Anais Coloquio Psicrianca PDF
Anais Coloquio Psicrianca PDF
Anais Coloquio Psicrianca PDF
Número de ISBN:
978-85-63996-01-5
O Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, em comemoração
aos 100 anos da publicação de “A dinâmica da Transferência” – , de S. Freud, promoverá
o II Colóquio de Psicanálise com Crianças: A Transferência na Clínica com Crianças, nos
dias 31 de agosto e 01 de setembro de 2012.
Fundamentação
O II Colóquio de Psicanálise com Crianças: A transferência na clínica com crianças, comemora
o centenário da publicação de “A dinâmica da transferência” (1912), texto que compõe a série sobre a
técnica, na qual Freud procurou definir teoricamente o conceito de transferência e a maneira pela qual esse
fenômeno opera no tratamento analítico.
O termo transferência já havia sido mencionado por Freud anos antes no texto Estudos sobre a
Histeria (1895), nas breves considerações ao final do célebre Caso Dora (1905 [1901]) e foi, pouco a pouco,
adquirindo um valor mais preciso à medida em que a compreensão do tratamento psicanalítico e de seus
parâmetros foram se desenvolvendo.
Sabe-se que a noção de transferência é extremamente fundamental para a clínica psicanalítica e
tornou-se condição imprescindível para uma análise. Ainda que exista uma diversa gama de interpretações,
tal conceito mantém em seu teor primordial a idéia de ser um modo de deslocamento ou repetição
de conteúdos recalcados — sentimentos, desejos, impulsos libidinais que foram retidos no curso do
desenvolvimento — que são revividos na situação analítica, na qual o psicanalista encontra-se inserido.
Entretanto, dentre os descendentes da teoria psicanalítica, os pioneiros analistas de crianças
percorreram as investigações freudianas com diversas indagações. Questionavam as possibilidades da
criança transferir e de que maneira isso poderia ocorrer. Essa velha e conhecida história teve início com
o conflito teórico entre duas grandes psicanalistas. Enquanto Melanie Klein propunha um psiquismo
constituído desde os primórdios, privilegiando a atividade fantasmática da criança — defendendo que a
transferência era possível desde a tenra idade —, Anna Freud partia da premissa de uma análise baseada na
noção de um aparelho psíquico em constituição, ou seja, na qual só era possível estabelecer transferência
após a dissolução do Complexo de Edipo.
As controvérsias e descobertas decorrentes desse conflito permitiram que a psicanálise com
crianças pudesse avançar consideravelmente na compreensão do psiquismo infantil e, por consequência,
na constituição da subjetividade.
Atualmente, a transferência — fenômeno das relações humanas — tão indispensável na clínica
psicanalítica, é também facilmente identificado no vasto campo das ciências humanas, principalmente no
que diz respeito ao entendimento das inúmeras relações clínicas que se constituem. Isso faz com que nós,
analistas, tenhamos que encontrar diferentes estratégias que promovam o trabalho psíquico, até mesmo
quando o setting não corresponde aos tradicionais critérios psicanalíticos.
Há três anos pudemos comemorar a publicação do texto “A análise da fobia de um menino de 5
anos” (1905), no Colóquio 100 anos de Psicanálise com Crianças, uma vez que ele abriu as portas para a
clínica psicanalítica com crianças.
Hoje podemos festejar o centenário de um conceito psicanalítico, de um fenômeno clínico que
atravessa o século carregando a sua história, promovendo o manejo na clínica psicanalítica — e como
veremos no Colóquio —, seja com bebês, crianças e para além do setting formal das quatro paredes.
É por considerarmos a transferência tão fundamental à prática clínica com a qual nos ocupamos,
que propomos neste Colóquio um espaço e tempo de encontro com colegas que desejam debater, construir
e refletir conjuntamente.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
SUMÁRIO [clique nO TÍTULO PARA LER O TRABALHO, para voltar AO SUMÁRIO, aperte TAB]
Demandas para o olhar analítico junto a grupo de profissionais
em UTI neonatal: transferências múltiplas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Alexandra Huebner Giorge, Veridiana Chimirri, Mariângela Mendes de Almeida
Introdução
Relatamos neste artigo a proposta de um Grupo de Reflexão semanal com profissionais da UTI
Neonatal do Hospital São Paulo -UNIFESP (referência para gestações e bebês de risco), realizado por duas
Psicólogas e uma Enfermeira. Enfatiza-se a construção de um espaço de continência para preocupações
vivenciadas no cotidiano da equipe de enfermagem, médicos e residentes, fonoaudiólogos, e fisioterapeutas
no contato com os bebês e seus pais, marcado por intensa vulnerabilidade frente a angústias pela constante
iminência de morte e malformação dos bebês.
Pretende-se que esta experiência possa gerar maior capacidade de continência e consciência das
transferências múltiplas envolvidas no processo de cuidado às famílias. Observam-se inúmeras demandas:
dos pais em relação aos profissionais de assistência neonatal e à instituição (UTI de alta complexidade em
hospital universitário referência nacional); dos pais e dos profissionais em relação aos psicólogos e chefia de
enfermagem como potenciais provedores de resolutividade imediata de conflitos, angústias e ansiedades;
dos bebês em relação ao entorno físico e relacional continente proporcionado pelo ambiente da UTI.
O trabalho realiza-se a partir da Discussão de Situações de Trabalho vivenciadas pelos profissionais,
amplificadas por observações compartilhadas do desenvolvimento infantil, víncular e de dinâmicas de
funcionamento mental no contexto da UTI Neo-Natal.
Ao favorecer o aprender com a experiência de continência às próprias ansiedades, e ao ampliar a
compreensão de ansiedades parentais e angústias primitivas, o olhar psicanalítico, veiculado através do Grupo
de Reflexão, pretende fortalecer a consistência da rede de cuidados em contexto de risco e vulnerabilidade
em período tão fundamental para o desenvolvimento de vínculos entre pais, bebês e profissionais.
Observamos que no contexto institucional relacionado ao cuidado de bebês de alto-risco, tanto pais
e bebês, quanto profissionais envolvidos neste trabalho, podem se beneficiar da continência oferecida pela
escuta psicanalítica. Como se constituiríam os pilares do olhar psicanalítico neste enquadre peculiar em suas
várias camadas de ressonância?
1 Psicóloga da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital São Paulo, Especialista em Psicoterapia Breve
Psicanalítica, Psicoterapeuta da Infância e Adolescência, Membro do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês do Setor de
Saúde Mental da Pediatria, Membro do Grupo e Bioética do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São
Paulo – UNIFESP. [email protected]
2 Encarregada da Equipe de Enfermagem da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital São Paulo – UNI-
FESP. [email protected]
3 Psicóloga, Psicoterapeuta com Mestrado pela Tavistock Clinic e University of East London, Docente e Membro do Depto.
de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, Coordenadora do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês, Setor
de Saúde Mental, Depto de Pediatria, UNIFESP, Membro Filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Configurando o contexto
A sociedade atual encontra-se sensibilizada pela dor dos familiares e principalmente das mães
de bebês internados nas unidades de terapia intensiva neonatal. Entretanto, torna-se importante conhecer
também as necessidades dos profissionais atuantes nesse ambiente de trabalho.
Humanizar não é apenas atender melhor, mas olhar para os dois lados envolvidos na relação
assistência-família (Machado et al, 2005).
É de consenso na literatura que o ambiente de uma unidade neonatal assim como o processo
de internação são situações que expõem o paciente criticamente doente e sua família a circunstâncias
que geram sentimentos intensos, que manifestos ou suprimidos neste momento de crise potencializam o
estresse causando fortes reações emocionais.
Os profissionais de saúde envolvidos no cuidado compartilham o mesmo ambiente e vivenciam
juntamente ao cliente a intensidade das experiências emocionais. Este contato com tantas realidades
diversas e o processo de identificação com o momento ou o contexto familiar, podem afetar o desempenho
profissional e influenciar as relações interpessoais.
A emoção manifesta por um determinado cliente pode mobilizar um grande número de profissionais
ou tocar profundamente alguns membros da equipe, gerando um clima de tensão emocional, sentimento
de impotência, insuficiência, sofrimento e incerteza. Isto tudo pode gerar desentendimentos e abalar as
relações de trabalho.
Há inclusive o estigma, que o profissional de saúde carrega, de que seu cuidar é que determina
o bem estar do paciente, portanto, se o paciente passa por momentos críticos e delicados, evoluindo para
uma inviabilidade, a equipe se sente insuficiente e incapaz de prestar-lhe auxílio.
Nesse contexto, a equipe de enfermagem caracteriza-se como população mais suscetível a esse
tipo de abalo, tendo em vista o fato de constituir uma categoria que permanece 24 horas ao lado do cliente,
acolhendo e dando continência, vivenciando e por vezes participando ativamente ou mesmo sendo alvo dos
momentos de manifestação emocional familiar. Por estes motivos, iniciou-se o trabalho com as enfermeiras
e auxiliares de enfermagem.
Para a realização do papel acolhedor e continente à família e seu bebê, é necessário que o
profissional seja instrumentalizado e desenvolva recursos para compreender as reações do paciente e da
família e assim atender às suas necessidades. O profissional necessita de um espaço onde possa organizar
suas idéias e trabalhar suas emoções, compartilhar suas percepções acerca das situações cotidianas e se
reorganizar emocionalmente como indivíduo e como parte de uma equipe e de uma rede de cuidados.
Psicanalíticamente, estaríamos desta forma, tentando compreender os movimentos transferenciais que
ocorrem a partir dos pais e bebês para os profissionais e para a instituição, mas também oferecendo escuta
para os aspectos internos dos profissionais que se transferem para a situação de trabalho, modulando
sua capacidade de continência e também demandando receptividade transferencial em outros espaços de
acolhimento e elaboração psíquica.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
• A Unidade Neonatal é composta por 24 leitos sendo 8 de cuidados intensivos, 8 de cuidados semi-intensivos
e 8 de cuidados intermediários, com um índice de ocupação acima de 80 % destinada ao atendimento
de pacientes que necessitam de atendimento de alta complexidade com prognóstico incerto, devido a
malformações ou condições clínicas precárias, que comprometem sua recuperação plena, associando-se
fatores de ordem socioeconômica e cultural, que por vezes dificultam, restringem ou inviabilizam as altas.
• A Unidade Neonatal está inserida em uma instituição de ensino, dedicada à formação de profissionais
já graduados com o objetivo de especialização e pós-graduação, fato que promove uma variada rede de
conexões e relacionamentos (aumentando a rede de movimentos em transferências múltiplas) que exige
dos envolvidos flexibilidade, receptividade, assertividade e organização, o que muitas vezes se mostra
desgastante para o grupo, considerando as diferentes funções que necessitam desempenhar. (vide ilustração
em anexo).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Aqui em São Paulo, desde 1987, a partir da iniciativa do Centro de Estudos Psicanalíticos Mãe-Bebê-
Família, (Mélega, 1997), divulgam-se e desenvolvem-se propostas deste tipo de trabalho, tanto no âmbito
clínico quanto institucional. Nestes modelos, são pilares fundamentais os desdobramentos da Observação
da relação pais-bebê (Tavistock - Esther Bick) em suas dimensões facilitadoras para a compreensão das
relações entre cuidadores e cuidado, e para o acolhimento a aspectos emocionais e estados de mente
primitivos presentes em nosso cotidiano relacional e profissional.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
BION, W. R. Experiências com grupos. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Imago/EDUSP, 1975.
HERRMANN, F. Morte e Vida no Hospital. Jornal de Psicanálise, São Paulo. 39(71): 57-64, dez. 2006.
MACHADO, C. E. e JORGE, S.B. Ser profissional de saúde em uma unidade neonatal de alto e médio risco: o
risco e o invisível – Estudos de Psicologia. Campinas 22(2) 197-207 abril-junho-2005.
MÉLEGA, M.P. Observação da Relação Mãe-Bebê – Método Esther Bick – Tendências, São Paulo: Unimarco,
1997.
MÉLEGA, M.P. e MENDES DE ALMEIDA, M. Innovations in Parent-Infant Psychotherapy, London: Karnac,
2007.
RIBEIRO, M.C.; BARALDI, S. e PAES DA SILVA, M. J. A percepção da equipe de enfermagem em situação de
morte: Ritual do preparo do corpo.” Rev. Esc. Enf. USP, V.32, n.p. 117-23 ago-1998.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
Ao propor debater o tema transferência em um contexto de pesquisa que põe em jogo a aplicação
de um protocolo que busca detectar sinais de risco de transtornos na infância (Cf. LERNER; KUPFER, 2008;
KUPFER, et al, 2008; KUPFER et al., 2009; KUPFER et al., 2010), algumas questões se inscrevem: de que
forma é possível observar manifestações de transferência? Como sustentar a posição de um pesquisador
interessado em observar sinais de problemas na infância e, ao mesmo tempo, partir do discurso psicanalítico
que já opera seu tratamento? Como sustentar uma posição investigativa que permita reconhecer/sustentar
laços transferenciais sem ignorá-los ou interpretá-los em excesso?
Tendo em vista esses questionamentos, este trabalho tem como objetivo principal debater a
importância do reconhecimento desse laço transferencial inerente à pesquisa com pais-bebês, realizada ao
longo dos primeiros 18 meses de vida da criança. Em se tratando de um instrumento que foi construído a
partir da psicanálise, é notável que o seu uso não se restrinja a uma aplicação protocolar, mas que permite
1 Angela Flexa Di Paolo é psicóloga graduada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre e doutoranda em Psico-
logia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Pesquisa-
dora na área de infância e psicanálise. [email protected].
2 Rogerio Lerner é psicanalista, Professor Associado (Livre-docente) e orientador de Pós-Graduação no IPUSP, Fellow do
College of Research Training Programme - University College London/IPA. Lidera o grupo de pesquisa CNPq “Transtornos do
espectro de autismo: detecção de sinais iniciais e intervenção”, com verbas de pesquisa de órgãos nacionais e internacionais.
[email protected]
3 Ana Silvia de Morais Graduada é psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com
experiência em clínica infantil. Formação prática no Núcleo de Intervenção Precoce (NIP) do Lugar de Vida – Associação de
Educação Terapêutica. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com bolsa FAPESP. [email protected]
4 Andrea Bianchini Tocchio é psicóloga graduada pela Universidade São Marcos. Aprimoramento em Saúde Mental pela
PUC-SP. Especialização em Psicologia Hospitalar Materno-Infantil pelo Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros.
Mestranda do Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (IPUSP), com bolsa CAPES e FAPESP. [email protected]
5 Edna Márcia Koizume Bronzatto é psicóloga graduada pela Universidade Bandeirante de São Paulo. Mestranda em
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Formação em Psicanálise pelo Instituto Langage e pelo Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade. Pesquisadora na
área de detecção precoce de risco para transtorno de espectro de autismo e de transtornos de desenvolvimento.
[email protected]
6 Gabriela Xavier de Araújo é psicóloga graduada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mestre em psicopatologia,
psicanálise e medicina pela Université Paris VII, doutoranda pela Université Paris VII em cotutoria com o Programa de
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
[email protected]
7 Nathalia Teixeira Caldas Campana é psicóloga graduada pela PUC-SP, com experiência em Acompanhamento Terapêutico
e Observação de Bebês. Aprimoramento na clínica de Casal e Família pela PUC-SP. Especialização em Psicologia da
Infância pelo Departamento de Pediatria da UNIFESP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e
Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
efeitos analíticos que põem em evidência questões psíquicas referentes ao laço pais-bebês, à maternidade,
à paternidade. Serão abordadas algumas vinhetas que mostram como a aplicação do IRDI em contextos
de pesquisas do grupo inscrito no CNPq “Transtornos do espectro de autismo: detecção de sinais iniciais e
intervenção” favoreceu intervenções clínicas.
A pesquisa de campo acontece nos seguintes locais: Hospital Universitário da USP, 14 UBS’s do
Município de Embu das Artes, Centros de Atenção Psicossocial, Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da FMUSP e Escola Terapêutica LUMI. Antes de passarmos ao material de pesquisa, faremos algumas
considerações de Freud a respeito da transferência.
A transferência preexiste à psicanálise, manifestando-se na vida cotidiana e, por vezes, sendo
manejada por educadores, professores e médicos (Freud 1912, 1915). Mais do que certa repetição do
passado, ela funcionaria como um entre, como um escopo de ligação entre dois termos (passado/presente,
longe/perto, eu/outro), como aponta Hanns (1996). Marca uma transição, uma passagem entre um eu e um
outro, que acentua, ao mesmo tempo, uma proximidade e uma distância.
Na Conferência XXVII, Freud (1916) anuncia a noção transferência como a ocasião em que o
paciente transfere para o médico intensos sentimentos de afeição, que nem se justificam pela conduta do
médico, nem pela situação que se criou durante o tratamento. A forma pela qual essa afeição se expressa
e os objetivos que ela tem em vista, dependem do curso da relação pessoal entre as duas pessoas em
questão, e remetem à história infantil de cada paciente.
Esse novo fato que, portanto, admitimos com tanta relutância, conhecemos como transferência.
Com isso queremos dizer uma transferência de sentimentos à pessoa do médico, de vez que não
acreditamos poder a situação no tratamento justificar o desenvolvimento de tais sentimentos. Pelo contrário,
suspeitamos que toda a presteza com que esses sentimentos se manifestam deriva de algum outro lugar,
que eles já estavam preparados no paciente e, com a oportunidade ensejada pelo tratamento analítico,
são transferidos para a pessoa do médico [...]. Algumas mulheres conseguem sublimar a transferência e
moldá-la até que atinja essa espécie de viabilidade; outras hão de expressá-la em sua forma crua, original e,
no geral, impossível. Mas, no fundo, é sempre a mesma, e jamais permite que haja equívoco quanto à sua
origem na mesma fonte (FREUD, 1916, p. 443).
Nesse ensaio, Freud (1916) se interroga sobre a origem da transferência, que dificuldades nos causa,
como as superamos e que vantagens dela podemos auferir. Ele indica posições que servem como uma espécie
de manual técnico de análise: primeiramente, nunca se deve ceder às exigências do paciente, decorrentes da
transferência. Em seguida, deve-se superá-las, mostrando ao paciente que seus sentimentos não se originam
da situação atual e não se aplicam à pessoa do médico, mas sim que eles estão repetindo algo que lhe
aconteceu anteriormente. Desse modo, abre-se a possibilidade de transformar a repetição em lembrança.
Freud (1912, 1915, 1916) busca abordar de que modo pode-se superar a transferência em um
contexto de análise, manejando-a, de modo a deixar claro para o paciente aquilo que faz parte de seu
sintoma, de suas repetições. Partindo destas considerações teóricas, passemos ao contexto de pesquisa.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Ao se colocar como pesquisador, o psicanalista não cessa de articular clínica, teoria e pesquisa.
Tais termos se tornam indissociáveis quando há uma investigação corrente, quando há questões que
precisam ser respondidas e sofrimentos psíquicos por serem tratados. Ao nos voltarmos especificamente
para o contexto teórico-investigativo de uma pesquisa cujos referenciais teóricos partem da psicanálise,
é possível abrir espaço para uma escuta que acontece na transferência e, conseqüentemente, apontar
caminhos possíveis de tratamento.
Uma vez atravessado pelas relações transferenciais, cabe ao pesquisador sustentar-se nessa posição
de reconhecer os problemas em questão, de apontar tratamentos possíveis, de cuidado com o outro, pautando-
se em uma dimensão ética do cuidado, sem cometer excessos interpretativos que precipitem o sujeito em uma
capacidade elaborativa fora de contexto e, por outro lado, sem deixar de intervir e de propor direcionamentos
para os sofrimentos que aparecem, de modo a intervir antes que patologias graves se cronifiquem.
A seguir, passemos a algumas vinhetas em que se pode observar a utilização do IRDI, cujas
aplicações tiveram desdobramentos para além do contexto da pesquisa, facilitadas pela relação transferencial
do pesquisador com os pais.
Caso 1
Caio foi acompanhado pelas pesquisadoras desde 1 mês de vida no Ambulatório de Clínica
Pediátrica do Hospital Universitário da USP. Ele chegou à consulta acompanhado apenas da mãe. Na
aplicação das três primeiras faixas do IRDI (até 12 meses), Caio não apresentou nenhum indicador ausente,
no entanto, algumas situações chamaram a atenção tanto do pediatra como da equipe de pesquisadoras.
Desde o início, a mãe de Caio apresentou várias dúvidas quanto à alimentação (o que poderia oferecer,
que horário, efeitos etc.); chegou a deixá-lo sozinho na maca enquanto buscava a fralda para trocá-lo; tinha
dificuldade em fazê-lo parar de chorar (durante os primeiros exames, a criança chorava muito), situações
estas que chamaram a atenção do pediatra porque a mãe já tinha um filho de 4 anos, ou seja, estava “tendo
dúvidas demais para uma mãe que já tinha outro filho”, nas palavras do médico.
Aos 5 meses, Caio começou a freqüentar a creche, o que mudou radicalmente sua rotina, horários
e alimentação. Sua mãe voltou a trabalhar e a assistir aulas (no curso de Ciências Sociais da USP), no
começo ela contou que ele chorava muito ao se despedir dela, ela chegou a dizer “eu percebi que ele só
gosta de mim, só quer ficar comigo”.
Pelas preocupações já anunciadas pelo pediatra e pela dificuldade de separação observada pelas
pesquisadoras, foi oferecida escuta para esta mãe, fora do dia da consulta pediátrica de Caio. Ela aceitou e
foi ao atendimento realizado por uma das pesquisadoras.
Nesta ocasião, ela pôde falar sobre as dificuldades que enfrentou durante e após a gestação do
primeiro filho. Ela contou que ele foi inesperado e que tanto ela como o marido faziam faculdade nesse
período. Durante os três primeiros anos, se dividiram morando um tempo na casa de seus pais, outro tempo
na casa dos seus sogros. E que só há cerca de um ano mudaram-se para uma casa própria, lugar em que
nasceu Caio. Ela contou que isso tem sido motivo de muitas preocupações, discussões e negociações, pois
era a primeira vez que estava morando sem os pais, ela chegou a dizer que pensou “e agora?! É a primeira vez
que vamos morar sem um adulto na casa!”. Logo, percebe-se que há uma dificuldade dessa mãe que pôde ser
observada durante as consultas e neste atendimento, de se ver agora em uma nova fase de sua vida, fase em
que está construindo um novo espaço, novas relações, com o marido, com os filhos, com seus sogros e seus
próprios pais. Ela disse que agora é a primeira vez em que ela e o marido “são chefes de família”.
Ela compareceu apenas a uma consulta agendada com a pesquisadora e que, se precisasse,
procuraria novamente. Não foi possível acompanhar se houve efeitos na relação dessa mãe com os filhos ou
com o marido a partir dessa consulta, mas se pode afirmar que, neste caso, a intervenção clínica com a mãe
de Caio foi possibilitada pelo IRDI que, apesar de não indicar risco de desenvolvimento, apresentou risco de
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
sofrimento psíquico tanto para o bebê como para a mãe. A consulta abriu espaço para que ela pudesse falar
de suas angústias que permearam o nascimento dos filhos, tanto do primeiro, como do segundo, de sua
dificuldade em construir um lar com o marido e os filhos, das dificuldades de separação, enfim. Situações
essas que puderam ser relatadas para alguém que a escutava sustentada pelos referenciais psicanalíticos,
posição esta que favorece o uso do IRDI para além das consultas pediátricas, permitindo o estabelecimento
e a manutenção de laços transferenciais.
Caso 2
Guilherme foi encaminhado para um Centro de Atenção Psicossocial Infantil – CAPSI a pedido da
creche por não se relacionar com outras crianças e não se vincular com a educadora. Na ocasião em que o IRDI
foi aplicado, Guilherme tinha 18 meses de idade e estava em avaliação diagnóstica com suspeita de autismo.
Enquanto a psicóloga que aplicava conversava com sua mãe a respeito do IRDI-24 (A criança suporta bem as
breves ausências da mãe e reage às ausências prolongadas), o menino estava no grupo terapêutico. A mãe
afirmava que o filho não reagia a sua ausência, mas neste momento o bebê foi trazido até ela, pois estava
chorando, inconsolável, no grupo. Guilherme olhou para sua mãe, fez uma pausa em seu choro e lhe estendeu
os braços pedindo colo. A mãe acolheu o filho e ele parou de chorar. A psicóloga perguntou o que a mãe
achava que tinha acabado de acontecer e ela respondeu: “ah, sei lá... acho que ele estava incomodado com
alguma coisa e quando me viu ficou calmo, mas não acho que ele estava chorando porque estava sentindo
minha falta...”. Logo, Guilherme foi para o chão e começou a andar pela sala. Apontou para o armário e tentou
abri-lo, mas estava trancado. Imediatamente, ele começou a chorar e a mãe colocou uma mamadeira em sua
boca. A psicóloga perguntou: por que será que Guilherme começou a chorar? A mãe sorriu e disse: “ele queria
abrir o armário, porque sabe que lá tem brinquedo”, diante disso, a psicóloga perguntou por que ela havia
dado a mamadeira ao filho, ao que ela sorriu sem graça e respondeu: “é mesmo, é que é tão difícil para mim
ouvi-lo chorar que preferi calá-lo, mas assim ele não vai falar, né?” Ainda nesta aplicação, a mãe disse que
o filho fala “ma” e “pa”, mas que ela não sabe se isso quer dizer mamãe e papai e por isso não assume que
quando ele diz “ma” está chamando por ela. A psicóloga disse que mesmo que inicialmente não fosse essa a
intenção de Guilherme, pode ser que esse “ma” virasse “mamãe”.
Na semana seguinte a mãe pediu para conversar com a mesma psicóloga, para dizer que depois
da conversa que tiveram a respeito do desenvolvimento de Guilherme, ela conversou com o marido e os
dois mudaram de atitude em relação à criança: “à noite estamos contando historinhas para ele e agora ele
já sabe contar até cinco!” A aplicação do IRDI possibilitou que houvesse uma conversa com a mãe a respeito
da relação estabelecida com o filho e sobre o desenvolvimento emocional da criança, favorecendo que se
construíssem opções no vínculo entre os mesmos.
Foram realizadas intervenções, mesmo num âmbito de pesquisa, não apenas para responder ausente
ou presente para cada item do IRDI, mas que puderam expressar os entrelaçamentos da relação entre mãe
e filho e viabilizaram o reconhecimento da mãe de sua posição. Um único encontro pôde ter tido grande
significado e efeito para a mãe, ao ponto dela pedir para falar novamente com a psicóloga que a acolheu e
contar as mudanças frente às manifestações do filho.
Considerações finais
A aplicação do IRDI tem ocorrido em diversas instituições de saúde, como UBS, HU e CAPSI. Em cada
uma, há uma maneira particular de apropriação do instrumento por parte da equipe e de aplicação por parte
das psicólogas pesquisadoras. Nas UBS, a aplicação tem sido realizada por ACS e auxiliares de enfermagem
que passaram por um curso onde a complexidade da interação entre aspectos orgânicos e relacionais do
desenvolvimento é considerada pela abordagem do psiquismo proposta pela psicanálise e explicitada em
situações cotidianas. O destaque dado ao longo do curso para o sentido que tais situações cotidianas têm no
entrelaçamento entre desenvolvimento da criança e relações estabelecidas com seus pais fazem com que o
uso do protocolo IRDI não se reduza a uma mera repetição de mais uma escala a ser aplicada pelo profissional,
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
mas adquira uma significação na relação transferencial dos profissionais de saúde e dos pesquisadores com
as famílias. O momento de aplicação do IRDI se transforma em um espaço para falar das dúvidas dos pais, de
suas inseguranças, questionamentos, expectativas, angústias, o que favorece a manutenção de uma relação de
transferência na medida em que o profissional comparece onde há demanda para ele, onde há demanda por
uma escuta e por uma busca de saberes.
A diversidade de lugares evidencia alguns benefícios proporcionados pela instrumentalização para
uso dos IRDI tanto por parte da equipe que a recebe como por parte da família que tem seu bebê avaliado. Há
um interesse e uma preocupação da equipe a que o IRDI permite dar uma significação, uma sistematização de
observações que geralmente ficariam soltas e que podem passar a fundamentar o início de possíveis tratamentos
com bebês em risco. Para as famílias, a aplicação e a decorrente orientação podem servir como oportunidade
de cuidado e acolhimento de sua singularidade, representando uma oportunidade de alívio quanto a algum
temor de dificuldade de desenvolvimento avaliado como inexistente ou de início de trabalho quando algum
sinal é detectado.
As vinhetas ilustradas neste trabalho exemplificam algumas situações em que a aplicação do IRDI
favoreceu a detecção de sofrimento psíquico na relação transferencial com o pesquisador ou com o profissional
que o aplica, pois, ainda que algum indicador se expresse como presente, é possível notar sutilezas de angústias
e de sofrimento que não apareceriam em uma simples aplicação protocolar. Esse é o elo que pretendemos situar
neste trabalho: a articulação entre a pesquisa (uso de protocolo) e a assistência (orientação e encaminhamentos
para pais e bebês em risco), entre os referenciais psicanalíticos e sua intervenção na singularidade de cada caso.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. A dinâmica da transferência. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio
de Janeiro: Imago, 1996 [1912].
________. Observações sobre o amor transferencial. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1915].
________. Conferência XXVII. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro:
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Recebemos Flora profundamente angustiada. Sua segunda filha Lara, então com dois meses de
idade, não aceitava mamar em um de seus peitos. Na primeira entrevista em que estava só com uma das
analistas contou que essa preferência de Lara perturbava a ela e ao marido e que ambos estavam tão
tomados de preocupação que a dinâmica familiar parecia ter se perturbado.
Flora relata com certo tom nostálgico a tranquilidade na relação com sua primeira filha Bruna, que
parece ter permitido que se estabelecesse certa confiança em sua capacidade de maternagem levando o casal
à decisão de ter mais um filho. No entanto, junto com o nascimento de Lara, novas perspectivas de trabalho
a colocavam em um conflito que pareciam soar como uma escolha entre ser mãe ou profissional, e a deixava
culpada pela ideia de negligenciar os cuidados com a filha recém chegada. Em sua primeira experiência de
maternidade, pode ficar com a filha em tempo exclusivo até que ela estivesse com mais de um ano de idade.
Em meio ao relato da situação atual, evoca uma série de ressentimentos que ela e sua irmã têm
em relação à mãe, figura muito admirada por sua competência como profissional mas muito criticada por sua
pouca disponibilidade afetiva para com as filhas. Certamente essas memórias intensificam os conflitos que
vive agora e o medo de ver repetidas na relação com as filhas a mesma situação emocional que colore suas
relações com a irmã e a mãe.. Dessa forma vive intensamente a ambivalência massacrante entre mãe-boa
e mãe-má, conflito que parece adquirir corpo na recusa de Lara em mamar em um dos seios, como se esta
divisão personificasse a presença deste objeto mau na relação com a filha.
Embora esse enredo seja derivado de suas fantasias e conflitos que remontam a sua própria
vivência arcaica, a analista sugere que sejam feitas inicialmente sessões de intervenção pais-bebê, pelo
caráter vincular que o conflito adquire e por seu efeito sobre as funções maternas o que a impede de
funcionar como objeto primordial continente às angústias de sua filha, representando um risco ao seu
desenvolvimento mental saudável.
O que se coloca em questão é o processo de parentalização, conceito psicanalítico que refere-se
ao processo pelo qual os pais vivenciam profundas transformações identificatórias nas quais são reeditados
conflitos antigos e que permitem que se tornem pais desta criança. A partir destes vínculos afetivos construídos
nesse interjogo interno e relacional que será constituída a vida psíquica da criança e seu processo de
subjetivação. No processo de construção da parentalidade estão envolvidos aspectos psíquicos inconscientes
que são transmitidos através das gerações: aspectos intergeracionais e transgeracionais.
À medida que essas vivências intrapsíquicas primordialmente maternas podem ser vivenciadas em
sala de análise, na presença das duas filhas, do marido e das analistas, é possível perceber uma gradativa
reconfiguração na dinâmica familiar e do casal parental, a partir da elucidação das fantasias persecutórias de
ambos e do oferecimento de um espaço de compreensão e continência para as angústias familiares. Acreditamos
que a partir daí a questão da demanda de análise individual possa ser recolocada
O interesse da psicanálise em olhar para as primeiras relações e procurar meios de intervir nessa
dinâmica iniciou-se a partir da observação de que muitas patologias intrapsíquicas e interrelacionais da vida
ulterior do indivíduo estariam dando sinais desde o início de vida, quando se constitui o protótipo das relações
objetais com os objetos primordiais. Entretanto os pais que geralmente protagonizam esse cenário são inundados
por questões relativas à sua própria experiência arcaica em aspectos que muitas vezes não foram elaborados de
forma a poderem sustentar o lugar parental necessário ao seu bebê.
Os atendimentos nessas dinâmicas tem se mostrado importantes para que muitos desajustes no
vínculo que são expressos através de distúrbios do desenvolvimento fisiológico do bebê e/ou dificuldades na
interação familiar possam ser acolhidos, significados e transformados.
Klein, Bick, Meltzer, Harris e uma vasta gama de autores psicanalistas contribuíram para o aprimoramento
do olhar ao bebê e posteriormente muitos outros desenvolveram práticas baseadas no referencial psicanalítico
no que se constituiu como a chamada clínica do bebê. Mas devemos à Freud o reconhecimento da importância
dessa etapa de vida e da mãe para o psiquismo do indivíduo, quando em 1911 fez uma breve menção em uma
nota de rodapé sobre o fato inquestionável de que não se poderia conceber a existência de um bebê sem que se
levasse em conta os cuidados maternos, sem os quais o psiquismo precoce do bebê não toleraria estar exposto
ao desamparo. Winnicott (1960/1983) recuperou essa observação de Freud e jogou luz sobre ela desenvolvendo
sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo, considerando que a qualidade da experiência no início da
vida do bebê seria fundamental para o seu desenvolvimento mental sadio. A partir de sua premissa de que o
indivíduo seria sempre concebido em relação, focalizou a importância das interações entre mãe e bebê durante
os primeiros anos de vida da criança.
Na construção da parentalização há uma história precedente de cada um dos pais, bem como a própria
história da concepção, ocupando na dinâmica familiar um lugar que é pré-definido por essas representações,
e que muitas vezes se sobrepõem de maneira contundente ao bebê, que fica impossibilitado de desenvolver
livremente suas capacidades com uma história própria, muitas vezes sendo depositário de representações não
elaboradas dos pais, que vêm à tona no momento de seu nascimento, em que acontece uma nova configuração
familiar. Estas histórias de cada um, que muitas vezes estiveram adormecidas no inconsciente parental por longo
período, eclodem neste momento, devido a intensidade emocional que se encontram os pais, particularmente
a mãe nesta fase. Porém, apesar da contundente foça dessas representações sobre o bebê, suas capacidades
individuais poderão amenizar ou intensificar essas dinâmicas.
O sofrimento que Flora vivencia na amamentação indica a uma escuta psicanalítica que fatores como
os anteriormente descritos estariam subjacentes à sua queixa. A alimentação ocupa importante lugar na vida
representacional do sujeito, em especial nos primeiros tempos de vida, quando a fome adquire coloridos muito
marcantes nas fantasias do psiquismo rudimentar do bebê. A disposição materna de oferecer ou não o seio
como fonte de alimento adquire qualidades especialmente sensíveis para evocar questões que as remetem às
identificação com suas próprias mães.
Com base nessas premissas iniciamos em duas analistas o atendimento em intervenção psicanalítica
pais-bebê, termo adotado por nós por se tratar de um trabalho fundamentado no instrumental psicanalítico e
para o qual é necessária uma sólida formação em psicanálise que sustente um olhar psicanalítico mesmo em
um enquadre diferenciado. A técnica que sugere o atendimento em duplas de analistas é fundamentada na
pluralidade de elementos e afetos que são colocados em cena na sessão e precisam contar com a continência
de um olhar sob várias dimensões permitido pelo atendimento em dupla.
No primeiro encontro com os pais e as duas filhas, a sessão se inicia com a família se dividindo na sala,
de um lado o casal, com nítida tensão, relata as dificuldades na amamentação. O pai é quem começa a falar
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
e demonstrando leve constrangimento diz não estar podendo participar muito por estar sobrecarregado pelo
trabalho, ao mesmo tempo em que atribui o sofrimento como sendo do âmbito materno, por estar relacionada à
amamentação, como se não se sentisse parte do problema ou, melhor dizendo, talvez não se sentisse autorizado
a ocupar espaço nessa relação e conflito desencadeado entre mãe e filha. Por sua vez a mãe demonstra ressentir-
se do suposto distanciamento do marido, dizendo se sentir sobrecarregada. Ao verbalizarem suas dúvidas e
dificuldades fica mais evidente para as analistas o engessamento emocional no qual a família parecia estar, que
impedia a liberdade de expressarem seus afetos e fantasias um ao outro.
Bruna, a filha de 4 anos, por sua vez, ao entrar na sala logo se entusiasma com os brinquedos que
avista sobre a mesa, indo diretamente em direção a ela que está num canto oposto onde seus pais e sua irmã
ficam. Uma das analistas se posiciona ao seu lado para acompanhar sua brincadeira. Ela pega o durex e mostra a
analista pedindo que a ajuda a encontrar a ponta e ao encontrarem ela faz um grande fio com ele corta. Ambas
ficam ligadas por esse fio de durex que fica preso no dedo da analista e no dela, mas em seguida o que está em
seu dedo se solta e ela volta a explorar os brinquedos deixando a analista com um durex preso em seu dedo e
com a outra ponta solta.
Nesse momento de desabafo inicial cria-se um clima tenso cujo desespero ganha voz num
choro repentino e desassossegado de Lara que a mãe tenta aplacar oferecendo o seio. Embora o bebê o
aceite, parece desconfortável em movimentos de pegar e soltar, em meio a um resmungo que expressa o
quanto parecia incomodada com a tensão da mãe. Flora desabafa sua angústia e ambivalências até mesmo
reconhecendo um sentimento de ciúme e rivalidade com o leite de fórmula que oferece em momentos de
insuficiência do leite materno.
Com toda sua aflição reivindica a ajuda do marido ao mesmo tempo em que não consegue recebê-la
por não permitir que ele se insira na relação com as filhas à sua própria maneira. Suas atitudes revelam o quanto
se imbui de mecanismos de controle que são defensivos ao estado vulnerável que se configura.
Diante dessas vivências na sessão as analistas se organizam de modo a estarem divididas. Uma delas
escuta e conduz a conversa com os pais e a outra fica ao lado de Bruna numa configuração de certa forma
excluída. Ambas sentem certo incômodo que leva um tempo para que possam apreender e nomear o que se
configurava na família e que as submetia contra-transferencialmente.
Através da observação do lugar ocupado por Bruna, aos poucos vai sendo possível encontrar fios do
enredamento ao qual estavam todos submetidos. Em seu canto solitário parece resignar-se a cortar durex e a
deixá-los com uma das pontas soltas, expressão de seu isolamento do grupo e desejo de ligação. Depois do
jogo com os pedaços de durex, abre a caixinha de jogo do mico e mostra os animais para a analista observando
em cada um que havia dois, referindo-se ao casal de animais formado pelas cartas. Essa percepção permite que
a analista que está ao seu lado apreenda sua própria dificuldade em inserir-se na conversa dos pais e da outra
analista e com isso dirige à mãe a pergunta: “E como fica a Bruna nisso tudo?”. Incluir Bruna no discurso parece
quebrar o círculo vicioso de ansiedade em que estavam e a surpresa na reação da mãe indica que movimentos
de exclusão entre eles poderia ser um dos componentes que alimentavam a dinâmica encapsulada. Flora,
parecendo um pouco confusa, responde de imediato que Bruna estava bem, porque agora sua mãe estava mais
em casa e que podia levá-la ao parque e natação, mas pareceu ter respondido sem que tivesse pensado sobre
ela. A analista complementa sua hipótese colocando a ela a pergunta “Como é ter que cuidar de duas filhas,
quando uma delas já é uma menininha e a outra um bebê e têm interesses e necessidades tão diferentes?”.
Flora parece ser tocada por essa colocação e descreve como que vai se dividindo entre as duas de modo a
estar ou com uma ou com outra de cada vez. Exemplifica dizendo “quando levo Bruna na natação procuro estar
só com ela, é a vez dela. E quando estou com Lara é a vez dela...´. As analistas colocam a hipótese de que ela
tenha dúvidas sobre a possibilidade de cuidar das duas ao mesmo tempo e ficando difícil poder dar atenção
para ambas, ficando em qualquer situação como uma mãe insuficiente, ou má. O desafio que se coloca neste
encontro parece ser como permitir ao este grupo familiar perceber-se como uma família ampliada que dispõe de
espaço para o pai, para um amor compartilhado e para lidar com a rivalidade entre irmãos.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
As colocações que haviam sido feitas evocam em Marcos a lembrança de um encontro da família
materna que, segundo seu relato, é marcado por queixas e ressentimentos das filhas em relação à mãe que a
acusavam do que ela havia feito para uma e não para outra. As duas parecem se unir para destilar venenos sobre
as falhas maternas.
Em seu brinquedo silencioso, Bruna reitera o que era dito verbalmente quando encontra uma bolinha
solta e diz com surpresa que havia outra, buscando uma bolinha um pouco maior que ela havia guardado junto
com algumas maquiagens. A analista ao seu lado confirma que sim, haviam duas bolinhas e que as duas cabiam
naquela caixinha. Animada com nossa conversa mostra que também tinham dois tubos de cola. A analista que
estava mais diretamente na conversa com os pais dirige-se aos brinquedos e intuitivamente pega um cesto
de bonecas colocando no centro da sala. Bruna se dirige ao cesto, pega um armarinho de boneca que estava
trancado com um cadeado e pede que uma das analistas abra, mas como ela não consegue, Bruna leva-o até o
pai o que talvez possa representar sua confiança no masculino. Nesse momento ela estava incluída na dinâmica
e ao lado do pai, no divã, havia brinquedos ao mesmo tempo em que Lara mamava e chorava.
Bruna volta para o lado da analista e pega na casinha de madeira um berço e um bebê o coloca
dentro dele, depois pega uma menina e pergunta se é um bebê também, como se ela se perguntasse se
é igual a irmã e se precisará ser um bebê para ter um lugar. Por fim coloca o bebê e a menina no mesmo
espaço da casinha, como se ensaiasse uma possibilidade de ela e a irmã habitarem o mesmo espaço juntas,
mesmo tendo idades diferentes.
Na segunda sessão a mãe vai dizendo enquanto chega que tudo estava magicamente melhor, pois
Lara surpreendentemente estava mamando nos dois peitos e até gostando mais do que antes rejeitava. Diz
também que agora não sentia ciúmes do leite de fórmula e ficava aliviada em poder contar com ele. Bruna
quando entra vai diretamente para a mesa brincar de tintas e chama seu pai para acompanhá-la. As analistas
comentam que eles pareciam mais tranquilos, o que é confirmado por todos. A mãe diz que está podendo
pedir mais a ajuda de Marcos e ele confirma que durante a noite havia acordado várias vezes para atender Lara
e tentava saber o que ela queria ao invés de logo atribuir-lhe fome. Conta com animação que está aprendendo
a decodificar seus choros e necessidades, deixando claro sua participação mais ativa na dinâmica familiar. Bruna
novamente se interessa pelo durex, mas agora vai juntando pedacinhos que faz um longo fio e diz que é um
tigre e que ele morde. Sua brincadeira faz a mãe lembrar que ela tinha levado da escola um livro A mamãe está
zangada, pedindo para a mãe ler muitas vezes. Bruna participa da conversa, complementando as falas da mãe.
As analistas comentam sobre Bruna estar se sentindo mais à vontade para expressar seus sentimentos de raiva
e ciúme, provavelmente porque eles também tinham ficado mais tranquilos em relação a esses sentimentos.
O casal conta que até conseguiram sair a sós para jantar e que aos poucos sentem haver mais
espaço para a vida a dois.
O que percebemos ao longo desses encontros é que há uma mudança de foco nas angústias iniciais.
Se antes havia uma mãe e uma filha encapsuladas por essa urgência de sentir-se boa mãe, agora há uma família
que tenta se reorganizar frente as novas configurações e espaços de cada um. A possibilidade de acolher a
destrutividade presente nas várias dimensões da família permite que essa família se reencontre. Todos podem
expressar seus ressentimentos e mau-estares sem que isso coloque em questão a convivência familiar. A família
reconhece que as angústias haviam diminuído e que a configuração familiar estava mais harmoniosa, porém há
um receio da mãe em conseguir sustentar essas condições quando da volta ao trabalho.
Na sessão seguinte a mãe já havia voltado ao trabalho e havia alguma tensão pelo caráter de
reorganização da rotina, mas que não parecia adquirir os contornos de congelamento e angústia que havíamos
testemunhado no primeiro encontro. A sessão se desenvolve mais como um relato do que haviam descoberto
com as últimas mudanças, mas parecia ter um leve tom de reasseguramento que eles buscavam nas analistas.
Após seis meses, num telefonema que havia sido combinado para essa época, Flora diz estar preocupada com
Bruna que se mostrava muito insegura e amedrontada e marcamos uma conversa com o casal para entender
melhor a queixa atual. Eles contam que a filha não queria ficar na escola e chorava todos os dias, além de acordar
à noite com pesadelos. Ao longo da sessão alguns fatores como mudança de escola e crise do casal vai deixando
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
claro que Bruna havia se sentido insegura com algumas perdas que havia tido em relação à escola e às perdas
inerentes ao fato de estar crescida, potencializado pelos vivências com a irmã e a iminência de perda que a
crise do casal se colocava nas entrelinhas da dinâmica familiar, mostrando-se bastante sensível e precisando ser
acolhida recorrendo à cama dos pais durante à noite.
Embora tenham mencionado uma crise que chegara a aventar a hipótese de uma separação, o casal
quando do encontro conosco já havia se restabelecido e mostrava ter condições até mesmo de compreender o
que parecia estar acontecendo emocionalmente com a filha. Pensamos que eles também tiveram conosco um
movimento de reasseguramento frente ao desenvolvimento que pareciam experimentar nas várias dimensões
da família, casal e individual porque no final desse encontro Marcos expressa seu desejo de ter mais um encontro
conosco, mas na data marcada eles se esquecem do horário e quando falamos ao telefone Flora diz que estavam
podendo resolver as questões que se colocavam e que talvez pudessem seguir agora sem nossa ajuda.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga e psicanalista. Mestre, doutora e docente da graduação e pós-graduação do IPUSP-SP; membro associado
da SBPSP; membro efetivo do Departamento.de Psicanálise da Criança do Sedes; docente no “Curso de Introdução a
Intervenção Precoce na Relação Pais Bebê” - Sedes. [email protected].
2 Psicóloga e psicanalista, membro filiado da SBPSP; membro efetivo do Departamento de Psicanálise da Criança do
Instituto Sedes Sapientae; docente no “Curso de Introdução a Intervenção Precoce na Relação Pais Bebê”- Sedes.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
funções de ancoragem para o desenvolvimento de seus filhos, podem possibilitar a abertura para novos
sentidos e propiciar que o fluxo do desenvolvimento se movimente.
Como propôs Fraiberg este trabalho com os “FANTASMAS QUE RONDAM A RELAÇÃO COM SEUS
FILHOS” e que os impedem de um contato com o bebê real permite que estes conflitos possam encontrar
formas de expressão menos tanáticas.
Acreditamos que inundados pelas identificações projetivas de seus pais estas crianças pedem
socorro através de seus sintomas e a intervenção permite a abertura de novos sentidos.
Estamos frente a novos enquadres ou enquadres diferenciados que permitem atingir, fundamentadas
na psicanálise, manifestações do fenômeno humano, antes inexploradas pela intervenção psicanalítica. O
atendimento a bebês e a clínica de 0 a 3 anos. Reconhecer a importância e a pertinência de intervenções
nesta faixa etária é reconhecer como sintoma, como grito e como pedido de ajuda, manifestações muito
iniciais relativas a funções vitais como comer, dormir e manifestações ainda mais precoces como a
constituição de vínculo em famílias com bebês prematuros.
Trata-se do uso do método psicanalítico em enquadres diferenciados nos quais a atenção flutuante,
a interpretação, a transferência, e a contra transferência são ferramentas que permitem uma escuta, um
movimento de gestação de sentidos.
Queríamos também destacar que são perspectivas nas quais o adoecer e o sofrimento humano
inclui a dimensão relacional, tanto na sua articulação com o papel do objeto externo (da família) na
constituição do sujeito quanto com a inclusão da pessoa do analista como fator de crescimento.
Incluir esta dimensão implica em pensar uma clínica na qual o revêrie, a empatia metaforizante e
a figura do analista são elementos primordiais em qualquer proposta de intervenção psicanalítica.
A possibilidade de oferecer continências às angústias dos pais na relação com seus bebês tem
se mostrado eficaz para ajudá-los a digerir emoções sentidas como insuportáveis e que eram depositadas
em seus filhos. Acolher estas identificações projetivas e nomeá-las mostrou ser uma possibilidade de
intervenção que permitiu a emergência de novos sentidos.
As consultas terapêuticas têm como objetivo oferecer “holding” ao bebê e seus pais no sentido de
propiciar a possibilidade de um novo ambiente reparador, onde as funções parentais possam ser revistas
possibilitando assim, o atendimento das necessidades básicas do bebê. O sintoma trazido pelos pais pode
ser visto como um nó, que atrapalha o amadurecimento do bebê, mas que poderá ser desfeito ou afrouxado
pelo trabalho conjunto, propiciando melhores condições de comunicação e desenvolvimento.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Acolher a esta família permitiu que este jogo nocivo de falhas na função de revêrie pudesse
romper-se. Ancorados em experiências de holding e revêrie, emoções insustentáveis, antes splitadas,
projetadas e negadas podem ser digeridas levando a encontros transformadores que na presença do outro
podem ser resignificados e acolhidas permitindo que crianças barradas em seu desenvolvimento possam
recuperar ou encontrar pais que as ajudem a desenvolver sua subjetividade.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
As polarizações que inauguraram a prática psicanalítica com crianças atualizam-se na peculiaridade dessa
clínica, impondo questões que convocam a reflexão metapsicológica e que incidem na condução do trabalho
analítico que envolve a criança. Se a tese de que a constituição do psiquismo resulta da ação conjunta
de mecanismos internos e de influências externas é reiterada nos textos fundadores da psicanálise,o
gradiente de tais determinantes configura-se como eixo privilegiado das dissonâncias interpretativas desde
a disseminação do saber psicanalítico.
As premissas evolutiva e adaptativa a respeito do ego, a importância atribuída aos objetos e à
realidade externa e a intervenção privilegiadamente dirigida aos pais e não à criança, marcam o pioneirismo
do trabalho teórico-clínico de Anna Freud. Em contrapartida,Melanie Klein preconiza a precocidade das
instâncias psíquicas, a determinação dos mecanismos internos e, portanto, das representações do ego e dos
objetos,postulando – em oposição à Anna Freud – a pertinência do tratamento clínico voltado diretamente
à criança.
Em direções opostas, o trabalho inaugural de Klein e de Anna Freud contornaram e influenciaram
sobremaneira a extensão do tratamento psicanalítico à criança e os pontos de controvérsia por elas
introduzidos permanecem vívidos – apesar de remodelados às novas emergências – ao exercício de uma
clínica voltada às questões psíquicas e contextuais que circundam o universo existencial da criança.
Atualmente,grande parte daqueles que se dedicam à teorização e à operacionalização dessa
clínica,legitimam a pertinência – em determinados casos – do tratamento voltado diretamente à criança,
mas incluem,necessariamente,a participação dos pais no processo terapêutico,condicionado,desse modo,
ao duplo vínculo transferencial com o analista. Há também concordância significativa quanto à forte
influência de fatores contextuais na emergência do sofrimento psíquico da criança,dada a incompletude
de sua constituição psíquica e, correlativamente, à estreita associação de seu psiquismo com o psiquismo
daqueles que exercem as funções parentais.
Entretanto, e a despeito das consonâncias discursivas e das similaridades na conduta analítica, o
debate incide ainda sobre os gradientes, impondo às questões teóricas o constante trabalho de pensamento
exigido pela experiência clínica. Tais questões apresentam-se a partir do momento em que nos deparamos
com a demanda parental pelo atendimento à criança. Em que circunstâncias o tratamento deve dirigir-se
diretamente à criança? Como, em cada situação particular, as figuras concretas dos pais encarnam as funções
parentais? Como o exercício de tais funções repercutem na constituição psíquica da criança? No contexto
dessa clínica, qual o limite (inclusive ético) de uma intervenção que induz a mobilização da subjetividade
parental? Essas e outras indagações proliferam-se no cotidiano do trabalho clínico com a criança e mantém
a atualidade das controvérsias inauguradas pelas pioneiras.
1 Belizia Aben- Athar Barcessat, psicóloga clínica e professora-adjunta da Faculdade de Psicologia da Universidade Fede-
ral do Pará. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP). [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Carla Lam1
Wadi Rum, Jordânia, ano 2000. Adail, beduíno que conhecemos numa pequena venda da vila se
ofereceu para ser nosso guia no deserto, e nos convida para ir à sua casa. No deserto, as tendas mantêm
distância suficiente para ter a privacidade preservada e a comunicação que dê segurança. Para a comunicação
sonora, mais importante que o tom de voz é o uso do ritmo pausado com o som silábico prolongado. É esse
prolongamento que facilita a compreensão. Um dos rituais sonoros dos beduínos é a preparação do café. O grão
é colocado num recipiente e com batidas ritmadas vai se tornando solúvel. A função desse ritual é produzir um
som típico que se alguém estiver passando, reconhecerá o som e se sentirá convidado a juntar-se ao beduíno.
Essas histórias vieram à minha lembrança, enquanto lia o livro “Tirando os sapatos” de Nilton
Bonder. O autor faz reflexões sobre a passagem bíblica de Abrão as quais coloco a seguir já com minhas
próprias reflexões.
Quando Abraão ouve o chamado de Deus, sai da terra de seus pais para seguir em direção a Terra
prometida. Abraão não sabia onde era a terra prometida. Para Bonder, o objetivo não era a terra, mas o ir.
Abraão sai do conhecido, para construir algo ainda desconhecido.
O nome dessa passagem bíblica é Lech lechá – que significa tanto “vá para si mesmo”, quanto “vá
por si mesmo”. Ser peregrino é ir para si mesmo, trilhando um caminho. E ir para si mesmo é buscar algo
para além do já conhecido.
As ameaças não estão no caminho, nem no desconhecido, mas na vulnerabilidade gerada pelos
fundamentos enraizados. Esses nos impedem de reflexão e se confundem com a nossa própria identidade.
Por outro lado, a segurança está na interação, nos vínculos estabelecidos com pessoas. Todo viajante
necessita da hospitalidade para sobreviver.
Os fundamentos enraizados impedem da interação e de aceitar a hospitalidade. Sem hospitalidade
não viajamos e não traçamos o nosso caminho - não podemos ir a nós mesmos.
No caminho há sempre o viajante e o anfitrião. O viajante para seguir sua viagem precisa confiar
que encontrará o anfitrião. Mas, o anfitrião é quem mais se beneficia, enquanto oferece abrigo, recebe
a esperança e a aventura espiritual. O anfitrião também recebe recursos que incrementam sua vida. Ao
receber o outro, precisa sair do seu cotidiano, e encontrar valores dentro de si ainda desconhecidos. Ser
anfitrião é construir caminho - ir por si mesmo e para si mesmo – Lech Lechá.
Estar verdadeiramente com o outro, é não buscar a satisfação das próprias expectativas, mas
às necessidades do outro. Bonder diz “Ser anfitrião não é controlar o outro, mas, sim, doar. E a doação
também não á aquilo que você quer doar. Essa categoria daquilo que você quer ofertar não se encaixa na
grandeza da generosidade, mas numa mera extensão de suas vontades”. E acrescenta que ofertar ao outro
o que é bom na própria concepção, não é generosidade, mas comércio. “... ser generoso não é entregar o
que você quer, mas o que o outro quer”. (Bonder, 2008, p. 127)
1 Psicóloga Clínica com especialização em Psicologia da Infância pela UNIFESP e em Coordenação de Grupo pelo NESME.
Psicoterapeuta de criança e adultos no consultório. Colabora com projetos ligados a Educação Democrática. Presidente da
diretoria do Nesme – Núcleo de Estudos em Saúde Mental e da Psicanálise das Configurações Vinculares.
[email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Na constituição do setting analítico sabemos que a transferência dos pais é responsável pela sustentação
da transferência da criança, no entanto, a fim de quebrar esse paradigma clínico, pretendo apresentar para
debate um caso em que a própria criança, mesmo não tendo suporte adequado dos pais, incumbe-se de fazer o
contrato analítico e de estabelecer um forte vínculo transferencial. Algo tão inusitado e que somente poderia ser
esclarecido ao longo do trabalho, ilustrava a “orfandade”psíquica dessa criança. As representações pré-verbais
das angustiantes vivências de rejeição por parte dos objetos primários, abrem espaço para acompanharmos o
manejo técnico que foi, gradativamente, permitindo que o material clínico encontrasse vias de simbolização e
verbalização fundamentais para a constituição psíquica dessa criança.
1 Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP; Professora Associada de Departamento de Psicologia da UFMG; Professora
do Mestrado em Psicologia da UFMG; Coordenadora do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
Segundo Sara Ferro (2003), os modelos psicanalíticos utilizados na atualidade, e entre eles
eu aponto a Psicanálise das Configurações Vinculares, consideram a pessoa real do analista como um
fator importante no processo analítico. A interpretação não é apenas da transferência, mas também na
transferência, e a contratransferência é um importante aliado para a compreensão da situação analítica. O
desenvolvimento psíquico se dá na relação, e depende do analisando e do analista.
“analista e paciente interactuam e haverá a criação de condições de contenção, de holding,
de empatia, sendo então possível o estabelecimento de um espaço relacional com propósito construtivo
original; os fenómenos de transferência e contra-transferência são uma unidade dinâmica e dialéctica;
a contra-transferência é uma componente com função na compreensão do que se passa na situação
analítica” (Sara Ferro).
Considerando que o desenvolvimento psíquico se dá na relação, se faz necessário apresentar ao
leitor as condições de empatia, rêverie e vínculo.
Empatia
Para Caper (1994), o conceito de Bion “isolamento dentro de uma relação de intimidade” evidência
o fato analítico. Segundo o autor, Bion sugere que cada integrante percebe seu papel na relação, por isso
isolamento; e por surgir no contato entre indivíduos separados é intimidade.
Para Nava (2005), para se ter consciência de si, há necessidade de representação do outro, e isso
implica em ter a capacidade de ver na perspectiva do outro. Para estar com o outro, precisamos, analista e
analisandos, frustrar o desejo de estar fusionado.
A autora trabalha com as ideias de Kohut sobre a empatia, para quem empatia é a capacidade de
sentir, buscando em suas próprias vivências, a vivência do outro. Porém, sentindo de maneira atenuada e
sem se confundir com ele.
Rêverie
Fernandes (2003) ao discutir o conceito de Bion “pensar o pensamento”, destaca dois mecanismos
do aparelho psíquico. O primeiro é a constante oscilação entre as posições esquizoparanóide e depressiva,
em que “variam de desintegração à integração, da desordem à ordem, dinâmica que pode ser simbolizada
por PEP ⇄ PD”. O segundo mecanismo é “a relação dinâmica entre algo que contém e algo que é contido
– modelo continente-conteúdo” (Fernandes 2003, p.134).
Segundo Camargo (2000), para Bion, a identificação projetiva, ao evacuar um estado mental
insuportável, projetando esse em um objeto externo, para além de sentir o alívio, tem pelo menos mais
dois objetivos: 1) controlar esse objeto; 2) causar nele um estado mental semelhante ao seu, como forma
de comunicação.
O analista deve ser continente e promover tolerância à frustração. “A incapacidade de tolerar
frustração poderá obstruir o desenvolvimento dos pensamentos e da capacidade de pensar” (BION [1952],
1994, p. 131).
Vínculo
Para Tabak de Bianchedi (1999) o vínculo é a intercomunicação de duas mentes, sendo basicamente
emocional. O fundamental não são os objetos, mas o que transcorre entre as duas mentes.
“É um vínculo compreensivo-emocional entre os sentimentos e emoções do bebê e a resposta materna
de compreendê-los, decodificá-los e agir – melhor ou pior, de forma adequada ou não. Esta relação primeira
entre a mente da mamãe e do bebê é o prototipo do vínculo do conhecimento”. (Tabak de Bianchedi)
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Narcisismo do terapeuta
A capacidade de conter a própria angústia permite o vínculo +K (conhecimento), em que é possível
pensar e tolerar a dúvida. Se o analista não estiver aberto ao inesperado e desconhecido, pode destruir a
possibilidade de conhecimento, promovendo a culpa, e a superioridade moral da ignorância, sentindo como
um ataque ao seu narcisismo.
“eventual funcionamento superegóico do analista, quando nele não há a capacidade de conter as
suas próprias angústias que decorrem do seu não saber aquilo que se está passando na situação analítica
havendo então falência de suas capacidades terapêuticas, e pior ainda, a possibilidade de comprometer
gravemente as capacidades mentais do paciente nele mantendo um superego de características patológicas,
assistindo-se por vezes a uma inversão do fluxo das identificações projectivas devastadora” (Ferro, 2003)
Quando a dúvida não é tolerada, e o analista deseja responder a sua demanda de saber, perde a
possibilidade de pensar, e pode haver um ataque ao vínculo com os analisandos e o grupo.
Material Clínico
Utilizarei recortes clínicos de duas sessões de grupos distintos realizados no ambulatório do Setor
de Saúde Mental da Pediatria da UNIFESP (os nomes utilizados são fictícios). Ambos os recortes revelam
meu distanciamento do que estava acontecendo, na tentativa de responder a minha demanda narcísica -
meu desejo de entender e me proteger do desconhecido.
No primeiro recorte, mostro a minha vivência em situação de turbulência, em que o grupo teve
que se proteger de meu ataque ao vínculo de conhecimento, e cuidar de mim. Como disse Sara Ferro, houve
uma inversão do fluxo das identificações projetivas. No segundo recorte, na tentativa de entender o que
se passava, me distanciei como pessoa inteira, porém pudemos, analisandos e eu, conter a frustração e
retomar a possibilidade de pensar. Eu pude voltar a minha função de analista.
Recorte clínico 1
O grupo composto por 7 crianças entre 7 e 11 anos. Nesse dia estavam presentes 4 crianças.
Batem na porta e Ariel levanta e abre a porta. Uma mulher que quer marcar uma consulta me olha.
Faço sinal para não entrar. Vou até a porta, peço para aguardar.
Ivo – Eu não entendi o que aquela mulher disse
T – Ela queria falar , mas eu disse que não podia porque estou com vocês.
Ivo – Você tem filho?
T – Se eu tenho filho?
Todos – Você tem filho?
T – Não.
Ivo – Não???
Fernando – Mas você é casada?
T – Parece que vocês têm muita curiosidade sobre mim. Se sou casada, se tenho filho…
Ivo - Nós aqui, somos seus filhos.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Discussão
Nesse recorte, há um momento em que eu me defronto com o não entendimento do que acontece.
Isso ocorre por eu tentar satisfazer meu narcisismo - ser “boa” analista, que entende o que acontece e
contribuí com ótimas intervenções, particularmente, interpretações.
Quando Ivo diz não entender o que “aquela mulher disse”, eu relaciono a pessoa que bateu a
porta. Eu perdi o momento presente: Ivo denunciava que estávamos sem entender o que acontecia.
Assim, distanciada do presente, a pergunta se tenho filhos, me pareceu uma pergunta absurda. Eu
não sabia como tinha surgido e, na busca de explicações, fiquei sem saber o que dizer. E embora a pergunta
pudesse trazer tanto uma resposta positiva quanto negativa, se surpreendem com o “não” (ou será com o
meu impacto?). Ao responder, me coloquei de alguma forma mais presente na sessão, me revelando como
pessoa. As crianças perceberam que fiquei impactada , o que também causou impacto neles. Na resposta,
eu revelei minha intimidade: sou uma pessoa que também perde o “controle”. Também me surpreendo e
fico sem saber o que fazer com o que sinto.
Houve a inversão de fluxo das identificações projetivas. Como Ferro colocou, por eu não estar
aberta ao desconhecido, promovi a culpa e funcionei para destruir a possibilidade de conhecimento.
O grupo precisou encontrar uma maneira de se recompor, de se organizar e entender o que
acontecia. Porém, nesse momento não puderam contar com a analista. Ao dizer “Nós aqui, somos os seus
filhos”, mostram a tentativa de repar a desordem causada pela investigação. O que revela uma estrutura
psíquica que reconhece sua capacidade de conter a desordem e de cuidar do outro.
As crianças que estão fisicamente afastadas observaram o desenho (um grande sol) da criança
que supostamente iniciou essa desordem ao perguntar se tenho filhos. Discutiram se são adolescentes ou
crianças. “Eu não desenho sol, só desenhava no prezinho”. Desenhar sol é coisa de criança? Ter curiosidade
é coisa de criança? Parecem acreditar que a desordem foi causada pelos aspectos infantis e que esses não
deveriam estar presentes. Mas, como disse Mara: “Adolescente é igual criança” e ainda “Gosta de saber das
coisas e precisa conversar”.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Recorte clínico 2
O grupo é composto por 5 crianças entre 7 e 9 anos, e nesse dia estavam presentes duas crianças.
Eduardo brinca com avião e carrinhos, e Daniela observa-o. Em sua brincadeira, provoca situações
de confronto, e diz que o carrinho morreu, o avião morreu, os bonecos morreram etc. Depois de muitas
tentativas da terapeuta em entender o que acontecia, Eduardo “corta” a cabeça do boneco.
Carla – Será que eu estou sem cabeça?
Eduardo – Uma mula sem cabeça.
Carla – Ah! Estou sem cabeça...
Daniela – Era o que eu ia falar. Uma mula sem cabeça!
Daniela para Carla – Agora você está começando a pegar a idéia.
Discussão
Por várias vezes tentei entender o que acontecia, porém me coloquei pouco presente. Na tentativa
de colocar a minha compreensão (cabeça), afastei o afeto e a possibilidade de estar junto (corpo).
Para uma cabeça sem corpo, há um corpo sem cabeça!
Eu estava a serviço da satisfação da minha demanda narcísica de compreender e ser boa analista.
Afastada do grupo, eu não proporcionava o vínculo +K. Eu não podia ter empatia nem rêverie.
As crianças puderam denunciar que eu não estava com eles, e como uma mula, eu estava estéril,
não podia ser criativa, nem mesmo entender o que se passava. Como uma mula sem cabeça, eu causava
medo – uma assombração – que paralisava e impedia o desenvolvimento do grupo.
Ao poderem compartilhar comigo o fato de se sentirem sozinhas, assustadas e sem minha empatia
e rêverie, essa condição foi invertida. Eu “peguei a idéia”, e novo vínculo foi estabelecido, o vínculo +K,
permitindo pensar como é estar num grupo em que a analista não compreende.
Esse recorte mostra como os vínculos mudam na sessão e como estão relacionados ao presentes.
Conclusão
O analista precisa ter continência aos próprios sentimentos, pois trabalhar analiticamente, não
é só algo que exerce sobre o paciente, mas algo que acontece entre ambos. A presença do analista, com
seus recursos emocionais, sua empatia e contratransferências são recursos importantes para o processo
analítico. O analista precisa estar inteiro – cabeça e corpo.
O analista é peregrino e também anfitrião. Como viajante, leva a esperança do novo e conta com o
outro para ser hospedado; como anfitrião, permitir-se sair do seu cotidiano e ser tocado por valores dentro
de si ainda desconhecidos. Estar presente na sessão é entregar ao outro o que esse necessita, sem temer
o que vai encontrar.
O analista além de ser o hospedeiro dos analisandos e do grupo, também é hospedeiro de si. Ser
analista é ser peregrino e anfitrião. É ir para si mesmo e por si mesmo: Lech Lechá!
Referências Bibliográficas
BION,W. R. [1952]. Uma teoria sobre o pensar. IN: Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de
Janeiro: Imago, 1994. p. 127-137.
BONDER, N. Tirando os sapatos: o caminho de Abraão, um caminho para o outro. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
O atendimento as crianças e adolescentes vítimas de violência e seus familiares tem sido uma
preocupação de pesquisadores e de políticas públicas, com projetos governamentais e não governamentais,
em virtude do impacto negativo para o desenvolvimento da criança e adolescente.
Lamour (1997) considera que os mecanismos descritos por Ferenczi contribuem para a
compreensão dos estudos de Summit sobre a dinâmica psíquica da “síndrome de adaptação da criança
vítima de abuso sexual” (pág 51). Refere que o momento de descoberta é um trauma para a criança. A
criança aparece duplamente como vítima dos abusos sexuais e da incredulidade dos adultos. A autora cita
que é comum, por meio de uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, que as crianças chegam a negar os
fatos após uma primeira confissão.
“As pesquisas retrospectivas revelaram que a criança, em geral, nunca diz nada: ela teme a punição
ou a incapacidade dos adultos de protegê-la da violência de seu agressor” (p.55)
Seria esperado que a popularização deste conhecimento trouxesse apenas benefícios para o
desenvolvimento saudável das crianças vítimas de violência ou não, no entanto, muitas vezes ele também
pode ser utilizado de forma perversa. Mães em situações de conflitos judiciais em determinada circunstâncias
até inventam a vivência de situações abusivas contra seus filhos perpetrados pelo genitor, com o intuito
de afastá-lo do convívio com a criança, situação denominada no âmbito judicial, como alienação parental.
Sabe-se que o sistema judiciário trabalha com documentos e provas objetivas para caracterizar
um possível abuso. Entre eles podemos citar: testemunhas, depoimentos, documentos diversos, laudos do
Instituto Médico Legal e perícias do Serviço Social e Psicológico realizadas pelos técnicos do Tribunal de
Justiça (TJ). A subjetividade por sua complexidade e dificuldade para mensurar quantitativamente, costuma
trazer dúvidas no processo jurídico, para identificar e caracterizar uma situação abusiva. As avaliações dos
peritos do (TJ), em geral trabalham com os elementos da subjetividade da dinâmica familiar em litígio. Nem
sempre é possível identificar e incluir no laudo as respostas objetivas que a Justiça espera deste profissional.
Desta forma, a alienação parental é um poderoso entrave por trazer maiores lacunas para a justiça
no que se refere a identificação de uma situação abusiva, em virtude de suas características subjetivas, já
que o discurso da criança pode estar sendo atravessado pelo desejo materno de afastar a convivência e
aproximação do pai, por razões pessoais da mãe construída na relação afetiva com o seu ex-parceiro. Neste
sentido, a criança é convidada a realizar uma aliança com um alto custo emocional, para o seu psiquismo,
no que se refere ao medo de perder o amor materno se não ocupar o lugar solicitado por esta mãe.
Tal situação pode refletir em uma justiça rigorosa, rígida e cética para a compreensão de fenômenos
relacionados à subjetividade humana, diante do uso perverso de situações graves como o abuso contra
crianças e adolescentes.
1 Psicóloga e Psicanalista, Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela UPM -SP, Especialista em Psicologia Hospitalar/
SCMSP e CFP, Formação em Psicanálise da Criança pelo Instituto Sedes Sapientiae, Docente do curso de Pedagogia das
Faculdades Integradas Campos Salles, Psicóloga Judiciária, Membro e Docente do Centro de Referência às Vítimas de
Violência/Sedes e FUNDUNESP. Terapeuta do Grupo Acesso – Departamento de Psicanálise da Criança/Sedes.
[email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Diante do cenário da alienação parental, mães que buscam como proteção para o seus filhos que
sofreram experiências abusivas sofrem, muitas vezes, dificuldade para legitimar o seu discurso e diante
deste território legal em que o espaço para a subjetividade é restrito, buscam-se subsídios para identificar
e classificar com formas supostamente seguras e inquestionáveis a caracterização de uma situação abusiva.
Diante da exigência de materiais e provas de origem objetiva, mães orientadas por seus advogados
recorrem a buscas de documentos para legitimar a “verdade”, isto é o testemunho fidedigno da experiência de
uma situação abusiva vivida, em Instituições Especializadas, a partir da fantasia que uma Instituição Especializada
terá todos os instrumentos objetivos para atestar um abuso e também é a propriedade da credibilidade por seu
“nome” de “especializada”. O adjetivo “especializado”, muitas vezes, traz confusões no imaginário social.
A Instituição compreendida como especializada para atestar um abuso por alguns cuidadores, se
trata de uma Instituição para atendimentos sociais e psicológicos que trabalha com projetos de prevenção e
proteção, capacitação de profissionais e atendimentos terapêuticos para sofrimentos e traumas emocionais
causados por situações de violência.
Observamos na nossa experiência de 5 anos de atendimentos nesta Instituição, que essas mães
consideram que a criança será protegida com o afastamento do genitor que se relacionou com a filha de
forma abusiva, como medida de proteção para evitar marcas traumáticas no desenvolvimento da criança.
Muitas vezes, considerando que o afastamento apagará todas as marcas já registradas no psiquismo da criança
que sofrera o abuso. Em geral, a preocupação inicial não está relacionada com o sofrimento emocional da
criança, mas com o documento (laudo psicológico) que legitime o seu êxito no processo jurídico. Diante deste
universo, a criança está submetida ao conflito dos pais pela verdade e sua dor emocional não tem lugar.
Neste sentido, a transferência inicial é com o nome da Instituição e o seu papel na relação com
o judiciário. Não se trata de mães que não são cuidadosas com seus filhos, mas ao sofrimento por ter
sentido a confiança traída e incapaz de proteger sua filha/filhos. Neste sentido, surgiram algumas reflexões e
questionamentos nos atendimentos realizados que motivaram esse estudo. Diante deste cenário qual seria
a possibilidade de trabalho do analista com a criança? Onde a criança tem que cumprir como meta trazer
elementos que possam colaborar com a condenação do seu pai, diante da justiça?
Transferência
Pontalis e Laplanche (2008, p. 514) designa que a transferência caracteriza-se pelo processo pelo
qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de
relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Em 1914, Freud, em seu
texto recordar, repetir e elaborar observou em seus estudos que os indivíduos repetem em suas ações
conteúdos reprimidos. Desta forma, o analista a partir das ações e comportamentos do indivíduo em análise
tem a possibilidade de compreender tais conteúdos.
Ainda, Para Freud, em 1920 (p.29) , descreve que o paciente é obrigado a repetir o material
reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez, de , como o preferiria ver, recordá-lo
como algo pertencente ao passado. Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre
têm como tema alguma parte da vida sexual infantil (acted out) na esfera da transferência, da relação do
paciente com o médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi
então substituída por outra nova, pela “neurose de transferência”.
Neste momento, podemos realizar um primeiro questionamento. Qual o lugar que a Instituição
ocupa na dinâmica emocional destes cuidadores, ao depositarem todas as expectativas de uma suposta
descoberta e legitimidade de “verdade” para proteger o seu filho, do cordeiro que virou lobo. A Instituição
ocupa o lugar de salvadora da verdade, talvez o Pai que protege e cuida, o pai confiável. Podemos inferir
uma relação de triangulação entre mãe, Instituição e criança. Lembro-me que muitas vezes, mães ficavam
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
furiosas ao se sentirem decepcionadas, diria “traídas”, ao serem informadas sobre o objetivo da Instituição
e que não seriam realizadas Perícias, mas atendimento psicológico a criança.
Na situação de análise de crianças, Freud (1920), embora não tenha analisado diretamente uma criança
(No caso Hans o material era analisado a partir da observação e relação da criança com seus pais) entende
que quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência
desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se de um substituto.
Lembro-me de Clara, 7 anos, uma menina que mudou o seu depoimento na justiça sobre uma
situação abusiva, após o apelo de sua mãe para compreender o momento do seu pai que estava com
problemas. Quais problemas? Não sabia falar sobre eles e nunca perguntou a sua mãe. A avó que era a
cuidadora da criança se sentiu traída pela alteração sobre a revelação da neta. A situação abusiva ocorreu
com um toque na região genital da menina. Tal situação trouxe lacunas para a compreensão do fenômeno
no âmbito da justiça, pois não há provas objetivas, pois qualquer exame no Instituto Médico Legal atestaria
que não houve lesões. Provavelmente, qualquer petição em defesa do genitor defenderia que não há provas
para condená-lo, apenas o discurso confuso de uma criança.
A situação abusiva e as relações familiares para o direcionamento desta situação está inscrita
na história desta criança, o que, somente, afastar o genitor não mudará o curso da experiência desta
vivência. Podemos considerar que foram registradas marcas profundas na constituição da sua identidade
com conflitos, dores, sentimentos e dificuldades para entender a troca de ternura por sedução. Firenczi
(1933, p. 119) aponta que “ os pais e os adultos, deveriam reconhecer, por trás do amor de transferência,
submissão ou adoração, o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo...se ajudarmos a criança,
a abandonar essa identificação e a defender-se dessa transferência tirânica, pode-se dizer que fomos bem
sucedidos em promover o acesso da personalidade a um nível mais elevado”.
Compreende-se que há a necessidade de um espaço de confiança que possibilite a representação
simbólica, sem a captura-la pela submissão tirânica da criança pelo analista.
Clara, estava diante do sentimento de traição da avó, o apelo da genitora, a experiência de uma
situação abusiva e o medo de perder o amor materno. Nas sessões, ela não conseguia brincar com os
materiais da caixa, não se observava gestos espontâneos e criatividade. O seu interesse era em conversar
com a analista. Podíamos observar a dificuldade pelo mundo infantil, afinal a sua busca por ternura foi
ameaçada pela confusão da sedução. Em uma das suas conversas contou que a sua amiga tinha uma
boneca e ela gostava de ver a sua amiga brincando. A sua infância parece que não podia ter lugar, pois viver
a fantasia possivelmente era assustador, diante da troca de papéis do pai por um toque sexual. A amiga
podia brincar ela apenas falar sobre a experiência do outro.
Observávamos na relação transferencial o receio em não atender as expectativas da analista,
mostrava-se uma menina sempre muito contida e comportada. Não se sentia autorizada a ser espontânea.
Cabe uma pergunta: qual a ameaça para o seu psiquismo ser espontânea e criança? Ser Clara é trair sua
mãe? Se na triangulação Instituição, Mãe e criança confiar no analista( representante da Instituição) talvez
seja a trocar da ternura por sedução, isto é uma ameaça a sua integração psíquica. Outro ponto, relevante
é expectativa materna, confiar no analista poderá despertar um sentimento de culpa insuportável, pois no
seu imaginário falar sobre o abuso pode ter a finalidade de condenar o seu pai.
Érica, outra criança que foi atendida nesta instituição, chamava a atenção por sua repetitiva
pergunta sobre o papel do analista e se iria contar para o juiz os atendimentos e se o seu pai iria ser preso.
O segredo vivido na relação abusiva era observado na transferência com o analista. “Neste final de semana
fui visitar o meu pai, mas minha mãe falou se eu contasse eu iria para um abrigo”. Neste recorte, a relação
compõe sobre o segredo, repetia a relação que teve com o pai de manter o segredo de uma situação
abusiva, com pequenos “segredinhos” com a analista. Novamente, observamos que no primeiro momento
de análise em uma Instituição especializada, há uma triangulação em que , muitas vezes, o analista ocupa
o lugar do “pai” .
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Um atendimento em uma Instituição pode ser atravessado por questões objetivas, com o interesse
inicial por um laudo, no entanto o papel do analista é com a verdade do paciente e a representação na sua história.
Os trabalhos realizados nos atendimentos com Érica e Clara possibilitaram a abertura de um
campo analítico para a subjetividade de sua história. Levou-se em consideração que as relações abusivas
não se constituem de forma inusitada, mas se compõem ao longo da história e das relações construídas ao
longo da sua constituição da trama familiar.
Referências Bibliográficas
LAPLANCHE E PONTALIS, (2008). Vocabulário de Psicanálise.Martins Fontes. São Paulo: 2008.
LAMOUR, M. Os abusos sexuais em crianças pequenas: sedução, culpa, segredo. IN: Criança Vítimas de Abuso
Sexual. Org. Marceline Gabel. Summus editorial. São Paulo. 1997
FERENCZI, S. Confusão de Lingua entre crianças e adolescentes (1933). IN: Obras Completas, Psicanálise IV.
Trad . Alvaro Cabral. Martins Fontes. São Paulo: 2011.
FREUD, S. Edição Stardard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
A Dinâmica da Transferência (1912) vol XII.
Recordar, Repetir e Elaborar (1914) vol XII.
Além do Princípio do Prazer (1920) vol XVII.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga, formada desde 1992, mestre em Psicologia do Desenvolvimento – UFBA atuou como Professora Universitária
em Salvador em cursos de psicologia, participante de Instituições de Psicanálise em Salvador e trabalha em consultório
atendendo crianças e adolescentes. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
pois segundo relato da mãe a pedagoga da escola lhe informou que Fábio estaria com a idade de 4 anos em
suas produções. Com ajuda desta profissional aconteceram algumas mudanças na rotina escolar de Fábio,
o que ajudou muito e após alguns meses ele iniciou a leitura.
A discussão interdisciplinar gerada entre a psicanalista, a Terapeuta Ocupacional e a Psicopedagoga,
foi muito produtiva e trouxe à tona a necessidade de se articular um saber transdisciplinar em torno de
objetivos convergentes – a evolução cognitiva, simbólica, a auto-percepção corporal o circuito pulsional e
um novo olhar dos pais para Fábio.
Relembrar o que aconteceu com o filho, fez com que os pais começassem também a elaborar
como foi para eles vivenciar o período da doença, e passaram a ter um novo olhar para ele e mais paciência
com seus comportamentos.
Em uma sessão Fábio começou a perguntar: O que é? quis saber o nome dos brinquedos
demonstrando interesse por estes. Iniciou uma brincadeira de luta até que em um momento ao mexer com
massa de modelar, fez um ROBÔ. Quem será este robô? Sua própria imagem? Fez vários robôs.
O tempo de ser objeto para o Outro – tempo do narcisismo primário, momento especular precisaria
ser refeito, pois para Fábio o desejo de sua mãe poderia ajudá-lo a não fazer dele apenas “um robô” mas
sim um sujeito participante do campo simbólico.
Inicialmente os pais brigavam com ele pelos comportamentos de birra, depois passaram a suportar
estes e a tentar distraí-lo com brincadeiras, relacionando suas dificuldades com a doença, às perdas que
sofreu durante a longa internação, o período de medicação, as mudanças em seu corpo. Relatam os avanços
que percebem em Fábio - agora corre livremente no parque, não tem medo de subir nas escadas e está mais
participativo nas aulas de educação física.
Importante observar que se por um lado, os pais não supõem um sujeito capaz de responder
por outro lado é preciso que a psicanalista e os demais profissionais consigam supor um sujeito capaz de
realizações, tornando possível o reposicionamento dos pais em relação ao seu filho.
Nas sessões Fábio fica mais solto, já levanta e troca de lugar na sala, está mais ativo, parece que
não é só um corpo que senta, mas um sujeito que começa a interagir mais.
O processo de elaboração simbólica avança e sessão após sessão, desenha sempre uma figura que
parece um boneco sempre igual, parecem cópias (fig.1), mas depois estes desenhos adquirem personalidade
– são super heróis - o homem aranha, homem elástico, cada um com um poder diferente, novas habilidades
vão surgindo, e também ele vai ficando mais flexível em sua linguagem, já não precisa repetir tudo o que
lhe dizem. Seus gestos também antes repetitivos tornam-se mais livres, e os pais ficam entusiasmados com
as mudanças.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A analista questiona os poderes dos super heróis, seriam poderes curativos? que efeitos teriam?
Quem poderiam salvar? Fábio responde com poucas palavras e desvia o olhar, mas ainda assim segue em
seu processo de elaboração – podem curar, um pé, um braço, um olho, salvar uma pessoa ou a si mesmo.
Com o decorrer da análise Fábio fala mais dos seus medos, já tomava a iniciativa nas brincadeiras,
que apresentavam um enredo, com tema. Surge também um olhar compartilhado entre analista e Fábio,
olham-se como cumplices quando algo engraçado ou interessante acontece nas brincadeiras.
É o circuito pulsional se restabelecendo, agora já no terceiro tempo, conforme apontado por Laznik
(2004) o de fazer-se objeto para o outro, pois Fábio inicia a interação olha para a analista e espera que esta
note o que ele faz com um dos brinquedos de super herói - o super homem, quem sabe não é o super Fábio?
Afinal seus medos diminuem, já não solicita mais a mãe a noite, deixou de ser bebê. Um sorriso,
um olhar, um riso - finalmente um sujeito em crescimento, não é mais um robô.
É importante lembrar que a psicanálise tem conseguido contribuições cruciais para a articulação
interdisciplinar nos problemas de desenvolvimento na infância, e o trabalho de um psicanalista de crianças
que acredite que sua disciplina “basta a si mesma”, sem necessidade de articulação com outras áreas, esta
condenando sua prática à armadilha de seu narcisismo, já que perde de vista o limite e o alcance de seu
próprio ato (Pinho, 2003).
A psicanálise não possui o saber todo do sujeito, ela tal qual a estruturação psíquica, padece de
uma falta, de um saber que não se conclui, que precisa de outros saberes, e que nunca se completa.
Referências Bibliográficas
BERNARDINO, L. M. F . A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infância. In: Colóquio do
LEPSI IP/FE - USP, 2006, São Paulo. Colóquio do Lepsi IP/FE - USP, 5, São Paulo, 2006.
GHAZIUDDIN M, Al-K I e GHAZIUDDIN N. Autistic symptoms following herpes encephalitis in: http://www.
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JERUSALINSKY, A.N. Seminários I. São Paulo, USP, 2001.
___________________. Multidisciplina, Interdisciplina e Transdisciplina no trabalho clínico com crianças.
Escritos da Criança, N.3 Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 1990.
LACAN, J. O Seminário. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Livro 11. Rio de Janeiro: Jorge
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LAZNIK, M-C. A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ed. Ágalma, 2004.
MOMO, A.R.B. SILVESTRE, C. e GRACIANI, Z. O processamento sensorial como ferramenta para educadores:
facilitando o processo de aprendizagem, Ed. Memnom, São Paulo, 2011.
PINHO, G.S. A Psicanálise e a Clínica Interdisciplinar com Crianças. A Psicanálise na Interdisciplinaridade,
Revista da APPOA, Porto Alegre, n. 120, dez. 2003.
SCHWARTZMAN. J.S. e ARAÚJO. C.A. Integração Sensorial nos Transtornos do Espectro do Autismo in:
Transtornos do Espectro do Autismo, MOMO, A. e SILVESTRE, C, Ed.Memnon, São Paulo, 2011.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Verificamos que a escuta psicanalítica dos cruzamentos de uma rede discursiva sobre a infância,
veiculada no discurso dos pais em trabalho institucional de grupo, promove efeitos subjetivantes para seus
filhos configurando, portanto, uma parte estrutural do trabalho com a criança em instituição. A forma de leitura
destes cruzamentos discursivos foi denominada de análise psicanalítica de discurso. Chamaremos de efeitos
subjetivantes aqueles decorrentes do posicionamento do sujeito em um discurso, efeito de um desejo, de uma
nomeação e de uma enunciação do campo do Outro. Tomaremos ainda a ideia de efeitos subjetivantes, como
aqueles promovidos por uma transmissão simbólica no discurso da própria educação e dos cuidados sobre
a criança, porém, de uma educação cujo desejo não seja anônimo e de um cuidado que não seja puramente
mecânico. Assim, acredita-se que estes discursos poderão subjetivar a criança em tratamento institucional
propiciando o surgimento de seu desejo. Os efeitos subjetivantes seriam, pois, aqueles que remontam,
retomam ou tentam reconstituir as marcas que seriam primordiais para localizar o sujeito no desejo do Outro,
e cuja produção e sustentação só se torna possível na sustentação das relações transferenciais, nos laços
sociais e, portanto, discursivos, ao longo da vida da criança.
Partimos da perspectiva que, para além dos traços primordiais, que lançam o sujeito humano
precocemente na via das pulsões em direção ao Outro, haja também uma possibilidade de reinvestimento
psíquico posterior pela via discursiva, na qual seu objeto seja também investido de desejo. Acredita-se que,
mesmo tendo sofrido percalços nos primórdios da construção pulsional de sua vida, num laço constitutivo
com um Outro original, a criança ainda terá a chance de se enlaçar e ser laçada pelo discurso desejante de um
Outro institucional, de um Outro da cultura. O trabalho de Kupfer (1999) fundamenta o conceito de Educação
Terapêutica para a construção de um atendimento institucional para crianças com Transtornos Globais do
Desenvolvimento aponta que, se numa etapa precocíssima, na qual as primeiras marcas que deveriam passar
por diferentes tempos para se constituírem como marcas eficazes e capazes de produzir o sujeito não operou,
as mesmas não se alçam à condição de significantes com pleno poder de linguagem. Porém, diante destes
impasses nas inscrições subjetivas primordiais, aposta no alcance de uma rede de linguagem, tecida por um
Outro institucional, constituídas por discursos que sustentem o sujeito de desejo. Nessa medida, por meio de
uma extensão do campo de linguagem, promovida por um campo institucional, tenta “capturar” ou “fisgar” a
criança que parece à deriva dela. Portanto, esta será uma concepção de base que estará presente no percurso
do presente texto, considerando a escuta psicanalítica do discurso dos pais na instituição, um dos recursos
que promove a extensão desse campo de linguagem para a própria criança por meio de seus pais.
O presente trabalho foi constituído em campo clínico da instituição chamada Associação Lugar de Vida
– Centro de Educação Terapêutica no bairro Butantã em São Paulo. Esta instituição, originária no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, com mais de vinte anos de existência, sustenta trabalhos com propostas
inclusivas e recebe hoje uma população heterogênea de crianças, tanto em seu caráter de organização psíquica
(neuróticas, psicóticas e autistas), de queixa inicial (problemas de aprendizagem, de fala, de comunicação,
1 Psicóloga; Psicanalista; Especialista em “Tratamento e Escolarização de Crianças com Transtornos Globais do Desenvol-
vimento” pelo LV/IPUSP; mestranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo/USP; membro fundador e Vice-Presidente do Conselho de Administração da Associação Lugar
de Vida – Centro de Educação Terapêutica, Coordenadora de Grupo de Pais e Membro do Núcleo de Intervenção Precoce
na mesma associação. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
de relacionamento com os outros, de inserção social etc.), quanto de condições sociais e econômicas. Assim,
embora tratemos de crianças neuróticas, inseridas na linguagem e no discurso, reservamos fundamentalmente
para a criança autista e psicótica, as quais “tropeçam” ou desarrimam da via de linguagem, um lugar possível no
discurso desejante de seus pais e do Outro representado pela cultura e por um campo institucional.
Os discursos dos pais serão, pois, concebidos como uma rede de linguagem sobre a criança, na qual
cruzam os diversos discursos sociais contemporâneos sobre a infância.
Podemos supor que ao restabelecermos um campo de linguagem em torno da criança, algumas
tentativas ou “restos de marcas que não se significantizaram, possam ser reintroduzidos numa operação
significante”, na medida em que supomos em cada criança um sujeito de desejo (Kupfer, 1999, p.106). Dessa
perspectiva, ouvir os pais, seja de crianças diagnosticadas autistas, psicóticas ou neuróticas, fará referência a
uma escuta que acompanha o encadeamento discursivo e sua riqueza polissêmica, abrindo novos sentidos
para a criança que porventura se encontre em posição de fixidez ou de repetição patológica, a qual lhe imprima
sofrimento psíquico. Nesse sentido, podemos supor que a criança poderá experimentar a saída de um lugar
fixo e único, a partir do momento em que seus pais se disponham a falar sobre ela, dirigindo-se ao outro que
sustente um lugar de subjetivação desta fala. O dispositivo de fala dos pais em grupo será, segundo a forma
de escuta e intervenção proposta, um recurso essencial na montagem institucional a fim de possibilitar que a
criança se desloque também na montagem discursiva familiar e em certos discursos sociais estigmatizantes
sobre os supostos problemas na infância. Pretende operar também nos casos em que a criança parece ocupar
um lugar de vazio significante, e cujo efeito seria justamente o do apagamento de sua fala enquanto sujeito,
assim como a mudez simbólica de seus pais.
Consideramos também o aspecto histórico e contextual dos discursos, apontando, a partir daí, que
o discurso social cientificista contemporâneo influencia sobremaneira as posições discursivas dos pais, os
quais, por sua vez, se expressam com frequência, em falas adesivas e reprodutoras destes discursos sobre
as problemáticas de seus filhos, descrevendo-os, classificando-os e objetalizando-os. Esse discurso coloca a
criança numa posição próxima a que se referiu Colette Soler no artigo Fora de discurso: autismo e paranoia
(1983) em relação às crianças autistas e psicóticas, denominando-as crianças-objeto, na qual a função do
sujeito encontra tropeços em sua constituição. Assim, supomos que o discurso tecno-científico contemporâneo
tenha uma incidência similar sobre as crianças de um modo geral, obstacularizando sua singularização no
desejo do Outro e nos discursos sociais atuais, dificultando por isso sua empreitada subjetiva.
Acreditamos que a compreensão deste discurso social contemporâneo, articulada à escuta dos
discursos atuais dos pais sobre a educação e cuidados com seus filhos, possibilitará ao profissional que
trabalha com crianças no âmbito institucional adotar uma escuta e intervenções fundamentadas numa ética
em que os pais sejam respeitados em sua singularidade psíquica e em sua produção de fala, bem como a
consideração de que suas posições discursivas são também afetadas pelos discursos sociais de uma época,
problematizando as questões tão recorrentes sobre sua culpabilização pelas supostas “falhas”, “problemas” e
“fracassos” nas crianças.
A problemática específica do autismo, exemplo extremo do que se denomina como criança-objeto,
foi geradora de muitas controvérsias e de polêmicas históricas sobre a questão da relação entre os pais e seus
filhos autistas, desde Kanner (1943). Kupfer (1999), para além dos inflamados debates sobre a questão da
organogênese ou da psicogênese do autismo, assim como sobre a localização de uma etiologia do autismo
na posição parental, abre uma importante reflexão nestas discussões – “Trata-se de considerar a dimensão
da cultura e o valor de uma certa determinação discursiva em circulação no mundo contemporâneo incidindo
sobre o autismo” (p.99). Apresenta a tese de alguns autores na qual “o autismo é um significante moderno
que dá nome a um fenômeno estrutural na constituição do sujeito, nome esse que o representa, porém,
dentro de uma particular inflexão do discurso social contemporâneo, e que, ao representá-lo, o recria”. (p.100).
A autora afirma ainda que a criação contemporânea da nova categoria nosográfica psiquiátrica denominada
espectro autista, que inclui hoje as denominações de autismo e de psicose infantil, tem o efeito mesmo de
um espectro, “um fantasma que assombra os pais modernos, preocupados com o crescimento alarmante
das estatísticas em torno do autismo”. Hoje, nos Estados Unidos, fala-se em 1 autista em cada 85 crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
(CDC, 2012). “Por mais que se trate de um enorme delírio coletivo americano, do qual fazem parte passeatas
de pais de crianças autistas reivindicando e obtendo do Estado verbas astronômicas, as crianças não estão
indiferentes a essa febre. Mergulhadas nessa discursividade, mostram que estão por ela afetados, e exibem
com grandiloquência traços autistas e psicóticos dos mais variados, vindo engrossar, a cada dia, as fileiras das
crianças ditas pertencentes ao espectro autista”. (2010, p.273). Lembra ainda, em relação aos pais, que a criação
do autismo de Kanner em 1943 nasceu em estreita conexão com a culpabilização das mães, para explicá-lo
este pesquisador oscilava entre uma síndrome genética e entre enfatizar as relações mães-bebês, nas quais
indicava que as mães pareciam frias e distantes. As mães de crianças autistas fizeram sua contrapartida crítica,
explica Kupfer, organizando-se em associações e movimentos de luta por seus direitos, frente a que, Kanner,
em 1946, recuou da perspectiva relacional materna ao escrever Em defesa das mães.
Ao escutarmos atualmente os discursos de profissionais da saúde, sobre as crianças por nós
atendidas, sejam consideradas autistas ou não, e com as mais diversas queixas em seu desenvolvimento,
notamos com frequência que os pais são geralmente colocados no lugar de agendes essenciais e responsáveis
pela preservação do bem estar físico e emocional de seus filhos. Os profissionais oferecem-lhes orientações
e conhecimentos técnico-científicos sobre como melhor compreender, atender, cuidar e tratar das crianças.
Em contrapartida, os pais são também os primeiros a serem culpabilizados quando algo não vai bem com o
desenvolvimento da criança e quando este conhecimento técnico-científico falha ou demonstra-se ineficiente
em seu tratamento.
No discurso dos educadores, por sua vez, os pais são também diretamente responsabilizados
pela educação, disciplina e bom comportamento da criança. Os educadores oferecem-lhes orientações,
treinamentos e métodos pedagógicos para que os pais repliquem em seus lares o que se espera de uma boa
e adequada educação, na direção de um melhor desempenho na aprendizagem e na adequação da conduta
da criança em sala de aula. Em contrapartida, os pais são também os primeiros a serem culpabilizados no
discurso dos educadores, quando a criança demonstra dificuldades ou supostos atrasos na aprendizagem,
bem como na adequação de seus comportamentos ao ambiente escolar. A reflexão do educador sobre as
possíveis “falhas” no sistema escolar ou na metodologia adotada, além da possível inadequação da escola às
curiosidades e demandas atuais dos alunos, raramente é apresentada.
Em contrapartida, escutando regularmente o discurso das famílias em encontros grupais, campo do
presente trabalho, é possível registrar que, diante das dificuldades apontadas em seus filhos pelos profissionais
da infância, os pais demonstram, com frequência, ora um total não-saber sobre o que afeta suas crianças
e como ajudá-las, submetendo-se às prescrições dos profissionais especialistas da infância, ora um saber
absoluto, inquestionável, sobre a causalidade de seus problemas e de seus prognósticos. Neste segundo
caso, mostram-se bastante familiarizados com nomenclaturas científicas, com a descrição clínica de suas
características, bem como conhecedores de técnicas, métodos e instrumentos a serem aplicados em suas
terapêuticas ou em seu processo de aprendizagem. Este saber parece, porém, replicado, ancorado e colado no
discurso dos profissionais especialistas citados anteriormente, com um sentido único e absoluto, tamponando
a indagação, a reflexão e a construção dos seus saberes simbólicos sobre os próprios filhos, movimentos que
consideramos fundamentais para a subjetivação da criança.
Ambos os casos representam, no entanto, duas faces de uma mesma moeda, da impotência à
onipotência de seu saber sobre a criança, duas pontas de uma mesma posição imaginária de continuidade,
com poucas saídas para a diferença e a singularidade sobre um saber em relação aos filhos. Kupfer
(1999) apontará a prevalência do registro imaginário nos laços sociais contemporâneos que fomentam
os discursos miméticos e totalizantes, no qual o outro é tomado enquanto objeto – “Na falta de redes de
sustentação que possam remeter os sujeitos a uma tradição, a um passado, a significações capazes de
orientar as ressignificações do futuro, estamos jogados em um mundo fragmentado, no qual imperam
imagens estéticas, desarticuladas e, por isso, carregadas de um sentido colado a cada uma delas – um
sentido, portanto, absoluto. Um objeto é o que é, e não o que vale em uma série, dentro de uma sequência
capaz de lhe dar um sentido por sua posição nela. Ficamos reduzidos a um mundo de objetos”. (p.92).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Ao escutarmos as preocupações tanto dos pais quanto dos educadores em relação às crianças, no
geral, deparamo-nos com adultos, na maioria dos casos, às voltas com a melhor maneira, ou as melhores
técnicas ou métodos de treiná-las, de adequá-las em prol de uma meta educativa bem definida, a saber,
o sucesso. Poderíamos ainda afirmar que trataria, portanto, de uma “boa governança” sobre as crianças,
princípio que se aliaria aos propósitos gerais da Educação em prol do sucesso de uma nação. As crianças,
por sua vez, insistem em apontar o impossível desta tarefa, pois seus objetivos, interesses e desejos parecem
muito distantes dos estabelecidos pelos adultos e de suas formas de gestão sobre elas. Diante desta situação
é com frequência que escutamos pais e educadores dizerem – elas (as crianças) não obedecem ao nosso
comando!Não aceitam os limites, não param, são hiperativas. Os adultos, em seu gerenciamento da infância,
perdem esta dimensão do impossível, tomando-a como impotência e colocando-se, ora no lugar do fracasso,
ora no lugar da potência e do poder, atribuindo à criança estatuto de objeto, manipulação e manobras. Esse
discurso não parece específico dos pais e dos educadores de crianças com “problemas de aprendizagem” ou
referente a alguma estrutura psíquica, mas aparece com frequência na fala de boa parte dos pais que temos
escutado, seja em relação aos filhos diagnosticados como autistas, psicóticos, com atrasos específicos na
aprendizagem, com dificuldades de relacionamento ou de comportamento, ou mesmo em relação àqueles
com bom desempenho escolar.
Em nosso trabalho institucional atual com as famílias deparamo-nos com situações tais que nos levam
a supor que os efeitos dos discursos sociais contemporâneas sobre os cuidados com a infância, em especial o
do discurso médico e o do discurso técno-científico, parecem caminhar em direção contrária à abertura para
as dúvidas e para as novas indagações que os próprios pais possam formular sobre seus filhos, configurando
um campo desejante. Os efeitos produzidos nas posições discursivas parentais, em grande parte advindos do
discurso cientificista atual, os destituem do lugar de um saber simbólico sobre seus filhos. Medicar supostos
distúrbios e problemas de comportamento ou de aprendizagem, ou indicar terapias adaptativas ou corretivas
da criança a certos contextos e ambientes, parecem ser prescrições profissionais bastante frequentes em
nossa época, não somente no âmbito da saúde, mas com frequência, e por efeito deste, também no âmbito
escolar, e diante das quais, muitos pais parecem não ter dúvidas.
Os profissionais que trabalham com crianças não escaparão de encontrar em seu campo de atuação
os cuidados com os pais e a escuta dos discursos familiares, os quais veiculam queixas, sofrimento e pedidos
de ajuda e de orientação em relação a seus filhos, sobre seus problemas de comportamento, seus atrasos
de aprendizagem e sobre seus supostos sintomas psíquicos. Torna-se necessário refletirmos acerca de nossa
posição profissional diante destas demandas familiares e escolares sobre as crianças e quais as concepções
sobre infância, família, educação e tratamento que abordaremos para circunscrevermos nossas posições
teóricas e éticas nas práticas com a infância, e, especialmente no caso deste trabalho, na escuta e intervenções
com suas famílias.
O presente trabalho ressalta, portanto, a importância da sustentação de um dispositivo institucional
voltado especialmente para o trabalho com os pais em grupo, configurando uma estratégia de manejo
transferencial na qual buscamos “devolver” aos pais o saber simbólico sobre seus próprios filhos. O contexto
atual de um cientificismo exacerbado sobre os cuidados e a educação infantil, parece promover nos pais uma
perda de sua identidade parental e do reconhecimento do que se suporia, para cada um, ser pai ou mãe de
uma criança, cuidando e educando-a, singularmente.
Espera-se que o trabalho apresentado tenha seus desdobramentos futuros e possa incidir em outras
práticas sociais voltadas às crianças e suas famílias, propiciando uma abertura para questionamentos que, no
lugar da exclusão, da culpabilização, das interpretações “selvagens” ou da orientação e treinamento diretivo
e anônimo dos pais, caminhem na direção de incluí-los na perspectiva de uma escuta promotora de reflexão,
de uma parceria institucional e de uma co-responsabilização social simbólica na construção dos cuidados, da
educação, e de uma posição crítica e singular dos adultos sobre os possíveis lugares e destinos da criança na
contemporaneidade. Poderíamos dizer que, nesse sentido, o profissional dotado desta posição e prática de
escuta psicanalítica, exerceria junto às crianças e suas famílias uma ética e uma política que visa a subjetividade,
a singularidade e a sustentação dos laços sociais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Este trabalho busca articular os termos “provisoriedade” e “vínculo” que, à primeira vista, parecem
incompatíveis. No entanto, geralmente comparecem quando nos referimos à instituição de acolhimento.
Qual o significado que cada uma delas assume no contexto de abrigamento? O que produzem nas relações
de trabalho e nas crianças e jovens acolhidos? É principalmente sobre estas questões, suscitadas pela nossa
prática clínica no Grupo Acesso junto a crianças em acolhimento institucional, que pretendemos pensar.
Os desenvolvimentos teóricos no campo da psicologia e, especialmente, da psicanálise levaram,
por um lado, à compreensão de que o trabalho do abrigo poderia associar necessidades de pertencimento,
vínculo e separação. Para muitos, no entanto, essa possibilidade estaria relacionada à maior duração do
período de acolhimento das crianças e adolescentes nas instituições de acolhimento.
Por outro lado, muitos estudos ao tomarem como objeto o regime disciplinador, controlador
e autoritário que caracterizavam estas instituições num passado recente, mostraram os prejuízos do
isolamento, da massificação e da ausência do convívio familiar e comunitário ao desenvolvimento dessas
crianças e desses adolescentes, que produziam alguns efeitos como: dependência em relação à instituição
e pouca habilidade em participar do convívio social, especialmente, em diferentes contextos que não o
dos “abrigos”. Esses estudos justificariam a transitoriedade expressa na Lei – Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA.
O ECA, Lei Federal promulgada em 1990, introduz novos parâmetros legais ao propor proteção
integral aos direitos da criança e do adolescente, entre os quais estão o direito à vida, à educação e à
convivência familiar e comunitária:
“O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a
colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”, (Art.101, Parágrafo Único).
Desde então, os termos “provisoriedade” e “transitoriedade” marcam a instituições-abrigo,
buscando se contrapor ao modelo anterior.
Destacamos assim, que sendo uma “medida [...], utilizável como forma de transição para a
1 Psicóloga formada pela PUC/SP, psicanalista pelo Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do De-
partamento de Psicanálise de Crianças do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do Grupo Acesso da Clínica Psicológica
do Instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
2 Psicanalista, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, psicóloga. Membro do Departamento Formação em Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae e do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
3 Mestre em psicologia social pela USP, psicóloga formada pela PUC/SP, psicanalista, membro do Departamento de Psi-
canálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes
Sapientiae. [email protected]
4 Psicóloga formada pela USP, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sa-
pientiae, membro do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
5 Psicóloga formada pela PUC/SP, mestranda do Instituto de Psicologia da USP, psicanalista, membro do Departamento
de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto
Sedes Sapientiae. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
colocação em família substituta” a LEI busca garantir o direito da criança e do adolescente à convivência
familiar, uma vez que reconhece a família como o lugar privilegiado de desenvolvimento desses.
Observamos, no entanto, que a ênfase na família como lugar privilegiado de desenvolvimento
da criança e do adolescente, muitas vezes, tem trazido como correlato a desvalorização do acolhimento
institucional. É comum o fato dos profissionais de abrigo o representarem e se representarem de forma
bastante depreciativa. Essa depreciação ocorre não apenas por não serem “família”, mas devido a carregarem
as marcas trazidas pela história dessas instituições – orfanatos, depósito de crianças, lugar de abandono e
exclusão, o que muitas vezes, favorece a identificação desses profissionais com essa condição.
Quando estas linhas de pensamentos confluem – a valorização da família, a desvalorização do
abrigo – ao lado do princípio de provisoriedade, pressionam para ações de desabrigamento, muitas vezes,
precipitadas que nem sempre levam em conta o que de fato é o melhor para as crianças e para os adolescentes.
Com o objetivo de ampliar essa reflexão apresentamos a seguir o caso de uma criança atendida
por uma psicanalista do Grupo Acesso:
Elias chegou para o atendimento aos oito anos de idade e agora está com 10 anos. Mora no atual
abrigo há dois anos e meio, mas fora encaminhado ao acolhimento institucional pela primeira vez aos
quatro anos. Foi adotado e devolvido seis vezes por essas famílias adotivas.
Logo no início da análise de E. a psicanalista ficou sabendo que um novo processo de adoção se
iniciava. A equipe do Grupo Acesso achou importante acessar os demais profissionais responsáveis por E.
– técnica do fórum, gestor e técnica do abrigo – a fim de instaurar novas formas de pensar que pudessem
interromper o circuito adoção/ devolução.
Essas interlocuções nos permitiram conhecer a composição de forças que estavam em jogo nas
decisões sobre o destino de Elias. Seguramente, todos no conjunto dessas relações, acreditavam estar
agindo pelo “bem” da criança, mas o faziam de tal forma pressionados, que não conseguiam se interrogar
sobre, por exemplo, o que levava essa criança a ser “devolvida” por aqueles que a adotavam.
Também foi possível entrever que no conjunto dessas relações, não há de um lado um “culpado”
e de outro a “vítima”. Cada protagonista, de seu lugar nessa dinâmica, acaba por levar, mesmo que à revelia
do que querem, a este fim, inclusive a própria criança.
Constatamos que para a maioria dos envolvidos existia a crença de que a família seria o único
lugar possível para o afeto e para um desenvolvimento saudável: para os profissionais do abrigo todas
as manifestações negativas de Elias seriam “anuladas” pelo afeto que ele receberia na família adotiva.
Demonstram dessa forma, pouco reconhecer os vínculos afetivos que estabelecem com E. , levando-o a
não valorizar as relações que ele vivencia no abrigo. Os profissionais da Vara da Infância agiram de forma
a agilizar os processos de adoção, pois sabem que as crianças de pouca idade têm mais chances de serem
adotados. As famílias “candidatas”, movidas pelo desejo de adotarem e pelo desejo dos profissionais
da Vara e da unidade de acolhimento de colocarem a criança em uma família, acabam refletindo pouco
sobre suas dúvidas, incertezas, questionamentos e sobre o que uma adoção mobiliza em todos os sujeitos
envolvidos. A criança explicitava seu desejo de ir para a família candidata, mas por motivos que respondem
à sua história de abandono e ruptura, assim que se via lá, portava-se de modo a tornar bastante difícil sua
permanência, o que acabou culminando em repetitivas “devoluções”.
Assim, apesar dos inegáveis avanços alcançados após a promulgação do ECA, constatamos que
muitos profissionais das unidades de acolhimento ainda se vêem de forma desvalorizada e desqualificada e
com a função de agilizar o encaminhamento dessas crianças para as famílias de origem ou substitutas, vistas de
forma idealizada. Muito identificados com o desvalor da instituição como lugar de abandono, a equipe reproduz
inconscientemente exatamente aquilo em que pretende cuidar: o abandono, o desvalor, a insuficiência.
Acreditamos que a psicanálise traz importantes contribuições a respeito das possibilidades de
estabelecimento de vínculos significativos em contextos diferentes do familiar que nos ajudam a pensar
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
sobre essas questões. Vamos, inicialmente, nos apoiar nas contribuições de Winnicott, por ter se dedicado
ao sofrimento psíquico de crianças e, além disto, ter trabalhado na Inglaterra, diretamente na organização e
realização dos planos de atendimento em abrigos para as crianças durante a segunda guerra mundial.
Para ele, a estabilidade ambiental e a continuidade dos cuidados oferecidos nos primeiros anos
de vida de uma criança são fundamentais para que ela possa se desenvolver psiquicamente. Nos seus
trabalhos com as crianças e adolescentes separados de suas famílias durante a guerra, constata que muitos
deles, nunca tiveram a experiência de um ambiente primário estável, ou seja, adaptado às necessidades
especiais da criança.
Segundo Winnicott, o abrigo deveria fornecer a estas crianças as experiências primárias, e que
estas, fornecidas tardiamente nos abrigos, deveriam ter uma duração de alguns anos, e não de alguns
meses. Considera ainda que a estabilidade é a idéia central a organizar a vida no abrigo e, esta, seria um
conjunto de fatores do ambiente que permitem à criança conhecer, testar, confiar e viver. Destaca seu
aspecto fundamental: adultos que estejam juntos e, juntos assumam a responsabilidade por elas. Assim
poderá encontrar e expressar o impulso de separar os adultos que dela cuidam ou provocar desavenças
entre os profissionais da equipe da instituição e sentir alívio por não conseguir fazê-lo. Poderá descobrir
que suas idéias agressivas não conseguem realmente destruir e, por conseguinte, diferenciar fantasia e
realidade. Poderá amar e odiar a mesma pessoa e assim sentir culpa e o desejo de restaurar e recuperar.
Esta estabilidade deveria existir independentemente da capacidade individual ou coletiva das crianças para
criá-la ou mantê-la. Acreditamos que essa estabilidade deveria ser promovida pela equipe de profissionais
dos abrigos. O autor amplia essa compreensão, ao afirmar que essa estabilidade deveria também ser
transmitida da comunidade em geral.
Winnicott tem uma concepção do abrigo como um lugar de cuidado e não de abandono, capaz
de promover experiências fundantes e reparatórias no psiquismo da criança. Quando a família por algum
motivo falha, outros adultos podem ocupar esse lugar de atenção e cuidado.
No Brasil, em livro publicado em 1990, Isabel Kahn Marim constata que diversos fatores presentes
na dinâmica institucional contribuem para esvaziar as potencialidades do trabalho nas unidades de
acolhimento. Entre esses, aparece a referência ao modelo de família como único possível, bem como a
dificuldade dos profissionais em lidar com o desamparo vivido por essas crianças e com as angústias deles
próprios daí advindas. Com isso, buscam se tornar substitutos da família e algumas vezes, impedem a
criança de entrar em contato com sua história. A partir daí, ela fica impossibilitada de reconhecer a sua
condição, de elaborar suas vivências e de poder se abrir para outras perspectivas de futuro.
Perguntamo-nos se diante do desamparo dessas crianças e dos profissionais, a condição de
provisoriedade e de ida para uma família, não se constituiria em uma defesa desses profissionais frente
a esse sofrimento, pois magicamente repararia essa ruptura já que, em geral, as crianças e adolescentes
que chegam aos abrigos trazem histórias dolorosas, marcadas por rupturas bruscas nos laços primordiais.
Ainda em relação ao trabalho com os educadores observamos que, muitas vezes, eles julgam mal a família
que coloca a criança no abrigo e que idealizam fortemente a família que virá a restaurar todas as perdas
sofridas por ela. Esses pais idealizados podem fazer parte de um imaginário infantil (dos educadores) de
perfeição parental reativado no contato com o abandono, ameaçando o mito da família ideal que sobrevive
no inconsciente de cada um de nós. Isso dificulta a possibilidade de captarem o muito que podem significar
para estas crianças, mesmo não sendo família, mas exercendo função parental.
Não seriam essas vivências, que, em parte, explicariam os sucessivos encaminhamentos de Elias
para adoção?
Em nosso contato com os profissionais das unidades de acolhimento temos percebido a relação
entre ênfase na família, desvalorização do abrigo e provisoriedade. Por outro lado, constatamos que muitos
deles estão revendo suas práticas, conseguem se valorizar e, também, as experiências das crianças no
abrigo. Mas, diante da determinação legal de “provisoriedade” se perguntam: Quais as possibilidades de
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
favorecerem o desenvolvimento dessas crianças que “estão de passagem”? Como oferecer experiências
significativas para essas crianças e adolescentes que, apesar da curta duração, deixariam novos registros,
novas marcas? Perguntam ainda: Como estabelecer vínculos nessa condição? Como se ligar afetivamente à
essa criança, que logo será desabrigada, e da qual logo deverão se desligar? Não é nada simples, do ponto
de vista psíquico, investir grande energia numa relação fadada ao término
Em Sigmund Freud, encontramos uma idéia substancial para essa reflexão. Em seu texto O
Transitório“ (1915), ele afirma que o psiquismo humano se rebela contra a idéia de fim, de luto por algo
perdido, rebelião na verdade contra a morte; há uma tendência no humano a ver na transitoriedade um
impedimento ao gozo e desfrute de tudo que esteja fadado ao fim.
Freud nos conduz assim a uma reflexão sobre o luto, assinalando que o desprendimento da libido
de seus objetos tende a ser sempre um processo muito doloroso. O autor conclui, então, na contramão da
tendência à desvalorização do efêmero, que “o caráter transitório de certos acontecimentos, ao invés de
desvalorizá-los, incrementa seu valor; as limitadas possibilidades de usufruí-lo o tornam ainda mais precioso”.
Na instituição de acolhimento, o que os educadores oferecem à criança é marcado pelo sinal da
provisoriedade e do transitório. Sustentamos que isso não impede que acontecimentos significativos que
mudem a compreensão da criança sobre si possam acontecer.
Boris Cyrulnik, psiquiatra e psicanalista francês, com atuação em situações de guerra e conflitos na
Europa atual, aponta nessa direção. Em seu livro “O Murmúrio dos Fantasmas” ele trabalha com a idéia de
trauma e com as condições que favorecem a retomada do desenvolvimento após o mesmo.
Para ele, após um acontecimento traumático, o sujeito não é mais o mesmo: “o traumatismo
inscrito na memória passa a fazer parte da história do sujeito como um fantasma que o acompanha”. Esse
autor destaca que a potencialidade traumática e desorganizadora da experiência não está nela “em si”, no
real, mas na forma com que o sujeito a vive e a significa, a qual depende tanto da história individual de cada
um quanto dos recursos oferecidos pelo contexto sócio-cultural de pertencimento. O que a criança encontra
em seu meio, ao seu redor após a experiência traumática faz toda diferença em relação ao modo com que
ela continuará a desenvolver sua narrativa sobre si mesma.
Cyrulnik afirma a importância do modo como os adultos próximos à criança puderam ou não
absorver o impacto do acontecimento traumático. Quando o adulto próximo é brutalmente atingido pelo
acontecimento e não consegue absorver o impacto, a criança fica mais exposta aos efeitos desorganizadores
que impedem possíveis simbolizações. Assim, quando um ambiente familiar é deficiente, outros contextos,
seja no bairro, na comunidade, em espaços culturais, esportivos, profissionais, podem apresentar outras
maneiras de viver e podem propiciar condições para que novos “acontecimentos significativos” ocorram.
Para este autor o “acontecimento significativo” muda a narrativa do sujeito sobre si mesmo; após o
acontecimento ele não será mais o mesmo e o vive como “a reparação de uma ruptura.” Nunca saberemos
a priori o efeito que terá para cada criança e em que ambiente a criança encontrará isso. Apenas podemos
afirmar que a possibilidade de vínculo com um outro humano e de atribuir sentido ao vivido são condições
para a retomada e construção de novas narrativas por essa criança.
Considerações finais
A provisoriedade prevista na medida de abrigamento surgiu como uma condição para impedir que
os longos períodos de institucionalização das crianças privadas do convívio familiar, dificultassem a retomada
dos vínculos familiares e comunitários. Expressava assim a expectativa desse breve retorno, em um momento
histórico em que as internações eram provocadas, principalmente, por razões econômicas. Mas, como vimos,
a questão da provisoriedade vai assumindo sentidos e funções muito além do originalmente pensado.
Assim, se a provisoriedade aparece como correlata à desvalorização da instituição em relação à
família, é vista em si como um impeditivo de estabelecimento de vínculos e, portanto, como uma condição
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
para a desvalorização da experiência de abrigamento. Parece-nos também que se apresenta como uma
defesa frente ao sofrimento provocado nos próprios profissionais diante do desamparo vivido pelas crianças
do abrigo. São sentidos que não se excluem; pelo contrário, se entrelaçam e configuram uma complexidade
nas relações presentes nas instituições-abrigo e com os diversos atores que com elas interagem. Nosso
trabalho é uma aposta no abrigo como um lugar de encontros, capaz de possibilitar o vir a ser da criança
no percurso de novos trajetos.
Referências Bibliográficas
ARAGÃO, R.O. Formação de Profissionais da primeira infância: a importância da vinculação afetiva com o
bebê. Palestra proferida no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, 25/05/2007.
CYRULNIK, B. O Murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.
FREUD, S. Sobre a transitoriedad(1915). Edição Standard das Obras completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. V. XIV.
MARIN, I.S.K. Febem, família e identidade: O lugar do Outro. São Paulo: Escuta,1999.
WINNICOTT, D.W. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
O Contexto escolar, conforme se sabe, é palco de inúmeras tensões e jogos de força que, via de
regra, dificultam o aprendizado e geram bastante sofrimento à criança. Contudo, há contextos especialmente
precários, onde se combinam diversos fatores: alta vulnerabilidade social, alta proporção de alunos por
professor, falta de flexibilidade institucional, despreparo dos profissionais e, não raro, desinteresse do
cuidador pelo aprendizado e saúde mental da criança. Muitas vezes, esse quadro resulta na localização de
algumas crianças como a causa dos problemas da escola, criando-se um clima de animosidade em que o
aprendizado e a convivência tornam-se muito difíceis.
Enquanto psicólogo do CAPS II Cidade Ademar, realizei matriciamento em Unidades Básicas
de Saúde na periferia da zona sul de São Paulo. Nessa função, fazia discussão de casos e atendimentos
compartilhados com os técnicos da unidade. Além disso, participava da “TEIA”, reuniões multiprofissionais
com as escolas, justamente para dar algum suporte aos casos mais difíceis, sugerindo intervenções que
fomentassem um clima escolar minimamente saudável.
Em contexto escolar conturbado, com escassez de profissionais, não é fácil ao professor ou diretor
destinar um período do dia para uma reunião fora da escola, isso fazia com que os encontros fossem
raros e, geralmente, com alta rotatividade de profissionais. Estes, via de regra, encontravam-se angustiados
com o cotidiano de trabalho. Além disso, deveriam ser capazes de replicar as ideias discutidas com outros
profissionais também angustiados e atarefados em um meio, como dito, bastante conturbado. Neste
quadro, aprendi com a experiência – e faço desse ponto o eixo deste texto – algo que pode ser resumido no
seguinte pensamento: quanto mais precário for o contexto, mais simples deve ser a intervenção.
Portanto, organizo a seguir algumas intervenções bastante simples, quase óbvias, que podem
melhorar o jogo transferencial relacionado às crianças que ocupam o lugar de alunos-problema. Vale dizer
que não se trata, com isso, de resolver a situação, mas de transformar algo que aparece como problema
terrível e insolúvel em uma dificuldade possível de ser enfrentada pela escola.
Do pessimismo à aposta
Alguns casos são discutidos na tentativa de encontrar soluções para seus impasses; outros, por sua
vez, para que o supervisor referende o seu caráter insolúvel, legitimando assim a desesperança do profissional.
É comum ouvir “vou passar esse caso só por passar” ou “só por desencargo de consciência...”. Nessas horas,
é importante intervir: ou há uma confiança em encontrar uma melhora para o caso, e faz-se a discussão com
afinco, ou não se faz discussão alguma. Se isso não estiver claro, desde o princípio, é possível que o supervisor
tente apontar intervenções milagrosas enquanto quem passa o caso se preocupa em mostrar que elas são
impraticáveis, o que, obviamente, solapa qualquer possibilidade de reflexão.
1 Psicanalista, mestre em psicologia social pela USP e professor universitário. A partir de uma perspectiva psicanalítica
e institucional, tem publicado artigos na área de Saúde Mental, Cultura e Modificações Corporais, de onde se destaca o
livro Suspensão Corporal, novas facetas da alteridade na cultura contemporânea. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Claro, é importante o reconhecimento das dificuldades do caso, das angústias e frustrações dos
profissionais, bem como da importância das intervenções realizadas anteriormente. Contudo, levar um caso
para discussão significa uma disponibilidade para investir ainda mais, tornando-se importante a transformação
da angústia em investimento.
Do sintoma ao discurso
Um aluno cujo comportamento não se adéqua às expectativas da escola será, como se pode
imaginar, uma fonte constante de transtornos e aborrecimentos. Normalmente é a criança agitada,
que briga, grita, expressa sua sexualidade, agressividade, enfim, sua vitalidade de forma supostamente
inapropriada. Esses casos são usualmente apresentados em sua dimensão sintomática, visível, esperando-
se alguma técnica ortopédica que retifique o comportamento. Obviamente, entre o incômodo institucional
e a intervenção almejada precisa haver a compreensão da situação. Para que esta seja possível é preciso
transformar a apresentação sintomática em uma apreensão discursiva do caso, em que o comportamento
da criança ganha sentido quando contraposto àquilo que ela diz e é dito sobre ela. Ou seja, não se trata de
negar o valor discursivo, prenhe de sentido, do comportamento da criança, mas apontar que este só será
devidamente desvelado em articulação ao seu discurso verbal. Nessa perspectiva, uma intervenção simples
e eficaz é perguntar pelo que o aluno diz.
Essa questão simplória encontra frequentemente o susto dos profissionais, atentos ao que ele
faz, mas surdos ao que ele fala. Na concepção de muitos profissionais, “conversar” com a criança significa
dizer como ela deve se comportar e “fazer combinados” significa apresentar as regras escolares previamente
decididas. Ora, vale apontar o real significado dessas ações, que implicam o fechamento ao que pode
emergir de inesperado na fala da criança. Neste caso, o que orienta este tipo de intervenção, mas que
talvez não seja tão óbvio, é que profissionais identificados ao lugar de saber devem poder se deparar com
a limitação deste saber, especialmente no que tange às situações singulares. É fundamental, portanto, um
estado de curiosidade e interesse pelo ainda não dito da criança, como se, a cada momento, ela estivesse
prestes a comunicar algo essencial sobre si. A mudança de expectativa pelas ações para a escuta pela fala
pode justamente fazer com que muitos conteúdos sejam ditos, e não atuados.
Dessa forma, ao nos depararmos com dificuldades singulares, ao invés de procurarmos respostas
prontas, estratégias típicas para cada tipo de questão, podemos ouvir, compreender e intervir de forma
específica para cada caso.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
o compartilhamento dessa informação com o professor pode prepará-lo para acolher um comportamento
inesperado. Novamente, não se trata de procurar uma continuidade entre a criança e seu meio, naturalizando
suas ações, mas de compreender o pano de fundo do qual ela se destaca, com o qual dialoga e constitui
resistências e interpretações singulares. Em suma, está em questão o não saber dos profissionais e como
isso implica a necessidade constante da circulação de saberes no interior da instituição.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Daniele John 1
Você tinha 9 anos quando chegou aqui e dentro de você havia uma guerra. Você não demorou
para me mostrar isso, abrindo todas as caixas de jogos e brinquedos e jogando todas as pecinhas para
cima. Naquela época, há quase 6 anos atrás, não dava ainda para brincar, formular enredos, só para mostrar
o ódio e a destruição que moravam em você. Eu precisava de um bom intervalo depois de atender você para
dar conta de guardar tudo antes de outra pessoa entrar. O combinado de deixar a sala como a encontrou
era retomado e desrespeitado toda vez. Naquela época, você era um expert em ser desagradável e tinha o
dom de fazer todos a sua volta te odiarem.
Era fácil saber quando você chegava ao consultório, acho mesmo que todos sabiam, até os das
salas mais distantes. Você fazia muito barulho e entrava sempre brigando com seu motorista, espécie de
babá-pai-substituto-pago-para-te-aguentar, a quem você foi delegado. Até o dia em que ele não aguentou
mais e foi embora. Sua mãe também não aguentava, escapava para o interior, ia cuidar das propriedades
distantes da família, da decoração e dos animais - mais fáceis de lidar do que este filho que só lhe punha
nervosa, a quem repetidamente surrava como fora surrada na infância.
Seu pai era o todo-poderoso-que-pagava-as-contas. Cresceu pobre, mas fez vasta fortuna,
conquistada pelo próprio mérito. Ele pagava pelo motorista, boa escola, terapias e médicos, ótimas roupas,
viagens, conforto e luxo e depois cobrava uma conta bem alta, na moeda da humilhação. Quando você
nasceu seu pai ainda era casado com a primeira mulher, com quem tinha dois filhos, um menino e uma
menina. Sua mãe era a empregada doméstica desta casa. Seu pai, amante dela. Quando você tinha 4 anos,
seu pai largou a família “oficial” e foi viver com sua mãe e você. Mas, de certa forma, as posições subjetivas
não mudaram tanto assim. Poder, dinheiro, submissão, servidão, humilhação, ódio e exclusão estiveram
sempre em pauta na dinâmica familiar. Você era o filho bastardo da empregada doméstica pobre com o
patrão rico e poderoso.
Você chegou inflado, filho do dono, dono também. Era o rei, como tantas vezes brinquei, grifando
o significante presente em seu nome de batismo. Diante da primeira interdição colocada por mim no
setting, você protestou dizendo que quem mandava ali não era eu, mas você, porque havia comprado o
consultório. “É mesmo? Estranho, não estava a venda!”, eu disse. Não se dando por vencido você me disse
que seu pai havia oferecido uma quantia tão extraordinária por ele, que eu tive que vender mesmo assim.
Mas eu insisti que o consultório não estava a venda por dinheiro nenhum no mundo e garanti a você que
o dinheiro não pode comprar tudo. O tamanho de sua onipotência indicava o tamanho de sua fragilidade.
Você precisava colocar-se forte e poderoso para defender-se de deparar-se com o lugar difícil e dúbio que
ocupava no desejo dos seus pais.
Aos olhos do seu pai, você era a versão imperfeita do filho oficial e perfeito, morto aos 17 anos
em circunstâncias nebulosas. Um possível suicídio, alguns especulavam, hipótese jamais aceita por seu pai,
para quem seu irmão cristalizou-se em uma imagem irretocável. Aquele sim era super inteligente e teria sido
o herdeiro do império do pai, não fosse sua trágica morte precoce. Você nunca conheceu este meio irmão,
mas chorou sua morte, enlutou-se junto com seu pai e enredou-se ao morto idealizado, idealizando-o
também e tornando-se o avesso dele, uma versão capenga dele, um resto, eternamente insuficiente aos
olhos de seu pai. Preso a uma imagem de perfeição do filho morto, seu pai só podia olhar para você com
1 Psicanalista, psicóloga pela UFRGS, especialista em psicanálise pela UFRGS, mestre em Estudos Psicanalíticos pela
Tavistock Clinic de Londres , doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professora da UNIP e do curso de formação em
psicanálise do CEP, membro da APPOA.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
desgosto, como o lembrete concreto e desagradável de que o filho ideal não estava mais aqui. Assim, nem a
sua inteligência extraordinária, percebida por todos que tinham alguma convivência com você e evidenciada
nas sessões de análise, podia ser reconhecida pelo seu pai.
Mas você a mostrou com clareza a mim, construindo verdadeiras instalações em sessão. Civilizações
antigas, monumentos colossais, palácios sofisticados, personagens bem marcados, enredos rebuscados nos
quais invariavelmente eu era o escravo e você o mestre. Mas nós já estávamos em outro plano: a violência
já havia, em parte, ganho contorno na brincadeira. E, se nessas cenas você podia mostrar a riqueza dos
seus recursos, a capacidade de construir e criar - fazendo contraponto à destruição inicial do começo de
sua análise - você também mostrou claramente o seu lugar de humilhado, tomando, na transferência, o
papel daquele que humilha. Estávamos em pleno jogo de Fort-Da2, você na posição ativa do que sofria
passivamente. Você vivia nos palácios e, eu, num casebre furado, atingido pela chuva, frio e vento. Você era
o rei, eu, o súdito.
Mas nem tudo ficava dentro do contorno do brincar, seu ódio também comparecia em ato.
Repetidas vezes, quando eu começava a falar, você gritava por cima da minha voz: “cala a boca, sua burra”.
E foi assim, através desta transferência essencialmente negativa, de difícil manejo, na qual eu era colocada
no seu lugar e você assumia o lugar de déspota, que você me mostrou de onde você vinha.
E por que repetir o que gerou desprazer, perguntará Freud em 1920, se não para colocar-se, desta
vez, como “senhor da situação” (Freud, p.28)? Fui a “companheira de brincadeira” para quem você transferiu
a experiência desagradável, o substituto através do qual se vingou3. Mas não era só uma sede sádica de
vingança que estava em jogo, era também sede de elaboração. Você fez uso de mim, na transferência, como
sua analista-carretel, endereçando a mim o seu ódio, até que ele pudesse ter um outro destino4.
E se o dinheiro era um operador importante da dinâmica familiar, isso também se evidenciou
na forma como você trazia o pagamento. Vinha com o cheque do seu pai em um bolso e o dinheiro do
estacionamento, no outro. Repetidas vezes você tirou o trocado do estacionamento do bolso e me ofereceu,
com um sorriso de deboche nos lábios. Ou então, tirava o cheque do bolso e o jogava no chão, na tentativa
de fazer com que eu me agachasse diante de você para pegá-lo.
Tivemos muitos momentos difíceis. Os combinados eram exaustivamente retomados e burlados.
Tentei diferentes manejos, de toques de humor a tentativas de nomear a repetição que ali se instaurava. Eu
dizia a você que você estava tentando me fazer odiá-lo, tentando provocar em mim a reação que provocava
em outras pessoas, que acabavam se afastando de você, batendo em você, desistindo de você. E te deixei
claro que não desistiria, mas que também não iria tolerar tudo. Brinquedos duros foram lançados contra
mim e a sessão interrompida com um exaltado “assim não podemos continuar”. E eu me perguntava se
nestes momentos em que eu também era tomada de ódio, não saía da posição de analista. Aos poucos
fui entendendo que o meu limite fazia limite para você e que o que eu achava, a princípio, ser puro ruído
contratransferencial, tinha função analítica.
Havia dias em que o ódio transbordava em você, como quando chegou riscando os vidros da
minha janela. Eu te ofereci papel, te disse que percebia a intensidade do que sentia e te convidei a “falar”
de outros jeitos. Você pediu que eu me virasse para a parede, tomou o punhado de papel branco nas mãos
e passou a rabiscá-los com fúria. Eu escutava o barulho da caneta sendo pressionado com toda a força no
papel. Depois de riscar com rispidez pilhas de papel, você colocou algo legível no papel e me deu permissão
para me desvirar e olhar. Você havia desenhado o logotipo da escola, havia escrito “vale 10” em um canto
2 “É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real, e
assim procedendo, ab-reagem à intensidade da impressão, tornando-se, por assim, dizer, senhoras da situação” (Freud,
1920, p.28)
3 “Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradá-
vel para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto” (Freud, 1920, p.29)
4 Como coloca Mauro Mendes Dias, em Ódios, não se trata de produzir sujeitos equilibrados. “É o que pode haver de
pior. Principalmente quando o triunfo desse equilíbrio encontra-se diretamente relacionado à eliminação do ódio. Por isso
mesmo, um de nossos temas é poder se interrogar sobre o destino do ódio ”(Dias, 2012, p.28).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
da folha. No outro canto da folha uma nota: “3, 5”. E junto desta nota você escreveu “assinatura do pai ou
responsável”. Peguei a folha na mão e disse a você que agora podia compreender por que você estava tão
bravo. “É que você vale 10, mas seu pai só pode vê-lo como 3,5”, eu disse. Neste dia você chorou, tirou, pela
primeira vez, a capa da onipotência e se mostrou frágil. Devia dar um trabalhão manter-se sempre tão forte!
Nessa época eu não sabia ainda que você se mostraria também, mais tarde, doce. Confesso que
muitas vezes temi que o nosso trabalho não daria conta de tirar você da perspectiva de fazer laços perversos
com o outro, vida afora. Foi difícil aguentar e manejar tanto ódio. Sustentava nosso trabalho lembrando do
sábio ensinamento de Freud sobre não tomar o que é endereçado ao analista como pessoal, mas como uma
repetição de protótipos de relação. E se é importante saber que o amor dirigido ao analista “não deve ser
atribuído aos encantos de sua própria pessoa” (Freud, 1915, p.210), isso também vale para o ódio.
– Que sapato feio este seu”.
Fiquei em silêncio.
– Você só tem este sapato?
Continuei quieta.
– As pessoas vão pensar que você só tem este sapato.
– Ah! É com isso que você está preocupado? Com o que as pessoas vão pensar? Elas vão pensar
que eu sou pobre?
Naquele dia fui para casa considerando jogar os meus amados sapatos pretos fora. De tanto que eu
gostava deles, talvez estivessem mesmo já um tanto passados. Mas isso era outra história! Em sessão, tratava-se
de abster-se de responder do lugar de um laço social qualquer. Ficar simplesmente ofendida com a provocação
não teria me permitido escutar a repetição que se fazia ali, na transferência. Ser rico ou ser pobre era uma
grande questão para você. Vestia-se de Brooksfield dos pés à cabeça, “porque é a marca mais cara”, deliciava-se
com o Baião-de-Dois do boteco da esquina do consultório, mas sua carteira era Armani. Perguntava-me se eu
já havia ido no restaurante tal ou tal e diante da minha resposta negativa, dizia “pobre é foda!”.
E, aos poucos, você foi podendo ser também gentil. A primeira grande mostra de sua gentileza
apareceu no dia em que você completou 10 anos. Você apareceu no consultório com seu bolo favorito nas
mãos e fez questão de dividi-lo com todos. Comigo, com as minhas 2 colegas, que você conhecia de vista dos
corredores (uma delas estava em atendimento, mas você fez questão de deixar a fatia separada para ela), com
a menininha e a mãe que costumavam dividir com você a sala de espera. Descemos até a cozinha para partir
o bolo e colocar em pratinhos. Você estava feliz e eu também. Achei significativo você querer celebrar seus 10
anos de vida ali. Você mostrava o quanto aquele lugar estava sendo importante para você, ao mesmo tempo
que evidenciava um efeito do nosso árduo trabalho. Você podia ser agradável com o outro.
Ao longo do tempo, outras demonstrações de gentileza intercalavam as cenas de humilhação. Um
dia você contou que veria o espetáculo do Cirque Du Soleil. Perguntou se eu já havia visto algum, respondi
que há muitos anos eu assistira a montagem de Alegria, que havia gostado muito e que a música era linda.
Na sessão seguinte você apareceu com uns fones e, sem dizer nada, os colocou nos meus ouvidos. Ao
reconhecer a trilha daquele espetáculo eu sorri e você sorriu também. Desta vez não era de deboche.
E você, que outrora havia criado um personagem chamado motorista suicidero, um boneco sentado
em um carrinho de lego que você lançava com toda a força divã abaixo para ver em quantas partes ele se
partia, agora incorporava um novo personagem. Você era um grande cirurgião, de renome internacional
(o nome que você deu a ele, era, de fato, a versão do seu nome em inglês), que tinha uma especialidade
peculiar: ele ressucitava pessoas que haviam morrido degoladas, colando de volta suas cabeças no lugar. O
tratamento era rebuscado, envolvia cirurgia, complexas ataduras e uma longa recuperação em uma maca
especial criada por você. Fizemos juntos a tal maca com material de sucata. Claro que eu ficava com a
parte trabalhosa, você dava as ordens. Investimento de várias sessões, a maca era um apanhado de caixas
de remédio grudadas e forradas e depois pintadas. Havia um lugar no meio onde os bonecos da família,
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
devidamente decapitados e operados com a cabeça de volta no lugar, cheios de ataduras, eram encaixados,
e ficavam ali repousando até voltarem a viver. Gravadas na maca estavam as iniciais de seu nome, seguidas
da titulação, “especialista em cabeças”. Muita gente, vinda de todos os lugares do mundo, foi curada por este
grande médico. Eu era a eficiente auxiliar de enfermagem, a mim cabia recortar ataduras, instrumentar as
cirurgias e tolerar certas grosserias suas, já bem menos frequentes que outrora. Um dia você pediu que eu
trocasse o forro da maca, de vermelha ela passou a ser verde. “Verde é a cor da esperança!”, eu disse, “você
dá esperança aos seus pacientes e eu estou orgulhosa de você!”. E a medida em que você fazia um evidente
trabalho de reparação, eu pensava que o momento da alta se aproximava. Quantos deslocamentos! Sua
onipotência ainda estava ali, mas sua finalidade era construtiva. Você colocava as cabeças de volta no lugar e
nós dois colocávamos a sua!
Mas, para minha surpresa, você não queria saber de ir embora. Quando ensaiei marcar uma data
para nossa última sessão, você brincou repetindo a mesma data sugerida, só que com o ano seguinte. Rimos.
E seguimos trabalhando. A esta altura você já havia espichado, engrossado a voz, virado um adolescente. Trazia
músicas no Ipod para me mostrar, fazia testes comigo para ver se eu adivinhava nome da banda e música.
Surpreendia-se com o meu repertório de rock and roll, seu grande interesse do momento, e também com a
minha vasta ignorância a respeito das cantoras pop mais comerciais da atualidade. Trocamos figurinhas sobre
nossas bandas preferidas. Incrementei seu repertório e você, o meu. Ao retomar o assunto da alta você um
dia me disse: “agora que você mais está me ajudando quer que eu vá embora?”. Eu me questionava sobre o
que acontecia ali, virara uma amiga que você encontrava toda quinta à tarde? Já não era hora de fazer amigos
lá fora, na vida “real”? Você estaria com dificuldades de se separar de mim? Seria resistência minha continuar?
Mas havia algo de interessante na sua fala, era como se, pela primeira vez, você estivesse bancando por si
mesmo o pedido da análise. Não vinha mais porque sua mãe queria (seu pai nunca verdadeiramente quis que
você viesse) ou porque eu, sua analista, achava que era necessário. Você era quem queria vir.
Eu sabia que a situação na sua casa não era nada fácil e sentia que era como se o espaço da análise
servisse, ainda, entre outras coisas, como ancoragem. Continuamos a ouvir música no seu Ipod, a jogar cartas,
Monopoly e a conversar sobre os conflitos domésticos, as dificuldades com seus pais, a escola, os novos
amigos que você, finalmente, conseguia fazer. E, sem muita antecedência, ao falarmos sobre a data da última
sessão antes das férias de julho, você anunciou que aquela seria sua última sessão para sempre! Perguntei
sobre esta decisão e você me disse: “minha mãe acha que eu não preciso mais, você acha que eu não preciso
mais, meu pai nunca achou que eu precisasse e agora eu também acho que não preciso mais!”.
Você vem para sua última sessão e conversamos sobre muitas coisas, entre elas sobre como seria
lidar com os bichinhos da cabeça da mãe sem a análise. Você sugere que, agora que você não virá mais, “quem
sabe ela poderia vir no seu lugar?!”. Conta sobre uma visita da sua meia-irmã e de como a mãe reclamou que
você estava sendo frio. “Será que ela não percebe que minha irmã é uma estranha pra mim?”. Legitimo o que
você diz e conversamos sobre a possibilidade de construir uma relação. Por associação chegamos ao meio-
irmão morto e você diz “pelo menos meu pai já não fica dizendo que ele é um gênio, porque morto é sempre
bom!”. Rimos um pouco juntos, imaginando as prováveis brigas que os dois teriam, caso ele estivesse vivo.
Você decide continuar uma partida de Monopoly, começada algumas sessões atrás. Você estava ganhando
longe de mim, cheio de propriedades, “praticamente dono do mundo” eu comentei, lembrando de como você
chegou, querendo comprar o consultório. E aí você me diz: “dono do mundo, no Monopoly!”.
Referências Bibliográficas
Dias, M.M. (2012) Ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras.
FREUD, S. (1915 [1914]) Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise III). In Ed. Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1990.
______. (1920) Além do Princípio do Prazer. In op.cit.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga e psicanalista. Doutora em psicologia (IPUSP-SP); membro efetivo no Depto. Psicanálise da Criança – Sedes e
docente nos cursos: “Introdução a Intervenção Precoce na Relação Pais Bebê’ e ‘ Amamentação e Psiquismo: Reflexões’;
membro filiado na SBPSP; membro da Sociedade Brasileira de Pediatria SBP e membro do Depto. de Saúde Mental da
Sociedade de Pediatria de SP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Tenho como perspectiva neste trabalho, a reflexão de uma experiência institucional exercida em
uma instituição pública de saúde e seus entrelaçamentos com o campo educacional. Pretendo debruçar
sobre este percurso, revisitando algumas vertentes teóricas e intervenções da clínica psicanalítica com
crianças, tecidas e articuladas com as dinâmicas transferenciais. De uma psicanálise em movimento que se
amplia até as instituições, e, atravessada por questões de grande complexidade, encontramos a clínica, que
nos confronta a todo momento, quanto às possibilidades e alcances, por ser uma clínica com crianças e
por ser no âmbito institucional. A questão lançada pelo colóquio, de pensar a transferência na clínica com
crianças, na cena contemporânea, nos remete ao texto Freudiano com as descobertas do insconsciente, da
transferência e da sexualidade infantil.
Vemos que na sua teorização, o conceito de transferência surge no último dos ensaios que
compõem a coletânea “Estudos sobre a Histeria”(escrita em parceria com Joseph Breuer-1985), no qual as
duas principais noções referentes à clínica são enunciadas: resistência e transferência. Daniel Kupermann3
faz um itinerário do conceito de transferência a partir desse momento, pensada como resistência, indo na
direção da repetição necessária ao trabalho de acesso às fantasias recalcadas e ao Complexo de Édipo, com
a atualização do inconsciente. Isto implica em riscos e desafios para o analista na situação clínica, como
podemos ler nos textos: ”A Dinâmica da Transferência”, 1912, “Observações sobre o amor Transferencial” em
1915 e “Recordar, Repetir e Elaborar “ em1914. Assim, a transferência no artigo ”A Dinâmica na Transferência,
já surge como repetição incorporada ao processo analítico, podendo ser positiva ou negativa e aliada à
descoberta de que todas as relações emocionais se desenvolvem a partir de desejos vinculados à sexualidade.
Pensar sobre a transferência no trabalho institucional nos instiga pelos desafios encontrados com
a modificação do setting clássico e as vicissitudes decorrentes dos lugares do analista, com a multiplicidade
sintomática das crianças e com os atravessamentos institucionais. Sustentamos o trabalho com uma escuta
especial e com a transferência que no caso das crianças, torna-se pressionado pelas demandas familiares,
da escola e de outras instituições. Atenta a não responder a todas as demandas, porém, em determinados
momentos, escutamos os pais que também movidos por seus desejos, recalques e transferências podem
1 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro do Grupo de Trabalho e
Pesquisa em Psicanálise e Contemporaneidade no departamento de Psicanálise, Psicóloga Clínica do Centro de Saúde de
Pinheiros. [email protected]
2 Artigo de Flávio Vespasiano Di Giorgi que saiu na Folha de São Paulo em 18 de março em 1984 Posfácio do livro “Refle-
xões sobre a criança, o brinquedo e a educação” de Walter Benjamim
3 D.Kupermann,” Presença Sensível :Cuidado e Criação na Clínica Psicanalítica “(2008), pg 86
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
aceitar as mudanças em seus filhos ou interromper os atendimentos4. Algumas vezes, os pais chegam
muito comprometidos emocionalmente e demandam atendimentos, sendo então, encaminhados para
outro profissional da unidade.
O trabalho clínico ocorre no Centro de Saúde de Pinheiros que possui várias especialidades
médicas e não médicas, Instituição Estadual de Saúde que contempla as diretrizes do SUS. Contamos com
neurologistas, psiquiatra infantil, psicólogos, fonoaudiólogas, assistente social e outros que reencaminham
e acompanham alguns casos, de forma multidisciplinar. Percebemos que cada vez mais, chegam crianças
pequenas de 3 a 7 anos de idade, sendo consideradas pela creche, escola e outras instituições, casos
que necessitam de atendimento psicológico e às vezes, de medicação. A diversidade sintomática é ampla:
crianças que não desenvolveram a linguagem se comunicando através de gestos, crianças com suspeita de
autismo ou de psicose, inibições comportamentais e cognitivas, agitação, agressividade, enurese, encoprese,
questões sexuais, e queixas múltiplas referidas ao contexto escolar.
Como dar conta desta complexidade clínica na instituição? O analista mesmo não tendo as condições
dos pacientes adultos neuróticos, trabalha com a transferência, que consiste no manejo das situações
favorecedoras de construção psíquica para o surgimento do sujeito, onde novos sentidos vão marcando
processos singulares e novas histórias são construídas de si e do seu entorno familiar. O endereçamento
pulsional que a criança faz ao analista, permite que o “traumático” e o sofrimento manifestados na cena
analítica, muitas vezes no brincar, ora nos desenhos, ora na escrita ou nas associações verbais que este, o
escute como um sujeito desejante. Isto para que não fique tão à mercê do outro, embora no atendimento de
crianças, esta questão está sempre presente devido à sua dependência aos adultos, o que coloca também
a questão ética para o analista.
O que a clínica institucional nos apresenta, é que o terapeuta procura preservar a especificidade de
seu ofícío mas também é receptivo à criação, ao inédito. Por isso, a amplitude de seu trabalho que pode ocorrer
como no caso clínico abaixo ou percorrer caminhos de entrelaçamentos com o social e com o cultural. Katia de
6 anos chega com sua tia para atendimento quando a situação familiar era conflituosa e dramática, pais com
história de abuso de álcool e mãe depressiva com tentativa de suicídio. Ela e seu irmão de 10 anos já ficavam
em alguns períodos na casa dos tios. Com dez dias de atendimento da criança, sua mãe realiza mais uma
tentativa de suicídio e morre. Não tive tempo de conhecer sua mãe, tão destrutiva consigo mesma, mas pôde
ainda deixar planejada em um bufê a festa de aniversário de 7 anos de sua filha. Os tios maternos conseguem
uma guarda provisória e o pai que trabalha como vendedor, após a morte da esposa passa a visitar os filhos e
a disputar a guarda deles. Pude acompanhar esta criança durante dois anos e meio e além de seus desenhos
e o brincar que revelavam dor, perda e todo processamento do luto, evidenciava muitos recursos psíquicos,
pois, me contava sonhos e segredos familiares. Após o acontecimento, tinha pesadelos, não conseguia dormir,
chorava muito, solicitando sua tia ao seu lado. Em seus desenhos, sua mãe estava sempre presente e com o
tempo foi se distanciando, ficando no céu. Katia continuou indo a escola, participando das atividades escolares
e se relacionando com os colegas. Em alguns momentos, pensava em morar com seu pai, mas também
reconhecia os bons cuidados que recebia de seus tios. Eram desejos de recompor sua família, enquanto
lidava com a ambivalência do amor e ódio aos tios- pais substitutos- tendo que se integrar na família deles,
que tinham outros filhos. Considero que a transferência no processo terapeutico foi fundamental na escuta
dessa criança como sujeito desejante, visto que atingida pela perda materna no período édipico, ela pôde se
ressituar no sentido de elaborações e recomposições internas e, com respaldo familiar acolhedor, seguiu em
um caminho identificatório de menina que preza a vida. Ela vinha para as sessões enfeitada com vestidos,
tiaras e pulseiras A transferência institucional também participou desse encontro analítico, ela aguardava às
sessões e sua tia colaborava em alguns momentos trazendo-a, em outros, a criança insistia em vir. Enfim,
chegamos a um momento de separação, já podia seguir sua vida com a família substituta que pensava neste
momento, em morar no interior.
4 A. Sigal “O lugar dos Pais na Psicanálise de Crianças”,( 1994) pg 50 . Aberturas para um trabalho também com a
transferência dos pais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Para Viñar, o infantil não é a história vivida e biográfica ainda que seja um pouco. O infantil é a
história sonhada, desejada e temida5. E com relação ao sonhar, Decio Gurfinkel refere à importância que
Winncott dava a capacidade de sonhar da criança e principalmente sob transferência.6
A concepção do que é relação transferencial foi sofrendo transformações na esteira dos desafios
clínicos surgidos com a segunda tópica freudiana, e com o aparecimento de casos clínicos de sofrimento
psíquico que não eram neuroses. Neste recorte, clínica psicanalítica de crianças e movimentos transferenciais,
temos outros desenvolvimentos teórico-clínicos pós-freudianos formulados por Melanie Klein, D. Winnicott,
Maud Manoni, Dolto, e outros. As contribuições da escola inglesa com Melanie Klein introduzindo o jogo
como substituto da associação livre e propiciador da expressão das fantasias internas com o trabalho do
analista na interpretação desses conteúdos. Daí, Melanie Klein trava um debate intenso com Anna Freud
sobre os aspectos transferenciais implicados nos atendimentos de crianças. Temos os aportes de Donald
Winnicott que nos oferece novos sentidos à regressão e ao jogo, e a experiência transferencial passa a ser
determinada pela qualidade sensível do psicanalista principalmente em pacientes traumatizados, modulada
pela singularidade de cada analisando. Dessa forma, nesses pacientes, não seria a neurose de transferência
freudiana, atualização do insconsciente, mas no percurso analítico, o analista se deixa odiar/destruir e ser
usado pelo analisando, fazendo do encontro afetivo, criação.
As contribuições da escola francesa, influenciadas pela sistematização lacaniana, trazem Françoise
Dolto que enfatiza a erogeneidade das diversas partes do corpo e pela experiência corporal vivenciada pela
mediação da função materna, produz simbolização. E Maud Mannoni sublinha os lugares que uma criança
ocupa em relação aos fantasmas dos pais. Para ela, no processo analítico emerge a história dos desejos
parentais, os não ditos, os discursos entrelaçando as tramas psíquicas, portanto, a escuta analítica deve ser
estendida além do sintoma que a criança apresenta, indo até seu meio familiar e social.7 Jean Laplanche
retrabalhando e reformulando conceitos mas na trilha freudiana, reconhece a transferência como reveladora
do inconsciente, portanto portadora de um novo sentido. A dimensão fundamental da transferência para
ele, seria a relação ao enigma do outro. Com a formulação de sua teoria, a sedução generalizada, reafirma
o eixo: a prioridade do outro na constituição do sujeito sexual. O enigma sexual é proposto pelos adultos à
criança, assim há o enderêçamento e o outro não sabe tudo o que diz, ele é outro para si mesmo.8
Mas é no trabalho clínico principalmente com crianças que o analista, às vezes se surpreende,
porque recebemos casos que já vem com diagnósticos: autismo, hiperatividade, déficit de atenção, inibições
e no processo analítico vão se desenrolando vários emaranhados que elucidam outras conflitivas, não
confirmando os diagnósticos iniciais. Esta situação, nos leva a pensar que os efeitos dos processos psíquicos,
os enigmas, operam no jogo transferencial sentidos novos com a criação de outros lugares possíveis para
essas crianças.
No trabalho institucional, o psicanalista está mais próximo das questões sociais e a escuta nos
atendimentos das crianças encaminhadas por escolas, tem que se ampliar, alguns casos, vão além da
formação fantasmática singular, trazendo questões pertinentes à escola. Como grande encaminhadora de
casos para diagnósticos e medicalizações teria que se repensar como lugar dessubjetivante e até promotor
de exclusão. Comecei a me indagar sobre esta questão, quando recebi uma criança de seis anos de idade,
considerado pela escola, perturbadora, uma vez que na classe se agitava, levantando da cadeira, subindo
nos armários e agressivo com os colegas e professores, atrapalhando o andamento das aulas. A avó e a
escola entravam em conflitos porque era chamada a todo momento.Os educadores mostravam impotência
em acolher à criança, parecia em “surto” mas com a presença da avó, ele conseguia manter o controle. Na
discussão da dinâmica familiar de Lucas com os educadores emergem visões mais centradas no diagnóstico
e tratamentos, pouco se levando em conta, o período de adaptação à escola, entrou naquele ano, sua
angústia e história de vida permeada com separações e perdas.O pai foi assassinado e mãe usuária de
drogas, após morte do marido deixa seu filho num abrigo com um ano e seis meses. A avó paterna tira-o
do abrigo aos dois anos. Conseguimos, ao invés da mudança da criança para outra escola, restabelecer a
implicação dos educadores com ações de acolhimento e investimento nesta criança. Paralelamente, ele
estava sendo atendido no Centro de Saúde. Este caso clínico, como outros, levaram ao entendimento
de uma demanda por um trabalho com intervenção na escola que foi ao encontro das expectativas dos
educadores. Propor à escola espaços de abertura com novas possibilidades para os sujeitos, ao invés de seu
fechamento numa dinâmica de reproduções e cristalizações. E recuperar as dimensões da subjetividade e
da singularidade tendo em conta as manifestações de sofrimento das crianças. Há casos de crianças que
não querem ir à escola e outras se sentem excluídas.
Como romper este ciclo de diagnósticos e medicalizações que estreitam os caminhos dos alunos
e afetam suas famílias?. Não poderiam às instituições ter espaços de maior continência, mais cuidados e
inovações nas relações?. Assim, estabelecemos uma parceria Centro de Saúde e escola (2010 a 2011) com
o próposito de conhecer mais a realidade escolar e construir um trabalho conjunto que envolvesse os
profissionais da escola, alunos e familiares. É uma escola pública estadual, de ensino fundamental (1º. ao
5 ano) que possui 320 alunos de seis a onze anos, de período integral, localizada no bairro de Pinheiros e
próxima ao Centro de Saúde.
Por que a criação de um espaço exploratório lúdico na escola?. A implantação e funcionamento
de um espaço lúdico na escola que implicasse a todos da comunidade escolar, seria um dispositivo que
propiciasse mudanças de visões e olhares para os conflitantes processos escolares, além disso, havia um
material lúdico enviado pela Secretaria da Educação que estava fechado em caixas há dois anos, uma vez
que não havia quem o organizasse. Por este trabalho, ter conexões com uma rede AutoFormação Local
de Pinheiros, pôde contar com auxilío de alunos da Pedagogia da USP para organização e classificação do
material lúdico e alunos engenheiros da pós`graduação da Fundação Vanzolini, atuantes em projetos sociais.
Para nortear este trabalho de intervenção e pesquisa, pensamos numa perspectiva de orientação
psicanalítica, de clínica ampliada vinculada a realidade social e cultural. No cenário contemporâneo de
excesso de tecnologias, consumismo e individualimo, a escola ainda é um lugar de referência para a criança.
E os efeitos do papel da escola no processo de estruturação subjetiva das crianças e jovens vão além da
transmissão de conhecimentos. Destacamos o psicanalista Donald Winnicott que aproxima em sua teoria o
brincar das relações culturais e, considera como sinal de um psiquismo saudável que torna os indivíduos mais
capazes de um viver criativo.O brincar é essencial, e há uma evolução direta dos fenômenos transicionais
para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado e deste para as experiências culturais. Também
consideramos outras leituras, apesar dos debates vigorosos e questionamentos quanto a aproximação da
Psicanálise e Educação, encontramos trabalhos institucionais profícuos, que articulam a Psicanálise com
a Cultura, orientados pela psicanalista Maria Cristina Kupfer. E outras perspectivas e formulações com a ”
Análise Institucional”.
Retomando a experiência na escola, a criação do espaço exploratório lúdico teve com objetivos: oferecer
um espaço com material lúdico (brinquedos e jogos) às crianças, aos profissionais e pais. Não há ações dirigidas,
o brincar é livre. Ter encontros com os profissionais da escola e com os pais para a discussão sobre a importância
do brincar e a participação no funcionamento do espaço, construindo junto o projeto. Propiciar o encontro de
crianças de diversas idades com o material lúdico e, a escola com as famílias devem dar continuidade ao projeto.
Mesmo com receptividade inicial, no momento da implantação surgiram muitas dificuldades no
engajamento dos educadores, em parte, havia o receio do espaço ser destruído pelas crianças. Em 2010, as
crianças começaram a frequentar o espaço com os professores e, em alguns momentos, houve a presença de
psicólogas. Ocorreram encontros com os professores para discussão sobre o funcionamento e organização
de horários dentro da dinâmica escolar. Os professores mostraram participação, tiraram fotos e colocaram
no site da escola. Com os familiares ocorreram dois encontros para a apresentação do espaço lúdico. A
escola atravessada por multi atividades não favorece a participação da família. Além disso, é considerada de
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
passagem, pois, somente 20% dos alunos são moradores do bairro, o que dificulta a implicação dos pais.
Não existem trabalhos na escola para cuidar das relações escola e família, durante a intervenção houve um
momento de recuo e fechamento para a participação dos pais na escola. A dimensão exploratória toma conta
do espaço, todas as crianças brincam e os professores neste contexto estabelecem relações mais amistosas
com seus alunos. A coexistência da potência e dos conflitos marcam o contexto escolar, como vemos com
a mudança do expositor de gibis que se encontrava num canto escuro da escola para o espaço lúdico,
e ser acessível a todos. Ser a coordenadora nesse trabalho, me levou a um lugar de transferência criado
pela situação institucional, e a uma escuta que procurou sustentar os conflitos e favorecer a circulação da
palavra entre todos, ocorrendo em alguns momentos impasses e limites. Trabalho clínico transdisciplinar
atravessado por múltiplas transferências e pelas dimensões da ética e da política, olhar estrangeiro que tem
como um dos efeitos diminuir o número de encaminhamentos para a unidade.
Conforme Vinãr, o psíquico e o social, essa zona entre o mundo interior e os espaços compartilhados
em uma cultura e suas instituições são múltiplas e decisivas para serem exploradas. A propósito do lugar
do analista em uma intervenção institucional educacional, Maria Laurinda de Souza o situa no espaço do
entre, entre o interno e o externo, o dentro e o fora, entre a clínica e a educação,entre o individual e o social.
Um lugar sempre a construir... Enfim, esperamos que “as crianças” em sua multiplicidade não fiquem
aprisionadas em diagnósticos e medicalizações e sejam capazes de um viver criativo, atando os laços entre
o brincar, o criar e o aprender.
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surgimento do sujeito” Revista de Psicanálise, ano XXI, n.42, 2009.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
Como psicóloga e psicanalista, que nos últimos anos vem desenvolvendo intervenções
psicológicas em contextos de abrigos para crianças e adolescentes, deparei-me com um grupo de
mulheres, cuidadoras 4 de crianças abrigadas, que manifestava sofrimento psíquico intenso e que precisava,
portanto, de cuidados psicológicos.
Amparada pela perspectiva winnicotianna, aquela que me orienta nos últimos anos, considerei as
cuidadoras como o ambiente humano que poderia favorecer, se estiver saudável, o desenvolvimento
daqueles que têm o abrigo como o ambiente indicado e possível para viver.
Se a ação ambiental saudável favorece o desenvolvimento das potencialidades para a saúde do
indivíduo, como compreendeu D. W. Winnicott, penso que, cuidar das cuidadoras de uma instituição é
fundamental para que elas possam oferecer um cuidado “suficientemente bom” para aqueles que estão
presentes no ambiente institucional.
Parte-se da consideração de que, por meio do cuidado, aqui traduzido como a intervenção
psicoterápica – encontros psicoterápicos em grupo com a equipe de cuidadoras - há possibilidades de
resgatar a continuidade do processo de crescimento emocional dessas mulheres que cuidam de crianças
em acolhimento.
Cada vez mais temos observado a necessidade contemporânea de a psicologia avançar para fora
dos consultórios e nesta experiência com as cuidadoras, não foi diferente: o enquadre diferenciado da
intervenção psicoterápica acontecendo no abrigo e, portanto, a clínica inserida na instituição. Winnicott
considerava: “somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião”
(1962/1983, p. 155).
Complemento ainda que, além de realizar os encontros psicoterápicos tendo como ancoragem a
psicanálise, fundamentalmente a perspectiva winnicottiana, com enquadres diferenciados5, esta intervenção
pôde se propagar por dois anos, de forma sequencial – de 2006 a 2008. Esta temporalidade, por si só, indica
a possibilidade de desenvolver a clínica em contexto institucional, com enquadres diferenciados.
Apoio-me em Bleger (1984) para defender minha presença como psicóloga e psicanalista além do
emoldurado consultório para ingressar em círculos mais amplos, incluindo o atendimento clínico também
com grupos e instituições. O autor (idem) ressalta que a necessidade de ampliar a atuação do clínico refere-
se, sobretudo, ao fato de a dimensão psicológica se fazer presente em tudo, porque em tudo o ser humano
intervém (p. 16). Escreveu o autor:
A função social do psicólogo clínico não deve ser basicamente a terapia e sim a saúde pública e,
dentro dela, a higiene mental. O psicólogo deve intervir intensamente em todos os aspectos e problemas
que concernem a psico-higiene e não esperar que a pessoa adoeça para recém poder intervir. (1984, p.20)
Aspectos Metodológicos
A intervenção psicoterápica com o grupo de cuidadoras realizou-se por dois anos, de 2006 a 2008. Os
encontros ocorreram em grupo, semanalmente, por duas horas cada sessão, no próprio contexto da instituição.
Para investigar e avaliar a dinâmica psíquica das cuidadoras, atreladas aos relacionamentos com
crianças em acolhimento, utilizamos o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema4. Aplicamos o
procedimento com o grupo no início da intervenção, em 2006, e na finalização, em 2008, com o tema:
“Desenhe uma cuidadora e uma criança abrigada”. Analisamos todos os materiais obtidos pelo grupo
de forma individual, privilegiando a apresentação da dinâmica do universo psíquico de cada cuidadora,
anteriormente e posteriormente à intervenção psicológica. Partimos, então, para a compreensão de como
o grupo se apresentava: a subjetividade da equipe de cuidadoras deste abrigo.
Ao longo dos encontros com o grupo de cuidadoras, durante dois anos, não estabelecemos
técnicas para serem desenvolvidas com o grupo. Todos os encontros construíram-se de forma espontânea,
segundo os fenômenos emergentes. Cada encontro era compreendido de maneira singular.
Considerações Finais
Este estudo nos permitiu levantar algumas hipóteses. São elas:
1. A busca do trabalho de cuidadora em abrigos pode estar relacionada com a busca pelo
próprio cuidado interno: Supomos que há aspectos internos de vivacidade que impulsionaram essas
mulheres a procurar pelo trabalho de cuidadora em abrigos como uma maneira de também cuidarem delas
mesmas internamente. Este auto-auxílio poderá ser um disparador para o crescimento emocional, se for
auxiliado pelo acompanhamento psicológico.
2. A ideia do abrigo também como um contexto reparador para aquelas cuidadoras que possuem
recursos internos para virem a cuidar de si ao cuidarem da criança no abrigo, desde que acompanhadas pelo
atendimento psicológico.
De maneira sintética, citamos algumas constatações:
1. A clínica psicológica no contexto social: A partir desta experiência constatamos o quanto é
possível e útil desenvolver a clínica psicológica no contexto social, confirmando a possibilidade do uso do
conhecimento psicanalítico fora do consultório, e permitindo que outras realidades sejam atendidas em
suas necessidades, em atendimentos duradouros.
2. Mudança da realidade interna sem modificar a realidade externa (instalações do
abrigo): As evoluções emocionais observadas na equipe de cuidadoras aconteceram mantendo-se a mesma
realidade social do ambiente (abrigo), independente das melhorias das condições ambientais externas (as
quais também são importantes).
3. Relacionamentos mais humanizados no abrigo: as cuidadoras, ao alcançarem melhor contato
emocional, podiam conter e elaborar o sofrimento psíquico. Ao longo do tempo, as relações interpessoais
no grupo e no contexto do abrigo passaram a se constituir por relacionamentos mais humanizados.
4. A importância do relacionamento humano sustentado pelo contato afetivo: Consideramos
que o desenvolvimento do ser humano acontece quando há uma figura humana ao seu lado que o estimule
e o acompanhe. Ele não se desenvolverá emocionalmente se for apenas cuidado para manter-se vivo, sem o
envolvimento afetivo e confiável. O ambiente psicoterápico confiável pôde proporcionar ao grupo o contato
com suas emoções.
Conclusões
Concluímos que estes encontros psicológicos com as cuidadoras, realizados no contexto
institucional, poderão constituir um modelo preventivo de intervenção para o progresso da saúde mental
em abrigos.
Indicamos os encontros psicoterápicos em enquadres diferenciados para as cuidadoras em todos
os abrigos, realizados em grupo e no próprio contexto institucional, como medida preventiva e não somente
curativa. As cuidadoras poderão compreender muito mais o sofrimento das crianças em acolhimento quando
compreenderem a si mesmas. Esta intervenção psicológica com as cuidadoras pode ser entendida como
uma medida de saúde pública em contextos institucionais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A partir das situações de transferência de análises infantis, a autora se dispõe a refletir sobre os
manejos transferências necessários para abordar as situações clínicas em que está presente de forma
significativa o mecanismo de defesa que Freud chamou de Verleugnung e que pode ser traduzido por recusa,
desmentido ou desautorização. Este mecanismo de defesa – a desautorização ou recusa – estabelece uma
cisão no Eu, entre de um lado, o registro e de outro lado, a desautorização deste registro. Mas, qual é o
registro de percepção que é desautorizado? Parece-nos que desautorizamos a percepção de tudo o que
pode variar ou diferenciar-se. Sentimos intolerância com relação ao inesperado, ao desconhecido, àquilo
que, silenciando, no analista ameaça com o seu caráter “diferente, inesperado, variável”. Em reação a esta
ameaça surge um “desmentido” ou uma desautorização de tudo que ameaça variar e diferenciar-se. Através
desta reação procura-se tornar desimportante e indiferente aquilo que é inesperado. Recusa-se a diferença,
tornando-a indiferente. O que se recusa é a realidade processual e histórica, a que comporta diferenças
e diferenciações. No lugar desta percepção da diferença colocamos a presença de algo que não muda,
algo que magicamente possa sempre estar lá. Tentamos tornar previsível o imprevisível, mesmo que seja
desagradável e doloroso.
1 Professora da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP nas disciplinas de Psicanálise kleiniana e
winnicottiana e do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga formada pela PUC-SP, em formação no curso de psicanálise da criança do Instituto Sedes Sapientiae, membro
do departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, com experiência em atendimentos a crianças,
bebês e famílias em consultório, hospital, casa de apoio e instituição de acolhimento. [email protected]
2 O termo “mãe” faz referência à função materna, geralmente cumprida pela mãe, mas não sempre.
3 Parentalidade é um neologismo que engloba os termos “maternidade” e “paternidade”.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Transferência e transicionalidade
Podemos retomar aqui a questão inaugural da psicanálise de crianças e refletir sobre como é
possível a transferência nessa fase tão inicial da constituição psíquica. Para a psicanálise de bebês, o bebê
já nasce carregado de conteúdos. Seu corpo vem pleno de sentidos, que vão se transformando ao longo
da vida, especialmente na primeira infância. Mesmo a vida intrauterina não pode ser ignorada como uma
fase significativa, na qual o corpo, primeiro representante do psiquismo, já foi imantado de conteúdos que
tornam o feto, mais que um futuro ser humano, um sujeito em constituição.
Em atendimentos clínicos, bebês muito pequenos já são capazes de repetir, dentro da transferência,
experiências pelas quais passaram e dinâmicas psíquicas que ocorrem consigo. Em 1941 Winnicott, em
“observação de bebês numa situação padronizada” utilizava-se de consultas com bebês, acompanhados
de suas mães, para entender e tratar seu estado emocional. Em outras palavras, afirmava que bebês de
poucos meses já eram capazes de transferir ou de projetar conteúdos para a situação analítica, através do
relacionamento com objetos. Descreveu uma série de possibilidades de padrões de manipulação do objeto
pelo bebê, representando aspectos de sua relação com a mãe ou com o médico e inclusive a capacidade de
lidar com as duas pessoas ao mesmo tempo. Associa o comportamento do bebê a fantasias inconscientes
acerca da figura materna internalizada. Ora, se o bebê já tem as figuras parentais internalizadas, parece ser
um sinal de que é capaz de transferir.
Eliacheff (1993) relata atendimentos a bebês que sofreram graves rupturas e viviam em instituições
de acolhimento. Em alguns deles, o comportamento descrito pelos cuidadores era muito diferente daquele
apresentado durante a consulta, o que a levava a crer que de alguma forma o bebê tenha percepção da
condição diferenciada do setting analítico e isso favoreça que ele reviva na transferência a ruptura e o
sofrimento que levaram ao sintoma. A interpretação somente pode ser feita com êxito quando formulada
com base na transferência, na repetição de conteúdos no contexto da análise. É ela que autoriza e atribui
sentido à interpretação, fazendo com que seja mais do que um enunciado vazio. Eliacheff também relata sua
contratransferência, que a norteava na condução das análises. A interpretação, para ela, não pode ser feita
apenas com base no que é relatado pelos cuidadores, mas no que é inscrito na sessão, o que indica o desejo da
criança de falar sobre aquilo. As interpretações que fazia eram verbalizadas e de alguma maneira apreendidas
pelos bebês. Questiona-se como é possível que os bebês, ainda não apropriados da linguagem verbal, possam
fazer dela uso tão eficiente. A partir da sua compreensão, era possível construir juntamente com o bebê um
sentido para sua experiência, devolvendo-o ao lugar de sujeito de seu desejo e da narrativa de sua vida.
Eliacheff comparou a psicanálise de bebês à dança – o corpo do analista seria um veículo para
sentir os efeitos dos acontecimentos sobre o corpo da criança. Transformando em palavras estas sensações
corporais, ele as devolve à criança, que então as pode sentir corporalmente e, junto com o analista, construir
um sentido para elas. O corpo, dentro desta perspectiva, seria o lugar da linguagem. Ou, conforme Solis-
Ponton e Rose-Moro, as “emoções e fantasmas que circulam na cena da consulta vão utilizar o corpo do
analista como a moradia de sua elaboração” (2004, p.71).
Há que se pensar que necessariamente se lida nestes casos com várias transferências e
contratransferências - com cada um dos cuidadores e com o bebê. Além disso, também há a transferência
com a própria maternidade. Podemos falar aqui do terceiro, conforme Lacan, ou do campo transicional,
segundo Winnicott. De qualquer forma é possível afirmar que, entre uma mãe e seu bebê, existe algo que
se constrói a partir da relação e não se limita a uma ou outra pessoa.
Ao se tratar da relação entre mães e bebês, a transicionalidade é um ponto central, como também
é na clínica psicanalítica. Winnicott (1951) definiu transicionalidade como um conjunto de fenômenos que
se localizam na área intermediária da experiência, entre a realidade interna e externa, entre a atividade da
criatividade primária e a percepção objetiva. É uma região “neutra”, que ao mesmo tempo é do bebê e da
mãe. A experiência nesta região é importante para que, na fase seguinte, o bebê possa fazer parte do mundo
compartilhado, e este fazer parte dele. Em um contexto analítico podemos falar de uma experiência semelhante,
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
em que a lógica do mundo “real” está provisoriamente suspensa e cria-se uma realidade compartilhada
àquelas duas pessoas, que atende ao propósito de aprofundar-se no conhecimento de uma delas. As áreas
de fantasia do paciente e do analista se superpõem, criando um campo comum, fértil para a análise. Atender
bebês com seus pais, portanto, significa estar em uma superposição de transicionalidades, o que torna a
experiência sensível e delicada, em todos os sentidos. E este campo transicional, ao qual somos convidados a
entrar, é o campo potencialmente terapêutico, em que se podem dar as trocas mais significativas.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
O psicanalista, ao atender bebês com seus pais, de acordo com Wanderley (2002), ora se posiciona
em uma posição materna, identificando-se com o bebê, refletindo suas próprias percepções sobre suas
manifestações e supondo nele “um sujeito onde ali ainda não há”, ora em uma posição paterna, efetuando
cortes nos excessos maternos. Em alguns casos pode ser interessante discriminar as experiências dos pais
e do bebê, que, embora possam ser assemelhar e ter pontos de intersecção, são diferentes na medida em
que são vividas por pessoas diferentes. Ao mesmo tempo, o analista oferece novas significações através
de suas interpretações. Teperman (2002) salienta a importância de que haja um interlocutor para as
produções do bebê que o suponha como sujeito. Quando os pais não fazem este trabalho de antecipação,
é importante que alguém o faça. Na intervenção pais-bebê o analista pode, ainda, colocar-se no lugar do
bebê, emprestando-lhe sua voz, e dirigindo-se à mãe, que é então convidada a responder ao filho aquilo
que o analista requisitou em seu nome.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Nas sessões, demonstra sentir-se amparada em sua fragilidade, que pode ter vazão e continência. No contato
com a filha parece estar mais disponível e menos demandante. M. ainda vai atrás dos objetos de difícil
acesso, mas T. parece ficar menos ansiosa e preocupada. M. também parece estar tentando se comunicar,
de formas diferentes. Parece ter necessidade e espaço para isso, já que a mãe não está mais tão aderida
a ela. Mostra brinquedos, chama nossa atenção e nos inclui nas brincadeiras. Ela, que no início parecia
ofuscada pelas necessidades da mãe, passou a exigir mais atenção para si, manifestando e contando-nos
algo sobre si mesma – que queria ir longe, alcançar novos objetivos, mas também que precisava de sua mãe
e gostava de seus carinhos. Estava, em muitos momentos, próxima à mãe, mas não tinha comportamentos
de cuidado ou consolo. Os papéis de mãe e filha pareciam mais definidos. Também foi possível sentir leveza
e naturalidade na relação.
O acolhimento à angústia e fragilidade de T. consistiu em um fator protetor para a relação com a
filha. Ela necessitava para si um cuidado análogo ao que precisava oferecer para M. Regredida pela própria
condição da maternidade recente, sensibilizada pela doença de M. e pela ferida narcísica que isto acarretou,
sucumbiu ao ser ver sem suas referências e, principalmente, sem seu marido, com quem tinha um vínculo
de acolhimento. Ao reencontrar, na relação estabelecida nos atendimentos, um referencial de maternagem,
pôde aceitar as outras formas de cuidado que tinha à sua disposição. A potencialização de sua própria
maternagem parece ter sido consequência de se ver, novamente, como frutífera, fonte de energia para a
filha, e suficientemente boa mãe para ela.
Um dos objetivos da clínica de pais e bebês é promover, através da conscientização das fantasias,
o contato dos pais com o bebê real, o que pode se reverter em uma relação mais verdadeira e baseada
na subjetividade daquele bebê em particular, em relação com aqueles pais. Os pais podem também se
fortalecer em suas funções, através da apropriação de seu papel parental, e assim capacitar-se para entender
e atender as necessidades do filho (Mendes de Almeida, Marconato e Silva, 2004).
O atendimento a bebês, por sua característica dinâmica e viva, pode propiciar momentos de
consciência que sejam ricos e potencialmente transformadores. Um conceito importante para os atendimentos
a pais e bebês é o de enactment, que pode ser descrito como um momento sagrado (Mendes de Almeida,
Marconato e Silva, 2004), em que algo que ocorre na consulta toca os pacientes e ressoa no analista, algo como
um eco de um conteúdo inconsciente importante para sua história, um símbolo de algo que é importante
para aquela relação. No caso relatado o comportamento de cuidado que M. tinha com a mãe foi bastante
esclarecedor da dinâmica que estava estabelecida. Juntas, e vivendo aquela experiência, pudemos sentir a
fragilidade de T. suspensa no ar, e criar outra forma de lidar com ela. T. pôde se perceber, e, ao potencializar-se
como mãe, deixar sua filha para que viver sua vida e crescer, de acordo com seu potencial.
Referências Bibliográficas
ELIACHEFF, Caroline. Corpos que gritam: A psicanálise com bebês. São Paulo: Ed. Ática, 1993
MENDES DE ALMEIDA, Mariangela; MARCONATO, Magaly Miranda; SILVA, Maria Cecília Pereira. Redes de
sentido: Evidência viva na intervenção precoce com crianças. Trabalho apresentado na International
Conference da Tavistock Clinic, Londres, 2004
SOLIS-PONTON, Leticia e ROSE-MORO, Marie. Mulheres, mães e filhas. O papel da terapeuta mulher na
consulta mãe-bebê. In: Ser pai, ser mãe – Parentalidade: Um desafio para o terceiro milênio. Letícia
Solis-Ponton (org). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. Pp. 67-76.
TEPERMAN, Daniela. Intervenção psicanalítica precoce: efeitos da suposição de sujeito. In: O bebê e a
modernidade:abordagens teórico clínicas. Leda Mariza Fischer Bernardino e Cláudia Mascarenhas
Fernandes Rohenkohl (orgs.). São Paulo, casa do psicólogo, 2002.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
WANDERLEY, Daniele de Brito. Se eu fosse um bebê e pudesse contar... sobre a transferência na clínica de
bebês. In: O bebê e a modernidade: abordagens teórico clínicas. Leda Mariza Fischer Bernardino e
Cláudia Mascarenhas Fernandes Rohenkohl (orgs.). São Paulo, casa do psicólogo, 2002.
WILHEIM, Joana. O que é psicologia pré-natal. São Paulo, casa do psicólogo, 1997.
WINNICOTT, D. W. A observação de bebês numa situação padronizada (1941). In: Da pediatria à psicanálise.
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WINNICOTT, D. W. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951). In: Da pediatria à
psicanálise. Pp. 316-331. Rio de Janeiro, Imago, 2000.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Witold Gombrowicz, escritor polonês que morou grande parte da vida exilado na Argentina,
encontrou uma maneira interessante de dizer o que eu gostaria de dizer-lhes ao começar minha fala. Escreve
ele: “Mas como contar o que quer que seja a não ser ex post? Será que nada poderá ser realmente dito,
apresentado em seu estado anônimo, que ninguém jamais conseguirá expressar o murmúrio do momento
que nasce? (...) Basta olhar em volta e já, diante de nossos olhos, surge a ordem... e a forma... Que importa?
Que seja assim.” (2007, p.32). Ele referia-se à dificuldade de contar uma história respeitando o caos que
reina no início de cada evento. Mais claramente, suas indagações dizem respeito ao fato de que, quando me
ponho a contar algo, a falar de algo que aconteceu, invariavelmente, “extraio a configuração do futuro”, em
suas palavras. Coloco A antes de B e de C, de forma que a chegada de D, mesmo quando causa surpresa,
já fora, de alguma forma anunciada, prefigurada. Toda história contada omite o caos inicial exatamente
porque está sendo contada. Ao colocar as coisas no passado, dou valor a certo elemento e deixo outro de
fora, porque na história tal elemento será importante, enquanto o outro, igualmente presente, perde-se na
necessidade da ordem e na rigidez da forma. A memória tem as mesmas vicissitudes da narrativa.
Um paciente de onze anos me conta sobre o acidente que sofreu. Iam ele, o irmão, a avó e
o marido dela à praia. Um carro na pista oposta tentou ultrapassar alguns caminhões que seguiam em
conjunto, lentamente. “A mulher”, diz ele, porque a motorista era mulher, “veio em cima da gente. Meu
tio [o marido da avó], entrou no acostamento. A mulher também. E o carro bateu de frente”. “E você?”,
pergunto. “Esmagou a L3 e fiz as outras cirurgias”, responde. “E você viu o outro carro vindo?”, pergunto,
completando o que gostaria de ter dito da primeira vez. “Não. Eu estava dormindo”, é a resposta que ouço.
É outra pergunta, mais próxima às palavras de Gombrowicz, que desperta alguma curiosidade. Ele não se
lembra do acidente que o deixou numa cadeira de rodas, estava dormindo. Mas sabe como aconteceu. A
resposta é óbvia, mas a obviedade não deixa de ser interessante: como ele sabe? Contaram a ele? Sim,
contaram, e ele pesquisou, e perguntou às tias, e me pergunta algo em toda sessão. Se vi seu time jogar,
se sei algo sobre sua coluna, se acredito que ele sentiu o movimento de um dedo do pé na noite anterior.
Perguntando aos outros ou, mais amplamente, buscando no mundo externo elementos para compor suas
experiências, ele vai, igualmente, compondo sua história. E, no caso, seu trauma físico – a dor e a paralisia
– e seu trauma psíquico, indissociável desse evento físico, vão sendo paulatinamente – vale ressaltar esta
palavra – absorvidos por seu psiquismo, e podem encontrar – aos poucos – é importante repetir – uma
tentativa de elaboração. Voltarei ao paciente logo. Mas já que entrei no espinhoso assunto do trauma, é
preciso conceitua-lo minimamente em nossa área, a psicanálise.
O falecido Jean Laplanche, discutindo o caso do Homem dos Lobos na sexta de suas Problematiques,
diz-nos que “A teoria freudiana do traumatismo (...): é a teoria onde o traumatismo sempre precisa de
dois tempos para existir” (2006, p.135). Ele vai ainda mais longe na afirmação. Em suas palavras, “Não há
traumatismo sem dois tempos” (p.135). Embora esteja em bons termos com o pensamento laplanchiano,
minha experiência clínica e meus estudos não me ajudam a concordar com essa maneira de entender a
teoria freudiana por razões simples, que espero conseguir explicar. Começarei por Freud e caminharei,
1 Psicanalista, mestrando no IPUSP com bolsa FAPESP; é especialista em Teoria Psicanalítica pelo COGEAE/PUC-SP e alu-
no do curso Psicanálise, no SEDES. Durante vários anos trabalhou no Programa Sentinela, atendendo crianças vítimas de
abuso sexual e outras formas de violência.
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infelizmente a passos rápidos, na direção de uma tentativa de unir suas teorizações sobre o trauma psíquico
com as de Ferenczi. Devo dizer que o tempo será um inconveniente em todos os sentidos: não serei capaz
de reunir toda informação que necessito nos minutos que me restam. Que nos restam, devo dizer?
Gostaria de usar o nós porque esta será, como muitas outras, uma experiência intersubjetiva:
o que observei em minha clínica encontrará ou não um eco em vocês. Assim como a maioria de nossas
experiências pedem esse tipo de resposta, de reconhecimento, quando as contamos aos outros, ou quando
precisamos dos outros, para que tenhamos elementos para contar. Como meu paciente e suas perguntas
sobre o que ele não lembra, mas o interessa, ou sobre o que ele sentiu, mas não tem certeza. Sobre seu
caso, devo dizer, estamos frente a uma situação que é, em si mesma, traumática.
Podemos dizer isso porque após o acidente ele buscou objetos externos, outras pessoas, para
encontrar um lugar para o acontecimento em sua história. Noutras palavras, ele tentou dar-lhe sentido,
tentou – digamos – ligar psiquicamente a excitação (a tensão mental) despertada pela experiência. Vamos
presumir que toda percepção, toda experiência precisa ser ligada psiquicamente; precisa ser conectada
a outros elementos psíquicos. Vamos presumir mais uma coisa antes de discutir algumas das ideias de
Freud sobre o trauma: todo sonho, toda repetição “mesmo que seja desprazerosa, é uma tentativa de
melhor domínio e organização de experiências traumáticas” (Ferenczi, 1931/2002,p.238). Toda “impressão
mental” – se quisermos dizer de outra maneira – “é passível de ser repetida, não descarregada e não
dominada” (id. ibid. p. 239).
Minhas últimas frases, ou partes delas, foram roubadas de um texto póstumo de Ferenczi. Não
seguirei este texto, publicado pela primeira vez com o título de “Trauma na Psicanálise” (Ferenczi, 1931/2002);
mas gostaria de apontar que nele os argumentos de Ferenczi estabelecem uma linha direta com o que
chamamos “a segunda teoria freudiana do trauma”. Ela pode ser encontrada em “Além do princípio do
prazer” e todos estamos familiarizados com essa “explanação metapsicológica”. Em torno de 1920, Freud
não podia escapar dos dados clínicos sobre neuroses de guerra que se amontoavam sobre sua mesa. Estes
casos levantavam questões dirigidas ao núcleo do pensamento psicanalítico que estavam sendo discutidas
por seus seguidores mais próximos. A tentativa freudiana de lidar com as questões que surgiam é de um
primor raro. Não descreverei tudo o que “Além do princípio do prazer” traz-nos de novo. Meu interesse está
no que podemos ler nesse texto que trata da formação do trauma.
A ideia é tão antiga quanto o Projeto e já fora apresentada em “Introdução ao narcisismo”. Trata-se
da ideia de uma economia no funcionamento do aparelho psíquico que é mais primitiva e vive à sombra
do princípio do prazer. Em 1914, por exemplo, Freud a descreveu da seguinte forma: “Reconhecemos que
ao nosso aparelho psíquico cabe, sobretudo, lidar com as excitações que, de outra forma, seriam sentidas
como dolorosas ou provocariam efeitos patogênicos” (1914, p.85). Em 1920, este “aparelho de dominar
excitações” é discutido detalhadamente. Freud (1920) reafirma a distinção feita por Breuer “entre energia
de investimento quiescente (ou ligada) e livre nos elementos dos sistemas psíquicos” (p.26-27). Ferenczi,
no texto póstumo de 1931, não falava de algo similar: de impressões mentais – mesmo as menores – que
precisavam ser dominadas e descarregas? Por enquanto, caminhemos com Freud porque, após a reafirmação
da hipótese de Breuer, encontramos a famosa metáfora da vesícula. Freud nos fala dessa pequena substância
viva que seria morta pela estimulação que emana das energias do mundo externo, não contasse ela com um
escudo protetor contra estímulos (1920, p.27). Para Freud, que agora cito, “Descrevemos como “traumática”
qualquer excitação vinda de fora que é forte o suficiente para atravessar o escudo protetor. Parece-me
que o conceito de trauma necessariamente implica uma conexão deste tipo com a brecha em uma, de
outra forma eficaz, barreira contra estímulos. Tal evento como um trauma externo está obrigado a provocar
um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e acionar qualquer medida
defensiva possível. Ao mesmo tempo, o principio do prazer é por um momento posto fora de ação. Não há
mais qualquer possibilidade de prevenir que o aparato mental seja inundado com grandes quantidades de
estímulo, e outro problema surge em seu lugar – o problema de dominar as quantidades de estímulos que
invadiram e ligá-las, no sentido psíquico, de forma que se possa desfazer-se delas” (Freud, 1920, p.29-30).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Parece claro, apesar da afirmação de Laplanche, que o trauma, para Freud, pode formar-se em
um único momento. É a questão quantitativa, econômica, que atravessa a formação do trauma.2 Para ele,
assim como para Ferenczi, o elemento do choque tinha uma grande influência sobre se uma experiência
seria ou não traumática. Meu paciente não poderia estar mais despreparado, se assim podemos dizer, para
colisão. Ele dormia. O curioso é que seu sono durante a experiência não exclui a necessidade de dominá-la.
Ao contrário: por não estar atento e pronto, o trauma, à princípio, o paralisa mentalmente; e na sequência,
pede elementos para ligação.
Antes de seguir, sou obrigado a falar do que Laplanche, chamou de traumatismo em dois tempos.
Trata-se de uma teoria que é herdeira direta da teoria da sedução. Mas não é a neurotica de 1896 como um
todo que pretendo discutir, mas seus principais elementos. O que restou da teoria da sedução nos trabalhos
posteriores de Freud é a ideia de que um evento em si mesmo não precisaria ter um efeito traumático.
Este efeito surgiria mais tarde, em outro período da vida, quando a memória do evento fosse despertada
de um estado de latência, podemos dizer. A ideia permaneceu, podemos ver, na discussão de Freud sobre
o Homem dos Lobos, em 1918 – muito tempo depois do abandono da neurotica. Ela implica o conceito –
hoje podemos chama-lo assim – de efeito posterior, de Nachträglichkeit. Aplicado a casos de abuso sexual,
o conceito dá conta do fato de que a experiência sexual (ser tocado ou penetrado) não precisa ter, em si
mesma, um efeito traumático. O trauma apareceria – prefiro dizer, “o trauma se formaria” – quando, mais
tarde na vida, alguma percepção, pensamento ou fantasia re-significa a memória da experiência prévia,
permite uma tradução dela e, então, uma defesa egóica torna-se necessária.
Ferenczi não discorda de nenhuma das teorias freudianas do trauma. Ele acrescenta sua experiência
clínica e sua sensibilidade a elas. Em primeiro lugar, Ferenczi percebe que o trauma gera uma cisão no eu.
E, em segundo lugar, percebe que o trauma forma-se também em dois tempos; mas tempos diferentes
daqueles indicados por Freud. O primeiro tempo envolveria o próprio evento, o choque ou a confusão
de línguas entre adultos e criança, para usar os mesmos termos que ele utilizou em seus textos entre
1928 e 1932 (cf. Ferenczi, 1928/2002; 1930/2002; 1931/2002; 1932(1933)/2002). E o segundo tempo
ferencziano, que completa a formação do trauma, envolveria o que podemos chamar de condição pós-
traumática ou ambiente pós-traumático. Este segundo tempo ferencziano é aquele onde encontramos o
adulto confiável ou, em nosso trabalho clínico, o papel do analista. A criança volta-se para um adulto em
busca de reconhecimento, confirmação e respostas acerca de suas experiências. A criança busca no adulto
elementos com os quais possa elaborar suas experiências – e aqui acho importante ressaltar – traumáticas
ou não. Uma experiência que não tenha sido traumática em si mesma poderia ganhar este atributo quando,
mais tarde, a criança dirige-se a um adulto e escuta que o que sentiu ou experienciou não aconteceu, é
fantasioso ou é tratado como uma mentira.
Toda experiência infantil passa, em algum momento, por uma tentativa de buscar no exterior,
no objeto, elementos que poderiam ajudar no domínio e na descarga da tensão mental causada pelas
experiências. O evento em si mesmo, já nos dizia Gombrowicz, é anônimo; ele pede nomes e elementos
para que possa ser contado ex post. Se há transferência, a criança chega ao consultório com uma bela
quantidade de histórias que pedem mais elementos. Ou, quando a recebemos e ela encontra-se ainda no
caos inicial, no momento anônimo, um de nossos papéis é tentar fornecer um mínimo de elementos que
permitam o domínio e a descarga da experiência.
Meu paciente de onze anos, sentado em sua cadeira de rodas, me pergunta timidamente se
acredito que ele sentiu o movimento de um de dedo do pé na noite anterior. Minha resposta é matreira,
é outra pergunta: “Como foi o movimento? O que você sentiu?”. Ele diz que o dedo se mexeu, e ele sentiu
o movimento. Mas duvidou, porque não era para ele sentir nada do umbigo para baixo. “Você queria que
o dedo mexesse?”, pergunto. “Queria, aí a coisa toda ia tá melhorando. Mas esmagou a L3, não sei se era
2 Se ainda resta alguma dúvida sobre se Freud via o trauma como podendo acontecer em um único tempo, cabe aqui
uma breve citação retirada das Conferências Introdutórias: “De fato, o termo ‘traumatico’ não tem outro sentido que não
o econômico. Nós o aplicamos a uma experiência que, num curto período de tempo, apresenta à mente um aumento de
estímulos poderoso demais para que seja trabalhado ou descarregado da maneira normal, e isto deve resultar em distúr-
bios permanentes na maneira pela qual a energia funciona” (1917 [1916-1917]), p.275).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
pra eu ter sentido”. “Sentiu mais alguma coisa?”, continuo; e ele vai do dedo ao carro batido onde acordou.
Diz: “Quando eu acordei, eu ainda estava com sono. Uma mulher dizia para eu não dormir e não me mexer.
Minha avó, eu vi, tinha morrido. E tiravam duas, tipo bandejas bem grandes, de perto do outro carro.
Cobertas com um plástico preto. Eu acordei achando que a gente tinha chegado na praia e um monte de
gente tinha vindo ver. Porque meu tio tem um monte de amigos lá. Mas eu não podia dormir”.
No mesmo romance que citei ao principiar minha fala, o escritor polonês escreve que: “É preciso
compreender os significado da expressão ‘a gota d’água’. Quando demais é demasiado. Existe uma dose de
realidade, cujo excesso ultrapassa os limites do suportável” (Gombrowicz, 2007, p.73).
Meu paciente encontrou uma dose de realidade acima do suportável. Mas os encontros com a
realidade podem ser suportáveis e, não por isso, prescindirem do auxílio do objeto para serem assimilados.
Em casos de abuso sexual, por exemplo, Ferenczi (1932(1933)/2002) já lembrava-nos que quando a criança
volta-se para o adulto, ele procura assimilar sua experiência. Mas encontra no abusador a negação do fato
e, caso possa voltar-se a outro adulto confiável, seu relato é tratado como sem sentido ou fantasioso. Não
à toa, “Confusão de Línguas” é um texto que começa criticando o trabalho analítico feito na época. Na
transferência que, não podemos esquecer, carrega libidinalmente o analista e coloca-o na série de figuras
já investidas pelo paciente (Freud, 1912), o adulto confiável passa a ser o analista. E a ele não cabe tratar o
“estado anônimo”, “o murmúrio do momento que nasce” onde a realidade transbordou e o psiquismo pede
ajuda, como algo sem sentido ou como uma fantasia pretensiosa. Para Ferenczi (1932(1933)/2002), é na
transferência e na posição que nela ocupa o analista, que se pode estabelecer a diferença entre o “presente
e o passado insuportável” (p.160). Entre o carro a girar, o esmagamento da terceira vertebra lombar, o sonho
e o despertar para não morrer, o menino de onze anos sentiu, de alguma forma, seu dedo mexer.
Referências Bibliográficas
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and Methods of Psycho-Analysis. London: Karnac.
______________ (1930/2002) “The Principle of Relaxation and Neocatharsis” In: Final Contributions to the
Problems and Methods of Psycho-Analysis. London: Karnac, 2002.
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Problems and Methods of Psycho-Analysis. London: Karnac.
______________ (1932(1933)/2002) “Confusion of Tongues Between Adults and the Child – The Language
of Tenderness and of Passion” In: Final Contributions to the Problems and Methods of Psycho-
Analysis. London: Karnac.
FREUD S. (1912) “The Dynamics of Transference”, SE XII.
________ (1914) “On Narcissism: An introduction”, SE XIV.
________ (1917 [1916-1917]) Introductory Lectures on Psycho-Analysis, SE XVI.
________ (1920) “Beyond the Pleasure Principle”, SE XVIII.
GOMBROWICZ W. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LAPLANCHE J, Problématiques VI, Paris: Puf, 2006.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
* Trabalho original apresentado : - Em agosto de 2006, banca para inserção no corpo de Supervisores da Sigmund Freud
Associação Psicanalítica, Porto Alegre, RS - Outubro de 2010, no Curso Fundamentos em Psicanálise, Torres, RS.
1 Psicóloga e Psicanalista com clínica na cidade de São Leopoldo – RS. Membro Efetivo da Sigmund Freud Associação
Psicanalítica. Coordenadora de Seminários e Supervisora da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, Porto Alegre – RS.
Membro da Sociedade de Psicologia do RS. Co-autora dos Livros: Psicanálise de Crianças, Escutas Possíveis e Movimen-
tos Psicanalíticos: Narrativas da Teoria da Clínica e da Cultura.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Fernanda Sofio2
Palavras-chave: Função Terapêutica; Clínica Extensa; Clínica Psicanalítica; Teoria dos Campos.
O analisando neste caso é uma dupla de irmãos, um paciente que são dois. Parece estranho, ou no
mínimo inabitual, mas o prosseguimento da análise de Tiago, de seis anos, exigiu a presença de seu irmão
Marco, de quatro, e transformou-se em análise da dupla. Não de um, ou de outro, mas dos dois em seu
relacionamento comigo e entre si. A entrada do irmão mais novo nas sessões do mais velho foi uma solução
encontrada em caráter emergencial, dada a dependência do mais velho para com o caçula, negando-se
ele a continuar suas sessões sozinho. Impôs-se a mim a necessidade de flexibilizar a moldura padrão, esta
mais conhecida como setting e muito cara aos psicanalistas, o que resultou em alterações técnicas. Foi
imprescindível o pensamento de Fabio Herrmann3, para que que fosse possível considerar-se esse caso,
sessão a sessão, e para o rumo que essa análise tomou.
A transformação da técnica no trabalho analítico, em particular, com crianças, não é inédita.
Recuando um pouco e pensando-se a história da Psicanálise, vemos que a alteração da técnica psicanalítica
no trabalho com crianças não é exclusiva à contemporaneidade. De fato, os grandes inovadores técnicos
são os clássicos, Melanie Klein (1932/1975) e Sigmund Freud (1909/2003). Freud, se tomarmos seu estudo
sobre o pequeno Hans como um relato de caso, alterou radicalmente a técnica da Psicanálise. Embora
nunca tenha estado com o pequeno Hans em situação analítica, conversava com seu pai e o ajudava a
tratar do filho, configurando uma forma de atendimento muito longe do que seria o padrão. Klein criou um
enquadre analítico inteiramente novo, ao introduzir a análise de crianças como prática clínica.
O lugar da Teoria dos Campos é outro. Nela encontrei referencial teórico para dar prosseguimento
a um caso que exigiu distanciamento do padrão psicanalítico estabelecido, pois ela permite pensar a função
da moldura analítica, mais conhecida como setting. De acordo com esse pensamento, a moldura analítica
está a serviço do método psicanalítico, e não o contrário, e a questão principal num caso como o dos irmãos
é a da extensão da escuta, para poder se considerar qual é, de fato, o desejo do paciente e como trabalhar
com ele. Uma extensão da escuta do que se diz e do que se observa, que não corresponde apenas a uma
moldura mais ampla. Isso é, para Herrmann, clínica extensa. (Herrmann, 2003) Parafraseando-o à época de
minha qualificação de mestrado: Clínica extensa não é só uma questão do setting. Aliás, não é em absoluto
uma questão do setting. É a superação da questão do setting. Ou seja, clínica extensa é o desprendimento
do padrão que possibilita a escuta efetiva do desejo do paciente. (Sofio, 2007)
1 Parte do trabalho, sob o título Clínica extensa no consultório psicanalítico: função terapêutica e flexibilização do enquadre,
foi apresentada tanto na Jornada do CETEC 2009, intitulada Teoria dos Campos – sua especificidade e a clínica extensa,
como no curso Psicanálise e seu horizonte de vocação, no XXVII Congresso da FEPAL, em Bogotá, 2010. A versão completa
desse trabalho deverá ser incluída em minha tese de doutoramento, “Literacura”? Psicanálise como forma literária. Uma
interpretação dentro da Teoria dos Campos a ser defendida em 2013.
2 Doutoranda em Psicologia Social pela USP, pesquisadora FAPESP, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro
do grupo de pesquisa do Centro de Estudos da Teoria dos Campos da Universidade Federal de Uberlândia e autora de
diversos artigos, entre eles Literacura? Psicanálise como forma literária. (2010) [email protected]
3 Fabio Herrmann (1944-2006) era médico e psicanalista. Sua extensa obra publicada entre os anos 1969 e 2006 ficou
conhecida como Teoria dos Campos, nome do qual o autor se apropriou ao fundar o CETEC (Centro de Estudos da Teoria
dos Campo). Trabalhos póstumos continuam a ser publicados.
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Nesse sentido, podemos pensar que Freud e Klein fizeram nova técnica, produziram teoria, criaram
psicanálise e que, por sua vez, Herrmann proporcionou arsenal teórico para se pensar a respeito de cada
feito clínico. Embora nesse trabalho eu tenha encontrado a teoria de Freud e Klein por diversas vezes, tendo
em vista a força dessas teorias, foi em Herrmann que encontrei referencial teórico para considerar o todo
do atendimento, o porque das intervenções e a moldura analítica adequada. Assim, é este um atendimento
nada convencional em que ecoa a teoria de três mestres. Vejamos como transcorreu, começando pela
primeira entrevista.
A mãe de Tiago, que chamei de Clara, procura-me assustada com o boletim semestral de seu filho.
Declara aflita, por telefone: Isto só pode ser timidez. Tiago é inteligente, como podem dizer que não sabe
ler ou escrever? Seu desespero é evidente. Proponho uma primeira entrevista com ela e Tiago, e sugiro
que esteja presente seu marido. No horário marcado, aparecem em meu consultório Clara, Tiago, seu pai
e o irmãozinho. Tiago mostra-se, de fato, mais tímido que o irmão menor, este sorridente e, ao que me
parece, bastante sedutor. Meses depois, dou-me conta de que o fato de Tiago estar habituado a ver seu
irmão mais novo seduzir o outro, carismático, e sobressair nas atividades que praticam invariavelmente
juntos, foi construindo certa relação de dependência de Tiago em relação a Marco, evidenciada no campo
transferencial desse específico processo analítico, tornado um paciente que são dois, ou seja, em que um
irmão se tornou imprescindível para o andamento da análise do outro. Inclusive, me é contado na entrevista,
fora do período escolar os irmãos começam juntos uma atividade, como tênis, por exemplo. Pouco tempo
depois, Tiago recusa-se a continuar, e ambos para aquela atividade.
A forma que toma a entrevista é muito denunciadora, que mostra um pouco da dinâmica familiar
em que se constitui a dependência de Tiago para com Marco. Clara senta-se a meu lado, quase colada
a mim, e fala sem parar. Derramando-se em queixas, só se afasta da possibilidade de compreender a
complexidade de sua situação pessoal e familiar. Dá a mim essa função. Pede que eu corrija Tiago cada vez
que ele disser algo gramaticalmente incorreto. Parece buscar em mim uma educadora, embora saiba que
não o sou. Adverte-me, se eu não corrigir seu filho: Ele vai repetir. Embora omita o objeto da repetição,
refere-se a repetir o ano escolar, situação na qual teremos nós duas sido cúmplices do fracasso, sem chance,
isto sim, de repetirmos a oportunidade de ajudar Tiago. A ameaça que as palavras de Clara carregam é de
que o sexto ano da vida de Tiago haverá sido perdido.
Aflita, ela prossegue. Tem a ideia de que eu atenda seu filho em português, o que ajudá-lo-ia
academicamente, embora a família seja de origem estrangeira e eu domine sua língua-mãe. A perspectiva
de Clara é que seria maravilhoso se Tiago superasse as dificuldades escolares com o idioma. Ouço-a com
atenção e digo que Tiago ficaria mais à vontade se fizéssemos as sessões em sua língua-mãe, o que é
importante para sua análise, e que por esse motivo não pretendo conduzir a análise em português. Minha
resposta mexe no campo habitado por Clara, que pouco a pouco começa a se delinear. Nesse campo, é ela
quem determina como devo trabalhar. Se por um lado minha resposta a assusta, por outro a alivia e lhe traz
segurança. Ela aflige-se por não saber como lidar com Tiago, e quer confiar que eu a possa ajudar. Não se
mostra contrariada e, pelo contrário, afirma que Marco também precisaria de terapia. Ofereço pensar num
terapeuta para Marco, como é de praxe. Ela imediatamente responde que não precisa, pois o mais urgente
é Tiago, e localiza nele o problema da família. Tanto a recusa de um trabalho analítico especificamente com
Marco, como o desígnio de Clara, de Tiago ser um problema, parece-me, foram prenúncios do percurso
pouco clássico que esta análise tomou.
Enquanto Clara despeja lamentos, na entrevista, os meninos brincam com o pai num canto da
sala. Marco está mais absorto que Tiago na brincadeira, mostrando-se este irrequieto, talvez deslocado.
Os três escutam o que Clara diz, sentada a meu lado, mas continuam sua brincadeira. Clara compara os
irmãos. Enquanto Tiago é muito tímido e não toma a iniciativa de falar em sala de aula, Marco é como ela,
espontâneo, esperto, rápido. Reitera, a certa altura, seus olhos assustados e ansiosos: Tiago vai repetir o
ano. Na situação assim criada, é perceptível que, para Tiago, tudo é apavorante – a escola, o consultório,
eu própria –, daí sua dificuldade em entrar mais no jogo de mesa proposto pelo pai, e, é possível, sua
dificuldade em falar mais espontaneamente no colégio.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Nesse enquadre flexibilizado em que o paciente são dois, demonstrou-se possível trabalhar a
relação entre os irmãos. Tiago foi ocupando a posição de irmão mais velho, e Marco, a de mais novo. Há
trabalho pela frente, mas Tiago está menos assustado, menos atravessado pelo fantasma de ser o problema
da família. Inclusive, aconteceu o que parecia impossível: Tiago teve notas excelentes no colégio. Marco está
sofrendo um pouco com essa reestruturação da dinâmica deles, pois gostava de ocupar a posição de quem
se sobressaía em relação ao irmão mais velho.
O trabalho em clínica extensa, que permite alterações técnicas sempre que a favor do paciente, favorece
o exercício da função terapêutica do método psicanalítico, quando a clínica padrão poderia emperrá-lo.
Referências Bibliográficas
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por escrito. (Org. Barone, L., Arruda, A.P.B., Frayze-Pereira, J.A., Saddi, L. & Freitas, S.R.M.S.) São
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Klein, M. (1975) The psycho-analysis of children. In: The writings of Melanie Klein. Trad. Alix Strachey. Londres:
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Sofio, F. (2007) Função terapêutica e hospital: onde há Psicanálise? (mestrado em Psicologia Clínica). São
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_____________ (2010) Literacura? Psicanálise como forma literária. In: Revista Brasileira de Psicanálise. São
Paulo, v. 44, n 4, p. 149-55.
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1 Flávia Blay Levisky é psicanalista, mestre em psicologia social (IP/USP), psicóloga (PUC/SP), membro do Departamento
de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do Grupo Acesso – Estudos, Intervenções e Pesquisa
sobre adoção, da clínica psicológica do instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Procuramos neste trabalho construir uma reflexão sobre o fenômeno transferencial na prática do
psicodiagnóstico interventivo em grupo realizado na clínica-escola da Universidade Paulista – UNIP. Esta
forma de conduzir a avaliação psicológica, e a concepção clínica subjacente a este modelo, é uma das
características marcantes na formação dos alunos de Psicologia da UNIP. De certa forma, como descrito por
Ancona-Lopez (1995a) a construção, acabamento e sistematização deste jeito característico de conduzir o
psicodiagnóstico coincide com a própria história do curso e da clínica-escola de Psicologia da Universidade
Paulista. Conferindo desta forma, um traço identitário na formação do aluno.
Nesta modalidade de atendimento o psicodiagnóstico também é encarado como um momento
privilegiado para a obtenção de efeitos terapêuticos ou seja, não se encerra na coleta de dados que vão ajudar
o profissional a discernir sobre o encaminhamento e orientar o futuro processo psicoterápico. Tomando o
psicodiagnóstico dentro de um contexto investigativo e avaliativo os próprios movimentos transferênciais e
contratransferênciais também serão entendidos como dados a serem recolhidos, como recomendado por
Ocampo, Arzeno, Piccolo e col (1994) no decorrer das entrevistas é necessário entender o que o paciente
transfere para o psicólogo e o que isso lhe provoca, fato que permite uma caracterização do tipo de vínculo
que o paciente estabelece.
Mas, frente ao psicodiagnóstico interventivo, diluem-se as fronteiras entre a etapa diagnóstica e a
psicoterapia. Por valorizar o momento de busca pelo atendimento psicológico, entende-se que é fundamental
intervir no presente, momento no qual as inquietações e sofrimentos do paciente estão mobilizando-o o
bastante para ele ter pedido ajuda profissional, não delegando assim as intervenções somente para o
processo terapêutico e para um futuro profissional ausente. Ancona-Lopez (1995b) sintetiza essa questão
afirmando que:
“Quando o cliente busca um psicólogo espera ser atendido em suas necessidades, pouco
importando sob que nome este atendimento se efetue. Muitas vezes, desconsiderando este pedido do
cliente, o psicólogo, ao nomear sua prática, decide postergar a intervenção, empobrecendo um encontro
rico de possibilidades” (p. 33).
Para tanto, construiu-se um modelo de psicodiagnóstico em grupo com o objetivo de produzir
movimentos de identificação e diferenciação, favorecendo o conhecimento de si. Mais do que isso, preencheu-
se o espaço entre a entrevista inicial e final com uma série de devolutivas parciais; na prática intercalam-se os
atendimentos das crianças com as devolutivas parciais aos pais. No desenvolvimento do trabalho, alunos e
supervisores trabalham em conjunto com os clientes, ao supervisor cabe a coordenação e condução do grupo e
aos alunos cabe o lugar de co-terapeutas. Também existem momentos em que cada dupla de alunos conversa
individualmente com o paciente pelo qual é responsável, seguidos do debate em grupo. De acordo com
Ancona-Lopez (1995) esta forma de trabalhar permite ao aluno “experimentar o contato com o cliente e assistir
ao manejo do grupo pelo supervisor. A presença deste garante a qualidade do atendimento ao cliente” (p. 81).
1 Psicóloga graduada – PUC/SP, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica – IPUSP, Mestre em Psicologia Clínica – PUC/
SP, Supervisora de Psicodiagnóstico e Psicoterapia Psicanalítica – UNIP.
2 Psicóloga graduada - IPUSP, Especialista em Psicologia Infantil -UNIFESP, Mestre em Psicologia Clínica – PUC/SP, Supervi-
sora de Psicodiagnóstico e Grupos e Comunidades – UNIP, Supervisora clínica no ComTato - Instituto Fazendo História.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Sendo assim, tratamos a transferência como o movimento que inicia e possibilita reparar as falhas
ambientais que teriam ocorrido no processo maturacional das crianças (e da família), na medida em que as
crianças e seus pais concebem encontrar o auxílio necessário para isso. Winnicott apresenta uma concepção
de transferência que não se baseia apenas na repetição presente de uma relação do passado, no acontecido,
mas inclui a esperança de viver o que não aconteceu e que, portanto, busca realização.
Por isso, também entendemos a necessidade do psicólogo atuar a partir deste lugar de objeto
subjetivo, não realizando um psicodiagnóstico tradicional centrado na coleta de dados, mas intervindo,
facilitando a emergência de um encontro significativo, favorecendo a compreensão de uma problemática
que paralisava o desenvolvimento emocional da criança.
Utilizando o modelo do psicodiagnóstico interventivo, ao final do processo, alguns casos não
precisam ser encaminhados pois, já recebem a ajuda psicológica necessária durante a etapa diagnóstica.
Por outro lado, existe o grupo dos pacientes que vão necessitar de um encaminhamento posterior, mesmo
que tenham sido beneficiados pelas intervenções que compõem este tipo de trabalho, ainda precisam de
ajuda especializada para superar seus sofrimentos e dificuldades existenciais. Para estes casos, lidamos
com a obrigatoriedade de efetuarmos um encaminhamento apropriado e eficaz, que possa de fato atender
as necessidades do paciente e de sua família, lembrando que o encaminhamento coerente seria o objetivo
último de uma avaliação psicológica.
Tendo em vista a brevidade deste tipo de atendimento (cerca de três meses) e, além disso, como
já esclarecido anteriormente, a eventual necessidade de realizar um encaminhamento eficiente, já que
parte dos pacientes recebe alta e a outra é encaminhada para outro tipo de atendimento dentro ou fora
do Centro de Psicologia Aplicada, buscamos demarcar claramente o alcance e os contornos do processo.
Procuramos manter o enquadre específico deste tipo de trabalho e cuidamos para não estimular a neurose
transferencial. Ao mesmo tempo, em que sustentamos a esperança pela cura, conversando com as crianças
e com suas famílias sobre suas dificuldades, oferecendo informações sobre o desenvolvimento humano,
realizando devolutivas que veiculam interpretações sobre o sentido dos sintomas apresentados e que abram
novas possibilidades de entendimento sobre suas formas de viver.
Fundamentalmente, nos guiamos para oferecer uma resposta à pergunta do paciente, fazendo com
que o psicodiagnóstico seja um momento significativo de encontro com o outro (terapeuta) e de confiança
de que a ajuda é possível. Sobre essa questão Safra (2005), diz que “do mesmo modo, uma boa consulta
não só leva a criança a um aumento da confiança da possibilidade de ser ajudada, mas também promove
um enriquecimento do sentido de si mesma pela reintegração dos aspectos que estavam dissociados de
seu self” (p.45).
Tecnicamente, utilizamos como referência a experiência do jogo da espátula, descrita por Winnicott (1941),
como modelo norteador para todo o processo do psicodiagnóstico procurando ajudar o paciente e suas famílias a
terem uma experiência completa e integrada, podendo se despedir do psicólogo que conduziu o psicodiagnóstico
e ansiando por um novo encontro também significativo, quando for o caso de um encaminhamento.
Ou seja, lemos o processo como tendo um momento inicial de hesitação, no qual o paciente
explora o território terapêutico e busca estruturar um campo de comunicação. No segundo momento, que
corresponde ao brincar com a espátula, o paciente realiza a comunicação que precisava enunciar, neste
momento as intervenções do terapeuta seriam mais produtivas e o paciente viveria a experiência de ser
compreendido. No terceiro momento, que corresponde ao jogar a espátula e desinteressar-se pelo jogo,
o paciente pode “ir embora” e deixar o terapeuta por ter tido uma experiência completa que resulta na
possibilidade de colocar a sua questão em devir. Neste momento, é importante que o terapeuta não se
coloque como uma presença necessária e excessiva. Pensamos que especial cuidado deve ser tomado em
relação às orientações dadas aos pais que dizem como fazer, que são “fórmulas psicológicas”, intervenções
desta natureza centralizam no terapeuta o conhecimento, dificultando para os pais “jogar a espátula” e
fortalecerem-se no desempenho das funções parentais. Mannoni (2004) ao opor-se às orientações dadas
por terapeutas, defende que “é quase sempre mais sensato ser menos apressado, esperar primeiro que
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
o sujeito se situe na sua própria história, antes de conduzi-lo autoritariamente por um caminho que ele
deveria , de fato, poder descobrir sozinho” (p. 104).
Ainda sobre o Jogo da Espátula, vale lembrar que esse mesmo processo também ocorre em
cada uma das sessões pois, seria importante que em cada atendimento as três etapas do jogo da espátula
pudessem ser concluídas. Quer dizer que os encontros que compõem toda a avaliação psicológica reproduzem
o processo completo ou seja, em cada uma dessas partes a essência do todo deve se reproduzir.
Para tanto, sistematizamos uma estratégia clínica que marca o período de encerramento do
processo. Trata-se de uma técnica projetiva que chamamos de “linha do tempo”, ou seja, construímos um
trajeto temporal que retoma todas as etapas do psicodiagnóstico. Utilizamos uma cartolina, barbante, fio de
lã, cola, tesoura, recortes de revista, lápis colorido e grafite e canetinhas. O trabalho inicia com o supervisor
retomando para as crianças - pacientes – que, como já anunciado na sessão anterior, este é o penúltimo
atendimento. Dizemos que por isso vamos relembrar tudo que fizemos desde o primeiro dia e registrar na
cartolina a história dos nossos encontros, o material gráfico é apresentado e os estagiários vão auxiliando
a criança na reconstrução do processo de psicodiagnóstico. A atividade ainda prevê a representação do
próprio dia, ou seja, registra-se o momento específico e a atividade da linha do tempo como se fizéssemos
uma marcação de tempo. Na sequência, os estagiários intervêm contando para o paciente como será o
último atendimento; informam que vão entregar um livro de história para a criança para que ela possa levar
para a casa3 . Na última sessão a criança também leva o cartaz da linha do tempo.
Esta atividade intenciona ajudar a criança a “jogar a espátula”, busca oferecer um suporte material
para este acontecimento, procura estabelecer um campo de experiência. No entanto, observamos que a
atividade da linha do tempo também acaba funcionando como mais um momento diagnóstico. Pois, ao
precisar representar cada atendimento a criança seleciona o fato mais significativo que precisava comunicar
e desta forma, podemos certificar as hipóteses diagnósticas. Identificamos também efeitos terapêuticos
que podem ter surgido ao longo do processo. Recentemente acompanhamos um paciente de seis anos que
iniciou o psicodiagnóstico em função de dificuldades escolares, com o decorrer do trabalho percebemos
que os problemas não eram atuais, referiam-se principalmente ao ano anterior, a mãe do paciente pôde
ouvir sobre os recursos e possibilidades do filho e resignificar as dificuldades que haviam sido apresentadas
pela antiga professora. Inicialmente, percebíamos que a mãe ainda estava fixada nas constantes queixas
feitas pela professora do ano passado e de certa forma, havia assumido este discurso que desmerecia e
desacreditava no menino, reproduzindo-o na relação com ele. No dia da atividade da linha do tempo, o
paciente reapresentou a figura do gato que apareceu nos primeiros atendimentos e, para fazer o registro do
dia, desenhou um leão que simbolizava o seu fortalecimento e engrandecimento.
Sem dúvida, estamos descrevendo o percurso de sucesso, que nos norteia na condução
do psicodiagnóstico, mas muitas vezes não conseguimos alcançar satisfatoriamente estes objetivos.
Intercorrências como: dificuldades com o grupo de estagiários (tanto na relação dos estagiários entre si,
quanto na relação com os pacientes e com o próprio supervisor), dificuldades no relacionamento entre
os pacientes, dificuldades de calendário tendo em vista os atravessamentos institucionais e dificuldades
na própria compreensão da problemática apresentada pelo paciente, uma vez que o supervisor tanto tem
uma relação direta com o paciente quanto uma relação através dos estagiários que respondem pelo caso
e, muitas vezes, precisamos nos satisfazer com os fatos clínicos reunidos por precisar adequar o número de
procedimentos ao cronograma de uma clínica-escola, são alguns dos fatores que costumam interferir para
que o paciente alcance uma experiência completa podendo se despedir do psicodiagnóstico sem continuar
transferencialmente ligado ao supervisor e estagiários que conduziram o processo.
3 Realizamos a devolutiva final para a criança através da construção de uma história romanceada sobre a própria criança
assumindo a proposta de Winnicott (1971) de que as interpretações devem respeitar o tempo do paciente não sendo in-
vasivas. Assim, a devolutiva através da história permite à criança identificar-se com o personagem em questão dentro do
seu tempo. Mais,especificamente seguimos a proposta de Safra (2005) para a montagem da narrativa que deve “conter a
angústia básica da criança, suas organizações defensivas, o tipo de relação objetal e um personagem que funcione como
um objeto compreensivo, que ajude na integração do self.” (p. 48).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Seguindo pelo caminho das dificuldades, muitas vezes percebemos a necessidade de, em alguns
casos, intervir mais diretamente frente às resistências que impedem o desenvolvimento do processo de
psicodiagnóstico. Ou seja, quando nos deparamos com resistências que impedem a abertura para a cura,
que resistem à percepção do novo, que constrangem o movimento de mudança, mas que principalmente
relutam tanto frente à compreensão do significado da demanda explícita quanto frente ao encaminhamento.
Geralmente estas resistências aparecem nos responsáveis pela criança ao insistirem na compreensão
costumeira das dificuldades apresentadas pela criança e na reafirmação dos padrões relacionais da família.
Observamos que quando a transferência negativa não consegue ser minimamente cuidada, o mais comum é
ocorrer a desistência do psicodiagnóstico (no decorrer do processo) ou, a não consecução do encaminhamento.
Guiando-nos pelo pensamento de Winnicott podemos entender as resistências como o período de
hesitação descrito no “Jogo da Espátula” pois, a partir deste referencial a resistência é ompreendida como
um temor frente ao que não foi constituído. Avellar (2004) sintetiza o conceito retomando que na perspectiva
winnicottiana a resistência se trata:
“da constituição de algo que não foi vivido, algo de que o indivíduo necessitava e não foi encontrado...
a hesitação se refere a duas situações diferentes: uma, que é a possibilidade do indivíduo vir a encontrar algo
que necessita e anseia, uma experiência nova, prazerosa e constitutiva... A outra possibilidade é o paciente
estar diante de angustias impensáveis, de se deparar com as falhas ambientais presentes nos estágios iniciais
do desenvolvimento” (p. 96).
Portanto, a necessidade de lidar com a transferência negativa reforça a posição de que, mesmo em
uma etapa diagnóstica, o psicólogo deve colocar-se em um lugar interventivo, ajudando o paciente a assumir
o encaminhamento e continuando vinculado à clínica-escola.
Sobre o tema transferência no psicodiagnóstico interventivo muitas questões ainda devem ser
pensadas, principalmente a questão relativa a transferência grupal que tanto possibilita o acontecimento do
grupo quanto, em algumas situações, impede o trabalho grupal. Outro tema também importante refere-se
à transferência entre supervisor-estagiário que, da mesma forma, seria a fonte de um aprendizado efetivo
quanto pode ser o impedimento do processo de aprendizagem.
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negociações. In: ANCONA-LOPEZ, Marília (org). Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São
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MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanalise. Rio de Janeiro: Elvesier, 2004.
OCAMPO, Maria Luisa Siquier de; ARZENO, Maria Esther Garcia; PICCOLO, Elza Grassano e col. O processo
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selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves, 1993.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga pelo IP-USP (2009); Aprimoramento em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP (2011); Psicóloga clínica em
consultório; atua como A.T. com crianças em processo de inclusão escolar. [email protected]
2 Psicóloga pela UMESP (2009); Aprimoramento em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP (2011); Psicanálise: funda-
mentos em Freud e Lacan pelo Clin-a (em curso); Psicóloga clínica em consultório e no Instituto de Hebiatria da FMABC.
[email protected]
3 http://pap.fundap.sp.gov.br/ # sobre, acessado em 16 de julho de 2012, às 15h.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Segundo Rosa, antes de ser internada no CTI, Kelly estava andando, falando e brincando, mas desde
então parou; a mãe demonstra estar bastante angustiada e chora ao narrar essa história. Ela está numa
posição também delicada: se por um lado precisa continuar apostando e investindo – do ponto de vista
libidinal – em sua filha, por outro precisa considerar a cada instante a gravidade de sua doença, lançada ao
real que o corpo lhe impõe.
Emociona-se também ao falar de suas outras três filhas (de 18, 10 e 8 anos), a filha mais velha
vem visitá-la todo domingo, mas não vê as mais novas desde que Kelly foi internada. Nos atendimentos
seguintes, Rosa volta a falar das outras filhas; um dia, interrompe o que está dizendo e afirma não querer
mais falar sobre isso, pois elas (mãe e filha) só ficam tristes quando Rosa fala sobre o assunto comigo,
quando não lembram, não ficam com saudades.
Aos poucos, Rosa mostra-se menos angustiada e Kelly vai voltando a falar mais palavras, propondo
brincadeiras e conseguindo sentar e endurecer o pescoço. O quarto, que antes estava vazio, está agora
cheio de brinquedos. As duas inventaram uma brincadeira de colocar um esparadrapo num bichinho de
pelúcia, porque ele está doente; Kelly aponta o esparadrapo e diz “dodói!”, depois retira o esparadrapo e diz
“sarô!”; vai também mostrando os dodóis em seu próprio corpo e um “catete” (cateter), por onde colocam
a medicação que ela precisa tomar. A mãe nomeia o progresso: “Você viu como minha filha está bonita?!”.
Podemos considerar as conquistas de Kelly numa dupla vertente: elas foram possíveis graças
à diminuição da angústia da mãe, que pode, então, olhar para a filha além da doença, mantendo seu
investimento libidinal; assim como possibilitaram à Rosa ficar menos angustiada, reconhecendo sua filha
enquanto sujeito, tal como antes.
Retomando...
O atendimento em enfermaria possui diversas vicissitudes, pois lidamos com o imprevisível: não se
sabe quanto durará o período de internação, nem tampouco o que o paciente fará em cada momento, o que
pode dificultar ou impossibilitar o atendimento; ele pode estar sendo submetido a algum procedimento,
dormindo, comendo, tomando banho, se trocando... Trata-se de um setting muito particular.
Na primeira enfermaria citada, cirúrgica, os quartos são compartilhados e, comumente, é impossível
deslocar o paciente para outro local mais reservado, devido à instabilidade do quadro clínico, desse modo,
o atendimento é realizado na presença de outros pacientes. Os atendimentos aos acompanhantes podem
ser realizados em outros espaços, no entanto, Paula não conseguia afastar-se de Heloísa. Na segunda
enfermaria, hemato-oncológica, cada paciente tem seu quarto, assim, há um espaço mais preservado. De
qualquer modo, não é possível estabelecer um setting que garanta a frequência ou tempo fixo para cada
sessão, ou ainda que seja isento de interpelações de outras pessoas durante o atendimento.
Outro aspecto importante é o oferecimento de escuta; em ambos os casos, é o analista que oferece
sua escuta ao paciente, sem que este tenha formulado uma demanda própria de atendimento. Essa oferta
possibilita a emersão de uma demanda latente, pré-existente, mas que só pode ser nomeada, expressa, no
momento em que se dá a oferta da escuta analítica como um espaço – simbólico – em que o sujeito pode
dizer de si, mesmo que o faça, a princípio, sem saber sobre o que diz4.
Para que essa escuta opere é necessário que se estabeleça uma relação transferencial entre o
paciente e o analista. Freud5 apresenta a ideia de que a transferência é um fenômeno natural da vida psíquica,
uma vez que diz respeito ao modo como o sujeito lida com as pulsões e que se repete nas diversas relações
que estabelece. Essa relação transferencial entre o paciente e o analista, no contexto hospitalar, é marcada
pela transferência anterior à instituição de saúde e também à equipe de forma geral. Nesse espectro, dá-se a
suposição de um saber ao HC e, na mesma esteira, aos profissionais que nele atendem, incluindo o analista.
O HC é um hospital de referência, há um discurso que circunda o complexo: lá eles (equipe) saberão!
4 Moretto, L.M.T. (2002). O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo.
5 Freud, S. (1996 (1912)). A dinâmica da transferência. In: Freud, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
12 Faria, M. (1998) Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo: Hacker Editores.
13 Faria, M.R. (2004) Das entrevistas preliminares aos tratamentos com crianças, às entrevistas preliminares com
crianças. Comunicação oral apresentada na Jornada de abertura de FCCL: A direção do tratamento na psicanálise com
crianças. São Paulo.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
Apresentamos aqui o trabalho com um Grupo de Atendimento a Pais e Bebês/Crianças Pequenas
(0 a 3anos e 11 meses) em funcionamento no Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês, Setor de Saúde
Mental, Departamento de Pediatria da Universidade Federal de S. P. Discutimos tal abordagem através de
vinhetas descritivas de cenas filmadas, como alternativa ou complementação de encaminhamento para
famílias com bebês/crianças pequenas que necessitem e se beneficiem de um acolhimento compartilhado
para ansiedades e dificuldades interferindo (ou que possam vir a interferir) no desenvolvimento da criança
e da função parental. Trabalhamos com recursos provenientes dos atendimentos conjuntos (consulta
terapêutica, intervenção nas relações iniciais e psicoterapias pais bebê), integrados às técnicas psicanalíticas
de intervenção grupal, considerando-se os elementos transferenciais e contratransferenciais no contexto
peculiar da clínica com bebês. Busca-se relacionar, no aqui e agora das sessões, a linguagem lúdica das
crianças com as preocupações expressas pelos pais, desenvolvendo a capacidade parental dos cuidadores,
facilitando a comunicação pais-bebê e contribuindo para a promoção, num nível estrutural e fundante, da
saúde da criança e da família.
1 Psicóloga e Psicoterapeuta com Mestrado pela Universidade Metodista de São Paulo, Docente e Supervisora parti-
cipante do Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) durante a
implantação e desenvolvimento do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês. Terapeuta do Grupo de atendimento conjunto
a Pais-Bebês aqui relatado. [email protected]
2 Psicóloga e Psicoterapeuta com Mestrado pela Tavistock Clinic e University of East London, Coordenadora do Núcleo de
Atendimento a Pais e Bebês e Supervisora no Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da UNIFESP, Terapeuta do
Grupo de atendimento a Pais e Bebês. Membro do Depto. de Psicanálise da Criança e docente do Instituto Sedes Sapien-
tiae. Membro Filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise SP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Emocional de Bebês, um acompanhamento periódico regular, para seguir passo a passo o desenvolvimento
dos aspectos psicológicos da criança e do vínculo com os cuidadores, ao longo dos três primeiros anos de
vida. Assim como o bebê é acompanhado em seus aspectos clínicos no atendimento pediátrico, convidam-
se os pais a trazerem-no inicialmente semanalmente e depois com progressivo espaçamento, para que se
acompanhe o desenvolvimento de aspectos emocionais, relacionais e psicomotores
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
I - Dilemas da Autonomia
Mãe do Reinaldo: Ontem na escola me perguntaram o que tinha acontecido com ele que ele
estava tão agitado. Eu falei, em casa ele estava tranquilo... hoje é que eu estou vendo que ele está agitado.
(Compartilhando olhares sobre a criança)
Terapeuta M: O que será que aconteceu com o Reinaldo hein Marcos, que ele está agitado? Você
está achando que o Reinaldo está agitado? (Incluindo as crianças como interlocutores, convocando o
olhar intersubjetivo e a conexão ação/estado psíquico, estimulando a comunicação grupal)
Reinaldo, com dificuldades importantes no vínculo e comunicação, demonstra agitação esfregando
ruidosamente o carrinho contra a mesa, fazendo um barulho bem alto, enquanto olha para a mãe em aparente
desafio e convocação. (É o mais velho do grupo, com quase 4 anos) Marcos, de 3 anos e meio, garoto tímido,
talvez fortalecido ali por nossa convocação de sua opinião, observa Reinaldo, sorri com aparente admiração e
balança o brinquedo em sua mão, acompanhando o ritmo da excitação de Reinaldo. Marcos parece não aguentar
a intensa excitação, que dura pouco tempo. Logo coloca o brinquedo no chão, comportadamente, com aparente
medo de perder o controle. (Marcos chegou ao tratamento como uma criança muito contida e controlada com
dificuldade de expressão e autonomia numa relação simbiótica com sua mãe, extremamente angustiada, que
esperava de Marcos atitudes previsíveis e maduras que não desafiassem sua própria necessidade de controle,
relacionadas a seu histórico familiar e referências internas de cuidado parental rigoroso). ... Gabriel, de 2 anos
e 8 meses, levanta com o estetoscópio de brinquedo na mão. Marcos, após algumas voltinhas perto da mãe,
parecendo perdido e solicitando autorização para poder “pedir”, pede: Dá isso? Me dá esse?
Marcos coça a cabeça (ensimesmado ou confuso?), enquanto aponta para Gabriel com o brinquedo
(dividindo o olhar entre estas duas direções, dividido entre o próprio gesto de apontar para um outro fora
da relação com a mãe e o olhar que pede autorização).
Mãe do Marcos: Ah, ele pegou. Deixa ver, vem cá. (Mãe responde ao coçar da cabeça como se
fosse algum desconforto físico que necessita assistência, sustentando a continuidade da relação dual e a
referência no concreto/“handling” corporal. Apesar disso e de alguns “tropeços no caminho”, Marcos se
sente encorajado a buscar o que precisa, caminhando em direção a Gabriel e sua mãe.)
Terapeuta I: Nós começamos com a agitação de algumas crianças, né Mari? (Recapitulando o
movimento do grupo)
Terapeuta M.: É, pois é! (Terapeutas funcionando como dupla parental em diálogo sobre
estados emocionais do grupo)
Marcos, próximo a Gabriel que está deitado junto de sua mãe, chega para pegar o estetoscópio.
A Mãe do Gabriel e do Marcos conversam com Gabriel e “negociam” com ele a passagem do brinquedo
para Marcos que retorna então para o lado em que está sua mãe. O trio Marcos, Gabriel e Mãe do Gabriel
parecem ter conseguido chegar a um acordo num contato/conflito mediado pelo adulto em que as crianças
puderam ter voz. (Empatia entre subjetividades e diferença geracional é possível)
Mãe do Marcos: (observando a relação bem próxima de Gabriel com sua mãe) Nossa, ele cresceu!
(Nostálgica quanto à relação mãe criança menor? Desejosa de uma proximidade, simultânea a um possível
crescimento? Admirando essa possibilidade? Temerosa com este crescimento?)A gente fica um tempo sem
ver, quando vê... cresce rapidinho! (Transferindo aspectos da própria relação com o filho e da própria
subjetividade para o grupo e seus membros – ambivalência em relação ao crescimento, admiração x
susto com a perda de controle).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Mãe do Gabriel: Você viu como ele tá agora? Agora ele não brinca mais... Todo lugar que eu vou,
ele só quer ficar perto de mim. (Num misto de perplexidade e orgulho)
Terapeuta M: É, a Ida estava comentando isso da outra vez. (Costurando continuidades no
cuidado do casal parental)
Terapeuta M: O Gabriel está aí, no colinho, no peitinho. (Associando conduta e estado psíquico
em linguagem metafórica - polissêmica)
Terapeuta I: Parece que agora está mais preocupado em deixar esta mamãe, né? Tá crescendo, mas
parece que está precisando ficar pertinho. (Apontando ambivalências como naturais e simultâneas no
processo de crescimento.)
Mãe do Gabriel: E ele fala mamãe eu vou ficar com você, tá? (Interdependência das
necessidades infantis e parentais).
Terapeuta M: Está fazendo companhia para a mamãe, Gabriel? Tá contando estória para a mamãe?
(Falando com a criança para o grupo)
Terapeuta I: É, né? O Gabriel parece que está tendo necessidade de cuidar da mamãe, né Gabriel?
(Sinalizando inversão da relação de continência)
Terapeuta M: Ou você quer que a mamãe conte estorinha pra você... bem pertinho um do outro?
(Reincluindo o outro polo da ambivalência a partir da observação de expressão e gestual da
criança - o livro no colo da mãe. Explorando perspectivas, oferecendo alternativas diferentes, em
movimento, com composição entre as terapeutas/dupla parental em visões complementares para
o grupo – sem fusão, mas com acompanhamento compartilhado. Possibilidade de triangulação.)
Gabriel, hoje com uma camiseta “I love Dad”, frequenta o grupo desde os 5 meses com sua mãe,
muito deprimida e insegura após abandono (temporário) do companheiro e perda anterior de outro bebê.
Durante o período de frequência ao grupo, percebe-se muita evolução no reconhecimento das competências
mútuas entre mãe-criança e diminuição de risco para o ex-bebê de substituição.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Mãe do Marcos: Fiquei impressionada! (Solicitando escuta para estados internos, dela e da
criança)
Terapeuta I: Sentiu saudades de casa... (Associando aspectos físicos e psíquicos, em resposta
à convocação)
Mãe do Marcos: Eu acho que foi, né? (Incorporando a percepção)
Chega Miguel, de 1 ano e alguns meses, no colo de sua mãe, que participa pela segunda vez do
grupo, tendo sido encaminhado por dificuldades para dormir.
Terapeuta M: Está todo mundo contando as novidades, um que ficou doente, melhorou, um que
tem ficado bem pertinho da mamãe para cuidar dela e cuidar dele, o Reinaldo que está mostrando a agitação...
e o Miguel, como é que está? (Recapitulando o percurso do Grupo e inserindo os que chegam)
Mãe do Miguel: O Miguel essa semana dormiu duas horas e meia seguidas. (Reportando evolução
sintomática)
Terapeuta I: Olha, para quem não dormia nada!... Não era o Miguel que não dormia nada?
(Valorizando o movimento)
Mãe do Miguel: Que não dormia dez minutos seguidos... (Reconhecendo a mudança)
Terapeuta I: Puxa, dormir duas horas e meia seguidas... o Miguel está podendo descansar, agora, né?
Ele está podendo descansar mais. (Amplificando linguagem e tecendo sentido: do cotidiano físico para
possível inter-relação com o emocional)
III – Associando físico e psíquico – Tolerando aspectos emocionais – Reconhecendo
competências (Pais/Crianças/Grupo)
(Após conversa grupal sobre Ana Laura, 3 anos, acordar chorando e dificuldade dos cuidadores em
saber o que se passava com ela)
Mãe do Marcos: Uma criança pode adoecer por não estar gostando do ambiente que ela está? Assim,
ele estava tendo febre, e lá em casa... pode ter sido um estado emocional essa febre dele? (Condensando
aspectos em questão, conceitualizando inquietações em processo de formulação durante o grupo:
conexão entre físico/psíquico)
Terapeuta M: O que vocês acham? (Convocando o grupo a pensar, expandindo a discussão)
Mãe do Reinaldo: Eu acho que sim, por que minha irmã teve isso, quando nós éramos crianças,
minha mãe levou eu e ela para o Nordeste. Aqui a gente acostuma com a água da torneira e lá você tinha que
pegar água em um barreiro, né? A chuva acumula água, tinha sapo, quando a minha irmã viu aquilo, ela já teve
febre, ficou 2 semanas com febre direto! Ela não queria comer, não queria nada, para dar banho nela era uma
tortura, tinha que pegar aquela água, ferver... Então ela falava “Mãe, esta água está suja” e tinha sapo... Então essa
febre foi aumentando, aumentando, aumentando. Aí minha mãe falou: “Eu vou embora senão minha filha vai
acabar morrendo aqui!” A febre dela só acabou, ela só quis comida, quando viu a Basílica da Aparecida do Norte.
Acho que ela pensou assim: “Eu estou em casa”. A febre foi embora...então eu acredito que seja emocional.
(Oferecendo associações com vivências infantis, disponíveis como imagens metafóricas/oníricas)
Mãe do Marcos: O que chamou a atenção foi que eu cheguei aqui na sexta à noite, ele dormiu de
sexta para sábado com febre, até o meu marido não deixou dar remédio para ele. Sábado ele não tinha mais
febre, domingo ele estava sarado, voltou a comer. Lá em Minas, ele também não estava querendo comer.
(Compartilhando interesse por movimentos internos/psíquicos nela e na criança)
Terapeuta M: Conforme a gente está se sentindo, se a gente se sente melhor, mais tranquilo, isso
pode interferir no estado físico... o que a gente está passando, o estado emocional, pode interferir na condição
física... (Tentando refrasear o que parece mágico para uma relação vivenciada) Vocês acham que isso
acontece? Já observaram isso nas crianças? (Intercalando sínteses com continuidade de exploração do
assunto com o grupo, oferecendo contribuições, mas sem saturar o campo)
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
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BECHELLI, I. A. B.; SILVEIRA, M. M.; JOPPERT, S. M. H. Aplicação da Psicanálise em Saúde Pública: Sistematização de
um serviço preventivo no desenvolvimento do bebê, I Encontro Nacional sobre o Bebê, São Paulo, 2006.
BECHELLI, I. A. B.; TOSTA, R. M., Prevenção precoce de distúrbios psíquicos na saúde e na doença: A Atuação
com bebês, pais e profissionais cuidadores em diferentes contextos institucionais, II Congresso
Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, 2006
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Tese de Mestrado, Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, 2002.
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MENDES DE ALMEIDA, M.; BECHELLI, I. A. B.; Grupo de Atendimento Pais-Bebês: Alternativas em Prevenção
no Contexto Institucional e Alcance Terapêutico, X Congresso Nacional da Sociedade Portuguesa de
Grupanálise e Encontro Luso Brasileiro de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo, “Identidade
Grupanalítica em Tempos de Mudança,” em Lisboa – Portugal, 2009,
MENDES DE ALMEIDA, M.; BECHELLI, I. A. B.; SILVEIRA M. M.; WECHLER R.; Relações Pais-Bebês em Pediatria:
Detecção de Riscos e Promoção de Saúde emocional, X Congresso Paulista de Pediatria, São Paulo, 2010.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicóloga clínica, especialista em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica pelo Cogeae/PUC-SP, especialista em transtornos
da Infância e Adolescência pela UNIFEV/Centro Lydia Coriat, especialista em Gestão Pública pelo INSEP/PR. Aluna do curso
Psicanálise no SEDES e Coordenadora do Serviço de Psicologia da Clínica de Fisiatria e Reabilitação de Londrina.
2 O paciente e sua família autorizaram a utilização do material.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
silêncio de Vitor é da mesma natureza deste a que se refere Freud? Se sim, do que se trata? Se não, o que
ele nos fala de Vitor? Vejamos o que Freud pode nos dizer sobre esse silêncio.
Diz ele: “Pois a própria morte é também inconcebível, e, por mais que tentemos imaginá-la,
notaremos que continuamos a existir como observadores. De modo que na escola psicanalítica pudemos
arriscar a afirmação de que no fundo ninguém acredita na própria morte; ou, o que vem a significar o
mesmo, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua imortalidade” (1915, p.230).
Podemos imaginar se isso se mantém quando o corpo começa a dar fortes sinais de que vacila,
ou seja, quando é tomado por uma doença física. Uma de minhas pacientes, adulta, na casa dos cinqüenta
anos, que sofria de um tipo de Esclerose Múltipla muito incapacitante, disse certa vez em atendimento:
“estou desistindo do tratamento, sei que o que eu tenho mata, e não vou prolongar mais sofrimento. Desisto
também da vida”. Seria este um movimento similar, porém silencioso, o que pude observar em Vitor?
Minha paciente adulta, embora estivesse na posição de observadora da própria morte, também poderia
estar sofrendo fortes influências de suas sensações e vivências enquanto sujeito. O que significaria que
essa posição de observador se encontrava ameaçada. Uma tentativa de resposta deve passar por como
a morte “aparece” no inconsciente. Ao lado da afirmação de que “no inconsciente cada um de nós está
convencido de sua imortalidade”, Freud escreve mais à frente, comparando nossas atitudes com as do
homem primitivo: “O que chamamos de nosso inconsciente, as camadas mais profundas de nossa alma,
constituídas de impulsos instintuais, não conhece em absoluto nada negativo, nenhuma negação – nele os
opostos coincidem -, e por isso não conhece tampouco a própria morte, a qual só podemos dotar de um
conteúdo negativo” (p.241-242).
Freud escreve que o homem civilizado evita falar sobre a morte, e é cuidadoso ao entrar nesse
assunto quando está próximo de alguém muito doente. As crianças parecem não compartilhar desse mesmo
cuidado, são capazes de falar, inclusive, para pessoas amadas sobre o que farão quando estas morrerem.
Já os adultos sentem-se culpados quando pensam na morte de quem amam, especialmente quando tal
morte parece estar ligada a algum ganho pessoal ou benefício material. Perante alguém que morreu, nos
comportamos de maneira elogiosa, reconhecendo em seu estado a passagem por algo muito difícil.
“Essa postura cultural-convencional diante da morte é complementada pelo total colapso que
sofremos quando morre alguém que nos é próximo, um genitor ou cônjuge, um irmão, filho ou amigo
precioso. Enterramos com ele todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos
recusamos a substituir aquele que perdemos”, escreve Freud (1915, p.231-232).
Tal comportamento tem efeitos, se pensarmos que ele gera um empobrecimento da vida, que
passa a ser frágil e não permitir que sobre ela incidam muitos riscos. A intensidade do luto que podemos
experimentar faz com que se exclua do jogo da vida outras coisas ligadas diretamente à morte.
Freud segue o texto argumentando que, durante a guerra, a morte se faz presente, não há como
negá-la da maneira habitual. Talvez o mesmo ocorra em casos de doenças com prognóstico de óbito. Nestes
casos, a presença da morte não se presta aos métodos convencionais de negação. Então, como um sujeito
acometido por uma doença poderia lidar com ela, com a morte? Uma resposta talvez possa ser encontrada
se pensarmos em Vitor e na maneira como ele se comporta no jogo, não mostrando reações a não ser
quando ganha. Há aqui uma negativa da morte, que envolve o desinvestimento comentado por Freud, e,
consequentemente, um empobrecimento do mundo interno diante do mundo externo.
Duas ideias importantes a sumarizar do que pude discutir até o momento sobre o ensaio
freudiano de 1915: 1) procuramos reduzir a morte ao silêncio; e 2) o inconsciente desconhece o negativo.
Transferencialmente, ambas ideias trazem-nos problemas. O silêncio de Vitor, embora deva ser respeitado,
pede uma atitude do analista. Contratransferencialmente, não posso me posicionar como uma simples
testemunha, vendo-o deixar de investir libidinalmente o mundo e, numa cumplicidade covarde, agir como
o fotógrafo de guerra que, ao presenciar um crime que poderia impedir, preocupa-se em ajustar o foco de
sua câmera. Durante algum tempo, paralisada pela angústia dessa situação, segurei firme minha câmera e
fotografei o silêncio. Segurar a câmera não está – garanto – entre as atitudes mais agradáveis.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Falo de meu sentimento contratransferencial mas, vale ressaltar que, embora parecesse necessário
e significativo seu silêncio, dado o problema físico que ele enfrentava, era gerada uma negatividade que,
imaginei, em nada contribuía para sua melhora, nem parecia permitir qualquer possibilidade elaborativa.
Nessa época, atendia em grupo outros meninos da idade de Vitor também com patologias incapacitantes.
Decidi que para ambos, eu e Vitor, o grupo poderia ser benéfico. Disse há pouco que o silêncio de Vitor pedia
uma atitude de sua analista. Paralisada sua mãe, afogando-se em álcool seu pai, minha paralisia, minha
câmera, não poderia continuar cúmplice do silêncio avassalador que dominava as sessões. Avassalador,
creio, para seu psiquismo. Ele percebia que algo se passava com seu corpo, que seus pais estavam, cada um
a sua maneira, assustados com seu estado e com o prognóstico. Sua analista poderia permanecer ali, lente
dirigida a ele, e sem fazer nada. Daí o grupo; uma tentativa de largar a câmera e, junto a outras crianças,
trabalhar com ele sob outro foco. O grupo traria esta vantagem: de um não investimento no mundo externo
que se mostrava pelo silêncio e pela negação de sua doença, a um convívio lúdico que pudesse trazer
vida onde, antes, só existia espaço para morte. E na contratransferência, é claro, eu poderia sair de trás da
câmera, da passividade e do silêncio. Estaria, eu também, inserida no rol de objetos a que Vitor poderia
começar a investir.
Sobre as possibilidades que o grupo poderia trazer a seu tratamento, lembremos de uma das
referências a Freud feita acima. As crianças, diz ele, não parecem compartilhar do mesmo cuidado dos
adultos no trato da morte. Não adquiriram ainda este cuidado, evitando falar sobre o assunto quando
alguém próximo está doente. Bem interpretada e sob a ótica infantil, tal afirmação pode ser lida como “elas
não negam este fato, embora o façam mais tarde; elas vão ao estádio e, a plenos pulmões, gritam: olha o
ladrão”! Cabe um breve excerto de uma das sessões do grupo.
Vitor chega ao atendimento depois de outro membro, M. Ela diz que seu nome não está no
mural (onde constam os nomes dos aniversariantes do mês) porque seu aniversário foi em Abril, que já
passara. Vitor diz que o seu fora no dia anterior à sessão e, por isso, seu nome estava no mural. Pergunto-
lhe como tinha sido seu dia. Ele conta que ganhou um telefone celular, passeou no shopping e comeu
pizza. E completa, “adora comida de shopping”. M pergunta se ele tomou sorvete. Vitor responde: “Estou
com catarro no pulmão”. Ele quer, nesse dia, brincar com algo diferente de M, quer brincar sozinho. Abro o
armário, onde estão os brinquedos, para que ele possa escolher. Decide-se pelo “Pula-Pirata”. Joga três vezes
ininterruptamente. Na quarta vez, o pirata pula longe de onde ele brincava. Enquanto vai pegar o pirata,
pergunto se o brinquedo sobreviveu à queda. Faço a pergunta porque Vitor, ao pegar o pirata, olhou-o para
ver se não o estragara e disse: “Está vivo. Não morreu, não”. Nas duas últimas jogadas, o pirata não pula,
mesmo depois de Vitor ter colocado todas as espadas. Ele pede minha ajuda para descobrir porque o pirata
não pulara. Logo que me chama, M também pede que eu a auxilie na montagem de um quebra-cabeças.
Vitor diz a M: “Quer lutar”? Pergunto-lhe, “Como assim, lutar”? Ele responde, “Ué, com as espadas”.
Podemos perceber as diferenças entre o comportamento de Vitor no primeiro trecho relatado
e neste. No primeiro, Vitor apresenta-se mais passivo, aparentemente não demonstrava disposição em
continuar investindo o mundo externo, o que aparecia através de seu silêncio. Agora, mais ativo, Vitor
escolhe com o quê e como quer brincar, e pode investir libidinalmente os objetos, inclusive convocando-
me transferencialmente para ajudá-lo. Outro ponto que gostaria de salientar pode ser percebido em sua
reação à queda do pirata; abre-se um espaço lúdico onde Vitor responde animado em dois campos: o de
seu próprio corpo e o da brincadeira. “Está vivo”, exclama, “não morreu não”. Estão vivos ele e o pirata, e o
jogo pode continuar. No momento seguinte, o brinquedo falha, o pirata, que deveria pular, não pula. Vitor
pede minha ajuda para saber o que acontecia com o brinquedo e, novamente, abrem-se dois campos:
sua pergunta sobre porque o pirata não pulou poderia ser colocada ao lado de suas indagações sobre si
mesmo, que poderíamos traduzir como: “o que acontece com meu corpo que não me deixa fazer várias
coisas?”. Algumas questões, como sobre por que ele não tomou sorvete, permitem respostas objetivas:
o catarro. Outras, porém, implicam questões difíceis e respostas igualmente complicadas. Como se pode
dizer a uma criança que seu corpo hoje não lhe permite fazer inúmeras coias e que, no futuro próximo, lhe
permitirá ainda menos. Ou seja, como falar para uma criança de algo que é iminente? Noutras palavras,
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
como podemos agir quando, observando um jogo de futebol, a dezenas de metros do jogador que carrega
a bola nos pés, vemos que, sorrateiramente, por trás dele, aproxima-se um marcador implacável?
Obviamente, Vitor não deixou de silenciar em diversos momentos; também não deixou de tentar
negar o que lhe passava fisicamente. Houve, porém, uma mudança. O investimento libidinal na analista
ganhou aspectos positivos. Dito de outra forma, a transferência, antes nutrida unicamente de silêncios e
hesitações, desenvolveu-se em algo mais carregado, mais complexo e, felizmente, mais benéfico a seu
tratamento.
O estádio ainda está cheio. Vemos o marcador. O vejo eu, o vê também a mãe do paciente. Fico a
beira do campo, câmera na mão. Qualquer furor curandis é impossível; não é disso que se trata. O marcador
é implacável, teima em aproximar-se. Observo pela lente piratas voarem pela sala, silêncios que angustiam
toda a arquibancada, um sorvete que não pode ser tomado. Pela minha experiência com esse tipo de caso,
sei que a bola será roubada, ou que cairá o jogador que a carrega. Mas baixo a câmera; ele já está perto
da área. Sei que não adianta negar a vinda do ladrão. Faço um cone improvisado com as mãos – meu
megafone corpóreo. Há transferência, então o jogador me olha com o canto dos olhos. Enquanto os outros
se preocupam com o ladrão, falo, e minha voz soa alta pelo megafone improvisado: “Está vivo, não morreu,
não. Divirta-se no jogo”!
Referência Bibliográfica
FREUD, S. (1915) “Considerações atuais sobre guerra e morte” In: Obras completas volume 12 (trad. Paulo
César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
A comunicação nos dias atuais é vital pelos mais diversos ângulos em que possamos analisar o
viver. Porém, ao lado da facilitação e velocidade dos meios de comunicação, sofremos força contrária em
nossas vidas quando focalizamos apenas valores como eficiência, resultados, produtividade, etc...
Nesse texto abordarei a importância de alguns aspectos essenciais da comunicação humana no
trabalho clínico em âmbito privado e individual e no trabalho clínico realizado em grupos, em instituições.
Y buscava essa proximidade com a mãe e com o pai que pode ser resgatada através do perigo de
morte. A disponibilidade com que os pais responderam ao acontecido demonstrou a presença de condições
favoráveis, de preocupação genuína com a vida e saúde mental da filha..
A proximidade psíquica e afetiva conquistada nessa época foi vital para os progressos que se
seguiram. Y pode gradativamente discriminar suas angústias e fortalecer aspectos importantes de sua
identidade. Isso interferiu positivamente em seu desempenho escolar, em sua vida afetiva e em seu
relacionamento social. O trabalho continua até hoje com resultados positivos tendo desaparecido os
episódios de uso excessivo de álcool e medicamentos com risco de morte. Á medida em que nosso trabalho
prosseguiu e Y foi aumentando o contato psíquico com seus conflitos e angústias as melhoras vieram. O
que eu chamaria de caos ou turbulência foi gradativamente substituído por um viver mais estável ,calmo ou
tranqüilo. O encontro com estados e cuidados primitivos de fusão que puderam ser vivenciados com a mãe,
pai, familiares e a terapeuta puderam gradativamente possibilitar o encontro com recursos psíquicos mais
favoráveis ao enfrentamento de várias perdas e conflitos característicos da adolescência. Conflitos, angústias
e sentimentos puderam se manifestar por outros caminhos que não pelos atos, pela ingestão de álcool e
consumo de drogas.
O caminho percorrido por Y confirmou a importância da pesquisa inicial pela possibilidade de
confiança e, quando esta foi adquirida, as vivências necessárias de dependência que toda sua situação real
e psíquica requisitava.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
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Motta, I. F; Sant’Anna, B. A; Miranda, M.C.; Muszkat, M; Polizio, B. P. Mangucci, E.; Ricastro, R. M.; Ribeiro, S. R.;
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Motta, I.F.(2006) Orientações de Pais. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Motta, I.F.& Rosa, J.T.(2008) Violência e Sofrimento de crianças e adolescentes. Aparecida do Norte, SP: Idéias
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WINNICOTT, D. W. (1990) Natureza humana. ( Davi Litman Bogomoletz, trad.) Rio de Janeiro: Imago.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Julia Eid1
Este trabalho tem por objetivo propor algumas considerações sobre a transferência na prática
psicanalítica com crianças adotadas e abrigadas a partir do viés da ética. Considerando ética enquanto
respeito e reconhecimento do outro em sua singularidade e subjetividade, procura assinalar a importância
do psicanalista ser alguém que revele a seu paciente a ética do humano, principalmente no trabalho com
crianças que cresceram privadas de relações éticas. A ética é apresentada dentro da psicanálise em dois
âmbitos: o primeiro diz respeito ao surgimento da ética nas trocas humanas e, mais especificamente, ao
nascimento do sujeito ético; o segundo traz um olhar sobre a prática psicanalítica norteada pela ética.
A autora apresenta fragmentos de sessões de dois casos de crianças marcadas por relações
esvaziadas de ética. Os pontos levantados nesta apresentação dizem respeito às sutilezas do lugar
transferencial que ocupamos, à busca de manter uma postura ética sem intervalos, a determinado lugar
para onde o paciente nos convoca que pode muitas vezes colocar em risco o lugar do analista e sobre certo
trânsito entre a necessidade de ser extremamente acolhedor e, quase ao mesmo tempo, precisar marcar os
limites presentes nas relações humanas.
Sobre este último ponto, assinala a importância de o analista poder ser alguém que interdita e
busca marcar uma diferenciação entre analista e analisando a fim de delimitar as possibilidades de gozo
do paciente dentro do espaço analítico. Ao mesmo tempo, procura destacar que o fazer-se continente
das angústias e excitações do paciente pode ser tão ou mais importante quanto uma interdição ou uma
interpretação.
1 Psicóloga (PUC-SP); especialização em Psicanálise da Criança (Sedes Sapientiae); Membro do Departamento de Psi-
canálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae; integrante do Grupo Acesso – Estudos, Intervenções e Pesquisa sobre
adoção, da clínica psicológica do instituto Sedes Sapientiae; Psicóloga da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do
Hospital São Paulo e Membro do Setor de Saúde Mental Pediátrica da UNIFESP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Sabe-se que para a criança, o brincar é mais que uma simples atividade recreativa. É um trabalho
levado a sério. É através do brincar que a criança desenvolve sua capacidade de comunicação, sua
independência nas atividades da vida cotidiana, sua capacidade motora e a construção de seu pensamento.
Além disso, o brincar é a forma de expressão privilegiada da infância: o espaço do brincar é utilizado como
forma de expressão através de encenações, utilização de imagens ou de ações.
Sendo o modo de expressão privilegiado dessa época da vida, o brincar ocupa um lugar central nas
psicoterapias de crianças, desde o início da história dessa prática. Alguns pioneiros dessa clínica consideram
o brincar como suporte de uma relação possível entre analista e criança-analisante. Uma outra corrente
utiliza o brincar como uma técnica específica adaptada aos aspectos primitivos e particulares da vida
psíquica da criança. Esta corrente pensa o brincar como uma maneira pela qual as crianças vão representar
de modo simbólico os seus fantasmas, desejos e experiências vividas. É por esta via que os terapeutas
poderão ter acesso à verdade psíquica de seus jovens pacientes.
Mas o brincar em si pode ter efeitos terapêuticos. Uma terceira vertente considera esta proposição,
defendendo que o simples fato de brincar permite à criança representar para si mesma cenas vividas,
podendo as simbolizar, integrar subjetivamente as experiências vividas e sendo nesse sentido, terapêutico.
A criança irá repetir uma determinada brincadeira quantas vezes lhe forem necessárias para integrar uma
experiência vivida. Assim, o brincar é uma tentativa de elaborar algo que impressionou a criança, através de
uma produção de sentido (Freud, 1920). Este é o caso da garota que Piaget (1945) descreve: chocada pela
visão de um pato morto e depenado na mesa da cozinha, ela vai naquela noite brincar de ser ela mesma
o pato morto. Ao brincar, ela pode superar a experiência chocante de se encontrar tão próximo da morte.
Para nós, o brincar tem ainda uma quarta função: ele participa do processo de construção da
alteridade. Processo este que é considerado como nunca completamente acabado, visto que em algumas
situações, mesmo os adultos se enganam na suposição da motivação subjetiva do outro, atribuindo ao
outro uma motivação semelhante à sua.
O processo de construção da alteridade é, para nós, central principalmente por dois motivos.
Primeiro, por ser o correlato da construção ou da unificação do eu (self). Segundo, por tratarmos aqui da
patologia autística, onde se sabe que há, para retomar os termos da psicologia cognitiva, um deficit na
1 Doutorado em Psicologia defendido em cotutela pelas Universidades Paris 13 e USP em 2012. Mestre em Psicologia
no Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da USP (2007). Fundadora do Centro da Infância e
Adolescência Maud Manonni, (São Luís). Trabalhou como estagiária e/ou colaboradora no CPPL, na APAE-MA, na Escola
Terapêutica Lugar de Vida e na École Expérimentale Bonneuil-sur-Marne. Tem experiência em Psicanálise com crianças,
na clínica e na pesquisa de TID. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
teoria da mente. Em outras palavras, o sujeito autista teria dificuldade em atribuir estados mentais ao outro
diferentes dos seus, ponto central da sua dificuldade nas relações intersubjetivas. Isso levaria crianças com
autismo a interpretar motivações e ações dos outros como semelhantes às suas, sendo que diante das
evidências de diferenças, a criança autista desistiria do contato (Aitken e Trevarthen, 2003).
Gostaríamos de trazer parar discussão uma intervenção lúdica realizada junto a uma criança autista
de 6 anos em uma sala preparada dentro da sua escola, separada de sua turma. Chamaremos a criança em
questão de Christian.
A intervenção foi realizada por uma equipe de 8 pessoas, composta em sua maioria por não
especialistas (outras especialidades que a área da psicologia). A equipe foi agrupada em 4 duplas que
intervinham na frequência de 90 minutos por semana. Havia assim intervenção junto à criança em duas
manhãs por semana. O resto dos horários, Christian acompanhava a sua turma de pré-escola.
A equipe de interventores participava de uma supervisão psicanalítica semanal com o psicanalista
Laurent Danon-Boileau. Em paralelo, Christian fazia sessões de psicoterapia psicanalítica uma vez por
semana, em uma instituição de saúde mental – o Centre Alfred Binet.
A intervenção de Christian na escola durou, nesta primeira fase, 5 meses e meio. A orientação
do trabalho, inspirado no método francês 3i, era a de seguir na brincadeira os movimentos e desejos de
Christian (estar atento a seus interesses). A frase que melhor resumia a intervenção proposta era “fazer
com que o momento passado junto fosse o mais agradável possível para todos”. Vê-se aí a dimensão de
prazer na proposta terapêutica, mas que não será discutida no presente trabalho. Cabe dizer que ainda que
embora a intervenção junto a Christian se passasse na escola, ela não tinha caráter educativo.
Christian acolheu bem toda a equipe e parecia contente da interação que tinha conosco. Nos
primeiros contatos, ele brincava sozinho ou entrava timidamente em uma brincadeira que lhe fosse direta
ou indiretamente proposta.
Ao longo de cinco meses e meio de intervenção, Christian fez alguns progressos, em particular no
que concerne a linguagem e a capacidade de lidar com os afetos e excitações (ele se encontra visivelmente
menos tomado pela excitação no final das intervenções). No que tange sua capacidade de brincar, no início
Christian deslizava de uma brincadeira a outra, passava rapidamente de uma atividade a outra: as brincadeiras
eram curtas e desorganizadas. Não havia uma narratividade que costurasse uma história. No decorrer das
sessões lúdicas, Christian conseguia encenar brincadeiras cada vez mais simbólicas, extensas, organizadas e
ricas. Além disso, ele se torna pouco a pouco mais ativo na troca com a equipe: constatamos que, no final do
período das intervenções, ele propunha muito mais brincadeiras e nos procurava ativamente para a troca e o
contato. Este último ponto é de grande importância se considerarmos o que Tustin indicava como tratamento
do autismo: fazer com que a criança sinta que o outro existe e que ele não é tão perigoso assim. E ainda,
podemos acrescentar, que é possível mesmo ter momentos de prazer no encontro com esse outro.
A intervenção realizada com Christian é uma experiência singular que apresenta várias diferenças,
se comparada com um tratamento psicoterapêutico comumente dispensado a crianças autistas. Não iremos
desenvolver aqui todos os pontos, pois queremos nos centrar em um deles: a pluralidade da equipe de
interventores junto a uma só criança, dentro de um quadro específico e estável.
Pensamos que, se por um lado, o brincar pode ser terapêutico, por outro defendemos que a
pluralidade da equipe que realizou a intervenção desempenhou um papel fundamental, principalmente no
que tange o processo de construção da alteridade. Em outras palavras, o fato de brincar mais ou menos
das mesmas brincadeiras, utilizando os mesmos brinquedos, dentro de um mesmo dispositivo estável, com
interventores diferentes, que se apresentam como outros-sujeitos à criança, isso também desempenha um
efeito terapêutico no tratamento do autismo. De que forma?
Tomemos a brincadeira do “Cadê? Achou!”. Esta brincadeira é emblemática por apresentar um
formato simples, estável, dentro do qual haverá pequenas variações. Assim, a criança sabe que seu parceiro
de brincadeira está escondido e que ele vai reaparecer no seu campo visual a qualquer momento. No
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
entanto, o tempo em que o outro permanece escondido, o tom do “achou!” do retorno, tudo isso varia.
O lado por onde o outro vai reaparecer também pode variar. Mas essas variações não comprometem a
estrutura da brincadeira, que é mais ou menos estável e previsível, no interior da qual pequenas variações
podem ocorrer. Para a criança pequena, a brincadeira do “Cadê? Achou!” oferece uma experiência de ciclos
de prazer e de suspense na antecipação da sua resolução. Em experiências desta natureza, o adulto brinca
atuando na regulação do afeto vivenciado pela criança.
Através da repetição, o formato de interação se desenha (Bruner, 1983), permitindo à criança
antecipar as ações, os movimentos do seu parceiro, o que facilita a interação em si. Ora, sabe-se a dificuldade
de uma criança isolada em seu transtorno autístico de entrar em relação com o outro, com a dimensão de
imprevisibilidade que a encontro com o outro comporta. De fato, situações onde há uma certa ritmicidade,
onde se guarda um padrão ou modelo, um formato, são situações onde a criança autista pode ficar mais à
vontade para entrar em uma interação.
Consideramos que o dispositivo proposto para Christian oferece uma situação similar ao formato
de interação, como na brincadeira do “cadê? Achou!” : um dispositivo estável, com horários regulares, com
os mesmos brinquedos, onde as duplas se revezam de maneira previsível para a criança, seguindo um
calendário estabelecido. Dessa forma, pode-se formular que apesar da multiplicidade dos interventores,
a estabilidade do dispositivo permitiu que Christian entrasse mais facilmente em interações com pessoas
diferentes que reagem de modos diversos mesmo face a situações semelhantes.
Mais do que facilitar a interação, essa diferença, essa variedade de ações e reações no contato
intersubjetivo que a criança vai experienciar terá um efeito terapêutico importante para um sujeito autista:
ela pode contribuir para a estabilização da percepção do sentimento de alteridade pela criança. Em outras
palavras, a criança poderá perceber, através de dispositivos como este, que o outro é diferente de si, que ele
tem motivações e expectativas diferentes das suas e que as ações não podem ser completamente previstas.
Brincar e trabalhar essa diferença pode ser de grande importância no caso de terapias com crianças com
transtornos autísticos, para quem atribuir no outro um estado mental diferente do seu próprio dificultaria
toda tentativa de encontro intersubjetivo (Aitken e Trevarthen, 2003).
Exporemos aqui algumas passagens que podem melhor ilustrar o que acabamos de formular.
Trata-se de duas brincadeiras que se repetem e evoluem ao longo do tempo, brincadeiras que Christian
introduz com vários interventores: o balão-salsicha e o peão. Os trechos aqui transcritos são registros de
sessões redigidas pelos diferentes interventores.
Balão-salsicha
26 de março, dupla EC:
Christian pega os balões em forma de salsicha para fazer um combate de espadas conosco,
mas é novamente tomado pela excitação. Sua excitação o desorganiza, e desencadeia estereotipias […]
é preciso falar e lhe propor algo para que ele saia da excitação: C. lhe diz que na verdade esses balões
parecem salsichas, então ele começa a “comer” as salsichas acrescentando alguns detalhes: a vermelha
era apimentada e uma outra tinha pele e o incomodava, daí C. faz de conta que tira a pele e a devolve
para Christian.
30 de março, dupla CL :
Christian se levanta e pede a caixa de comidinhas que está no armário. Nesta brincadeira, Christian
retoma o tema habitual dizendo “está muito quente, está queimando!” ao pegar um alimento. Fico surpresa
de notar que é ele quem me guia na brincadeira e quem introduz o puré (que está muito quente) e uma
salsicha (ele me entrega um balão comprido).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Peão
6 de abril, dupla JF:
F. faz uma torre com os tubos das bolas de sabão e gira o peão sobre a torre. Christian tenta fazer
o mesmo com o peão, mas renuncia após uma tentativa frustrada. No final da sessão, C. chega, mostramos
para ela o calendário e durante esse tempo, Christian consegue empilhar os tubos das bolhas de sabão e
girar o peão em cima. Nós o parabenizamos.
4 de maio, dupla JF:
Eu proponho fazer a brincadeira do peão sobre uma placa pequena, que se pode levantar
enquanto o peão gira. Ele gostou muito dessa brincadeira, mas também ficou muito excitado com ela (ele
agitava suas mãos e braços).
7 de maio, dupla CLE:
Depois que começamos a brincar com o peão e as placas, tentamos cercar o peão com blocos de
plástico e a fazer passar de uma placa a outra. Ele nos guiava para que fizéssemos o que ele queria.
7 de maio, dupla CE:
Christian pede o peão e pega no caminho pequenas placas geométricas de plástico, de cores e
formas diversas. Ele gira o peão sobre uma placa que ele segura com uma das mãos e orienta de forma
que o peão não caia, trocando de placa.
Observa-se que Christian propõe a outros adultos repetir uma brincadeira que ele havia começado
com a dupla JF. Ele pôde repeti-la provavelmente graças à dimensão estável do dispositivo (mesmos objetos,
mesma direção da equipe em seguir seus movimentos e suas brincadeiras).
Mas gostaríamos sobretudo de ressaltar desses trechos dois pontos: a repetição em função da
elaboração de uma experiência e das emoções, e a percepção do sentimento de alteridade.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
É preciso dizer, em primeiro lugar, que para que a repetição de uma brincadeira leve a uma
elaboração, isto é, à integração de uma experiência, essa repetição deve guardar um espaço para a diferença.
Assim, a repetição que permite uma elaboração não é uma repetição do mesmo, idêntica à anterior – é isso
aliás que se constata normalmente no brincar das crianças banais (repete-se a mesma brincadeira de forma
um pouco diferente da vez anterior).
Neste tipo de dispositivo, é possível introduzir variações na repetição pela simples troca de
parceiros da interação. É preciso dizer que muitas vezes, como no caso da brincadeira do peão, estávamos
igualmente disponíveis para a interação, mas não sabíamos onde Christian queria chegar nem o que queria
fazer exatamente. Acolhíamos igualmente a brincadeira que ele nos propunha, mas cada dupla de uma
forma diferente.
Entramos assim no segundo ponto da discussão – a percepção da alteridade: quando a criança
tenta fazer uma mesma atividade com duas pessoas diferentes, ela se depara inevitavelmente com a
alteridade, pois a atividade não será nunca repetida da mesma forma: cada pessoa é diferente e reage de
forma diferente, mesmo a brincadeira (o formato de interação) sendo a mesma. Esta diferença na maneira
de apreender a brincadeira é a marca da alteridade. Christian constata que o outro não (re)age exatamente
como ele supusera ou previra, ainda que dentro de uma brincadeira que seja, digamos, previsível para ele.
Portanto, ele constata que o outro é diferente dele (e de todos os outros interventores). O fato de experienciar
essa diferença sem que a interação seja rompida representa uma das riquezas desse dispositivo.
Para nós, essa alteridade só pode ser construída na interação, a partir da apresentação de pequenas
diferenças (“petit pas-pareil”, Haag, 2007) e pequenos descompassos, suficientemente apresentados de
forma a não interromper a interação.
Referências Bibliográficas
Aitken, K. ; Trevarthen, C. (2003). L’organisation soi/autrui dans le développement psychologique humain. La
psychiatrie de l’enfant, 46(2), pp. 471-520.
Bruner, J. (1983). Le développement de l’enfant : savoir faire, savoir dire. Paris : PUF.
Freud, S. (1920). Au-delà du principe de plaisir. In : Œuvres Complètes, XV. Paris: PUF, 1996.
Haag, G. (2007) Les enveloppes corporo-psychiques. In: Delion, P. (dir.). La pratique du packing. Paris : Erès.
Piaget, J. (1945). La formation du symbole chez l’enfant: imitation, jeu et rêve, image et représentation. Paris:
Delachaux & Niestlé, 1994.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Palavras-chave: Psicanálise, Autismo, Transferência, Clínica Psicanalítica
“Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se
trata de um jogo solitário – todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda
peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação,
toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”2.
O texto que aqui se inicia tem por objetivo transmitir aquilo que foi adquirido na experiência
do Projeto TECER, projeto de pesquisa em equipe que coordenei nos anos de 2002/2007 no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
A boa palavra de Georges Perec permite-me situar bem a forma como aconteceu esta experiência.
Eu estava, como não poderia deixar de estar, imersa em um jogo de quebra-cabeça, quebrando a minha
cabeça em busca de um desenho institucional que possibilitasse o atendimento psicanalítico, a inclusão
na clínica psicanalítica de crianças que haviam recebido um diagnóstico psiquiátrico de autismo. Tentando
encaixar as peças em um quebra-cabeças bem mais amplo, fazer um acréscimo em um tecido que se
estende para além do atendimento que eu pretendia estabelecer.
A palavra de Perec permite também reafirmar, por outro lado, uma posição que não é minha, nem
mesmo dele exclusivamente, mas que fala de um período na história do pensamento, e que se encontra
também no texto de Lacan, ao definir seu ponto de vista como psicanalista:
“Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da
linguagem.
Essa definição simples supõe que a linguagem não se confunda com as diversas funções somáticas
e psíquicas que a desservem no sujeito falante.
Pela razão primeira de que a linguagem, com sua estrutura, preexiste à entrada de cada sujeito
num momento de seu desenvolvimento mental.”3
1 Professora Livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Psicanalista membro da École
Lacaniènne de Psychanalyse Autora de : O TPC, uma re-leitura; A criança no discurso do Outro; Ensaios sobre a clínica dos
distúrbios graves na infância; Demanda e transferência na clínica com certas crianças (no prelo), e artigos publicados em
revistas especializadas. [email protected] Perec, G. (2009) A vida modo de usar Companhia de Bolso, São Paulo, pg. 14.
2 Perec, G. (2009) A vida modo de usar Companhia de Bolso, São Paulo, pg. 14.
3 Lacan, J. (1998) Escritos Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, pg. 498.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
E com isso afirmo meu ponto de vista, já demonstrado clinicamente em minha tese de livre-
docência4, de que também no autismo estamos diante de um problema que se equaciona em termos de
significante. Ideia que não é de minha autoria, que é defendida por Lacan e que sustenta a primazia do
significante, também no caso de autismo5.
Enuncio assim, com essas duas citações, o contexto teórico de onde parti neste projeto de pesquisa.
Importante é também reafirmar o entendimento que tenho de que o psicanalista não se ocupa do
autismo. O autismo, já pela história deste termo, é em minha opinião uma opção feita pela psiquiatria. Uma
opção por tomar como objeto o corpo biológico6.
O psicanalista trabalha em outro registro. Ele posiciona-se na estrutura do sujeito, em a, e ocupa-
se de dar a ver esse objeto que o causa: sua falta, seu desejo. Trabalha, portanto no registro de um erotismo
que se encontra por definição banido do campo da medicina e da ciência.
Assim, trabalhamos com outra coisa muito diferente. Trabalhamos com outra teoria. Uma teoria
que supõe, outro ponto de vista que adoto em minha investigação clínica, que a loucura é uma passagem
humana, parafraseando Roland Léthier. Humana por ser atravessada pela palavra. Uma passagem que pode
ser, em determinados casos, necessária. Não deve ser evitada. Uma passagem que produz uma pegada, um
traço, que ao ser lido se completa, “resolve” a questão. No campo em que trabalha o psicanalista não há
o menor sentido em evitar a loucura, em curá-la, uma vez que ela já traz no seu bojo a sua solução, uma
solução que consiste na leitura do traço que essa passagem escreve. Trata-se então de criar condições para
que essa solução seja alcançada. Uma ideia, uma posição que concerne a psicanálise, desde Freud.
Fácil de dizer, difícil de concretizar isso que digo.
O projeto TECER nasce desta forma de ver a coisa. Ele vai trabalhar naquele espaço que foi deixado
vazio pela intervenção do médico psiquiatra, pela escola que segue uma visão medicalizada da criança, e
pela sociedade sanitarista em que vivemos.
Neste projeto nos ocupamos do jogo erótico estabelecido entre mãe e criança, tentando cultivar uma
transferência, desviar a transferência selvagem das mães que era a princípio dirigida para a criança. Desviá-la na
direção do analista que se ocupa do caso, clinicamente. E ainda, criar com a criança uma transferência.
De nossa pesquisa anterior, concluída no ano de 2000 sabemos que quando esse trabalho consegue
se realizar costuma ocorrer um efeito sobre a criança. Ela na maior parte das vezes passa espontaneamente
para outra coisa, engaja-se no mundo, apresentando aquilo que o meio vai acolher como uma “melhora”
de seu estado.
No entanto há casos que, em função do caminho feito anteriormente por aqueles que delas se
ocuparam, encontram-se em um “impedimento”. São crianças que não frequentam escola, e que ficam
assim “confinadas” no relacionamento familiar. Parti da hipótese de que era necessário tocar essa situação,
intervindo no sentido de produzir as condições que eu considerava necessárias para a inclusão desses
pacientes na escola, pois eu considerava que esta inclusão escolar poderia trabalhar a favor da superação dos
problemas apresentados pela criança – foi esta a hipótese que originou este projeto TECER que coordenei.
Criei então, no interior do IPUSP um espaço, um laboratório, onde os trabalhos deveriam se
4 Brauer, J. F. (2000) A criança no discurso do Outro – Ensaios sobre a clínica dos distúrbios graves na Infância, tese de
Livre-docência, IPUSP.
5 Conforme se pode ler em - Lacan, J. Le symptôme; conferência feita no Centre F. de Saussure em Genebra no dia quatro
de outubro de 1975 em uma jornada organizada pela Societé suisse de psychanalyse e publicada no Bloc-notes de la
psychanalyse, 1985, nº 5, pg 5 a 23.
6 Termo criado por Freud para denominar o ponto que o intrigava na esquizofrenia, o autoerotismo fará seu caminho
na psicanálise, mas também originará uma debate do autor com Jung e com Bleuler, com quem Freud investigava esse
assunto. É desse debate que nascerá um segundo neologismo, este de Bleuler, nos anos 1907. É deste autor a criação do
termo autismo , que irá repousar em uma enciclopédia de psiquiatria até 1940, quando será retomado por Kanner para
designar algo que observava em certas crianças.
7 Brauer, J. F. (1988 )O teste das pirâmides coloridas de Max Pfister – uma re-leitura; tese de doutorado, IPUSP.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
desenvolver. Neste laboratório eu propunha que haveria uma estrutura de relacionamento não hierarquizado,
que possibilitasse a participação de pessoas que tivessem níveis diferentes de formação: as crianças, alunos
de graduação, alunos de pós-graduação, profissionais da psicologia, da educação, pós-graduandos em artes
(música, cinema), todos reunidos em função de um interesse comum, e que coincidiria com o objetivo que
tínhamos no trabalho que desenvolveríamos ali: promover um espaço intermediário entre o trabalho clínico
e a escolarização das crianças.
Alguns seriam então beneficiários do trabalho, outros seriam pesquisadores do processo, ou de
algum ponto nele envolvido, outros estariam apenas interessados em realizar o trabalho. E haveria um
tempo de duração para o trabalho, de seis anos, ditado pelo financiamento que eu havia obtido junto à
FAPESP para realizar esse projeto. Iniciamos os trabalhos em 2002, e o financiamento foi aprovado e iniciou-
se em 2004, encerrando-se em 2007.
Pretendíamos trabalhar como um grupo, e o desafio foi propiciar condições para que esse grupo
pudesse advir, um grupo no qual TODOS deveriam se incluir, portanto, e não apenas as crianças. Pois eu
entendia que, tratando-se de crianças com um histórico de isolamento social, esse grupo só se formaria se
nós todos fizéssemos um esforço nesta direção, seduzindo a criança de todas as formas, convidando-a enfim.
Este trabalho ocorreria paralelamente ao atendimento clínico destas crianças, que eram ouvidas
por um profissional que ouviria também a mãe da criança, em uma estratégia clínica pesquisada e relatada
por mim anteriormente, e que foi objeto de minha livre-docência.
Finalizamos o projeto em um impasse importante ocasionado pela transferência que se
desenvolveu na clínica e no espaço de convivência, e que se converteu em um fenômeno de grupo que não
me foi possível manejar. É sobre esse mesmo ponto que retorno aqui, em busca de respostas para as muitas
perguntas que o Projeto TECER deixou em aberto.
Diferentemente daquilo que me pareceu no término do projeto, em agosto de 2007, entendo hoje
que o projeto foi bem sucedido.
Todos os envolvidos no projeto realizaram o trabalho de formação que os levou a trabalhar nele.
Conseguimos inserir 6 (de um total de 12) crianças em classes normais, ou em classes especiais
e deixar a meio caminho a inserção das demais. Em dois casos isso não foi possível, pois restava ainda um
longo trabalho clínico a fazer.
Não pudemos atender 34 casos que se inscreveram em nosso projeto a partir do ano de 2005 por
falta total de infraestrutura. Situação lamentável, mas que diz do fato de que o projeto “pegou”, foi tomado
como referência para a indicação de pacientes.
Foram defendidas na época 6 dissertações de mestrado e duas teses de doutorado, fruto do
trabalho desenvolvido em nosso laboratório. Ainda hoje há teses nascidas ou desenvolvidas no laboratório
que estão sendo concluídas.
Desenvolveram-se estágios de alunos de graduação e também de profissionais já experientes.
Esse trabalho desenvolveu-se em um clima de grupo no qual as crianças participaram em uma
posição diversa, nova para elas, pois no projeto TECER elas não eram pacientes. Nós conseguimos realizar
o grupo que pretendíamos.
E houve sim muitos mal-entendidos, o preço a pagar pelo caminho que escolhemos, que toma
partido do equívoco e do mal entendido propiciado pela visada do significante. Não poderia ter sido diferente.
Pode-se notar muito nitidamente, creio eu, que o trabalho que foi desenvolvido neste projeto não
prescinde e nem colide com o trabalho feito pela escola ou pelo médico que se ocupam da criança.
Penso que a proposta desta forma de trabalho deve ser suportada, feita em colaboração com a
escola e com os diversos profissionais que se ocupam de crianças e de suas necessidades. Creio também
que este tipo de trabalho possibilita um suporte para esses profissionais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Quero dizer que uma tal forma de trabalho deve se instituir no interior da rede social que se
dedica ao cuidado da criança e de sua mãe, pois não se trata de um trabalho que vai atender a todas as
necessidades apresentadas neste campo.
Penso ainda que a duração limitada do trabalho está implícita no fato de que ele tem um objetivo
claro: mediar o trabalho desenvolvido na clínica e a inserção da criança na escola e oferecer um espaço para
o desenvolvimento de estágios, de pesquisas de mestrado e de doutorado. Tudo isso tem uma duração
limitada, diferentemente do trabalho clínico cuja duração é indeterminada.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Jovem professora eu não concordava com essa prática, e considerava que não se devia fazer essa
triagem, e como supervisora de estágio eu não a fazia.
Com o tempo fui recebendo mais e mais crianças que apresentavam graves distúrbios, ao mesmo
tempo em que ia iniciando esse percurso interminável de formação como analista, e desenvolvendo uma
grande simpatia com a obra de Lacan. E foi neste percurso que cheguei a desenvolver uma clínica voltada a
essas crianças que apresentam distúrbios graves, dar aí os primeiros passos, encontrar grandes dificuldades e
buscar na teoria lacaniana uma forma de dizer dessas dificuldades. Naquele tempo inicial de meu trabalho6 (vide
minha tese de doutorado defendida em 1988) eu me atinha ao fundamento de que o sintoma apresentado
pela criança teria que ser entendido como sintoma no sentido analítico do termo, deveria poder ser lida nele
uma estrutura significante de metáfora. Eu fechava os olhos naquele momento para as ditas ‘condições de
uma análise’ que precisei retomar mais tarde, por ocasião do Projeto TECER, pois foi somente aí que essa
transferência que de fato existe, como pude constatar, começou a apresentar sua face turbulenta.
Foi na leitura da obra de Lacan guiada pela leitura dos comentadores da École Lacaniènne de
Psychanalyse que pude encontrar subsídios teóricos para me orientar na difícil tarefa que esta clínica representa.
Em nosso meio é hegemônica a teorização que afirma, a partir da leitura do texto lacaniano, a
inexistência de transferência na psicose. A ferida produzida pela forclusão do nome do pai deixaria sem
entrada o caminho de acesso pela via da psicanálise. Não haveria a suposição de saber feita sobre a figura
do analista, e assim, as portas estariam fechadas. Esta teoria acrescenta à concepção de transferência
feita por Freud a questão do saber, acréscimo lacaniano sem dúvida, mas segue a teoria de Freud no que
tange à concepção do processo de subjetivação, que em Freud passa pelo Édipo, e que é dito por Lacan no
seminário ‘As psicoses’, ao analisar o caso Schreber, como forclusão do nome do pai.
Supor a existência de uma transferência na psicose requer uma leitura outra desta mesma teoria,
e um certo quê de ousadia, ao propor que esta via de subjetivação proposta por Freud, e adotada na leitura
mais corrente sobre o assunto, que vai do autoerotismo à relação de objeto, que esta via não é a única
possibilidade de subjetivação humana. O que significaria propor, por exemplo, que a loucura é uma forma
de subjetivação humana, da mesma forma, aliás, que o próprio Lacan sugere no caso da neurose, para o
sintoma, no texto Instância da letra no inconsciente:
“E também para levar a compreender que na coextensividade do desenvolvimento do sintoma e
de sua resolução curativa revela-se a natureza da neurose: fóbica, histérica ou obsessiva, a neurose é uma
questão que o ser coloca para o sujeito “lá onde ele estava antes que o sujeito viesse ao mundo” (essa
subordinada é a própria frase de que se serve Freud ao explicar o complexo de Édipo ao Pequeno Hans).
Trata-se aqui daquele ser que só aparece no lampejo de um instante no vazio do verbo ser, e eu
disse que ele formula sua questão ao sujeito. Que significa isso? Ele não a coloca diante do sujeito, pois o
sujeito não pode vir para o lugar onde ele a coloca, mas coloca-a no lugar do sujeito, ou seja, nesse lugar,
ele coloca a questão com o sujeito, tal como se enuncia um problema com uma caneta e como o homem
de Aristóteles pensava com sua alma.”7
O sintoma neurótico é concebido aí, portanto, como uma via de subjetivação pelo que se lê acima.
É importante fazer aqui o desdobramento. O que falha na psicose é a constituição de um eu, e
isto é sem dúvida um problema, mas em Lacan fala-se em sujeito, e este conceito não coincide com o eu.
O sujeito não é o eu. O sujeito está ligado ao desejo de a ($ ^ a).
E o que Allouch afirma, lendo Lacan, é que a loucura, e suas manifestações, podem ser concebidas
elas também como forma de subjetivação. Que a loucura é humana, assim como a neurose o é. Que a
loucura é literante.
7 Lacan, J. (1998) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud in Escritos; Jorge Zahar Editor; Rio de Janei-
ro; pg. 524.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Nesta mesma perspectiva afirma-se, Allouch o afirma, a loucura efetua o significante em ato, a
loucura é ela também um caminho possível para que o sujeito escreva sua questão.
Foi justamente esse ponto de ato que constituiu para mim a porta de entrada que me deu acesso
ao complexo desenvolvimento teórico realizado pelo mesmo autor, e antes disto, ao complexo emaranhado
que era apresentado no atendimento aos pacientes aos quais eu me dedicava. Essa dimensão de ato
marcava sua presença nos atendimentos que eu supervisionava no IPUSP, em todos eles.
A cena clínica, se não obedecia nem de longe ao formato tradicional em que o paciente está
deitado no divã, e o analista instalado em sua poltrona, parecia-se mais a uma dança ritual, na qual mãe e
criança faziam seus movimentos obedecendo a alguma coreografia, sempre enigmática para nós. Tratava-se
naquele então de encontrar um espaço possível para nos inserirmos nesta dança carregada de erotismo, um
erotismo não genital evidentemente, um erotismo no sentido que Freud deu a este termo um dia. O que
procurávamos? Um lugar na transferência?
Aquilo que pesquisei na teoria e na clínica foi uma forma de tratar o ato. Eu a encontrei. Tratava-se,
clinicamente falando, de ler, ou dar a ler aquilo que acontecia em ato. Ler a partir da história dessas pessoas
aquela lacuna que o ato realizava, para poder dizer mais tarde, guiada pelos textos escritos pelos colegas da
École Lacaniènne, nessa forma precisa de dizer, de efetuação do significante.
Respeitar a criança em seu agir, e mais, buscar a leitura deste mesmo agir no relato que a mãe fazia
da história familiar e da história da criança, isto mudava toda a cena. Aquela criança que nos havia chegado
muito mal, agora já passava a falar, a brincar, e rapidamente encontrava uma forma de sair do tratamento e
de se engajar na vida corrente de uma criança, à qual ela não tinha acesso até então, ou onde encontrava
entraves e dificuldades, antes do tratamento. Algumas crianças deitavam-se no divã e faziam análise.
As mães entravam em análise e diziam então que finalmente eram ouvidas.
Era no real que se efetuava, portanto o significante, construindo cenas, criando cenas.
No conto A terceira margem do Rio o narrador fala de seu pai, que em um dado momento decidiu
“um adeus para a gente...Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção
de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar,
nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia,
acontecia... todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira”8.
E aí está Guimarães Rosa a nomear tão bem aquilo de que se trata no acontecimento da loucura:
“Aquilo que não havia, acontecia”.
Minha proposta, no trabalho analítico junto à psicose, foi, posso dizê-lo agora que estou amparada
pela palavra de Guimarães Rosa, acompanhar esse “acontecer”, deixar que ele se efetuasse, propiciando que
se escrevesse o significante que havia ficado a meio caminho. Permitir com isso sua leitura.
Voltando ao belo conto de Rosa apreciemos o modo como o autor faz essa passagem que permite
ao sujeito se inscrever entre dois significantes9. Guimarães Rosa efetua o sujeito, através desta construção
de frase em que ele acrescenta à regência do verbo permanecer um se. Ilustra desta forma o proposto
por Guy le Gauffay no seu C’est à quel sujet?, publicado em 2009. Fazendo recurso a uma análise que lhe
permite falar do sujeito lacaniano Gauffay diz:
“Freqüentemente, esse acréscimo de um agente10 apenas desdobra o sujeito de uma forma que
poderíamos crer, em uma primeira abordagem, reflexiva. Assim, na forma de falar do sul da França, podem-
se ouvir todos os dias frases como: “Je me la mangerais bien cette petite côte de porc.” Dir-se-á tratar-se de
um hispanismo, já que em espanhol essas formas são regulares. Verdade, mas essa explicação geográfica
8 João Guimarães Rosa, (2008) A terceira margem do rio in Primeiras histórias; Folha de São Paulo, Rio de Janeiro: Media
fashion, pg. 37.
9 Segundo a formulação lacaniana: ‘O significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante’.
10 Actant: ser ou objeto que completa a ação expressa pelo verbo. Syn: agente, sujeito.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
falha, entretanto ao não considerar o problema enunciativo que faz com que je me la mangerais bien não seja
apenas um regionalismo, mas um enunciado muito diferente de je la mangerais bien.
Comer alguma coisa e se comer alguma coisa são semanticamente dessemelhantes, e se ocorre ao
lingüista articular sua diferença, ocorre ao analista perceber aí um posicionamento subjetivo diferente, que
não se reduz em nada à forma reflexiva. Pois o sujeito não se come, ele mesmo: ele se come alguma coisa.
Ele acrescentou um agente, sem para tanto se tomar como o objeto do verbo, como quereria a voz reflexiva.
Por essa repetição pronominal, esse sujeito se constitui ao menos como o endereço do ato que
ele engaja. Se nossa língua declinasse – quero dizer: desenvolvesse declinações - seria um dativo que seria
chamado ao seu lugar. Suplementando o verbo com um agente que não é outra coisa que ele sob um outro
modo gramatical, o sujeito torna complexa sua posição fazendo-se de alguma forma de paciente do seu ato”11.
Dizendo se permanecer Guimarães Rosa faz então, como cogita le Gauffay, com seu “Je me la
mangerais bien” o acréscimo de um agente, faz de si mesmo o paciente do ato que engajou. Assim o diz o
filho que narra o ato do pai no conto de Guimarães Rosa, que escreve o conto.
11 Le Gauffay, G. C’est à quel sujet (2009) EPEL, Paris, pg.39. (tradução livre).
12 Le Gauffay, G. Lacan per via de levare, (2010) Buenos Aires, seminário de agosto.
13 Cunha, A. G. (1986) Dicionário etimológico da língua portuguesa; Lexikon Editora Digital; Rio de Janeiro, 2ª edição.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
As duas coisas são verdadeiras, ainda que elas não estejam juntas.
É justamente por isso que nós as confundimos, e, que ao confundi-
las nada de claro é dito sobre isso que concerne ao manejo da
relação transferencial, aquela que gira em torno do (a). Mas é isso
que explica suficientemente a observação que eu fiz para vocês,
de que isso que distingue a posição do sujeito em relação à (A)
e a constituição mesma de seu desejo é que, para dizer as coisas
resumidamente, que se trate do perverso ou do psicótico, a relação
do fantasma $^a se institui assim [fig.] e que é aí que , para manejar
a relação transferencial, nós temos, com efeito, que tomar em nós,
na forma de um corpo estranho, uma incorporação da qual nós
somos o paciente, o (a) de que se trata, a saber o objeto, para o
sujeito que nos fala, absolutamente estranho enquanto ele é a causa
de sua falta.
No caso da neurose, a posição é diferente enquanto que, eu disse a
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
vocês, alguma coisa aqui aparece que distingue a função do fantasma no neurótico. Aqui aparece alguma
coisa de seu fantasma que é um (a) e que somente aparece para ele. E que somente aparece para ele
porque esse (a) não é passível de imagem especular, e não poderia aparecer aqui, se eu posso dizer, em
pessoa, mas somente um substituto. E aí somente se aplica aquilo que há de colocação em causa profunda
de toda autenticidade na análise clássica da transferência14.
Cito aqui uma passagem em que o próprio Lacan afirma a existência de uma transferência na
psicose. Ele diz: é aí que, para manejar a relação transferencial, nós temos, com efeito, que tomar em nós,
na forma de um corpo estranho, uma incorporação da qual nós somos o paciente, o (a) de que se trata.
Nós somos o paciente, ele diz, aquilo mesmo que em Allouch será dito como: na psicose a
transferência é do analista.
É fato.
Um fato que faz desta clínica um exercício profissional muito angustiante, pesado. Um exercício
em que, tomados nesta transferência, já não somos mais nós mesmos, mas, como o diz Lacan, nós somos
o paciente, o a de que se trata. Fazemos um com o paciente.
E foi desta forma que os efeitos dessa transferência se fizeram notar no último projeto que
coordenei, em busca de um desenho possível para a construção de uma instituição voltada ao atendimento
psicanalítico de crianças que apresentam distúrbios graves.
Esse projeto TECER encerrou-se de forma angustiada. Os efeitos desta angústia se fizeram
amplificar em um fenômeno de grupo que nos impediu de trabalhar.
Mas, seguindo o fio de minha própria argumentação, serei forçada a dizer que esta pesquisa
acadêmica que busca o desenho da instituição, que esta pesquisa não faz de fato sentido se considerada
do ponto de vista da investigação científica. Não existe o desenho ideal desta instituição porque cada
caso é diferente do outro, e deve encontrar seu caminho para que ele possa se dizer. E também porque cada
analista é diferente do outro e oferece diferentes espaços de acolhimento em sua clínica.
Fica por refletir a pergunta que se segue a tudo isso: como estruturar o trabalho de forma a permitir
ao profissional ocupar seu lugar na transferência? Esse lugar heróico como diz Lacan no mesmo seminário.
Um dos raros consensos na psicanálise é que a transferência é a bússola que orienta o trabalho
analítico. Ela é o motor da cura. É através do seu manejo cuidadoso que a história de um sujeito pode ser
reconstruída em análise e ressignificada. Tais colocações dão a dimensão da relevância do artigo Dinâmica
da transferência (1912) cujo centenário celebramos neste congresso.
Há três aspectos da transferência dispersos através da obra de Freud: ela é identificada à repetição,
à resistência e à sugestão. Em Dinâmica da transferência estão presentes esses três aspectos. O segundo
parágrafo deste texto já evoca a repetição com a expressão: “clichê estereotípico (ou diversos deles),
constantemente repetido, constantemente reimpresso, no decorrer da vida da pessoa”. A tese desenvolvida
por Freud é que a transferência é o momento no qual a carga libidinal do paciente – que se acha pronta
por antecipação – dirige-se também ao analista, que será captado num dos clichês estereotípicos que
o paciente constitui ao longo de sua vida. O inconsciente aparece aí como uma série de personagens
muito tipificados que são reproduzidos nas mais diversas situações da existência. Em Observações sobre
o amor transferencial (1915) esta identificação da transferência à repetição também está indicada, pois
Freud afirma que o amor de transferência é uma repetição estereotipada das condutas inscritas no sujeito,
dispostas a surgir quando lhes dá a ocasião, o que ocorre em todo amor. Não existe, diz Freud, o amor que
não tenha o seu protótipo.
Em Dinâmica da transferência aparece uma profunda ambiguidade da transferência, pois Freud
afirma por um lado que a emergência da transferência na cura é testemunho do inconsciente, da sua
atualização; por outro lado, ele entende que a transferência é um obstáculo para a cura, pois interrompe as
associações inconscientes. Neste texto que faz parte dos Artigos sobre a técnica, escritos entre 1911 e 1915
1 Psicóloga formada pela USP, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sa-
pientiae, membro do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
2 Psicóloga formada pela PUC/SP, mestranda do Instituto de Psicologia da USP, psicanalista, membro do Departamento
de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto
Sedes Sapientiae. [email protected]
3 Psicanalista, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, psicóloga. Membro do Departamento Formação em Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae (I.S.S.) e do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do I.S.S. [email protected]
4 Psicóloga formada pela PUC/SP, psicanalista pelo Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do De-
partamento de Psicanálise de Crianças do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do Grupo Acesso da Clínica Psicológica
do Instituto sedes Sapientiae. [email protected]
5 Mestre em psicologia social pela USP, psicóloga formada pela PUC/SP, psicanalista, membro do Departamento de
Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae e membro do Grupo Acesso da Clínica Psicológica do Instituto Sedes
Sapientiae. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
num momento onde a psicanálise deixava de se caracterizar como uma arte da interpretação e passava a
se configurar como uma análise das resistências, Freud dá certa ênfase à compreensão da transferência
enquanto resistência, já que estava buscando desenvolver a técnica psicanalítica de modo a responder às
dificuldades que se apresentavam na cura frente à emergência da chamada transferência negativa. A técnica
aqui desenvolvida implica em liquidar a transferência negativa e a transferência positiva ardente demais e
conservar a transferência amável, que permite operar por sugestão.
Nesta apresentação buscaremos pensar algumas especificidades do manejo da transferência na
clínica psicanalítica com crianças onde a perda traumática do objeto primordial ameaça o estabelecimento
e a continuidade de novos laços, inclusive com um analista. Tal discussão será feita a partir do caso de
uma menina que tinha 11 anos quando sua mãe adotiva buscou o Grupo Acesso da Clínica Psicológica do
Instituto Sedes Sapientiae, pois o processo de adoção estava em andamento há seis meses e os impasses
no laço entre mãe e filha já começavam a aparecer. Todos os nomes utilizados neste relato são fictícios.
Nice, esta paciente, diz claramente para a analista que não quer conversar sobre sua história. A
analista entende esta fala como um movimento transferencial, que implica num pedido que a paciente lhe
dirige de ser respeitada naquele espaço. A analista nada interpreta até que a história da paciente começasse
a se repetir na transferência. Pouco tempo depois, Nice passa a criar histórias através das quais se dá a
conhecer por meio de suas fantasias. Nas fantasias trazidas, ora uma empregada é a principal protagonista,
ora aparece uma nova personagem – uma boneca – que está doente, de quem Nice cuida muito bem.
Numa ocasião, Lourdes – a mãe adotiva - relata para analista um atrito ocorrido entre ela e a filha em que
esta lhe disse: “Pode me devolver para o abrigo, quando eu crescer você me pega como sua empregada”.
Em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen Freud (1907) diz que as fantasias que emergem frente
ao contato com as relíquias de um passado aparentemente esquecido não são um produto arbitrário da
imaginação, constituem-se num eco de lembranças infantis esquecidas. Tais lembranças são tecidas sobre
traços de memória.
Além disto, Nice traz recorrentemente o medo de ser esquecida pela mãe adotiva. Trata-se aí da
irrupção no real de um acontecimento traumático que só poderá se inscrever no inconsciente se algumas
palavras forem encontradas para reconstruir uma história apagada e reduzida a nada, mas que insiste com
a força de atos que se repetem. À analista a mãe adotiva transmite a seguinte história que Nice teria lhe
contado: aos cinco anos de idade Nice foi deixada em frente ao Foro, por sua mãe biológica que, nesta
ocasião, disse-lhe que voltaria mais tarde, mas isto não aconteceu. Pouco depois Nice foi levada para um
lugar que chama de orfanato, no qual morou por três anos até ser transferida para uma instituição de
acolhimento, onde morou até os onze anos.
Numa sessão a analista pergunta a Nice o motivo de seu atraso. Ela conta que, antes de ir para o
Sedes, esteve num shopping e lá se perdeu da mãe. Nice diz para a analista: “Pensei que eu não fosse mais
encontrá-la”. A quem Nice refere aqui o seu medo de não encontrar? Trata-se do medo de não encontrar
sua mãe adotiva, sua mãe biológica, ou a analista? Ou ela está se referindo ao medo de não ser encontrada?
Em O Seminário livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964) fala
sobre o movimento de vaivém da pulsão: olhar e se fazer ver, ouvir e se fazer ouvir, atormentar e se
fazer atormentar, etc. Isto nos mostra o quanto a pulsão implica sempre num apelo ao Outro, Outro aqui
entendido não como um pequeno outro, ou semelhante, mas aquele através do qual o sujeito pode se dizer
e se escutar. Podemos pensar, portanto, que neste ponto do tratamento a paciente já endereça um apelo,
ou uma demanda para a analista que se constitui por um lado, como vimos anteriormente, como um “Me
respeita!” e, por outro, como um “Me encontra!”.
Apesar de fazer uma conexão entre o medo trazido por Nice – de não ser encontrada, ou de não
encontrar - e a história que lhe foi narrada fora da análise, a analista não fez nenhuma interpretação nesta
direção, pois naquele momento existia uma abertura à transferência, já que a paciente se entregava à livre
associação através de suas narrativas e, portanto, colocava-se na posição de buscar a verdade sobre si.
Entendemos que o essencial aqui foi que a analista, através do seu silêncio, sustentou a atualização na
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
transferência de acontecimentos vividos - o abandono, a traição e a crueldade – para que uma história cheia
de lacunas pudesse ser escutada, reconstruída e ressignificada.
Miller (1987) em Percurso de Lacan - uma introdução pontua que Lacan sempre promoveu
a importância do silêncio do analista que não deve atuar de modo que sua interpretação duplique
constantemente o discurso do paciente. Para Lacan, não se trata de que o analista interprete tudo, ou
de que ele justaponha um segundo texto ao primeiro, precisamente porque o poder da interpretação é
enorme. Trata-se, pois, para o analista, de medir exatamente o poder de cada uma de suas palavras.
Dois meses após o início de sua terapia, Nice fez as primeiras referências diretas sobre sua vida.
Das lembranças relatadas, ressaltam-se alguns traços: mãe negra, pai branco, irmão cabeludo. É importante
mencionar que Nice é negra. Através dos traços recordados Nice estaria trazendo para sua análise um
primeiro traço de identificação com sua mãe biológica? Lourdes – a mãe adotiva, que também é negra – diz
nas entrevistas iniciais: “Assim que vi Nice pensei em adotá-la porque era tristinha e tinha o cabelo black”.
Nossa hipótese é que vai sendo contada em análise uma história que contém, como um de seus elementos
fundamentais, o estereótipo da mulher negra e sofrida, que ocupa no social um lugar desvalorizado, muitas
vezes associado à figura da empregada doméstica explorada por uma patroa. Nessa relação, oscilam as
ações de cuidar e dominar em seus polos ativo e passivo, amoroso e cruel.
Numa das sessões Nice também conta histórias sobre a primeira instituição de acolhimento onde
viveu – que ela chama de orfanato - dizendo que era um lugar assombrado. Nesse relato emprega um tom
fantasmagórico, de tal forma que a história criada mantém certa ambiguidade entre o vivido e o fantasiado.
Além disto, Nice utiliza recorrentemente a expressão “credo!”, como se quisesse afugentar certas lembranças.
Há situações em que as palavras não dão conta de expressar a densidade do vivido. Em Histórias
que não se contam. O não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes, Miriam Debieux (2000) coloca
que quando “parece não haver palavras, explicações que exprimam certas impressões e intensidades,
vivências que não podem ser relatadas, [estas] precisam ser construídas com imagens, metáforas, para serem
expressas. Tem-se um não-dito que para fazer presença, joga com o dito e traz a marca da ambivalência do
desejo e da negação”.
Na sessão seguinte, a analista levou um grande tecido branco que possibilitou que a dupla
paciente-analista dramatizasse uma história onde Nice assume o papel de uma menina que, após ter sido
enfeitiçada por uma bruxa, passa a encarnar um fantasma que assusta outra menina vivida pela analista.
Nossa hipótese é que aí Nice revive ativamente algo que experimentou passivamente, fazendo com que a
analista seja assombrada pelos fantasmas que a perturbam. Esta cena reaparecerá inúmeras vezes ao longo
da análise, através das atuações de Nice, vividas com a analista - que é atacada, rejeitada, desqualificada,
ou abandonada - ou trazidas pela mãe adotiva que fica tão perturbada frente a essas atuações que chega
ao ponto de cogitar a ideia de “devolver” a filha para a instituição de acolhimento, pois não suporta mais se
confrontar com o ódio que vê no olhar que a filha lhe dirige.
No nosso entender, a dificuldade que Lourdes apresenta para acolher e dar sentido para as questões
trazidas por sua filha liga-se também a sua própria ambivalência em relação à adoção, algo que Nice, que é
bastante sensível e perspicaz, capta facilmente. Lourdes conta que sua família não aprovou a adoção, tanto
é que sua mãe e seu irmão, que moravam com ela, deixaram sua residência, o que fez com que Lourdes se
desorganizasse financeiramente e tivesse dificuldade para assumir os cuidados de Nice, embora zelasse por
sua aparência, por sua escolarização, por sua saúde e por sua frequência à análise. Escutando os conflitos
de Lourdes a respeito da adoção, a analista a encaminhou para um atendimento psicoterapêutico no Sedes,
ao qual Lourdes aderiu muito bem.
Nice, por sua vez, parece fixada a esse momento traumático onde ela foi abandonada por sua
mãe biológica. Como nos ensina Macedo (2011) em Cartas a um jovem psicanalista, na clínica do trauma
desenvolvemos uma espécie de caça ao tempo imóvel em que se aloja o horror das palavras congeladas,
ligadas a vivências catastróficas. Em toda catástrofe há a traição daqueles a quem se amava e em quem
se confiava.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Numa sessão, em função de uma reorganização da clínica do Sedes, Nice e a analista foram
surpreendidas pela impossibilidade de usar a sala onde vinha acontecendo a análise. Foi marcante a reação
de Nice: por dois anos lamentou este acontecimento, recusando-se a aceitar a nova sala. Nessas ocasiões
a analista e Nice conversaram sobre as arbitrariedades, a violência, a saudade, a decepção e, por fim, como
tudo isso a impedia de aproveitar o que se apresentava. A analista procurou associar este movimento à
história de Nice, mas, naquela ocasião, tal interpretação não fez sentido para ela. Manejar a transferência
implica em sustentar a passagem do tempo. Assim, algumas vezes trata-se de esperar até que as coisas
sigam seu curso, o que não pode ser evitado nem apressado.
Na nova sala havia uma caixa com miniaturas de plástico. Nice pegou uma delas - um pássaro
– e conta que ele era um gavião que havia pegado uma criança. A analista perguntou: - “Uma criança? O
que o gavião vai fazer?” Nice respondeu: - “Vai comer, uai”. Nice diz mais tarde que assistiu um filme sobre
a África na instituição de acolhimento e que ele servia para aprenderem a não desperdiçar comida, pois,
são essas as suas palavras: “tem muita criança que passa fome e que come comida azeda do lixo”. Nice
explica que estas crianças que comem comida azeda do lixo ficam tão fracas que acabam sendo comidas
pelos gaviões. Nossa hipótese é que na transferência Nice se sente ameaçada por rejeitar aquilo que lhe
é oferecido, temendo, através disto, destruir e ser destruída pelo objeto, o que parece apontar para certa
especularização na relação entre sujeito e objeto.
Para pensar as especificidades da dinâmica aí estabelecida, que guarda uma semelhança com
muitas outras com as quais nos defrontamos nos atendimentos realizados pelo Grupo Acesso, decidimos
nos reportar a Luto e melancolia (1917). É importante assinalar que não compreendemos que este caso
configura-se como um quadro de melancolia, pois se trata de uma paciente com uma estrutura neurótica.
Contudo, dada a gravidade do acontecimento vivido por Nice, ligado à perda do objeto primordial – sua
mãe – que a abandonou e nunca voltou para dizer se estava viva e porque fez o que fez, Nice jamais
esquecerá esse acontecimento que terá que ser assimilado ao longo de toda sua análise até que possa
ser re significado. Assim, nos reportamos a Luto e melancolia porque neste caso, como na melancolia, nos
deparamos com uma espécie de luto patológico, ou com um luto que não consegue ser elaborado.
Neste artigo de 1917, Freud diz que tanto a melancolia quanto o afeto normal do luto apresentam uma
perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e um afastamento de
toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre o objeto amado e perdido. Entretanto,
a diferença que Freud constata entre estes dois quadros é que no luto essa impossibilidade de substituir o
objeto perdido é paulatinamente superada e apenas a melancolia implica numa perda do amor-próprio que
pode encontrar expressão em auto recriminações e numa expectativa delirante de punição.
Entendemos que no caso de Nice aparecem auto recriminações e uma expectativa de punição
através das figuras da bruxa e do gavião e também de uma professora exigente e cruel que Nice dramatiza
numa sessão, a qual ameaça sua aluna, encenada pela analista, dizendo-lhe que escreveria bilhetes dirigidos
à sua mãe, para criticá-la, a fim de que a menina recebesse algum tipo de punição. Além disto, numa sessão
Nice vence a analista em diversos jogos que fizeram, mas decide diminuir seus próprios pontos porque
acha que a analista está facilitando as coisas para ela. Em outras sessões, foi possível perceber, ainda, a
dificuldade de Nice em manter seu investimento em uma atividade prazerosa. Por exemplo, numa sessão
ela colou um pedaço grande de papel no chão, fez um mistura de tintas num copo, cortou pedaços de
retalhos, passava-os na mistura de tintas e colocava-os sobre o papel. Ela se mostrava muito feliz com
o que fazia, parecia estar entregue àquela atividade que lhe proporcionava muito prazer. Estava também
produzindo algo muito bonito. De um momento para outro, a expressão de seu rosto mudou. Ficou agitada,
querendo terminar logo o trabalho. Visivelmente, o que num segundo antes parecia lhe dar prazer, passava
a ser um incômodo, uma tarefa a qual deveria executar o quanto antes. Ela jogou a mistura de tintas que
havia feito no copo sobre os retalhos. As nuances de cores que até então conferiram beleza à sua produção
desapareceram e o trabalho adquiriu um colorido homogêneo e monótono. Além disto, todos os retalhos
foram arrancados e o papel ficou de uma só cor.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Freud (1917) nos diz que enquanto no luto é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia é
o próprio eu que é apresentado a nós como sendo desprovido de valor, incapaz de realização e moralmente
desprezível. Assim, um paciente melancólico pode até saber quem perdeu – como Nice, que perdeu sua mãe
e seus irmãos – mas o importante é nos perguntarmos: o que perdeu nesse alguém que partiu e lhe partiu?
Freud enfatiza aí o aspecto inconsciente desta perda que consiste numa perda do amor-próprio, uma perda
relativa ao eu. Segundo Freud, na melancolia uma parte do eu se coloca contra a outra, julga-a criticamente,
e, assim, toma-a como seu objeto. Contudo, essas acusações dificilmente se aplicam ao próprio paciente e,
muitas vezes, se ajustam a alguém a quem o paciente ama, amou, ou deveria amar.
Poderíamos dizer que o caso de Nice traz esse tipo de identificação especular com o objeto perdido
e destruído. Isto aparece muito bem na história da criança que se alimenta de lixo e que pode ser devorada
pelo gavião. Após dois anos e meio de tratamento, esse movimento ficou muito claro e dramático, pois Nice
entrou num processo de desinvestimento geral: não frequentava mais a escola, a análise, não cuidava do
próprio corpo, nem de seus laços, quando saía de casa, não dizia para onde ia. Numa sessão a analista lhe
disse: “Você sumiu, tive que insistir com sua mãe para trazê-la, liguei para você, me senti completamente
esquecida, acho que foi exatamente assim que você se sentiu quando sua mãe lhe deixou no foro e não
mais voltou para buscá-la como havia prometido”. Ela chorou muito e disse que ainda sonhava em achar sua
mãe e seu irmão. Fala do irmão de 3 anos como se o tempo não tivesse passado, como se ainda estivesse
congelada naquela cena traumática.
Deixar de encarnar a mãe implica em permitir que ela se vá. Como tolerar este desligamento?
Como se desapegar dessa relíquia que ela coletou do lixo e que lhe dá certa unidade e um sentido para sua
existência? Como romper com essa história/destino para permitir que novas histórias sejam vividas?
Muitos pacientes do grupo Acesso, que viveram rupturas dolorosas nos seus laços primordiais, trazem
alguns aspectos da dinâmica transferencial acima relatada. Nesses casos é absolutamente imprescindível
algo que ocorreu no caso de Nice: a analista sustentou na transferência a escuta do sofrimento, do vazio
existencial e do ódio em que a paciente se encontrava enredada. Além disto, foi fundamental que a analista
suportasse desde o seu lugar uma identificação com um objeto destruído e abandonado para que nesse
processo a paciente conseguisse entrar em contato com esta identificação.
Referências Bibliográficas:
FREUD, S.(1907). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IX).
_________ (1912). Dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standart Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII).
_________ (1915). Observações sobre o amor transferencial. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standart
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII).
_________ (1917). Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Edição Standart Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV).
LACAN, Jacques. (1964). Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
MACEDO, Heitor O’Dwyer. Cartas a um jovem psicanalista. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan – uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
ROSA, Miriam Debieux. Histórias que não se contam. O não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes.
Taubaté: Editora Cabral, 2000.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Freud em 1920 fascina-se ao observar o jogo de seu neto com o carretel. A psicanalista Françoise Dolto,
em seu texto de 1940, ‘Cura analítica com a ajuda da boneca-flor’ descreve o efeito clínico que a introdução
de uma boneca em formato de flor teve em alguns de seus atendimentos. Carretel e boneca ganham, assim,
destaque. Pretendemos refletir sobre o papel que os brinquedos têm na cena transferencial analítica.
A clínica psicanalítica com crianças acontece a partir da introdução de brinquedos na cena analítica.
Melanie Klein, Sophie Morgenstern, Françoise Dolto, Donald Winnicott, cada um destes psicanalistas
(e muitos outros) criaram um setting para trabalhar psicanaliticamente com as crianças e encontramos
inevitavelmente, em todos estes diferentes enquadres, a oferta de materiais para brincar, seja caixa lúdica
ou massinha ou papéis e material gráfico.
Migramos então de um enquadre que implica a oferta de falar o que se passa pela cabeça, em
posição horizontal, sem o confronto visual com o analista, para uma situação em que materiais brincantes
são ofertados e convida-se a criança a contar-se a partir de suas brincadeiras. O que é que formulamos a
partir deste enquadre com crianças? E que efeitos isto tem na cena clínica, tal qual vivida pelo analista e
pelo paciente?
1 Luciana Pires, psicanalista, especialista em psicanálise com crianças e adolescentes pela Tavistock Clinic, mestre e dou-
toranda do IPUSP, autora do livro “Do silêncio ao eco: autismo e clínica psicanalítica”, Edusp. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Psicólogo Clínico formado pela USP-SP; Mestrando em Desenvolvimento Humano e Saúde pelo Programa de Pós Gradu-
ação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da USP; Membro do CETEC (Centro
de Estudos da Teoria dos Campos); Membro Fundador da Gesto - Rede Psicanalítica. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
As crianças que transbordam com suas fezes e urina são grandes freqüentadoras dos consultórios
psicanalíticos. No entanto, a teoria psicanalítica tem nos fornecido poucos subsídios que melhor norteiem
essa clínica. Pode-se concluir, com isso, que os psicanalistas estão incluídos na assertiva freudiana de
que: “Todos os neuróticos, e várias outras pessoas, repudiam o fato de que inter urinas et faeces nascimur
(nascemos entre urinas e fezes).” (FREUD, 1929)
Há tempos vejo-me especialmente convocada a afinar minha escuta sobre a clínica com crianças
encopréticas, ou seja, crianças acima de quatro anos que deixam escapar suas fezes nas roupas, buscando
formular as necessárias articulações metapsicológicas.
Nos raros estudos psicanalíticos encontrados, há uma tendência do entendimento de que a
encoprese aponta para um grave e preocupante distúrbio, indicador de correntes psicóticas do funcionamento
psíquico.
Não descartando que essa seja uma plausível compreensão para alguns casos, inclusive dentre
alguns que atendi, na clínica psicanalítica com crianças tenho encontrado, com alguma frequência,
quadros clínicos onde tão pouco parecem sinalizar uma estruturação psíquica que caminhe na direção
da obsessividade3 ou da neurose obsessiva. Esses últimos, apresentam mais comumente não encoprese,
mas constipação, ou seja, retenção de fezes, que por vezes evolui para quadros severos de megacolo, que
exigem abordagens médicas muito dramáticas para extrair as fezes endurecidas.
A ilustração de um fragmento de caso clínico, poderá melhor esclarecer aquilo que, por vezes,
tenho observado, assim como algumas contribuições de autores dedicados ao tema.
1 Trabalho apresentado na disciplina coordenada pelo Prof. Manoel Tosta Berlink, do programa pós-graduação de Psicologia
Clínica da Pontifícia Universidade Católica, em 2005.
2 Psicanalista, mestre no Programa de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica, Professora e supervisora do
Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. [email protected]
3 “Enquanto aquela [obsessividade], voltada para o entendimento e controle do mundo hostil por meio do pensamento,
da pesquisa, da linguagem e da criatividade técnica, é manifestação civilizadora, a neurose obsessiva, na repetição
empobrecida desses traços é uma tragédia.” (Manoel BERLINK [2005], p. 9)
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Um pré-adolescente/bebê
Maria, traz para consulta, seu filho Paulo de onze anos de idade, porque ele andava muito agressivo,
rebelde com ela e suas duas tias maternas que moram com eles desde o nascimento de Paulo. Conta
também que Paulo frequentemente deixa escapar fezes nas calças porque diz não gostar de se limpar,
delegando essa tarefa para sua mãe e suas tias. Por vezes, é motivo de chacota dos colegas na escola, pelo
cheiro que exala.
Paulo nunca conheceu seu pai, aliás, diz não saber seu nome e sua estória. Dos homens essas
mulheres nada querem falar e saber. Maria entrega esse filho a suas irmãs, que cuidam desse homenzinho
erotizando o que nele fica evidenciado como buraco. E esse buraco, além de muito manipulado, é
excessivamente lembrado, olhado e falado.
Nas sessões, Paulo se apresenta como um menino muito forte, alto e inteligente, com um discurso
muito bem articulado, consistente. Conta de suas paqueras e namoradas. O que vai chamando muito minha
atenção é o fato de que Paulo repetidamente relata, às vezes numa mesma sessão, tanto suas proezas
futebolísticas quanto sua paixão por um ursinho de pelúcia que ganhou quando tinha dois anos de idade.
A esse ursinho chama de um nome que não consigo repetir, uma vez que reproduz a linguagem de um
bebê que mal consegue pronunciar as palavras. Considerando sua idade, o fascínio e a falta de pudor com
que fala desse ursinho, suponho que esse brinquedo que se mantém hiperinvestido não se configura como
um objeto transicional, como diria Winnicott, mas como objeto-fetiche. Conta-me, também, que tem uma
perna mais curta que a outra e que, por causa disso, precisa usar palmilha.
Para me ajudar a pensar sobre esse caso, busquei o que Freud e demais autores realçam sobre o
erotismo anal e a encoprese, em especial.
Outro da pulsão anal demanda algo, portanto, algo lhe falta. A criança reconhece-se pela primeira vez em
algo, em um objeto causa de desejo da mãe. Esse objeto é ao mesmo tempo ela, a criança, e não-ela e nem-
dela, que deriva na ambivalência obsessiva, no dar ou reter o que o Outro demanda, obturando assim seu
desejo. Esse objeto valioso, as fezes, é ao mesmo tempo um tesouro e um dejeto, um objeto a ser expulso.
Decorrente disso é que se apresenta a dúvida obsessiva, a compulsão, a anulação e a ambivalência.
Sobre a encoprese
Para Maria Teresa Ferrari, a encoprese, como as demais manifestações clínicas da criança, é
entendida como um ato de escrita que cifra a leitura de sua relação com a alteridade. se trata de um
transtorno mais severo do que a enurese porque denuncia a ausência da metáfora paterna, ou seja, o Nome
do Pai não opera no discurso da mãe. Como vimos, a mãe e as tias de Paulo, não demandam a renuncia ao
erotismo anal de Pedro, nem renunciam elas próprias de gozar com as fezes e anus dele. O silêncio sobre
o pai evidencia a recusa imperante e operante.
Silvia Bleichmar diria que no caso de Paulo encontramos uma excessiva complacência materna
diante dos transbordamentos pulsionais de seu filho. Movidas por seus próprios fantasmas, algo do recalque
da sexualidade infantil dessa mãe e dessas tias opera muito deficitariamente. A mãe que erotiza a criança
com seus cuidados, deverá recalcar a perpetuação dessa mesma erotização do corpo da criança e do gozo
dela resultante. Aos poucos, essa mãe deverá desenvolver o asco e a repugnância pelas fezes do filho que
tanto já a encantou e tanto a fez gozar. O adulto desempenha uma dupla função diante do corpo infantil:
produzir tanto inscrições sexualizantes quanto inibições repressivas, uma vez que se encontra atravessado
pelo recalcamento de sua própria sexualidade infantil. A mãe que implanta a pulsão com seus cuidados
erotizando o ânus, assim que a criança cresce deverá exercer um movimento de contra-investimento,
promovendo a instalação do recalque no filho através da demanda do controle dos esfíncteres.
Do lado da criança, as fezes, primitivamente investidas de modo auto-erótico, são presenteadas
por amor ao outro demandante. A criança renuncia ao prazer auto-erótico uretral e anal por amor ao
outro, ou melhor, por uma ascensão narcisista. As crianças que acedem ao controle de seus esfíncteres
disponibilizam seu aparelho psíquico para a sublimação, para novos modos de identificação, circulação e
intercâmbio com o objeto.4
Enfim...
Paulo é uma criança, evidentemente abusada sexualmente pelas mãos e pelos fantasmas dessas
mulheres. Claramente se configura uma utilização perversa, por parte desses adultos, do corpo dessa
criança, quase um adolescente. Se há demanda formulada pelos adultos, é a de que Paulo continue se
oferecendo como objeto de gozo para elas.
Pergunto-me se o que o deixava manco, com uma perna comprida de um adulto e uma pequena
(de bebê?), não seria apenas pelo fato de que ele se utilizasse de um ursinho-fetiche, mas que ele ainda
se oferecesse como um ursinho-de-brinquedo para sua mãe e suas tias. Parece-me que Pedro deseja, com
a mesma intensidade, ser grande, forte, ser um grande futebolista e, ao mesmo tempo, continuar sendo
tocado pela mãe da mesma forma como era tocado quando ele era um bebê. Era preocupante que a mãe
e as tias assim o tratassem. Isso deveria ser cuidadosamente com ela tratado.
Para evitar parecer gozar como as mulheres de seu entorno, busco cautelosamente por uma forma
de lhe falar sobre esse seu modo de exercício da sexualidade. Entendo que a operância de intermediários
simbólicos, mediadores para as diretas descargas pulsionais rebeldes às legalidades civilizatórias, são
urgentemente necessários para a constituição psíquica desse menino.
Como vimos, os adultos do entorno de Paulo, atuam sem renúncias, ao tocar o corpo dessa
criança de forma tão direta e intrusiva, sem culpa, repugnância, vergonha ou pudor. Se no erotismo anal do
neurótico obsessivo o tocar é absolutamente censurado, a manipulação do anus desse menino mostra-se
elevada ao estatuto da profanação do sagrado.
Se não me decido por concluir que Paulo caminha para a constituição de uma organização psíquica
predominantemente perversa, reconheço que muitos ingredientes dessa perspectiva compõem o cenário.
No mínimo esse caso convida-nos a pesquisar sobre o que continuamos a pensar sobre a sexualidade
polimorfa perversa da criança e a estruturação de uma perversão para nos ajudar na direção da cura.
Se as neo-sexualidades tem imposto uma revisão dos nossos conceitos, estaríamos melhor
afinando que perverso é sinônimo de perversidade? Suponho que tenhamos um certo consenso de que a
mãe e as tias estejam lidando de forma escandalosamente perversa, mas isso faz delas perversas? E Paulo?
estaria caminhando para construir um sintoma ali onde ele manca? Vamos ao colóquio, então.
Referências Bibliográficas
BERLINK, M. T. (org.) (2005) Obsessiva neurose. São Paulo. Escuta.
BLEICHMAR, Silvia (1999) Clinica psicoanalítica y neogénesis, Buenos Aires. Amorrortu editores.
FERRARI, M.T. Derivas de La pulsion anal: vicissitudes de La transferência em el análisis de um niño com
encopresis. www.edupsi.com/dirninos, organizado por Psicomundo e Fort-Da, 2000.
FERREIRA, M.P. Transtornos da excreção – enurese e encoprese. São Paulo: Casa do Psicólogo. 2004.
FREUD, S. (1905) Tres ensayos sobre uma teoria de La sexualidad. Obras completas. Amorrortu Edit. Tomo VII.
__________ (1930) Mal estar en la cultura. Obras completas: Buenos Aires. Amorrortu Edit.Tomo XXI.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
O que impede que um bebê relaxe e descanse entre as mamadas ou durante a noite? Por que
não se consola com as cantigas ou mesmo a presença dos pais? Seria reflexo da combinação de aspectos
emocionais presentes na relação pais-bebê? Seria fruto da projeção de aspectos inconscientes dos pais (não
contidos) ou das características do bebê?
A dificuldade de dormir é a queixa mais comum na Clínica 0 a 3. Procuro responder a essas questões
a partir de três situações clínicas em que destaco a função de continência do analista como uma forma
atual de lidar com todas as transferências projetadas na sala de análise. Mostro a importância da função
de reverie do analista, função esta que engloba a elaboração dos sentimentos contratratransferencias e os
processos intersubjetivos despertados no aqui e agora da sessão juntamente com os conteúdos projetados
sem significado.
Enfatizo como a função de continência e a função de reverie (Bion, 1962) do analista possibilitam
novas redes de sentidos para as dificuldades presentes na relação pais-bebê, ali, no momento da intervenção,
favorecendo o desenvolvimento dos vínculos iniciais e o exercício da parentalidade.
Os pais de Maria Clara2 chegaram encaminhados pela pediatra quando tinha um ano de idade e
foi vista por quatro sessões com seus pais e sua irmã de 11 anos. Maria Clara vinha apresentando um sono
agitado acordava várias vezes durante a noite e só se acalmava quando mamava ao seio. Durante o primeiro
ano de Maria Clara sua mãe dormia com ela em seu quarto, enquanto o pai dormia com a filha mais velha
no quarto do casal, mas quando chegaram ao consultório estavam todos dormindo no quarto do casal, o pai
com a filha mais velha e a mãe com Maria Clara, numa espécie de loft familiar. As mesmas dificuldades em
dormir foram relatadas como tendo acontecido com a filha mais velha até os 3 anos de idade, o que tornara
os pais muito ambivalentes em ter um novo bebê.
No segundo caso, os pais de Carmen nos procuraram3 porque ela era muito diferente de sua irmã
Serena. Queixavam-se que ela, nos seus cinco meses e meio, não dormia, era mais ligada, acordava chorando
e demorava muito para se acalmar. Sua natureza era mais intolerante, chorava o dia inteiro. “A gente brinca
que ela é nossa filha Almodovar, é muito carinhosa e muito brava, exagerada, chora e esperneia.”
No terceiro caso, os pais de Theo também não agüentavam mais. Disseram-me que no início era
refluxo, depois intolerância a lactose e até hoje, aos 6 meses, ele não dorme, acorda a noite inteira e quando
acorda urra desesperado.
O que impede um bebê tão pequeno de dormir? Por que não se consola e não se acalma apesar
de contar com pais dedicados e disponíveis? Que fantasmas (Fraiberg, 1975) assombram o quarto do bebê?
1 Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise de Criança do Instituto Sedes Sapientiae e Professora do curso
de Introdução à Intervenção na Relação Inicial Pais-Bebê. Mestre em Psicologia da Educação e Doutora em Psicologia
Clínica pela PUCSP. Pós-doutora pela PUCSP. Membro Efetivo, analista de criança e adolescente da SBPSP. Coordenadora
da Clínica 0 a 3 da SBPSP. [email protected]
2 Esse atendimento foi realizado por Maria Cecília Pereira da Silva e Magaly Miranda Marconato e filmado por Mariângela
Mendes de Almeida.
3 Esse atendimento foi realizado por Maria Cecília Pereira da Silva e Mariângela Mendes de Almeida.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Há algum incômodo físico? Há algo que não esteja funcionando bem? O que reclamam (Alvarez, 1994)
esses bebês? E os pais chegam, como canta Dolores Duran, querendo a paz de criança dormindo.
Em geral no exame pediátrico nada se encontra. De fato, a dificuldade de se acalmar e dormir, o
choro intenso, é antes de tudo uma solicitação que mobiliza os pais e profissionais a se voltarem ao bebê,
imaginando quais possam ser suas possíveis necessidades. O bebê inconsolável angustia os pais e toda a
família. (Silva & Mendes de Almeida, 2009)
De outro lado, cada vez mais nos deparamos com dificuldades de comunicação entre pais e bebês.
Em tempos modernos os pais optam por terem filhos mais tarde e, muitas vezes, mais distantes de suas
vivências infantis. Ao lado disso as solicitações externas competem com a entrada no estado de preocupação
materna primária ou não favorecem o desenvolvimento das capacidades de rêverie e continência maternas.
Ao lado da criança fantasmática, imaginada e narcísica, cujas representações se constroem na mente dos
futuros pais, elas são muito distintas de uma infância autêntica, na medida em que as representações
coletivas atuais da infância fazem dela uma criança preciosa e relativamente tardia na vida dos casais, e se
demanda inconscientemente que seja perfeita e, rapidamente autônoma. (Golse, 2004)
Parece não fazer parte do repertório das expectativas parentais que filhos tão pequenos possam
ser capazes de reclamar ou mesmo de expressar alguma insatisfação de forma incisiva e veemente, o que
faz com que transformem rapidamente essa forma de comunicação em um sintoma. Por outro lado, na
luta para atender o desamparo do bebê, os pais experimentam emoções primitivas muito desconfortáveis
diante da efusiva reclamação de seus filhos, tendo que conter a própria agressividade ou projetando-a sobre
o bebê. Quando encontramos esse tipo de ruído na comunicação entre a criança e seus pais há fortes riscos
de que se desenvolva alguma patologia no bebê. (Silva, 2010)
De acordo com Serge Lebovici (1983), que desenvolveu as idéias de D. Winnicott (1971) em relação
às Consultas Terapêuticas, no trabalho conjunto com crianças e pais, um procedimento de intervenção
ocorre a partir de um sintoma específico manifesto pela criança ou pelo bebê, que de alguma forma está
interferindo em seu desenvolvimento ou demonstrando um transtorno em sua interação com seus pais.
Cada sessão consiste então, de uma observação multidimensional que permite acesso a: sintomas
da criança e suas formas de funcionamento, o fenômeno inter e transgeracional que caracteriza a relação
pais-criança-família, o ambiente e o cuidado parental, a personalidade da mãe e do pai, os aspectos
familiares e a dimensão sócio-cultural. Os pais podem falar sobre seu filho e expectativas em relação a
ele, sobre eles mesmos, sobre suas famílias, sobre seu passado, sobre comportamentos que se repetem e
noções e valores estabelecidos. (Silva, 2002)
Ao se identificar com os diferentes parceiros na interação, o terapeuta transforma sua experiência
em palavras de valor metafórico, que são então compartilhadas com a família. O que era até aquele momento
impensável, e somente expresso através de ações, descargas individuais ou sintomas, pode então encontrar
uma representação por meio de pensamentos e palavras compartilháveis. (Mendes de Almeida & outros, 2004)
Nesse contexto, as mudanças nem sempre são produzidas (pelo menos não diretamente) nos
pais ou na criança. É o relacionamento, a interação que muda. No enquadre de intervenção, conforme os
pais ampliam o contato com a criança observada, eles podem vir a modificar sua tendência a projetar suas
próprias fantasias, expectativas e confirmações narcísicas sobre a criança.
Retomando os casos
Caso Maria Clara
Ao longo das 4 sessões com a família de Maria Clara fomos descobrindo que o pai, filho mais
velho, teve que crescer precocemente para tomar conta de 7 irmãos, mas precisava estar sempre rodeado
de pessoas, barulhos e movimentos para se sentir seguro e acompanhado. Sentia medo de se ver sozinho
com seus “barulhos internos” e sua filha de 11 anos declarou: “Eu acho que ele está com medo de dormir
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
sozinho...” então assinalei: “Então é você que põe seu pai para dormir!” A mãe demonstrou entusiasmo e
ressonância com as conexões e completou: “É isso mesmo, ela põe o pai para dormir! E quando eu acordo
durante a noite e olho ela está agarradinha com ele e ele está agarradinho com ela!”
Investigamos um pouco mais sobre os medos do pai: “... é medo de assombração, medo de coisas
reais, da vida, como é?” Ele, então nos diz: “... eu sempre tentei proteger minha filha do que eu tinha medo,
... o medo era desse ritual, ritual de passagem. Falando da morte por exemplo, se eu fosse num velório eram
15 dias sem conseguir dormir... Até hoje você vê como é o trauma, como que é, ah, nós temos que ir num
velório, eu vou no velório mas eu não vou lá ver a pessoa, eu não vou não...” A partir desse momento a mãe
e a filha mais velha se discriminam dizendo que não têm medo de defunto.
E uma rede de sentidos se revelou quando apontei.: ”...E dormir... morto parece que está dormindo,
né?” Pôde-se, então, identificar que o medo do pai era o medo da morte e que ele acabava envolvendo a
família num medo que era só dele.
Em outra sessão, a mãe nos surpreendeu trazendo memórias de sua infância sofrida. Ela se
recordou de sua relação com os avós. Ela vivia num sítio no interior de São Paulo em que havia mais duas
casas: numa morava seu avô paterno, que havia tido um derrame; e na outra morava sua avó materna,
com duas tias que eram anãs, sendo uma delas deficiente mental. Emocionada, ela comentou sobre a
impossibilidade de consolar o choro desesperado de suas tias, quando a mãe delas morreu e elas foram
retiradas da família para serem institucionalizadas. Nós pudemos então compreender como as separações
e o choro encontravam uma reverberação intensa na mente da mãe, e ela procurava calar rapidamente
qualquer choro de suas filhas, evitando o reencontro com a situação traumática.
Maria Clara, por sua vez, nos apresentava desde o início um quadro diferente e uma qualidade
de demanda singular. Enquanto o discurso manifesto estava sendo sobre quão difícil era para ela dormir,
Maria Clara demonstrava seu desejo de ser confortada e de adormecer, bem como sua confiança em seus
recursos quando auxiliada por um setting continente no qual ela pudesse ser discriminada das demandas
inconscientes dos pais que não a deixavam dormir.
Ao fim de nosso segundo encontro, foi possível conversar com Maria Clara, integrando as diferentes
camadas emocionais: o nível observacional, o relacional e o transgeracional. “Ei, Maria Clara, você gostou
dessa conversa hein! Esse seu nome, Maria Clara, tem tudo a ver com essa conversa. Porque, Clara! Tudo
Claro! Você veio clarear as idéias, iluminar, trazer luz, veio para explicar as coisas, tem muito trabalho para
você, hein!”
Na última consulta terapêutica (a quarta), um mês e meio depois da primeira, os pais vieram com
Maria Clara e nos contaram que ela estava dormindo muito bem em seu próprio quarto, acordava uma
vez por noite quando toma uma mamadeira. Inaugurou-se o processo de separação com a instalação do
desmame.
O pai nos contou que tem se percebido com menos medo, tem ficado sozinho no trabalho e em
casa, o que indica que está desenvolvendo sua capacidade de ficar só. Observou que as filhas não têm medo
– os medos são dele. A mãe brincou com Maria Clara durante a consulta como se pudesse ter recuperado
algo que havia se perdido com a internação das tias anãs. Observaram que podem criar a própria história e
se livrar de mandatos transgeracionais, que não precisam se perpetuar. Nascia um casal criativo.
Maria Clara acordava à noite para lembrar à sua mãe que ela ainda não tinha ido embora,
acalmando-a diante de suas angústias de separação; e chorava para lembrar ao seu pai que ela não estava
morta, tranqüilizando-o diante de seus medos aterrorizadores. E também poderíamos dizer que Maria Clara
já estava identificada com as angústias e os medos aterrorizadores de seus pais e com tudo isso não
podia dormir. Esta intervenção possibilitou que os fenômenos transgeracionais fossem falados, conhecidos
e reconhecidos como tais, e parece que cada coisa foi para o seu devido lugar – criou-se um “berço” afetivo
para Maria Clara e cada membro da família pôde ocupar seu lugar psíquico, assumir suas funções materna,
paterna e fraterna. (Silva, 2002)
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Caso Carmem
Durante os 5 encontros que tivemos com a família de Carmem pudemos compreender um pouco
de sua história. Os pais casaram-se jovens e sentiam-se um pouco sobrecarregados com as demandas de
uma vida familiar. Enquanto narravam sua história observávamos como Carmem era uma bebê com uma
enorme competência motora, movimentando-se pelo tapetinho da sala e segurando os brinquedos. Ao
assinalarmos essas competências, permitiu-se que os pais falassem de segredos e reconstituíssem a história
das meninas, estabelecendo novas redes de sentido. Eles narraram a história das gestações das duas filhas
e de uma anterior que fora interrompida devido a um feto mal-formado. Assim, falaram sobre os medos
de possíveis patologias acometerem seus bebês. Com isso parece que Serena pôde aceitar a chegada da
irmãzinha e os pais aceitaram que Carmem era uma menininha saudável, desfazendo fantasmas parentais.
Ao longo das consultas, sua mãe relatava como sentia que não era capaz de dar conta das duas
meninas. Nós víamos que ela de certa forma se sentia sem recursos emocionais para regredir e se identificar
com as necessidades da bebê e exercer sua função materna. Ela estava transferindo essas funções para o
marido que embalava suas filhas e a ela própria, como se fosse mais um bebê. Nosso trabalho fora o de
restaurar essa função para que a mãe pudesse “maternar”. Filtrados os ruídos presentes na comunicação
entre pais e filhas, já na terceira consulta, a mãe nos contou que Carmem passou a dormir bem, acordando
somente duas vezes por noite para mamar e voltando logo a dormir. Serena correu feliz pela casa, alternando
entre ser uma mocinha que já vai à escola e a vontade de ser bebê, deitando por alguns minutos no berço
de Carmem. A mãe relatou que após as consultas surgira aquele “encantamento” entre mãe e bebê. Assim, a
reclamação de Carmem encontrou o olhar apaixonado da mãe e se acalmou, pois o que se refletia do olhar
materno não era mais uma mãe aflita tomada por angústias recheadas de fantasmas infantis e pelo medo de
que sua bebê não fosse saudável. Parece que as expectativas de uma função materna idealizada puderam
se abrandar e a mãe encontrou disponibilidade emocional para atender as duas filhas.
“Estou mais tranqüila, estou mais fortalecida para tomar iniciativas que acredito serem as melhores.”
Num primeiro momento não havia diferença entre gerações, as três mulheres pareciam filhas do papai.
Na última consulta observamos que se instaurou no pai a capacidade de embalar a mãe nos
momentos de estresse, permitindo que a função materna fosse resgatada e fortificada. Então pudemos
ver todos subjetivados, com papéis definidos: pai, mãe e filhas. E a mãe nos disse: “Uma das coisas que a
gente procurou aqui com vocês foi um espaço, era uma busca de parcerias... A gente tinha uma sensação
de solidão, assim de achar que sozinhos não vamos conseguir.”
Caso Theo
Quando Theo chegou ao meu consultório encaminhado também pelo pediatra, aos cinco meses
e meio, sua mãe não encontrava uma forma de fazê-lo dormir. Sentia-se desvitalizada e incapacitada de
exercer a função materna. Ela me contou que no início Theo apresentava refluxo, depois suspeitou-se
de intolerância ao leite materno e procurou mudar a própria alimentação para evitar qualquer desconforto
ao bebê. Mas Theo continuava acordando várias vezes a noite e dormindo 20 minutos durante o dia. A
mãe ainda relatou aflita que ele sempre acordava gritando muito forte, de modo assustador. Na primeira
consulta Theo chegou dormindo e quando acordou sorriu para mim e se entreteve com brinquedinhos até
o final da sessão. Na troca de olhares observo que ele faz movimentos circulares com a língua de forma
freqüente. Estaria Theo numa experiência sensorial preenchendo toda sua cavidade bucal como uma forma
de apagar sua percepção da falta (Fonseca, 2008, 2011) ou seria resultado de um desencontro com um
objeto que atenda suas necessidades? Na segunda consulta o bebê também chegou dormindo e acordou
tranqüilo sorrindo para mim como se reconhecesse meu tom de voz e minha sala. Ao longo da sessão com
os brinquedinhos ficou mais impaciente, a tonicidade de seu corpo era mais intensa e reclamava o olhar dos
pais... fez coco .... mas os movimentos de língua já não apareciam. Investigo com os pais se havia alguma
preocupação com relação ao filho. O pai disse que não, mas a mãe com a voz trêmula e angustiada me
contou que aos 20 anos foi operada do coração. Apresentava um defeito congênito, mas que não indicava
sopro... ela se sentia muito cansada para subir escada ou fazer educação física, mas não sabia que se
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
relacionava com algo do coração. Teme que Theo tenha algo parecido, mas só poderá se certificar quando
ele estiver com um ano. Quando perguntei sobre a cirurgia ela se recordou de sua infância e disse que com
onze anos sua mãe se separou de seu pai e foi morar com o namorado. Ela foi criada pelo pai, após uma
separação litigiosa em que ele até hoje alimenta ódio e não divide o mesmo espaço com a ex-esposa. Neste
momento ela se emociona e mostra seu ressentimento de ter sido deixada pela mãe: “uma mãe não deveria
ser assim com uma filha de apenas 11 anos.” Já adulta, quando o pai se casou novamente ela foi morar com
a mãe por rivalidade com a madrasta. Na época de sua cirurgia, seu pai que é médico, ficou transtornado
por não ter identificado o problema da filha e não conseguiu ficar ao seu lado durante e após a intervenção
cirúrgica... foi acompanhada pela mãe e irmã... “Meu pai é muito difícil”, ela confessa. Pude conversar sobre
a falta de um modelo de continência para as diferenças, desconfortos, desencontros e frustrações e como os
gritos do Theo reatualizam as vivencias maternas com as bravezas de seu pai que tanto a assusta. Ao mesmo
tempo, os desconfortos de Theo frustram o modelo de mãe idealizada que construiu para si. Além disso,
pude apontar como Theo a ressegura de que ele tem um coração bem forte e vigoroso todas as vezes em
que acorda e grita forte. Durante a consulta também pude assinalar as competências de Theo, desfazendo
os fantasmas de que houvesse alguma patologia presente. Ela então se queixa de se sentir desamparada
quando o marido viaja dizendo que Theo sente falta do pai... De fato a função paterna é a de embalar a
dupla mãe-bebê e na sua falta a dupla se desmantela...
O relato dessa mãe nos lembra como “o processo de ter um bebê requer um enorme ajustamento:
novas introjeções, novas identificações por parte da mãe, não somente pela perda de sua identidade anterior
e pela perda do bebê em seu interior, mas também pelo processo de digestão, de absorção do fato do
nascimento, que é, a seu modo, tão chocante quanto a morte..” (Alvarez, 1994, p.142)
Quando me contaram sobre a chegada de Theo, seu pai disse que quando sua esposa desistiu
da empresa em que trabalhava sugeriu-lhe se não seria o momento de engravidar. Ele sempre adorou
crianças e já não era tão moço para ter um bebê, estava com 40 anos. Intuí que havia alguma angústia de
morte presente nessa declaração e, na quarta consulta, quando relatou um pouco de sua história pude
compreender. Ele é o caçula de uma prole de 4 filhos. Sua mãe teve uma gravidez que não se completou,
pois o feto morreu. No nascimento de sua irmã, também houve complicações no parto e ela ficou com
seqüelas emocionais e cognitivas. Na sua adolescência se angustiou quando seus pais brigavam e pensava
que iriam se separar. Ao falar de seus pais ele se emocionou ao se recordar que recentemente seu pai teve
um derrame e suspeita-se de que ele esteja com Alzheimer. Pudemos pensar como a alegria de ser pai
convivia simultaneamente com o processo de elaborar a perda de seu próprio pai. Enquanto conversávamos
sobre os fantasmas de morte do avô, Theo chorou. Nesse momento vivo, no aqui e agora da sessão, pudemos
constatar como o bebê é capaz de perceber a aflição do papai4, e assinalar que o papai estava bem forte
para cuidar dele. Então Theo começou a balbuciar e contar suas histórias...
Após esta consulta os fantasmas parentais que assombravam o quarto do bebê puderam ser
nomeados. Theo passou a dormir mais durante o dia entre 2 a 3 horas, e à noite... seu pai pôde desfazer
seus fantasmas de morte e Theo pôde viver com sua mãe o campo de ilusão ao sentir que seu pai poderia
embalar esse momento fusional inicial da dupla mãe-bebê. Sua mãe, por sua vez, desfez seus fantasmas de
perder seu bebê, ampliou sua continência ficando mais em casa e oferecendo uma rotina mais constante...
o que permitiu ao bebê construir a confiança no objeto, pois a constância, como diz Winnicott (1990), é
fundamental...
Nosso papel no processo de parentalização torna-se então, não aquele de dizer como é preciso
ser pai ou mãe, ou mesmo como é preciso fazer, mas sim o de permitir que as capacidades dos pais surjam
e que nós as sustentemos, dando sentido aos percalços cotidianos da relação pais-crianças e prevenindo a
instalação e cristalização de um sofrimento. (Silva, 2008)
Para concluir gostaria de assinalar que livros e orientações não faltam para as famílias de Maria
Clara, Carmen e Theo ou mesmo para outras famílias que procuram a Clínica 0 a 3, mas muitas vezes
4 Como assinala G. Wiliams (1997, 1999) o bebê muitas vezes se torna receptáculo das angústias parentais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
carecem de uma base de sustentação emocional para que possam ser seguidas ou para que possam ser
consideradas como significativas ou adaptáveis para cada momento da relação pais-bebês (Silva & Mendes
de Almeida, 2009). A continência e a escuta dos aspectos emocionais e relacionais, cerne de nossa formação,
nos convida a ir além da orientação e dos aspectos funcionais para captar o que está nas entre linhas das
queixas apresentadas pelos pais, reconhecendo os fantasmas presentes no quarto dos filhos e auxiliando-os
a embalar o sono de seus bebês.
Referências Bibliográficas
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Companhia Viva. Artes Médicas: Porto Alegre. pp. 139-148.
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Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
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In: Solis-Ponton, L. (dir.) - Ser pai, ser mãe: parentalidade: um desafio para o terceiro milênio.
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Brasileira de Psicanálise, 36 (3): 541-565.
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Institute of Psychoanalysis. New York: Basic Books, Inc., Publishers.
Winnicott, D.W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Sabe-se que os cuidados dirigidos às crianças na primeira infância podem diminuir significativamente
a incidência de transtornos mentais tanto na infância como na idade adulta. Considerando que os
profissionais de educação infantil estão ao lado dos familiares nos cuidados e na educação das crianças
pequenas, assumindo também uma função formativa, entende-se que esses profissionais precisam estar
preparados para acompanhar a constituição psíquica das crianças sob seus cuidados. O presente trabalho
pretende apresentar as fundamentações teóricas, com seus impasses que levaram à sua elaboração e as
reflexões iniciais, de um novo projeto de pesquisa e de intervenção que tem como objetivo avaliar o uso da
metodologia IRDI como instrumento de promoção de saúde mental de crianças em instituições de educação
infantil. A metodologia IRDI é constituída por: 1) formação teórica sobre a constituição psíquica dirigida aos
professores de creches; b) acompanhamento em serviço dos professores; c) aplicação, por monitores, de 31
indicadores clínicos de desenvolvimento infantil para a avaliação e o acompanhamento das crianças de zero
a dezoito meses que estão sob os cuidados dos professores formados e acompanhados pela metodologia
IRDI. As questões a serem apresentadas neste trabalho referem-se as modificações propostas para a pesquisa
nas creches: se antes (na pesquisa multicêntrica original) se tratava de proporcionar ao pediatra um roteiro
para acompanhar a relação do bebê com seu cuidador, agora se trata de usar o IRDI como acompanhamento
da relação que um professor estabelece com cada bebê que está sob seus cuidados. Nessa metodologia,
é o próprio professor que estará implicado nessa relação; ele não estará colocado em uma posição de
observador, como estava o pediatra na pesquisa original e, os IRDIs não serão auto-aplicados. Deve haver,
porém, um acompanhamento de uma terceira pessoa, que ajude o professor a tomar certa distância perante
o que ele próprio está acompanhando. Para isso, contará, durante a pesquisa, com o auxílio de um monitor
treinado para esse fim que deverá fazer, como diz Claude Boukobza, o holding do holding, isto é, a oferta
de uma sustentação ao professor que sustenta o bebê para que os encontros e desencontros da professora
no exercício da continuidade da função exercida pela mãe possam ter lugar no campo da educação infantil.
Discute-se aqui se a metodologia IRDI agora sustentada na relação transferencial que precisa estar na
base do acompanhamento do monitor do trabalho com a professora (“holding do holding”), poderá levar
o psicanalítico ao coração das creches, no sentido de manter em andamento alguns eixos dessa função
materna de modo a impedir que se rompa o laço mãe-bebê de forma precoce e antecipada e, desta forma,
manter um lugar para o sujeito.
1 Autores da Pesquisa: Kupfer, M.C.M.; Pesaro, M.E.; Bernardino, L.M.F; Mariotto, R.M.; Lajonquière, L.; Voltolini, R.
2 Psicóloga; Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP; Membro
da equipe do Lugar de Vida Centro de Educação Terapêutica; coordenador de projetos do Centro de Referência do Institu-
to da Criança do Hospital das Clínicas. [email protected]
3 Psicanalista, Professora Titular do Instituto de Psicologia da USP; presidente do conselho de administração do Lugar de
Vida Centro de Educação Terapêutica [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A gagueira está fragilmente sustentada como patologia nos cânones da medicina clássica, uma
vez que lhe falta um dos pilares desse sistema de significação e tratamento que é a etiologia orgânica.
Configurou-se, portanto, em torno desse sintoma, um campo de dúvidas e certezas com desdobramentos
diversos e divergentes no modo de tratá-lo.
No geral, as crianças melhoram da gagueira quando os pais se dão conta do atravessamento dos
seus ideais e projeções no modo como escutam o filho ou, ainda, quando percebem o peso desmesurado
atribuído à fala da criança. A condição da criança é definida pelo vir a ser, por estar em constituição e, por
isso, submetida a uma especularidade, um ideal, mas ao mesmo tempo ”à condição temporal de um inédito
incomensurável” (VORCARO, 2004:25)2.
Os efeitos da transmissão não se reduzem a produção inequívoca de um simulacro dos desejos
inconscientes dos pais, haja vista que a criança se posiciona frente a determinados imperativos especulares.
Consideramos que, embora a criança esteja sendo significada numa trama discursiva que a determina pela
anterioridade lógica da linguagem na supremacia do significante, ela se move de forma singular nessa rede,
em nuances performáticas sem precedentes.
Sendo a gagueira o fator que instaura a queixa, esta orienta a escuta para o que supomos
existir para além da gagueira, onde podemos encontrar o sujeito que, apesar de parecer dominado pelo
Outro, abre pelo sintoma a entrada para um outro – terapeuta- que pode recriar o sentido do sintoma e,
consequentemente, a posição do sujeito que por ele se expressa.
Por quais aspectos transferenciais é que o terapeuta pode sustentar com o paciente um novo
jeito de dizer (de se dizer)? Talvez a posição ocupada por aquele que está como suposto saber sobre a fala
autorize a criança a falar, o que diminui ou divide o poder dado aos pais, ou, mais particularmente à mãe,
que vai ou não permitir que a entrada de um terceiro seja de fato significativa e lance o discurso da criança
para outras demandas que não só para as dela em relação ao filho idealizado.
Tais hipóteses serão explanadas a partir do caso de Bernardo, de seis anos, mediante o qual
poderemos ver que a gagueira está imbricada na lógica das operações de subjetivação, marcadamente vividas
no contexto da conflitiva edípica. Nesse caso observamos que o sintoma na fala pode estar associados ao
modo como os traços identificatórios são produzidos pela referência simbólica ao pai.
Partindo do caso Hans (FREUD, 1909) o sintoma é organizado como resposta ao espaço deixado
vago pelo pai: o menino desloca a função deste, como elemento da castração, para o cavalo; o acerto
realizado pelo sintoma visa assegurar sua integridade física e psíquica, pois evita um mal mais perigoso que
é o de permanecer “num imenso despropósito” – como assegura Nasio (2007: 10) – “o de manter o desejo
sexual de um adulto na cabecinha de um menino de quatro anos”. Cumprida sua função de castração,
que traz como produto o superego, “herdeiro do complexo de Édipo”, o sintoma perde sua função e a
1 Doutora em psicologia clínica núcleo de psicanálise pela PUCSP, mestre em fonoaudiologia pela PUCSP, psicanalista,
fonoaudióloga, foi professora do curso de fonoaudiologia da PUCSP , professora do curso de especialização da COGEAE
clínica interdisciplinar com bebês e do curso de especialização em linguagem. [email protected]
2 A criança na clínica psicanalítica. Rio de janeiro: Companhia de Freud, 2004
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
catexia nele investida retorna para o ego, o que pode ser uma parte da explicação para o fato de a gagueira
esvanecer nas crianças que são tratadas terapeuticamente, pois de 80 a 100% melhoram na infância.
Com os adultos, a inscrição renitente do sintoma permaneceu. Haveria, portanto, falhado a formação
da instância superegoica no aparelho psíquico? Não parece ser esse o desfecho psicopatológico, próprio da
perversão; no entanto, a gagueira não teve, como a fobia, um prazo de validade associado a determinada
função na economia psíquica. A marca desse tempo de pavores e horrores inerentes ao complexo de castração
e as fantasias ainda mais aniquilantes, se a ele não fosse submetido, continuam explícitas na linguagem.
Os gagos adultos parecem necessitar da presença do sintoma e do medo dele derivado para aplacar
a angústia. Angústia derivada do segundo tempo do Édipo, associada à percepção da falta sem endereçamento
devido; angústia em enfrentar a “presença de uma ausência”3, de uma ausência aberta nesse lugar que não é
ocupado pelo pai no discurso materno4. Essa assertiva, produzida pelas articulações entre a conflitiva edípica,
a formação dos sintomas e peculiaridades dos pacientes com sintoma de gagueira, permitem-nos ampliar a
percepção desse fenômeno.
Embora tenhamos refletido por um novo prisma a respeito da relação entre o complexo de Édipo e
a gagueira, caminho que nos permitiu organizar a hipótese de que esse sintoma funciona como um símbolo
da dificuldade em viver a identificação simbólica com o pai, ficamos com outras questões. Uma delas é a
seguinte: por quais motivos o sintoma com função de castração permaneceu situado na linguagem? Essa
pergunta é trabalhada ao longo da apresentação do caso de Bernardo, pelas relações estabelecidas entre o
sintoma na linguagem e os ideais parentais.
O manejo aparentemente simples, de se calar para que a fala do outro tenha lugar, segundo a teoria
psicanalítica, significa de fato sustentar o lugar do sujeito, quase como faz a mãe que passa, depois do período
inicial de indiferenciação e fusão, a desconfiar de que não sabe o desejo de seu bebê e precisa dirigir-lhe uma
questão, colocando-o assim na posição de enunciador e sustentáculo do seu dizer e não mais submetido à
tradução sincronizada de si pelas projeções imaginárias dela. É possível, nesse exemplo simples, verificar que
toda a diferença suposta no lugar que o sujeito pode ocupar a partir da escuta a ele conferida no tempo e no
espaço da clínica, tende a ser potencializadora de alteridade e de marcas distintivas de si para si mesmo nos
processos de identificação.
De modo análogo à dedicação desconfiada da mãe, que vai aos poucos transformando um bebê
dependente num sujeito diferenciado dela, a função do terapeuta que suporta o valor de uma fala escandida
e comprometida em sua forma – por ouvir nela mais do que erro ou imperfeições, mas trabalho de elaboração
e sentido – também dá sustentação para que mudanças se processem.
Vê-se, no caso de Bernardo, a relação altamente investida da mãe com a fala de seu filho; seus
ouvidos precisos para apreender toda alteração na fluência também se aplicavam a estranhar a curva melódica
da voz de seu marido, uma das marcas sensoriais mais penetrantes na experiência amorosa e vista por ela
como “afetada”.
O modo como o pai de Bernardo ficou submetido ao frágil reconhecimento da esposa indicia
dificuldades importantes para sustentar seu próprio valor, que certamente contava com outras raízes em sua
história. No que concerne aos fatos descritos, o pai era muito competente profissionalmente, atento, presente
e bastante arrojado em tomar atitudes que pudessem deixar a mãe mais feliz. À parte isso, em quase todos
os contatos com os pais, permanecem saberes separados, discursos impermeáveis um ao outro: embora
conversassem, não se escutavam. Não havia a construção conjunta de uma percepção de ambos a respeito
3 Suportar a presença de uma ausência seria a condição, segundo São Tomás de Aquino, apud Garcia Roza (1992: 172),
para alçar o conhecimento. “O desconhecimento é a presença de uma ausência. Diferente do desconhecimento, a igno-
rância é o vazio”. A “ignorância” corresponderia à posição psicótica, gerada pela carência do significante Nome-do Pai.
4 Cabe salientar, mediante as palavras de Dor (1995: 46) “que a carência do Pai simbólico, isto é, a inconsistência de sua
função no decorrer da dialética edipiana, não é absolutamente coextensiva à carência do Pai real em sua dimensão realis-
ta”, com isso podemos asseverar que o pai simbólico é uma função que mediatiza os desejos respectivos da mãe e do filho
e que vai ser o representante do “significante fálico, enquanto simbolizando o objeto da falta desejado pela mãe” (p.42).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
do filho, pois às vezes o pai demonstrava certa desconfiança a respeito do que pensava sobre Bernardo, mas
sua abertura para a diferença sucumbia diante das afirmações quase inquestionáveis da mãe. Ambos foram
se disponibilizando a falar e rever seus posicionamentos, o que contribuiu decisivamente para Bernardo falar
mais livremente.
Suponho que um excesso narcísico, ou fálico, atribuído ao filho, levava-o a forçar-se para caber
na correspondência imagética, pagando o preço de ter que satisfazer o público, ou insígnias imperativas
propostas pelo olhar da mãe, protótipo dos olhares que enfrentará no mundo.
Na dúvida a seu respeito, Bernardo tendia a ocultar seus sentimentos, por isso não podia acreditar
nem na dor dos dedos esmagados entre as carteiras, fato que omitiu da professora. O que sentia ficava
encoberto pela idealização em torno do que deveria sentir ou de como deveria ser ou fazer sentido.
Nessa perspectiva, na transferência, posicionava-se refratariamente às minhas palavras,
desqualificando muitas observações, dizendo “isso não tem nada a ver com o que estou falando”, como se
na circulação desejante-desejado fosse condição de sobrevivência excluir ou fragilizar a fala de alguém. Como
nos aponta Mafra (2004: 22), “abordar a transferência é, precisamente, estabelecer uma rede na qual a fala
vetoriza-se, posicionando o sujeito em seu endereçamento”. Nesse ponto do trabalho terapêutico, Bernardo
tinha o lastro da fala em sua mão, talvez condição para manter-se fluente, e assim passou a ser visto pelo outro
e percebido por si.
Como vimos até aqui, os sintomas, conforme a psicanálise, são inerentes à constituição subjetiva.
Os sintomas na linguagem, em particular a gagueira, também estão imbricados na lógica das operações de
subjetivação, marcadamente vividas no contexto da conflitiva edípica. Faz-se necessário, portanto, determo-nos
agora nessas operações, pois observamos na análise desse caso que os traços sintomáticos na fala podem estar
associados ao modo particular como os traços identificatórios são produzidos pela referência simbólica ao pai.
De acordo com Pommier (1998), uma angústia de castração pode acarretar notáveis variações
identificatórias, uma mesma série pode comportar identificações diferentes na medida em que circunstâncias
gerem experiências passíveis de potencializar a plasticidade e a permeabilidade dos traços identificatórios.
Nessa perspectiva, podemos afirmar, com relação ao caso de Bernardo, que a posição do terapeuta
está interligada às circunstâncias necessárias à emergência das palavras: em síntese, a uma relação com
quem se tenha o desejo de conversar. Nessa condição de identificação, a escuta agiu favorecendo que
elementos novos repusessem a série da identificação simbólica que passou do pai para o avô materno e para
o personagem Harry Potter, para depois reencontrar no pai o representante mais legitimado desse lugar viril,
corajoso e fluente.
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POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre a transferência em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia
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VORCARO, A. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
O texto acima foi retirado de minha pesquisa de doutorado defendido em maio de 2009 no Programa de Psicologia Clínica
da PUCSP e inédito. A tese tem por título: Mal-estar na linguagem: questões sobre Édipo e transferência na clínica da gagueira.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A experiência clínica da autora com a criança autista, iniciada em 1990, após uma experiência de
vida inusitada: residir com as crianças e adolescentes de Bonneuil sur Marne, lugar de vida para as crianças
e adolescentes excluídos da sociedade, dirigido por Maud Mannoni, propiciou uma reflexão crítica sobre
a servidão do psicanalista em relação ao uso da interpretação. A possibilidade de conviver com a criança
autista nas sessões de análise passou a ser uma condição essencial formulada em Tese de Doutorado
(2003): o analista não-intérprete2. Em outras palavras, a concepção do corpo do analista como setting,
uma recusa em dar ao sensível, por meio da decifração, decodificação e interpretação, uma significação
exterior. Trata-se de um trabalho clínico fundado na capacidade de espera do analista, a convivência com o
não saber e, em especial, a experiência paradoxal de se sentir só, sem palavras, na presença de uma criança
ensimesmada em sensações inomináveis. Ou seja, a técnica psicanalítica clássica da interpretação parece
inabilitada, pelo menos de início, restando ao psicanalista o lugar de “estar lá para ser encontrado”.
A partir da criação de um setting muito mais móvel do que aquele que nos acostumamos a
reconhecer na chamada técnica psicanalítica clássica, a imitação dos gestos, sons e maneirismos da
criança autista passou a ser uma ação terapêutica valiosa. Na década de 1930, Melanie Klein e Anna Freud
propuseram, cada uma à sua maneira, como condição vital para a relação analítica com os pequenos o
uso das interpretações verbais. Esse modelo foi também estendido para as crianças não falantes e que não
estabelecem relação afetiva com o analista. E o mais significativo, Melanie Klein, com o Pequeno Dick, afirmou
categoricamente: “senti-me obrigada a fazer minhas interpretações à base do meu conhecimento geral,
sendo as representações do material de Dick relativamente vagas” (Klein,1930:73). Segundo a psicanalista,
o simbolismo pode ser revelado pela criança inibida por detalhes do seu comportamento, permitindo que
o analista faça a interpretação para, nesse caso, criar a relação transferencial que caracterizaria a relação
analítica com a criança. Em oposição à A. Freud, Klein enfatizou a primazia do efeito da ação interpretativa
na relação transferencial com Dick, em detrimento das ações pedagógicas para adaptar o pequeno na
escola. Em suma, o campo psicanalítico ficou marcado por um paradigma clássico: o analista precisa ser
intérprete de gestos pouco representativos das crianças inibidas para criar a relação transferencial.
Ao longo da história da clínica psicanalítica com crianças ensimesmadas pode-se observar o
imperialismo do uso das interpretações verbais para criar a relação analítica com a criança, produzidas
e utilizadas das mais diversas formas, segundo os modelos de escolas psicanalíticas existentes, a partir
do paradigma kleiniano. O tema aqui proposto permite questionar esse paradigma a partir da clínica
contemporânea com as crianças ditas autistas.
Desde o caso clínico Maria, na Tese de Doutorado denominada “Dos Sons à Palavra: explorações
sobre o tratamento psicanalítico da criança autista” (Tafuri, 2003) a autora experimenta, na clínica, a
possibilidade de criar a relação transferencial com crianças ensimesmadas a partir de intervenções não
verbais, originárias de sensações e percepções sensíveis do encontro com a criança. Testemunhar a
presença de gestos, sons, movimentos e ritmos sensíveis da criança, dentre uma gama avassaladora de
comportamentos estereotipados, denominados autísticos, torna-se a função primordial do analista para
além da ação de interpretar por meio de palavras. Não se trata de agir para “ter acesso à criança”, “entrar
1 Psicóloga e Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica/USP, Prof. Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica
da Universidade de Brasília, Coordenadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise, Membro fundador das
Associações: Brasileira para o Avanço Conjunto da Filosofia, Psicopatologia e Psicoterapia (ABRAFIPP), Brasileira de
Neurologia, Psiquiatria e Profissões Afins (ABENEPI) e da Brasileira de Estudos sobre os Bebês (ABEBE).
2 TAFURI, M. I. Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista, Brasília: Positiva, 2003.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Um primeiro encontro
Recorro à clínica com crianças autistas para criar elementos vivos que possam embasar o
conhecimento acerca do lugar do analista com essas crianças e da questão da transferência. Trata-se do
pequeno Abel, uma criança de dois anos que parou de falar e de responder aos estímulos sociais do
depois do primeiro ano de vida. Os pais procuraram atendimento a partir do diagnóstico de Autismo infantil
conferido por um neurologista. Profundamente abalados e preocupados com o futuro do filho, solicitaram
uma nova avaliação.
Em um primeiro contato, habitualmente feito por telefone, digo aos pais para virem acompanhados
do filho para uma consulta terapêutica. Ao recebê-los procuro acompanhar a criança à moda dela enquanto
escuto o discurso dos pais sobre o pequeno. Nesse caso, ao entrarem na sala de consulta com o filho, houve
uma recusa inicial, corporal e sonora, por parte da criança, que se debatia no colo do pai e gritava indicando
que não queria entrar. Ao fecharmos a porta o pequeno se mostrou desesperado, gritava e se debatia a
ponto de se machucar no colo do pai, que nos seguintes termos falou: “Doutora, nós estamos tristes e
desolados, ele está assim, grita muito e nós não conseguimos consolá-lo. Não responde quando chamamos.
Parece surdo. Não brinca. Foge das outras crianças. Evita ser abraçado e não se aconchega ao nosso colo.
Ele não era assim, ficou dessa forma depois do nascimento da irmã”.
Me dirigi a Abel que estávamos ali para brincarmos e compreender o que estava acontecendo.
Repentinamente, parou de gritar se voltando para os carrinhos expostos na estante. Jogou-os no chão e
começou a movimentá-los, silenciosamente, sem olhar para ninguém. Deitei-me no chão acompanhando
o movimento da criança, que estando com braço sob a cabeça, movimentava, em vai e vem, um pequeno
carrinho. Ele acompanhava atentamente as rodas do carrinho, como que enfeitiçado pelo movimento delas.
Estando, ao lado dele, ao tempo em que reproduzia o mesmo movimento da criança, pedia aos pais para
falarem deles mesmos. Dessa forma, acompanhando a criança em seu fluxo sensível feito de movimento,
ritmos e sons, eu ouvia a história de vida dele e a dos pais.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Passados os primeiros trinta minutos, convidei os pais para brincarmos juntos imitando o
comportamento de Abel. Disse a eles que se tratava de uma prática simples, e aparentemente banal,
contudo, valiosa para o entendimento das crianças. Os pais, por já terem estabelecido, mesmo antes de me
conhecerem, uma relação transferencial positiva, se mostraram disponíveis para ficarem em silêncio, sem
solicitar nada da criança. Eles se sentaram no chão junto à criança e começaram a imitá-la. Ficamos em
silêncio, movimentando os carrinhos da mesma maneira que a criança durante pelo menos quinze minutos.
Nesse período, Abel permaneceu colado aos objetos, procurou pegar outros brinquedos sem expressar
nenhum som e sem olhar para nenhum de nós.
Para tentar criar um ambiente mais intimista entre Abel e os pais eu me levantei, sentando em
outro canto da sala, de tal sorte que eu pudesse observar sem participar diretamente da cena. Passado
algum tempo, os pais visivelmente decepcionados com o isolamento da criança, passaram a fazer barulho
com os brinquedos para chamar atenção do filho. De forma repentina e fugaz, Abel tampa o rosto com as
duas mãos, levanta a cabeça e dirige o olhar, entre os dedos, na minha direção. Eu me surpreendo, tampo o
rosto com minhas mãos e, também, olho pra ele entre os dedos, expressando com o som de uma interjeição
o sentido da palavra ‘achou’. Naquele momento, os pais se alegraram e começaram a brincar com ele, da
mesma forma, porém falando ‘achou’. Abel expressa um sorriso tímido, fugaz e se volta novamente para o
jogo estereotipado de olhar para as rodas dos carrinhos, permanecendo assim pelo resto do tempo. O que
deixa os pais desarvorados e tristes.
Nesse momento começo a conversar com os pais no sentido de abrir espaço para a expressão dos
sentimentos deles em relação à criança. Eles se voltaram para o laudo da neurologista principalmente em
relação às deficiências da criança, pois o prognóstico havia sido dado no sentido de ser uma patologia grave
e incurável. Volto então ao tema dos sentimentos deles durante o experimento da imitação. Com dificuldade
a mãe se desmancha em lágrimas dizendo que não sabia mais o que fazer para chamar a atenção do filho.
Ela e o marido começaram a listar uma fonte de dados que poderiam ter levado Abel a parar de falar: troca
da babá depois do primeiro ano de vida, nascimento da irmã, morte da avó materna, falta de tempo para o
Abel como tinha antes da irmã nascer, etc. Ansiosos e sofridos, procuram encontrar as possíveis causas para
o ensimesmamento do filho.
Enquanto conversamos, permaneço atenta ao pequeno, sempre próxima a ele acompanhando-o
e falo com ele sobre as preocupações dos pais em relação a ele. Uma tentativa de colocar a criança como
sujeito do discurso dos pais. Abel permanece absorto nas rodas dos carrinhos.
Termino a consulta dizendo aos pais que todos os comportamentos do filho que indicam isolamento
tendem a ser diagnosticados, por uma grande maioria de profissionais, como Autismo Infantil. Entretanto,
naquele encontro, Abel pôde apresentar uma reação fugaz e sensível que havia alegrado a eles, a de ter
esboçado uma brincadeira de esconde, esconde. Os pais se emocionaram e puderam expressar o prazer
sentido por eles naquela cena que apesar de ter sido fugaz fora muito significativa. Mas que tinham muito
medo de acreditar na capacidade do filho, por causa da falta de continuidade da brincadeira. “Veja, doutora!
Quando a gente quis brincar ele não estava mais lá, já tinha se voltado para o carrinho”, disse a mãe.
Comentei com eles sobre o nosso grande desafio naquele momento: o de confiar na criança e
conseguir esperar por uma nova possibilidade de contato sem exigir a continuidade da brincadeira como
eles gostariam. Recordei com os pais o que havia acontecido: “vocês perceberam que só depois do meu
afastamento, de ter deixado vocês três juntos, é que Abel pôde dirigir o olhar em minha direção, de forma
jocosa, fugaz, porém, sedutora. Como vocês viram, não emiti qualquer palavra, apenas um som com a
entonação de quem havia sido encontrado. Em seguida, vocês entraram na brincadeira falando ‘achou’.
Ele se voltou para os carrinhos e interrompeu a brincadeira. O que demonstra a vontade grandiosa de
vocês de darem continuidade a uma brincadeira gostosa, que já fez parte do relacionamento com ele.
Vocês ficaram encantados, as palavras brotaram da boca de vocês, entretanto, Abel se fechou e não deu
continuidade à brincadeira. A decepção dominou o corpo e a mente de vocês o que os levou a desistirem
e ficarem tristes. Por outro lado, vocês estão aqui em busca de respostas às tantas perguntas que fizeram.
Como entender tudo isso?”
151
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
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autista. ABRAFIPP:Brasília.
153
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Inicialmente, a clínica com crianças teve o desafio de descobrir como elas associavam livremente
para que suas produções inconscientes pudessem ser escutadas. Brincando foi a resposta obtida. Atualmente,
a clínica do autismo põe em pauta a estruturação e formação do psiquismo, requisitando novas formulações
sobre sua compreensão, dinâmica e intervenções.
Por todos estes anos, nos atendimentos de crianças com patologias do contato com o outro, de
etiologias diferentes, posso afirmar que muitos casos puderam se beneficiar com significativa melhora do
quadro clínico, embora, muitas vezes, seja difícil explicitar exatamente sua etiologia. É claro que muito da
teoria vem balizar o campo do atendimento. Mas esta prática me colocou frente a uma questão um
tanto quanto desconcertante: nem sempre se pode explicar a causa do autismo. Ou seja, a significativa
melhora dos casos através da escuta analítica não necessariamente significa saber sobre suas causas.
Suponho que o fato de serem estruturas muito primitivas, nas quais o processo de representação
está comprometido, deixa suas arestas na transferência e têm grande contribuição para o fenômeno.
Anteriormente, quando discuti a clínica da manifestação autista, diante da freqüente pergunta
“Como se fala com crianças autistas ?” (Wajntal 2004), abordei como é difícil sustentar a transferência
nestes casos. Considerei como essencial na clínica com crianças autistas que o analista deve sonhar. Ou
seja, o sonho como escuta baseia-se em uma aposta na possibilidade de se obter uma resposta, mesmo
que a criança sempre sinalize o contrário.
Aos olhos do espectador, a manifestação parece pura função automática, movimentos desprovidos
de desejo e intenção, dando a impressão de não serem de uma pessoa. Sensação que nos lembra a descrição
do unheimlich (estranha familiaridade) de Freud (1919), produzida no observador quando está diante de um
ser e surge a dúvida se ele está efetivamente vivo. Ou, na situação inversa, quando um objeto sem vida é,
de alguma forma, animado.
Nesta ótica, a manifestação autista remete a uma sensorialidade primitiva, não metaforizada,
causando assim a impressão de que se está diante de um funcionamento puramente biológico do organismo.
A manifestação da criança gera a impressão de que não tem função e destinatário: fala que não se endereça
a nada, a ninguém e não comunica; gestos repetitivos que não desembocam em uma ação.
No autismo, a expressão aparece sempre de forma bizarra, justamente por serem sujeitos que não
se vêem enredados em uma narrativa parental, a partir de uma imagem unificadora, na qual o outro servirá
como laço para a construção da sua identidade. A estereotipia é a pura descarga da excitação, sem ligação
ou intermediação da função representativa ou elaboração.
É nestas sutilezas que podemos entender as vicissitudes transferenciais da manifestação autística,
e o analista deve escutar em cada estereotipia uma mensagem, procurando encantá-la com sonhos e
1 Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae. Participou da equipe fundadora do Hospital-Dia Infantil da Mooca e do CAPS infantil da Mooca por 14 anos,
desenvolvendo trabalho com crianças e suas famílias. É autora do livro “Uma Clínica para a Construção do Corpo”, Via
Lettera, SP, 2004. Organizadora do livro: “Clínica com Crianças: Enlaces e Desenlaces”, Ed. Casa do Psicólogo, SP, 2008.
Atualmente atende em consultório adultos, crianças e famílias. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
imagens. A clínica do autismo é marcada por vivências de exclusão e seu enigma é decifrar que sorte de
desejo gera tal “horror”, recusando a chance de a criança ver-se identificada e, posteriormente, identificar-se
como semelhante.
Mas não me apoiarei, exclusivamente, neste aporte, para tratar do fato que embora haja uma
significativa melhora dos nossos clientes, muitas vezes não conseguiremos explicar o que produziu tamanho
sofrimento. Atualmente, o autismo é um dos temas o qual mais se pesquisa e teoriza, com inúmeras
publicações das mais diversas áreas do conhecimento. Parece que não conseguimos abarcar todas as
causas do fenômeno. Proponho que esta impossibilidade de explicitar plenamente as causas do autismo
seja apenas mais um enigma a ser decifrado na clínica. Questão com a qual sempre me deparo, mas cujo
desenvolvimento ainda é bem incipiente. Mesmo assim me arrisco a compartilhá-la aqui com vocês.
Revendo os casos clínicos de crianças portadoras de patologias do contato com o outro nos quais
trabalhei e que publiquei anteriormente (Idem), vemos que o trabalho clínico focou-se no eixo da alienação/
separação. Isto é, a escuta analítica foi na direção de instituir, partindo do discurso parental, um campo de
desejo para estas crianças, que não fosse apenas vivido como um horror de exclusão. Na ocasião, enquanto
pude acompanhá-las, este trabalho resultava em inegável benefício, embora o tratamento tenha se iniciado
em uma idade tardia.
Nas três situações descritas, as mulheres que se encarregaram da maternagem dessas crianças
estavam impossibilitadas de exercer esta função, quer pela falta de organização psíquica e social em que se
encontravam, quer por uma reação depressiva desencadeada ou pelo nascimento da criança, ou por fatores
concomitantes ao seu nascimento.
Nos casos descritos no livro, no trabalho de escuta, podíamos encontrar mitos, histórias não ditas
que, ao serem disponibilizadas para criança e suas famílias, se destramavam e permitiam que ambas,
criança e familiares, avançassem no curso de suas vidas um pouco mais livres, com menos angústia. O
trabalho que visava restituir um valor de comunicação ou sentido para as manifestações da criança, instituir
um jogo pulsional na díade criança (ou bebê) e a pessoa que exerceu a função materna, provou ser uma
excelente opção no tratamento para estas famílias. A questão que coloco é se isto seria o suficiente para
afirmar que tal sucesso demonstre de fato o que causou o padecimento?
Trago, agora, um caso em que a impressão de haver uma linearidade entre a intervenção clínica e
a causa etiológica no atendimento clínico é totalmente distinta:
A mãe de Leo procurou ajuda no CAPSi Mooca, era a terceira vez que ela procurava um atendimento
para o filho. A primeira procura foi motivada devido ao atraso de aquisição da fala. A segunda pela dificuldade
em se adaptar na escola. Desta vez, ele foi reencaminhado para nós.
Na ocasião, ele estava com três anos. A queixa era de atraso na fala e a extrema dificuldade em
adaptá-lo à rotina escolar, pois ele se recusava a ficar na sala de aula com a porta fechada. Caso isto fosse
exigido dele, batia a cabeça contra a parede, se mordia, gritava, chutava e mordia quem dele se aproximasse.
Sua fala era repetitiva e sempre conjugada na terceira pessoa.
A mãe de Leo era adequada e continente com ele, embora inibida afetivamente. Leo é o segundo
filho. A irmã mais velha é portadora de uma síndrome genética. Seus pais haviam se separado há mais de
dois anos, quando Leo ainda não havia completado um ano de idade. A relação dos pais era ruim, pois o pai
só tinha olhos para um ciúme doentio que sentia da esposa. Isto foi, inclusive, o mote da separação. Diante
destas fantasias, ele se tornava agressivo.
Foram realizadas várias entrevistas com os pais, ora com Leo presente, ora individualmente. A tarefa
inicial de articular esta mãe que não podia sentir nada, este pai ciumento e a criança gritona não foi fácil.
Para conter as crises de Leo, como a descrita acima, a mãe o segurava no colo ou o prendia em
uma cadeira tipo bebê conforto. Atitude que discutimos amplamente. Por um lado, o comportamento
autoagressivo justificava a contenção na cadeirinha, por outro o fato de amarrar a criança era constrangedor
155
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
para a mãe. Após alguns meses de trabalho com a família, pedi uma avaliação psiquiátrica2 da criança e,
em conjunto, optamos em medicá-la com um antipsicótico, pois a criança estava prestes a ser afastada da
escola, sob o pretexto de que só poderia freqüentar uma escola especial.
No primeiro ano de atendimento, o trabalho de escuta analítica consistiu, antes de tudo, em
circunscrever funções de cada um dos pais com os filhos. Especificamente, mediar a relação do pai com eles,
pois o pai privava os filhos de sua presença e de qualquer contribuição na criação e cuidado, apenas para
punir a mãe. Ou seja, o trabalho consistiu em que o pai olhasse para seus filhos, independente dos ciúmes
que sentia pela mãe deles, sem que cada ato dele visasse apenas a ex-mulher, desconsiderando as crianças.
Ele passou a ter contato freqüente com as crianças, levando-as quinzenalmente para passar parte do
final de semana com ele. Assumiu, também, trazer o filho para o atendimento grupal, quando este foi prescrito.
Pelo lado da mãe, na medida em que começou a configurar o pacto inconsciente de seu
casamento, ela passou a lidar melhor com os ciúmes do ex-marido, sem ficar tomada pelas cenas que
ele a submetia e às crianças. Embora ela ainda se queixasse, com razão, de sua pouca contribuição e
participação em todos os sentidos.
Paralelamente, eu ia periodicamente à escola e realizava reuniões com sua professora, a
coordenação pedagógica e os demais docentes.
Depois de uns oito meses de escuta desta família, Leo me surpreendeu fazendo jogos de
triangulação com os adultos. Eram jogos elementares, que colocavam em pauta com “quem ele escolheria
ficar” ou passear de mãos dadas.
Comecei a propor que, alternadamente, nossos encontros fossem individuais. Em geral, nestes
encontros, ele queria andar de carro ou de motoca pelo CAPSi. Havia um carro prata com o eixo da direção
quebrada, pelo qual ele tinha especial paixão. Ele brincava de ir e vir, escolher e decidir.
Em um encontro conjunto, o pai relatou sua paixão por automóveis e motos. Ele tinha um caminhão
e uma moto. O fato de não ter um carro era atribuído pelo pai como empecilho para estar mais com as
crianças, ou auxiliar nos tratamentos de saúde dos filhos. Sua outra filha fazia um tratamento médico que
requeria idas constantes a um serviço de referência distante.
O pai também contou que quando vinha com o filho ao parque, sempre passavam por um trator
antigo - era programa obrigatório. Seu sonho era pedir permissão à administração do parque para consertá-lo.
Assim as crianças poderiam passear nele.
Leo passou a falar de seu incômodo com o fato de seu querido carro prateado estar quebrado,
expressando-se cada vez de forma mais elaborada. Fizemos uma brincadeira de levá-lo à oficina e o
consertamos na sala de artes. Como não era nada fácil realizar este conserto, frente à minha dificuldade em
ser uma mecânica, ele dizia: “precisamos chamar o meu pai”. Concordava com ele que o pai estava muito
mais habilitado a consertar o carro. Mas podíamos tentar fazê-lo e, caso não conseguíssemos, o chamaríamos.
O pai mora em outra cidade e naquele período estava muito relutante em comparecer ao
atendimento comigo, pois julgava que eu estava “combinada” com sua ex-mulher. Temia que este pedido de
Leo contivesse uma armadilha, uma cena já conhecida: a extrema imobilidade que a ausência do pai gerava,
deixando tudo na dependência de seu humor. E, como ele só tinha olhos para a raiva que sentia da mãe,
nunca se fazia presente, como disse acima, apenas para puni-la. Então, eu também podia ficar na mesma
vulnerabilidade que a mãe de Leo, e a continuidade do tratamento sujeita a uma punição.
O conserto foi um sucesso e Leo saiu extremamente fortalecido. Sua fala e expressão melhoraram
significativamente, as crises no período escolar diminuíram e, progressivamente, ele começou a fazer
participações furtivas na classe. Participar passou a ser um ato assumido em desejo próprio, não tão
dependente do desejo ou conflito do outro.
2 A criança foi avaliada pela Dra. Maria do Carmo Sartorelli (em memória).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Um dia, abri a porta e convidei Leo e sua mãe para entrar, ao que ele me respondeu:
“Espera! Estou tomando meu lanche!”.
Encontrei esta agradável surpresa: uma criança falante e determinada em suas vontades.
Vemos neste caso que, embora tenha tido uma boa evolução, a rigor se me perguntarem sobre o
que causou as dificuldades de Leo, teria problemas para formular. Este trabalho teve início quando a criança
acabara de concluir três anos, idade muito mais favorável para a evolução do tratamento. Mas é muito
difícil traçar uma linearidade do que gerou a vivência de exclusão para ele. É claro que depressão materna,
briga dos pais, na qual os filhos pareciam ser desconsiderados como sujeitos, deixam suas marcas. Mas esta
biografia seria o suficiente para afirmar a causa de uma sintomatologia tão grave? Configuraria um tipo de
desejo que só exclui?
Estamos habituados a pensar nossa clínica a partir de uma lógica da causalidade: tudo tem um
motivo inconsciente. Sim, é verdade que toda clínica psicanalítica se funda no conceito de inconsciente
e estou trabalhando com esta premissa. O que proponho é uma reflexão da maneira que a utilizamos.
Motivação inconsciente não seria distinta de uma lógica de causa-efeito? Representar é explicar? Ou,
quando falamos em inconsciente estamos diante de uma trama de leis distintas?
Para tentar discorrer sobre esta incipiente questão, procurarei fazê-lo sob o prisma do conceito de
pulsão, frisando o fato que somos seres históricos e lingüísticos, justamente porque somos regidos pela pulsão.
O caminho que a pulsão realiza para atingir sua finalidade, assim como seu objeto, dependerá
da história de cada sujeito. Diferindo das demais espécies, será isto, justamente, o que nos torna seres
temporais e capazes de nos portar de forma única e pessoal e constituir, paralelamente, uma trama psíquica
sobre nossas vivências.
A construção dramática de nossas vivências não deve ser entendida como causa etiológica de
uma patologia. Mito individual e historização, sem dúvida, estão vinculados ao fantasma que pode estar
fortemente aprisionado à doença, mas não necessariamente explica a causa de uma doença.
No caso de Leo, diria que ação analítica destramou justamente o plano fantasmático familiar em
que tudo que era a manifestação de Leo se imobilizava. Este trabalho proporcionou à criança espaço para
poder experimentar: com quem queria andar de mãos dadas, brincar com os amigos ou estar no mundo do
faz de conta. E, a partir desta nova experiência, poder seguir seu desenvolvimento. Teria grande dificuldade
em afirmar que a etiologia da sua manifestação autística estaria na ação parental.
Quando me refiro ao fato da criança poder retomar o curso do seu desenvolvimento, estamos
falando dos jogos pulsionais que constituirão seu circuito. Portanto, baseia-se na compreensão de que
essa manifestação é resultante de falhas na instalação dos tempos da pulsão. Foi a partir da clínica que se
construiu esta metapsicologia. Mas devemos ter cuidado redobrado para que “o conceito de causa não seja
a priori da compreensão”.
A demonstração da causa é sempre experimental e pressupõe uma determinação imutável das
coisas, portanto, pressupõe que seja a-histórica e sempre determinada por uma lei constante, asseguradora.
Ao se falar demasiadamente em causas, estamos indo na contramão dos caminhos da pulsão. Como vemos
questionado em Hegel ““não há tempo atemporal e existência de relações eternas... a construção histórica
somente pode se encontrar em contradição com o princípio da causalidade”” (Volgo, 1998. pg. 18).
Pensar construção histórica na contramão de suas causas implica em que o trabalho de escuta analítica
se pauta em outra lógica – o acaso. Trata-se da casualidade do encontro, entre pulsão e o representante da
pulsão, entre represente e representado, do encontro de um órgão sensorial e um objeto apto a representá-lo,
encontro entre o inconsciente parental e o do filho, encontro mãe/bebê, encontro singular de cada destino. O
acaso do encontro é a causalidade inconsciente, causa nada linear que implica em uma pluralidade de fatores
e respostas possíveis, das quais a reconstrução difere muito da reconstituição dos fatos (Mijilla-Mellor, 1998).
Acaso este que também implica em admitir a insuportável expressão de uma exterioridade que nos ignora.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Podemos dizer que a clínica do autismo é a clínica que maneja o desencontro. Devido ao fato de um
dos dois envolvidos no jogo pulsional não comparecer nesta relação, a comunicação é desorganizadora. Ou a
mãe não pode responder aos sinais desta criança, ou a criança se vê impossibilitada de comparecer na relação.
Na clínica com crianças, trabalha-se com a ferida do dilema de ser ou não ser; ter ou não o objeto
do desejo do outro; ou mesmo a dor de estar excluído deste dilema. A explicação é sempre um recobrimento
desta ferida, mas nem sempre se traduz sob a lógica da causa/conseqüência.
Incorrer na confusão entre a possibilidade de reconstrução simbólica e restituição dos fatos,
além de suas implicações éticas, resulta que “a escuta operacional produz o discurso operacional, a escuta
ideológica produz discurso ideológico, escuta flutuante produz discurso associativo” (Volgo, 1998, pg.14).
Por fim, cabe frisar o fato das pulsões serem o lugar do acaso em psicanálise por excelência, uma
vez que seus destinos se constituem pelo puro acaso de um encontro,distinguindo-se por isto dos instintos
(Garcia-Rosa, 2003). Encontro este que antecede a lei que posteriormente regerá seu próprio funcionamento.
Referências Bibliográficas
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A psicanálise e a transferência
Monica de Barros Cunha Nezan1
Freud inventou a psicanálise com o apoio das histéricas. Entre os pacientes indicados, uma teve um
lugar privilegiado. É Anna O., o primeiro caso relatado nos ‘Estudos sobre Histeria’, que S. Freud e J. Breuer
publicam em 1895, demonstrando pela primeira vez que o sintoma histérico responde, reage à palavra.
Tal descoberta permitiu a Breuer inventar o método catártico de rememoração sob hipnose. Em
1892, Freud abandonou a hipnose e chegou ao método da associação livre. Freud assinalou o lugar capital
da ligação do médico no tratamento da histeria.
Para iniciar às reflexões que darão corpo a este trabalho, elegi o tema transferência articulado ao
meu trabalho institucional ao longo dos últimos anos, na clínica psicanalítica com crianças que apresentam
graves transtornos psíquicos. De que forma, ou de que posição, um atendimento realizado em uma
instituição pode se considerado psicanalítico?
1. O trabalho em instituições: psicanalítico?
A experiência em instituição com crianças autistas e psicóticas coloca alguns paradoxos imanentes
a esta clínica. Temos que nos interrogar frequentemente quanto ao nosso lugar enquanto analistas, quanto
à direção do tratamento na instituição e quanto ao próprio dispositivo clínico exigido.
O primeiro paradoxo concerne aos fundamentos próprio do tratamento analítico. Frente aos
autistas, nos perguntamos de saída quais seriam os princípios em que a psicanálise se baseia, já que esses
pacientes não articulam, não demandam e, muito menos, se endereçam ao analista como aquele que ocupa
o lugar do suposto saber. Apesar de não articularem uma demanda ao Outro2, sabemos com Lacan que os
autistas são seres que padecem da linguagem.
Na conferência de Genebra, Lacan (1975) utiliza duas expressões que singularizam a posição do
autista frente à linguagem: eles são “seres verbosos” e “escutam a si mesmos”3. Entretanto, se os autistas
estão de alguma forma inseridos na linguagem, por que eles não a articulam? Ou qual seria o papel do
analista em meio a essa linguagem que não faz laço, e da qual a criança faz uso tão próprio?
Este é um dos paradoxos entre tantos. Esse paradoxo faz-nos refletir sobre a extensão da psicanálise
a outras formas de práxis para além dos pilares sobre os quais ela se fundou, a saber, a associação livre e
a transferência em que o analista ocupa o lugar de agente que causa o desejo do sujeito (Lacan, 1969-70).
1 Formação Acadêmica: psicologia, Master Profissional em Psicologia e Psicopatologia Clínica na Universidade “René
Descartes”– Sorbonne – 1993. Pós-graduação em Psicopatologia do Bebê, orientação do Prof. S. Lebovici – Universidade
Bobigny Paris XIII. Especialização pelo IPUSP – Pré-escola terapêutica Lugar de Vida – 2000. Trabalha na Instituição Lugar
de Vida – Centro de Educação Terapêutica, desde 2004. 2º ano Formação Departamento Psicanálise – Instituto Sedes
Sapientiae, 2012. [email protected]
2 Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente –
que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intrassubjetiva em sua relação com o desejo. Pode
ser simplesmente escrito com maiúsculo, opondo-se então a um outro com letra minúscula, definido como outro imaginário
ou lugar de alteridade especular. Mas pode também receber a grafia grande Outro ou grande A (Autre), opondo-se então
quer ao pequeno outro, quer ao pequeno a (autre), definido como objeto (pequeno) a. (Roudinesco, 1998, p.558).
3 Lacan na “Conferência em Genebra sobre o Sintoma” utiliza em francês as seguintes expressões para se referir aos autis-
tas: “ils sont des personnages plutôt verbeux” e “les autistes s´entedent eux mêmes”. (LACAN, 1975).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A este propósito, Freud (1918, p.211) recomendava: “qualquer que seja a forma que essa psicoterapia
para o povo assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais componha, os seus ingredientes mais efetivos
e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa”.
Em instituições que se dedicam ao tratamento de crianças com transtornos psíquicos, há várias
formas de atendimento que se baseiam na psicanálise. Esse trabalho pretende abrir uma discussão sobre a
transferência institucional, o manejo da transferência neste tipo de tratamento e o lugar dos pais
neste manejo.
São diversas as estratégias de pensamento ensejadas para fundamentar atendimentos que têm
lugar em instituições. Uma parcela significativa delas parte da teoria psicanalítica para fundamentar tais
atendimentos, tanto para defender que sejam feitas intervenções consideradas psicanalíticas quanto para
defender que não. Nesses atendimentos, a psicanálise prevalece tanto na leitura dos casos clínicos quanto
na compreensão dos laços estabelecidos entre agentes institucionais e pacientes.
2. Trabalho com os pais de uma criança: a transferência em questão.
Luiz chega à instituição aos cinco anos de idade, encaminhado devido aos medos e momentos
de desorganização, se descontrolava e chorava muito quando algo não acontecia como ele ‘planejava’.
Anteriormente Luiz já havia sido encaminhado para tratamento pela pré-escola, quando os profissionais
notaram algo ‘diferente’, foi acompanhado por um profissional durante algum tempo.
A direção de tratamento foi pensada pela equipe e pelo profissional referência4, sua inserção em
um grupo terapêutico5, acompanhamento individual e grupo de pais.
No início do atendimento individual, Luiz representava histórias contadas por ele e assim iniciou
a escrita de capítulos, estes capítulos eram representados através de marionetes e narrados a cada sessão.
“...os guardas prendem todas as pessoas da cidade. Havia um menino que era ainda pequeno mas
os dois guardas prenderam e devoraram o menino. O menino chamou o amigo e ele o salvou! Como você se
chama, perguntou o irmãozinho do menino para o amigo: ‘- eu me chamo Bobinho, porque sou bonzinho’!”
Esta era a posição de Luiz no grupo quando iniciou o tratamento e isto durou por um bom
tempo. Nos atendimentos individuais ele foi se ‘soltando’, mas no grupo comportava-se com um “bom
garoto, adequadamente”.
No segundo ano de tratamento, entramos em outro momento do atendimento individual, agora as
histórias não eram mais representadas por marionetes, são filmes de ‘super-heróis’, filmes vistos no cinema,
DVD (Homem de Ferro, Indiana Jones).
O atendimento individual é o espaço onde Luiz representa suas histórias. Nas histórias representadas
por ele, surgem lutas, com personagens cuja coragem começa a aparecer. Ele próprio passa a representar
os personagens do ‘mal’, que tem ‘a força!’
Alguns meses depois, no atendimento individual, ele pede ajuda para ter uma estratégia, relatando
que, todos os dias, ele bate em alguém na escola. Conta que quer brincar com uma amiga em especial, mas
4 O trabalho da referência (institucional) inicia-se com a prática de todas as ações clínicas que dizem respeito à acolhida
do paciente e de seus familiares, do estabelecimento do enquadre e do contrato do tratamento. A partir da escuta, o tra-
balho inicial consiste na acolhida das angústias, expectativas e demandas do pacientes e/ou familiares (em se tratando
da infância). No decorrer do tratamento, cabe à referência institucional estar alerta para surgimento de resistências e
manejá-las... é este profissional que pensará a direção de tratamento, terá a responsabilidade do acompanhamento do
caso e discussão junto com a equipe institucional. (Guglielmetti, 2010)
5 Grupo Mix no Lugar de Vida é um encontro terapêutico entre diferentes posições subjetivas e discursivas. Estes grupos
são compostos por crianças autistas, psicóticas, algumas crianças neuróticas com alguma indicação para estar no grupo
(problema de aprendizagem, inibição intelectual, etc.) e também por crianças abrigadas. Trata-se de produzir não somen-
te posições subjetivas diferentes, mas também entre crianças que ocupam posições discursivas diferentes - as crianças
abrigadas por ex., recebedoras de assistencialismos, ao invés de estar no lugar da infância representante do futuro, está
no lugar de mera conseqüência funesta de sua história de abandono. (Kupfer; Voltolini; Pinto 2010, p.103).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
há outra que está sempre por perto, ele quer exclusividade. Luiz quer se integrar com as outras crianças,
quando fica na posição de ‘dejeto’ ele não suporta.
A posição do analista nos atendimentos individuais é de acompanhamento de sua demanda,
acolhendo, acompanhando as histórias narradas e trazidas por ele, sustentando assim a transferência, o
lugar que ele coloca o analista. Algumas vezes nomeando e sublinhando através das representações, das
histórias trazidas. Em um atendimento, Luiz conta uma história que será representada na sessão por ele e
o analista: tem alguns personagens do ‘bem e do mal’, tem um menino que quer brincar com outros, mas
alguns são do mal e não o deixam brincar, o analista diz (com ênfase): -“ele queria brincar com os meninos.”
Através destas pequenas intervenções e nomeações, o analista sustenta um lugar diferente do
‘dejeto/objeto’ para que ele possa sair deste lugar, para que ele possa construir uma história, a sua própria
história. No grupo terapêutico, Luiz logo no início mostrou um ‘querer’ organizar brincadeiras em grupo e
um ‘querer’ estar com as outras crianças.
As brincadeiras propostas pelo grupo possibilitaram uma estruturação para ele, brincando com
traçados, jogos, até chegar no teatro que ele próprio propõe, mas escrito e representado pelas outras
crianças do grupo.
Alguns momentos de ‘desamparo’ que ocorrem no grupo, tiveram espaço para uma reestruturação
no atendimento individual. Luiz pode aparecer nas brincadeiras no grupo no lugar de potência, lugar
daquele que sabe!
Este lugar de ‘potência’ foi construído nos diferentes lugares que ele circulava e com a mudança
da posição dos pais. No trabalho de escuta destes pais (referência institucional), os pais trazem elementos
importantes do dia-a-dia de Luiz, trazem as dificuldades que Luiz relata para eles, seja na escola, seja no
grupo terapêutico; eles querem entender para ajudar. Quando indagados sobre isto, podem falar, repensar
e reavaliar. Mas este trabalho de escuta foi importante também neste momento do tratamento para
acrescentar ferramentas na construção da direção de tratamento institucional.
Em uma reunião na escola, pudemos constatar mudanças de posição dos pais em relação ao lugar
deste filho. Luiz não era mais visto como impotente mais ao contrário, um menino cheio de possibilidades.
A escola relata que havia iniciado uma atividade de futebol, mas Luiz se dizia cansado e não queria fazer,
quase cedendo, deixando-o no lugar de exceção a escola é advertida pelos pais que Luiz poderia sim fazer.
Hoje, o futebol é algo utilizado muitas vezes por ele no grupo para se apresentar na parceria com outro
menino que faz parte do grupo, possibilitando laços e duplas entre meninos.
Nos atendimentos individuais, a brincadeira se desdobra para o jogo de esconde-esconde. Ele
conta até 10 e o analista se esconde. Ele procura, depois os papéis se invertem, o tempo aumenta, da
contagem até 10 passa para contar até 20.
Ele faz estratégias, ele se esconde em baixo do sofá, na mesma sala onde aquele que conta está.
Quando há o distanciamento para procurá-lo ele vai até o ‘pic’ - pic é o lugar na brincadeira de esconde-esconde
- onde aquele que está escondido pode sair do esconderijo e se ‘salvar’ sem ser pego. Ou seja, é o ‘porto
seguro’ onde não é necessário mais ficar escondido, é preciso chegar antes daquele que o está procurando.
Nesta brincadeira, podemos pensar na construção do Fort-Da, onde ele aparece e desaparece,
contar até 10 ou 20, é o tempo que se leva para desaparecer. Através desta brincadeira, ele faz uma suplência
(Fort-Da), onde não há o simbólico.
Como afirma Quinet (2003, p.18): “Por falta de referência simbólica o sujeito psicótico funciona
no registro imaginário, onde o outro é tomado como espelho e modelo de identificação imediata. Disto
decorrem os fenômenos de projeção, rivalidade, onde identificação e erotização se confundem. O semelhante
é apreendido apenas no registro do imaginário onde a relação especular é a regra”.
Do lugar de ‘dejeto/objeto’, Luiz pôde construir um outro lugar, daquele que cria histórias, que
as escreve, fazendo uma suplência de um simbólico ‘frágil’ onde o imaginário ‘reinava’ para possibilidades
161
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
de estratégias criadas por ele, fazendo face a estes momentos de ‘desamparo’, onde por falta de recursos
simbólicos Luiz caía em um buraco sem ‘fundo’ como se fosse um abismo, sem possibilidades de elaboração.
Passaram-se dois anos desde o início de tratamento, a instituição repensa a direção de tratamento,
o pagamento institucional é colocado em questão pela equipe. A referência institucional marca uma conversa
com os pais para conversar sobre diferentes aspectos. O pagamento institucional é a pauta da discussão.
“Uma análise sem transferência é uma impossibilidade”, constata Freud. É acreditando e
trabalhando neste viés que após algum tempo a instituição pôde repensar a direção de tratamento e a
discussão do valor do pagamento institucional. Voltar ao tema inesgotável da transferência, arma de uma
resistência e alavanca da análise, obstáculo e auxiliar, eis a dupla cara da transferência. Esta é a afirmação
freudiana que em forma de pergunta se formula: “como a transferência pode ser ‘o maior obstáculo’ e
ao mesmo tempo ‘o mais poderoso’ auxílio no tratamento analítico?” Assoun (2006, p. 13)6.
Podemos nos perguntar “Como ocorre a mudança da transferência do estatuto de ‘arma poderosa
da resistência’ ao ‘melhor instrumento da cura analítica?” Esta é a física central da transferência e utilizaremos
este viés para pensar na direção de tratamento institucional para este caso em questão.
Uma idéia forte em Freud é que a transferência é a prova maior dos processos inconscientes em
sua dimensão de conflito. Retomamos o caso em questão e a direção de tratamento.
O investimento financeiro institucional foi pensado a partir da transferência inicial estabelecida,
ainda frágil, através do discurso estabelecido pelos pais dizendo de suas impossibilidades financeiras. Vale
ressaltar que, no histórico institucional, inicialmente os atendimentos terapêuticos acolhiam prioritariamente
as demandas de famílias com poucos recursos financeiros.
Voltando ao novo contrato institucional, o trabalho da referência segue com alguns encontros com
os pais na tentativa de rediscutir o investimento no tratamento, investimento este que será simbolizado
pelo pagamento.
Ao entrar na questão financeira, a impossibilidade aparece a todo vapor. Impossibilidade e impotência
por parte destes pais, ‘não tem recursos, estão atolados de dívidas’. Este trabalho de escuta destes pais
perdurou por algum tempo, o manejo da transferência foi algo de muita discussão em reuniões de equipe.
Os pais de Luiz trazem como direção, a impossibilidade de continuar com o grupo terapêutico
e o atendimento individual, alegando o preço “caro” que seria arcar com estes dois dispositivos neste
momento e impõe uma decisão à referência: ‘atendimento individual ou grupo’? o que não é respondido
pelo imperativo: este ou aquele! Diante deste ‘silêncio’ do analista, eles se posicionam pelo atendimento
individual e a saída de Luiz do grupo.
A direção do trabalho foi o deslocamento da questão: grupo ou individual, para possibilitar um giro
discursivo da impotência, impossibilidade, para ‘comemorar’ a potência destes pais e a potência de Luiz.
Na tentativa de surpreendê-los, através do inesperado, tirando-os da culpa por não poder pagar mais (pois
sabem que pagam pouco e a instituição merece mais; fala deles próprios).
É urgente manejar a transferência institucional que está em jogo, a perda de amor vivenciada por
estes pais, se traduz na ‘desqualificação’ da instituição e a busca da ‘infância perdida’, do passado vivido
quando Luiz foi encaminhado para primeiro tratamento, ainda na pré-escola.
A agressividade dirigida para instituição é recebida por ela sem responder do lugar da ‘guerra’ e
sim acolhendo. Decide-se por não mais ser conivente com o lugar que eles insistiam em ficar, impotentes
como Luiz quando chegou ao tratamento.
O “corte’ produzindo a ‘perda do gozo, possibilitou a família ocupar um outro lugar, lugar da
potência e de possibilidades. Hoje eles continuam freqüentando o grupo de pais, Luiz continua no grupo
6 Tradução livre. ‘Afirmação freudiana’, citado por Assoun em seu livro de bolso: Leçons psychanalytiques sur ‘Le Transfert’.
162
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
terapêutico e pôde reivindicar o seu tratamento individual, pois segundo ele: “eu preciso deste espaço para
pensar em estratégicas com a Marina7 sobre como eu posso me relacionar melhor com as pessoas lá fora”.
De um lugar de impotência, da falta de recursos financeiros, hoje eles continuam o trabalho
institucional, ampliaram os investimentos financeiros, sem culpas. Luiz não está mais na posição de um
“não lugar”, agora cada um tem seu lugar, que seja na instituição ou fora dela.
Para terminar, mas não fechar a questão, gostaria de citar um trecho do texto de Freud (1913),
“Sobre o início de tratamento”, onde ele faz a comparação, famosa, da psicanálise com o jogo de xadrez e
afirma: Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as
aberturas e os finais dos jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade
das jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição deste tipo. (p.164)
É a partir da idéia de uma infinita variedade de lances que a equipe pensa a possibilidade de uma
criança em tratamento na instituição. É a oferta e não a imposição que permitirá que se produza, se não
um pedido, quiçá uma interrogação sobre a possibilidade de um trabalho conjunto. Neste sentido podemos
‘provocar’ as diferentes pessoas envolvidas, permitindo que as certezas a respeito daquela criança dêem
lugar às interrogações, fazendo com que eles passem do estatuto de resposta, para a pergunta: “É possível
tratar esta criança?”
O início de tratamento deve, necessariamente, passar por um tempo de trabalho prévio como o
que Freud (1913) denominou tratamento de ensaio (para indicar um trabalho prévio à análise propriamente
dita) e, posteriormente, Lacan chamou de entrevistas preliminares, assinalando que há um limiar, uma
porta de entrada para esse processo.
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164
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A Transferência
Para compreender o conceito de transferência na contemporaneidade é necessário fazer um recorte
histórico de sua evolução, através das definições apresentadas por Freud. Em 1985 no Estudo sobre Histeria
ele afirma que as representações inconscientes são incapazes de penetrar no pré-consciente, necessitando
então se conectar a representações já pertencentes ao pré-consciente formando uma “conexão falsa” que
erroneamente seria ligado a figura do médico.
Em 1900 Freud reformula o conceito de transferência, ligando-o aos sonhos. Em A Interpretação
dos Sonhos, ele descreve que o deslocamento afetivo de uma representação inconsciente a outra pré-
consciente pode ocorrer quando a representação do analista funciona como resto diurno do sonho, tomando
lugar dos objetos originais, favorecendo a resistência.
A transferência não era vista como parte fundamental da relação analista-paciente para o sucesso
da análise, como ilustra o caso Dora, no qual a transferência é vista como um conjunto de fantasias ou
experiências afetivas passadas que devem ser revividas na relação com o analista, portanto a função da
análise seria pontuar, explicar e destruir estas transferências.
Na A Dinâmica da Transferência em 1912 Freud continua considerando a transferência como a
resistência mais poderosa ao tratamento, ele descreve o desenvolvimento do sujeito a partir dos impulsos
libidinais dizendo que estes se dividem em uma parte da personalidade que fica consciente e outra parte
que se mantêm inconsciente, de forma que esta catexia libidinal insatisfeita irá se dirigir à figura do médico.
Com a descoberta do Complexo de Édipo, Freud descreve que esta libido inconsciente entra num curso
regressivo, ou seja, a força da libido inconsciente se torna mais forte que a consciente, e revive as imagos
infantis, como a imago paterna, do paciente, através da figura do analista.
Um novo olhar referente à neurose de transferência é descrito em uma das conferências de Freud
em 1916, onde o papel da transferência é ainda explicado de acordo com sua relação com a resistência.
Freud descreve que quanto maior a intensidade e persistência da transferência maior a expressão da
resistência, a qual seria dividida em dois tipos: a transferência positiva, carregada de sentimentos afetuosos
e a transferência negativa, que possui sentimentos hostis.
Portanto Freud sustentava como ideal do tratamento a rememoração completa ou o preenchimento
das lacunas do passado infantil, tendo a transferência como resistência a esta completa rememoração
devido ao alto conteúdo emocional inconsciente que é transferido das figuras originais ao analista.
1 Apresentadora do trabalho.Psicóloga pela PUC - São Paulo; Especializanda em Psicanálise da Criança pelo
Instituto Sedes Sapientiae- São Paulo; Integrante Voluntária e Coordenadora de projetos da ONG HABITARE.
[email protected]
2 Doutora pelo Instituto de Psicologia Clínica, USP - São Paulo; Presidente e Coordenadora da ONG HABITARE;
Membro do Departamento de Psicanálise da Criança e do Espaço Potencial do Instituto Sedes Sapientiae – São Paulo
[email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
ser destruído em um determinado momento do percurso da análise. A destruição do analista como objeto
subjetivo é um momento fundamental da análise, mas a disponibilidade do analista de colocar-se no lugar
do objeto subjetivo implica também a capacidade de poder jogar, de viver dentro do espaço potencial.”
(Safra, 1999, pg.99)
Portanto a análise só é possível se houver a capacidade, tanto do analista quanto do paciente, de
vivenciar o espaço potencial, isto é, utilizá-lo como um espaço de co-criação numa verdadeira comunicação
entre ambos ( Winnicott,1971).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Consultas Terapêuticas
No Projeto Consultas Terapêuticas Pais-Bebês: Prevenção e Psicoprofilaxia em Saúde
Mental Infantil, oferecemos atendimento aos bebês e seus respectivos pais e/ou cuidadores3, uma vez
detectados dificuldades no desenvolvimento da criança provenientes de vínculos disfuncionais ou quando
as beneficiárias procuram o serviço espontaneamente, o que caracteriza o caso aqui relatado.
Jiane começou a ser atendida quando sua filha Bela4 já estava com 7 meses, o atendimento foi feito
por uma Psicóloga e uma co-terapêuta estagiária do quinto ano do curso Psicologia. Foram realizados cerca de
40 encontros até ela receber alta, devido a depressão acentuada e a ideação suicida, o atendimento teve de
sair do modelo de 4 encontros. Durante as sessões a estagiária sentava no chão e brincava com Bela, fazendo
comentários e muitas vezes conversando também com a mãe, enquanto a Psicóloga oferecia um escuta mais
atenta a mãe, mas sem deixar de dar atenção a Bela, a qual demandava freqüentemente seu olhar.
Jiane tem cabelos pretos que estavam sempre presos, vestia sempre a mesma calça e independente
do frio usava chinelos, o único aparato que representava uma feminilidade mais delicada eram seus brincos,
usados sempre e alternados, foram referidos por ela como único objeto com o qual ela não conseguia viver sem.
Ao nos apresentar sua filha Bela, observamos uma menina sorridente, branquinha de cabelos
castanhos, que sempre vestia roupas rosas ou roxas combinando e com algum detalhe no cabelo, parecia
que com a filha a delicadeza feminina podia aparecer escancaradamente.
A queixa de Jiane era de estar sempre muito triste e chorosa, pensando muitas vezes em se jogar
debaixo de ônibus, ela relatava que desde que veio do interior de Minas Gerais, numa fuga da família que
a “maltratava” (sic), nunca conseguira se desvincular completamente da família, pois, seu sentimento de
culpa por estar longe e não estar cuidando de sua mãe a afligia sempre.
Jiane é filha do primeiro casamento da mãe, assim que nasceu sua mãe fugiu e se casou com seu
padrasto, com quem teve mais 3 filhos. O padrasto, a chamava de filha como aos outros, mas era muito
violento tanto com os filhos quanto com a mãe. Jiane relatou sofrer ao ver a mãe apanhando, e disse se
sentir obrigada a ajudá-la. Chorosa ela relata que sentia diferença de sua mãe em relação a ela e aos outros
filhos, contou que a mãe sempre tomou medicação pra depressão e não lhe oferecia carinho, mandava
ajudar na casa, a cuidar dos irmãos, e a criticava verbalizando que nada que Jiane fazia era bom o suficiente.
Diante deste sofrimento, a principal atuação foi via “holding”, a fim de oferecer um setting seguro
e acolhedor, o sentimento contratransferencial era de muito carinho, como se a Psicóloga necessitasse lhe
maternar, oferecendo experiências antes não vividas por Jiane, devido as falhas desta mãe debilitada.
Jiane relatou várias tentativas de produzir coisas, a fim de ter uma independência econômica,
de modo que foi de extrema importância que as Psicólogas na transferência pudessem valorizar as
produções de Jiane a ponto de ela trazer trufas feitas por ela, para que provássemos e reafirmássemos
sua capacidade criativa, permitindo então que ela experienciasse algo não acontecido em sua infância
devido a rigidez de sua mãe.
Ao sentir-se segura na relação terapêutica Jiane relatou que engravidou numa tentativa de segurar
o marido, pois este queria um filho e ela desde que viera de Minas Gerais estava muito depressiva, não
conseguindo fazer as tarefas de casa. A partir deste relato pudemos fazer uma relação com suas projeções
de ódio e incapacidade frente a Boneca costurada na Oficina, a gravidez descrita como algo ruim e enjoada
representavam uma gravidez indesejada por ela.
Ao poucos Jiane pode demonstrar o ódio que sentia da filha por tomar tanto seu tempo e o ódio da
mãe por não ter lhe oferecido coisas boas. No fim das sessões quando sua filha ía em busca de seu colo e seio
3 Apesar da proposta ser atender à criança e aos pais /cuidadores, em sua grande a maioria, os atendimentos acontecem
somente com a mãe e o bebê. São diversos os fatores cotidianos que têm impedido os pais de compareceram, e a Habitare
tem se dedicado a refletir sobre eles; em ocasião oportuna, pretendemos apresentá-los e discuti-los.
4 Nome fictício.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Jiane muitas vezes se negava a amamentar a filha por estar com muita raiva, dizia: “estas coisas ruins podem
passar pelo leite” (sic), o que gerou sentimentos de raiva e desconforto nas terapeutas. Esta verbalização
demonstrava como o sentimento de raiva e amor representavam partes cindidas do self de Jiane.
O ódio como Winnicott descreve apareceu para indicar que Jiane agora podia zangar-se frente
as falhas da infância e frente as falhas da análise, que eram relatadas quando uma das Psicólogas faltava,
dando espaço para que o eu verdadeiro passasse a vivenciar a realidade.
Enquanto a estagiária brincava com Bela durante as sessões, Jiane apontou que em casa era
diferente pois, ela não brincava com a filha e queria que esta ficasse quieta brincando sozinha. Sua falta
de modelo e paciência para estar plenamente com Bela representavam seu ódio e parte de sua atuação
repetindo questões transgeracionais. Jiane reconheceu que não poder brincar com sua filha enquanto a
estagiária conseguia, a irritava, como se ela não pudesse oferecer coisas boas à filha, assim como sua
mãe não lhe ofereceu coisas boas. Esta raiva transferencial permitiu que Jiane relatasse esse sentimento e
integrasse sua ambivalência ao seu eu verdadeiro, descrevendo: “parece que temos dois lados diferentes”.
Além do manejo da estagiária com Bela, realizamos também um manejo entre mãe e filha, através
do envolvimento de todas num brincar, fingíamos que éramos alimentadas por Bela, e sentávamos todas
juntar para brincar, até Jiane nos trazer brinquedos que comprara para filha e descrever que conseguia
brincar com sua filha em casa.
Logo Jiane conseguiu colocar Bela na creche possibilitando sua separação da filha, e passou a
procurar modos de se tornar independente, fez cursos e conseguiu um emprego de manicure, até decidir
que já era capaz de trabalhar por si mesma e que atenderia as clientes em sua casa.
Com isto finalizamos o atendimento pontuando como Jiane se tornara uma pessoa completa,
com desejos e capacidade de realizações, o desfecho foi muito importante para que ela pudesse também
relatar sua raiva e tristeza por nós a deixarmos. Neste momento a transferência foi também de extrema
importância para que Jiane pudesse viver a separação de uma forma diferente, ela pode descrever sua raiva,
sua tristeza e insegurança e no último encontro nos trouxe seus planos, nos demonstrando que iria dar
conta de continuar sua existência após esta separação.
Através destes modelos de Intervenção Precoce, tanto na Oficina quanto nas Consultas a existência
de um espaço potencial entre paciente e analista foi fundamental para que a análise acontecesse, e é
nesta acontescência que entra a transferência como possibilitador da paciente viver experiências antes não
acontecidas e de extrema importância para constituição de seu eu verdadeiro, ou seja, para continuidade
de seu desenvolvimento.
Além disso a Oficina em grupo permitiu que ela pudesse projetar aspectos seus de ódio e
insegurança na Boneca e assim relatar seus desconfortos sobre a gestação, podendo desta forma integrar
partes de seu self que não desejavam a gravidez.
Já os atendimentos individuais, inspirados nas Consultas Terapêuticas permitiram que a mãe
revivesse experiências primitivas possibilitadas pelo setting de confiança e pelo “holding” e “handling”
oferecidos pela Psicóloga e pela estagiária. Jiane pode falar sobre suas angustias, seus sentimentos
ambivalentes, de modo que estas partes puderam ser integradas a seu self, diminuindo sua depressão e
fortalecendo o vínculo mãe-bebê.
Este relato de caso permite que demonstremos grande eficácia de nossos projetos em Intervenção
Precoce, permitindo, em sua maior parte, que vínculos patológicos entre pais e bebês não se cristalizem,
favorecendo assim o desenvolvimento saudável da díade.
169
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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170
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Apresentação
Esta experiência clínica foi realizada com uma criança de sete anos, acolhida em uma instituição na
Grande SP, em virtude de maus tratos, negligência e drogadição na família. Os atendimentos psicológicos, com
frequência semanal, ocorrem no contexto institucional desde 2010. Ao longo destes atendimentos, a criança
relata desconhecer a sua história de vida inicial, e revela, portanto um estado confusional sobre si mesma.
Winnicott (1954/1990:173-176) dialoga neste sentido, sobre uma distorção no desenvolvimento
emocional humano, uma vez que a criança afastada de seu lar precocemente não obteve cuidados
suficientemente bons e capazes de sobreviver no tempo.
Diante do quadro apresentado pela criança identificamos sua necessidade básica de integrar no
tempo seu passado e presente e sugere à criança a construir um livro sobre sua história de vida inicial.
Tal intervenção teve como objetivo proporcionar à criança um espaço para que ela vivesse experiências
significativas amparadas por um ambiente sustentador.
Para Safra (2005:79):
“O encontro do bebê com o corpo da mãe devotada dá a ela condições de ter um repertório
imaginativo que o capacitará a elaborar, imaginativamente, as funções corporais. Portanto, as diferentes
funções corporais atualizam as qualidades dos encontros que o bebê teve com sua mãe. Trata-se de um
repertório que é fruto da presença humanizadora do outro. A criança ganha unidade corporal por meio e na
presença do outro, surgindo paulatinamente um corpo psíquico: um corpo cujas funções foram elaboradas
imaginativamente.”
Esse ambiente de devoção e cuidado oferecido pela figura materna é de extrema importância
para que o bebê possa dar início à constituição das bases de self. É neste estádio que o bebê estabelecerá
a separação entre o não-eu e eu e, este cuidado proporcionado pela mãe inspirará ao bebê confiança no
ambiente para caminhar em seu desenvolvimento emocional. De acordo com Winnicott (1971/1975:145-
152), este é o fundamento de espaço potencial.
Ainda: “À medida que o self se constrói e o indivíduo se torna capaz de incorporar e reter lembranças
do cuidado ambiental, e portanto de cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado cada vez
mais confiável.” (WINNICOTT, 1954/1990:137)
Assim, os encontros foram se constituindo por meio da confecção de um livro contendo desenhos
e relatos elaborados pela criança, retratando sua história de vida inicial, auxiliada pela psicóloga que
1 Psicóloga clínica e institucional. Pesquisadora e psicóloga colaboradora do Núcleo de Abrigos do LAPECRI/USP. Membro
do Grupo de Estudos e Práticas Psicológicas em Instituições (GEPPI), onde realiza trabalhos com famílias em processo de
adoção e assessoria psicológica a instituições de acolhimento de crianças e adolescentes. [email protected]
171
AnAis do ii Colóquio de PsiCAnálise Com CriAnçAs A Transferência na clínica com crianças
Histórico
A criança era vista pela instituição de forma alegre, sorridente e obediente, não demandando muita
atenção das cuidadoras para com ela. nos encontros iniciais dos atendimentos psicológicos apresentava
retraimento, ansiedade, estados de excitação e comportamentos obsessivos. Carolina2 está inserida numa
prole de oito irmãos, sendo que deste, três encontram-se em acolhimento na mesma instituição.
Desenvolvimento
10 Encontro: Ligando os pontos
Carolina decide brincar de escolinha, escolhe que a psicóloga será a professora e ela a aluna,
solicitando que a psicóloga faça um desenho de liga pontos. Os pequeninos círculos feitos são unidos por
Carolina, porém alguns intervalos entre os círculos que ficam sem conexão que só se unem após a psicóloga
identificar para a criança estas rupturas. Carolina decide pintar o desenho solicitando a ajuda da psicóloga.
Durante este encontro Carolina relata sobre a chegada de um irmão à instituição e, psicóloga e
criança falam sobre a composição familiar. A criança se confunde ao falar da própria história (não sabe dizer
exatamente quantos irmãos possui). A partir desta conversa a psicóloga sugere a criança montar um livro
com sua história.
Análise do 10 encontro
neste encontro, há uma comunicação da criança da possível falha ambiental. As rupturas
do desenho, os pontos que não foram unidos, impedem que o desenho se complete não podendo ser
preenchido com o colorir. A criança experimenta a experiência de continuidade quando o desenho pode ser
é completo e preenchido. Evidencia-se também a necessidade da criança de compor e compreender a sua
história de vida.
2 Nome fictício.
172
AnAis do ii Colóquio de PsiCAnálise Com CriAnçAs A Transferência na clínica com crianças
20 Encontro: O desconhecido
A montagem do livro é retomada e sugere-se que a criança desenhe-a quando nasceu. Carolina
solicita que a psicóloga também faça o desenho, porém em uma folha separada. Carolina mostra dificuldades
em desenhar o que havia sido sugerido e, é auxiliada, neste momento, pela psicóloga que solicita que a
criança desenhe como ela imagina ser quando era um bebê. Carolina comenta sobre as diferenças dela
e da psicóloga. O encontro segue-se com outro desenho, sugerido desta vez pela criança. A psicóloga faz
algumas perguntas à Carolina referente à sua família e ao local em que vivia. Carolina relata somente parte
do nome de sua mãe e não sabe falar o nome do pai. A psicóloga intervém e informa para a criança dados
contidos no prontuário, dos quais estava em posse, fornecendo o nome do pai e da mãe. A criança solicita
que a psicóloga informe sobre todos os seus dados.
Desenho do nascimento
Fig. 2: Produção gráfica 1 de Carolina no 20 encontro. Fig. 3: Produção gráfica 1 da psicóloga no 20 encontro.
Desenho da casa
Fig. 4: Produção gráfica 2 de Carolina no 20 encontro Fig. 5: Produção gráfica 2 da psicóloga no 20 encontro
173
AnAis do ii Colóquio de PsiCAnálise Com CriAnçAs A Transferência na clínica com crianças
Análise do 20 encontro
Há um encontro vivo entre criança e a psicóloga no atendimento. Também pode ser
observada, a falta de registros internalizados da sua própria história, pois desconhece o nome da mãe e
do pai e anseia saber o que está no prontuário anotado sobre ela. A criança também manifesta um estado
confusional quando indagada sobre suas lembranças.
30 Encontro: Um corpo
Carolina solicita fazer o banheiro da casa e necessita da ajuda da psicóloga. A princípio, a psicóloga
estimula a criança dizendo que ela já havia feito aquele desenho outras vezes. Entretanto, após várias
tentativas da criança sem sucesso, a psicóloga realiza o desenho. Carolina conclui o desenho e, em seguida,
faz outra solicitação. A psicóloga faz o desenho em outra folha separada a da criança. Carolina apresenta
novamente a dificuldade em desenhar. A psicóloga auxilia Carolina colocando um boneco de pano sobre
uma folha em branco sugerindo que ela o contornasse. O boneco é contornado e Carolina o conclui
acrescentando o delineamento da cabeça e os mamilos livremente. A psicóloga incentiva Carolina a fazer o
mesmo contorno na folha em que estava desenhando. Carolina, com sucesso, desenha o corpo, acrescenta
a cabeça e o colore.
Desenho do banheiro
Fig. 6: Produção gráfica de Carolina no 30 encontro. Fig. 7: Produção gráfica da psicóloga no 30 encontro.
Análise do 30 encontro
A criança apresenta fragmentos do corpo, pois tem muita dificuldade para elaborar desenho de
um corpo, necessitando de auxílio para alcançar a capacidade de elaboração imaginativa. Esse encontro
possibilitou a experiência de constituição das bases do self.
174
AnAis do ii Colóquio de PsiCAnálise Com CriAnçAs A Transferência na clínica com crianças
Fig. 8: Produção gráfica 1 de Carolina no 40 encontro. Fig.9: Produção gráfica 1 da psicóloga no 40 encontro.
Fig. 10: Produção gráfica 2 de Carolina no 40 encontro. Fig. 11: Produção gráfica 2 da psicóloga no 4 0 encontro.
Análise do 40 encontro
A criança, neste encontro, pode experimentar a constituição da própria história de vida amparada
por um ambiente sustentador. A diferenciação é experimentada e, há uma apropriação de sua própria história
de vida, podendo até habitar o espaço da casa. Desta forma há um direcionamento para a constituição das
bases do self.
175
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Considerações finais
Percebeu-se o quanto era necessário a criança viver com a psicóloga experiências primitivas do
seu desenvolvimento, na continuidade do tempo, para seguir com a construção das bases do self, o qual
foi possível a partir da montagem do livro com histórias se suas vivências reais. Este espaço terapêutico
adaptado às necessidades da criança, ou seja, o ambiente de holding favoreceu com que a criança, no
contato com sua história de vida, pudesse experimentar lembranças com a figura materna, identificando
além da privação vivida, o regaste de aspectos bons e amorosos com o objeto. A criança manifesta recursos
emocionais mais evoluídos, deixando o estado confusional e integrando no espaço e no tempo sua história
de vida, a qual se apresentava fragmentada.
A partir desta experiência, concluímos a importância de localizar no espaço e no tempo a história
de vida da criança que se encontra em situação de acolhimento e, que, portanto, sofreu rupturas com o lar
de origem. Consideramos ainda eficaz a intervenção psicológica proposta realizada no contexto institucional.
Referências Bibliográficas
SAFRA, Gilberto. A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Idéias e Letras, 2005.
WINNICOTT, D. W. (1954) Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto analítico. In ______.
Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 374-92.
______. (1954) Parte IV: Da teoria do instinto à teoria do ego. Integração. In ______. Natureza Humana. Rio
de Janeiro: Imago, 1990. p. 136-42.
______. (1954) Parte IV: Da teoria do instinto à teoria do ego. O ambiente. In ______. Natureza Humana. Rio
de Janeiro: Imago, 1990. p. 173-80.
______. (1960) Distorções do ego em termos de falso e verdadeiro “self”. In ______. O ambiente e os processos
de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983. p. 128-139.
______. (1971) O lugar em que vivemos. In ______. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p.
145-52.
176
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
A partir do tema da transferência na clínica psicanalítica, é possível pensar em vários aspectos a
respeito da interação que o analista e a criança estabelecem entre si. No estudo teórico dessa prática, temas
como o desamparo e a contratransferência são importantes na reflexão sobre a atuação clínica.
O presente trabalho pretende discutir esses dois conceitos que, desde Freud, permeiam vários
estudos teóricos e a atuação terapêutica, inclusive com crianças. As observações aqui apresentadas partem
de uma experiência específica, adquirida no trabalho realizado no Projeto de pesquisa e atendimento a
crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual – CAVAS, sediado no Departamento de Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Atendemos no Projeto CAVAS algumas crianças provenientes de núcleos familiares nos quais
a negligência, a violência e os maus-tratos perpassam as relações entre os membros. Nesses casos, a
necessidade de ser amado contrasta-se com um ambiente de desatenção. Quais as consequências dessas
vivências para a análise e para o estabelecimento do laço transferencial com o terapeuta?
Ao se deparar com o estado de desamparo de uma criança que sofreu violência sexual, o analista
tem que lidar com questões contratransferenciais, já que seu próprio psiquismo pode ser inundado por
afetos relacionados aos traumas do paciente. Como lidar com suas reminiscências e, ao mesmo tempo, com
questões práticas da realidade de seu paciente, considerando seu papel ético perante àquele ser que sofre
ou sofreu abusos e negligências?
Para refletir sobre essas questões, este trabalho se apoiará em alguns conceitos freudianos
que podem subsidiar o estudo do desamparo e da contratransferência. Essas reflexões também estarão
pautadas em exemplos clínicos. Assim, pretende-se compreender melhor fenômenos presentes na clínica
psicanalítica com crianças.
1 Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pelo segundo ano, bolsista de
extensão no Projeto de pesquisa e atendimento a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual – CAVAS/UFMG
177
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-
lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico,
então estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a
criança durante o resto de sua vida. [FREUD, 2006 (1926), p. 151]
Esse desamparo inicial acompanha todos os seres humanos e faz com que seja instigada em
cada um a necessidade de ser amado, de perceber o afeto que vem do outro, de ser protegido dos perigos
externos. Isso acompanha os indivíduos por toda a vida e faz com que esse estado possa ser revivido em
diversos outros momentos.
A Hilflosigkeit de Freud diz respeito à condição de ‘ausência de ajuda’, como possibilidade efetiva
da vida psíquica. Para ele, o fato do bebê nascer imaturo e indefeso, torna-o dependente do outro para
sobreviver. O bebê precisa da ajuda de um outro, de uma ‘ação específica’, para pôr fim à tensão interna
que experimenta. É o desamparo original, fundante e estruturante do psiquismo. A idéia do desamparo
(Hilflosigkeit) desenvolvida ao longo da obra freudiana, refere-se à condição de existência do sujeito no
mundo (na civilização) que é apoiada numa condição de desamparo do psiquismo. (MENEZES, 2008, p. 25)
É essa a maneira inicial como o sujeito se encontra no mundo e essa condição perpassa toda
sua vida. Em um primeiro momento, a criança precisa que sua tensão interna, sua excitação pulsional, seja
diminuída com a ajuda de um cuidador. Posteriormente, ao longo da vida, o indivíduo tem que encontrar
outras formas de lidar com afetos que o remetem ao desamparo e que fomentam uma angústia calcada
nesse estado original.
Esse conceito tem diversas faces ao longo da obra de Freud. Menezes discorre sobre elas e as
condensa da seguinte forma:
(...) podemos dizer que a noção freudiana de Hilflosigkeit implica uma dimensão de desamparo,
independentemente de sua concreta efetivação numa situação traumática. Há, desse modo, a condição
de desamparo, fundante e estruturante do psiquismo relacionada, portanto, ao funcionamento da vida
psíquica, relativa à linguagem na sua dimensão simbólica (somos seres de fala); e a situação de desamparo,
como concretização dessa condição instalada na situação traumática, relativa ao excesso pulsional que não
pôde ser simbolizado. (MENEZES, 2008, p. 91)
Todos os seres humanos são constituídos a partir de tal condição, que estrutura o psiquismo e
a inserção do ser nas relações que estabelecerá no mundo. Já a situação de desamparo é posterior, está
relacionada a um trauma, a um excesso pulsional que transborda, que remete o indivíduo àquela situação
original, mas que exige dele novas maneiras de lidar com seus afetos.
O desamparo originário acompanhará o homem por toda a vida e possui amplo leque de
consequências e de possibilidades de discussão. Freud, ao falar sobre a posição do homem em relação à
civilização destaca que “(...) essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade é
somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como
crianças de tenra idade, em relação a nossos pais.” [FREUD 2006 (1927), p. 26]
O desejo de ser amado e protegido é algo que perpassa todos os homens. Há diferentes formas
de expressar esse desejo e lidar com as reminiscências de tal condição infantil. Em cada um esse afeto
emergirá em diferentes situações e, com base na história de vida individual, haverá distintas maneiras de
reviver esse estado.
Menezes reflete sobre as vicissitudes do desamparo e sobre sua presença no contexto da clínica
psicanalítica.
Para viver, as pessoas criam possibilidades afetivas no enfrentamento da Hilflosigkeit, ou seja,
procuram destinos para seu desamparo: sejam destinos criativos (sua aceitação), sejam destinos funestos
(seu evitamento). Esse aspecto nos remete à clínica psicanalítica, tendo em vista tratar-se de uma experiência
que leva o sujeito em face de seu desamparo, tentando, portanto, lidar com a condição de desamparo.
(MENEZES, 2008, p. 92)
178
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
(...) a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente
não é inteiramente sem perigo. Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos
subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos
abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratranferência.
[FREUD, 2006 (1915) p. 182]
Na prática clínica do projeto, percebe-se que, em alguns casos, as crianças não conseguem localizar
o que é uma atitude de amor. Estão tão habituadas a serem invadidas, que essa forma de se relacionar pode
ser a única que conhecem. Muitas delas não sabem diferenciar o que no comportamento de um cuidador é
benéfico ou maléfico a si mesma. Em algumas crianças, é possível perceber uma precariedade em distinguir
nos adultos os comportamentos de carinho dos abusivos. Um caso que exemplifica essa situação é o de
uma criança que foi abrigada em uma instituição para ser afastada do abusador, e questionou a cuidadora
do abrigo, quando esta tocou seus genitais durante o banho, comparando esse ato com o abuso que sofria.
Essa dificuldade em separar o que é cuidado do que é abuso impulsiona ainda mais os sentimentos
ambivalentes da criança perante o abusador. A criança pode sentir, ao mesmo tempo, raiva do que ele
lhe fez e saudade de conviver com ele, além de responsabilidade e culpa. Nas crianças abrigadas, essa
ambivalência encontra ainda mais força, pois para cessarem os abusos são afastada de seu lar, revivendo,
mais uma vez, um estado de desamparo. Em um outro caso atendido no projeto, um adolescente preferiu
desmentir a denúncia que havia feito, pois não queria morar em um abrigo, preferia morar com a mãe
agressora do que perder o mínimo amparo que ela lhe oferecia.
Na clínica, recebem-se pacientes que precisam de um auxílio para simbolizar o excesso pulsional,
para elaborar o trauma. Através do lúdico, lida-se com aspectos concretos e simbólicos do trauma, dando à
criança um espaço onde, quando ela se sentir confortável para isso, ela possa trabalhar as questões que a
afligem. Para o setting analítico ela pode levar a cena do abuso em si e outras questões circundantes àquele
trauma, como, por exemplo, suas relações familiares.
A neurose de transferência estabelecida pela criança é, muitas vezes, construída a partir de seu
estado de desamparo, de desconfiança. Essa é mais uma especificidade dessa clínica, pois a criança precisa,
em sua relação com o terapeuta, estabelecer vínculos que dêem a ela segurança de que aquele é um adulto
diferente do que cometeu o abuso e a negligenciou.
Uma outra questão que vem à tona quando se atende uma criança abusada sexualmente é o papel
ético do terapeuta perante aquele ser que sofre de abusos e negligências. Muitas vezes há um desamparo
tanto psíquico quanto real no próprio profissional, que precisa buscar recursos em outros campos para
promover a si mesmo amparo psíquico e também legal, pois são casos vinculados à rede de apoio a vítimas
de violência e ao campo jurídico.
Em muitos casos, a atuação do terapeuta também é ampliada, indo além do que ocorre no
consultório, pois ele tem que lidar com questões práticas, averiguar com mais detalhes como estão as
relações sociais daquela criança, como está seu ambiente familiar e se ainda há contato com o abusador.
Essas histórias que comovem quem se envolve com elas suscitam no terapeuta diversos
sentimentos provenientes de sua própria história, de seu próprio desamparo, e reações contratransferenciais
perpassam os atendimentos. França (2009) explora diversas questões a respeito da contratransferência no
atendimento de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Podemos relacionar suas reflexões ao
conceito de desamparo.
Uma hipótese seria a de que, ao se deparar com o estado de desamparo de uma criança que
sofreu abuso sexual, o terapeuta tem seu psiquismo inundado por afetos relacionados aos traumas do
paciente, enfrentando questões que remetem aos seus próprios momentos de amparo e desamparo.
É, assim, imprescindível que o terapeuta compreenda esse fenômeno analítico, podendo, então,
buscar diferenciar o que vem do paciente e o que vem dele mesmo. O desamparo da criança pode tocar
o desamparo do profissional, mas é preciso que este reconheça o quanto de si mesmo está implicado na
situação analítica. Assim, é possível trabalhar com pacientes em situações extremas, de forma mais eficaz e
condizente com sua realidade psíquica e social.
180
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
FRANÇA, C. P. (Org.) Perversão: As engrenagens da violência sexual infantojuvenil. Rio de Janeiro: Imago,
2010. 188 p.
FREUD, S. As Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica. Edição Standard Brasileiras das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XI. p. 147-156.
FREUD, S. Observações sobre o Amor Transferencial. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XII. p. 175-195.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XX. p. 81-171.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. p. 13-63.
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XXI. p. 67-148.
MENEZES, L. S. Desamparo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. 126 p.
181
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Na proposta de intervenção precoce, atende-se ao mesmo tempo crianças pequenas e seus pais,
de forma a oferecer um espaço em que as angústias de pais e bebê possam ser expressas e trabalhadas.
Nesta modalidade de trabalho as intervenções realizadas se baseiam no discurso verbal dos pais e também
no brincar do bebê, integrando ambas as formas de comunicação num rico diálogo entre terapeutas, pais
e bebê.
Através da ilustração de um caso clínico atendido no Ambulatório de Pais e bebês da UNIFESP –
Hospital São Paulo, buscaremos demonstrar tal trabalho de intervenção precoce e evidenciar dinâmicas da
transferência no trabalho das relações iniciais entre pais, bebês e terapeutas.
Apresentaremos o caso de Michael, um bebê de um ano e cinco meses, e seus pais, atendidos
em cinco sessões de Intervenção Precoce nas Relações Inicias de Pais e Bebês. Pretendemos apresentar o
caso, explicitar o caminho percorrido pela família ao longo das intervenções, apontando a queixa explicita e
o trajeto até à compreensão da queixa latente, as relações transferências e contra-transferenciais que foram
se construindo durante os atendimentos, as trocas conscientes e inconscientes durante as sessões entre
família e terapeutas, buscando refletir sobre o papel da transferência numa modalidade de atendimento em
que o terapeuta busca integrar aspectos dos pais e bebês.
Pretendemos, neste trabalho, refletir sobre o manejo clínico a partir das teorizações a respeito das
funções anti-traumáticas do objeto primário, articulando-as com o conceito de trauma psíquico. Iniciaremos
a discussão com as contribuições de Winnicott sobre o desenvolvimento da criança, e abarcaremos as
elaborações teóricas a respeito das funções anti-traumáticas do objeto primário, utilizando também as teorias
de Klein e Bion. A partir do conceito de trauma psíquico faremos uma breve reflexão acerca da transferência
na prática clínica e a função do analista, considerando nossa experiência no Projeto CAVAS/UFMG4.
Donald Woods Winnicott é um dos psicanalistas que mais valorizou o início da vida enquanto
momento em que se organizam os pilares emocionais e psíquicos, na tentativa de se constituir a subjetividade
e singularidade de todo indivíduo. Seguindo algumas das premissas de Klein (ANDRADE, 2010), de que o bebê
nasce clivado e seu ego se configura ao longo dos primeiros meses de vida, ele também sustentou que a mãe
emprestava provisoriamente seu próprio ego como suporte para o bebê, garantindo-lhe as condições ideais
para que suas partes fragmentadas se unissem, propiciando, assim, o desenvolvimento psíquico da criança.
Winnicott lembrava-nos que, se na vida intra-uterina o bebê depende completamente da provisão
física da mãe viva, inclusive em termos biológicos, após o nascimento sua dependência permanecerá por
um período relativamente longo, exigindo muitos cuidados. O autor faz uma distinção entre a dependência
absoluta e a dependência relativa: na primeira, o bebê não possui autonomia e lhe é imperceptível esta
condição (WINNICOTT, 1979/2007). No entanto, o autor atribuía a tal estado uma característica paradoxal,
já que, do ponto de vista psicológico, o bebê é dependente, mas alguma independência lhe é conferida
na medida em que ele possui o que é herdado, como as tendências patológicas imutáveis e os próprios
processos de maturação em potencial, (que compreendem o desenvolvimento do self, do ego, a sequência
histórica do id, e o surgimento das defesas egoicas em relação aos instintos).
No outro período descrito por Winnicott, o da dependência relativa, o lactente tem conhecimento
de sua sujeição, e vai se adaptando às progressivas falhas maternas, ocorridas no exercício dos cuidados com
o bebê, seja pelo fato da mãe não conseguir interpretar bem as necessidades deste, ou por não atendê-las
em tempo satisfatório. Este processo acarreta uma desadaptação gradativa que contribui para acelerar o
desenvolvimento do lactente, sendo esta a recompensa deste estágio. Em contrapartida, a importância
do estágio de dependência absoluta se dá na medida em que garante a continuidade e estabilidade dos
processos de desenvolvimento do lactente (WINNICOTT, 1979/2007).
1 Agradecemos à orientação cuidadosa e inspiradora da Professora Cassandra Pereira França, e também às colegas do
PROJETO CAVAS/UFMG, Liliane Camargos e Larissa Bacelete, pela leitura prévia do texto e colaborações com nossos estudos.
- Trabalho realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais, FAPEMIG, através de
bolsas de Iniciação Científica.
2 Acadêmica do nono período do curso de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É bolsista
de Iniciação Científica no Projeto Cavas/UFMG. [email protected]
3 Acadêmica do último período do curso de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. É bolsis-
ta de Iniciação Científica e realiza atendimentos clínicos no Projeto CAVAS/UFMG. [email protected]
4 Projeto de pesquisa e extensão do Departamento de Psicologia da UFMG, através do qual atendemos crianças e
adolescentes vítimas de abuso sexual na clínica social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A mãe (objeto primário), por sua vez, torna-se totalmente identificada com seu bebê recém-
nascido (WINNICOTT 1958/2000), período chamado pelo psicanalista de preocupação materna primária,
situação paralela às dependências absoluta e relativa do bebê, e que é progressivamente perdida nos meses
seguintes ao nascimento. Isso acontece à medida que o lactente adquire autonomia, ainda que lentamente
e em níveis mínimos. A identificação com o bebê confere o título à mãe de “suficientemente boa”, isto é,
devotada a ele (WINNICOTT, 1949 apud MOREIRA, 2007), o que, por consequência, faz com que perceba as
necessidades do bebê naturalmente, sem precisar pensar muito sobre elas. Estas necessidades exigem todos
os cuidados básicos e vitais, tais como: mudar a posição do bebê, acariciá-lo, segurá-lo ao colo, e alimentá-
lo sensatamente, considerando este ato para além de uma satisfação instintual (WINNICOTT, 1979/2007).
Todos esses cuidados maternos que envolvem suporte e acolhimento, como segurar, olhar, acariciar
e alimentar o bebê foram vinculados por Winnicott (2001 apud POMMÉ, 2008) a função de holding. Esta
função compreende a veiculação de uma série de comportamentos que fornece à criança a sensação de
apoio e proteção, tanto física quanto psicológica, permitindo que ela explore o ambiente que a cerca com
segurança e confiabilidade, constituindo um ego coeso e independente. O holding é um exemplo das várias
funções anti-traumáticas que o objeto primário pode exercer. Outro tipo de cuidado desempenhado pelas
mães suficientemente boas sem que elas se deem conta, é a renúncia de seus próprios interesses em prol
das necessidades do lactente, garantindo-lhe um ego bem estruturado (WINNICOTT, 1979/2007).
O psicanalista britânico Wilfred Bion descreve uma relevante função anti-traumática, a qual
denomina de continência: nela, a mãe acolhe e permite que seu interior seja invadido por cargas emocionais
do bebê através do processo de identificação projetiva, descrito por Klein em 1946 (RIESENBERG-
MALCOLM, 2004). A continência propicia melhor manejo das ansiedades do bebê, tarefa desempenhada
pelo ego materno, mais íntegro e hábil para simbolizar tais conteúdos. Dando sequência à continência, Bion
denominou de rêverie (ZIMERMAN, 2004 apud BULHÕES, 2010), o trabalho de conter as fortes cargas de
afeto do bebê, metabolizá-las e, devolvê-las a ele de modo que sejam mais agradáveis e compreensíveis.
Uma das consequências mais importantes destas funções para o bebê é a origem e desenvolvimento
da capacidade de simbolização decorrente da continência das suas identificações projetivas feita pela mãe,
e da sua própria introjeção não só dos conteúdos projetados e metabolizados por este seu continente, mas
também de uma parcela da própria capacidade de rêverie materna (CINTRA, 2003).
O medo de morrer é a feição mais aflitiva das angústias do lactente, e este conteúdo é, também,
frequentemente projetado no objeto materno. Esse mecanismo gera uma grande carga de ansiedade na
criança, que reconhece o teor destrutivo de suas projeções, e o perigo de direcioná-las ao objeto materno,
com o qual se identifica (KLEIN, 1930/1970). A ansiedade originada desta troca conflituosa de introjeções
entre mãe e filho é, para Klein (1930/1970), fundamental para o processo de simbolização. Em sua
apresentação do caso clínico de Dick 5 , de quatro anos, Klein aponta que o desenvolvimento do processo
de simbolização depende da ansiedade existente nessa relação, porém frisa que uma ansiedade excessiva,
ocasionada talvez pela dificuldade da mãe em exercer a continência, pode paralisar o desenvolvimento de
tal processo. Dessa forma, Klein (1930/1970) aponta que a primeira relação objetal é fundamental para as
relações posteriores, e, portanto, um desarranjo nessa etapa pode resultar em problemas de simbolização
para o infante 6 .
5 O caso clínico é descrito por Klein no texto A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego (1930),
no qual a autora discorre sobre o desejo sádico-oral, a ansiedade gerada por tal desejo, o processo de identificação e o
desenvolvimento do simbolismo. O simbolismo, no referido texto é apresentado pela autora como fundamento de toda
fantasia e sublimação.
6 No que tange a clínica do Projeto CAVAS/UFMG, temos um ponto nodal relacionado aos processos de identificação
projetiva e as funções anti-traumáticas. Segundo Camargo (2002) é a possibilidade de simbolizar que permitirá ao sujeito
sair do “modo único de funcionamento psíquico em que introjeções balanceadas estão impedidas ou são muito precárias”
(p.140). Segundo ela, o sujeito que permanece nesse modo, perpetua a alternância nas posições vítimas/agressor e também
os próprios fenômenos violentos e abusivos (p.140).
184
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Podemos perceber que, diante das informações aqui citadas, segundo a perspectiva winnicotiana,
[...] é a tendência inata no sentido da integração e do crescimento que produz a saúde e não a
provisão ambiental. Ainda assim, é necessária provisão suficientemente boa, de forma absoluta no princípio
e de forma relativa em estágios posteriores, no estágio do complexo de Édipo, no período de latência, e
também na adolescência. (WINNICOTT, 1979/2007, p. 65)
Sendo assim, a provisão feita pela mãe de um ambiente que propicie a maturação emocional e
a saúde mental da criança, isto é, o fornecimento de condições suficientemente boas, somada ao impulso
de vida advindo da mesma (no sentido da constituição da personalidade, da independência, de habitar
seu próprio corpo e apreciar suas funções e ao mesmo tempo consentir limites corporais dados pela pele,
distinguindo eu de não-eu), fazem com que ela se desenvolva.
Ao se propiciar uma adaptação suficientemente boa às demandas do bebê, ele estará menos
sujeito às suas próprias reações aos fatores que sirvam de intrusão a este ambiente, advindos do externo.
Do contrário, a força da criança em direção à vida se represa dentro dela mesma e tem o poder de destruí-la
(WINNICOTT, 1979/2007). Logo, não se pode dizer que a falha materna provoca diretamente interrupções
na linha de desenvolvimento do lactente, causando traumas, mas as reações do bebê às intrusões em seu
ambiente de cuidados, ou seja, os seus excessos pulsionais, o fazem. Com um ego ainda imaturo e em
formação, o bebê não reconhece os acertos da mãe e tão pouco suas falhas, mas estas são sentidas como
uma ameaça de aniquilação ao seu próprio eu (WINNICOTT, 1958/2000).
Com isso queremos dizer que, considerando a origem interna e externa do trauma, tomamos esse
conceito como uma efração que advém de um evento ocorrido no ambiente, mas também como uma reação
do infante ao seu próprio excesso pulsional, que ele não consegue manejar, e nem possui mecanismos para
lidar com tal carga de energia. Ressaltamos ainda que, de acordo com Cintra (2003), sabe-se que o trauma
possui um caráter tanto estruturante quanto desestruturante e que a própria relação mãe-bebê é, em si,
causa de trauma e intrusões. Sendo assim, caberá ao objeto primário desempenhar um duplo papel que
tente não só evitar e atenuar possíveis traumas, mas também que procure promover o equilíbrio entre os
seus próprios potenciais traumatizantes por meio das funções anti-traumáticas.
É possível que pensemos num paralelo entre a relação mãe-bebê e a de um tratamento psicanalítico,
e, como proposto por Winnicott (1979/2007), o ponto em comum entre as duas é a dependência, fazendo-se
presente não só no início da vida, mas também, em menor ou maior proporção, no laço transferencial clínico.
Uma vez que esta dependência existe em função dos cuidados necessários em cada caso, uma compreensão
a respeito dos traumas psíquicos e das funções anti-traumáticas – coerentemente atribuídas não só ao objeto
primário, mas também ao analista – se faz essencial para o manejo da transferência na clínica psicanalítica.
Ao tomarmos a dependência também como parte do contexto analítico voltamos o nosso olhar para
outro personagem externo: o analista. E de acordo com Winnicott (1979/2007), o que se busca ao apostar
na ideia de que o analista deve ser treinado não é nada mais do que um analista suficientemente bom, o que
segundo sua concepção deveria, além de ser empático, ter desenvolvido a capacidade de oferecer holding,
continência e rêverie ao analisando, tal qual uma mãe suficientemente boa o faz em relação a seu lactente ou
sua criança. Quando da introjeção do lactente destas capacidades desempenhadas pela mãe, já apresentada
anteriormente, podemos pensar que muito do que o analista oferece é advindo do que ele também recebeu
em sua primeira infância, na etapa de dependência do objeto primário, enquanto uma outra parte provém de
sua experiência enquanto paciente, em sua própria análise. A relação transferencial na análise, assim como
a relação mãe-bebê, possui um duplo viés: é traumática, sendo tanto desestruturante quanto estruturante.
Assim, ter tido uma provisão materna satisfatória nos primórdios do desenvolvimento psíquico, e ter passado
por um processo analítico produtivo permitem que o terapeuta seja hábil em possibilitar a revivescência de
um trauma do paciente7, fazendo-o adquirir um caráter estruturante.
7 Sobre a importância da revivência das experiências traumáticas das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual,
recomendamos a leitura de FRANÇA (2010a) e FRANÇA (2010b).
185
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Como exemplo das funções anteriormente descritas de continência e rêverie, tomemos um dos
casos acompanhado no Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG, de uma criança de cinco anos, encaminhada
pela escola por queixas de agressividade. De acordo com a família, outros sintomas apareciam no cotidiano
do infante: angústias geradoras de insônia, choro excessivo, aparentemente sem motivo, o que demandava
continência, que nem sempre podia ser ofertada nesses momentos. Aos dois anos de idade, a criança e um de
seus irmãos possivelmente presenciaram o assassinato do pai. Após este episódio, a criança, que antes vivia
com sua mãe, passa a viver com a avó paterna, que, fragilizada pela perda do filho, não parecia ter condições
de acolher as ansiedades do neto referentes à morte do pai, não realizando a função de ego auxiliar. Desde
as sessões iniciais, a terapeuta pôde experimentar as ansiedades da criança, e foi capaz de conter e suportar
os conteúdos nela introjetados, diminuindo a persecutoriedade destas cargas (através da metabolização do
conteúdo), e posteriormente pôde devolvê-las à criança, para que ela introjetasse a experiência modificada.
Nesse ponto, de acordo com Camargo (2002), podemos dizer que os pacientes (assim como os bebês),
introjetam não apenas o conteúdo processado pelo analista (ou pela mãe) e devolvido através da função de
rêverie, mas introjetam também a “função de conter”, que posteriormente, propiciará melhores condições
ao próprio sujeito de lidar com suas ansiedades. Através desses processos, a criança pôde se expressar de
melhor forma, conseguindo falar sobre determinados temas enquanto, paralelamente, a família relatava
melhoras significativas em seu cotidiano. Ao final de uma das sessões, a criança diz à terapeuta: “eu não
matei meu pai”, mesmo caracterizada por uma carga alta de angustia, esta sessão parece ter sido menos
terrível para o paciente, que conseguiu expressar sua ansiedade por outro método que não apenas o da
identificação projetiva, sendo tal modificação fundamental para suas relações objetais.
Percebemos através dos atendimentos clínicos, supervisões e estudos teóricos realizados no
Projeto CAVAS/UFMG que uma competência de extrema importância para o analista relaciona-se com a
capacidade de tomar para dentro de seu psiquismo, sentimentos e pensamentos que os pacientes não
conseguem suportar, e de transformá-los em algo mais tolerável, que possa ser pensado pelo paciente
(holding/rêverie/continência), através da introjeção da experiência modificada (RIESENBERG-MALCOLM,
2004). Ou seja, entendemos como positiva uma condição em que o analista possa ser “emocionalmente
afetado pelo paciente”, e possa transformar “suas próprias reações em compreensão para o paciente”
(RIESENBERG-MALCOLM, 2004, p. 59). Esse somatório das funções é percebido de maneira mais adequada
quando estamos familiarizados com as teorizações a respeito das funções anti-traumáticas do objeto
primário.
No tocante ao encargo do objeto primário de atenuador do trauma, percebemos que muito deste
desempenho está diretamente ligado à qualidade do ambiente proporcionado ao bebê, juntamente com as
funções anti-traumáticas que lhe são particulares. Tais condições também são fundamentais no contexto de
um setting analítico, na tentativa de ofertar um ambiente suficientemente bom, passível de atenuar efeitos
traumáticos para o aparelho psíquico do paciente de maneira equilibrada.
Avançando um pouco nas formulações de Melanie Klein, Bion aponta que um dos objetivos da
identificação projetiva pode ser o de “introduzir no objeto um estado mental, como meio de comunicar-lhe
o referido estado” (CAMARGO, 2002, p.133), sendo que, às vezes, esta é a única forma de comunicação
que o paciente encontra. Ainda segundo o autor, a análise pode ser uma oportunidade para que o sujeito
possa exercer “um mecanismo de que havia sido privado”, e por isso, nas situações analíticas em que as
identificações projetivas ocorrem, o analista pode ter uma “sensação de presenciar uma cena extremamente
antiga” (BION, 1988, pp.95-97 apud CAMARGO, 2002, pp. 134-135).
Dessa maneira, entendemos que a compreensão a respeito do trauma e das funções anti-
traumáticas do objeto primário é essencial para a realização do trabalho na clínica com crianças vítimas
de violência sexual – tão necessitadas de um aprimoramento da capacidade simbólica – e também para
o manejo da transferência. Além disso, como apontamos ao longo do texto, o trabalho do analista se
assemelha ao trabalho do objeto primário, no que diz respeito ao desempenho das funções anti-traumáticas.
186
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
1 Aluna do Curso de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Brasil. [email protected]
2 Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Brasil. Coordenadora do Núcleo de Abrigos – LAPE-
CRI-USP. [email protected]
3 Professora da Graduação e Pós-Graduação de Psicologia do Instituto de Psicologia da USP. Brasil. Coordenadora do
LAPECR-USP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Winnicott (1950/2002) ressalta que a criança vitima de privação de um ambiente favorável no início
de vida está doente: “isto porque a ação ambiental saudável favorece o desenvolvimento das potencialidades
para a saúde do indivíduo” (Careta, 2011, p.24). O presente estudo visa frisar a importância de um ambiente
humano favorável em instituições para o acolhimento de bebês, para que assim o desenvolvimento destas
crianças possa ocorrer de forma plena, rumando à saúde mental. Para ilustrar a necessidade apontada,
apresentamos um recorte de um caso clínico sobre um bebê institucionalizado.
O ambiente de holding fez-se imprescindível no ambiente psicoterápico, apontando para
necessidade de manejo de setting. É importante ressaltar que os atendimentos aconteceram na instituição.
Trata-se de nos adequar à realidade do contexto. Dessa forma o manejo de setting estabelece-se atrelado
aos enquadres diferenciados4 (Careta, 2011).
Apresentação
A instituição em que os atendimentos aconteceram é um abrigo para o acolhimento de crianças
e adolescentes em situação de risco, instalado na região do grande ABC - BRASIL. Esta entidade acolhe
crianças em situação de abandono, orfandade e aquelas afastadas de seus lares, por negligência, maus-
tratos e vitimização. Cerca de mais de 80% das crianças e jovens em situação de acolhimento, na realidade
brasileira, possuem família. Mais da metade destas mantém vínculos com seus familiares, portanto, poucos
são os casos de destituição de guarda para encaminhamento de adoção (Careta, 2011).
As visitas ao abrigo iniciaram-se em setembro de 2010. Através destas, deu-se o primeiro contato
com a prática em psicologia5 nesta instituição neste mesmo período. Este estudo se construiu a partir de
experiência de estágio.
Os encontros psicoterápicos foram realizados tendo como ancoragem a Psicanálise,
fundamentalmente a perspectiva winnicottiana. Descrevemos a seguir da experiência clínica com a criança
Caique6 , um ano e dez meses.7
Caique foi abrigado aos oito meses de vida. Logo ao nascer, a mãe biológica entregou a criança
para um casal. Os pais que cuidavam do bebê, na condição de família substituta, procuraram por legalizar
o processo de adoção, o qual não se efetivou pela conduta do casal adotante, totalmente afastada dos
princípios legais. A criança foi direcionada a um abrigo. Após um curto período de permanência na entidade,
cerca de um mês, foi transferido para o abrigo referido neste estudo. Portanto, temos um panorama da vida
inicial deste bebê: vários rompimentos precoces nos relacionamentos.
O bebê apresentava um quadro sintomatológico constituído por intensas angústias, as quais eram
expressas pelo movimento de esfregar um pé no outro, chegando até a sangrar. Estes movimentos eram
acompanhados por choro intermitente e pelo comportamento de atirar objetos para fora do berço.
Desenvolvimento
Caique, logo nos primeiros atendimentos comunicou a intensa angústia de separação: diante de
qualquer manifestação de afastamento físico da criança, desencadeava o choro e o movimento intenso de
esfregar os pés. Percebemos que atendido seu gesto em não modificá-lo de posição, Caique demonstrava
mais tranquilidade, aceitando para mais perto de seu corpo alguns brinquedos, dos quais se interessava.
4 Segundo Careta (2011), “enquadres diferenciados podem ser compreendidos como settings alternativos, nos quais o
método psicanalítico pode ser concretizado com rigor. Ver: Aiello-Vaisberg (2004), Ser e Fazer. Enquadres diferenciados na
clínica winnicottiana.”
5 O presente estágio foi possível através da disciplina optativa Ações Comunitárias, no curso de psicologia da USP, tendo como
docente a Profa. Dra. Ivonise Fernandes da Motta, do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo.
6 Nome fictício.
7 No primeiro atendimento a criança tinha próximo de um ano. Foram realizados cerca de vinte atendimentos.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
8 Décimo atendimento
9 A mãe, através de sua identificação com o bebê sabe como este se sente, de modo que é capaz de prover quase que
exatamente o que ele necessita em termos de holding e provisão do ambiente em geral, (Winnicott 1960/1990).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
escondera e voltei a fazer cócegas. Neste momento ele olhou para mim e sorriu. Fiquei fazendo carinho em
sua cabeça e até que ele se levantou e estendeu os braços nas grades do berço para que eu o pegasse no
colo. Levantei-me e assim o fiz”
Esta experiência revela a necessidade de manejo de setting: se adaptar ao bebê, mesmo com
vários contatos anteriores. Os encontros eram realizados no contexto da instituição. Era necessário seguir
o ritmo da criança, ou seja, o fornecimento do holding em que um dos fatores fundamentais consiste em
seguir as mudanças instantâneas do dia-a-dia que fazem parte do crescimento e do desenvolvimento do
bebê, tanto física como psicológica (Winnicott, 1960/2002). Caique necessitava de tempo, de maneira
contínua, para estabelecer o contato e o vínculo. Tínhamos que nos adaptar as necessidades dele, de forma
gradual. Tal contato era embalado pela nossa afeição estabelecida no tempo.
Paralelo aos atendimentos com o bebê, intervimos no ambiente: quinzenalmente foram realizados
encontros com as cuidadoras responsáveis pelo berçário. Em tais encontros retomou-se a história de vida da
criança enfatizando as rupturas vivenciadas. Esta orientação tinha o objetivo de mantê-las informadas sobre
possíveis situações10 que contribuíam para o emergir de intensas angústias na criança, compreendidas
como angústias de separação, e assim nortear as cuidadoras sobre a importância de amenizar tais angústias
sugerindo comportamentos de acolhimento para com a criança.
As cuidadoras foram orientadas a deixar no berço do paciente um objeto, que permanecesse
sempre lá. Podendo este ser um “bicho de pelúcia” ou uma “fraldinha”. Tais objetos eram compreendidos
por nós como objetos transicionais11. Elas foram alertadas sobre a importância de manter o objeto escolhido
pelo bebê sempre junto dele, a fim de auxiliá-lo frente a manifestação de angústias e frente a separações.
Ou seja, objetos transicionais como apaziguadores frente a angústias de separação (Careta, 2011).
Com a frequência das orientações com as cuidadoras, elas nos procuravam para informar sobre
os comportamentos de Caique, demonstrando atenção e envolvimento afetivo com a criança. Os berços
de outros bebês passaram a ter brinquedos fixados, como o de Caique. Elas comunicavam a melhora
da criança: estava mais tranquila, chorando menos, tendo diminuído substancialmente o movimento de
esfregar os pés, os quais estavam cicatrizando. Uma das cuidadoras usou a seguinte associação ao falar
sobre o progresso de Caique: “É como uma plantinha: é só dar água, terra boa e cuidados que cresce
bonita, não é mesmo?”.
Ainda com o bebê em acolhimento, foi autorizada pelo Juiz da Vara da Infância, a aproximação da
sua mãe biológica com a possibilidade de reintegração da criança ao seu lar de origem.
A intervenção ambiental além das orientações com as cuidadoras se estendeu com a mãe biológica
da criança. Ela foi acompanhada em atendimento psicológico pela equipe do LAPECRI-USP e orientada pela
terapeuta da criança quanto a importância da presença constante e afetiva com o bebê, evitando que ele
sinta a separação por momentos prolongados, de forma que os cuidados maternos se apresentassem com
afeição. Os vínculos entre mãe e filho se fortaleceram e a criança pode ser desabrigada e reintegrada em
seu lar de origem.
Conclusão
A partir do recorte clínico apresentado, e das considerações feitas inicialmente, apoiadas na teoria
de Winnicott, que prioriza os momentos iniciais de vida como sendo a base para saúde, consideramos
que é de real importância o provimento do ambiente humano suficientemente bom para que bebês
10 Por exemplo: deixá-lo sozinho, trocá-lo de berço, não dar atenção a criança diante de manifestações de angústia.
11 Winnicott (1951/2000) apresenta a expressão objeto transicional referente à “primeira posse não-eu” da criança. Os
objetos que são normalmente adotados pelo bebê são o cobertor ou a fralda, o urso de pelúcia etc. O autor ressalva que
não é o objeto em si que é denominado objeto transicional, mas sim a experiência ilusória, um símbolo no tempo que
indica a travessia do bebê desde a subjetividade até a objetividade, sendo o objeto adotado por ele, um aspecto visível
dessa transposição. É essencial para essa experimentação do bebê a continuidade de um ambiente bom externamente: a
presença da mãe e os fenômenos transicionais e os objetos transicionais. (CARETA, 2006, p 32-33)
191
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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publicado em 1960).
192
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Gostaria que observassem a foto ao lado. Ela é um símbolo da Rússia revolucionária. Lênin, com
as mãos apoiadas no pódio de madeira, fala aos soldados que partiriam ao front polonês combater as forças
de Pilsudski, que há pouco invadiram a Ucrânia. Ao lado esquerdo de Lênin – a nossa direita – vemos dois
homens. O que olha a multidão reunida à frente do Teatro Bolshoi, em Moscou, é Trotsky. Atrás dele está
Kamenev. A foto foi tirada por G. P. Goldshtein em cinco de Maio de 1920 (King, 1997, p.66-71).
Freud relembra-nos de algo básico a seu pensamento em 1925; cinco anos depois da foto de
Goldshtein: “... devemos lembrar que todas as representações vêm de percepções, são repetições das
mesmas. Assim, originalmente a existência da representação já é uma garantia da realidade do representado”
(Freud, 1925, p.279). Não é casual que Freud saliente este dever de lembrar em um texto que tem por título
“A Negação”. Não é casual, igualmente, que a primeira imagem que observam é esta, de Lênin no pódio
de madeira tendo Trotsky e Kamenev a sua esquerda. Todas as representações vêm de percepções, cabe
repetir outra vez. Mas, escreve Freud (1925) alguns parágrafos abaixo das frases que acabei de citar: “Ao ser
reproduzida como representação, nem sempre a percepção é repetida fielmente; ela pode ser modificada
por omissões, alterada por fusões de elementos diversos” (p.280). A percepção, a foto, é esta. Até onde se
sabe ela não foi montada; tal cena realmente aconteceu. Posteriormente, esta percepção, esta foto, tornou-
se uma representação – um símbolo da Rússia revolucionária. E o que aconteceu mais tarde com ela foi um
processo que, talvez, possa ser observado fora da história política com uma frequência que nos interesse.
Aos quatro anos de idade, uma paciente já estava pronta a mostrar-me como esses processos funcionam
através de seus desenhos. Voltaremos à foto e ao pódio de madeira; mas antes temos que acompanhar os
desenhos de Natalina.
Ela chega ao consultório vestindo uma saia rosa plissada, os cabelos encaracolados estão presos
por grampos. Olha-me com curiosidade e solta a mão de sua mãe. Fica na ponta dos pés, a mãe agacha-
se e a menina sussurra-lhe algumas palavras que não escuto. A mãe avisa-me que a filha concordou em
ficar longe dela durante a sessão e sai, fechando a porta atrás de si. Pergunto à criança se ela sabe por que
está ali. Ela responde que sim. Faço a pergunta num tom de voz normal; já a resposta de Natalina é baixa.
Estranha sensação esta de falar e ouvir do interlocutor algo que mal escuto. Pergunto o porquê de sua vinda,
1 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Instituto de Psicologia
da USP, professora convidada nos Curso de Teoria Psicanalítica do COGEAE – PUC e do Curso de Psicopatologia e Saúde
Mental da Faculdade de Saúde da USP, autora dos livros Paranóia e Cena Incestuosa da coleção Clínica Psicanalítica da
Ed. Casa do Psicólogo.
2 Psicanalista, mestrando no IPUSP com bolsa FAPESP; é especialista em Teoria Psicanalítica pelo COGEAE/PUC-SP e aluno
do curso Psicanálise, no SEDES. Durante vários anos trabalhou no Programa Sentinela, atendendo crianças vítimas de
abuso sexual e outras formas de violência.
3 Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica: Teoria Psicanalítica pelo COGEAE/PUC-SP, em Transtornos da Infância e
Adolescência pela UNIFEV/Centro Lydia Coriat, e em Gestão Pública pelo INSEP/PR. Aluna do curso Psicanálise no SEDES e
Coordenadora do Serviço de Psicologia da Clínica de Fisiatria e Reabilitação de Londrina.
193
Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
e ela responde, sentando na mesinha e remexendo na caneca com alguns lápis: “colocou o dedo na minha
xequinha”. A resposta, vale dizer, é ainda mais baixa que o “sim” anterior. Uma espécie de convite à discrição
e a falar, eu também, mais baixo. Sento-me na mesinha, na cadeira oposta, e ficamos um de frente para o
outro. Não consigo ouvi-la direito e, ao mesmo tempo em que procuro aguçar os ouvidos, peço que ela me
conte como isso aconteceu numa altura que só ela poderia ouvir. Alguém a cinco passos de distância teria
dificuldades para entender o que eu dissera. Natalina desenha rápido o que seria uma mulher que “cuidava”
dela quando sua mãe ia trabalhar. Toma imediatamente outra folha e rabisca um círculo, olha-o contrariada,
e rabisca outro círculo, do centro do qual puxa pequenas linhas, como raios que chegam aos limites do
círculo desenhado. Diz que um homem com olhos de cobra levou-a para o banheiro. Repete que ele pôs o
dedo em sua “xequinha”, e ela achou que tinha ficado com “meleca na perna”. Continua desenhando e fala,
num sussurro, que não doeu; que ficou quieta, mas não doeu. Faz outro desenho igual ao lado do primeiro,
o mesmo círculo, os mesmos raios. Pergunto num tom semelhante ao seu se o homem colocou outra coisa
em sua “xequinha” além do dedo. Ela responde que não: que ele a pôs em cima da pia e “ficava falando bem
baixinho, perto”, o que a fez ver seus olhos de cobra, depois ela sentiu o dedo e a “meleca”.
Presto atenção ao meu corpo. Estou inclinado sobre a mesa, olhando para baixo,
para seu desenho, e falo “bem baixinho, perto”. Convite feito, convite aceito. Na primeira vez que esta
menina entrou no consultório, uma transferência foi feita. A princípio suas expectativas libidinais, seu, nas
palavras de Freud (1912) “modo de característico de conduzir sua vida amorosa” (p.134), alinhou-me a
um objeto que lhe alterou o próprio modo de conduzir sua vida amorosa. Ali ela reencenava comigo uma
parte do episódio que a trouxe à análise. E, importante ressaltar, esta reencenação parcial na transferência
e na contratransferência (este falar baixinho), coloca-nos, a ela e a mim também, no banheiro onde o
homem a tocou. Percebo que ela não responde olhando para mim, olha para o papel. Uma parte dela está,
novamente, sentada sobre a pia.
Vejo seu desenho, que ganhara mais elementos. Ao redor dos dois círculos paralelos com as
mesmas características, ela fizera um outro, maior; na parte inferior deste colocara um traço como um
“U” aberto e, no centro, uma espécie de bolinha. Rabiscara, à esquerda e à direita do círculo maior, outros
pequenos círculos, misturados, indefinidos em seus limites. Era um rosto: dois olhos, uma boca, o nariz, e os
cabelos restantes de um homem calvo. Natalina puxa um risco vertical que dá corpo ao homem, e na base
do risco faz um traço horizontal, perpendicular ao primeiro. O quê vejo é um homem calvo, sem braços e
cujas pernas resumem-se aquele traço horizontal. “Ele bebe”, diz ela. Os raios nos olhos lembram as veias
oculares de alguém bêbado que esteve muito próximo, a ponto de Natalina poder observá-las e fazer sua
associação: olhos de cobra. Ela observa o desenho em silêncio. A transferência feita por ela coloca-me em
uma posição, no mínimo, desconfortável; mas também rica. Naquele momento posso vê-la sentada numa
pia, um homem a sussura-lhe no ouvido, e ela observando-lhe os olhos. “Quando você estava na pia, olhou
para baixo?”, pergunto. Ela diz que sim. Peço que desenhe o que viu. Ao lado do desenho do homem, do
mesmo tamanho, Natalina faz traços rápidos: um dedo, diz ela, com uma ponta circular, acrescido de um
prepúcio e uma glande. Um pênis ereto.
Primeira observação, de uma obviedade visível, o que ela desenha não é um dedo, é um pênis.
Segunda observação, necessariamente feita por meio de uma pergunta: por que Natalina diz que o pênis é
um dedo? A resposta não é simples e envolve outros desenhos feitos por ela e uma compreensão cuidadosa
sobre quando a sexualidade infantil encontra-se com a sexualidade adulta de maneira abusiva. Comecemos
pela sua idade e o que podemos dizer sobre as experiências prévias da criança.
Aos quatro anos, Natalina tinha uma irmã mais velha e morava com o pai e com a mãe. A mãe é
enfática em dizer que a filha nunca observou o pai nu; e diz o mesmo sobre a possibilidade de Natalina ter
visto o genital masculino em qualquer outra ocasião. Acreditemos em sua mãe; em parte. Se Natalina nunca
pudera observar a diferença anatômica entre os sexos, o episódio no banheiro revelou-lhe, pela primeira
vez, tal diferença. Se, por outro lado, algo escapou a sua mãe e a criança já constatara a diferença anatômica
anteriormente, ela igualmente não estava preparada para constatar a diferença anatômica da maneira que
o fez. Aqui é importante fazer uma distinção muito clara. A observação da diferença anatômica entre os
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
sexos traz para menina algumas consequências. De acordo com Freud (1925b): “Ela nota o pênis de um
irmão ou companheiro de jogos, flagrantemente visível e de tamanho notável, reconhece-o de imediato
como a superior contrapartida de seu próprio órgão pequeno e oculto, e passa a ter inveja do pênis” (p.290).
No caso de Natalina não entrou em cena um companheiro de jogos, mas um homem adulto excitado; e a
diferença anatômica veio ligada à linguagem da paixão, para utilizarmos a feliz ideia ferencziana (Ferenczi,
1932 [1933]). A percepção, que ganha representação (ela pode desenhá-la), pede uma atividade psíquica
que envolve a constatação da diferença anatômica entre os sexos e a constatação da linguagem sexual
adulta. Ela não está pronta para fazer tais constatações. A da castração, talvez; mas unida a esta as outras,
da sexualidade adulta e da estimulação feita sobre ela, não. Em seu desenho vemos o pênis; em seu relato
o que a tocou foi “somente” o dedo, a mão. É como se alguém, após Trotsky ter perdido poder, olhasse a
foto e dissesse: “Trotsky está aqui, mas ele não estava próximo a Lênin”.
Um ano depois, Natalina continua sua análise. Ela e a mãe se mudam para um bairro distante, ela
falta algumas semanas nesse período. Exatos treze meses depois de tê-la conhecido, Natalina diz, como
noutras vezes, que quer desenhar. Enquanto desenha, fala que o marido da mãe matara um sapo. Seu
desenho revela nada agressivo: não há sapo algum nele. Vê-se uma figura feminina, de cabelos loiros, uma
flor; e percebe-se uma leve ênfase no detalhamento dos dedos e das mãos da pessoa. “Eu estava do lado dela
quando ele matou o sapo”. Peço que ela desenhe como foi esse incidente da morte do sapo. Natalina toma
outra folha, e desenha um homem e um objeto que parece ser uma caixa com três rodas. Pergunto-lhe onde
está o sapo. Ela toma o lápis roxo e começa a pintar a região genital da figura masculina. Ela pede que eu a
ajude. Pergunto por que pintar com roxo. “Pinta com roxo, porque é roxo”, responde. Quando foi abusada,
pênis tornou-se dedo, uma parte da mão, de forma que lhe pergunto: “A mão?”. “Aham”, ela aquiesce.
Termina de pintar e, com grafite, faz uma figura com dedos e mãos enormes e cabelos roxos. “A mulher que
me xingava”, diz, referindo-se à esposa do homem que a abusou. “E o sapo?”, pergunto. Natalina desenha
no alto da folha, num tamanho desproporcional às outras figuras, uma mão.
Natalina encontra uma representação substituta para o que viu quando esteve sentada na pia.
Desde o princípio, o pênis, recusado, apareceu condensado, em sua fala, nos dedos e na mão do abusador.
Conforme ela pôde trabalhar a imagem, o pênis desapareceu de seus desenhos. Mas em sua fala, o genital
masculino foi deslocado também para outras representações; o sapo, por exemplo. Pênis – dedo – mão
– sapo parece ter sido o percurso, entre suas representações, do investimento que a percepção do genital
masculino adulto atravessou desde a primeira sessão onde ela pôde, lembremos, reencenar alguns aspectos
da experiência abusiva transferencialmente e, assim, permitir que a representação desde o princípio
recusada, ou não reconhecida como tal, aparecesse em seus desenhos.
Pergunto-lhe se ela lembra o que a trouxe ao meu consultório pela primeira vez. Ela diz que
sim, embora a pergunta, desnecessária, tivesse o intuito de observar a dimensão da recusa e da formação
substituta realizadas. Ela disse que tinha quatro anos, e o X tinha mexido nela. Em suas palavras: “Eu num
lembro como. Eu tinha 4. Hoje tô com 5 anos”.
Na foto de Goldshtein, Trotsky e Kamenev foram substituídos pela propaganda stalinista. O primeiro
foi expulso do Partido Comunista sete anos depois de postar-se próximo a Lênin no discurso em frente ao Teatro
Bolshoi. Em seus lugares, na lateral do pódio – de onde contemplavam a multidão fardada – foram pintados
cinco degraus; por onde Lênin teria subido antes de retirar a boina e dirigir-se aos soldados que seguiriam ao
front polonês (King, 1997, p.67-71). A percepção de Natalina é como a foto de Goldshtein: ela esteve ali, em
algum lugar, intocada durante certo tempo. Sua foto/percepção pôde ser vislumbrada brevemente, porque em
transferência ela recolocou-se, e me colocou como espectador, outra vez no banheiro onde foi abusada. Mas
sua percepção, como a imagem da praça do Teatro Bolshoi em 1920, estava fadada a tornar-se representação.
E, como representação, sua reprodução dificilmente seria fiel. Como no desenho, no sonho, na propaganda, e
também na transferência, a representação é alterada por omissões, fusões; e pelo que, aos quatro anos, pode
uma menina de saia rosa plissada aceitar ou recusar de suas experiências.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
FERENCZI S. (1932 [1933]) “Confusion of tongues between adults and the child – The language of tenderness
and of passion” In: Final Contributions to the Problems and Methods of Psycho-Analysis. London:
Karnac, 2002, p.156-167.
FREUD S. (1912) “A dinâmica da transferência” In: Obras completas, volume 10 (trad. P. C. de Souza). São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.133-146.
FREUD S. (1925) “A negação” In: Obras completas, volume 16 (trad. P. C. de Souza). São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, p.275-282.
FREUD S. (1925b) “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” In: Obras
completas, volume 16 (trad. P. C. de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.283-299.
KING D. The commissar vanishes. The falsification of photographs and art in Stalin’s Russia. New York:
Metropolitan Books, 1997.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Introdução
O presente trabalho foi escrito com o propósito de apresentar, de modo breve e panorâmico,
alguns dos aspectos presentes na contribuição de Winnicott ao debate acerca da transferência, no âmbito
da clínica psicanalítica. Isto será realizado, aqui, com base no material clínico apresentado pelo autor no livro
intitulado “Piggle: um relato do tratamento psicanalítico de uma menina pequena” (1977). Nossa reflexão
vai levar em conta, em especial, o material clínico colhido por Winnicott no início do referido tratamento, a
saber, no período que antecedeu a realização da segunda consulta.
Tendo isto em vista faremos, a seguir, algumas considerações de ordem geral sobre o “caso Piggle”,
visando fornecer ao leitor, deste modo, uma espécie de pano de fundo que sirva para contextualizar as
reflexões posteriores.
o tratamento de Gabrielle se situa no interior da terceira e última fase, por ela denominada “o uso de um
objeto (1960-1971)” (p. 1205). Este tratamento, portanto, teve lugar em um momento relativamente tardio
e maduro da trajetória clínica, teórica e pessoal de Winnicott.
Vejamos, agora, algumas das peculiaridades que fizeram parte da situação inicial do referido
tratamento.
O início do tratamento
O primeiro contato que Winnicott estabeleceu com o caso, ao que parece, se deu por meio de
uma carta, redigida e enviada a ele pelos pais da paciente. Na carta, Gabrielle é descrita como alguém que,
em linhas gerais, se desenvolveu saudavelmente até os vinte e um meses de idade, ocasião em que nasceu
Susan, sua irmã menor. A partir daí, de acordo com o relato dos pais, teve lugar, na menina, toda uma série
de preocupantes modificações.
“Bem descrito” pelos pais, segundo Winnicott, o complexo estado clínico de Piggle, manifestado
logo após o nascimento de sua irmã, incluía, dentre outros fenômenos, uma perturbação no âmbito da
“identidade” da menina. No dizer da mãe, “ela [Piggle] não era ela mesma” (1977, p. 13). Winnicott escreve,
após a única entrevista que realizou com a mãe da paciente: “Na verdade ela se recusava a ser ela mesma
e dizia: “Eu sou a mamãe. Eu sou o bebê” (Idem). Ao mesmo tempo, os pais relatam que, em alguns
momentos, Piggle parecia falar com uma voz que não era a sua. Aqui, portanto, se manifestava em Gabrielle
algo como uma perda de autenticidade pessoal. Por outro lado, de acordo com os pais, o sono da menina era
constantemente perturbado por pesadelos assustadores. Em seus sonhos Piggle era perseguida, sobretudo,
pela “mamãe preta” (black mummy) e pelo “babacar” (babacar), seres que ela temia, igualmente, durante o
dia. Antes do nascimento da irmã, Gabrielle costumava brincar o tempo todo mas, após a “grande mudança”
(Idem), diz a mãe, “ela tende a deitar em seu berço e a sugar o seu polegar sem brincar” (Op. cit., p. 14) e,
além disto, facilmente se torna “entediada” e “depressiva” (Op. cit., p. 6).
Várias outras manifestações clínicas, por certo, poderiam vir a enriquecer esta lista. Acreditamos,
contudo, que as que foram referidas bastam para descortinar, diante do leitor, traços importantes do
contexto com o qual, no princípio da análise de Piggle, Winnicott se deparou. Por outro lado, é preciso dizer
que o psicanalista não parece ter incluído em sua avaliação inicial, tão somente, aspectos psicopatológicos.
Isto porque Winnicott teria sido capaz de olhar e ver o que, de fato, havia de saudável na psique da menina
e em seu meio ambiente imediato, bem como, de lidar, por meio do “manejo” (management), com dois
obstáculos “concretos” que pareciam se opor a realização do tratamento.
Um destes, digamos, seria de ordem “espacial”: uma distância considerável separava a residência
de Piggle e sua família do consultório londrino do analista, fato que inviabilizava, de acordo com Winnicott,
a utilização do “método de sessões diárias cinco vezes por semana” (method of the daily session five times
a week) (Op. cit., p. 3). O outro obstáculo, digamos, seria de ordem “temporal”: conforme declarou em uma
carta, por ele enviada aos pais de Gabrielle (Op. cit., p. 86), Winnicott não dispunha, na ocasião, de “vaga”
(vacancy) para um novo caso.
No que se refere aos aspectos saudáveis que, conforme sugerimos a pouco, estariam presentes
na avaliação winnicottiana do caso, é preciso reconhecer, antes de mais nada, que Winnicott dispunha de
um conceito de saúde psíquica do indivíduo, ao passo que, igualmente, fazia referência à saúde em termos
do meio ambiente facilitador (1971f [1967]). Grosso modo, a saúde psíquica do indivíduo se relaciona, em
Winnicott, à idéia de “maturidade apropriada à idade cronológica” e, no que se refere ao ambiente, parece
estar vinculada à idéia de “ambiente suficientemente bom”. Seja como for, na “introdução” que redigiu para
o caso, o autor fez clara menção à existência, em Piggle, de uma “saúde essencial” (essential health): “É a
partir da descrição do trabalho psicanalítico... que o leitor pode perceber a saúde essencial na personalidade
desta criança, uma qualidade que foi sempre evidente para o analista mesmo quando, clinicamente e em
casa, a criança estava realmente doente” (1977, p. 3).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Quanto a esta “saúde essencial”, voltaremos ao tema quando abordarmos, no próximo item, a
questão da transferência. Entretanto cabe sublinhar, neste momento, que este parece ter sido um aspecto
decisivo, em termos do diagnóstico individual de Piggle, algo relacionado à capacidade da paciente,
manifestada durante todo o tratamento, de confiar em Winnicott e de, com base nesta confiança, solicitar,
a cada vez, uma nova consulta. O método de tratamento psicanalítico “sobre a demanda” (on demand)
(Op. cit., p. 2), espécie de “análise modificada” (modified analysis) (1965d [1962]), consistiu, portanto, na
resposta winnicottiana, em termos de manejo do setting da “análise padrão” (standard analysis) (Idem),
aos aspectos psicopatológicos e saudáveis por ele observados em sua paciente (diagnóstico individual),
bem como, aos obstáculos em termos de “espaço” e “tempo”, mencionados anteriormente.
A outra expressão de que Winnicott se serve para se referir ao método de tratamento utilizado,
por sua vez, é igualmente reveladora. “Psicanálise partagé (compartilhada)” (psychoanalysis partagé
(shared)) (1977, p. viii) são palavras que remetem ao fato de que, durante todo o tratamento de Piggle,
Winnicott contou, deliberada e estrategicamente, com o auxílio dos pais desta em termos de meio ambiente
facilitador. Ilustra este ponto, por exemplo, o fato de o psicanalista, após a terceira consulta, ter escrito que
o “setting familiar forneceu o hospital mental (mental hospital) em que ela [Gabrielle] pode alcançar a sua
doença” (Op. cit., p. 51).
Posto isto, passemos, a seguir, ao exame do fenômeno transferencial, à época da primeira consulta
do tratamento.
de fato, como uma “pessoa inteira” (whole person), com um “interior” (“mundo interno”) e um “exterior”
(“mundo externo”) separados por uma “membrana limitadora” que, na saúde, coincide com a superfície da
pele. Em termos do relacionamento “mãe-bebê” ou “analista-paciente”, o referido indivíduo está às voltas,
do ponto de vista da sua experiência, com um relacionamento “interpessoal” e, neste contexto, com as
inquietantes conseqüências imaginativas da destrutividade e agressividade inerentes ao impulso amoroso
primitivo (1955c [1954]).
Tendo em vista este universo teórico é possível supor que Piggle, no âmbito da primeira consulta
e no entender do psicanalista inglês, o teria posicionado, transferencialmente, como uma “pessoa inteira”.
Winnicott parece ter entendido o “eu sou”, presente na afirmação “eu sou tímida demais!”, como o “EU
SOU”, em termos do processo de maturação. Por outro lado, Winnicott comenta que há “ambivalência na
transferência” (1977, p. 19), a propósito de certos detalhes que os pais lhe contam sobre a filha, em uma
carta, escrita e enviada ao analista logo após a primeira consulta. Em resumo, a qualidade da transferência
que Piggle manifestou, no âmbito de sua relação inicial com o analista, seria peculiar a uma pessoa que
dispõe, em si, de uma significativa “força” e “organização” de “ego”. Dito de outro modo, a transferência de
uma pessoa que, embora se encontre doente, dispõe de uma “saúde essencial”. Eis aqui um dos paradoxos
winnicottianos.
Se voltarmos a nossa atenção, uma vez mais, para o primeiro comentário feito por Winnicott a
propósito da primeira consulta, constatamos que a afirmação de Piggle “eu sou tímida demais!” sugeria,
também, o “estabelecimento do analista como uma pessoa papai (daddy person)”. Vale sublinhar, aqui,
que esta idéia está vinculada ao fato de que, para Winnicott, a palavra-chave (key word) para a consulta
é “tímida” (shy) (Op. cit., p. 16). Piggle ficou tímida diante de Winnicott, precisamente, porque o havia
posicionado, na transferência, não apenas como uma “pessoa inteira”, mas como uma “pessoa papai”, no
sentido winnicottiano do “estágio do complexo de Édipo” (1988).
Para o psicanalista, portanto, se tornava evidente que Gabrielle estava às voltas, entre outras
coisas, com aspectos relativos à experiência do complexo de Édipo. Entretanto, Winnicott pensa que a
sua paciente havia sido como que “forçada”, em virtude de falhas ambientais específicas, ocorridas após
o nascimento do novo bebê (Susan), para o interior do estágio do complexo de Édipo. Daí o autor afirmar
(comentário 2) que, em Gabrielle, teve lugar um “desenvolvimento prematuro do ego” (1977, p. 17).
Se examinarmos esta primeira consulta, do ponto de vista da técnica psicanalítica, não vamos
encontrar, a rigor, qualquer “interpretação da transferência”, mas variados “manejos da transferência”.
Encontraremos também, por outro lado, “interpretações” relativas a algumas das brincadeiras de Piggle.
Seria interessante, neste ponto, explicitar os sentidos que as palavras “interpretação” e “manejo”
adquirem no contexto do pensamento de Winnicott mas, em virtude dos estreitos limites deste trabalho,
não o farei. Pela mesma razão não pude aprofundar e detalhar, ao longo destas páginas, diversos aspectos
relativos ao caso Piggle e à teoria winnicottiana. Agrada-me a idéia, contudo, da possibilidade de que este
pequeno texto venha a despertar, no leitor, curiosidade suficiente para ultrapassar os referidos limites.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
Observação: A obra de Winnicott é citada, aqui, a partir da “Lista completa das publicações de D. W.
Winnicott”, elaborada por Knud Hjulmand (Fulgencio, 2007, p. 17-188). Consta, nesta lista, o ano em que o
trabalho do autor foi publicado pela primeira vez. Quando necessário, uma ou mais letras são acrescentadas
ao ano de publicação, visando especificar a ordem em que o trabalho veio a público, naquele ano.
ABRAM, J. Donald Woods Winnicott (1896-1971): A brief introduction. International Journal of Psychoanalysis,
89 (6), 2008, p. 1189-1217.
HJULMAND, K. Lista completa das publicações de D. W. Winnicott. In FULGENCIO, L. (Org.). Bibliografia
Winnicottiana. Natureza Humana, v. 9, número especial 1, maio, 2007, p. 17-188.
WINNICOTT, D. W. Holding and interpretation: fragment of an analysis. New York: Grove Press, 1989
(Bibliografia Hjulmand: 1986a).
__________________. Human nature. New York & London: Routledge, 1988 (Bibliografia Hjulmand: 1988).
__________________. The aims of psycho-analytical treatment. In The maturational processes and the
facilitating environment: studies in the theory of emotional development. London and New York:
Karnac Books, 2007, p. 166-170 (Bibliografia Hjulmand: 1965d [1962]).
________________. The concept of a healthy individual. In Home is where we start from: essays by a
psychoanalyst. New York & London: W. W. Norton & Company, 1990, p. 21-38 (Bibliografia Hjulmand:
1971f [1967]).
__________________. The depressive position in normal emotional development. In Through paediatrics
to psycho-analysis: collected papers. New York & London: Brunner-Routledge, 1992, p. 262-277
(Bibliografia Hjulmand: 1955c [1954]).
________________. The Piggle: an account of the psychoanalytic treatment of a little girl. London: Penguin
Books, 1991 (Bibliografia Hjulmand: 1977).
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Com advento das políticas públicas para proteção e garantia dos direitos das crianças e dos
adolescentes2, as instituições de acolhimento, outrora conhecidas como orfanatos, desenvolveram-se de
forma a se tornarem espaços especializados, provisórios e excepcionais, para crianças e adolescentes que
tiveram em suas famílias seus direitos fundamentais violados3. Entende-se que é de responsabilidade das
instituições de acolhimento, representadas pela figura do Estado, zelar pelo cuidado e guarda das crianças e
adolescentes cujas famílias de origem, por motivos diversos, não tiveram condições de zelar.
O presente trabalho insere-se nessa realidade e trata da experiência clínica realizada em uma
instituição de acolhimento de crianças e adolescente na região da Grande São Paulo.
Por meio da apresentação de uma intervenção psicoterapêutica, temos como objetivo demonstrar
a possibilidade de ampliação do enquandre terapêutico em um espaço institucional, no sentido de
promover um ambiente humano adaptado que possa auxiliar o desenvolvimento psiquico de uma criança
em acolhimento.
D. W. Winnicott (1963/1983), ao se referir a importância do ambiente no processo de
desenvolvimento infantil, menciona que tal processo de maturação só se efetiva se houver um ambiente
favorável, que é caracterizado pela adaptação quase total no início da vida, mudando gradativamente no
sentido da desadaptação, de acordo com o desenvolvimento gradual do lactente no sentido da independência.
Nesse sentido, o psicanalista inglês considera o desenvolvimento como uma tendência humana
natural, o qual necessita de um ambiente que apenas respeite e favoreça esse processo, sendo esse
ambiente representado pela mãe suficientemente boa que sustenta a experiência do bebê para torna-lá
satisfatória. Onde está o Id do bebê, ali também deverá estar o ego da mãe4 (PHILLIPS, 2006).
São as experiências vividas, sustentadas por um ambiente facilitador, constante e identificado com
as necessidades desse pequeno ser5, que vão sendo elaboradas imaginativamente pelo bebê constituindo
1 Psícólogo Clínico e Institucional. Pesquisador e Psicólogo Colaborador do LAPECRI/USP. Membro do Grupo de Estudos
e Práticas Psicológicas em Instituições (GEPPI) onde realiza trabalho com famílias em processo de adoção e assessoria
psicológica a instituições de acolhimento de crianças e adolescentes. [email protected]
2 Podemos citar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como representante maior e norteador dessas políticas.
Todavia, também é possivel mencionar o Plano Nacional de Convivência Famíliar e Comunitária (PNCFC) e a Lei Orgânica
da Assistência Social (LOAS) como dispositivos legais complementares.
3 O título II do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata dos direitos fundamentais, os relaciona como: a proteção à
vida e à saúde, nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
4 Essa é uma analogia que o autor faz a célebre frase de Freud: “Wo Es war, soll Ich werden”.
5 Winnicott utiliza o termo holding para designar essas habilidades que a mãe/ambiente suficientemente bom é capaz de
desempenhar.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
um quadro de enurese, acompanhado de agitação durante o sono, que por vezes é interrompido por gritos e
pedidos de socorro do menino. Rômulo apresenta comportamento regredido, requisitando que a cuidadora
o alimente, o troque, e o auxilie na escovação dos dentes. Demonstra irritação diante de frustações e busca
isolamento nesses momentos. Por vezes apresenta períodos de ausência, ficando em um estado amorfo.
Durante os atendimentos o paciente manifesta intenso sofrimento e retraimento, não conseguindo
brincar. Há a necessidade do analista se apresentar de forma lúdica comunicando-se com aspectos da
personalidade do menino, como em uma situação onde um bezerro solitário e triste é cuidado por uma vaca
que surge para acolhê-lo. Os contatos não se sustentam, e muitas vezes o sofrimento e o choro invadem a
sessão. Não há lugar para as palavras nesses encontros.
Winnicott (1963/1983) relata que, o que oferece consistência a situação analítica não se trata de algo
a ser recordado ou revivido na técnica do analista, mas a constituição de um espaço que permita a experiência.
Por meio da apresentação de um brinquedo do qual o menino tem bastante apreço, um espécie de ampulheta
que mede o tempo, e do estabelecimento de uma brincadeira de parar e inicar o tempo, Rômulo fica mais
tranquilo e comunica suas angúsitas de separação e abandono. Diz que a tia Cibele, uma cuidadora bastante
próxima do menino, tinha ido na padaria, e que não voltaria. A separação do analista ao final do atendimento
também foi marcada por bastante angústia, sendo necessário contar com a tia Cibele, que havia chegado da
padaria, para acolher o menino e servir de referência de suporte, uma vez que sozinho não se via capaz.
Compreendemos que tais angústias, muito primitivas, tem suas origens em períodos iniciais do
desenvolvimento humano, na relação com o ambiente original, e logo, anteriores a separação provocada pelo
processo judicial que retirou a criança de casa. Ainda que esse fato possa suscitar um tipo de sentimento de
perda, entendemos que suas raízes estão ligadas a repetição da perda original, ou seja, aquele ambiente que
precocemente não foi capaz de dar sustentação emocional.
Rômulo sai de um estado de apatia e passa a vivênciar suas angústias e comunicar o que sente.
Retorna a uma posição de depedência absoluta, requisitando do ambiente cuidado. Diante disso, o analista
amplia a intervenção e passa a trabalhar com o ambiente humano da instituição para que esse possa oferecer
holding ao paciente, de forma a favorecer as experiências de continuidade de existência, em contraposição as
falhas ambientais vividas como invasões e rupturas na continuidade do ser.
Careta (2011) cita em sua pesquisa que ao escutar as cuidadoras de uma instituição de acolhimento,
nota que além da possibilidade de colher dados sobre determinada criança, era possível se deparar com o
próprio universo interior dessas mulheres, composto por acentuadas angústias de abandono e separação,
denotando a necessidade de um espaço de escuta.
Em reunião com as cuidadoras, pautada pela escuta clínica, nos deparamos com diversas angústias,
mas também com a possibilidade de identificação delas com as necessidades de Rômulo. Voluntariamente,
Cibele, muito identificada com a maternagem, se propôs a ser a figura de referência para acolher o menino
nos momentos em que ele não conseguisse conter suas angústias, bem como auxilia-lo diáriamente em suas
necessidades8. Fairbairn (1952/1980) lembra bem a importância de um objeto estável no desenvolvimento
psíquico ao propor que a libido está a serviço da busca de objeto e não apenas de satisfação.
Outra intervenção realizada no ambiente, com intuito de adapta-lo as necessidades do menino, foi
conduzida junto a Assistênte Social, uma mulher que demonstrou-se bastante identificada com o menino, e
que possui em sua história a adoção de um filho. A partir da necessidade de suporte humano de Rômulo,
estipulou-se que ela o acolheria diariamente e de forma lúdica conversaria sobre como foi seu dia, suas
dificuldades, conquistas, medos etc. Com o tempo Rômulo a requisitava todos os dias para que contasse a
história do Charlie e Lola9.
8 É importante ressaltar que essa intervenção só pode ter sucesso uma vez que esse grupo de cuidadoras já está em atendi-
mento psicoterápico a certo tempo, e que esse trabalho de cuidado pode ser visto em Careta (2011) “Quando o Ambiente é o
Abrigo: Cuidando das Cuidadoras de Crianças em Acolhimento Institucional”.
9 Trata-se de uma sequência de histórias infantis criada por Lauren Child, onde dois irmãos (Charlie e Lola) experenciam
muitas aventuras juntos.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Dessa maneira, além dos atendimentos psicoterápicos semanais, o menino podia contar com
o suporte da assistente social identificada durante o dia, e da cuidadora suficientemente boa durante o
período da noite ou em qualquer hora que precisasse, constituindo um ambiente humano adaptado, capaz
de vê-lo, sobretudo, em sua singularidade.
Com o tempo, observou-se a diminuição do quadro de enurese e o menino começa a demonstrar
maior interação com as outras crianças e expressividade de suas emoções. É possível vê-lo alegre,
demonstrando raiva e tristeza, bem como o aumento da motilidade: corre, pula, sobe nos brinquedos do
playground. Rômulo passa a pertencer ao universo da instituição, sendo falado pelos outros, lembrado e
reconhecido.
As sessões se destacam pela primazia das experiências estética, como sopro de ar através de
canudos, temperatura da água, cores, texturas das coisas, vento do ventilador, sendo compartilhadas e
nomeadas. Rômulo passa a ser espontâneo e ter experiências sensitivas e emocionais rumando a integração
psicossoma. Deseja brincar de Homem Aranha e fica quase toda a sessão de ponta cabeça, realizando suas
atividades enquanto é sustentado pelo corpo do analista. Comunica a confiabilidade ambiental que permite
com que tenha experiências de continuidade existencial. Deseja usar os óculos e o relógio do analista. Ao
final dos atendimentos é levado até tia Cibele, que o acolhe. Desse modo, Winnicott (1956/2000, p. 395) cita
que o comportamento do analista, por ser suficientemente bom em matéria de adaptação à necessidade, é
gradualmente percebido pelo paciente como algo que suscita a esperança de que o verdadeiro eu poderá
finalmente correr os riscos implícitos em começar a experimentar viver.
Tal fato, como podemos demonstrar, pode ser estendido ao ambiente humano institucional
de forma que ele não apenas favoreça o desenvolvimento psiquico de uma criança que sofreu falhas
ambientais precoces, como também permite com que as singularidades emerjam. Todavia, vale ressaltar
que tal intervenção constitui um desafio na maioria das instituições de acolhimento, e que só foi possível
uma vez que esse ambiente já vem sido cuidado a anos, tal como é possível notar a partir dos trabalhos
de D. S. Careta (2006, 2011) cujas intervenções foram realizadas na mesma instituição onde Rômulo está
acolhido. Por fim, foi partindo da sensibilidade do analista em perceber a importância em se construir uma
ponte entre as necessidades da criança e as potencialidades das cuidadoras, incluindo a assitente social,
que o ambiente foi capaz de tornar-se suficientemente bom.
Referências Bibliográficas
CARETA, D. S. Análise do Desenvolvimento Emocional de Gêmeos Abrigados no Primeiro Ano de Vida:
Encontros e Divergêncisa sob a Perspectiva Winnicottiana. 2006. Dissertação (Mestrado em
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Logo que comecei a atender Igor , na época com 4 anos e 9 meses, observei que ele parecia me
incluir na categoria de objetos da sala de atendimento. Chegava sempre agitado, correndo para o armário de
brinquedos ou para minha mesa, empurrando-me como se eu fosse um objeto atrapalhando seu caminho.
Tudo parecia funcionar num continuum não discriminado, casa/sala de espera/ sala de atendimento, como
se ele não pudesse perceber o início de cada encontro comigo e, conseqüentemente, apresentava muita
dificuldade nos encerramentos das sessões. Seus comportamentos de atirar objetos no chão, seus ataques
de raiva e sua oposição em sair da sala não pareciam ser da ordem de movimentos transferenciais, e sim
de descargas motoras desorganizadas, ações carentes de um sujeito que as exercesse. E quando não
há um sujeito que se aproprie das suas ações não há, por correlato, um destinatário para essas ações,
sendo elas simplesmente o protótipo da descarga. Suas falhas na instalação do “eu” correlativo ao eixo
da temporalidade o impossibilitavam de encerrar uma sessão tranqüilo pela garantia do “amanhã” como
continuidade desse encontro, vivenciando cada experiência como única, pontual em si mesma.
Não conseguia se organizar e se locomover satisfatoriamente no mundo ao seu redor. Assim,
trombava com os móveis ou tinha ataques de ira quando queria passar entre a poltrona e a parede,
insistindo com um corpo num espaço visivelmente impossível de ser atravessado, demonstrando suas
falhas na apropriação e representação do próprio corpo. Numa sessão me disse: “quando eu era grande”,
e apesar da construção da frase incluir a palavra “eu” , acredito que não estava constituído um “eu” no
sentido que faça referencia a si mesmo. Os elementos para a formação dessa “percepção de si” devem vir,
inicialmente, do outro. Fez um desenho da mãe golfinho, desenhando um humano dentro de sua barriga,
e contou que “vai nascer um homem, que depois vai ser um menino legal”. Minha impressão era de que
carecia de uma identidade básica, citando Bleichmar, “aquela ontologicamente ligada à ser da espécie
humana” como primeira identificação necessária para a constituição de um ser humano e, posteriormente
de um sujeito psíquico.
Qualquer som, brilho ou objeto na sala de atendimento chamavam sua atenção, demonstrando
que seu pólo perceptivo constantemente aberto, sem barreiras ou filtros, o impedia de se manter numa
atividade, como se ele se encontrasse , constantemente, bombardeado pelos estímulos ao longo de uma
mesma sessão. Em muitos momentos eu não conseguia compreender suas falas ou comportamentos,
aparentemente descontextualizados, os quais pareciam associados à um funcionamento por identidade de
percepção, como se estivesse num movimento mais regressivo tendente à ativação do pólo alucinatório,
descrito por Freud como um dos mecanismos envolvidos no processo do sonhar. Assim, ao misturar água
com sabão formando uma espuma branca teve a convicção de que era chantili e, imediatamente, o levou
para sua boca dizendo que ia comer o chantili. Ou nos momentos em que “encontrava” no armário um
bicho de pelúcia verde que, funcionando como um disparador de associações, era logo abandonado e Igor
passava a lutar e bater no “vazio”, dizendo estar matando os monstros verdes do mal. Parecia vivenciar um
1 Psicanalista, membro efetivo e co-coordenadora do grupo “Fórum Clínico Permanente: Clínica Psicanalítica Contem-
porânea” do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Aprimoramento no HCFMRP-USP.
Psicóloga formada pela FFCLRP –USP. [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
momento alucinatório, a representação do mal estava funcionando como percepção, sem a possibilidade de
discriminação do objeto real e do objeto representado, como no exemplo do chantili: não parece chantili, é
chantili. Diferenciar o representado daquilo que é percebido marca a diferença entre o interno e o exterior
ao psiquismo, discriminação ainda confusa para Igor.
Como intervenção pensei que não adiantaria recorrer ao senso comum e demonstrar que é água e
sabão, sendo necessário uma ação de minha parte que o impedisse de comer o sabão. Interferi dizendo-lhe
algo assim: não é chantili, mas na sua cabeça, quando você pensa que é chantili passa a “ser” e você não
consegue diferenciar o que pensa do que é, e isso faz com que se confunda. Seguindo as observações
de Bleichmar, de que tem que renunciar a ter um pensamento soberano porque manter um pensamento
soberano leva à situações de sofrimento, se alguém pensa que voa e se joga da janela cai, mantive o
impedimento dizendo que o estava protegendo para que o sabão não causasse dor na sua barriga. Como
sinalizou Freud, a única forma de renunciar é pela valência negativa, tem que transformar o positivo em
negativo, o prazer em desprazer. Em outro momento, quando Igor estava desenhando, disse: “ um pouquinho
de vitamina para as plantas” , usando o lápis vermelho que caiu no chão e ele complementou dizendo: “caiu
a vitamina”, demonstrando novamente que o fantasioso invade e compromete a realidade, o elemento da
fantasia é real, não há uma discriminação.
Em outra sessão, circulou cada parte do corpo no desenho de um gato e deu um nome criado por
ele para cada uma delas, sem ter a percepção crítica de que eram nomes dados por ele. Igor reconhece as
partes do corpo do gato mas, desde o meu ponto de vista, elas não formam um corpo, são só partes faltando
o sentido de uma totalidade englobante. Para ele, cada parte do gato é “ em-si ”, maneira parcializada de
perceber o objeto, expressa em sua nomeação das partes , inclusive estando o gato na categoria dessa
parcialidade. A falha na estruturação do eu, a falta da gestalt narcisista determina seu modo parcializado de
relações com o mundo. E como podemos pensar sua percepção do outro - analista? Nesses casos não há
possibilidade da criança se “ descolar do outro” pela falta de uma representação de “si mesmo” exercendo
sua função organizadora. Os comportamentos de Igor de ficar bravo comigo quando ele errava um desenho
ou quando ele derrubava algo no chão são alguns exemplos de sua falta de discriminação eu - outro.
Em seu mundo de parcialidades, o atributo separado do contexto define o objeto, não sendo
possível para ele totalidades diferentes providas de um mesmo atributo. Como o ser e o atributo são
intercambiáveis, cada objeto é único e não há possibilidade de armar categorias de oposição e de
diferenciação. Assim, no final de uma sessão em que estava insistindo com sua mãe que queria tomar café,
apontou para o reservatório transparente da cafeteira e perguntou “que é isso, água ? Quero essa água”.
Peguei a garrafa de água mineral e lhe ofereci dizendo que a usei para colocar na cafeteira. “Não quero essa
água, gosto de água de café” ele respondeu muito bravo, insistindo que queria a água de café e não “ essa
de futebol”, apontando a garrafa que eu oferecia e que tinha no rótulo um gramado verde desenhado num
formato redondo. Seu funcionamento psíquico, predominantemente regido pelo processo primário, sem
lógica da exclusão e da negatividade, aparece em outro momento quando, desenhando numa folha branca,
reclamou “ Não tem o branco? Porque o céu é branco eu ia fazer o céu branco”. Numa brincadeira onde fazia
todos os bonecos morrerem pergunto “o que é morrer ?” , ao que ele respondeu “Morrer é nunca vai viver”.
Entendo que suas dificuldades não são da ordem do sintoma no sentido psicanalítico, ou seja,
como formação do inconsciente resultante do conflito entre os sistemas psíquicos. Na minha compreensão,
utilizando a categoria proposta por Bleichmar, entendo que Igor apresenta transtornos caracterizados por
falhas na instauração do recalque originário e, conseqüentemente, na diferenciação dos sistemas psíquicos
compondo um modo de constituição à predominância dos processos primários, com fracassos na função de
simbolização. Com essa hipótese norteadora, conduzo os atendimentos buscando propiciar intervenções
potencialmente capazes de terminar de fundar a tópica e de constituir um sujeito psíquico, pré-requisitos
necessários para o desenvolvimento de um trabalho analítico baseado em interpretações transferenciais. E
qual seria o método clinico quando esses pré-requisitos não estão operando?
O texto de Freud, “A Dinâmica da Transferência” não será suficiente para suprir as demandas técnicas
para a condução desses atendimentos clínicos. É nos seus desenvolvimentos posteriores que encontrei
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
ampliação das propostas de intervenções clínicas além da interpretação transferencial, nos momentos
de surgimento de conteúdos que ficaram fora da captura do sistema pré-consciente/consciente e que
podem surgir como alucinatório. Freud propôs como nova modalidade técnica as construções em análise
e, segundo ele, o valor dessas intervenções para o analisando está mais na convicção que deve despertar,
no sentido de que isso lhe permita abrir a possibilidade de novas redes associativas, e menos na realidade
histórica ou na rememoração daquilo que lhe é proposto. A ampliação do instrumental clínico, baseado
inicialmente na “dinâmica da transferência”, possibilita a proposta de intervenções analíticas baseadas na
“dinâmica da clínica”, caracterizada pela alternância entre dois modos do funcionamento psíquico. O analista
deve manter um duplo movimento: ora guiando seu trabalho pelas associações do analisando, da ordem
das representações e podendo oferecer interpretações; ora sendo convocado à observação de material
da ordem do atemporal e do não representado, oferecendo intervenções que possibilitem a construção
de novas redes representacionais. Esse dinamismo do psiquismo faz com que possam coexistir correntes
representacionais de diversas ordens, umas com processo representativo e outras onde aparecem restos
não recalcados do exercício pulsional direto.
Retomando minha questão sobre o método clinico, encontrei em Bleichmar a proposta da clínica
da neogênese, “caracterizada pela produção de algo novo que não está em cada um dos elementos , mas
sim nas possibilidades de articulação de novas pontes simbólicas e na sua combinatória, possibilidades
estas que não se pode dizer que antecedem o fenômeno produzido”. Como escreveu a autora, “as
“representações-coisa” são recapturadas no trabalho analítico mediante a livre associação. Os “signos
de percepção” requerem a construção de um entramado, entretecido no qual o analista ajuda a articular
simbolizações faltantes” . E complemento citando a proposta de Sara e Cesar Botella de que a “ a evolução
do tratamento, e mais amplamente do psiquismo, dar-se ia na articulação de duas realidades psíquicas: de
um lado, retirada dos recalques com o levantamento de suas causalidades temporais e do desejo infantil; do
outro , operações de causação criadoras de sentido. É nessa confluência entre sentido do passado e sentido
por vir que se qualificaria a natureza processual do tratamento analítico” .
Retomando o caso Igor, continuo os atendimentos com momentos de angústia, dificuldades
técnicas e incertezas do prognóstico. Tento ajudá-lo a constituir o “dentro e o fora” de seu psiquismo,
contudo minhas dificuldades são muitas em meio ao caos de seu funcionamento. Cito como exemplo uma
sessão recente em que ele inventou um jogo de futebol no quadro branco, mandando que eu desenhasse
os jogadores com a caneta preta e começou a desenhar jogadores com outra caneta, também preta. Interferi
sugerindo mudar a cor de uma das canetas para podermos reconhecer o jogador de cada um. Igor resistiu,
quis manter a caneta preta para ele e para mim. Realizei o jogo como ele propôs e, posteriormente,
olhando para os traços no quadro, todos pretos, mostrei como não podíamos saber a diferença entre o que
é dele e o que é meu, de quem foi cada traço, qual o jogador dele e o meu na diferença. Prossegui com as
intervenções na linha da discriminação e falei sobre como o assusta, como na cabeça dele está confuso “ele”
e “eu”, segura de minhas intervenções embasadas na compreensão teórica dos seus processos mentais.
Contudo, fui surpreendida por sua fala: “ Mãe, quer dizer tia, sabe aquela gosminha, aqueles bichinhos no
pinto? Aquela gosma que fica no pinto e fica comendo ele, sai sangue?”. Senti dificuldades em acompanhar
seu pensamento.
Para suportar minha angústia perante o desconhecido, poderia ter recorrido à uma intervenção
centrada em sua posição em relação à sexualidade, que sua referência aos genitais estaria relacionada à
angústia de castração, contudo acho que seria um equivoco. Também a hipótese de tentativa de anulação
das diferenças, através da fantasia de perda do pênis como forma de garantir sua existência, não me pareceu
sustentável, pois minha compreensão é de que ele ainda não constituiu diferenças para poder negá-las
ou rejeitá-las. Penso ser necessário que o analista possa suportar a própria angústia do não-saber, apesar
de seu referencial teórico, e preferi limitar minha intervenção. Assim, entendendo que estava diante de
um bloco hipermnésico, como escreveu Bleichmar, descontextualizado e sem um fator desencadeante
aparente, um fragmento discursivo que surgiu expressando que o próprio Igor estava submetido à invasão
de processos que não podia dominar, perguntei “quem fala isso?”. Até porque sua fala não fez referência ao
próprio genital e tão pouco veio acompanhada de preocupação ou angústia. No seu psiquismo, faltavam
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
os nexos que articulam as representações entre si possibilitando que pudesse funcionar segundo a lógica
do processo secundário. Desse modo, algo na cena do nosso jogo no quadro colocou em movimento
marcas mnêmicas que progrediram pelo fracasso na instalação dos mecanismos inibidores e , seguindo
Bleichmar, “a significação não operava do lado de um sujeito que recorda e o manifesto não podia então ser
equiparado à tomada de consciência”.
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Ed. Imago. Rio de Janeiro, 1974.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Rogerio Lerner1
Os pais de W.2 me procuraram por indicação da fonoaudióloga a fim de que eu a avaliasse. Tinha
sete anos e diagnóstico de autismo emitido por um neurologista e nunca explicado pelo psicanalista que a
atendia por dois anos, com quem os pais não estavam satisfeitos. Ao fazer a avaliação, confirmei o diagnóstico,
explicando-o quanto à vulnerabilidade genética existente no autismo e quanto à impossibilidade de fazer
prognóstico do desenvolvimento, a ser avaliado ao longo das respostas de W. ao trabalho.
Entendo que uma criança autista vive um desenvolvimento conflituoso: por um lado, há uma forte
e precoce tendência à desconexão vivida desde bebê. Por outro, há um tremendo esforço para estabelecer
vínculos intersubjetivos ricos e em crescente sofisticação simbólica. Assim, a criança padece de momentos
traumáticos de destruição dos seus esforços. Filmes caseiros de bebês diagnosticados como autistas quando
mais velhos permitem o estudo de tal conflito (Lerner, 2011). Resulta que o registro interno que a criança
faz do objeto é o de um destruidor, o que se reforça pela confusão existente entre as identidades de si e do
outro. Ainda assim, a criança persiste. Alguns exemplos do conflito resultante são a criança saber para onde
o outro olha para recusar-lhe o olhar e a criança recorrer ao outro para fazer algo que pode fazer sozinha,
elidindo formas de comunicação e contato mais ricas e sofisticadas.
Ao fim da avaliação de W., evidenciei pontos que os pais contaram do seu histórico que pareciam
sugerir capacidades de W. fazer frente à tendência de desconexão que apresentava desde cedo, tais como
a evolução de sua fala com o tratamento fonoaudiológico, a manutenção de conteúdos que aprendia e a
facilidade com que se deixava contatar, apesar das dificuldades em corresponder ao contato adequadamente.
Mencionei a importância de que fosse montada e coordenada uma rede de trabalho entre profissionais da
saúde e educadores que seguisse diretrizes comuns, o que até então não havia.
No começo do trabalho, W. fazia falas descontextualizadas, tinha agitação motora constante,
estereotipias e quase não sustentava troca de olhares. As respostas às minhas tentativas de entrar em
contato eram inconstantes e erráticas como sua aprendizagem, apesar de estar em uma escola regular. A
todo o momento, ela entrava e saía da sala de espera para o hall e para a sala de atendimento de adulto e
para a de crianças e para o banheiro e... Parecia não conseguir saber o que era dentro e o que era fora, nem
qual era a delimitação entre os espaços.
Dada a concepção mencionada mais acima referente ao desenvolvimento em conflito, tenho por
princípio não começar por me opor às manifestações de desconexão da criança, mas acompanhá-la em seu
padecimento com as mesmas, nos seus esforços por superá-las e nas frustrações quando não consegue.
Eu ia junto por onde andasse, nomeando os espaços e demonstrando meu interesse pelas coisas que às
vezes ela dizia: porta, aqui, lá, dentro... Eu ficava nervoso por não entender o que se passava e achava que
a mãe estava arrependida de ter preferido que W. passasse a ser atendida por mim. Estava envergonhado
e constrangido por perceber que havia sido depositada uma confiança em mim que eu julgava não estar
1 Psicanalista, Professor Associado (Livre-docente) e orientador de Pós-Graduação no IPUSP, Fellow do College of Rese-
arch Training Programme - University College London/IPA. É membro do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Neurodesenvol-
vimento e Saúde Mental da USP e lidera o grupo de pesquisa do CNPq «Transtornos do espectro de autismo: detecção de
sinais iniciais e intervenção», com verbas de pesquisa de órgãos nacionais e internacionais. [email protected]
2 As iniciais são aleatórias e não se relacionam com o nome real da pessoa para evitar identificação.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
à altura de corresponder, uma situação de antissonhar (Cassorla, 2008) necessária como comunicação e
superação da experiência de comprometimento psíquico.
Em uma conversa desta época, a mãe me contou ficar muito aliviada em me ver seguindo W. por
onde fosse com minha evidente ignorância quanto ao que estava acontecendo. Disse que assim eu entenderia
como ela se sentia com W. e não faria como os profissionais que tentavam usar o que pretendiam saber
para exigir mudanças na forma como se relacionava com a filha. Neste momento, pensei que estávamos
todos compartilhando, cada um à sua maneira, um estado de confusão quanto a onde estávamos e o que
faríamos juntos, além de um temor relacionado à possibilidade de ter frustrada a expectativa de alcançar
tal compreensão.
Comecei a nomear os lugares por onde W. andava salientando os espaços de dentro e de fora.
Passei a dizer-lhe que ela queria entender onde estava e tinha medo de não conseguir. Começou a falar o
nome do psicanalista que a atendia e o meu. Conversamos sobre ela não compreender tal mudança. Passou
a usar a nomeação dos lugares por onde andávamos em nosso ambiente. Ficava investigando cada pedaço
do “banheiro de homens e de mulheres”, principalmente os buracos. Já não saía mais do consultório.
Comecei a fazer brincadeiras corporais bem primitivas, do tipo que se fazem com bebês: cócegas,
ela pulava no meu colo, queria que andasse com ela nas costas, ela se escondia embaixo de uma manta
para procurá-la. Eu passava os dedos como se fossem insetos (formiguinhas, joaninhas, etc.) por partes do
corpo dela (braço, pernas, barriga, cabeça), nomeando-os. Passou a ter iniciativa de pedir, a cada encontro,
que fizéssemos estas brincadeiras. Eu seguia fazendo o que ela pedia por acreditar que, além de terem sido
a oportunidade de um contato mais rico e abertamente interativo entre nós, tais brincadeiras poderiam
ajudar na construção dos limites de seu corpo, que eu avaliava não estarem bem estabelecidos. Sabendo
que não podia, ela me desobedecia e pulava no divã e na minha poltrona até que eu a contivesse, tirando-a
à força. Em alguns momentos, surgiram expressões de fantasias esquizo-paranóides bem articuladas, tais
como medo de a boca comê-la, medo de o braço soltar, a cabeça explodir. O surgimento de tais fantasias
mobilizava em mim a vontade de acalmá-la quanto aos aspectos temíveis que continham.
Em determinado momento, coloquei na porta do banheiro da sala de espera uma placa com
os dizeres “banheiro de meninas”. No outro, onde não podia entrar, coloquei uma placa com os dizerem
“banheiro de homens”. Ela ia ao banheiro a que tinha acesso passando a chamá-lo como nomeei e queria
espiar dentro do “banheiro de homens” que dizia ser meu. Na mesma época surgiram intensas e variadas
manifestações masturbatórias: ela vinha ao meu colo ou subia nos meus ombros para esfregar seus genitais
no meu joelho ou pescoço, começou a não se limpar para excitar-se com o prurido resultante, ficava muito
tempo com a mão nos genitais e depois as cheirava ou levava à boca. Minha reação inicial foi explicar-
lhe a excitação que estava sentindo, mencionando as palavras como ela nomeava os genitais feminino e
masculino, adicionando que ela não podia fazer nada daquilo comigo. Duas coisas ficaram evidentes: A
primeira foi que ela associava os dois genitais aos dois sexos. A segunda foi que falar de todo este assunto
era como seguir se masturbando, tal como Bion (1988) descreve que em estados psicóticos a fala, ao invés
de ter a função de pensamento verbal como prevalecente, é vivida como uma ação. Daí ela esfregar as
pernas quando falávamos disto.
A noção de enactment tem sido utilizada para considerar a complexidade da dinâmica
transferencial/contratransferencial do trabalho psicanalítico (Cassorla, 2007; Zaslavsky & Santos, 2005).
Cassorla (2004), destacando a identificação projetiva no processo, propôs que com pacientes graves
instala-se um enactment crônico necessário para o compartilhamento de aspectos primitivos enquanto
não há condições para sua transformação simbólica. Pode-se considerar que vivências ainda mais primitivas
do que identificação projetiva (que não a excluem), como as que prevalecem com autistas, contribuem
para o enactment experimentado no trabalho psicanalítico com os mesmos. O teor da dinâmica descrita
acima pode ser considerado uma forma de enactment crônico vivido entre analista e paciente. A partir do
momento em que o vínculo se fortaleceu, uma intensa experiência sensual estava sendo vivida em algum
nível sem que fosse possível sua percepção, até irromper como explícita masturbação por parte da paciente.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
que permite a construção de algo novo a partir do que se experimentou e consolidou-se, o trabalho de
elaboração do trauma (Cassorla, 2008), no caso do autismo, da destrutividade da tendência à desconexão.
A tendência de desconexão da criança tem sobre os pais efeitos traumáticos que se expressam
como ansiedade, persecutoriedade e depressividade (Montes e Halterman, 2007; Hoffman, Sweeney,
Hodge, Lopez-Wagner e Looney, 2009; Benson, 2007; Quintero e McIntyre, 2010). As reações dos pais a
tal desespero costumam incidir sobre as instâncias de tratamento e educação da criança, o que significa
que eles têm em relação à escola e aos terapeutas atitudes extremamente primitivas. É frequente que
sua exigência em relação aos profissionais seja exagerada em compensação às profundas frustrações
que têm com os filhos; que sintam que o trabalho dos profissionais não dá em nada por sofrerem pela
limitação de seus esforços como pais para com os filhos; que briguem triunfalmente com os profissionais
para se defenderem de forma maníaca da depressividade que sentem; que fomentem conflitos entre os
profissionais como forma de fragmentar e projetar maciçamente sua angústia. A montagem de uma rede
coordenada envolvendo psicanalista, fonoaudióloga, escola e psiquiatra, tem a função de permitir que tais
experiências sejam elaboradas pelos profissionais ao invés de gerarem atuações de sua parte na forma de
identificações complementares (Racker, 1982). Em rede, os profissionais podem refletir juntos levando em
consideração que o estado de espírito dos pais em grande medida decorre de sua exposição ao quadro
do filho. Isto permite que haja maior sensibilidade dos profissionais para com os pais, o que aumenta
sua confiança no trabalho realizado, ainda mais por perceberem que há linhas comuns sendo seguidas,
construídas coletivamente. A percepção desta construção coletiva permite que se arrefeçam as idealizações
e as persecutoriedades que nutrem em relação aos profissionais.
Do ponto de vista ético, a sensibilização para com o sofrimento dos pais é fundamental na
medida em que é em nome deste sofrimento que qualquer orientação referente a mudanças deles pode
ser considerada. É no escopo deste sofrimento que devem ser aceitas as limitações do que podem mudar
em relação a seus filhos. A mãe de W. não conseguia fazer com que a filha seguisse regras em casa, mas
permitia que uma babá o fizesse. Impor aos pais que mudem em nome do filho é algo que não conseguem
significar dado o nível de sofrimento a que eles próprios estão expostos. Nestas circunstâncias, os pais se
sentem exigidos e percebem a insensibilidade para com seu sofrimento, o que pode fomentar as atitudes
primitivas características já mencionadas. Monta-se uma cena de rivalidade entre profissionais e pais, como
se os profissionais denunciassem os erros dos pais e fossem, do alto da idealização de seu conhecimento,
consertá-los. Subjaz a isto a crença de que o quadro é decorrência pura dos pais, o que chamei em outro
trabalho de parentoculpogenia: atribuição da origem do quadro aos pais de forma a culpabilizá-los por isto.
Freud formulou a noção de séries complementares a fim de evidenciar que em toda patologia
combinam-se aspectos orgânicos e relacionais. O rodapé ao primeiro parágrafo do texto Dinâmica da
Transferência (1912) foi escrito com especial acidez proferida contra aqueles que insistem em fazer reduções
para um lado ou para outro. Ao longo de todo o atendimento de W. e seus pais, a genética compre papel
central nas fundamentações metapsicológicas com que faço as intervenções. Reservo a tal âmbito o peso
maior da etiologia e da gravidade do caso, servindo de tela de fundo para a tessitura dos mecanismos
psíquicos e das formas de relacionamento de que se utilizam as crianças. Tal expediente, além de ser
metodologicamante mais defensável do que sua alternativa, arrefece a reflexão clínica e as intervenções
do peso da etiologia, ampliando o espaço para que se pense o que se vive com o paciente no contexto da
complexidade de suas limitações e dos recursos que constrói para superá-las.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
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Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 27(3), pp. 293-301.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Esta apresentação pretende compartilhar algumas reflexões acerca dos aspectos transferenciais
vividos na experiência clínica com crianças que apresentam risco psicótico. Partilhamos com Jerusalinsky
(1993), Bernardino (2000), Kupfer (2010), Vorcaro (2009) e Laznik (2004), da compreensão de que
podemos encontrar no tratamento de crianças, aquelas que estariam em uma indecisão estrutural entre
neurose e psicose, quadro clínico entendido como psicose não decidida. Nesta configuração, os aspectos
transferenciais trazem os instrumentos fundamentais ao psicanalista para armar sua compreensão acerca
do impasse subjetivo em questão, produzindo questionamentos acerca do posicionamento técnico. Neste
trabalho, pretende-se delinear os aspectos vividos nesta clínica através da apresentação de alguns casos
clínicos, trazendo elementos que alimentem esta discussão do ponto de vista teórico e técnico.
1 Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professora da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
(PUC-SP) e membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordena o aprimoramento
na área do autismo e psicose e Pós Graduação Lato Sensu em Teoria Psicanalítica (PUC-SP). [email protected]
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
A dinâmica da transferência:
quando a elaboração não vem...
Tatiana Inglez-Mazzarella1
“Aqui é horrível, eu tô sozinho na casa horrível. Tá sujo, não tem ninguém. Não quero fica aqui. Tô sozinho, qué
saí daqui, horrível, horrível...”. Assim interrompeu-se uma brincadeira que vinha sendo construída por sessões
a fio. No enredo um bonequinho era ameaçado, batido, abandonado a própria sorte enquanto Bruno mostrava
sadicamente desfrutar daquela cena. Mas desta vez a brincadeira não pode continuar, pois o que o trouxe à
análise chegara perto demais. Bruno, que recentemente passou por uma adoção tardia, encontra dificuldades
na escola, pois reiteradamente agride seus colegas, muito embora também estabeleça com eles parcerias que
lhe são caras. Atua, dá a ver a irrupção de uma violência, de um excesso sem palavras.
Sou tomada de surpresa pelo o que estamos vivendo ali na sessão: aparenta-se a um pesadelo ou
a um delírio? Certo é que Bruno me mostra que revive ali comigo na sua análise uma dimensão do trauma,
do excesso, daquilo que não para de repetir, uma atualidade que interrompe a possibilidade de brincar. Ele
não mais está brincando, não é um personagem que fala, é o próprio Bruno que, tomado de desespero, grita.
Estamos, Bruno e eu, de cara com a intensidade das questões a serem atravessadas. Tomados pela angústia
e, num primeiro momento, paralisados. Será preciso interceptar este circuito...
Nas situações de brincadeira com Carolina, sou sempre colocada por ela na posição de filha. Minha
mãe ou o adulto que de mim cuida traz uma ambiguidade que me faz viver na pele, via transferência, as
dificuldades para fazer da dívida por ter sido adotada, algo simbólico. “Você deveria agradecer a Deus por sua
mãe ter te adotado, senão você estaria na rua”. “Se você não se comportar vai voltar para o lugar de onde você
veio”. “Você fala demais, fica quieta”. São ameaças que tentam emudecer qualquer questão colocada em torno
da relação mãe e filha. Elas surgem a cada vez que introduzo na brincadeira a voz da filha, voz que fala do que
talvez possa estar sentindo quando colocada na posição imaginária de devedora de uma quantia impagável.
Karen acaba de chegar à adolescência. Foi adotada ainda bebê, mas são as situações de irrupção
de violentas crises de agressividade durante as quais bate nas pessoas e quebra coisas que a trouxeram para
análise. Logo nas primeiras sessões põe em jogo na relação transferencial os elementos importantes: fala de
seu ódio, seus olhos faíscam, tenta assustar-me dizendo de seu desejo e de sua potencialidade mortífera
que insiste em repetir ali uma situação de desistência ou expulsão. Quando me dou conta que me assusta a
possibilidade de tornar-me alvo direto de seu ódio, lembro das palavras de sua mãe que teme ver em ato uma
potencialidade assassina da filha. Ao perceber-me colocada aí trato de pensar em como sair. Se Karen provoca
situações de expulsão e de rompimento na família, nas escolas por onde passou e com as amigas, como não
passaríamos por elas em sua análise?
Quando a repetição do trauma apresenta-se na sessão como interceptá-la?
Para responder a esta questão, será necessário pensarmos acerca da natureza da dinâmica
estabelecida na transferência, será necessário nos perguntarmos como se faz a passagem de algo vivido a
algo experienciado, no qual a apropriação e a elaboração comparecem.
1 Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora em Psicologia Clínica pela
PUC-SP, supervisora do Programa Com Tato do Instituto Fazendo História e autora do livro Fazer-se herdeiro: a transmis-
são psíquica entre gerações.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
De acordo com Ansermet (2003), em relação à nossa origem não nos é facultativo nem escolher,
mudar, ou acessar diretamente. Estamos, como humanos, condenados a um trabalho de historicização,
que visa construir uma narrativa enquanto forma de articular marcas, inscrições, transbordamentos, enfim,
uma narrativa, que pela via das palavras, possa vir a transformar o vivido, a ocorrência e o fato em algo
experienciado, em algo que inclui um trabalho de transformação.
Para ajudar-me a pensar nessa construção, tomo de empréstimo de Walter Benjamin (1940) a ideia
de uma historiografia não cronológica, mas baseada na intensidade. Uma historiografia na qual coexistem
o eterno e o efêmero, produtora de cortes na linha do tempo. Há nessa maneira de compreensão um
rompimento da linearidade também no que se refere à origem, pois ela remete tanto à reprodução quanto
ao inacabamento, à incompletude. Ou seja, trata-se de um conceito de origem que restaura e reconhece a
perda e, portanto, abre para o futuro, o que é denominado de inacabamento constitutivo.
Assim a narrativa como nomeação e atribuição de sentido ao vivido, é um processo de apropriação
que exige tempo para a elaboração das perdas. Vale destacar aqui que a memória, como presentificadora
do objeto ausente, torna-se peça chave para o luto. Porém a construção de uma narrativa precisa lidar
constantemente com a articulação vital entre memória e esquecimento, entre produção de sentido e falta
de sentido para que se coloque em marcha o processo de historicização.
Há a busca de um ponto de virada daquilo que, vivido na relação transferencial, levada a um ponto
limite, expõe ao vivo e a cores o abuso, a violência, o bruto pulsional. Esse é o termômetro que mede a
temperatura do suportável e que traz notícias para o analista donde surge o trauma. Uma temperatura que
precisa ser sentida na transferência para que algo vivido possa tornar-se experiência. E isso o analista vive
desde o seu próprio corpo, numa dimensão que ultrapassa sua capacidade de pensar. Há uma premência
terapêutica de que se abra a possibilidade de narrar. Uma narração que franqueie caminho para uma
temporalização que faça um corte no eterno presente do traumático.
Na análise com crianças, a narrativa do trauma surge também via o brincar. Na repetição do enredo
trazido por Bruno, depois de tomada por uma angústia de intervenções mal sucedidas de questionamento
da violência atuada, introduzo um outro boneco adulto, que não fazia parte da cena montada por ele: “Você
não pode fazer isso com ele, não é o seu corpo, é o dele, você não pode fazer o que bem entende, eu não
vou deixar”. Bruno se surpreende, abre-se um silêncio, um silêncio que aposto que possa engendrar a
possibilidade do novo. Em seguida, eu ligo uma sirene do socorro que chega.
Falo dos cuidados necessários à amenização da dor. Posiciono-me como testemunha do abuso, da
violência e da dor. É nesta borda do interno e externo ao trauma que o analista como testemunha intervém
no sentido da criação de um distanciamento, ali onde estava a pura dor. Selligmann-Silva (2008) fala do
acontecimento da cena testemunhal em paralelo com a clínica como, paradoxalmente, externo e interno ao
evento narrado. Sua potencialidade terapêutica reside tanto em sua dimensão interna - uma vez que pela
perenidade do trauma o tempo é sempre o atual – quanto da externa, que cria um espaço “meta-reflexivo”.
Segundo Levallois (2007) o testemunho de si é o fundamento da experiência psicanalítica,
experiência na qual alguém reconhece a existência e responsabiliza-se em ser. Para iniciar a empreitada,
coloco-me como testemunha-dor de um testemunho, posição esta que se dá por meio da escuta que dá
testemunho de algo que foi vivido, mas que ficou em uma “zona de limbo”. Este primeiro reconhecimento
é alicerce para que venha a ser construída uma narrativa.
Na função de testemunha de um testemunho, o analista utiliza como baliza para o seu trabalho o
estabelecimento de uma falta ali onde estava o nada, numa articulação entre as dimensões do pulsional e
da significância. Uma articulação que permite “deixar dormir as lembranças” e assim, apaziguar a memória
vivida no corpo e nas atuações. A aposta é do estabelecimento de uma nova tensão entre lembrança e
esquecimento. É, portanto, pela via do testemunho do analista, que reconhece com sua escuta algo que
foi vivido, mas que não se transformou em experiência, que o analisando pode vir a criar condições para a
construção de uma narrativa, ou para a mudança de posição do sujeito na narrativa, de maneira a articular
os elementos que, embora estejam presentes, ficam restritos à repetição do trauma.
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Anais do II Colóquio de Psicanálise com Crianças A Transferência na clínica com crianças
Referências Bibliográficas
ANSERMET, F. (2003) Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra
Capa Livraria.
BENJAMIN, W. (1940) “Sobre o conceito de história” In Benjamin, W. (1994) Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: brasiliense.
FIGUEIREDO, L. C. (1998) “Temporalidad y narratividad en los processos de subjetivación de la clínica
psicoanalítica” In ROVALETTI, M. L. (Ed.) Temporalidad: el problema del tempo em el pensamento
actual. Buenos Aires: Lugar Editorial S.A.
PENOT, B. (2005) A paixão do sujeito freudiano: entre a pulsionalidade e a significância. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud.
SELIGMANN-SILVA, M. (2008) “Narrar o trauma – A questão dos testemunhos das catástrofes sociais” In
Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol 20, n. 1, p. 65-82.
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