Por abismos… casas… mundos…: Ensaio de geosofia fenomenológica
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Por abismos… casas… mundos… - Carlos Eduardo Pontes Galvão Filho
Dardel)
PREFÁCIO
Por abismos... casas... mundos... é um texto desafiante. Fruto de uma lavra poética profundamente reflexiva, o livro de Carlos Eduardo Pontes Galvão Filho é um trabalho de fôlego que não decepciona o leitor que espera o deslocamento prometido no título. Há não uma, mas muitas viagens que o autor relata, realiza e que permite, por sua escrita, que cada um execute a sua própria, por meio da leitura.
Viagem é o tema central deste livro. Uma perspectiva geográfica da viagem, o que leva o autor a dialogar com o pensamento geográfico do início do século XX, mas também com a literatura, a história e sobretudo a filosofia. Nestas áreas, Galvão Filho busca diálogos não para explicar ou descrever o fenômeno da viagem. Antes, orientado pela pergunta que é viagem?
, busca compreender o sentido da viagem no mundo contemporâneo, a partir de sua manifestação e seu sentido existencial.
Mas não é apenas aos geógrafos que este livro interessa. Justamente por seu caráter interdisciplinar em sua composição e na própria concepção de conhecimento, além do temário da viagem e de nossa forma de viver e dizer o mundo, este livro é de interesse de um amplo espectro de áreas, desde a filosofia, o turismo, a história, as ciências sociais em geral e a educação. Interessa ainda, potencialmente, os estudiosos de literatura que têm dialogado fortemente com o pensamento geográfico e, de uma forma igualmente instigante, a qualquer leitor que se interesse pelo tema pois, mesmo com uma densa reflexão teórico-conceitual, o livro apela para as experiências do próprio leitor, o que o torna acessível para além dos especialistas.
Mas é na geografia, é evidente, que estão as raízes deste livro. Assim, ao mesmo tempo em que o autor busca no geógrafo histórico estadunidense John K. Wright, de onde se inspira para repensar o sentido do conhecimento geográfico como ligado diretamente à nossa experiência cotidiana e a algo que poderíamos chamar de senso geográfico
, dialoga com a geografia fenomenológica de Eric Dardel, o francês que cunhou o termo geograficidade
para expressar o elo de cumplicidade Homem-Terra, origem da natureza da realidade geográfica.
Esta dupla filiação teórica é, no entanto, trabalhada de forma original por Galvão Filho, o qual deslinda uma perspectiva própria nesta apropriação, desdobrando tais heranças a partir de um diálogo intenso com o pensamento do filósofo Martin Heidegger. O resultado, que pode ser lido nas páginas seguintes, não se refere apenas a uma epistemologia, mas também às consequências ontológicas do conhecimento geográfico. A formulação do subtítulo, Ensaio de geosofia fenomenológica
, aponta para o sentido ampliado de geosofia como expressão do ser geográfico, amalgamado com a geograficidade dardeliana no habitar a Terra. Trata-se de um instigante desdobramento de uma perspectiva fenomenológica que ultrapassa os limites do campo propriamente da ciência geográfica.
O pensamento de Heidegger na Geografia, assim, é reverberado mais um pouco, permitindo ampliar as possibilidades de diálogo neste já movimentado campo de interações que tem inspirado muitos geógrafos a buscar no filósofo alemão possibilidades para a Geografia contemporânea, especialmente em sua vertente humanista. Entre os principais aspectos destacados encontra-se o sentido de vertigem, o habitar e o próprio desafio da linguagem, como casa do Ser.
Mas não é apenas em termos teóricos que o livro apresenta algo novo: ele está composto em uma escrita que articula elementos literários, relatos de conversantes de sua pesquisa, experiências pessoais e conceitos científicos e filosóficos, tornando todos um conjunto de fios que são tecidos conjuntamente ao longo do texto. Trata-se de um texto provocativo e denso conceitualmente, o qual reflete e pergunta muito mais do que propõe uma linha interpretativa específica.
Tanto é que o livro não precisa ser lido em sua ordem, tal como escrito. O leitor poderá saltar entre seus muitos itens, guiado pelas possibilidades que se desenham pela abertura que o próprio texto é. Trata-se de um texto, portanto, que demanda atenção do leitor, que não passará por ele facilmente: é necessário colocar o pé na lama deste texto, texto-mangue que é, o que remete ao demorar-se nas ideias, o rastejar lento pelas ideias e páginas.
Para mim, que fui o orientador deste trabalho, originalmente defendido em 2016 como dissertação de mestrado em Geografia no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, é uma grande satisfação poder vê-lo vir a lume como livro. Este expressa um esforço pessoal, de seu autor, mas também reverbera o esforço coletivo de pessoas que têm buscado possibilidades nas interfaces entre geografia e fenomenologia para seu pensar e fazer, sobretudo no contexto dos Grupos de Pesquisa NOMEAR – Fenomenologia e Geografia (Unicamp) e GHUM – Geografia Humanista Cultural (UFF). O autor tem atuado, sobretudo no primeiro, mas em intenso diálogo com o segundo.
A banca foi composta por Letícia Pádua (UFVJM) e Antonio Carlos Queiroz Filho (UFES), a quem agradeço os comentários e contribuições ao trabalho. Queiroz escreveu e leu, na arguição, o poema incluído como posfácio, o que já nos indica as possibilidades de reverberação que o texto, agora publicado como livro, tem para mobilizar o pensamento e a sensibilidade.
A geografia contemporânea tem-se mostrado prenhe de um pensamento vivificante e profundo que dialoga intensamente com a tradição do pensamento geográfico, ao mesmo tempo em que se abre para o diálogo interdisciplinar e busca repensar a si mesmo. Novos geógrafos têm trazido suas preocupações para adensar o esforço milenar de nossa compreensão da experiência geográfica sobre a Terra.
Este livro de Carlos Eduardo Pontes Galvão Filho é mais um capítulo desta história recente, apontando para alguns dos caminhos que a Geografia tem trilhado, sobretudo para aqueles que ela ainda pode querer trilhar.
Eduardo Marandola Jr.
Limeira, outubro de 2016.
DA NECESSIDADE DE CULTIVAR E DE NARRAR EXPERIÊNCIAS VIAGEIRAS
Li, em Michel Serres (2015, p. 33), sobre a necessidade do contar-se para nascer. Afirma ele que nem você, nem eu, nem ninguém existe sem a narrativa de nossa existência, mesmo no cotidiano; é necessário contar-se para nascer; mesmo uma coisa, é preciso narrá-la para que ela ocorra
. Como é vigorosa a leitura de algo que há muito já se encontrava em nós, quase adormecido, porém não de todo desconhecido! É possível sentir um vigor quando pensamentos se encontram, quando a urdidura do pensar é adensada. O que move esta presente obra? A possibilidade de percorrer um caminho orientado pela geografia fundada na ligação homem-terra: pensar uma ontologia geográfica, proposta sobretudo por Eric Dardel (2011), a partir da fenomenologia. O caminho aqui pensado tem um nome: geosofia. Não se criou tal palavra, mas a ela fora dado um sentido próprio: buscou-se escavar um sentido apropriado a esta obra, fazer dela uma apropriação, isto é, pensar cuidadosamente, à maneira de Heidegger (2009a), o que o termo geosofia pode dizer àquilo que esta obra busca. Emerge este livro da necessidade de demorar-se cuidadosamente em algumas e distintas experiências de viagens, de perscrutá-las a procura de um (de diversos possíveis) sentido geográfico para o ato de viajar: o de ser um ato que mexe com referências geográficas primitivas, referências que constituem um modo próprio de cada homem ser-no-mundo. Nesse sentido, viajar colocaria em movimento um conhecimento geográfico que não deve ser confundido com o conhecimento institucionalizado, medido por parâmetros científicos, mas um conhecimento geográfico situado no âmbito do pré-teórico. Cultivar e narrar experiências viageiras quer dizer, aqui, pensar cuidadosamente nesse conhecimento geográfico, ou, dito de outro modo: perguntar por tal conhecimento, a partir do viajar. Considerar a necessidade de cultivar e narrar tais experiências sugere, ainda, remeter ao pensamento de Heidegger (2000, p. 13), filósofo preocupado em perguntar pelo sentido que reina em tudo o que existe
. Ao distinguir dois tipos de pensamento, "o pensamento que calcula e a reflexão (Nachdenken) que medita, Heidegger (2000, p. 14) afirma que todo homem é capaz de
seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites [...]. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora. A possibilidade de todo homem poder meditar sobre o aqui e o agora, de poder pensar o sentido das coisas que existem, isto que Martin Heidegger chamou de meditar e que tem um caráter de uma reflexão acerca da existência, é o que interessa a este livro. É nesse sentido que os atos de cultivar e de narrar experiências de viagem ganham mais força: a partir de viagens realizadas, imaginadas e sonhadas, pensar a própria existência. Tal pensar, como se pretende aqui mostrar, pode ser um modo de apropriar-se de uma história geográfica vivida em ato e, nesse sentido, um modo de aproximar-se do que Michel Serres propôs: contar-se para nascer. Serres (2015, p. 94) é quem leva um pouco mais adiante as inquietações desta obra, quando pensa:
quem sou eu?, eis minha resposta: o embrenhar de minha narrativa por entre o frondoso de minhas paisagens, externa e íntima". A Geografia enquanto caminho de pensamento que apela a embrenharmos paisagens, territórios e lugares da existência. Um embrenhar sensível em direção a mundos conhecidos e desconhecidos, um embrenhar geográfico, embrenhar que quer, geograficamente, pensar a existência. A sensação é a de que nesse embrenhar adentramos em nós mesmos, o que faz deste embrenhar uma jornada: um ato de pensar o próprio habitar, isto é, de cuidar daquilo que se é. Quer-se, aproximando os termos jornada, pensar e habitar, enfatizar o sentido que Heidegger (2006, p. 129) dera à palavra habitar: Habitar [...] permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência
. Desse modo, tal embrenhar, enquanto jornada, tem o sentido de resguardar o mundo que somos, de cuidar de nossa condição terrestre. Mas