Afrocênica - Poéticas de Cenas Pretas
Afrocênica - Poéticas de Cenas Pretas
Afrocênica - Poéticas de Cenas Pretas
Tássio Ferreira1
Abstract: The present work reflects about the creation of a concept about observating new
africans poetics e afrodiasporics from contemporanean theatric scenes. For this reason, we relate
the referred concept to an art teaching methodological proposal, titled Circularity Pedagogy.
This guideline considers any process cognition by a decolonized perspective, comprising the
individual person integrated to the process as a direct proponent of actions and knowledge
sharing, eliminating knowledge hierarchy and the artistic production. At these reflections we
group some creation strategies, with clear examples, specifically at three different groups’
productions: Grupo Elinga-Teatro (1988, Luanda, Angola), Bando de Teatro Olodum (1990,
Salvador, Bahia, Brazil) and NATA (1998, Alagoinhas, Bahia, Brazil). So, we will collate this
research with the “expanded field” concept of Ileana Diéguez (2014).
Résumé: Le présent travail reflète la création d 'un concept sur l' observation de nouvelles
poétiques africaines et afro - diasporiques de la scène théâtrale contemporaine. Pour cela, nous
relions le concept visé à une proposition méthodologique d'enseignement des arts, intitulée
Pédagogie de la Circularité. Cette directrice considère la connaissance de tout processus par une
perspective décolonisée, en considérant l'individu intégré dans le processus comme promoteur
directs des actions et du partage des connaissances, en eliminand la hierarchie du savoir et la
production artistique. Dans ces réflexions, nous groupons abordé quelques stratégies de
création, avec des exemples clairs, en particulier dans la production de trois groupes: Grupo
Elinga-Teatro (1988, Luanda, Angola), Bando de Teatro Olodum (1990, Salvador, Bahia,
Brésil) e NATA (1998, Alagoinhas, Bahia, Brésil). Nous allons donc rassembler cette rechèrche
avec le concept de “champ élargi” de Illena Diéguez (2014).
1
Professor Assistente da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), IHAC/ Centro de Formação em
Artes, Campus Jorge Amado (Itabuna-Ba). Doutorando em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-
graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA). Taata dya Nkisi do
Terreiro Unzó ia Kisimbi ria Maza Nzambi (Simões Filho-Ba). E-mail: [email protected]
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Mots-clés: afroperspective; théâtre; théâtralités; scène contemporaine; processus créatif.
2
Terreiro de matriz Congo-Angola, situado no município de Simões Filho-BA.
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dos baianos, a todo instante é entoado pela boca daqueles que os comparam com um ser
ruim, negativo, relacionado ao sexo, orgia, conquistas amorosas, morte, feitiçaria,
dentre muitas imagens possíveis, que nem sempre fazem jus a sua real atuação
simbólica. Jorge Amado diz que Exu é aquele que atirou uma pedra ontem para matar
um pássaro hoje. Figura contraditória por natureza, porém fundamental nos cultos afro-
brasileiros para que a dinâmica religiosa aconteça. Vanda Machado (2010, p.12) traz
outras qualidades que nos ajudam a compreender esta mítica representação:
Não se faz nada sem Pambu Nzila ou simplesmente Nzila. Sem o “agradá-lo”
previamente, não há festa, não há candomblé, não se pode iniciar a criação de nenhuma
energia dentro de uma Unzó (Casa de candomblé na nação Angola). Nzila prepara o
terreiro para que os ritos aconteçam. Nzila não é diabo, satanás, demônio. Não o
reconhecemos desta forma. Neste sentido, iniciar com Nzila dentro de um contexto
artístico-mito-poético, considerando seus aspectos de imaginário popular – nunca
religiosos – é importante para o start da desconstrução negativa daquilo que está
relacionado ao povo negro: religião, músicas, cores, comidas, arte etc.
Na ideia de compreender possíveis práticas que contemplem os estudos acerca
da cultura africana e afro-brasileira, Nzila não pode ser negligenciado, porque ele é o
próprio símbolo do círculo, circularidade, do ir e retornar, de não hierarquizar, de
possibilitar acesso a todxs, sobretudo no universo das artes. Como Exu não tem
caminhos para caminhar, dentro da esfera dos processos de criação, o
processor/encenador/criador deve estar dotado do arquétipo de Nzila, para entender
compreender os modos disformes de aprendizado a partir de uma perspectiva
descolonizada.
O senso-comum observa apenas um lado das coisas: é parcial. Vê apenas uma
direção: é linear. Exu não é apenas branco ou vermelho. Ele é policrômico:
branco, vermelho, verde, preto… Ele anda em todas as direções no mesmo
instante (Oliveira, 2007, p.165).
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Não se pode ter caminhos demarcados, não se pode ter um fim preciso. Deve-se
ter um início, possibilidades de provocação e muitos objetivos traçados, para que alguns
deles sejam talvez atravessados. Nestas perspectivas iniciais, peço licença ao nosso
mandingueiro, para que reforce a ideia do circular como possibilidades de compreender
o que viria a ser nossa cena afro, ou melhor, nossa Afrocênica:
3
Kiuá, Nzila! Pembelê – do bantu, na língua Kikoongo quer dizer: “Viva, Nzila! Eu te saúdo!”
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Muhatu – feminino, mulher. Kaiala, Kokueto, Samba, Kaitumba são Minkisi das águas salgadas. Já
Kisimbi e Ndanda Nlunda são divindades femininas das águas doces.
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seus conceitos brancos, na leitura de obras de arte pretas. A crítica de Munanga a
respeito do pensamento de Levis-Strauss aborda justamente uma leitura rasa acerca do
processo criativo e significativo da expressão artística africana. Ele argumenta que a
arte primitiva africana tinha que lidar com uma tecnologia bastante rudimentar e a
dificuldade de lidar com materiais de grande resistência, o que implicaria diretamente
na qualidade da representação. Porém, as formas de representação africana não levam
em conta a imitação do real, mas a significação do sobrenatural através do material. Não
há compromisso em reprodutibilidade dos caracteres humanos, e, sim, de forças da
natureza, que carregam um arquétipo do humano, com características físicas próximas
do real-material.
Desse modo, o que se expressa nas estátuas, ora discutidas, é justamente a
comunicação e ligação do material, terreno, com o sagrado. Arte africana é a uma das
formas de conexão de toda uma cosmovisão particular. Expressar-se artisticamente para
se conectar com o sagrado. Não há falhas na construção dessas materialidades, porque
aqui não há um modelo específico a ser alcançado. A criação precede uma autorização
sagrada para a execução, bem como o manejo de matéria prima específica. O mesmo se
aplica na confecção das máscaras (Mukange) utilizadas em quase todos os rituais sociais
do povo Bantu.
Particularmente a respeito destas máscaras, seu culto se perde na travessia
transatlântica, e não temos registros atuais de perpetuação de ritos sociais e religiosos
ligados à fabricação e uso das Mukanges. Algumas pistas nos levam a compreender o
fim das Mukanges nas expressões sociais diaspóricas no Brasil. A madeira utilizada
para tal não existe no Brasil, o que dificulta a confecção; o culto das mukanges não veio
nos porões dos navios negreiros para o Brasil; além disto, a criação das máscaras
demandava uma iniciação específica e certo tempo de reclusão nas matas, para
oficializar a autorização de manejá-la. Com a perversidade da escravidão, não é difícil
pensar que faltava tempo para esta atividade. Há registro de apenas um terreiro em São
Paulo, Inzó Tumbansi, com o sacerdócio do Taata dya Nkisi Katuvanjesi (Walmir
Damasceno), que ainda mantém esta tradição, através do vínculo direto com
comunidades Bantu em Angola.5
5
O Inzó Tumbansi possui uma página virtual para divulgação de sua associação religiosa e de resultados
de pesquisas desenvolvidas pelos membros, disponível no endereço eletrônico:
http://ilabantu.inzotumbansi.org/ acesso em: 01/03/2018.
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Ainda tratando desta travessia, é importante salientar que a produção artística
ancestral está diretamente ligada ao sagrado. Chegando ao Brasil, nossos ancestrais
negros criam o Candomblé como símbolo de resistência de sua cultura. Candomblé,
palavra brasileira que parte da expressão de língua kikoonko, Bantu, Ka Nzo Ndombe –
sendo “ka” usado para o diminutivo; “nzo” significa casa; “ndombe” significa
negros/nativos. Portanto, acredita-se que no dia-a-dia, a expressão alterou-se para Ka
ndombe, que mais tarde tornou-se candomblé (pequena casa de negros ou espaço de
reunião de negros). É impossível ignorar o candomblé como inspiração poética para a
produção artística negrorreferenciada, porque um terreiro é a reconstrução de uma
sociedade que foi fortemente violentada em seus valores sociais, políticos éticos,
morais, artísticos e de expressão livre, de forma geral.
6
Minkisi – Plural de Nkisi (espírito sagrado das forças da natureza). Relacionados aos elementos água,
terra, fogo e ar. Os Bantu acreditam que Nkisi não teve vida terrena, se configurando, portanto, como uma
energia superior da natureza, que se materializa num corpo de um médium devidamente preparado para
receber essa energia. Neste sentido, somos contrários à filosofia Iorubá, a qual acredita que os orixás
foram homens e mulheres comuns, que habitaram a terra. Por seus feitos heroicos, se destacam e ganham
títulos sagrados, tornando-se eledás, orixás, deuses.
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junta à energia ancestral do sagrado, instaurando um campo expandido que só é
perceptível através do sensível, do sentir. Muitas vezes sendo impossível expressar em
palavras ou formas pré-concebidas.
7
Muimbos – Cânticos.
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AFROCÊNICA: MITO, MEMÓRIA, ORALIDADE, CORPO E EXPRESSÃO
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oralidade, corpo e expressão, como produto da dilatação das expressões da cena citadas,
que justapostos possibilitam que a Afrocênica se inscreva.
É perceptível que a expressão cultural dos Bantu está muito próxima das
manifestações da performance/performatividade, sobretudo no campo das Teatralidades
(Féral, 2002). Nessa confluência de referências, entendo que no campo da performance
e das teatralidades há espaço para este diálogo com a cultura Bantu afro-brasileira. O
desejo agora é cruzar esses dois universos tão próximos e tornar uma potente cena
afrodiaspórica.
A este respeito, faço agora uma aproximação da “cenicidade do axé” com as
epistemologias da performance/performatividade/teatralidades como campo expandido.
A ideia de circularidade já posta não é novidade quando o assunto é Teatro.
Desde a Grécia, com os rituais religiosos, percebemos que o grande momento de
exaltação aos Deuses, mais especificamente Dionísio, culminava numa relação circular.
Dessas relações de religiosidade carregada de estética – a exemplo do candomblé – o
teatro se configura. Do grego, Theatron (lugar onde se vê), com isto começamos a
desenhar esse pensamento do que é de fato a teatralidade. Iniciar com este conceito da
visualidade, do que se vê, como se vê, porque ou por quem se vê, são os primeiros
vestígios que me impulsionaram a refletir sobre minha prática enquanto
professor/encenador. Sílvia Fernandes, em diálogo com o pensamento de Pavis nos diz
que:
[...] Para um espectador aberto às referências da cena contemporânea, a
teatralidade pode ser uma maneira de atenuar o real para torna-lo estético; ou
um modo de sublinhar esse real com um traçado cênico obsessivo, a fim de
reconhecê-lo e compreender o político, ou um embate de regimes ficcionais
distintos que impede a encenação de construir-se a partir de um único ponto de
vista, e abre múltiplos focos de olhar em disputa pela primazia de observação de
mundo (Fernandes, 2011, p.12)
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advento da internet, a modernização dos aparelhos celulares, cujas novas funções são
equivalentes a um computador, permitem conexões em tempo real com diversas culturas
e pensamentos no mundo. O que antes era impossível de pensar, hoje é uma realidade; o
acesso à informação e à imagem é assustador. E o que mais me assusta é como jovens,
ainda na primeira infância, se relacionam com grande intimidade com essas novas
tecnologias.
Com a queda dos muros do dramático como essência do teatro ocidental, a cena
se expandiu, como já relatado, envolvendo o espectador no espetáculo. Essa
“revolução” na verdade já existe desde que o teatro foi sistematizado pelos gregos, mas
só ganha novos olhares com a poética de Bertolt Brecht, quando este derruba a tal
quarta parede da sua cena, permitindo que o público entre no espetáculo, seja ele
próprio um dos criadores. Neste caso, a poética brechtiana se vale de valores políticos
para discutir sua cena declaradamente social, como vê Robert Brustein (1967) em seu
Teatro de Protesto. A ficção está aqui a favor do discurso estético, cênico e político. A
cena teatral dilata-se a tal ponto que a ficção e a realidade dividem a mesma fronteira,
porque não interessa o ‘como’, mas ‘o quê’ passa, o que toca, a experiência deste saber,
conforme escritos de Jorge Larrosa Bondía (2002).
O que está em questão é a própria crise do teatro, que se arrasta desde sua
existência até os dias que seguem. As teorias de Peter Szondi, Jean-Pierre Sarrazac,
Hans-Thies Lehmann, dentre outros autores, erigiram pensamentos acerca dessa crise
que nunca chega ao fim. Nas fronteiras da crise conceitual declarada, segue a
Teatralidade, a Performance e a Performatividade.
Fernandes compreende a Teatralidade como um campo polissêmico, incluindo a
performatividade e depende da leitura do espectador para se construir (2011, p.12). Por
isto, há tantos embates epistemológicos acerca dessas fronteiras, mas o detalhe para o
entendimento será, certamente, a abordagem que cada vertente se debruça. Obviamente
que esta abordagem em ambas as três significações da expressão artística –
Teatralidade, Performatividade e Performance – depende da significação da experiência
de quem por elas foram atravessadas. No embate sem vitória, estão as primeiras
fronteiras de Performance e Performatividade. Sobre o primeiro, do inglês entende-se
“performance” como desempenho, como algo inacabado, em construção, em ação. A
professora Mariana Simoni Machado, se apropriando dos conceitos da autora canadense
Josette Féral, adensa o debate:
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No âmbito desta definição, Féral contrasta de maneira não dicotômica a noção
de performatividade com a de teatralidade – esta última mais ligada ao drama, à
estrutura narrativa, à ficção e à ilusão cênica, que depende do olhar oscilante do
espectador para tomar consistência – a partir das três conotações conferidas por
Schechner para o verbo performar na língua inglesa: de acordo com a primeira
delas, to perform equivale a ser (being), viver, se comportar; conforme a
segunda, este verbo corresponde a fazer (doing), atividade de tudo que existe. E,
por fim, sob a perspectiva da terceira conotação, to perform refere-se a mostrar
o fazer (showing doing). Este último sentido identifica-se, nesta ótica, com a
base da teatralidade. (Machado M., 2002, p.05)
8
“he know what to expect from the scenic design – a play”.
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em que ele olhou para o lugar que estava falando; forçou-o a ver o teatro onde antes ele
só viu uma ocorrência casual (ibid, p.96, tradução nossa)9.
A autora acredita que a noção de Teatralidade é inerente ao homem. Vemos uma
simples cena no cotidiano e temos a capacidade de reconhecermos esta, sem nem
conhecer os conceitos de base para a existência de uma cena, portanto a noção de
Teatralidade como prática recorrente da natureza humana é mais fácil de ser despertada,
do que a fruição de uma obra teatral seja ela qual for. O que também não impede que
façamos a leitura de uma representação teatral. Segundo a autora, a performatividade
estaria alocada no mesmo âmbito. Porém, ela reconhece nesta fronteira uma diferença
clara, já citada entre ambas, afastando-as em categorias diferentes pela proximidade ou
não do uso de narrativas. O que não cria uma regra estática de que toda Teatralidade
seja cerceada por uma narrativa. O que quero dizer é que há mais inclinação para
construção através de uma narrativa, seja lírica, épica ou dramática, ou a mistura dos
três conceitos bases, ou o entrecruzamento, ou a interdependência, nesta construção
imagética. Não importa muito a estrutura. Importa pensar nessa prerrogativa do flerte
com a narrativa.
A respeito do conteúdo da Perfomance, Fernandes (2011, p.16) nos diz que “[...]
a performance nunca é objeto ou uma obra acabada, mas sempre um processo, por estar
ligado ao domínio do fazer e ao princípio da ação. Neste caso, a performance seria
aquilo que vem transcender o conceito do teatro, descolar a alma do corpo cênico, para
que esta alma seja outro corpo. Fazendo uma analogia a Pedagogia da Circularidade, é
possível dizer que a performance caminha pelas mesmas trilhas, já que se interessa pelo
contínuo. Ainda é possível dizer que a performance está no teatro, no processo de
materialização da representação, mas o teatro não está na performance, por que a este
não interessa o inacabado; o teatro se instaura na instabilidade do presente que é
finalizado a cada instante e só este existe no tempo, segundo Ricoeur (2010), ao refletir
sobre o pensamento de Agostinho, seria o “Triplo Presente”. Agostinho diz que: “o
presente do passado é a memória, o presente do presente é a visão [depois chamada de
atenção] e o presente do futuro é a expectativa” (Confissões, 20, 26 in Ricoeur, 2010).
9
“We might conclude that in this instance, theatricality seems from, the spectador’s awareness of a
theatrical intention addressed to him. This awareness altered the way in which he looked at what was
talking place; it forced him to see theater where before he saw only a chance occurance”.
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Agostinho vai dizer que a memória e a expectativa estão suspensas na alma,
restando apenas a atenção, porque tudo automaticamente será passado. Por esta razão o
teatro não pode estar circunscrito na performance, pois a realização da representação
está sendo feita e só interessa aquele momento. Quando esta acabar, outra iniciará. Não
há como registrar este tempo, partindo dos princípios de Agostinho. Nem há como
registrar o tempo no candomblé. As vivências são únicas. Nenhum rito acontece de
forma idêntica ao outro, apesar de utilizar os mesmos elementos, mantendo a
tradicionalidade. Mas, a Performance também não dá conta de estar no passado,
preferindo expor ao público o presente do passado acontecendo no presente. É como se
abrisse o interior de uma máquina em atividade, e víssemos apenas as engrenagens
sendo lubrificadas por óleo, e algo sendo construído neste instante. Quando as
engrenagens param, o que importa para a performance é o que já foi visto: algo sendo
criado. O teatro se imbui de mostrar com detalhes o que está sendo criado e o que foi
produzido como objeto desta criação. A Performance pode interromper esta última
etapa, porque a ela é desinteressante. O objeto desta criação não é o foco. O que importa
para a Performance é justamente o trajeto.
A Performance, ao se aproximar da representação, descola-se desta e ganha
outra forma de ser vista/percebida/compreendida. A Performatividade estaria na linha
tênue do descolamento da alma do corpo. Assume caracteres do teatro e da via contrária
da performance. De algum modo, a Teatralidade se aproxima da Performatividade neste
instante.
A Teatralidade repousa no campo de uma pseudo representação simbólica, ainda
que não necessariamente pertença ao teatro. Já a performance, segundo Fernandes se
expressa numa rede de impulsos (2011, p.18). Esta rede de impulsos gera um campo
simbólico de expressão, efetivamente instaurado na materialidade física do ambiente, o
que Ileana Diéguez (2014) chama de campo expandido. Ela diz que deste campo
expandido, na fronteira da performance e da representação teatral, emerge a
Teatralidade.
De algum modo este pensamento se justapõe ao de Féral (2002, p.16), quando
ela insiste em dizer que a leitura da Teatralidade dentro das manifestações humanas é
possível de ser experienciada pelo homem de forma natural: “Os objetos com sua
imponente presença, tomaram espaços e produziram uma presença cênica que
demandava atenção ou expectativa”. Esta observação foi feita pela autora, quando esta
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fala da instalação de objetos que se descolam das paredes brancas dos museus, forçando
os pintores a reconsiderarem sua forma de expressão. Todavia, é interessante pensar na
necessidade de atenção que a Teatralidade demanda e se faz presente. Campos
expandidos se formam e somos capazes de senti-los, ainda que não inscritos dentro de
espaços convencionais de representação. Isto por que: “a teatralidade é uma disposição
complexa e mutante, [...] não redutível à cena nem a interpretação de um dado prévio”
(Diéguez, 2014, p.125) – é uma condição do homem ver, perceber o teatral.
Pensando nesta complexidade da noção do campo expandido proposto por
Diéguez, consigo estabelecer um paralelo com o candomblé, com o terreiro/templo. Ao
passar da porteira, portão principal da entrada, ali já se instaura um campo negro
expandido, através do qual o visitante/espectador já está circunscrito na cena/cotidiano
do axé, diante de objetos/casas/cheiros/cores/folhas/indumentárias específicas que o
envolvem num campo de atenção e reflexão constante, sem que este se desse conta da
atmosfera expandida que o envolve. Neste sentido, é possível dizer que “[...] o processo
de integralidade do pensamento africano, que não sedimenta o conhecimento,
oportunizando ao indivíduo um contato global tanto com os elementos materiais da
natureza quanto com as realidades espiritual, simbólica e social” (Barbosa, 2016, p.47).
Imerso no campo negro expandido, amplia-se a noção complexa de mundo,
extrapolando os valores de sua vida particular, com a pulsação do mundo. Relacionando
a nossa Afrocênica, imagina-se, rapidamente, que esta condição primeira dos elementos
culturais do axé sejam facilmente reconhecíveis, em seu campo negro expandido,
através de uma representação cênica.
Ter a capacidade de envolver o público em uma conexão
cênica/artística/espiritual/simbólica potencializa o discurso a ser proferido nos
espetáculos. Deste modo, é interessante engrossar o caldo político de reivindicação do
lugar do negro na sociedade, pelo fim do racismo, problematizando questões gerais, ou
até mesmo existenciais que garantem ou furtam a liberdade de ser negro no Brasil.
Quando falo de tradição não me refiro a algo congelado, estático que aponta
apenas à anterioridade ou antiguidade, mas aos princípios míticos inaugurais,
constitutivos e condutores de identidade, de memória, capazes de transmitir de
geração a geração a continuidade essencial, e ao mesmo tempo, reelaborar-se
nas diversas circunstancias históricas, incorporando informações estéticas que
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permitam renovar a experiência, fortalecendo seus próprios valores (Mestre
Didi, 1989).
A tradição aqui posta pelo Mestre Didi transcende a noção de passado estanque,
ressignificando seus valores enquanto presentes na contemporaneidade, a partir de uma
nova estética e modos de ser, porém, sem esquecer as raízes que motivaram a
sobrevivência dos povos na contemporaneidade. Esta continuidade é viva na cena teatral
contemporânea por alguns grupos teatrais, os quais ainda reconhecem a importância em
exaltar estes valores ancestrais para nutrir forças para o discurso político engajado nas
poéticas negras dos dias que seguem.
Posto este universo pedagógico circular já mencionado, considerando o campo
negro expandido instaurado, se faz interessante pensar nas encruzilhadas que levam a
este estado de cena. Diretrizes serão traçadas para se pensar na construção de um
discurso cênico que privilegie determinados caracteres a serem listados:
a) Ativação da Memória Corporal Africana/corpo ritmado/corpo-dança e discurso
político;
b) Mito-poemas e matrizes narracionais em cena;
c) Musicalidades instauradora de presença/visualidades e simbologias ancestrais.
Estas investigações não necessariamente seguem esta ordem em seu processo de
experimentação cênica e formação artística. Não importam os caminhos, nem se faz
necessário o domínio completo dos atuantes em todos os segmentos. O que se percebe é
o entrecruzamento destes aspectos ao reconhecer a Afrocênica como preparação
conceitual e prática para a cena diaspórica.
10
“Cavalo” é uma expressão utilizada nas comunidades de terreiro para relacionar diretamente a pessoa
que incorpora, que tem mediunidade de incorporação de espíritos, neste caso, que “vira” no
orixá/Nkisi/vodum. Expressão comumente falada pelos caboclos, espíritos ancestrais dos índios,
boiadeiros que viveram no país e hoje, no plano espiritual, atuam como conselheiros, curandeiros, guias e
protetores espirituais de nós, seres viventes do Brasil.
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universos míticos, ancestrais, políticos e crítico-sensível. A respeito deste corpo a ser
ativado para a cena, Barbosa (2016, p.98) chama de corpo templo:
Com licença poética dos escritos de Grada Kilomba, imagino esta boca como
todo um corpo ancestral, através do qual a necessidade de expressar-se é urgente,
tornando este corpo/boca livre das amarras e grilhões que o aprisionaram por duros
anos. Um corpo negro em cena não mais se submete a sensualização e violência
enquanto estado de prisão. Ao ver um corpo/boca negra em cena, vê-se um discurso
político anterior à própria expressão, bem como uma ancestralidade que protege e
retroalimenta seu estado de prontidão e vigor na cena.
Este corpo negro ativado, com o auxílio potente da musicalidade que pulsa no
interior dos capilares sanguíneos, impulsionando as batidas do coração, sem dúvidas se
organiza de forma dual, com firmeza e delicadeza, com precisão e desequilíbrio, com
cadência e descompasso, de acordo com a necessidade de comunicação cênica ou de
relação com a sociedade. Este corpo dança, muitas vezes sem dançar. Dança porque
existe, porque a necessidade de fazer este corpo manter-se vivo é através da coreografia
orgânica de seu corpo, movimentos peristálticos, contrações involuntárias dos órgãos, o
fluxo do sangue correndo nas veias, até mesmo em se deslocar no espaço.
Sendo veículo no processo de instauração de sentido, Exu estrutura a enunciação
própria do negro nas Américas. Sua natureza histriônica permite-lhe operar várias
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metamorfoses, sem, contudo, deixar de ser ele mesmo, sem perder sua originalidade.
Essa característica metamórfica, essa ginga (o mancar de Exu), é um elemento essencial
na arte de teatralizar do negro. Exu simboliza, assim, um mitema retórico, religioso e
dramático, no qual se apoiam algumas formas próprias da cultura negra, na encruzilhada
mesma dos discursos que essa cultura opera (Martins, 1995, p.57).
Esse corpo é também um corpo-Exu, pensando o arquétipo desta divindade
iorubá como o estado de prontidão desejado nos corpos destes intérpretes que se propõe
a experimentar uma Afrocênica. Exu está sempre preparado para ir e vir, viajar, sumir,
reaparecer, comunicar, trazer de volta, levar. Estas qualidades de movimentos são
aplicáveis ao corpo dos intérpretes, auxiliando ao processo de metamorfoseamento da
cena preta. Metamorfose que passeia por qualidades diversas de movimentos, desde a
histeria com o estado máximo de dilatação do corpo, em comunhão com o ritual
instaurado – em equilíbrio com a música, as visualidades e a energia que toma o
ambiente – até o corpo-silêncio, que não se deixa ser silenciado, ainda que a boca nada
diga. É um corpo-repertório. Corpo-encruzilhada, com muitas possibilidades e se
emprestando completamente ao jogo de cena, na certeza de que seu corpo não é só um
corpo, mas o atravessamento de religião-política-cultura-arte.
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Outro ponto a ser considerado no presente trabalho é a questão da oralidade que
está imbricada nas relações entre mito e rito. Nos escritos de Vanda Machado (2002,
p.84) ela afirma que os mitos são ensinados e vivenciados ritualisticamente no processo
de iniciação e ao longo da vida. Diz ainda que esse conhecimento transmitido atende a
necessidade de quem aprende, portanto é algo desejado, não fragmentado.
Igualmente, a comunicação, o aprendizado desses ensinamentos quase sempre é
transmitido na tradição oral. Tanto na Grécia, com as tragédias Gregas encenadas por
atores, num palco, quanto na África, com a ritualização do culto aos orixás, é possível
perceber que uma tradição do oral se consolidou, no empenho de manter viva a tradição
mitológica no social.
A propósito, acerca destes trancamentos, observamos esta tendência em utilizar
mito como poemas e permanecer viva a tradição da oralidade enquanto condição primaz
para a comunicação cênica na perspectiva Afrocênica. Mito e rito constituem a base da
narrativa das poéticas afrodiaspóricas no Brasil, estabelecendo, assim, além da
expressão através do corpo, uma comunicação estreia pelo que sai da boca deste corpo,
enraizado, quase sempre, na relação com o sagrado, místico e sobrenatural, como matriz
de sabedoria que conduz as práticas sociais para as comunidades afrodescentes.
A pesquisadora Íris Maria da Costa Amâncio (2015), em seu livro Teatro
Angolano: dramaturgia, literatura e representações de etnicidade, aponta, logo de
início, a importância das vivências dos angolanos que chegam à cena dos dramaturgos
Domingos Van-Dúnem (1970), potencializado por José Mena Abrantes (1990-2018),
junto com o grupo teatral angolano Elinga-Teatro, com a forte presença das raízes e
matrizes narracionais orais nas narrativas literárias angolas. 11 A autora destaca a
capacidade dos autores em trazer a cena, trançada na trama cênica, essas vivências de
tradições étnicas orais, presentes no imaginário popular de Angola. Estamos falando
aqui de um teatro contemporâneo, porém ancorado em temas tradicionais de Luanda.
Percebe-se que, de fato, não há como tratar de teatro/cultura em Angola sem fugir a
premissa da tradição ancestral oral.
11
O grupo Elinga-Teatro (do umbundo ‘elinga’, que significa ação, iniciativa, exercício) foi criado no dia
21 de Maio de 1988. Pelas condições de trabalho, o grupo se considera amador, com uma produção de 28
anos. A sua existência inscreve-se, no entanto, numa linha de continuidade iniciada com o grupo
Tchinganje (1975/76) e prosseguida com o Xilenga-Teatro (1977/80) e com o Grupo de Teatro da
Faculdade de Medicina de Luanda (1984/87), ambos dirigidos pelo português José Mena Abrantes. O
trabalho do grupo está voltado para a promoção da cultura angolana a todos os níveis, incluindo um
tratamento moderno dos seus valores tradicionais, e para a difusão de um repertório teatral universal.
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A mesma realidade é perceptível no grupo NATA (Núcleo Afro-brasileiro de
Teatro de Alagoinhas, 1998)12. As montagens carregam forte matriz narracional,
ancorada nas suas bases mito-poéticas, que transcendem os temas tradicionais dos
africanos, a partir da cosmovisão Yorubá, para ampliar o discurso englobando questões
gerais concernentes à contemporaneidade.
A respeito do universo mítico, o NATA lida diretamente com esta base poética,
assim como o Elinga-Teatro. Neste caso, os
Ao mito lhe cabe a função, além de outras, de conexão com forças que não se
podem descrever, apenas sentir; o mito ajuda a comunidade no processo educação,
fornecendo as crianças e jovens as primeiras noções de pesquisa, quando se defrontam
com um mito e precisam desvela-lo, para compreender o ensinamento ali alocado. Do
ponto de vista da inspiração poética da cena, Barbosa esclarece o seu processo criativo
no grupo NATA:
12
O NATA - Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas, inspira-se nos orikis e usa teatro, dança afro
e música para mostrar a beleza e a filosofia do culto às divindades, utilizando a mitologia iorubá como
inspiração mito-poética, além do candomblé com sua cenicidade de axé. Nasceu no ano de 1998 no
interior da Bahia, mais precisamente na cidade de Alagoinhas, sendo guiado pelas mãos da encenadora e
Ya kekerê do Ilê Axé Oyá l’Adê Inan, Fernanda Júlia Onisajé. Apesar de alguns espetáculos do grupo não
terem a temática Afro, o grupo tem essa temática como norteadora do discurso estético e político com
foco de colaborar na luta contra o racismo e na desmistificação da imagem negativa que a mídia reproduz
das religiões e costumes afro brasileiros. Alguns espetáculos: Sirè Obá: a festa do Rei (2009), Ogum:
deus e homem (2010) e Exu: a boca do universo (2014).
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que seguem. 13 O repertório mito-poético do Bando enaltece o negro nas suas
problemáticas atualizadas, protagonizando a cena, devolvendo seu lugar de existência.
O Bando trabalhou com textos de dramaturgos consagrados, porém sempre alterando a
perspectiva de pensar a representação original, contextualizando com os ritmos
africanos, corpo-dança gingado e forte discurso politizado de combate ao racismo e
desigualdades.
13
Surgido no segundo semestre de 1990, estreou nos palcos de Salvador em janeiro de 1991. O Bando
tem seu teatro enriquecido pela experiência dos diretores Márcio Meirelles e Chica Carelli, do coreógrafo
Zebrinha e do diretor musical Jarbas Bittencourt, que dão base estética à linguagem do Grupo. Formado
atualmente por 20 artistas negros de diferentes gerações. Suas peças mesclam humor e discussão racial,
leveza e ironia, diversão e militância. Além da palavra, os atores utilizam a dança e a música, referenciais
rituais do Candomblé e se embriagam na fonte da cultura afro-brasileira.
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negra brasileira, cubana e norte-americana. Nesse processo de preparação,
conseguimos trabalhar os elementos ancestrais da cultura africana e suas
reverberações na contemporaneidade, aprofundando esse binômio Candomblé-
Teatro sem nos afastar das discussões sobre o fazer cênico atual. (Barbosa,
2016, p.98)
Sambilè – o mesmo que barracão. Onde as cerimônias Bantu acontecem. Grande salão de festas.
14
15
Pemba – um Nkisi que abre mão de sua representação e possibilidade de conexão física com um
médium iniciado no culto de Angola, para ser um pó mágico, cobrir as cabeças e proteger o povo.
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dormir, para comer, para pedir, para agradecer, para clamar, para se arrepender, para
curar e apara devotar. Não existe poética africana sem música que diretamente
implicada na criação de um campo negro expandido.
PAÓ
REFERÊNCIAS
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