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Resumo: O artigo faz um excurso crítico sobre os estudos filológicos, abordando a questão do
método, indissociável da história da linguística românica.
Introdução
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José Pereira da Silva é filólogo, professor aposentado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e foi editor
da Revista Soletras em toda sua fase de publicação impressa. Email: [email protected].
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Fica evidente, naturalmente, que a filologia já não pretende ser a ciência que descreve
os sistemas linguísticos, hoje de atribuição da linguística, mas não pode abrir mão de estudá-
los para efetuar com a maior precisão e simplicidade possível a sua interpretação, a sua
explicação ou ensino e a preservação da memória cultural do povo que utilizou as línguas que
já não se usam efetivamente, mas permanecem nos textos antigos.
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Tratando da edição crítica de textos, Erich Auerbach (1972, p. 11) escreve: “A necessidade de constituir textos
autênticos se faz sentir quando um povo de alta civilização toma consciência dessa civilização e deseja preservar
dos estragos do tempo as obras que lhe constituem o patrimônio espiritual; salvá-las não somente do olvido
como também das alterações, mutilações e adições que o uso popular ou o desleixo dos copistas nelas
introduzem necessariamente”.
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Parece-me importante registrar o que escreveu com propriedade Lluís V. Aracil (2004, p. 15): “A língua, com
maiúscula ou minúscula, é a língua nacional”. Assim, quando se fala, por exemplo, de “Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa”, está-se falando da língua oficial dos países que a utilizam como tal. Todas as outras
variantes dessa língua nacional costumam ser chamadas de dialetos, apesar dos protestos de alguns.
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Apesar de não ser a língua o objetivo do estudo filológico, é a matéria na qual, em sua
forma escrita (hoje pode ser preservada de outras formas também), se manifesta a cultura dos
povos, cuja preservação é da responsabilidade dos filólogos (e de outros especialistas
também, naturalmente).
Não é possível buscar um objetivo sem compreender bem o objeto no qual ele se
manifesta e se preserva. E, no caso da filologia, é nos textos das diversas línguas que está o
objeto de seu estudo.
Depois de tratar da crítica textual como “o trabalho filológico”, Bruno Fregni Bassetto
inicia o capítulo sobre os métodos da filologia românica de seus Elementos de filologia
românica, com as seguintes palavras:
O professor Bruno é muito feliz neste parágrafo, em que sintetiza de forma clara uma
conclusão natural de quem estuda atentamente os métodos filológicos aplicados às línguas
românicas, nos seguintes termos:
O método histórico-comparativo foi criado por Franz Bopp (1791-1867) e Jacob Grimm
(1785-1863) no início do século XIX e, imediatamente, aplicado por Friedrich Diez (1794-
1876) na elaboração de sua Gramática das línguas românicas e de seu Dicionário
etimológico das línguas românicas, que foram a base da criação da filologia românica e da
linguística românica.
Na verdade, os fundamentos da linguística comparada foram preparados por Franz Bopp
com a publicação de sua Gramática comparativa, com a qual conseguiu refutar a ideia
equivocada defendida por Friedrich Schlegel (1772-1829) de que o grego e o latim eram
provenientes do sânscrito. Mas os fundamentos da linguística histórica só foram estabelecidos
concretamente por Jacob Grimm, com a publicação de sua Gramática germânica. Apesar de
contemporâneas em sua efetiva formulação científica, a linguística histórica é proveniente da
linguística comparativa (Cf. VIDOS, 1996, p. 33-34).
Segundo Vidos (1996, p. 34), para se consagrar inquestionavelmente como o criador da
filologia e linguística românica, Diez não fez mais que aplicar às línguas românicas, em sua
Gramática, a gramática e o método de Jacob Grimm. E sua contribuição foi tão fundamental
que até hoje sua gramática e seu dicionário ainda têm utilidade, apesar dos avanços nesses
estudos.
O método histórico-comparativo, como está evidente em seu próprio nome, é a fusão do
método histórico com o comparativo. Ou seja, o método histórico procura explicar as causas
e/ou consequências dos fatos linguísticos através da observação de dois ou mais estágios
cronológicos de uma língua comprovados em alguma forma de documento (normalmente um
texto escrito). O método comparativo, já imanente também no método histórico, é utilizado
também para cotejar estágios de evolução de diversas línguas ou dialetos nas diferentes
regiões em que são faladas ou documentadas. Fazendo-se essas comparações com um número
exaustivo de casos semelhantes, estabelecem-se normas, regras ou “leis” que possibilitam a
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produto, mas como uma criação” (Apud VIDOS, 1996, p. 94). Sendo assim, segundo
Humbold, a língua não reproduz as coisas tais como são na realidade, mas tais como os
falantes as idealizam. Essa forma interior da linguagem representa a realidade que os
circunda, mas só se manifesta externamente através da fonética, da morfossintaxe etc.
Segundo Vidos (1996, p. 95), Karl Vossler (1872-1949) pretendeu demonstrar que “as
mudanças fonéticas dependem do acento e do ritmo e que estes, por sua vez, dependem do
estado de espírito de quem fala”. Por isto, conclui que “toda expressão linguística é uma
criação do espírito” e que “a história das formas de expressão linguística só pode ser a história
das criações do espírito; noutras palavras, história do espírito, história da cultura” (VIDOS,
1996, p. 101-102).
Auxiliados pelo mesmo autor (VIDOS, 1996, p. 101-102), ainda podemos concluir que
volume de grande interesse para nós, como parte do projeto “Dialectologia pluridimensionalis
Romanica”.
Vários outros métodos existem e podem ser úteis também aos estudos filológicos ou
linguístico-filológicos, como a geologia linguística, a estratigrafia linguística, a teoria dos
campos linguísticos (de Jost Trier, 1894-1970), a lexicologia social (de Georges Matoré,
1908-1998) e o estruturalismo (de Ferdinand de Saussure, 1857-1913), entre outros, mas não
trataremos deles aqui porque seriam menores suas contribuições e porque gostaríamos de dar
maior destaque à crítica textual, que é o mais antigo e tradicional método da filologia,
constituindo-se no cerne do trabalho filológico em seu sentido mais restrito.
Apesar de terem sido publicados numerosos artigos pelo Círculo Fluminense de Estudos
Filológicos e Linguísticos e ser bastante rica a produção brasileira de crítica textual, os livros
teóricos sobre este método têm sido bastante escassos e todos eles bem recentes: em 1967,
Elementos de Bibliologia, de Antônio Houaiss (ed. fac-similar em 1983); em 1972, Estudos
de Crítica Textual, de Emmanuel Pereira Filho; em 1977, Introdução à Ecdótica: crítica
textual, de Segismundo Spina (2. ed. em 1994); em 1985, A construção do livro, de Emanuel
Araújo (2. ed. em 2008); em 1987, Iniciação em Crítica Textual, de Leodegário A. de
Azevedo Filho; em 1998, Ensaios de Linguística, Filologia e Ecdótica, de Leodegário A. de
Azevedo Filho; em 2004, Fundamentos da Crítica Textual, de Barbara Spaggiari e Maurizio
Perugi, e Base teórica de Crítica Textual, de Leodegário A. de Azevedo Filho; em 2005,
Crítica Textual e edição de textos, de José Pereira da Silva e Introdução à Crítica Textual, de
César Nardelli Cambraia, além de algumas poucas traduções.
No mesmo ano de 2007, organizamos um pequeno volume de 128 páginas, intitulado
Para uma bibliografia brasileira de Crítica Textual, para auxiliar os pesquisadores sobre o
tema, disponível em http://www.filologia.org.br/pereira/textos/bibliografia_brasileira.pdf.
Para a melhor orientação deste tópico, seguirei a estrutura do livro de César Nardelli
Cambraia (2005), começando por sua definição e sua história, lembrando os tipos e normas de
edição e, por fim, uma síntese da metodologia propriamente dita.
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Isto é, da forma do texto que passou a ser reproduzida sucessivamente desde as primeiras edições
(TIMPANARO, 2002, p. 3). “Sem questionar em nada a exigência científica da integridade do texto, pode-se
afirmar, contudo, que a ‘vulgata’ continua a ser, muitas vezes, em documento nada depreciável do ponto de vista
da recepção. Neste domínio, a sua relevância histórica é até superior à de qualquer texto original que, antes de
fazer objeto duma edição crítica, nunca estivera ao alcance do público” (SPAGGIARI; PERUGI, 2004, p. 179).
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As normas ou critérios de edição são diferentes para cada tipo, mas não se devem
misturar critérios de edição quando se publica um conjunto de textos, a menos que o objetivo
seja demonstrar exatamente essa variedade de tipos de edição.
É preciso que as normas sejam sempre: a) apropriadas ao tipo de edição; b)
internamente coerentes; c) explícitas e d) rigorosamente aplicadas.
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É interessante a proposta de Cambraia para se usar a palavra testemunho em lugar de códice, que se tornou
tradicional nos textos teóricos de crítica textual, visto que, na realidade, nem sempre se trata de um códice,
mesmo quando a fonte é um manuscrito, além do fato de que o testemunho pode ser uma edição, um datiloscrito
ou um digitoscrito.
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Segundo Spaggiari e Perugi (2004, p. 204), tomando Silvio Elia como autoridade, a crítica genética “constitui
uma repetição desprevenida, além de insciente, do papel desempenhado, nos anos 40, pela crítica das variantes
elaborada como corretivo à estética de Croce”. Sobre a “filologia e critica das variantes (genética)”, leia um
pouco mais em Spaggiari e Perugi (2004, p. 198-229).
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Além disso, é indispensável decidir sobre o grau de fidelidade ao modelo, pois uma
edição pode ser conservadora ou uniformizadora, dependendo de seu público alvo principal.
No primeiro caso, mantêm-se rigorosamente todas as formas do original, sem qualquer
atualização, seja ortográfica, seja das abreviaturas ou de qualquer outra natureza. Trata-se,
normalmente, de edições destinadas a linguistas e filólogos, que precisam documentar
rigorosamente a forma linguística do texto para outros estudos.
podem ser preparados por seus detentores e enviados diretamente para o computador do
pesquisador, evitando-se enorme gasto de tempo e dinheiro em viagens e transcrições
manuais, como eram feitas há poucas décadas.
Localizados e coletados os testemunhos, parte-se para a colação, que é o cotejo rigoroso
das cópias, palavra a palavra, com o registro das variantes, pois é a partir dessas variantes que
se poderá fazer a estemática, tarefa extremamente importante em uma edição crítica.
A estemática constitui a fase da recensão que determinará a genealogia dos
testemunhos, por comparação baseada nos erros significativos de cada um deles.7 Esses erros
significativos serão conjuntivos, quando ocorrem em mais de um testemunho, indicando
alguma dependência entre eles, ou separativos, quando, ocorrendo em um testemunho,
manifesta sua independência em relação aos demais.
Identificados alguns erros, devem ser comparados os lugares comuns em que eles
ocorrem e, com isto, é possível estabelecer matematicamente a relação genealógica entre os
testemunhos, facilitando a decisão sobre qual deva ser o texto de base.
Depois de estabelecido o estema ou genealogia dos testemunhos de um texto, é
importante eliminar os testemunhos comprovadamente copiados de outros. Ou seja: um
testemunho que é comprovadamente cópia de outro conhecido deverá ser eliminado porque
não trará qualquer contribuição para o estabelecimento do texto, a menos que haja
dificuldades como a baixa visibilidade ou se a letra do texto fonte esteja menos legível que o
de sua cópia.
Esta subfase de eliminação dos testemunhos copiados é muito importante para a
economia de tempo e esforço.
Concluída a recensão, parte-se para a reconstituição do texto, também chamada de
emendatio, que pode ser feita com base nos testemunhos ou por conjetura.
A reconstituição por testemunhos é feita com base nos seguintes princípios, regras ou
cânones para a seleção de variantes:
a) A lição do maior número de testemunhos é preferível (lectio plurium codicum
potior);
b) A lição mais antiga é preferível (lectio antiquior potior);
c) A lição do melhor testemunho é preferível (lectio melioris codicis potior);
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Erros significativos são aqueles que não poderiam ser corrigidos conjeturalmente pelos próprios copistas por
serem erros óbvios. Uma palavra ou expressão sem sentido ou estranha, uma estrutura gramatical que transgrida
o padrão linguístico ou estilístico do autor seriam exemplos de erros significativos, porque o autor não escreveria
passagens ilógicas ou contrárias ao sentido do texto.
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Depois de estabelecido o texto, apesar de não haver consenso em relação a uma forma
de apresentação, há certas partes que podem ser consideradas imprescindíveis. Por isto,
apresentaremos aqui a sugestão que faz o autor seguido em todo este tópico da crítica textual
(CAMBRAIA, 2005, p. 162):
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Ainda tomando as palavras de Spaggiari e Perugi (2004, p. 94-95), acrescentamos o seguinte importante
esclarecimento: “No lachmannianismo tradicional, a ‘lectio difficilior’ é, junto com o ‘usus scribendi’, um dos
dois princípios com que se pode tentar identificar a lição do original, no caso frequentíssimo de estema bífido,
ou, de qualquer maneira, sempre que a ‘varia lectio’ não possibilitar a aplicação do critério mecânico de escolha.
Na verdade, esquece-se normalmente de precisar que a ‘lectio difficilior’ é um dos primeiros fenômenos que o
editor tem que encarar nos próprios começos do seu trabalho, isto é, na hora de identificar os erros possivelmente
conjuntivos ou separativos, indispensáveis à constituição do estema.”
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No longo estudo que Leodegário A. de Azevedo Filho faz a sua edição fac-similar de Os Lusíadas, de Luís de
Camões, centenas de erros apontados se justificam por mera ultracorreção, sobejamente esclarecidos em favor da
edição apontada como a editio princeps (CAMÕES, 2008).
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b. Obra
c. Tradição da Obra
i. Percurso Histórico
ii. Testemunhos
iii. Estema
iv. Fortuna editoria
II. Texto
a. Siglas dos testemunhos
b. Normas de edição
c. Texto e aparato crítico
III. Glossário
IV. Referências Bibliográficas
3. Conclusões
Referências bibliográficas:
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Abstract: : The article is a critical overview on the philological studies, and investigates the
question of the method, inseparable from the history of the Romanic Linguistics.