Cap. O Que É Devido Processo Legal Humberto B Ávila
Cap. O Que É Devido Processo Legal Humberto B Ávila
Cap. O Que É Devido Processo Legal Humberto B Ávila
INTRODUÇÃO
A Constituição garante o “devido processo legal” (art. 5º, LIV). Essa expressão
tem sido utilizada, pela doutrina e jurisprudência, com duas conotações diferentes e
independentes: uma “substancial”, denotativa das exigências de proporcionalidade
e de razoabilidade; e uma “procedimental”, indicativa da garantia de um processo
adequado ou justo.
Porque a Constituição, embora preveja o “devido processo legal”, não o concei-
tua nem indica as suas funções, dúvidas surgem relativamente à sua funcionalidade.
Essas indagações crescem quando se constata que vários dos elementos normal-
mente deduzidos do “devido processo legal” são previstos em dispositivos específi-
cos da própria Constituição, gerando a impressão de que a sua previsão expressa é
supérflua.
Em razão desse contexto, este artigo tem a finalidade de responder às seguin-
tes indagações: é correto usar o dispositivo relativo ao “devido processo legal” co-
mo fundamento normativo dos deveres de proporcionalidade e de razoabilidade e,
portanto, do chamado “devido processo legal substancial”? É consistente separar o
“devido processo legal substancial” do denominado “devido processo legal proce-
dimental”? Qual o conteúdo normativo do “devido processo legal” na Constituição
Brasileira? É o que se passa a fazer.
* Livre-Docente em Direito Tributário pela USP. Visiting Scholar da Harvard Law School - EUA. Doutor
em Direito pela Universidade de Munique - Alemanha. Professor da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Advogado e Parecerista.
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indicar os comportamentos cuja adoção irá contribuir para a promoção gradual desse
ideal.1 Embora não descreva quais comportamentos devem ser adotados, a mera ins-
tituição de um princípio, portanto, já impõe a adoção daquelas condutas adequadas
e indispensáveis à sua promoção. Uma conduta inadequada não promove o princípio
que legitima seu uso. Erra o alvo. Desvia-se do fim que pretende promover e que
justifica sua utilização. O dever de adoção de comportamentos adequados decorre,
portanto, da própria positivação de um princípio. O dever de adequação não é in-
dependente, no seu fundamento, de determinado princípio, mas decorrente do seu
conteúdo normativo. Não há, por exemplo, a proteção da liberdade, “mais” o dever
de adequação, mas a proteção da liberdade de modo adequado, pelo singelo motivo
de que com condutas inadequadas à sua promoção ela não se realiza. Logo, o dever
de adequação é decorrência lógica da mera positivação de “um princípio”.
1.1.2. Ocorre que a Constituição não protege, apenas, um fim, mas vários. Co-
mo o Estado deve proteger mais de um fim, ao mesmo tempo, ele deve escolher,
dentre todos os comportamentos adequados para proteger um, aquele que restringe
na menor medida o outro fim, que igualmente precisa ser promovido. A escolha de
qualquer outro comportamento revela que o Estado está, sem necessidade, restrin-
gindo um fim que também deve promover. O dever de necessidade advém, assim, da
própria positivação de vários princípios que devem ser realizados simultaneamente.
O dever de necessidade não é, destarte, independente, no seu fundamento, dos prin-
cípios, mas decorrente da sua própria proteção simultânea. Não há, desse modo, a
instituição de determinados princípios, “mais” o dever de necessidade, mas a prote-
ção de determinados princípios na medida do necessário. Daí a conclusão de que o
dever de necessidade é decorrência lógica da positivação de “mais de um princípio”.
1.1.3. A Constituição não protege apenas dois fins, mas um conjunto deles. Co-
mo o Estado deve realizar uma pluralidade de princípios, deve fazê-lo adotando
comportamentos que produzam efeitos que mais os promovam do que os restrinjam.
Por isso, o Estado não pode, a pretexto de promover, em determinado grau, a reali-
zação de um fim, escolher um comportamento que cause uma restrição, em maior
medida, à realização de outro fim, ou de outros fins. O dever de proporcionalidade
decorre, por conseguinte, da própria positivação de um conjunto de princípios, a ser
mais promovido do que restringido. Assim, o dever de proporcionalidade não é inde-
pendente, quanto ao fundamento, do conjunto de princípios, mas decorrente da sua
proteção. Não há a instituição de um conjunto de princípios, “mais” o dever de pro-
porcionalidade, mas a proteção de determinados princípios de modo proporcional.
Daí resultar que o dever de proporcionalidade é decorrência lógica da positivação de
“um conjunto de princípios”.
1. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 78.
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1.1.4. Para usar uma metáfora, o dever de adequação está para um princípio as-
sim como a sombra está para o objeto que se interpõe entre o sol e o chão. Separar o
dever de adequação do princípio que deve ser adequadamente promovido é separar a
sombra do objeto que ela projeta. O mesmo vale para os deveres de necessidade e de
proporcionalidade: eles não são conteúdos normativos independentes dos princípios
a serem realizados, mas deveres implicados na sua própria positivação e que, por
mais paradoxal que possa parecer, estruturam a própria realização dos princípios.
1.1.5. O fundamento normativo do dever de proporcionalidade, nas suas exigên-
cias de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, reside, pois,
na própria instituição de princípios. Ao instituir um princípio, está-se, ao mesmo
tempo, estabelecendo o dever de promovê-lo adequadamente. Desse modo, onde
houver um princípio, haverá o dever de adequação. Ao instituir dois princípios, está-
se, simultaneamente, prescrevendo o dever de promovê-los sem os restringir desne-
cessariamente. Assim, onde houver dois princípios, haverá o dever de necessidade.
E ao instituir um conjunto de princípios, está-se estabelecendo o dever de mais pro-
movê-los do que restringi-los. Desse modo, onde houver um conjunto de princípios,
haverá o dever de proporcionalidade.
1.1.6. Pois bem, a instituição dos princípios de liberdade, ao lado de finalidades
estatais cuja persecução os pode restringir, representa, portanto, a própria instituição
dos deveres de promoção adequada, necessária e proporcional desses fins. O dever
de proporcionalidade está enraizado nos próprios princípios de liberdade. Sendo as-
sim, ele não precisa de um fundamento escrito, pois decorre logicamente de outros
fundamentos já escritos. Ele é, por assim dizer, consectário da estrutura teleológica
do Direito. Sustentar a carência de um outro suporte físico para o dever de propor-
cionalidade é pretender criar um fundamento expresso para aquilo que já decorre de
uma norma e de um conjunto delas, ou simplesmente negar a sombra que a luz do
sol projeta no chão ao irradiar-se sobre o objeto interposto.
1.1.7. O princípio da igualdade, a seu turno, exige que dois ou mais sujeitos ou
situações sejam diferenciados em relação a uma finalidade, cuja realização pressupo-
nha o uso de determinado critério que com ela mantenha vínculo de razoabilidade.2
Se dois sujeitos forem tratados com base num critério cuja utilização não mantenha
pertinência com a finalidade que justifica a diferenciação, haverá violação do dever
de igualdade. Embora não termine por descrever quais são os critérios que devem
ser usados, a mera instituição do dever de igualdade já impõe a escolha de critérios
razoáveis, assim entendidos aqueles que mantêm uma relação fundada e conjugada
de pertinência com a finalidade da diferenciação. O dever de razoabilidade (aqui
como exigência de congruência entre critério e fim) decorre, portanto, da própria po-
sitivação do princípio da igualdade. Desse modo, o dever de razoabilidade não está
2. ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 42.
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fora da igualdade, mas dentro do seu próprio conteúdo normativo. Não há a proteção
da igualdade, “mais” o dever de razoabilidade, mas a proteção da igualdade como
exigência de tratamento razoavelmente isonômico. Daí a conclusão de que o dever
de razoabilidade faz parte do próprio conceito de tratamento igualitário.
1.1.8. A instituição do princípio da igualdade representa, portanto, a própria po-
sitivação do dever de razoabilidade enquanto exigência de congruência valorativa
entre critério e finalidade que justifica sua utilização. O dever de razoabilidade está
enraizado no próprio princípio da igualdade. Destarte, ele não precisa de um funda-
mento escrito, pois decorre logicamente de outro fundamento já escrito. Sustentar
a necessidade de um outro suporte físico para o dever de razoabilidade é pretender
criar um fundamento expresso para aquilo que já decorre de uma outra norma, ou,
para seguir a metáfora antes utilizada, é justificar a sombra projetada em elemento
outro que não o próprio objeto sobre o qual a luz se irradia.
1.1.9. Essas considerações demonstram que o fundamento dos deveres de pro-
porcionalidade e razoabilidade são os princípios de liberdade e de igualdade, dos
quais são consectários lógicos implícitos. Eles não carecem de um dispositivo que
os fundamente normativamente, pois decorrem da própria positivação de princípios.
3. ORTH, John. Due Process of Law – a Brief History. Kansas: UPK, 2003. p. 89.
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6. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 412.
7. ÁVILA, Humberto. Materiell verfassungsrechtliche Beschränkungen der Besteuerungsgewalt in der
brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz. Baden-Baden: Nomos, 2002. p. 265.
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2.2.3. O dispositivo relativo ao “devido processo legal” deve, portanto, ser en-
tendido no sentido de um princípio unicamente procedimental. A Constituição, para
não deixar dúvidas com relação à existência de um direito à proteção de direitos,
resolveu explicitar o direito a um processo adequado ou justo. Nesse sentido, a ex-
pressão composta de três partes fica plena de significação: deve haver um processo;
ele deve ser justo; e deve ser compatível com o ordenamento jurídico, especialmente
com os direitos fundamentais.
2.2.4. Como, porém, o ideal de protetividade de um direito fundamental é muito
amplo, podendo haver problemas de coordenação, conhecimento e controle relati-
vamente a quais são os elementos que podem ser dele deduzidos, o constituinte não
apenas incluiu na Constituição um dispositivo a respeito do “devido processo legal”,
como, ainda, fez constar vários daqueles elementos que dele deveriam ser deduzi-
dos: juiz natural (art. 5º, XXXVII), imparcial (art. 95), ampla defesa e contraditório
(art. 5º, LV e LVI), motivação (art.93, IX), publicidade (art. 5º, LX, art. 93, IX),
proibição de prova ilícita (art. 5º, LVI).
2.2.5. Ao instituir esses elementos, a Constituição terminou por tornar obriga-
tório aquilo que poderia ser avaliado como adequado e necessário conforme as cir-
cunstâncias de cada caso concreto e, com isso, eventualmente afastado. Enquanto
noutros sistemas, como o estadunidense, os elementos do devido processo legal são
deduzidos, caso a caso, do ideal de protetividade de direitos, no Brasil vários deles
são impostos pela própria Constituição.
2.2.6. Sendo o “devido processo legal procedimental” um princípio que exige a
realização de um estado ideal de protetividade de direitos, sem, no entanto, indicar
os comportamentos cuja adoção irá contribuir para a promoção gradual desse ideal,
tem a função de criar os elementos necessários à promoção do ideal de protetividade
(função integrativa), interpretar as regras que já prevêem elementos necessários à
promoção do ideal de protetividade (função interpretativa) e bloquear a eficácia das
regras que prevêem elementos que são incompatíveis com a promoção do ideal de
protetividade (função bloqueadora).
2.2.7. Como vários elementos necessários à promoção do ideal de protetividade
já estão previstos na própria Constituição, quer por meio da previsão de ideais mais
restritos (princípios da ampla defesa e do contraditório), quer por meio da previsão
de comportamentos ou de prerrogativas (regras do juiz natural imparcial, da motiva-
ção, da publicidade e da proibição de prova ilícita), além daquelas funções, o prin-
cípio do devido processo legal procedimental, ao ascender à posição de sobreprincí-
pio, exerce uma função rearticuladora relativamente a esses elementos já previstos,
que tanto podem convergir quanto divergir relativamente ao fim maior.8
8. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 412.
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2.2.8. Convém ressaltar, por fim, que o “devido processo legal” é um princípio,
assim definida aquela norma que prescreve a realização de um estado ideal de coisas,
sem prever os comportamentos cuja adoção irá contribuir para sua promoção. Para
essa definição, o que distingue os princípios de outras normas não é a aptidão para
receber um peso mediante a criação de regras concretas de prevalência que podem,
inclusive, levar ao seu afastamento completo; o que os diferencia é a natureza do
comportamento que eles prescrevem (aqueles necessários e adequados à realização
do estado ideal de coisas), a natureza da justificação exigida para sua aplicação
(correlação entre os efeitos da conduta e o estado de coisas objeto de realização) e
a medida de contribuição para a decisão (colaboração para a solução sem apontar
para uma em especial).9 Portanto, não é elemento essencial dessa definição de prin-
cípios a carência de sopesamento e, com ela, a possibilidade de “descarte” diante
de outros princípios. O elemento distintivo, em vez disso, é a colaboração para uma
decisão, que tanto pode ser por meio de razões preliminares, chamadas prima facie,
quanto por meio de razões permanentes, denominadas de pro tanto, as quais se ca-
racterizam por manter a sua função, de diferentes formas, até o final do processo de
ponderação.10
2.2.9. Essas considerações preliminares são importantes para afirmar que o “de-
vido processo legal” possui a natureza de princípio, sem que isso importe em dizer
que ele possa ser objeto de uma ponderação concreta que não lhe atribua peso algum,
como seria o caso para aqueles que definem princípio como norma carecedora de
ponderação, e ponderação como o processo concreto de criação de regras de pre-
valência. O princípio do “devido processo legal”, dada a sua natureza instrumental,
não pode ser simplesmente descartado no processo de aplicação. Essa constatação é
decisiva, tanto para a definição do “princípio do devido processo legal” quanto para
a definição dos “princípios”.
CONCLUSÃO
Não é correto usar o dispositivo relativo ao “devido processo legal” como funda-
mento dos deveres de proporcionalidade e de razoabilidade e, portanto, do chamado
“devido processo legal substancial”. Em primeiro lugar, porque leva ao entendimen-
to de que o fundamento normativo dos deveres de proporcionalidade e razoabilidade
é o dispositivo relativo ao “devido processo”, quando o seu fundamento reside na
positivação dos princípios de liberdade e igualdade conjuntamente com finalidades
estatais. Em segundo lugar, porque o “devido processo legal substancial”, se compre-
endido como os deveres de proporcionalidade e de razoabilidade, dá a entender que
esses deveres não estão presentes no “devido processo legal procedimental”, quan-
do, em verdade, servem para a sua própria configuração como processo adequado ou
9. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 122.
10. ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 87.
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justo. E, em terceiro lugar, porque aquilo que o uso da expressão “devido processo
legal substancial” quer designar – deveres de proporcionalidade e razoabilidade –
também é realizado fora do “processo”.
Igualmente não é consistente separar o “devido processo legal substancial” do
chamado “devido processo legal procedimental”. Em primeiro lugar, porque o “de-
vido processo procedimental” não é independente, no seu fundamento, de determi-
nado princípio cuja aplicação reflexiva gera um direito subjetivo ou de determinada
regra que o garanta, mas decorrente do seu próprio conteúdo normativo, ainda que
ilegitimamente proclamado. Em segundo lugar, porque só se sabe se um processo é
adequado ou justo se os atos praticados no processo forem proporcionais e razoáveis
ao ideal de protetividade do direito alegado.
Em face dessas considerações, conclui-se que o dispositivo relativo ao “devido
processo legal”, ainda que com caráter meramente expletivo e, por isso, com positi-
vação expressa desnecessária, deve ser interpretado como fundamento de um prin-
cípio que exige a realização de um estado ideal de protetividade de direitos. Como
princípio, exerce as funções interpretativa, integrativa e bloqueadora relativamente
aos atos e normas que o pretendem concretizar. No entanto, considerando que a
nossa Constituição prevê, expressamente, vários elementos que poderiam ser dele
deduzidos, além daquelas funções, o princípio do devido processo legal, nesse passo
na qualidade de sobreprincípio, exerce uma função rearticuladora relativamente a
esses elementos já previstos.
Todas essas considerações, se verdadeiras, conduzem a uma revisão do uso do
princípio do “devido processo legal”, de modo a evitar superposições normativas
e tautologias que lhe desgastam a normatividade. Como o Direito depende de pro-
cessos discursivos para sua realização, o uso inconsistente e incoerente da cláusula
do “devido processo legal” está longe de ser uma questão de nomenclatura. É uma
questão de fundo.
Que se use o “devido processo legal” apenas como princípio procedimental,
aprofundando-se o estudo da sua funcionalidade e deixando que os deveres de pro-
porcionalidade e razoabilidade sejam atrelados aos seus verdadeiros fundamentos
normativos – os princípios de liberdade e de igualdade. Todos os princípios agrade-
cem, inclusive o próprio princípio do “devido processo legal”, cuja efetiva realiza-
ção pressupõe sua adequada compreensão.
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