Marcuschi 2010
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Marcuschi 2010
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Um estudo mais aprofundado a respeito da constituição da disciplina Língua Portuguesa e
das mudanças sofridas no ensino de Português no decurso do século XX (e mesmo antes)
pode ser encontrado em Soares (2002); Razzini (2000) e Bunzen (2009).
expressiva do seu tempo a questões voltadas para a escrita correta, compreendida
como a escrita que primava pela observância das regras da gramática normativa e
da ortografia. Desse modo, o investimento pedagógico na realização de análises
morfológica e sintática de palavras e de frases isoladas, associado à leitura de textos
literários clássicos, num primeiro momento, de textos provenientes da esfera
midiática, num segundo momento, de textos da literatura infanto-juvenil, bem como
de textos escritos pelo próprio autor do livro didático, num terceiro momento, eram
tidos como necessários e suficientes à capacitação dos alunos para a escrita. Afinal,
os textos eram vistos como um agrupamento de palavras e frases, e, neste sentido,
para se chegar à elaboração textual, bastava que os alunos aprendessem a escrever
e a juntar frases gramaticalmente corretas.
Mesmo essa tendência permanecendo constante ao longo de quase todo o século
XX, pode-se dizer que nem tudo transcorreu de forma absolutamente linear e
homogênea. Assim, o ensino da escrita no espaço de tempo focalizado (nove
primeiras décadas do século passado) registra oscilações teórico-metodológicas
significativas e com características próprias, permitindo-nos reorganizá-lo, para fins
de análise, em pelo menos três períodos (categorização semelhante é proposta por
MESERANI, 2001; SOARES, 2002; BUNZEN, 2006; entre outros): a) início do século
XX aos anos cinquenta; b) anos sessenta e setenta; c) anos oitenta. Vejamos mais
de perto as características relativas a cada um desses períodos.
a) Início do século XX aos anos cinquenta
Conforme se pode depreender do estudo desenvolvido por Razzini (2000) a respeito
da “Anthologia Nacional” como base de orientação do currículo adotado pelo Colégio
Pedro II2 (localizado na cidade do Rio de Janeiro) nas aulas de português, o século
XX dá continuidade ao encaminhamento pedagógico que já vinha sendo adotado nas
últimas décadas do século XIX. Assim, na primeira metade do século passado, a
escritura em sala de aula era solicitada na forma de uma ‘composição livre’, de uma
‘composição à vista de gravura’, de ‘trechos narrativos’ ou ainda de ‘cartas’. Mais
precisamente, segundo Razzini (2000, p. 76), no curso secundário, “com o objetivo
de ensinar a escrever através da apreciação de modelos escolhidos pelo professor
nas antologias adotadas oficialmente, os exercícios de composição iam dos mais
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O currículo do Colégio Pedro II influenciou significativamente e por um longo tempo outras
propostas curriculares do país, daí a relevância de conhecê-lo.
elementares, do primeiro ano (‘reprodução e imitação de pequenos trechos’);
passando pelas ‘breves descrições, narrações e cartas’ do segundo ao quarto ano; da
‘redação livre’ do quinto ano, e culminando com a ‘composição de lavra própria’ e
discursos de improviso no sexto ano”.
No dizer de Meserani (2001, p. 12), no período,
redação não era ‘matéria dada’, embora fosse pedida pelos
professores. Pelo menos a composição livre. O professor de
Português dava um tema fora do programa, um limite de trinta linhas
e aguardava que o texto do aluno acontecesse.
Como se percebe, entendia-se que a leitura e, como veremos mais adiante, também
a escrita de texto, seria capaz de conduzir o jovem para a virtude ou, ao contrário,
de desviá-lo para o erro. Por isso mesmo, o autor da obra didática, na definição dos
escritores e temas a serem lidos e produzidos, tinha como preocupação a formação
moral e espiritual dos alunos, uma das funções básicas do percurso educacional.
Na obra em análise, cada fragmento de texto, por sua vez, é acompanhado de notas
de rodapé direcionadas para o esclarecimento do léxico (“Pressuroso: diligente,
ativo, apressado”; p.86, nota 2), de questões ortográficas (“Escreva-se Nova York e
deixe-se para os ingleses e norte-americanos New York”; p. 67, nota 1) e para
exercícios de aspectos gramaticais (“Eu e os mais chorávamos: Que regra de
concordância notais aqui?”; (p. 36, nota 5). Apenas no “Apêndice” são apresentadas,
no espaço de 10 páginas, de forma bastante reduzida e sem qualquer relação com
os textos anteriormente lidos, as “súmulas de composições escolares”, subdivididas
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Nas citações foi mantida a ortografia da edição consultada.
em quatro partes: narrações, cartas, descrições e dissertações (TABORDA, 1931, p.
389-397). Consideremos quatro exemplos:
“O rapaz atrevido. João é muito atrevido. Arrisca-se a subir
árvores, nos sítios mais perigosos. Certa vez... (contai uma
aventura). Levaram-no ferido para casa seus companheiros... Lição.”
(p. 390, Narrações - súmula 4).
“Uma festa patriótica. 1) Conta a teus pais as impressões que
tiveste no dia 7 de setembro: as salvas, a parada, etc. 2) Também o
ginásio tomou parte e com muito brilho; marchaste como soldado
veterano. 3) À noite houve uma sessão cívica, no salão de atos do
ginásio: cantos, declamações, um drama. (Tratamento: 2ª pessoa do
plural).” (p. 393, Cartas).
“O galo. Ave doméstica. Descrevê-la (a plumagem, a cabeça, as
asas, cauda, pés). De que se sustenta? Que anuncia seu canto?
Símbolo da vigilância. Compará-lo às galinhas, quanto ao tamanho e
beleza. Falar das rinhas. São aconselháveis?” (p. 395, Descrições -
súmula 2).
“O alcoolismo. Que se entende por alcoolismo? Efeitos do abuso de
bebidas alcoólicas. Efeitos no indivíduo, na família, na sociedade.
Alguns países a proíbem. Conclusão.” (p. 396, Dissertações - súmula
3).
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Conhecimentos enciclopédicos são aqueles que construímos com base em nossas
experiências de vida de diversa natureza.
Dizer que o gênero textual vai se firmando em convenções sociais recorrentes não
implica, como procuramos deixar claro, afirmar que ele seja estático e imutável. Ao
contrário, o gênero textual é de natureza maleável e, por isso mesmo, no seu
processo de produção e de circulação, no fluxo interacional entre leitor-texto-autor,
está sujeito a incompreensões e a transgressões.
O caso da incompreensão pode dar origem ao mal-entendido ou à ambiguidade, se
na gestão de produção do gênero textual num determinado contexto faltarem aos
interlocutores similaridades de ancoragem de cunho social e temático, ou mesmo se
lhes faltarem os componentes pragmáticos para gerir o gênero no contexto social em
que se realiza. Como alertam Dolz et alii,
não escrevemos da mesma maneira quando redigimos uma carta
de solicitação ou um conto; não falamos da mesma maneira
quando fazemos uma exposição diante de uma classe ou quando
conversamos à mesa com amigos. Os textos escritos ou orais que
produzimos diferenciam-se uns dos outros e isso porque são
produzidos em condições diferentes (2004, p. 97).
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“Juiz escreve sentença em forma de poesia”, por Carolina Farias, 03 de fevereiro de 2009.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u498244.shtml (Acesso em 13/09/
2009).
construir e socializar conhecimento, influenciar pessoas, criticar, fazer um pedido,
julgar um procedimento, recomendar alguém, dar instruções, mentir, ironizar e
assim por diante. De acordo com a autora, a aprendizagem de um gênero textual
nos possibilita entendermos melhor as situações em que nos encontramos. Nesse
sentido, o ensino da produção textual com base em gêneros disponibiliza as
condições pedagógicas que podem levar o aluno a compreender como participar de
modo ativo e crítico das ações de uma comunidade. Essas questões são relevantes
quando se trata de propor uma abordagem para o encaminhamento da produção
escrita na escola, aspecto ao qual nos dedicamos a seguir.
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Como as edições dessas obras ainda se encontram em circulação, preferimos não identificá-
las, referindo-nos a elas como “A” e “B”.
(1) A coleção “A” estabelece as condições de produção dos textos basicamente em
dois momentos: a) ao delinear um projeto, que atua como orientador das produções
a serem elaboradas a cada duas unidades; b) ao trazer as especificações para cada
produção textual em específico. Assim, no volume do nono ano, por exemplo, o
projeto “Livro de contos” orienta as atividades das unidades 1 e 2. Ao término da
unidade 1, o aluno deverá elaborar um conto de mistério. Para tanto, inicialmente, o
aprendiz é convidado a ler e analisar textos que contemplam o gênero textual
focalizado. São estudadas as diferentes estratégias utilizadas pelos autores lidos na
criação de um “clima de mistério”. Após um trabalho cuidadoso de observação do
gênero, que inter-relaciona, sobretudo, leitura e conhecimentos linguísticos, é
disponibilizada uma notícia verídica sobre a morte misteriosa de uma pessoa,
extraída de um jornal. A partir dessa notícia, a obra solicita ao aluno que elabore um
“roteiro para um conto de mistério”, respondendo a perguntas como: “Qual é o
enigma?”, “Que personagem será o detetive do conto”, “Quem são os principais
suspeitos do assassinato?”, “Quem será o culpado?”, “O que motivou o
assassinato?”. Posteriormente, os alunos voltam a debater características de um
conto de mistério, com destaque para a descrição de ambientes e para a
apresentação de pistas que podem levar à solução do enigma. A obra chama ainda a
atenção do aluno para o leitor presumido e para o objetivo do texto. Só numa última
etapa, depois que o aprendiz já exercitou partes da escrita do conto de mistério,
pede-se que o aluno, com base numa nova temática e nas orientações oferecidas,
planeje e produza um conto que será publicado no livro a ser lançado ao término do
semestre. Ressalte-se que esse conto é ainda submetido a uma revisão, feita pelo
próprio aluno, que encontra apoio para essa tarefa em critérios de observação
explicitados pelo livro didático.
(2) A coleção “B” preocupa-se em contextualizar adequadamente para os alunos as
condições de produção, ao atribuir ao texto a ser elaborado um objetivo, um
destinatário específico, uma finalidade social, uma esfera de uso e ao destacar a
variedade linguística que lhe é mais adequada. As atividades de escrita também
favorecem a inserção ativa do aluno no planejamento do texto, na coleta de
informações sobre a temática trabalhada, na elaboração, reformulação e revisão de
versões prévias, e na elaboração da versão final do texto. A proposta de produção
do gênero “editorial”, no volume do nono ano, é ilustrativa de como o processo de
escrita se desenvolve na coleção focalizada. Inicialmente, a obra apresenta o
editorial, delineando-o como um gênero argumentativo que faz a defesa de um
ponto de vista e tem uma finalidade persuasiva. Em seguida, a obra disponibiliza um
editorial para leitura, seguido de um conjunto de questões que exploram a
compreensão do tema tratado, a linguagem do texto, a estrutura formal do gênero
focalizado, a natureza da argumentação apresentada, a opinião do editorial quanto
ao tema e às posições de outras pessoas sobre o assunto. Na sequência, os
estudantes, depois de lerem uma reportagem que traz a opinião de jovens sobre
problemas que preocupam os adolescentes de hoje, são convidados a selecionar os
temas de seu interesse, debatê-los, anotar os argumentos favoráveis e contrários,
assumir uma posição e, posteriormente, redigir um editorial. Para a produção
propriamente dita, são disponibilizadas sugestões sobre a coleta de dados, o
planejamento textual, os possíveis leitores e a variedade lingüística a ser adotada.
Há ainda orientações para a revisão e refacção do texto. Cabe observar que o
editorial deverá circular num
jornal a ser produzido pelos alunos ao término do bimestre. Essa preocupação em
dar um sentido social à escrita se repete no decorrer dos volumes.
Os exemplos apontam para duas possibilidades de produção pertinentes e viáveis de
serem desenvolvidas em sala de aula, que operam com a compreensão de escrita
como um diálogo entre escritor-texto-leitor, como uma prática social efetiva, sem
descuidar do ensino do gênero textual e da temática estudados. Destaque-se ainda a
preocupação das obras com o planejamento, a construção, a revisão, a refacção e a
edição dos textos, etapas sempre presentes nas rotinas de escrita dos vários gêneros
textuais em nossa sociedade.
4. Palavras finais
Nossas palavras finais retomam as iniciais. Assim, nosso propósito nesse capítulo foi
o de refletir sobre a complexidade envolvida no processo da escrita, aspecto que
coloca para a escola desafios que precisam ser enfrentados no encaminhamento de
uma prática pedagógica preocupada com a formação de alunos proficientes, que
saibam dimensionar e operar com as condições de produção e de circulação do
texto. Trouxemos, sem a pretensão de esgotá-los, diferentes tratamentos
dispensados ao ensino da elaboração textual ao longo dos últimos 100 anos e que,
com algumas variações e apesar dos esforços direcionados para a formação
continuada dos professores e para a melhoria da qualidade dos materiais didáticos,
ainda podem ser encontrados nas salas de aula. Ao término, trouxemos para o
debate a perspectiva de trabalho com os gêneros textuais, que, segundo tentamos
evidenciar, toma efetivamente a produção de texto como um objeto de ensino que
requer
planejamento, elaboração, revisão e refacção. Se, portanto, a escola propõe-se
formar alunos autônomos, que produzam textos possíveis de circular também nas
esferas extraescolares, é importante que ela privilegie o trabalho de escrita como um
processo interlocutivo e contextualizado em práticas sociais e culturais.
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