Abu-Lughod - Escrita Contra A Cultura PDF
Abu-Lughod - Escrita Contra A Cultura PDF
Abu-Lughod - Escrita Contra A Cultura PDF
TRADUÇÃO
v.5 n.8 | jan/jun 2018
ISSN: 2446-5674
Leandro Durazzo
Doutorando em Antropologia Social pela
Universidade federal do Rio Grande do Norte
[email protected]
Revisão técnica:
Luísa Valentini
Doutoranda em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo
política trazidas pelo gênero como um sistema de diferença intersectado por outros sistemas
de diferença, incluindo, no mundo capitalista moderno, raça e classe.
A partir disso, onde se encontra a antropóloga feminista? Strathern (1987, p. 286) a
caracteriza como sujeita a uma tensão – “apanhada/o em meio a estruturas... diante de duas
maneiras diferentes de se relacionar com seu tema de estudo”. O aspecto mais interessante da
situação feminista, por outro lado, é o que ela compartilha com o mestiço/a: o bloqueio na
habilidade de assumir confortavelmente o eu da antropologia. Para ambos, embora de modos
diferentes, o eu está dividido, preso na intersecção de sistemas de diferença. Estou menos
preocupada com as consequências existenciais dessa divisão (algo explorado eloquentemente
noutro lugar, ex., Joseph, 1988; Kondo, 1986; Narayan, 1989) do que com a consciência que
tais divisões geram sobre três questões cruciais: posicionalidade, audiência, e o poder inerente
às distinções entre eu e outro. O que acontece quando o “outro” estudado por antropólogos/
as é simultaneamente construído, ao menos em parte, como um eu?
Antropólogos/as feministas e mestiços/as não podem evitar facilmente a questão da
posicionalidade. Situar-se em terreno mutável deixa claro que toda visão é uma visão de algum
lugar e que todo ato de fala é uma fala de algum lugar. Antropólogos/as culturais nunca foram
totalmente convencidos pela ideologia da ciência e têm questionado há muito tempo o valor,
possibilidade e definição da objetividade5. Mas ainda assim eles/as permanecem relutantes
em examinar as implicações da situacionalidade concreta de seu conhecimento6.
Duas objeções entrelaçadas e comuns ao trabalho de antropólogos/as feministas, na-
tivos ou semi-nativos, ambas relacionadas à parcialidade, escancaram a persistência dos ideais
da objetividade. A primeira tem a ver com a parcialidade (como viés ou posição) de quem
observa. A segunda tem a ver com a natureza parcial (incompleta) da imagem representada.
Mestiços/as são mais associados/as com o primeiro problema, e as feministas com o segun-
do. Diz-se que o problema no estudo da própria sociedade é a dificuldade em estabelecer
distância suficiente. Uma vez que para mestiços/as o Outro é de certa maneira o si mesmo,
dizem ser este o perigo compartilhado com antropólogos/as indígenas: a identificação e o
deslize fácil para a subjetividade7. Essas preocupações sugerem que o/a antropólogo/a ainda
é definido como um ser que precisa permanecer separado do Outro, mesmo quando ele ou
ela procura explicitamente superar tal lacuna. Mesmo Bourdieu (1977, p. 1-2), que analisou
com perspicácia os efeitos que esta postura externa tem sobre a (in)compreensão dos antro-
pólogos/as sobre a vida social, falhou em romper com essa doxa. O ponto óbvio que ele
não apreende é o fato de que o eu externo jamais permanece simplesmente fora. Ele ou ela
permanece numa relação definitiva com o Outro do estudo, não apenas como um ociden-
tal, mas como um francês na Argélia durante a guerra da independência, um americano no
Marrocos durante a guerra árabe-israelense de 1967, ou uma inglesa na Índia pós-colonial. O
que chamamos externo é uma posição no seio de um complexo político-histórico mais amplo.
Não menos que o mestiço/a, o “indiviso”8 encontra-se numa posição específica vis-à-vis a
comunidade em estudo.
Os debates sobre antropólogas feministas sugerem uma segunda fonte de inquietação
acerca da posicionalidade. Mesmo quando se apresentam estudando gênero, antropólogas
feministas são desdenhadas por supostamente apresentarem uma imagem apenas parcial das
sociedades que estudam, porque as consideram como estudando somente mulheres. Antro-
pólogos estudam a sociedade, a forma desmarcada. O estudo das mulheres é uma forma
marcada, muito facilmente separada, como nota Strathern (1985)9. Ainda assim, poderíamos
facilmente argumentar que a maioria dos estudos sobre sociedade tem sido igualmente par-
cial. Como indicam os novos estudos de Weiner (1976) sobre os trobriandeses de Malinowski,
ou Bell (1983) sobre os bem-estudados aborígenes australianos, estes têm sido o estudo sobre
homens10. Isso não torna tais estudos menos valiosos; simplesmente nos lembra que devemos
atentar constantemente para a posicionalidade do eu antropológico e de suas representações
do outro. James Clifford (1986a, p. 6), entre outros, tem argumentado de modo convincente
que as representações etnográficas são sempre “verdades parciais”. O que precisa haver é um
reconhecimento de que elas são também verdades posicionadas.
Uma pessoalidade fracionada cria, para os dois grupos aqui discutidos, um segundo
problema que é esclarecedor para a antropologia de forma geral: as múltiplas audiências. Em-
bora todos/as os/as antropólogos/as estejam começando a sentir o que pode ser chamado
de efeito Rushdie – os efeitos de viver numa época global em que os sujeitos de seus estudos
passam a ler seus textos, e os governos dos países em que trabalham banem livros e negam
vistos de entrada –, antropólogos/as feministas e mestiços/as enfrentam de maneira pungen-
te uma responsabilidade múltipla. Mais do que ter uma audiência primária em meio a outros
antropólogos/as, antropólogas feministas escrevem para antropólogos/as e para feministas,
dois grupos em discordância quanto ao tema de estudo e que cobram dos/as etnógrafos/as
atitudes diferentes11. Ademais, círculos feministas incluem feministas não-ocidentais, muitas
vezes de sociedades que as antropólogas feministas estudaram, o que exige delas ainda outras
responsabilidades12.
Os dilemas dos/as mestiços/as são ainda mais extremos. Como antropólogos/as, es-
“deixar as mulheres falarem” em seus textos enquanto continuam a dominar todo o conhe-
cimento sobre elas, controlando a escrita e outras práticas acadêmicas, respaldados por seus
postos em dada organização da vida econômica, social e política?
Por causa de seus eus fracionados, antropólogas/os feministas e mestiços/as transi-
tam inseguros entre o falar “por” e o falar “a partir de”. Sua situação nos permite ver mais
claramente que práticas divisórias, sejam ao naturalizar as diferenças, como em gênero e raça,
sejam simplesmente ao elaborá-las, como argumentarei ao falar do conceito de cultura, são
métodos fundamentais para reforçar a desigualdade.
Cultura e Diferença
O conceito de cultura é o termo oculto em tudo que já foi dito sobre antropologia. A
maioria dos antropólogos/as americanos acredita ou age como se acreditasse que a “cultu-
ra”, notoriamente difícil de definir e ambígua como referente, ainda assim fosse o verdadeiro
objeto da investigação antropológica. Não obstante, poderíamos dizer que a cultura é impor-
tante para a antropologia graças à distinção antropológica entre eu e outro que nela subjaz.
Cultura é a ferramenta essencial para fazer o outro. Sendo um discurso profissional que reflete
sobre o sentido da cultura, com vista a referir, explicar e compreender a diferença cultural,
a antropologia também colabora com sua construção, produção e manutenção. O discurso
antropológico concede à diferença cultural (e a separação entre grupos de pessoas que isso
implica) um ar de evidência.
Nesse sentido, o conceito de cultura opera de modo similar a seu predecessor – raça
– ainda que possua, em sua versão novecentista, algumas vantagens políticas importantes. Di-
ferentemente de raça, também diferentemente de cultura em seu sentido oitocentista, como
sinônimo de civilização (contrastada a barbárie), o conceito atual permite múltiplas diferen-
ças, em vez de binárias. Imediatamente põe em xeque a hierarquização fácil: a mudança para
“cultura” (“c minúsculo com a possibilidade de um s ao final”, conforme Clifford [1988a, p.
234] sugere) possui efeito relativizador. A mais importante das vantagens da cultura, entretan-
to, é remover a diferença dos reinos do natural e do inato. Seja concebida como conjunto de
comportamentos, costumes, tradições, regras, planos, receitas, instruções ou programas (para
listar a gama de definições fornecidas por Geertz, 1973, p. 44), a cultura é aprendida e pode
se alterar.
Mas apesar de sua intenção anti-essencialista, o conceito de cultura mantém certas
tendências a cristalizar diferenças, algo que conceitos como raça também fazem. Isso se torna
cipal instrumental antropológico para a feitura do “outro”, e se diferença, como notam femi-
nistas e mestiços/as, costuma ser uma relação de poder, então os antropólogos/as poderiam
buscar estratégias para escrever contra a cultura. Apresentarei três que considero promissores.
Embora nem de longe esgotem as possibilidades, o tipo de projeto que descreverei – teórico,
substantivo e textual – fará sentido para antropólogos/as sensíveis a questões de posiciona-
lidade e responsabilidade, e que estejam interessados em tornar a prática antropológica algo
diferente de um simples escoramento das desigualdades globais. Concluirei, contudo, refletin-
do sobre as limitações de toda reforma antropológica.
Discurso e prática
A discussão teórica, por ser uma das maneiras pelas quais antropólogos/as interagem,
oferece importante campo para que se conteste a “cultura”. Parece-me que as discussões e o
uso de dois termos de popularidade crescente – prática e discurso – sinalizam certo afasta-
mento da cultura. Embora haja o risco de vermos tais termos vindo simplesmente a significar
sinônimos para cultura, ambos têm permitido que analisemos a vida social sem presumir o
grau de coerência que o conceito de cultura acaba por carregar.
Na antropologia, prática está associada a Bourdieu (1977; também ORTNER, 1984),
cuja abordagem teórica se constrói em torno de problemas como os de contradição, equívoco
e desconhecimento, favorecendo estratégias, interesses e improvisações em lugar dos tropos
estáticos e homogeneizantes como regras, modelos e textos. Discurso (cujos usos debato em
ABU-LUGHOD, 1989, também ABU-LUGHOD, LUTZ, 1990) possui fontes e sentidos
mais variados na antropologia. Em sua derivação foucaultiana, relacionada a noções como
formações discursivas, dispositivos e tecnologias, visa a refutar a distinção entre ideias e práti-
cas, ou textos e mundo, que o conceito de cultura tão prontamente estimula. Em sua acepção
mais sociolinguística, deita atenção sobre os usos sociais que indivíduos fazem dos recursos
verbais. Em todo caso, permite-nos reconhecer no seio de um grupo social os aspectos múl-
tiplos, mutáveis e concorrentes das ações enunciativas em jogo, com seus efeitos práticos.
Tanto prática quanto discurso são úteis por se contraporem à assunção de uma delimitação,
para não dizer do idealismo (ASAD, 1983) do conceito de cultura15.
Conexões
Outra estratégia de escrita contra a cultura é reorientar os problemas ou temas de
estudo abordados pela antropologia. Foco importante poderiam ser as várias conexões e
interconexões, históricas e contemporâneas, entre dada comunidade e o/a antropólogo/a
trabalhando e escrevendo sobre ela, para não mencionarmos o mundo ao qual ele ou ela per-
tencem e que os possibilita estar naquele lugar específico estudando tal grupo. Isso está mais
para um projeto político que existencial, embora os/as antropólogos/as reflexivos, que nos
ensinaram a focar no encontro de campo como lugar de construção dos “fatos” etnográficos,
tenham nos alertado para uma dimensão importante da conexão. Outras formas significati-
vas de conexão receberam menos atenção. Pratt (1986, p. 42) indica uma constante confusão
na escrita etnográfica, considerando que “o vasto âmbito da expansão europeia a que o/a
etnógrafo/a acaba vinculado/a, a despeito de sua atitude com relação a isso, determina seu
próprio relacionamento material com o grupo estudado”. É preciso questionar os processos
que tornaram aceitável que pessoas como nós se envolvessem em estudos antropológicos de
povos como eles, e também questionar a atual situação do mundo que nos permite realizar tal
tipo de trabalho em tais lugares específicos, além de pensar sobre o que nos precedeu e ainda
permanece (turistas, viajantes, missionários, consultores internacionais, forças de paz). É pre-
ciso questionar a que se conecta, no mundo, essa “vontade de conhecimento” sobre o Outro.
Tais questionamentos não podem ser respondidos de forma genérica: devem ser
elaborados e respondidos por meio do mapeamento de situações, configurações e histórias
específicas. Mesmo que não se dirijam diretamente ao lugar do etnógrafo, e ainda que se
dediquem a uma superelaboração que ameaça apagar as interações locais, estudos como os
de Wolf (1982) sobre a longa história de interação entre determinadas sociedades ocidentais
e comunidades ora chamadas de Terceiro Mundo representam caminhos importantes para
sanar tais questões. O mesmo se aplica aos trabalhos de Mintz (1985), que traçam complexos
processos de transformação e exploração envolvendo o açúcar, tanto na Europa quanto em
outras partes do mundo. A inclinação da antropologia para a história, rastreando conexões
entre o presente e o passado de comunidades específicas, também é desenvolvimento impor-
tante.
Mas nem todos os projetos de conexão precisam ser históricos. Antropólogos/as
atentam cada vez mais para as conexões nacionais e transnacionais entre pessoas, formas
culturais, mídias, técnicas e mercadorias16. Estudam a articulação do capitalismo mundial e
da política internacional com as situações de pessoas vivendo em comunidades particulares.
Todos estes projetos, que demandam uma mudança de foco a fim de incluir fenômenos de
conexão, expõem a inadequação do conceito de cultura e a imprecisão das entidades designa-
das pelo termo culturas. Embora no novo modelo possa haver a tendência de simplesmente
ampliar o objeto, passando da cultura para a nação como locus de análise, idealmente haveria
atenção com relação aos agrupamentos, identidades e interações mutáveis, dentro e fora das
fronteiras. Se em algum momento antropólogos/as puderam considerar, sem muita violência,
que ao menos algumas comunidades fossem unidades isoladas, é certo que a natureza das
interações globais no presente torna isso impossível17.
Etnografias do particular
A terceira estratégia de escrita contra a cultura demanda aceitarmos a perspicácia de
Geertz em um de seus pontos sobre a antropologia, algo em que se baseiam todos os que
hoje, neste “momento experimental” (MARCUS, FISCHER, 1986), levam a sério a textu-
alidade. Geertz (1975, 1988), considera que uma das principais ações do antropólogo/a é a
escrita, e o que escreve são ficções (o que não implica serem fictícias)18. De fato, a prática da
escrita etnográfica recebeu atenção excessiva dos envolvidos na Escrita da Cultura, e de um nú-
mero cada vez maior de outros não envolvidos na publicação. Muito da hostilidade ao projeto
vem da suspeita de que, por suas inclinações literárias, acabaram por reduzir com muita faci-
lidade o aspecto político da etnografia à sua poética. De todo modo, chamaram atenção para
um tópico que não pode ser ignorado. Na medida em que antropólogos/as trabalham com
a representação dos outros por meio de suas escritas etnográficas, o grau em que as pessoas
de tais comunidades parecem ser “outras” decerto será parte do que os/as antropólogos/
as escrevem sobre elas. Haveria formas de escrever sobre vidas em que os outros figurassem
como menos outros?
Eu diria que um instrumento poderoso para deslocar o conceito de cultura e subverter
seu processo subjacente de “outramento” é escrever “etnografias do particular”. A generali-
zação, modo e estilo característicos da escrita das ciências sociais, já não pode ser considerada
uma descrição neutra (FOUCAULT, 1978; SAID, 1978; SMITH, 1987). É preferível evitá-la,
por dois efeitos infelizes que causam à antropologia. Darei maior atenção a eles antes de apre-
sentar exemplos de meu próprio trabalho, nos quais veremos o que se pode esperar realizar
por meio das etnografias do particular.
Não me ocuparei de uma série de problemas frequentemente observados com relação
à generalização. Por exemplo, já foi muitas vezes indicado que o modo generalizador do dis-
curso das ciências sociais favorece a abstração e a reificação. A socióloga feminista Dorothy
Smith (1987, p. 130) critica vividamente o discurso sociológico ao observar que
a complexa organização das atividades de pessoas reais, de suas relações re-
ais, entrou no discurso por meio de conceitos tais quais classe, modernização,
organização formal. Criou-se um reino de objetos constituídos teoricamente,
liberando o reino discursivo de seu solo nas vidas e trabalho dos indivíduos e
possibilitando à pesquisa sociológica pastar num campo de entidades conceituais.
gindo seus textos a públicos ligeiramente distintos daqueles para quem escrevem os escritores
profissionais de etnografias padrão, elas também seguiram convenções diferentes: são mais
abertas com relação a sua posicionalidade, menos assertivas sobre sua autoridade científica e
mais atentas a indivíduos e famílias particulares.
Por que essa outra tradição não se qualifica como uma forma de inovação textual?
Uma resposta parcial pode ser encontrada no próprio A Escrita da Cultura. Os que propõem
experimentos e críticas à escrita etnográfica procuram quebrar a monotonia da antropologia
se inspirando em disciplinas de elite, como filosofia e teoria literária, em vez de observar fon-
tes mais prosaicas como a experiência ordinária ou os termos pelos quais seus sujeitos antro-
pológicos operam21. Rejeitam a retórica das ciências sociais não em favor de uma linguagem
comum, mas preferindo um discurso tão prenhe de jargões que um editor se viu motivado a
caçoar disso, compondo um poema satírico em que brincava com o vocabulário de tropos,
thaumasmos, metonímia, patopeia, fenomenologia, ecfonese, dícticos e hipotiposes – um
poema ironicamente incluído como invocação no prefácio do livro (CLIFFORD, MARCUS,
1986, p. ix). Quaisquer que sejam os méritos de suas contribuições, é difícil não reparar na
mensagem de hiperprofissionalismo. Apesar da sensibilidade com relação a questões de ou-
tridade e poder, e também na relevância da textualidade para tais problemas, eles utilizam um
discurso ainda mais excludente, portanto ainda mais reforçador de distinções hierárquicas
entre si e os outros antropológicos, mais do que a própria antropologia comum que criticam.
O segundo problema com a generalização não deriva de sua participação em discur-
sos de autoridade e profissionalismo, mas dos efeitos de homogeneidade, coerência e atem-
poralidade que costuma produzir. Quando se generalizam as experiências e conversas com
uma série de pessoas específicas de dada comunidade, tende-se a solapar as diferenças entre
elas, homogeneizando-as. Uma ausência aparente de diferenciação interna torna mais fácil
conceber um grupo de pessoas como entidade distinguível e definível, feito dizer “os Nuer”,
“os Balineses” e “os beduínos Awlad ‘Ali” agem assim e assado, e creem nisto ou naquilo. O
esforço para produzir descrições etnográficas gerais das crenças e ações das pessoas tende a
atenuar contradições, conflitos de interesse, dúvidas e discussões, isso para não mencionar-
mos as motivações e circunstâncias mutáveis. O apagamento de tempo e conflito faz com
que, por homogeneização, o que resta circunscrito pelas fronteiras pareça algo essencial e
fixo. Tais efeitos são de importância especial para antropólogos/as porque contribuem para a
ficção de haver outros essencialmente diferentes e distintos, passíveis de serem separados de
um eu também tido por essencial. Na medida em que a diferença é hierárquica, como apontei,
Dando maior atenção aos indivíduos particulares e a suas relações cambiáveis, ne-
cessariamente subverteríamos as acepções mais problemáticas da cultura: homogeneidade,
coerência e atemporalidade. Indivíduos enfrentam escolhas, disputam uns com os outros,
declaram ideias conflitivas, discutem sobre pontos discordantes com relação a um mesmo
evento, enfrentam altos e baixos em diversos relacionamentos e passam por mudanças em
suas condições e desejos, confrontam pressões diferentes, e falham em prever o que aconte-
cerá a si e aos seus. Por isso se torna difícil pensar que o termo “cultura beduína”, por exem-
plo, faça algum sentido à luz dessas tentativas de ajuntar pistas e expressar como é a vida para
uma velha matriarca beduína.
Se você pede para que conte a história de sua vida, ela dirá que se deve apenas pensar
em Deus. Ainda assim é capaz de contar histórias muito vívidas, fixadas de várias formas em
sua memória, sobre suas resistências a casamentos arranjados, seus partos e as preocupações
com as filhas adoentadas. Também conta dos casamentos que presenciou, das sacanagens
cantadas por jovenzinhos enquanto tosquiavam rebanhos para os anciãos, e também das via-
gens em táxis lotados, numa das quais precisou beliscar a bunda de um homem para que ele
saísse de seu colo.
O aspecto mais regular de seu dia a dia é a espera pelos horários de oração. Já é meio-
dia? Ainda não. Meio da tarde? Ainda não. O sol já se pôs? Vovó, a senhora ainda não rezou?
O sol já se pôs. Ela estende seu tapete de oração em frente ao corpo e reza em voz alta. Ao
final, enquanto enrola o tapete, suplica a Deus que proteja todos os muçulmanos. Recita o
nome de Deus conforme gira suas contas de oração. A única decoração de seu quarto é uma
fotografia na parede, sua e do filho peregrinando em Meca.
Com as costas encurvadas que mal lhe deixam ficar de pé, passa o dia sentada ou dei-
tada no colchão. É quase completamente cega, e reclama das muitas dores que sente. As pes-
soas entram e saem: seus filhos, sobrinhos, filha, sobrinhas, netas e bisneto. Conversam um
pouco, conferem com ela as relações entre outras pessoas, casamentos, parentesco. Ela ofere-
ce conselhos; dá-lhes bronca por não fazerem as coisas direito. E brinca com seu bisneto de
três anos, provocando-o: “Ei, meu rapé acabou. Venha aqui para eu cheirar essa gordurinha”.
Ser religiosa e ferrenha observadora dos protocolos de hospitalidade, visitas de cor-
tesia e saudações não parece impedi-la de apreciar as histórias mais ultrajantes e os causos
imorais. Quando a encontrei em 1987, a história que mais gostava acabara de ser contada por
sua filha, ela própria uma mulher casada e mãe de cinco crianças, vivendo perto de Alamein.
O causo dizia de um casal de velhos que resolvia sair em visita a suas filhas, e era divertido pela
inversão de mundo que evocava.
Era um conto que apresentava um mundo onde as pessoas faziam o inconcebível. Em
vez de levar consigo os usuais biscoitos e docinhos, o casal presenteou as filhas com sacos de
esterco. Quando a primeira filha na casa de quem pararam foi buscar água no poço, passaram
a derramar todo o conteúdo de mel e azeite que seu marido, um comerciante, armazenava em
casa. Quando ela regressou e viu o que faziam, mandou-os embora. Então os dois foram para
a casa da segunda filha. Quando esta os deixou cuidando do bebê por um instante, o velho o
matou apenas para que parasse de chorar. A filha voltou para casa, descobriu o que aconte-
cera e enxotou os dois de lá. Em seguida, passaram por uma casa em que havia uma ovelha
abatida. Fizeram cintos com seus intestinos e chapéus com o estômago, e então se quedaram
admirando um ao outro em seus novos adornos. Mas assim que a velha perguntou ao marido
se não tinha ficado linda com seu novo cinto ele respondeu: “Estaria lindíssima, não fosse
essa mosca pousada em seu nariz”. Dizendo isso, golpeou a mosca, matando a esposa. Con-
forme soluçava de aflição, começou a peidar. Furioso com o próprio ânus, que peidava sobre
a morte da esposa, aqueceu uma estaca e enfiou-a ânus adentro, morrendo no processo.
A velha ria sem parar, ao contar essa história, assim como gargalhava das histórias so-
bre velhotas libidinosas. Como esse senso de humor, esse deleite com a obscenidade, podia
ir a par com sua devoção às preces e sua observância dos protocolos de decoro? Como se
combinavam sua nostalgia do passado – quando a região era desabitada e se podia enxergar
quilômetros ao redor; quando, ainda menina, brincava de desencavar ocasionais cacos de
cerâmica ou garrafas de vidro, na área hoje cercada e protegida pela Organização Egípcia de
Antiguidades; quando sua família migrou com os rebanhos, ordenhando e produzindo man-
teiga nas pastagens desertas – e a defesa aferrada a seu neto favorito, cujo pai se enfureceu
após rumores de que o rapaz bebera álcool num casamento local? As pessoas não bebem na
comunidade, e a bebida é, sem dúvida, proscrita pela religião. O que “cultura” poderia signifi-
car, considerando essas complexas reações da velha senhora?
O tempo é outra dimensão importante a ser considerada se levarmos a sério a narra-
tiva sobre a vida cotidiana das pessoas. Quando o pai do rapaz lhe bate, o filho acusado de
ter bebido no casamento vende seu videocassete para um vizinho, levanta algum dinheiro
e desaparece. Sua avó fica inconsolável. As tias discutem a situação. Seu pai não diz nada.
Apenas dias depois é que um parente distante aparece e assegura à avó que o rapaz está bem,
e diz saber seu paradeiro (está trabalhando numa obra a cerca de 100 quilômetros dali). Nin-
guém sabe quais serão as consequências disso. Ele retornará? O que o pai vai fazer? A honra
da família, a reputação da piedade e da autoridade paterna estão em jogo. Quando o jovem
retorna, várias semanas mais tarde, acompanhado por um tio materno que mora 50 quilô-
metros a leste, e que vai com ele para prevenir mais punições, a avó, aliviada, cai aos prantos.
A situação poderia facilmente ter terminado de outra maneira. Desde o sumiço do rapaz, os
dias da avó foram tomados de preocupação, brigas, espera e falta de expectativas sobre o que
fazer em seguida. Aquela surra e aquela fuga, eventos ocorridos no tempo, tornam-se parte
da história daquela família, dos indivíduos envolvidos e de seus relacionamentos. Nessa sequ-
ência de acontecimentos numa família particular, no ano de 1987, podemos identificar o que
chamamos de “forças maiores” que possibilitaram o ocorrido, coisas como as oportunidades
crescentes de trabalho assalariado, a comercialização de casamentos beduínos e o influxo de
bens desde as cidades. Entretanto, por tais “forças” encarnarem tão-somente nas ações de
indivíduos vivendo no tempo e no espaço, etnografias do particular são capazes de melhor
capta-las.
Até mesmo o ritual, aquela prática comunal na qual o tempo parece assumir significa-
do diferente, talvez cíclico, tipo de prática que no discurso antropológico marca tão perfeita-
mente o outro cultural (exótico, primitivo) como diferente, acaba por se mostrar algo especí-
fico, tudo menos atemporal. Se observados atentamente, um evento ritual e seus participantes
reais envolvem imprevisibilidade. Mesmo no ritual, o desenrolar do que não pode ser conhe-
cido de antemão gera grande drama e tensão. Deixem-me exemplificar, outra vez a partir de
meu trabalho. Na primeira semana de minha chegada à comunidade beduína no Egito, onde
permaneceria anos, as jovens da casa em que eu estava me descreveram a sequência exata de
eventos que toda noiva deve passar num casamento beduíno. Ao longo dos anos, presenciei
vários casamentos, todos seguindo a mesma estrutura, ainda que cada um distinto do outro.
Para cada noivo e noiva, sem falar em suas famílias, o casamento marcaria um momento de
profunda transformação, não apenas de status como também de associações, vida cotidiana,
experiência e futuro. Cada casamento era diferente no que diz respeito aos tipos de famílias ali
reunidas, a rede de relações criada e os bens trocados, gastos e expostos.
Ainda mais importante, os elementos de imprevisibilidade eram muitos. A noiva per-
maneceria? O casal se daria bem? Haveria filhos? Em quanto tempo? Mesmo o rito central da
cerimônia – a defloração ou o teste público de virgindade – era um evento de grande tensão
dramática cujo resultado não se sabia de antemão. O padrão do defloramento, como já des-
crevi (1988), é modelar: no dia do casamento, quando os convidados estão reunidos, o noivo,
acompanhado por seus amigos, penetra a esfera feminina e adentra o quarto onde a noiva es-
pera, cercada por várias senhoras que a auxiliam. Mesmo assim, cada defloração envolve um
conjunto específico de pessoas e ocorre de uma forma particular. As narrativas das mulheres
que permanecem com a noiva enquanto o noivo tira sua virgindade enfatizam tal especifi-
cidade. Elas descrevem as reações da noiva, suas palavras, a dimensão de sua resistência, os
lugares específicos do quarto em que elas próprias se dispunham e os papéis que assumiam
no evento, as reações do noivo, os conselhos que dão a ele, os problemas encontrados, a ten-
são de limpar o sangue. Comparam noivas que já conheceram e as manchas de sangue nos
tecidos brancos. Avaliam as competências e qualidades das várias senhoras que acompanham
as noivas. Suas narrativas, assim como as respostas de todos os participantes do casamento,
revelam a questão central que comporta o drama da cerimônia: haverá sangue? Os eventos
tomam rumos diferentes. Em toda parte, esta é a natureza da “vida que se vive” (RIESMAN,
1977). Generalizações, ao produzirem efeitos de atemporalidade e coerência a fim de embasar
as noções essencializadas de “culturas” distintas da nossa, e de pessoas diferentes de nós, faz
com que esqueçamos disso.
Conclusão: humanismo tático?
As críticas recentes à antropologia, oriundas de várias partes, encorajam-nos a pergun-
tar sobre o que trabalhamos, como escrevemos e para quem o fazemos. Argumentei que a
diferença cultural, ao mesmo tempo base e produto do discurso antropológico, é uma cons-
trução problemática, e sugeri uma série de estratégias, a maioria já experimentada por outros,
de “escrever contra a cultura”. A partir de meu próprio trabalho, dei exemplos de como uma
estratégia – a etnografia do particular – poderia ser um modo especialmente útil de perturbar
o conceito de cultura.
O valor especial desta estratégia é trazer à luz similaridades entre todas as nossas vidas.
Dizer que todos vivemos no particular não é dizer que para todos o particular é igual. Seria
bem possível que na simples observação do cotidiano encontrássemos diferenças fundamen-
tais, como aquelas entre a experiência cotidiana em um mundo organizado para produzir
efeitos de estruturas, instituições ou outras abstrações (como Mitchell [1988] diz ser o caso
do Ocidente) e aqueles mundos que não se organizam assim. Mas o cotidiano, ao quebrar a
coerência e introduzir o tempo, mantém-nos atrelados ao fluxo e à contradição. E os parti-
culares indicam que os outros vivem do mesmo modo como nos vemos vivendo, não como
robôs programados por regras “culturais”, mas como pessoas seguindo a vida e amargando
decisões, cometendo erros, tentando se manter apresentáveis, suportando tragédias e perdas
dência se manifestavam nas vidas dos homens também assumiu sentidos complexos e dife-
rentes no Egito. Uma cópia de uma longa resenha (em árabe) de meu livro chegou às mãos
de um beduíno Awlad ‘Ali, servidor público e aspirante a um posto no governo egípcio. Daí
foi confrontar meu anfitrião com a resenha, furioso por eu ter escrito que eles gostavam de
carregar armas, sonegar impostos e defender seu direito a resolver as próprias disputas, sem
envolver o governo. Conforme contou meu anfitrião, o homem bradava acusatoriamente:
“Sua garota que escreveu isto!”. Nunca saberei o que aconteceu na sequência, por não ter
estado lá e poder contar apenas com a versão de meu anfitrião. Ele, como sempre, havia
sido provocador, retrucando que me dissera tudo que eu sabia. E não era verdade? Aquele
homem não portava armas sem licença? Havia declarado todas as suas ovelhas para o fisco?
Meu anfitrião muitas vezes dissera querer meu livro traduzido para o árabe, para que os egíp-
cios viessem a compreender e apreciar os padrões morais superiores de sua comunidade – da
qual muitos egípcios desdenhavam. Entretanto, este episódio demonstrou que ele era apenas
uma voz na comunidade beduína, e que suas ideias sobre como adquirir respeito divergiam
daquelas de alguém leal ao governo. Meu trabalho, destinado a outro público, adentrou um
campo político local em que o relacionamento dos beduínos Awlad ‘Ali com o Estado egípcio
era motivo de disputa.
Como todos os trabalhos antropológicos hoje, meus textos certamente entrarão em
diversos outros debates. Não é razão para desespero. Pelo contrário, ao nos forçar a refletir
sobre dilemas da prática antropológica que já não podemos ignorar – por vivermos tempos
em que é difícil manter as fronteiras da “cultura” em seu lugar, e em que a política global
é incerta – tais problemas oferecem oportunidade para escolhermos estratégias provisórias
alinhadas a nossas expectativas, mas sem ilusões presunçosas a respeito do grande valor de
nossas contribuições.
Agradecimentos
Nenhuma das muitas pessoas com quem estou em débito, com quem conversei ao
longo dos anos e que me permitiram refletir, devem ser responsabilizadas pelo que fiz a
partir dessas interações. Como bolsista Mellow Fellow da Universidade da Pensilvânia, tirei
proveito de discussões com Arjun Appadurai, Carol Breckenridge e vários participantes do
seminário sobre “Orientalismo e além”, no âmbito do Programa de Estudos sobre o Sul da
Ásia. Também sou grata aos integrantes do Seminário de Gênero de 1987-88, do Instituto de
Estudos Avançados (do qual pude participar graças ao generoso financiamento do National
Endowment for the Humanities), pelos intensos e proveitosos debates sobre teoria feminista. Dan
Rosenberg foi quem inicialmente me motivou a pensar os paralelos entre “cultura” e “raça”.
Tim Mitchell auxiliou-me a esclarecer vários aspectos de minha argumentação, assim como o
fizeram os participantes do seminário avançado na School of American Research, profundamente
estimulante, onde apresentei este texto pela primeira vez. Mas acima de tudo, foi a generosi-
dade das famílias Awlad ‘Ali com quem vivi no Egito que me permitiu enxergar maneiras de
questionar certas noções de outridade. Minha estada mais recente entre eles, no ano de 1987,
foi possível graças a um financiamento por meio do Fulbright Islamic Civilization Award.
Notas
A. Republicação autorizada a partir do original constante em “Recapturing Anthropology: Working in the Present”,
volume organizado por Richard G. Fox. Copyright 1991 para a School for Advanced Research, Santa Fé, Novo México,
Estados Unidos. Todos os direitos reservados. Os tradutores agradecem a atenção e consideração prestadas pela autora e
pela editora responsável, Sarah E. Soliz, que muito gentilmente cederam os direitos desta publicação.
a. NdT: O termo inglês halfie, escolhido pela autora, comporta a noção de um sujeito composto por distin-
tas referências e formações (de half, “metade”). Apesar de não ser equivalente direto de mestiço, em sentido
sócio-histórico, optamos por manter esta tradução devido às semelhanças que apresenta com o aspecto de
interseccionalidade tanto étnica quanto racial do termo inglês.
2. Do mesmo modo, Marcus e Clifford (1985) e Marcus e Fischer (1986) indicam as feministas como importantes
fontes para a crítica cultural e antropológica, mas não discutem seus trabalhos. Fischer (1984, 1986, 1988), entretanto, há
muito tempo se interessa pelo fenômeno do biculturalismo.
3. Ainda é raro que antropólogos/as, nesta ou em outras sociedades, façam o que Laura Nader defendeu há vários
anos (1969) – “study up”.
a. NdT: A proposição “studying up” diz respeito a realizar um estudo junto às camadas mais privilegiadas, social,
econômica e politicamente, de uma sociedade: seus governantes, responsáveis pelas tomadas de decisão etc.
4. Suas várias estratégias se baseiam nessa divisão e na série de oposições (cultura/natureza, público/privado, tra-
balho/lar, transcendência/imediação, abstrato/específico, objetividade/subjetividade, autonomia/conexão etc) a ela asso-
ciadas: a) mulheres deveriam ser capazes de adentrar o respeitável mundo dos homens, como se fossem homens ou tendo
seus privilégios; b) os valores e trabalhos das mulheres, mesmo que diferentes, deveriam ser tão valorizados quanto os dos
homens; ou c) mulheres e homens deveriam ambos mudar e adentrar as esferas uns dos outros, a fim de apagar diferenças
de gênero.
5. Isso não dissolve o feminismo como identidade política, argumenta Harding, mas a questão mais pungente
nos círculos feministas é, agora, como desenvolver uma política de solidariedade, coalizão ou afinidade construída sobre o
entendimento das diferenças mais do que uma solidariedade unitarista, cuja identidade é definida pela oposição a um outro
que, por sua vez, havia inicialmente conferido àquela identidade o papel de outra. A reflexão mais interessante neste sentido
foi a de Haraway (1985).
6. Para um debate sobre a convergência das críticas antropológicas e feministas com relação à objetividade, ver
Abu-Lughod (1990a).
7. Em seu pronunciamento à Associação Antropológica Americana, em 1988, o ponto central para Edward Said
era considerar que antropólogos/as deviam não apenas atentar para o “o lugar antropológico”, mas também para a “situação
cultural na qual o trabalho antropológico de fato se desenvolve” (1989, p. 212).
8. Muito da literatura sobre antropologia nativa está às voltas com as vantagens e desvantagens desta identificação.
Veja-se Fahim (1982) e Altorki e El-Solh (1988).
9. Ver também minha discussão sobre o estudo de gênero na antropologia do Oriente Médio (L. Abu-Lughod,
1989).
10. De modo paralelo, aqueles que estudam a experiência negra são vistos como se estudassem uma forma marcada
da experiência. Poderíamos contestar, e figuras como Adrienne Rich têm contestado, que a forma não-marcada e universal
da experiência, da qual a outra difere, é ela mesma parcial. Esta é a experiência da branquitude.
11. Crapanzano (1977) escreveu de maneira perspicaz sobre o frequente processo de distanciamento do campo
em que se trabalha e sobre a constituição de identificações com o público antropológico, algo que todo/a antropólogo/a
enfrenta ao sair de campo.
12. Isso vem ocorrendo de maneira acalorada, por exemplo, no campo dos estudos sobre mulheres do Oriente
Médio, em que se questiona quem teria direito a falar pelas mulheres da região.
13. Alguns poderiam querer diferenciar “mulherismo” e “feminismo”, mas na maior parte da literatura ambos se
confundem.
14. Arens (1979), por exemplo, levantou a provocativa questão do porquê antropólogos/as se aferrarem tão forte-
mente à crença de que em algumas culturas o canibalismo é prática ritual aceita, quando as evidências (na forma de relatos
de testemunhas oculares) são tão escassas (quando não inexistentes, conforme o autor).
15. Em meu próprio trabalho junto à comunidade beduína do Egito, passei a pensar em termos de discurso, em
vez de cultura, simplesmente por ter de encontrar maneiras de compreender o que pareciam dois discursos contraditórios
no plano das relações interpessoais – um, de honra e pudicícia, e outro em que o discurso poético era o da vulnerabilidade
e do apego – ambos fornecendo bases e sendo usados pelos mesmos indivíduos em contextos diferentes (Abu-Lughod,
1986). Em reflexão recente sobre as reações de beduínos à morte (Abu-Lughod, s/d), também precisei lidar com o fato de
haver múltiplos discursos sobre a morte nessa comunidade. As pessoas não apenas utilizavam explicações contraditórias para
mortes concretas (invocando, em certo caso de morte acidental, simples descuido, ações específicas de membros da família, o
olho [gordo], o destino e a vontade de Deus), como os dois principais discursos – os lamentos rituais funerários e o discurso
islâmico sobre a vontade divina – mostravam-se atrelados a diferentes grupos sociais, homens e mulheres, servindo como
sustentação e justificação das diferenças de poder entre eles.
16. Duas novas publicações, Public Culture: Bulletin of the Center for Transnational Cultural Studies e Diaspora: A Journal of
Transnational Studies, oferecem fóruns para discussão desses temas transnacionais.
17. Para evidências de um “sistema mundial” no século XIII, ver J. Abu-Lughod (1989).
18. Dumont (1986) recentemente reforçou tal ideia, declarando que mudanças na teoria social são meramente
mudanças metodológicas.
19. Para uma discussão mais interessante e detalhada sobre a inquietação de Clifford com o feminismo, ver Gordon
(1988).
20. A esta lista poderíamos incluir muito mais exemplos, dentre os quais o mais recente de Friedl (1989).
21. Isso também pode explicar a omissão de Paul Riesman, cujo experimento em escrita etnográfica foi publicado
em 1974, em francês, e em inglês em 1977, fazendo dele um dos primeiros do tipo.
22. Meu próprio experimento nesse gênero de etnografia narrativa em breve será publicado (Abu-Lughod, no
prelo).
23. A associação com o humanismo é tão condenatória que sua menção por Said é o ponto crucial da crítica feita
por Clifford (1980) ao Orientalismo.
24. A força do racismo anti-árabe no Ocidente por vezes faz com que esse projeto pareça desencorajador. Um
artigo recente intitulado The Importance of Hugging [A importância do abraço] usa uma distorção de meu trabalho como re-
forço a seus argumentos de que a violência e sanguinolência naturais dos árabes são causadas por sua suposta incapacidade
de abraçar os filhos (BLOOM, 1989).
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