Clara Flaksman - Narrativas Relacoes Emaranhados PDF
Clara Flaksman - Narrativas Relacoes Emaranhados PDF
Clara Flaksman - Narrativas Relacoes Emaranhados PDF
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
2014
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Narrativas,
Relações
e
Emaranhados:
Os
Enredos
do
Candomblé
no
Terreiro
do
Gantois,
Salvador,
Bahia
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Narrativas,
Relações
e
Emaranhados:
Os
Enredos
do
Candomblé
no
Terreiro
do
Gantois,
Salvador,
Bahia
Clara Mariani Flaksman
Aprovada por:
_______________________________
Prof. Marcio Goldman - orientador
PPGAS/MN UFRJ
_______________________________
Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro
PPGAS/MN UFRJ
_______________________________
Edgar Rodrigues Barbosa Neto
Pós-Doc PPGAS/MN UFRJ
_______________________________
Profª Miriam Rabelo
UFBA
______________________________
Ana Luiza Martins Costa
Pesquisadora independente
iv
para Rosa e José
v
Agradecimentos
generosidade de ter me recebido em sua Casa para a realização da pesquisa que deu origem a
esta tese. Estendo o agradecimento a toda sua família: Mãe Angela, Iaquequerê da Casa, pela
gentileza e pelo carinho com que sempre me tratou. À Mãe Neli, Iadagã, pela atenção e pelo
acolhimento. E também a Seu Carlos, pela recepção sempre calorosa. A Leila Carla, minha
querida amiga, que sempre me orientou, inclusive nos momentos mais difíceis — estendo
esse agradecimento à sua Oxum, que me deu a primeira conta que tive e me falou coisas que
A relação com o orientador é uma coisa curiosa: depois de concluir a primeira versão da tese,
decidi ler os cadernos que escrevi acompanhando os cursos dados por ele. Foi ali que percebi
que todas as ideias que eu julgava minhas eram, de fato, dele. Então, agradeço também por ele
Luisa Elvira Belaunde me ajudou tanto que é difícil pôr em palavras. Sem ela, esta
tese não existiria. Serei eternamente grata pelo que ela fez por mim.
A Eduardo Viveiros de Castro que, além de mudar a minha vida (foi ao assistir uma
aula sua, nos idos de 2002, que decidi — sem nenhuma explicação especialmente cabível —
que eu queria estudar antropologia; e ao longo desses anos, mesmo nos momentos mais
difíceis, a cada vez que eu assisto uma de suas aulas sinto que estou no lugar certo), teve
vi
Aproveito também para agradecer a Joana Miller, que me levou para assistir a essa
aula (com segundas intenções, como me revelou depois) e a Marina Vanzolini, minha
comadre, que se juntou a mim nesse projeto e cuja companhia foi sempre imprescindível, para
tudo.
Ao meu pai, pela revisão do texto e pelas ideias fundamentais sobre ele; também pela
sua compreensão e pela dedicação na reta final do trabalho, fundamentais tanto para a tese
Agradeço também pelas nossas conversas e pelas sugestões que ela me deu, e por ter aceitado
fazer parte desta banca. Por isso agradeço também a Eduardo Viveiros de Castro (mais uma
vez), a Ana Luiza Martins Costa, a Edgar Barbosa Neto e a Gabriel Banaggia e Ana Cláudia
Cruz.
À minha mãe, pelas tantas idas a Salvador e pela ajuda fundamental com os meus
filhos, sem a qual a feitura desta tese teria sido bem mais difícil.
A Ana Célia, que possibilitou a minha entrada no Gantois e que foi um porto seguro
durante toda a pesquisa. Agradeço também a Dedé Gadelha por ter feito essa intermediação.
A Fábio Lima, que me disse, logo que nos conhecemos: "quero ser seu informante!".
Ele foi, na verdade, meu professor, e por isso lhe agradeço muito.
A Ana Carneiro, Virna Plastino e Julia Sauma, pela amizade, pelo cuidado e pelas
A Edgar Barbosa Neto, Cecília Mello, Márcia Nóbrega, Gabriel Banaggia, Bianca
Arruda, Paula Siqueira, Felipe Süssekind, Salvador Schavelzon e Maíra Bühler, pelas tantas
sugestões e conversas.
vii
A João Rivera, pelos desenhos. A Mariana Koehler, Maria Joana Lessa, Carla Reis e
Candida Cramer, pela amizade de tantos anos. A Iara Rennó, que chegou para completar o
time.
a Déa Márcia, pela amizade. A Dona Cici, pela paciência de me explicar tantas coisas e por
ter me contado tantas histórias. E também a Socorro Acioli, pelas tentativas de me ensinar o
companheirismo e pelas infindáveis conversas sobre candomblé. A Raul Pires, pelo apoio
constante. A Tiago Coutinho, pelo carinho com que sempre me recebeu. A Raul Chagas Neto
A Márcia Maié, pela abertura com que me recebeu, desde o começo da pesquisa. A
Alcides Carvalho, que me explicou tantas coisas. A Luiz Moreira e Wellington, meus
A Isabel Portela, Cida de Nanã, Silvana Moura, Hans Richmond, Fernandinho, Cátia
Santos, Mãe Nidinha, Tonho, Pai Regi (Ogum Toripê) e toda a família, agradeço pela
destacar Dona Leda Cajazeira, Simone Seixas, Jade Janaira (que também foi minha assistente
A Quito Ribeiro, pela constante troca de ideias. A Rosângela Amorim e a Mãe Edenis,
A Kátia Badaró e a Keka Almeida, pelo acolhimento. A Flora Gil, pelo apoio e pela
amizade.
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Moraes, pela amizade e pelas longas aulas sobre psicanálise. A Nicola Worcman, pelo suporte
Salvador. A Joana Mariani, pelo cuidado. A Luís Filipe de Lima, Babá Paulo de Oyá, Julio
Braga e Lisa Earl Castillo pelas tantas conversas que tivemos sobre candomblé.
A Gleide Cambria, a Mãe Ilza Mucalê e a toda a sua família, que me receberam tão
A Juliana Jabor, Tatiana Bacal, Sheina Tabak e Luiza Leite, pela ajuda imprescindível.
durante o doutorado.
***
pesquisa. Sua presença foi fundamental em diversos momentos e tenho certeza de que sem ele
Rosa e José foram conosco para a Bahia e aguentaram muitas mudanças para pessoas
de tão pouca idade. Depois voltamos para o Rio e eles suportaram longos períodos de
ausência da mãe durante o processo de escrita, reclamando um pouco mas sempre me dando
ix
RESUMO
O objetivo desta tese é apresentar o conceito de "enredo" e alguns dos sentidos em que a
noção se desdobra no candomblé de Salvador, Bahia. A pesquisa de campo que deu origem a
esta reflexão foi feita no terreiro do Gantois, em Salvador, Bahia. O argumento central aqui
contido é de que o uso muito frequente do termo "enredo" é reflexo de um modo de existência
múltiplo, um modelo de relacionamento intrinsecamente ligado ao candomblé. A escolha do
termo se deve justamente à sua pluralidade de significados, dentre os quais me detenho em
três que considero especialmente representativos desse modelo: enredo enquanto narrativa,
enquanto modo de relação e como sinônimo de emaranhamento.
Cada um desses significados traz consigo os outros dois, posto que a relação entre eles
é sempre complementar, e nunca de exclusão. Assim, defendo que o termo "enredo" é usado
no conjunto de seus sentidos, uso fiel à etimologia e à evolução da palavra, que pode indicar
uma via de acesso para a compreensão de um aspecto fundamental das religiões de matriz
africana no Brasil.
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ABSTRACT
Based on fieldwork conducted in a well-known African matrix religious house called Gantois,
this thesis presents the concept of enredo — a Portuguese term derived from rede (literally,
net), that could also be imperfectly translated as a either plot, scenario or yarn, as well as an
enmeshing. In doing so, the thesis considers some of the ways in which this term often
operates in the religion of candomblé in Salvador, the capital of Bahia State, Northeastern
Brazil. The thesis’ central argument is that the frequent use of the term enredo reflects a mode
of existence that is always multiple, a relational model that is intrinsic to candomblé. I argue
that this word is used precisely due of its plurality of meanings and I explore three specific
examples, chosen because they are especially representative of this relational model: enredo
as “plot”, “relationship” and “enmeshment.” I propose that each of these meanings involves
the other two; that the relationship between them is always complementary, never exclusive. I
thus argue that the term enredo is used in all of its senses, a usage true to the term’s etimology
and evolution that is suggestive of how we might understand a fundamental aspect of African
matrix religions in Brazil.
xi
Sumário
Introdução...................................................................................................................................1
O trabalho de campo.............................................................................................................13
Método..................................................................................................................................26
Léxico ...................................................................................................................................29
1.2: O Gantois.......................................................................................................................42
2.1: As nações.......................................................................................................................68
2.2: O sincretismo.................................................................................................................72
xii
2.3.2: Os Erês .................................................................................................................105
4.5: Feitura..........................................................................................................................193
xiii
5.2: Universo único e universo múltiplo ............................................................................218
Conclusão ...............................................................................................................................248
Aprendizado .......................................................................................................................251
Glossário.................................................................................................................................258
Bibliografia.............................................................................................................................267
xiv
Introdução
Esta tese se baseia numa pesquisa de campo realizada durante os anos de 2010 e 2011
no terreiro Ilê Iya Omi Axé Iyamasé, mais conhecido como Gantois, em Salvador. No
primeiro ano de pesquisa, frequentei basicamente o Gantois, para onde ia praticamente todos
os dias: dei aulas de inglês para as crianças da comunidade do entorno, dentro do terreiro,
da Bahia); além disso, fiz aulas de bordado e fui a todas as festas, obrigações internas e
que se chama em Salvador de correr macumba, ou seja, frequentar festas em outros terreiros.
candomblé. Todos tinham filiação a algum terreiro de origem, mas nunca rígida a ponto de
impedir a sua circulação. Tinham como característica o fato de sempre estarem por dentro de
tudo o que acontecia no mundo do candomblé soteropolitano: "Somos bem informados pelo
correio nagô", eles me diziam. Um deles já havia trabalhado com uma antropóloga, e logo me
quase todas as suas Casas, às vezes somente para ver algum orixá específico dançar: "Você
tem que ver esse Ogum", eles me diziam, antes de me levar a um determinado terreiro; ou
"Essa Oxum é muito famosa, vamos passar por lá, a gente vê ela tomar o rum1 e depois
seguimos para outra festa". Essas pessoas são chamadas de cupins, pois "roem tudo atrás de
1
Diz-se que um orixá toma o rum quando, durante alguma festa, toca-se especialmente para ele. Rum é o maior
atabaque do candomblé (no candomblé queto, usam-se três atabaques: rum, rumpi e lé).
1
alguma coisa", como me explicou uma filha de santo do Gantois. Cupim, portanto, é aquele
que circula pelos terreiros, nessa socialidade específica do universo das redes do candomblé
baiano. A vida social do candomblé de Salvador é intensa: ao final do meu segundo ano de
pesquisa, o número de convites que eu recebia para festas já era muito maior que minha
Estive em muitos terreiros, mas conservei o Gantois como base de minha pesquisa. A
ida a outras Casas serviu, em muitos aspectos, para auxiliar na minha compreensão dos
praticamente nula. Ou seja, frequentar outros candomblés fez parte do meu processo de
aprendizado como etnógrafa. Nesta tese, farei referência principalmente ao trabalho de campo
no Gantois, mas também a eventos ocorridos em outros terreiros que conheci. Em todos eles
eu era reconhecida como afiliada ao Gantois, o que gerou inclusive situações por vezes
embaraçosas, mas também reveladoras da posição que o Gantois ocupa neste universo.
candomblé. Pensava que, num terreiro grande como o Gantois, teria a chance de presenciar
inúmeras situações de aprendizado. Porém, durante os dois anos que que lá permaneci, a
única iniciação que presenciei foi a de um ogã. Havia um grupo grande de pessoas
aguardando a feitura, que só aconteceria em 2012. No meio de 2011, fiz a minha qualificação.
Foi no momento em que parei para escrevê-la que constatei quase não ter anotações sobre
aprendizado; passei em revista os meus diários e pude ver que a palavra mais recorrente neles
2
era enredo.2 Aos poucos, o tema passou a ocupar um lugar central em minhas reflexões, tanto
Durante todo o tempo que durou a minha pesquisa de campo, escutei inúmeras vezes a
pergunta: "por que você está aqui?" Em quase todo terreiro de candomblé aonde eu ia, alguém
comentário feito à minha resposta, que também se repetia. "Não sei", dizia eu, com uma
difícil de ser respondida de maneira sintética. Mas, nesse caso, é evidente que a pergunta tinha
um sentido subliminar específico. Aos poucos, pude entender como o termo enredo representa
uma questão fundamental para aqueles que me faziam a pergunta: o fato de eu ter enredo
significava que eu teria um motivo válido para estar ali, independente da minha simples
vontade ou do acaso.
No candomblé o acaso não existe. Qualquer pessoa com noções mínimas sobre o
espaços. Dentro de um terreiro, ou uma Casa de Candomblé, como se diz na Bahia, a vontade
principal não é a dos seres humanos, e sim a dos orixás (e do Deus Supremo, Olodumare).
humanos.
Enredar, nesse caso, significa não somente envolver-se numa trama, numa história,
2
Como disse Evans-Pritchard e nunca é demais lembrar: "(...) o antropólogo deve seguir o que encontra na
sociedade que escolheu estudar: a organização social, os valores e sentimentos do povo, e assim por diante.
Posso ilustrar este ponto com meu próprio caso. Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para o país
zande, mas os Azande tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles. Não me interessava particularmente por
vacas quando fui aos Nuer, mas os Nuer, sim; e assim tive aos poucos, querendo ou não, que me tornar um
especialista em gado." (1937: 245)
3
num roteiro. Ter enredo é ter uma relação; ou melhor, um complexo de relações.
Autilização mais frequente do termo diz respeito aos laços familiares, que por sua vez
também podem ser múltiplos e diversos. Ou seja, quando alguém me dizia que eu tinha
enredo, estava querendo dizer, em última instância, que eu tinha uma relação familiar,
ancestral — fosse direta ou indireta — com algum orixá; e seria então pela vontade deste que
enredo pode dizer respeito tanto a relações entre orixás quanto a relações entre seres humanos
e ainda, muito frequentemente, entre humanos e orixás. Essas relações acontecem em planos
de existência diversos — o que, no caso dos orixás, tanto tem a ver com os orixás "gerais", as
entidades propriamente ditas, quanto com os orixás "individuais", que devem sua existência,
No plano geral, as relações entre os orixás perpassam toda a sua mitologia. No plano
individual, cada orixá feito (o santo da pessoa) pode ter diversos tipos de relação com outros
orixás, com outras pessoas e mesmo com outras entidades não humanas. Um enredo entre
dois orixás individuais, por exemplo, pode fazer com que os seus "filhos" sejam feitos no
mesmo barco. Nesse caso, a iniciação concretiza uma relação (ou enredo) que, na verdade, já
As relações entre humanos e orixás também se dão tanto no plano geral (entre uma
pessoa e um determinado orixá) quanto no plano individual (entre uma pessoa e um orixá
individual, seja seu ou de outrem). Uma pessoa pode, por exemplo, ter enredo com Oxalá e
por isso não suportar azeite de dendê. Mas pode também ter algum enredo com um Oxalá
determinado, de alguém da sua família, por exemplo, o que geralmente demandaria algum
4
respostas foram variadas: "É uma história"; "É a história da vida de uma pessoa"; "É uma
coisa de família"; "É uma ligação que você tenha"; e assim por diante. "Enredo é uma palavra
bem do candomblé", me disse Mãe Carmem (a mãe de santo do Gantois), quando lhe pedi
para definir o seu significado. "Quer dizer a história da pessoa... Mas também quer dizer as
coisas todas dela, da família dela... Quer dizer um monte de coisa, e todo mundo tem um
monte de enredos, cada um diferente do outro." "O seu enredo é o que te define como
pessoa", me disse uma filha de santo do Gantois com quem eu conversava sobre o tema; "O
seu enredo é a sua família, é o motivo que lhe leva para o candomblé", me disse outro filho de
santo.
no mito antigo das Moiras gregas, as três Parcas, em que uma é a fiandeira dos destinos, outra
mede e a terceira corta o fio da vida de cada um. O fio, equiparado a desdobramento e
que os fios se organizam mais complexamente, a começar pela teia da aranha e a rede, os
5
mais elementares dos tecidos.
"Rede" está na origem de "enredar", por sua vez a origem de "enredo". Que primeiro é
o ato ou o efeito de enredar, ou enredar-se: cair na rede, tecer uma rede, organizar uma rede.
por analogia à presa capturada pela teia de aranha, por exemplo. O substrato comum aos dois
nessa trama ou teia. Assim, o fio da narrativa vai se combinando, por uma série de laços ou
sentidos da palavra; porém, ao invés de significar somente um deles a cada vez, o termo tem
múltiplos significados ao mesmo tempo, podendo assim dar conta dessa relação que é, por si,
possíveis significados podemos começar a entender o que é (ou tudo que é) um enredo para o
candomblé de Salvador, e para entendermos o enredo é necessário pensar antes neste modelo
Enredo e caminho
Durante o mestrado, fiz pesquisa de campo numa igreja mórmon (Flaksman 2007). A
Mórmon, aquele que deseja se batizar na Igreja deve perguntar diretamente a Deus se o livro é
verdadeiro (por isso só se batizam crianças maiores de oito anos, que teoricamente teriam
condições de ler o livro e entender seu conteúdo). Caso a resposta seja positiva, aquele que
6
pretende se converter pode então ser batizado.
Os mórmons, portanto, estão em contato direto com Deus. Entretanto, para que esse
pergunta. Eles me diziam o tempo todo que um dos pilares da religião mórmon é o livre
arbítrio: "A vontade humana é suprema", me dizia o bispo da igreja que eu frequentava, "nada
está acima dela". Durante todo o tempo que frequentei a Igreja, eles me perguntavam se eu já
havia lido o livro; diante da resposta positiva, se eu já havia feito a pergunta. Eu dizia que
não, e eles nunca insistiam: essa era a minha vontade. Participei das sete etapas do
aprendizado pré-batismo (fui uma pesquisadora, como eles chamam os que estão aprendendo
sobre a Igreja), com três grupos diferentes de missionários. Embora eu soubesse que todos
pretendiam a minha conversão, em momento nenhum isso tomou uma proporção invasiva. A
vontade deles se manifestava claramente, mas sempre diziam que o meu livre arbítrio, ou seja,
a minha vontade, estava acima de tudo. Se eu não tivesse vontade de perguntar a Deus se o
bem diferente — ou seja, a vontade própria não é a força motriz da conversão, como no caso
pelo enredo. Foi assim que entendi, durante a pesquisa de campo, que não estava ali
Era isso que me diziam: que eu devia ter enredo com algum orixá, ou então algum
ancestral meu, por sua vez, tinha enredo com algum orixá, ou então algum parente meu teria
enredo com alguma entidade, e isso explicaria eu ter chegado ali. Perguntei a uma mãe de
santo se o fato de eu ter enredo me obrigaria a algum envolvimento direto com a religião.
"Não necessariamente", ela me disse. "Você pode ter enredo, mas não ter caminho na
religião." Caminho é outra palavra muito usada pelos membros do candomblé, significando a
7
necessidade efetiva de entrar para a religião e dedicar-se a uma trajetória nela. "E mesmo se
você tiver caminho, pode ser caminho só de cuidado, não de feitura. Às vezes a pessoa só
determinado em última instância, pelo enredo. Todo mundo tem enredo, mas nem todo
mundo tem caminho. Todas as pessoas têm orixá, mas nem todo orixá quer ser feito. Portanto,
qualquer um pode ser do candomblé, de direito; mas, de fato, poucos o são. Do que depende a
mesmo tempo, uma religião universal — da qual, a princípio, qualquer pessoa poderia fazer
"escolhidos", aqui, não tem o significado que costuma se associar às religiões; pois não se
trata de ser escolhido por algum líder religioso ou fazer parte de algum grupo previamente
definido, mas sim ter, na cabeça, algum orixá que queira vir à Terra, participar das
cerimônias, interagir com os humanos ― e que para isso não poupará esforços, infligindo
àqueles que os portam aflições que só terminam com a sua feitura e a observância das
obrigações posteriores.
Pode ser que, quando afirmavam conhecer o motivo oculto de minha presença,
houvesse a expectativa de uma tréplica da minha parte, pedindo mais explicações: "por quê?"
Como eu não fazia a pergunta de volta, as possibilidades permaneciam em aberto. Talvez seja
3
Segundo Serra (1978): "O ingresso na seita se representa, pois, como resposta a um chamado do orixá — um
chamado que compele. (...) Quer dizer, conforme nos explicaram: 'todo mundo tem Anjo da Guarda, mas pouca
gente nasce com este destino de fazer a cabeça; e só entra mesmo no Candomblé quem traz a missão, como um
carrego.' O termo 'carrego' indica assim uma coisa imposta, com a qual se tem que arcar. Mais cedo ou mais
tarde, a exigência que figura se revela, tal um peso a oprimir o sujeito. Pelo que alguns nos disseram, em certos
casos o carrego pode ser herdado. Mas o destino é sempre a última explicação. (...) Os adeptos deste culto
também dizem que 'no Candomblé se entra por necessidade'. Sem dúvida alguma, a feitura é considerada um
privilégio; mas não se esconde o fato de que acarreta compromissos às vezes penosos, e decorre, como se usa
ainda exprimi-lo, 'de uma precisão'. Tal necessidade ou precisão se estima determinada pelo 'dono da cabeça',
que a provoca de muitas maneiras." (1978: 370) No capítulo 4 discorrerei sobre o termo carrego e sua relação
com o enredo.
8
Sabemos que a entrada para a religião depende da vontade do orixá, mas a questão se
vontade. Como vimos, em teoria, qualquer um pode ser chamado a fazer parte do corpo de
membros de um terreiro; mas, na prática, são poucos os que entram. Quando eu perguntava
por que motivo uma determinada pessoa deveria fazer o santo, a resposta sempre tinha a ver
com questões familiares. Mãe Carmem me disse um dia: "Às vezes a pessoa chega para fazer
o santo e a gente pergunta: 'Tem algum parente seu na religião?', e ela diz, 'não'. Mas aí,
O mais fácil é reconhecer os sintomas desta vontade. Alguns sinais são inequívocos:
se a pessoa cai de santo enquanto assiste a uma festa, como vi acontecer, não há dúvidas de
que seu orixá quer ser feito e descer em seu corpo — de preferência, no mesmo terreiro onde
isso acontece pela primeira vez. Na maior parte das vezes, porém, o orixá demonstra sua
vontade por meio de aflições físicas; eu diria que cerca de oitenta por cento dos casos que
escutei começam com crises convulsivas, muitas vezes confundidas com epilepsia. Destes, a
melhor sorte é a dos que nasceram numa família cujos membros são do candomblé e,
portanto, capazes de reconhecer os sinais dados pelo orixá. Os que não pertencem a uma
família de iniciados, ou são pessoas que, pelo motivo que for, preferem manter distância do
candomblé, não têm a mesma sorte. Muitos se tratam para epilepsia por anos a fio, tomando
anticonvulsivantes, até encontrarem alguém que os encaminhe ao pai ou à mãe de santo que,
algum terreiro está seguindo alguma designação cuja competência lhe foge. "O candomblé é
para todo mundo mas nem todo mundo é para o candomblé", me disse uma filha de santo do
desígnio dos orixás, fora do alcance dos humanos comuns — pode ser chamado a fazer parte
9
da religião. Se toda pessoa tem orixá ("Até os japoneses", como me disse Mãe Carmem) e
todo orixá pode querer ser feito, qualquer pesquisador que chegue num terreiro pode ter que
diferença estabelecida a priori entre o pesquisador e aqueles que ele pesquisa, no caso do
candomblé isso (e tudo o mais, como veremos ao longo deste trabalho) só pode ser definido a
posteriori.
Antes de começar a pesquisa, decidi que não entraria para a religião, mas tinha receio
de que isto se tornasse um problema. Sabendo que a maioria dos antropólogos que estuda
religiões de matriz africana acaba desenvolvendo um laço de pertencimento com o grupo que
pesquisa, e escutando comentários nesse sentido de muitas pessoas, temi os possíveis efeitos
dessa minha decisão. Somou-se a isso a postura dos membros do Gantois em relação a mim,
por todo o período inicial da pesquisa. Ora desconfiados, ora reticentes, ora ásperos, faziam
questão de demonstrar que não viam com bons olhos minha presença ali. Os poucos que
falavam comigo me diziam que era assim mesmo: "É ciúme", me disse uma egbome (filha de
santo com as obrigações de sete anos cumpridas). "Ciúme é o mal do candomblé". "Aqui é
uma Casa muito fechada", me explicou outra. "As pessoas acham que você veio roubar os
segredos e expô-los para o mundo". De fato, o Gantois não abrigava pesquisador algum há
mais de setenta anos — a última pesquisa realizada na casa foi a de Ruth Landes, entre 1937 e
1938 (Landes 1947). Ao contrário de outros terreiros mais conhecidos de Salvador, como o
Ilê Axé Opô Afonjá e a Casa Branca, que guardam a fama de serem receptivos aos estudiosos
lugar 'fechado'.
estiveram no Gantois. A primeira me foi contada por Mãe Carmem. Segundo ela, certo dia
apareceu por lá um antropólogo francês querendo falar com ela. "Tinha uma fila de gente que
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tinha marcado comigo, me esperando. Eu não ia passar ele na frente de ninguém. Ele aparece
aqui, sem marcar, sem falar com ninguém, e acha que só porque é antropólogo — e francês!
— eu vou dar preferência? Me deixe, viu? Aí ele ficou o dia todo aí me esperando, quando
anoiteceu foi embora, sem nem falar com ninguém. Depois eu soube que ele falou mal de
Algum tempo depois da minha chegada, fui assistir um axexê (rito funerário) na Casa
de Oxumarê (um terreiro queto de Salvador), com um filho de santo do Ilê Axé Opô Afonjá.
E fui vista por algumas egbomes do Gantois, que lá estavam representando a Casa (o axexê
era pelos vinte e um anos de falecida da antiga mãe de santo do Oxumarê). Fui cumprimentá-
las e elas me olharam de maneira estranha. "O que você está fazendo aqui?", me perguntou
uma delas. "Estou fazendo minha pesquisa", respondi. "Aqui não é lugar para abiã não!", ela
No dia seguinte eu soube que a notícia havia se espalhado, e que diversas egbomes do
Gantois estavam chocadas com a minha atitude, de ter ido a um ritual tão fechado e — ainda
por cima — em outra casa. A fofoca se espalhou.5 Na semana seguinte, por detrás de uma
porta, escutei uma conversa. "Ela não quer fazer o santo, só está aqui para pesquisar!", falava
uma abiã (pessoa que frequenta o terreiro mas ainda não foi iniciada) da Casa para uma
egbome. Demorei a entender que era de mim que falavam. Afastei-me e depois de um tempo
fui conversar com a abiã que me defendera. Ela então me explicou que a maioria dos filhos de
santo da Casa desconfiava de mim porque pensavam que eu viera até o Gantois, na verdade,
4
É curioso comparar o ponto de vista de Mãe Carmem com o relato de Sansi-Roca (2003:232) sobre sua
tentativa de encontrar Mãe Stella. Ele, que também fez pesquisa de campo em Salvador, afirma que tentou se
encontrar com Mãe Stella durante um ano e nunca conseguiu. Nas palavras dele: "Esse era exatamente o ponto,
eu entendi. A inacessibilidade. A distância. A falta de interesse. Tudo era uma forma de comunicação. Eles
estavam me dizendo: 'Nós somos muito importantes, nós somos ocupados. não temos tempo para você'."
5
É importante ressaltar que a fofoca, que é algo muito importante e presente no candomblé de Salvador, não
deve ser confundida com o enredo. Usa-se muito o termo resenha para se referir à fofoca: "Estamos aqui só na
resenha"; ou "Vem aqui para a gente fazer a resenha de ontem". Embora o enredo seja também uma narrativa,
nunca se atribui a ele o tom jocoso atribuído à resenha ou ao ejó, a palavra em iorubá que designa a fofoca.
11
para fazer o santo, usando a pesquisa como uma desculpa para "furar a fila", passar na frente
dos outros abiãs que já vinham esperando — alguns há vários anos — para ter o seu santo
feito.
Gantois nos últimos tempos. Segundo me contou uma filha de santo da Casa, ele fora para lá a
fim de pesquisar os sonhos no candomblé. Fez entrevistas com diversos filhos de santo do
terreiro, e quando já estava lá há algum tempo foi assentar o seu santo. O resto da história me
foi contado em fragmentos, por diversas pessoas: segundo algumas, logo que ele saiu do
recolhimento descobriram que era só isso que ele queria, e então ele foi expulso e proibido de
usar o nome do Gantois em seu trabalho. Segundo outros, ele questionou o processo de
assentamento, alegando saber mais que a própria mãe de santo, e por isso foi expulso. Uma
filha de santo me contou: "Ele fingiu que queria fazer esse negócio de antropologia, mas na
verdade queria mesmo era fazer santo. Aí botaram ele para fora." O fato é que ele foi
Comecei então a falar abertamente, para qualquer um que tocasse no assunto comigo,
que eu não tinha a intenção de fazer o santo; que, apesar de eu usar saia e muitas vezes ficar
no mesmo lugar dos abiãs (o lugar dos não-feitos) eu não era um deles. Vários me olhavam
desconfiados, mas depois de algum tempo comecei a perceber que me tratavam de maneira
mais cordial. Entendi então que o fato de eu mostrar uma deliberação clara de não fazer o
santo contava, na verdade, a meu favor. Eu não tinha nenhuma intenção oculta, estava
realmente fazendo o que me propusera. Mas ao longo da pesquisa, que durou dois anos, as
coisas começaram a mudar e, como eu temia, a questão de eu não estar disposta a fazer o
Concluí que o fato de eu não me mostrar interessada, no fim das contas, acabaria por
comprovar que, em última instância, a vontade em jogo não era a minha, e sim a dos orixás.
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Indo mais longe, eu diria que poderíamos interpretar que a vontade dos orixás seria, sim, que
o tema desta tese fosse o enredo; seja feita, portanto, a vontade deles.
O trabalho de campo
religião mórmon. Mais do que isso, porém, pensava em fazer o meu trabalho de campo num
Essa escolha não se deu de forma aleatória: desde que comecei a ler alguns trabalhos
mais recentes sobre candomblé ou qualquer outra vertente das religiões de matriz africana no
Brasil, percebi que a maioria deles tratava, em geral, de casas de culto menores. De alguma
forma, os terreiros menores pareciam um terreno mais fértil para uma boa etnografia.
Embora cada Casa de candomblé tenha suas particularidades, começando pela sua
"nação", termo que se discutirá mais adiante, e passando pelas entidades que cultua e pelo seu
estilo ritual, entre outros aspectos (como bem definiu Barbosa Neto [2012], "cada casa é um
caso"), creio que o alcance das observações feitas em qualquer terreiro de Salvador é mais
amplo do que a sua singularidade parece sugerir. O candomblé baiano, de maneira geral, é
atravessado por linhas de força comuns a todas as Casas, mas não necessariamente
desenvolvidas da mesma maneira em todas elas. Assim, poder-se-ia dizer que cada terreiro
seria uma determinada atualização destas linhas de força, o que faz com que todas estas Casas
tenham, apesar de suas profundas diferenças, alguns aspectos comuns. Por que, então, não
"pequeno" ou "marginal"?
13
numa das "grandes casas" de candomblé queto (ketu) de Salvador. "Grandes casas" é o termo
que se usa, na Bahia, para se referir às casas de candomblé mais antigas e tradicionais da
cidade, entre as quais a Casa Branca, primeira de todas as casas de candomblé queto do Brasil
e origem das duas outras que compõem o circuito, o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá. É
estimado que cada um desses terreiros conte com mais de mil filhos de santo, entre adoxus,
ogãs, equedes e filhos de santo de santo assentado.6 Ainda que hoje em dia haja muitas outras
casas de candomblé queto tão grandes quanto essas três (como o Pilão de Prata, por exemplo,
ou o Alaketu, que inclusive vem reivindicando o título de terreiro mais antigo do Brasil),
persiste, entre quase todos com quem conversei, a ideia de que o axé7 de todos os outros
terreiros vem desse primeiro assentamento queto do Brasil, dividido entre as três casas que
mencionei.
filhos de santo de lá e achava que através deles conseguiria uma inserção na casa. Além disso,
não existe quase nenhum trabalho publicado sobre esse terreiro, salvo o estudo etnográfico de
Ruth Landes, Cidade das Mulheres, lançado primeiramente em 1947, e os escritos de Nina
Rodrigues (1900), datados do início do século XX, e de seu discípulo Arthur Ramos —
embora o terreiro seja especialmente conhecido por causa de Mãe Menininha, sua ialorixá
6
Chama-se adoxu o filho de santo cuja cabeça foi preparada para receber o orixá (que pode manifestar-se ou
não); ogãs e equedes são os filhos e filhas de santo que não recebem os orixás e que cumprem papéis diversos
dentro de um terreiro (de modo geral, os ogãs cuidam da parte social e as equedes são encarregadas de cuidar
dos orixás); e os filhos de santo de santo assentado são aqueles que só assentaram o santo, cumprindo uma
obrigação que dura normalmente uma semana (nos outros casos, a feitura se estende por cerca de três semanas).
O assentamento pode ser uma obrigação definitiva (caso por exemplo dos tocadores de atabaque, os alabês) ou
temporária: há casos em que pessoas sujeitas a transes muito violentos antes da feitura precisam assentar o santo
em caráter emergencial, enquanto esperam a hora de fazê-lo).
7
Axé é uma palavra de múltiplos sentidos. É utilizada tanto para designar a força sagrada das pessoas e das
coisas, quanto como interjeição para evocá-la, fortalecendo algo que foi dito (da mesma forma que o amém é
pronunciado na maioria dos rituais das religiões judaico-cristãs); além disso, da forma como usei axé na frase
acima, pode se referir ao "fundamento" da Casa de Candomblé, aquilo que é enterrado no solo do terreiro, para
consagrá-lo aos orixás e torná-lo sacralizado. Chama-se axé também a parte dos animais sacrificados que é
destinada aos orixás.
14
Assim, logo que cheguei em Salvador (em março de 2010), comecei a tentar agendar
um encontro com Mãe Carmem, filha mais nova de Mãe Menininha e atual ialorixá do
Gantois. Durante um mês, liguei quase diariamente para uma iarobá8 da casa que eu conhecia
do Rio de Janeiro. Ela sempre me dizia que ainda não havia conseguido marcar um encontro
meu com Mãe Carmem, mas que tentaria de novo no dia seguinte. Finalmente, já no meio de
abril, recebi um telefonema dela me convidando para a festa que haveria no Gantois em
homenagem ao Dia da Mulher. Chegando lá, fui muito bem recebida por Mãe Carmem mas,
ao dizer que gostaria de realizar uma pesquisa no terreiro, ela imediatamente desconversou.
Na semana seguinte, voltei a telefonar para a minha conhecida. Ela me garantiu que
tinha explicado tudo para Mãe Carmem, que me receberia dali a oito dias, na terça-feira
seguinte. Na segunda-feira, ela me ligou desmarcando, porque Mãe Carmem estava doente. A
iarobá então me deu o telefone de Mãe Carmem, para que eu ligasse diretamente para ela e
Entre essa terça-feira e o dia em que consegui ser afinal recebida por Mãe Carmem,
passaram-se três semanas. Quando cheguei finalmente ao Gantois e me sentei diante de Mãe
Carmem, na mesa em que ela atende os que vão lá para consultas, ela me disse: "Então, minha
filha, qual é o seu problema?" Quando eu respondi que queria a autorização dela para
pesquisar na Casa, ela levou um susto e me disse que tinha passado por situações
desagradáveis com outros antropólogos, e que a princípio não queria ninguém pesquisando lá
dentro. De qualquer maneira, iria avaliar melhor o meu pedido. Começou então a falar das
aulas que eram oferecidas às crianças do entorno do Gantois: inglês, bordado, teatro, e me
perguntou: "Você não pode dar aula de nada, não?" Respondi que sim, e ela então mandou
que me dessem o telefone da pessoa responsável pelos cursos. "Ligue para ela e combine",
8
Iarobá, no Gantois, é termo equivalente a equede, que como vimos é a filha de santo que não recebe mas
responde pelo cuidado dos orixás.
15
Mãe Carmem me falou.
que aconteceria dali a duas semanas, dizendo que era para eu ir almoçar lá no dia da festa. E
Comecei a telefonar diariamente para a pessoa responsável pelos cursos, uma egbome
do terreiro, que rapidamente me convocou para dar aulas de inglês junto com os voluntários
aulas de inglês para as crianças, toda segunda e quarta. Paralelamente a isso, a egbome com
cursos no CEAO) passou a ser "responsável" por intermediar meus contatos com Mãe
Carmem.
Pouco tempo depois, ela me disse que Mãe Carmem tinha aprovado o meu pedido,
mas que eu precisaria passar pelo crivo do Conselho do Gantois. Para tanto, eu
precisavaescrever uma carta para os membros desse conselho, que então autorizariam ou não
9
Centro de Estudos Afro Orientais, um centro de pesquisa e cursos de pós-graduação vinculado à Universidade
Federal da Bahia.
10
Maié é a pessoa do terreiro responsável pelas coisas de Oxum. No caso do Gantois, esse cargo tem
importância redobrada, porque toma conta da Oxum de Mãe Menininha.
11
Como pode ser lido na carta a seguir, me comprometi a não tornar público o conteúdo desta tese antes de sua
aprovação pela Associação Civil do terreiro. Por isso, ao menos até que ela seja oficialmente aprovada por seus
representantes, ela permanecerá depositada somente para consulta restrita (condicionada à minha aprovação) na
biblioteca do PPGAS/MN.
16
Ao Conselho do Ilê Iyá Omi Axé Iyamasé – Terreiro do Gantois
Entreguei a carta nas mãos de Mãe Angela, filha de Mãe Carmem e iaquequerê (mãe
pequena12) da Casa, que me prometeu uma resposta para logo depois da festa de Oxóssi,
algum tempo uma egbome da Casa me viu e me convidou para entrar pelo portão de trás do
12
Mãe pequena é a filha de santo logo atrás da ialorixá na hierarquia do terreiro. Responde, geralmente, pelos
afazeres cotidianos da Casa.
17
terreiro.
Oxóssi é o patrono da Casa. Normalmente, é também a festa mais cheia: muitos filhos de
santo que moram fora vêm a Salvador especialmente para essa data. Quando cheguei para o
como eles chamam — e a "porta de trás", na verdade um pequeno portão lateral reservado aos
"de casa". A entrada social dá direto no salão do terreiro, onde acontecem as festas. Pelas
regras locais, quem vem ao Gantois deve sair sempre pela mesma porta por que entrou; assim,
se, durante uma festa, a pessoa chega direto pela entrada social, mesmo sendo de casa, mas
depois quer ficar mais um pouco, antes precisa sair pela porta grande do salão e entrar dessa
vez pela porta de trás, para depois poder sair por ela.
Logo ao lado da porta de trás há uma lata pintada de branco cheia de água, na qual
flutua uma caneca de plástico. Quem entra por ali precisa pegar a caneca, enchê-la de água,
passá-la por cima da cabeça num movimento circular e jogar seu conteúdo em três direções:
para a frente e para os dois lados. Só depois disso é que podeser admitido na parte "íntima" do
terreiro.
Assim que entrei, tive a impressão de que o terreiro era outro lugar. Muita gente
circulava, cuidando dos diversos afazeres que precedem a festa. Algumas pessoas arrumavam
suas roupas de festa; outras, ainda de "roupa de ração"13, passavam carregando suas coisas em
uma porta e uma janela. Homens passaram carregando pesadas bacias cheias de carne, que
foram guardadas no freezer da varanda. Outro homem recolhia o lixo, duas senhoras varriam
13
"Roupa de ração" é a roupa usada no dia a dia do terreiro, diferente das roupas usadas nas festas. Geralmente
compõe-se de calça e blusa branca (para os homens) e camiseta e saia de candomblé (para as mulheres).
18
o chão.
Na ponta da varanda, sentada a uma mesa colocada diante de uma porta e ao lado de
um canteiro onde está assentado Obalufã14, sentava-se Mãe Carmem. À sua volta havia um
pequeno aglomerado de pessoas abaixadas, formando uma fila — entendi depois que
veio uma outra egbome e me advertiu: "Você não deve falar com ninguém antes da mãe de
santo. Sempre que você entrar no terreiro, primeiro precisa falar com ela. Quem é feito
primeiro salva (saúda) a Casa e os orixás, mas você, que não é, tem que salvar a mãe de santo
antes de falar com qualquer pessoa. Se alguém falar com você, não responda, passe reto e vá
diretamente para a fila de cumprimentos." Fui então para a fila, e me postei em pé ao lado de
quem julguei ser a última pessoa à espera. "Se abaixa", me falou uma egbome que passava.
"Só uma egbome pode ficar em pé perto da mãe de santo." Me abaixei, e enquanto esperava vi
várias pessoas entrando na fila à minha frente. "É a regra de senioridade" — me explicou
depois uma filha de santo — "quem é feito há mais tempo pode passar na frente de quem tem
menos tempo de santo. Você, então, que não é feita, vai ser sempre a última em tudo!", ela
disse, rindo.
Com o tempo, isso me pareceu natural, mas naquele momento estranhei a rigidez
daquelas regras: Como assim? Eu não podia cumprimentar ninguém conhecido na chegada? E
ainda precisava ficar meia hora agachada numa fila para poder cumprimentar a mãe de santo?
Ocorre-me a ótima definição de Malinowski no caso dos trobriandeses, citação que se aplica
14
Um orixá da família de Oxalá que não vem à Terra, mas que está assentado no Gantois.
15
A hierarquia do candomblé é rígida e bem definida: em tudo o que é feito, o critério de preferência é a
senioridade no santo: quanto mais tempo de feita a pessoa tiver, mais alta será sua posição na hierarquia.
Aposição mais baixa é a de abiã, a quem normalmente se delegam os serviços não sagrados: lavar o chão,
19
Estamos hoje muito longe da afirmação feita há muitos anos por uma célebre
autoridade que, ao responder uma pergunta sobre as maneiras e os costumes dos
nativos, afirmou: 'Nenhum costume, maneiras horríveis'. Bem diversa é a posição do
etnógrafo moderno que (...) apresenta-nos um nativo sujeito a um código de
comportamento e de boas maneiras tão rigoroso que, em comparação, a vida nas
cortes de Versalhes e do Escorial parece bastante informal. (Malinowski 1976: 29)
Depois do almoço, a Casa ficou mais calma: a maioria das pessoas foi descansar, já
que pouco se dorme em dia de festa (todos os filhos de santo do Gantois devem dormir na
Casa na véspera de qualquer obrigação). Quem não mora perto vai para a casa de alguém que
resida nas cercanias, ou então estende a sua esteira no salão. Por volta das sete horas, a Casa
decoração. Por volta de sete e meia, fui para o salão e fiquei esperando a festa começar. Havia
arrumar o salão, lavar louça e, em alguns casos, cozinhar a comida não sagrada. Uma filha de santo do Gantois
certa vez me disse que "o que define abiã, mesmo, é quem já jogou búzios com a mãe de santo e tem conta
lavada[conta é o colar de contas que as pessoas do candomblé levam no pescoço; a lavagem é um processo de
purificação, feito com um banho de ervas chamado umieró] na casa". Mas eu diria, com base nas minhas
observações, que o que define um abiã, em primeiro lugar, é o seu potencial de feitura. No entanto, há ainda
uma gama variada de pessoas que frequenta a casa de candomblé sem ocupar propriamente uma posição clara na
hierarquia, pois não mantêm necessariamente relações mais sérias com o terreiro (embora qualquer um possa vir
a tê-las). Os primeiros deles, sem a menor dúvida, são os clientes. Acima dos abiãs vêm os frequentadores feitos,
diferenciados entre os que recebem e os que não recebem o santo. Além disso, no terreiro a hierarquia também
se estende à plateia. No fundo do salão, certas cadeiras são reservadas para as visitas mais "nobres". Outros pais
e mães de santo que venham ao terreiro, por exemplo, são sempre acomodados nessas cadeiras. E em todos os
terreiros que visitei observei a mesma dinâmica: quando chega uma visita especial, os tocadores de atabaque
dobram o rum, ou seja, fazem uma pausa seguida por um toque de reverência. Halloy (2005) diz que, no Xangô
do Recife, "a realidade é bem mais complexa e flexível que no discurso oficial". No Gantois, contudo, as regras
são seguidas com rigor. Quando a mãe de santo passa, todos se abaixam prestando-lhe reverência; a bênção tem
regras tão complexas que me custaram algum tempo de aprendizado. A hierarquia deve ser respeitada inclusive
pelos santos: um orixá mais novo, quando vai cumprimentar um orixá mais antigo, se dobra sobre um dos
joelhos; quando vai salvar uma equede, idem. Quando o orixá da mãe de santo dança, todos devem se ajoelhar.
Quando os tambores tocam para o orixá da pessoa, ela precisa pedir a bênção da mãe de santo. Todos os outros
filhos de santo precisam pedir a bênção a ela, que abençoa a todos em resposta.
Essa rigidez hierárquica comprova, ao menos em parte, o princípio de corte de que fala Bastide (1971),
termo usado por ele para definir a diferença entre a vida que os filhos de santo levam dentro e fora do
candomblé. "É igual polícia", me disse uma filha de santo. "Com a roupa tem muito poder, sem a roupa é igual a
todo mundo". No caso de Bastide, ele estendia esse princípio a toda a vida da pessoa; no Gantois, ouvi muitas
vezes menções a essa 'vida dupla' com relação ao poder. Inúmeras vezes ouvi Mãe Carmem repetir que ali dentro
não importavao que a pessoa fosse do lado de fora; na vida interna do terreiro, o que contava era só sua gradação
no santo e a dedicação a ele e aos outros orixás.
20
tanta gente que no xirê16 formaram-se duas rodas, uma dentro da outra.
Percebi uma agitação que me pareceu incomum durante a festa, mas quando a
cerimônia terminou a porta que leva à parte interna do terreiro ficou fechada, e acabei indo
embora. Depois de alguns meses soube que houvera uma grande confusão nesse dia: Mãe
Carmem começou a se sentir mal, e todos os orixás chegaram para procurar o que estaria
causando o problema. Acabaram encontrando um feitiço tão complicado que só poderia ser
desfeito por eles mesmos, e tiveram de ficar limpando a Casa até a manhã seguinte.
No dia 21 de junho, alheia a tudo isso, fui convocada para a reunião da Associação
Quando cheguei ao terreiro, na hora marcada para a reunião, havia poucas pessoas no
salão: a egbome com quem eu vinha me comunicando (que acertara minha participação no
curso de inglês) e uma outra senhora estavam sentadas à mesa, arrumando uns papéis, e
Simone, que morava então no terreiro, varria o chão. Sentei-me num banco ao lado da mesa e
ficamos esperando. Logo chegaram os outros membros da associação civil, incluindo Mãe
Logo que Mãe Angela chegou, todos os presentes se enfileiraram para pedir-lhe a
bênção17. Depois sentamos todos na mesa, eu à sua esquerda. Ela começou a reunião expondo
o meu caso; depois de me pedir para ler em voz alta a carta que havia escrito, pediu que todos
Depois de algum tempo, todos disseram que concordavam com minha presença lá.
16
O xirê é a série de cantigas que abre todas as festas de candomblé. Nele, são louvados todos os orixás da Casa,
e todas as filhas de santo dançam formando uma roda.
17
O pedido de bênção, no candomblé, é feito com um gestual específico: os filhos de orixás masculinos se
ajoelham no chão e esticam as pernas para trás, estendendo-se no chão, depois se ajoelham de novo e tocam a
cabeça no chão (um dobale); os filhos de orixás femininos estendem-se no chão e encostam a cabeça nas mãos
postas uma sobre a outra, primeiro do lado esquerdo, depois do lado direito (um icá); e os filhos de orixás
femininos e masculinos ao mesmo tempo (os metá-metá — no Gantois, só Logum Edé ocupa essa categoria)
fazem um misto de ambos. Os que não são feitos ajoelham-se e encostam a cabeça no chão, unindo depois as
mãos num pedido de bênção (o que é conhecido como bater cabeça).
21
A primeira pergunta foi feita por ela mesma: "Por que você quer pesquisar no
Gantois?" "Não sei", respondi. Uma senhora que estava sentada na cabeceira da mesa falou:
"Mas nós sabemos". Fiquei calada, e então Mãe Angela disse: "Acho que a Clara ainda quer
dizer mais alguma coisa". Falei então um pouco sobre o meu percurso, e terminei dizendo que
realmente não sabia explicar direito o porquê da minha escolha. Ela então repetiu: "Mas nós
sabemos". Olhei para ela espantada e ela continuou: "Você não precisa explicar. A gente já
Virando cupim
relato aqui muitos eventos passados em outros terreiros, envolvendo membros de outras casas.
Esse caminho me surgiu naturalmente, no decorrer da pesquisa, e acabou por modificar o seu
andamento.
pela antropóloga Miriam Rabelo na UFBA. Os encontros aconteciam sempre nas tardes de
Miriam me falou de Fábio Lima. Ele fora seu orientando no mestrado da UFBA, e ela
participaria da banca de sua defesa de tese de doutorado no mês seguinte. "Ele é muito
acolhedor", ela me disse, "e acho que pode ajudar bastante com a sua pesquisa".
No dia marcado, fui assistir sua defesa, que aconteceu numa sala lotada na sede do
CEAO (Centro de Estudos Afro Orientais), no Largo Dois de Julho, uma travessa da Avenida
Sete de Setembro, no centro da cidade. Havia muitas pessoas do Movimento Negro da Bahia
22
e também muitas pessoas do candomblé, algumas das quais eu viria a conhecer mais tarde.
Fábio vestia uma bata africana vermelha, com muitas contas. Eu estava acostumada a ver as
pessoas usarem as suas contas para dentro da camisa, prática recomendada no Gantois. Além
disso, a postura de Fábio logo me chamou a atenção: ele é alto, forte e tem uma voz marcante.
"Eu sou de Xangô, minha filha", ele me disse algum tempo depois, quando comentei com ele
sobre o impacto que a sua figura me causara da primeira vez que o vi. "Xangô é o rei!", ele
completou.
baiana, como Júlio Braga, antropólogo e pai de santo, cujo terreiro eu acabaria por conhecer;
Angela Lühnning, etnomusicóloga, Jeferson Bacelar e Jocélio Telles dos Santos, o seu
orientador. Júlio Braga foi o último a falar e, quando terminou sua arguição, incitou Fábio a
cantar cantigas de candomblé, que depois eu saberia serem para Xangô, sendo acompanhado
A tese de Fábio discorre sobre as doenças mentais no mundo das religiões de matriz
africana. Segundo ele, muita gente procura o candomblé em busca de tratamento para suas
aflições, entendidas como manifestações do santo que deseja ser feito. O tratamento do
candomblé, ele me explicou, é uma forma alternativa de cuidado, tão eficaz quanto remédios
Posteriormente, Fábio me explicou que seu trabalho de campo tinha sido muito difícil.
Ele é filho de santo de Mãe Stella de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá, tendo assentado o seu
santo — Xangô Ogodô— uns cinco anos atrás, embora já frequentasse o terreiro desde muito
antes. Entretanto, seguindo os conselhos de seu orientador, fez sua pesquisa em outro terreiro.
Buscando um lugar onde não fosse conhecido, chegou em um terreiro pequeno, localizado em
um subúrbio de Salvador.
Fábio sempre me disse que Mãe Stella é sua verdadeira mãe, que ao vê-la pela
primeira vez ele pressentiu que eles viriam a ter uma relação especial. "Mas ela sabe que eu
circulo", ele me disse. E a "circulação" é uma prática um tanto malvista por muitos pais e
muitas mães de santo, entre eles Mãe Carmem — que sempre orienta os filhos de santo do
Gantois a não frequentarem outras Casas. Na introdução de sua tese, Fábio conta que, a partir
pessoais tratadas pelos métodos do candomblé. Além disso, sua condição de antropólogo,
militante do movimento negro e filho de santo — pois Fábio ocupa, atualmente, uma posição
de virtual porta-voz do candomblé em Salvador, sempre solicitado para dar sua opinião sobre
Quando a defesa terminou e o resultado foi divulgado, fui falar com Fábio. Ele estava
muito feliz, e me convidou para comer um caruru em sua casa. Na época eu vinha dando aulas
de inglês no Gantois e já estava atrasada, então só anotei seu telefone e fui embora.
24
Alguns dias depois, liguei para ele, que me convidou para ir até sua casa. Logo que
nos encontramos, ele me deu um conselho: "Você precisa conhecer os outros candomblés da
Bahia".
antropologia como ao movimento negro e ao candomblé. Foi lá que tive alguns dos encontros
mais interessantes da minha estadia em Salvador. Fábio acabou por se tornar uma pessoa
Salvador. Autoritário e "fechativo", segundo ele mesmo, é visto com ressalvas por alguns e
com verdadeira adoração por outros. Com ele fui a mais de vinte terreiros e a todas as festas
populares de Salvador. Com ele pude circular livremente por terreiros queto, jeje, angola e até
quanto mais eu entrava no "universo do candomblé", mais era convidada para outros
candomblés, e no final da pesquisa já era convidada para mais festas do que poderia
comparecer. Essa prática, porém, deu origem a dois tipos de problema: o primeiro e imediato
foi um estranhamento por parte das pessoas do Gantois. O chamado "correio nagô" é
eficiente, e a notícia da minha circulação logo se espalhou e comecei a ser falada. Um dia fui
a um congresso no Pilão de Prata, o terreiro comandado por Pai Air de Oxaguiã, na Boca do
Rio, e lá encontrei Mãe Carmem, que seria alvo de uma homenagem. No final, houve uma
sozinha, quando Mãe Néli (a filha mais nova de Mãe Carmem, iadagã18 do terreiro) me
chamou. Aproximei-me e ela falou: "Fique aqui. Você é do Gantois." Depois da apresentação,
seguimos para outro ambiente (o Pilão de Prata é um terreiro enorme), e Mãe Carmem, que
estava sentada, me chamou para conversar. Sentei-me no chão, ao seu lado, e ela me
18
Responsável pela cozinha sagrada do terreiro.
25
perguntou:
Com isso, Mãe Carmem me dizia que, se eu alguma vez "me sentisse mal", forma
usada para se referir à sensação de que o santo está prestes a chegar, eu devia ir embora. É
importante entender a lógica do pensamento de Mãe Carmem: o santo só chega quando ele
quer. E, quando chega (especialmente pela primeira vez) em uma determinada Casa, é lá que
ele quer ficar. E "ficar", nesse caso, equivale a ser feito, já que o assentamento do santo, salvo
em casos especiais (quando a pessoa tem permissão de levá-lo para casa) sempre fica no
A segunda consequência foi mais difícil de lidar. Alguns meses depois de eu começar
a "virar cupim", ou seja, frequentar outras casas de candomblé, fui vítima de uma sucessão de
pequenos acidentes domésticos: com um dia de diferença, a geladeira da minha casa, o fogão
e o meu carro deram defeito. Segundo os filhos de santo com quem conversei, esse era o
resultado das minhas andanças. Por não ser feita (ao contrário dos meus companheiros), eu
não contava com a proteção necessária para poder circular da maneira com toda aquela
desenvoltura. Assim, tive que passar por alguns rituais de limpeza, pois eu era, segundo eles,
Método
O conselho de Fábio, para que eu circulasse por outras Casas, afinal fazia sentido. O
Gantois é conhecido como o terreiro mais "fechado" de Salvador, o que acabou alterando o
26
meu projeto de pesquisa. Meu plano inicial de pesquisa não previa a realização de entrevistas.
Meu objetivo era apenas passar o maior tempo possível no terreiro, participando do maior
Mas seis meses se passaram antes que as pessoas começassem a falar comigo. Não se
tratava exatamente de antipatia pessoal, mas de uma desconfiança que parecia pautar as
relações do terreiro com todo e qualquer antropólogo. Mãe Carmem, logo no começo da
pesquisa, me contou que havia expulsado dois antropólogos que tentaram fazer pesquisa lá
antes de mim (além do caso que relatei no começo desta Introdução, houve outro antropólogo,
expulso porque tomava notas em seu caderno de campo durante as festas). E certa vez
comentou que a briga entre Mãe Menininha e Édison Carneiro, que Ruth Landes atribui
(seguindo o que o próprio Édison lhe dissera) à sua atuação como membro da Federação dos
Candomblés (Landes 1947), foi motivada, na verdade, pelo fato de ele achar que ela "tinha
que lhe dar abertura para os segredos da Casa". "O Gantois é e sempre foi uma Casa fechada",
disse-me ela. "E, se depender de mim, vai continuar sendo. Você foi a última pessoa que veio
fazer pesquisa aqui. Não vou abrir para mais ninguém. Mais ninguém!", declarou,
É curioso contrastar esse cenário com a ideia de que a legitimidade do candomblé veio
de uma espécie de "pacto" entre os praticantes e os antropólogos, como afirma Dantas (1982).
Seguindo a lógica da autora, todo terreiro deveria desejar ser objeto de estudo antropológico,
o que lhe traria mais poder na disputa pelo "mercado religioso". Pois nada poderia ser mais
distante da realidade que encontrei. Ao contrário do que parece preconizar a autora, a grande
maioria das pessoas do candomblé que conheci mostra-se extremamente desconfiada quanto
aos antropólogos, temendo que estes venham a revelar os segredos da religião. O que poderia
remeter ao "secretismo", segundo o termo criado por Johnson (2002), que define a defesa do
segredo como mais uma estratégia de poder. A meu ver, porém, pelo contrário, o que as mães
27
e pais de santo temem é a banalização do seu conhecimento. Castillo (2008) afirma que as
mães de santo são resistentes a leituras sobre religião, e observa que, na maioria dos casos,
quando aceitam ler algum estudo etnográfico, não percorrem o texto em busca das ideias do
antropólogo, e sim do que lhe teriam dito as pessoas com quem ele trabalhou. Goldman
como cavalos de santo para as mães e os pais de santo com quem conviveram, trazendo suas
palavras e ideias para quem de outro modo não teria como conhecê-las.
confiança dos membros do Gantois. Ao longo do tempo, fui percebendo que era mais fácil
conversar sobre questões de candomblé fora do terreiro, e passei a frequentar suas residências.
Aos poucos, fui ganhando intimidade com as famílias do terreiro que qualifico de
específico. Na maioria das vezes eu me deixava levar pelas reminiscências dos entrevistados,
e não raro outras pessoas da família vinham participar e contar também sua versão dos fatos.
Meu único papel era conduzir o relato, fazendo as perguntas que me pareciam cabíveis.
chamavam alguém que passava para confirmar o que estava narrando. De maneira geral, cada
entrevista levou cerca de três horas. As histórias de vida se confundiam com a história da
Casa, e com cada história pude construir um entendimento maior das relações que envolviam
O dilema da privacidade
28
quanto de outros terreiros, percebi que o respeito às suas privacidades se constituía numa
questão difícil. Foi complicado chegar a um critério que assegure aos personagens desta tese
tanto a proteção necessária quanto a devida presença no texto. A solução que me ocorreu foi
Gantois que me deram entrevistas, trocando outros e suprimindo a maioria dos nomes dos
envolvidos em outros episódios que acompanhei. Na maioria dos casos, escolhi não
muitas pessoas, a quem não desejo nenhum tipo de exposição que possa lhes causar o menor
dos constrangimentos.
Léxico
geral em iorubá são conhecidos dos leitores da antropologia de religiões de matriz africana,e
O termo enredo, por exemplo, embora amplamente usado na língua portuguesa, assume neste
trabalho um sentido singular, dado que a proposta é justamente usá-lo como um conceito
29
Os termos africanos que uso nesta tese, em primeiro lugar, virão escritos da maneira
brasileira. Escolhi grafar axé e não ase, Oxóssi e não Osoosi, embora no Gantois a grafia
utilizada nos documentos formais seja a iorubá. Mas visto que o iorubá é uma língua tonal e
pouco conhecida fora do candomblé, pareceu-me que grafar os termos em português tornaria
sucinto acompanha o texto ao final da tese. Porém, gostaria de chamar a atenção aqui para a
insuficiência crônica de cada definição dessas.Da mesma forma como o objetivo desta tese é
entender um conceito do candomblé, o enredo, outras teses poderiam ser escritas acerca de
quase todos os termos aqui precariamente definidos. Além disso, cada termo tem relação com
outros termos, e as acepções em que são empregados, da mesma forma que as pessoas,
Plano da tese
A tese começa com uma descrição geral das condições da pesquisa de campo: como,
aos poucos, fui sendo apresentada ao que denomino universo do candomblé, no Gantois e nos
outros terreiros onde estive como visitante. Continuo com uma discussão que evoca a própria
formação deste universo: de que maneira se constituíram as relações que acabariam por
exatamente às Casas tradicionais, uma delas o Gantois. Finalizo esta primeira parte da tese
com uma apresentação do convívio diário com as entidades que compõem e fazem parte do
30
cotidiano desse universo, a partir da minha experiência no Gantois. Com isso, minha intenção
orixás, caboclos e eguns, que circulam e se fazem presentes no cotidiano das pessoas
envolvidas com o candomblé. Não tive a pretensão de fazer uma revisão bibliográfica sobre o
foram concebidas a partir da minha relação com este universo, e todos os autores citados
pelas ligações entre seus escritos e a minha própria vivência de campo. Li os livros de Nina
Rodrigues, por exemplo, procurando narrativas de suas experiências no Gantois para poder
compará-las com as que eu mesma tive, e não para situá-lo como o médico que primeiro
possessão na mentalidade atrasada da população negra. Da mesma maneira com Artur Ramos,
Édison Carneiro e Ruth Landes, só para citar alguns exemplos. Esta tese, portanto, tem caráter
durante a minha pesquisa de campo. O objetivo desta tese, portanto, não é apresentar uma
discussão acerca do que se escreveu no Brasil sobre o candomblé (para isso, ver Banaggia
2008), e sim pôr em diálogo uma pequena parte desta bibliografia com o que vivenciei
durante a minha pesquisa. Da mesma forma, não me estendo em descrições sobre as roupas,
estudos sobre candomblé (ver Goldman 1984, Cossard 1970, Halloy 2005, Lépine 1978).
A segunda parte da tese trata do termo enredo e se divide em três capítulos, cada qual
relacionado a uma de suas possíveis acepções: na primeira parte, sobre as famílias, "enredo"
aparece no sentido de narrativa: são histórias contadas pelas personagens que, com isso,
questões familiares. Pois o enredo é todo e parte ao mesmo tempo: completo em si, ele se
31
entrelaça a outros enredos e se torna parte de um enredo geral, que se completa a cada
associam, expandindo a cada vez o enredo total. Cada enredo é completo em si, mas o enredo
num momento para descompletar-se logo depois. E o enredo está geralmente ligado a uma
relação que, ainda que em última instância, é sempre de parentesco. Essa relação pode ocorrer
de diversas maneiras, e na primeira parte analiso três modelos de transmissão dessa herança
caracterizado por sua tradição de transmissão hereditária dos santos. O segundo é o da família
Cajazeira, uma das mais antigas que habitam o compound que se formou ao redor do terreiro.
E o terceiro é o da família de Maria Felipa de Ogum, uma família regida por Ogum, que
aparece em todas as gerações. Através destes relatos, este capítulo trata diretamente do
sendo construída. Cada novo elemento que surge, cada novo enredo, acopla-se aos demais,
formando uma totalidade momentânea. Cada enredo é a um tempo todo (por ser completo em
si) e parte (pois cada um é sempre parte de um enredo maior, que por sua vez nunca se
característico do candomblé, onde ter enredo equivale até certo ponto a ser um pouco a
coisa, a entidade ou a pessoa com quem cada um se relaciona. Uma pessoa que tem enredo
com Oxum é em parte Oxum, ou uma parte de Oxum; uma Oxum que tenha enredo com
Oxóssi é em parte Oxóssi, e assim por diante. Ter enredo é possuir uma relação de
32
parentesco, é carregar consigo um pouco do outro. Este capítulo se baseia em minhas
experiências no Gantois, mas aqui já surgem enredos a que tive acesso em outros lugares.
candomblé funciona por vezes como uma teia em que a pessoa se enreda, e não consegue
mais se soltar. Aproximar-se, muitas vezes, é enredar-se. Nesse sentido, poderíamos pensar
no candomblé como uma "máquina de captura", com os terreiros exercendo uma força
centrípeta destinada à captura do axé. Partindo desta ideia, analiso o potencial do enredo
como uma força de captura, e como a ideia de captura seria coerente com a noção de pessoa
apresentada no capítulo anterior. Neste capítulo, relato casos ocorridos fora do Gantois, em
outras Casas. O primeiro deles é uma tentativa de enredamento que testemunhei. O segundo é
um caso de enfeitiçamento tratado no terreiro de uma filha de santo do Gantois que tive a
oportunidade de acompanhar.
33
Capítulo 1:
Cheguei à Bahia no mês de março do ano mais chuvoso das últimas quatro décadas.
Até então, eu só conhecia Salvador no verão, com o céu azul, a brisa e a animação
carnavalesca que tomam conta da cidade de janeiro a março. Aluguei um apartamento no Rio
minutos. Posteriormente, aluguei, junto com alguns filhos de santo, uma casinha nas
34
proximidades do terreiro, para facilitar a estadia durante o período de obrigações e festas. Lá
Logo depois da Semana Santa, começou a chover. "Aqui chove da Semana Santa até o
Sete de Setembro", me disseram. Da casa onde eu estava, no Rio Vermelho, eu via o trânsito
a fio para chegar ao trabalho. Às cinco da tarde, recomeçavam as buzinas dos carros. À noite,
a cidade parecia deserta. As ruas ficavam vazias e escuras. Só havia ônibus até às dez da
comparação com o fenômeno climático indiano se refletia também no trânsito, citado o tempo
todo pelos moradores como um problema crônico. "Salvador virou cidade grande, não é mais
a fazenda", me disse uma amiga, filha de santo do Gantois. "A única coisa que ainda tem de
fazenda é que todo mundo dorme cedo e acorda cedo. Mas de resto é uma cidade grande."
urbana soma, de acordo com o censo de 2012 do IBGE, cerca de dois milhões e setecentos
mil habitantes — dentre os quais 80% são negros ou pardos19. Segundo o jornal A Tarde, na
edição de 1o. de setembro de 2008, em nove anos, entre 2000 e 2008, a população
soteropolitana cresceu mais de 20%. Mas o maior crescimento se deu na década de 1990,
quando a população da cidade passou de um milhão e meio a dois milhões e meio de pessoas.
A partir daí Salvador passou a conviver com problemas típicos das grandes metrópoles:
trânsito, violência, poluição. Porém, no que diz respeito ao candomblé, a expansão urbana de
Salvador ocorreu de maneira muito diferente do Rio de Janeiro, por exemplo. A Bahia é,
também, o estado mais negro do Brasil — estima-se que o percentual de pessoas que se
declaram negras chegue a 85% de sua população. É a "Roma Negra", como é conhecida,
alcunha que lhe foi dada por Mãe Aninha, a célebre mãe de santo fundadora do Ilê Axé Opô
19
De acordo com o Mapa da População Preta e Parda no Brasil, feito pelo IBGE em 2011, os percentuais da
população de Salvador são: 51,7% parda; 27,8% negra; 18,9% branca; 1,3% asiática e 0,3% ameríndia.
35
Afonjá. Foi em Salvador — mais precisamente no terreiro do Gantois, o mesmo onde se deu a
pesquisa que deu origem a esta tese — que Nina Rodrigues, pioneiro dos estudos sobre o
Brasil.
Alta, compreendendo toda a parte que vai do centro histórico (onde hoje está o Pelourinho)
até Itapoã; e a Cidade Baixa, abarcando desde o Comércio, onde ficava o antigo atracadouro
dos barcos, ao lado do Mercado Modelo, até Periperi, a parte da cidade que costeia a Baía de
Todos os Santos e por onde os barcos navegavam no passado até subirem o Rio Paraguaçu
rumo ao Recôncavo Baiano. Édison Carneiro escreveu, em 1948, que "os candomblés se
espalham pelas partes pobres da cidade" (1948: 55). Relatos de Salvador na mesma época
ermos e de difícil acesso.20 Entretanto, ao contrário do Rio de Janeiro, por exemplo, onde o
centro conhecida como "Pequena África", perto do Cais do Valongo, para a Baixada
Fluminense21 quando da construção das grandes avenidas (Presidente Vargas e Rio Branco) e
20
Como Bastide escreveu em O Candomblé da Bahia: "Existiam outrora candomblés em pleno centro da cidade.
Próximo à Igreja da Barroquinha, erguia-se nos fins do século XIX um santuário africano. Na periferia da
aglomeração urbana ainda hoje existem, no bairro proletário da Liberdade, em meio às casas dos operários, num
emaranhamento de ruelas, de muros, de pátios malcheirosos. Mas em geral agrupam-se longe do centro, nos
valos umbrosos, suspensos nos flancos das colinas ou entre as dunas marinhas, escondidos pelas árvores, pelos
renques de bananeiras, abrigando-se sob os coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, em Mata Escura, São
Caetano, Cidade da Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia... Cercam a
cidade com uma coroa mística, e a única solução de continuidade é representada pela faixa móvel do oceano. O
viajante que à noite erra nesses subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que se debulhando e
cedendo pouco a pouco diante da floresta, ouve por vezes subir detrás das frondes, do fundo das trevas, o
martelar surdo dos tambores sagrados, enquanto foguetes riscam os céus, desenhando neles novas estrelas."
(1958:30)
21
Embora Augras, por exemplo, suponha que os terreiros de candomblé do centro da cidade do Rio de Janeiro
"foram aos poucos misturando-se com outras tradições, em que predominava o elemento banto, dando origem à
nova variedade, a macumba urbana, já bem diferente das tradições nagô" (1983:41), eu escutei, acerca desse
assunto, opiniões bem diferentes. Além do mais, existe hoje uma rede de Casas de Candomblé que envolve
Salvador, Rio de Janeiro e até São Paulo: muitas filhas de santo circulam entre estes três estados em diferentes
períodos do ano, participando de cerimônias em terreiros "amigos". Estive em alguns terreiros no Rio de Janeiro,
depois que voltei do campo, convidada pelos meus amigos do Gantois que estavam aqui para prestigiar as festas.
36
da zona portuária durante as reformas urbanas capitaneadas pelo prefeito Pereira Passos no
início do século XX, em Salvador a cidade cresceu em volta dos terreiros, que permaneceram
terreiro de candomblé: seus calendários litúrgicos aparecem nos guias turísticos da cidade, e
há sempre turistas nas festas dos terreiros mais conhecidos (de onde vêm as famosas histórias
camarinha23). Não conheci ninguém em Salvador que não tivesse algum amigo, quando não o
próprio, membro de alguma casa de candomblé, ou que não soubesse onde ficam o Gantois ou
a Casa Branca. Embora haja, em Salvador, uma elite branca que os soteropolitanos dizem ser
"invisível", uma elite que não circula pelas ruas da cidade, não frequenta suas praias e,
possivelmente, não tem relação alguma com o candomblé, conheci muitas pessoas abastadas
que mantêm laços de amizade com as mães de santo, contribuem financeiramente para as
Mãe Stella, a ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, é colunista do jornal A Tarde, o diário
mais lido de Salvador, onde mantém uma coluna nas edições de quarta-feira; recentemente foi
eleita para a Academia de Letras da Bahia, e já lançou mais de dez livros. Há ainda outro
aspecto típico da socialidade baiana no que diz respeito aos terreiros: a relação destes com a
política. São conhecidas, por exemplo, as relações entre a família de Antônio Carlos
Magalhães e o Gantois; diz-se que ACM deu o nome Ogunjá ao bairro que inaugurou em
fazer parte de um circuito 'nobre' dos terreiros de Salvador — goze de certo respeito da parte
E, em caso de necessidade, qualquer mãe de santo de Salvador pode indicar alguma outra no Rio ou em São
Paulo, com quem tenha relações de confiança, para "cuidar" de seu filho de santo ou de um amigo. Mas todos os
terreiros a que fui, no Rio de Janeiro, estão situados na Baixada Fluminense.
22
Pierre Verger escreveu que "Na Bahia, no início do século, os terreiros dedicados aos cultos dos orixás eram
frequentemente instalados longe do centro da cidade. Com o crescimento da população e a extensão tomada
pelos novos bairros, eles progressivamente encontraram-se incluídos na zona urbana." (2002:70)
23
O lugar onde ficam recolhidos os noviços durante a feitura.
37
dos soteropolitanos, é fato que muitas pessoas do candomblé ainda sofrem preconceito. Logo
que conheci Fábio Lima, ele me disse: "Fora do circuito dos candomblés tradicionais ainda
tem muito preconceito, nos candomblés de rua, menos organizados. É nesses que você tem
que ir, nos candomblés de rua, dos travestis. O candomblé é fundamental para a vida social
dos pobres desta cidade". Segundo ele, por mais que haja esse reconhecimento do candomblé,
"junto com ele sempre vem o preconceito". Muitos outros filhos de santo que conheci
partilhavam dessa mesma visão, de uma relação ambígua do candomblé com a cidade.
migração da classe média para o candomblé (tanto em Salvador como no Rio de Janeiro, onde
fizeram suas respectivas pesquisas), devido ao que ambos chamam "modismo", não foi essa a
minha impressão. Embora muita gente possa ir às festas e mesmo jogar búzios com a mãe de
santo, ou usar uma conta de seu orixá, a feitura não é sujeita a modismos. "É muita
responsabilidade", os feitos sempre dizem. "Só faz mesmo quem tem que fazer". Segundo
Mãe Carmem, "É muito bom que a pessoa tenha amor pelo candomblé, mas isso não define
nada. Quem tem que fazer o santo tem que fazer, quem não tem, não vai fazer. E se a pessoa
acha que pode enganar os búzios, minha filha, ou os orixás... Que bobagem!" — e deu uma
risada.
ligada ao campo. Mas, embora Mãe Carmem e sua família gozem de grande estima e,
segundo elas, nunca tenham sido vítimas de nenhum constrangimento,24 é fato que, em muitos
seminário na UFBA sobre tolerância religiosa. Lá, diversos líderes se uniram para falar de
como a convivência entre eles podia e devia ser amistosa. Havia um pai de santo, um espírita,
um padre e um pastor evangélico. Não havia ninguém da Igreja Universal do Reino de Deus,
24
Segundo Santos (1995), Mãe Menininha foi a grande responsável por essa inserção do candomblé na vida
social da cidade, devido a sua capacidade de fazer alianças estratégicas com diversos setores da sociedade.
38
considerada a maior "rival" do candomblé25 (o maior templo da IURD em todo o Brasil, com
capacidade para dez mil pessoas, fica justamente em Salvador). Quando o seminário acabou,
conversei com alguns dos organizadores. Um deles, uma jovem, reclamava com os outros
sobre a terminologia usada: "A gente não precisa de tolerância não, precisa é de respeito!", ela
dizia. Depois falou um pouco sobre a perseguição que o candomblé tem sofrido por parte de
membros da IURD: "O problema é que o Bispo Macedo é de candomblé, então ele tem
fundamento... Você sabe que em todos os templos dele tem um Exu assentado, né?", ela me
perguntou. "A família dele é toda de candomblé, então ele é protegido, aí fica difícil". Outro
dos organizadores entrou na conversa e falou para os outros que achava que o tema do
racismo deveria ter sido abordado, já que "não dá para separar o preconceito com o
santo brancos e presenciei cenas de tensão racial dentro do Gantois. Muitas vezes os brancos
citavam a famosa frase de Mãe Menininha, registrada em sua biografia (Nóbrega &
Echeverria 2006): "Vocês não querem dar valor ao candomblé... o candomblé futuramente só
vai dar pra oibô [estrangeiro, pessoa de fora]. Não vai chegar pra preto." Estimo que no
Gantois, dentre os filhos de santo com frequência constante, há cerca de 70% de negros e 30%
de brancos. Alguns filhos de santo negros me disseram que se sentem "invadidos". "A gente
que conquistou isso aqui. O candomblé foi criado pelos escravos. A gente lutou muito, muito,
para conseguir ter a nossa religião. Aí de repente vem um monte de funfun26 e quer pegar tudo
o que a gente conseguiu?", me disse uma egbome antiga da Casa. Mas muitos outros
manifestavam satisfação ou indiferença ante esse aporte de pessoas brancas. "Branco, negro,
25
Para uma análise detalhada da relação entre a IURD e o candomblé em Salvador, ver Reinhardt (2007).
26
Funfun é o nome que se dá aos orixás da família de Oxalá, ou seja, da cor branca. Muitas pessoas do
candomblé usam esse termo para se referir aos brancos, sempre em tom jocoso.
39
tanto faz... A gente sabe que tem tudo a mesma origem. Mas eu entendo que eles se sentem
assim, porque foi uma conquista, né? Mas todo mundo tem que entender também que é
prestígio, e que só chega aqui quem os orixás querem que chegue, entendeu minha filha?", me
disse uma egbome, negra. Segundo Fábio Lima, "candomblé é resistência": "Você tem que
entender que aqui na Bahia os negros conseguiram um feito! E que todo o respeito que nós
temos foi conquistado a ferro e fogo. Então é como se os brancos quisessem chegar só na
parte boa da festa, sabe? E os negros então aproveitam para descontar em cima deles todo o
racismo que sofreram a vida toda, e você quer saber? Eu acho que eles têm razão."
eles, muitos28 vindos do reino destituído de Oyó, e portanto de origem nobre29, governamental
ou religiosa —30; a decadência da economia canavieira, que causou um êxodo dos senhores
posição de "escravos de ganho"— ou seja, escravos que passavam o dia nas ruas e, ao fim do
dia, deviam entregar aos seus senhores uma certa quantia em dinheiro — e que, com isso,
27
Segundo Nina Rodrigues (1900: 31): "No entanto, causas pouco estudadas, mas por vezes facilmente
presumíveis, fizeram com que em certas regiões do Novo Mundo como que predominasse sobre todos uma
modalidade fetichista especial. (...) na Bahia com a mitologia de Iorubá. (...) Dentre as causas que mais devem
ter contribuído para essa preferência, sobressaem com certeza a predominância em número e a precedência na
aquisição de riquezas ou da liberdade, deste ou daquele grupo africano especial. Assim, ou porque o número de
escravos importados de Iorubá para a Bahia fosse maior, ou porque os filhos desta nação mais cedo se
libertassem e tivessem adquirido recursos pecuniários, ou porque mais estreitas se tivessem mantido as relações
comerciais diretas da antiga província com a cidade africana de Lagos, como ainda hoje existem, ou por todas
estas causas reunidas, o que é exato é que o fetichismo africano na Bahia tem por forma principal a desta nação e
é a servida pela sua língua."
28
Mattoso (2003:30) chama a atenção para o fato de que os escravos "saem de todas as cepas sociais", e que o
tráfico tinha "um efeito esterilizante", apagando qualquer resquício de sua origem.
29
Esse fato, que poderia parecer sem importância, na verdade dá um ar de nobreza a toda essa população escrava
que chegou a partir do fim do século XVII.
30
Augras (1983) aponta a concomitância entre a derrocada de Oyó, em 1835, e o surgimento dos primeiros
terreiros de queto em Salvador, fato também citado por Moura (1995) e Costa Lima (1974).
31
Sobre isso, ver Reis (2003).
40
conseguiam, vez ou outra, acumular um valor que lhes possibilitava a compra da própria
alforria (e, em muitos casos, até mesmo a posse de escravos próprios32). O momento da
açúcar, muitos senhores de engenho mudam-se para a capital, e seus escravos passam a ser
escravos urbanos. Daí a origem das baianas de acarajé, exemplo mais duradouro e típico deste
pequeno comércio urbano de Salvador. Muitas delas, aliás, conseguem com isso acumular
dinheiro para comprar sua alforria (cf. Reis 2003). Foi o que aconteceu, por exemplo, com Iá
Nassô, Iá Kalá e Iá Detá, fundadoras da Casa Branca. Depois de comprarem suas alforrias (ou
terem suas alforrias compradas por seus "súditos", segundo versão que me foi contada,
oralmente, mas de uma vez), elas viajaram à sua cidade natal, na África, para de lá trazer seus
assentamentos de seus deuses, mas com os outros escravos também vieram os deuses deles,
ainda que sem sua representação concreta — e destes sobraria um número reduzido, se
comparado ao panteão original. Falar num "panteão original", porém, não faz sentido: na
África, espalhados por uma área grande do continente, cada um dos orixás dominava uma
região determinada, e nela estava presente na maioriadas famílias (muitas vezes junto com
outros orixás "minoritários" trazidos de outros lugares). Assim, se uma família fosse da região
próxima ao rio Osum, por exemplo, saberíamos que Oxum se manifestaria em seus membros.
32
Para uma análise deste fenômeno, ver Reis (2003: 28).
33
Verger (1987: 9), baseado em Luiz Vianna Filho, divide o tráfico de escravos entre a África e o Brasil em
quatro períodos distintos:o ciclo da Guiné, na segunda metade do século XVI; o ciclo de Angola e do Congo,
durante todo o século XVII; o ciclo da Costa da Mina, que durou até fins do século XVIII; e o último deles, o
ciclo do Golfo do Benin, que se estendeu desde 1770 até o fim do tráfico negreiro, incluindo aí muitos anos de
transporte ilegal de escravos.Segundo o autor (1987: 10): "A forte predominância dos iorubás, de seus usos e
costumes na Bahia, seria explicável pela vinda recente e maciça desse povo, e a resistência às influências
culturais de seus donos viria da presença, entre os iorubás, de numerosos prisioneiros de guerra advindos de
classe social elevada, além de sacerdotes conscientes do valor de suas instituições e firmemente ligados aos
preceitos de sua religião. A questão não é tão simples, entretanto, pois tal fenômeno não se produziu nem no Rio
de Janeiro, tampouco no resto do Brasil. Com efeito, enquanto, na Bahia, alguns fatores (...) intervieram para
dirigir o tráfico rumo a outras regiões, o segundo ciclo, aquele de Angola e Congo, prolongou-se até o final do
tráfico no restante do país."
41
Se fossem de Oyó, o orixá a manifestar-se seria Xangô, e assim por diante.34 O panteão dos
orixás só se formou no Brasil, quando, segundo Bastide por motivos sociológicos (os deuses
equivaleria a dar dinheiro para os senhores de escravos), selecionaram-se os orixás que, com
1.2: O Gantois
O primeiro registro do Gantois na literatura etnográfica, como já foi dito, foi também
o primeiro relato dito "científico" sobre os candomblés publicado no Brasil. Raimundo Nina
tornou ogã do terreiro, começou lá suas pesquisas, dedicadas a provar que o transe era uma
espécie de histeria da população negra, considerada por ele como intelectualmente inferior.
Depois dele, Artur Ramos também fez suas pesquisas no Gantois (mas, segundo Landes
descrição muito viva do terreiro — e é possível que Landes tivesse razão. Castillo (2008)
defende que o Gantois foi o terreiro preferido pelos estudiosos até a década de 1930, quando a
preferência dos pesquisadores recaiu sobre o Ilê Axé Opô Afonjá, preferência que, segundo a
34
Esta divisão regional dos orixás não é ponto pacífico entre os autores. Embora defendida por Elbein (1975) e
por Bastide (1971), não é plenamente aceita por Verger, que afirma que "O Orisá ou Vodun é preponderante em
sua região de origem. Cada uma dessas regiões é um ponto de convergência. As divindades que vieram de fora
juntam-se às que já estavam estabelecidas e aliam-se a elas" (1999: 39). Da mesma forma, Dianteill analisa essa
migração de orixás (resultante da migração de pessoas) pelos territórios africanos, chamando-a de "bricolagem
religiosa" (2002: 122) e defendendo que essa "natureza composta" (2002: 126) é uma das características
fundamentais da religião iorubá, desde antes da diáspora. Já Barber (1990), através de uma análise dos oriki, os
poemas feitos em louvor aos orixás, declamados pelas mulheres, mostra como a relação de pluralidade e as
diferentes combinações encontráveis entre os orixás e os conjuntos de orixás é coerente com esse sistema
narrativo. Segundo a autora, a natureza dinâmica dos orixás só pode ser apreendida através dos oriki, dotados de
uma forma mais fluida, semelhante à natureza destas deidades. (1990: 314) Além disto, ainda segundo Barber, os
oriki, por serem essencialmente femininos (e pessoais), circulam junto com as mulheres: "Nos cultos de orixá, as
mulheres multiplicam a diversidade de seres espirituais que são servidos em cada linhagem e na cidade como um
todo." (1990: 328).
42
O livro de Nina Rodrigues, O Animismo Fetichista dos Negros Baianos, é
originalmente em 1900, quando o Gantois ainda era dirigido por sua fundadora, Maria Júlia,
Nem sempre o terreiro é a residência do padre fetichista, que neste caso tem o
domicílio dentro da cidade. O terreiro é então um sítio, chácara ou roça, alugada ou
arrendada para a grande festa que se faz uma vez no ano. No Gantois, por exemplo, no
intervalo das festas, o terreiro é apenas guardado por alguém que lá se deixa morando.
Este terreiro do Gantois pode servir de modelo para uma ideia exata do que é um
templo fetichista na Bahia, assim como em que consiste o candomblé, a grande festa
anual. Tira ele o nome francês do antigo proprietário da chácara em que funciona, e
fica a quase meio caminho do arrabalde do Rio Vermelho. Situado no alto de uma
colina muito a prumo, o acesso, a partir da linha de bonde que passa no vale, se faz
por uma vereda sinuosa e íngreme, protegida em certa altura de degraus talhados no
solo. (...)
No Gantois, o terreiro funciona num barracão, coberto de telha, e de paredes de
taipa, que fica no centro de uma clareira ou roçado, sombreado de algumas árvores
frondosas. Toda a metade anterior da casa constitui uma grande sala de dança, sem
outro assoalho que não seja o solo nu e batido; toda a parte posterior, dividida ao meio
por um corredor, se subdivide em pequenos aposentos ou quartinhos em que os
hábitos do negro para logo se revelam. É um espécimen o quarto particular onde
trabalha a filha da mãe de terreiro e onde tenho estado por diversas vezes. Sem ordem,
ali se encontram, na mais indescritível promiscuidade, tabuleiros de cereais, frutas e
ervas, garrafas e tigelas de azeite de dendê, pratos com moquecas e outros preparados
africanos, pimentas, condimentos, etc. De encontro a uma das paredes está um armário
tosco de madeira onde se guarda roupa e às vezes comestíveis. Do lado oposto uma
mesa velha e mal asseada, tendo em cima garrafas de vinho, de azeite de dendê, copos,
cálices, pratos com comida, etc. Junto desta mesa, sentada em uma cadeira, na última
festa, a rapariga bordava uma tira de pelica vermelha com pequenos búzios brancos da
Costa. O jirau, que constitui o forro do aposento, serve ao mesmo tempo de despensa.
O último dos quartinhos, à esquerda, é o santuário, o Peji, o Jará-Orisá, a igreja
propriamente dita. É a casa-fetiche dos viajantes europeus. Para se ir ter a ele, segue-
se um outro corredor transversal mais estreito, dividido parcialmente por duas meias
43
paredes opostas, em forma de tabiques colocados um em seguida ao outro e de cada
lado do corredor, de sorte a constituir um verdadeiro ziguezague. Esta disposição tem
por fim obstar que de fora se possa acompanhar com a vista a pessoa que entra, ao
mesmo tempo que fica assim disfarçada a única porta de entrada do santuário. É este
um quarto escuro e sem janelas. De dia, reina ali uma claridade duvidosa que parece
provir de alguma telha de vidro, encoberta pelo forro de pano branco, pouco espesso e
ordinário, que serve de dossel a todo o quarto. De noite ilumina-o fraca luz de
lamparina de querosene e por vezes algumas velas. Por ocasião de candomblés como
sempre o tenho visto, a parede do fundo fica ocupada por um grande leito de vinhático
de casal, sobre o qual existe grande quantidade de vestes. As outras três paredes ficam
cobertas de adornos e vestimentas de santos, de cores e formas variadíssimas, desde a
seda e o veludo custoso mais ou menos usado, até a chita barata. Faixas bordadas de
búzios, voltas colossais de contas e miçangas, enfeites diversos se encontram por ali,
presos e suspensos à menor saliência das paredes, às guarnições do leito, a pregos
fincados nos umbrais da porta e um pouco por toda a parte. Quase ao rés do chão, de
encontro à parede fronteira ao leito, está o altar, degraus, pequena parede ou muro, de
uns trinta centímetros de alto, mais ou menos largo, sobre o qual estão colocados os
fetiches ou ídolos. No chão em frente a eles, enchendo quase todo o quarto, se acham
as oferendas, consistindo substancialmente em alimento e água. Panelas, pratos de
louça ou de barro, tigelas, bacias, vasos de todos os formatos, para a comida; potes e
sobretudo quartinhas para água. (...)
Mas o terreiro do Gantois não conta somente com o barracão em que está o
santuário. Por trás e ao lado dele, outras casinhas e dependências se têm construído.
Logo em seguida está um recinto ou pátio coberto onde à noite se guardam os animais
dos sacrifícios, que durante o dia ficam presos às árvores da clareira. Deste se passa
para um outro pátio onde se abrem e preparam os animais sacrificados. Junto está
ainda a cozinha. Do lado direito ficam pequenas construções ligeiras que se destinam
a santos que não devem ou não podem permanecer no santuário comum, e à residência
temporária deste ou daquele dignitário. Próximo estão finalmente diversas árvores
sagradas em torno de cujos troncos veem-se os restos dos sacrifícios. (Nina
Rodrigues, 1900: 51/4)
cita seu encontro com Júlia (a fundadora do terreiro, Maria Júlia), que viria a falecer em 1900.
No seu relato, fica evidente a dificuldade de acesso ao terreiro, que só era possível através de
44
uma trilha enlameada:
O terreiro do Gantois faz a sua grande festa anual em fins de setembro, a começar de
um sábado, e de ordinário a prolonga por um mês. A mãe de terreiro Júlia, velha
africana, transfere-se para ali na sexta-feira, a fim de preparar e armar o Peji e dispor
tudo para o candomblé. Assiste-a imediatamente sua filha Pulcheria [sic]. Sábado à
noite começam os preparativos; domingo pela madrugada vão as filhas de santo
buscar a água sagrada em grande romaria a uma fonte próxima. Em vasta gamela,
colocada em frente ao barracão, deita-se esta água em profusão tal que chega a formar
pequeno regato pela ladeira abaixo. Esta água é destinada a lavagem de santos e a
encher os potes e quartinhas do Peji.
Para a tarde a afluência da população ao terreiro é enorme. Tanto para o terreiro
do Gantois como para o do Engenho Velho, tenho ouvido avaliar a concorrência, nos
dias principais, em muitos milhares de pessoas. É fora de dúvida que o acréscimo de
movimento nas linhas de bondes urbanos torna-se nestes dias muito sensível. Sob o
título candomblé escrevia o Diário de Notícias, desta cidade, a respeito de uma das
últimas festas do Gantois: 'Comunicam-nos que há seis dias está funcionando, no lugar
denominado Gantois, um grande candomblé. Os bondes da linha Circular e
Transportes passavam, depois de meio-dia até as cinco horas da tarde, cheios de povo
que para ali tem afluído.' Este tópico referia-se à festa de Oso-osi [sic] na quinta-feira
do candomblé. (Nina Rodrigues, 1900: 101)
A fonte de que fala Nina Rodrigues não existe mais (foi substituída por um poço
construído na parte baixa do terreiro, ao qual se chega descendo uma grande escada que
atravessa a mata que ainda resta nos fundos). Mas o resto da descrição apresenta grande
semelhança com os dias de hoje, embora fique evidente o preconceito do autor com relação à
população negra. Ruth Landes, cerca de quarenta anos depois, também descreveu suas
O Gantois fica numa elevação muito acima da Bahia, a velha cidade do Salvador, e as
luzes da cidade estavam tão distantes que pareciam fantásticos vagalumes na
atmosfera. O céu, como sempre, estava brando e escuro, quase uma coisa corpórea que
podia ser tocada. O Gantois situa-se numa ampla clareira na mata logo atrás da linha
do bonde que vem da Cidade Alta, mas não pode ser visto da rua. A trilha que lhe
dava acesso era sinuosa e escarpada e tivera a intenção de ser secreta no tempo da
escravidão, quando o governo se opunha às reuniões de negros. Até a empreendedora
45
companhia inglesa construir a linha de bonde, após a emancipação, o templo, de fato,
ficara oculto. Mas agora chegava-se a ele sem dificuldade e tinham feito degraus
cuidadosamente guarnecidos de pedras no barro vermelho.
Ao redor da clareira, a pequena distância do templo, elevava-se um denso
bosque de árvores retas e enormes. Era um bosque virgem, de idade considerável,
onde se tinham aberto caminhos para os fiéis, pois certas árvores eram residência de
deidades, como as pedras-fetiche do interior do templo. Havia casinholas construídas
entre as árvores, onde as sacerdotisas e os ogãs deixavam oferendas aos deuses e, às
vezes, guardavam as vestimentas sagradas. Em outras ocasiões, as mulheres, em
procissões rituais, dançavam pelos caminhos até uma fonte sagrada, no outro extremo
do bosquete, com oferendas de alimentos e azeite, e por fim os deuses baixavam nelas.
(...)
Voltei-me para olhar para o templo atrás de mim e aí fui um pouco mais feliz.
(...) Para os olhos era apenas uma desconexa construção de barro, tendo acima da
porta de entrada um chifre de boi, descorado pelo tempo, sobre dois facões cruzados,
símbolos do deus da caça Oxoce [sic], protetor do templo. (...)
Voltei à grande sala das cerimônias. Estava pouco iluminada por pequenas
lâmpadas elétricas e as pessoas que lá se encontravam à espera se acocoravam e se
escarrapachavam no chão. A sala ocupava toda a largura e a metade do comprimento
do templo. O chão fora originalmente coberto de tijolos vermelhos, mas anos e anos
de intenso andar e danças o haviam quebrado em vários pontos. As paredes de barro
tinham sido caiadas de azul-claro, avivado com botões-de-rosa, mas agora estavam
desbotadas e descascadas. Não havia forro e das vigas do teto pendiam várias
lâmpadas elétricas e fitas de papel crepom desbotadas. Muito acima da porta que dava
para os quartos sagrados do interior, havia um altar de São Jorge, o Oxoce [sic]
católico.
Quatro janelas enormes tinham sido cortadas nas paredes, agora fechadas por
tapumes de madeira; uma de cada lado da porta de entrada do templo e uma em cada
parede lateral. Bancos quebrados estavam empilhados de encontro a uma das paredes.
Uma fina poeira branca flutuava constantemente no ar, caída da caiação rachada, e
depositava uma mortalha cinzenta em tudo. As sacerdotisas dormiam ali, à noite, em
esteiras.
Como vi depois, um corredor sem luz ligava a câmara cerimonial aos outros
cômodos. O chão nu do corredor elevava-se irregularmente, fedendo a umidade e
substâncias em decomposição. Todas as portas que abriam para o corredor estavam
geralmente fechadas, pois as salas e as atividades eram ‘secretas’. (Landes, 1947:
46
248)
terreiro quanto da cidade em volta. A dificuldade de chegada, que ela cita como uma
estratégia de defesa dos terreiros, não existe mais: hoje em dia o Gantois é facilmente
alcançável e fica no alto de uma ladeira perpendicular à grande avenida que liga o Rio
Vermelho ao Campo Grande, atravessando todo o bairro da Federação. É uma área de muitos
Federal da Bahia.
casa de uma Casa de Candomblé, vemos as antenas: ao lado do terreiro, fica a sede da TV
Gantois podem ser vistas desbravando o céu. "Estamos antenados com o mundo", me disse
certa vez uma filha de santo, tomando como referência para o terreiro a aparelhagem
tecnológica da empresa vizinha — "Quando você estiver procurando o Gantois, procure essas
A grande diferença da descrição de Landes para o cenário atual é que o bosquete que
havia ao lado do terreno do Gantois praticamente não existe mais. Segundo o relato de Mãe
Carmem, parte dele foi comprado pela TV Bandeirantes, que construiu ali a sua sede, e outra
sofreu invasões da comunidade vizinha ao terreiro. Da mesma forma, grande parte da mata
que havia na parte de trás do terreiro, levando ao poço, sofreu igualmente invasões. Parte
35
Bandeira branca que se pendura na frente dos terreiros de candomblé.
47
dessas invasões foi perpetrada pelos próprios descendentes de membros do terreiro — e às
vezes até por membros atuantes do terreiro — e parte por pessoas de fora que se juntaram à
forrado de tábuas, mas o telhado continua sem forro e, durante as festas, ainda é coberto por
pequenas bandeirolas de papel branco, tal como observou Landes. Além disso, construiu-se
um muro que separa o terreiro da praça que há na sua frente, chamada "Pulquéria de Oxóssi".
Porém, ainda se dorme em esteiras dentro do terreiro; as egbomes mais idosas, normalmente,
colocam um colchão estreito e fino em cima da esteira, mas as mais novas (e mesmo grande
parte das mais idosas) dormem em cima da esteira, cobertas somente por lençóis brancos.
Quando comentei com Mãe Angela, filha de Mãe Carmem, logo em uma das
primeiras festas a que assisti, que tinha achado a cerimônia emocionante, ela me respondeu:
"É a emoção da tradição, porque tudo aqui é feito do mesmo jeito desde a minha tia-avó
Júlia". Assim, o Gantois é um terreiro queto "tradicional" no sentido mais simples da palavra:
trata-se de um terreiro com uma longa história, no qual a maneira como as coisas são feitas
praticamente não se alterou desde a sua fundação, datada de 1849 (aliás, observei coisa
parecida em quase todos os terreiros de queto que conheci). Foi neste ano que Maria Júlia,
dissidente do terreiro da Casa Branca, arrendou, junto com seu marido, parte do terreno de um
mercador de escravos belga, dono à época de grande parte do que hoje constitui o bairro da
Federação. Até hoje o terreiro é conhecido como Gantois por causa do sobrenome desse
proprietário das terras onde se erigiu o Ilê Iya Omi Axé Iyamasé — o verdadeiro nome do
terreiro.
embora ambas concordem que a criação da Casa se deve a uma cisão do terreiro da Casa
48
Branca do Engenho Velho. Uma delas, a mais difundida e considerada "oficial"36 (cf. Silveira
2006, Carneiro 1991, Verger 2002), citada inclusive por Serra (2002)37 no laudo usado no
tombamento38 é a de que Maria Júlia Nazaré, insatisfeita com os rumos da sucessão na Casa
Branca depois da morte de Marcelina da Silva, a segunda mãe de santo depois de Iá Nassô,
uma das três africanas fundadoras do terreiro, teria pegado seu assentamento e se mudado
para outra roça, no Rio Vermelho de Cima (hoje Federação), onde se tornou mãe de santo. A
insatisfação de Maria Júlia se deveria a uma disputa pelo posto de mãe de santo da Casa
Mãe Carmem sempre negou que essa briga tenha acontecido. Segundo ela, Maria Júlia
saiu da Casa Branca para abrir seu candomblé: "Como muita gente faz. E ela não foi a única!
Você não vê o tempo todo os filhos de santo daqui abrindo outras Casas? Então, é o
movimento normal das coisas." Teria inclusive mantido boas relações com a Casa Branca
durante toda a sua vida. Conta Mãe Carmem que, quando suas filhas foram recolhidas para
terem o santo feito pela avó (Mãe Menininha), a mãe de santo da Casa Branca (Tia Massi) se
mudou para o Gantois e de lá só saiu quando as meninas deixaram o sabaji39. "Vê se ela ia
fazer uma coisa dessas se tivesse havido algum desentendimento! Não sei quem inventou essa
história de briga, mas acho que o povo gostou dessa versão, e aí foi ficando. Quem também
36
Verger afirma que "Com a morte de Marcelina-Obatossí, foi Maria Júlia Figueiredo, Omonike, Iyalodé,
também chamada Erelu na sociedade dos Geledé, que se tornou a nova mãe-de-santo. isso provocou sérias
discussões entre os membros mais antigos do terreiro de Ilê Iyanassô, tendo como consequência a criação de dois
novos terreiros, originários do primeiro; Júlia Maria da Conceição Nazaré, cujo orixá era DàdaBáayaniÀjàkú,
fundou um terreiro chamado Iyá Omi Àsé `Iyámase, no Alto do Gantois (...)." (2002: 29)
37
Serra chega a afirmar, no laudo, que há controvérsias quanto à data de fundação do Gantois, pois, segundo
Renato da Silveira, em 1855 a família de Maria Júlia da Conceição Nazaré, a fundadora do Gantois, ainda estaria
na Casa Branca. Isso me foi negado por Mãe Carmem, que aponta muitos erros no laudo e reafirma que oGantois
foi mesmo fundado em 1849. Serra afirma também que "há um certo consenso, entre os estudiosos e as fontes
disponíveis, de que a fundação do Gantois se dá nos fins do século XIX", o que também é contestado por Mãe
Carmem.
38
O Gantois foi o terceiro terreiro a ser tombado em Salvador, atrás da Casa Branca e do Ilê Axé Opô Afonjá,
todos pelo IPHAN. Depois destes, também foram tombados pelo IPHAN o Bate Folha, o Alaketu e a Casa de
Oxumarê. Para que o processo de tombamento aconteça, é necessário que um antropólogo produza um laudo
atestando o valor histórico do terreiro.
39
O aposento onde ficam recolhidos os noviços durante a iniciação (semelhante à camarinha).
49
espalhou isso primeiro foi Édison Carneiro, ele era brigado com mamãe, porque mamãe não
dava acesso a ele!40 O Gantois sempre foi um terreiro fechado, e ele queria saber tudo! Mas
tem uma foto dele lá, não era assim uma inimizade não."
A versão de Mãe Carmem é coerente com a cronologia, visto que o Gantois foi
fundado em 1849, data do registro de sua sociedade civil, e Marcelina da Silva só viria a
falecer em 1886, ou seja, trinta e sete anos depois disso. Assim, se esta data estiver correta,
ficaria invalidada a versão da disputa entre as duas Marias Júlias pela sucessão da Casa
Maria Júlia Conceição Nazaré foi casada, segundo me contou Mãe Carmem, com um
homem chamado Francisco, de origem jeje. Francisco teria sido o responsável por assentar a
cumeeira42 da Casa, que é de Ogum, o seu santo (cujo assentamento original está, segundo
Mãe Carmem, plantado numa árvore na parte externa do terreiro jeje do Bogum). Já o Axé da
coberto por um alçapão quadrado onde os membros da casa batem a cabeça — é de Iyamassê,
considerada a mãe, ou uma qualidade feminina, de Xangô. O Gantois tem também a proteção
40
Segundo Carneiro (1948), "Fundaram o atual Engenho Velho três negras da Costa, de quem se conhece apenas
o nome africano — Adetá (talvez Iyádetá), Iyá Kalá e Iyá Nassô. (...) Sucedeu-lhes Marcelina, que talvez nunca
imaginasse a querela que, após a sua morte, iria dividir as filhas e continuar por muitos anos — até hoje. Duas
filhas, duas Maria Júlia — uma Conceição, outra Figueiredo — disputavam a chefia do candomblé. Venceu
Maria Júlia Figueiredo, que era, aliás, a substituta legal de Marcelina, como mãe-pequena (iyákekerê). (...)
Vencida, a outra Maria Júlia — Maria Júlia da Conceição — se afastou, arrendou terreno no Rio Vermelho e lá
fundou, com as demais dissidentes, o atual candomblé do Gantois, do nome do proprietário francês. Dizem as
filhas deste candomblé que a Conceição, tendo sido espoliada nos seus direitos, trouxe para o Gantois os axés do
Engenho Velho, transformando, portanto, o novo candomblé no legítimo continuador do antigo, o de IyáNassô."
(Carneiro 1948).
41
Outro fato que comprova que a versão de Édison Carneiro et alii está incorreta é uma edição de 1868 do jornal
O Alabama, fonte de informações sobre a cultura afrodescendente de Salvador, que teria citado em uma de suas
reportagens a existência de um novo candomblé dirigido por "Tia Julia e sua filha Pulcheria".
42
A cumeeira é parte do axé. Nas casas que não têm poste central, como o Gantois, é a ligação entre o axé é a
cumeeira que faz a conexão entre oaiyê (o mundo físico, onde habitam os humanos) e o orun (o mundo
espiritual).
50
seja: a posição de mãe de santo da Casa só é acessível a mulheres da família da fundadora.
que os regentes são sempre do sexo feminino", segundo a definição formulada pelo
antropólogo Julio Braga para o jornal Correio da Bahia alguns anos atrás, sempre citada nas
reportagens sobre o terreiro. Serra escreveu no laudo de tombamento que "No Gantois, a
sucessão segue regras tradicionais específicas que limitam o acesso ao cargo máximo de
Ialorixá a pessoas do sexo feminino, iniciadas, com senioridade ritualmente reconhecida (...)
ligadas por laços parentais à estirpe da fundadora: trata-se, aí, de um cargo 'hereditário',
conforme se diz no ebé. Um rito divinatório de consulta aos orixás (o jogo de búzios, segundo
Dos ditos três terreiros irmãos (a Casa Branca, o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá), o
Gantois é o único que sempre teve no comando membros da mesma linhagem familiar.
Segundo Mãe Carmem, isso pode ser um peso, o que condiz com o depoimento dado por Mãe
Menininha a Landes:
Minha falecida tia [Pulquéria] (...) herdou o cargo da mãe dela, a grande Júlia (...) e
Júlia fundou o templo depois de chegar ao Brasil. Primeiro, serviu como sacerdotisa
no Engenho Velho — mãe e filha serviam juntas... Sabe como é na Europa, minha
senhora. Nós, as mães, somos como as casas reais, passamos o nosso cargo somente a
pessoas da família, em geral a mulheres. (...) Candomblé é uma grande
responsabilidade. Às vezes fico pensando se terei forças para continuar e se tenho o
direito de sobrecarregar as minhas filhas com ela. (...) Não tenho um minuto para
mim! Sou escrava da minha gente, duzentas pessoas que dependem inteiramente de
mim! (Landes, 1947: 127)
Mãe Carmem se referiu muitas vezes às dificuldades que enfrentou e à resistência que
43
Curioso que Nina Rodrigues afirme o contrário: "A escolha para estes diferentes cargos é feita à sorte ou por
meio de búzios, ou então por declaração oral de algum santo manifestado. (...) Não parece que a transmissão
hereditária destas funções seja do rigor. Assim me garantem, e a própria rapariga me declarou, que a filha de
Júlia, mãe do terreiro do Gantois, não será a sucessora de sua mãe." (1900: 55)
51
apresentou antes de assumir a posição de mãe de santo. Em entrevista para o livro Recomeços
(Albuquerque 2009), conta como não queria ocupar o lugar que havia sido de sua mãe. "A
minha recusa em ocupar o lugar gerou terríveis situações" (2009: 75), lembra ela. "O que eu
realmente queria era ter uma vida normal, ao lado do meu marido e das minhas filhas" (2009:
76); "Resisti com todas as minhas forças" (2009: 77). Entretanto, como vimos, no candomblé
a agência humana é limitada: "Aprendi que uma resistência tão poderosa pode, inversamente,
significar uma confirmação — e foi essa aceitação que permitiu que o Gantois recomeçasse a
Segundo ela, o processo envolvendo a sua recusa inicial e posterior aceitação lhe causou
traumas difíceis de serem superados. Certa vez, comentou comigo que essa vivência a teria
favores extraordinários do terreiro, e penso que a relação conturbada com pesquisadores pode
ser resultado dessas dificuldades. Além disso, porém, teria havido outras questões envolvidas
nesse processo que Mãe Carmem reiterou muitas vezes que deveriam permanecer de
conhecimento restrito, dizendo que certos assuntos eu não deveria jamais abordar em meu
trabalho.
É curioso pensar que esses assuntos não sejam relacionados ao que geralmente se
mantém oculto no candomblé, e sim a questões pessoais, familiares. Talvez por isso, para
Mãe Carmem, seja incômodo pensar que um trabalho etnográfico possa expor questões
delicadas que prefere manter em segredo. Esse tipo de postura — e todas as referências que
me fez sobre a relação entre o Gantois e os antropólogos — diverge assim das discussões
tradicionais sobre esta relação, que examinaremos com mais detalhes a seguir.
52
1.3: As acusações de "nagocentrismo" na antropologia do candomblé
No dia em que fui apresentada a Mãe Stella, levada por um amigo a ponto de se
confirmar ogã no Ilê Axé Opô Afonjá, ela me disse, quando ele lhe informou que eu era
A frase dita por Mãe Stella tem um significado importante: se em outros tempos o
candomblé vivia uma situação marginalizada, hoje em dia tem uma posição relativamente
consolidada na cidade de Salvador (embora, como já vimos, essa posição não represente uma
unanimidade — nem dos seus praticantes e nem dos terreiros como um todo).44 Talvez seja
por isso que Mãe Carmem me disse tantas vezes, em tom de pilhéria, que "Não é o candomblé
Certa vez, durante um congresso sobre "Saúde nos Terreiros", uma jovem pediu a
palavra e disse ao microfone: "Agora é a hora da gente de candomblé escrever a nossa própria
história! Chega desses pesquisadores brancos que vêm de fora escrever sobre a gente. Pra quê
a gente precisa deles? Nós mesmos é que temos que ocupar os bancos das universidades e
escrever nossos próprios trabalhos sobre a gente!" Essa fala repercute uma noção que
candomblé, a proporção dos que acham que o trabalho produzido por alguém da religião tem
validade superior ao de um pesquisador externo. Essa visão encontra eco na obra de Elbein, e
até na de Bastide. Em O Candomblé da Bahia, lançado em 1958, Bastide escreve: "É possível
dissociar completamente religião e cor da pele. É possível ser africano, sem ser negro." Já em
1972, na introdução que escreveu para os Estudos Afro-Brasileiros, conta a sua iniciação,
44
Castillo afirma que a etnografia era um instrumento de "relações públicas" para o terreiro, o que se tornou um
problema com a proibição dos candomblés durante o Estado Novo. Segundo ela, isso teria criado uma "relação
ambivalente" que só seria superada depois da liberação da religião. (Castillo 2008: 188)
53
ocorrida depois de uma "crise intelectual": "Compenetrei-me portanto que deveria, no
momento de entrar no Templo, deixar-me penetrar por uma cultura diversa da minha. A
pesquisa científica exigia de mim a passagem preliminar pelo ritual da iniciação. (...) De
qualquer modo, esse primeiro revés transformou-se numa primeira vitória. Com efeito, levou-
me ao método que depois passei a seguir — o de repensar o candomblé não somente nos seus
aspectos africanos mas também no seu sincretismo, partindo do interior e não do exterior,
Juana Elbein, em Os Nagô e a Morte, lançado originalmente em 1975, afirma que seu
livro foi escrito "desde dentro". Segundo a autora, "A convivência, passiva como observadora
consciente e objetiva dos fatos."45 (1975:15) Segundo a autora, a religião que ela chama de
Nagô é iniciática, o que limita seu aprendizado aos que estão "de dentro" ("(...) parece que a
[1975:16]).
Capone (2004) defende que foi a partir do livro de Elbein que "a aliança entre o
antropólogo e os cultos, sempre existente mas dificilmente assumida, passou a ser assim uma
das condições essenciais para a verdadeira compreensão da cultura estudada" (2004: 21).
Segundo a autora, existe uma "aliança entre cientistas e iniciados" (2004: 20) que construiu
45
Serra (1978) escreveu, a respeito desta afirmação de Elbein: "Ficamos sem saber, todavia, se a etnóloga — a
qual, de resto, não deixa de aludir aos problemas que por sua vez acarreta o enfoque 'desde dentro' — dá como
imperativa uma iniciação de fato para a inteligência do sistema do Candomblé. Lembramos que assim o
pesquisador pode ver-se colocado numa posição ambígua, e defrontado com várias dificuldades... De nossa
parte, reconhecemos a validez do conhecimento místico, e a sabedoria inegável contida no belo rito nagô;
julgamos, todavia, que, sobretudo se não tiver as motivações religiosas decerto experimentadas por Elbein dos
Santos, talvez o cientista iniciado corra o risco de perder-se nesta 'escada de Jacó'. Afinal, é outra forma de saber
a que visa." (Serra 1978: 262) Curiosamente, no dia em que fui apresentada a Juana Elbein, no Ilê Axipá, ela me
declarou que era uma "pesquisadora agnóstica" e que "não acreditava em nada".
54
um "modelo ideal de ortodoxia, identificado com o culto nagô" (2004: 19) para o candomblé;
já que "de fato, uma das características mais marcantes dos estudos sobre o candomblé é a
espantosa concentração das pesquisas etnográficas em três terreiros de nação nagô (iorubá),
Gantois e o Axé Opô Afonjá, ambos oriundos do Engenho Velho." (2004: 16) E vai além,
afirmando que "a distância entre observador e observado, que deveria estar na base do
(2004: 19).
suficientemente com o grupo, deixará de perceber muita coisa. Mas na medida em que se
Ou seja, tanto Capone quanto Ferretti sugerem que a relação entre "antropólogo" e
"nativo", no candomblé, pode dar margem a questões analíticas — uma das quais seria o
"nagocentrismo". Entretanto, Parés (2006) defende que "no fim do século XIX, os praticantes
nagôs estavam impondo a sua versão iorubá e desacreditando a 'tradicional' versão jeje por se
tratar de 'mera corrupção crioula'. O exemplo indica como, naquele momento, um movimento
mostra como a agência dos praticantes nagôs pode ter sido instrumental para a sua promoção
sociorreligiosa." (2006: 12). Ou seja, segundo Parés, o "nagocentrismo" deveria sua origem
46
Sobre isso, Silva escreveu: "O antropólogo que pesquisa as religiões afro-brasileiras dificilmente realiza sua
observação participante sem causar ou ser envolvido nos conflitos e rivalidades que caracterizam a vida
cotidiana dos terreiros. O antropólogo vai aprendendo, assim, qual o grau adequado de proximidade e distância
que deve manter na convivência cotidiana com os grupos, e nem sempre os preceitos malinowskianos de buscar
uma intimidade total com os observados pode ser uma boa estratégia." (Silva 2006:38) Há também os casos de
antropólogos que se tornam pais de santo, como Gisèle Omindarewá Cossard e Julio Braga.
55
aos próprios praticantes do candomblé, e não aos antropólogos, visto que "a reputação do
Gantois já estava bem estabelecida antes que Rodrigues iniciasse a sua pesquisa. De fato,
talvez esta fosse uma das razões que o levaram para aquele terreiro" (2006: 12), e chama a
o prestígio nagô estava em ascensão" (2006: 13). Parés defende que o candomblé baiano
formou-se a partir de uma base jeje, posteriormente incorporada pela tradição iorubá, que no
final do século XIX já era majoritária em Salvador. Ainda segundo o mesmo autor, nenhuma
das análises relativas ao processo de "nagoização" levou em conta o carisma dos líderes do
candomblé nagô da época, o mesmo que hoje é dito de nação queto ou ketu: "O efeito do
carisma individual nos processos de mudança religiosa não foi ainda devidamente enfatizado.
como Pulcheria [sic], Martiniano Eliseo do Bonfim, Aninha e outros conseguiram emergir
como líderes, cujas palavras e ações — fossem 'tradicionais’ ou inovadoras — podiam ser
rapidamente tomadas como modelos a serem imitados. Suas idiossincrasias de caráter, junto
com sua habilidade para mobilizar uma ampla rede social, contribuíram, de forma
rituais de terreiros como as do Gantois começaram a funcionar como referentes ideais para
Segundo Parés, essa é a primeira fase do processo que ele denomina "nagoização" do
candomblé. Segundo ele, em 1930 inicia-se uma nova fase do processo, onde alguns
lideranças do candomblé, à época impedido por lei de exercer suas atividades por força da
proibição de festas públicas, aproveitaram-se desta aliança numa tentativa de legitimar sua
prática religiosa (o que coincide com o que Mãe Stella me falou). Já nos anos 1970, inicia-se
a terceira fase da "nagoização", associada por ele à defesa da pureza nagô feita por Bastide,
56
Elbein — mas associada também à gênese do MNU (Movimento Negro Unificado) em
Salvador, e à fundação do bloco Ilê Aiyê, entre outras manifestações da luta por direitos do
povo negro em Salvador. "Deste modo, o complexo religioso iorubá-nagô foi mais uma vez
reificado, e terreiros como o Gantois e o Axé Opô Afonjá e suas lideranças emergiram como
Entretanto, Parés não deixa de notar que esse movimento de resistência gerou, de
dentro dos candomblés como reação contra a degradação da macumba' (...) opondo os
candomblés puros da Bahia à macumba do Rio (...)" (2006: 26). A observação de Parés
encontra ressonância na acusação feita por Fry (1986) com relação ao "nagocentrismo" de
Bastide 47, denunciado como uma tentativa de erigir em norma o que, na verdade, era a
Posteriormente, Dantas (1988) defende a ideia da "supremacia nagô" no movimento que ela
define como "reafricanização". Segundo a autora, a partir da leitura dos antropólogos, os pais
de santo estariam ajustando seus cultos de acordo com esse modelo majoritário, tido como
caboclo", seria inferior ao nagô, por ter sido assim classificado pelos antropólogos. E os pais
que o movimento se deu na ordem oposta à descrita por Parés (2006). Segundo a autora, o
47
Em 1986, Peter Fry escreveu um pequeno artigo sobre a frase de Bastide, "africanus sum". Segundo Fry, essa
era mais uma prova do "nagocentrismo" de Bastide: referindo-se a uma frase original de Guerreiro Ramos,
"niger sum", Bastide preferira a forma "africanus sum". Segundo a interpretação de Fry, africanas, no caso, eram
as casas de candomblé da Bahia onde ele havia feito sua pesquisa. E aponta a frase como um indício do
preconceito de Bastide com relação à macumba, vista por ele como uma forma degenerada da verdadeira religião
africana. (cf. Fry 1986)
57
"nagocentrismo" não se limitaria a influenciar a antropologia e os que se debruçam sobre ela,
da relação entre o candomblé e a sociedade mais ampla, tentando explicar como se constituiu
essa "supremacia nagô" e quais teriam sido as suas consequências para a relação entre o
africanidade" podia constituir-se numa arma importante nas disputas de status registradas
Castillo (2008) defende que essa questão assume forma diferente na Bahia: segundo a
autora, a importância atribuída às obras etnográficas alcança outro patamar nos terreiros da
Região Sudeste do Brasil, notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo; em Salvador, essa
influência não seria sentida da mesma maneira49. Já Serra (1995) critica, de maneira irônica, a
sugestão de Dantas (1988) de que os antropólogos possam ter de algum modo "ensinado
candomblé" para mães e pais de santo: "Enfim, conforme sugere Beatriz Góes Dantas, os
negros da Bahia a viajarem para a terra ancestral em busca de suas tradições. Como
hierofantes perversos, ensinaram depois o rito nagô ao resto dos pais de santo, segundo um
cânon que estabeleceram, e lograram impor aos crioulos a ilusão de uma ortodoxia
castradora." (1995: 59) Serra, assim como Parés, afirma que o "nagocentrismo" tem sua
origem entre os próprios praticantes do candomblé — e vai além, afirmando que não são só os
48
Para uma visão crítica dessa perspectiva, ver Bannagia (2008) e Bondi (2009).
49
Nas palavras da autora: "Estudiosos que trabalharam no Sudeste (...) encontraram que a etnografia é utilizada
nos terreiros como uma fonte de informações sobre a prática religiosa. Mas o presente estudo, o primeiro a
abordar a questão na Bahia, aponta para a existência de diferenças regionais no que tange à visão do povo-de-
santo sobre a etnografia. Essas diferenças se tornam claras quando consideramos o lugar de origem da produção
textual sobre o candomblé. O povo-de-santo do Sudeste gera um grande volume de livros, revistas e, mais
recentemente, sites da Internet. Em contraste, há pouquíssimos sacerdotes-autores na Bahia e raros são os
terreiros com sites. Mas, na produção etnográfica sobre o candomblé, os terreiros do eixo Rio-São Paulo
raramente figuravam; o olhar acadêmico era voltado para a Bahia." (Castillo 2008: 188)
58
nagôs que defendem a sua pureza, mas que essa convicção seria uma característica inerente a
todas as nações de candomblé: "Em todo caso, uma coisa é certa: alguns antropólogos e
certíssima nesse ponto. Só acho que ela exagera no que tange à aceitação da perspectiva
'nagocêntrica' (...) no universo dos terreiros: a ilustre antropóloga não leva em conta o forte
etnocentrismo das outras 'nações' do candomblé, e supõe com ingenuidade que a 'pureza' é
uma pretensão apenas dos nagôs." (1995: 114) Serra critica também o fato de Dantas sugerir
busca por poder dentro do "mercado de bens simbólicos" (Serra 1995: 114); entretanto,
segundo ele, o "nagocentrismo" nada mais é que uma expressão (entre outras) dessa
etnicidade, e não pode ser analisado separadamente desta. Segundo Serra (1995), a etnicidade
vai muito além da simples concorrência pelo mercado de fiéis e da disputa por status; está
ligada ao próprio conceito de pertencimento étnico dos filhos de santo, de sua representação
em termos de raça, por exemplo. Assim, aponta que a visão de Dantas é um reducionismo em
meio a uma questão complexa tanto historicamente quanto para questões de raça e de
pertencimento étnico.
De fato, ao menos de acordo com o meu material de campo, a ideia de que os escritos
dos antropólogos tenham influenciado as práticas dos terreiros é de fato estranha. Mãe
Carmem certa vez comentou comigo que o único livro sobre candomblé que ela havia lido era
o de Ruth Landes (Landes 1947), e que ele lhe parecera "uma bobagem, totalmente
superficial". "Aquilo é antropologia, minha filha? Antropologia a gente tem que ler várias
vezes, é difícil, complexo. Aquele livro eu li assim, como quem não faz nada. Não tive nem
que pensar. Aquele livro não diz nada!" Já Mãe Angela, sua filha, é mais estudiosa, "por uma
característica própria", segundo ela. Certa vez, ela me disse que gostava muito de Os Nagô e a
Morte, de Juana Elbein. "Esse livro tem várias camadas", ela me explicou. "Quando você não
59
sabe nada, não entende nada. Se você sabe mais ou menos, entende alguma coisa. Agora, se
O termo usado por Mãe Angela, entender, é significativo. Certa vez fui com uma filha
de santo à feira de Sete Portas, onde compramos o livro Os Orixás e o Segredo da Vida
(Barcellos 2008) na barraca que vendia os quiabos que queríamos para um caruru. Alguns
dias depois, quando encontrei novamente essa filha de santo, perguntei se estava aprendendo
alguma coisa com o livro. E ela me respondeu: "Aprendendo nada, né, minha filha? Aprender
a gente aprende fazendo, não é lendo não." O livro em questão não foi escrito por um
antropólogo, e sim por um pai de santo — visto existir também uma vasta literatura sobre
candomblé produzida por iniciados. E são esses os livros mais comuns nas feiras de São
religião. Segundo Castillo, "(...) a etnografia acadêmica é valorizada nos terreiros da Bahia
menos pela sua possibilidade de servir como fonte de saber religioso e mais por outros
motivos, entre os quais sua importância como registro histórico. Se as obras de pesquisadores
como Ruth Landes, Donald Pierson e Edison Carneiro são prezadas, hoje, nos terreiros, não é
pelas informações que tenham sobre rituais. É principalmente porque oferecem depoimentos e
outras informações preciosas sobre as vidas de grandes personagens, como Mãe Menininha,
Goldman defende ideia parecida, embora de maneira um pouco diferente: "É nesse sentido
que poderíamos aprender a ler alguém como Roger Bastide de outra forma, ou de uma forma
aparentemente outra. Desse ponto de vista, Bastide é apenas um 'cavalo de santo', ao menos
no sentido de que carrega e transporta a palavra e a existência de sábios ancestrais. (...) Claro
que contra essa interpretação poderiam ser evocadas, por um lado, esse tipo de leitura crítica
60
que supõe que as particularidades e os interesses de cada autor não apenas interfeririam em
sua escrita, mas, no limite, determinariam o que ele escreve. Tal objeção não levaria muito
longe, uma vez que, como se sabe, cada cavalo de santo modula, de acordo com
Desenvolvendo para a minha própria pesquisa essa ideia de Goldman (2012), eu diria
que o ponto de vista da etnógrafa encontra-se ao mesmo tempo dentro e fora da perspectiva
do candomblé. Ou seja, tanto sirvo quanto não sirvo de "cavalo de santo" àqueles que
pesquiso. Como etnógrafa, não observo "de dentro" porque, como aponta Serra (1995)
falando de Elbein, não tive "motivos" para aderir internamente àquele mundo, embora
escutasse o tempo todo que só estava ali devido ao meu enredo com o Gantois. Assim, nesta
tese, procurei oscilar entre os dois pontos de vista: ao mesmo tempo enredada e livre do
enredo, dotada e não de agência sobre essas histórias. Vista pelas pessoas do candomblé como
inquestionavelmente enredada; vista por mim mesma como afetada (nos termos de Favret-
Saada 1977) pela experiência junto à religião — mas procurando justamente, na tese e com
O enredo teria, portanto, mais um significado: além de tantos que já foram citados na
Introdução, o enredo seria também uma posição: assim, a posição da etnógrafa não seria, nos
termos definidos anteriormente, nem de dentro e nem de fora, mas uma posição que tem por
definição estar fora e dentro ao mesmo tempo. E essa posição é, exatamente, a de quem tem
enredo.
61
segundo Dantas (1998) e Capone (2004), em uma "busca pela África" nos candomblés.
africanidade" passa a ser visto, portanto, como uma estratégia de legitimação dentro do
matriz africana, como o próprio nome diz, não é de se estranhar que seu grau de africanidade
seja visto como um fator positivo para sua afirmação no — para usar um termo dessa mesma
escola — "mercado religioso" local. Capone chega a afirmar que "É em nome de uma maior
proximidade com uma África mítica que um segmento do culto reivindica sua hegemonia
religiosa, legitimam sua posição. Graças ao domínio que têm tanto do saber ritual quanto do
saber acadêmico, eles de certo modo são os guardiães dos cultos e os garantes da ortodoxia,
Parés (2006), no entanto, questionou o fato das autoras acima afirmarem que o
as lideranças do candomblé baiano. Segundo ele, ao contrário do que diz "a hipótese de
Dantas, segundo a qual a construção da pureza nagô seria uma maquinação da elite branca
sincretismo (sobre o qual falarei no capítulo seguinte) quanto no alinhamento dos candomblés
No Gantois, por exemplo, quando uma pessoa dá santo, diz-se que "foi para a
50
Capone (2004: 314) afirma que mesmo esse movimento é fruto de um pacto com os intelectuais,
especialmente Elbein, que por sua vez havia sido doutrinada por Bastide — e chega a afirmar que o rompimento
entre Elbein e Mãe Stella se deu pelas posições radicais que esta teria tomado posteriormente, explicação
totalmente diferente da que eu ouvi tantas vezes, e de tantas pessoas diferentes, sobre os motivos do rompimento
(e que não me cabe expor aqui).
62
África"51. Certa vez perguntei a um filho de santo por uma filha de santo que eu estava
procurando, e ele me respondeu: "Ih, essa aí já foi para a África há tempo". Perguntei a ele:
"Mas que África é essa?" e ele me respondeu "Essa África aí, que tá na cabeça da gente!" Da
encenação anual, muitas vezes levada às vias de fato, da batalha mítica entre os exércitos de
Xangô e de Oxalá no domingo seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, diz-se que os orixás "foram
para a África", descansar do trabalho intenso do resto do ano. Voltarão no Sábado de Aleluia,
para mais um recomeço do ciclo de suas aparições na Terra. "Que Oxóssi traga muita caça da
África", me disse certa vez uma filha deste orixá. Novamente perguntei "Mas como assim da
África?", ao que ela riu e respondeu: "Cada um tem a sua África, minha filha." A África, para
as pessoas do candomblé com quem convivi, aparece muito mais como uma referência
mística do que geográfica — e embora muitas vezes surja como garantia de valor, como
defendem Dantas e Capone, em outras aparece como "uma fonte que secou", como me disse
um pai de santo que conheci. Esse pai de santo, feito no Gantois, é de Logum Edé. Ele foi ao
Benin em busca de assentamentos antigos de seu orixá, em busca da origem de "sua família",
como ele me explicou. Mas sua busca foi em vão. "Depois de vários dias achei um
assentamento de Oxum, cuidado por uma velhinha, a última que sobrou da família! Depois
dela, vai acabar!" — ele afirmou. Reação semelhante teve Fábio Lima que, quando foi dar
uma palestra em Oyó, na Nigéria, a convite do rei, voltou decepcionado: "Os orixás já foram
todos embora da África, minha filha. Lá não tem mais nada. Agora, eles moram no Brasil."
Certa vez eu estava no Gantois quando uma filha de santo, havia muito ausente da
Casa, chegou com um babalaô africano, segundo ela "filho do chefe do culto de Xangô na
51
A expressão "cavalo de santo", citada em diversas etnografias, em nenhum momento foi pronunciada durante
o meu tempo de pesquisa na Bahia. Lá se diz que a pessoa deu santo ou, em poucas ocasiões, virou no santo.
63
África". Ela o levou ao Gantois para jogar ifá52 para Mãe Carmem. O babalaô sentou-se no
chão, na frente da mãe de santo, com uma garrafa de cachaça ao lado, e começou a falar,
sempre em inglês (havia um intérprete presente, levado pela mesma filha de santo que
convidara o babalaô). Mãe Carmem olhava para ele com uma expressão indecifrável e, na
hora em que ele pediu que uma filha de santo se oferecesse para assisti-lo, Mãe Carmem
apontou para uma moça com quem tivera uma briga terrível na semana anterior. O babalaô
pediu a Mãe Carmem que lhe desse algum dinheiro para que pudesse jogar, e ela então
colocou ao lado do tapetinho (o opelê-ifá) uma nota de cem reais. Depois do ritual
divinatório, ele ainda fez previsões para a Casa. Quando acabou, recolheu suas coisas e foi
embora, junto com a filha de santo que o levara. Mal saiu, Mãe Carmem comentou, aos risos:
"Mas que marmoteiro53! Esses africanos são todos marmoteiros! Fica se achando só porque é
Claro que esse tipo de referência à África não é unânime entre as pessoas de
candomblé que conheci. Há muitos que defendem que está na África o "axé original", como
me disse um pai de santo de São Paulo que conheci. Mas muitos consideram que a técnica
está se perdendo na África, e só pode ser encontrada no Brasil ("e muitos vêm aqui para
contas, sabão da costa, panos, estátuas) trazidos para o Brasil têm grande valor. Conversei
sobre isso com Fábio, que me deu a seguinte explicação: "O valor dos objetos africanos é que
eles são iguais aos que eram usados pelas pessoas que trouxeram o candomblé para cá." Ou
seja, para Fábio, o valor dos objetos africanos estaria na sua identificação com os objetos
52
O ifá é um método de adivinhação restrito aos homens — os babalaôs. É jogado com uma tábua de
adivinhação — o opelê-ifá — e outros apetrechos. O método difere bastante do jogo de búzios, mas seu efeito e
sua finalidade são semelhantes.
53
Termo muito usado em Salvador. Significa "falsário, enganador".
64
Bondi (2009) sugere que o fato de os objetos africanos serem vistos como fontes de poder
deveria ser encarado com base na própria lógica do candomblé. Segundo o autor: "A lógica da
tempo e do mito original. Essa mitologia é a chave para entendermos o presente e o futuro, e
portanto não surpreende que a África, e as coisas da África, sejam vistas dessa maneira. É
através da África que as coisas acontecem, e é assim que o ‘movimento de retorno’ deve ser
visto como um movimento totalmente coerente com essa lógica." (2009: 15)
chamar a atenção para certas incoerências entre o meu material de campo, do Gantois, e a
teoria defendida por Dantas e Capone: em primeiro lugar, o Gantois (que, segundo Capone
(2004:16), junto com a Casa Branca e o Ilê Axé Opô Afonjá, "concentra" as pesquisas
etnográficas no Brasil), não recebia nenhum pesquisador (que conseguisse levar a cabo o seu
trabalho) desde 1938.54 Além disso, em nenhum momento qualquer tipo de relação com a
África me foi mencionada, nem como fonte de legitimidade e nem de proximidade. Nesse
ponto, concordo com Halloy (2010), que sugere que a tradição, no Xangô do Recife, está
ligada, por um lado, a um alegado laço de sangue e, por outro, a um modelo de aprendizado
que segue certos princípios "tradicionais". Ou seja, uma tradição é uma tradição porque foi
transmitida como tal, como se pode constatar nas palavras de Mãe Angela sobre a "emoção da
tradição". Além disso, Mãe Carmem fez questão de afirmar, muitas vezes, que a minha
presença ali era permitida somente porque ela "gostou de mim", e me lembrou várias vezes
que a minha posição no terreiro era frágil e que eu seria a última pesquisadora a entrar lá.
Declarou também muitas vezes que eu iria ver que tudo que eu tinha lido não me serviria de
54
Capone chega a afirmar que "O caso afro-brasileiro é igualmente um bom exemplo da maneira como o
antropólogo aborda seu campo. Na maioria das vezes, o jovem pesquisador é introduzido no universo que quer
estudar por outro antropólogo. No caso do candomblé baiano, ele é levado quase obrigatoriamente a trabalhar
nos três terreiros considerados detentores da tradição africana." (2004: 336). A maioria dos antropólogos que
conheci em Salvador fazia pesquisa de campo em terreiros que não eram nem o Ilê Axé Opô Afonjá e nem a
Casa Branca; sobre o Gantois, penso que já deixei clara a posição de Mãe Carmem com relação aos
antropólogos, o que me isenta de mais considerações a respeito.
65
nada. Certa vez, mostrei a ela alguns trechos de livros que tratam do suposto "pacto" que
e deu muita risada, comentando em seguida: "Esses aí, coitados, não entenderam nada."
66
Capítulo 2:
Cidade rola
Batucajé na ponta do pé
Na casa de axé
Prato de najé
Folha de Guiné
E se lambuzar de acarajé
Com muito axé
Vem ver as meninas rodar a baiana
E sentir como é
(Timbalada — Sambaê)
Neste capítulo apresentarei alguns temas muito debatidos nos estudos sobre
cada um, uma tese própria.55 Não pretendo levar a cabo uma revisão da extensa literatura a
respeito dos temas citados, e sim abordá-los a partir de situações vividas no campo,
apontando alguns contextos nos quais apareceram e procurando dar uma descrição básica de
55
Sobre o conceito de nação, ver Costa Lima (1974), Parés (2007), Dos Santos (1962), Lima (2005); sobre
sincretismo, ver Caroso & Bacelar (2006), Moura (2006), Barretti Filho (2010); sobre entidades, ver Moura
(2004), Moura (1982), Beniste (1997), Santos (2010).
67
qual seja o seu funcionamento, especialmente no Gantois. Com isso, não pretendo definir e
nem dar conta de forma absoluta de qualquer desses conceitos, e sim apresentar alguns
elementos essenciais para a análise que pretendo desenvolver neste capítulo e no seguinte.56
2.1: As nações
em 48 nações. Dentre estas, há variações como: angola bantu, angola caboclo, angola jeje
queto, ijexá angola, ijexájeje, jeje angola queto, queto angola ijexá e muitas outras
combinações. Entretanto, quase todas as pessoas com quem conversei sobre esse assunto
explica Verger (2002): "Na África, cada orixá estava ligado originalmente a uma cidade ou a
um país inteiro. Tratava-se de uma série de cultos regionais ou nacionais. Sangó em Oyó,
Yemoja na região de Egbá, Iyewa em Egbado, Ogun em Ekiti e Ondô, Osun em Ijexá e Ijebu,
Osalufon em Ifan e Osagiyan em Ejibbô." (2002: 32) Embora, como já vimos, houvesse um
processo contínuo de migração de orixás por uma grande parte do território africano, o
agrupamento, tal como existe hoje em dia no Brasil, só se deu, na verdade, devido à diáspora
grupos, cada qual com seu orixá, vindo de diferentes lugares. Porém, há outra controvérsia no
56
Para o leitor interessado em estudar mais a fundo os temas citados, indico as seguintes leituras: Goldman
(1984), Halloy (2005), Elbein (1976), Lépine (1978), Augras (1983), Costa Lima (1977).
57
Fui também a um terreiro ijexá — segundo o filho de santo que me levou, o último da Bahia, remanescente de
Eduardo Ijexá, um famoso pai de santo. A cerimônia era em tudo semelhante à queto mas, segundo ele, há uma
maior presença de Oxum e de Logum Edé, os orixás "da área".
68
que diz respeito a essa divisão dos orixás em nações: se aceitarmos que já havia combinações
exogâmicos (Barber 1990), essas se davam sempre entre orixás da mesma "nação" (aqui no
Alguns estudiosos (cf. Carneiro 1948, Nina Rodrigues 1900) afirmam que esse
"sincretismo" entre nações já existia desde a África. Costa Lima (1974) refuta essa afirmação:
segundo ele, a "mistura", definida por Seu Esmeraldo (1981) no Encontro de Nações de
Candomblé58, usada depois por Serra (1995) na sua "teoria da milonga", teria ocorrido
somente no Brasil. As combinações que existem hoje em dia, em território africano, seriam
Cossard (2008) afirma que atualmente, na África, também há Casas (embora não
embora de definição controversa) abrigando diversos orixás sob o mesmo teto 59— fato
confirmado por dois pais de santo que conheci e estiveram recentemente no Benin e na
Nigéria. Segundo a autora, com o avanço da religião islâmica, tornou-se mais adequado
Brasil.
Mas e o "sincretismo" entre as nações? Fábio Lima um dia me falou: "Primeiro o jeje
foi incorporado pelo queto. Depois, o queto foi incorporado pelo angola. Hoje em dia, todos
incorporam o angola." A hipótese de Fábio engloba, de certa maneira, tanto a teoria de Serra
58
Nas palavras de Seu Esmeraldo: "Há pouco tempo houve uma polêmica por causa da palavra milonga. Mas
milonga é mistura. Foi assim que eles fizeram. Misturaram, porque eles, na senzala, tinham, ali, de todas as
'nações' e, quando era possível, eles faziam qualquer coisa das obrigações deles, então cada um pegava um
pedaço, faziam uma colcha de retalhos, um cozinhava isso, outro cortava aquilo, outro pegava, porque eles
tinham tempo limitado para tal e faziam. A mesma coisa fez-se no cântico. Um, 'eu sei tal cantiga', outro, 'eu sei
tal', e todos cantavam, e então o 'santo' aceitava, e não ficou somente uma 'nação' para fazer aquele tipo de
obrigação. Era a mistura, como já disse, a milonga." (1981: 36)
59
Segundo ambos, porém, cada orixá só pode ser feito por um sacerdote ou sacerdotisa "especialista"; a mesma
mãe de santo jamais poderia fazer orixás diferentes, como acontece aqui.
69
(1995), segundo a qual o candomblé brasileiro se teria consolidado sobre uma base banto, mas
tomado a forma iorubá pela força da presença de escravos vindos deste território (a posterior
afirmação do candomblé angola seria, segundo ele, uma resposta a essa "supremacia nagô"60),
quanto a de Parés (2006), que defende que o candomblé baiano se constituiu a partir de uma
base jeje, que sobre a qual foi erguida uma mistura entre os fundamentos jejes e os iorubás,
Curiosa também é a observação que um ojé61 do Ilê Axipá que conheci fez sobre esse
assunto. Ele me contou que é muito chamado por outros terreiros para fazer o ibó, o
assentamento dos ancestrais. Segundo ele, os candomblés angola são mais "adaptáveis". "Os
angolas lidam melhor com essa coisa de egum", ele me disse. (Eguns são espíritos dos
mortos.) "Engraçado que é uma coisa queto, mas eles hoje em dia pegaram e já estão muito
avançados nesse assunto. Eu tenho feito muito mais ibó em terreiros angola do que em
terreiros queto."
foram denominados "jeje-nagô" — termo que, segundo Serra (1995), não existiria. Costa
Lima (1974) afirma que a expressão "jeje-nagô" deve ser entendida "como designação do tipo
originários dos grupos nagô-iorubá e jeje-fon" (1974: 71). Segundo o autor, o termo nagô era
uma classificação, possivelmente depreciativa, utilizada no Daomé para se referir aos povos
iorubá de qualquer origem (1974: 74). Como já dissemos, atualmente, em Salvador, aos
60
Serra (1995), na "teoria da milonga" citada acima, defende que o candomblé baiano surgiu, primeiramente,
pela mãos de escravos banto. Porém, na segunda metade do século XIX, a chegada maciça de escravos
iorubanos, além de torná-los maioria na cidade, valeu-lhes também a supremacia de sua forma de culto, mais
organizada e ainda mais próxima do modelo original. Foi só depois, no século passado, como resposta a essa
supremacia, que o modelo de candomblé angola afirmou-se como 'nação', marcando suas diferenças e
semelhanças com o modelo dominante.
61
Ojés são homens preparados para lidar com os eguns.
70
Casa Branca e o Afonjá. A origem do nome vem de Ketu, uma localidade do Benin, uma das
mais antigas capitais do povo de língua iorubá — não necessariamente a terra de origem das
fundadoras dessas casas; mas adotado como nome do estilo ritual nelas observado. Nesta tese,
usa-se comumente o termo "queto" para se referir à nação à qual pertence o terreiro do
Gantois e demais terreiros com estilos rituais similares. O termo "jeje-nagô" será usado
Estes estilos rituais a que me referi são, ainda segundo o que declarou Seu Esmeraldo
das diferentes nações. Nas suas palavras: "Pede o temário que eu indique o que torna o angola
diferente de outras 'nações'. É a linguagem, fala, dança, cântico, reza. (...) Essa é só a
diferença que eu acho do angola para as outras 'nações'." (1981: 36) Mais adiante, porém, o
próprio Seu Esmeraldo afirma que todas as pessoas do candomblé precisam conhecer os dois
"lados" (1981: 39), tanto devido à mistura existente quanto para o caso de receber algum
agueré, o ritmo tocado para Oxóssi, um espectador da festa deu santo. No começo, tudo se
passou da maneira usual: o homem se retorcia, abaixava e levantava a cabeça várias vezes, até
que o santo chegou. Uma equede, percebendo que era um santo feito, amarrou um pano da
costa sobre seu peito e o pôs para dançar no meio da roda. Os alabês continuaram tocando o
agueré que o chamara à Casa; mas o suposto Oxóssi se recusava a dançar, fazendo que não
com a cabeça. Os alabês se entreolharam, buscando uma solução que agradasse ao santo.
"Será que não é Oxóssi?", perguntou a senhora ao meu lado para a amiga que a acompanhava.
O impasse durou cerca de um minuto, tempo em que tanto o santo que chegara (e que
continuava fazendo que não com a cabeça) quanto os santos que lá já estavam ficaram
71
parados, com as mãos para trás, balançando o corpo. Até que, num lampejo, a mãe de santo,
que até então se mantivera quieta, sentada em sua cadeira, disse: "É Tauamim!" O recém-
lado seus alguidavires (as baquetas usadas para tocar os atabaques na nação queto) e
começaram a tocar com as mãos (ao estilo da nação angola) uma música para Tauamim.62
com nomes diferentes; para outros, o próprio orixá é outro. Já os orixás jeje foram unidos num
só panteão com os orixás queto: a família jeje (Nanã, Omolu, Oxumarê, Ewá e Ossãe) foi
assimilada, transformando-se num ramo da grande família jeje-nagô. Embora nos terreiros
jeje os orixás também tenham nomes diferentes, as denominações queto são geralmente as
mais usadas.
2.2: O sincretismo
Bahia, especialmente no Ilê Axé Opô Afonjá. Nos planos de Mãe Stella, inclusive, figurava o
imagens, missas, batismo etc. Segundo ela, o sincretismo foi uma estratégia defensiva a que
os negros recorreram durante a escravidão. Como não podiam exercer livremente sua
religiosidade, "escondiam" suas deidades atrás de santos católicos e professavam por estes
uma adoração que, na verdade, era votada àquelas. Mãe Stella defende que, hoje em dia, isso
não é mais necessário. Mas sua opinião é polêmica. "Minha mãe me ensinou assim e é assim
que eu vou fazer", respondeu-me uma mãe de santo quando a interroguei sobre o sincretismo,
62
Carneiro (1948) também fala sobre isso: "Já não é raro tocar-se para qualquer nação em qualquer candomblé.
Assim, no Engenho Velho e no Gantois, duas casas onde a tradição ketu exerce uma verdadeira tirania, pude ver
cantar e dançar para encantados caboclos. É verdade que, nos candomblés nagôs, isto raramente acontece, mas é
uma deferência a que não podem fugir nem mesmo esses candomblés."
72
"e por que eu não posso ser católica e ser do candomblé? Ora... era só o que me faltava!"
Logo que cheguei ao Gantois houve um seminário, organizado pelo Acbantu63, sobre a
proteção aos povos tradicionais. O seminário era chamado "Povos de Terreiros: Diversidade
como Ubiratan Araújo e Jaime Sodré, junto com representantes de sindicatos de trabalhadores
preservação das comunidades que vivem ao redor dos terreiros, detentoras do saber neles
propagado. A uma certa altura, uma representante do governo, que estava na mesa, pediu a
palavra: "Eu estou aqui hoje, como representante do movimento 'Quem é de Axé diz que é',
para pedir um favor! Que vocês se declarem de candomblé no próximo censo religioso do
IBGE! Porque como é possível que a Bahia, o estado mais negro do Brasil, tenha a maioria
esmagadora do seu povo se declarando católico?! Temos que mostrar o poder do povo de
candomblé da Bahia!"
Na mesma hora, percebi que suas palavras não eram muito bem recebidas. Uma filha
de santo cochichou ao meu lado: "Eu sou católica. Quem essa mulher pensa que é para me
dizer de qual religião eu sou?" Logo depois dela, Mãe Carmem, sentada à mesa junto com os
palestrantes, pediu a palavra e declarou, com sua voz pequena: "Eu sou ecumênica."64
Na saída, outra filha de santo, a que havia se declarado católica, falou para mim: "Isso
é um absurdo. Parece aquela ideia de Mãe Stella! Abrir mão do sincretismo... o sincretismo
foi uma ideia soprada por um orixá no ouvido de seu filho! Como ela pode querer que a gente
abra mão de uma coisa que o orixá nos deu?" Depois, numa conversa mais extensa com ela
63
Associação cultural de preservação do patrimônio bantu
64
Curiosa a comparação das falas dos filhos de santo do Gantois com a fala de Dona Olga do Alaketu no
Encontro de Nações de Candomblé de 1981. Quando lhe perguntaram se não achava que a pessoa se declarar
católica e do candomblé representava um reforço para o catolicismo, ela respondeu: "É realmente um apoio para
os santos de Roma, nós, que somos do candomblé. Mas acontece uma coisa: se a gente der força aos santos de
Roma, estamos dando força também aos santos africanos. Estamos tendo a mesma garantia dos santos da África
para os santos brasileiros, de que os santos não são brasileiros, são romanos. Então, a união faz a força." (1981:
30)
73
sobre o sincretismo entre os santos e os orixás, ela me deu uma explicação: "É tipo são Jorge
e Oxóssi. Claro que são Jorge era de Oxóssi. Eles tinham uma relação. A lança, o cavalo... E a
verdade é que no candomblé, quando a gente adora uma imagem de santo, na verdade está
adorando uma imagem da pessoa possuída pelo santo, né? Não é Oxum que está ali naquela
estátua que tem no Gantois, é uma moça dando Oxum. Então, por que a gente não pode
adorar são Jorge? É a mesma coisa."65 E o mesmo tipo de mecanismo também se aplica à
maneira como os sacerdotes católicos são referidos. Um dia eu conversava com uma filha de
santo do Gantois e ela me falou de um padre que eu não conhecia. "Padre Alfredo, aquele de
Iansã!", ela me disse. Quando eu achei graça de sua definição, ela riu: "Tem também aquele
outro padre de Ogum, que até já deu santo no Gantois, coitado! Depois disso nunca mais
apareceu."
Não se pode perder de vista, por outro lado, que o sincretismo não ocorreu apenas
mais evidente seja o da mescla entre o culto de origem africana e os ritos da Igreja
predominante na história do país. Autores como Carneiro (1948) e Serra (1995) apontam que
o candomblé foi constituído num processo sincrético por natureza, já que envolveu a
sincretismo, que "a simbiose com o catolicismo não oferecerá, talvez, dificuldades para o
sacerdotes católicos. Já não sucede o mesmo quanto à fusão entre as seitas africanas. E, assim,
a não ser depois de algum tempo de atenta observação, torna-se muito difícil determinar
exatamente a nação a que pertence qualquer candomblé". (1948: 54) E, antes dele, Nina
65
Mais uma vez a fala desta filha de santo (que, pela idade, não conheceu Dona Olga) lembra a fala de Dona
Olga do Alaketu no Encontro de Nações de Candomblé de 1981. Quando perguntada se achava que a
semelhança entre Oxóssi e são Jorge era uma transposição de espíritos, ela falou: "Encaro [como uma
transposição], não de um espírito qualquer, mas de um espírito que seja elevado, para ser um orixá, e que vem
fazer o bem no mundo, no corpo de uma pessoa." (1981: 29)
74
Rodrigues afirmara: "Mas, se no negro africano havia e há ainda simples justaposição das
ideias religiosas bebidas no ensino católico, as ideias e crenças fetichistas, trazidas da África;
Ora, se essa fusão entre estilos, rituais e religiões está presente na formação do
candomblé, tanto entre suas diversas "nações" quanto na relação com o catolicismo, não nos
uma característica constitutiva do próprio candomblé. Serve ainda como exemplo dessa
capacidade a relação entre o candomblé e o espiritismo, que será mais bem explorada no
próximo capítulo. Embora saibamos que a fusão do candomblé com o espiritismo deu forma à
umbanda, a "única religião brasileira", nas palavras de Bastide (1971), podemos ver
2.3: As entidades
2.3.1: Orixás
2.3.1.1: Crença
Uma vez, numa conversa com uma filha de santo do Gantois sobre os orixás, ela me
falou:
75
perder a forma. Oxóssi detém o poder da caça, ele é o nosso grande provedor, o
alimentador da sua nação, todos precisam do alimento que ele caça e que ele produz
como grande agricultor também (o Orixá Okô, uma qualidade de Oxóssi agricultor),
mas... ele vai precisar das armas de Ogum. Ossãe detém o poder das folhas, nosso
grande médico. Sem folhas, não há remédios no mundo, sem folhas não há filho de
santo. Ossãe precisa do sol, poder de Obaluaiê; da água, poder de Oxum; da terra,
poder de Onile e Obaluaiê, o rei da terra.
As plantas, flores etc., toda a flora, precisam da ação dos ventos de Iansã para
proliferarem, além dos pássaros (Poder de Oxóssi e das Iami 66 ) para fazerem a
polinização. Iroko, com seu poder de Tempo, vem trazendo as estações, as mutações e
o infindável do mundo. E a força e a riqueza das águas salgadas de Iemanjá. Pense nas
vidas que ela acolhe dentro de si.
E o que seria dos orixás sem seu grande mensageiro Exu, com sua velocidade
estonteante em levar e trazer as mensagens, um verdadeiro Sedex 10! Já pensou em
Oxalufã, com todos os seus poderes, tendo que correr? Oxalá detém a maioria dos
poderes, daí vem a sua força! Ele é autossuficiente até para se reproduzir, tendo o
masculino e o feminino dentro de si. A perfeição!
Para quem conviveu com pessoas de candomblé, como eu, a ideia de perguntar a
alguém sobre a crença nos orixás parece estranha. Um amigo de Salvador me falou, a respeito
disso: "Como a pessoa não acredita em orixá? Ela não acredita no mar? No vento? Na água do
rio?"67 Como se manifesta claramente nessas palavras, o que leva as pessoas a crerem nos
Mas não é por acreditar nos orixás, porém, que a pessoa vai chegar numa festa de
candomblé e confiar na veracidade de tudo que vê ali. Logo na chegada a uma festa, o olho
treinado já identifica quais orixás são "verdadeiros" (ou seja, quais pessoas estão
incorporando de fato o santo) e quais são "falsos" — e vale a ressalva de que apresentar
66
Iami, segundo Cacciatore (1977), é um "nome que representa coletivamente (as Iami) todas as genitoras
ancestrais femininas míticas: Odudua, Nanã, Iemanjá, Oxum etc. Elas são ligadas à cabeça que contém um
pássaro, representando ambos o poder genitor feminino: a cabaça, o ventre; o pássaro, o elemento procriado. são
cultuadas na representação de Iami Oxorongá, nos candomblés nagôs mais tradicionais." (1977: 139)
67
"Acreditar que os orixás foram figuras mitológicas é para quem quer. Você pode achar que Oxum é o rio,
Iemanjá é o mar, o que você quiser.", me explicou um pai de santo de São Paulo que conheci em Salvador — "o
importante é que funciona, minha filha. Você quer engravidar, dá omolocum [a comida de Oxum, feita de feijão
fradinho e camarão seco] pra Oxum e engravida. Vai explicar como? Vai dizer que não acredita?"
76
ocasionalmente um orixá falso não significa que essa falsidade seja sistemática. "Tem muita
marmotagem", me disse Fábio. "A gente nunca deve acreditar em tudo. Eu, por exemplo, não
acredito em caboclo. Para mim, caboclo é uma representação do inconsciente das pessoas. E
os orixás, minha filha, para mim só dez por cento estão incorporados mesmo. Essa ideia de
que todo mundo pode dar santo é uma coisa muito estranha. Para mim, a maioria é ekê (transe
falso) e a minoria é de verdade." A crença, portanto, está sempre subordinada a uma análise
casuística.
O candomblé é uma religião baseada na eficácia. "Uma religião da mão", como disse a
mãe de santo do terreiro onde Johnson (2002) pesquisou, no Rio de Janeiro. "Candomblé é
ciência", me disse a mãe pequena do Gantois. "Você pega uma coisa aqui, outra ali, mexe a
energia e as coisas acontecem. É física." O candomblé é uma práxis. E a fé, assim, não se
Gantois, por exemplo, é generalizada a convicção de que o filho de santo nunca se lembra de
nada do que ocorreu durante a possessão. Se a filha ou o filho de santo se lembrar de alguma
coisa, isto já basta como prova de ekê. "Como ela pode saber que isso aconteceu, se era
Iemanjá que estava lá?", perguntou-me uma filha de santo, referindo-se a outra. Da mesma
forma, considera-se sinal certo de ekê o orixá incorporado não cumprimentar as pessoas com
quem o filho de santo antipatiza. "Orixá é orixá, pessoa é pessoa", me disse uma filha de
Omolu da Casa. "Como é que pode o orixá não falar com alguém só porque a pessoa em que
está incorporado não gosta dela?" Perguntei-lhe se o orixá não sabia o que se passava na
cabeça da pessoa: "Claro que sabe! Mas a pessoa não gostar de alguém não quer dizer que o
Um dia, numa festa de Oxum, vi um filho de santo elogiar a conta68 nova de uma
68
Chama-se conta o colar de contas que os filhos de santo (e qualquer um que tenha alguma ligação com o
candomblé) leva no pescoço. A cor da conta nos diz a qual orixá ela pertence: amarela a Oxum, azul clara a
Oxóssi e assim por diante.
77
moça de Oxum, conhecida por seu mau gênio. Ela respondeu de bate-pronto: "Tira o olho!",
dando-lhe as costas. Durante a festa, sua Oxum chegou e a primeira coisa que fez foi procurar
o filho de santo que havia elogiado a conta, tirá-la do pescoço e entregá-la a ele. A filha de
Oxum, quando voltou do transe e viu o que acontecera, ficou muito contrariada e pediu a
conta de volta, ao que ele respondeu na mesma hora: "De jeito nenhum. Oxum que me deu.
Você vai tomar de volta o que o santo deu?". Ela então se conformou.
2.3.1.2: Forma(s)
maneira como ele se manifesta. Além de serem as divindades que regem certos fenômenos
naturais, eles são, ao mesmo tempo, o próprio fenômeno na natureza. Iansã, por exemplo,
além de ser a rainha dos ventos, é o vento, mostra-se como vento, atua como vento.
Manifesta-se como vento e é o vento divinizado. Tanto Goldman (2005) quanto Halloy
os orixás são forças da natureza, ancestrais divinizados, partes que representam o todo,
69
Goldman (2005) abordou o assunto de maneira original. Segundo ele, os orixás poderiam ser vistos como
modulações de uma força única, o axé. Dessa maneira, além de contemplar o princípio de classificação usado
por Bastide (1958) em sua análise, Goldman estabelece princípios importantes para conceber os orixás como
entidades que ao mesmo tempo são, representam e estão nos seres e coisas com que mantêm relações. Segundo o
autor: "Em termos mais compreensíveis para nós, essa ontologia poderia, talvez, ser resumida como uma espécie
de monismo quepostula a existência de uma única força. Essa força recebe o nome de axé (...). Modulações do
axé — em um processo simultâneo de concretização, diversificação e individualização —constituem tudo o que
existe e podeexistir no universo. As próprias divindades ou orixás, em primeiro lugar. Cada um deles não é mais
que a encarnação de uma modulação específica de axé. Em seguida, os seres e coisas do mundo: pedras, plantas,
animais, seres humanos — mas também cores, sabores, cheiros, dias, anos etc — ''pertencem'' a diferentes
orixás, mas apenas na medida em que com eles compartilham dessa essência simultaneamente geral e
individualizada.(...)
Pode-se dizer, em seguida, que essa cosmologia se desdobra em uma mitologia e em uma série de
intrincados sistemas de classificação; ou que essa ontologia comporta uma metafísica e uma filosofia da natureza
e da sociedade. Os mitos apresentam, sobretudo, o caráter polívoco das divindades: simultaneamente essências
imóveis, forças da natureza (...), instituições culturais (...), indivíduos que viveram no passado (...). E não se trata
aqui apenas (...) de representações (...) ou controle, mas de uma forma muito complexa de agenciamento. Em
78
Ainda assim, ao mesmo tempo em que o orixá está presente em inúmeros objetos ou
fenômenos, que o representam e dos quais faz parte, a forma principal, individuada, na qual
ele vem à Terra é aquela que se incorpora em algum ser humano. Mas convém não esquecer
Certa noite, quando eu já estava na Bahia havia alguns meses, fiquei até bem tarde
conversando com Fábio Lima numa rua na parte alta do Garcia. Em torno de uma hora da
manhã, decidimos ir para casa. Havíamos passado grande parte da noite conversando sobre
Quando descíamos a ladeira que liga a parte alta à parte baixa do Garcia, olhei para o
lado e vi, andando na calçada, sozinha, uma senhora muito idosa, toda vestida de lilás. Ela
caminhava apoiada em um cajado e mantinha as costas bem curvadas. Fiquei olhando aquela
cena e pensando quão inusitado era uma senhora andando sozinha na madrugada de uma rua
vazia, ainda mais com aqueles problemas de locomoção. Comentei então com Fábio, que
estava ao meu lado. Ele olhou para trás, procurando a velha senhora enquanto gritava: "É
Assim aprendi que os orixás não somente se manifestam nos seus filhos, mas que há
situações em que também podem aparecer em forma corpórea. A aparição de Nanã, segundo
Fábio, devia-se ao fato de termos falado muito sobre sua mãe pequena, que é de Nanã. Isso
teria levado a própria Nanã a aparecer para nós, mostrando que estava próxima e atenta ao
que se dizia sobre sua filha. A aparição corpórea de um orixá assinalaria sua proximidade, seu
cuidado.
Contei isso a muitas pessoas do candomblé, que não manifestaram nenhuma surpresa.
"De vez em quando eles aparecem mesmo", foi o que me disseram, como se fosse uma coisa
certo sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o vento são Iansã, e a doença é Omolu. Natureza, cultura, seres humanos,
o cosmos, tudo parece articulado nesse sistema." (Goldman 2005: 109)
79
banal. Dona Cici, uma griô70 muito conhecida no universo do candomblé baiano, me explicou
Eles podem te aparecer mesmo...eu acho que isso acontece em caso de perigo. Alguém
do nada te acode. Numa estrada, em muitos lugares você dá aquela freada, depende da
natureza do lugar que você está. E você sabe que Nanã é abodê. Você sabe o que são
abodês? São orixás que caminham à noite: Omolu, Nanã, Ogum. Caminham a noite
toda. Muitas vezes você vê e pensa que é humano, quando não é humano. Agora,
Omolu uma das coisas características dele são os cheiros tão enjoados que a gente
chama... A gente não pode dar o nome, é melhor dizer nauseabundo. Quando a energia
dele está perto a gente já sente o cheiro. Nem sempre a gente vê ele... Clarinha, você
pode sentir a presença do orixá através de perfumes. Oxum se manifesta muito em
perfumes, assim como egum. Egum pode ser cheiro de flor, como angélica. Essa hora,
da visão, é a hora que você se bate entre o real e o irreal. Mas você me ouve ou ouve
outros contarem a você, e de repente mais adiante você vai se bater com aquilo. Aí às
vezes você vai se perguntar: será que é ou não é? Vi ou não vi? Ou é ideia da minha
cabeça?
Depois Dona Cici me contou que, logo que veio morar em Salvador, após a sua feitura
— devido a um problema muito sério de saúde mental —, trabalhou durante muitos anos
como cobradora de ônibus. Numa das suas viagens, passou pelo Iguatemi, um grande
shopping center de Salvador. Segundo ela, logo que passou pelo Iguatemi teve o instinto de ir
representados por animais e, em última instância, podem ser os animais. Em sua maioria, os
animais são de um determinado orixá e podem ser controlados por ele, ao mesmo tempo em
que lhe servem de alimento. A cobra, por exemplo, representa, simboliza e faz parte (entre
outras relações possíveis) de Oxumarê e de Ewá. Não lhes serve de alimento, mas pode ser
controlada por eles, que dançam imitando uma serpente; uma serpente tanto pode ser o orixá
Uma filha de Ewá do Gantois me contou que certa vez um vendedor da feira de São
Joaquim, sabendo que ela era de Ewá, resolveu presenteá-la com uma cobra. Sem saber o que
fazer com o animal, ela o guardou em uma cesta, da qual ele conseguiu escapar. Quando seu
marido chegou em casa, viu a cobra solta no quintal e foi tentar pegá-la com a cesta. Nesse
momento, a cobra atacou-o e mordeu sua mão. Ele começou a gritar e ela correu para onde ele
estava. "E o que você fez?", perguntei a ela, que me respondeu: "Eu? Eu não fiz nada. Ewá
que fez. Não deu tempo nem de eu chegar no jardim e ela chegou. Daí, quando eu acordei, já
estava a cobra no cesto e o meu marido com a mão curada. Ela deu lá o jeito dela, tanto que
Nesse caso, a Ewá desta filha de santo teve a capacidade não só de controlar a cobra
como ainda de curar a mordida sofrida pelo seu marido. Ewá, no candomblé, é representada
por uma cobra; ao mesmo tempo, tem uma relação com as cobras: as cobras são Ewá, mas
Ewá é um pouco cobra: comunica-se com as cobras, pode dominá-las, pode inclusive curar
uma mordida de cobra sem precisar recorrer aos remédios tradicionais da medicina. A relação
81
de Ewá com as cobras é a mesma de Oxumarê: uma relação que provoca um questionamento
da própria noção de representação, como apontado por Goldman (2005) e Halloy (2005). Os
No final do meu primeiro ano de pesquisa, fui com Fábio a uma festa de Ogum no
terreiro de Oxumarê. Não havia muita gente, Fábio me explicou, pois nesse dia ocorriam
festas em muitos outros terreiros da cidade. "Hoje a concorrência está grande", ele me disse.
Ao final da festa, fomos jantar numa sala coberta, contígua ao barracão. Depois de
terminarmos, ficamos conversando com algumas egbomes do terreiro, logo abaixo de uma
grande mangueira. "Eu vou sair de baixo dessa árvore que deve estar cheia de cobra", Fábio
falou. Foi a deixa para que elas começassem a contar histórias: "Ih, menino, aí tem cobra
mesmo. Outro dia a gente estava fazendo o xirê e de repente entrou uma cobra no salão.
Menino, a cobra entrou na roda, parecia que queria dançar! Mas aí foi uma loucura de um
Outra egbome então contou: "Outro dia mesmo eu estava passando aqui embaixo e
caiu uma cobra bem na hora... Quase caiu na minha cabeça! Elas moram aí, na árvore. Nas
noites de lua cheia elas saem para passear." Outra então acrescentou: "Foi mesmo, semana
passada eu estava dormindo na esteira, quando abri o olho, ela estava do meu lado!
Danada...". Fábio então começou a contar que no seu terreiro, o Afonjá, tem uma jaqueira em
que, nas noites de lua cheia, as jacas viram cobras. "Menina, e o medo? Nas noites de lua
cheia eu é que não chego nem perto daquela jaqueira! Você não acredita, as jacas viram uma
cobra, assim, enroladinha, parecendo uma jaca mesmo! Mas aí elas descem da árvore para
passear no terreiro... Eu, hein, em noite de lua cheia eu durmo é na minha casa!"
71
Wafer (1991) também faz referência a esta cobra que dança no salão.
82
orgulho, as cobras do terreiro são todas manifestações do orixá patrono da Casa. A cobra que
dança, que dorme na esteira, que mora na árvore — nenhuma delas pode ser incomodada. A
jaqueira do Afonjá, por sua vez, é sagrada, como Fábio me explicaria depois — e fica perto da
Casa de Oxumarê e Ewá. Por isso as jacas viram cobras, e se dirigem às casas de seus orixás
para saudá-los.
candomblé — tampouco é uma representação. "A conta é o orixá", me disse Fábio. Em outro
momento, ele me disse: "Levar a sua conta é levar um pedaço do orixá com você". Andar
com sua conta no pescoço, portanto, é andar acompanhado do próprio orixá: a conta é o orixá,
é uma parte do orixá, e também sua morada. A relação, neste caso, é mais que metonímica:
uma parte do orixá, como a conta, não se limita a representar a totalidade do, mas é a
um "traço material da relação de intimidade ritualmente instaurada entre o filho de santo e sua
divindade" (2005: 532), da mesma forma que a pedra usada em seu assentamento; e afirma
que, no Xangô do Recife, onde fez sua pesquisa, os participantes do culto afirmam que "o otá
é o orixá" (2005: 514) — mas uma afirmativa desse tipo depende de uma distinção prévia
fundamental, entre pedras comuns e otás (as pedras que são orixás) (2005: 515). Já Sansi
(2009), numa análise sobre os assentos (o que no Gantois se chama assentamento) dos orixás,
diz que "os assentos contêm os fundamentos dos orixás, os elementos onde eles moram:
Mas essa pedra, segundo Sansi (2005 apud Goldman 2009) só pode ser encontrada porque, de
algum modo, já estaria destinada a esse uso. Uma filha de santo do Gantois que entrevistei me
contou uma história que remete a essa questão, que reproduzo a seguir:
Tem um Xangô que mora aqui em casa. Foi assim: eu estava na fazenda, em Ilhéus, e
83
aí caiu um raio na roça, saiu cortando. Muitos anos atrás. Aí quando eu cheguei lá na
roça o cara que trabalhava na fazenda disse: 'Caiu um raio ali, derrubou aquela árvore',
para eu não pensar que ele que tinha cortado a árvore. Aí eu perguntei para ele: 'Caiu
onde? Se enterrou onde? Isso que me interessa!'. Ele me mostrou e eu marquei. Sete
anos depois eu fui lá, mandei cavar e tirei ele. Que esse é o verdadeiro Xangô, o raio
que vira pedra. Na hora que caiu, é fogo. Aí depois o fogo sai comendo aquela coisa e
cristaliza ali dentro, e aquilo vai sedimentando e leva sete anos para virar pedra. E
pedra do raio cresce e entra na terra. Essas pedras são vivas, têm filho. Porque não é
toda pedra que tem gente dentro, né? Quando a gente é de candomblé há muito tempo,
a gente sabe só de olhar. Ali na Paralela [uma avenida grande de Salvador] tem muito
vento, né? Então as pessoas que vendem coisas ali na beira da avenida, elas botam
pedras em cima das coisas, para não sair voando. Aí eu olho pras pedras e penso: 'Essa
tem gente, essa não tem, essa não tem, essa tem.' Eu sinto quando tem uma pessoa ali.
Nina Rodrigues considerava que "Xangô é a pedra de raio em que o orixá está
encantado" (Nina Rodrigues apud Ferretti 2006). Podemos então inferir algo sobre essas
diferentes afirmativas? Existe uma relação diferencial entre ser a pedra e estar na pedra —
componente não-eu da pessoa: o seu orixá. É uma 'coisa' sui generis: não esgota a presença do
orixá, que nunca se reduz ao seu assento, mas tampouco é símbolo do orixá, uma vez que este
não é simplesmente indicado ou sugerido pelo otá — está ou reside nele. Talvez seja mais
apropriado descrevê-lo como lugar em que se encontram deuses e humanos através de uma
sugere que pensemos sobre isso a partir de um aspecto fundamental do candomblé: a feitura.
Partindo da análise de Halloy (2005), afirma que há, na verdade, três categorias de pedras: as
comuns, ou seja, as que não são (e nunca serão) um orixá ou sua morada; as que podem
tornar-se orixás, se devidamente preparadas; e as que são orixás (2009: 123). Segundo ele,
"Nesse sentido, somos todos como as pedras. Também nós podemos ser 'comuns', podemos
84
(2009: 123) Segundo Goldman (2009), poderíamos pensar na iniciação como um processo de
transforma em algo que, no fundo, sempre foi. Nesse sentido, estaríamos diante não de uma
poderia aplicar à dupla qualidade dos orixás referida acima, de tanto ser a pedra quanto estar
na pedra. A um só tempo, o orixá tanto está na pedra quanto é a própria pedra, assim como é
a conta e está na conta, é uma parte da cabeça de seu filho e mora na cabeça de seu filho. O
orixá, no fim das contas, mantém uma relação com estes objetos e pessoas — relação que
engloba ao mesmo tempo todos esses sentidos e pode ser intensificada através do processo
Certa vez fui com Fábio a um seminário sobre dança afro. Lá, Clyde Morgan, veterano
dançarino americano residente há muitos anos em Salvador, falou sobre esse assunto, quando
lhe perguntaram se a dança afro representava os orixás: "No candomblé não existe
pneu, é Ogum que está ali! Vejam as docas: Ogum está ali!" Para Clyde Morgan, não era
certo dizer que a dança afro representa os orixás, da mesma maneira que não se pode dizer
que o motorista de táxi representa Ogum, ou é de Ogum. Ele é Ogum, em mais uma amostra
Fato semelhante ocorreu numa festa do Gantois: num dado momento, entraram dois
policiais militares pela porta. Na mesma hora, uma egbome da casa correu para os pés da mãe
Como vemos, há pelo menos três formas em que os orixás podem aparecer, além da
traz em sua cosmologia uma fórmula de relação em que o ser e o estar não estão separados: o
85
orixá é a conta e está na conta; Ewá é a cobra e está na cobra; Ogum está no motorista de
táxi e é o motorista de táxi. E é ao longo dessa fronteira, tão fluida, que pretendo seguir ao
2.3.1.3: Instâncias
politeísta. A mitologia iorubana que lhe dá corpo é bastante variada, mas, grosso modo, diz-se
que o mundo foi criado por Olodumare, o deus supremo. Além de criar o mundo, Olodumare
criou os orixás e, posteriormente, os seres humanos. O universo, dividido em duas partes com
formato de cabaça (o orum, o mundo espiritual, e o aiyê, o mundo terreno), foi então ocupado
primeira delas é a do orixá geral, a entidade propriamente dita: Oxum, Oxóssi, Iemanjá, Iansã,
e assim por diante. Considera-se que, de todos os orixás existentes na África (mais de
o panteão afro-brasileiro73.
A segunda instância seria a das "qualidades". Lima (2007) cita a seguinte explicação
que ouviu sobre as qualidades de Oxum: "Existem muitas Oxuns, assim como são muitos os
trechos do rio. O rio tem sempre uma nascente, onde a água é cristalina e tranquila. Daí por
diante, seu curso d'água pode ser raso ou profundo, manso ou agitado, límpido ou barrento,
largo ou estreito, sinuoso ou reto, plano ou encachoeirado. Até que desemboca em outro rio, e
72
Sobre isso, ver, por exemplo, Elbein (1975), Prandi (2001), Beniste (1997).
73
De acordo com Bastide (1971), a escolha destes orixás teria ocorrido por motivos sociológicos. O orixá da
agricultura, por exemplo, não foi cultuado aqui — já que, favorecendo as colheitas, o escravo estaria,
indiretamente, favorecendo seus senhores.
86
daí no mar. Assim também é Oxum, que pode se apresentar de muitas maneiras, mas continua
sendo sempre ela mesma, esteja como estiver." (2007: 124) Assim, cada qualidade do orixá
disse a Lima seu informante, cada qualidade é uma instância diferente de Oxum, seja de
"Cada uma é de um jeito", me disse uma filha de santo do Gantois. "Essa história de que toda
Oxum é vaidosa, toda Oxum é bonita, ou gordinha, isso é tudo marmota. Por isso que é tão
difícil adivinhar o orixá de alguém, porque dependendo da qualidade ele pode ser totalmente
ao orixá de cada pessoa — o que na Bahia se denomina "santo"75. Fazer o santo, por exemplo,
significa propiciar a origem desse orixá individual, exclusivo de cada pessoa, cuja própria
74
Esta questão está também diretamente relacionada à organização dos orixás em "famílias". Uma grande
"família mitológica", segundo a definição de Segato (1995). No meu campo, vi muito o termo "família" ser
utilizado para definir grupos de orixás: por exemplo, Nanã, Oxumarê e Omolu são chamados, no Gantois, de
"família da palha". Ogum, Oxóssi e Exu, a "família de Ogum". Oxalá e Oxaguiã, a "família funfun". Ou seja, no
Gantois as referências às famílias não se devem tanto aos laços de casamento quanto aos de descendência. Nanã
é mãe biológica de Omolu; Ogum, Oxóssi e Exu são irmãos; Oxalá e Oxaguiã são qualidades do mesmo orixá, o
único caso em que as qualidades foram elevadas à categoria de orixá geral. Já os casamentos ocorrem entre
muitos deles: Oxum foi casada com Oxóssi, Xangô e, em alguns mitos, com Ogum; Iansã, com Oxóssi, Xangô e
Ogum; Obá, com Xangô e com Ogum; Oxalá, com Nanã e com Iemanjá; e muitos outros. Sobre isso, Lima
(2007) escreve: "No candomblé (...) convivem mitos provenientes de diferentes regiões da África (...). Isso
explica em parte a multiplicidade de 'esposos' e 'pais' de Oxum. Assim, o povo-de-santo é capaz de atribuir
diferenças a partir das 'qualidades' do orixá (a Oxum que vive com Oxóssi, por exemplo, não é a mesma que tem
Ogum como esposo) ou, ainda, dividindo a história do orixá em etapas: Oxum primeiro foi casada com Orumilá,
depois com Xangô, como se diz em certas casas." (2007: 70) Alguns autores explicam essa variedade como fruto
da origem geográfica dos orixás; assim, em determinados lugares Oxum é mulher de Oxóssi; em outros de
Xangô, e assim por diante. Cada região da África tem seu corpus mitológico, não necessariamente condizente
com a tradição de outros lugares.
75
Opipari (2004) definiu bem a relação entre santo e orixá: "(...) é o santo (o orixá atualizado, personalizado)
que dá consistência ao orixá em seus aspectos mais gerais. 'Dar consistência' não é do domínio da metáfora ou da
representação; o santo não substitui o orixá nem o representa. Esse bloco indissociável, longe de reproduzir oque
era até então virtual, o orixá, é, antes, tomado em um processo criativo." (2004: 189)
87
desfeito após a morte da pessoa que o leva, num ritual específico, exceto em casos muito raros
de transmissão por herança. A ideia é de que esse santo nasce associado à pessoa, durante a
feitura. Quando uma amiga do Gantois fez o seu santo, depois da minha volta ao Rio, outra
amiga me descreveu da seguinte maneira a primeira apresentação do santo, que tinha acabado
de presenciar: "Iemanjá nasceu!" Da mesma forma, certa vez eu estava em um terreiro que
não o Gantois e uma moça comentou com um rapaz sentado ao lado dela, falando de uma
Ewá que dançava muito desengonçada: "Ela ainda está aprendendo a ser orixá, né? Eu achava
que eles já vinham sabendo dançar, fazer tudo", ao que o rapaz lhe respondeu: "Não, não, eles
têm que aprender; ou melhor, a pessoa tem que aprender." Outra vez fui a uma festa no
terreiro de uma filha de santo do Gantois, e fiquei impressionada com uma Oxum que, ao
dançar, tremia o corpo todo, a ponto de uma equede ser obrigada a segurar o tempo todo um
laço traseiro de sua roupa para impedi-la de cair. Perguntei depois a essa equede por que ela
dançava desse jeito, e ela me respondeu: "É um orixá muito novo, recém-nascido. Ainda não
como se deve cuidar dos orixás. Uma vez, conversando sobre esse assunto com uma filha de
santo da Casa Branca, ela me disse: "Meu pai sempre dizia: não misture os leites; se a pessoa
toma Nestogeno e você dá Itambé, o organismo rejeita. Candomblé é igual, porque candomblé
não tem regra. O orixá gosta daquilo com que está acostumado. Ele nasceu ali, comendo
daquele jeito... É aquilo que funciona. Se você faz desse jeito e funciona, faça desse jeito. Se
você vier falar que está errado e eu fizer do meu jeito, vai dar errado, porque o orixá está
acostumado do meu jeito." Ao que outro amigo que participava da conversa completou: "A
relação com orixá é você quem cria. É por isso que não tem o certo e o errado... Não tem o
88
2.3.1.4: Os orixás no Gantois
"A festa pública não constitui senão pequena parte da vida do candomblé", escreveu
Bastide (1958: 31). Realmente: quem assiste a uma festa de candomblé não imagina todo o
trabalho feito para que aconteça. Assim como tudo no candomblé, o resultado final da festa
depende de inúmeras variáveis cuja sequência de execução deve ser extremamente bem
Toda festa de candomblé começa muitos dias antes de as portas do terreiro se abrirem
para gente que não é da Casa. Com alguns dias de antecedência, todos os filhos do orixá que
será homenageado começam a dormir na Casa. E, como se diz, "no candomblé não se dorme,
pelo terreiro, pois geralmente cada filho do orixá traz pelo menos uma galinha ou um galo
(quando não um pavão, como no caso de Oxóssi, ou uma tartaruga, na festa de Xangô),
necessário que ocorra à noite, exceto no caso de Exu. A matança costuma acabar tarde; aí
todos tentam dormir um pouco, nas esteiras. Nos dias de festa, os tambores salvam a casa às
cinco da manhã. É a "alvorada", como se diz. O salão costuma estar repleto de esteiras;
quando os tambores tocam, podem-se ver as pessoas levantando e juntando suas coisas. Pela
manhã há mais obrigações, que costumam acabar por volta de meio-dia, quando começa a ser
preparado o almoço, servido sempre por volta de três da tarde. Depois do almoço muitos
tentam descansar; mas ainda é preciso arrumar o salão, limpar a casa, lavar a louça.
"Trabalhar é adorar o orixá", me disse uma egbome do Gantois. "Você acha que está só
lavando louça, mas o orixá está vendo! E vai te recompensar por isso."
89
No Gantois, de final de setembro a final de novembro acontece a função, nome dado
ao período em que as festas ocorrem geralmente duas ou três vezes por semana. É curioso
observar como a percepção de uma festa muda conforme vamos aprendendo mais sobre o
candomblé e sobre um determinado terreiro em especial. Na primeira festa que assisti, não
conseguia identificar os orixás antes de estarem vestidos; não entendia grande parte da
dinâmica e, no fim da noite, estava cansada de tanta informação. No final da minha estadia,
além de manter relações com quase todos os orixás da Casa, entendia quase qualquer coisa
que pudesse acontecer, e me mantinha sempre atenta, sem grande esforço, até o final da festa.
As festas também são pequenas histórias, e é a sucessão delas que dá forma ao universo do
candomblé. Cada festa era como parte de um quadro, e só com o conjunto delas o quadro total
No Gantois cada pessoa pode receber, além de seus próprios orixás, Oxalá (em sua
variação mais idosa, Oxalufã) e Ossãe. Além disso, pode manifestar seu segundo orixá, além
do primeiro e principal. No começo é difícil identificar qual o orixá presente, mas logo a
diferença se torna clara. "O clima da pessoa muda", me explicou um filho de santo. Da
mesma forma, diz-se, no Gantois, que o clima da Casa muda de acordo com o orixá que esteja
sendo homenageado. Assim, na festa de Oxalá, todos se sentem cansados; na festa de Xangô,
o clima é quente; e, na festa das Aiyabás (orixás femininos), há sempre muita briga.76
Segundo me explicaram, nas festas "ele (ou ela) fica mais perto do que o normal". A
influência do orixá, então, é sentida por todos. Uma vez, ao final de uma festa de Oxum,
quando todos já se preparavam para ir embora, percebi uma agitação estranha no terreiro:
pessoas corriam para lá e para cá, e de repente comecei a escutar gritos de orixás chegando.
As pessoas corriam, pedindo para as visitas irem embora e só ficasse quem era da Casa. Três
76
De maneira geral, considera-se que o terreiro é um lugar onde o orixá está sempre perto. Certa vez eu estava,
dentro do terreiro, comentando com umafilha de santo que algumas pessoas falavam que eu era de Oxum, outras
que eu era de Iemanjá. Ela então falou: "Shhh, não fala isso aqui que elas podem ficar com ciúme, e aí você pode
provocar uma guerra de orixá. A gente conversa sobre isso depois, lá fora".
90
Oguns começaram a correr pela casa com vasilhas de umieró (preparado que se usa em
lavagens espirituais), que espalhavam pela casa. Um Omolu andava para lá e para cá
procurando alguma coisa, e uma Iansã se fechou com Mãe Carmem em um quarto. Mais
tarde, muitos passaram mal, especialmente uma filha de Oxum e um de Xangô, muito amigos.
A filha de Oxum me explicou: "Foi o carrego! Claro que alguém fez feitiço, né? Trouxe
algum feitiço para a festa e largou aí. Aí sobrou pra mim né, quer dizer, sobrou para Oxum. E
pra Xangô, que veio me defender...". Os dois filhos de santo tiveram uma alergia grave na
pele, que forçou a ida de ambos ao hospital. Alguns dias depois, conversei novamente sobre o
assunto com a filha de Oxum, para quem o fato de o episódio ter acontecido na festa de Oxum
era "simbólico": ao mesmo tempo que Oxum é um orixá famoso, especialmente no Gantois,
ela tem "enredo com Iami, a grande feiticeira", como ela me explicou, e portanto se relaciona
de perto com ela. Essa relação com a feiticeira explicaria tanto o fato de Oxum ser feiticeira
quanto o de atrair feitiçarias para perto de si. Ao mesmo tempo, a relação entre Xangô e
Oxum explica o motivo de o feitiço ter atingido também seu amigo, filho deste Orixá. "Xangô
é o rei, o patrono da justiça", ela me explicou, "ele vai defender quem precisa de defesa. E não
é qualquer Xangô, né, é o Xangô de fulano", ela me disse, enfatizando que essa relação
o angola", os caboclos e exus são responsáveis, digamos, pelas tarefas mais "cotidianas" do
terreiro (fazer ebós, limpezas, dar consultas etc), permitindo que os orixás se mantenham
numa esfera menos acessível, no Gantois tudo é feito diretamente pelos orixás. Ali, os orixás
agem como intermediários diretos entre os dois mundos, o espiritual e o terreno, o orum e o
aiyê. Embora não falem muito, especialmente não em público, muitas vezes transmitem
recados para os presentes. Sua voz é diferente da voz humana, sua linguagem bem
característica e difícil de entender — e é por isso que muitas vezes, quando querem passar um
91
recado, chamam algum iniciado para traduzir. Certo dia, por exemplo, fui chamada pela
Oxum de Leila, a neta de Mãe Carmem. Cheguei perto dela e me abaixei, encostando a testa
no chão para salvá-la; ela me cumprimentou, um gesto com os dois braços como se estivesse
navegando; depois encostou as duas mãos num joelho e depois no outro, e abriu os braços
para que eu a abraçasse. Depois, começou a falar comigo. A voz de Oxum é quase um
sussurro, em tom bem infantil; é difícil entender o que ela fala. Ela falava: "Voxê vai fazê uma
coija axim... axim... axim... Muito importante", e repetia "muito importante", abrindo os
braços. Depois de algum tempo chamei uma equede para traduzir. Ela então me explicou que
Oxum estava dizendo que a minha presença ali era muito importante para ela.77
Há ebós de limpeza do terreiro, por exemplo, que são feitos por Ogum. Não é raro,
durante um almoço de dia de festa, ouvirmos o grito de um Ogum que chegou para levar a
cabo alguma tarefa. Já os ebós de saúde, em sua maioria, são feitos por Omolu ou por
Oxumarê. Certa vez, tive um problema de saúde e Mãe Carmem mandou que eu fosse ao
terreiro. Chegando lá, ela separou algumas coisas (um ovo, uma vela, folhas...) e mandou
chamar uma filha de santo de Omolu. Quando ela chegou, uma egbome que estava ajudando
Mãe Carmem a chamou num canto e ela já voltou incorporada com Omolu. Descemos então
para perto do quarto de Omolu, eu, ela e a egbome, e foi Omolu que passou todas as coisas em
mim, quebrando depois o ovo, as velas e as folhas para que levassem com eles o mal que me
afligia.
77
Certo dia, eu assistia à festa de Oxóssi no salão quando entrei para beber água. Na antessala dos quartos de
santo, vi uma cena inusitada: O Logum Edé de um filho de santo homem do Gantois passava um ebó para outro
filho de santo, também filho de Logum Edé, mas que não estava de santo e anotava tudo num papel. Logum
falava com a voz típica dos orixás: para mim era quase impossível compreender a sua fala. Mas o filho de santo,
com sua experiência, entendia e anotava tudo o que Logum lhe dizia, e fazia uma lista com o material necessário
para o ebó.
92
estranha para um membro do candomblé. Afinal, existem vários tipos de orixás: os que são
efetivamente feitos no terreiro (ou seja, que podem se manifestar nos filhos de santo), os que
podem ser assentados, os que já estão assentados mas não podem ser feitos, e os que eram
feitos mas deixaram de sê-lo, por motivos diversos. Se uma pessoa chega a um terreiro e se
conclui que ela necessita fazer algum orixá que não se faz mais na Casa, ela é encaminhada
para outro terreiro que ainda detenha a técnica necessária. Assim, o leque de possibilidades é
amplo, e contempla sempre uma gama de variações possíveis. No Ilê Axé Opô Afonjá, por
exemplo, não se faz Ewá; muitas pessoas me disseram que o Gantois é um dos últimos
terreiros a conservar este saber. Já no Gantois, cultua-se Exu mas não se faz Exu — o que não
quer dizer que um Exu feito em outra Casa não possa comparecer ao terreiro.
Vou apresentar aqui, portanto, somente os orixás que são efetivamente feitos, de
maneira completa, no Gantois — ou seja, aqueles que podem chegar e dançar nas festas
públicas do terreiro. Além destes, há outros que podem ser assentados ou que, por motivos
que abre as festas públicas. Durante o xirê, todos os filhos de santo dançam em círculo,
primeira da fila é a pessoa da Casa mais velha no santo, e a última a de feitura mais recente.
A roda se fecha no encontro entre esses dois extremos. Na roda só dançam mulheres; os filhos
de santo ficam em pé no salão durante o xirê. Cada orixá é saudado (ou "salvado") com uma
ajoelham-se e batem com a testa no chão. Os que são feitos em outras Casas geralmente
Cada filha de santo deve entrar na roda vestida com sua roupa de festa, geralmente
composta por um camisu (espécie de blusa ou camisa longa), uma anágua, uma saia e um
93
pano da costa. A cabeça deve estar coberta por um ojá (faixa de pano cuja amarração varia,
conforme o orixá seja feminino ou masculino). Cada uma retira o seu ojá quando todos
cantam para o orixá do qual é filha, deixando a cabeça descoberta para que ele possa penetrar.
À medida que se sucedem os cantos para cada orixá, começa o ritual da bênção: os filhos de
cada orixá homenageado se ajoelham sucessivamente diante da mãe de santo e pedem sua
bênção. Em seguida, todos os demais filhos de santo também rogam a bênção da mãe de
santo, mas somente com um gesto das mãos. Quando o canto homenageia o orixá da mãe de
A chegada do primeiro orixá é sempre antecedida por uma comoção sensível mas
sutil, difícil de ser descrita em palavras: é como se um ruído de fundo fosse subindo de
volume, primeiro muito devagar e depois cada vez mais depressa, até explodir num ápice de
energia que se espalha pelo salão. O primeiro que chega chama os outros, e em pouco tempo
vários orixás estão chegando e sendo amparados pelas equedes. Aqueles que vão se vestir
para participar da festa (só vestem seus trajes especiais os orixás diretamente ligados ao orixá
homenageado do dia) são levados para a parte interna do terreiro; os outros permanecem por
Vou relacionar os orixás de maneira sucinta e com base no meu material etnográfico,
usando descrições breves e reproduzindo frases que ouvi sobre alguma característica marcante
do orixá em questão. Existe um vasto material escrito sobre os orixás, com pormenores
abundantes sobre suas roupas, características e mitos. Para descrições e considerações mais
detalhadas, sugiro a leitura de Lépine (1978), Moura (2006), Cossard (2008), Prandi (2001) e
Gaudenzi (2008).78 E é importante reiterar aqui um aspecto conhecido da rica mitologia dos
orixás: são muitas as versões de cada mito, o que já foi atribuído, como vimos, a variações
78
Também não farei referência, aqui, às cantigas e saudações dos orixás. Para um estudo sobre o tema, inclusive
com traduções das cantigas, sugiro a leitura do livro de Oliveira (2007), que muito me ajudou nesse aspecto.
94
se de imediato que todos os orixás se relacionam entre si. Oxum, só para citar um exemplo,
alguns, de Omolu. O que nos interessa, portanto, são as relações entre os orixás que se
mapeamento mais exaustivo desses laços, sugiro mais uma vez a leitura dos textos que
menciono acima.
Passemos então aos breves comentários sobre os orixás presentes no xirê do Gantois:
1) Exu
Exu é sempre o primeiro orixá saudado. Quando tiver havido o sacrifício de um animal de
quatro patas (geralmente um bode ou cabra) na matança do dia anterior, é necessário que se
faça um padê79 no final da tarde do dia da festa. Durante o padê (ritual que só pode ser
assistido por aqueles que são feitos), ninguém pode entrar ou sair do terreiro. As janelas do
salão ficam fechadas, e só se vê alguma coisa quando as portas se abrem para o despacho da
rua80. Quando há padê, não se canta para Exu no xirê. Quando só são sacrificados animais de
duas pernas, o xirê sempre começa com uma cantiga para Exu — nesse caso, porém, não se
No Gantois não se faz Exu. Entretanto, nas duas festas de Exu às quais compareci,
chegou um Exu de um pai de santo do Rio de Janeiro, feito em outra Casa. Conversou com os
presentes, deu conselhos e distribuiu entre alguns dos presentes várias penas dos galos que
haviam sido sacrificados. Depois, uma filha de santo me explicou: "Aqui a gente não faz Exu,
79
Há uma descrição detalhada da cerimônia do padê em Bastide (1958).
80
O despacho da rua é o momento em que levam-se para a rua comidas para Exu (farofa de dendê) e pembas
(pós com efeitos mágicos), jogando-as por todo o caminho que segue da rua em direção à porta principal do
terreiro.
95
mas eles são sempre bem vindos à nossa Casa."
Canta-se primeiro para Exu para despachá-lo. Segundo alguns, para que ele não
atrapalhe a festa. Segundo outros, para que se ponha em movimento, a fim de cumprir seu
encargo de transportar as oferendas para os demais orixás. Um filho de santo do Gantois, que
é também pai de santo, me disse: "Eu posso até enganar o Orixá, mas Exu eu não engano.
Então, no momento em que eu ofereço, Exu tem que estar recebendo. Porque é ele quem vai
2) Ogum
"Ogum é bravo", explicou-me uma filha de santo do Gantois. "Quando tem mais de um
dançando, sempre dá briga. E ele não gosta que os seus filhos desobedeçam não! Um dia uma
filha de Ogum daqui do Gantois disse que não vinha para a festa, estava revoltada, essas
coisas! Que nota? Menina, não é que Ogum pegou ela em casa e trouxe até aqui, dando com a
testa dela em todos os orelhões que tinham no caminho? Ela chegou aqui com a cara desse
filhos de Ogum de "oguniados", zombando de sua tendência a ficar de cabeça quente. Por
outro lado, é sempre a ele que se pede proteção para voltar para casa a salvo. Logo que
cheguei em Salvador, reparei que as pessoas do candomblé sempre se despediam uns dos
outros com a seguinte frase: "Ogum ati onan". Logo aprendi que isso quer dizer: "Ogum que
abra o seu caminho"; ou "Ogum que te leve para casa a salvo". Quando sofri uma tentativa de
3) Oxóssi
96
enquanto Ogum é um solitário, Oxóssi gosta de andar em bando. "Povo de Oxóssi só anda em
bando: o bando dos caçadores", comentou comigo uma filha de santo do Gantois, de Oxóssi.
"Ele nunca erra a flechada. Por isso que é o caçador de uma flecha só. E isso vale também
para os filhos dele. Oxóssi não deixa ninguém fugir dele não. Só aqui no Gantois tem várias
histórias de gente de Oxóssi que se recusou a fazer o santo e teve acidente, ficou doente, cada
uma pior que a outra." Já outra filha de Oxóssi do Gantois me revelou outra de suas
características: "Eu não tenho medo de voltar pra casa de madrugada sozinha. Eu rezo pra
Oxóssi e ele me deixa invisível. Todo dia eu pego a Avenida Paralela, de madrugada, passo
por lugares muito perigosos. É só rezar uma reza especial pra ele que eu fico invisível de
verdade." Segundo muitas versões do mito de Oxóssi, ele se perdeu na floresta e encontrou
Ossãe, que lhe ensinou todos os segredos das folhas — inclusive a capacidade de se camuflar.
Muitas pessoas do candomblé, quando veem a lua cheia, gritam "Okê Arô!", a
saudação de Oxóssi. Da primeira vez que presenciei isso, perguntei ao filho de santo qual a
explicação daquilo. "É por causa de São Jorge", ele me respondeu, como se fosse óbvio. "Ele
não mora na lua? E quando ela fica cheia dá para ver bem assim, ele montado no cavalo
enfiando a lança no dragão. E São Jorge é Oxóssi, né, ou é de Oxóssi, sei lá. Então, quando a
4) Omolu
"Omolu é um santo vivo", me disse uma filha de santo do Gantois, de Omolu, "Ele é o único
orixá que não morreu. Se encantou ainda vivo. É quase um egum, só que mais antigo, muito
mais; e não antepassado de uma família pequena como no caso dos eguns, e sim de uma
família enorme, a família de Omolu. Mas não estranhe se você encontrar ele andando por aí
não, ele é vivo mesmo." "Omolu se cobre inteiro de palha, você sabe por quê?", me perguntou
outra filha de santo. "Porque ele é humilde. Como ele é médico, ele podia se curar; mas não,
97
ele quer ser a doença também, para todo mundo ver que a vida não é tão simples como parece
5) Ossãe
No Gantois há um homem que perdeu uma perna. Um dia lhe perguntei qual era o seu orixá.
"Adivinha?" ele me falou. Fiquei sem saber o que dizer, e ele então continuou: "Eu sou de
Ossãe só tem uma perna, ou pisa numa perna só. É o dono das folhas e conhece os
mistérios da floresta; é também o único orixá que se embebeda, e representa isso numa dança.
Só pode haver um Ossãe de cada vez no Gantois. Quando o rapaz de uma perna só chegou, a
6) Iroko
Iroko é orixá e árvore: a árvore sagrada que existe em todo terreiro (gameleira) é o Iroko da
Casa; perguntei a vários filhos de santo sobre a relação entre a árvore e o orixá: "A árvore é a
morada do orixá"; "A árvore é o orixá"; "A árvore representa o orixá". Mas não é qualquer pé
de gameleira que é um Iroko; para isso, é necessário preparar a árvore, alimentá-la, vesti-la.
Há, em Salvador, no bairro da Federação, um Iroko na rua. Ele foi plantado por Mãe Stella, e
não há um dia em que se passe em sua frente e ele não esteja amarrado com o seu ojá (um
pano branco, amarrado com um laço em volta da árvore) e com muitas gamelas de comida aos
seus pés. Segundo Fábio, a cerimônia de consagração deste Iroko foi uma grande festa na
cidade.
Iroko é também como Ossãe: só pode haver um de cada vez. Porém seu alcance é mais
amplo: enquanto o Gantois tiver uma pessoa feita de Iroko, nenhum dos terreiros abertos por
seus filhos de santo pode fazer outro. A filha de santo do Gantois que foi feita para Iroko,
98
egbome Cidália, faleceu enquanto eu estava fazendo minha pesquisa. Nunca a vi no terreiro,
pois já estava idosa e com dificuldades de locomoção. Não há nenhum abiã de Iroko
esperando pela feitura (Mãe Carmem me explicou que é um orixá muito raro), e no ano
passado um filho de santo do Gantois fez um Iroko em seu terreiro, o que foi considerado uma
grande desfeita. Ele argumentou, em sua defesa, que "não podia ficar esperando eternamente".
Entretanto, apesar de só poder haver um filho de santo de Iroko em cada terreiro, pode
haver mais de uma árvore Iroko. Estive em um terreiro em Sergipe que ficava num grande
sítio, afastado da cidade. No dia seguinte ao da cerimônia que fui assistir, acompanhei os
filhos de santo no despacho das comidas dos orixás que haviam sido feitas no dia anterior.
Perguntei a uma pessoa que estava ao meu lado porque isso estava acontecendo, e ela me
respondeu: "Aquele grupo vai botar as comidas no Iroko fêmea, e esse no Iroko macho". As
comidas oferecidas aos orixás femininos foram, então, colocadas aos pés do Iroko fêmea, e as
dos orixás masculinos, aos pés do Iroko macho. Depois a mesma pessoa me explicou que em
alguns terreiros há um Iroko para cada orixá, "E todos juntos formam o Iroko total da Casa".
7) Oxumarê
associados à cobra — Oxumarê, inclusive, dança como uma serpente, arrastando-se no chão,
e sibila imitando o seu som. Porém, à diferença de Ewá, Oxumarê também é relacionado ao
arco-íris. Uma filha de santo do Gantois me explicou que a cobra fica tanto no solo quanto no
subsolo, e que o arco-íris fica tanto na Terra quanto no céu, e que por isso ambos estão
relacionados a Oxumarê. "Mas somente Oxumarê é homem e mulher ao mesmo tempo. Mas
não como Logum Edé, que é homem durante metade do ano e mulher na outra metade. Ele é
como se fosse hermafrodita." Segundo Dona Cici, Oxumarê "é a pessoa dividida em duas. Ou
99
seja, é uma e duas ao mesmo tempo — masculina e feminina, mas como numa coisa só."
8) Nanã
Nanã dança modelando argila com as mãos, reproduzindo o gesto atribuído a ela no mito da
criação do ser humano. "Nanã é o orixá da transformação", contou-me uma mãe de santo.
Mas por isso mesmo ela (e todos os seus filhos) têm quizila de obé (aversão a faca).81"Quando
se corta82 para Nanã, não se pode usar faca. O bicho é morto com uma faca de madeira, e o
axé83 dele tem que ser retirado com as mãos." Por esse motivo, considera-se que uma pessoa
de Nanã não pode nunca chegar a mãe de santo e que, caso isso aconteça, não irá viver por
muito tempo. Este é um assunto polêmico no Gantois, pois Mãe Cleusa era de Nanã, e muitos
atribuem a isso a sua morte considerada prematura para o padrão da família (enquanto Mãe
Menininha viveu 94 anos e Mãe Carmem está com 88, Mãe Cleusa faleceu aos 74 anos).
Algumas pessoas, porém, me garantiram que uma filha de Nanã pode ser mãe de santo
assentando Oxum.
9) Oxum
"A gente que tem enredo com Oxum não pode ver um rio que já fica querendo botar alguma
coisa dentro", me disse Dona Cici. "Ela adora ganhar presente, né? E é ciumenta... No dois de
fevereiro, Dia de Iemanjá, se você não for antes no Dique do Tororó e botar um presente para
ela também, já viu... E o enredo dessas duas é sério... não pode arrumar problema não." Uma
81
Faca, em iorubá. No Gantois, existem algumas que não devem ser ditas dentro do terreiro, e por isso usa-se
sempre o termo equivalente em iorubá, ou algum outro que faça referência ao que se quer dizer. Esteira, por
exemplo, deve ser chamada sempre de enim. Já as comidas proibidas são chamadas por "apelidos", Caranguejo,
por exemplo, é chamado de "aranhola"; cuscuz, de "bolo abafado", e assim por diante.
82
Maneira corrente de se referir ao sacrifício no candomblé. Diz-se sempre que se corta para esse ou aquele
orixá.
83
As vísceras do bicho, onde se considera que esteja concentrada a sua força vital. De maneira geral, essas partes
são sempre retiradas depois do sacrifício e destinadas aos orixás, enquanto as pessoas comem o resto do animal.
100
filha de santo do Gantois me explicou: "Oxum é muito maternal. É ela que rege o
No Gantois, há ainda um orixá que chega, mas não é saudado no xirê: Logum Edé. É
filho de Oxum com Oxóssi, e mora metade do tempo no rio com a mãe e a outra metade na
10) Obá
Obá e Oxum nunca dançam juntas; se uma está dançando no salão, a outra se retira. Há um
mito muito repetido sobre a relação entre elas: Oxum era casada com Xangô, que tomou Obá
como sua segunda mulher. Oxum, ciumenta, decidiu pregar uma peça em Obá. A cada
semana uma delas fazia a comida de Xangô. Quando era a vez dela, Oxum fez uma sopa e
botou dentro um grande cogumelo. Amarrou um pano na cabeça e mostrou a sopa a Obá,
dizendo: "Olha a sopa que eu fiz! Botei dentro uma de minhas orelhas, porque aí Xangô, ao
comer um pedaço de mim, vai me ter como sua esposa preferida!" Na vez de Obá fazer a
comida, não teve dúvidas: cortou uma de suas orelhas e botou na sopa que fizera para Xangô.
A dança de Obá alude a esse mito: ela dança tampando uma das orelhas com a mão,
depois a outra. É conhecida como o orixá da beleza interior, mas suas filhas são tidas como
inseguras e competitivas. No Gantois só há uma filha de Obá, e diz-se em Salvador que Obá é
um orixá cada vez mais raro. "Talvez ela esteja cansada", me disse um filho de santo do
11) Ewá
"Ewá não tem nenhum jeito com criança", me disse uma filha de santo do Gantois, referindo-
101
se à Ewá de uma filha de santo que acabara de chegar. Ela estava com seu filho no colo,
sentada no salão. Lá dentro acontecia uma obrigação, quando de repente o tambor tocou um
pouco mais forte. Ela deu um pulo e seu filho caiu no chão; logo Ewá chegou. O menino, que
não devia ter mais de um ano e meio, ficou assustado e começou a chorar. Ewá se dirigiu para
o meio do salão e salvou a Casa, enquanto as poucas mulheres presentes tentavam acalmar a
criança. Ewá foi para a parte interna do terreiro, onde estava acontecendo a obrigação; voltou
depois de alguns minutos e viu o menino, que ainda chorava, olhando para ela e chamando
pela mãe. Ewá então dirigiu-se a ele e pegou-o como se fosse uma trouxa, segurando-o
somente com um dos braços e apoiando o seu corpo deitado no seu quadril. O menino ficou
quieto, e Ewá ficou andando com ele desse jeito pelo terreiro. Depois, quando a mãe soube,
fez o seguinte comentário: "Ewá é o orixá das paixões, não tem muito instinto maternal. Tudo
com ela é quente, poético. Essa coisa maternal ela deixa para Oxum."
12) Iansã
"Eu não sou de espiar, eu sou de Oyá" — essa frase, sempre repetida em tom de piada, revela
muito sobre a imagem que se tem das filhas de Iansã (também chamada de Oyá). "Filha de
Iansã se reconhece pelo olho", me disse Fábio certa vez. O momento em que Iansã dança é
sempre, em todos os terreiros a que fui, o mais animado da festa: todos gritam, animados com
a energia deste orixá. Iansã dança balançando as mãos à sua frente, afastando o mal de seu
caminho. Há, no Gantois, uma avó e uma neta que são de Iansã e sempre dançam juntas. Um
dia, no meio de uma festa, Mãe Angela me chamou e comentou baixinho: "Você está vendo?"
Perguntei a que ela se referia, e ela então me explicou: "Essa avó e essa neta, é a mesma
Iansã. Olha como é bonito, uma bem velhinha e a outra bem nova, mas são iguais. É como ver
ao mesmo tempo dois momentos da vida da santa. E elas sempre dançam juntas."
102
13) Iemanjá
Numa das primeiras vezes em que fui ao Gantois, uma equede me falou, depois da festa: "Vai
salvar aquela Iemanjá. E, quando ela te abraçar, feche os olhos: você vai se sentir no mar." Na
saudação a um orixá, primeiro a pessoa precisa ajoelhar-se na frente dele e bater a cabeça no
chão. Enquanto isso, ele responde com um movimento que varia de acordo com o orixá.
Iemanjá balança os braços para os lados, juntando-os depois na frente e curvando levemente o
corpo, como para saudar a pessoa em resposta. Depois desses dois movimentos simultâneos,
ela abre os braços para receber aquele que a está salvando. O abraço daquela Iemanjá tinha
mesmo o balanço do mar: ao mesmo tempo em que ela me embalava muito suavemente de
um lado para outro, emitia um som suave que me lembrou o rumor das ondas. Depois desse
abraço, ganhei muitos outros abraços de orixás, mas a sensação que acompanhou esse abraço
14) Xangô
"Quem é de Xangô tem um palmo de distância entre o peito e o queixo", me disse Fábio
Lima. "Os pretos daqui da Bahia têm que ser assim também, falo isso para todos os meus
alunos. Tem que ter orgulho, porque somos descendentes de um rei. Mas era um rei
problemático, né? Tanto que acabou se matando, pelo menos é o que dizem alguns mitos. Por
isso que toda pessoa de Xangô tem que se cuidar para não ficar maluca." A primeira
comemoração de Xangô, no Gantois, são as fogueiras: de São João (Xangô Aganju) e de São
Pedro (Xangô Airá). Mas, em outros terreiros, presenciei um comportamento de Xangô que
não existe no Gantois: no meio da festa de Xangô, alguém traz uma bandeja cheia de pedaços
algodão. "Xangô se alimenta de fogo", explicou-me uma filha de santo. "Talvez por isso ele
103
15) Oxalá
manifesta sob dois aspectos diversos, cada um dos quais tratado como um orixá à parte,
15a) Oxalufã
Oxalá, a referência é a Oxalufã; a qualidade mais jovem, Oxaguiã, é sempre chamada por seu
nome específico. Na Bahia, às sextas-feiras, há muita gente de branco na rua. "Eu não sou de
candomblé, mas me acostumei a usar branco na sexta", me disse uma pessoa que conheci em
outra circunstância. O uso do branco na sexta-feira se deve a Oxalá: tudo relacionado a este
orixá é branco, e sua maior quizila é o azeite de dendê, que nunca pode consumir. Um filho de
santo do Gantois, de Oxalá, explicou que Oxalá é o "começo e o fim; o princípio da vida e da
morte". Por isso, segundo ele, é sempre o último do xirê, embora seja o mais velho de todos
os orixás. Oxalufã raramente dança; quando chega, geralmente fica sentado numa cadeira,
coberto por um pano branco, com o opaxorô84 nas mãos. Se por acaso dança, é muito
lentamente, curvado sobre o seu corpo. "Quando a gente começa a dar Oxalá a gente sente
muito frio", me explicou uma filha de Iemanjá do Gantois, em quem Oxalá começara a
chegar pouco antes. "Ele é etéreo. Você sente um frio, parece que vai morrer. É porque ele é a
morte também, e ela sempre anda perto dele. Morte e vida, você sabe, é quase a mesma
coisa."
15b) Oxaguiã
Oxaguiã é, a exemplo de Oxalufã, uma qualidade de Oxalá que, no Brasil, se tornou orixá. É o
Oxalá novo, guerreiro; é vital, enérgico, em oposição a Oxalufã, mas usa as mesmas cores e
84
Espécie de cajado; apetrecho ou "ferramenta" de Oxalá.
104
come as mesmas comidas. É o orixá de Mãe Carmem, que só chega uma vez por ano. Na
cerimônia das Águas de Oxalá, os fiéis começam a descer a escada que leva ao poço de onde
se traz a água por volta de três horas da manhã. Quando aparecem os primeiros raios de sol,
ainda se pode ver uma fila comprida de pessoas, cada qual equilibrando a sua lata d'água,
esperando para chegar à casinha onde o conteúdo será derramado em suas cabeças. É nesse
horário, em pleno lusco-fusco, que o orixá de Mãe Carmem chega. Foi então que entendi que
Oxaguiã é um menino, pois fazia estripulias no corpo de Mãe Carmem, que é uma senhora
com dificuldades de locomoção. Oxaguiã pulou, dançou, correu, mostrando a todos que,
2.3.2: Os Erês
Um dia Tiago, que acabara de fazer santo no Gantois, me fez a seguinte pergunta:
"Você que é antropóloga, me explica uma coisa: o que é o erê? Ele é assim uma parte do
orixá ou uma entidade independente?" Tiago estava curioso porque, alguns meses depois de
sua feitura, seu erê começara enfim a aparecer. Ele me contou que, na semana anterior, havia
comprado um presente para um bebê que acabara de nascer logo antes de ir ao Gantois para o
amalá85 de Xangô, que acontece todas as quartas-feiras. Entrou numa loja de brinquedos e
lá, guardou o embrulho debaixo de uma mesa, para que ninguém mexesse. Na hora de arriar o
amalá, o seu Xangô chegou. Tiago acordou horas depois, já atrasado para a festa, e foi
procurar o presente. Ao olhar debaixo da mesa onde havia deixado o embrulho, não o
encontrou. Saiu pelo terreiro achando que alguém estava lhe pregando uma peça. Perguntava
para todo mundo se alguém havia pegado o presente e, segundo ele, todos lhe diziam que não,
85
Comida de Xangô, feita com quiabo, azeite de dendê e carne de boi.
105
mas rindo. Depois de algum tempo Tiago viu, sentada numa esteira, a erê de uma filha de
santo de Iemanjá abraçada com a tartaruga de pelúcia. Foi tentar pegar a tartaruga de volta e a
erê lhe disse: "Nada disso, essa tartaruga é do meu amigo!", e lhe deu um safanão. Tiago
então foi à procura de alguém que lhe explicasse o que havia acontecido. Depois de muito rir,
uma egbome lhe explicou: depois do amalá, o seu Xangô havia dado lugar ao seu erê. O erê,
imediatamente, mandou alguém buscar o presente que estava embaixo da mesa e que era dele.
Uma egbome tentou argumentar, dizendo que o presente devia ter dono, e o que ela iria dizer
a Tiago quando ele acordasse? Ele então respondeu: "Diz para ele que é otário, que só
comprou a tartaruga porque na hora que ele entrou na loja eu apertei o ori86 dele, assim, bem
forte! E aí ele comprou a tartaruga para mim. Ele que compre outro presente e deixe de ser
otário idiota!", e se acabou de dar risada. Depois disso uma das egbomes perguntou o seu
nome, e ele disse: "Não vou dizer não, que é para ninguém botar olho grande em mim, que eu
sou muito bonito e esperto!" Tiago estava preocupado também porque o seu erê gostava de
comer coisas que lhe pareciam indigestas: da última vez, decidira que ia ele mesmo preparar
um caruru. Mastigou então doze quiabos crus, cuspindo-os depois em um prato. Quando a
Tiago estava intrigado em saber como o erê podia estar presente no momento em que
ele entrara na loja para escolher o presente. "Mas ele está comigo o tempo todo? Que nem o
orixá?"
A pergunta de Tiago traduz uma questão fundamental, mas temo que não haja uma
resposta única. Durante minha pesquisa, ouvi muitas explicações diferentes sobre o que seria
um erê: o espírito de uma criança que morreu; uma parte criança do orixá; um ser, ou mesmo
um estado intermediário que aparece na transição entre a pessoa e o orixá; uma entidade
vinculada ao orixá. Algumas pessoas dizem que toda pessoa feita tem um erê junto do orixá,
86
"Cabeça" em iorubá.
106
que pode vir ou não; outras, que não são todos que têm erê. O erê não é necessariamente
assentado, como o orixá, mas precisa ser alimentado, de forma direta (ou seja, o erê
efetivamente ingere o alimento, mostrando especial predileção por doces, especialmente acaçá
coberto com mel). Alguns, ainda, consideram que o erê é uma espécie de mensageiro entre os
orixás e os humanos. Como é um espírito criança, não tem tanta responsabilidade como um
O nome do erê, apesar de às vezes ser secreto, como parece ser o caso de Tiago,
sempre tem alguma relação com o orixá: o erê de Leila de Oxum, por exemplo, se chama
Ogum, Tenente. Na maioria das vezes, os erês chegam depois da festa; despacham-se os
orixás e os erês chegam na sequência, sempre animados. "Erê renova a energia", me disse
Leila. "Quando o orixá vai embora a gente fica bem acabada, aí o erê vem, e quando ele vai
embora a gente está descansada." A chegada de um erê costuma ser acompanhada pela
chegada de muitos outros: "Um erê não gosta de brincar sozinho", diz Leila. Os erês de
pessoas do mesmo barco, cujos santos são feitos na mesma ocasião, costumam considerar-se
irmãos uns dos outros, e nunca querem chegar sem os demais. Uma vez vi uma erê chegar e
sair imediatamente correndo atrás das outras pessoas do seu barco, o mesmo em que Leila
tinha sido feita, cantando "Quem tem irmão não brinca só! Quem tem irmão não brinca só!".
Algumas conseguiram escapar, mas para uma delas, não houve jeito. De maneira parecida,
um erê pode confundir outra pessoa com o erê que acha que a acompanha: um dia, enquanto
eu conversava com Mãe Carmem no quarto dela, Melindrosa, o erê de Leila, entrou. Ela se
queixava a Mãe Carmem de ter perdido a sua boneca, e Mãe Carmem a consolava. De
repente, ela virou-se para mim e falou: "Olha aí a menina de areia". Mãe Carmem perguntou:
"Que menina de areia?", ao que a erê respondeu: "Essa aqui, ué", apontando para mim. Ou
87
Quando perguntei a uma mãe de santo o que era um erê, ela me disse: "Erê é erê, uai. Para que tanta
pergunta?".
107
seja, a erê Melindrosa (assim como Leila) supunha que eu era de Iemanjá, e referia-se a mim
como Menina de Areia, um dos nomes das erês das filhas de Iemanjá.
Na festa de erê do Gantois, que acontece no dia das crianças e homenageia também o
orixá Ibeji (ou Igbeji, associado a irmãos gêmeos, que não é feito no Gantois), a função
começa como numa festa de orixá. Todos entram para o xirê e os orixás começam a chegar. À
medida que chegam, vão sendo levados para a parte interna do terreiro. Mas lá, em vez de
serem vestidos, convertem-se em erês. Quando todos os orixás já chegaram e estão na parte
interna, bota-se um prato de caruru no meio do salão. São então chamadas sete crianças da
plateia, que devem comer o caruru com as mãos. Enquanto elas comem, várias filhas de santo
ficam em volta, com as saias abertas — pois ninguém pode ver as crianças comendo. Quando
acabam, entram os erês e, na mesma hora, qualquer organização deixa de existir: os erês
gritam, falam com todo mundo na plateia, comem e pedem dinheiro aos presentes.88
Mesmo fora da festa, o hábito de pedir dinheiro é uma característica de todos os erês
que conheci. "Uma providência para a fodança", eles pedem. Quando conseguem uma nota,
ficam muito felizes: "Consegui um mico!", me disse um erê, referindo-se à nota de vinte reais
que uma pessoa lhe dera. Logo chegou outro erê com uma nota de dez: "Eu tenho uma arara!
Arara é melhor que mico!", disse, provocando o primeiro erê, que imediatamente lhe propôs
uma troca. Quando conseguem juntar bastante dinheiro, correm até os alabês, os tocadores de
atabaque, e lhes propõem que toquem em troca de pagamento: "Uma fodança! Uma
fodança!". Os alabês riem, dizem que não, mas no final sempre tocam para eles um "samba de
erê", espécie de ritmo acelerado, sem letra, e tocado somente com as mãos.
Ao fim da festa, quando a mãe de santo decide que já é hora de descansar, os erês são
novamente virados em orixás. O processo é delicado, e só pode ser executado por egbomes
experientes, que dão uma espécie de abraço, segurando os erês pelo pescoço, dizendo-lhes
88
Serra (1978) afirma coisa parecida: "Estes [os erês] têm o hábito de pedir dinheiro; e praticam mesmo uma
forma de 'mendicância ritual'". (1978: 87)
108
alguma coisa no ouvido: na mesma hora o orixá retorna, e pode então ser controlado.
A dúvida de Tiago, e a passagem do orixá para o erê e deste de volta para o orixá,
pode também ser vista como um exemplo desta relação. Penso que a pergunta de Tiago é
muito mais complexa do que ele mesmo parece notar: pois, se o erê é, ao mesmo tempo, um
ser, uma parte e um estado, temos aqui mais um indicativo desta relação que, no candomblé,
parece se estender a inúmeros aspectos da vida de seus adeptos. São perguntas que virão
novamente à tona no próximo capítulo, quando veremos mais a fundo a noção de enredo.
2.3.3: Caboclos
Como já mencionei, no Gantois não existe culto aberto aos caboclos, que seriam
entidades associadas aos ameríndios ou a outros espíritos locais, sem ligação com a África.
Embora muitos de seus membros, inclusive a família de suas fundadoras, tenham seus
caboclos assentados no terreiro, não é comum que estes venham. Porém, muitos filhos de
santo do Gantois, que não são membros da família ou não ocupam cargo importante no
terreiro, têm caboclos que sempre querem vir e demandam cuidados. Segundo me contou Mãe
Carmem, muitas vezes ela encaminha estes filhos de santo a outros terreiros para que possam
Muitas vezes, também, os caboclos são cuidados na própria casa onde moram os filhos de
santo, que lhes constroem altares privativos. Se o caboclo, porém, demonstrar que deseja ser
assentado, o praticante precisa procurar um terreiro onde isso possa ser feito. Conforme me
explicaram, esta é uma decisão de caráter particular, que deve sempre partir da própria
entidade. "Há caboclos que querem ser assentados, outros não", me explicou um filho de
109
santo do Gantois.89
Uma senhora, filha de santo do Gantois (de Oxóssi) me contou certa vez que passou
décadas dando comida a uma entidade que ela sabia que a acompanhava e tinha certeza de
que era um Exu. Desde criança, todos os médiuns que conheceu lhe diziam que havia uma
entidade que a acompanhava e cuidava dela. Quando ela fez o santo, teve certeza de que essa
entidade era Exu Alaketu, um Exu90 que acompanha muitas pessoas de Oxóssi. Achou por
bem não perguntar nada e, durante mais de dez anos, toda segunda-feira colocava comida para
Exu Alaketu no altar que mantinha em sua casa. Um dia, enquanto botava a comida para Exu,
ouviu uma voz que lhe dizia: "Não sou Exu, não sou Exu". Ela então parou em frente ao altar,
desconfiada, e perguntou: "Se você não é Exu, como é que está falando comigo?". "Eu sou
Boiadeiro, do Morro do Chapéu", lhe respondeu a voz. Sem entender do que se tratava, ela
resolveu buscar ajuda. Correu até a casa de uma mãe de santo que morava perto de sua casa e
lhe perguntou o que estava acontecendo. "É um caboclo, minha filha", lhe disse a mãe de
santo. "Você está há mais de dez anos dando comida para um Exu que na verdade é um
caboclo". Quando eu lhe perguntei o motivo do seu caboclo não ter revelado antes a sua
identidade, ela me disse que acha que a comida que ela dava para o Exu estava servindo para
o caboclo, mas que "teve uma hora que parou de servir; teve uma hora que ficou diferente
demais".
Desde então ela alimenta seu caboclo com muito cuidado, com frutas e charutos. No
89
Só em duas ocasiões tive a chance de ver caboclos em ação no Gantois. Na primeira delas o caboclo de Seu
Benedito, um pai de santo que tem casa no Garcia e tem relações muito amistosas com a casa, subiu a pé desde a
avenida Vasco da Gama para vir dar um recado a Mãe Carmen. De outra vez, o caboclo de um filho de santo
chegou durante um ebô de Oxalá — que acontece toda primeira sexta-feira do mês, quando se come milho
branco cozido e se canta em louvor a Oxalá — depois que seu Oxalufã foi embora. Também queria trazer um
recado, mas a outra pessoa, uma filha de santo adolescente que estava se envolvendo com traficantes da área.
90
Este Exu é uma variedade de Exu, o orixá. Existe outro tipo de exu, considerado um espírito de alguém que já
morreu — um "espírito da rua", como se diz. Não tratarei destas entidades porque apareceram muito pouco
durante meu período em Salvador. Como uma filha de santo do Gantois me explicou: "Aqui para a gente, no
Gantois, Exu é orixá. É muito diferente deste exu do Rio. Este exu que vocês têm no Rio de Janeiro é muito
próximo de egum. É outra coisa, é como uma Maria Padilha, coisa com que a gente não trabalha aqui. Aqui o
Exu é com letra maiúscula, é uma entidade de respeito, outra coisa. Não é essa linhagem da rua. A nossa
linhagem é outra."
110
dia em que nos encontramos, numa festa de caboclo no Rio de Janeiro, já depois da minha
volta de Salvador, ela estava ansiosa para saber se Boiadeiro do Morro do Chapéu iria
aparecer, incorporando nela pela primeira vez. A comida de Exu tinha alimentado o
Boiadeiro, mas agora, com a comida certa, ele podia vir dançar no corpo dela, já acostumada
a receber o seu Oxóssi. Ela esperava que, depois de ter finalmente sua diferenciação
reconhecida, o Boiadeiro quisesse chegar. Quando ela me contou a história, comentei que o
Morro do Chapéu era um lugar na Bahia. Consegui lhe mostrar algumas imagens buscadas na
internet, o que lhe causou muita emoção. "O Morro do Chapéu existe", ela me disse, enquanto
as lágrimas escorriam por seu rosto. "É de lá que ele vem". Esperamos a noite toda, mas o
Boiadeiro não veio. "Não foi dessa vez", ela me disse ao final da festa. "Vamos ver na
Diz-se que a possessão pelos caboclos é mais "dolorida" que a possessão pelo orixá.
Certa vez, numa festa de caboclo em um terreiro de uma filha de santo do Gantois, reparei
que muitos que ali estavam, quando sentiam os primeiros sinais de que o caboclo queria
chegar, corriam para longe dos outros caboclos, ou para alguma parte mais protegida do
terreiro, tentando fazer com que seu caboclo desistisse de vir para a festa. Quando as pessoas
que estavam em volta percebiam, seguravam a pessoa para que o caboclo pudesse vir em paz.
A pessoa se debatia, fazia caretas horríveis, se contorcia, até que, num espasmo violento, o
seu corpo relaxava. Quando levantava a cabeça, não era mais a pessoa: o caboclo chegara. A
expressão dos caboclos geralmente é muito confiante: de olhos bem abertos e queixo erguido,
olham nos olhos de quem assistem a festa, podendo a qualquer momento comunicar-se com
quem quer que seja. Também se comunicam entre si, abraçam-se, juntam-se em grupos. A
91
Wafer (1991), pesquisando num pequeno terreiro em Salvador, propôs um sistema em que as entidades do
candomblé pudessem ser dispostas em um "contínuo espírito-matéria" (1991: 85). Caboclos, exus e erês estariam
mais perto da matéria, atuando portanto mais em questões cotidianas dos seres humanos, ou em sua defesa. Já os
orixás seriam "aristocratas" (1991: 62), e estariam mais distantes dos humanos, quase inalcançáveis.
111
atabaques são tocados com as mãos, como na nação angola, e são os próprios caboclos que
"puxam" as músicas. A relação dos caboclos com a nação angola, embora pareça evidente,
não é tão automática: Fábio me disse uma vez que "caboclo não tem nação". E me explicou
que os caboclos foram sendo incorporados por todas as nações, cada terreiro à sua maneira.
próprio. Ele começou a apresentar sinais de problemas espirituais ainda criança. Tinha
segundo ele, "normal". Seus pais, muito católicos, o levaram a um médico, que receitou
Gardenal, um anticonvulsivante. Ele tomou Gardenal por quatorze anos, até, um dia, ser
levado a uma sessão de espiritismo mesa branca.92 Lá, seu caboclo chegou e lhe mandou um
recado: que o problema dele era espiritual e que ele devia procurar um terreiro de candomblé.
Pouco tempo depois, ele foi ao Gantois. Mãe Cleusa, que na época era a mãe de santo, viu
logo a necessidade de fazer o santo dele, Oxalufã. Mas e o caboclo? "Aí temos que esperar
para ver o que ele quer", foi a resposta dela. Numa outra sessão de mesa branca, logo antes da
feitura, o caboclo mandou outro recado: não queria ser assentado. "Ele disse que se
assentasse ele, ele nunca mais aparecia", ele me contou. Mas o caboclo disse também que,
dali a um tempo, esse filho de santo precisaria comprar uma terra, onde abriria um terreiro, e
lá construir uma cabana para ele. Foi o que ele fez, sem contudo chegar a assentar o caboclo.
caboclo dela não aceitava fazer parte de seu terreiro de candomblé. Por isso, mandou um
recado a ela dizendo que queria uma roça só para si, um lugar separado dos orixás, e Dona
Olga fez o que ele pediu: comprou um terreno no subúrbio de Salvador e desde então é ali
que, uma vez por ano, celebra-se a missa e a festa de seu caboclo. Em 2011, fui convidada
92
Mesa branca é uma forma de espiritismo caseiro, não institucionalizado, muito comum em Salvador. Veremos
mais sobre isso no capítulo a seguir.
112
para essa festa. O caboclo de Dona Olga, Jundiara, atualmente vem à Terra através do corpo
de sua neta93. Explicaram-me que o caboclo só pôde ser transmitido entre gerações porque
fora assentado. E que, claro, tinha sido justamente por isso — por querer permanecer na
família, depois de vir à Terra — que ele pedira com tanto empenho a Dona Olga que lhe
Santos (1995) afirma que é justamente a feitura que distingue o caboclo do orixá.
Segundo o autor, o caboclo, ao contrário do orixá, não é feito — só batizado, em alguns casos.
Sua descrição é diferente da que encontrei, mas penso que, talvez, o que ele denomina
batismo seja algo semelhante ao que as pessoas com que convivi chamam de assentamento.
justamente porque representa uma ligação com a cultura local. Santos, como outros, se refere
à descrição feita por Landes (1947) de seu encontro com a mãe de santo Sabina, uma "mãe
cabocla" (que ao que parece trabalhava apenas com caboclos). Depois de encontrá-la, Landes
se reporta a Mãe Menininha, mãe de santo do Gantois, que lhe diz que tanto há caboclos feitos
quanto não feitos; sua observação, assim, corresponde às que escutei no Gantois.
2.3.4: Eguns
comparecem. Ao contrário do Ilê Axé Opô Afonjá, onde vez ou outra um baba egum pode
circular, o Gantois nunca é frequentado por eguns. Minhas experiências com eguns se deram
basicamente no terreiro Ilê Axipá, de Mestre Didi, aonde fui diversas vezes. Falarei um pouco
93
Santos (1995) comenta sobre esta festa em sua monografia sobre os caboclos da Bahia: "Ainda segundo
Lépine, a própria Olga do Alaketo, mãe de santo de um dos mais tradicionais terreiros de herança nagô, tem um
caboclo, Junadiara [sic], ao qual dedica uma festa todos os anos, em janeiro. Esta festa é reservada a um grupo
restrito de pessoas e membros do terreiro demonstram certa relutância em falar de tal caboclo, como se sua
existência fosse algo desabonador para o terreiro." (Lépine apud Santos 1995)
113
sobre os eguns porque relato, nesta tese, um caso em que eles foram protagonistas — e porque
penso que seja importante conhecê-los um pouco para entender alguns aspectos da dinâmica
do universo do candomblé.
Eguns são os espíritos dos mortos. À diferença das outras entidades, porém, não se
manifestam por meio da possessão, mas se materializam. E existem dois tipos de egum: os
eguns, antepassados de famílias específicas. No caso do terreiro Ilê Axipá, onde tive a
oportunidade de assistir a algumas festas de egum, os babas que ali aparecem são espíritos
Segundo me foi explicado, os aparacás são espíritos que se encontram num estágio
mais atrasado; ainda não se iluminaram o suficiente para se equiparar aos baba eguns. Já os
baba eguns são os ancestrais que atingiram certo nível de iluminação, o que lhes permite
voltar à Terra para serem louvados e adorados. A divisão dos eguns entre aparacás e baba
eguns se reflete também na organização espacial do seu terreiro: o barracão é uma espécie de
tenda com uns quinze metros de diâmetro, erguida sobre pilastras de cerca de um metro de
altura cada uma. Em uma das metades, há duas fileiras de bancos — uma para as mulheres e
outra para os homens. De um dos lados, ficam os atabaques. Toda a outra metade é reservada
aos baba eguns: essa parte conecta-se com uma ladeira que dá acesso à parte mais restrita do
terreiro, onde só podem entrar os ojés — homens preparados para lidar com os eguns. De lá,
saem os eguns, geralmente um de cada vez. Eles dançam na metade reservada a eles; nos
intervalos entre as músicas, falam com a plateia em iorubá, muitas vezes chamando pelo
nome pessoas da audiência que têm cargos no terreiro e dando-lhes bênçãos. As bênçãos são
dadas por meio de um gesto em que o baba egum sacode a sua roupa para a frente, mandando
axé na direção das pessoas, que o recebem como se colhessem o fluido com as mãos e se
114
Os ojés usam varas, chamadas atori, para manter os eguns longe das pessoas. Não se
pode encostar em nenhuma parte do pano que recobre os eguns — segundo me explicaram,
qualquer contato poderia trazer sério risco. E o mesmo também precisa ser observado em
relação aos aparacás, com quem o contato pode ser ainda mais perigoso. Os aparacás
circulam pela parte externa do barracão, soltos por todo o terreiro, que deve ter uns três mil
metros de área. Circular sozinho por qualquer trecho dessa área é muito perigoso: não há
imperceptíveis. Enquanto os baba eguns usam roupas bonitas, bordadas, de formato cônico
em cima e circular embaixo, a roupa dos aparacás é apenas um lençol esticado. Acima deste
lençol, há uma vara presa, com a qual o aparacá ataca as pessoas desavisadas. Da primeira
vez em que fui ao Ilê Axipá, havia um aparacá novo. Deram-lhe o nome de Vivaldo, em
homenagem a Vivaldo da Costa Lima, que acabara de falecer. Havia outro apelidado de
Michael, pois surgira logo após a morte de Michael Jackson. Mas, segundo me explicaram, "é
só de brincadeira, porque todo mundo sabe que aparacá não tem nome".
Voltei ao Ilê Axipá outras vezes, numa delas para um axexê, o ritual funerário, para
um membro da Casa que havia falecido. O axexê foi feito na sala da casa que há dentro do
terreiro. Num certo momento um aparacá, todo preto, apareceu e sentou-se ao lado da porta,
e lá ficou por volta de uma hora, chorando numa lamúria muito dolorosa. Era o espírito do
morto, me explicaram, que havia vindo para a sua própria despedida. "Ele morreu muito
novo", me explicou uma senhora, "Por isso que está assim, triste." Depois de algum tempo
ouvindo os lamentos do aparacá, fui até a cozinha. Lá, encontrei uma senhora, membro da
Casa. Ela, vendo minha cara assustada, perguntou: "Você já havia ido a algum axexê?" "Já",
respondi, "Mas no terreiro de Oxumarê". "E o que você achou?", perguntou ela. "Achei muito
bonito", eu disse, pensando que ela se referia à diferença entre as duas cerimônias. "Nunca
diga isso!", ela falou, rapidamente. "Nunca! Corrija agora! Fale: muito bonito para eles. Vá,
115
fale! Muito bonito para eles", repetiu ela, enfatizando o final da frase. Fiz o que ela mandava,
e então lhe perguntei o porquê daquilo. "Porque eles são os mortos, minha filha. Se você falar
que achou bonito, eles podem te confundir com eles e querer te levar. Assim, nunca fale que
você achou nada dos mortos bonito. É sempre 'para eles', entendeu? Para você, não, nunca!"
***
O objetivo deste capítulo foi não somente apresentar as entidades do candomblé com
as quais convivi em Salvador, como mostrar, ao menos um pouco, como se dão as relações
noção de "representação" para se referir a esse tipo de relação. Um filho de santo do Gantois,
que também é pai de santo de um terreiro, me falou, em uma entrevista que fiz com ele, que
os nossos termos são insuficientes para descrever as relações do candomblé. Ele se referia às
relações familiares entre os orixás, e me disse que um orixá pode ser ao mesmo tempo mãe e
mulher de outro, e que isso não seria uma incongruência. "A gente que não tem uma palavra
que defina isso em português", disse-me ele. "O único jeito seria mesmo criar uma linguagem
toda nova. Como a gente não tem, fica aí quebrando a cabeça para explicar umas coisas que
na verdade são tão simples... Se bem que são complexas ao mesmo tempo, se é que você me
entende. Porque a gente tem mania de separar as coisas, mas no candomblé o que há é
indistinção: o orixá, por exemplo, está dentro e fora da gente, e isso é a mesma coisa. Você
entende? O candomblé é um mundo que para se mergulhar nele, o que vai acontecer é que
você vai, vai, vai e não vai chegar a lugar nenhum. Então são coisas que às vezes a gente tem
que tentar entender mesmo na superficialidade. Porque se for mergulhar demais, acaba se
afogando."
116
Como exemplo do que foi visto, podemos pensar no orixá Iemanjá. Ela mora no mar;
ela é o mar; ela é como o mar; é representada pelo mar; é simbolizada pelo mar. Todas essas
frases escutei em Salvador. Pensarmos nos orixás como "modulações do axé", como sugere
que se quer dizer. Da mesma forma, escutei que o filho de santo é parte do orixá, carrega um
pedaço do orixá, é a morada do orixá, representa o orixá e, até, é o próprio orixá. Ou seja,
mantém com ele uma relação, um enredo, que carrega uma multiplicidade de sentidos.
candomblé baiano, penso então que estão apresentados os elementos básicos para que
possamos retomar a questão de como essas entidades se relacionam com os filhos de santo (e
entre si), em diversos níveis. No próximo capítulo, pretendo explorar a ideia de "enredo"
como narrativa, entendido não somente como a relação de que tratam os relatos, mas também
117
Capítulo 3:
Enredo I: Narrativas
o hóspede despercebido
(Paulo Leminski)
três famílias retratadas são todas, por assim dizer, do Gantois: a primeira é a própria família
de Mãe Carmem, a sexta mãe de santo numa linhagem exclusiva de mulheres da família,
família é uma das mais antigas do terreiro: a família Cajazeira. Nela, veremos um modelo de
transmissão muito particular, em que as relações com os espíritos foram acopladas aos orixás
dos descendentes de Carlos Cajazeira, o mais antigo membro da família a ter relações com o
118
Gantois. A terceira família é a de Maria Felipa de Ogum, uma das grandes companheiras de
Mãe Menininha. No Gantois, referem-se a essa família como "a família de Ogum", pela
maciça presença deste orixá em seus membros. O modelo de transmissão, neste caso, é o do
orixá patrono. A noção de enredo se evidenciará, ao longo destes casos, como uma relação
candomblé.
mim por membros destas famílias, já que minha finalidade é justamente mostrar como os
Certo dia, eu caminhava pela noite movimentada do Rio Vermelho com um pai de
santo de São Paulo com quem eu andara conversando sobre candomblé quando ele me disse
subitamente: "Tá todo mundo voltando pra casa". Pensei que ele se referia à massa de jovens
que ocupava a calçada, impedindo a nossa passagem. Ele então continuou o seu raciocínio:
"A gente sempre acaba na Casa da nossa família. Se você roda, roda e acaba numa casa jeje, é
porque a sua família, lá nos primórdios, vem do Daomé. Se você tiver parado numa casa
queto, é porque vocês são de Abeokutá, ou das redondezas. Se você para numa casa angola, é
porque a sua família é daquela área, de Angola ou do Congo. A gente sabe que o ser humano
veio da África, então todo mundo tem um ancestral africano. Na verdade, todo mundo só está
119
achando o caminho de volta pra casa. Se você fizer a sua árvore genealógica bem longínqua,
vai ver que você e a sua mãe de santo são da mesma família ancestral. Fazer santo é voltar
pra casa".
Achar o caminho de volta para casa significa, entre outras coisas, reconhecer o
parentesco existente entre a pessoa e o orixá. Sendo o orixá um ancestral divinizado, como me
explicaram inúmeras vezes, intrinsecamente ligado à terra onde viveu enquanto humano, a
volta para casa, representada aqui como uma Casa de Candomblé da nação correspondente,
A "volta pra casa" foi um tema recorrente nas conversas com meus interlocutores
baianos. "A gente sabe que o ser humano veio da África", me disse um amigo do candomblé."
"Fazer o santo é reencontrar a sua família", me disse outro filho de santo que conheci durante
a minha estadia em Salvador.95 Entrar para o candomblé aparecia, muitas vezes, como a busca
cuidado com algum santo que um antepassado abandonou, a herança transmitida por um
muito caro ao povo do candomblé, se dá pelo sangue, mas não de maneira linear. Não há
como saber, por exemplo, qual descendente irá herdar o santo (ou mesmo o cargo) de um
parente falecido. Mas, como me disse a Iadagã do Gantois, "o sangue não enfraquece". Ou,
segundo Mãe Carmem, "se alguém da sua família bateu tambor um dia, é certo que algum dia
94
Ou, nas palavras de Dianteill (2002: 2): "O orixá é considerado um ancestral divinizado, portanto a pessoa que
se inicia é um descendente longínquo."
95
Verger (2002), ao analisar a presença de pessoas sem descendência africana direta no candomblé, disse que:
"Com o passar do tempo, a definição e a concepção do que é o orixá no Brasil tendem a evoluir. Em se tratando
de africanos escravizados no Novo Mundo, ou de seus descendentes aí nascidos, sejam eles de sangue africano
ou mulatos, tão claros de pele quanto possível, não havia e não há problemas, pois o sangue africano que corre
em suas veias, não importando a proporção, justifica a dependência ao orixá-ancestral. Progressivamente, o
candomblé viu aumentar o número de seus adeptos, não somente de mulatos cada vez mais claros, como também
de europeus, e até de asiáticos, absolutamente destituídos de raízes africanas. Os transes de possessão dessas
pessoas têm geralmente um caráter de perfeita autenticidade, mas parece difícil incluí-los na definição acima
apresentada: a do orixá-ancestral que volta à terra para se reencarnar, durante um momento, no corpo de um de
seus descendentes. Embora os crentes não-africanos não possam reivindicar laços de sangue com os seus orixás,
pode haver, no entanto, entre eles, certas afinidades de temperamento.(...)" (2002: 33)
120
você vai bater."
determinado axé, assume uma certa identidade étnica, pelo menos simbolicamente. Passa a
perceber-se como um angola, um gege [sic], etc.". Para Serra, a etnicidade está diretamente
disse o pai de santo com quem eu conversava.96 Há, no Gantois, um casal cuja mulher
frequenta o terreiro e o marido iniciou-se no Bogum (o mais antigo terreiro de nação jeje de
Salvador). De acordo com uma antiga egbome da Casa, "cada um foi para onde tinha que ir.
Ela tem raiz no queto e ele no jeje". De acordo com Serra, o axé, energia motriz do
candomblé, deriva tanto dos orixás quanto dos ancestrais africanos que deram início ao culto.
Segundo ele, "Iniciar-se equivale a filiar-se a esses ancestrais — e no caso não importa a
genealogia ‘real’ do sujeito." (1978: 37) Se pensarmos que, segundo o que se diz, os orixás
são, de certo ponto de vista, esses ancestrais divinizados — alguns dos quais tiveram "morte
humana", como Xangô, e outros "se encantaram", podemos estabelecer esse parentesco
como uma substituta natural da família de sangue: os escravos, separados à força de seus
96
Posteriormente, Serra (1995: 107) foi ainda mais claro quanto a essa posição: "Passando ao caso que aqui nos
interessa, por certo ninguém, no Brasil, nasce jeje, ou congo, ou ijexá etc.; mas dizer que se integra tal
comunidade de culto por afiliação voluntária é contrariar a ideologia desses grupos. O povo-de-santo afirma que
'ninguém entra no candomblé por querer', e 'quem faz santo, faz por necessidade...'. O imperativo da aflição que
leva a pessoa a iniciar-se é visto como sintoma de uma dívida para com os orixás, a qual impõe a ligação com
um axé; e ligar-se a um axé é filiar-se a uma 'nação'. Entende-se que ao fazê-lo cumpre-se um destino: cada um
entra, pois, para a 'nação' que lhe cabe, por deliberação de Deus e dos 'santos'."
121
quem mantinham laços genealógicos de solidariedade, em seus clãs ou tribos, trataram de
reconstruir simbolicamente seus laços de parentesco. Segundo me explicou Ogum Toripê, pai
de santo em Sergipe: "A composição das famílias de santo era uma maneira de os escravos
recriarem as suas estruturas familiares que haviam sido rompidas com a escravidão. O
candomblé é uma criação — no seio da Igreja Católica, que isso era necessário na época,
senão era proibido — que permitiu aos negros escravos recriarem a sua família de sangue.
Como as famílias eram sempre separadas, ainda lá na África ou aqui na chegada — se eles
viam que os escravos eram da mesma família, mandavam um para o Maranhão e o outro lá
para o fim do mundo — os negros escravos criavam uma nova família através do candomblé".
Na África, como vimos, cada orixá era cultuado majoritariamente em um determinado lugar,
todas as famílias têm Xangô (ainda que, como vimos, pudesse ocorrer também a presença de
outros orixás na família). Assim, todos os que nasciam em Oyó eram considerados,
assim por diante (cf. Elbein 1975). Os orixás eram transmitidos, na maioria dos casos, por
linhagem paterna (cf. Bastide 1958, 1972; Verger 2002; para uma visão complementar,
Barber 1990), de pai para filho, geração após geração97. Não havia, portanto, na maioria dos
casos, a necessidade de se jogar os búzios para saber qual era o orixá da pessoa (aliás, o jogo
de búzios tal como o conhecemos hoje quase não existia; a divinação era feita pelo babalaô,
através do Ifá). O orixá era, de fato, um antepassado, a que seu "filho" se achava ligado por
97
Como escreveu Goldman (2009) sobre Bastide: "(...) e aqui reside a novidade da contribuição de Bastide (...),
na maior parte dos casos, as transformações não são arbitrárias, mas consistem na atualização de alternativas já
presentes nas religiões africanas, motivadas pelas novas condições objetivas (Bastide 1971: 278-281) (...)
Assim, a substituição da regra de determinação de pertença a um orixá (por meio de divinação, e não da
descendência patrilateral) é uma atualização de uma alternativa já existente na África, ainda que só utilizada em
poucos casos (doenças, descoberta de orixás oriundos da linhagem materna que podem ser adotados, o fato de ter
sido criado no templo de uma certa divindade etc. (Bastide 1971: 280)." (2009: 110).
122
laços de sangue.98
A escravidão mudou esse regime e instaurou novas maneiras de existir para essas
religiões tradicionais. Separados à força de suas famílias de sangue, ou seja, de seus orixás, os
africanos mandados para o Brasil tiveram que reorganizar as bases de sua religião; "secretar a
sua própria concha", nas belas palavras de Bastide (1972). Aqui, separados de seus familiares,
diferentes regiões, esquecendo uns e favorecendo outros. Dos mais de quatrocentos orixás que
se supõe que existissem na África pré-diáspora (cf. Elbein 1975), são cultuados no Brasil
cerca de dezesseis, com algumas variações. Orixás de origem jeje, como Omolu, Nanã e
Oxumarê, passaram a dividir o espaço com orixás dos iorubás, formando, eles também, uma
grande família.
orixá da região da família paterna, carregado por todos seus herdeiros masculinos, cada um
com sua variação individual, no Brasil essa transmissão passou a acontecer de outras
gradual substituição da adivinhação pelo ifá para a leitura do odu (o destino pessoal) através
do jogo de búzios permitiu que as mulheres, de coadjuvantes (já que os adivinhos eram
sempre homens, os babalaôs, e a transmissão dos orixás acontecia, como já sublinhamos, por
98
Segundo Verger (2002: 18), "A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa,
originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um
ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da
natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de
exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das
propriedades das plantas e de sua utilização. O poder, asé, do ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade
de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele
provocada." Ou seja, embora tenha acenado com apossibilidade da ancestralidade comum, Verger termina por
encontrar no modelo arquetipal de comportamento a resposta para a sua questão — resposta diferente da que
encontraremos aqui. Como veremos mais à frente, muitos autores usam o modelo arquetipal; defendem que os
orixás são na verdade arquétipos dapersonalidade humana, usados como um modelo no qual a pessoa se baseia e
ao qual se limita, o que traz conforto ao seu próprio modo de existência. Cada um se identificaria com um orixá,
e isso acalmaria a sua própria personalidade, encaixando-a em um modelo pré-existente que, no limite, ele
representaria nos rituais de possessão.
123
linhagem paterna), passassem a ser protagonistas, mães de santo responsáveis tanto pela
divinação quanto pela feitura dos orixás. Se em Cuba, por exemplo, o papel dos babalaôs
continuou sendo o da divinação, complementado pelas mães de santo que cumprem os rituais
e fazem os trabalhos, no Brasil é a mesma pessoa, seja mulher ou homem (mãe de santo ou
pai de santo), que responde tanto pela divinação quanto pelos trabalhos e feituras.
Bastide 1958, Verger 2002, Goldman 2012, Barber 1990), já que os orixás pertenciam a uma
linhagem, sendo transmitidos, na maior parte dos casos, por descendência patrilinear, no
Brasil, com a escravidão e a consequente separação das linhagens (que quando conseguiam se
manter unidas no navio negreiro eram separadas à força pelos mercadores, já no seu destino,
para enfraquecer a organização dos escravos), a organização das famílias passou por uma
regiões passaram a se agrupar sob um mesmo teto, o mesmo ocorreu com aqueles que os
carregavam. Morando juntos, sob a égide da escravidão, não lhes restava outra opção senão
criarem novas formas de parentesco, a "família simbólica" que viria a se transformar numa
Essa família simbólica seria criada na feitura, tendo como seu principal núcleo o
99
Bastide (1958: 280) afirma que: "É certo que na África, por exemplo, os orixás se transmitem regularmente em
linhas masculinas e segundo as linhagens,porém, também é certo que, depois de doenças ou desgraças, o babalaô
consultado pode ordenar a tomada de um orixá que não o da família paterna; nesse caso, a criança nasceu do
orixá, e nooutro, é seu filho. Isso faz com que uma pessoa possa ter duas divindades simultaneamente ou
abandonar a de sua linhagem paratomar apenas aquela chamada por intermédio da consulta feita pelo babalaô.
Cumpre acrescentar que certos indivíduos podem adotar também o orixá materno, que o modo de nascer, seja
com o cordão umbilical em volta do pescoço, seja com a cabeça ainda aderente ao folículo interno da placenta,
determina o orixá da criança que pode não ser aqui o de seu pai; enfim, se o nenê que nasce num convento
durante o período de iniciação da sua mãe, pertence de direito ao deus patrono da confraria. Ora, se a escravidão,
desagregando as linhagens, impedira no Brasil a continuação da norma habitual, todas as outras alternativas
continuaram possíveis; e essas, de fato, foram aplicadas; herda-se o orixá, seja do pai ou da mãe, ou ainda depois
de uma série de infortúnios ou de doenças que são considerados chamados de uma divindade e da consulta
subsequente ao babalaô, ou ainda de acordo com o modo de nascer da criança durante o parto; há inclusive uma
lei encontrada nos nossos candomblés que obriga a mulher que dá à luz durante seu período de iniciação a
consagrar seu filho ao seu próprio orixá, como se o feto sofresse, por contágio místico, os efeitos do ritual a que
se submete a mãe. Não há, portanto, diferenças de fatos, mas apenas a predominância de certos termos de
alternativas num país e de outros, no outro."
124
"barco de iaôs". De cada barco, nascem os "irmãos de barco", categoria de parentesco ainda
mais próxima que os "irmãos de santo". Feitos pela mesma mãe e pelas mesmas "mães
mais adiante.
Alguns autores defendem que a origem do termo "barco" seria uma referência aos
porões dos navios negreiros, onde, deitados lado a lado (como no sabaji, nome dado no
fundamentos básicos para essa nova família, a família de santo. É no sabaji que nasce o novo
nova organização parental, a do terreiro: agora ele tem uma nova mãe, a mãe de santo; novos
irmãos, os irmãos de santo; e ainda os irmãos de barco, que nasceram junto com ele, espécie
de gêmeos místicos com quem dividiram o útero materno, de que saíram no mesmo
momento.100
observação de Costa Lima, negando porém a relação apontada com os navios negreiros. De
acordo com Costa Lima "o termo parece de origem fõ, mas não deve ser traduzido — ou
entendido — como sinônimo de embarcação ou navio, pela sua homofonia com o termo da
linguagem de santo, embora assim pensem alguns autores" (Costa Lima 1977: 68 apud Serra
1978: 321). Porém, muitas vezes escutei membros do candomblé fazerem esta analogia, não
somente em tom zombeteiro ("este barco é um Titanic"; "este barco está furado"; "quero ver
navegar neste barco"), como em conversas mais sérias, o que pode sugerir uma adaptação do
termo a este seu entendimento mais literal. De qualquer maneira, é curioso lembrar o que
Rediker (2011) observa sobre a gênese do parentesco a bordo dos navios negreiros:
Verger (2002: 45), por exemplo, afirma que "Uma vez iniciada, a pessoa permanecerá ligada aos seus
100
125
O (...) drama (...) nascia do conflito e da cooperação entre os próprios cativos, como
pessoas de classes, etnias e gêneros diferentes, jogadas juntas indiscriminadamente no
horror do convés inferior do navio negreiro. De que forma essa "multidão de negros
de todo tipo agrilhoados" se comunicava? Eles inventaram formas de trocar
informações valiosas sobre todos os aspectos de sua condição, o lugar para onde
estavam sendo levados e o que os esperava. Ao brutal encarceramento, ao terror e à
possibilidade da morte prematura, foram capazes de opor uma reação criativa e de
afirmação de seu instinto vital: inventaram novas linguagens, novas práticas culturais,
novos vínculos, e o esboço de uma comunidade entre os que partilhavam o mesmo
destino a bordo. Eles chamavam uns aos outros de "companheiro de bordo", o que
corresponderia a irmão ou irmã, e assim inauguravam uma relação de parentesco,
"fictícia" mas bastante efetiva, para substituir a que fora destruída pelo sequestro
seguido de escravização na África natal. Sua criatividade e capacidade de resistência
os tornaram indestrutíveis, em termos coletivos, e aí reside o capítulo mais glorioso de
todo o período. (Rediker 2011: 15/16)
De acordo com Costa Lima (1977: 161), "as religiões iniciáticas africanas que
principalmente, pelos princípios de interdição sexual que existem numa casa de candomblé.
Ele chega a sugerir a possível relação de parentesco entre o iniciado e seu orixá, quando diz
que "no candomblé, nas linhagens recriadas através dos laços da descendência mística do
culto aos orixás, também se obedece, com maior ou menor rigor, às interdições das
excludente à família de sangue. A pessoa que faz o santo, segundo ele, ganha uma nova
funcionamento).
Creio que a questão, no Gantois, pode ser vista de outra maneira. A maioria de seus
famílias. A maioria dos membros dessas famílias acabou por se concentrar na pequena
126
comunidade que se formou em volta do terreiro. No começo, os mais antigos se mudaram
para estar perto de sua mãe de santo, já que as obrigações, antigamente, eram mais longas e
mais trabalhosas. Mas essas casas foram se multiplicando, crescendo para abrigar os
descendentes dessas primeiras famílias, e hoje há mais de sessenta casas de filhos de santo no
entorno do terreiro, sejam lajes construídas por cima de antigas casas ou casinhas que foram
sendo erguidas à volta delas. Todas essas famílias, que descendem basicamente de seis
antigas egbomes do terreiro, têm, atualmente, diversos membros feitos no Gantois. Ou seja, as
transmissão por herança? O que exatamente é transmitido? Com o modelo da família de santo
— ou, em última instância, o axé — se transmite pelo sangue, e onde as descendências (de
sangue e de santo) seguem alguns padrões que iremos examinar a seguir. Verifica-se uma
principalmente pela busca de uma linhagem que seja concomitante, tanto de santo quanto de
sangue.
Certa vez, quando eu conversava com Dona Cici sobre esse assunto, ela me falou: "A
genética deles tá ali dentro. Se você quiser falar de DNA, essas coisas, aí são os brancos que
"Repare", me disse Fábio, "você está na Bahia, minha filha." Acabáramos de sair de
uma loja no Pelourinho, onde Fábio queria comprar pedras de segui, um material raro,
africano, com o qual se fazem cordões de contas de Oxaguiã. Na loja, que em sua fachada
127
encontramos Lola, uma africana natural de Lagos, na Nigéria. Seu marido fora preso na
Bahia, e ela então se mudou para cá com o filho para poder ficar perto dele. Decidiu trazer na
mala algumas coisas para vender, como colares e roupas africanas, que logo fizeram sucesso.
Lola então abriu uma loja na Rua das Laranjeiras, no Pelourinho, que logo ficou pequena para
o volume de seus negócios. Quando a conheci seu marido estava para ser solto e ela estava de
Embora Lola seja muçulmana, sua loja faz muito sucesso entre as pessoas do
candomblé, por causa dos panos africanos e dos colares e brincos que ela traz da Nigéria. Se
visitamos sua loja perto das seis da tarde, ela está sempre recolhida em um aposento que fica
na parte de trás, rezando. Nos dias de festa do Gantois, Lola vai até lá e monta sua
barraquinha do lado de fora, mas nunca entra no salão. No Ilê Axé Opô Afonjá, a mesma
coisa. Encontrei-a por lá algumas vezes: ela monta sua banca, expõe suas mercadorias, trata a
todos com respeito, mas quando os tambores começam a tocar, recolhe tudo e vai embora.
Perguntei a Lola o motivo de ela nunca entrar nas festas, e ela me disse que tem medo.
Insisti um pouco no assunto e ela me respondeu amigavelmente, mas sem divagações: "Tenho
medo". Nesse dia, acompanhada de Fábio, retomei o assunto com Lola, durante a visita à sua
loja. "Medo de quê, Lola?", lhe perguntei. "Medo, só". Então, na porta de sua loja, em frente à
estátua de Zumbi, Fábio me deu a sua explicação: "Você está na Bahia, minha filha. Medo de
"Quem souber, morre" foi uma expressão que ouvi diversas vezes durante o meu
pergunta feita. Pode ser dita, pelos mais velhos, em tom de reprimenda, ainda assim
zombeteira, quando acham que a pessoa está querendo "saber demais". No caso de Lola,
porém, penso que a resposta para o seu medo me foi dada por outra africana que conheci.
128
Paris e trabalha há muitos anos no Banco Mundial, em Washington. Seu marido, Amadou,
tem uma história de vida parecida. Também de uma família com recursos, estudou economia
em Nova York e trabalha no FMI. Atualmente Seinabou trabalha em um projeto com ONGs
brasileiras, e por isso tem vindo ao Brasil com frequência. Numa dessas viagens, decidiu
passar três dias de férias em Salvador, e uma amiga comum me pediu que a ciceroneasse na
cidade.
família já é muçulmana há muitas gerações, e ela nunca teve contato com as religiões
tradicionais africanas. Convidei-a para uma festa de candomblé que haveria no dia seguinte, e
ela recusou o convite enfaticamente. "Tenho medo", me disse, repetindo o que me dissera
Lola. "Medo de quê?, perguntei a ela, que naquele momento não conseguiu me responder.
I am a little bit of a chicken when it comes to it. I guess I am scared that the spirits
recognize me from back in the days. We have this very uncomfortable relationship
with syncretism. We know it is part of us, but we are trying to ignore it and be
truthfully adoring one God, so since we are kids we are taught to ignore the spirit so
that they do not lure us back into their/our world. 101
O que seria exatamente "ser reconhecida", para Yaya Seinabou? Segundo ela, o
"espírito", palavra empregada por ela, poderia reconhecê-la "dos tempos antigos". Penso que
ela se refere, mais especificamente, a um parentesco possível entre ela e algum desses
E essa sua resposta é coerente com o que se diz no Gantois. De todas as razões que
podem levar alguém a fazer o santo naquela casa, a mais importante é, com certeza, a família.
Mãe Carmem me disse certa vez: "Às vezes uma pessoa chega no candomblé, aí você
101
"Sou meio covarde nessa matéria. Acho que fico com medo de que os espíritos me reconheçam do passado
distante. Temos uma relação muito desconfortável com o sincretismo. Sabemos que faz parte de nós, mas
tentamos ignorá-lo e adorar sinceramente um Deus único, assim desde crianças nos ensinam a ignorar os
espíritos, para eles não poderem nos atrair e capturar de volta para o seu/nosso mundo."
129
pergunta se tem alguém na família que é do candomblé e ela diz que não. Você insiste e ela:
‘não, não, não’. Mas o que ela não sabe é que às vezes é um santo que vem de longe, um
parente distante, já esquecido..." Penso que foi por isso que escutei tantas vezes a pergunta:
"Não tem ninguém da sua família no candomblé?" Quando eu respondia que não, meus
algum tempo, diversas pessoas do Gantois, após muita especulação sobre meus parentes
distantes, concluíram que uma das minhas avós deveria ter sido do candomblé sem que eu ou
qualquer outro membro da família soubesse. "Esperta, essa sua avó", eles me diziam.
Ter um parente com questões a resolver no plano espiritual, com relações não
resolvidas com seus próprios orixás, herdar o orixá de algum antepassado, tudo isso leva
alguém a precisar fazer o santo. Os orixás têm famílias próprias e fazem parte de famílias
plasticidade do candomblé (cf. Goldman 2005, Costa Lima 1977, Herskovits 1956),
Não havendo ouro, usa-se latão; faltando a planta certa, usa-se uma parecida. A sobrevivência
força para outra realidade, os escravos tiveram que recriar nela a sua religião, utilizando
novos elementos em substituição a outros, que deixaram para trás. Penso que a capacidade de
fatores fundamentais desta mescla que nele encontrei de questões de santo e de sangue, que
uma pessoa que começou a frequentar uma casa de candomblé jovem, "por curiosidade",
como ele me descreveu. Depois de algumas visitas, jogou búzios com a mãe de santo. Esta,
130
assim que jogou os búzios, lhe informou que ele tinha enredo. Viu nos búzios que ele era de
Ogum, mas um Ogum que retornava à sua família. Ele respondeu que era impossível, que sua
família não tinha nenhuma ligação com o candomblé. "Procure saber", lhe disse a mãe de
santo. Ele foi então à procura de alguma história familiar que lhe fosse desconhecida,
duvidando muito que fosse encontrar algo. Ao conversar com sua avó, porém, esta lhe contou
que certo dia ouvira de sua mãe (portanto, da bisavó do consulente) referências ao seu
primeiro marido, que teria abandonado a família para ser pai de santo. Ela não sabia mais
detalhes, mas a sorte é que a essa altura a velha senhora ainda estava viva, morando numa
pequena cidade do Recôncavo Baiano. Pois ele foi procurar a bisavó e esta lhe contou, em
lágrimas, que havia sido abandonada pelo primeiro marido, que decidira abandonar a família
para ser pai de santo, casando-se com uma filha de santo do terreiro. Ela, traumatizada, tirou o
sobrenome dele dos filhos e os criou como filhos naturais do homem com quem viria a se
casar mais tarde, apagando a existência do primeiro marido da vida da família. Mas ainda
tinha guardado um colar dele, a única recordação que lhe restara; entregou o colar ao rapaz:
era uma conta de Ogum. Tive a oportunidade de assistir à saída de santo102 desse rapaz. Sua
roupa era verde-escura, indicando a qualidade de seu Ogum. O Ogum dançava devagar; era
um santo velho, como me explicou sua mãe de santo. Era o santo de seu bisavô, que retornava
finalmente à família.
102
Quando alguém faz o santo, depois de uma semana de recolhimento é necessário que o novo orixá seja
apresentado publicamente. A isso se chama saída de santo (pública, pois depois de três dias de recolhimento há
uma saída "interna", restrita aos filhos de santo do terreiro e à família do iniciado): nesse dia, o santo deve dar o
nome, ou seja, apresentar-se. Depois dessa cerimônia, o noviço volta para o recolhimento, lá permanecendo
ainda por cerca de três semanas.
131
complementariedade entre essas duas formas de aprendizado. O primeiro modelo é restrito à
família de Pai Adão (o fundador do terreiro onde ele fez sua pesquisa) e seus descendentes
diretos. Esses, segundo Halloy, dizem que "nasceram feitos", necessitando somente de um
"complemento" para ficarem prontos a receber seus orixás e tornar-se um filho ou filha de
santo da Casa. No Gantois, ouvem-se histórias muito parecidas com as que Halloy recolheu
em Recife. "O sangue não vira água"; "Isso aí vem no sangue"; "Esse enredo é de sangue",
além de muitas vezes referirem-se à família de Mãe Carmem como tendo "sangue azul". No
Gantois, porém, em momento algum se supõe que os membros da família das mães de santo
estejam dispensados de passar pelos ritos de iniciação. Lá não se observam exceções como as
registradas na família de Pai Adão. Todos devem se submeter igualmente aos rituais de
herança. Van de Port (2005) sugeriu o contrário, citando o caso de Leila, a neta de Mãe
Carmem que não teria raspado o cabelo quando se iniciou, insinuando ter ouvido rumores de
explicou a própria Leila, a qualidade de sua Oxum não demanda a raspagem total da cabeça;
ela ficou, em suas próprias palavras, "como um pica-pau", pois teve que raspar as laterais e o
topo da cabeça. Além disso, como veremos adiante, seu orixá é "retornado", o que impõe
De todo modo, o que fica implícito no modelo proposto por Halloy é a possibilidade
da transmissão do saber através do sangue. Embora no Gantois isso não seja dito com relação
seja mais parecido com o que Goldman (2003) denominou "catar folha" —, fala-se o tempo
todo que são as relações familiares (ou seja, consanguíneas) que levam alguém a fazer parte
do candomblé. Como já apontei acima, sugiro que o termo enredo é o que descreve essa
relação em que a transmissão pelo sangue tem um papel fundamental: pois ter enredo é ser
132
um pouco aquilo com que se relaciona, participar da natureza do outro, ter correndo nas veias
"O sangue não enfraquece", falou Mãe Neli, referindo-se a uma criança que acabara
de dar os primeiros sinais de que precisava ter seu santo assentado. O pai da criança, ao lado,
concordava: sendo filho e neto de homens feitos no Gantois, era muito provável mesmo que o
menino também necessitasse da feitura em algum momento de sua vida. Mas por quê?
Segundo Mãe Neli, isso "está no sangue". Goldman (2012) sugere que os dados de Halloy
um terceiro termo, a participação, também precisa ser levado em conta. E tanto em sua
acepção propriamente ritual, ou seja, no que diz respeito à convivência cotidiana no terreiro,
quanto no sentido que lhe atribui Bastide (1958): "Entrar em relação, material ou não, com
aquilo que constitui o ritual" (Goldman, 2012: 9). Assim, ainda segundo Goldman (2012: 10),
"a 'transmissão por participação' diz respeito tanto ao que se aprende enquanto membro de um
terreiro quanto ao que se recebe na iniciação propriamente dita"; ou, nas palavras de Bastide
(1958: 226): "Mas o reflexo de que falamos não é simples jogo de espelhos; pressupõe uma
caráter deles, porque um pouco do que eles são penetrou-lhe a cabeça. Isso terá consequências
Segundo Elbein (1975), o sangue é o veículo principal do axé. É através dele que flui a
energia que alimenta os orixás e as pessoas, conectando uns aos outros. É através do sangue
santo. É necessário catular, ou seja, abrir um furo no couro cabeludo do noviço, para que o
sangue do animal entre em contato com o sangue da pessoa e essa maternidade ou paternidade
133
2012, Elbein 1975). Conecta planos e realidades distintas para permitir o fluxo de vida, de
axé. É através dele que o axé é transmitido, que o axé circula entre os seres humanos e entre
podem tornar-se parte da vida das pessoas e dos orixás, de tal maneira que um se torna parte
hereditária entre pais e filhos. É o que parece sugerir Goldman (2012: 10):
Juana Elbein dos Santos (1975: 37-43) demonstrou que essa força única e múltipla
tem um modo de circulação fundamental: o "sangue". Palavra que, entretanto, não
significa exatamente nesse contexto o que poderíamos imaginar (...). Ora, isso só pode
significar que o sangue que recebo dos meus antepassados, aquele que recebo na
iniciação e aquele que flui na convivência cotidiana — seja o das plantas e o dos
animais consagrados ao longo dos anos no terreiro, seja o dos alimentos que
compartilho nas refeições coletivas, seja simplesmente o das pessoas, divindades e
espíritos com quem convivo — são, de certo ponto de vista, uma única e mesma coisa.
Para ilustrar esse ponto, vou apresentar a seguir três famílias do Gantois — três
característica a transmissão de orixás por herança. Landes (1947) conta em Cidade das
Mulheres uma conversa que teve com Mãe Menininha, quando esta lhe disse que sua filha
Cleusa era a reencarnação de uma tia que havia falecido, pois a sua Nanã era a mesma desta
tia.103 Mas o modelo, na verdade, difere do que Landes propôs. Não se trata propriamente de
consanguínea.
103
Nas palavras de Landes (1947: 279): "Ao contrário dos outros católicos, aqueles negros robustos tinham
herdado a convicção de que somente a vida, tal como a conheciam, era boa, e não podiam pensar em melhor
futuro para uma alma senão reencarnar-se logo num bebê vivo. Foi assim que Menininha soube que a sua filha
Cleusa pertencia a Nanã, pois, embora Nanã nunca tivesse baixado em Cleusa, os búzios tinham revelado, na
mesa divinatória, que a avó da menina, que era de Nanã, se reencarnara nela."
134
A segunda família que apresentarei é a família Cajazeira, presente no Gantois há
pouco mais de cem anos. O primeiro membro da família a se instalar no local foi Carlos
Cajazeira, que comprou uma das únicas casas que havia à venda na pequena rua de terra do
Alto do Gantois, a uns 50 metros do terreiro, ainda no tempo em que a mãe de santo era
Pulquéria, filha de Maria Júlia (a fundadora da Casa) e tia de Menininha. Ali, Seu Carlos, que
era espírita, instalou sua sessão de mesa branca, à qual muitos acorriam em busca de auxílio
espiritual.
Havia entre Seu Carlos e o Gantois o que sua filha define como uma "divisão de
trabalhos". Nas gerações que o sucederam, porém, a maioria de seus descendentes teve
"questões de santo", acabando por ser encaminhados ao Gantois. Cada um destes santos da
família de Seu Carlos, no entanto, tem características muito específicas. Ao invés de sua
acompanhava Seu Carlos passaria, depois de sua morte, a acompanhar os seus descendentes),
A terceira família sobre a qual falarei é a família Seixas, conhecida pelos membros do
Gantois como "a Família de Ogum". A primeira representante da família a se mudar para as
cercanias do terreiro foi Maria Felipa de Ogum. E todos os seus descendentes têm Ogum em
suas cabeças, o que mostra outro modelo de transmissão: o do "orixá patrono". 104
104
Dona Cici me contou o caso de uma escrava que lançou uma praga sobre a família de seus senhores. Seria
mais uma forma de manter uma relação familiar com um santo, um caso onde todos da família têm relação com
essa Iansã. A relação, nesse caso, advém dessa praga. Segundo o seu relato: "No caso foi uma praga que foi
jogada na família do meu pai pequeno e perderam as terras todas — quer dizer, as terras estão lá, mas não são
aproveitáveis. O meu pai pequeno é de Logum Edé com Omolu, mas aí o pai de santo jogou para ele e viu uma
Iansã; o jogo estava na mesa, o jogo armado e aí meu pai pequeno disse: "É, contam que na minha família eu
tive um bisavô ou tataravô que era muito perverso com os escravos e matou uma escrava no tronco, e essa
escrava jogou uma praga antes de morrer. Que ele ia ter aquelas terras todas, mas não ia servir pra nada... Que
ele ia perder tudo aquilo com as formigas — e dito e feito, quer dizer, eles perderam tudo. Perderam não, porque
as terras estão lá cheias de casa de formiga, só tem formiga lá, terra revirada, você mete o pé e a formiga sobe..."
Aí ele teve que assentar essa Iansã, que desde então estava dentro da família dele, que rodava dentro da família,
ficava andando na família, ficava dentro da casa aquele espírito. Uma hora ficava em um, outra hora se
encostava em outro, aí assentou muito bem assentada, com bicho de quatro pés, e começou a cuidar do
assentamento dessa Iansã. Claro, aí meu pai pequeno prosperou. Mas essa Iansã, ela tinha que ter um quarto só
para ela, e do lado de fora... Um dia ele foi pintar a casa dele e pediu para um parente distante tomar conta da
135
3.2: A Família de Mãe Carmem
Na família de Mãe Carmem, quando alguém morre, jogam-se os búzios para saber se o
santo da pessoa quer ser despachado105 ou prefere ficar na terra. Ou seja, se na África, como
vimos, o orixá individual podia ser herdado depois da morte daquele que o carregava
originalmente na cabeça, mas somente pela linhagem masculina, no Brasil também é possível
família desde a sua fundação, é o único dentre os três terreiros irmãos (os outros são, como já
vimos, o Ilê Axé Opô Afonjá e a Casa Branca) que conseguiu ter sempre no comando uma
pessoa do sexo feminino da mesma linhagem de sangue. O antropólogo Julio Braga definiu,
O Gantois já foi comandado por seis mães de santo: Maria Júlia, a sua fundadora;
Pulquéria, sua filha; depois de Pulquéria, Maria da Glória assumiu, durante pouco tempo; e,
em 1922, Mãe Menininha assumiu o cargo. Após sua morte, foi substituída pela filha mais
velha, Cleusa. Quando Mãe Cleusa faleceu, sua irmã, Mãe Carmem, tomou posse como mãe
de santo.
Maria Júlia, a primeira mãe de santo, era de Dada, uma qualidade de Xangô. Porém, o
Iansã. Aí disse "Neném, você vai hospedar os meus santos, você é de Oxum, vai hospedar os meus santos na sua
casa que eu vou pintar a casa dos santos". Botou Oxum, botou Logum Edé, botou Oxóssi, botou Oxalá, botou
Iansã lá dentro da casa. Minha filha, na terceira noite a casa do menino começou a pegar fogo, começou um fogo
do fundo onde estava os santos pra frente. É uma Iansã muito braba, o assentamento dela tem que ficar num
quarto aberto, como um coreto, do lado de fora."
105
Despacho, nesse caso, significa o processo de "desfeitura" da pessoa e do orixá, que se dá durante o axexê.
136
primeiro orixá de Maria Júlia fosse Dada, ela somente recebia Oxaguiã. Já Pulquéria era de
Oxóssi. Mãe Menininha era de Oxum, e Mãe Cleusa, como já vimos, de Nanã.
Mãe Carmem, por sua vez, é de Oxaguiã. E, segundo ela me explicou, o seu Oxaguiã é
também chamada de Bayani) de Maria Júlia foi herdado por Álvaro, filho de Mãe Cleusa. O
Oxóssi de Pulquéria está com Néli, filha de Mãe Carmem, assim como a IyaMassê do
fundamento da Casa (segundo ela, a última do Brasil). A Oxum de Mãe Menininha foi
herdada por Leila, assim como a Ewá. E o Ogum de Francisco Nazareth de Etra, marido de
Maria Júlia, está com Zeno, o outro filho de Mãe Cleusa, ou com Bruno, neto de Mãe
Carmem. 107
Segundo me contou uma filha de santo do terreiro, "a família é considerada de linha
direta de uma linhagem nobre do candomblé, pois suas raízes diretas vieram da África,
enquanto que nossas famílias são miscigenadas e não são de linhagem direta, e por isso
precisou haver outras formas de transmissão consanguínea dos santos." Ou seja, a família de
Mãe Carmem teria conseguido manter a transmissão direta dos orixás, nos moldes africanos,
por ser considerada "de sangue puro". Essa mesma filha de santo me explicou que, no caso
dos orixás de herança, a feitura é um pouco diferente: prepara-se a cabeça da pessoa que vai
receber o orixá da mesma maneira como se fosse para um orixá novo, mas o orixá retornado,
Peço licença aqui para reproduzir o discurso proferido por Mãe Angela, filha de Mãe
106
Serra (1978: 13) fala sobre os santos de herança: "Um tal santo pode ser herdado: quando morre um 'feito' ou
'feita', realiza-se o jogo divinatório para saber se deve despachar-se, confiar a alguém ou manter no Ilê Axé o
'Anjo da Guarda' assim materializado."
107
Goldman (2012: 7) também escreveu sobre os santos de herança, citando o famoso caso de Joãozinho da
Gomeia: "Nesse mesmo campo parecem se localizar os casos chamados de ‘santo de herança’, ou seja,
divindades ‘já prontas’ ou já ‘feitas’ que são transmitidas a um descendente, ou mesmo a pessoas apenas
próximas, após o falecimento do transmissor. Este era, por exemplo, o caso de Joãozinho da Gomeia que, além
de sua própria divindade, herdou o orixá de sua madrinha, cujo assentamento ele se orgulhava em apresentar,
dizendo que ‘esse orixá tem 94 anos’ (Cossard 1970: 140)."
137
Carmem e iaquequerê da Casa, em um evento do terreiro, em agosto de 2010:
139
homem. Quem nasce na Bahia, não tem água, não tem sol, não tem vento que tire a
magia. Porque a Bahia, embora não sendo a África, é um pedaço de lá".
A fala de Mãe Angela chama atenção justamente para o fato da linhagem do Gantois
ser "direta", ou seja, uma sucessão de mulheres que "com práticas milenares das antigas
"ancestralidade africana". Ainda segundo uma filha de santo do Gantois, "em famílias ligadas
pela linha consanguínea e de axé, os 'orixás retornados' são mais comuns, pois são oriundos
transmissão? De acordo com Leila, a decisão de ficar e, porventura, de voltar, "é sempre do
orixá". "Aí depende do enredo de cada um", ela me explicou. E essa transmissão direta vai se
Leila herdou a Oxum de Mãe Menininha. E, embora Mãe Menininha não recebesse a
sua Oxum108 (que só veio uma vez, no dia de sua saída), Leila a recebe. "É o enredo dela", me
disse uma filha de santo do Gantois. Além disso, há pouco tempo Leila começou a receber
também Ewá, e descobriu que se trata também da Ewá de Mãe Menininha. Ou seja, mesmo na
transmissão direta dos orixás (já que isso é uma constante nos membros da família), o mesmo
pode acontecer, embora muito raramente, com pessoas de fora da família. Há pouco tempo,
foi feito no Gantois um rapaz de Oxaguiã. Fui para Salvador assistir a sua saída (a cerimônia
em que o orixá dá o seu nome); eu já estava de volta no Rio de Janeiro, então não havia
acompanhado os detalhes de sua feitura. Na hora em que o seu santo deu o nome, "quem tinha
108
No Gantois existem muitas pessoas feitas de santo cujo orixá não vem. São consideradas adoxus e a feitura é
realizada "igualzinho a de quem dá santo", me explicou um filho de santo, mas o orixá, por motivos diversos,
não vem — ou melhor, "nunca veio", como eles preferem dizer.
140
santo para dar deu", como disse a moça que estava sentada ao meu lado. "Menina, foi uma
hecatombe", contou-me depois uma filha de santo, explicando-me que o Oxaguiã dele era um
orixá muito antigo: um retornado. Segundo ela, era um orixá raríssimo, ligado à família de
sangue de Mãe Carmem, mas que só vinha à Terra uma vez a cada quatrocentos anos. Algum
tempo depois, ele me explicou que, durante a sua feitura, percebeu que o seu enredo com a
Casa era "coisa muito antiga", e que ele "enfim tinha encontrado a família dele".
distribuidora do sinal da TV, marca o ponto exato do terreiro na cidade. "Antena de muitas
coisas", como me disse uma filha de santo da Casa. Logo após a entrada da TV, há um
pequeno bar, do lado direito. Um pouco mais adiante há uma venda, alocada numa espécie de
contêiner, que pertence a Bárbara Cajazeira. Logo depois, uma venda, desta vez, numa casa,
que pertencia à tia de Bárbara, Cleide, que faleceu durante o período da minha pesquisa. A
casa/venda que era de Cleide fica numa rua ocupada quase em sua totalidade por membros da
A família delas foi uma das primeiras a ocupar os arredores do terreiro. A origem de
sua presença na área remonta a mais de cem anos, quando Carlos Cajazeira, tataravô dos mais
novos membros da família que conheci, se mudou para a vizinhança. Seu Carlos Cajazeira foi
morar nos arredores do Gantois por acaso. Havia uma boa casa à venda ali e ele, que era
mestre de obras, mudou-se para lá com a família. Tinha vinte e um anos quando foi morar no
Alto do Gantois; a mãe de santo, na época, era Pulquéria. Logo Seu Carlos se casou e sua
esposa, assim como ele, era médium. Com o tempo, a mediunidade dos dois se tornou mais
forte e os espíritos exigiram que eles fizessem em sua casa uma mesa branca, nome que se dá,
141
na Bahia, a sessões espíritas domésticas que acontecem geralmente uma vez por semana
grande variedade de espíritos que nelas se manifestam: numa mesma sessão, podem aparecer
orixás, espíritos de médicos como João Luiz, caboclos, astecas, exus e mais uma ampla
variedade de entidades — desde as entidades "sem luz", que causam problemas na vida das
pessoas e podem assumir formas diversas, até os espíritos "de luz", normalmente espíritos de
médicos, curandeiros etc., que vêm à Terra a fim de prestar auxílio em tratamentos e
processos de cura. Na mesa branca de Seu Carlos Cajazeira, avô de Bárbara e pai de Cleide,
explicou uma de suas filhas, Leda. Quando percebia que a entidade que havia chegado era um
Menininha. Por outro lado, quando, no Gantois, chegava uma pessoa com problemas "de
O primeiro membro da família Cajazeira que conheci foi Yohanna. Yohanna tem 28
109
Rabelo (2008a) chama a atenção para o "papel mediador" do espiritismo com relação ao candomblé (2008a:
185). Segundo a autora, "a língua franca espírita cria um campo importante de diálogo religioso interclasse (...)"
(2008a: 185) e "o percurso até a iniciação e o compromisso efetivo com um terreiro foi, para muitos, marcado
por idas e vindas, pelo trânsito por diferentes casas e mesmo por diferentes espaços religiosos." (2008a: 188).
Rabelo aponta que muitos dos seus informantes haviam frequentado sessões de mesa branca antes de
enveredarem pelo caminho no candomblé, e que "entre a sessão e o terreiro é percebida uma certa continuidade;
afinal, segundo o entendimento corrente, trata-se aqui e ali de cultivar e desenvolver relações com as mesmas
entidades sagradas. (...) Além disso, a passagem da mesa branca para o candomblé é muitas vezes explicada
como exigência das próprias entidades, remetendo à natureza dessas entidades." (2008a: 189) Rabelo afirma
também que, embora a entrada no candomblé seja vista como necessária (pois atende a um chamado do orixá),
ela não acontece sem certa dose de aflição, já que o candomblé é visto por seus interlocutores como uma religião
mais "pesada" que o espiritismo (2008a: 190). Rabelo também observa que "Estreitamente correlacionada à ideia
de obrigação está a de herança. Esta aparece, em algumas das narrativas, na formulação de que a afinidade com o
candomblé e com os orixás não é simplesmente uma característica da pessoa singular, mas um traço de sua
família, que a distingue e singulariza enquanto portadora de uma obrigação herdada. Em outros relatos, ganha
maior especificidade no entendimento de que a entidade que aflige a pessoa e da qual ela deve cuidar é uma
entidade herdada, que faz parte da história de outros, parentes seus. Vem de berço. Cuidar dela é,
frequentemente, saldar uma dívida contraída no passado da família, evitar o destino de sofrimento daqueles que a
ignoraram." (2008a: 192), o que remete sobremaneira à minha própria pesquisa.
142
anos e é de Iemanjá. Seus dois filhos, de 4 e 6 anos, já são ogãs suspensos110 da casa, e ela foi
feita ainda criança, aos nove anos, num barco famoso em que várias crianças foram iniciadas
— um dos últimos barcos de Mãe Cleusa, a filha mais velha de Mãe Menininha. Yohanna
certa vez me contou que sua feitura foi complicada e demandou um vasto conhecimento por
parte da mãe de santo; além disso, para completá-la, precisou circular por vários terreiros,
entre eles um terreiro de egum, onde se completou sua feitura. Quando lhe perguntei porquê,
ela me contou a história de seu avô. Por ele ter sido um mestre da mesa branca, ela havia
herdado essa relação com os espíritos, e seu enredo com os mortos era muito forte. Yohanna
também me contou alguns detalhes de sua feitura. As primeiras manifestações de seu orixá
foram, como me explicou, um "transe de morte". "Eu ficava branca, fria, com a boca roxa, por
várias horas", ela me falou. "Demorou para eu fazer o santo, porque era complicado, e eu era
A história da família me foi contada por Dona Leda, uma das filhas de Seu Carlos
Cajazeira, hoje em dia a pessoa mais velha da família. Entrevistei também sua irmã, Miralva,
avó de Yohanna; Cláudia, a mãe de Yohanna; e a própria Yohanna. Porém, para facilitar a
compreensão, reproduzirei a seguir somente trechos da longa entrevista que fiz com Dona
Leda.
Meus pais quando chegaram aqui, contado pela minha mãe mesmo, já tinha o Gantois.
Na época não era Mãe Menininha, era Pulquéria. Depois que veio Mãe Menininha, e
meus pais aqui eram espíritas. E lá no Gantois — sabe que lá é queto, né? — e meus
pais espíritas. Então era assim: na vida de meus pais aqui tinha as reuniões no dia de
segunda-feira, tinha a mesa branca. E muitas pessoas vinham. Porque vinha uma que
daqui a pouco encaminhava outras, e sempre um guia espiritual que minha mãe
recebia — ele era um médico, na vida material ele foi um médico. Então minha mãe,
as pessoas que chegavam com um problema espiritual, ele incorporava em minha mãe
e fazia o tratamento na pessoa. Mas como minha mãe enxergava no copo, era vidente
de copo, além dela incorporar era vidente de copo, então antes desse guia manifestar
110
Ogã suspenso é aquele que foi escolhido por algum orixá (que o suspendeu), mas ainda não foi confirmado
(submetido à feitura).
143
nela ela via o que estava acontecendo com a pessoa. Depois o guia vinha, que era o
médico, pra poder medicar através do espiritismo, e o que fosse do espiritismo
continuava vindo para aqui. E o que não fosse do espiritismo, envolvendo a parte de
azeite111, aí encaminhava para Mãe Menininha. E ficava essa ligação, da minha família
com a família de Mãe Menininha. Foi por isso que ficou essa família assim.Tinha esse
relacionamento de vizinho com vizinho. Então tudo que era pra lá que não fosse de lá
de azeite, Mãe Menininha mandava pra cá pra minha mãe.
essa relação complementarque até hoje se pode observar em diversas Casas. Halloy (2005)
afirma que o candomblé tomou de empréstimo certos conceitos do espiritismo para descrever
fenômenos que vieram com essa mudança infra-estrutural.112 Como lidar com a reencarnação,
agora que as linhagens não podiam mais manter-se puras? Fábio parece compartilhar a mesma
opinião, mas, para ele, o problema não é somente de linguagem. Segundo ele, o candomblé
acoplou a seus princípios alguns fundamentos da doutrina espírita para suprir determinadas
lacunas. A explicação de Fábio leva em conta o caráter agregador do candomblé, que engloba
e acrescenta a seus princípios as ideias mais adequadas às suas necessidades, que desse modo
Ocorre que, com o passar do tempo, a família Cajazeira foi se aproximando mais e
mais do candomblé. Conta Dona Leda que a primeira a entrar foi Cleide, sua irmã, filha de
Seu Carlos. Cleide era de Omolu, o "Omolu do Cemitério". Leda era criança quando a irmã
fez o santo, por isso não se lembra dos detalhes de sua feitura. Mas me contou que a morte de
Cleide, a seu ver, foi devida à sua falta de cuidado com os santos:
Minha irmã Célia foi a primeira filha de santo de Mãe Menininha na família. O Omolu
111
"De azeite" é uma maneira coloquial para falar que é do candomblé ("azeite", em Salvador, é o azeite de
dendê). O azeite de oliva comum, como chamamos aqui, lá é denominado "azeite doce".
112
Segundo Halloy (2005: 147): "(...) a maneira de conceber os eguns e os 'espíritos' é, em geral, fortemente
influenciada pelo espiritismo kardecista."
144
dela é daí do Gantois. Porque quando ela era garota, minha mãe levava a gente pra
igreja de São Lázaro, e na praia de São Lázaro, na Ondina, tinha uma gruta que caía
água, esses negócios, e o pessoal chamava de gruta de São Lázaro. E ali tinha a gruta
de São Lázaro e ali tinha os milagres, ali tinha uma água, não era água da praia, era
água doce. E minha mãe quando levava a gente pra ir pra praia levava a gente pra ir
ali: "Vamos lá, vamos na gruta, pra se banhar com aquela água". Então, quando ela era
menina que ela entrou, tomou um susto e gritou, e quando gritou disse "Eu estou
vendo um velho ali com uma bengala e um cachorro!" Ela viu Omolu ali. Aí ela saiu
assustada, gritando, gritando e minha mãe: "Calma, calma, calma". Aí depois foi que
Mãe Menininha veio dizer: "Ela viu o anjo de guarda dela, ela é de Omolu". O Omolu
dela é São Lázaro, tem o cachorro e a bengala. O Omolu doente, do cemitério. E ela
viu. Disse que o cachorro estava assim lambendo a ferida dele. Ela aí saiu gritando, aí
minha mãe nunca mais levou ela lá. Aí levou para Mãe Menininha e Mãe Menininha
disse quem era o velho que ela tinha visto e que era o Orixá dela, e que ela tinha que
ter muito cuidado com os doentes. Mas o Omolu dela é daqui porque foi Mãe
Menininha quem primeiro viu, e que devido a ter essa coisa de espírito Mãe
Menininha mandava pra lá e candomblé mandava pra cá, então ficou essa relação.
Mas Célia agora abandonou tudo, já jogou tudo fora, correu um bocado de coisa. Ia a
caboclo, ia a sessão, por último foi pro evangélico, se batizou no evangélico, saiu,
depois disse que não queria mais nada. Que agora ia para o lugar que achava que devia
ir, a passeio. Ela teve nove filhos, sete homens e duas mulheres. Tem três mortos.
Morreu um que se jogou do viaduto com trinta e poucos anos.O segundo que era meu
afilhado também se jogou do viaduto uns anos depois. Aí nessa coisa ela entrou pra
igreja, desacreditou de tudo, começou a entrar no evangélico, depois começou a falar
um bocado de asneira, que nem Deus existia, que não sei o que, que não tem santo,
não tem Deus. E essas coisas vêm passando. Ela aí ficou dez anos cuidando dele, meu
afilhado. Depois ele morreu. Fez um ano. E agora Cleide morreu também. Aqui na
minha família o enredo com morte é muito forte. Não pode ficar achando que tudo
bem largar. Tem que cuidar, sempre, por causa do meu pai. Passou para todo mundo.
A segunda pessoa da família a entrar para o candomblé foi Miralva, a irmã mais nova
de Leda. Miralva é de Iansã. Leda acompanhou e perto todo o processo de Miralva. Ela conta:
Essa daí mesmo [Miralva] morreu e voltou novamente. Foi. Essa daí já morreu e já
voltou. É tipo aquilo, eu até tirei na internet, é quase uma morte súbita. Ela se sentiu
mal, ela se sentiu mal de noite dormindo. A gente morava tudo junto, 36 anos a gente
145
junto, 37 anos. Era aqui mesmo, reformou um pouco e está diferente. Então ela se
sentiu mal de madrugada, a gente aqui tem esse costume, acorda, vai ao banheiro e
não fala a ninguém nada. Eu também sou assim, não aviso nada, eu sou assim. Então
ela foi. Acordou, foi ao banheiro, se sentiu mal, uma entidade que me chamou três
vezes (que minha filha era pequena ainda) "Leda, Leda, Leda". Eu não ouvi porque ela
estava já sem fôlego pra falar. Acho que o meu anjo de guarda me acordou na hora,
porque quando eu levantei, quando eu cheguei lá ela estava mais do que morta. O
corpo todo, cerrou tudo, os dentes, as unhas, tudo arroxeou. Foi morte mesmo. Isso foi
duas e pouco da noite, ela voltou oito e pouco da manhã. E essa foi só a primeira de
muitas.
Depois teve uma época, antes de fazer santo, que ela foi pro Maranhão. Do
Maranhão ela veio desmaiada. Veio no avião desmaiada. Chegou aqui, antes de vir pra
casa ela foi pro pronto-socorro. Aí um dos médicos disse: "Essa menina não é para
aqui não. Essa menina tem que procurar uma casa de candomblé pra ir". Quando eu
fui ver Mãe Menininha, ela me disse que isso era por causa daqueles problemas todos
que ela sofreu por lá, problema de bruxaria, essas porcarias que fizeram lá. Porque tem
muita bruxaria no Maranhão, né? Antes mesmo dela voltar, quando ela mandava as
cartas contando as coisas que estavam se passando e tudo isso, eu ia na casa de uma
senhora que olhava no copo, ela tinha vidência, aí ela olhou e falou: "Ah, minha filha,
ela está lá cheia de bruxaria, e tem que vir rápido, se não ela vai... você pode até
perder sua irmã, ou então ela ficar maluca. Porque tem muita coisa que foi feita, lá
mesmo". Por isso, quando ela veio, ela não veio direto para casa. A vida dela mudou,
mudou completamente lá. Não pra melhor, pra pior, porque veio toda enfeitiçada, veio
direto pra dentro do pronto-socorro, não chegou nem a vir em casa. O marido dela se
separou lá, ela queria se matar, aí acabou vindo desmaiada. Por isso quando a criatura
viu no copo disse que tinha que vir correndo.
Só que ela [Miralva] não gostava de candomblé, nunca gostou de nada. Aí eu
falei: "Você vai, vamos embora lá pra ver o que está acontecendo com você"; aí ela:
"Eu não vou". Vai não vai, vai não vai, peguei ela na marra, e fui. Aí Mãe Menininha
falou: "Não adianta você fazer nada assim. E outra coisa, você vai com ela, corre sete
casas, porque esse caso aí não é fácil não, essa Iansã aí tem um enredo complicado", e
passou um banho pra ela tomar, lá no candomblé. Aí Mãe Menininha disse assim
"Tem que dar urgentemente o bori113 ". E logo depois de dar o bori ela entrou para
fazer o santo. Ela é de Iansã do Balé. Porque a santa dela tem essa relação, e também
113
Cerimônia em que se alimenta a cabeça, ou seja, o ori da pessoa. Para uma descrição detalhada do bori, ver
Verger (1981), Lima (2010).
146
com a mesa branca. E a santa dela, como Mãe Menininha mesmo disse, é mais...
comunica mais com egum do que com santo. A santa dela só se traja de branco. Mãe
Menininha disse que a santa dela mora na torre do cemitério, na igreja do cemitério,
na torre do cemitério. Ela não pode nem visitar doente, que se ela for visitar o doente o
doente piora. Às vezes vai embora mesmo. Começou com alguns dos nossos parentes.
E ela mesmo vê, se ela for ver um doente e o doente já estiver ruim pra morrer, ela vê
o espirito do lado da pessoa, já não vê na pessoa. E o espírito desencarna e vai em
cima dela. Porque ela tem essa quizila. É o enredo dela. Mãe Menininha disse assim
"Olha, minha filha, tem que ter muito cuidado com ela, ela não pode estar indo visitar
doente, ela não pode estar indo a hospital. E também não pode ir a cemitério." E ela
adorava cemitério! Tinha medo de defunto, mas adorava cemitério.
Lá dentro mesmo do candomblé, já aconteceu duas vezes. Os espíritos de duas
egbomes saíram em cima dela. As egbomes estavam doentes e Miralva estava
dormindo no salão, só que ela não pode ficar perto de gente doente. Aí os espíritos
saíram atrás dela. E as egbomes morreram. Se estiver doente não chegue perto dela
não! Porque a santa dela sempre teve esse enredo com a morte. Que nem o Omolu de
Célia.
De acordo com Leda, todos os descendentes de seu pai que são médiuns, em vez de
continuarem na mesa branca, foram para o terreiro. Mas a questão espiritual ficou marcada no
tipo de relação que cada um tem com o seu orixá, e na história de cada orixá — já que todos
os orixás de seus descendentes que fizeram o santo têm um enredo com a morte e com os
espíritos, tanto por serem de qualidades já ligadas a isso (Iansã do Balé, por exemplo, ou
Omolu do Cemitério), quanto pelo fato de todas as mulheres da família cujo orixá quer ser
feito apresentarem um transe que assemelha a morte. De alguma forma, é como se essas
entidades espirituais que acompanhavam Seu Carlos continuassem por perto, mas a maneira
nesse sentido que surge aqui, mais uma vez, a ideia de enredo: quando Leda fala que a Iansã
de sua irmã tem enredo com a morte, ou com os espíritos, quer dizer, em última instância, que
a Iansã dela é a morte, e que traz a morte para os doentes que dela se aproximam. Não é uma
147
Iansã que ande acompanhada por um espírito: é uma Iansã que tem, em sua história (ou
melhor, no conjunto de histórias que formam a sua história), enredo com os mortos ou
espíritos — ou seja, os espíritos, e a morte, fazem parte dela. O enredo é isso: uma história
que vira uma relação e uma relação que vira história, e que acaba por se integrar ao todo. A
morte, os espíritos, continuam próximos, mas não de maneira autônoma. São efetivamente
absorvidos pelo orixá, enfatizando a capacidade que o candomblé tem de englobar relações e
dessa pessoa. Outro exemplo desse tipo de relação é o orixá de Yohanna, isto é, uma Iemanjá
que tem enredo com egum, os espíritos dos mortos, e cuja feitura precisou ocorrer, em parte,
num terreiro de egum, justamente porque esses espíritos fazem parte da Iemanjá dela. Ou seja,
esse componente é parte da Iemanjá dela, mas decorre de uma relação, de uma história.
Porque o enredo é uma história, é uma narrativa, mas é, acima de tudo, uma relação. E,
enquanto relação, é singular e plural ao mesmo tempo — porque são várias as histórias que
compõem a história, vários os enredos que compõem o enredo, e é nesse enredo composto
que a pessoa se forma. E, tendo isso em mente, podemos pensar: o que, então, é transmitido?
Creio que Dona Leda afirma que o que se transmite, nesse caso, é a relação. É a
relação, ou o enredo, com os espíritos que compõe a Iansã de Miralva, e a própria Miralva.
Pois Miralva, assim como sua Iansã, tem enredo com a morte. E esse enredo se origina na
história do patriarca da família, Seu Carlos, e a partir dele se entremeia, e se entranha, por
transmissão consanguínea. Tanto que Miralva, por exemplo, nasce com essa Iansã, formada a
partir dessas relações. E, o que é mais importante, essas relações não poderiam acontecer em
outro lugar: são específicas das formas de relacionamento do candomblé, em que as relações
que se mantém com alguém ou alguma coisa são equivalentes a ser um pouco essa pessoa ou
148
que ocorre uma confluência: a Iansã de Miralva tem relação com os mortos porque seu pai
convivia com os mortos ou porque os mortos estão no seu sangue? O que esse exemplo parece
demonstrar é que, com o tempo, as relações são absorvidas pelo sangue — migrando da esfera
Situação parecida aconteceu com Nádia, filha de Leda. Mas, como Nádia não é adoxu,
ou seja, não incorpora, o espírito chegou em Miralva, sua tia, para alertar a família da
Nádia era uma menina sempre boa, não ia em médico nem nada. De uma hora para
outra apareceu uma coisa que era uma falta de ar. Essa falta de ar pegava esse ombro
dela e encostava aqui. Agora, como é que bota esse ombro aqui? Ninguém consegue.
Mas isso dela pegava aqui, ela ficava com aquele apito, horrível! Ela ia fazer dezoito
anos. Às vezes ela estava no colégio, ia muito bem, quando dizia "vai ter prova
amanhã" começava. Todas as provas Nádia adoecia. Quando ia ter prova ela
amanhecia já doente. Aí com essa agonia toda, eu saía de casa de madrugada para
levar ela para o hospital para ser atendida. Cansei de sair doze horas, uma hora, duas
horas da manhã eu estava na rua. Uma dessas vezes que não era a primeira vez,
quando chegava lá o médico não encontrava nada pra botar na ficha. Então ele
inventou que ela tinha alergia. Não podia comer mamão, não podia tomar poeira, para
botar na ficha dela. Ele falou: "No fundo, no fundo, eu não estou vendo nada aqui,
mas é bom não dar mamão, não tomar poeira, nada disso, para a gente ver de onde é
que parte." Aí pronto. Teve um dia que eu aqui morando com ela, minha irmã, todo
mundo aqui, o espírito pegou Miralva, porque ela sempre foi uma ponte pra pegar
espírito — depois que fez santo melhorou, porque antes, minha filha, qualquer coisa
que dava o espírito pegava ela e incorporava. Eu saí, quando eu cheguei encontrei
Nádia em cima de uma cama, lerda, não comia direito, não se alimentava, não dormia,
nada. E com o espírito incorporado em Miralva. Aí o espírito olhava pra mim...aí eu
disse "Boa noite", dei boa noite para o pessoal, e o espírito: "Boa noite nada, não vem
me dar boa noite". Quando eu olhei, Nádia em cima da cama. Eu digo: "Meu Deus do
Céu". E aí o espírito disse: "Fui eu, sou eu que estou fazendo isso". Aí eu disse assim:
"Quem é você?" "Não lhe interessa", ele respondeu. Eu já me bati com tudo que é
espírito, espírito valente, viu, até com o diabo eu já me bati! Então o espírito que
estava com Miralva dizia assim: "Sou eu. Não adianta levar pro médico, quando leva
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pro médico eu fico cá fora no portão" — por isso que o médico não achava nada. Aí
peguei ela e levei para o hospital. Ele [o espírito] aí ficou do lado de fora da casa. E eu
ainda disse para ele: "Quando chegar não quero mais encontrar você aqui, viu? Porque
Deus vai te levar e você não volta mais". Ele disse: "Eu quero ver". Aí eu levei minha
filha, eles fizeram os testes nela, não tinha nada. Depois eu soube que foi um egum e
um exu. Estavam nesse pé de guerra. O egum estava com Nádia e o exu pegou
Miralva. Quando eu cheguei ali ele disse assim: "Eu fiquei do lado de fora, por isso
que os médicos não acharam nada." Aí primeiro eu levei na casa dessa senhora
espírita, e ela disse: "Olha, minha filha, tem que levar para Dona Menininha. Não tem
jeito não." Aí eu levei e Mãe Menininha olhou. Ela não queria ir não, entrou no
candomblé chorando. E era isso mesmo. Ela entrou no candomblé e fez o santo, e
pronto. Esse era o enredo dela. E está ótima, está com cinquenta anos, não tem mais
nada, o espírito não pegou mais. Pegou não, porque ela não incorpora, não encostou.
E o Xangô dela é especial, né? Por causa dessa coisa de espírito, é um Xangô especial.
Depois Dona Leda contou de Yohanna e Karen, sua neta, filha de Bárbara.
Desde nove anos que Yohanna desmaia. Yohanna já recebia santo e a gente não sabia,
pensava que era desmaio. Começava a brincar e daqui a pouco desmaiava. As meninas
vinham: "Yohanna está morrendo". Teve uma vez que eu cheguei aqui correndo, as
meninas me chamando, me chamando, quando eu cheguei estava Yohanna durona ali
na cozinha. Saindo do banheiro pra cá pra cozinha, no chão. Nesse dia ela ficou umas
seis horas assim, fria, com a boca roxa. Ainda bem que eu já tinha visto isso acontecer
com Miralva. Yohanna já incorporou muito pequena, no colégio. Aí os professores
telefonavam pra dizer que Yohanna estava desmaiada, que parecia que tinha entrado
em coma. Aí com nove anos ela foi fazer santo, né? E foi aquela complicação... Mas
no final deu tudo certo.
Karen a mesma coisa. Desmaiava na escola, pequenininha. Aí o pessoal: "A
menina morreu, a menina está morrendo", aí ela vivia indo para o hospital. Aí eu fui lá
e expliquei que era problema de santo. Mas depois disso o diretor mandou chamar a
mãe dela, Bárbara, para avisar que tinha que cuidar dela, que ela não poderia ficar
assim. Primeiro porque ela era criança e estava prejudicando a ela mesma, e outra que
tinha outras pessoas ali, para os pais não tirarem os filhos porque tinha gente
evangélica, católica, tudo isso, vê uma coisa dessas e quer até tirar. Aí que foi tirar ela
do colégio e cuidar dela, com nove anos, também. E o Omolu dela é poderosíssimo, e
150
é do cemitério, tem esse enredo todo, como o de Cleide.
Ao final, Dona Leda me contou que, certa vez, conversando com uma moradora da
vizinhança, mais idosa, esta lhe contou que um antepassado seu, que ela não havia conhecido
e de cuja existência nem sabia, também havia sido de candomblé. E foi a partir dessa ligação
E assim, eu vim a chegar a uma conclusão "por que a gente sendo espírita entrou pro
candomblé, né?" Aí eu chegando na casa dessa senhora, o nome dela era Anísia, onde
tinha uma fonte onde o pessoal do Gantois pegava água de Oxalá, entendeu? Então a
filha dela de criação é minha comadre, que batizou meu filho mais velho, então muito
antes dela falecer ela perguntava: "Cadê Nádia?"; e eu respondia: "Nádia está no
Gantois". Aí ela fez, "Está no Gantois? No candomblé de Mãe Menininha? Ela é de
lá?" E eu disse: "É, e não é só ela não. Minha irmã mais velha é, minha outra irmã é,
Célia, todo mundo é", e fui dizendo a ela. Ela fez: "E você sabe por causa dessa
ligação de seus pais com a mesa branca por que se misturou com o candomblé? Se
seus pais eram espíritas, por que vocês estão dentro do candomblé?", e eu disse "Não
sei". "Não tinha ninguém na sua casa que era do candomblé?" Aí eu: "Não". "É aí que
você se engana" — ela me falou — "A parte dos seus avós, da parte do seu pai, tinha
um tataravô que tinha uma casinha de candomblé ali na Garibaldi". Eu só conheci o
avô, mas o bisavô eu não conheci, eu não era nascida. "Ele tinha uma casinha de
candomblé, batia com aqueles tamborzinhos parecendo tamborim, era ele sentado no
banco e o pessoal dançando aquela roda. Então ele tinha essa Casinha de candomblé.
Ele morreu, nessas alturas deixou de mão, ninguém assumiu. E hoje, como vocês estão
todos dentro do candomblé, então tem fundamento." Foi isso que ela me falou. Então
já tinha que fazer isso pra poder dar continuidade ao que ele deixou. Entendeu? Por
isso que ficou essa ligação, muita gente espírita no candomblé, e esses orixás todos
desse jeito, com esse enredo. Misturou tudo. A gente pegou esses espíritos, levou pro
candomblé que já era do meu tataravô, aí os orixás todos, e a gente também, tem esse
enredo todo com os espíritos, que passa de pai pra filho, né?
No caso da família Cajazeira, o que é transmitido? Pelo relato de Dona Leda, fica
claro que o que é transmitido pelo sangue é o enredo — a relação com os espíritos. E o
enredo, nesse caso, se consolida na narrativa de Dona Leda sobre a sua família. É quando
151
Dona Leda narra as histórias de seus parentes que podemos ver, em ação, como essa relação
se transmite. Como ela conta acima, Miralva, Yohanna e Karen não têm, em suas cabeças, um
espírito ao lado de seus orixás (ou santos): o espírito é uma parte de seus orixás e,
de Cleide e de Karen têm enredo com a morte — e, num certo sentido, eles são a morte. Creio
que essa é a relação de que dá conta o termo enredo: uma relação em que ter é também ser.
É Ogum que, através das gerações, aparece em quase todos os seus membros.
O primeiro membro da família Seixas a se tornar membro do Gantois foi Maria Felipa
de Ogum. Considerada por todos uma grande amiga de Mãe Menininha, Maria Felipa se
mudou para as cercanias do terreiro para poder ficar perto de Mãe Menininha e ajudá-la nas
tarefas cotidianas.
A casa que outrora pertenceu à Maria Felipa fica no final da rua que margeia a frente
do terreiro. Ao longo da rua ficam as casas de seus descendentes, construídas ao longo das
últimas décadas. Logo na esquina, quase na frente da entrada principal do Gantois, fica o
Dezessete, a casa onde morou Mãe Menininha, hoje em dia ocupada por seu neto Álvaro.
O primeiro membro da família Seixas que conheci foi Simone, neta de Maria Felipa.
pois estava desempregada e havia deixado a pequena casa onde morava antes para as filhas
mais velhas, que estavam grávidas. Simone então se mudara para o terreiro com suas duas
filhas do meio, que eram feitas de santo, e Adeline, a filha mais nova, deixando Alexandre,
seu único filho homem, com a avó, também equede, que morava no final da rua. Simone é de
152
Ogum, assim como sua avó. Logo que a conheci, sua filha mais nova, Adeline, tinha seis
batucavam nas cadeiras, dando o ritmo, e as meninas brincavam de dar santo. Quando chegou
a vez de Adeline, ela fez a mesura de Oxum. Na mesma hora as outras meninas a corrigiram:
"Oxum não! Você é de Ogum! Ogum!". Adeline negou, dizendo: "Não sou de Ogum nada!
Eu sou de Oxum!", ao que outra menina gritou: "Você é de Ogum sim! Sua irmã é de Ogum,
sua mãe é de Ogum, sua avó é de Ogum e sua bisavó também!" Adeline, que até então não
sabia ao certo qual era seu santo, retirou-se da brincadeira, chateada. Fui falar com ela, que
me disse: "Todo mundo fica dizendo que eu sou de Ogum, mas eu sou de Oxum! Eu sei que
sou!" Alguns meses mais tarde, Simone, sua mãe, me contou que Mãe Carmem havia dito a
ela qual era o orixá de Adeline. As outras meninas estavam certas: era Ogum.
A primeira entrevista que fiz com membros da família Seixas foi com Simone.
Simone nasceu dentro do Gantois — na época de seu nascimento sua mãe morava num
quartinho dentro do terreiro — e desde então Ogum sempre esteve presente em sua vida,
Minha mãe costuma contar que quando engravidou ela estava apertada, meu pai sem
trabalho, ela também — e eles já tinham três filhos. Nilda era de um pai, Tânia e
Carlinhos, os do meio, eram de outro pai e eu de outro. Aí ela engravidou, aquele
aperto. Ninguém sabia que ela estava grávida, e ela já estava tomando um remédio
para perder. Aí teve uma obrigação no terreiro e o Ogum de uma egbome muito antiga
da casa, egbome Jovelina, mandou que a irmã dela, minha tia Delza, chamasse a
minha mãe em casa que ele queria falar com ela. Aí Ogumdisse a ela que não fizesse
nada com o gato114, que o gato era dele e que ele ia dar o jeito dele. O orixá viu que
ela estava grávida. Aí quando ele falou assim com ela, ela resolveu ficar. E aí no
decorrer da gravidez toda ele sempre passava uma coisa ou outra, uma folha, mandava
tomar um banho, essas coisas assim, esse mesmo Ogum. Aí chegou a hora do
114
Todos os orixás se referem a crianças sempre como gatos. Alguns exemplos: "Vamos preparar essa barriga
para a chegada do gato", uma Oxum falou para uma moça que queria engravidar; "Pode deixar que eu vou cuidar
do gato e o gato vai ficar bom", um Ogum disse para a mãe de um menino que estava doente; "Tem que cuidar
do ori desse gato", um Oxóssi disse ao pai de um garoto que apresentava sinais de precisar cuidar de seu orixá.
153
nascimento e a gente morava num quartinho aqui do lado que é anexo à casa. Aí quem
fez o parto dela foi Mãe Cleusa, e aí quando eu nasci eu chorei. Na hora em que eu
chorei Ogum pegou essa egbome, ela aqui dentro, egbome Jovelina, e gritou aqui de
dentro, deu o ilá dele, que é o grito, entrou no quarto e me pegou no colo. Aí nessa
hora Mãe Menininha, de cá do quarto dela, que ficava ao lado, gritou "Não, Ogum,
deixe a menina, que a menina já tem dono, ela é de Oxóssi". Oxóssi é o meu juntó115 ,
então parecia estar mais na frente. Aí, sempre que mãinha entrava aqui no Gantois,
esse Ogum falava assim: "É, eu cuidava do gato pro gato ser de outro". Aí ficou
aquela história que as pessoas costumam dizer, que no candomblé tem a guerra dos
orixás pra tomar conta da pessoa. E mãinha dizia: "Ah, vocês são irmãos, vocês se
entendam de uma maneira que não prejudique a minha filha, a vida dela, o
crescimento, tudo". Então a minha vida toda eu sabia que tinha que fazer santo, que eu
tinha que cuidar, principalmente por causa desse enredo aí com Ogum que eu tinha
que resolver. Tinha que cuidar de um pra que outro ficasse satisfeito, né? Aí quando
eu fui ensaiar para fazer santo cantaram muita música para Ogum e para Oxóssi, e eu
não dei santo em nenhuma delas! Mas logo depois Mãe Carmem me disse que eu era
de Ogum mesmo, que Ogum é muito forte na minha família, e eu sou de Ogum com
Oxóssi de juntó. O santo estava certo mesmo. Depois minha filha Aiane foi fazer
santo, e ela dizia desde pequena que era de Oxalá; quando foi fazer santo dizia que só
ia fazer se fosse de Oxalá, que nem Adeline com essa história de Oxum! Mas aí,
quando chegou na hora da feitura... Ogum. E esse Ogum dela, que é um Ogum bem
velho, né? Não adianta, todo mundo da minha família tem enredo com Ogum. Acho
que por causa da minha bisavó, né? O Ogum dela era muito forte, tomou conta da
família toda.
No caso da família de Simone, o enredo é uma relação direta com o orixá, que se
espalha enredando todos os membros da família. Mesmo no caso dela, que Mãe Menininha
disse ser de Oxóssi, Ogum tomou a frente na hora da feitura. Segundo Mãe Carmem: "Ogum
é o patrono daquela família. Mesmo nas pessoas em que ele não está na frente da cabeça, ele
está presente, de algum jeito. É uma longa história, um longo enredo com Ogum".
Simone falou também sobre o fato de toda a sua família ser de candomblé:
115
Segundo orixá da cabeça. Sobre isso, ver Goldman (1985).
154
Como Mãe Carmem e Mãe Menininha costumavam dizer, a gente tem um pé na
África, todo mundo já sabe que o nosso sangue realmente é de gente de candomblé,
que já vem de raízes. Minha avó e muita gente que veio antes dela deve ter sido de
candomblé, que a gente não sabe a história toda, mas deve ter sido, porque é um
enredo muito forte da minha família. Aí minha avó, que era feita de santo aqui, que
era muito amiga de Mãe Menininha, que Mãe Carmem costuma dizer que era uma das
melhores amigas que Mãe Menininha tinha, que minha avó foi a primeira pessoa que
entrou no quarto do santo pra limpar o santo, pra ajudar lá dentro, sem ser feita. Ela
não era nem feita ainda e Mãe Menininha botou ela lá dentro para ajudar a limpar as
coisas. Então vem de raiz. Minha avó é filha de santo aqui do Gantois, de Mãe
Menininha, minha mãe, minha tia, primos, primas, irmãos, todo mundo já vem de uma
linhagem que não tem pra onde correr, aí a gente vai pra lá, vai pra cá, mas acaba aqui
mesmo. Então eu acho que todo mundo da minha família de um jeito ou de outro é de
candomblé, tem seu pé na África, então não tem pra onde correr. E eu amo o
candomblé, é a minha religião, uma coisa que pra mim é tudo, então eu não faço
nenhuma objeção se disser que meus filhos devem fazer santo. Ou se disser que tem
algum problema de saúde, ou porque o orixá estiver querendo. Principalmente se o
orixá quiser é assim, né?
A segunda pessoa que entrevistei da família Seixas foi Dona Nilza, mãe de Simone.
Dona Nilza, assim como Simone, é equede do terreiro. Dona Nilza contou que o segundo
santo de Maria Felipa, sua mãe, era Omolu, que, segundo ela, também está muito presente na
família. Ela própria tem Ogum somente como terceiro santo, mas não deixa de lembrar dessa
relação. Além disso, Dona Nilza revela que Maria Felipa não queria fazer o santo, e que,
A primeira pessoa a entrar na religião foi a minha mãe, Maria Felipa. Ela era feita, de
Ogum. Ogum com Obaluaiê116. O que mais tem na família: Ogum e Omolu. A família
de mãe não tinha nada ver com candomblé, eu acho que não. Mamãe nasceu em 1897.
Ela vivia muito com Mãe Menininha, mas não queria esse negócio de
candomblé, não. Vivia com Mãe Menininha, mas fazer santo não. E passou por um
bocado bem bom por causa de não querer, até quando viu que não tinha jeito. Acho
que estava com mais de quarenta anos, cinquenta anos, já não estava novinha não. E
116
No Gantois, diz-se que Obaluaiê é uma qualidade mais jovem de Omolu. Entretanto a maioria das pessoas usa
um nome ou outro indiscriminadamente, querendo se referir ao mesmo orixá, como o faz Dona Nilza.
155
inventou que queria fazer Omolu. Não queria fazer Ogum, queria fazer Omolu. Ela
sofreu muito, teve muito doente, muita dor de cabeça, mas só queria fazer Omolu, não
Ogum. "Eu só faço se for Omolu", ela falava para Mãe Menininha. Fez duas malas de
roupa. Uma mala de roupa de palha e uma mala de roupa de pano. E a dor de cabeça
não passava. Aí um dia ela estava dormindo e sonhou que tinha uma capoeira na Sé,
um pessoal jogando capoeira, tocando. Ela viu aqueles homens jogando capoeira, aí
ela ia botar a cabeça pra ver o que era, vinha uma navalha de lá e chegava aqui no
meio da cabeça dela, enterrava, aí quando enterrava, os homens gritavam: "Ogum iê,
Ogum iê", e ela com a navalha enterrada na cabeça. Ela desistiu de fazer Omolu na
mesma hora. O Ogum da nossa família é muito forte, tanto que todo mundo da família
tem enredo com Ogum. E pior que o Ogum dela não era velho não, era Ogum novo,
mas quando mamãe acordava do santo ela não gostava porque achava que estava
velha, que não queria estar toda hora dando santo, achava ruim, reclamava como o
quê. Já eu nunca dei santo, sou equede. Mas também não queria fazer santo não, mas
aí Mãe Menininha falou que eu tinha que fazer, e eu fiz. Sou de Xangô e Oxumarê,
mas tenho Ogum também, por causa desse enredo com Ogum da minha família, né? E
tem muito Ogum espalhado aí, tem Ogum espalhado em todo canto da minha família.
sangue daquela família", me disse uma egbome do Gantois, referindo-se a Simone e seus
parentes. "Ali é tudo da família de Ogum", me disse outra. Ou seja, mais do que uma
Dona Nilza, Egbome Dazinha, me contou que uma de suas irmãs morreu porque sua mãe,
mesmo depois de feita, não queria que suas filhas entrassem para o candomblé. Eis o seu
relato:
Entrei no candomblé aos dezessete anos por conta de saúde mesmo, que eu vivia
doente. Um mês boa e dois meses doente. Uma semana boa e duas semanas doente.
Eu tive sarampo, catapora, caxumba, rubéola, tive icterícia, pra terminar eu tive aquela
febre tifoide. Tive tudo que eu tinha direito. Aí ia pro colégio, estudava dois meses,
vinha pra casa. Quando eu tive a febre então! O carro da saúde pública andava pelas
portas perguntando quem estava com os sintomas ou com a doença pra levar pro
isolamento. Mas mamãe me escondeu e me cuidou aqui em casa mesmo. Tive
icterícia, ela me cuidou urinando no tijolo virgem, chupando cana mirim, assava a
cana mirim e dava pra gente chupar. Ia pro colégio, daqui a pouco dava dor de cabeça.
156
Quando eu terminei com quinze anos o colégio aí fiquei doente, quando fui fazer o
santo aí já não fiz mais admissão, não fiz nada. Eu não passava mal, na verdade eu
nunca senti nada não, a não ser o que sentia mesmo. Ficava doente, aí quando Mãe
Menininha foi olhar disse que eu tinha que cuidar do santo. Mamãe não queria que eu
fizesse o santo, não queria que ninguém fizesse. Eu não sei por quê. Ela já tinha se
metido, era feita, mas por ela os filhos não se metiam. Parece que ela tinha medo desse
Ogum dela, que é muito forte mesmo, olha aí pra minha família! Todo mundo com
enredo com Ogum. Eu tive uma irmã também que morreu porque mamãe não deixava
entrar pro candomblé. Aí disse que Mãe Menininha avisou: Maria Felipa, essa menina
vai morrer", e ela respondeu: "Deixa morrer". Aí ela morreu na antevéspera do
aniversário e enterrou na véspera do aniversário dela. Ia fazer dezoito anos. Aí depois
dessa mamãe teve que deixar eu fazer santo, para eu não morrer também. Graças a
Deus depois que fiz santo nunca mais tive problema de saúde. Eu sou de Obaluaiê,
mas tenho Ogum também, por causa da minha família. Mamãe era louca por Obaluaiê.
Ela era de Ogum com Omolu mesmo. Mas tinha loucura por Obaluaiê. E acho que foi
por isso que eu nasci com ele, mas eu tenho esse enredo com Ogum, todo mundo da
minha família tem. Porque eu acho que quando a gente já nasce já traz o seu orixá.
Todo mundo têm o seu anjo de guarda. Então eu acho que é questão que já nasce
trazendo. Que eu tenho uma sobrinha que é evangélica, eu digo a ela e ela não gosta
muito: "Você tem seu anjo de guarda também, é evangélica e não acredita, mas tem
também, todo mundo tem". Uns cultuam, outros não, mas todo mundo tem. Uns
sabem, outros não sabem, mas todo mundo tem.
***
Uma filha de santo do Gantois, enquanto conversávamos sobre esse assunto, me disse:
"Essa família Seixas é de Ogum. É uma verdadeira quadrilha de Ogum. Tem um ou outro
gato pingado que não é, mas o tom principal é Ogum." Perguntei a ela por que ela achava que
Ah, porque lá na África não existe candomblé como existe aqui no Brasil, que toca
xirê para Ogum, dança Ogum, dança Xangô, dança não sei o quê. Não! Lá é clã. O clã
de Ogum, o clã de Omolu, o clã de Xangô, o clã de Oxum, entendeu? Não existe essa
157
mistureba. Aqui é assim porque eles se misturaram aqui. Mas lá era assim, essa região
é protegida por Oxum, aquela por Xangô etc. Então tem algumas famílias que o
reinado é todo de algum orixá específico. É a origem. É porque é o clã mesmo. Lá eles
são clã. Tem a cidade de Saketê, lá todo mundo é de Xangô. Todo mundo é de Xangô.
Pode ter uma pessoa ou outra assim de outro santo, mas aquelas pessoas são
descendentes de Xangô. Está no DNA espiritual delas. E esse DNA está junto do
DNA biológico, ou seja, a família de sangue é um reflexo de uma família espiritual.
Na verdade é tudo genético, até para nós que não somos afrodescendentes diretos [ela
é branca]. Tome o caso dessa egbome aqui [aponta para uma senhora que estava
sentada a certa distância de nós]: É um enredo, minha filha, absurdo! A família dela,
coitada, era um transtorno! Um queria matar o outro, dava tiro, irmão dela queria
matar a mãe, o cunhado foi assassinado... era barra pesada. Depois que ela fez santo,
ela é de Ogum, sobrou para ela. Para alguém tinha que sobrar. Porque quando o pai
dela morreu, pegaram tudo dele de santo e jogaram rio abaixo. Aí depois o Exu do pai
dela começou a tentar ela. Ele subia, aparecia, ficava assim sentado, fumando, olhando
pra cara dela. Às vezes ela estava dentro do ônibus, vinha aquele homem com um pau
duro assim nas costas dela. É. Atentou bem ela. Aí ela assentou ele. E aí tudo parou
completamente. Ele agora é o guardião dela. E ela agora cuida também do Xangô do
pai dela, que é uma coisa linda. Ou seja, ela foi fazer santo para resolver o problema
da família dela. Mas ela penou, coitada!
No caso narrado acima, a egbome citada teve que fazer o santo (e depois
assentar o Exu e o Xangô de seu pai) por conta da história da sua família. Nesse caso,
ela tanto herdou o Exu de seu pai (que atualmente é o seu guardião) como teve que
assentar o Xangô dele (mesmo sendo ela própria de Ogum) para resolver os seus
problemas familiares. O seu enredo determinou a configuração de seus assentamentos,
a composição de orixás dos quais ela cuida e com os quais pode contar.
transmitem diretamente, como herança, sempre dentro da família consanguínea. São orixás
retornados, que precisam, portanto, ser retificados na feitura. No segundo caso, a família
Cajazeira, a relação é transmitida através do sangue: a relação que Seu Carlos Cajazeira tinha
com os espíritos acoplou-se de alguma forma a todos os orixás das gerações subsequentes,
tornando-se parte deles. Já no caso da família Seixas, é Ogum que se mantém sempre como
patrono da família; ainda que haja exceções, "o tom principal é Ogum", como me disse a filha
158
de santo com quem conversei.
experiência de campo) que engloba esses três modelos de transmissão do axé, ainda que cada
uma pluralidade de relações. E, como vimos, o enredo aparece também como narrativa, ou
melhor, descreve tanto a relação como a narrativa, e cada um dos sentidos se retifica e reitera
enquanto a construção do enredo vai sendo narrada. E o mesmo, a meu ver, acontece com a
159
Capítulo 4:
Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de
dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de
boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e
vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,
um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a
alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc. Está claro que o ofício dessa
segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente
metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da
existência inteira.
(Machado de Assis — O espelho)
briga envolvendo um membro do Gantois que acabara de fazer o santo. Ele ficou magoado
porque seus amigos não esperaram até ele ser desvirado depois de uma festa, e foram embora.
Como ele era a última pessoa (o vimotinho117) do último barco a ter sido feito na casa, sua
posição na hierarquia era a última — o que valia para qualquer coisa, inclusive o momento de
117
Cada noviço de um barco tem uma alcunha, dependendo de sua posição: o primeiro é o dofono (a dofona);
depois, o dofonitinho; o terceiro é o fomo; o quarto, o fomotinho; depois, o gamo e em seguida o gamotinho; e,
por último, o vimo e o vimotinho. É muito raro um barco ter mais de oito iaôs (no Gantois só houve um caso).
Quando acontece, os últimos se chamam gremo e gremotinho.
160
ser desvirado após a festa. Quando enfim foi desvirado, cerca de duas horas depois do final da
festa, ligou para os seus amigos e lhes disse vários desaforos. Considerei sua atitude
desproporcional ao suposto erro dos amigos; eles haviam esperado bastante tempo, e
deixaram vários recados para ele, dizendo que fosse encontrá-los. Tentei explicar isso a ele,
que me respondeu: "Foi isso o que me veio na hora. Depois que eu fiz o santo, passei a aceitar
as coisas que vêm para mim, porque agora nada vem à toa." Argumentei com ele que ele
deveria tentar entender o porquê de sua atitude, e ele me disse: "Não tem porquê! O porquê eu
só vou saber depois! Na hora eu senti isso, e pronto, passei pra frente!"
Para esse filho de santo, o fato de essa emoção lhe ter ocorrido já basta para justificar
sua atitude. E isso porque, como ele disse, depois de fazer santo passou a "aceitar" o que lhe
ocorre espontaneamente, o que "vem para ele". Conversei sobre isso com outro filho de santo
do Gantois, que me explicou que, quando se faz o santo, "a cabeça fica protegida. Só chega a
ela o que o santo deixa. Tudo passa a ter um porquê." Ou seja, nem adianta a pessoa que
brigou procurar dentro de si pelo motivo de sua irritação: não irá encontrá-lo. Se antes de
fazer o santo estava sujeita a forças descontroladas, que poderiam levá-la a tomar atitudes
sem propósito, isso não ocorre mais depois da feitura. Quando a pessoa faz o santo, adquire
controle sobre toda a vasta gama de forças que podem afetar os seres humanos. A pessoa feita
forças que lhe ocorrem, e que efetivamente constituem a matéria/energia da qual ela é feita.
Este caso nos ajuda a pensar sobre a noção de pessoa no candomblé, e sobre a
mutabilidade e a flexibilidade que lhe são inerentes: a pessoa é sujeita a forças que escapam
ao seu controle, mas é preparada, através da feitura, para lidar com elas. Enquanto todo
aquele que é feito fica protegido dessa permeabilidade inerente à pessoa, ou melhor, adquire
uma espécie de escudo capaz de filtrar o que deve ou não penetrá-lo, a pessoa que não é feita
permanece sujeita a tudo, praticamente sem exceções. O que era o meu caso.
161
Inúmeras vezes fui repreendida por meus amigos quando tentava justificar alguma
situação com base no meu próprio comportamento. "Por que você acha que a culpa é sua? A
culpa é dos outros! Você precisa é se proteger!". A ideia de "corpo fechado", tão explorada
nos estudos sobre candomblé (cf. Halloy 2005, Lima 2010, Segato 1995, Wafer 1991)
corrobora essa concepção: no corpo fechado não entra nada que não deva entrar, nada que
possa fazer mal. Porém, como já foi indicado, o corpo fechado não é impermeável a tudo. Ele
funciona como um filtro, que deixa passar o que deve e barra a entrada do que poderia fazer
mal. Ao mesmo tempo, todos os rituais de limpeza do corpo têm como finalidade a descarga
de energias negativas que porventura pudessem tê-lo penetrado. Certa vez, quando soube que
eu estava frequentando outros candomblés, Leila me recomendou que sempre tomasse banho
ao chegar em casa. "Um banho normal não é assim o ideal, mas já tira alguma coisa... Você,
que não é feita, tem que tomar cuidado." O fato de circular por outros candomblés sem ser
feita me deixaria mais exposta ainda aos perigos. Da mesma maneira, Ogum Toripê, um pai
de santo de Sergipe que jogou búzios para mim, me disse que tomasse muito cuidado com
toda essa circulação por vários terreiros: "Esses outros cupins que andam com você, eles são
feitos, mas você não é... Então, se tiver alguma coisa ruim, ela pode vir toda pra você." O fato
de não ser feita me convertia em presa fácil, desprotegida frente às forças que, numa pessoa
feita, seriam facilmente repelidas. Eu era, portanto, dotada de um alto grau de porosidade.
Passarei agora a uma breve discussão sobre a literatura existente tratando da noção de
118
O termo "noção de pessoa" foi cunhado primeiramente por Marcel Mauss. Através de exemplos, Mauss
(1950) apresenta um breve histórico da construção da ideia de pessoa que acompanha cada grupo social,
mostrando como esse conceito pode variar de acordo com o tipo de sociedade em que se vive. Nas palavras do
autor, "Trata-se de nada menos que de explicar como uma das categorias do espírito humano — uma dessas
ideias que acreditamos inatas — lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de inúmeras
vicissitudes, de tal modo que ela ainda é, mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior
elaboração. É a ideia de pessoa, a ideia do 'Eu'." (1950: 239) Posteriormente, Mauss escreve: "O que quero
mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das sociedades, com base em seus
direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades." (1950: 371) Sua visão da
noção de pessoa da sociedade ocidental, que começa na visão cristã da unidade divina e termina de se formar
162
orixás são na verdade arquétipos da personalidade humana, usados como um modelo no qual
a pessoa se baseia e ao qual se limita, o que lhe traria conforto. Cada indivíduo se identificaria
com um orixá, e isso aplacaria os conflitos de sua própria personalidade, que assim se
Marcio Goldman (1984) inovou a discussão apresentando o argumento de que os orixás, antes
de serem modelos de personalidade, são, eles mesmos, parte da pessoa.119 Partindo de uma
argumento baseando-se em grande parte numa contraposição aos estudos vigentes sobre as
religiões de matriz africana, classificados, de acordo com ele, em duas grandes categorias: os
Rodrigues e seu sucessor, Artur Ramos) e aqueles que a tratam como decorrência de fatores
que viam o transe como inversão de uma posição social desfavorável; num segundo, Yvonne
Maggie e Peter Fry, cuja análise do transe remetia aos conflitos sociais vividos pelos adeptos
possessão reduzindo-a a alguma coisa que lhe é, de uma forma ou de outra, exterior, seja no
plano biológico, seja no sociológico. Ou seja, tanto as teorias mais gerais sobre o transe
quanto aquelas restritas aos cultos afro-brasileiros incidem num erro metodológico e
epistemológico comum, o reducionismo." (1985: 27) A possessão, continua ele, deveria ser
com a filosofia kantiana, é a do indivíduo; mas Mauss se pergunta, na conclusão do texto: "Quem pode mesmo
dizer que essa ''categoria', que todos aqui acreditamos estabelecida, será sempre reconhecida como tal? Ela só se
formou para nós, entre nós. Mesmo sua força moral — o caráter sagrado da pessoa humana — é questionada não
apenas por todo um Oriente que jamais chegou às nossas ciências, mas até mesmo em países onde esse princípio
foi encontrado." (1950: 397)
119
Na minha experiência, porém, uma coisa não exclui a outra. Mas me parece que os modelos de personalidade
constituem uma parte mais fraca da análise, tratada pelos próprios filhos de santo com certo desdém, quase como
diversão. Diversão que, cabe assinalar, no candomblé só é diversão até tornar-se séria pois, dependendo da
pessoa que está falando, pode conter uma dose de intuição que não deve ser desconsiderada. Como eles mesmos
dizem, "Tem gente que joga os búzios muito bem, mas tem gente que tem a intuição afiada. Aí, assim, no meio
de uma conversa, de repente a pessoa pega uma coisa assim, de você, e pronto! Acertou!" No caso a que me
refiro, a pessoa pode, por exemplo, comentar que o seu cabelo comprido parece o de alguém de Iemanjá. Isso é
dito em tom de piada mas, dependendo do caso, pode vir a ser levado a sério como uma intuição procedente.
163
estudada como um fato social total, cujas explicações, se é que existem, devem estar contidas
classificação dos tipos psicológicos no candomblé de Salvador que a posição de Goldman fica
mais explícita. Segundo ele, Lépine incorre em erro ao considerar o candomblé como um
sistema totêmico que opera estabelecendo relações entre as diferenças existentes entre os
seres humanos e as diferenças existentes entre os orixás, cujo funcionamento serviria como
guia para todas as particularidades humanas em todas as instâncias. Goldman afirma que o
caráter totêmico existe, mas só no que se refere aos orixás "gerais". Quando passamos à
sistema deixariam de ser aplicáveis. Além disso, ainda segundo Goldman, com esse modelo
psicologizante, Lépine estaria sugerindo, em última instância, que os orixás não seriam mais
do orixá geral, geralmente um dos dezesseis que acabaram mais conhecidos no Brasil,
cada uma das quais denota alguma característica, aspecto ou relação deste orixá geral; e o
existência finda junto com a do portador, exceto nos raros casos de transmissão por herança,
normalmente para algum membro da família.120 E é justamente no que se refere a esse orixá
individual que Goldman desenvolve sua teoria sobre a noção de pessoa no candomblé.
Segundo ele, a pessoa no candomblé é formada ao longo de sua feitura, de acordo com
120
Opipari (2004) sintetizou a questão dos planos de existência ao tratar da denominação diferenciada dos orixás,
que em certas situações podem ser chamados de santos: "O orixá no singular (primeiro nível de representação)
reúne a multiplicidade dos elementos da natureza. No plural (segundo nível), os orixás são diferenciados, a cada
um corresponde um elemento, um domínio dessa natureza. Eles singularizam-se quando são assimilados aos
santos (...); e aqui se encontra o termo santo empregado em seu aspecto personalizado, ligado à feitura e à
possessão." (2004: 185)
164
as entidades que passam a fazer parte de sua cabeça. Esses componentes espirituais são
variáveis; no caso do terreiro estudado por Goldman, são os sete orixás que formariam o
"carrego de santo" (o conjunto de orixás que alguém leva na cabeça), um erê, um egum e um
exu. No Gantois, essa composição não é tão rígida, mas a maneira de formação da pessoa é
exatamente a mesma.121A cada obrigação (de um, três, sete, quatorze e vinte e um anos ― não
necessariamente cumpridas com rigor, pois há muita gente com vinte anos de feitura que
ainda "deve" a obrigação de quatorze anos, por exemplo), acrescenta-se mais algum
componente à pessoa. Não é obrigatório que uma nova entidade seja acrescentada a cada vez:
essa manipulação da cabeça pode se dar a qualquer momento, e em alguns casos não se
sistema é que o tempo de feitura traz o controle sobre essas forças. Uma pessoa com muitos
anos de feita, por exemplo, é capaz de controlar o seu transe de maneira muito mais eficaz
que outra recém-saída da camarinha (mas não necessariamente: vi egbomes com quarenta
121
Bastide (1958) também se debruçou sobre o tema da composição da cabeça de um filho de santo. Segundo
ele, "(...) vimos que o orixá, embora individualizado, se apresenta na mitologia como um 'complexo', isto é, a
todo orixá está ligado um (ou vários) Exu, assim como um erê. Uma vez que a estrutura do homem reflete a dos
deuses, devemos encontrar o mesmo 'complexo' nele. 'Aquele que tem seu santo tem também seu Exu e seu erê',
é o que se ouve muitas vezes dizer na Bahia. Alude-se, em geral, às pessoas iniciadas. Mas, embora a maioria
dos indivíduos nunca tenha consultado o babalaô, não deixa de ser verdade que, teoricamente, todo indivíduo
tem seu 'santo'. O orixá pode não estar fixado, não estar controlado pelo grupo, mas simplesmente encontrar-se
latente na cabeça, exatamente como muitos ocidentais não se preocupam com seus anjos da guarda. O santo não
deixa, por isso, de estar no interior do indivíduo. A estrutura psíquica: orixá-exu-erê é também, teoricamente,
uma estrutura constante, um elemento permanente na definição da pessoa." (1958: 240). Posteriormente, o autor
afirma que "A conclusão a que chegamos é, pois, de que em planos diferentes do real são encontradas as mesmas
entidades. Os orixás, os Exus e os erês existem fora de nós, constituindo o mundo divino, e ao mesmo tempo
dentro de nós, constituindo parte de nossa estrutura íntima. (...) O princípio de ruptura [que na verdade é o
princípio de corte] pode à vontade separar o cosmo em departamentos diferentes e estratificados, mas é possível
encontrar em alguns deles as mesmas realidades; tomam, bem entendido, formas um pouco diferentes, de acordo
com a natureza do compartimento em que funcionam. O sagrado é ao mesmo tempo transcendente e imanente."
(1958: 244)
122
Já Goldman (2005) afirma que "(...) não apenas a pessoa, mas também o orixá é construído no processo de
iniciação." Assim, "(...) fazer a cabeça ou fazer o santo (...) significa, na verdade, a produção ritual de duas
entidades individualizadas a partir de dois substratos genéricos. Um indivíduo mais ou menos indiferenciado que
se torna uma pessoa estruturada; um orixá geral que se atualiza em orixá individual, a Iansã de alguém, o Omolu
de outrem. Esses orixás individuais têm nomes e características próprias, assim como as pessoas são rebatizadas
e vão se modificando no processo de iniciação." (2005: 110; grifo meu)
165
A questão fundamental trazida por Goldman é que a feitura traria estabilidade para a
pessoa que é, por princípio, instável e sujeita a forças fora de seu controle; e a possessão
(assim como o sacrifício) seria o eixo que confere equilíbrio a esse sistema, por ser o único
possuída pela força, agora controlada, de seu orixá. E a infusão dessa força lhe permite o
equilíbrio na vida cotidiana, pois mantém sob o controle de um filtro poderoso as energias que
nos cercam, separando as que devem atravessar a pessoa feita, das que nela podem
permanecer.
Goldman (1985) afirma que "o que há neste sistema de particular, e que faz com que o
candomblé seja uma religião no sentido estrito do termo e não apenas um sistema de
classificação, é que embora todo homem seja pensado como nascendo necessariamente
composto por esses elementos, sua existência permanece em estado, digamos, virtual, até o
momento em que esses elementos são 'fixados' pelos ritos de iniciação e de confirmação"
(1985: 37). Como vimos, o orixá, quando não é um retornado (ver cap. 3), nasce na iniciação.
Mas, junto com ele, nasce o filho de santo.123 Entretanto, esse nascimento não segue o padrão
dual: não é como se algo não existisse (pois não nasceu) e de repente passasse a existir
virtual, sugere que o processo de feitura seja concebido como a atualização de algo que já
123
Como vimos, o noviço, no candomblé (seja do sexo feminino ou masculino), é chamado de iaô, que significa,
em iorubá, "esposa mais nova". A relação entre o orixá e seu filho é, portanto, múltipla. Eles são, ao mesmo
tempo, irmãos gêmeos (pois nascem juntos), cônjuges e pai e filho.
166
orixá está na base desse processo em que tanto um como o outro é 'feito', 'fabricado'?
(...) A formulação dessa questão não pode, então, excluir, da concepção da pessoa e do
orixá, seu processo de 'fabricação'. Minha leitura de tal processo efetua-se com a ajuda
de uma ferramenta conceitual emprestada de Gilles Deleuze (1967). Este distingue em
qualquer coisa duas 'metades' ímpares, dessemelhantes e dessimétricas: o virtual e o
atual. O virtual atualiza-se por diferenciação. Ele não se opõe ao real, mas ao atual,
por dessemelhança e dessimetria. (Opipari 2004: 182)
Mas essa "atualização" não implica, como nos lembra Opipari, em uma
"personalização", a junção de um conjunto de elementos que forma essa unidade que ela
(...) o ritual da 'feitura' pode ser pensado como um processo em que o orixá, existindo
apenas enquanto uma virtualidade, atualiza-se. Essa atualização não pressupõe uma
individualização no sentido ocidental de indivíduo, isto é, de unificação do Ser, mas
uma singularização e uma personalização. No lugar de uma identificação do ator-
adepto com a personagem-orixá, dá-se a substituição por um bloco indissociável,
adepto-santo, que, graças a um movimento mútuo de 'virada', aparece em uma
performance cujo gestual é reconhecido pelo grupo. O orixá personalizado, o santo,
não é o 'reflexo de um eu profundo', mas um elemento da pessoa que, em suas
componentes espirituais, físicas e sociais, apresenta-se como heterogênea e múltipla.
(Opipari 2004: 196)
diferentes entidades que a formam, e utiliza para isso o termo "carrego de santo", equivalente,
segundo ela, ao "enredo de santo". Nos terreiros em que pesquisou, em São Paulo, a
expressão "enredo de santo" tem como significado essa multiplicidade de entidades espirituais
manifestar durante o transe.124 Mas, para tratar do transe, Opipari, assim como Goldman,
124
Opipari (2004): "A pessoa tem ainda o ori (...). O santo da pessoa é o senhor desse ori. Determinar esse santo
consiste em estabelecer seu enredo, sua relação com os outros orixás. O orixá, senhor da cabeça (olori), é
auxiliado por seu ajudante (juntó ou ojuori) e sustentado por um terceiro: carrego. O enredo do santo pode ser
igualmente chamado carrego de santo: o que ele carrega. Além desses três, outros orixás associam-se ainda ao
carrego, sendo que seu número varia segundo a Casa e a Nação à qual ela pertence.(...) Pode-se dizer que essa
167
rejeita a versão psicologizante (de uma identificação entre o filho de santo e seu orixá que
chegaria ao auge no transe, quando o possuído adota os trejeitos e maneiras de seu orixá,
representando-o e, ao mesmo tempo, apresentando o seu verdadeiro Eu, libertado por sua
identificação com o arquétipo mítico do orixá), identificando a sua semelhança com o modelo
Para falar do transe, Opipari prefere "conservar" a metáfora do teatro; porém, o teatro ao qual
ela se refere não é o teatro da representação; ao contrário, é um teatro em que o ator é, mais
humana: o que se vê é uma dupla ator-personagem, semelhante à dupla formada pelo filho de
santo e o seu orixá, o que resolveria o problema maior do modelo do transe como
representação tal como proposto por Bastide (1958). Ou seja, seria como um "sistema de
nos diz Goldman (1985), "(...) a 'identificação' do filho de santo com seu orixá pressupõe,
internas próprias (...) que, apenas a posteriori, podem se aproximar. Na verdade, não é bem
isso que parece ocorrer. O orixá é antes de tudo uma força natural cósmica, e não uma
como multiplicidade, que o orixá ajuda a construir e não simplesmente modificar, ou à qual
ele se agrega depois de acabada." (1985: 30) É curioso que Bastide, ainda segundo Goldman o
primeiro a pressentir a interdependência entre possessão e noção de pessoa (1985: 30), tenha
organização estabelece-se em correspondência com as lendas e as histórias do orixá: uma filha de Oxum, por
exemplo, pode ter como segundo santo Oxóssi, que foi seu marido; para um filho de Obaluaiê, seu segundo
santo pode ser Iansã, que o protegeu cobrindo as feridas de seu corpo com ráfia, e assim por diante. Mas essas
correspondências permanecem pouco evidentes quando se percebe que dois santos de uma mesma 'qualidade'
podem apresentar enredos diferentes. (...) A ideia de qualidade como diferenciação (um sobrenome) é, na
realidade, muito mais presente, e é na relação da 'qualidade' com o enredo que se procurará estabelecer as
nuanças dessas diferenciações. Além disso, o segundo e o terceiro santos do enredo terão igualmente sua
'qualidade' respectiva (...). Na busca da 'qualidade' de seu santo, a pessoa procurará, por exemplo, encontrar os
indícios na sua própria história, que podem reiterar a exatidão do enredo (...)." (2004: 189-190)
168
interpretado ao mesmo tempo a possessão pela chave da representação, em que o filho de
santo seria um personagem (o modelo que Opipari procura evitar), e afirmado que "O êxtase
repetiria, então, no ritual, um plano mítico onde os indivíduos encarnam os deuses e suas
Como já foi dito, Bastide (1958) via na possessão a possibilidade de compensação dos
dissabores da vida social e econômica: "Na dança extática o negro abandona seu eu de
proletário, seu eu social, para se transformar, sob o apelo angustioso dos tambores, no deus
dos relâmpagos ou na rainha dos oceanos." (Bastide apud Goldman 1985: 30). Ao mesmo
sobre "A Noção de Pessoa na África Negra", Bastide chama a atenção para a tensão entre as
forças que compõem a pessoa africana, notando haver em sua composição um equilíbrio que
A solução natural da antinomia plural-singular é do mesmo tipo que aquela que nos
parece valiosa para a noção de pessoa. A unidade do indivíduo pode ser traduzida por
uma fórmula, que enumere as diversas espécies que o subsumem; é porque em outros
lugares ele recebe nomes diferentes, cada um deles ordenando no interior de umas
dessas categorias. Os nomes não criam, portanto, a personalidade, eles são
simplesmente as marcas que o identificam a uma classe e se eles são múltiplos é
porque nós entramos dentro de muitas classes diferentes. Assim se coloca, ao lado de
uma lógica da relação, uma lógica da atribuição, e assim passamos da noção de pessoa
para a de individualidade singularizada. Nos dois casos certamente, e é isso que faz
com que as soluções sejam análogas, nós não temos outras unidades que as estruturais;
mas para aquilo que é da Pessoa, se trata de uma estrutura de relações entre dois
princípios vitais exteriores e interiores e quanto à sua vida no interior de suas relações
dialéticas. Pois aquilo que é do indivíduo, trata-se de uma estrutura de classificações
(com certa diferença com relação a nós pois talvez isso não se trate de classes que se
encaixam, a cada caso de outros indivíduos não podem explicar a sua singularidade —
mas de classes independentes, à parte dos sistemas diversos de classificação,
ecológicos, sociais, cosmológicos, metafísicos, esses que fazem com que a
singularidade resulte da fórmula, que muda de uma pessoa a outra, de seus
pertencimentos/vínculos). (Bastide 1973: 43)
169
Ainda que Bastide quisesse passar "da noção de pessoa para a de individualidade
singularizada", ou seja, que ele parecesse buscar, ao fim e ao cabo, encontrar o processo de
individuação (pela matéria ou pela forma, ou seja, pela feitura e/ou pela representação)
pessoa tal como descrito por ele, é notavelmente coerente com a ideia de pessoa composta
apresentada por Goldman e por Opipari. Entretanto, a pessoa africana, para Bastide, não é
composta somente por suas entidades ("as diversas espécies que o subsumem") e pelas
relações que estabelece com elas, mas é constituída, principalmente, por suas histórias. Nas
palavras de Bastide, "Diríamos, pois, que o que constitui o princípio de individuação nessa
entrelaçam, que se correspondem, mas que permanecem sempre autônomas, que compõem a
sociedade. Trama na qual correm mil fios, cada fio tendo sua cor diferente." (2000: 147, grifo
meu)126 Porém, como ordenar todas estas histórias de maneira a que a vida faça sentido? Para
Bastide, essa é a função do babalaô, que através da divinação define essa história, tornando-a
assim passível de entendimento. Segundo o autor, se o indivíduo é antes de tudo uma história,
é também uma história que pode ser definida. Todos os acontecimentos possíveis se reduzem
125
Nas palavras de Bastide (1973): "Nós iremos por consequência nos engajar em outro caminho, um que é caro
à etnologia tradicional, e que faz da sociedade africana uma 'ordem' de interrelações entre os personagens e não
entre os indivíduos. Não que os etnólogos neguem a diversidade dos indivíduos negando-lhes toda uma
comunhão que seria primeira, que seria a única realidade verificável; eles reconhecem que há pessoas tímidas e
pessoas audaciosas, pessoas cruéis e pessoas amáveis; mas essas características se organizam dentro de um
mesmo universo, constituindo a unidade última das coisas, que é a unidade de uma ordem. Uma ordem dentro da
qual a pessoa se apaga atrás do personagem, porque ela é aquela que se estabelece entre dois 'status' diferenciais
e não aquela da complementariedade contingente de temperamentos múltiplos. Em termos contemporâneos nós
diríamos que o problema que vai nos preocupar a partir de agora não é mais aquele das relações entre a
substância e os acidentes, mas aquele das relações entre a forma (os status prescritos aos indivíduos por uma
posição dentro de uma estrutura) e a matéria (a diversidade de características ou de existências particulares). (...)
É evidente que o africano se define a princípio por sua posição (...). Quando perguntamos quem ele é, ele se situa
numa linhagem, ele marca seu lugar numa árvore genealógica. Mas é bom notar que esses status definem o
indivíduo dentro das relações com qualquer coisa que lhe é exterior, a ordem social na qual ele se insere.
Sabendo que cada estatuto está ligado a um papel, o estatuto determina certas atitudes, certos comportamentos,
modelo no qual ele vai se conduzir (...)." (1973: 36)
"Então são histórias e histórias que compõem a história da minha vida", me disse uma filha de santo do
126
conceitos. As combinações mudam porque cada homem tem a sua história, ou melhor, porque
ele é a sua história; essas combinações, porém, não vão além de certas classes de
acontecimentos, caracterizadas pelo número de búzios caídos sobre o lado aberto ou sobre o
lado fechado. Segundo Bastide, cada jogada de búzios corresponde à palavra de um orixá, e
são os princípios associados a esse orixá (o vento a Iansã, o ferro a Ogum, por exemplo) que
Um pouco adiante, Bastide (1958) nos diz que a personalidade dos orixás seria
composta da mesma maneira: por um conjunto de histórias (que seriam, nesse caso, os itans e
orikis) que, juntas, formariam um conjunto sintético que lhes permite serem transmitidas
através das gerações. Além disso, afirma que as histórias das pessoas teriam paralelos com as
histórias dos orixás, tanto na forma quanto no conteúdo. Ou seja, não só podemos ter uma
visão geral (como um entendimento a posteriori) dos orixás através do conjunto de suas
histórias como ainda as histórias dos orixás e das pessoas podem apresentar semelhanças
entre si.
As histórias dos orixás nos chegam de diversas maneiras: através de seus mitos, das
músicas cantadas nas festas e, principalmente, pelo que pude observar, de comentários muitas
vezes prosaicos sobre os aspectos de sua personalidade, especialmente em suas relações com
outros orixás. Muitas vezes escutei comentários como "Eu gosto tanto de você, você só pode
ser de tal santo", ditos pelos filhos de um determinado santo que tem boas relações com o
suposto santo da outra pessoa. Uma pessoa de Iemanjá, por exemplo, pode se referir a uma
171
pessoa de Oxalá, em tom de brincadeira, como "meu marido". 127 Goldman emprega a
uma chave para entendermos essa questão: "Os mitos do candomblé dificilmente poderiam
indígenas sul- e norte-americanas. Eles parecem antes formar uma espécie de recurso
mnemotécnico (cf. Lévi-Strauss) que serve como guia para o correto cumprimento de todos os
complicados detalhes dos rituais (...)". (1985: 42) Ou seja, ainda que os "grandes mitos"
Da mesma forma, Barber (1990), em seus estudos sobre a África Iorubana, afirmou
que os orikis, e não os itans, são a matéria primordial para se alcançar o pensamento ioruba.
Enquanto os itans são histórias formadas, com início, meio e fim, os orikis são mais
determinado orixá, suas comidas preferidas, seus gostos, suas relações. E essas relações, na
maioria das vezes, têm como fundo o parentesco. E é nessas relações, nesses elementos,
gostos, detalhes de comportamento, que a pessoa pode apreender o que se aproxima de uma
"totalidade" do orixá; que pode, como diriam as pessoas do candomblé, "aproximar-se" dele.
"Quando a gente canta, dá comida, fala sobre ele, a gente está chegando perto do orixá. Da
mesma maneira, quando a gente sente alguma coisa, ou é de repente atravessado por algum
127
No meu caso, os modelos de personalidade aparecem também especialmente no que tange às relações: Mãe
Carmem, ao ser apresentada à esposa de um filho de santo de Logum Edé, perguntou qual o santo dela. Ao ouvir
da moça que ela não sabia, disse: "Tomara que seja de Oxum." Mesmo que os filhos e filhas de santo insistam
em dizer que a personalidade do orixá não determina o filho de santo (ou seja, que não é a existência de traços
semelhantes de personalidade que determina a filiação ao orixá, que só pode ser efetivamente verificada pelo
jogo de búzios), é constante a tentativa de adivinhar qual será o orixá de pessoas que ainda não sabem de quem
são filhas. É como se houvesse dois modos de registro: "Não se pode levar a brincadeira tão a sério", me diriam
meus amigos do Gantois. Tentar adivinhar o santo de alguém, ou fazer conjeturas quanto a isso, é uma
brincadeira; mas "...quando a mãe de santo perguntar, você diga que não sabe e nem tem a mínima ideia!", eles
me alertaram. "Se você resolver falar que a gente fica dizendo isso ela vai logo dizer que a gente é ousado!"
Segundo Halloy (2005), baseando-se em Goldman (1984: 99), há uma"dissociação/distinção entre a pessoa e o
santo" (2005: 157), ou entre o ori e o orixá. Já Segato (1995) sugere que o arquétipo de cada orixá molda não
somente o perfil psicológico de seus filhos como o modelo de suas relações sociais.
128
Serra (1978) também tratou dessa questão, usando para isso uma ideia proposta por Júlio Melatti, para falar
da história Krahô, de mito individual e mito coletivo.
172
sentimento, ou algum pensamento que a gente não sabe de onde vem, é porque o orixá está
perto da gente. E a gente tem que fazer tudo para o orixá estar sempre perto da gente, nunca
nos abandonar, porque quem é abandonado pelo orixá, coitado... Já viu, né?" É justamente a
proximidade dessa relação com o orixá que marca a participação dele nas histórias, ou seja, na
vida da pessoa.
Certa vez Mãe Carmem me disse que jogar os búzios — que ela chama de olhar —
nada mais é do que "espiar atrás da cortina da vida". Ela me explicou da seguinte maneira:
"Sabe quando a gente vai no teatro, aí tem aquela cortina vermelha, pesada, cobrindo o palco?
Imagina que atrás daquela cortina está acontecendo tudo, a peça toda, mas você está sentada
na plateia e não pode ver. Aí você levanta, anda até lá perto da cortina, levanta ela um
pouquinho e dá uma espiada naquilo que está acontecendo ali no palco. Olhar é isso: levantar
De acordo com a sua explicação, cada pessoa nasce com um destino — um odu — e o
jogo de búzios permite olhar um pedaço desse destino, para assim compreendê-lo melhor e
saber como agir perante ele. Esse odu, ou destino, é incompreensível em sua totalidade. "Só
pode ser entendido na hora da morte", disse Mãe Carmem. Ou seja, é só no fim que se pode
entender a totalidade dos fatos, montar a história definitiva da pessoa. Toda a compreensão,
briga, passa adiante aquilo que recebe; a compreensão só vem depois. As histórias se sucedem
e vão fazendo sentido à medida que o quebra-cabeças vai sendo montado. Uma vez que o
corpo humano é composto por diferentes forças, e que se prepara progressivamente para
selecionar as forças que vão atravessá-lo e lidar com elas, o sentido só poderá ser percebido
quando novas peças forem acrescidas ao quadro. Ao longo da vida, o que se pode fazer é
olhar, levantar um pouco a cortina que esconde o palco, para vislumbrar alguma história, ou
173
Penso que o argumento de Bastide (1958), segundo o qual a pessoa é composta de
entidades — e é nas múltiplas instâncias dessa junção que o conceito de enredo adquire
vida. A próxima seção trata justamente do conceito de enredo, e das maneiras como vem
sendo tratado tanto na literatura antropológica quanto na literatura produzida pelos próprios
membros do candomblé.
No sentido dado ao termo tanto por Opipari quanto por Gonçalves, "enredo" define
algo que se agrega à pessoa. Essa visão presumiria a ideia de uma pessoa já formada, à qual se
elementos diversos vão sendo acrescentados. Já Augras (1983: 199) compara o enredo da
pessoa ao enredo de uma peça, o que é coerente com o modelo da representação proposto por
174
Opipari e outros autores (cf. Wafer 1991), que usam a metáfora do teatro para se referir a esta
composição, ligada à visão dos ritos como representação mítica. Mas Augras vai mais além e
se refere ao enredo como o conjunto de entidades que habita, pode habitar ou de que é
'enredo' no candomblé. Significa a sua história, suas características, seus meandros, o seu
jeito" (2012: 208). Ao falar de bruxaria, por exemplo, a autora usa o termo "enredo bruxo"
(2012: 201); "enredo" também pode significar uma farsa, uma sucessão de eventos infelizes,
como na frase "Amado e seu 'povo' desvendaram todo o enredo: ela fora vítima de uma
traição e de uma deslealdade" (2012: 142). Siqueira nos oferece ainda outra definição:
"Ambos [sotaque e bruxaria] envolvem uma dimensão menos harmoniosa da relação entre
seres espirituais e humanos, o sotaque e a feitiçaria fazem parte do que se chama, na região,
129
Lima (2010: 49) também chama a atenção para a possibilidade de o enredo ser uma herança ancestral.
175
de a 'linguagem do candomblé', o seu 'enredo'." (2012: 7) O termo "enredo", portanto, no
trabalho de Siqueira, aparece em duas chaves: uma, ligada à narrativa, como sendo a história
pessoal do sujeito; e outra, ligada à própria linguagem do candomblé, como uma história mais
Com base na experiência da minha pesquisa, penso que, no candomblé, a pessoa não
tem existência prévia a esse enredo — formado, no caso, por um conjunto de enredos, ou de
relações. Mas é esse enredo principal, justamente, que define a maneira como essa pessoa irá
estabelecendo ― sempre sendo assentada. "Ela agora já está mais assentada", me disse um
amigo referindo-se a uma filha de santo recém-feita, referindo-se ao seu equilíbrio emocional,
que costumava ser inconstante. Os santos são justamente assentados para conferir estabilidade
à pessoa, mas essa estabilidade nunca é absoluta. É sempre uma estabilidade efêmera. Ou
seja, utilizando aqui os termos de Silva (2007), a pessoa, no candomblé, não seria exatamente
um Eu ao qual outras coisas se agregariam (como se a cabeça, o ori, fosse uma unidade fixa
inicial à qual se outros fatores iriam se acoplando); o Eu, neste caso, já seria ele próprio um
"cabeça" é usado aqui como forma de se referir à pessoa ― já é ela mesma uma construção,
Ou seja, Silva (2007) e Opipari (2004) utilizam a expressão enredo de santo para se
referir ao que Goldman (1984) denomina carrego de santo — o conjunto das entidades que
livrar. Assim, quando é feito um ebó de limpeza, por exemplo, o que sobra (depois de passar
130
As diferenças de nomenclatura são, evidentemente, etnográficas, e não devido a discordâncias entre os
autores.
176
pelo corpo) é o carrego, que precisa ser despachado — de preferência, em algum lugar
longínquo pelo qual a pessoa não vá passar por três dias. No final do axexê, também se
pessoa. Nesse caso, o carrego deve ser jogado no mar, na mata ou no rio, dependendo do
orixá da pessoa. Nunca ouvi referência a carrego como o conjunto de entidades que habita a
cabeça da pessoa: lá, isto significaria entender essas entidades como um fardo de que a pessoa
precisaria se livrar.
das vezes, como uma relação entre não-humanos — especialmente, neste caso, entre os
orixás.131 Ramos (2011), por exemplo, define "enredo" como a ligação que cria as qualidades
dos orixás:
Vamos tomar como exemplo a orixá Oxum. Oxum, na África, é a dona dos rios. E
existe um rio — o rio Oxum —, no continente africano, que banha várias cidades,
várias tribos, várias aldeias e, obviamente, cada uma dessas tribos, dessas aldeias, tem
um nome diferente. Quando o rio atravessa aquela região, passa a ter um nome
específico. Então, na região onde o rio é novo, é quase um veio d'água, Oxum é nova,
doce e tranquila. Na região onde o rio é profundo, escuro e caudaloso, estas são as
características ali atribuídas a Oxum. Na região das corredeiras, o rio tem muitas
pedras, é violento, guerreiro, suas pedras são afiadas e pontudas, suas águas são
revoltas; por esse motivo, Yeyê Apará apresenta essas características bélicas. Na
região das grandes cachoeiras, as águas batem violentamente nas pedras; por esse
131
Verger (2002) também se refere às relações entre os orixás; embora não use o termo "enredo", sua descrição
em tudo se assemelha às relações que esse nome descreveria: "Há variações e sutilezas sobre essas entradas em
transe que se inspiram em detalhes indicados nas lendas dos deuses. Se a festa é para Xangô, pode-se aguardar a
sua volta momentânea à terra, acompanhado por suas mulheres: Oxum, Oiá-Iansã e Obá; eventualmente,
também o seu irmãomais velho, Dàda-Àjàká, participa dessa cerimônia. Mais raramente, aparecem Oxalá ou
Nanã Buruku. Se a cerimônia destina-se a Ogum, Oxóssi também estará presente, sendo provável o
comparecimento de Oiá-Iansã, frequentemente em briga, a golpes de sabre, com Ogum. Se a festejada for Oxum,
Xangô estará presente, podendo Oxóssi também comparecer, como lembrança de suas aventuras passadas. (...)
Isso tende a confirmar o que Bastide escrevia [Imagens do Nordeste Místico] a respeito do transe de possessão:
'o transe não é apenas um simples reflexo condicionado respondendo automaticamente a um estímulo'. O
estímulo, nessa circunstância, seria um determinado ritmo que sensibilizou o 'iaô' no decorrer da sua iniciação.
Existiria um controle da comunidade, da qual faziam parte os orixás, que os obrigaria a levar em conta o caráter
das relações que existiam entre eles. Isso é válido, quer se trate de laços hereditários ou de manifestações de
arquétipos, de tal modo torna-se rigoroso o conformismo do 'iaô' possuído com o comportamento convencional
esperado do deus modelo." (2002: 73; grifo meu)
177
motivo, Oxum é cultuada, naquela região, com tais características. Na região onde
ocasionalmente o rio some dentro da mata, Oxum passa a ter 'enredo' (ligação) com
Oxóssi ― esta é uma qualidade de Oxum ligada ao rio que alaga a mata, e cujas águas
somem debaixo da vegetação. Ao chegarmos ao final do rio, as águas doces
encontram o mar; é quando a Oxum é mais velha, mais tranquila e tem ligações com
Yemanjá. Mas todas essas qualidades de Oxum referem-se a um mesmo rio, que
apresenta nomenclaturas diferentes conforme a região onde ela é cultuada, e
obviamente o rio é cultuado em cada região de uma forma. Daí surgirem as qualidades
de um mesmo orixá. O mesmo se aplica a Odé, a Xangô e a todos os orixás.
Existe, também, uma forte relação entre os orixás, suas qualidades e diversos
aspectos importantes ligados ao advento da vida humana. Tomemos como exemplo a
orixá Oyá, e algumas de suas qualidades: Onira e Ibalé. Pode-se dizer que, em termos
de corpo humano, Oyá representa o ar dos pulmões, o ar quente, úmido e rico em
oxigênio ― o ar da vida. No caso das Igbalé, diz-se que elas representam o último
suspiro do ser humano. É quando o fôlego se esvai. Assim como Oyá Onira é o
primeiro suspiro de uma criança que chega ao mundo, Oyá Igbalé é o seu último
suspiro. É quando nos tornamos um ará-orun (habitante do orun, do mundo espiritual).
Por isso se diz que Igbalé 'nos leva' de volta aos espaços do orun quando é chegado o
momento. Em contrapartida, diz-se que Onira 'tem enredo com Oxum' (tem ligação).
Obviamente que tem. Onde é que estava o bebê antes de nascer? No útero, imerso em
líquido amniótico (Oxum). A bolsa se rompe, a criança vem ao mundo e respira
(Onira). Mas, se por acaso Onira não vier, com certeza Oyá Igbalé virá. (Ramos 2011:
27; grifos meus)
Da mesma forma, Beniste (1997) afirma que "O enredo de um orixá com outro cria
interferência e amplitude de seus poderes, advindo daí um novo nome: Oxum e Oxóssi =
Ieieoke; Iemanjá e Ogun = Ogunté" (1997: 94). Já Lima (2007), afirma que enredos são
relações míticas entre os orixás, a partir das quais podem ou não ser geradas novas
qualidades:
Oxum tem enredo com todos os orixás do Panteão. Diz um antigo que a santa, 'com
seu jeito meigo e sedutor, se aproxima dos orixás e acaba fazendo pacto com eles,
conhecendo seus segredos, seus axés.' Teria sido assim com certa qualidade de Oxum,
que se uniu a Ossãe e com ele aprendeu os segredos das folhas. Os dois conseguiram
vencer Oxóssi, até então o único dono do mato, em uma disputa, e com ele dividiram
o reino da floresta. Outra Oxum foi viver com Nanã na lagoa, conhecendo assim seus
178
mistérios. Oxum é mulher de Xangô, ao lado de Iansã e Obá, mas, em mitos diversos,
aparece como esposa de outros orixás; há a Oxum que vive com Obaluaiê; há outra
que acompanha certa qualidade de Ogum, guerreando junto a ele; há outra
especialmente ligada a Oxalá, que só se veste de branco; outra, ainda, vive com
Oxóssi, o caçador. É sabido que Oxum tem enredo com Orumilá, orixá da sabedoria e
da adivinhação, sendo a ela facultado o jogo de búzios. Oxum também tem pacto com
Iá Mi Oxorongá, temível feiticeira, servindo-lhe às vezes de mediadora.
No candomblé (e, de resto, na umbanda e em outras religiões afro-brasileiras)
convivem mitos provenientes de diferentes regiões da África ― a exemplo das
diversas cidades do país iorubá, que guerreavam entre si à época da diáspora negra no
Novo Mundo e não cultuavam exatamente as mesmas divindades. Isso explica em
parte a multiplicidade de 'esposos' e 'pais' de Oxum. Assim, o povo-de-santo é capaz
de atribuir diferenças a partir das 'qualidades' do orixá (a Oxum que vive com Oxóssi,
por exemplo, não é a mesma que tem Ogum como esposo) ou, ainda, dividindo a
história do orixá em etapas: Oxum primeiro foi casada com Orumilá, depois com
Xangô, como se diz em certas casas. (Lima 2007: 70/71; grifos meus)
espiritual. Ouvi referências numerosas e frequentes a "enredos" entre orixás. No plano geral,
as relações entre os orixás perpassam toda a sua mitologia: Xangô tem enredo com Oxalá,
Ogum tem enredo com Oxóssi, Oxum tem enredo com Logum Edé, Omolu tem enredo com
Ossãe e por aí vai. As festas do candomblé acontecem sempre em louvor a algum orixá.
Nessas festas, todos os orixás podem vir dançar, mas nem todos podem se vestir com suas
roupas rituais. Só se vestem os que tiverem enredo com o orixá homenageado naquele dia. Na
festa de Oxóssi, por exemplo, vestem-se Ogum (seu irmão), Oxum (sua mulher), e Logum
Edé (seu filho), só para falar da família mais próxima. Quando perguntei a um filho de santo
do Gantois, logo na primeira festa a que assisti, sobre o motivo de Ogum aparecer vestido, ele
132
Como já foi dito, as relações entre os orixás apresentam variações de acordo com a versão do mito; ou,
melhor dizendo: o corpo mítico, aparentemente incoerente, é na verdade coerente com esse padrão de
variação/transformação das relações, com a multiplicidade de relações que pode estar contida num enredo. Na
maioria dos mitos que escutei e li, Ogum e Oxóssi são irmãos. Em outros, Exu também aparece como irmão dos
dois. E ainda, em outros, Ogum é irmão de Omolu. Mas, talvez, as perguntas pertinentes nesse caso sejam:
179
Creio, entretanto, que as relações referidas como "enredo" podem se dar de inúmeras
orixás quanto entre os humanos, ou, muito frequentemente, entre os humanos e os orixás. E
essas relações acontecem em múltiplos planos de existência ― o que, no caso dos orixás, diz
respeito ao orixá "geral" (Oxum, Oxóssi etc., incluindo aí as suas diversas qualidades) e ao
orixá "individual", que deve sua existência, salvo raras exceções, à feitura de algum filho ou
filha de santo. No caso dos humanos, pode referir-se tanto a relações espalhadas no tempo
forma, as relações entre humanos e orixás se dão tanto no plano geral (entre uma pessoa e um
determinado orixá), quanto no plano individual (entre uma pessoa e um orixá individual, seu
próprio ou de outrem). Por exemplo, o Oxaguiã de um filho de santo do Gantois tem enredo
com a Iemanjá de outra filha de santo, o que fez com que eles acabassem no mesmo barco.
Ao mesmo tempo, os dois filhos de santo têm enredo entre si; e cada um deles tem enredo
A figura a seguir ilustra o enredo narrado acima. Os dois filhos de santo têm, acima de
si, os três planos do orixá: o orixá individual, a sua qualidade e o orixá geral. Cada um deles
tem enredo com todos os outros elementos envolvidos na trama de relações, e são por elas
formados.
quando se afirma que um orixá tem enredo com outro, quantas relações cabem nessa afirmação? Os enredos são
mutuamente excludentes? Ou poderiam somar-se ao infinito?
133
Nas palavras dela: "Mas tudo por conta de quê? Oxalá. Quem é que me levou para o Gantois que não um ser
de Oxaguiã? Quem é dirigente hoje do Gantois senão um ser de Oxaguiã? Olha como Oxaguiã está presente na
minha vida! Quem é meu irmão de santo? Um homem de Oxaguiã. Quem está junto de Iemanjá é Oxaguiã."
180
Figura 1: Esboço de mapa da teia de relações constituindo o enredo entre dois filhos de
santo, representados pelos quadrados, e seus orixás nos três planos (nas estrelas: G,
geral; Q, qualidade; I, individual).
O conceito de enredo presente nesta tese, ao mesmo tempo em que abarca todos os
exemplos mencionados e a trama complexa que a figura acima procura sugerir, também se
expande para além das fronteiras, digamos assim, das instâncias da existência. Assim, enredo
é uma história, como para Siqueira (2012); ao mesmo tempo, é uma relação mítica, como para
Lima (2007); e, como afirmei no subcapítulo anterior, enredo também é uma forma de relação
(que gera um conjunto de histórias) com as entidades que compõem a cabeça do filho de
Quando cheguei ao Gantois, Igor era um dos filhos de santo mais recentes do terreiro.
Franzino, tinha na época dezoito anos, mas aparentava ser mais novo. Seu Oxalá, muito
velho, sempre andava apoiado em alguma Iemanjá, o que me chamava a atenção. Um dia
181
alguém mencionou para mim o enredo que Igor teria com Iemanjá. Perguntei a ele, que me
contou a seguinte história: uns três anos antes ele viera do Recife, onde vive, passar férias em
Salvador com a sua família. No segundo dia de viagem, foram à praia no Porto da Barra, uma
praia pequena, no bairro da Barra, em Salvador. O mar lá é parte da Baía de Todos os Santos,
o que faz com que suas águas limpas estejam sempre calmas.
Igor chegou à praia e logo mergulhou no mar. Sua família estava na areia, distraída,
quando uma gritaria lhes chamou a atenção. Igor, ao que tudo indicava, se afogara naquele
mar de águas tão calmas, e num ponto onde seus pés ainda podiam tocar o fundo. O rapaz
virara de barriga para baixo e não se levantava mais; quando as pessoas ao redor perceberam
que ele estava boiando, de barriga para baixo, há um tempo longo demais, ele já havia se
afogado.
Arrastaram-no de volta para a areia, fizeram respiração boca a boca e Igor voltou a
respirar normalmente, mas continuava desmaiado. Desesperada, sua mãe ligou para a irmã,
que conhecia algumas pessoas em Salvador, para que lhe indicassem o que fazer, a que
hospital ir em busca de socorro. A tia de Igor, então, ligou para uma dessas pessoas, que por
acaso era filha de santo do Gantois. Essa filha de santo então providenciou a internação de
Igor em um hospital da cidade. A mãe de Igor tinha certeza de que ele sofrera algum mal
súbito, como um AVC ou uma parada cardíaca. Porém, ao chegar no hospital, os médicos não
Logo que a filha de santo chegou ao hospital para visitá-lo, segundo ela própria me
Ele ainda estava desmaiado, mas o semblante dele estava muito calmo. Na hora eu
percebi que era alguma coisa com Iemanjá, porque tinha sido na praia, né? Mas a mãe
dele estava tão nervosa que eu nem falei no assunto. Logo ele acordou e não se
lembrava de nada. Ainda passou a noite no hospital, em observação, mas no dia
seguinte cedo os médicos o liberaram. Pedi então a ela para levá-lo para ver Mãe
Carmem. Aí não deu outra: assim que Mãe Carmem olhou nos búzios, viu que o santo
182
do menino queria ser feito, e com urgência. Mas, quando ela foi ver, esse santo era
Oxalá, e não Iemanjá! E era do Gantois, claro, por isso que ele veio se afogar
justamente aqui, no Porto da Barra. O menino só teve tempo de ir a Pernambuco para
pegar as coisas dele e voltar para ser recolhido.
Ou seja, Iemanjá somente pegara Igor para que Oxalá pudesse ser feito em sua
cabeça, demonstrando assim o enredo que havia tanto entre Iemanjá e Oxalá, no plano geral,
quanto entre o Oxalá de Igor (que é do Gantois) e a Iemanjá específica que o tinha
capturado.134 Mas existe uma vasta gama de possibilidades para que os enredos se revelem:
Vou relatar agora dois casos de enredos com Omolu (que, como se sabe, é o orixá
Uma mãe de santo que conheci, de Omolu, me contou que antes de seu nascimento um
caboclo avisara ao seu pai: "A menina que vem aí tem enredo, e é forte". Mas o seu pai,
católico fervoroso, não aceitava que sua filha fizesse parte do candomblé, e assim ela passou a
acometiam. Mesmo assim, suas crises convulsivas eram constantes, na rua, na sala de aula, no
ônibus — e ela acabou obrigada a abandonar a escola aos quatorze anos. Quando estava com
dezessete, sua mãe, sem saber mais o que fazer, levou-a a um posto médico novo que acabara
de abrir, na Federação. Lá, um médico jovem, após examiná-la, disse: "Eu não posso lhe
ajudar, mas sei quem pode. Logo ali em cima tem um lugar que se chama Gantois. Vá lá e
procure por Menininha, que ela vai saber lhe curar." Segundo ela, assim que Mãe Menininha
134
Carneiro (1948) comenta que o afogamento é uma técnica muito usada por Iemanjá para demonstrar sua
vontade de ser feita.
183
a viu, falou: "Ave Maria, coitada dessa menina!" e reconheceu logo seu enredo com Omolu.135
Mas ela, além de enredo, tinha caminho, e "precisava cuidar do santo com urgência". Por isso,
foi iniciada assim que se tornou maior de idade, para prescindir da autorização de seu pai (o
que Mãe Menininha julgava indispensável). Ou seja, a própria composição da pessoa se faz de
acordo com o seu enredo. É a relação com os orixás que faz com que eles apareçam e muitas
Já Mãe Neli, filha mais nova de Mãe Carmem e Iadagã do Gantois, descobriu seu
enredo com Omolu de forma bem diferente. Ela, que é de Oxóssi, começou a exibir seus
primeiros sintomas por volta dos dois anos de idade: lembra-se que certa vez estava no salão,
durante uma festa, e acordou nos braços de um ogã, sem saber o que havia acontecido. Ela fez
o santo ainda criança e sempre recebeu Oxóssi, além de um caboclo que começou a chegar
logo também. Em suas lembranças, não sabe dizer se estes primeiros transes eram de Oxóssi
Quando conheci Mãe Neli ela recebia, além de Oxóssi e do caboclo (que nunca tive a
chance de ver), Oxalufã. É uma prática comum no Gantois que qualquer pessoa feita possa
receber, além do orixá dono da sua cabeça, Oxalá ou Ossãe. Mas um dia, numa festa de
Omolu, Mãe Neli recebeu um santo diferente. Na hora todos comentaram que não era Oxóssi
e nem Oxalá, e mais tarde ficamos sabendo que recebera Omolu, que inclusive dançara um
pouco antes de ser recolhido. Um tempo depois conversávamos sobre isso, quando ela me
disse: "Aqui no Gantois, quando eu era criança, tinha um Omolu muito famoso, de um senhor
que já faleceu. Nessa época o Gantois ainda não fazia santos de homens. Ele era feito em
outra Casa, mas sempre vinha aqui. Sei que toda vez que aquele Omolu chegava ele vinha me
135
Rabelo (2008b) chama a atenção para a relação entre epilepsia e Obaluaê (Omolu), "considerada por alguns
pais e mães de santo como doença de Obaluaê." (2008b: 93) Entretanto, como vimos, muitas outras
manifestações brutas de orixás também são confundidas primeiramente com crises epilépticas.
136
Uma filha de santo do Gantois me explicou que muitas vezes o caboclo "abre caminho para o orixá". Ou seja,
as primeiras manifestações da pessoa são com o caboclo, quando quem quer ser feito, na verdade, é o orixá.
184
abraçar. Onde eu estivesse, ele vinha atrás de mim; encostava a minha cabeça no peito dele e
ficava, assim, como se estivesse me embalando. Nunca entendi aquilo até que, já mais velha,
comecei a receber Omolu! Ou seja, eu já tinha enredo com ele desde pequena e não sabia!"
Se algo incompreensível acontece, por mais que possa causar contratempos, sempre se
considera que o verdadeiro significado só irá revelar-se com o passar do tempo. E de maneira
igual opera o enredo: a pessoa toma consciência da relação antes de entender de que maneira
esta se encaixa no plano maior da sua vida. Como se dá com o "projeto construtivo" de uma
teia ou rede de relações, seja uma narrativa, uma relação amorosa ou um logro, e/ou com o
"enredamento" de quem se vê colhido nas malhas de alguma teia, capturado por um entrecho,
uma trama. O enredo é, portanto, ao mesmo tempo a história e a teia em que a pessoa se
enreda — e que, com o tempo, vai revelando o significado dos eventos que o compõem. A
pessoa, no caso, não é uma totalidade, mas uma totalização — nunca se completa, embora
instantâneo de todos os fatos. A pessoa pode ter enredo e ao mesmo tempo ter caminho —
desembocar num caminho. Mesmo que desemboque, porém, ao longo do caminho irão surgir
novos enredos — e, conforme a vida vai seguindo, esses novos enredos podem apresentar
definidor, um índice do não-acaso que rege o candomblé. Ao mesmo tempo em que não é
dado, o enredo é moldável — como a cabeça do filho de santo, cujo assentamento, e posterior
alimentação, visa modular sua relação com as entidades. Da mesma forma, existem diferentes
concretize exteriormente, enquanto outros não passam de partes menores da vida e da pessoa.
185
Acompanhei o caso de um rapaz que estava prestes a fazer o santo em um terreiro cuja
mãe de santo é filha de santo do Gantois. Ele estava pronto para fazer Ogum e assentar
Oxalá, os dois orixás que a mãe de santo havia visto em sua cabeça. Entretanto, logo antes de
ele iniciar seu recolhimento, a mãe de santo lhe perguntou se alguma coisa diferente vinha
acontecendo em sua vida nos últimos meses. Ele então lhe contou que, havia algum tempo,
um passarinho que piava em sua janela o acordava todo dia pontualmente às cinco da manhã,
assim que o sol começava a aparecer. Ele tentou várias técnicas para apanhar o passarinho, ou
para espantá-lo, e nada funcionou. A mãe de santo ouviu em silêncio e ao fim da história deu
o diagnóstico: ele tinha enredo com Oxóssi. Jogou os búzios, que confirmaram o que ela
havia concluído. Assim, durante a iniciação do noviço, Ogum foi feito e tanto Oxalá quanto
Oxóssi foram assentados. Quando ele voltou para casa, o passarinho nunca mais piou em sua
janela. O enredo definiu o assentamento, o duplo de sua cabeça, para que Oxóssi pudesse ser
cuidado como queria e não precisasse mais lhe mandar nenhum emissário.
Além disso, o enredo, ao mesmo tempo em que é uma relação, é uma narrativa sobre a
relação — a posteriori, com o entendimento dos fatos, o enredo se transforma num relato, em
que se define, a um só tempo, tanto uma relação quanto uma narrativa. E essa narrativa, assim
como a relação, é que define o caminho — visto que, como demonstrado por Elbein (1975), as
Certa vez, em Salvador, eu estava jantando com um pai de santo de São Paulo, junto
com diversos filhos de santo do Gantois. Todos os presentes tentavam adivinhar o orixá de
uma das pessoas, a única da mesa que ainda não sabia qual era o seu santo. Após examiná-la
com cuidado, o pai de santo falou: "Você é de Iemanjá, mas com um enredaço com Logum
Edé". A moça então lhe perguntou: "Mas quem tem enredo com Logum Edé? Eu ou a minha
Iemanjá?" Ao que o pai de santo respondeu: "A sua Iemanjá". Ela então lhe disse: "É que o
meu marido é de Logum Edé." "Ah, então foi isso que eu vi", disse o pai de santo. "Essas
186
coisas se refletem mesmo uma na outra."
O pai de santo de São Paulo, na tentativa de ver o orixá dela, viu a relação que ela
mantinha com uma pessoa de Logum Edé — o que apareceu para ele como uma Iemanjá que
tem enredo com Logum Edé. Na visão dele, o orixá do parceiro da moça em questão passaria
a "fazer parte" de sua própria Iemanjá — ou seja, o orixá dele se acoplaria ao dela, criando
assim um enredo. As possibilidades de relações são infinitas e vão se realizando uma a uma:
como a pessoa é formada por forças que lhe são externas, tudo sempre pode ser assimilado. E,
a partir do momento em que se torna possível identificar que alguma parte da pessoa precisa
de cuidados, isso sempre pode ser feito externamente (através do seu assentamento).
Conheci uma filha de santo de Mãe Menininha que me contou que, quando soube que
precisava fazer o seu santo, Mãe Menininha lhe pediu que entregasse a ela "uma coisa que
tinha encontrado". "Uma coisa que eu encontrei? Mas não encontrei nada!", ela disse. Mãe
Menininha então lhe assegurou que havia, sim, encontrado alguma coisa, e que sem a tal coisa
o seu santo não poderia ser feito. Ela voltou para casa sem saber o que fazer mas, ao fim de
alguns dias, abriu seu guarda-roupa e de lá caiu uma pedra que, ainda criança, havia achado
numa cachoeira. Segundo ela: "Eu nunca tinha entendido porque tinha pegado essa pedra.
Tem gente que tem o costume de pegar pedra nos lugares, mas eu nunca tive disso. Aí um dia
peguei aquela pedra, guardei no armário e nunca mais tinha visto, até o dia em que Mãe
Menininha me mandou procurar uma coisa que eu tinha achado." E essa pedra hoje está no
assentamento de seu santo.137 Ela é de Nanã; mas a qualidade de sua Nanã era tão velha que,
137
Da mesma forma, enquanto estava na Bahia, fui a um congresso de sociologia na UFBA, e lá assisti a uma
apresentação de uma antropóloga italiana sobre quizilas. Ao fim da apresentação, uma espectadora levantou-se e
disse: "Muito interessante o que você fala, mas não é bem assim que funciona. Você fala que quizila é uma coisa
que a pessoa 'ganha' quando faz o santo, ou seja, uma coisa prescrita, mas não é verdade: no meu caso, por
exemplo, passei mal a vida toda quando comia abacaxi. Ficava com a boca toda estourada, passava mal da
barriga, tudo. Quando eu já tinha mais de trinta anos é que fui num candomblé e a mãe de santo falou que eu era
de Oxum. E só aí fui entender por que eu passava tão mal com abacaxi!"
187
segundo Mãe Menininha, já havia voltado para a África.138 Assim, tudo precisaria ser feito
para Omolu, filho de Nanã, que se encarregaria de levar o recado para a mãe. "É bom que o
enredo deles é forte, né...", ela me disse. "Mãe e filho. Às vezes sinto que estou mais próxima
de um, às vezes do outro... Com certeza meu enredo é com esses dois. Mas sabe que depois
de um tempo Nanã começou a chegar, apesar do que Mãe Menininha tinha dito? Aí eles se
revezam. Eu dou comida para um, dou para o outro... Só sei que amo os dois."
Poderíamos apontar também, mesmo que de forma não muito elaborada, apenas
indicando um caminho a seguir, a ligação que pode haver entre enredo e mito no candomblé.
Em grande parte da literatura sobre as religiões de matriz africana (cf. Bastide 1958, Segato
1995, Verger 2002, Beniste 1997, Lima 2005), é consagrada a ideia da relação entre mito e
ritual. O rito seria a atualização do mito — no ritual das Águas de Oxalá, por exemplo, recria-
se o momento em que Xangô, surpreso ao saber que tinha Oxalá preso nas masmorras do seu
castelo por sete anos, confundido com um mendigo, manda que toda a cidade traga água para
lavá-lo. Na cerimônia, recria-se o mito: todos precisam vestir-se de branco e ir em silêncio até
a fonte, buscar a água que depois será jogada em suas cabeças. Ou, nas festas, quando Obá e
Oxum se evitam, remetendo à maneira como Oxum enganou Obá e a fez cortar a própria
Os exemplos são inúmeros, tão incontáveis quanto o número de mitos e de danças que
há no candomblé. Mas gostaria de fazer aqui um aparte sobre uma vez em que vi as coisas se
darem no sentido contrário. Certo dia, eu conversava com Leila, a neta de Mãe Carmem,
sobre Oxum. Ela me contava que, logo que fez santo, as pessoas zombavam dela porque sua
Ela dava uma passada estranha com um dos pés, botava no chão e tirava... Quase
manca. Todo mundo ficava rindo, dizendo que minha Oxum era manca. Eu ficava
138
Bastide (1958) fala também sobre isso: "O santo que já não cavalga é um santo que está desaparecendo; diz-se
que voltou para a África." (1958: 231)
188
agoniada, ninguém me explicava nada, eu achava que tinha alguma coisa errada
comigo, ou com ela. Até que um dia Dona Cici veio aqui no Gantois contar histórias
de orixás para as crianças. Eu fiquei ali do lado, prestando atenção. Aí ela começou a
contar um mito que diz que Oxum andou em cima das brasas, e que tem uma Oxum
que pisa sempre de maneira reticente com o pé esquerdo. Na hora que eu ouvi aquilo,
comecei a chorar: era a minha Oxum! Finalmente entendi porque que ela fazia isso!
Era uma coisa do enredo dela mesmo.139
poderíamos entender certos mitos como enredos dos orixás, ou reflexos desses enredos. Da
candomblé, como mitologia pessoal, penso que a ideia de enredo ocuparia, aí também, um
papel fundamental.
4.4: Individuação
candomblé, é um processo que não tem fim — o equilíbrio entre as muitas forças que
compõem uma pessoa é sempre instável; muitas vezes, pode-se até dizer que o arranjo é
pessoa, uma categoria dessa noção de pessoa e do processo de individuação, conhecido como
139
Encontrei o mito a que ela se refere em Lima (2007): "Oxum e Obá, ambas esposas de Xangô, tinham rixa
antiga, com ciúmes uma da outra. Mas conviviam bem, dentro do possível. Até que um dia Obá resolveu
convidar Oxum para uma festa, em seu palácio. Oxum, que era a convidada de honra, vestiu um belo vestido,
enfeitou-se com joias, perfumou-se e foi com sua comitiva até o palácio de Obá. Quando lá chegou, viu que
havia um lindo e comprido tapete de pétalas de rosas, já no salão principal, estendido em sua honra. Então Oxum
pisou no tapete ― descalça, como os orixás sempre andam ― e teve uma desagradável surpresa: Obá pusera
brasas escondidas debaixo das pétalas de rosas. Os pés de Oxum começaram a arder, mas ela, altiva, não quis
demonstrar nenhum sinal de dor. Foi andando por todo o tapete sem reclamar, sorrindo majestosa para todos.
Oxum nada falou com Obá. Ficou à espera de um dia em que pudesse responder à altura. Os pés de Oxum
ficaram queimados ― e é por isso que até hoje ela pisa macio." (2007: 93-94)
189
"indivíduo"?
todo transcende a parte, explica a parte: as partes se submetem ao todo, e por ele são
contínua transformação.
Tanto Bastide (1958) quanto Elbein (1975) defendem que a condição necessária para a
Exu140 é a condição de existência da pessoa. Sem Exu não há pessoa e nem orixá, já que
ambos têm um Exu em sua constituição primordial. Ao longo do texto, porém, Bastide (1958)
alterna entre as duas formas de se referir à construção desta singularidade. Embora se refira ao
processo de formação da pessoa como individuação, trata a pessoa como indivíduo, notando
Bastide se refere aos babalaôs porque, segundo ele, para entender o mundo do
140
Como vimos, Exu não é um orixá como os demais, tendo uma singularidade que se manifesta não só em sua
relação com as práticas divinatórias como ainda numa espécie de mediação que exerceria entre os mundos dos
homens e dos orixás.
190
babalaôs, babalossães e babaojés).141 Ainda segundo o autor, quando uma criança nasce, na
África, tira-se o seu odu (destino) individual. Na idade adulta, ele tem o seu ifá individual
(que é, por sua vez, um odu). No candomblé brasileiro, embora não se jogue (e,
consequentemente, não se tenha) mais o ifá, Bastide afirma que a relação com os babalaôs, os
sacerdotes do destino, se mantém através do jogo de búzios (associado a Exu). O odu que o
jogo revela é, portanto, uma palavra de Exu. Nas palavras de Bastide (1958): "A passagem do
Ifá individual para um Exu individual é o reflexo do outro fenômeno que já tínhamos
com o dilogum142; mudança que está em processo no mundo dos babalaôs da Bahia, vitória
dos búzios sobre o colar de nozes-de-cola, substituição, em suma, das 'palavras' de Ifá143 pelas
'palavras' do Exu. Por isso mesmo, o princípio de individuação vai tomar uma forma
ligeiramente diferente." (1958: 147) O universo da individuação, portanto, está ligado ao das
pessoas, que por sua vez está conectado e depende do babalaô para defini-lo. Já o universo
dos orixás mantém-se separado, subordinado ao babalorixá (ou à ialorixá), conectando-se aos
homens pelo princípio de classificação, uma espécie de análise combinatória dos eventos da
vida humana que, dependendo do resultado, conectam-na com este ou aquele orixá. Já Exu,
por sua vez, é o "elemento dialético do cosmo" (1958: 172), conectando as diferentes
instâncias da existência e tornando assim possível que homens e orixás participem dos
141
Babalorixás e ialorixás, como vimos, são os termos em iorubá para pai de santo e mãe de santo. Babalossãe é
o termo em iorubá para o responsável por tudo que se refere às plantas (especialmente às suas folhas) de um
terreiro. Já babaojés são os ojés, os guardiões do culto de egum.
142
Cacciatore (1977) define opelê-ifá como "espécie de colar aberto, ou cadeia, usado para adivinhação.
Também chamado rosário de ifá. É formado por oito meias-nozes de dendê (ou búzios com o fundo cortado)
ligadas por elos de metal ou trança de palha da Costa, deixando no centro um espaço maior. (...) Só o babalaô
verdadeiro, sacerdote de ifá, tem direito a servir-se do opelê. Jogado dentro de um círculo de colares sagrados
(colar de ifá) ou de esteira ou peneira de palha, com colares e búzios ao redor, o opelê deve cair em forma de U,
com o lado aberto voltado para o babalaô. Com uma só tacada tem-se um odu, enquanto os (...) búzios precisam
de oito jogadas. (...)" (1977: 195) Já dilogun é o termo em iorubá para o jogo de búzios.
143
Ifá é um termo que define tanto um orixá quanto uma prática. Penso que o que Bastide diz é que na África a
divinação estava no domínio do orixá Ifá (com o jogo de ifá), enquanto no Brasil (com o jogo de búzios) está no
domínio de Exu.
191
universos uns dos outros. Sem Exu, o indivíduo não pode existir, pois lhe é negado o direito a
participar e a partilhar da matéria dos deuses, matéria fundamental para a sua existência.
dinâmico, não só de todos os seres sobrenaturais, como também de tudo o que existe" (1975:
140), e que portanto "(...) não pode ser isolado ou classificado em nenhuma categoria. É um
princípio e, como o ase (axé) que ele representa e transporta, participa forçosamente de tudo.
Princípio dinâmico e de expansão de tudo o que existe, sem ele todos os elementos do sistema
e seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria. (...) 'cada ser humano tem seu
Esu (Exu) individual, cada cidade, cada casa (linhagem), cada entidade, cada coisa e cada ser
tem seu próprio Esu'. (...) assim como Olorun representa o princípio da existência genérica,
comunicar." (1975: 141). Ainda segundo a autora, "Esu está profundamente associado ao
materiais." (1975: 238). E Elbein afirma ainda: "Princípio de individualização, Esu está
que cada indivíduo teria um Exu a acompanhá-lo por toda a vida, garantindo assim sua
existência. Exu seria não somente o propiciador da vida humana, mas aquele que acompanha
o indivíduo, mostrando-lhe o caminho a seguir. Nas palavras da autora, "Esu é tão inseparável
192
do indivíduo que, por assim dizer, confunde-se com o que caracteriza mais a unidade-ser. (...)
É o princípio de vida individual. Todo indivíduo, por trazer em si seu próprio Esu, traz o
elemento que lhe permitirá nascer, cumprir seu destino pessoal, reproduzir-se e cumprir seu
Elbein, assim como Bastide, sugere o caráter composto da pessoa no candomblé, mas,
enquanto Bastide define Exu como um dos elementos desta composição, responsável pelo
destino, Elbein considera Exu aquilo que possibilita a conjunção mesma dos elementos, o
próprio princípio de força que coloca tudo em movimento. Em suas palavras: "O ser humano,
como todos os seres, é constituído por elementos coletivos, representações deslocadas das
e por uma combinação de elementos que constituem sua especificidade, ou seja, sua unidade
forças diferenciadas, tanto Bastide como Elbein parecem acreditar que, em algum momento, a
aconteceria? Pois a feitura no candomblé, como veremos a seguir, é um processo longo, que a
rigor não tem fim. Passemos, então, à análise de alguns casos de processos de feitura.
4.5: Feitura
A feitura de santo é uma ciência exata: a pessoa precisa comer, beber, banhar-se,
calculada e sutil de todos esses elementos que o santo se fixa tanto na cabeça de seu filho
quanto no assentamento através do qual pode ser "cuidado". Não basta o banho de umieró às
quatro da manhã — as plantas usadas em sua composição precisam ter sido colhidas num
193
horário específico, por uma determinada pessoa de um certo orixá. Devem ter sido maceradas
por outra pessoa, em outro horário específico, e guardadas de uma certa maneira em um lugar
Durante esse período, é vedado aos noviços deixarem o sabaji. Ao saírem passarão a contar,
no terreiro, com um duplo concreto (o seu assentamento) que pode ser manipulado, e que é
Podemos dizer que os estágios da feitura variam conforme o que diz o jogo de búzios
1) Os filhos de santo assentado. Nesse caso, o que é feito é o assentamento do orixá, que
permanecerá no terreiro (na maior parte dos casos) para ser alimentado e cuidado junto com
os outros orixás feitos na Casa. A cabeça da pessoa, porém, não é feita, ou seja, não é educada
para receber seu orixá, que é preparado somente em forma física, em sua modulação mais
concreta, o assentamento.
2) Os adoxus: chamam-se assim os filhos de santo que fazem a cabeça. E que se subdividem
ainda em duas categorias: os que dão santo, ou seja, através dos quais os orixás vêm à terra; e
aqueles cujos orixás foram feitos mas nunca se manifestam. Nos dois casos, a saída, ocasião
em que o noviço é apresentado à sociedade, é igual: o filho de santo sai vestido com as roupas
de seu orixá, dançando de cabeça abaixada. No caso dos adoxus cujo orixá não chega, porém,
esta será a única vez em que poderá usar a indumentária do santo. É importante ressaltar que,
no caso da feitura dos adoxus, um assentamento também é produzido — mas nesse caso, a
cabeça do adoxu é preparada para receber o orixá que está ali assentado, realizando-se um
ritual que assegura a conexão entre a cabeça do noviço e o assentamento de seu orixá.
3) As iarobás (ou equedes) são as mulheres encarregadas cuidar dos orixás manifestados.
Podem ser escolhidas por eles próprios (caso em que se diz que são "suspensas" pelo santo),
194
convertendo-se nas equedes de um determinado orixá, ou podem ser "da casa", por terem
conquistado um cargo144, por exemplo. Seu período de feitura leva geralmente uma semana,
assemelhando-se a um assentamento.
4) Os ogãs são homens que não recebem santo e se desincumbem de tarefas diversas do
5) Os alabês são os tocadores de atabaque. Podem ser tanto "de santo assentado" quanto ogãs.
cumpram o mesmo calendário de obrigações, esse título é exclusivo dos filhos e filhas que
dão santo. Mas não basta o tempo de feitura para um adoxu virar egbome. Se alguma filha de
santo fez santo há dez anos, por exemplo, mas ainda não cumpriu suas obrigações de sete,
continuará sendo uma iaô. A "idade no santo" depende do cumprimento de certos rituais, o
que também reforça a ideia de que a constituição da pessoa se dá pelo acúmulo das
Conheci uma filha de santo do Gantois, por exemplo, que assentou a sua Oxum ainda
criança. Alguns anos depois, começou a sentir os primeiros sinais de possessão. "Passou mal"
(como se diz no Gantois quando há o início de possessão pelo santo ainda bruto) algumas
vezes, nas festas. Logo, Mãe Carmem viu nos búzios que sua Oxum queria ser feita. Ela então
se submeteu à feitura, junto com um grupo de iaôs. Porém, na véspera da sua obrigação de
três anos, começou a sentir a presença ocasional de outro orixá, querendo tomar sua cabeça.
"Sua Oxum está estranha", disse-lhe uma de suas irmãs de barco. "Ela nunca foi brava assim,
de repente fica andando por aí parecendo que vai bater em alguém!" Ela então pediu à mãe de
santo que jogasse os búzios, o que revelou a existência de "um enredo complicado" com Ewá.
Assim, quando se recolheu para a obrigação de três anos, assentou Ewá e, a partir daí, em
144
Um cargo pode ser atribuído tanto pela mãe de santo como por algum orixá. Existem diversos cargos numa
casa de candomblé, cada um relacionado a algum orixá ou a algum assentamento. Há o cargo de responsável
pela casa do orixá, por exemplo; o cargo de responsável por alguma questão específica relacionada à mãe de
santo; o cargo de responsável pela comida dos orixás, e assim por diante.
195
alguns momentos é Ewá quem chega. "Vamos ver quem é que vai aparecer para a minha
obrigação de sete anos", ela me disse, brincando.145 Essa brincadeira, porém, evoca uma
importante reflexão sobre a concepção de pessoa corrente no candomblé. Cada história, cada
relação, cada enredo tem sempre o potencial de lhe acrescentar um novo elemento — que
pode ou não demandar uma representação física. Isso não significa que a pessoa estava
sempre completa, ou sempre incompleta. As pessoas são fluidas, num processo permanente de
orixá. Muito pelo contrário, a feitura, concretizando as relações entre o santo e seu filho/sua
filha, é o cimento que permite a criação do amálgama pessoa-orixá. Como vimos, toda feitura
145
A composição da cabeça de um filho de santo é definida pelo jogo de búzios: em princípio, o jogo capacita o
pai ou a mãe de santo a saber quais santos respondem por aquela pessoa. Não havendo prova em contrário, são
estes os orixás presentes em sua cabeça. E muitas variações são possíveis. Ainda assim, a definição inicial é
sempre provisória: antes da feitura ou do assentamento, até o momento mesmo em que a pessoa é recolhida,
nunca se pode saber ao certo qual orixá será efetivamente o "dono da cabeça" e, muitas vezes se revela, no
decurso da própria feitura, que a pessoa precisa cuidar de mais de um orixá. E não há uma regra fixa que defina
o que acontece nesses casos, embora o mais comum seja ela "raspar" o orixá de frente e assentar os outros.
Entretanto, nunca é demais lembrar que, como muito propriamente definiu Herskovits, (1956), "(...) the supreme
compensation device in candomblé structure itself is found in its flexibility. There is no rule that does not have
its exception; in all instances, situations alter cases." (1956: 165) ["(...) o mecanismo supremo de compensação
da própria estrutura do candomblé está em sua flexibilidade. Ali não existe regra sem exceção; em todas as
ocasiões, as situações alteram o caso."]
Certa vez, fui no xirê de aniversário do Mestre Didi, no Ilê Axipá. Lá, alguns dos membros da casa
dançariam em homenagem aos orixás de Mestre Didi, que não estava presente. Num dado momento, sua filha,
Mãe Nidia, recebeu sua Iemanjá e foi dançar no centro da roda. Após duas cantigas em que dançou no meio,
suas feições mudaram. Seu corpo balançou de leve, mudando de postura. Demorou um pouco até os alabês
entenderem o que estava acontecendo; a música parou e fez-se silêncio. Alguns sabiam o que ia acontecer, mas
outros, como eu, sentados nas poucas cadeiras em volta da roda em que os filhos da casa dançavam, demoraram
para acompanhar a mudança. Um alabê puxou outra cantiga, e de repente ouviu-se um ijexá (o ritmo de Oxum).
A dança ficou mais suave, mais melódica e mais cadenciada; quando percebi, era Oxum que estava lá. Ela havia
feito uma transição suave de um orixá para outro, e a partir de então Oxum continuou a dança que Iemanjá havia
iniciado. Foi a única vez que vi coisa semelhante. Depois soube que é uma característica muito rara e que são
pouquíssimas as pessoas dentro do candomblé queto capazes de apresentar transições desse tipo. Mãe Nidia é
um caso raro em que Iemanjá e Oxum estão lado a lado, e não uma atrás da outra como é mais costumeiro. E
então as duas se alternam no transe, sem necessidade de duas incorporações separadas, caso das pessoas que
conheci capazes de receber tanto o primeiro quanto um segundo orixá. No seu caso, apesar de ser conhecida
como Mãe Nidia de Iemanjá, ela tem as duas orixás ocupando a mesma posição, dividindo a sua cabeça. Iemanjá
é a mais velha, por isso está um pouco mais à frente e sempre toma a dianteira nas danças; mas Oxum vem ao
lado e logo pega para si a posição, ocupando a filha de santo para "dançar no meio".
196
é acompanhada de um assentamento; ao mesmo tempo, no caso de um adoxu, sua cabeça é
preparada para que o santo chegue, através de um furo aberto em seu couro cabeludo (a
catulagem). A conexão entre a cabeça do noviço e o assentamento que representa o seu orixá
é estabelecida quando tanto uma quanto o outro são banhados com o mesmo sangue. A partir
expressão concreta, uma relação que assume forma física e se torna fundamental para a
Candomblé: o assentamento primordial do terreiro é o que se chama de seu axé, e é ali que se
seja, o enredo tanto dá forma ao assentamento quanto deve sua forma a ele.
Tomemos como exemplo o caso de um filho de santo do Gantois que andava muito
nervoso, achando que estava com a cabeça quente. Passou algumas semanas dando comida
forma que as forças que atingem a pessoa são sempre externas, é externamente que se deve
tratá-las. O candomblé tem como prerrogativa uma concepção do ser humano que leva em
conta, na formação da pessoa, diversas forças que se combinam de maneira singular a cada
efetivamente se realiza e ocorre a conjugação completa entre o ser humano e seu orixá. Ao
Quando uma pessoa feita morre, seus irmãos de santo têm vinte e quatro horas para
retirar seu oxu, a substância mágica usada no preparo de sua cabeça a fim de permitir a vinda
controlada de seu orixá. Entre a morte e a retirada do oxu, a pessoa está estabilizada: nada
mais pode acontecer. Quando o oxu é removido, a pessoa começa então a ser desfeita, dando
197
início ao axexê — o processo em que se desagrega a composição da pessoa. Ao longo de vinte
falecimento e em seguida a um, três, sete, quatorze e vinte e um anos), desfazem-se pouco a
pouco os assentamentos da pessoa que faleceu, libertando-a (e ao seu santo, se este for o
desejo dele) deste mundo. Ou, na definição de Elbein (1975): "(...) uma vez cumprido seu
ciclo de vida, cada ser humano se desintegra para restituir-se em parte às massas progenitoras
elas a de um rapaz que morava no Rio de Janeiro e fez santo em um terreiro cuja ialorixá era
feita no Gantois. Como ele trabalhava, organizou suas férias para coincidirem com seu
período de recolhimento. Passou um mês no terreiro, ao fim do qual foi liberado para voltar
para casa, o que incluía uma viagem de avião e o reencontro com sua esposa. Perguntei à mãe
de santo se ele podia pegar um avião sem problemas com tão pouco tempo de feito, e ela
respondeu: "Pode sim, eu que vou cumprir esse resguardo. Ele é jovem, precisa viajar,
trabalhar, namorar a mulher dele… Eu já estou mais velha, não vou sair daqui mesmo, então
vou cumprir o resguardo por ele, ué." Depois, quando acompanhei uma francesa que assentou
o santo com essa mesma mãe de santo (caso que será apresentado no capítulo a seguir), a
situação se repetiu. Ela é de Iemanjá, o orixá assentado. Quando ela foi liberada, depois de
uma semana de recolhimento, fui buscá-la. Assim que cheguei ao terreiro, ela me disse que
queria tomar um banho de mar e uma cerveja. Traduzi para a mãe de santo o que ela dissera, e
esta me respondeu, depois de pensar um pouco: "Pode ir, pode levar ela". "Mas como?",
198
perguntei, e ela então me respondeu. "Eu que vou fazer o resguardo dela, ela é francesa, e
diversos tipos de transferência. Como a pessoa está sempre em formação, isto a deixa
permanentemente aberta ao que vem de fora. Depois que ela é feita, porém, passa a contar
com um filtro que só dá passagem às coisas certas (condizentes portanto com seu enredo), que
acoplam-se a ela. E são as fronteiras fluidas que permitem essas transferências; depois que a
pessoa é feita, o que ocorre é uma diferença quanto ao que pode ser transferido, e com qual
delicado na formação das pessoas. Nessa hora, muita coisa pode passar de um para o outro: os
canais estão abertos, o controle dos fluxos é ainda incipiente. É comum ouvirmos relatos de
quizilas que passam de um iaô para o outro, especialmente se estão deitados lado a lado (já
que o barco de iaôs sempre mantém a mesma formação, até na hora de dormir). Mas
Neste barco, havia um rapaz de Xangô e três de Oxalá. O rapaz de Xangô tinha
certeza, pois sempre lhe havia sido dito, que o seu Xangô era Aganju, o Xangô jovem, audaz,
comedor de fogo. Entretanto, depois que já estava recolhido, outro filho de santo do terreiro,
muito próximo a ele, teve um sonho, no qual Xangô lhe dizia o seu nome; só que não era
Xangô Aganju, como fora anunciado pela mãe de santo, e sim Xangô Airá, o velho, que só
seu sonho: o Xangô vestia branco — ou seja, era Xangô Airá. Num certo momento, porém,
sua fisionomia mudou, o que deixou o filho de santo que sonhara intrigado. Foi só na primeira
199
festa depois da feitura que ele entendeu o que acontecera. Como na saída os orixás recém-
feitos não podem dar os seus ilás (ou seja, não podem dar o grito anunciando sua chegada,
pois lhe é vedada a emissão vocal), ele não havia escutado ainda o grito de Xangô. E nessa
festa ele ouviu claramente: durante uma parte da festa, o ilá era de um jeito; depois de uma
certa hora, era de outro. Ou seja, o seu amigo tinha, em sua cabeça, os dois Xangôs. O
primeiro, Aganju, era o que sempre o acompanhara; por ter entrado num barco com três
Oxalás, porém, ele se viu obrigado a fazer também Xangô Airá, o Xangô mais próximo de
Oxalá (ou seja, o que tinha mais enredo com o outro orixá). Além disso, por causa dos
Oxalás, precisou cumprir um resguardo de quatro meses, muito maior que o resguardo
habitual de Xangô, somente de um mês. E não só isso: não poderá mais comer azeite de
Mas a transferência também se dá entre orixás. Uma vez, já de volta ao Rio, fui a uma
festa de Xangô num terreiro em Niterói com um amigo, adoxu de Oxaguiã. No meio da festa,
começaram a tocar para seu santo e vi que ele ficou nervoso. Não queria dar santo, me
explicou. Não era o terreiro dele, não se sentia à vontade, não queria dançar. Enquanto ele me
explicava, o Oxaguiã de uma filha de santo da casa chegou. Quando ele viu o santo dançar,
disse. "Posso ficar tranquilo então, que não vou precisar dar santo." Ou seja, o fato de haver,
no salão, um orixá semelhante ao seu (da mesma qualidade, no caso) liberava o orixá dele da
obrigação de comparecer. "Ele já está ali representado", ele me explicou. "Na verdade, é
como se um pedaço dele estivesse ali, ou melhor, como se ele mesmo já estivesse ali".
conhecida é a substituição do santo da cabeça da pessoa. O exemplo mais comum desse tipo
de substituição acontece quando uma pessoa que é de Exu precisa fazer o santo num terreiro
200
onde não se faz Exu146 (caso do Gantois). Nessas situações, a pessoa tem duas opções: ou
procura um terreiro onde se faça Exu (se houver espaço para isso, claro), ou pede à mãe ou ao
pai de santo de seu terreiro que manipule a composição de sua cabeça de maneira a lhe
permitir ser feito ali mesmo. A solução mais comum para esse caso é fazer Ogum Xoroquê, a
qualidade de Ogum "que mais tem enredo com Exu", ou "que é quase Exu", ou é a "mais
próxima de Exu". Assim, Exu fica satisfeito, "mas não muito", como me explicou uma mãe de
santo. "A gente consegue controlar ele; mas quem vem é Ogum Xoroquê". E, como Ogum
Xoroquê está tão próximo a Exu, Exu pode receber os devidos cuidados através de seu
semelhante.
uma lógica refinada e difícil de ser apreendida. Há diversos desvios possíveis no caminho que
precisam ser considerados pela mãe ou o pai de santo que se propõe a esse tipo de operação.
"Fazer Exu é perigoso", disse-me um pai de santo. "Não é qualquer um que sabe mexer com
ele". Ou, como me disse uma mãe de santo que conheci, em tom de provocação e zombaria:
nasceu de Ogum mas, na hora da feitura, Xangô é que foi feito. A explicação, dada pelo
146
Fábio Lima, quando conversamos sobre isso, me explicou que "a maioria das pessoas não tem capacidade de
receber a força de Exu, que é muito forte, e que já está no indivíduo por ser dono do inu (as vísceras e entranhas,
segundo ele)". Mas, ainda segundo ele, essa explicação só cabe nos terreiros mais "ortodoxos".
147
Esse era o caso de Silvana, uma abiã que conheci. A mãe de santo do terreiro que ela frequentava havia
jogado para ela e dito que ela era de Ogum, e que teria que fazer o santo brevemente. Mas Silvana havia jogado
antes com outra pessoa que lhe disse que era de Exu, e então insistiu com a mãe de santo que lhe falara de
Ogum. " Aqui eu não faço Exu", ela lhe disse. "Se você fizer santo aqui, vai ser Ogum. A gente vai cuidar do seu
Exu, mas quem vai vestir é Ogum." Silvana ficou em dúvida sobre o que fazer. A mãe de santo, percebendo sua
dúvida, chamou Marlene de Exu, uma figura famosa de Salvador, para ser sua mãe pequena. Mas Silvana não se
convencia. Resolveu procurar ajuda em outra casa, onde pudesse receber diretamente o seu Exu. Logo depois
dessa decisão, porém, a casa onde Silvana morava, que havia sido herança de sua mãe, sofreu um grave
problema estrutural devido a uma obra na casa vizinha e afundou na terra, deixando-a sem teronde morar.Silvana
interpretou o afundamento da casa como um aviso de Exu e procurou de novo a mãe de santo que queria fazer
seu Ogum, convencida de que sua ida à outra casa havia deixado o seu Exu insatisfeito. Esta então lhe disse que
Silvana teria que esperar um pouco até as coisas se acalmarem, para então ela poder jogar e ver o que queria
afinal o Exu de Silvana.
201
próprio Obaràyí (2009), é que seu Xangô não é um Xangô novo (apesar de ser da qualidade
mais jovem de Xangô, Aganju): é o Xangô de Mãe Aninha, a célebre mãe de santo do Ilê Axé
Opô Afonjá. Ele, que havia avisado que retornaria, veio para a sua cabeça, determinando a
reformulação de sua feitura. Mas, segundo ele, "por um bom motivo" (2009: 96).
outro assunto, um pouco mais polêmico: o do gênero de seus membros. Landes (1947), na sua
Bahia era um "matriarcado", e que os homens que nele se aventuravam eram, em sua maioria
(e, especialmente, no candomblé angola), homossexuais. "Se a Ruth Landes estivesse viva, eu
matava ela", me disse Adriano, primo de um dos cupins com quem convivi, num dia em que
estávamos em sua casa. Diante da minha expressão de surpresa, o dono da casa me explicou:
"Ele é de uma família de pais de santo muito importantes, todos do queto, nenhum
homossexual. O pai dele era pai de santo, o avô também. Na família dele, os homens é que
dominam o candomblé". Segundo o reclamante me explicou, ele pensa que Landes "queimou
o filme de todos os homens do candomblé, porque agora fica todo mundo achando que eles
são homossexuais — não que eu tenha nada contra homossexuais —, ou que não sabem de
Adriano provavelmente concordaria com Birman (1991), para quem "Em 1947, Ruth
Landes deu início a essa controvérsia que se estende até hoje. Sua hipótese fundamental é de
matriarcado." (1991: 48) Mas, além disso, Landes trouxe à tona uma distinção que parece
202
nortear tanto a análise de Birman (1985, 1991) quanto de Fry (1982), que distingue dois tipos
(1947: 320), "é esta classe [a dos homossexuais passivos] que hoje dá líderes aos cultos
Fry (1982) vai mais além, indicando que a grande presença de "bichas" no candomblé
é como "uma profecia que se cumpre" (1982: 74), já que a presença de homossexuais passivos
no candomblé é fruto da oportunidade de ascensão social que teriam nos cultos afro-
brasileiros. Birman (1985, 1991) corrobora essa visão e, a partir da posição passiva daquele
que recebe o santo, faz uma analogia entre essa entrega e a posição da mulher no ato sexual.
Além disso, segundo ela, haveria também uma analogia a ser feita entre o sexo do orixá da
pessoa e o seu gênero: se um homem é de Oxum, por exemplo, tem grandes chances de ser
"bicha"; o mesmo, no sentido oposto, ocorreria com uma mulher de Xangô — observação
semelhante à feita por Segato (1995) ao afirmar que, no Xangô do Recife, os orixás são
ampla". Além disso, a possessão funcionaria "como um peculiar operador da distinção entre
os gêneros" (Birman 1991: 45), resolvendo qualquer dificuldade quanto a uma possível
148
Distinção também apontada por Kulick (2008) em seu livro sobre as travestis de Salvador. Segundo ele, "a
morfologia diferencial da genitália permite explorar (e situar-se em) diferentes possibilidades de gênero."(2008:
204)
203
No Gantois, "não se faz santo mulher em cabeça de homem", como me explicou Mãe
Carmem. "Se um homem de Oxum chega aqui, a gente manda para fazer santo em outra Casa.
Ele pode vir aqui depois, a santa pode dançar, mas fazer o santo a gente não faz." Já nas
cabeças das mulheres podem ser feitos tanto orixás femininos quanto masculinos. Às
mulheres filhas de orixás femininos dá-se o título de aiyabás; às filhas de orixás masculinos,
doborôs.
Todo ano, no dia da Festa das Aiyabás, acontece no Gantois um ritual relacionado à
questão do gênero. Durante todo o dia da festa, as mulheres doborôs não podem usar
acessórios femininos, sob o risco de serem roubadas pelas aiyabás. Na primeira festa das
aiyabás que eu fui, logo na chegada encontrei com uma egbome de Oxumarê se lamentando
porque havia perdido seus brincos e suas pulseiras. Um pouco depois, outra, de Xangô,
perdeu seu colar. Logo mais, vi uma egbome de Oxóssi sendo perseguida por várias aiyabás
que queriam roubar sua saia, que era toda florida. Ela conseguiu correr porta afora do terreiro,
e lá comentou: "Esqueci do roubo e vim com essa saia toda bonita, hoje tem que vir de saia
lisa, masculina", e dirigiu-se ao seu quarto para trocar de saia. Mas foi por volta do meio-dia
que se deu a "brincadeira", como denominou uma filha de santo. Uma filha de Ogum estava
sentada numa cadeira e foi cercada por seis aiyabás, que lhe puseram uma roupa de Oxum:
uma saia amarela com uma grande laço cor de rosa, um laço branco na cabeça e um espelho
na mão. Ela ofereceu resistência, gritou por socorro, mas acabou cedendo. As aiyabás
acabaram de vesti-la e todos começaram a zombar dela: "Ai, mamãe!"; "Está bonita hein,
mamãe!" Não se passaram nem dois minutos e ela levantou a cabeça num tranco, dando um
grito com voz gutural: "Eu não sou mamãe, eu sou PAPAI!", e arrancou toda a roupa de
Oxum, rasgando o pano em sua cabeça. Era Ogum que havia chegado. No ano seguinte, vi
acontecer a mesma coisa, dessa vez com uma egbome de Oxóssi: vestiram-na toda de Oxum e
ela chegou até a dançar. Quando Oxóssi chegou, depois de alguns minutos, arrancou toda a
204
roupa e ficou durante duas horas andando para lá e para cá pelo terreiro, dando o seu ilá
(Quiu! Quiu!) muito alto, e encarando com ar de desafio quem ousasse se aproximar dele.
Ambas doborôs resistiram à "brincadeira", mas foram seus orixás que não permitiram
que elas fossem vestidas como um orixá feminino. Ainda que tenham sido trajadas quando
não estavam possuídas, o orixá não permite que se ponha nele a indumentária de um orixá de
outro sexo, como me explicaram. Das duas, uma é heterossexual e a outra, homossexual.
Perguntei a algumas filhas de santo se viam relação entre orixá e preferência sexual. "Acho
que não", elas me disseram. "Aqui tem homossexual de tudo que é santo", me disse outra.
"Homens e mulheres."
A analogia entre o papel de penetrado na possessão e na relação sexual pode até ser
válida, mas não julgo suficiente para explicar a presença numerosa de homossexuais no
muitos terreiros em proporção semelhante à masculina. E, por último mas não menos
importante, porque não é isso que dizemos filhos de santo que conheci quando abordam esse
tema. Segundo eles, é raro para um homossexual, seja feminino ou masculino, encontrar uma
religião que aceite a sua homossexualidade sem nenhum tipo de restrição. Segundo me
explicou um filho de santo do Gantois: "Dá a impressão que tem mais gay no candomblé, mas
isso é só porque aqui a gente é totalmente aceito. De que religião você pode ser se for gay? E
gay também precisa de religião, né, amor?" Ou, segundo me disse Fábio: "O mundo é gay,
Eu, porém, vivenciei uma situação que me parece contribuir para uma reflexão
149
No candomblé não há dogmas comportamentais; a influência sobre a vida cotidiana dos filhos de santo é
muito pequena. Não a influência dos orixás, claro, mas a influência de normas comportamentais ditadas pela
religião. O filho de santo é livre para levar sua vida da maneira que lhe parecer melhor. Há um alto grau de
aceitação da existência singularizada de cada um. Certa vez Mãe Carmem me disse, depois de uma situação de
traição por parte de uma filha de santo: "No candomblé não tem castigo. Só quem pode castigar é o orixá [com a
ximba]. A gente não pode fazer nada, só aceitar." Uma pessoa que estava presente falou que achava que a
traidora deveria ser expulsa. Mãe Carmen riu: "Expulsa? E você já viu candomblé expulsar alguém, minha
filha?"
205
posterior sobre o tema. No começo de 2011, fui a uma festa de Xangô na casa de Mãe
Senhora, mãe de santo feita no Gantois. Quando os santos entraram para serem vestidos, fui
até a rua com o filho de santo com quem tinha ido à festa. Andamos até um bar que ficava a
uns trinta metros do terreiro e sentamos numa mesa com outras pessoas que ele conhecia.150
Uma dessas pessoas se apresentou como um pai de santo, e me contou que um conhecido seu
havia feito santo com uma mãe de santo de Salvador. Era de Xangô. Depois de um tempo,
esse conhecido foi para a Europa onde, passados alguns anos, submeteu-se a uma cirurgia de
mudança de sexo. Anos depois da operação, decidiu, já mulher, voltar ao Brasil. Logo
procurou sua mãe de santo para a obrigação de sete anos de feitura. "A mãe de santo lhe disse
logo: 'Nada disso, meu filho. Aquele santo você fez homem. Agora você é mulher, é tudo
diferente. Nada daquilo vale mais.' E ele então teve que fazer tudo de novo, minha filha. E
nem era Xangô mais o santo dele, dessa vez ele fez Iansã", ele me contou.
também a troca do santo, que não só precisou ser refeito como ainda virou outro. Ou seja,
creio que a questão do gênero no candomblé pode ser mais interessante dissolvida na questão
Quando um abiã francamente homossexual do Gantois entrou para fazer santo, seus
amigos implicaram com ele: "A gente vai pedir para Mãe Carmem virar a sua folha lá
dentro!", ao que ele respondia, simulando pavor: "Não! Não! Eu não vou! Deus me livre sair
daí gostando de mulher!" Ainda que isso fosse uma brincadeira, feita em tom claramente
150
Foi este mesmo rapaz que me ensinou algo imprescindível: que, nas palavras dele, "candomblé se aprende
mesmo é tomando cerveja com as pessoas no intervalo das festas". Foi com ele também que aprendi que, logo
depois do xirê, quando os orixás entram para se vestir, é "a hora do bar". "Quando ouvir os fogos de artifício
[que anunciam a saída dos orixás vestidos], você volta", ele me explicou. Depois Fábio, para completar, me
ensinou que "Todo terreiro tem seu bar. Tem que comer uma água para aprender candomblé."
151
Birman (1985) afirma que esse era um ponto de discordância entre as pessoas do candomblé. Segundo ela,
alguns afirmavam que essa manipulação (a troca de orientação sexual) era possível, enquanto outras negavam
veementemente essa possibilidade. (1985: 8)
206
jocoso, penso que transparece nesse comentário uma crença na capacidade de manipulação da
pessoa capaz de afetar inclusive a sua orientação sexual — uma chave que me parece mais
Para encerrar, relato outro caso relativo a questões de gênero, mas diferente dos
anteriores. Marê é um filho de santo de Mãe Menininha que hoje em dia é pai de santo em
São Paulo. Um dia ele me contou sua história: quando ainda criança pequena, começou a
apresentar um problema de pele; sua pele inteira descamava, em grandes placas. Não havia
jeito de curar a doença, e quando ele fez cinco anos, já desenganado pelos médicos, sua mãe o
levou para ver Mãe Menininha. Segundo ele, Mãe Menininha nem precisou jogar: foi bater o
olho no menino e ver que ele era de Ewá, uma Ewá brava que queria ser feita. No entanto, ao
menos no Gantois, Ewá não pode ser feita em pessoas do sexo masculino. Mãe Menininha,
então, fez nele Oxumarê. "Oxumarê e Ewá têm enredo, né?", ele me explicou. "E Ewá
aceitou. A partir daí, fiquei bom. Nunca mais tive nada. Ela salvou a minha vida."
***
pessoa, esse modelo de ser e de estar no mundo, seria, ainda aqui, "enredo" — descrição que,
com seus múltiplos significados, pode dar conta de uma relação em que, como vimos, ser e
estar se confundem, em que ter algo é, em certa medida, ser parte de algo.
O enredo, portanto, é constituído por relações. Nessas relações, como vimos, a história
Dessa forma, como definir a pessoa formada a partir dessa concepção? Como descrever uma
207
pessoa cuja verdadeira essência, para usar uma expressão comum na nossa cultura, não vem
"de dentro", mas "de fora"? Ou ainda, melhor dizendo, precisa ser feita para lhe vir de fora?
Tendo em mente a pessoa formada por esses enredos, podemos refletir sobre a
maneira como as forças do mundo atuam sobre ela, sobre o modo de funcionamento de um
sistema de influências baseado nessa maneira de se relacionar com o que vem de fora para se
tornar parte da pessoa. E torna-se mais fácil entender, a partir disso, porque as pessoas do
208
Capítulo 5:
Logo que cheguei ao Gantois, me foi quase inevitável considerar o ethos local
"paranoico". Tudo que acontecia a alguém era sempre culpa de outrem — a questão básica era
identificar essa outra pessoa que lhe causara algum dano. Ao longo da minha pesquisa,
testemunhei muitos episódios de extrema desconfiança por parte dos filhos de santo do
Gantois. "A gente aqui é cismado", me disse uma filha de santo, a uma certa altura.152 Ora
desconfiavam que alguém estava roubando dinheiro, ora que estava mentindo, mas a suspeita
mais frequente era de que alguém estaria "fazendo feitiço" (algumas vezes contra o próprio
terreiro).153 O que mais me chamava a atenção era que essas acusações nunca tinham as
152
Em uma reportagem à revista Fatos e Fotos, em março de 1978, Mãe Menininha afirmou: "Eu sou
descendente de africano e africano, moço, é mais desconfiado do que índio. Eles quando são amigos, são de
verdade. Mas sempre ficam desconfiando."
153
Siqueira (2012) também se deparou com essa mesma questão em sua pesquisa de campo, no Baixo Sul
baiano. Segundo ela, "Para alguns autores, tais cismas, porque incessantes e cíclicas, configurariam uma relação
paranoica: 'o outro' seria alguém de quem se desconfia. No presente trabalho [a sua tese de doutorado], ao
contrário, deseja-se ressaltar o envolvimento de muitos 'outros', com quem se vivencia não só o temor, mas
também a sua superação. Pois, além de prover os humanos de atenção à mentira, aos perigos, à vontade, à
bondade, além de os dotar de uma agudeza ímpar de sentidos, este mundo da feitiçaria, com sua propensão para
a guerra, envolve uma quantidade imensa de seres, cuja proliferação aponta, ao contrário do que pareceria a
princípio, para a fugacidade." (2012: 184-185) Penso que a situação encontrada por Siqueira em muito se
assemelha a vivenciada por mim, o que pode ser comprovado também no seguinte trecho de sua tese, em que um
209
consequências a que eu estava acostumada: uma acusação contra a pessoa a quem, em
seguida, seria dada uma oportunidade de se defender, produzindo, na maioria das vezes, uma
ocorriam no terreiro não correspondiam ao que eu entendia como acusação e nem tinham o
desdobramento que eu imaginaria. As pessoas que conheci, em sua grande maioria, passavam
o tempo todo com medo de serem atacadas. Não que os filhos de santo com quem convivi
fossem medrosos, o que não poderia estar mais longe da realidade. As pessoas do candomblé
Mas havia, na grande maioria dos casos de suspeita, uma ausência total das provas
factuais, concretas que minha percepção legalista e quase jurídica achava necessárias. E, em
quase todos — para não dizer todos — havia o envolvimento de entidades sobrenaturais. Nos
ebós154, na busca de provas através do jogo de búzios, e nas resoluções. Em outras palavras: as
acusações envolviam sempre forças invisíveis. "Cuidado com a inveja"; "Ele fez um ebó para
mim"; ou até: "Você tem que fazer ebó periodicamente, para não ser atingido". E chamo
atenção para o termo usado: "atingido". Ele supõe que a pessoa deve estar sempre preparada
contra um ataque, uma vez que coisas boas despertam inveja e é natural que o desejo alheio se
volte contra quem as possui. As energias, tanto as boas quanto as más, como a inveja é
entendida, são parte integrante desse universo, tanto quanto as entidades sobrenaturais.
Circulam à nossa volta o tempo todo — e só olhos treinados, ou preparados de nascença para
vê-las, são capazes de perceber quando se aproximam de nós. Às vezes, um olhar já basta: "O
olho é o maior feitiço", me diziam. E contra o "olho" — a saber, contra a inveja — quase não
há solução possível. A inveja, segundo me disseram muitos filhos de santo, é a pior de todas
de seus interlocutores afirma que a sua cisma é uma maneira de precaução: "Como tantas outras pessoas que
encontrei na região, Mário não nega sua cisma. (...) É através dessa cisma ― uma cisma que vem também de sua
médium vidente ― que Mário se considera precavido." (2012: 184)
154
Ebó, segundo me explicaram, significa, literalmente, "oferenda". Portanto, um ebó pode ser feito tanto para o
bem quanto para o mal. Existem ebós de limpeza, ebós de purificação, ebós de cura ― ebós que geram benesses
― e ebós que visam causar malefícios.
210
as forças, pois atua tanto como um feitiço direto (já que o olhar invejoso de alguém já basta
como feitiço automático) quanto como grande motivação para a feitiçaria. E tudo desperta a
inveja: o marido, a roupa, o dinheiro, o amor, os bens materiais e imateriais. E contra a inveja
Se entendermos que a pessoa no candomblé é formada pelo que vem de fora, pelas
relações com o que lhe é a princípio exterior — familiares, entidades, sentimentos, elementos
da natureza — torna-se mais fácil compreender o complexo sistema de acusações que permeia
o candomblé baiano. Sistema em que a acusação básica, como não poderia deixar de ser, é a
de prática de feitiçaria (termo raramente usado. Usa-se mais "está fazendo ebó para me
prejudicar"; ou "está fazendo feitiço"; mas raramente se dá nome à prática). Na maioria das
vezes, a acusação não admite possibilidade de defesa. O julgamento costuma ser rápido ―
normalmente, pede-se que alguém olhe nos búzios e confirme ou negue a culpa do outro. E a
condenação é sumária. Raras vezes vi ser oferecida à pessoa acusada a chance de defesa. Uma
vez constatada a culpa, o culpado é afastado (muitas vezes sem nem tomar conhecimento do
que houve), um ebó é feito para neutralizar os efeitos do suposto feitiço e a vida segue em
frente.
Diversas vezes ouvi reprimendas pela minha "inocência". "Você não desconfia de
ninguém", me disse certa vez uma filha de santo. "Tudo você acha que pode ter sido culpa
sua. A culpa nunca deve ser sua não. Quando acontece alguma coisa com a gente, a gente não
tem que ficar pensando 'o que foi que eu fiz?'; isso é besteira. O que a gente tem que descobrir
é quem fez isso com a gente." Ou seja, no mundo do candomblé, a motivação dos
155
É curioso que Nina Rodrigues tenha se debruçado sobre a questão da paranoia na população negra em dois
artigos, publicados em 1903 em revistas de psiquiatria. Ele trata exclusivamente do sentido psicótico da paranoia
(como discutirei mais adiante) e seu objetivo é provar que a paranoia, tida como doença de brancos até então,
podia também aparecer na população negra, embora muitas vezes associada a questões de feitiçaria. (Nina
Rodrigues 1903a e 1903b)
211
acontecimentos geralmente também vem de fora. Assim como os orixás determinam nossas
ações, os eventos e as forças são recebidos e modulados de acordo com a preparação de quem
os recebe. Mas como entender um mundo composto por tantas forças, tantas delas invisíveis,
e descrever esse modo de vida em que devemos estar sempre preparados contra algum
ataque? Que noções podemos usar para compreender esse tipo de existência?
Certa vez, encontrei uma conhecida de São Paulo na festa de Oxóssi. Ela viera à festa
por ter visto um anúncio na programação turística da cidade e, como havia jogado búzios com
um pai de santo em São Paulo, sentira curiosidade de conhecer o Gantois. Quando a festa
acabou, já bem tarde, cumprimentei-a e conversamos por uns cinco minutos. Assim que ela
virou as costas, fui chamada por um filho de santo da casa. "Quem é aquela moça?", ele me
perguntou. "Uma cantora de São Paulo", respondi. "Você tem que ligar para ela agora", ele
me disse. Inquiri sobre os motivos, e ele então me explicou que a vira colocando um feitiço
atrás de um vaso de plantas do terreiro. Insisti que não era possível, ao que ele me respondeu:
Não liguei para a minha conhecida, o que gerou um grande mal-estar. Vieram outras
pessoas insistir para que eu ligasse, o que eu até poderia ter feito, se tivesse o telefone da
um ataque sempre pode vir de qualquer lado. Eles têm certeza de que viram a moça jogando
um saquinho fechado, e depois uma pemba branca, atrás de um vaso. Correram para jogar
água e lavar a pemba, mas não encontraram o saquinho. Quando eu disse que ela era de São
Paulo, fizeram uma conexão imediata com uma pessoa de lá, inimiga da Casa: "Ele poderia
ter mandado ela jogar aqui esse feitiço". Dedicaram-se durante um bom tempo a imaginar
conexões possíveis: "Pode ter sido aquele pai de santo, que tem ligação com aquela outra
casa, que um dia falou aquilo para aquela pessoa, que pode ter feito isso." Ao mesmo tempo,
em nenhum momento a minha argumentação — de que ela não teria motivo nenhum para
212
fazer aquilo, de que eu a conhecia, de que ela pertencia a um universo muito distante daquele
ocorrência de algum evento, procura-se antes de mais nada visualizar o mapa das relações das
envolvendo duas pessoas muito próximas. A pessoa traída, ao se deparar com a traição, reagiu
(especialmente os indivíduos com algum poder de interferir na realidade, como os pais e mães
de santo). Primeiramente, listou quem poderia ter informações sobre o caso; em seguida,
quais pessoas poderiam ter agido contra ou a favor do casal; depois, quem teria dito o quê
para quem. E em nenhum momento, ignorando as minhas muitas observações nesse sentido,
levou em conta o que as pessoas envolvidas poderiam estar sentindo, por exemplo. Importava
descobrir quem estaria por trás do ebó causador da traição. Enquanto, para mim, as
motivações para um fato dessa ordem deveriam vir de dentro (da esfera dos sentimentos,
quaisquer que fossem), para ela a motivação só podia ser externa. E essa sim poderia ser
E a análise que ela fazia é, na verdade, perfeitamente coerente com a noção de pessoa
tempo, uma pessoa espalhada156: expande-se horizontalmente, através das suas relações, e é
mapeando essas relações que alguém se capacita a entender a totalidade de algum evento que
lhe tenha ocorrido. Por isso, qualquer coisa que tenha feito ou que ainda faça parte de uma
pessoa envolvida nos acontecimentos — suas palavras, um prato com seus restos de comida,
suas roupas — é levada em conta nesse mapeamento e, muitas vezes, acaba fornecendo a
156
É notável a semelhança entre a noção de pessoa espalhada a que me refiro e a de "pessoa distribuída" tal
como definida por Alfred Gell (1998), especialmente na comparação entre a imagem da pessoa formada por suas
relações e o quadro The Network of Stoppages, de Duchamp, analisado por Gell. (1998: 246)
213
chave para a sua resolução. A lógica do feitiço, nesse sentido, é semelhante à lógica do
enredo; ou melhor, quando se conclui que a pessoa é formada por seus enredos, fatores
feitiço. Da mesma maneira que na imagem anterior (ver capítulo 4), as pessoas aparecem
representadas por quadrados (sendo que a vítima do feitiço está identificada com a letra E), e
214
voltava do Pelourinho num carro cheio de gente, inclusive uma pessoa bastante conhecida na
Bahia. Paramos num sinal fechado na Baixa do Sapateiro e um homem se aproximou, pedindo
dinheiro. Logo que chegou, reconheceu a pessoa sentada no banco do carona, a quem dirigiu
um cumprimento animado. A pessoa lhe deu dinheiro e encadearam uma conversa sobre as
homem, que até então conversava em tom alegre e acabava de conseguir uns trocados, mudou
de expressão. "O meu nome não dou não. O senhor vai me desculpar, mas o meu nome eu não
dou não, que eu sou cismado." "É só o primeiro nome, amigo", retrucou o passageiro do
carro, pensando que o outro poderia estar com medo da polícia ou coisa parecida. "Ah, mas
não dou não, o senhor me desculpe. Vai saber o que que podem fazer com o meu nome... Meu
Depois de voltar para o Rio de Janeiro e começar a redigir minha tese, percebi que a
noção de "paranoia", que eu continuava usando nas minhas reflexões dessa ordem sobre o
mundo do candomblé, parecia cada vez menos adequada para descrever aquela realidade.
Especialmente porque, nas vezes em que estive de volta em Salvador, já depois do fim da
pesquisa, abordei a questão com alguns filhos de santo que jamais concordaram com a minha
avaliação. "Não é paranoia não, minha filha", me disse Fábio Lima num desses encontros: "O
mundo é que é muito perigoso." Por que então, para mim, "paranoia" aparecia como o único
científico paranoea, significando "turvação dos sentidos", aplicando-se aos distúrbios mentais
informal para descrever tanto a sensação pessoal de sentir-se alvo de alguma perseguição, seja
ou não fantasiosa, como, de maneira mais vaga, uma atmosfera geral em que predominam a
215
suspeita e a desconfiança. Natural, assim, que a palavra me ocorresse para descrever a
texto de Charles Melman, discípulo de Lacan, para tentar situar o que, num sentido mais
estrito, se entende como paranoia, sem pretender nenhuma precisão psicanalítica — e, mais
do que isso, no intuito de melhor contrastá-la com o que creio que ocorre no candomblé.
Segundo Melman (2005), reconhecem-se hoje dois quadros clínicos relacionados à paranoia:
psicose, e outro mais relacionado à existência comum, como um traço constitutivo do sujeito:
outras pessoas nos tragam algum prejuízo. Nele, perde-se assim a interiorização do "outro"
(como definido por Lacan), fundamental na construção do sujeito; percebe-se do lado de fora
o que geralmente está dentro de cada um. Considerando que, na psicanálise lacaniana,
de um "eu", a paranoia pode ser considerada, assim, como uma visão externa desse "outro"
comporta essa alteridade externa, encoberta na existência cotidiana por um "véu" que garante
a existência plena do sujeito, aderido, assim, à ilusão de um "eu" absoluto e sob controle. A
paranoia, então, seria a suspensão desse véu, localizando a intenção malévola nesse "outro"
que nos é externo — não num grau extremo como no caso da psicose, em que ocorre a
separação absoluta entre o "eu" e o "outro", mas numa relação dialética e sutil. A patologia,
básica do sujeito.
216
Uma característica dessa teoria é de que não existe identidade pura, e sim um
composto. Mas considera-se também que esse "outro" seria um fenômeno do inconsciente,
lugar de onde emergem sentimentos e palavras cuja origem não se conhece. E é no sonho, no
ato falho, que esse "outro" se revela. O "eu", assim, seria uma ilusão — mas uma ilusão
necessária para a vida cotidiana. Ainda que sejamos regidos, na verdade, por esse "outro" que
nos habita, precisamos acreditar em nossa capacidade de reger a própria vida. Pois esse
"outro" que nos conduz é vazio, e somos nós os responsáveis pelas atitudes que tomamos
incorporar para poder viver livre de neuroses graves, o que fazer quando existe uma
dissociação entre estes dois "componentes da pessoa"? Pois se existe um outro que se
manifesta através de nós, e por cujas atitudes somos responsáveis, é de se esperar que
possamos levar a vida sem pensar nisso com tanta frequência. Para Melman, esse "outro" só
psicanálise. No resto do tempo, permaneceria encoberto pelo véu que assegura a ilusão de
personagem, embora não se possa vê-lo como uma unidade sólida e indissociável, dotado de
fronteiras bem definidas, o que poderíamos até aproximar da figura da pessoa composta do
candomblé. Mas a agência, nesse caso, é sempre da pessoa — do Eu, ainda que faça parte
Pois a situação que encontrei no candomblé não podia ser mais diferente. Em um
mundo "multiagencial", esse "outro" que, segundo Melman, governa o "eu", é, como já
vimos, um "outro" no sentido pleno do termo, sobre cujas atitudes não temos qualquer
controle.
217
A noção de paranoia, portanto, não faz sentido no mundo em que eu estava. O que ali
se via em jogo, na verdade, era uma gama de fatores que eu não estava acostumada a
capaz de dar conta dessa sensação, e que fizesse sentido no âmbito tanto de uma tese quanto
de uma conversa com um filho de santo? Afinal, para que serve um conceito? Pode-se utilizá-
lo fora de seu contexto? Quão amplo pode ser seu alcance, especialmente em universos
(literalmente) distintos? Era necessário, portanto, tratar as ideias das pessoas com quem
convivi sem alinhá-las a um termo pré-existente, inoperante naquele contexto. Qual seria,
Foi ao entrar em contato com as ideias do etnopsiquiatra Tobie Nathan que a questão
começou a se esclarecer para mim. Nathan (1995) identificou que, na psicoterapia ocidental
(que ele chama de "erudita"), "o homem está sozinho", enquanto, na psicoterapia que ele
"erudita" o terapeuta é o mestre do saber racional, na "selvagem" ele é o "mestre dos saberes
ocultos". Partindo dessa premissa, Nathan diferencia dois tipos de sociedade: a de universo
geralmente se deve à ação de alguma entidade não humana. O doente não é visto sozinho,
categoria grupal de pessoas com questões semelhantes às suas. O ato terapêutico não interroga
ato de criação: é ele que institui, torna palpável e ponderável a interface entre os universos,
218
pois somente ele tem acesso a esse mundo oculto (e desconhecido). Por isso mesmo, o
método é arriscado: ao contrário da psiquiatria ocidental, para a qual o médico está sempre
certo, o "terapeuta selvagem" se expõe a vários riscos cada diagnóstico que faz.157 Segundo
Nathan, porém, isso não representa um grande problema, pois a maior preocupação do saber
selvagem é com o tratamento, e não com a doença. Ou seja, se o paciente ficar curado, o caso
chama a atenção para o caráter de contágio presente nesses sistemas terapêuticos: cada
diagnóstico é discutido e passado adiante pelos pacientes e as pessoas que se relacionam com
eles, formando um quadro parecido com o que observei no caso do mapeamento horizontal de
Segundo Nathan, a medicina ocidental é feita para tratar pessoas "de universo único",
ou seja, que vivem em um mundo onde o caráter de agente se restringe apenas aos seres
humanos (e talvez alguns animais); já os terapeutas não ocidentais tratam pessoas que vivem
157
Nas palavras de Nathan: "Sendo invisíveis, eles são incognoscíveis por natureza. Desse modo, se o processo
terapêutico se revela ineficaz, isto não será nunca um sinal de incompetência do terapeuta, mas da vontade de
permanência das forças invisíveis. Assim, não existe nesse caso, stricto sensu, o erro terapêutico, somente as
tribulações do invisível... E pode ser isso que explica os longos percursos necessários para que se livrem das suas
doenças." (1995: 81)
158
Segundo Nathan, "Não se trata de discutir o grau de verdade da interpretação, mas observar a consequência de
sua aplicação." (1995: 65)
159
Ou seja, segundo Nathan a questão está na eficácia, e não na crença, da mesma maneira que com o
candomblé: "O que fazer então com a noção de 'crença'?, pergunta o seu suposto interlocutor. Abandoná-la,
responde ele sem delongas, e "substituí-la pelo seguinte postulado: toda ação culturalmente definida ― um
ritual, um sacrifício, uma oferenda, uma proteção... 1) é de fato o que pretende ser; 2) é geralmente eficaz para o
que concerne sua definição . (...) Portanto, essas ações prescindem de interpretação. Se aceitarmos esse
postulado, o trabalho do observador ficará ao mesmo tempo mais simples e mais fácil de entender (seria bom ver
o original, aqui...). Pois ele obrigará o observador a reconstituir o sistema de pensamento presente na origem da
ação culturalmente definida, mesmo que se trate de um pensamento não-analítico, um pensamento em atos...".
(1995: 51) Ele nos diz ainda que "A partir do momento em que abandonamos a noção de crença, somos também
obrigados a abandonar a noção de símbolo. (...) É a noção de símbolo que nos impede de considerar os
terapeutas 'não-eruditos' como autênticos pensadores técnicos." (1995: 53-54; sublinhados meus)
160
"Numa cultura não ocidental, um medicamento é um objeto ativo que permite crer, manter e depois perenizar
a disjunção entre o sintoma e a pessoa. Um medicamento é portanto um objeto que permite concretizar a teoria
que professa a natureza comum da desordem.(...) No nosso mundo, na psiquiatria, um medicamento é também
um objeto ativo que permite crer, manter e depois perenizar o contrário: dessa maneira, ele trata da junção entre
219
seu sintoma, e o processo de identificá-lo torna os dois inseparáveis (tendo como
doença, portanto, segue quatro etapas: "a aplicação deste princípio desencadeia sempre
1) a constatação do distúrbio;
grupos de pessoas assoladas pelo mesmo mal. Além disso, nesse sistema nenhuma doença é
pavor ("la frayeur"). Segundo ele, a etimologia da palavra "frayeur" apresenta uma
"bipolaridade semântica", pois significa ao mesmo tempo "invasão" e "extração" (2001: 201).
radicalmente dissociado do seu. Essa "captura" seria causada, nos países africanos, por surtos
o sintoma e a pessoa. Um comprimido de Largactyl é, desse modo, um medicamento, pois cumpre a teoria
segundo a qual a esquizofrenia se encontra no interior do sujeito. (...)" (Nathan 1995: 101)
161
"A consequência da aplicação de um pensamento selvagem para resolver uma desordem é sempre dissociar o
sintoma da pessoa. E, para chegar a este objetivo, todos os pensamentos selvagens que conheço recorrem a um
mesmo grande princípio: a atribuição de uma intencionalidade ao invisível." (Nathan 1995: 63; grifo meu)
220
última instância, por essa perda da identidade ocasionada pelo pavor. (2001: 202) Ou seja, um
medo sempre estaria dentro do sujeito, tornando-o, assim responsável pelo seu destino (2001:
211).162 Porém, para Nathan, a saída de Freud foi associar a angústia e o pavor, indicando que
a angústia seria uma espécie de preparação para que a pessoa não fosse capturada pelo
"horror", ou seja, uma proteção contra ele — tirando dessa maneira definitivamente o pavor
da teoria psicanalítica (2001: 214). Pois, segundo Nathan, "Admitir o pavor como afeto
central no funcionamento psíquico obrigaria a pensar que o outro nos invadia, nos
Embora Nathan não chegue a formular nesses termos, fica evidente que a saída
encontrada pela psicanálise freudiana (a opção pela angústia) e pela psiquiatria de Tourette (a
opção pela genética) é uma saída de "sociedades de universo único", e aplicável somente a
elas. Já as terapias "selvagens", segundo ele aponta, têm mais recursos para lidar com os
surtos de pavor, justamente pela sua capacidade de associar certos fenômenos à influência de
instrumentos mais eficazes para lidar diretamente com o pavor, já que são capazes de
um encontro traumático.
Nos termos de Nathan, os filhos de santo com quem convivi também habitam um
162
Segundo Nathan, "Assim Freud escapa, como Gilles de La Tourette, como os neurologistas modernos, do
segundo termo da etiologia do pavor, o da invasão. Resta porém a questão da interface que o trauma sempre
coloca — para a qual evidentemente não há escapatória — a inalienável questão do outro." (2001: 213).
221
"universo múltiplo". Não faz sentido, portanto, nesse tipo de situação, empregar o termo
único". Por isso o que eu dizia era sempre refutado: num universo múltiplo e perigoso, não
faz sentido o pressuposto de uma ameaça vinda de um "outro" que, na verdade, está contido
em cada um. A ameaça, como tudo o mais, vem de fora. Tendo em mente a ideia de pessoa
formada por fatores externos, de um mundo com relações mapeadas na horizontal, a noção de
"Ebó é preventivo", me explicou certa vez Fábio Lima. "Não precisa ter acontecido
nada para fazer ebó não. A gente tem que fazer ebó sempre!" Ele refutava a minha negativa
em fazer um ebó, já que eu achava que nada estava acontecendo. Segundo me explicou: "Tem
sempre alguma coisa acontecendo, minha filha". Suas palavras se assemelham ao que me
disse Pai Regi, de Sergipe, quando estive em seu terreiro: "O feitiço oferece mais perigo para
quem desconhece. E para quem sabe mas não faz nada para se proteger. Conhece o ditado? O
pior cego é aquele que não quer ver. Você tem que se proteger sempre. Isso não quer dizer
que alguém tenha feito um ebó para você. Basta que elas tenham inveja, e pronto, o mal já
está feito." 163 Durante toda a minha pesquisa, ouvi recomendações quanto à minha
desproteção. "Você fica circulando por aí", me disse uma filha de santo do Gantois, "e você
não é feita, pode pegar alguma coisa estranha." Perguntei a ela o que eu deveria fazer: "O
mínimo é tomar um banho quando chegar em casa". Eu não estava preparada: meu corpo não
tinha como filtrar as energias que poderiam entrar, não fora feito para aquele tipo de coisa,
163
Quando lhe contei que uma inundação tinha acontecido na minha casa, ele disse: "Ainda bem que está
entrando água! Para lavar tudo o que é ruim!"
222
como me diria ela. "Quando a gente é feito, tem proteção", me disse outro filho de santo.
Assim, qual seria o termo que eu poderia usar para descrever esse tipo de situação? A
noção de paranoia, como vimos, não corresponde em nada ao que dizem os filhos de santo.
Segundo eles, o mundo é de fato perigoso — e estamos sempre sujeitos a um ataque, direto ou
indireto. A noção de paranoia, da forma como eu a usava, podia ser definida como
"preocupação constante com o mal que alguém possa lhe fazer": o que corresponde à
realidade do mundo do candomblé, mas só até esse ponto. A semelhança não vai além porque,
no universo do candomblé, o mal que pode ser feito envolve outros fatores, que eu não levava
em consideração (já que na paranoia como entendida à luz dos estudos psicológicos
candomblé, a preocupação é palpável, concreta, referida a algo real. Penso que é preciso estar
familiarizado com os termos provenientes desse contexto particular para entender as sutilezas
Assim, parti em busca de um termo que pudesse exprimir esse sentimento, essa
primeiramente, em "cuidado": "é importante ter cuidado", ou "tomar cuidado", diziam sempre
quando se diz que alguém precisa assentar o santo, por exemplo, ou mesmo cumprir alguma
obrigação menor, o termo usado é sempre "cuidar". "Você está precisando cuidar deste ori",
me disse uma mãe de santo. "Você precisa assentar o santo para poder cuidar dele
direitinho", disse outra mãe de santo a uma pessoa que eu acompanhava. O termo cuidado,
"prestar cuidados". Depois ocorreu-me utilizar o termo "defesa", já que escutei muitas vezes
223
que eu deveria "me defender", tanto no sentido de garantir o que me seria devido em alguma
circunstância quanto no sentido de me proteger de algum ataque contra mim. Porém "defesa"
se refere tanto à defesa prévia quanto à reação a um ataque, o que não condiz com o termo
que eu procurava. Terminei por decidir que o melhor termo para substituir o que eu até então
descrevia como paranoia seria "prevenção". A ideia de prevenção sempre esteve muito
presente durante a minha pesquisa. Além da frase de Fábio que citei acima, ouvi muitas vezes
que era muito importante eu me prevenir: "Você tem que se prevenir, não pode ficar andando
por aí sem conta", foi uma das frases que escutei muito no início da pesquisa, antes de ganhar
Pignarre (2005) definiram o capitalismo como um sistema feiticeiro, que usa a descrença de
suas vítimas como arma.164 Todos corremos o risco de nos tornarmos subordinados ao sistema
capitalista, mesmo os que se julgam protegidos (por seu próprio pensamento crítico, por
que foram capturados (e tiveram a sua alma roubada) não têm consciência disso. Os autores
afirmam, portanto, que "(...) a questão de conhecer os riscos é crucial, pois é o que dá valor
se proteger, pois o perigo da captura está sempre presente. Aquele que se acredita seguro,
aquele que acredita não necessitar de proteção, torna-se uma vítima em potencial." (2005: 45)
de que algo não passaria de paranoia — enfraqueceria ainda mais o potencial de defesa da
164
"O próprio ato de nomear o capitalismo como feitiçaria transforma a relação com os 'outros' que supomos ser
supersticiosos. Pensar que ninguém precisa de proteção é o tipo de imprudência que, aos olhos dos 'outros'
notadamente supersticiosos, se parece muito com a ingenuidade mais perigosa: aos seus olhos, como
consequência disso, o desastre se torna perfeitamente previsível. O risco pragmático consiste em aceitar a
hipótese desse desastre, ou seja, transformar as questões de nossa vulnerabilidade e aprendizado nas precauções
necessárias, como um problema crucial." (Stengers & Pignarre 2005: 40)
224
vítima. Somos todos vulneráveis, eles nos dizem, e podemos ser capturados a qualquer
Muitas vezes, em Salvador, disseram-me que a pessoa precisava ter consciência dos perigos
para poder se proteger. "O pior cego é aquele que não quer ver", me diziam. "A pessoa mais
facilmente atingível é aquela que acha que não tem nada do que se proteger."
Penso, portanto, que o a noção de "paranoia" poderia ser substituída pelo conceito de
prevenção, mais coerente com a noção de pessoa do candomblé. Um dia, declarei a uma filha
de santo do Gantois que não me sentia ameaçada. "Você que não vê", ela me garantiu.
Quando reafirmei que raramente achava que alguém quisesse me fazer mal, ela riu tanto que
quase caiu da cadeira onde estava sentada. A pessoa prevenida está, portanto, sempre mais
candomblé.
"Bem-vinda ao nosso mundo", me disse Mãe Angela, a filha de Mãe Carmem e mãe
pequena do terreiro, quando lhe contei a série de sonhos que eu vinha tendo nos últimos dias.
"Agora você está começando a ver o mundo como a gente vê". Sonhos são maneiras de ter
acesso ao "outro mundo", ela me explicou. Podemos ver neles com clareza o que está lá, dar
uma espiada numa vida plena, o quadro completo que existe em outro plano da existência.
Mas também servem como meio, um caminho através do qual as entidades se comunicam
com os humanos. E também podem ser mensagens, que precisam ser decifradas com a ajuda
de especialistas, de preferência alguém que consiga acessar essa totalidade extraterrena por
225
Muito do candomblé vem através de sonhos: às vezes de maneira direta, às vezes de
maneira indireta. Entretanto, os sonhos nunca devem ser contados à noite, para não permitir
qualquer mistura ou confusão entre os dois mundos. Existe um paralelo evidente entre os
pares vigília e sono, dia e noite, vida e morte, domínios que nunca devem entrar em contato.
Reiterando o que já foi citado anteriormente, quando compareci a um axexê, comentei com
uma pessoa do candomblé que havia achado a festa bonita. "Bonita para eles", ela me disse,
enfatizando o para eles. "Para eles. Você nunca deve dizer que achou bonita uma festa que é
para os mortos. É bonita para eles. Você não quer ser confundida. Tome cuidado."
eles não nos tomem por quem não somos. Por exemplo, no terreiro, as mulheres sempre
devem usar saia. Logo que cheguei, a primeira providência de Mãe Carmem foi mandar fazer
uma saia para mim. Uma saia que pode ser vestida por cima da roupa, sempre pela cabeça,
nunca pelos pés. "O uniforme", como me diziam algumas filhas de santo do Gantois, em tom
de galhofa. Mas o motivo de sua utilização é sério: a saia é a única maneira de Exu saber
quem é homem e quem é mulher, explicou-me uma filha de santo. Por isso, dentro do terreiro,
as mulheres devem estar sempre de saia; não querem ser tomadas por homens, "uma energia
tão diferente".
Da mesma forma, é importante contar sempre os sonhos para a mãe de santo: é ela
do corpo físico, uma aparição. Por isso, logo depois de falar com Mãe Angela, e seguindo as
indicações dela, fui conversar com Mãe Carmem. Primeiro contei-lhe o meu primeiro sonho:
uma adolescente, toda vestida de preto, sentada na minha cama, me fitava com um olhar
profundo. Tive a nítida sensação de que ela estava mesmo presente, de que eu estava acordada
e não sonhando. "Você estava no entremundos", ela me explicou depois. Quando acordei,
achei que o sonho era um reflexo do quanto eu andava impressionada com as experiências
226
pelas quais vinha passando. Na noite seguinte, sonhei que caminhava com minha família pela
beira de uma represa e um enorme peixe tentava atacar um de meus familiares. Eu pegava um
remo que estava ao meu alcance e batia no peixe até matá-lo. Acordei com as costas e o braço
doídos, como se de fato tivesse travado uma luta corporal com alguém. Na terceira noite,
sonhei que várias crianças de branco aglomeravam-se no ar, bem em cima da minha cabeça,
novamente olhando para mim. Acordei aos gritos, na sala, com o braço roxo — tinha caído da
cama, fugindo daquela visão. Decidi então contar os meus sonhos para a mãe de santo, a fim
Ela ouviu o meu relato em silêncio, assentindo com a cabeça em alguns momentos.
Quando acabei de falar, ela me disse: "É, esses sonhos da menina e das crianças, esses me
preocupam. Você me dá licença, mas eu vou olhar [jogar os búzios] para ver o que eles
querem. Agora, este sonho do peixe, esse é psicanalítico. Você procure alguém que saiba
interpretar."
O que Mãe Carmem fez, em primeiro lugar, foi separar os universos: dois dos sonhos
pertenciam ao universo dos mortos, dos espíritos, do além; o outro, não. Em poucas palavras
ela estabeleceu a diferença entre os mundos: um vinha de fora, era o mundo sobre o qual ela
teria alguma ingerência, sobre o qual iria consultar os búzios, verificar se havia alguma
mensagem que pudesse decifrar; o outro vinha de dentro, do meu inconsciente. E para ela não
havia qualquer dúvida. Um desses universos remetia ao exterior, a forças externas — e estava
em seu domínio. Sobre os dois sonhos correspondentes ela podia me fornecer um diagnóstico
preciso: olhar nos búzios e descobrir de que tipo de entidade se tratava, se queriam alguma
coisa de mim, ou se vinham me transmitir algum recado. O outro não: este teria que ser
A diferença estabelecida por Mãe Carmem diz muito do universo do candomblé que
estamos tentando delinear neste trabalho: a pessoa no candomblé, como já foi dito, é formada
227
por forças, influências, relações que lhe são exteriores. Mãe Angela, ao me dar suas boas-
vindas, deu-me também uma primeira pista para entender o funcionamento deste mundo: um
realidade na qual eu estava acostumada a viver. É um universo em que a ação das forças pode
ser percebida e vista, e no qual existem instrumentos que permitem lidar com elas, modulá-las
e, de certa forma, controlá-las. Ao mesmo tempo em que, dentro deste universo, a pessoa
passa a ter consciência destas forças que nos assolam, adquire também instrumentos que lhe
assentamento, ou mesmo por meio do ato de dar comida a algum orixá, a pessoa pode
promover um ajuste, uma modulação de seus componentes, evitando que sejam atacados ou
caso, está ligado a essa capacidade de visão. Quem está dentro desse universo é, muitas vezes,
capaz de ver essas forças em ação, ao contrário de quem está fora. E, da mesma maneira que
ter enredo é fazer parte daquele universo de alguma maneira, também faz com que a pessoa
esteja sujeita à ação destas forças. Entretanto, como disse Fábio, "quando a gente sabe é fácil,
criança, por questões familiares, decidiram batizá-la em diversas religiões, e para isso
165
Jim Wafer (1991) fala da interação com os espíritos que conheceu durante sua estada na Bahia. Segundo ele,
cada vez mais vamos conhecendo as entidades e entendendo suas distintas personalidades, acompanhando suas
histórias e nos envolvendo com elas. Embora sua experiência de campo tenha sido muito distinta da minha, e
embora ele não use o termo "enredo", identifico em seu relato uma experiência de enredamento semelhante à
que eu tive.
228
chamaram um padre, um rabino, um monge budista e um pai de santo. Todos desejaram que a
criança tivesse uma vida cheia de amor e paz, até que chegou a vez do pai de santo, o último
celebrante. Ele abriu o seu discurso com a seguinte frase: "Desejo que esta criança esteja
sempre protegida do mal que alguém porventura queira lhe fazer". Até então, nenhum dos
celebrantes havia desejado à criança proteção contra o mal. Todos desejavam que ela tivesse
amor no coração e fizesse o bem, e cultivasse o amor dentro de si. Já o pai de santo deixou
claro que o importante era a prevenção, e que era isso que estava fazendo naquele momento.
do mundo.166 E são essas mesmas forças que, devidamente controladas, as formam. O "corpo
fechado", como vimos, faz referência antes de tudo a um corpo capacitado a filtrar o que deve
Os filhos de santo com quem convivi sempre me diziam que o candomblé parte da
aceitação da natureza humana com todos os seus meandros. Aceita a maldade como parte
constituinte do ser humano. Não há como querer catequizar o mundo. Ao contrário, deve-se
estar presente. E a pessoa não saber, ou fingir que não sabe, da presença da maldade é ainda
pior: o conhecimento da maldade é necessário para a defesa. Não é possível levar uma vida de
paz sem tomar as devidas precauções. Ou, como me disse Fábio repetidas vezes, quando
conversamos sobre esse assunto: "Todo mundo é bom, mas o meu capote sumiu".
Logo que cheguei ao Gantois, conheci uma filha de santo que achava muita graça de
eu me achar culpada por coisas que aconteciam comigo. "Parece que quando acontece alguma
coisa com você, a primeira coisa que você pensa é: 'o que foi que eu fiz?' Que nota! O que
você tem que saber é quem foi que fez isso pra você! Não dá para ser amigo de todo mundo
166
O que está, segundo me explicaram, no fundamento do resguardo. Como naquele momento o corpo ainda não
é capaz de fazer a filtragem dessas forças, antes é necessário que o que foi feito "se assente", para que a proteção
funcione.
229
não." Depois de algum tempo fui vítima de um mal-entendido, e tentei pensar de acordo com
essa lógica. "Isso aí!", me disse essa filha de santo. "Lá ela! Lá ela!", me disse, referindo-se à
outra pessoa envolvida no mal-entendido, querendo dizer que eu deveria mantê-la a uma
distância segura. "Lá ela!" ou "Lá ele!" são expressões muito usadas pelas pessoas do
candomblé, falando de alguém de quem preferem manter distância por acreditarem que essa
Juntamente com a aceitação do mal, e penso que até mesmo como seu complemento,
ativa é necessária perante a vida e os eventos que a compõem. A aceitação do mal, nesse caso,
não equivale de modo algum à aceitação das consequências que ele pode produzir: aceita-se a
existência do mal, mas luta-se bravamente contra os seus efeitos. E muitas vezes, no correr
Como já foi dito, ter enredo é ser parte de alguma coisa, e ter em si uma parte dela —
ou seja, estabelecer com ela uma comunhão de substâncias, cujo veículo em última instância
acredito ser o sangue (em sentido amplo). O enredo, porém, também pode engendrar um
processo de enredamento. E aqui surge o terceiro sentido do termo enredo: o enredo como
emaranhamento numa teia, ou numa trama. Nesse caso, tanto pode descrever a captura da
pessoa para o candomblé quanto sua captura através de algum feitiço. Relatarei, a seguir, dois
casos que exemplificam esses dois efeitos. No primeiro deles, o enredamento aparece como
uma captura pelo próprio sistema; no segundo, como uma captura através de um feitiço.
Nesse caso, opera-se uma passagem (à força) entre os dois mundos, o "mundo único" e o
"mundo múltiplo" de que fala Nathan (1995). Antes, porém, gostaria de fazer mais algumas
230
considerações sobre o tema.
do tipo "quem está dentro, fica dentro; quem está fora, fica fora." Para eles, assim, uma
simples aproximação (que, como vimos, denota a existência de um enredo) pode engendrar
um movimento do qual, mais adiante, não será fácil sair. Goldman (2012) considera que "os
centros de culto das religiões de matriz africana no Brasil poderiam perfeitamente ser
força única que, em suas cosmologias, constitui tudo o que existe e pode existir no universo"
(2012: 279). As pessoas, como quase tudo que existe no mundo, são modulações ―
espalhada horizontalmente por um território amplo, a pessoa torna-se facilmente enredável (se
já tiver algum enredo, claro). Da mesma forma, a captura através do uso de feitiços é uma
Com isso, quero assinalar que o processo de enredamento não tem, assim como o ebó,
uma índole que lhe seja inerente; ou seja, o enredamento não é necessariamente bom ou
necessariamente mau. Tudo depende dos elementos em jogo, da maneira como ele é feito, das
intenções de quem o faz — assim como o ebó. Durante o processo, o enredo pode aparecer
Houve um mês de agosto em que fui a muitos olubajés, cerimônias em homenagem a Omolu
em que é servida uma comida específica,168 que vem enrolada numa folha e deve ser comida
com as mãos. Perto do final do mês, tive uma crise de colite que me obrigou a procurar um
hospital. Assim que Fábio chegou para me ver deu o diagnóstico: "Você tem enredo com
167
Ver também Siqueira (2012), sobre a composição da pessoa pela captura em um sistema feiticeiro.
168
Feijão-preto, feijão-fradinho (ambos cozidos com dendê), galinha, farofa de dendê, abará e pipoca.
(Olu=aquele que; ba=aceita; jé=comer)
231
Omolu." Argumentei que achava que havia exagerado na comida, ou que devia ter comido
alguma coisa estragada (pois havia ido também a diversas festas de largo em homenagem a
São Lázaro), ao que ele argumentou: "De jeito nenhum. Isso é enredo com Omolu. Você
Coincidentemente, um dos olubajés a que eu havia ido foi o do terreiro de Pai Regi,
em Sergipe. Lá, ele havia jogado para mim e dito que não conseguia ver qual era meu orixá,
mas que quem respondia no jogo, dizendo que estava tomando conta de mim naquele
momento, era Omolu. Contei a Fábio, que considerou que isso confirmava o seu diagnóstico.
"E isso não é enredo, minha filha? Se ele está tomando conta de você, não é que você tem um
enredo com ele, você tem praticamente um romance todo com ele!", disse Fábio,
extrapolando outro sentido do termo "enredo". "Agora, toma cuidado, viu? E, principalmente,
não fica indo em festa de Omolu na casa dos outros não." O aviso de Fábio se referia à lógica
do processo de enredamento: se já ficara provado que eu tinha enredo com Omolu, qualquer
passo dado por mim na direção do santo poderia engendrar um processo de ligação do qual
Fui, durante a pesquisa, a diversas festas no terreiro de egum fundado por Mestre Didi,
o Ilê Axipá; primeiramente levada por Fábio (muitos membros do Ilê Axé Opô Afonjá têm
cargos no Axipá — o que não é o caso pessoal de Fábio, mas de muitos amigos que tem lá)169,
depois sozinha ou com outras pessoas. O Ilê Axipá é, por assim dizer, descendente do Ilê
Agboulá, terreiro de egum fundado no começo do século XX por Eduardo Daniel de Paula em
169
"Fábio não tem caminho de ojé", me explicou depois um dos ojés do Axipá. "Ele é de Xangô, o que já torna a
relação com os eguns difícil, mas nem é por isso não, porque tem vários ojés que são de Xangô. É uma coisa da
pessoa mesmo."
232
Amoreiras, Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica (cf. Elbein & Santos 1981, Braga 1992) — a
maior ilha da Baía de Todos os Santos, separada de Salvador por treze quilômetros de mar em
nacional (o Alapini, que era, nesse momento e até sua morte em 2013, o próprio Mestre Didi),
e sacerdotes que respondem pelo culto como um todo. Além disso, cada casa onde se cultua
baba egum tem o seu corpo dirigente, formado por ocupantes de cargos tanto religiosos
quanto laicos. O Ilê Axipá é um dos terreiros que sofreu as consequências de um longo
processo de especulação imobiliária que vem acontecendo em Salvador nas últimas décadas.
dunas de areia branca que antes se espalhavam por toda a área que vai de Itapuã até o
município vizinho de Lauro de Freitas. O que antes era uma vasta área quase vazia,
circundada por vegetação nativa e cortada por vários córregos, virou um espaço onde se
espalham, por um lado, conjuntos habitacionais de classe média e alta e, por outro, o Bairro
da Paz, comunidade de classe baixa cujos moradores, em sua maioria, trabalham nos
condomínios das redondezas. A rua pela qual se chega ao Axipá é asfaltada; logo depois da
entrada do terreiro, transforma-se numa rua de terra, com lixo acumulado nas calçadas, o que
deixa evidente a ausência de serviços básicos numa localidade onde o abastecimento de água
170
Sobre esse assunto, escreveu o antropólogo Julio Braga: "A população permanente de Ponta de Areia é
fundamentalmente constituída de descendentes de Eduardo Daniel de Paula, fundador do culto aos ancestrais, o
culto de babá egum, e de tantos quantos estão vinculados àquela família por um complexo sistema de parentesco,
seja por consanguinidade, afinidade, adoção ou compadrio. Acrescente-se, ainda, os que se associam a essa
família por laços de parentesco religioso, que se intercruzam com os de parentesco prevalecente, para garantir-
lhes quase o mesmo nível de aceitação no grupo familiar extenso. Ademais, o parentesco religioso desempenha
importante papel nas relações sociais, mantendo-se como força dinâmica geradora e restauradora de
determinadas tramas parentais, apenas identificáveis pela intermediação do culto à ancestralidade." (Braga 1992:
25)
233
Fábio e de um outro rapaz, filho de santo de outro terreiro. Quando chegamos, não havia
ninguém na porta. "Aqui não se entra desacompanhado", me disse Fábio. "Minha filha, você
não sabe o que te espera." Dali a alguns minutos dois homens apareceram. "Vieram pra
festa?" Fábio se identificou, então abriram o portão e nos deixaram entrar. Durante as
cerimônias, toda a parte externa à lona onde dançam os baba eguns fica no escuro. O caminho
seguia por uma estrada de pedras, mas não era possível distinguir mais nada além de sombras
ao nosso redor. De repente, Fábio deu um grito assustado: "cuidado com o aparacá!".
Encostamos numa parede e o aparacá passou correndo, seguido por vários homens com
varetas na mão, que gritavam palavras em iorubá. Assim que eles passaram, Fábio me puxou
em silêncio até o fim do caminho, que dava numa espécie de tenda circular, coberta por uma
reservado, enquanto os aparacás circulam soltos pela parte externa do terreiro. A música é
por vezes cantada, por vezes somente instrumental. Enquanto os baba eguns usam roupas
ricamente decoradas, que formam uma espécie de cabana em volta do que seria sua figura, e
a forma de um lençol esticado que lhes serve de vestimenta, correm descontroladamente pelo
terreiro, perseguindo um ou outro que se aventure na parte externa da lona. Os ojés revezam-
se entre a parte interna e a parte externa da lona. São somente eles que, com o atori na mão,
As danças dos baba eguns são lentas, compostas por movimentos amplos. Cada baba
egum (nessa primeira festa a que eu fui, apresentaram-se oito) é representante de um membro
171
Diz-se que os baba eguns não incorporam, eles se materializam. Mônica Millet, a filha de Mãe Cleusa, me
contou que, na ocasião do axexê de sua mãe (que "tinha enredo com egum"), ela pôde entrar no lugar reservado
onde só entram os ojés. Lá, segundo ela, viu um egum se materializar: "Tinha o pano em cima de uma cadeira.
Aí, de repente, o pano começou a encher. Começou de baixo: apareceu uma perna, depois outra... Aí o tronco...
Depois os braços, e por último a cabeça."
234
antigo da família Daniel de Paula, e cada um é de um orixá, o dono da cabeça da pessoa viva.
A roupa do egum reflete a cor do orixá da pessoa que deu origem ao egum: há um baba de
roupa vermelha (de Xangô), o de branco (de Oxalá), o de azul (de Oxóssi). Cada um tem um
Entramos na tenda e nos separamos: Fábio e o rapaz que nos acompanhava foram se
sentar no lado dos homens. Havia umas cinco fileiras compostas por cadeiras e bancos, postas
uma atrás das outras com um espaço no meio que formava um corredor. Era por esse corredor
que passavam os baba eguns quando queriam chegar perto da porta. Mas eles nunca saíam: o
lado de fora é o domínio dos aparacás. Do lado de dentro havia um baba egum que
dançava.172 Nos intervalos da dança, chamava alguém da plateia. "Estou aqui, babá", ao que
ele respondia com palavras em iorubá; "a bênção, meu pai", "a bênção, babá", lhe diziam os
que haviam sido chamados. E ele então voltava a dançar, e durante a dança mexia a sua roupa
para a frente, espalhando axé para a plateia, que mexia os braços como para recolher aquele
fluido e banhar-se com ele. De vez em quando, o baba egum se aproximava de onde eu estava
sentada. Fábio havia me avisado que não encostasse em nada dos baba eguns: um mero toque
em sua roupa poderia causar muitos problemas. A festa transcorria normalmente: os baba
de cima do lençol que os cobre. Com ela, batem nos ojés que tentam controlá-los. Mais de
uma vez um aparacá tentou entrar na parte coberta, debaixo da lona. Num desses momentos,
o baba egum que estava dançando saiu correndo em sua direção, dando a impressão de uma
briga iminente. Os ojés todos correram para separá-los, e impedir ao mesmo tempo que
172
Os baba eguns, espíritos homenageados nas festas e celebrações do Axipá, são antepassados das famílias
fundadoras do terreiro. Segundo Elbein & Santos, os baba eguns "representam linhagens familiares, dinastias,
protetores de determinadas cidades e regiões e, com funções especiais, diferentes aspectos da morte". (1981:
156)
235
Numa certa altura, depois de algumas horas de festa, o rapaz que fora conosco à festa
quis ir ao banheiro. Para chegar lá, ele teria que atravessar um corredor de uns dois metros
pela parte exterior do barracão, para chegar à casa onde ficam o banheiro, a cozinha e um
salão interno do terreiro. Na sua primeira tentativa de atravessar, ele foi seguro por um ojé:
"Agora não", ele lhe disse. Ele então voltou para o seu lugar e depois de uns dez minutos o
ojé o chamou: "Agora pode ir". Ele então atravessou para a casa. Alguns minutos se
passaram. De onde eu estava sentada, vi o exato momento em que ele abriu a porta da casa —
e vi também quando o aparacá apareceu. O rapaz conseguiu fechar a porta, e mais alguns
minutos se passaram. Ele então abriu uma fresta da porta e olhou em volta. Não havia sinal do
aparacá, e ele abriu a porta aos poucos, com toda a cautela. Quando a porta estava totalmente
aberta e ele se preparava para dar um passo para fora, um aparacá todo preto surgiu correndo
e pulou sobre ele, que deu um salto para trás tentando escapar do aparacá que — como
soubemos depois — estava na verdade em busca de outra pessoa, um rapaz que se preparava
para se iniciar como ojé e devido às provações desse processo de iniciação se havia escondido
no interior da casa.173 O rapaz aproveitou a distração do aparacá com ele e conseguiu fugir,
Quando a festa acabou, um dos ojés do terreiro chamou-o num canto e lhe fez uma
você sentir qualquer coisa, tiver qualquer sonho estranho, ou mesmo se você ficar se sentindo
diferente, entra em contato com a gente." Quando estávamos voltando, no carro, Fábio virou-
se para ele e falou: "Meu filho, não estou querendo falar nada não, mas acho que você tem
173
A iniciação de ojé, como pude constatar depois, inclui muitas surras, dadas tanto pelos aparacás quanto pelos
baba eguns. Na vez seguinte em que fui ao terreiro, para resolver o problema do rapaz atingido pelo aparacá, vi
esse noviço correndo nu (pois estava no meio de um banho) sendo perseguido por um baba egum que lhe
aplicava uma surra com o atori. Durante a noite, vários baba eguns se juntaram para bater nele também, até que
a Iansã de uma moça da platéia chegou e expulsou-os todos.
236
algum enredo aí com esse povo."
Naquela mesma noite, o rapaz sonhou que uma mariposa pousava no seu pescoço. Ele
sentia a presença dela e, quando ia espantá-la, ela lhe dava uma mordida. Quando acordou,
sentia muita dor no pescoço, como se tivesse sido de fato picado por algum bicho. Ligou para
o ojé e contou-lhe o sonho. O ojé então lhe disse: "Uma mariposa, né? Então a gente se
encontra lá no Axipá no sábado, às oito da manhã, tá bom? Vai ter um ossé174 de manhã,
depois vocês passam o dia lá, de noite tem festa, aí vamos ver o que o baba quer contigo." No
sábado de manhã, portanto, rumamos novamente para o Axipá. Chegando lá, o ojé disse ao
rapaz que ele precisava fazer uma oferta — seis acaçás175 amassados com um pouco de água
numa tigela de louça branca, cobertos com mel — em cima da qual deveria ser colocado um
obi,176 uma cédula de dinheiro e um bilhete contendo o seu nome e uma pequena mensagem
— para o baba egum de sua preferência. Quando o rapaz acabou de ajeitar a sua oferenda, o
ojé virou-se para ele e falou: "O baba quer te dar um presente. Ele na verdade fez aquilo para
A festa começou no início da noite. Quando o baba egum de Oxalá entrou, vi um ojé
chamando o nosso acompanhante, quese levantou e andou até onde o baba estava. "Ajoelha e
não olha para ele", lhe disse o ojé. O rapaz se ajoelhou e manteve a cabeça baixa enquanto o
baba egum falava com sua voz gutural. Quando parava, o ojé traduzia. Depois Fábio me
explicou que os eguns falam iorubá, "mas um iorubá arcaico, que não é mais falado, que só os
ojés entendem". Depois de uns cinco minutos de conversa, o baba egum deu uma volta sobre
si mesmo. Logo depois, o rapaz retornou ao seu lugar. E me contou mais tarde que o diálogo
174
Ossé é o oferecimento de comida ao orixá ou egum.
175
Acaçá, na definição de Cacciatore (1977), é "(...) uma pasta de farinha de arroz ou de milho, com água e sal,
cozida em ponto de gelatina, envolta, ainda quente, em porções grandes, em folhas verdes de bananeira. É
servido com vatapá ou caruru (ou puro, para os orixás). de tamanho menor, de farinha de arroz, leite de coco e
açúcar, em ponto de gelatina trêmula, é chamado acaçá de leite." (1977: 36)
176
Noz de cola. Pode ser oferecida às entidades ou usada na adivinhação.
237
foi o seguinte:
Baba egum: "Obrigado pelo presente. Eu recebi o que você me deu. Muitas bênçãos
para você e para a sua família. Levante a cabeça. Olhe para mim. Você me acha bonito?" Ao
que o rapaz respondeu: "Sim, você é muito bonito". O baba egum então jogou axé em sua
Antes de irmos embora, o mesmo ojé que falara conosco depois da primeira festa nos
chamou para conversar sobre o nosso acompanhante: "Se vocês notarem qualquer coisa, se
ele ficar estranho, vocês me ligam, tá?" Explicou então que achava que a oferenda daquela
noite seria suficiente, mas que às vezes o baba egum poderia querer falar mais alguma coisa.
sair no Afoxé Pai Burukô, o bloco só de homens do terreiro. Durante um momento do desfile,
foi chamado num canto por um ojé — não o mesmo das recomendações — que lhe disse: "Da
próxima vez que você for no Axipá, vão lhe dar um cargo."
Ele, que já era feito em outro terreiro (cuja mãe de santo não via com bons olhos
aquela relação com o culto aos eguns), nunca mais voltou ao Axipá — e, a partir de então,
passou a andar sempre com um contra-egum177 que a sua mãe de santo lhe deu, amarrado em
seu pulso.
***
O enredo, nesse caso, deu início a um processo de captura: ao ser tocado pelo aparacá
(ou seja, entrar em relação com ele), o rapaz foi, como ele próprio me disse, "contaminado".
Entretanto, só é enredado quem já tem enredo. A ligação, portanto, já existe, ainda que de
forma amenizada, ou não ativada. Da mesma maneira que a feitura atualiza algo que já está
177
Na definição de Cacciatore, "trança de palha da costa que os iniciandos levam amarrada aos dois braços, bem
apertada, abaixo do ombro. (...) [Tem a] finalidade de afastar os espíritos dos mortos." (1977: 93)
238
presente na pessoa, ainda que virtualmente, o enredamento só acontece com quem tem, ainda
Ou seja, o rapaz certamente já haveria de ter, em algum lugar de si, uma relação — a
ser revelada — com aquele culto dos eguns. Mas a partir do momento em que entrou em
contato com o aparacá, um pedaço deste instalou-se nele, e manifestou-se através da dor em
seu pescoço, atribuída por ele à picada da mariposa (animal tradicionalmente associado aos
eguns) que viera vê-lo em sonho. Depois disso, levou um presente para um baba egum, que
então o chamou para o meio do barracão e lhe perguntou se ele havia gostado de sua
aparência. Depois disso, a relação estava estabelecida, embora o rapaz ainda não tivesse
consciência disso. Em outra ocasião, quando voltamos ao Axipá, antes do desfile do bloco,
percebi que ele era tratado de maneira muito cordial pelos outros ojés.
sempre dormem no terreiro antes do desfile de todos os baba eguns, que começa às quatro da
manhã e é a única oportunidade em que aparecem alguns baba eguns especiais, como o de
uma criança, que mede menos de um metro e tem uma roupa feita de pano bege que arrasta
atrás de si. Assim que cheguei, todos me perguntaram por ele, que nesse dia não pôde ir. Ali
já se desenhava o seu enredo, que ele só viria a descobrir depois. Tudo isso, porém, só
aconteceu, segundo o ojé, porque o babá egum queria lhe dar um presente, talvez as bênçãos
Já no outro caso, a captura se deu de maneira bem mais complicada: a vítima, nesse
239
5.8: A francesa enfeitiçada
acompanhando seu namorado em uma exposição de fotografias que ele havia feito do trabalho
de Frans Krajcberg, o escultor polonês que se naturalizou brasileiro e mora no Sul da Bahia.
Uma conhecida do Rio me ligou perguntando se eu poderia levá-la, com urgência, para
consultar uma mãe de santo, pois ela julgava ter sido enfeitiçada — embora a pessoa que me
ligou fizesse questão de dizer que achava aquilo tudo "uma maluquice".
Fui encontrá-la e, quando a vi, levei um choque: Marie, aos 37 anos de idade, tinha o
cabelo todo branco e, muito magra, aparentava uma fragilidade extrema. Levei-a a um terreiro
cuja mãe de santo é filha de santo do Gantois pois, como estávamos no fim da Quaresma, eu
sabia que seria difícil encontrar alguém disponível para atendê-la. Nesse caso, eu sabia que a
mãe de santo morava no próprio terreiro e que, mesmo se não pudesse jogar os búzios e nem
fazer qualquer tipo de trabalho, poderia ao menos nos receber. No caminho, Marie me contou
como havia perdido dez quilos e ficado com a cabeça branca em uma semana, após o seu
primeiro "ataque". De uma hora para outra começara a sentir-se muito mal, com a sensação de
que alguma coisa a atravessava. Procurou então um hospital de Paris. Lá ficou internada
durante uma semana (ao longo da qual seu cabelo embranqueceu e ela perdeu muito peso),
submetida a inúmeros exames (entre eles uma tomografia, uma endoscopia e uma
ecocardiografia). Os médicos, porém, não encontraram nela nenhuma doença. Sem saber o
que fazer, mandaram-na para casa, onde ela morava com o namorado. Ela então chamou seu
acupunturista, um indiano, para uma sessão em sua casa. E ele, assim que a viu, deu o
O relato do caso de Marie é feito com base não só no que eu vivi, acompanhando-a e
servindo-lhe de intérprete, mas também em uma entrevista gravada que fiz com ela numa
240
visita posterior sua ao Rio de Janeiro, em 2013. Entrevistei Marie da mesma maneira que fiz
com as pessoas do candomblé, fazendo poucas perguntas, basicamente deixando-a contar sua
história. Usarei, portanto, a mesma estrutura das outras narrativas na descrição de seu relato,
Eu não sabia, mas esse indiano me disse: "No caso de um feitiço, a primeira coisa é
que ele é invisível aos olhos da medicina. É o mais importante, a única forma de fazer
mal a alguém sem que haja remédio". A segunda coisa que ele me disse foi "você
sente como uma estaca no meio do ventre?" Respondi que sim, então ele teve certeza:
"É isso, os médicos não veem nada, você está com uma espécie de estaca no ventre e
eles não enxergam nada, mesmo com uma câmera, mesmo com todos os exames". Aí
ele entrou em contato com o mestre dele, na Índia, que fez uma espécie de mapa
astrológico e confirmou: "é um feitiço de morte, não é um feitiço de doença; esse
feitiço é muito raro, pouquíssimas pessoas sabem fazer no mundo todo...". Então
Ousman, esse indiano, me disse: "Precisamos encontrar o feitiço."
da cama, lá estava:
Estava na cama, entre o estrado e o colchão... Ele levantou o colchão do meu lado, e
exatamente no lugar onde eu dormia achou uma echarpe de seda branca, meio chinesa,
dobrada ao meio, formando um oito, mais ou menos no tamanho de um corpo
humano; em cima da echarpe em forma de oito, havia sementes e umas placas com
números. Do outro lado, onde dormia o meu namorado, a mesma coisa, mas a parte de
baixo do oito tinha a base aberta.
Marie e Ousman, então, achando que tinham encontrado o feitiço, partiram para livrar-
se dele, como o mestre de Ousman havia indicado: fizeram uma fogueira no quintal e nela
queimaram não somente os objetos que estavam embaixo do lado dela da cama como diversos
Então tudo que conseguimos encontrar nós queimamos, com exceção de algumas
coisas que não podíamos queimar porque estávamos em Paris, onde você não pode
queimar o que quiser, não era no campo, e além disso não conhecíamos os rituais de
241
purificação. Depois Ousman disse: "Preciso ir à Índia imediatamente. É muito grave,
preciso ir para confirmar tudo, se acontecer alguma coisa com você eu não vou me
perdoar nunca por não ter ajudado, porque a gente sabe do que se trata". No dia
seguinte ele partiu para Índia ver seu guru, explicou tudo, e depois me disse: "Ainda
ficaram outras coisas no apartamento, sem dúvida, você precisa vir à Índia para ser
purificada e tudo mais. Não vai ficar boa assim, a coisa é muito grave", e me disse que
o feitiço era do Caribe ou da América do Sul.
Mas Marie, embora estivesse sofrendo tanto, ainda não acreditava plenamente que
tudo isso pudesse estar acontecendo por causa de um feitiço. Ateia, assim como toda sua
família, achava difícil render-se às evidências que Ousman lhe apresentava. Assim, não foi
para a Índia, como recomendou Ousman, e continuou a ter crises (sentindo uma estaca fincada
no coração). Mas cedeu aos apelos de Ousman para ver um médico francês, de origem
"Não, ele é médico, vai achar que eu sou louca, eu não quero!" Eu tinha medo disso,
de contar tudo, sabe? E um dia eu fui vê-lo, mas comecei falando dos meus problemas
de saúde, quando de repente ele me interrompeu e disse: "Mas escuta, não estou
entendendo nada. Você veio me ver por causa dessa sua doença, mas tem alguma
outra coisa, não é? Qual é o problema?" Então tomei coragem e expliquei um pouco,
que os médicos não tinham descoberto o que eu tinha, e o que Ousman tinha me
falado, e ele me disse: "Escute, preciso lhe contar uma coisa: eu exorcizo pessoas em
Paris o tempo todo, é minha segunda profissão." Eu disse, "O quê??" O cara é médico,
com diploma da faculdade de medicina de Paris, e faz exorcismo? E ele disse, "E você
está precisando, viu? Isso que você tem é monstruoso, muito grave mesmo". E ele tem
um método, sabe, para calcular a quantidade de entidades maléficas. E começou, mas
nem conseguiu terminar, porque eram tipo milhões, centenas de milhões. E ele disse
"Você está completamente tomada. Não dá para limpar tudo." Então pensei que estava
realmente ficando louca: "É isso, me internem, estou ficando maluca, só pode ser". Ele
me pediu calma e disse que podia limpar meu apartamento. "Faço isso o tempo todo,
você não tem ideia de quanta gente sofre esse tipo de malefício em Paris." Então ele
veio à minha casa, muito diferente do médico que eu tinha visto no consultório.
Chegou, num domingo — para não ser visto ― com várias medalhas, da Virgem, do
Cristo, presas na roupa. Ele chegou assim e logo na entrada já disse: "Tirem isso tudo,
a começar pelo capacho." E então ele nos fez retirar muitas coisas, algumas delas de
242
alguma importância. Havia também coisas que não podíamos queimar, então não
queimamos: o resto nós queimamos. E quando chegou ao quarto ele disse, "Oh, mas
aqui está terrível", e nem conseguia entrar, ficou parado assim, na porta, parecia
paralisado. Aí o médico começou um combate dentro do quarto, com as medalhas da
Virgem e tudo o mais, como um exorcista. Uma batalha que durou muito tempo,
horas. Depois ele disse, "Agora precisamos trocar o mal pelo bem, porque a regra é
que o mal deixado aqui não pode ser devolvido para a pessoa que deixou. Então vou
substituir todo o mal por anjos." E ficou lá mais quinze minutos. E depois me disse,
"Há trinta anos que eu faço isso, e o que eu vi aqui é inacreditável! Nunca levei tanto
tempo num combate. Foi difícil, muito difícil. Mas espero que funcione. De todo
modo, você está protegida até certo ponto". Então, pediu ao meu namorado que lhe
mostrasse fotos das suas ex-mulheres, as que eu considerava suspeitas de terem feito o
feitiço. Ele a princípio recusou, mas eu insisti e ele mostrou fotos de três mulheres.
Então perguntei ao médico: "Qual das três foi a responsável?", e ele me disse: "Não,
não vou contar! O que vocês vão fazer com ela depois? Se depois vocês acabarem
com ela, será minha responsabilidade, preciso atentar para essas coisas." Porque na
verdade, no feitiço, as pessoas que depositam, ou que executam a bruxaria, ficam
protegidas como parte do próprio feitiço. Então, na verdade, mesmo quando você
descobre o feitiço, não consegue saber quem fez, porque não aparece, fica invisível,
no interior do feitiço, a invisibilidade faz parte do feitiço, você entende? E é muito
difícil descobrir, mesmo para as pessoas mais experientes. É preciso reconstituir as
coisas até descobrir quem fez. Eu acho que ele não queria se responsabilizar por uma
acusação tão grave quando ele poderia não ter certeza absoluta.
Foi depois disso que conheci Marie, em abril de 2011. Ela ia embora na terça-feira
feira depois da Páscoa para ela jogar os búzios. E o diagnóstico da mãe de santo foi
semelhante ao do mestre de Ousman: aquele feitiço era de morte, muito poderoso. O único
tratamento seria ela assentar o santo, a partir do que a mãe de santo poderia manipular seu
Porém, para Marie, assentar o santo era impensável: "Ficar uma semana ali, dormindo
no chão? Mas eu nem acredito em nada disso! Ah non", dizia ela. A mãe de santo, então, fez
apenas um ebó de limpeza e avisou a Marie que seu efeito só duraria cerca de seis meses;
243
depois desse período, seus ataques voltariam. Dito e feito: seis meses depois, Marie foi
novamente internada, e mais uma vez os médicos não conseguiram descobrir o que tinha.
Decidiu então submeter-se ao ritual de assentamento. Passou uma semana inteira recolhida e,
segundo a mãe de santo me explicou, teve que fazer dois assentamentos: um de Iemanjá (o
seu orixá) e outro de Omolu (para ajudar no controle da doença). Depois disso, voltou para a
Eu sei que a minha percepção das coisas mudou mesmo nos dias em que fiquei
recolhida no terreiro. Porque aí eu vivi, concretamente, tudo o que aquilo significa. De
uma maneira abstrata, a gente vê a festa, gente em transe, tudo muito impressionante,
mas bom, ok, tem a música, coisas acontecem, você sente a energia, mas ainda dá para
achar que é tudo forçado. Mas ficar fechada nesses quartinhos com tudo que acontece
em volta, aí você entra em contato. Antes você observa, participa mas continua sendo
uma coisa intelectual. Mas ali não, é como se você antes não acreditasse no mar e
então te largassem num barco. E de repente você é obrigada a se virar sozinha ali
dentro. E lá a coisa é concreta, mais do que concreta. Porque quando você diz que o
candomblé é uma religião, pensa intelectualmente na crença, na fé, em alguma coisa
que a gente não vê mas supõe. Mas lá é concreto assim, não que não haja nenhuma
dúvida, que não haja lugar para dúvida... Mas é como uma forma de fenomenologia,
de interação, que você vive diretamente e em que, de repente, entra como objeto. E aí
você vive a coisa. Eu sou uma pessoa cheia de dúvidas mas ali não há lugar para a
reflexão, reflexão racional — "eu paro, eu analiso, eu examino". Para a dúvida
também não sobra lugar, é como se te revelassem como é a estrutura do mundo. E não
é o que diz a sua cultura, nada do que as ciências ensinam — e percebemos essa
relação, mais do que a racionalidade, é como entender de repente a estrutura do
cosmos quando nós, os homens, ainda temos tanta dificuldade para sair da nossa
órbita.
Marie operou, de maneira forçada e abrupta, uma passagem do "universo único" para
o "universo múltiplo". Segundo ela me disse, agora vê o mundo com outros olhos, "e não
consigo entender como as pessoas não veem". Ou seja, Marie está, agora, apta a ver os
perigos (e a prevenir-se deles), que não podem mais atingi-la. Mas essa mudança de visão
244
No ano passado, a Fundação Cartier, em Paris, fez uma exposição da coleção de
estátuas vudu de Jacques Kerchache, um colecionador de arte africana que dos anos
sessenta aos anos oitenta, durante uns vinte anos, ia à África, na casa dos feiticeiros, e
comprava estátuas e assim constituiu uma coleção etnográfica excepcional de
estatuetas vudu. Aí eu fui ver essa exposição. Quando eu entrei na sala... aaaaahhhh!
Aquilo me tocou de um jeito, uma coisa de louco! Eu disse "Mas que loucura, eles não
se dão conta do poder dessas estatuetas!" Porque elas estão ativas, né? Eu me senti
muito mal, ainda tremo muito quando sinto essas coisas, não sei como explicar direito.
E na verdade então eu vi essas estatuetas, com estacas enfiadas bem aqui... e agulhas!
Aí eu disse: "Igual ao meu caso!" Algumas das estatuetas tinham pedras, coisas assim.
Quer dizer, várias eram assim, com estacas e pedras, e eu pensei: "Mas é arte, não tem
nada demais". Só que eu vi a coisa... Aí eu fui passear entre as vitrines e pensei "É
uma loucura! Eles são doidos, assim as pessoas vão ficar doentes." Claro que não é
nada dirigido contra eles, mas é uma energia má, é uma energia muito má. Imagina,
você faz um malefício contra alguém e uma pessoa compra o seu feitiço. E depois
você junta essas coisas todas num mesmo recinto ― é uma loucura. Eu entrei lá e
pensei "Não, eles não entenderam nada!" Porque mostravam a exposição como se
fossem obras de arte! E enquanto isso o outro, no primeiro andar, explicava num
documentário que, bem, assistiu aos ritos, uma vez, viu que aquilo tinha um efeito
direto sobre as pessoas... E todo mundo lá, sabe, em Paris, tomando café e vendo
isso... Ninguém entende nada! Mas na verdade, como tinha uma sequência de vídeos,
a gente via o Jacques Kerchache no início — porque ele já morreu, é claro ― e pouco
a pouco, ele vai ficando magro, muito doente, e acaba morrendo de uma longa doença
atroz. Ele nem conseguia mais falar, teve um negócio na garganta, entende? Aí eu
pensei: "Mas olha, igual ao que aconteceu comigo, viu? Era uma coisa normal..."
Eu tenho uma grande amiga que é arquivista e trabalhava nos arquivos do Quai
Branly, o museu responsável pela guarda destas estatuetas. Aí um dia a gente se
encontrou e foi tomar uma cerveja. Nesse dia eu expliquei essa história da exposição,
e ela me disse: "Você sabe que o Quai Branly é muito perigoso, tem vitrines, você não
devia nunca nem passar na frente! É horrível ali, diante de algumas máscaras e
estatuetas. Jacques Kerchache, o colecionador, morreu com grande sofrimento. O
colaborador dele também, e a pessoa do museu encarregada de cuidar da coleção dele
― que acondicionou, fez a museografia, essas coisas ― também morreu. Para nós
ficou claro, mas sei que ninguém nunca vai dizer nada. A verdade é que três pessoas
morreram por causa dessa exposição." Então eu disse, "Mas mesmo depois disso tudo
eles não se incomodam de fazer uma exposição assim, reunindo todas essas
245
estatuetas?" E ela: "Eles negam, não é? Apesar de tudo que a gente diz, não adianta."
***
O que fica claro nas declarações de Marie é que ela, depois de ter sido capturada,
passou a "ver o mundo com outros olhos". A mãe de santo que tratou dela me explicou,
depois que ela foi embora, que o feitiço lançado contra ela era extremamente perigoso — e
que poderia ter facilmente levado Marie à morte, "caso ela continuasse com aquela besteirada
Ou seja, em um mundo único, como o que Marie vivia, ela não poderia encontrar a
cura para a sua doença. Se continuasse com a "besteirada francesa", ou seja, com a sua
insistência em negar a possibilidade de existência de tudo que a mãe de santo lhe afirmava,
ela poderia ter morrido, segundo a própria mãe de santo me explicou. A insistência de Marie
Marie certamente tinha enredo, assim como o rapaz que foi comigo ao Ilê Axipá. No
caso dele, a ligação era mais esperada: ele era filho de santo, o que já lhe confere algum tipo
de enredo já previamente conhecido. mas, no caso de Marie, seu enredo só pôde ser
depois da partida de Marie, fizemos uma espécie de reconstituição da história. Quando lhe
contei detalhes prévios da vida de Marie, que ela desconhecia, ela desvendou o que levara
Marie até ali, o seu enredo: "Ela trabalha com esse negócio de museu. Já tinha uma ligação
com esse amigo indiano [Ousman]. Teve uma amiga dela que sumiu na montanha. O
namorado dela, ele trabalha com foto de plantas, e com aquele Krajcberg, que faz esculturas
246
com árvores mortas. Esse Krajcberg deve ter um monte de inimigos. E, além do mais, a gente
não sabe se ele pede licença para fazer essas coisas que ele faz. E esse namorado dela, eu acho
que ele é de Oxalá, e gente de Oxalá é ruim de pegar feitiço... Então ela, com todas essas
Foi mapeando as relações de Marie que a mãe de santo foi capaz de montar a
constelação de fatores que a haviam conduzido àquela situação. E foi assentando o santo de
Marie que pôde "ajustar", segundo me disse, a cabeça dela, para deixá-la protegida dos
247
Conclusão
pensar que o panteão dos orixás se organizaria à maneira das cores no espectro do arco-íris.
Sabemos que o arco-íris é um fenômeno óptico que surge pelo desdobramento da luz do sol,
de cores. Esse fenômeno ocorre quando a luz do sol sofre refração e reflexão nas gotas de
chuva. As sete cores que nós (ou pelo menos a maioria) conseguimos diferenciar são apenas
as que se pode distinguir a olho nu; mas o espectro da luz do sol é contínuo, ou seja, na
verdade o arco-íris exibe um infinito de cores. Entre uma cor e outra, portanto, sempre se
encontram mais algumas. Entre o verde e o amarelo existe um "verde-amarelado"; entre este
visão mais rica e complexa da escala cromática, a separação não é perfeitamente delimitada e
não existe divisão nítida: cada faixa invade a área da seguinte, mesclando-se a ela, como dois
conjuntos em interseção.
Entre Oxum e Iansã, portanto, haveria Oxum Apará que, como vimos no capítulo 4, é
uma Oxum que tem enredo com Iansã. Entre Iemanjá e Ogum, teríamos Iemanjá Ogunté, uma
Iemanjá que tem enredo com Ogum. Mas, como vimos, todos os orixás mantêm relação — ou
248
enredo — uns com os outros. Relação que pode inclusive manifestar-se como oposição. Certo
dia, em Salvador, uma filha de santo do Gantois com quem eu conversava fez o seguinte
comentário: “Gente de Oxalá é maluca, porque Oxalá está muito perto de Exu”. Perguntei a
ela como se dá essa proximidade, e ela me explicou: "No xirê, por exemplo: Exu é o primeiro,
Oxalá é o último. E é uma roda, 360 graus, então o primeiro e o último se encontram. Eles são
opostos, já que gente de Oxalá veste branco e não pode nunca nem usar as cores de Exu, mas
ainda assim estão próximos. É que nem Xangô e Omolu. Eles são opostos também, mas estão
do lado um do outro. E está cheio de gente de Xangô que tem enredo com Omolu. Eles são
como dois lados de uma moeda. E o que está mais próximo de um lado da moeda que o outro
lado dela?"
A proximidade entre Oxalá e Exu, nesse caso, significa que Oxalá é um pouco Exu. E
o mesmo se dá entre Xangô e Omolu. E a relação entre os orixás, no caso, não se limitaria à
proximidade mas, como ocorre com as cores do arco-íris, produziria um espaço comum, uma
área de interseção. Assim como ocorre com as pessoas, entre os orixás a totalidade nunca está
necessariamente contida, não existe em suas relações uma delimitação clara das fronteiras.
Algo sempre pode passar para o outro, infiltrando-se por esses limites de definição
incompleta. Tudo funciona num esquema de passagem ou transferência: pelo sangue, pelo
gesto do egum que sacode a roupa, pelo abraço, pela fala, pelo suor, o axé se transfere. Quem
encosta na roupa do egum estabelece com ele uma relação que não se desfaz com facilidade.
É essa lógica das conexões que rege a construção desse mundo, em que elementos externos
Seguindo essa lógica, é coerente pensar que, para uma pessoa formada por elementos
externos, como vimos no capítulo 5, deva haver um duplo, constituído externamente, onde
esses elementos possam ser manipulados tento em vista o equilíbrio. Se a pessoa está muito
"quente", pode-se dar comida para Oxalá; se estiver muito "fria", alimenta-se Iansã; se precisa
249
de justiça, pode-se arriar um amalá para Xangô; e por aí vai. Certa vez, uma filha de santo
que conheci me disse que o bori, a cerimônia na qual se alimentam todos os orixás da cabeça
entre a cabeça (o ori) da pessoa e o disco rígido de um computador. Na feitura, como vimos,
uma parte da pessoa assume uma feição concreta, exterior a ela, que a partir daí pode ser
manipulada. Certa vez ouvi Mãe Carmem dizer, com relação a uma moça que a procurara: "É
Enredo, portanto, seria o termo capaz de dar conta dessa relação em que estar próximo
de algo significa tornar-se um pouco essa coisa, ao mesmo tempo em que o enredo também é
a narrativa sobre essa coisa, que se concretiza ao ser narrada. O enredo atua, portanto, em três
instâncias: ele é uma relação — entre humanos, entre não-humanos e entre humanos e não-
humanos; é uma narrativa — a instância em que essa relação se realiza e é admitida na trama
de relações que compõem a pessoa no candomblé; e é uma forma de captura — uma teia, um
emaranhado.
"Uma ontologia que dê primazia aos processos de formação ao invés do produto final, e aos
fluxos e transformações dos materiais ao invés dos estados da matéria" (2012: 26). Para ele, a
primeira medida a ser tomada é substituir os termos "objeto" por "coisa" e "agência" por
"vida". Com isso, pretende mostrar "que os caminhos ou trajetórias através dos quais a prática
improvisativa se desenrola não são conexões, nem descrevem relações entre uma coisa e
outra. Eles são linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas. Portanto,
quando falo de um emaranhado de coisas, é num sentido preciso e literal: não uma rede de
conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento." (2012: 27)
Ingold critica o uso que vem se dando (devido principalmente à tradução para o inglês do
250
termo) à teoria do ator-rede de Latour que, segundo ele, terminou por limitar os significados
do termo "rede". Réseau, em francês, refere-se tanto a uma rede (network) quanto a uma
trama (no sentido de teia, algo que se tece). Ingold propõe, portanto, que o termo "rede" seria
melhor traduzido por "emaranhado", já que "os fios de uma teia de aranha não conectam
pontos ou ligam coisas. (...) Se essas linhas são relações, então elas são relações não entre,
mas ao longo de. (...) as vidas das coisas geralmente se estendem ao longo não de uma mas de
múltiplas linhas, enredadas no centro mas deixando para trás inúmeras 'pontas soltas' nas
ou emaranhado de relações — e mais as suas narrativas. E a presente tese foi pensada também
como um enredo (ou na forma de um enredo): partes que vão se revelando, cada qual com sua
própria história, seu próprio sentido, sua própria forma; mas todas relacionadas entre si,
formando um todo cuja natureza é a própria incompletude — afinal, sempre cabe mais um
enredo.
Entretanto, como vimos, todo enredo, ainda que incompleto, é total. Nesse sentido, a
estrutura da tese é, de certa maneira, como o enredo de um filme, ou de uma peça, evocando a
visão imagética que esses meios são capazes de transmitir. A metáfora da atuação, assim,
Aprendizado
Embora eu tenha dito, no começo deste trabalho, que seu tema não seria o
251
presente tese não surgiu de uma interrogação que eu própria tenha formulado, e sim de uma
pergunta que me foi reiterada ao longo da pesquisa. E relata, em suas entrelinhas, o processo
de aprendizado ao qual me submeti e que, para ocorrer, obrigou-me não só a ter meu enredo
Houve uma ocasião, na Festa de Exu, em que Mãe Carmem me chamou de lado, antes
do início da cerimônia (a Festa de Exu é fechada para o público e se realiza na parte externa
atrás de uma pilastra. Imagino que eu deva ter mostrado um ar de decepção, pois ela
emendou: "É para a sua proteção." Uma decorrência das pesquisas no candomblé é o próprio
corpo de quem pesquisa acabar submetido a situações estranhas a seus hábitos: não há como
participar de uma obrigação, por exemplo, sem passar horas de joelhos, consumir a comida
do orixá, bater a testa na testa do animal a ser sacrificado e assim por diante. São condições
desse tipo de pesquisa. Não há como frequentar continuamente o Gantois sem usar saia de
axé, sem bater cabeça para a mãe de santo (o que, segundo me explicou um filho de santo, é
"fazer um fio-terra de axé, conectando todo mundo que bateu cabeça no mesmo lugar"), sem
Se levarmos em conta que ter enredo é, num certo sentido, estar ao mesmo tempo
tanto "fora" quanto "dentro" (e me refiro aqui às posições dos antropólogos examinadas no
capítulo 2), podemos argumentar que ter enredo também equivale a ter uma posição. É
inevitável pensar na analogia entre ter enredo e "ser afetada", termo escolhido por Jeanne
vivenciadas pelas pessoas com quem conviveu em seu trabalho de campo — relações que lhe
facultaram o acesso às práticas de feitiçaria que almejava estudar. Segundo a autora, "(...) eles
exigiam de mim que eu experimentasse pessoalmente, por minha própria conta — e não por
conta da ciência — os efeitos concretos dessa rede particular de comunicação humana em que
252
consiste a feitiçaria." (2005: 157) Ela afirma ainda que "(...) tudo se passou como se eu tivesse
tentado fazer da 'participação' uma ferramenta de conhecimento" (2005: 157). Embora minha
poder escrever sobre o candomblé, foi-me necessário deixar-me enredar, assim como ela se
viu compelida a participar do sistema de feitiçaria do Bocage francês. No meu caso, aceitar
que eu tinha enredo (ou melhor, aceitar que as pessoas do candomblé considerassem que eu
tinha enredo) me permitiu encontrar um lugar de onde eu poderia acompanhar a vida daquelas
pessoas,178 mantendo uma ligação com elas sem no entanto "tornar-me" uma delas ou, melhor
Fazer santo é também um processo de aprendizado (cf. Cossard 2008) que se estende,
na verdade, muito além do período prescrito de recolhimento. Logo nos primeiros tempos de
minha pesquisa, Mãe Carmem me disse: "O problema do candomblé, minha filha, é que
quanto mais se aprende, menos se sabe." Com isso ela se referia à complexidade do
maneira mais limitada, como se dá esse processo de aprendizado. Esta tese é assim, de certa
acompanhados ou vividos, aos quais subjaz o processo de aprendizado a que eu mesma fui
me fez perceber o quanto eu havia sido, de fato, "afetada". Referindo-se a uma conversa de
que havia participado, e que por acaso fora gravada, Favret-Saada diz que, ao transcrever a
fita com a conversa, escreveu em seu caderno de notas a seguinte frase: "Segue-se a isto uma
178
Nas palavras de Favret-Saada, "(...) o próprio fato de que aceito ocupar e ser afetada por ele abre uma
comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de
intencionalidade, e que pode ser verbal ou não." (2005: 159)
253
história inaudível (...)". Segundo ela, não havia motivo algum para que não escutasse ou
entendesse as palavras ditas, visto que foi capaz de ouvi-las perfeitamente ao escutar
novamente a fita no momento em que redigiu sua etnografia. E interpreta então aquele
registro como "típico da surdez que me acometia com tanta frequência ao longo do meu
Quando encontrei esse trecho (do qual não me lembrava), pensei imediatamente na
surdez que eu própria sofri em muitos momentos da pesquisa. Favret-Saada interpreta sua
surdez como uma espécie de "proteção" contra segredos que "preferia não saber", pela
dificuldade que teria em lidar com eles. No meu caso, a surdez era contraditória, e me
acometia justo quando eu mais precisava ouvir. Era justamente nos momentos em que se
revelariam coisas que eu julgava importantes, como fofocas envolvendo filhos de santo,
acusações de feitiçaria, relatos de ebós, detalhes de tramas envolvendo diversas pessoas que
eu conhecia, que eu não conseguia escutar nada. Claro que isso se deve, em parte, à maneira
de falar de muitos filhos de santo que conheci: aos sussurros, sem olhar diretamente para o
interlocutor. Mas não creio que tenha sido um mero problema de adaptação: muitas vezes,
sentada em torno de uma mesa na companhia de várias pessoas, eu era a única que não
escutava direito o que se dizia. Preocupada, fui fazer uma audiometria: tirei a nota máxima.
Os filhos de santo com quem eu costumava sair brincavam comigo, dizendo que eu só podia
ser filha de Oxóssi (os filhos de Oxóssi têm tendência à surdez). Foi só ao rever meu material
de campo que percebi que eu havia, na verdade, incorporado uma característica fundamental
processo de redação da presente tese, que percebi que minha surdez era parte de um enredo, o
Claro que meu processo de enredamento teve outros custos, além da surdez temporária
(que ainda persistiu por cerca de um ano depois da minha volta ao Rio de Janeiro). Durante
254
muito tempo, temi que o sistema de acusações e suspeitas tão comum no candomblé (descrito
que vi acontecer com outras pessoas). Talvez tenha sido essa a consequência mais difícil de
lidar; perto dela, a surdez não foi quase nada. Numa das ocasiões em que estive em Salvador,
já algum tempo depois da minha volta, uma filha de santo me procurou para contar que havia
escutado uma fofoca especialmente pesada que me envolvia, e ainda que ouvira dizer que
Mãe Carmem teria contado a uma terceira pessoa que estaria "cismada" comigo. Na hora,
minha reação foi de pânico. Pensei em ligar para Mãe Carmem na mesma hora, mas com isso
estaria traindo a filha de santo que me confidenciara a tal intriga, coisa que ela insistira
expressamente comigo para não fazer. Assim, esperei até o dia em que pude estar
pessoalmente com Mãe Carmem, e tudo transcorreu num clima normal. E ela se mostrou tão
receptiva que até perdi qualquer vontade de tocar na tal história. Alguma coisa eu devo ter
aprendido.
Um dia eu estava doente, e Fábio me aconselhou: "Peça ajuda a Omolu. Mas não peça
nunca o que você quer; tem que pedir tudo ao contrário. Se você quer saúde, peça doença. Se
você quer dinheiro, peça pobreza."179 Perguntei-lhe o motivo disto, que me parecia, claro, uma
contradição. E ele me disse: "Omolu é assim, minha filha." Insisti mais um pouco, e ele me
179
Serra (1978) também se refere a esse aspecto do culto de Omolu: "(...) sabe-se que este deus ama revelar-se de
formas 'bem complicadas': há mesmo uma cerimônia do rito ketu em que os fiéis lhe dirigem seus pedidos
falando tudo 'ao contrário'; cf a respeito Dos Santos, 1972)." (Serra 1978: 171)
255
publicamente aquilo que é mais secreto180, o nome do santo que acabou de ser feito. Há, no
candomblé, uma certa incomensurabilidade dos significados, ou seja, como disse Fábio, não
se deve "ficar procurando lógica em tudo"; não há necessariamente uma contradição em ser
ao mesmo tempo doença e cura, público e privado, parte e todo, qualidade e pedaço, moradia
palavra exata para explicar determinada coisa, até que Dona Cici me declarou: "Não existe
O enredo, como vimos, é uma relação em que o ser se confunde com o estar. Ter
enredo, entre muitas coisas, é também fazer parte de algo. E vimos também que muitas vezes
ter enredo leva a ter caminho. Mas aonde leva esse caminho?
caminho de volta. Muitos filhos de santo comentaram comigo como a vida deles tinha
"andado para a frente" depois da feitura. De maneira a "andar para a frente", porém, é preciso
antes de tudo voltar para trás, voltar para Casa, a Casa da família. O caminho que se segue
contém em si tanto a ida quanto a volta; não se limita a uma única direção, a um único
sentido. Assim como o nome do santo é público e privado, o caminho é, a um só tempo, tanto
de ida quanto de volta. Ter caminho no candomblé é voltar para casa, segundo me disseram os
Mas o candomblé, ao mesmo tempo em que prega o cuidado, a prevenção, a volta para
casa, lembra o tempo todo que a vida deve ser celebrada. Eis mais uma de suas formas
singulares de lidar com a contradição: contar com a morte (e por isso proteger-se dela) e ao
mesmo tempo celebrar a vida. Ou, como me declarou uma das mães de santo que conheci:
180
O nome do orixá (orunkó) não é secreto em todos os terreiros: no Ilê Axé Opô Afonjá, por exemplo, o orunkó
é usado publicamente. Mas, no Gantois, mantêm-se a tradição do segredo do nome, pois se considera que ele
pode ser usado em feitiços.
181
Agradeço a Miriam Rabelo por ter chamado minha atenção para esse aspecto do enredo.
256
"Quem não anda não tropeça".
257
Glossário
adoxu. Filho de santo preparado para receber o orixá (também chamados de "rodante").
aiyabá. Filhas de santo que recebem orixás femininos, em oposição às doborôs (q.v.).
alguidavir. Cada uma das baquetas usadas para tocar os atabaques nos rituais da nação queto.
assentamento. Produção do orixá individual como um duplo concreto que pode ser
assentar a cumeeira. Nas Casas que não têm poste central, a cumeeira tem importante papel
atori. Vara usada pelos ojés no culto dos eguns (q.v.) para controlar as entidades que circulam
nos terreiros; também um apetrecho de Oxaguiã. Em iorubá, árvore cujos galhos são
axé. Palavra de múltiplos sentidos, que designa a força sagrada das pessoas e das coisas e
de Candomblé, enterrado no solo do terreiro para consagrá-lo aos orixás, ou à parte dos
axexê. Rito funerário onde o assentamento da pessoa é desfeito. Deve ser cumprido ao longo
258
de 21 anos após o falecimento da pessoa (1, 3, 7, 14 e 21 anos depois, quando se considera
baba egum. Cada um dos espírito dos mortos cultuado nos terreiros de egum,com identidade
babalossãe. Num terreiro, o responsável por tudo que diz respeito às plantas, especialmente as
folhas.
bater cabeça. Ato de contrição no candomblé, em que a pessoa se ajoelha e encosta a cabeça
bater tambor. Maneira indireta de se referir à participação de uma pessoa nos rituais do
caboclos. Em certas Casas de candomblé, entidades diversas dos orixás que se manifestam e
vistas como associadas aos ameríndios nativos ou a outros espíritos locais, sem ligação com a
África.
cair de santo ou cair no santo, o mesmo que dar santo ou receber o santo. Incorporar o
orixá.
259
caminho. Série de ritos, a partir da iniciação, que configuram a atividade da pessoa na
religião do candomblé. Caminho de cuidado, o caminho que exige do iniciado apenas cuidar
do assentamento de seu orixá. Caminho de feitura, caminho que determina que o noviço
Gantois, significa aquilo que se carrega como um fardo, e de que geralmente é necessário se
livrar. Em outros terreiros, pode significar o conjunto de entidades que compõem a cabeça da
pessoa.
catulagem. Furo aberto no couro cabeludo do noviço para propiciar a entrada de seu orixá. A
cavalos de santo. Maneira de se referir aos filhos de santo que recebem seus orixás. (ver
adoxu ou "rodante").
contra-egum. Trança de palha usada nos braços; serve para afastar os espíritos dos mortos.
corpo fechado. Estado do corpo do filho de santo após a feitura, graças à qual adquire não
cupim. Apelido corrente do frequentador que circula por vários terreiros, no mundo do
candomblé baiano.
dar o nome. Para o orixá individual, declarar publicamente o seu nome específico quando de
260
"de azeite".Maneira coloquial baiana de se referir ao que é do candomblé
despachar o ebó. Jogar (geralmente na mata ou no rio) a oferenda depois que é feita.
pessoa.
despachar a rua. Levar-se para a rua comidas para Exu (farofa de dendê) e pembas (pós com
efeitos mágicos).
masculinos.
doborô. Filha de santo mulher que recebe orixá masculino, ao contrário das aiyabás (q.v.).
dofonitinho. Pela ordem, na iniciação, o segundo dos noviços recolhidos num mesmo barco.
ebó. Oferenda para o orixá, consistindo basicamente de alimento. Podem visar tanto o bem do
filho de santo ou pessoa próxima a ele quanto gerar malefícios para algum desafeto. Daí o uso
egbome. Filha de santo que já cumpriu suas obrigações de sete anos de feitura.
equede. Filha de santo, também chamada iarobá, que não recebe o orixá e responde por
erê. Entidade infantil que costuma manifestar-se nos filhos de santo depois que seus orixás
vão embora. Vista ora como um espírito de criança ora como uma "parte" infantil do orixá.
261
espiritismo de mesa branca. Espiritismo de prática caseira, comum em Salvador.
exu. Como substantivo comum, distinto do orixá do mesmo nome, designa um espírito de
feitura. Processo ritual que tem por resultado habilitar o noviço a receber seu santo.
filho de santo de santo assentado. Filho de santo que se limita a assentar seu orixá, sem a
funfun. Nome que se aplica aos orixás da família de Oxalá, da cor branca. Usado também no
gamo. Pela ordem, o quinto dos noviços recolhidos para a iniciação num mesmo barco.
gremo. Nos raros casos em que o barco de noviços admite mais de oito participantes, alcunha
do nono iniciado.
gremotinho. O décimo e último dos noviços, nos raros casos em que o barco de iniciação
iaquequerê ou mãe pequena. Filha de santo que geralmente responde pelos assuntos
icá. Modalidade de pedido de bênção usado, no candomblé, pelos filhos de orixás femininos.
ifá. Método divinatório de efeito e finalidade semelhante ao jogo de búzios, cujo uso é restrito
ogã. Filho de santo que não recebe orixá e que, no terrreiro, geralmente cuida de sua parte
social.
ogã suspenso. Aquele que foi escolhido por algum orixá mas ainda não submetido à feitura.
Ogum ati onan! Saudação que significa "Que Ogum abra o seu caminho", ou "Que Ogum te
ojá. Faixa de pano cuja amarração na cabeça do iniciado varia, conforme o orixá seja
feminino ou masculino.
ojé. Iniciado especialmente preparado para lidar com as entidades no culto dos eguns (q.v.), o
ojuori. Segundo orixá, ou "orixá ajudante", de um filho de santo, também conhecido como
juntó.
olubajé. Cerimônia em homenagem a Omolu em que a comida servida deve ser comida com
orixá retornado. Santo que se transmite a outrem na iniciação, geralmente por herança, e por
ossé. Oferta de comida ao orixá ou a um egum. Também pode incluir a lavagem das
padê. Ritual restrito aos iniciados, realizado em homenagem a Exu no dia seguinte ao
264
sacrifício de um animal de maior porte.
pemba. Bastão de giz ou argila com que se traçam sinais variados nos rituais do candomblé.
quizila. Tabu ou aversão, geralmente alimentar, determinado pelo orixá da pessoa feita.
roupa de ração. Vestimenta usada no dia a dia do terreiro, em contraste com os trajes de
festa.
rum. um dos tambores usados nas cerimônias de candomblé (os outros são o rumpi e o lé).
Diz-se que um orixá toma o rum quando, durante alguma festa, passa-se a tocar especialmente
para ele.
iniciação.
samba de erê. Música acelerada, sem letra, tocada com as mãos para a dança dos erês (q.v.).
umieró. Preparado de ervas que se usa em lavagens espirituais. Também chamado abô, ou
"banho de folha".
vimotinho. Pela ordem, o oitavo e último dos iniciados num barco de noviços.
265
ximba. Castigo, geralmente físico, imposto pelo orixá ao filho de santo que o recebe.
xirê. Série de cantigas que abre todas as festas de candomblé, louvando os orixás, enquanto as
266
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