Tribos Eletrônicas
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Tribos Eletrônicas
O nosso objetivo geral neste encontro é elaborar uma agenda de estudos sobre os aspectos
antropológicos do uso de redes de computador, mais precisamente da Internet brasileira, em
vias de implantação nacional.
Até um ou dois anos atrás, a Internet só estava ao alcance de um grupo muito restrito de
usuários, pesquisadores de instituições acadêmicas, em geral comprometidas com
informática. No momento, patrocinada por iniciativas governamentais, a Internet encontra-
se em vias de atingir um público muito mais amplo, e seus advogados procuram apresentá-
la como um serviço de comunicações destinado a atender qualquer cidadão.
na fronteira
O que testemunhamos agora é uma gigantesca manobra de transferência. Por um lado, as
instituições, a classe média migram para os meios eletrônicos. Todos querem agora o seu
micro multi-mídia-modem, comprados no crediário de supermercados de eletrodomésticos.
De outro lado, os técnicos em redes migram dos laboratórios para o mercado.
Mas cabe-nos perguntar-nos, antes de tudo, de onde deriva este julgamento - tão facilmente
aceito - de que o advento das redes eletrônicas representa uma mudança sócio-cultural
assim tão profunda e significativa. Não deveríamos mais prudentemente duvidar de tais
reivindicações exageradas a respeito de algo que mal se esboça, que pode muito bem vir a
esgotar-se logo adiante - como testemunha a história de tantas outras prometidas revoluções
tecnológicas cedo abortadas?
Não devemos também esquecer de que discursos utópicos muito semelhantes, profetizando
transformações estruturais iminentes na sociedade, sempre acompanharam o surgimento de
toda nova tecnologia de comunicação - como o demonstra convincentemente J. Carey, em
especial a respeito da introdução do rádio e da TV [1].
Isto nos aproxima do assunto principal desta minha exposição. O que trago hoje para
discussão são algumas indicações gerais sobre caracterísicas e apropriações destas novas
tecnologias - e que são parte das reflexões que compõem o quadro da pesquisa que
desenvolvo para doutoramento em Antropologia Social. Mais particularmente, trago
algumas pistas para tentar responder a duas questões iniciais da minha inquirição:
• Como é que as novas tecnologias obtêm este efeito explosivo de adesão e expansão,
como conseguem criar - mesmo antes de instalar-se - este espectro de
inexorabilidade que acabamos quase sempre todos automaticamente aceitando? Por
que submetemo-nos tão facilmente a este novo imperativo do "connect or perish"?
• Como estas tecnologias inscrevem no seu corpo a individualidade dos seus usuários,
como garantem a unicidade da pessoa?
metáforas de totalidade
Critiquei e reivindiquei cautela diante das abordagens exageradamente proféticas nos
estudos de novas tecnologias. Ainda assim, propagandista ou alarmista, estas são posturas
preferíveis à indiferença, ou à mais recente versão do desdém esnobe, que recusa admitir
qualquer relevância na introdução das redes de comunicação eletrônica, qualquer mudança
significativa em relação ao que já existia [2]. Tornar-se cego às reais transformações em
curso, a título de desmistificar as jogadas de marketing dos que lucram com a inovação, é
provavelmente mais prejudicial ao estudo sócio-cultural do surgimento das redes do que
acreditar de saída que ela será a portadora da redenção (ou perdição) dos males da
civilização.
Pois não se trata de uma tecnologia comum, simples método de fabricar e utilizar
ferramentas para transformar o ambiente. Seria ingênuo naturalizá-la, neutralizar o seu
alcance, desdenhando-a como meramente (mais uma inovação) técnica. Alguns autores
chamaram a atenção para o fato de que toda sociedade humana, em meio ao seu patrimônio
tecnológico e cultural, desenvolve necessariamente uma classe fundamental de tecnologias,
das quais não podem prescindir: as tecnologias de conhecimento, ou tecnologias cognitivas
[3]. Entre as técnicas do patrimônio, há sempre técnicas estritamente dedicadas à gestão do
próprio patrimônio - das quais os gêneros maiores classicamente reconhecidos são os
procedimentos de transmissão da memória oral e os da escrita.
Ao invés de voltadas para atuar diretamente sobre os objetos e o meio ambiente para
transformá-los segundo um fim racional e utilitário, essa classe muito peculiar de
tecnologias visa gerir (preservar, atualizar, transmitir) o conjunto do conhecimento
objetivado de uma sociedade, a sua memória coletiva. São ferramentas cognitivas, que
trazem as marcas mas também marcam o caráter de uma cultura. Se levarmos a sério este
tipo de análise, tudo indica que as redes informáticas de comunicação representam um novo
estrato tecnológico - que vem se superpor e alterar a oralidade e a escritura atualmente
vigentes - na gestão do conhecimento social.
Perceber esta dimensão cognitiva fundamental da informática fornece-nos uma pista para
compreender por que as formas de representação social da rede tendem a ser
representações do todo social, como se a rede fosse "naturalmente" a metáfora da
sociedade. É assim que a rede aparece para o usuário como se fosse uma máquina única,
gigantesca, abrangendo toda a malha de instituições sociais, e reunindo o conjunto do
legado comum, de toda a tradição objetivada. Representação rizomática, modo de
articulação do heterogêneo e da pluralidade, garantidos por um suporte universal [e.g. o
protocolo IP/TCP]. Onde as desigualdades inscrevem-se como dificuldades em conhecer o
caminho, ou a necessidade do conhecimento de determinada senha de entrada, de domínio
de certo jargão ou ferramentas de manipulação da parafernália técnica.
Sob a promessa, o convite a receber (host) e ancorar todas as demais instituições, exigindo-
lhes um mínimo de adaptações, fornecendo-lhes novas bases técnicas de estabilização,
devemos preocupar-nos em detectar como estas tecnologias acabam por penetrá-las e
comprometê-las antes com seu modelo. Afinal, como a violência da implantação
compulsória não se deixa notar, como as redes se impõe sem aparecer como uma
despossessão ou domesticação forçada? Como vencem as resistências e as soluções
alternativas? (Ainda mais, como pode mesmo aparecer como libertadora, redentora,
desejável?) Usualmente se atribui o sucesso da rede frente ao seus usuários potenciais com
a retórica do acréscimo de eficiência técnica na execução das mesmas tarefas. Gostaria de
enfatizar que há um segundo componente talvez mais estratégico: o do interfaceamento
metafórico.
analogias do mundo
A aceitação "suave" das redes depende da sua capacidade de metaforização: conseguir
implementar análogos eletrônicos de outras instituições já estabelecidas. Esses expedientes
estão baseados em algo relacionado à própria originalidade das redes informáticas enquanto
tecnologia intelectual: a chamada virtualização do suporte. Essa tecnologia está toda
fundada em um dispositivo universal gerador de simulações: representações de objetos e
eventos sob a forma de modelos matematicamente construídos. (Nisto consiste em última
análise a distinção entre software e hardware).
Esta tecnologia pretende-se uma máquina universal, capaz de simular qualquer processo
computável através do mesmo suporte. A idéia é que inclusive todos os processos sociais
formalizáveis possam encontrar a sua reinscrição adequada no espaço eletrônico. Ao invés
de impor-se como uma tecnologia que obrigaria ao abandono das velhas formas de
interação social em prol de outra, ditada pelas imposições e restrições técnicas do novo
meio, as redes informáticas pretendem-se folha em branco, plenamente moldável, capaz de
assimilar qualquer outro modo cognitivo retraduzido na sua linguagem generosa.
Espaço é justo uma dessas metáforas orientadoras, talvez a mais basal, e hoje quase ubíqua:
constrói-se a interface de tal modo que a rede é percebida pelo usuário como um espaço
topográfico (ciberespaço, virtual), com lugares (sites) onde estão reunidos as atrações e
serviços, e vias de conexão (a INTERNET seria o esboço de uma info-highway, info-bahn),
"caminhos" pelos quais locomover-se entre os sítios. O processo pelo qual um usuário
busca informações, serviços, parceiros sempre evoca o de um deslocamento, de um
percurso - a navegação, o surfing - como se fosse o próprio sujeito que, mergulhado no
circuito virtual, se movimentasse percorrendo a topografia da rede - ao invés de assistir
estático aos pedaços do material circulante na rede desfilar à sua "janela". Período de
interação na rede tende a ser vivido como uma viagem: incorporação do sujeito num outro
mundo, com lógica própria, que duplica o convencional, e que permite franca circulação
por todos os seus meandros sem esforço.
O que significa quando se diz que cada vez se desenvolvem interfaces mais "amigáveis"
(user friendly)? Desenvolvem-se programas para mediar a interação do indivíduo com a
máquina que imitam procedimentos a que este infivíduo já está familiarizado no mundo off-
line - modos nada intuitivos, diga-se de passagem, mas aos quais foram treinados e
educados por todo um longo e sofisticado processo de socialização. É na medida em que se
consegue obter "cópias", modelos análogos de situações com que o usuário está habituado a
interagir, que essas tecnologias vão construindo a sua hegemonia.
metáforas de sociabilidade
As redes de computador propiciam a formação de uma forma específica de sociabilidade,
construída fundamentalmente através das interações dos usuários na e pela rede. Há uma
espécie de vocação das redes para formar comunidade, para criar laços sociais entre seus
usuários. Esta potencialidade é até certo ponto inerente à estrutura técnica dessa tecnologia,
mas também resultado das reapropriações da tecnologia pelas instituições e grupos sociais
que impõem a ela o seu uso preferencial.
metáforas de pessoa
Podemos dar um passo a mais. O que circula na rede, mais que informação, mensagens, são
atos de linguagem. A imagem do grande banco de dados não deve ocultar a da ágora
virtual, onde o que está em jogo é a interação, a negociação entre atores sociais e
instituições. Não apenas "acesso a informações" socialmente neutras, mas: ordem,
persuasão e consenso, afirmação, aliança, desafio, contestação, ofensa, solicitação, punição,
acordo, autorização, crime, sexo, defesa, promessa, compromisso, desculpa, &c. Num
terminal de computador, digitar palavras corresponde literalmente a executar comandos -
realizam ações no mundo representado do virtual. Reifica-se vez por toda a eficácia
simbólica.
Lugar público de encontro entre todo e qualquer usuário, a rede oferece condições de
formação de laços de uma sociabilidade específica, o que se tem denominado
"comunidades virtuais": pessoas que se conhecem e se relacionam na e pela rede,
submetidas às suas regras, suas possibilidades e restrições.
Para entrar e participar desta confraria, há um ritual de admissão repetido a cada conexão, a
apresentação da chave, a abertura da porta de entrada no virtual. A identidade do indivíduo
é garantida não por um traço físico (foto, voz, impressão digital), mas por um signo
exclusivamente "cognitivo", uma pequena informação "arbitrária" estocada estritamente na
sua memória "orgânica" - a senha.
Se a senha só é eficaz quando não revelada pelo dono a ninguém, a assinatura manuscrita
pode e deve ser exibida, justo como prova de identidade. O procedimento usual de
autenticação (e. g., de um cheque) é a comparação da "versão" apresentada com uma
"original" - a carteira de identidade, o cadastro do banco, do cartório, enfim, documento
chancelado pelo estado. Se ela não pode ser facilmente imitada isto é devido a
peculiaridades e limitações inatas do sistema neuro-motor humano.
Ora, a assinatura eletrônica (como é chamada especialmente pelos estabelecimentos
bancários, que encontraram nessa analogia o melhor método de fazer os clientes
entenderem o novo sistema de autenticação) baseia-se no esquema exatamente inverso: ela
não pode ser revelada, exibida a ninguém, sob pena de deixar de garantir a individualidade
do dono da conta. Uma vez divulgada a senha, a sua conta (ou o acesso a ela, o que dá no
mesmo) não mais lhe pertence exclusivamente.
A senha é tanto mais eficaz e segura, quanto mais arbitrária em relação ao usuário. Não
deve refletir, ser a retranscrição de nenhum dado relevante relacionado à biografia da
pessoa, na real life. Um tal curto circuito - repetir um dado pessoal (data do aniversário,
nome de batismo, endereço de residência) - anularia a garantia da identidade virtual: torna o
segredo muito frágil aos ataques dos crackers, às suas incursões de quebra de sigilo.
Ocorre assim uma espécie de paradoxo da userid: para garantir individualidade é preciso
escolher nome o mais afastado possível de quaisquer outros signos de identificação do
indivíduo, de qualquer outra referência consolidada da sua identidade - nome no sentido
forte: longe de toda onomatopéia, sem qualquer relação de semelhança ou de contiguidade,
sem ser símbolo ou índice do sujeito concreto, ele encerra a violência própria da nomeação,
o ato de força com que o individualismo afirma a unicidade social de cada indivíduo.
Sustentado apenas por esse dispositivo, a identidade eletrônica do usuário em princípio não
é segura: a única garantia de segurança provém de conseguir preservar sigiloso o que
sempre está sob a ameaça de ser revelado. Há ainda poucas garantias de (1) autenticidade:
de que só o usuário legítimo possa usar a sua conta, de que o sistema de login seja
inexpugnável. Há meios de entrar na rede usando a conta de terceiros, "enganando" o
sistema de login e fingindo ser o legítimo usuário. Há também poucas garantias de (2)
privacidade: que as mensagens e as ações praticadas por um usuário são invioláveis, não
podem ser acessadas ou monitoradas por terceiros não autorizados.
Em termos gerais, o bem circulante de maior valor na rede é, não a informação em geral,
como se costuma afirmar, mas o segredo. A informação circula, sem dúvida, mas o que a
qualifica, e a marca com o selo indelével do seu fundamento social, são os níveis de sigilo,
de restrição de acesso. O maior valor está na informação rara, na que permite atravessar as
barreiras, penetrar nos círculos restritos, e na que propicia criar novas barreiras, segregar,
selecionar e fundar círculos restritos.
Alguns autores chegaram a afirmar que o virtual abole a distância e o espaço - tal como o
tempo real aboliria a duração, o ritmo-em-atraso propício à reflexão e ao jogo do político.
Em certo sentido, podemos contra-argumentar que é o operador segredo que possibilita
delimitar novos contornos, fronteiras, regiões de exclusão no espaço virtual. Senão por que
concebermos o funcionamento da rede como um espaço, qual o sentido desta metáfora? A
sua pertinência deve estar na disputa e ocupação de áreas, na formação de fronteiras, nos
movimentos de territorialização da matéria virtual. Grosso modo, dentro da rede, toda
desigualdade baseia-se na distribuição diferencial de um código de acesso, no
agenciamento de um segredo.
conexão terminal
Retorno à minha pergunta provocativa inicial: por que encontramo-nos aqui, talvez um
tanto precipitadamente? Provavelmente não temos escolha, não temos tempo para hesitar.
Vivemos numa sociedade muito complexa, em que tudo se define muito rapidamente. Por
que decidimos já discutir o presente que mal se esboça? Arrisco: para também
participarmos criticamente do jogo, ao invés de apenas comentá-lo - e talvez lamentá-lo -,
quando a partida já estiver decidida.
Notas:
(*). O autor:
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, UFRJ.
Email: [email protected]
Fonte: