por desgraça estou neste ponto em Terras Públicas.
desarmonia com a administração atual. A atual administração Quando Vasconcelos dizia que não deveria ser preocupação ime-
detesta os braços africanos, o liberalismo entende que se não diata do governo a venda de terras — opinião que, afinal, reforçava
deve mais servir de tais braços; bem, eu não entro nos ar- o artigo que estabelecia para a venda condições extremamente one-
canos do liberalismo: mas o que tenho como certo é que rosas (art. 16) — , e acrescentava que não mais se deveria preten-
muitas províncias ficam reduzidas à miséria dentro de pouco der, como em 1843, substituir os braços africanos por trabalhadores
tempo se o governo não abrir os olhos, se não deixar de ser livres importados com recursos gerados com a venda de terras —
tão liberal, e liberal exclusivista.” 120 “(...) medida muito precária (...)” —
o principal mentor sa-
,

quarema não deixava de justificar o artigo que autorizava o governo,


Depoimento significativo, sem dúvida. De uma parte, a defesa da dispondo dos recursos do Tesouro, a introduzir anualmente no Im-
importação de “colonos” brancos, à semelhança do que faziam os pério um certo número de colonos livres, que poderiam ser empre-
ingleses para as Antilhas e Demerara, justificando-se tal opção com gados, por um prazo determinado, nos estabelecimentos agrícolas,
a alegação que os europeus não se adaptavam ao trabalho “no sol nos trabalhos dirigidos pela administração pública ou ainda na for-
dos trópicos”. Vasconcelos seria contraditado, imediatamente, por mação de colônias em locais previamente determinados.
Dias de Carvalho, ministro do Império, e defensor da imigração eu- Não deixavam de se revelar, assim, intenções e ações complemen-
ropéia. De outra, a revelação de intenções, pouco tempo depois con-
tares, e que só à primeira vista pareciam se confundir: de um lado,
cretizadas, que a simples leitura da lei aprovada em 1850 nem sem-
dificultar o acesso à terra, muito embora tivessem sido facilitados
pre permite perceber. Fixemos nossa atenção aqui, no momento da
os procedimentos e normas para revalidação das sesmarias e legiti-
conclusão.
mação das posses; de outro, evitar o mais possível colocar terras a
No momento em que Vasconcelos criticava os “liberais exclusi-
venda. Intenções e ações que tinham como objetivo mais imediato
mais uma vez, a prevalência do Estado na for-
vistas”, ele defendia,
a criação de uma mas que
reserva de trabalhadores não escravos,
mulação e implementação de uma política de terras. Com efeito,
deveriam estar sujeitos aos interesses dominantes numa economia
que se orientava para a poupança de trabalho escravo.
E era por meio da articulação entre as políticas de mão-de-obra
12í Anais do Senado do Império do Brvsil. Sessão em 21 de agosto de
1848 396 e de terras que se esperava que tal ocorresse, pois tal articulação
, p. .

248 249
estava referida tanto à preservação da escravidão, de uma maneira Todavia, o movimento da História nos anos imediatamente se-
geral, quanto ao incentivo ao tráfico interno de escravos, como de- guintes se encarregaria de revelar aquilo que o discurso de Vascon-
corrência, de uma maneira particular. celos se preocupava em ocultar: os interesses particulares dos Sa-
Ora, a relação contraditória entre estes dois referenciais expres- quaremas. A dinâmica do tráfico interno, a oposição ao regime de
sava, no fundo, a relação contraditória entre a região de agricultura parceria, as dificuldades de efetivação das determinações da Lei de
mercantil-escravista e as demais regiões, de um lado, e no interior 1850 caracterizavam os limites de uma direção e as contradições
mesmo daquela região, de outro, relação contraditória essa que im- contidas no esforço de uma expansão. Caracterizavam também a tra-
punha, também neste caso particular, o privilegiamento do Estado. jetória histórica de uma classe que acabava por ter nos mecanismos
No desempenho do papel fundamental de formulação e implemen- que desenvolvera para sua constituição as próprias razoes de sua
tação daquelas políticas intimamente articuladas, a Coroa não dei- destruição.
xaria jamais de ter o primeiro referencial —
a preservação da escra-
vidão —
como o seu objetivo fundamental, apresentando-o também
como a condição de preservação dos demais monopólios, ao mesmo
tempo que ou procurava ocultar ou apresentava como subordinado 3. A FORMAÇÃO DO POVO
ao primeiro o referencial particular —
o tráfico interno. Por isso
mesmo, a preservação da escravidão no centro da economia e da
“ (...) enquanto certas idéias não penetram
sociedade imperiais deveria ser vivida e entendida por todos como
a massa da população, enquanto não se tor-
a condição da preservação da unidade e da soberania do Império. nam populares, muito difícil é que se esta-
No essencial, contudo, aquela preservação por meio de políticas le- beleçam e adquiram o desenvolvimento de
vadas a efeito pelo Estado imperial era a preservação da hierarquia, que são suscetíveis. Quando elas se identifi-
cam porém com o modo geral de sentir, as
tantas vezes já referida, entre as regiões do Império e no interior
coisas com facilidade se conseguem e cami-
da principal delas; era sobretudo a preservação da região, das dife- nham quase por si mesmas.”
renças e hierarquizações sociais nela contidas, como produto da rela- Paulino José Soares de Sousa, 1838.
ção engendrada pela moeda colonial.
No mesmo discurso de 1848, Vasconcelos diria ainda a respeito Convém repetir mais uma vez. Os processos de construção do Estado
da lei que se discutia: imperial e de constituição da classe senhorial foram também o mo-
vimento de formação e expansão dos Saquaremas, de seus quadros
“Eu considero que esta lei é importantíssima, até era um e perspectivas, de individuação deum segmento no conjunto do sis-
artigo de fé dos saquaremas dos falecidos saquaremas,
. . . , tema de relações sociais que animam aqueles processos.
porque a respeito da morte dos saquaremas já hoje não há Neste movimento de formação e expansão, um espaço-tempo pri-
questão; morreram, acabaram, estão até enterrados, e agora vilegiado foi representado pela província fluminense, que ganhara
mais enterrados ficarão.” 121 uma dimensão diversa, agora em termos político-administrativos,
com a aprovação do Ato Adicional de 1834 que dela desmembrou
Tentava fazer com que quase todos acreditassem, sem dúvida, que o Município da Corte, 123 ao mesmo tempo que a dotava de admi-
os interesses partidáriosestavam mortos, tendendo a triunfar os in- 121
nistração própria, logo depois precisamente definida.
teresses gerais do país. Tentava mostrar também que a Coroa não
se limitava a atender aos interesses saquaremas, mas que por meio
de uma lei de cunho administrativo 122 procurava atender aos inte- 123 Cf. CLIB — Ano de 1834. Lei n.° 16 — de 12 de agosto de 1834.
resses de toda a classe senhorial. Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos
da Lei de 12 de outubro de 1832.
124 Cf. especialmente CLIB. Lei n.° 40 — de 3 de outubro de 1843. Marca
121 Idem, Ibidem. as atribuições dos presidentes das províncias. No art. 1 ficava determinado que
122 Cf. Visconde do Uruguai — Ensaio sobre o Direito Administrativo. “a autoridade, porém, do presidente da província em que estiver a corte, não
Rio de Janeiro, 1862, p. 13. Cf. também Ruy Cirne Lima — Op. cit ., pp. 68-69 compreenderá a mesma corte, nem o seu município”.

250 251
Controlando a administração provincial, a partir do controle do minense cumprindo o papel de um laboratório, no qual os Saquare-
cargo de presidente da província que só então para ela fora estabe- mas tanto testavam medidas e avaliavam ações que buscavam esten-
lecido, 125 o núcleo original e gerador dos Saquaremas teve a pos- der à administração geral, quanto aplicavam decisões do Governo-
sibilidade de estabelecer, em alguns casos, expandir e aprofundar, Geral, sempre com a finalidade última de consolidar a ordem no
em outros, um feixe de relações fundamentais, propiciadoras elas Império.
também da expansão ulterior da classe que representavam e busca- Anotemos, aqui, que duas características atestam, de imediato, o
vam consolidar. papel que se reservava à província, distinguindo-a das demais. De
Da província que se tornaria em meados do século, no dizer de um lado, delas difere, particularmente nas primeiras décadas após
Milliet de Saint-Adolphe, “entre todas as do Brasil a mais bem agri- o Ato Adicional, no que diz respeito à alta rotatividade de sua prin-
cultada e hortada”, 126 Rodrigues Torres foi o primeiro presidente, cipal autoridade —o presidente da província, fato que, ainda em
governando-a durante dezenove meses. A presidência seguinte coube
1836, já era apontado pelo ministro do Império como uma das ra-
a Paulino José Soares de Sousa, que ocupou o cargo, com breves zoes, talvez a principal, do malogro das presidências e, como decor-
interrupções, desde o mês de abril de 1836 até o mês de agosto do rência, do atraso em que viviam as províncias. 128 Com efeito, se na
ano da Maioridade. Assim, ao mesmo tempo que aqueles con- maior parte das províncias o tempo médio de permanência no cargo
cunhados se empenhavam na luta pela Reação Monárquica — pode- dos presidentes nomeados pelo Governo-Geral era de seis meses,
129

ríamos lembrar, como um exemplo, que, em 1837, Paulino fizera na Província do Rio de Janeiro ele foi de dezesseis meses, se consL
parte, ao lado de Honório Hermeto Carneiro Leão e Miguel Calmon
déramos todo o período imperial, e de vinte e dois meses, caso con-
du Pin, da comissão encarregada da interpretação de alguns artigos sideremos apenas aquele período que, num sentido bastante estrito,
do Ato Adicional ,
—procuravam também monopolizar a responsa- vimos denominando de Tempo Saquarema, isto é, desde 1834 até
bilidade da organização da máquina administrativa da província. Não
o início dos anos sessenta. 130 E, mais significativo ainda, o momento
nos esqueçamos que, por essa mesma época, o terceiro membro da de organização da administração provincial —
o qual se constitui
“trindade saquarema” ocupava o estratégico cargo de chefe de Po- também no momento de formação dos quadros saquaremas as- —
lícia do Rio de Janeiro. Por ocasião dos movimentos liberais de 1842,
sinala a permanência à frente dos negócios da província de Rodri-
que se apresentavam como uma ameaça ao triunfo daquela Reação, gues Torres e Paulino por quase seis anos. E assim, numa inversão
à frente do governo da província encontrava-se o tradicional aliado
do que tradicionalmente ocorria, a ação administrativa se impunha
da “trindade”, Carneiro Leão, que se distinguiria não só pelas me- ao caráter eminentemente político do cargo, fazendo com que este
didas visando isolar os revoltosos fluminenses, mas também por
somente aparecesse por meio daquela.
aquelas visando quebrar o particularismo que caracterizava os pró-
De outro lado, e ainda particularmente nas primeiras décadas, a
prios defensores da “ordem imperial”. 127 As breves presidências li-
província não padeceu de outro mal que era apontado por quase
berais e mesmo a longa administração do membro da “facção áulica”
Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, que se estendeu de 1844 128 Cf. Relatório do ministro dos Negócios do Império ,
1836 — José Inácio
a 1848, não foram suficientes para modificar o traço que assinalava Borges.
aquela unidade político-administrativa, desde 1834: a província flu- 129 Tratando do caso da Província de Minas Gerais, Francisco Iglésias
assinala que cada administração durou em média “6 meses e 22 dias apenas”, ali.
E completa: “Minas não é exceção nesse particular. Como se vê no quadro de
“presidentes que têm governado as Províncias do Império”, em que se considera
125 Até então, a administração do conjunto da província competia ao mi- apenas o número de presidentes, sem contar os períodos em que vice-presidentes
nistro do Império. estiveram em exercício, Minas teve 59 presidentes, enquanto Alagoas 61, Per-
120 J. £. R. Milliet de Saint-Adolphe —Dicionário geográfico , histórico e nambuco também 59 e as demais Províncias número alto de autoridades”.
descritivo do Império do Brasil. 2. a edição. Paris, 1863, p. 418.
127 “Um dos males com que muito se luta, é que cada fazendeiro pretende
Francisco Iglésias — Política econômica do Governo Provincial mineiro. Rio de
Janeiro, 1958, p. 41.
que as operações se dirijam para a parte da sua fazenda, e que se lhe dê uma 130 A
relação dos presidentes das províncias fluminenses, e os respectivos pe-
guarnição ou armamento. Em uma palavra, cada um dos Legalistas quer dirigir ríodos de governo — mas não a dos vice-presidentes que, em variados momentos,
como General”. Carta a Paulino José Soares de Sousa, em 30 de junho de 1842.
Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (de agora em diante,
assumiram o posto — pode ser encontrada em Barão do Javari
a

Organizações
e programas ministeriais. Regime parlamentar no Império. 2. edição. Rio de
AIHGB). Uruguai. Coleção Leão Teixeira, lata 748, pasta 32. Janeiro, 1962, pp. 445-446.

252 253
todos que se opunham à centralização imperial como razão também
ção das aldeias de índios, “indolentes habitadores do Brasil”. Não
da inoperância das presidências que se sucediam, a saber, a sua en-
deixava de sublinhar, em proveito do governo provincial, a “ineficaz
trega a elementos estranhos à província, desconhecedores quase serm
ação das câmaras municipais”, entendidas como a extensão natural
pre de suas reais necessidades, interessados quase que unicamente
do governo da Casa. 133
em suas carreiras políticas e, por isso mesmo, com os olhos sempre Da observação e exame do mecanismo das relações entre a Assem-
postos na Corte. 131 Y bléia Provincial e o Governo- Geral, Paulino colheu muitos dos sub-
Por tudo isso, e muito mais, a província fluminense pode ser to-
sídios não só para informar uma revisão da legislação que regulava
mada como uma espécie de laboratório. *-
aquelas relações, mas também para a elaboração de trabalhos que,
De sua posição elevada de presidente da província, Rodrigues
ainda hoje, constituem documentos fundamentais para o conheci-
Torres concitava a uma exemplaridade ao se dirigir aos membros
mento da organização administrativa do Império e a compreensão
da Assembléia Legislativa Provincial em sua Fala de abertura da
do pensamento conservador, como o Projeto para melhor organiza-
primeira legislatura, no início de 1835:
ção das administrações provinciais, apresentado em l.° de fevereiro
de 1858 por solicitação do Marquês de Olinda, o Ensaio sobre o Di-
“Os esforços que empregardes em promover nossa nascente
reito Administrativo, editado em 1862, e os Estudos Práticos sobre
indústria não só acrescentarão a riqueza e prosperidade ma-
a Administração das Províncias, de 1865.
terial desta Província, mas podem também concorrer para
Por meio do recurso às informações estatísticas —
não será im-
diminuir e ao fim fazer de todo desaparecer do Solo brasi- Paulino coube determinar
portante lembrar, neste momento, que a
leiro os funestos efeitos das discórdias civis. Vosso exemplo,
a realização do primeiro recenseamento da província, em 1840 ?
134
Legisladores, pode servir de estímulo a nossos compatriotas.
Vós lhes mostrareis por certo o majestoso espetáculo da con-
— ,
procurava-se conhecer a população. Tinham-se como objetivos,
de um lado, reunir os elementos necessários para um estudo compa-
córdia de Cidadãos, que sabem esquecer quaisquer dissenti-
rativo das fontes de riqueza e de impostos, e para um equaciona-
mentos políticos para reunidos oferecerem à Pátria o tributo necessárias ao incentivo das atividades econômi-
mento das medidas
de suas lucubr ações.” 132 entre elas a possibilidade da utilização de traba-
cas, destacando-se
lhadores livres, nacionais ou estrangeiros, na realização de obras pú-
Lembrava ser necessário estar preocupado com a definição das
blicas, permitindo, assim, a utilização da mão-de-obra escrava 'quase
rendas provinciais e com a organização dos meios de arrecadá-las;
que exclusivamente naquelas atividades consideradas fundamen-
com a organização da Guarda Nacional; com a abertura, construção 135 De outro, e tendo como referência o estabelecimento de uma
tais.
e conservação de estradas, pontes e canais; com a administração das
relação entre extensão do território/população reduzida, por uma
cadeias e a construção de uma casa de correção; com a administra-
parte, e ausência de civilização/desordem, por outra, procurava-se

131 Discursando na Câmara dos Deputados em 1885, em defesa do projeto 133 Idem, Ibidem — p. 6.
de uma monarquia Joaquim Nabuco caracterizava de maneira ácida
federativa,
os presidentes de província. Perguntava, então: “Os presidentes, que são em
134 Cf. José Antonio Soares de Souza — A vida do Visconde do Uruguai.
São Paulo, 1944, p. 57.
geral? São homens sem independência (...), que se encarregam de uma certa 135 Cf. José Antonio Soares de Souza — “A estrada da serra da Estrela c:
missão, que vão às Províncias passar um certo número de meses, que obtêm
os colonos alemães”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
essas vilegiaturas ou estes empregos” (...) sempre tendo a vista distraída
Rio de Janeiro, 1979, vol. 322, pp. 5-180. Poderíamos lembrar que no Relatório
para o poder central, em vez de tê-la fixada nas circunscrições territoriais que
referente ao ano de 1840, o presidente da província, Paulino José Soares de
lhes foram entregues. (...) Delegados demissíveis de ministérios anuais, os
Sousa, sustentava a importância da imigração européia, lembrando aos depu-
presidentes são administradores coatos —
transitórios, automáticos, criaturas
tados provinciais, a propósito da construção da estrada, que “o trabalho dos
políticas de um dia improvisadas por ministros que não têm a mínima idéia
colonos alemães, empregados nas obras desta seção continua a ser muito mais
das condições sequer topográficas quanto mais econômicas das Províncias para
produtivo e perfeito do que o dos operários escravos, pelo que fora muito con-
onde os despacham” —Transcrito de Francisco Iglésias —
Op. cit ., p. 45. Cf.
veniente que autorizasse o governo a mandar vir maior número, principalmente
também a crítica por João Francisco Lisboa em “Partidos e eleições no Mara-
canteiros para aquelas obras, onde são precisos. (...) À vantagem de se obterem
nhão”, in Obras escolhidas. Rio de Janeiro, 1946.
bons operários acresceria a do aumento da população livre na província, que
132 RPP.RJ —1835: Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, pp. 34-35.
dela tanto carece, pois a que tem pouco excede a um quarto de sua população”.

254 255
:

conhecer mais profundamente aqueles indivíduos que eram aponta-


no laboratório forjado pelos Saquaremos não era acidental também.
dos como os promotores da desordem, assim como os meios para
Por um lado, ele resultava de uma definição de natureza admi-
melhor controlá-los e circunscreva-los, dentre os quais figurava com
nistrativa estabelecida pelo Ato Adicional de 1334, e cuja compre-
destaque o recurso ao recrutamento para as forças policiais. Ano-
ensão e alcance se iluminam caso recordemos, ainda que sumaria-
temos, contudo, que a apatia das municipalidades, a formação defi-
mente, de algumas determinações anteriores, excessivamente gené-
ciente dos inspetores policiais, a inércia dos párocos e sobretudo a
ricas. Vejamos, pois.
prevenção dos habitantes se constituíram, durante muito tempo, em
Logo após a emancipação política, a Lei de 20 de outubro de 1823
entrave a um melhor conhecimento estatístico, motivando mesmo o
aboliu os privilégios do Estado para dar instrução, inscrevendo o
comentário arguto de um dos presidentes da Província do Rio de
princípio da liberdade do ensino sem restrições. A Carta de 1824,
Janeiro:
por sua vez, determinava no art. 179, XXXII —
“a Instrução pri-
mária é gratuita a todos os Cidadãos
11
, mas não —
definia as ma-
“Nao basta que tenhamos homens capazes de reconhecer neiras de se garantir esta gratuidade. A decisão seguinte referente
nossas vitais precisões e de conceber os melhores planos em à instrução primária se consubstanciaria na Lei de 15 de outubro
todo o gênero; é mister também que a nação esteja em es-
de 1827, que determinava a criação de escolas de primeiras letras
tado de se convencer dessas precisões e de cooperar para a rea- em todas as cidades, vilas e lugarejos e de “escolas de meninas nas
lização desses planos. A nossa primeira necessidade é a ins- *, além
cidades e vilas mais populosas
1
de recomendar a adoção do
trução; não a instrução concentrada em poucos, senão der- Método de Lancaster ou de Ensino Mútuo. 139
ramada por todas as classes”. 13T A determinação do Ato Adicional ganha relevância porque, de
imediato, definia uma competência, também neste aspecto poteneia-
Como
muitos outros dirigentes imperiais, o presidente da provín- lizador da administração provincial. Assim, passava à Assembléia
cia muito esperava da instrução. E, eom efeito, em nenhum outro Legislativa Provincial a capacidade de legislar
ramo da administração fluminense desempenharia tanto
a Província
que estamos procurando pôr em destaque.
o papel de labor atõrio “sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a pro-
Não acidentalmente, também Pereira da Silva assinalaria em 1857, movê-la, não compreendendo as faculdades de Medicina, os
quando exercia a mesma função, que a Instrução Publica era Cursos Jurídicos, Academias atualmente existentes e outros
quaisquer estabelecimentos de instrução que para o futuro
“(...) um dos ramos mais dificultosos da administração; forem criados por lei gerai.” 149
entretanto, a instrução pública forma o povo.” 13®

Desta maneira, ao poder provincial passava a incumbir legislar


Ora, o papel que a Instrução Pública —
quase sempre confun- sobre 0 que era entendido como a maneira de se “formar 0 povo”.
dida com a própria Educação, conforme ainda veremos assumiu — Ora, esta definição comporta uma observação. Conforme fizemos
anteriormente, e mais do que nunca, torna-se necessário restabelecer
136 Cl. a respeito Berenice Cavalcante Brandão et atii —
A Polícia e a a íntima conexão entre a lei do Ato Adicional, de 12 de agosto de
força policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1981 (especialmente pp. 125-133: 1834, e aquela que marcava as atribuições dos presidentes das pro-
A Policia e o mundo da desordem: a necessidade de conhecer”)- Apenas para
fct

víncias, de 3 de outubro do mesmo ano, sobretudo porque esta re-


reafirmar o papel de laboratório que a província fluminense cumpriu, lembre-
mos que nela foi adotado, em 1836, o sistema de nomeação da oficialidade da afirmava o presidente da província como a “primeira autoridade”
Guarda Nacional, em substituição à elegibilidade determinada pela lei de criação, nela, subordinando-lhe todos que nela se encontrassem, “seja qual
numa antecipação do que ocorreria a seguir nas demais províncias e foi trans-
formado em decisão geral por ocasião da reforma de 1850, Cf. Coleção de Leis
da Província do Rto de Janeirto —
Lei n* 43, de 10 de maio de 1836.
137 RPP*RJ —
1845: Victe-Presidência do Visconde da Vila Real da Praia 139 Cf., entre outros. Fernando de Azevedo — A cultura brasileira . 4,“ edição.
Grande, p. 22. São Paulo, 1964, pp. 564-565.
138 RPP-RJ —
1851 Vice-Preaidencia de João ManueJ Pereira da Silva, 140 CLIB —
Ano de 1834. Lei n.# 16 — de 12 de agosto de 1834.
p. 95.
art. 1 .’, g 2*.

256 257
T
for a sua classe ou graduação ”. 141 Tal conexão expressava, antes de hábitos intelectuais e morais, como bem diz um dos homens
tudo e mais uma vez, uma hierarquia entre os dirigentes, a qual mais vistos nessas matérias, o Sr. Cousin, que constituem a
implicava uma hierarquização na definição de uma direção. unidade e a nacionalidade .” 143
Não nos esqueçamos, porém, que a determinação ou definição
feita pelo Ato Adicional não se referia especificamente à Província Assim, a instrução cumpria - —
ou deveria cumprir —
um papel
do Rio de Janeiro. Por isso mesmo, podemos dizer que ela se cons- fundamental, que permitia —
ou deveria permitir —
que o Império
tituiu numa condição necessária, emhora não suficiente, para que se colocasse ao lado das “Nações Civilizadas”. Instruir “todas as
o laboratório pudesse organizar-se e funcionar, no que diz respeito classes” era, pois, o ato de difusão das Luzes que permitiam romper
à questão da Instrução Pública. Por isso mesmo, caso queiramos as trevas que caracterizavam o passado colonial; a possibilidade de
entender o papel que ela ali desempenhou torna-se necessário que estabelecer o primado da Razão, superando a “barbárie” dos “Ser-
consideremos, por outro lado, a importância que os Saquaremas — tões” e a “desordem” das Ruas; o meio de levar a efeito o espírito
vale dizer, sobretudo aqueles que formavam o seu núcleo original, de Associação, ultrapassando as tendências localistas representadas
e teciam na província, então, os laços primários de uma representa- pela Casa; além da oportunidade de usufruir os benefícios do Pro-
ção e de uma direção —
lhe emprestavam, e que, neste ponto, pode- gresso, e assim romper com as concepções mágicas a respeito do
mos sintetizar da seguinte maneira: uma das maneiras, por vezes mundo e da natureza.
a mais significativa, de construir a relação entre o Estado e a Casa Por isso mesmo, percorrer o corpo legal referente à organização
e de forjar a unidade do Império. da instrução na província, acompanhar os relatórios dos presidentes
Nestes termos, o pensamento de Rodrigues Torres, seu primeiro provinciais e seguir as discussões travadas na Assembléia fluminense
presidente, é por demais ilustrativo. Referindo-se às Escolas de Pri- através das páginas de seus Anais possibilitam recuperar, quase que
meiras Letras, ele não só resgatava a relação necessária entre o go- inleiramente, as intenções dos dirigentes saquaremas, os objetivos e
verno do Estado e o da Casa, sob a direção do primeiro, como tam- ideais que os moviam, no que diz respeito, em particular, à instru-
bém sublinhava a importância da instrução naquela relação. Dizia ção e à educação, e, no geral e como uma decorrência, ao tipo de
ele que Estado que pretendiam construir e à direção que pretendiam im-
primir à sociedade. Possibilitam, em suma, compreender o tipo de
“os conhecimentos que aí se adquirem são indispensáveis não Povo que se pretendia formar e avaliar a força de uma ação que
só para tratar dos negócios domésticos, mas ainda para bem participa do processo de construção de crenças e idéias, de quali-
desempenhar todos os deveres do cidadão. Fora uma tirania ficações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens
que o Estado impusesse aos seus membros obrigações sem e poderes que constituem uma sociedade.
lhes dar ao mesmo tempo meios de as bem conhecer e cum- Possibilitam ainda perceber como na instauração de uma Instru-
prir.”14 * ção Pública no Império foi fundamental a inspiração européia, re-
143
presentada não só pelos textos legais franceses, mas também pela
Anos mais tarde, no momento em que se feria a Praieira, o áulico filosofia que os orientava, embora tal inspiração não significasse
Aureliano de Sousa Coutinho, que então presidia a província flumi- uma mera transplantação.
nense, lembrava que era por meio da instrução elementar que se Possibilitam, por fim, perceber como os próprios agentes avalia-
adquiriam vam sua atuação, as críticas que formulavam às soluções propostas
ou implementadas, e os limites de uma proposta que, no fundamen-
“certas noções, certas práticas e sentimentos que devem ser tal, vislumbrava no alcance de uma civilização a condição do Povo
gerais assim para as primeiras como para as classes superio- — isto é, a *boa sociedade” —
não só conservar o lugar que ocupava
res da sociedade. É essa instrução comum, essa identidade de

141 CLIB —
Ano de 1834. Lei n.° 40 —
de 3 de outubro de 1834, art. l.°. RPP.RJ — 1848: Presidência de Aureliano de Sousa e Oliveira Cou-
142 RPP-RJ —
1835: Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, p. 4. tinho, p. 57.

258 259
na sociedade, mas também reconhecer e reproduzir as diferenças Em terceiro lugar, quandoda necessidade de difundir
se falava
e hierarquizações no seu próprio interior. um entendimento bas-
a instrução “por todas as classes”, tinha-se já
Tomemos, então, o que era insistentemente preconizado: derra- tante preciso do que se pretendia, entendimento esse que se iniciava
mar a instrução por todas as classes. Isto nos permitirá algumas pela delimitação da abrangência da expressão. Ocorria, então, e de
considerações. maneira inequívoca, o entrecruzar de uma concepção a respeito da
Em primeiro lugar, instruir ou educar devia ser uma preocupa- sociedade —
a qual, lastreada por um “sentimento aristocrático”,
ção permanente dos dirigentes,E estes deviam ter seus olhos conforme lembrara Ferreira de Resende, reconhecia como “classes”
postos tanto sobre o homem comum, o simples cidadão, quanto sobre os “brancos ou a boa sociedade”, o “povo mais ou menos miúdo”
os próprios dirigentes, entre os quais o próprio imperador, 144 Não e os “escravos” —
com uma postura a respeito da política, que
por outra razão, discutiu-se tanto a respeito da tutoria do jovem im- progressivamente se impunha —
a qual colocava a questão da es-
perador nos tempos iniciais das Regências, acabando-se por afastar cravidão no centro da discussão política, em substituição à questão
o velho Andrada do cargo de tutor sob a alegação de suas ligações nati vista.
145
com os restauradores e com as idéias antiliherais. Ora, deste entrecruzar resultava, por um lado, o privilegiamento
Em segundo lugar, continuava-se a adotar “a França como ma- dos homens livres —
os “brancos ou a boa sociedade” e o “povo
drinha”, conforme propusera Santa Rita Durão havia muito. Toda- mais ou menos miúdo”, indistintamente num primeiro momento.
via, e também no que dizia respeito ao campo educacional, a França E, por outro, a desqualificação dos escravos e dos “pretos africanos,
que se seguia então tinha uma dupla referência: de um lado, o Im- ainda que livres e libertos” a quem se interditava o ingresso nas
pério Napoleonico, com sua tendência autoritária e centralizadora, escolas públicas de instrução primária da província, conforme vinha
expressada, por exemplo-, nas palavras do próprio Napoleao trans- dito expressamente na Lei provincial de 21 de janeiro de 1837 que
critas no relatório de Fourcroy: “não haverá Estado político firme “regula a instrução primária '\14B
1 146
se não houver corpo docente com princípios firmes’ ; de outro, Todavia, se já temos delimitado o alcance de uma expressão, por
e muito mais importante, a Monarquia de Julho, com a reforma meio de uma operação que, mais uma vez, põe em evidência urna
educacional de Guizot em 1833, inspirada e em parte realizada pelo hierarquização, torna-se importante que, agora, procuremos enten-
filósofo eclético Victor Cousin 147
61

um dos homens mais vistos der como se efetivaria um derramamento sobre este conjunto privi-
nesta matéria ”, no entender de Aureliano, conforme vimos há pouco, legiado. Proceder a tal significa, sem dúvida, fazer referência à “in-
fluência francesa”, pois a ela competiu, em larga medida, definir
1*4 Nestes termos, a educação do imperador não deixava de se assemelhar, os elementos fundamentais da mais significativa das experiências
enquanto um problema, à educação do príncipe preconizada pelos filósofos ilustra- vividas pelo laboratório provincial: os alunos e professores.
dos como a maneira mais eficaz de se alcançar as reformas necessárias k con-
servação da sociedade (cf. Paul Hazard — La pensée européene au XV II te. Comecemos pelos alunos.
sièelet de Montesquieu ã Lessing. Paris, 1946, t. 1),
1*5 Cf,, p, ex„ Paulo Pereira de Castro — *'À experiência republicana,
1831-1840*', in História geral da civilização brasileira, dir, por Sérgio Buarque
de Holanda, t. II, vol. II, cultos e dos moradores. Exigia dos professores o título da escola normal,
1*5 Citado por Lorenzo Luzuriaga — História da educação publica. São impunha as mesmas obrigações aos mestres leigos e religiosos, ao mesmo tempo
Paulo, 1959, p. 59. que fixava um soldo min uno e a jubilação. Contrariando o princípio da obriga-
1*7 Pela reforma francesa de 1833, deveriam existir em cada município as toriedade escolar prevalecente na Convenção em 1793, e então preconizado por
escolas primárias necessárias, enquanto as povoações com mais de 6.000 habitan- Cousin, a lei de Guizot não introduziu a obrigatoriedade escolar, assim como
tes eram obrigadas a manter escolas primárias superiores. Oensino primário não preceituava a gratuidade total do ensino primário; ela reconhecia também
elementar compreenderia a instrução moral e religiosa, leitura, escrita, elementos o princípio da liberdade religiosa e de consciência. Por meio de outras reformas,
da língua francesa e de cálculo, e o sistema legal de pesos e medidas, enquanto Guizot organizou as escolas normais, à maneira do observado por Cousin nos
o ensino primário superior compreenderia também elementos de geometria e estados alemães, e criou o cargo de inspetor primário, completando o quadro
suas aplicações usuais, noções de ciências físicas e de história natural, aplicáveis da instrução pública elementar (Cf. a respeito: Lorenzo Luzuriaga Üp. cif-, —
ao uso da vida. canto, elementos de história e geografia, especial mente da especialmente pp. 62-66).
França. Preocupada com a administração e inspeção das escolas, a lei previa a 148 Cf. Primitivo Moacyr —
À instrução e as províncias {Subsídios para a
criação em diferentes níveis — local, de distrito e de departamento — de história da educação no Brasil) —
1835-1839. São Paulo, 1939, 2.° volume,
comitês integrados pelas autoridades municipais, representantes dos diversos p. 195.

260 261
Primordialmente, buscava-se possibilitar a inclusão na sociedade e a terceira correspondiam, embora de maneira mais simplificada,
daqueles que eram apresentados como os futuros cidadãos do Im- ao ensino primário superior.
pério. Por meio da difusão de uma civilidade procurava-se a uni- , E mais do que isso. de Guizot, aqui também se
Como na França
formização mínima entre os elementos constitutivos de uma socieda- esperava alcançar uma
unidade, simbolizada na unidade do terri-
de civil que era entendida como permanentemente ameaçada pela tório, por meio da formação de uma vontade coletiva gerada sobre-
“barbárie dos Sertões”. 149 tudo pelo sistema escolar. Como lembrava significativamente um
Retomar o currículo que a Lei de 1837, há pouco referida, esta- presidente da província, em 1859,
belecia para as “escolas públicas de instrução primária” é começar
a entender como se esperava realizar essa inclusão, além de também “dessa humilde casa que tem o nome de escola, pende o fu-
visualizar quem se esperava que dela participasse, dando, assim, um turo de toda uma sociedade.” 151
conteúdo mais preciso à determinação excessivamente genérica do
Por isso mesmo, não se tratava mais de apenas ensinar a “ler,
texto constitucional a respeito dos cidadãos brasileiros.
escrever e contar”, como acontecera nas escolas da Colônia. Trata-
Assim, as escolas públicas de instrução primária compreendiam
va-se de difundir o mais amplamente possível a “língua nacional”,
três classes de ensino. A primeira, leitura, escrita, as quatro opera-
sua gramática incluída, de modo a superar as limitações de toda
ções de aritmética, frações ordinárias e decimais, proporções; prin-
natureza impostas pelas falas regionais, e assim reproduzindo em
cípios de moral e doutrina cristã e da religião do Estado; gramática
escala mínima e individual o esforço gigantesco que, em escala am-
da língua nacional. A segunda, noções gerais de geometria teórica
pliada, era desenvolvido pelos escritores românticos, Alencar à frente.
e prática. E a terceira, elementos de geografia.
Tratava-se de difundir ainda informações matemáticas, desde “as
Estabelecia-se ainda que a matrícula dos alunos do sexo masculino
quatro operações de aritmética” até as “noções gerais de geometria
seria feita de acordo com as três classes, mas nenhum aluno seria
como condição de apreensão das estruturas lógi-
teórica e prática”,
admitido na segunda e terceira classes sem mostrar-se pronto em
no mundo, e que fundamentavam o pri-
cas elementares presentes
todos os elementos da primeira. As escolas para meninas tinham o
mesmo programa de ensino, com exceção de aritmética e proporções; mado da Razão. Tratava-se também de difundir os conhecimentos
geográficos, particularmente aqueles referentes ao território do Im-
nelas, aprendiam-se também “costura, bordados e mais misteres pró-
pério, de modo que um número crescente de cidadãos em formação
prios para a educação doméstica”. 150
tomassem pela Nação este território em sua integridade, indivisibili-
Ora, a simples leitura dos conteúdos selecionados para cada uma
dade e ausência de comoções.
das classes não deixa de revelar a inequívoca influência da reforma
de Guizot. Deste modo, a primeira classe não deixava de correspon-
Mas da Instrução Pública, esperavam-se outros resultados para a
Província, que se somariam àquele objetivo fundamental.
der ao ensino primário elementar francês, enquanto que a segunda
Acreditava-se que do atraso em que ainda se encontrava a instru-
ção primária, às vésperas da Maioridade, resultavam, em grande
parte, a freqüência de crimes, os focos de desordem e a ausência de
149 A crítica de fundo liberal que, a partir dos anos sessenta, se ergue tranqüilidade pública. 152
contra a direção saquarema não deixaria de atingir também este ponto crucial. Acreditava-se também,como na Europa das “nações civilizadas”,
Todavia, ao fazê-lo, e mesmo tendo como referência principal a mudança da
que combinação
da perfeita entre instrução e trabalho bons frutos
base da sociedade, não deixaria de reconhecer a necessidade da inclusão a que
estamos nos referindo, embora pudesse dar a ela um sentido diverso. Assim, resultariam. De uma parte, a eliminação da indigência:
quando em A Província Tavares Bastos cuida da questão da instrução pública
— “interesse fundamental dos povos modernos” —
diz que é movido pela ne- “A fundação do Colégio das Artes Mecânicas, criado pela
ciais adotar, com a máxima
,

cessidade de “indicar as medidas principais que devem as assembléias provin-


urgência, para elevarem o nível moral das popu-
Lei n.° 37 de 22 de dezembro de 1836” —
dizia o Presidente

lações mergulhadas nas trevas”. E sublinha que o faz porque “o mais digno
objeto das cogitações dos brasileiros é, depois da emancipação do trabalho, a
emancipação do espírito cativo da ignorância”. Tavares Bastos —
A província. 151. RPP-RJ — 1859: Presidência de João de Almeida Pereira Filho, p. 57.

2.
a
edição, São Paulo, 1937, p. 215. 152 Cf. RPP-RJ — 1839: Presidência de Paulino José Soares de Sousa,
159 Cf. Primitivo Moacyr — op. cit ., loc. cit. pp. 33-37.

262 263
João Caldas Viana, em 1844 —
“fazendo os filhos de pais
, fundamentais à convivência social, aderindo de modo consciente ao
pobres habilitarem-se num ofício mecânico, aprendendo-o espírito de associação. Era assim o complemento do ato de
instruir,

com perfeição, deve garantir um futuro à nossa população que propiciava a cada indivíduo os germes de virtude e a idéia dos
indigente, dar-lhes o hábito do trabalho, costumes e um erçir seus deveres como homem e cidadão. Instruir e educar eram, em
prego, tornando-os assim cidadãos úteis e pacíficos indivíduos suma, uma das maneiras —
quiçá a fundamental —
de fixar os
que aguilhoados pelas necessidades naturalmente se teriam caracteres que permitiriam reconhecer os membros que compunham
para
engolfado no pejo dos vícios e do crime.” 153 a sociedade civil, assim como aqueles que lhe eram estranhos,
1M* 157
além da fria letra do texto constitucional.
De outra, um corretivo para a delinqüência: Por certo, imaginava-se que tarefa tão fundamental quanto gigan-
tesca não poderia deixar de incumbir ao governo do Estado.
No la-
“Um ensaio de sistema penitenciário” —
diz aquela mesma
boratório saquarema, tinha-se claro que educar, enquanto
autoridade — “sobre que hoje os povos civilizados do mundo
instruir e

açÓes complementares e não dissociadas, constituíam dever


sagrado
estão fazendo experimentos, e tentativas, pelo isolamento no- Presidente João de Al-
e rigoroso do Estado”, conforme salientava o
turno, e trabalho em comum de dia por classes e idades, me
meida Pereira em 185 9. 158
parece de transcendente utilidade, e muito conducente para
Mas, na verdade, não se reivindicava para o governo do Estado
a emenda dos delinqüentes e para vedar ou diminuir as rein-
tanto um dever, e sim o monopólio de uma direção também neste
cidências.” 154
campo particular. E, nesse sentido, ainda em 1836, Rodrigues Torres
Como também uma maneira de encontrar trabalhadores que per- recordava que entre as inúmeras tarefas a serem cumpridas no campo
mitissem poupar a força de trabalho escrava, conforme se depreende da Instrução Pública
do Regulamento de 13 de novembro de 1846, promulgado por Au-
reliano de Sousa Coutinho com a finalidade de admitir “resta ainda tornar uniforme o sistema de ensino das atuais
escolas, e dar-lhes a mais conveniente direção, estabelecendo
“meninos órfãos ou filhos pobres nas obras públicas da pro- meio de o fazer, e de fiscalizar se os professores cumprem
159
víncia, a fim de aprenderem os ofícios mecânicos que possam como devem com os seus deveres.”
ser ensinados nas ditas obras.” 155
Ora, neste ponto algumas observações devem ser feitas, de modo
Torna-se fácil perceber, neste ponto, que os Saquaremas se impu-
a podermos prosseguir pelo laboratório fluminense.
nham tarefa mais ampla do que o simples instruir, no próprio mo- De um lado, já o vimos, a influência francesa determinava a ado-
mento em que eles mesmos se constituíam. Em
seu Relatório refe-
ção do termo primário para designar um grau do processo educativo,
rente ao ano de 1839 Paulino já chamava a atenção para a necessi- 160 Deter-
assim como a de liceu para nomear instituições escolares.
dade de também educar. minava também a utilização dos termos instrução e educação , pare-
cendo recolher a distinção estabelecida por Condorcet, para quem
“É preciso portanto juntar à instrução primária a educação,
instrução eram os conhecimentos positivos e certos dos quais o Estado
e educar o povo, inspirar-lhe sentimentos de religião e moral,
era o despenseiro natural, enquanto que educação eram os sentimen-
melhorando-lhe assim pouco a pouco os costumes.” 156
tos em assunto religioso e político, domínio reservado onde o Estado

Educar tornava-se, pois, a ação por meio da qual cada um dos


alunos deveria adquirir os princípios éticos e morais considerados
157 Cf. José Antônio Pimenta Bueno —
Direito Público Brasileiro e análise
da Constituição do Império. Brasília, 1978, pp. 432 e 440.
158 Cf. RPP-RJ —
1859: Presidência de João de Almeida Pereira Filho,
153 RPP-RJ — 1844: Presidência de João Caldas Viana, p. 4. p. 57.
154 Idem, Ibidem, p. 4, 159 RPP-RJ — 1836: Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, p. 4.
155 RPP.RJ — 1847: Presidência deAureliano de Oliveira Coutinho, p. 42. 160 Cf. Geraldo Bastos da Silva —A educação secundária (perspectiva histó-
156 RPP-RJ — 1839: Presidência de Paulino José Soares de Sousa, p. 36. rica e teoria) São Paulo, 1969, p. 149.

264 265
devia abster-se de ingressar, declarando-se independente. 161 Todavia, minação: na prática, e revelando toda a preocupação com a formação
tal distinção não deveria impor-se de fato, aqui. O exercício de uma daqueles que, virtualmente, deveriam constituir o “mundo do go-
direção por meio dos estabelecimentos escolares, como um momento verno”, o Governo-Geral acabaria por exercer um controle indireto
da construção do monopólio da responsabilidade pelo Soberano, im- sobre o ensino secundário no Império. E o fez por meio do estabele-
punha que ao governo do Estado deveria competir tanto a instrução cimento de um padrão modelar de ensino, representado pelo Colégio
quanto a educação. E, aqui também, o processo no qual os dirigentes Dom Pedro II, cuja exemplaridade esperava-se ver imitada pelo con-
imperiais procuraram fazê-lo, foi também o processo no qual se junto das províncias. 165
forjaram. Ora, como Uma decorrência desta decisão, e expressando também
Com da luta contra o primeiro imperador resultara não
efeito, as imensas dificuldades que as províncias enfrentavam para imple-

só sua abdicação, mas também o que alguns autores denominam de mentar um sistema de instrução pública, nos níveis primário e se-
“a primazia da ordem civil”, 162 provocando o debilitamento dos cundário, as administrações provinciais acabaram num primeiro mo-
segmentos militar e eclesiástico da burocracia originária da antiga mento por restringir seu campo de atuação, na prática, às escolas
metrópole. No que diz respeito a este último segmento, aqueles que públicas de instrução primária. E assim também ocorreu no labora-
haviam saído vitoriosos do Sete de Abril não se cansavam de procla- tório saquarema, pondo em relevo o segundo dos elementos funda-

mar quer a sua inoperância, chamando a atenção para a “falta de mentais da experiência: o professor — ou melhor, o professor
um clero ilustrado e severo, a quem se pedisse a doutrina e o exem- primário.
plo”, 163 quer a sua infidelidade, recorrendo-se, por exemplo, aos Cuidemos dos professores, agora.

acontecimentos de Minas Gerais em 1842, ocasião em que, mais uma Quando Paulino insistia que estes deveriam ser fiscalizados para
vez, teria se patenteado “o divórcio (...) entre o clero e as doutri- ver se, efetivamente, “cumprem como devem com os seus deveres”,
nas da ordem e paz dos defensores da constituição e do trono”. 164 E, é porque estava não só consciente, mas também preocupado com o
por este meio, não deixavam de criar as condições para que o governo valor do papel que se lhes reservava: o de concretizar o nexo instru-
do Estado —
isto é, os dirigentes leigos e civis pudesse justificar— ção-educação, cotidianamente, no espaço escolar.
o monopólio também da ação educacional, no sentido que Condorcet Tomemos a perspectiva da província. Nela, os professores pri-
lhe emprestava de difusão de princípios éticos e morais, religiosos e mários apareciam como os dirigentes “mais distantes”; o presidente,
políticos. como “o mais próximo”. Se este, por seu papel e função, era o ele-
De outro lado, e já o vimos também, o Ato Adicional atribuía às mento de coesão principal, que tornava poderosa e eficiente a força
províncias a faculdade de legislar sobre a Instrução Pública, exceto representada pelo conjunto dos professores, mas que, abandonada a
sobre o ensino superior, deixando ao Governo-Geral a competência si mesma, nada valeria, aqueles representavam a possibilidade, por

sobre a instrução pública no Município Neutro da Corte e sobre o seu trabalho vivo na escola, do nexo fundamental entre instrução e
educação, na medida em que fossem conscientes tanto dos contrastes
ensino superior. Todavia, o progressivo triunfo das propostas centra-
lizadoras da “Reação” não deixaria de agir também sobre esta deter- entre o tipo de sociedade e de cultura que representavam uma ci- —
vilização —e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos

16! Idem, Ibidem. Cf. também Antonio Gramsci — alunos —


entendido como uma ausência de civilização quanto — ,

“Para a investigação do de sua tarefa, que consistia em propiciar uma inclusão por meio da
princípio educativo”, onde se lê: “Não é completamente exato que a instrução
não seja igualmente educação: a insistência exagerada nesta distinção foi um
formação disciplinada dos futuros homens e cidadãos. 166
grave erro da pedagogia idealista, cujos efeitos já se vêem na escola reorgani-
zada por esta pedagogia”, in Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de
Janeiro, 1968, p. 131.
162 Cf. Paulo Pereira — 165 parecia-me oportuna a ocasião de procurarmos um meio indi-
Castro “A ‘experiência republicana’, 1831-1840”,
in Sérgio Buarque de Holanda (org.) — História geral da civilização brasileira.
reto de uniformizar também a instrução secundária em todas as províncias do
Império (...) deste modo conseguiremos das assembléias legislativas provinciais
São Paulo, 1964, tomo II, vol. 2.°, “Dispersão e unidade”; José Murilo de
o harmonizarem as cadeiras de instrução secundária com o mesmo sistema que
Carvalho — A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro,
for estabelecido para iguais liceus na Corte”. APB-Câmara dos Deputados.
1980.
163 RPP-RJ — 1853: Vice-Presidência de João Pereira Darrigue Faro, p. 4.
Sessão em 25 de agosto de 1851.
166 Cf. Antonio Gramsci —Op. cit ., p. 151.
164 O Brasil. Edição de 25 de agosto de 1842.

267
266
m I

Por isso mesmo, sempre que se cuidava dos professores a primeira


serem brasileiros pornascimento ou por adoção, poderiam ameaçar
das preocupações residia
exercício de uma direção.
em sua formação, ponto de partida para o
a obra que se tinha em
vista —
e, sem sombra de dúvidas, pensava-se

sobretudo no elemento português, até mesmo porque se vivia o dia


Em seu primeiro relatório à Assembléia Legislativa Provincial,
seguinte da ameaça restauradora. De outro, atrair para a função
em 1835, Rodrigues Torres enfatizava que a despesa com a instrução aqueles que por sua origem e vivência na “boa sociedade” saberiam
pública seria uma das mais justificadas se dela se pudesse tirar toda
transmitir os valores julgados fundamentais; 170 ou, na sua ausência,
a vantagem possível. Lembrava, contudo, que não só “a falta de
os demais homens livres, mas não proprietários, que formavam o
uma autoridade especificamente encarregada de dirigir o ensino e
apoio necessário à expansão da classe senhorial na medida em que
mas ainda “a carência de pessoas suficien-
fiscalizar os professores”,
ambicionavam eles próprios definir de maneira mais precisa o lugar
temente habilitadas para o magistério”, frustravam a obtenção da-
que ocupavam na sociedade imperial, devendo por isso mesmo rece-
quelas vantagens; por isso, julgava urgente e necessário
ber um mínimo de apoio para as suas pretensões.
Ainda assim, poucos se apresentaram: em 1836, a escola normal
“a criação temporária de uma escola normal, onde se pudes-
contava dezessete alunos, ao passo que a província tinha vinte e
sem habilitar convenientemente não só os candidatos às
quatro escolas de primeiras letras; quatro anos mais tarde, ela era
cadeiras vagas, mas ainda os atuais professores que disso
freqüentada por vinte e dois alunos, dos quais cinco professores.
carecessem.” 167
Nesse mesmo intervalo de tempo, ela habilitara apenas catorze alunos,
dos quais onze estavam no exercício do magistério. Havia, então, na
Do empenho daquele que não deixava de se orientar pelas idéias
província vinte escolas de primeiras letras, mas apenas dezessete
em voga na Europa, em especial a das escolas normais prussianas, e
estavam em funcionamento, sendo que onze delas providas por alu-
que ainda talvez se inspirasse no papel que a França napoleônica
nos da Escola Normal; nelas estavam matriculados 967 meninos. 171
atribuía aos professores, resultou a criação, naquelemesmo ano, de Entendia-se que uma das maneiras de reverter este quadro pouco
uma Escola Normal, na capital da província. 168
animador, após cinco anos de esforços, residia na definição precisa
Regida por um diretor, a escola estaria sob a inspeção imediata
da atividade profissional. Ainda em 1836, Paulino sustentava que
do presidente da província. Ao diretor competia ensinar: a) ler e
escrever pelo método lancasteriano, “cujos princípios teóricos e prá- “somente providências mui valentes e heróicas poderão fazer
ticos explicaria”; b) as quatro operações de aritmética, quebrados, nascer e medrar entre nós a carreira do magistério que, ape-
decimais e proporções; c) noções gerais de geometria teórica e prá- sar de tão útil e nobre, tem estado entregue até agora à indi-
tica; d) gramática da língua nacional; e) elementos de geografia; e ferença e talvez ao desprezo. Uma lei que criasse essa profis-
f) princípios de moral cristã. são; que a revestisse da consideração e importância que lhe
Poderiam ser admitidos à matrícula os cidadãos brasileiros maiores é devida; que desse uniformidade à instrução elementar na
de dezoito anos, que soubessem ler e escrever, e provassem “boa mo- província; que sujeitasse os professores a uma fiscalização
rigeração”. Previa-se também
o caso de não se matricularem alunos escrupulosa e ativa; que fixasse as regras da jubilação decor-
suficientes para a abertura da escola; então, o presidente da província ridos certos anos de serviços; e que adotando a vitaliciedade
poderia mandar “abonar 20$000 réis mensais às pessoas que preten- dos provimentos, marcasse todavia com clareza os casos em
derem habilitar-se para exercei* o magistério e não puderem freqüen- que os professores poderiam ser demitidos, não seria por
tar a escola por falta de meios”. 169
As diretrizes eram claras no que dizia respeito àqueles a quem
se pretendia atribuir a tarefa fundamental da construção do conjunto
170 Cf., a propósito, a opinião expendida por Luís Peixoto de Lacerda
dos cidadãos. De um lado, interditar o acesso a todos que, por nao Werneck, em 1855: “Os nossos costumes, a nossa maneira de viver, a nossa
organização, a disposição de nossas idéias e de nossas tendências ressentem-se
da atmosfera em que nascemos, do círculo em que nos criamos, da sociedade
167 RPP-RJ —
1835: Presidência de Joaquim José Rodrigues Torres, p. 3. onde nos educamos”. —
168 Cf. Primitivo Moacyr —
0\p. cit., p. 191.
Idéias sobre colonização. ”, op. cit., p. 28.
. .

171 Cf. os dados contidos nos relatórios referentes aos anos de 1836 e 1840
1° 9 Idem, Ibidem.
— presidências de Paulino José Soares de Sousa.

268 269
certo o menor dos benefícios que a vossa solicitude tem de
Nesse sentido, o governo provincial cuidou da tradução, impres-
derramar ainda sobre esta província. Tudo está por fazer
são e distribuição junto aos professores, dos estabelecimentos públi-
neste ramo.” 172 K
cos e particulares, “como também pelas autoridades e pessoas que
delas pudessem fazer bom uso”,176 do Curso Normal para Professo-
Ora, criar a carreira do magistério era, antes de tudo, tornar o res de Primeiras Letras de Marie Joseph Degerando
177 e do “Novo
professor primário um poderoso agente do governo do Estado. E, por Manual das escolas primárias ou Guia completo dos professores, or-
certo, entre “tudo que está por fazer neste ramo” nada era mais ganizado por um membro da Universidade de Paris e revisto pelo
importante do que alcançar a uniformidade da instrução elementar Sr. Matter, inspetor geral dos estudos na França”.
178 Justificando
e sujeitar os professores a uma fiscalização “escrupulosa e ativa ,
esta medida, Paulino diria que ambas as obras continham
colocá-lo sob um olhar.
Desta forma, à questão da formação dos docentes somava-se a da “idéias mui luminosas sobre a educação física, intelectual,
uniformidade e regularidade, reputadas “qualidades essenciais na moral e religiosa; desenvolvem os diversos métodos de ensi-
173
instrução primária”, no dizer de João Caldas Viana. no que explicam e entre si comparam; e compreendem no-
Esperava-se alcançar a uniformidade por meio da adoção de um ções mui precisas e exatas sobre os diversos ramos da instru-
método único, já proposto na lei geral de 1827: o método lancaste- ção, organização moral e material e disciplina das escolas.
riano ou sistema de ensino mútuo, em voga na França no período Fora muito para desejar que semelhantes noções calassem e
da Restauração. 174 Método esse que, ademais, permitia suprir, ao se tornassem entre nós comuns e populares.” 179
menos em parte, a insuficiência numérica de professores.
Alegando, mais uma vez, a necessidade de servir-se da experiên- No que diz respeito aos alunos, providenciou-se a organização de
cia estrangeira,embora adaptando-a à “experiência própria das nos- compêndios, dos quais os primeiros a serem impressos e distribuídos
sas cousas e do país”, o futuro Visconde do Uruguai defendia aber-
foram o de Rudimentos de Leituras com Máximas Morais e o de
tamente o método proposto, procurando demonstrar como ele per- Princípios de Moral precedido das Orações da Doutrina Cristã 1£0 .

mitia a inclusão inicial na civilização que tanto se almejava. De Mas sabia-se também que a uniformidade e a regularidade que
acordo com o representante da “trindade saquarema”, o sistema de deveriam caracterizar a Instrução Pública não deveriam resultar
ensino mútuo não apenas favorecia o desenvolvimento do senso mo- unicamente da difusão de princípios éticos, morais e religiosos, de
ral; ele também propiciava, normas disciplinares e administrativas entre os professores primá-
rios. Na verdade, nãq havia razões para que se abandonasse, no caso
“quando a parte disciplinar se acha bem desenvolvida, con-
particular da instrução e da educação, o método geral que se for-
175
trair hábitos de ordem, regularidade e deferência.”
java tendo em vista a centralização de fundo conservador: aqui
também, o vínculo entre “os mais distantes” e “os mais próximos”
De outro lado, a uniformidade e a regularidade deveriam resultar
deveria ser feito pelos elementos intermediários, encarregados fun-
também da difusão de compêndios, tanto entre os professores quanto
damentalmente de uma inspeção fiscalizadora —
como ocorria,
entre os futuros cidadãos. aliás, no sistema francês.
De início, aos diretores da Escola Normal e das Escolas de Ins-
trução Pública competiam o exercício desta fiscalização. A amplia-
172 RPP-RJ —1836 Presidência de Paulino José Soares de Sousa, p. 2.
:

173 Cf. RPP-RJ —1844: Presidência de João Caldas Viana, p. 34. ção do número de escolas, dos alunos matriculados e dos professores
174 Seguimos a opinião de Antonio Chizzotti — As origens da instrução
*

pública no Brasil: análise interpretativa da legislação pública nas origens de sua


constituição seus pressupostos e as implicações para a filosofia da educação.
, *76 Idem, p. 7.
Tese de Mestrado. São Paulo, 1975. Para outros, a adoção do método de ensino
mútuo traduzia, simplesmente, a filiação e subordinação aos interesses ingleses;
177 Marie Joseph Degerando — Curso normal para professores de primeiras
letras. Niterói, 1839 (traduzido por João Cândido de Deus Silva).
cf. J. R. Pires de Almeida — Uinstruction publique au Brésil. Histoire et 178 Cf. RPP-RJ — 1838: op. cit., p. 8.
legislation. Rio de Janeiro, 1889, p. 166. 179 Idem, p. 8.
175 RPP-RJ —1838: Presidência de Paulino José Soares de Sousa, p. 8.
189 Idem, p. 7.

270 271
r
em ação, ao lado da multiplicação crescente das dificuldades, impu-
desejado.Mas o aspecto mais preocupante era, sem dúvida, a fre-
seram, a seguir, a complexidade da função e o crescimento numé-
quência extremamente irregular dos alunos. 183
rico desse segmento intermediário. Em meados do século, acompa-
Todos esses fatores dificultavam a experiência saquarema, no mo-
nhando de perto a experiência francesa, o Presidente Luís Pedreiía
mento em que já se buscava estendê-la a todo o Império. Reaparecia
do Couto Ferraz, ao mesmo tempo que reformou a fundo a organi-
a Teia de Penélope, sob um aspecto diverso. Ainda uma vez, o go-
zação do sistema de ensino primário da província, conforme melhor
verno do Estado se defrontava com o governo da Casa, o monopólio
veremos adiante, reorganizou também o sistema de inspeção, atri-
do Soberano não conseguindo quebrar completamente o monopólio
buindo tarefas específicas ao inspetor-geral, aos inspetores e conselhos
municipais, e aos inspetores paroquiais nas suas freguesias; deter-
que os pais exerciam sobre as famílias.
minou ainda que o inspetor-geral, nomeado pelo presidente da pro-
Em algumas ocasiões, a Teia parecia ser desfeita quando aqueles
víncia, deveria ser “pessoa conceituada por sua ilustração e prudên-
que defendiam as escolas particulares, ancorados nos argumentos
de fundo liberal, pareciam sobrepujar os defensores do ensino públi-
cia”, 181 capaz do exercício de um olhar vigilante.
co. Noutras, quando os pais insistiam em não mandar seus filhos
Dos inspetores esperava-se, sem dúvida, que não apenas colocassem
às escolas, ou faziam-no de modo intermitente. E ainda quando da
os professores em contacto “físico” com os dirigentes “mais próxi-
Casa provinham os recursos, as instalações, o próprio sustento dos
mos”, em especial o presidente da província; mas que sobretudo
estabelecessem entre ambos um “contacto moral e intelectual”, de
mestres —em suma, a própria existência de uma Instrução Pública.
modo a quebrar o excessivo individualismo dos mestres, expressão
Em qualquer das situações, configurava-se a reação do governo da
última do poder da Casa. Conforme recordava uma outra autoridade, Casa à penetração crescente do governo do Estado, que tentava
colocar sob seu controle as famílias que julgava importante dirigir,
fazendo referência ao que ocorria na Holanda,
afirmando e reafirmando uma centralização. Ao insistir na constru-
ção da Teia com os fios da civilização, o governo do Estado procu-
“o tempo e o bom senso já condenaram as idéias errôneas
rava criar as condições para monopolizar em proveito próprio cm-
de um falso liberalismo que pregava a liberdade plena do
professorado como de uma indústria com a qual os governos
homens que garantiriam a expansão da classe senhorial.
nada tinham que entender. A especulação, a depravação dos No relatório referente ao ano de 1852, o Vice-Presidente Darrigue
Faro informava que a província possuía uma escola para 1.600 hal>i
costumes e das idéias deviam ter um campo desimpedido se
tantes, concluindo que já havia um número suficiente de escola.,
vingassem as doutrinas de uma escola tão pouco governa-
primárias
183
para a população em idade escolar. Não deixava de assi
mental; e o estado devia cruzar os braços e fechar os olhos
nalar, todavia, o número de crianças que permaneciam sem instru
à corrupção e ao charlatanismo.” 182
ção, relacionando tal fato ao poder dos pais; por isso, tornava -se
urgente, no seu entender,
Não obstante todos os esforços desenvolvidos no laboratório sa-
quarema para a construção de uma “escola governamental”, os resul-
“que se marque os limites do pátrio poder a semelhante res-
tados nem sempre eram animadores. Em 1850, havia apenas noven-
peito e os direitos da autoridade pública, que nenhuma ação
ta e cinco escolas primárias em toda a província, sendo trinta e uma
delas para meninas;
tem presentemente contra a incúria e ignorância dos pais
no que dizia respeito ao ensino secundário, além
das cadeiras de latim existentes em diferentes locais, havia os liceus
de Campos, Niterói e Angra dos Reis. Faltavam prédios e as insta-
lações eram deficientes. Os professores eram ainda em número redu- A não era exclusiva da província fluminense, ocorrendo em
situação
zido, e entendia-se que a formação que recebiam estava longe do escala ampliada emquase todas as províncias do Império. Ela motivaria, ^entre
muitas outras, as críticas de Tavares Bastos. Para uma visão da situação
na
Província de Minas Gerais, e até certo ponto contrastante, cf. Francisco^ de
Paula Ferreira de Rezende — Minhas recordações (especialmente o capítulo
XVIII): “A freqüência era muito grande; pois que a matrícula era de cento
1 81 O do Presidiente Couto Ferraz está transcrito em RPP-RJ
relatório — e muitos meninos. O ensino se fazia por classes; e como o mestre não
tinha
1850: \ ice-Presidência de João Pereira Darrigue Faro, p. 56.
tempo para pessoalmente se ocupar de tantos meninos, as classes inferiores eram
182 RPP-RJ —
1853: Vic<e-Presidência de João Pereira Darrigue Faro, p. 19.
mais ou menos desprezadas e bem pouco se adiantavam” (p. 166).

272 273
quando estes não querem ou não se imporiam que seus um
no interior da sociedade* Como resultado, ganhava significado
vão à escoia. 1 *1
1 ’
filhos
vivo a definição constitucional de que "o Império do Brasil é a asso-
1
ciação política de todos os cidadãos brasileiros' *
Por certo, também neste ponto as relações entre o governo do
Estado e o governo da Casa não apenas caracterizam os meios elos Vejamos, para concluir, os passos desta reelabo ração, propiciadora
r da extensão ao conjunto do Império da experiência provincial.
quais o primeiro buscava controlar e dirigir o último, mas também
os limites, em constante redefinição, de uma intenção, e que quase
Ao dirigir efetivamente a província entre 1846 e 1848 —
período

sempre são apresentados como os “limites da centralização imperial 1 ’.


de triunfo da reação monárquica , —
Aureliano de Sousa Coutinho

Elas permitem ainda perceber o sentido da avaliação feita pelos


se distinguiria também por proceder a uma avaliação sistemática e
profunda da política de educação pública, e ao fazê-lo refletia, por
Saquaremas da experiência que desenvolviam, e que não deixava de
certo, muito menos as condições em que ela se encontrava, e mais
colocar em posição destacada as relações entre o “pátrio poder" e a
o momento particular de construção do Estado, assinalado pela pre-
“autoridade pública’ 1 Uma avaliação que não se restringia aos obje-
,

ponderância dos princípios defendidos pelos Saquaremas.


tivos imediatos de uma política de Instrução Pública, mas que pro-
Aureliano não apenas se opunha ao que entendia como a excessiva
curava considerar sobretudo a íntima relação entre esta e a constru-
uniformização imposta pela Lei de 1835, argumentando com a
,

ção do Estado imperial, de tal forma que, numa ação recíproca, não
só o avanço desta construção possibilitava a consecução dos objetivos
pequena relação que ela guardava com os poderes locais. Bizen-
do ser necessário ter em conta a “natureza, índole e necessidades do
daquela política, como também a concretização destes, como difu- 11
país e por isso mesmo adotando como referências primárias as dife-
são de uma civilidade, constituía-se em condição fundamental para
,

renças sociais e espaciais, assim como o princípio da hierarquia* ele


aquela construção.
preconizava a reorganização do sistema escolar.
Ora, a íntima relação entre a política de Instrução Pública e a
construção do Estado imperial era uma faceta da constituição da Começando pelas escolas de instrução primária, ele advogava o
classe senhorial, dos mecanismos que ela procurava forjar e por em estabelecimento de duas ordens de escolas, sustentando que “as dou-
movimento de modo a levar a cabo uma expansão necessária. Assim, trinas desses dois graus ( . * ) nascem da ordem natural das coisas
.

e tendo em consideração uma trajetória na qual retomando os ter- — de um lado, as escolas de instrução elementar, tendo por fim “o
mos de uma autoridade há pouco citada —
abandonavam-se “as
desenvolvimento regular das faculdades do homem pelo ensino mais
ou menos extenso dos conhecimentos usuais indispensáveis às classes
idéias errôneas de um falso liberalismo
11
,
a formação do povo con- 11
em inferiores nas cidades e no campo a instrução que nelas se difun-
sistia, primeiro lugar, tanto em distinguir cada um dos cidadãos ;

futuros da massa de escravos quanto em resgatá-los da barbárie. Mas diria deveria compreender “as noções que nenhum homem deve

não deveria deter-se aí: o abandono a que se procedia era também ignorar,sem grande prejuízo seu e grave perigo para a sociedade";
a retomada dos princípios diferenciadores e hierarquizantes presen- de outro lado, as escolas de instrução de segundo grau, destinada
tes na sociedade, de modo a evidenciar para cada um o papel que àqueles que “não podendo ou nao desejando destinar-se às profis-
se lhe reservava em função da posição que ocupava. sões sábias,têm entretanto necessidade de uma cultura mais extensa
Em suma e no essencial, o laboratório fluminense não deixava e mais variada que a classe inferior propriamente dita, a dos ope-
de participar do movimento em que se constituía a direção saquare- rários e homens do campo"; ministrando conhecimentos mais desen-
ma sobre o conjunto do Império: ele absorvia os novos dados gerados volvidos do que aqueles das escolas elementares e mais circunscritos
pelas circunstancias, procedia reelaborações e imprimia sentido um do que os das escolas secundárias, as escolas de instrução primária
mais definido à difusão de uma civilidade, E, neste labor, os diri- de segundo grau deveriam estar preocupadas particularmente com
11
gentes saquaremas da província acabavam por revelar o segredo “conhecimentos de uma utilidade geral *
mais íntimo da experiência que conduziam: unir à classe senhorial Acima as escolas secundárias que, neste novo momento,
delas,
os demais homens livres, de modo a possibilitar tanto a expansão da passavam ganhar importância. Nos colégios e liceus devería ser
a
classe que representavam quanto a preservação das posições já dadas
desenvolvida uma educação “até ao grau em que o moço que tem
recebido uma cultura clássica e liberal deve começar os estudos prá-
1£4 RPP-RJ — 1S50: Vice-Presidência d& Joio Pereira Darrigue Faro, p. 49. ticos na vida comum ou estudos científicos superiores". A respeito

274 275
delas, dois pontos distinguem a proposta de Aureliano.
deles se refere à contribuição
0 primeiro entre aqueles que, no fundamental, deveriam ser súditos e os de-
do ensino particular, que considera
necessana no quadro que se delineava, embora mais que deveriam tornar-se, num sentido estrito, cidadãos.
sob a direção do go- Pouco importa que, dois anos depois, sob a presidência de Luís
verno, pois seria “o maior dos contra-sensos
confiar à indústria par-
ücular a nobre tarefa de dirigir o espírito Pedreira do Couto Ferraz, o Regulamento de 1 de setembro de
e formar o coração da
moei a e 1847 tenha sido revogado, não tendo tido execução integral. As
. último se refere à preocupação com o
que denomi- idéias e princípios de cunho conservador que o fundamentavam
nava de “conhecimentos úteis”, ao lado dos
“estudos literários”; seriam preservadas, a revogação se constituindo na possibilidade de
ansiava pela formação de “homens ativos
e inteligentes que culti-
vem a riqueza do país, que tirem nossa agricultura um aperfeiçoamento, um novo passo na reelaboração que se pro-
da velha rotina movia. 186
que preguiçosa segue há tantos anos”, e
esperava que tal se con- Nesse sentido, Couto Ferraz promulga o Regulamento de 14 de
no liceu que pretendia criar na capital da
cretizasse
província, e dezembro de 1849 sobre o ensino primário, no qual conserva, de
ao qual se incorporaria a própria
escola normal: dele deveriam
sair os professores
uma maneira geral, as determinações do anterior (eram invertidas,
de instrução primária, os engenheiros civis
e os apenas, as denominações das escolas primárias de instrução públi-
moços habilitados para o comércio, indústria
agrícola e fabril”. ca), além de especificar que somente poderiam exercer o magis-
As disciplinas que propunha para o novo
tica da língua nacional; moral cristã;
estabelecimento gramá-
religião do Estado e história
— tério público “os cidadãos brasileiros maiores de vinte e um anos

sagrada; cronologia; geografia e história de idade, de reconhecida morigeração que não houverem sofrido
universal, com particula-
ri ade na parte relativa ao
penas de galés ou condenação por crime de estupro, rapto, adulté-
Brasil; princípios gerais de mecânica e
sua aphcaçao às máquinas; elementos rio, roubo, furto ou outro que ofenda a moral pública ou a religião
de topografia e arquitetura-
tecnologia e os princípios das ciências do Estado”, da mesma forma que se determinava que o exercício
físicas que lhes são necessá-
rios; desenho, escrituração da função de professor era incompatível com qualquer outra pro-
mercantil e as línguas inglesa, francesa
e latina —não tinham em vista a formação de um
simples cida-
fissão comercial.
Ainda no mesmo mês de dezembro
dao e sim a constituição dos futuros cidadãos foi expedido o regulamento
ativos, sem sombra
de duvidas. E, ainda mais significativo, sobre o ensino secundário; no fundamental, o estabelecimento de
pela primeira vez falava-se
na província no ensino da História do Brasil, normas para os colégios particulares, cada vez mais importantes
— quem sabe? —
marcar para os futuros
procurando-se talvez
membros da “boa socie-
neste grau de ensino, e que “só poderão ser abertos, dirigidos e
lecionados por pessoas que ofereçam penhores legais de moralidade
dade os elementos de continuidade entre
o passado colonial e o
presente do Império, sublinhando a e capacidade”.
trajetória de conjunto no um Couto Ferraz reorganizou, ainda, o sistema de inspeção, confor-
qual eles próprios se inscreviam. 185
Neste momento, as idéias pareciam me já vimos. Tendo como referência o “sistema austríaco”, com-
encontrar o seu lugar. Na
medida em que binado com o “sistema holandês”, propôs ainda a modificação do
mais se aproximava do modelo francês original, método de formação dos professores; o estabelecimento de encontros
afastando-se da primeira experiência
“excessivamente uniformiza-
dora periódicos entre os mestres de cada município para que pudessem
e, sem duvida, ainda marcada por algumas das
idéias e comparar seus métodos e trocar experiências; a criação de “livra-
princípios que haviam caracterizado
o momento da Ação, na medi-
da em que esta aproximação se processava, rias municipais” onde os professores pudessem consultar os livros
repita-se, mais também
se aproximava das condições didáticos mais citados; e a criação de “conselhos municipais de
que se pretendia, a um só tempo, trans-
formar e conservar: forjavam-se os cidadãos
e mantinha-se a dis-
tinção entre o “povo mais ou menos
miúdo” e a “boa sociedade”,
186 Uma reelaboração que, repita-se, acompanhava o
movimento geral do
Império: a esse respeito, cf. o que ocorria, por essa mesma época, na Província
de São Paulo, onde a Lei n.° 34 de 16 de março de 1846 reorganizava o
~
1
RPP RJ
desetrnbTde^Sr”
'
Ano ° de 1846
^^ > 1847 e 1848 —
4 ° 2 e 425
Presidência de
’ 6 Re S ula “ Aure-
de
ensino, e na Província da Bahia, onde fato semelhante ocorria pelas leis de
1848, 1849 e 1850 (cf. Primitivo Moacyr — Op. cit., pp. 317-322 e 79-85,
respectivamente). Talvez seja interessante recordar que a lei do governo pro-
vincial paulista foi a primeira a regular, em conjunto, a instrução na província.

276
277
instrução primária”, como a maneira de os interesses municipais melhor capacitação dos professores, no estabelecimento de uma
opinarem sobre a organização das escolas e exercerem uma influên- inspeção escolar eficiente e na criação de um Conselho Diretor;
cia sobre os pais que não compreendiam a importância de mandar regimentos e programas escolares permaneciam sendo inspirados,
seus filhos às escolas. Na verdade, somente a primeira e a última muitas vezes copiados, nas reformas francesas de Guizot e Falloux.
dessas propostas foram implementadas, uma vez que as demais, Dos resultados da nova reforma falam os relatórios da Inspeto-
assim como muitas outras idéias e medidas, no entender do próprio ria-Geral de Instrução Primária e Secundária do Município da
presidente, Corte, sempre destacando o dinamismo que a instrução pública
adquiriu. Assim como a avaliação feita, quase três décadas depois,

. .
**»
.
,

“além de inteiramente novas no país, são de uma impor- pelos membros do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro,
tância tal e fazem uma mudança tal na organização do ensi- segundo a qual ela
no que (...) talvez mesmo fosse mais conveniente que
esta partisse do governo geral como medida para todo Im- “veio exercer influência salutar em todo o país, enquanto
189
pério, sendo, comode grande necessidade cada dia mais
é, rara é a província que não a tem copiado.”
reconhecida, uniformizar-se o ensino entre nós.” 187
Talvez falem também a placidez e a ordem imperiais.
Das medidas propostas e implementadas por Couto Ferraz, a A em 1849
concretização da proposta feita por Couto Ferraz —
mais significativa, sem sombra de dúvidas, era a criação dos con- “(...) talvez mais conveniente que esta partisse do
mesmo fosse
selhos municipais de instrução primária, pelo nexo que procurava governo-geral como medida para todo o Império” —
não deixava
estreitar entre os interesses locais e os dirigentes imperiais, por de ser, ao cabo, a legitimação do laboratório que os Saquaremas
meio da rede escolar. A ela se atribui, de um ponto de vista parti- haviam criado como condição para o seu próprio existir.

cular, assim como às determinações do Regimento de 1849, de


um ponto de vista geral, o rápido aumento da população escolar
após quatro anos: 6.425 alunos, distribuídos pelas 177 escolas da
província, das quais 134 eram particulares. 188
Os totais ainda eram extremamente baixos, as deficiências enu-
meradas acima permaneciam e o confronto com o governo da Casa
não desaparecera. Não obstante, o laboratório ia cumprindo sua
função, formando o povo e preservando as diferenças entre os
cidadãos.
Quando foi organizado o Gabinete da Conciliação, em 1853, a 189

experiência da província parecia estar acabada, podendo ser levada


a todos os pontos do Império. Luís Pedreira do Couto Ferraz era,
então, ministro do Império, tendo-lhe cabidopromulgar o Decreto
de 17 de fevereiro de 1854 que aprovava o “regulamento para
reforma do ensino primário e secundário do município da Corte”,
o qual seguia a direção que fora dada à província quatro anos
antes. Seus pontos mais significativos residiam na exigência de

187 Cf. RPP-RJ —


1850: Vice-Presidência de João Pereira Darrigue Faro,
Atas e Pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro de 1882.
p. 54 (ver observação da nota 181).
188 Cf. RPP-RJ —
1853: Presidência de Luís Pedreira do Couto Ferraz, fi. questão: Dr. José Manuel Garcia, p. 4. Citado por Antônio Chizzotti

p. 49. : Op. cit ., p. 72.

278 279
A

IV / CONCLUSÃO

“O passado não conhece o seu lugar:


estásempre presente.”

Mário Quintana

Do que foi exposto, podemos concluir que:

1 .Para os Saquaremas a manutenção de uma Ordem e a difu-


são de uma Civilização apareciam como objetivos fundamentais;
eram também os meios pelos quais empreendiam a construção de
um Estado e a constituição de uma classe. Por sua vez, e de modo
necessariamente complementar, a construção do Estado imperial e
a constituição da classe senhorial, enquanto processos intimamente
relacionados, tornavam-se não apenas os resultados de uma intenção
traduzida em ação, mas também os requisitos que asseguravam a
Ordem e difundiam a Civilização.
Manter uma Ordem não significava, ujjicamente, prevenir ou
reprimir os diferentes crimes públicos, particulares e policiais arro-
lados no Código Criminal, reprimir os levantes da malta urbana,
pôr fim às lutas pela posse da terra, combater as insurreições dos
escravos e destruir os quilombos, além de procurar conhecer a popu-
lação do Império, sua distribuição e ocupação, vigiando aqueles que
eram sempre vistos como vadios e desordeiros.E nem apenas for-
jar, em alguns casos meramente copiar, um conjunto de institui-
ções políticas, administrativas, judiciárias e, de outra natureza,

281
velando pelo seu correto desempenho. Manter uma Ordem signifi- questões candentes que assinalavam uma constituição, como aquelas
cava, efetivameníe* garantir a continuidade das relações entre referentes ao tráfico negreiro e aos projetos de colonização estran-

senhores e escravos, da casa-grande e da senzala, dos sobrados e dos geira. Consistia, em suma, em mantê-lo em contato permanente

mocambos; do monopólio da terra pela minoria privilegiada que com rompendo seu isolamento, quer por meio de seus repre-
a Corte,

deitava suas raízes na Colônia e no tempo da Corte portuguesa no sentantes políticos, quer por meio das folhas e pasquins, dos

Rio de Janeiro; das condições que geravam a massa de homens romances e do teatro.

livres e pobres, reforçadores do monopólio da violência pelos senho- Mas difundir a Civilização consistia, de outro lado, em garantir

res rurais ou agregados às famílias urbanas, como um José Dias a adesão a uma Ordem, que no nexo colonial e na
se alicerçava

na família de Bentinho 1 que procurava ocultar sua submissão por existência da escravidão, de um determinado conjunto de homens

meio do recurso a frases pontilhadas de superlativos* Significava livres que não derivavam diretamente dela, embora dela não dei-

ainda garantir a reprodução das relações com o mundo exterior, xassem de depender: notários e subdelegados de polícia; pequenos
capitalista e civilizado, por meio da prevalência da Coroa, propicia- comerciantes e empregados públicos; clérigos e professores; e até
dora da associação estreita entre negócios e política e da dominância mesmo um Cândido Neves —
personagem do conto “Pai Contra
do capital merca ntíL Significava ainda mais: o monopólio da res- Mãe” de Machado de Assis —
que, premido pela pobreza, tornara-
ponsabilidade pelo Soberano, exercido por meio ‘'dos mais próxi- se “pegador de escravos fugidos”, passando a sentir-se “bastante

mos”, monopolizadores também do discurso* Significava também rijo para pôr ordem à desordem ”.2

preservar a integridade territorial do Império, embora preservando Manter a Ordem e difundir a Civilização faces complemen- —
as diversas regiões e a preponderância da região de agricultura mer- taresdos processos de construção de um Estado e de constituição
cantil-escravista, e dentro desta a prevalência do “Sul” polari- de uma classe, no quadro de restauração da moeda colonial —
zado pela Corte, depositária dos olhos vigilantes do Soberano* Signi- impunham, que pretendiam exercitar uma direção
assim, àqueles
ficava, no fundo e no essencial, reproduzir os “três mundos” do o estabelecimento de nexos com as famílias que compunham a
Império do Brasil, a hierarquia entre eles e no interior de cada “boa sociedade”, assim como, embora secundariamente, com aqueles
qual, timbrando não só a diíerença entre pessoas e coisas, mas segmentos sociais subalternos. Impunham também a ampliação e
também entre as próprias pessoas —
o Povo e a plebe , de tal — transformação desses próprios dirigentes; ao núcleo saquarema ori-
ginal —nutrido nas idéias de Bernardo Pereira de Vasconcelos, e
forma que o “lugar” de cada um se definia pelos nexos pessoais que
conseguia construir e manter tanto com aqueles que se situavam contando com o apoio fundamental de Honório Hermeto Carneiro
imediatamente “acima” quanto com os que vinham “ abaixo Leão e de José da Costa Carvalho —
adeririam, progressivamente,
Difundir a Civilização era, por seu turno, assegurar o primado os demais conservadores; a seguir, quase todos os Luzias, E se isto

da Razão, o triunfo do Progresso, a difusão do espírito de Associa- ocorreu foi porque, em determinado momento e soh certas circuns-
ção, a formação do Povo* Ela consistia, de um lado, em romper os tâncias. os Saquaremas aliaram à proposta de restauração as trans-

limites da Casa, quebrando em parte o poder do despotés de manei- ,


formações necessárias à expansão da classe, ainda que para tanto
ra a transformá-lo, no caso particular da região de agricultura mer- muitas vezes tivessem sido obrigados a contrariar interesses pode-
cantil-escravista, de mero plantador escravista em elemento integra- rosos e a querer preservar o governo a qualquer preço. Sempre

do num “universo mais amplo”, que era entendido como propi- arguto, Joaquim Nabuco não deixaria escapar este traço:
ciador da sua continuidade, embora numa situação nova. Consistia,
assim, em integrá-lo nas instituições que o Império forjava, como “Essa oligarquia chamada vermelha tinha o espírito de des-
a Guarda Nacional, ou em farê-lo participar das associações polí- confiança contra todas as mudanças que pudessem afetar o
ticas que procuravam estendei os braços do partido representado domínio que ela exercia. Conservadores, eles seguramente
pela Coroa, de modo a colocá-lo a par do encaminhamento das o eram. ainda que mais de uma vez se tenham mostrado,
coino Eusébio de Queirós se mostrou, reformadores mais

1
Machado de Asais — L
'Dom Casmurro";, m Obra completa. 2? edição. Rio
de Janeiro. 1962, 3 vais. 2 Machado de Assis — ‘*Pai contra mãe", op. cit., vai. II, p. 660.

282 283
adiantados do que os seus adversários liberais; mas a conser- rica,5 isto é, uma sociedade onde aqueles que tinham a. intenção de
vação principal para eles era a do governo em suas mãos.”
3
não apenas dominá-la, mas sobretudo dirigi-la, erigiram como
questões a origem e a instituição da própria sociedade, seu evolver
Na verdade, este jogo entre conservação e transformação não dei- como uma possibilidade de conservação ou transformação.
xava de expressar o traçado sinuoso de uma direção, imprimindo a Todavia, como observamos há pouco, aqueles que se apresentavam
marca indelével de uma inconclusão à obra saquarema. Este per- como os construtores do Império não pensavam este tempo como
manente recomeçar e o eterno desfazer, quer no que diz respeito ao algo diferente, nem o consideravam como um produto da vida dos
monopólio da responsabilidade reivindicado pelo Soberano, quer homens em sociedade, quer em sua dimensão real quer em sua
no que se refere à transformação do proprietário de escravos e dimensão imaginária. Pelo contrário, para aqueles que então triun-
demais monopólios em classe senhorial, fazia com que os dirigentes favam com suas propostas, assim como para os demais que, de uma
imperiais se apresentassem permanentemente absorvidos em tecer maneira ou de outra, apareciam como derrotados, o tempo em que
uma teia de Penélope. viviam continuava a existir fundamentalmente em sua dimensão
cronológica, na sucessão inevitável dos dias e das noites, das gera-
2. Este feixe de relações —
que nos permite compreender de ções, das famílias e dos reinados. Um tempo que existia para desem-
modo diverso as noções de Ordem e de Civilização, de tal modo que penhar um papel tão crucial quanto os processos que nos permitem,
o Estado não mais se reduz a uma mera dominação e aos aparelhos hoje, percebê-lo de modo distinto: o papel de um agente histórico
de coerção e as classes não existam apenas nem fundamentalmente eletambém, irrompendo no drama imperial como uma espécie de
enquanto uma realidade econômica —
produzia também um tempo novo personagem que tendia a englobar e subordinar todos os
demais —
necessariamente!
particular: o Tempo Saquarema.
Assim, a noção de tempo que também triunfava cumpria o
Se podemos localizá-lo, numa primeira delimitação, entre os
papel de um agente organizador. De um lado, unindo o passado
últimos anos do período regencial e o “renascer liberal” dos anos
ao presente. De outro, possibilitando a passagem de um momento
sessenta do século passado, não devemos entendê-lo, contudo, sim-
anterior, sempre compreendido como desorganizado e bárbaro, não
plesmente como uma das “fases do Segundo Império”, como indi-
obstante os aspectos positivos que o passado colonial encerrava, a
cava Capistrano de Abreu, nem mesmo reduzi-lo a um desdobra-
um outro momento, entendido como superior porque o lugar da
mento “natural” de momentos anteriores, pois se assim procedês- Ordem e da Civilização. 6
semos estaríamos cedendo a uma lógica presidida pela sucessão, presa Quer se tome um aspecto, quer se tome outro, esta ligação entre
à marcha inexorável do tempo cronológico e animada pela idéia de
o passado e o presente, construída pela linha do tempo e anuncia-
progresso; 4 estaríamos também retomando a própria imagem que dora de uma continuidade futura, acabava por eleger um elemento
os Saquaremas tinham do seu tempo. de passagem, um ponto de união entre dois momentos que, até
Se é possível falar de um Tempo Saquarema é porque ele é a então, para muitos eram considerados como radicalmente diversos.
expressão, antes de mais nada, das relações que os homens — Para aqueles que teciam o que estamos denominando de Tempo
pessoas e coisas —
mantinham em seu existir cotidiano no Império Saquarema, este ponto de união residia no ato de transferência
do Brasil, em meados do século passado, relações essas que, sob
determinadas circunstâncias, tornavam aquela sociedade surgida da
cunhagem da moeda colonial uma sociedade propriamente histó- 5 Cf. Marilena Chauí — “Crítica e ideologia”, in Cadernos SEAF. Rio de
Janeiro, 1978, ano I, n.° 1, pp. 17-32. E também Wilson Martins — História
da inteligência brasileira. São Paulo, 1977 (especialmente o vol. II, 1794-1855
[especialmente o item “O Brasil como objeto de História”, pp. 37-54]).

— Um edição. Rio de Janeiro.


6 Cf., entre outros, o panfleto de Justiniano José da Rocha — “Ação;
3 Joaquim Nabuco estadista do Império. 4.°
Reação; Transação. Duas palavras acerca da atualidade política do Brasil”, in
1975, p. 340. Raimundo Magalhães Junior — Três panfletários do Segundo Reinado. São
4 “Já um
provérbio árabe o dissera: ‘Os homens parecem-se mais com o
— Paulo, 1956; e Francisco Adolfo de Varnhagen — “História da Independência
seu tempo que com os seus pais*”. Marc Bloch Introdução à História. do Brasil”, in História geral do Brasil. 9. a edição integral. São Paulo, 1978,
Lisboa, s.d., p. 36. vol. III.

284 285
1

da Corte portuguesa do Velho para o Novo Mundo. E


eles cuidaram Franrni o Adolfo de Varnhagen estigmatizava o movimento pernam-
de sublinhar a importância deste elemento de união, recuperando bucano <l< H 17 I

“assunto para o nosso ânimo tão pouco simpá-
tico qm nos fora permitido passar sobre ele um véu, 0 deixa-
um termo incomum e revelador: a Transmigração. Para ° velho -«r

ao mesmo
“fazer mudar riam o-, lorn do quadro que nos propusemos traçar ,*

dicionarista Morais, o termo transmigrar significava


também tempo fazia uma breve referência ao episódio do monte Reden-
«

de assento e domicílio”; significava


1 *
< 1

tor.
10 I u mesma lógica organizadora e perversa que conduz
<

“passar a alma de um corpo a animar o outro.”


7
grande parte da historiografia a um compromisso com' ò Tempo
Saqiiarcina, traduzido na qualificação do momento da “Ação como

Sem dúvida, o termo e o fato se impuseram, chegando até


nós. um momento de crise —
a crise do período regenciaf, diz-se com

Hoje, nos permitem compreender como os Saquaremas


se consti- frequência —
e no esquecimento de um conjunto de eventos, como

tuíam também em interpretadores do tempo em que viviam e cons- o movimento do “Ronco da abelha ” uma espécie de desdobramento

truíam, exercendo, por isso mesmo, o papel de


controladores deste do movimènto praieiro no interior das províncias do “Norte”, nos
tempo. E isto não apenas traduzia a
8 direção que exerciam; dela, anos de 1851 e 1852 11 —
um compromisso que interdita a possi-
numa condição se constituía. bilidade decompreender o campo de forças no qual se constituíram
Com efeito, imprimir uma significação à transmigração era a aquelas qualificações e esquecimentos como um mecanismo de
condição, primeiro lugar, para uma localização pois é na capa-
em ,
dominação.
cidade de não esquecer certos eventos que um grupo cria e
descobre De outra parte, uma lógica que deixava “de fora” aqueles que
seu lugar numa sociedade e uma sociedade sua posição no meio construíram esse tempo, como condição essencial para que a socie-
das demais. Assim, a Transmigração elo entre a —
Colônia e a dade buscasse numa “ordem natural’ a resposta à questão que
Nação soberana 9 —
possibilitara tanto uma igualdade quanto uma formulara sobre a sua instituição e trajetória. Assim, quanto mais
diferença, ao conduzir a Império que se distinguia pela Ordem
um os Saquaremas transformavam suas intenções em ações, tanto mais
e pela Civilização. 0 Império do Brasil era igual às
Nações Civili- deveriam ser entendidas como naturais as diferenças entre as provín-
zadas”, mas diferente das repúblicas surgidas na América espa- cias e entre aqueles que as habitavam, reconhecendo-se como legí-
nhola, caracterizadas pelo caudilhismo. timas não só a escravidão mas também as diferenças e hierarquias
Mas imprimir uma significação à Transmigração era também a entre os homens livres. Ora, a admissão e aceitação dessas dife-
possibilidade de operar com uma lógica explicativa que precisava renças impunha uma continuidade, a anulação de quaisquer dife-
exercer-se enquanto organizadora. renças no tempo por meio da construção de uma trajetória apresen-
Assim, e de uma parte, a Transmigração fazia com que fossem tada como histórica e na qual o passado aparecia como o principal
tomados como “anormais” ou “atípicos”, caracterizadores de uma agente forjador do presente, quando, na verdade, a História só
“desordem” ou de uma “crise”, todos aqueles acontecimentos que pode ser o inventário explicativo das diferenças sociais.

insistiam em contrariar um curso entendido como “natural”, porque


12 também não fizemos falar os Saqua-
dado pela marcha do tempo e porque fazia com que o passado se 3. Seguindo Paul Veyne,
apresentasse no presente. Por isso mesmo, tais eventos devem ser remas. Falamos em sua lugar, das realidades e ideologias de sua
esquecidos ou estigmatizados. Historiador do Tempo Saquarema, época, de suas intenções e ações, assim como das intenções e ações
que eles interditaram.
Mas, frisemos uma última vez, não o fizemos com a intenção de
7 Antonio de Moraes Silva —
Dicionário da Língua Portuguesa recopilado
narrar, passivamente, um conjunto de eventos localizados em
dos vocabulários impressos até agora e nesta segunda edição
,
novamente emen-
dado, e muito acrescentado. Lisboa, 1813.
8 Cf. Roberto da Matta —
Relativizando: uma introdução à Antropologia
Social. Rio de Janeiro, 1981.
1° Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen --- Op. cit., vol. III, t. V, pp. 177-9.
9 Varnhagen transcreve em sua História geral do Brasil o dístico de
uma 11 Cf.Hamilton de Mattos Monteiro —
Crise agrária e luta de classes

das iluminarias que enfeitavam a cidade por ocasião da chegada


da Corte. Brasília, 1980 (especialmente pp. 117-156).

“América feliz tens em teu seio/De novo império o fundador


sublime”. Op. cit., 12 Paul Veyne —
O inventário das diferenças. História e sociologia Suo.

vol. III, t. V, p. 90. Paulo, 1983.

286 287
meados do século passado; embora também saibamos que, muitas
vezes, as intenções não se confundem com as realizações.
Se falamos dos Saquaremas foi com a finalidade de caracterizar TA
a construção de um Estado, o movimento de constituição de uma
classe, algumas estruturas de uma sociedade e as representações
recíprocas e contraditórias que os agentes construíam de si próprios
e dos outros. Falar dos Saquaremas talvez tenha-se constituído na
possibilidade de melhor compreender o Estado, o movimento de
constituição das diferentes classes e grupos sociais, a importância
de imagens que os homens constroem em sua vida cotidiana em
sociedade, porque, no fundo e no essencial, são tais noções e con-
ceitos que nos permitem retornar àquele conjunto de eventos, ou
a qualquer outro, não com o objetivo de localizá-lo num determi-
nado tempo ou período, mas sob seus conceitos, e assim recortar
uma individualidade. A chamamos Tempo Saquarema.
esta BIBLIOGRAFIA
Inversão necessária, perigosa, sem dúvida. Falamos dos
mas
Saquaremas; os Saquaremas nos fazem falar de nós, de tal modo
que os limites daquele tempo, acima fixados, não podem deixar
de explodir, ampliando-se desmesuradamente e chegando até nós. I . Manuscritos:

Sentimos, e podemos avaliar, a presença dos monopólios; a perma- 1. Arquivo da Família Imperial (Museu Imperial de Petrópolis)
nência da massa de colonizados, como fantasmas dos “três mundos” Maço 116.
que há muito desapareceram; a cidadania restringida e em muitos 2 . Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
lata 748: pasta 30.
casos inexistente; a presença avassaladora do Estado, fora do qual
qualquer partido parece inconcebível; o monopólio do discurso pelo
lata 748: pasta 32 (arquivo do Visconde do Uruguai — coleção Leão
Teixeira).
professor na sala de aula; os Saquaremas que estão em nós. lata 214: coleção Marquês de Olinda.

Inversão também intrigante, porque nos permite perceber que o 3 . Arquivo Nacional
códice 112: vol. 1 e 4.
Império não reaparece entre nós unicamente naqueles três dias do
ano em que, festivamente, nos “despedimos da carne”; mas que
códice 334 — IJ6 470, 472, 521 e 522.
:

4 . Arquivo-Geral da Cidade do Rio de Janeiro


nos acompanha, cotidianamente, monopolizando nossas almas e códices 6-1-28; 6-1-37; 40-2-59; 40-3-78; 44-3-45; 44-4-57; 41-3-35; 6-2-36;
ditando nosso proceder. 6-2-37.

Como observara o poeta, aliás, a propósito de outras transmi- II. Anais, Atas, Relatórios.
grações.
1 . Anais do Parlamento Brasileiro — Câmara dos Deputados
1833, 1834, 1837, 1838, 1841, 1843, 1844, 1850, 1851, 1852, 1854, 187 L
2. Anais do Senado
1837, 1841, 1848, 1853, 1854, 1856.
3. Atas e pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro de 11182.
Rio de Janeiro, 1882.
4. Autos dos inquéritos da Revolução de 1842 em Minas Gerais. Brasília,
,

1979.
5. Instrução para a Comissão nomeada pelos fazendeiros do Município de
Vassouras. Rio de Janeiro, 1854.
6 Proposta e Relatórios apresentados à Assembléia-Geral Legislativa pelo mi-
.

nistro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda.


1850 —
Joaquim José Rodrigues Torres.

288 289
. -

1851 — Joaquim José Rodrigues Torres.


MACEDO SOARES, Antonio Joaquim (Comendador) —
Nobiliarquia fluminen

1852 — Joaquim José Rodrigues Torres.


Genealogia das principais e mais antigas famílias da Corte e Província
se.
do Rio de Janeiro. Niterói, 1948, 2 vols.
da Repartição dos Negócios do Império apresentado à Assem-
7 . 1836
Relatório • ,

NABUCO, Joaquim — Um a
estadista do império. 4. edição. Rio de Janeiro, 1975.
bléia-Geral

Legislativa.
José Inácio Borges.
SISSON, Sebastião A. —
Galeria dos brasileiros ilustres (os contemporâneos).

1838 —
a
2. edição. São Paulo, 1948, 2 vols.

8.
Vasconcelos.
Bernardo Pereira de
Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça , apresentado à Assembléia-
WF.RNECK, Manoel Peixoto de Lacerda —
Perfil biográfico do Visconde de
I piabas. AN-códice 112, vol. 1.
Geral Legislativa.
1843
1835 — Manuel Alves Branco. Dicionários
1838 — Bernardo Pereira de Vasconcelos. 2 .

1841 — Paulino José Soares de Sousa. BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento — Dicionário bibliográfico brasi-
— Paulino José Soares de Sousa. leiro. 2.
a
edição. Rio de Janeiro, 1970, 7 vols.
1853 — José Tomás Nabuco de Araújo. CASCUDO, Luís da Câmara —
Dicionário do folclore brasileiro. 2. a edição. Rio
1866 — João Lustosa da Cunha Paranaguá. de Janeiro, 1962, 2 vols.
9. Relatórios dos presidentes da Província do Rio de Janeiro. MORAES E SILVA, Antonio de —
Dicionário da Língua Portuguesa recopilado
1835 — Joaquim José Rodrigues Torres.
,

dos vocabulários impressos até agora, segunda edição novamente emendado e


1836 — Paulino José Soares de Sousa. a
muito acrescentado. 2. edição. Lisboa, 1813, 2 vols.
1837 — Paulino José Soares de Sousa. SAINT-ADOLPHE, J. C. R. Milliet de —
Dicionário geográfico histórico e des-
1838 — Paulino José Soares de Sousa.
,

a
critivo do Império do Brasil. 2. edição. Paris, 1863 (Tradução pelo Dr.
1839 — Paulino José Soares de Sousa. Caetano Lopes de Moura).
1840 — Paulino José Soares de Sousa. SERRÃO, Joel (dir.) —
Dicionário de História de Portugal. Lisboa, 1971, 8 vols.
1841 — Manuel José de Sousa França.
1843 — João Caldas Viana. 3 . Historiografia
1844 — João Caldas Viana.
1845 — Visconde da Vila Real da Praia Grande. PRADO JÚNIOR, Caio — “Segundo Reinado”, in Manual bibliográfico de estu-
1846 — Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho. dos brasileiros , org. de R. Borba de Moraes e W. Berrien. Rio de Ja-
1847 — Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho.
e neiro, 1949.

1848 — Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho. SODRÉ, N. Werneck —


O que se deve ler para conhecer o Brasil. 3. a edição.
1849 — Luís Pedreira do Couto Ferraz. Rio de Janeiro, 1967.
1850 — João Pereira Darrigue Faro. SOUZA, Octávio Tarquínio de —
“Primeiro Reinado” e “Regência”, in Manual
1852 — Luís Pedreira do Couto Ferraz. bibliográfico de estudos brasileiros org. de R. Borba de Moraes e W. Ber-
,

1853 — João Pereira Darrigue Faro. rien. Rio de Janeiro, 1949.

1857 — João Manuel Pereira da Silva. STEIN, Stanley J. —


“A historiografia do Brasil, 1808-1889”, in Revista de
1859 — João de Almeida Pereira Filho. História. São Paulo, 1964 (vol. XXIX, n.° 59).

10. Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, entregando


o governo a Luís de Vasconcelos e Sousa, que o sucedeu no Vice-Reinado 4. Atlas, cartas e plantas

(in João Armitage —


História do Brasil desde o período da chegada da
,
ALMEIDA, — Atlas do Império do
Cândido Mendes de Rio de Brasil. Janei-
família de Bragança em 1808 até a abdicação de D. Pedro I em 1831. Rio
ro, 1868.
de Janeiro, 1965).
BARREIROS, Eduardo Canabrava — Atlas da evolução urbana da Cidade do
Rio de Janeiro — Ensaio (1565-1965). Rio de Janeiro, 1965.
III. Legislação:
NIEMEYER, Conrado Jacob — Carta corográfica do Império do Rio Brasil. de
Janeiro, 1946.
1 Coleção das leis do Império do Brasil
.

Planta da Cidade do Rio de Janeiro , novamente erecta pelo Visconde de Villiers


1824, 1827, 1830, 1831, 1832, 1834, 1841, 1842, 1850, 1857, 1858,1866.
de LTle Adam, publicada por G. Leuzinger. Rio de Janeiro, 1850.
2. Coleção das decisões do governo do Império do Brasil
1831, 1836, 1837, 1841, 1852, 1866.
V. Jornais:
3. Manual do cidadão (Guia prático do povo no foro civil e criminal).

Jornal do Comércio (Rio de Janeiro)


IV. Instrumentos de Trabalho:
O Brasil (Rio de Janeiro)
1 Biografias
VI. Literatura:

BARROS, Dr. Nogueira de e TELLES, Dr. Luiz


G. S. — Tributo à memória
ALENCAR, José de — Ficção completa. Rio de Janeiro, 1968, 3 vols.
do Capitão João Pinheiro de Souza. AN-códice 112, vol. 1.

290 291
MACEDO, Joaquim Manuel de —
Literatura comentada. Org. Douglas Tufano. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil ( províncias do Sul).
a
São Paulo, 1981. Trad. port. 2. edição. São Paulo, 1972.
MACHADO DE ASSIS, J. M. —
Obra completa. Rio de Janeiro, 1962, 3 vols. LUCCOCK, John —Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do
MATOS, Gregório de —
Literatura comentada. Org. Antônio Dimas. São Brasil. Trad. port. Belo Horizonte, 1975.
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