Fundamentos Do Estado Político em Rousseau

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FUNDAMENTOS DO ESTADO POLÍTICO EM ROUSSEAU

FUNDAMENTALS OF POLITICAL STATE IN ROUSSEAU

Moisés Rodrigues da Silva1


Jhonny Nunes Cunha2

Resumo: No primeiro livro do Contrato Social, Rousseau elabora aqueles que seriam os
verdadeiros fundamentos do Estado político. Mantendo distância de seu Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, em que o autor faz uma descrição
hipotética do surgimento da condição moral, social e política degradada do homem, o filósofo
genebrino apontará, em seu Contrato Social, as condições lógicas para fundamentar
legitimamente o Estado. Este trabalho pretende fazer uma breve apresentação dos conceitos
fundamentais para entender a construção teórica de um Estado político legítimo.

Palavras-chave: Direito. Legitimidade. Vontade Geral. Lei.

Abstract: In the first book the Social Contract, Rousseau prepares those who would be the real
foundations of the political State. Keeping away from his Discourse on the origin and basis of
inequality among men, in which the author makes a hypothetical description of the emergence
of the moral, social and political condition degraded man, the philosopher of Geneve will point
in your Social contract, the logical conditions to support legitimately. This work intends to
make a brief presentation of the basic concepts to understand the theoretical construction of a
legitimate political State.

Keywords: Right. Legitimacy. The General Will. Law.

***

Em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os


homens, Rousseau, por meio de uma história hipotética, deixa claro que o processo de
socialização do homem não foi legítimo. Suas qualidades naturais não foram atualizadas
em virtudes sociais; pelo contrário, transformou-se em vícios, e em paixões que lhes são
prejudiciais. Desde então, temos uma sociedade mascarada, sob a aparência de boa. Os
ricos com o discurso de defenderem os pobres, tudo fazem em proveito próprio. Os
governos são como pastores querendo devorar suas ovelhas. Há um desequilíbrio na
passagem do estado natural para o social, e tal erro será evitado racionalmente no
Contrato Social.
Imaginemos agora uma sociedade, onde a passagem entre os dois estados se dê
1
Mestre em Filosofia pela UFG e professor efetivo no IFG, em Goiânia. E-mail:
[email protected]
2
Graduado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG). Graduando em
Teologia na mesma instituição. E-mail: [email protected]
Fundamentos do estado político em Rousseau

de forma legítima, onde os homens transformem seus potenciais naturais em virtudes.


Essa boa sociedade dar-se-á

[...] quando as potencialidades virtuais do estado de natureza


deságuem na justiça, na moral, na voz do dever, no direito e na razão,
em suma num homem uno, inteiro, sem contradições entre a natureza
e a sociedade. (DOZOL, 2006, p. 62).

Pelo menos a nosso ver, é essa a sociedade buscada pela obra de Jean-Jacques
Rousseau.
Se, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens, Rousseau está preocupado em explicar como o homem pode ter deixado o
estado de natureza, no Contrato Social essa não é mais sua preocupação. Em sua nova
obra ele quer encontrar o que legitima a vida civil. “Como adveio tal mudança? Ignoro-
o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão” (ROUSSEAU, 1999b, p.
53). O leitor não deve pensar que o cidadão de Genebra não leva em conta a questão da
origem. Lourival Machado, em uma nota de rodapé, esclarece:

Não o ignora. Tampouco o esqueceu, como alguns desejam supor. A


interpretação histórico-conjetural estabelecida no Segundo Discurso
está presente ao espírito de Rousseau e o guiará através de todo
Contrato Social. Acontece, porém, que agora deseja deixar de lado as
interpretações de fatos para lançar-se ao problema político no plano
moral e racional. (ROUSSEAU, 1999b, p. 53)

Para todo contratualista3 o estado de natureza, ou a busca pela origem, serve para
criar conceitos; com Rousseau não é diferente. Tais conceitos já foram criados por ele
no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Por
esse fato ele usa a expressão ‘ignoro-o’. O genebrino agora quer encontrar o
fundamento jurídico da sociedade.
A natureza fez o homem livre “e por toda parte encontra-se a ferros”
(ROUSSEAU, 1999b, p.53). Já no início da obra o genebrino quer ressaltar o que já
havia sido anunciado em outras, a saber: que o homem perdeu sua liberdade. Essa
corrupção teve como causa os contratos injustos, em que o forte subjuga o mais fraco.

É preciso, então substituir esse falso contrato por um verdadeiro


contrato social que garanta a cada cidadão a proteção da comunidade,
proporcionando-lhe as vantagens da liberdade e da igualdade; isto é,
Rousseau discute no Contrato Social o que é uma sociedade justa,

3
Os contratualistas defendem que o Estado foi criado por meio de um pacto, um contrato, entre os
homens. Entre eles estão Hobbes, Locke e também o cidadão de Genebra.

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quais são seus princípios absolutos e se pode decorrer daí algum valor
universal. (PISSARRA, 2002, p.73)

Porém, vale ressaltar que essa substituição de que fala Pissarra não se dá, na
filosofia de Rousseau, no âmbito do fato, mas em outro nível, isto é, no âmbito racional
por meio da busca teórica pelos princípios do direito político, ou seja, pelos
fundamentos legítimos do Estado. Por outro lado, O Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens deixou claro que o homem saiu do
estado de natureza, e para ele não pode mais voltar. Estaria o homem fadado a ser
desigual e a viver a ferros? É preciso encontrar um fundamento para a sociedade civil.
Só assim é possível ao homem ser livre. Isto é: apenas uma visão clara dos verdadeiros
princípios pode apontar essa possibilidade. Rousseau não é um filósofo somente de
diagnóstico como Friedrich Nietzsche (1844-1900), mas também de prognóstico. Ele
mostra o problema, e também procura por sua solução.
O cidadão de Genebra escreve sobre a finalidade do Contrato Social:

Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de


administração legítima e segura, tomando os homens como são e as
leis como podem ser. (ROUSSEAU, 1999b, p. 51).

Rousseau tem por pretensão encontrar o que fundamenta o Estado, para bem julgar a
forma em que ele se encontra. Ora, primeiro “é preciso saber o que deve ser para bem
julgar o que é.” (ROUSSEAU, 2005, p.677). O Contrato Social é um modelo de
sociedade perfeita que se funda através de um pacto legítimo. Montesquieu4 (1689-
1755) fez algo parecido, mas analisou o direito positivo. Tomou o direito como é,
esquecendo-se de como deveria ser.5 O cidadão de Genebra percebe a importância das
duas formas de ver o problema, como é de fato, e como dever ser. “No entanto, quem
quer julgar de modo sadio os governos tal como existem é obrigado a reunir os dois
estudos” (ROUSSEAU, 2005, p.677).
Ao contrário do Príncipe6 (1532) de Maquiavel, que é um ‘manual de
instruções’ para os governos, o Contrato Social não é um plano de ação. Trata-se de

4
Em seu livro O Espírito das Leis, obra famosa no tempo de Rousseau, escrita quatorze anos antes do
Contrato Social.
5
No Emílio Rousseau afirma: “O único moderno em condições de criar essa grande e inútil ciência teria
sido o ilustre Montesquieu. Mas ele não se preocupou como tratar os princípios do direito político;
contentou-se com tratar do direito positivo dos governos estabelecidos, e nada no mundo é tão diferente
quanto esses dois estudos.” (ROUSSEAU, 2005, p.676)
6
A obra pertence ao gênero chamado “Espelho dos príncipes”. Trata-se de conselhos aos governos de
como se deve governar um Estado. As questões principais do livro são: responder como se faz para
chegar ao poder e como mantê-lo.

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uma escala, para bem julgar o que se tem. Por isso, em seus textos circunstanciais, como
o Projeto de Constituição para a Córsega e as Considerações sobre o governo da
Polônia7, Rousseau não sugere a aplicação pormenorizada de seu Contrato Social,
tendo que adaptar suas ideias à realidade de cada um destes povos. Este último está no
plano do dever ser, e não do que é.

O Contrato Social não passará de uma grande ‘escala’, na qual estarão


todos os elementos constitutivos das relações de poder, desde o grau
máximo da servidão até o grau máximo da liberdade política ou civil.
(NASCIMENTO, 1988, p.120).

Assim como no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade


entre os homens, o Contrato Social não é uma obra baseada nos fatos. O que lhe rende
algumas críticas, de modo particular as de Émile Durkheim (1858-1917). Ele diz que
nunca viu uma sociedade aos moldes do Contrato Social. Entretendo, não é objetivo da
obra procurar pelos fatos, o filósofo quer encontrar a essência. Nascimento diz:

Resta tão-somente a abstração de toda e qualquer forma empírica de


organização política, para nos ocuparmos daquilo que constitui a
essência do direito político. (NASCIMENTO, 1988, p.119).

O fundamento da autoridade política não está na natureza, como bem mostra o


Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, mas em
uma convenção entre os homens. “Para Rousseau, essa autoridade não tem seu
fundamento na natureza, mas em convenções.” (DERATHÉ, 2009, p.270). A força
também não produz nenhum direito sobre outrem. O chamado direito do mais forte não
pode ser um direito de fato. Ceder à força é algo necessário, quando para salvar a
própria vida; não é voluntário, mas um ato de prudência. O direito do mais forte se
degenera quando a força é cessada, esse não pode ser o princípio de um Estado.
Rousseau afirma que “a força não faz o direito e que só é obrigado a obedecer aos
poderes legítimos” (ROUSSEAU, 1999b, p.60).
Um poder ilegítimo não é corpo político.8 “Haverá sempre grande diferença
entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade” (ROUSSEAU, 1999b, p.67). Os
homens isolados e se submetendo à vontade de um só, não formam um corpo político e

7
Cf. ROUSSEAU, J.-J. Rousseau e as Relações Internacionais; prefácio: Gelson Fonseca Jr. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2003.
8
Esse conceito será trabalhado de forma mais aprofundada logo à frente. Que o leitor não se preocupe
agora em compreendê-lo de forma clara. Em linhas gerais, corpo político representa uma unidade entre
os homens, que já não são muitos, mas apenas um.

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nem um bem público. Trata-se de uma agregação e não de uma associação.9 A forma de
governo de Thomas Hobbes e de Maquiavel, onde a vontade do senhor prevalece sobre
a dos homens, é uma agregação. Um governo legítimo não pode impor aos homens algo
que não seja da vontade dos homens.10
Antes de um povo se dar a um governo, seja ele legítimo ou não, ele é povo. O
ato pelo qual os homens reunidos se tornam um povo é o fundamento da sociedade.

Antes, pois, de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei,


convirá examinar o ato pelo qual um povo é povo, pois esse ato, sendo
necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento
da sociedade. (ROUSSEAU, 1999b, p.68)

A constituição de um povo pressupõe que todos os homens concordem com a formação


desse povo, é preciso que seja unanime,11 já que “o todo menos uma parte não é o todo”
(ROUSSEAU, 1999b, 106). Assim “A lei da pluralidade dos sufrágios é, ela própria, a
instituição de uma convenção e supõe, ao menos por uma vez, a unanimidade.”
(ROUSSEAU, 1999b, p.68). No Estado “onde os membros são naturalmente iguais,
apenas a convenção pode fundamentar a autoridade política.” (ROUSSEAU, 1996, p.
22).
Para que esse pacto entre os homens seja legítimo é preciso que a liberdade seja
preservada. Rousseau escreve sobre o problema que será solucionado na obra:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e


os bens de cada associado com toda força comum, e pela qual cada
um, unindo-se a todos, só obedece a si mesmo, permanecendo assim
tão livre quanto antes. (ROUSSEAU, 1999b, p. 70).

Como já vimos, essa associação tem que levar em conta a vontade do todo, e não
apenas a da maioria.12 Cada indivíduo precisa abrir mão de sua liberdade natural,
deixando-a nas mãos da comunidade. Ora, de que liberdade o filósofo está falando? É
preciso retomar a ideia de liberdade, por ele desenvolvida.

9
Há uma enorme diferença entre associação e agregação. Lurdes Santos Machado diz em sua edição do
Contrato Social. “para termos uma sociedade, não basta que se agrupem os homens, sendo necessário que
os liames entre eles estabelecidos se tornem deles independentes e a eles venham a impor-se
coercitivamente.” (ROUSSEAU, 1999b, p.67).
10
Já se percebe aqui um anúncio de como deve ser um governo legítimo. Tal governo deve-se pautar por
uma vontade que esteja no homem.
11
Rousseau não concorda com a vontade da maioria, é preciso que todos queiram. Aqui ele já anuncia um
conceito central em sua obra, que será trabalhado mais à frente, a vontade geral. “Donde sai o direito de
cem, que querem um senhor, votar em nome de dez, que não querem de modo algum?” (ROUSSEAU,
1999b, p.68).
12
Ver nota anterior.

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Ser livre é não estar sujeito à vontade de outrem. No estado de natureza o


homem tem a liberdade natural, o único meio que o homem tem de protegê-la é sua
própria força física. Quando essa força não é capaz de manter a ordem é preciso que se
encontre outra superior a essa. O Estado é essa força. Com a mudança de estado natural
para o civil, a liberdade natural é perdida. Ora, ninguém faz nada visando seu próprio
mal, mas um bem. No estado civil o homem ganha outra liberdade.
Em sociedade temos uma liberdade por convenção, a liberdade política, que é
garantida pelo Estado, e não mais pela força física dos homens. Essa pode se igualar à
liberdade natural, desde que o homem em sociedade não deixe de fazer a sua própria
vontade. Rousseau diz das limitações, vantagens e desvantagens da nova liberdade:

O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um


direito ilimitado a tudo quando aventura e pode alcançar. O que com
ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. [...] a
liberdade natural, [...] só conhece limites nas forças do indivíduo, e a
liberdade civil, [...] se limita pela vontade geral. (ROUSSEAU, 1999b,
p.77)

Jean-Jacques Rousseau escreve como se estivesse respondendo perguntas. A


pergunta a ser respondida agora é a seguinte: Como é possível aos homens, cada qual
tendo sua vontade, não fazer a vontade de outrem? Para solucionar o problema,
Rousseau concebe no homem duas vontades; uma particular e outra pública. A vontade
geral diz do que é público, e é superior à vontade particular de cada um. Em um Estado
legítimo, a vontade particular deve se adequar à vontade geral, quando o contrário
acontece o Estado tem seu fim. Pela vontade geral os homens se tornam um único
corpo, “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção
suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte
indivisível do todo.” (ROUSSEAU, 1999b, p.71). É pela vontade geral que o corpo
político é direcionado, “Quanto mais preservada a vontade geral, mais íntegro é o corpo
político.” (SILVA, 2011, p. 213).
Vemos o surgimento de outro conceito importante: o corpo político. Rousseau
faz uma comparação do corpo humano com o corpo político. Esse corpo tem todos os
órgãos13 que o corpo humano tem, com uma diferença, a saber: este é um corpo moral,14

13
No Discurso Sobre a Economia Política, Rousseau faz a descrição das partes desse corpo: “O poder
soberano representa cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, origem do sistema nervoso e sede do
entendimento, da vontade e dos sentidos, dos quais os juízes e os magistrados sãos os órgãos; o comércio,
a indústria e a agricultura são a boca e o estômago, que produzem a subsistência comum; as finanças
públicas são o sangue que uma economia sábia, fazendo as funções do coração, reenvia a todo o corpo,

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e não físico. Esse ganha existência no momento em que o pacto social é feito. “Pelo
pacto social demos existência e vida ao corpo político” (ROUSSEAU, 1999b, p.105).
Esse corpo só é mantido se for cumprida uma cláusula do contrato, “a alienação total de
cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda” (ROUSSEAU, 1999b,
p.70).
Um corpo não pode fazer o mal contra si mesmo.

Não é possível acreditar que se possa machucar ou cortar um braço,


sem que a dor se reflita no cérebro; da mesma forma, a vontade geral
não consente que um membro de qualquer Estado possa ferir ou
destruir um outro, como não é possível crer que um homem, na plena
posse de sua razão, arranque seus próprios olhos com os dedos.
(ROUSSEAU, 1996, p.36)

Se a vontade do corpo político for feita, tem-se um Estado legítimo. Estado esse que é
guiado pela vontade geral, e preza pela preservação da liberdade e dos bens de cada
associado.
O homem natural, que vivia isolado e bastava a si mesmo, agora, através do
pacto, faz parte de um todo maior, o corpo político. No corpo político sua liberdade é
ainda mais assegurada, já que não depende de sua força física. O que limita essa
liberdade é a vontade geral, que por sua vez, está diretamente ligada à criação e
observância das leis.
Na primeira edição do Contrato Social,15 Rousseau se coloca a perguntar o que é
uma lei? Ele responde: “É uma declaração pública e solene da vontade geral, sobre um
objeto de interesse comum” (ROUSSEAU, apud, ULHÔA, 2003, p.240). É importante
ressaltar que a lei trata de um objeto comum, as decisões sobre objetos particulares não
podem ser leis. Da mesma forma, quando um particular diz da sua vontade própria, essa
não é uma lei, mas um decreto. O cidadão de Genebra esclarece ao leitor, para que não
se venha confundir:

Aquilo que um homem, quem quer que seja, ordena por sua conta, não
é mais uma lei: o que ordena, mesmo o soberano, sobre um objeto
particular não é uma lei, mas um decreto, não é ato de soberania mas

distribuindo a comida e a vida; os cidadãos são o corpo e os membros que fazem movimentar.”
(ROUSSEAU, 1996, p.24).
14
Por ser um corpo moral ele tem vontade própria, vontade essa que também está em todos os homens.
Rousseau nos diz no Discurso sobre a economia política que “o corpo político é também um ser moral,
dotado de uma vontade; e essa vontade geral que tende sempre à conservação e ao bem-estar do todo e de
cada parte” (ROUSSEAU, 1996, p.25).
15
A primeira edição do Contrato Social é conhecida como Manuscrito de Genebra.

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de magistratura. (ROUSSEAU, 1999b, p. 107).

Para que não nos reste mais dúvidas, “não é lei a declaração de uma vontade particular,
ainda que sobre um objeto universal; tampouco o é uma declaração da vontade geral
sobre um objeto de interesse particular” (ULHÔA, 2003, p.240).
As leis têm como finalidade garantir a liberdade e a igualdade entre os homens.
Rousseau assevera:
Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os
bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação,
verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a
liberdade e a igualdade. (ROUSSEAU, 1999b, p.127)

Pode-se pensar que a lei impede16 o homem de exercer sua liberdade, mas não é bem
assim. Perder17 a liberdade é deixar de fazer algo que é de sua vontade para fazer a
vontade de outrem, como já fora mencionado. Como o objetivo de Rousseau é encontrar
o fundamento do estado civil, onde a liberdade é preservada, é necessário que haja uma
lei em que o homem continue a ser livre.
As leis, portanto, têm que ser expressão da vontade do homem, vontade do corpo
político. Quando se cumpre a lei não se faz mais do que sua própria vontade.

[...] quando todo o povo estatui algo para todo povo, só considera a si
mesmo e, caso se estabeleça então uma relação, será entre todo o
objeto sob um certo ponto de vista e todo objeto sob um outro ponto
de vista, sem nenhuma divisão do todo. Então, a matéria sobre a qual
se estatui é geral como a vontade que a estatui. A esse ato dou o nome
de lei. (ROUSSEAU, 1999b, p.106)

O Estado que se pauta nas leis da vontade geral tem sempre a igualdade e a
liberdade de seus membros preservada. Por outro lado, naqueles Estados em que não se
observa essa vontade, mas uma vontade particular, os seus membros sempre são
desiguais e estão “a ferros”.

A vontade particular tende a predileções e à desigualdade e cobra,


geralmente, o desconforto de muitos como preço pelo bem-estar de
alguns; já a vontade geral tende sempre à igualdade, porque além de
causar o bem do indivíduo, não prejudica a nenhum outro, por ser a
mesma em todos. (SILVA, 2011, p.216)

16
Esse foi o pensamento de Thomas Hobbes. Ele defendia que liberdade é fazer o que as leis não
prescrevem.
17
O homem só é homem enquanto é livre. Rousseau diz: “Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade
de homem.” (ROUSSEAU, 1999b, 62).

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Fundamentos do estado político em Rousseau

Como pôde ser visto, no decorrer deste breve trabalho, o único meio possível
para que o homem social garanta sua liberdade é através de um pacto legítimo. Pacto
esse que forma um corpo político dirigido pela vontade geral e pela observância das
leis. Como corpo político, um homem não pode fazer mal a outrem sem que se venha
prejudicar a si mesmo, é “impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus
membros, [...] não pode também prejudicar a nenhum deles em particular”.
(ROUSSEAU, 1999b, 74). Da mesma forma lei é uma manifestação pública da vontade
do corpo político, (ULHÔA, 2003, p.240), ela é sempre justa, já que o homem não pode
ser injusto consigo mesmo.
Portanto, como podemos perceber, a forma que Rousseau encontra para
solucionar o problema da desigualdade, que surgiu com um pacto não legítimo descrito
no Discurso sobre a origem e os fundamentos entre os homens, é encontrando um
fundamento que garanta que a finalidade do Estado seja cumprida, a saber: garantir a
liberdade e a igualdade entre os homens (ROUSSEAU, 1999b, p.64). Este fundamento é
a vontade geral, as leis, e o corpo político.
Pelo pacto social, cada um aliena sua liberdade em vista de um todo maior,
nascendo assim o corpo político (ROUSSEAU, 1999b, p.70). Esse corpo tem uma
unidade e uma vontade própria. A vontade do corpo político é a vontade geral. Por meio
dela o homem continua a ser livre, e por ser membro deste corpo ele é igual a todos os
demais membros.
A vontade geral não é uma vontade das partes, mas uma vontade de todos os
homens. Por isso, no Estado que se deixa guiar pela vontade geral, seus membros são
livres, já que não fazem a vontade de outrem, mas a sua própria.
Da mesma forma as leis são expressões dessa vontade presente em todos os
homens. A lei não é algo exterior ao homem, como pensam alguns filósofos. Quando se
cumprem as leis, não se está fazendo nada mais do que sua própria vontade. A
Liberdade está garantida, já que não se faz a vontade de outrem, mas a sua.
Por fim, o Estado dirigido pela vontade geral é um Estado social legítimo. Ele
sempre visa à conservação de todos, e de cada um (ROUSSEAU, 1996, p.25).
Entretanto, no Estado que leva em conta uma vontade particular em detrimento da
vontade geral, o bem visado é sempre particular. Pode ser um bem para alguns, mas
nunca para todos os seus associados. Desta maneira tal Estado não é legítimo, baseado
em fundamentos contrários àqueles que Rousseau elabora como os verdadeiros

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Fundamentos do estado político em Rousseau

“princípios do direito político”.

Referências

DERATHÉ, R. Rousseau e a ciência política de seu tempo. Tradução de Maruyama.


São Paulo; Barcolla; Editorial. 2009.
DOZOL, M. S. Rousseau, Educação: a máscara e o rosto. Petrópolis: Vozes. 2006.
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______. O Contrato Social entre a escala e o programa. Discurso. n. 17. 1988. p. 119-
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PISSARRA, M. C. P. Rousseau: a política como exercício pedagógico. São Paulo:
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REALE, G.; ANRISERI, D. História da filosofia: Do humanismo a Kant. 4. ed. São
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ROUSSEAU. J-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
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