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ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

O SENTIDO DA CONTRAPOSIÇÃO NA PINTURA DE


PIET MONDRIAN E JACKSON POLLOCK1

Robert Kudielka
Tradução do alemão: José Marcos Macedo

RESUMO
O artigo apresenta de início uma discussão do conceito de abstração na arte pictórica,
genericamente aplicado às mais distintas obras posteriores a 1910, apontando os equívocos
decorrentes da identificação sumária ou dogmática do figurativismo como arte objetiva e da
pintura abstrata como arte não-objetiva. O estatuto da obra de arte abstrata é então
reinterpretado em termos do valor expressivo dos meios pictóricos no espaço do quadro,
como fatores de um nexo de relações, mediante uma análise da recepção crítica, da fatura
estética e das correspondências, em contraponto, das obras de Piet Mondrian e Jackson
Pollock.
Palavras-chave: pintura do século XX; abstração; Piet Mondrian; Jackson Pollock.

SUMMARY
This article begins with a discussion of the notion of abstraction in pictorial art, which has been
applied indistinctly to the most varied art works after 1910, pointing out the misconceptions
that derive from the summary or dogmatic identification of figurativism as objective art and
abstract painting as non-objective art. The author then offers a reinterpretation of the character
of an abstract art work in terms of the value expressed by the pictorial media within the space
of the painting, as elements within a web of relations. The author develops this argument
through an analysis of the critical response, the aesthetic effectiveness and the corresponden-
ce between the works of Piet Mondrian and Jackson Pollock, which are contrasted.
Keywords: 20 tb century painting; abstraction; Piet Mondrian; Jackson Pollock.

Abstração é um conceito de muitos significados. Ele abrange, nas artes (1) Publicado originalmente
em: Kunst als Antitbese, Karl
plásticas, noções tão diversas quanto a pintura não-objetiva de Kandinsky e Hofen-Simposion 1988 da
Hochschule der Künste, de
o mundo sem objeto de Malevitch, as construções de Rodchenko e o gesto Berlim, editado por Heinrich
de Pollock, a abstração de Mondrian e a tradição da arte concreta de Van Poos, Berlim, 1990.

Doesburg até Bill e Lohse; e, no sentido mais amplo, as próprias formas de


representação que há muito parecem ter abandonado a distinção "objetivo/
não-objetivo", como o minimalismo de Donald Judd ou as estratégias
conceptuais de Lawrence Weiner, podem ser subsumidas ao conceito de
abstração. A questão é apenas saber do que realmente falamos quando
julgamos abstratas obras de arte de tal modo genéricas. É necessário,
evidentemente, esclarecer as respectivas diferenças e particularidades, para
dar ao conceito um certo embasamento. Mas ainda assim persiste o mal-

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estar. Mesmo a distinção mais nítida não parece apta a dar cabo da nota falsa
no discurso. Sempre que se trata da arte abstrata, um fantasma inexistente
antes de 1910 assombra a consciência: a arte objetiva.
A teoria da arte abstrata, sem dúvida com a melhor das intenções, deu
vida a um conceito que, repetido com insistência, foi capaz de simular a
idéia a ele adequada: a arte figurativa seria a arte objetiva. Isso simplificou
consideravelmente o trato com a história e possibilitou uma estrita delimi-
tação: a arte abstrata é não-objetiva. Porém, a negação de um paradoxo não
é a definição de algo. A tradução vem arrematar o descompasso. O epíteto
"non-objective art" em inglês não pode ser traduzido, pois sua contrapartida
positiva, "objective art", é um absurdo para a sutileza anglo-saxã. Objetiva
é o que a arte justamente não pode ser; arte não-objetiva, em conseqüência,
é uma fórmula vazia. Só na língua materna de Kant o conceito de
objetividade parece tão trivializado que a discrepância entre a categoria
básica da reflexão e a realidade imagética da arte não é mais percebida. Por
outro lado, a distinção inglesa entre "representational art" e "non-represen-
tational art" também mostra, é certo, que o problema da arte abstrata não
pode ser reduzido a uma crítica das regras gramaticais, pois uma "arte
representativa" é em igual medida um lugar-comum quanto uma arte não-
objetiva, e o mistério da "não-representatividade" é congênito à essência
fabulosa da arte objetiva. O deslocamento do plano conceitual, do resultado
para o procedimento, contribui somente para tornar mais claro o nó da
questão. Toda a confusão na teoria da arte abstrata reside claramente no fato
de que a reflexão não desenvolve o conceito de abstração a partir do embate
com a arte figurativa do passado, mas, antes, incorpora o conjunto dessa
última, a tradição in toto, inclusive o próprio procedimento teórico, o da
representação de noções e idéias — com o resultado de que uma ficção
caseira, a arte objetiva, torna-se a base da compreensão da arte abstrata.
A ilusão parece tanto mais sedutora quando o discurso é embaído por
um eco inevitável: a natural analogia entre a abstração na filosofia e nas
ciências, de um lado, e a abstração nas artes, de outro. Assim, da mesma
maneira que a filosofia teria progredido da intuição aos conceitos, e a
ciência, dos objetos intuitivos às relações não-intuitivas, a arte, igualmente,
teria avançado das cópias sensíveis até as formas e regras abstratas. A
conclusão é vertiginosa: como se a pintura de Kandinsky e Mondrian, de
Pollock e Rothko não exigisse justamente os sentidos! O equívoco parece
tão poderoso que, nesse meio-tempo, após interpretar erroneamente os
fatos, foi capaz de produzir a intuição correspondente. Há telas abstratas
cuja mediocridade e cujo pedantismo levam o observador a ter certeza de
que o autor acalenta a pretensão de "pesquisar os fundamentos". E,
recentemente, há também a primeira instância, os quadros objetivos que
faltavam até agora. Pode-se reconhecê-los pelo fato de o pintor insinuar
tacitamente, por meio de citações figuradas e gestos autoconscientes, que o
observador já tem maturidade o bastante para, em sua imaginação, compor
um quadro a partir desses apelos. Contempladas na prática como experi-
mentos, essas aplicações dos preconceitos teóricos correntes demonstram,

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entretanto, o que as imagens das artes plásticas, por sua própria natureza,
não são; a saber, nem um campo de exercício para as pesquisas pseudoci-
entíficas, nem uma esfera de projeção para os objetos da consciência.
A reflexão, porém, mal teria condições de, no tumulto de equívocos
de que ela própria foi responsável, fornecer esclarecimentos a partir de seus
próprios critérios, sem com isso levantar a suspeita de dogmatismo. Ter
criado um amplo leque de classificações do ato pictórico e recorrer a ele a
todo instante é uma obra peculiar da pintura do século XX, talvez mesmo a
sua característica específica, e nisso a pintura abstrata assume uma parcela
decisiva. Se é certo que os protagonistas de primeira hora, com declarações
programáticas — seja por necessidade de justificação, seja por euforia
evolutiva —, contribuíram para dissimular o problema artístico da abstração,
não é menos claro que, com suas obras, eles foram os primeiros a abrir uma
perspectiva adequada da dimensão desse problema. A própria possibilidade
de uma tal divergência entre teoria e práxis dá a entender que pensamento
pictórico é algo inteiramente diverso de pinturas para pensar. A mera
existência de uma pintura abstrata fez com que, em termos históricos, o
interesse pelo próprio veio abstrato da tradição figurativa fosse novamente
despertado e aguçado — interesse este que desaparecera em boa parte da
literatura artística do século XIX. Pois, nas artes plásticas, figurativismo e
abstração não se acham em pólos frontalmente opostos; antes, são duas
tendências entrelaçadas: cada figura, independentemente de seu aspecto
natural, tem de ser constituída abstratamente no quadro; e, ao contrário do
que na imaginação, no quadro até a forma mais abstrata, como ressaltou
Picasso2, é sempre figurativa, ou seja, prende-se inteiramente à superfície da (2) Picasso, Pablo. "Bekennt-
nis" (1935). In: Wort und
tela. A relação pictórica entre figura e abstração desenrola-se, portanto, num Bekenntnis. Die gesammelten
Zeugnisse und Dichtungen.
contexto completamente diverso que o da relação entre intuição e conceito. Zurique, 1954, pp. 33-34.
Se, para a reflexão, o ato espontâneo da representação é fundamental e a
distinção e a associação dos objetos da consciência são balizadas pelo
conceito, já para a pintura a construção de um espaço em que as sensações
possam tomar corpo assume o primeiro plano. Essa distinção persiste
mesmo quando, num quadro figurativo — da época renascentista, por
exemplo —, as duas estratégias parecem tão acordes que o observador crê
olhar como que por uma janela para a realidade. O contexto plástico do
quadro nunca coincide inteiramente com a unidade objetiva da experiência
que nela supomos reconhecer, visto que seu espaço constitutivo furta-se à
capacidade autônoma de representação.
As supostas distorções e deturpações da pintura figurativa moderna,
não raro de maneira provocadora, suscitaram uma tal divergência. Mas o
primado da estrutura abstrata para a função representativa do quadro já
caracteriza discretamente o procedimento da arte tradicional, de modo que
nem todas as percepções objetivas fossem tidas como igualmente talhadas
para a representação — e, inversamente, nem toda fórmula pictórica bem-
sucedida parecesse empiricamente verificável. Como se sabe, os instantâ-
neos fotográficos do século XIX revelaram que a representação tradicional
do "galope à rédea solta" não reproduzia corretamente, na pintura, o

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movimento de um cavalo. A descoberta pôs os naturalistas da época em


polvorosa, mas levou Rodin a afirmar que Corrida em Epsom, de Géricault,
reproduzia melhor a dinâmica do movimento do que a cópia mecânica, pois
a postura totalmente distendida do cavalo fazia ver as fases opostas do
movimento por meio de um arco de tensão 3 . O exemplo mais memorável (3) Rodin, Auguste. Über Kunst.
Gespräche des Meisters (1911),
de uma abstração dissimulada na arte figurativa, porém, é o papel central do reunido por Paul Gsell. Zuri-
que, 1979, pp. 72-74.
contrapposto na escultura e pintura desde o Quattrocento. A posição
clássica da perna de apoio e da perna relaxada não corresponde a nenhum
fato do movimento humano: nem representa um estágio numa seqüência de
passos, nem retrata um repouso estático, sem oscilação — a não ser com a
ajuda de um anteparo ou com aquele molde de gesso dos modelos
profissionais, que o conceito artístico grego de movimento estático falseava
em pose monumental soberana. Todavia, o contrapposto vigorou durante
séculos como a súmula da postura "natural"; pois a antítese da escultura
clássica — abstraindo sua importância para a compreensão existencial dos
gregos — é o protótipo de um comutador abstrato nas artes plásticas. Graças
aos propósitos antagônicos de uma parte tensionada e outra distendida, à
união de força contida e ímpeto aberto, a totalidade viva do homem pôde
encontrar espaço na contemplação.
Tais referências talvez bastem para indicar o horizonte em que o tema
da abstração mais uma vez deve ser analisado hoje, nem oitenta anos depois
que veio à tona. Será que a arte abstrata não passa de um simples reflexo
— positivo ou negativo — das relações cada vez mais abstratas nas
sociedades altamente industrializadas do Ocidente? Ou será que ela não
salienta, de maneira controversa — contrária à superprodução sem espaço
de telas e objetos —, o genuíno outro espaço que a arte sempre constituiu?
Em 1912, Kandinsky respondeu a seu modo a essa pergunta no ensaio
"Sobre a questão da forma", ao postular a coincidência entre o "grande
realismo" e a "grande abstração"4. Uma pintura realista, que ponha na tela (4) Kandinsky, Wassily. "Über
die Formafrage" (1910). In: Es-
o objeto sem ornato, livre de toda ambição artística, traria à luz a "alma do says über Kunst und Künstler,
objeto" e calharia assim com a intenção do artista abstrato que, ao renunciar editado por Max Bill. 3ª ed.
Berna, 1973, pp. 17-47.
a todo atavio objetivo, daria suporte ao "espírito das coisas", à "harmonia
intrínseca", e isso pelo simples meio da representação. Embora de surpre-
endente clarividência, uma tal resposta enreda-se especulativamente nas
oposições contemporâneas entre "real" e "abstrato", "objetivo" e "puramen-
te artístico". Em vez da grande arte figurativa, Kandinsky apresenta como
testemunhas o ingênuo Rousseau e imagens votivas ou infantis; e, no
tocante à abstração, ele se prende a uma análise objetiva dos meios
puramente pictóricos, sem nem sequer mencionar se sua "harmonia" deve-
se, talvez, somente à ressonância naquele espaço específico do quadro.
O núcleo da concepção de que, na modernidade do século XX, duas
tendências, figuração e abstração, separaram-se visivelmente, embora se
completassem reciprocamente e coincidissem na tradição, permanece
todavia intocado por tais dificuldades de compreensão, marcadas pela
época. O desdobramento da pintura abstrata corrigiu por si próprio o puro
e simples abandono, por parte de Kandinsky, da "questão da forma" em

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favor da "harmonia interna", na medida em que deu relevo à importância do


espaço pictórico para a função dos meios pictóricos. Para Mondrian, a
questão de se formas, cores, superfícies e linhas têm uma determinada
qualidade expressiva não se acha mais em primeiro plano, mas sim o valor
expressivo específico que os meios pictóricos como um todo podem
alcançar no espaço do quadro — como fatores de um nexo de relações,
denominado por ele a "equivalência da configuração plástica". Essa eminen-
te transformação do problema da abstração permaneceu, em seu alcance,
por muito tempo encoberta, já que a recepção da obra de Mondrian
restringiu-se à classificação estilística da aparência "matemática" dos qua-
dros e à apreciação teórica dos escritos programáticos de juventude.
Somente com o advento da pintura de Jackson Pollock foi criada uma
constelação que permitiu fazer ver o tipo pictórico de Mondrian imparcial-
mente, sem as lentes do estilo e da teosofia. A crueza estilística e o déficit
teórico de Pollock conduzem a um marco zero da interpretação, do qual não
se segue nenhum pensamento — a não ser a descoberta de que Mondrian
já passara por esse mesmo ponto.

O outro Mondrian

A idéia de que possa haver um elo entre o preceptor do "neoplas-


ticismo" e o iconoclasta informal não é óbvia à primeira vista. Sabe-se qual
o aspecto de um Mondrian, tanto que ninguém acredita precisar contem-
plá-lo outra vez — um esqueleto retangular de linhas pretas sob um fundo
branco, no qual, em certas partes, se admitem superfícies nas cores
primárias vermelha, amarela e azul. Isso já basta para fechar todas as
gavetas e recolher os apetrechos no estojo do conhecimento. O estilo é
claramente abstrato; a abstração, por sua vez, como mostram as formas
geométricas, é inscrita construtivamente, e não gestualmente exposta; o
pintor, portanto, não é um expressionista abstrato, mas deve figurar entre
os construtivistas. Uma certa pureza — o fundo branco, notabene —
sugere a suspeita de purismo. Abstraindo dessa conjetura ousada, embora
um pouco arriscada, a argumentação parece plenamente plausível; cada
passo isolado é comprovado na contemplação. O único problema é que
esta imagem do pintor não tem absolutamente nada a ver com a realidade
pictórica de Mondrian. Ela faz parte da galeria das peintures mortes, de
naturezas-mortas, na qual a reflexão põe à venda as caretas que ela mesma
faz e persuade a clientela pressurosa de que uma tal mistura de evidência
cabal e generalização grosseira é o verdadeiro semblante da modernidade
do século XX.
O poder das imagens de segunda mão não é superável pelo mero
entendimento. Em vez disso, Mondrian fez-se ele próprio de cego entre os
cegos, ou seja, remeteu-se ao aspecto de seus quadros. "Não vejo nenhuma
superfície, não vejo nenhuma linha", terá ele objetado, como muitos atestam,

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a seus interlocutores, que faziam um alarde exagerado sobre a essência das


"superfícies" e "linhas" em sua pintura. Com isso não se queria dizer, em
absoluto, que a verdadeira dimensão de sua arte se achava por trás da
superfície banal, num simbolismo cósmico ou numa temática universal a que
o artista, e provavelmente só ele, teria acesso visionário. Mondrian, como
admitiu em 1941, ao lançar um olhar retrospectivo no ensaio "Toward a true
vision of reality"5, foi desde o princípio "um realista". A tentativa de deduzir (5) In: The new art— The new
life. The collected writings of
os seus quadros de seus pendores espiritualistas anteriores a 1911 ignora o Piet Mondrian, editado e tra-
duzido por Harry Holtzmann e
claro veredicto que ele profere, no ano de 1922, sobre a teosofia e a Martin S. James. Londres, 1987,
antroposofia: "Embora já conhecessem o símbolo fundamental da equivalên- p. 338.

cia, elas jamais foram capazes de atingir a experiência da relação equivalen-


te, requerida pela verdadeira e completa harmonia humana"6. Ninguém (6) Ibidem, p. 169.
protestou tanto quanto ele, de maneira tão clara e inequívoca, contra a leitura
de que a relação ortogonal entre as horizontais e as verticais teria um
significado simbólico — e isso muito antes de tais erros correntes serem
involuntariamente reanimados por biógrafos bem-intencionados, como Seu-
phor e Jaffé. O primeiro grande texto programático, "O neoplasticismo na
pintura" (1917-18), contém um repúdio resoluto de qualquer forma de
simbolismo. Vinte anos mais tarde, tal posição se agrava — sem dúvida sob o
influxo da crescente animosidade contra a arte abstrata na França — numa
recusa à importância do tema como um todo. O artigo para o catálogo da
exposição "Arte abstrata", no Museu Stedelijk, de Amsterdã (1938), exprime
já no título a exigência feita a observadores e intérpretes: "Kunst zonder
oderwerp" ["Arte sem tema"]. A cadeia de desmentidos é clara e inequívoca:
não há nenhuma evidência positiva no reino da abstração pictórica — seja no
plano da representação, seja na percepção imediata. As percepções objetivas,
como linha e superfície, são igualmente excluídas como os objetos abstratos
da faculdade de representação — os temas e símbolos.
Quando contemplamos um Mondrian, porém, é evidente que não
olhamos para nenhuma parte em específico; ou, pior ainda, observamos
felizes a nós mesmos, na paulatina produção de pequenas sensações. A
introspecção parece ser o antípoda extremo dessa arte. Os quadros acham-
se ali, concretos, ainda que onde se encontrem não esteja presente nada
além da especificação do espaço. Que essa presença insólita não é uma
mistificação, para não dizer o resultado quimérico de uma ilusão especula-
tiva do artista, mostra-se, no mais tardar, quando por uma única vez não se
cede à notória inclinação de querer compreender e, em vez disso, retoma-
se aquela atividade que, na literatura sobre Mondrian, é tão insuficiente: o
exercício de descrever o que se vê. O rigor e a coerência peculiares dessa
arte tornam-se, então, facilmente evidentes e como que comprováveis. Não
só que na pintura de Mondrian nunca apareça uma forma simbólica, como
por exemplo uma cruz sugerida; o cuidado com o tema começa a volatilizar-
se à medida que se reconhece que estabelecer e constatar algo — formas ou
conteúdos — é aquele procedimento contra o qual se dirige a limine e
integralmente a forma construtiva do quadro. A princípio com uma certa
angústia, a descrição descobre que os conceitos se desfazem involuntaria-

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mente ao menor contato — e isso, como talvez lhe sirva de consolo, de uma
forma sempre análoga, quase regular. De fato, Mondrian está com a razão:
nas abstrações amadurecidas desde o início dos anos 20, por exemplo
Tableau I(1921, Kunstmuseum, da Basiléia), não há nada para ver que
corresponda às conhecidas concepções de linha e superfície. Há tão-
somente dois componentes pictóricos diferenciados que, graças a sua
função plástica relativamente autônoma — um, teso e direcionado; outro,
distendido e estacionário —, podem ser isolados do contexto e referidos
como fatores "linear" e "de superfície".
A relação entre esses fatores muda de quadro para quadro, mas o nexo
funcional mantém-se praticamente constante até os anos 30. À diferença do
contorno tradicional, que apreende e delimita uma forma, o lineamento de
Mondrian não estabelece nenhuma diferença entre interior e exterior. Assim,
em vez de formas surgem compartimentos, campos, num único e mesmo
espaço. Em relação a esses campos, por sua vez, as horizontais e verticais não
atuam simplesmente como linhas divisórias ou limítrofes, para não dizer
como margens ou bordas que ressaltam diferentes planos. Para tanto elas são
muito largas, muito independentes como intervalos. A rigor, as supostas
linhas são faixas de intensidades diversas que, através de sua própria
superfície restrita, entram numa relação de tensão com os campos distendi-
dos: como veredas neutras, elas separam os compartimentos parcialmente
coloridos e ao mesmo tempo os inter-relacionam de maneira clara e indireta.
Esse encaixe mediato, literalmente entravado das porções de superfície, é
decisivo para a forma pictórica clássica de Mondrian. Pois a exclusão do
embate direto impede que os campos isolados contrastem entre si como
superfícies autônomas, ao adotarem diversas posições e níveis recíprocos —
em correspondência a sua cor, extensão ou localização no quadro. A
ambigüidade dos planos com que Mondrian ainda operava em sua fase
cubista é em grande parte excluída. Só em relação ao observador, no espaço
da distância perceptiva, resultam — pelo menos a princípio — consideráveis
oscilações entre perto e longe, e muitas vezes até mesmo verdadeiros
sobressaltos, conforme o ponto de observação. No interior da tela, ao
contrário, não reina qualquer hierarquia planimétrica. A dimensão plástica da
profundidade parece voltada inteiramente para fora, de certo modo diante
do quadro. A sensação de que um "fundo branco" sustentaria todos os outros
planos é sugerida somente pelo apressado trompe-1'oeil das "linhas pretas".
A cor branca, in actu, não se situa nem acima nem abaixo, mas existe no
mesmo vínculo de superfície que os demais campos cromáticos.
Esse nexo pictórico de superfície, hermeticamente estruturado, não
repousa em si, é claro, estaticamente, como um ícone. Embora exclua toda
ilusão de profundidade, ele tampouco esgota-se, por sua vez, em medições
matemáticas da superfície de fato. A ordem da superfície — aberta, sem
pano de fundo e sem subterfúgios, voltada ao observador — é simultanea-
mente extensiva, sem um centro interno e sem limites exclusivos. Graças ao
entravamento do contato direto, despontam entre os compartimentos
isolados relações múltiplas, minuciosamente calculadas, embora sempre

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surpreendentes, não determinadas por nenhum comando, ao lado de


reações, ecos e atritos que se espalham por toda a altura e largura e se
reproduzem constantemente, mas nunca da mesma forma, num movimento
de proporções rítmicas que inclui virtualmente o meio circundante imediato
do quadro como uma espécie de caixa de ressonância. Somente ambos os
movimentos, a pulsação na profundeza da distância contemplativa e a
oscilação dirigida para todos os lados e para além dos limites do quadro,
compõem o acontecimento que o próprio Mondrian denomina a "dinâmica
da superfície". Nela, sem se misturarem, rigidamente separados entre si,
todos os fatores pictóricos se acham tão harmonizados que se contestam
mutuamente em sua determinação objetiva e, assim, alcançam o primado
plástico da relação. O quadro de Mondrian existe efetivamente não em
razão das posições formais que lhe dão consistência, nem tampouco como
mera conseqüência das relações composicionais entre si, mas vice-versa: os
espaços e laços isolados ganham seu aspecto peculiar e sua função
específica a partir da dinâmica original — que emerge da relação com o
observador — da combinação de todas as posições e relações no quadro.
A descrição desse nexo não é, evidentemente, apenas o primeiro
degrau da interpretação; ela já contém toda a expressão da arte de
Mondrian. De fato, a pergunta sobre o que representa o quadro torna-se
ociosa en route, em face da descoberta de onde ele se encontra — a saber,
nem na distância de uma percepção objetivamente fundada, nem como
simples fantasma óptico, no olhar do observador. O espaço é "abstrato" no
sentido puro e simples de que se furta à apreensão direta — está a um
vigoroso salto mais próximo do que os objetos da experiência e um bom
pedaço mais distante do que parece a nós mesmos. Ou seja, o observador
não é "incluído" no quadro, mas liberado pelo quadro numa relação que
o próprio Mondrian denomina "relação primeva": "a do extremo Um com
o extremo Outro"7. Nela, exclui-se toda inclinação à autonomia de um ou (7) Mondrian, Piet. "Die Neue
Gestaltung in der Malerei"
de outro extremo. Antes, os diferentes componentes e correlatos — tanto (1917-18). In: De Stijl. Schrif-
ten und Manifeste, editado por
os elementos isolados no quadro quanto o quadro como um todo, em sua H. Bächler e H. Letsch. Leip-
relação com o espaço e o observador — acham-se tão relacionados entre zig/Weimar, 1984, p. 66.

si que, de um lado, sua peculiaridade e incomparabilidade são preserva-


das, ou seja, mantidas "puras", e, de outro, seu isolamento e especificidade
são quebrados pelo cálculo da contraposição universal e transpostos para
um campo orquestrado de tensões. A equivalência de condições e de
relações heterogêneas que daí resulta é aquele "universal-em-determina-
ção", a visão estética de Mondrian que não carece de qualquer comentário
metafísico, dado que se impõe, simplesmente, diante dos olhos como a
totalidade finita da experiência no espaço do quadro.
Embora única nessa forma, a construção do quadro como pura
estrutura de relação não é simplesmente nova e singular. O néo-plasticisme
de Mondrian contradiria a si mesmo se apenas se destacasse da tradição
como o seu antípoda. Em "O neoplasticismo na pintura", Mondrian revela
de passagem a origem de sua ordem pictórica: "A pintura real-abstrata é
capaz de representar de modo estético-matemático, visto que possui um

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meio de expressão matemático, exato". E enquanto o caro leitor retoma o


fôlego, Mondrian prossegue firme, como se não tivesse chegado às raias de
um abismo: "Esse meio de expressão é a cor usada para a determinação"8. (8) Ibidem, p. 77.
O paradigma da "matemática" de Mondrian não é a absoluta positividade do
número, mas antes a essência da relação entre as cores. Da mesma maneira
que a cor só se manifesta no contraste da multiplicidade finita das cores,
também a unidade do quadro abstrato consiste exclusivamente no equilíbrio
das relações entre seus fatores antagônicos. Nesse sentido, o "neoplasticis-
mo" revela-se como um genuíno herdeiro do gênero colorista dos pintores
modernos franceses do século XIX, mas só nesse sentido abstrato, paradig-
mático. Pois, como meio pictórico efetivo, a cor usada para a determinação
das três cores primárias precisamente não age mais como colorido unifica-
dor, mas como um fator de efeito separado e relativo, em contraste com os
demais elementos do quadro, como o branco e o preto, a superfície e o
lineamento.
A rigorosa negação de qualquer individuação exclusiva e totalização
uniforme constitui a verdadeira diferença, o "extremo Outro", da abstração
de Mondrian diante da pintura tradicional. Como um fio condutor, esse
"contra" percorre o pensamento pictórico do pintor, a quem a escrita era
confessadamente penosa — e que, não obstante, deixou uma obra teórica
de quase quatrocentas páginas, na edição das obras completas em língua
inglesa. Uma nota publicada postumamente, redigida ao que parece em
1942, resume: "Assim, forma, volume, superfície e linha devem ser destru-
ídos, e não expressos. Isso é indispensável para o conjunto da obra e para
os elementos que a compõem. Só então os elementos construtivos podem
suscitar uma contraposição universal, que constitui o ritmo dinâmico da
vida"9. A palavra-chave irrita. Desde o início um acorde ríspido nos escritos (9) Tbe collected writings..., loc.
cit., p. 385.
de Mondrian, os conceitos de destruição e aniquilação (destruction and
annihilation) deslocaram-se cada vez mais, a partir dos anos 30, para o
centro de sua concepção de arte. Mais ainda: consta que a palavra estridente
tenha sido a sua última. Em 1946, J. J. Sweeney publicou, postumamente,
uma espécie de "entrevista com Mondrian", que ele compilou a partir de
duas cartas e um cartão-postal dos anos 1942-43. A frase que lhe dá fecho
— seu legado involuntário — é esta: "I think the destructive element is too
much neglected in art"("Creio que o elemento destrutivo é muito negligen-
ciado na arte")10. (10) Ibidem, p. 357.

No chaos, damn it

Segundo critérios objetivos, suporíamos por trás da última palavra de


Mondrian um outro pintor. Se não soubéssemos, no jogo de cabra-cega dos
estilos modernos, que quem fala aqui é um "construtivista", tocaríamos, com
a mesma venda nos olhos, num mal-afamado "destrutivista" da pintura
americana, que na época ainda ocupava todo o seu tempo em incorporar a

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modernidade européia. Em fevereiro de 1944, a revista Art and Architecture


publicava um "Questionário" em que Jackson Pollock, interrogado se
achava "importante o fato de muitos artistas modernos da Europa viverem
hoje em nosso país", respondia: "Sim. Eu tenho consciência de que a pintura
relevante do último século foi realizada na França"11. No dia lº daquele mês, (11) Pollock, Jackson. "Ans-
wers to a questionnaire". Arts
falecera, em Nova York, Piet Mondrian. Os dois pintores, até onde sabemos, & Architecture, nº 4, fevereiro
de 1994, p. 14. Reimpresso
nunca se encontraram; é de supor, porém, que Mondrian, partidário em: O'Connor, Francis. Jack-
entusiasmado do dadaísmo, a cuja vanguarda ruidosa dedicara um ensaio son Pollock. Nova York, 1967,
pp. 31-33.
próprio, "De 'Bruiteurs Futuristes Italiens' en 'Het' nieuwe in de muziek"
(1921), encontraria um acesso mais fácil ao trato agressivo do jovem pintor
com a tradição do que este último em relação à obra tardia do exilado
europeu. Pois, em meados dos anos 40, Pollock ainda trabalhava sobre os
legados do surrealismo, defendia-se da influência de Kandinsky, de quem
se fizera, em 1945, uma grande retrospectiva no Museum of Non-Objective
Painting (hoje Guggenheim Museum), e batia-se acima de tudo com Picasso,
eleito por ele próprio como o seu patriarca. A doutrina artística da
minotauromaquia, isto é, recriar na arena o maldito monstro da destruição,
deixou visíveis traços em seus quadros de então. Só da perspectiva de sua
obra madura e independente — e durante um breve momento crítico —
Pollock vislumbrou uma relação com Mondrian. Os caminhos do conheci-
mento são tão intrincados, torcidos e retorcidos, que justamente esses
quadros, os chamados "Pollocks" clássicos dos anos 1947-50, suscitaram a
lenda do "Jack the Dripper", o assassino da pintura.
William Rubin retraçou-lhe o surgimento da fama12. "The greatest (12) Rubin, William. "Jackson
Pollock and the modern tradi-
American painter?" — perguntava a revista Time em 1950, ainda cautelosa. tion. Part I: The myths and the
paintings; Part II: The all-over
A pergunta mostrou-se retórica. Lá estava ele: o homem de Wyoming que, compositions and the drip te-
chnique". Artforum, nº 5, fe-
como um caubói, brandia o laço sobre a tela (Bryan Robertson, 1960); o vereiro de 1967, pp. 14-22.
criador de mitos privados que no ato da pintura não buscava senão o
confronto consigo mesmo (Harold Rosenberg, 1959); o redentor que
"destruiu um corpus de estilo universal de dois mil anos", dizia em falsete
um editor anônimo da Art News, em 1957. E a Europa, que acabara de
descobrir o existencialismo, aplaudia ou mostrava-se chocada — tanto faz.
De regra, as razões para a aprovação ou o repúdio eram as mesmas. Michel
Tappié imaginava uma arte desenvolvida "no estado de total embriaguez
anarquista" (Un art autre, Paris, 1952). Em seu ensaio para a ominosa Time
de 20 de novembro de 1950, o crítico italiano Bruno Alfieri, ao contrário, mal
podia conter-se, de tão pasmo: "É fácil descobrir em todos os seus quadros
as seguintes coisas: caos; absoluta falta de harmonia; completa falta de
organização estrutural; ausência de técnica, por mais rudimentar; mais uma
vez, caos...".
Essa foi a única vez que Pollock reagiu a uma publicação crítica. "No
chaos, damn it", ele telegrafou13. A imagem de um caótico consumado, que (13) A descrição completa do
incidente acha-se em: Carme-
se rebela contra toda forma de representação, é uma ilusão da abstração an Jr., E. A. "Jackson Pollock:
Classic paintings of 1950". In:
teórica análoga à contrapartida matemática de Mondrian — embora, The subjects of the artist. Catá-
obviamente, com sinais trocados. Se Mondrian parte do produto puro da logo da exposição da National
Gallery of Art, Washington,
faculdade de representação objetiva, das formas geométricas, Pollock 1978, p. 151.

24 NOVOS ESTUDOS N.° 51


ROBERT KUDIELKA

trabalha com uma fatura material que se furta à objetivação formal.


Contraste maior entre os pontos de partida — lá a forma positiva, aqui a
negatividade da ausência de figura — é dificilmente imaginável. O erro, no
entanto, em ambos os casos, está em confundir a distinção objetiva dos
meios de representação com sua função plástica como fatores pictóricos; e
a conseqüência infame desse equívoco é concluir diretamente, através dos
meios, a intenção do pintor — a substituição da prática artística pela
comprovada regra caseira de que o Mesmo provém do Mesmo. O maior
disparate na interpretação da arte começa com esse preconceito obtuso:
como se linhas retas atestassem um sentido reto e a incapacidade de
conceber da percepção exprimisse a ausência de concepção do autor...
Em oposição a isso, cabe em princípio meramente constatar que há,
de fato, a textura pré-formal e subformal que Pollock transpõe para a tela —
e, a exemplo das formas de Mondrian, de modo prévio e independente de
toda intenção artística. Ela constitui a consistência visível da natureza. Quem
já observou os objetos da altura dos olhos ou da copa de uma árvore, a um
palmo de distância ou com um recuo considerável, em vez de sempre ter na
vista o horizonte ao fundo e os contornos das figuras, conhece este plexo
inconsciente e esta densidade intrínseca: a barafunda e a selva organizadas,
mas impenetráveis e inapreensíveis, da natureza pré-objetiva. Ter aguçado
essa realidade de aparência plástica, renegada e em boa parte ofuscada por
nossa percepção, não é o menor dos méritos de Pollock, o que o põe numa
relação surpreendente com os impressionistas, em especial a obra tardia de
Monet. Em janeiro de 1947, ele expôs na galeria de Peggy Guggenheim a
série Sounds in the grass, que — surgida imediatamente antes das
principais obras — indica tanto no título geral quanto nos títulos dos
quadros isolados que lhe era perfeitamente consciente, e até bem-vindo, o
eco de sua abstração na natureza: Croaking movement, Shimmering
substance, Eyes in the heat. Embora essas referências expressas tenham mais
tarde recuado diante de meras cifras numéricas, como Number 31 (One)
(1950), duas de suas mais importantes obras-primas, Lavender mist e
Autumn rhythm (ambas também de 1950), comprovam mais uma vez a
hipótese incondicionada de uma semelhança com fenômenos naturais. Por
outro lado, seria substituir o disparate pela insensatez se se quisesse utilizar
as alusões poéticas — em grande parte estimuladas pela mulher de Pollock,
a pintora Lee Krasner — para qualificar o suposto autor caótico, de modo
redutor, como "naturalista abstrato". Da série Sons na relva também fazem
parte três quadros cujos títulos apontam numa direção totalmente diversa,
isto é, no sentido do sujeito da percepção: The blue unconscious, Something
of the past, The dancers. Clement Greenberg, o primeiro a ver a excelência
de Pollock, observou com razão que essa é a arte de um metropolitano
convicto: "ela reside exclusivamente na selva de sensações imediatas, de
impulsos e idéias, e é assim positivista, concreta"14. Dificilmente o equívoco (14) Apud O'Connor, op. cit.,
de que Pollock foi vítima deixa-se rebater de forma mais aguda e dialética. p. 42.

O "positivista" na selva da metrópole é aquele que aceita a onipresente


negação da subjetividade, a flagrante contestação, dispersão e corrupção da

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ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

consciência própria através da flutuação incontrolável de uma realidade


não-homogênea e disparatada, em vez de buscar refúgio no idílio suburba-
no da modernidade, o sonho pequeno-burguês do mundo como o próprio
lar. Pollock pode ter morado nas marshlands de Long Island, mas a sua arte
"reside" no frenesi e na fragmentação da metrópole; em face da freqüência
peremptória dos quadros, parece ter sido esse envolvimento mental que lhe
abriu uma janela para a densidade da natureza, e não o contrário.
Porém, a pergunta acerca de que percepção veio primeiro, a inextri-
cável visão da natureza ou o staccato aflitivo da cidade grande, é, afinal,
ociosa. Nem as duas experiências juntas resultam num quadro, nem se
constituem no estímulo para ele. Quadros abstratos dignos desse nome não
são abrigos de emergência para quaisquer sensações passageiras, não
alojáveis em outra parte, mas lugares a partir dos quais se reconhece uma
mudança categórica na relação do homem com as coisas — uma quebra das
formas de percepção em geral. A correspondência surpreendente entre a
natureza pré-objetiva e uma realidade altamente artificial, não mais apreen-
sível objetivamente, que Pollock faz ver é um resultado acidental, embora
significativo, desta modificação — e não, por exemplo, ponto de partida dos
quadros. No início dos anos 40, quando Hans Hoffmann tomou contato com
a pintura de Pollock, de pronto só lhe veio esta frase professoral, que
acertou na mosca: "You do not work from Nature". A resposta de Pollock foi:
"I am nature"15. A deixa pode ter sido dada pela doutrina surrealista do (15) Glaser, Bruce. "Jackson
Pollock: An interview with Lee
automatismo criativo. Contudo, essa réplica petulante, em toda a sua Krasner". Arts, nº 41, abril de
escrupulosidade, é a mais pessoal confissão de Pollock, que só desvenda 1967, p. 38.

todo o seu significado nos quadros clássicos do final dos anos 40. Pois a
"natureza" reivindicada por Pollock não é a musa cega do inconsciente. "Eu
sou a natureza" significa simplesmente: eu não sou o observador que se põe
diante das coisas, e tampouco o olho que pensa em contornos — eu sou
aquele que age, que busca orientar-se e articular-se em meio a seus
ilimitados embaraços, indiferente à distinção teórica entre natureza e
espírito, como deve proceder o artista, embora só o possa até certo grau,
numa proporção humana.

A doutrina da Place de 1'Opéra

Essa conversão enfática da compreensão da natureza — da "suma da


objetividade" (Kant) à consciência na ação — é diametralmente oposta, não
há dúvida, à cautelosa transformação das formas distintas da imaginação
numa matemática intuitiva das puras relações em Mondrian. Mas a divergên-
cia imanente à arte revela-se como uma polarização intrinsecamente
relativa, como uma relação segundo o modelo da contraposição do
"extremo Um com o extremo Outro", quando se atenta contra o que se
dirigem os dois pintores. Ambos, o construtor despido de fita métrica e o

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ROBERT KUDIELKA

ativista ávido de natureza, estão aparentemente de acordo com que, para


eles, de perspectivas bastante diversas, um e outro extremo da realidade do
século XX, o ideal da objetividade e a subjetividade encerrada em si mesma,
tornaram-se questionáveis.
Entre os números-padrão com que Mondrian anunciava a sua arte
estava, como se sabe, a mania de sentar-se ao ar livre entre amigos — no
jardim de Hans Arp em Meudon, por exemplo — ostensivamente de
costas para a natureza. Aos descendentes de Corbusier, para quem os
gramados verdes tornaram-se a súmula da natureza como tal, esse gesto
talvez desmascare todo o alcance da traição cultural ao seio materno. A
devoção verde não conhece, porém, o genuflexório em que se ajoelha.
O ato de afastar-se da natureza como objeto não é, nem em Mondrian
nem em Pollock, um repúdio à natureza, mas, ao contrário, uma recusa
a que o homem se gabe como sujeito do mundo. Em sua pintura, Pollock
buscou recuperar a autenticidade e soberania da ação ao repudiar as
próteses objetivas da autoconsciência. A afirmação incondicionada da
civilização moderna por Mondrian, ao contrário, referia-se menos ao
artificialismo em si dessa civilização do que à tendência a desobjetivar as
coisas, que ele supunha reconhecer nela. Mondrian saudou expressamen-
te a autodissolução da visão de mundo da modernidade nas formas mais
avançadas de sua realização e a ela sempre recorreu para explicar a sua
pintura. "A Place de 1'Opéra, em Paris", ele escreve em 1931, "fornece
melhor imagem da vida moderna que muitas teorias"16. Dois notáveis (16) The collected writings...,
loc. cit., p. 275.
esboços literários do princípio da fase madura em Paris, Les grands
boulevards e Pequeno restaurante (Palmzondag) (ambos de 1920), dia-
logam com os meios da onomatopéia, da colagem e do paradoxo lógico
dessa imagem-chave. A mobilidade, a fragmentação e a heterogeneidade
da cidade grande compõem um contexto essencialmente dinâmico e
ilimitado, que não pode mais ser dissociado em elementos descontínuos.
Na óptica da subjetividade, da unidade da consciência na multiplicidade
de suas percepções, essa balbúrdia apresenta-se necessariamente como
negativa, como simples dispersão e desordem tumultuária, quando não
como ameaça direta. Mondrian, por sua vez, que se movia — segundo
relata Van Doesburg — pela Place de l'Opéra com toda a tranqüilidade,
como se estivesse em seu ateliê, vislumbrava na fragmentação, no
alvoroço e na instabilidade da realidade moderna os traços de uma
ruptura e uma transição que não só exigiam uma mudança da autocom-
preensão humana, mas sobretudo franqueavam à arte uma nova raison
d'être. O texto Les grands boulevards conclui com esta frase: "No bulevar
já existe muito de artifício (artifice), mas não de arte"17. (17) Ibidem, p. 128.
O problema da abstração gira em torno desse tópico, da passagem do
artifício para a arte — e isso tanto em Mondrian quanto em Pollock. Para a
pintura, o artificialismo da arte não foi um problema durante a maior parte
de sua história. Quando tornou-se problemático, ao término da tradição
européia, a modernidade clássica voltou-se para a natureza — e descobriu,
sur le motif, a abstração constitutiva da arte. A arte abstrata do século XX, por

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ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

sua vez, parte da ponta contrária: do "extremo Outro", que parece alcançado
quando o mundo técnico e artificial trai o seu próprio caráter de artificiali-
dade e, a seu modo rebelde, começa a tornar-se abstrato, destrutivo e
amorfo. Nessa constelação, a pintura corre o grande risco de transformar-se
em mera cópia da falta de arte reinante. Mas também lhe é dada a
oportunidade de descobrir o mais antigo e profundo sentido da arte, ao
reconhecer o quadro como o espaço em que, além do simples triunfo da
artificialidade da composição, o Outro — o traço alheio do disforme e
imaleável — goza simultaneamente do direito de cidadania. A arte da obra
de arte distingue-se da simples artificialidade do artifício pelo fato de que,
nela, a tensão entre a composição e a sua contrapartida inominada é dotada
de forma.
Esse apuro crítico explica a primazia aparentemente paradoxal que a
destruição ganha na análise que Mondrian faz de seus próprios quadros.
Com o seu característico pathos evolutivo, ele entende a si mesmo como
executor da tendência — inerente à realidade histórica — à dissolução de
todas as posições privadas e mutuamente excludentes; para ele, o trabalho
no espaço do quadro, a criação de um equilíbrio dinâmico de fatores
heterogêneos, era sempre também um trabalho para além das fronteiras do
quadro, como preparação de uma nova forma de relacionamento, por ele
denominada La culture des rapports purs: "A cultura das relações puras"
(subtítulo de L'art nouveau — La vie nouvelle, 1931). Pollock não possui
nada de igualmente visionário que sirva de termo de comparação. Na
relação entre os dois, ele é efetivamente o "positivista" que responde de
imediato ao que existe — o "fazer sem imagem", como Rilke chamou o
estigma da subjetividade desenvolvida: "Um fazer sob crostas, que rompem
a gosto tão logo / a ação desponte lá de dentro e se imponha outro limite"
("Nona elegia a Duíno", v. 47-48). Na medida em que Pollock aceita a
debilidade da forma e a inclui na fatura de seus quadros, o cômputo
negativo da destruição parece saldado desde o início. Mas com isso não se
põe termo ao conflito, que é meramente deslocado de fora para dentro, da
periferia da forma para o centro da ação pictórica. Ao contrário de Mondrian,
que aborda o espaço do quadro indiretamente, por meio da conversão de
posições formais numa estrutura de relações, Pollock resolve o conflito da
composição imediatamente, no ato da pintura: como fazer algo que não se
choque obrigatoriamente, pela simples positividade de sua concepção, com
o impulso que lhe deu causa?

Pure harmony

Se algum pintor tocou o nervo da composição artística, esse pintor foi


Jackson Pollock. "Técnica", nota ele, "é o resultado de uma necessidade —
(18) Apud Friedmann, B. H.
novas necessidades exigem novas técnicas"18. A técnica dos quadros, sem Jackson Pollock: Energy made
visible. Nova York, 1972, p.
dúvida, não é nova no sentido de Pollock ter inventado o processo de 158.

28 NOVOS ESTUDOS N.° 51


ROBERT KUDIELKA

gotejar, espargir e derramar as cores. A inveja artística e o zelo pela história


da arte logo apontaram que o recurso pictórico do dripping já havia sido
empregado antes de Pollock por Max Ernst, Miró, Masson e Hans Hoffmann,
entre outros. A principal diferença, todavia, consiste em que todos esses
pintores só se valeram esporadicamente do traço casuísta, sendo que, no
caso dos surrealistas, ele estava vinculado ao cálculo do automatismo
psíquico. Pollock, pelo contrário, que após 1941 só raramente empregou o
pincel em sua função adequada, desenvolveu os grandes quadros dos anos
1947-50 exclusivamente a partir dessa técnica; de fato, ele praticava o
dripping não como meio para o achado composicional inconsciente, mas
com absoluto pragmatismo, como procedimento de pintura, como o lápis-
lazúli ou a aquarela. A especulação com o acaso encontra-se tão excluída
quanto os gestos imediatos de expressão. A lenda do dervixe raivoso,
quando não fruto da pura fantasia dos autores, é uma ilusão das fotografias
de Rudolf Burckhardt ou das fotos do filme de Hans Namuth sobre Jackson
Pollock (1950). O próprio filme, que lança uma luz no ato da pintura de
Number 31 (One) (Museum of Modern Art, Nova York) e de Autumn rhythm
(Metropolitan Museum of Art, Nova York), mostra um pintor altamente
concentrado e ao mesmo tempo inteiramente descontraído que, com um
bastão ou pincel, espalha e dispersa a tinta colorida de uma lata, em
movimentos fluentes, oscilantes, que recordam a graça artística de um
dançarino de balé, sobretudo quando a consistência viscosa, em ponto de
fio, do esmalte propicia um retardamento da cadência.
Nenhum dos inúmeros epígonos que, instigados pela fama da liberta-
ção total, inundavam o chão dos ateliês jamais foi capaz de imitar esse
procedimento. Trata-se, de fato, como mostraram Michael Fried e William
Rubin, de uma forma extremamente exigente de desenho pictórico19, talhada (19) Fried, Michael. Three Ame-
rican painters. Catálogo da
com perfeição para as "necessidades" de Pollock. O colorido submete-se, no exposição do Fogg Museum,
Harvard University, 1964; Ru-
conjunto, às diferenças de tonalidade, e contrastes cromáticos gritantes são bin, op. cit.
em grande parte evitados, a fim de esgotar completamente as possibilidades
gráficas do plasma das cores. Sem começo nem fim, o rastro do fluxo
cromático é virtualmente infinito, nunca sendo idêntico mesmo no menor
detalhe, e, no todo, graças à sua elevada contingência, interminável. Mas, no
quadro, esse rastro não é, de modo algum, infinito. À medida que incha e
desincha, escorre, coagula, desfia-se, enrodilha-se e estica-se novamente, ele
ao mesmo tempo se prende — em borrões, trancas, nervuras, lacunas — à
superfície e constrói um universo todo específico. Não só que o rastro de
Pollock, em analogia às faixas de Mondrian, seja indiferente à distinção de
planos e regiões; a fatura tão flexível quanto revolta desenvolve, além do
mais, uma dinâmica própria na superfície, que reconduz diretamente ao
artista — ação e agente aproximam-se no ato da pintura até tornarem-se
indistintos. O estado que o pintor suscita é, a uma só vez, a exigência que
requer sua ação. O próprio Pollock designou de modo preciso tal ponto de
fuga ideal, em que o efeito guia a causa da criação, como "intensidade
orgânica" e, em palavras bem simples, falou da "vida própria" do quadro: "Eu
procuro deixar que ela venha. Apenas quando perco contato com o quadro o

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ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

resultado não me satisfaz. Do contrário, existe a pura harmonia, um fácil dar e


receber, e o quadro fica bom"20. (20) Cf. O'Connor, op. cit., p.
40.
Não fosse Pollock o autor dessa frase, as palavras lapidares sobre a
vida do quadro, sobre o contato e sobre a pura harmonia não seriam mais
que comoventes: a contrapartida edificante da história de horror de "Jack
the Dripper". Mas, em vista da aparência dos quadros, esses conceitos
ganham uma acuidade provocante, pois eles praticamente implicam o seu
contrário. Pollock deixa que "venha" o momento próprio do quadro ao
obstar a afirmação direta de seu fazer; o "contato" perdura enquanto
persiste essa tensão; "pura harmonia" significa, portanto, equilíbrio antagô-
nico. Não admira, portanto, que a observação "novas necessidades exigem
novas técnicas" conduza de imediato à formulação de um imperativo
composicional que, em seu tom áspero, seria imputável antes a Mondrian:
"total control — denial of accident — states of order"21. Em semelhança à (21) Cf. Friedmann, op. cit.
máxima de Mondrian a respeito da destruição, essa surpreendente exigên-
cia só revela seu sentido no espaço do quadro. "Total controle" não
significa domínio sistemático ou prescrição, mas antes extrema lucidez ou,
por assim dizer, estar por cima da situação. "Negação do acidente" não
quer dizer unicamente a simples eliminação, mas a aceitação e a transfor-
mação do acidental em ato de resposta. Na medida em que literalmente
cruza e replica o rastro de acaso com o mesmo gesto por ele suscitado,
Pollock rompe o modelo de superfície em relações rítmicas, que começam
cada vez mais a determinar o avanço das decisões pictóricas. Com isso, o
procedimento da contraposição guia tanto o adensamento da estrutura de
superfície quanto a estratificação das camadas de cores. Assim, por
exemplo, no meio da parte superior de Autumn rhythm é visível uma
forma de gancho marrom que, observada isoladamente, parece jazer por
trás do emaranhado ao seu redor. O acento de mesma cor imediatamente
à esquerda, logo abaixo, localizado sobre o preto, aproximadamente na
mesma altura que o respingo branco, torna contudo evidente que o rastro
marrom acha-se tão entrelaçado com as camadas pretas e brancas que não
surge uma hierarquia entre os planos, mas um entrecruzamento e uma
interpenetração de todas as camadas num corpo pictórico raso, que se
amplia num crescendo.
A partir desse paradigma estrutural, Pollock mostrou um interesse
passageiro, como atesta seu amigo de muitos anos, o escultor e arquiteto
Tony Smith, por um determinado grupo de obras de Mondrian, a saber, as
abstrações pós-cubistas, de espessa urdidura, dos anos 1913-1422. O (22) Rubin, William. "Jackson
Pollock and the modern tradi-
protótipo mais maduro dessa estrutura pictórica, Maise menos (1917, Museu tion. Part III: 5. Cubism and the
later evolution of the all-over
Kröller-Müller, Otterloo), permite reconhecer imediatamente que o próprio style". Artforum, nº 5, abril de
1967, p. 23.
Mondrian, até um certo ponto, tomou em consideração a técnica do ritmo
de entrelaçamento livre. É de notar, porém, que esse caminho foi abando-
nado e só muito mais tarde, na entrevista fictícia com Sweeney, de 1946,
voltou a ser mencionado indiretamente. Tendo em vista os posteriores
quadros esquemáticos dos anos 1919-20, Mondrian explica que essa
"equivalência de expressão horizontal e vertical" tornara-se muito "vaga"

30 NOVOS ESTUDOS N.° 51


ROBERT KUDIELKA

para ele: "As verticais e horizontais neutralizam-se mutuamente; o resultado


era confuso (confused), a estrutura se perdia"23. Isto é, para Mondrian essa (23) The collected writings...,
loc. cit., p. 356.
ordem parecia muito uniforme, muito pouco determinada, já que debilitava
a heterogeneidade dos fatores pictóricos. Pollock, ao contrário, para quem
a falta de uniformidade não era um critério da ordem pictórica, mas um
simples fato da técnica de pintura, pôde desenvolver, a partir da lógica dos
traços antagônicos, "situações de ordem" bastante distintas e variadas.
Autumn rhythm e Number 31 (One) distingüem-se em sua estrutura
geral, o chamado all over, principalmente por sua escala (scale) de notória
desigualdade. Ela repousa numa repartição rítmica do campo de visão, cuja
medida básica se define segundo as proporções, a densidade ou a
envergadura gestual da fatura. Embora esses vínculos não possam ser
nitidamente delimitados e isolados como células formais, podem ser "vistos"
efetivamente a partir do encaixe uniforme do contexto, com base nas fases
em que essa relação da estrutura se repete. Assim, a superfície de Autumn
rhythm parece dividida na razão 3:7, ao passo que a superfície mais densa
de Number 31 (One) apresenta a razão aproximada de 4:9. Essas medidas
lábeis tornam-se mais visíveis quando se elimina momentaneamente a
dispersão bifocal do olhar e — seguindo o método de trabalho de Pollock
— observa-se o quadro de lado, ou seja, verticalmente. Então se reconhe-
cem, sobretudo em Number 31 (One), sutis divisões paralelas, que acentu-
am o ritmo. A sua ordem não segue, é claro, nenhuma regra. O ritmo de
Pollock é tão pouco calculado pela métrica quanto o de Mondrian. Em
ambos os casos, trata-se antes de uma estrutura rítmica original, surgida
puramente da alternância de elementos e pesos semelhantes e desseme-
lhantes. A diferença parece primeiro consistir apenas em que Mondrian
ordena seus compartimentos em proporções espaciais, ao passo que as
divisões de Pollock articulam-se temporalmente, em períodos.
Mas a analogia entre ordem pictórica espacial e temporal revela-se
enfim como ilusória, pois encobre justamente o ponto decisivo e discutível
entre Mondrian e Pollock. Para a "dinâmica da superfície" de Mondrian, é
fundamental a "pureza", ou seja, a preservação da diversidade dos fatores
pictóricos; a dinâmica do equilíbrio não é alcançada exclusivamente com a
contraposição composicional, mas consiste essencialmente no fato de o
contraposto ser em si heterogêneo. Em seus quadros, ao contrário, Pollock
cria uma tensão que só é solucionada pela contingência de seu procedimen-
to; seus states of order refletem diretamente a concepção peculiar de uma
fatura que, em sua irregularidade, é em geral homogênea. A composição all
over, portanto, é um movimento de oscilação precária entre dois extremos
sem tensão: a ruptura da coerência e o desaparecimento da freqüência de
atrito num pulsar constante. Daí ser mais fácil supor a tendência para o
dripping simétrico, pois a parcela de irregularidade é somente um produto
secundário do procedimento em si homogêneo.
Nos quadros dos anos 1947-50, esse perigo parece ser conjurado
pelo fato de o próprio procedimento ainda ser novo ou sem polimento, e
também pelo fato de Pollock pôr em jogo um equilíbrio dinâmico no

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ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

interior da topografia do quadro. Embora absolutamente equivalentes, os


espaços no quadro não são todos homogêneos. Em Autumn rhythm, as
divisões isoladas são mais uma vez enfeixadas numa cadência ternária,
claramente visível na metade superior do quadro. A dissolução desse
tríptico latente no terço inferior do quadro revela, por sua vez, uma
semelhança com Number 31 (One) — semelhança essa que talvez consti-
tua a diferença mais importante entre a ordem pictórica clássica de Pollock
e a concepção corrente da composição all over. Um e outro quadro são
claramente ponderados para que haja uma diversidade qualitativa entre a
parte inferior e a superior. A inversão comprova, nesse caso, que, embora
a composição seja trabalhada em seu contorno, ela não pode de modo
algum ser virada de ponta-cabeça. A zona situada logo abaixo do eixo
central, onde a gravitação começa a ter grande relevância plástica, pode
lembrar a tradicional linha do horizonte, mas só porque, de facto, ela é sua
contrapartida imediata: não o limite remoto de nosso campo de visão, mas
— voltada para fora do quadro — a confirmação do campo de tensão
físico em que se situa o observador. Pois, à diferença de Mondrian, Pollock
exige não somente a contemplação, mas a própria presença física no
espaço. A dimensão dos quadros (Autumn rhythm mede 266,8 x 550 cm
e Number 31 (One), 270 x 535 cm) já mostra a escala diversa da relação.
Mas sobretudo a comparação entre uma visão de perto de uma parte
isolada e a contemplação de longe de todo o quadro dá uma boa idéia do
que significa, em Pollock — na acepção singular que ele conferiu à
expressão —, estar dentro do quadro. Só de perto se vê qual a verdadeira
aparência do quadro; mas então não se tem a visão do conjunto. Da
distância, por outro lado, vislumbra-se o espaço do quadro; mas seu
aspecto desaparece por trás de uma espécie de cortina de fumaça — a luz
refratada pelas múltiplas crostas do material cromático, a qual recobre o
quadro como se fosse um bolor.

O sentido positivo do limite

Parecem esgotar-se, com isso, os termos de comparação. A análise


mais detida de Pollock ou Mondrian tem de seguir o caminho mais penoso
da interpretação de obras isoladas. Mas esse caminho dificilmente será
encontrado enquanto não se notar a exigência com que ambos os pintores
tratam a razão teórica. Embora nitidamente opostos em sua forma de
representação, eles se põem de acordo em sua concepção pictórica, como
verifica e atesta metodicamente a análise objetiva. A construção de Mondri-
an e o informalismo de Pollock correspondem-se mutuamente, embora não
da maneira que Kandinsky associaria de bom grado o "grande realismo" e
a "grande abstração" — isto é, pelo fato de ambos desembocarem num
único e mesmo objetivo. Antes, a correspondência consiste em ambos
legitimarem o quadro, de maneiras opostas, como o espaço em que o

32 NOVOS ESTUDOS N.° 51


Piet Mondrian, Composition of red and white, nº 1, 1938
(reproduções: Rômulo Fialdini).
Piet Mondrian, Composition with blue, red, yellow, and black, 1922.
Piet Mondrian, Broadway Boogie Woogie, 1942-43,
Jackson Pollock, Number 31 (One), 1950.
Jackson Pollock, Autumn rhythm, 1950.
Jackson Pollock, Lavender mist, 1950.
ROBERT KUDIELKA

princípio da identidade é anulado em favor do primado da contraposição


plástica. Assim, Mondrian acha-se mais próximo de Pollock do que de Van
Doesburg, seu colega no período de Stijl, que depreendeu da abstração a
suposta conseqüência radical de tratar as formas geométricas como concre-
tas, isto é, idênticas a si mesmas. Inversamente, Pollock distingue-se de
artistas de estilo análogo, como por exemplo Mathieu ou Riopelle, justamen-
te por aquele caráter antitético da concepção pictórica que o prende a
Mondrian. Sem dúvida, tal distinção no interior da semelhança objetiva de
formas de representação, opostas em seus fundamentos, mostra-se compa-
rativamente menos controversa do que a disputa que precede a reflexão,
quando se tenta definir o universo comum dos dioscuros da arte abstrata de
nosso século. Torna-se evidente, então, que a forma construtiva dos quadros
contrapõe-se abertamente à lógica do discurso. A abstração, no nível de
Mondrian ou de Pollock, não esclarece esta ou aquela verdade, mas
transporta o olhar e o pensamento para um contexto de relações radical-
mente diverso.
Nenhum intérprete pode pretender ter encontrado a chave para a
solução desse conflito. O próprio Mondrian foi o único a cortar os nós críticos
na teoria da abstração — e isso de uma forma tão simples quanto elegante.
Seus escritos teóricos perdem, de um só golpe, toda a excentricidade
especulativa tão logo se atente para o fato de que o pintor trata os conceitos
metafísicos da mesma maneira que as formas matemáticas de seus quadros,
ou seja, destrói sua exclusividade definidora e os eleva a uma nova forma
relacional antitética. Talvez o exemplo mais notável seja o pequeno ensaio
"Não axioma, mas princípio plástico", de 192324. Sua tese é a seguinte: "A (24) Ibidem, pp. 178-179.
nossa época compreende a impossibilidade de formular princípios universal-
mente válidos; além de reconhecer a inviabilidade de uma contemplação
fixa, de um conceito inabalável em relação ao perceptível, ela não leva a
sério, não toma como verdadeira nenhuma opinião humana específica. Ela
vê tudo como relativo". Nada é modificado nessa diagnose de época; ela é
simplesmente acrescentada por uma descoberta contrária: "E, contudo, com a
percepção da relatividade de todas as coisas, cresce em nós um sentimento
intuitivo pelo absoluto: o relativo, o mutável, cria em nós um anseio pelo
absoluto, pelo imutável". A conseqüência imediata dessa contradição é o
sofisma denominado por Mondrian de "tragédia vital": a "necessidade de
salientar o absoluto, de absolutizar o natural". A essa absolutização fatal
Mondrian opõe o "princípio plástico" de sua pintura — a criação de uma
"relação de equilíbrio entre o relativo e o absoluto" por meio da contraposi-
ção dinâmica do relativo sob a perspectiva da "equivalência do heterogê-
neo". Em vez de alçar o relativo até o absoluto (até o simbólico ou o utópico),
a própria distinção é retratada como uma relação "pura" do desigual, sob
todos os aspectos incondicionada. A excelência dessa percepção pode ser
medida pelo fato de só ter fulgurado uma única vez na história do
pensamento — e isso no apogeu no idealismo alemão: na visão abismal de
Schelling, segundo a qual a liberdade humana só revela toda a sua essência
na diferença em relação à liberdade absoluta, por assim dizer na liberdade

JULHO DE 1998 33
ABSTRAÇÃO COMO ANTÍTESE

diante do dever legal à liberdade25. Embora sem pretendê-lo, a consonância (25) Sobre essa noção básica
de Schelling, ver: Jähnig, Die-
de Mondrian com o filósofo, que por volta de 1800 ousou pensar a arte como ter. "Philosophie und Weltges-
chichte bei Schelling". In:
o "único, verdadeiro e eterno órgão e, ao mesmo tempo, documento da Kunst-Geschichte. Zum Verhäl-
filosofia"26, não é casual. De fato, a relação que ambos tematizam de maneira tnis von Vergangenheitserken-
ntnis und Veränderung. Colô-
totalmente diversa não é outra senão a discrepância desde sempre suscitada e nia, 1975, pp. 38-75.

reforçada pelas obras de arte. O conceito pictórico do "universal-em- (26) Schelling, F. W. J. System
des transzendentalen Idealis-
determinação", de Mondrian, lembra inevitavelmente a definição que Sche- mus. In: Schriften von 1799-
1801. Darmstadt, 1967, p. 627.
lling empresta à poesia como a "imaginação do infinito no finito"; e a
evocação aparentemente enfática da "intensidade orgânica" de Pollock pode
ser muito bem precisada pela fórmula paradoxal da "finalidade sem fim",
com que Kant caracterizara tanto a peculiaridade da criação artística quanto a
auto-organização da natureza viva.
Isso não significa, obviamente, que Mondrian e Pollock tenham
simplesmente suprido as célebres definições filosóficas com a noção
abstrata. De modo algum. A semelhança dos topoi faz notar precisamente a
diferença radical da matéria. Quando a arte define o seu próprio espaço e
faz dessa definição espacial o seu tema expresso, surge involuntariamente
uma outra ordem, contrária às abstrações do pensamento: o sentido
plenamente positivo do limite na arte. A "determinação" de Mondrian é tão
pouco uma restrição de uma verdade universal preexistente quanto, de
maneira inversa, a "intensidade" de Pollock é reduzida ou prejudicada pela
finitude da arena pictórica. Ao contrário, a limitação do espaço é o
pressuposto indispensável tanto para a franqueza contida de um nexo
pictórico quanto para a densidade excessiva do outro. Ela possibilita,
mesmo quando os projetos da imaginação se tornam impotentes, a repre-
sentação de um todo na experiência, ainda que num sentido inovador,
afastado da tradição num ponto decisivo. A abstração de Mondrian e de
Pollock não oferece mais um projeto imaginário de mundo — e isso única
e exclusivamente porque ela dirige imediatamente para o exterior o segredo
da totalidade pictórica, a superação do sentido objetivo do fenômeno, e
situa o espaço do quadro em meio às coisas. A antiga ordem, de acordo com
a qual no interior dos limites do quadro cada determinação obedece a uma
condição diversa do que no seu exterior, permanece intocada. Nada no
quadro subsiste por si e nenhum espaço sem os outros; tudo se explica a
partir do contraste, da coesão no confronto recíproco. Mas essa condição
imanente da ação pictórica é definitivamente despida do aspecto negativo
de uma ilusão limitada, na medida em que a forma construtiva do
contrastare é sublinhada por ambos e desdobrada em todo o seu alcance,
até o ponto em que a limitação da tela torna-se, ela própria, controversa.
Essa ambigüidade dos limites pictóricos é outro aspecto comum, embora
primário na seqüência da percepção, entre Mondrian e Pollock. Da mesma
maneira que os quadros não se acham centrados neles mesmos, por meio
de simetrias ou de hierarquias formais, assim também eles não se legitimam
como concreções, fragmentos ou partes mensuradas de um contínuo infinito
da experiência. O espaço do quadro não é nem encerrado em si mesmo nem
simplesmente aberto, mas destaca-se da extensão indeterminada do campo

34 NOVOS ESTUDOS N.° 51


ROBERT KUDIELKA

de experiência pelo fato de a diferença abrir justamente uma possibilidade


elevada de contemplação. Em vez de delinear um mundo, o quadro
representa um espaço que remete o observador para dentro dele, mundo,
em meio ao contexto de sua existência.
A arte abstrata, ao refugiar-se no espaço definido da arte, é capaz de
fazer ver, a cada vez, um todo da experiência de mundo. Tal possibilidade
só será preservada enquanto ela for capaz de pôr em prática, também no
tempo, a regra finita dessa totalidade — o contraste vivo —, inclusive no
tocante a si própria. No estranho dueto que une Mondrian e Pollock, para
além das peculiaridades históricas e pessoais, a cadência oposta das duas
vozes é uma confirmação tácita mas significativa da harmonia dos contra-
postos. No começo dos anos 30, a ordem pictórica de Mondrian firmou-se
formalmente, baseada no fato de a assimetria diagonal dos blocos cromá-
ticos literalmente assumir a parte da dinâmica virtual em relação ao
equilíbrio ortogonal das medidas de superfície. O norte-americano Kermit
Swiler Champa, especialista em Mondrian, falou com acerto de "um perigo
do emblema natimorto" (the threat of the stillborn glyph), referindo-se a
esses quadros 27 . Mesmo Mondrian reagiu a essa ameaçadora petrificação (27) Champa, Kermit S. Mon-
drian studies. Chicago/Lon-
de sua concepção pictórica antitética, forçando o ritmo por intermédio de dres, 1985, p. 118.
volumes negros e, mais tarde, coloridos. Isso talvez tenha conduzido, em
suas obras maduras, a uma aproximação não menos escrupulosa, guiada
pelo sonho da estrutura absoluta das relações, da heterogeneidade dos
meios pictóricos. Nesse meio-tempo, entretanto, ele criou uma obra-prima
como Broadway Boogie-Woogie (1942-43, Museum of Modern Art, Nova
York), que, em seu ritmo veemente, tão equilibrado quanto perfeitamente
irregular, prenuncia os Pollocks clássicos. Pollock, ao contrário, parece ter
atingido, após 1950, o ponto crítico em que o bônus acidental do irregular
esgotara-se e a homogeneidade da fatura começou a surtir efeitos na
uniformidade da estrutura. A exemplo de Mondrian vinte anos antes, só
que de forma muito mais abrupta e desesperada, ele procurou sofrega-
mente a antítese, introduzindo, como fatores de atrito, elementos hetero-
gêneos como poças de tinta e figurações inconscientes. Em Blue poles
(1952, Australian National Gallery, Camberra), a tentativa de conferir Recebido para publicação em
24 de abril de 1998.
tensão à cadência da rede espessa por meio de golpes toscos, acrescidos
ulteriormente de tinta azul escura, parece ter logrado êxito. Mas a estraté- Robert Kudielka é professor
de estética e filosofia da arte da
gia de lançar as telas nas rodas da criação constante e vertiginosa era muito Hochschule der Künste, de
Berlim.
superficial, muito pouco "orgânica" para conter o declínio do "controle".
Pollock foi incapaz de reencontrar a positividade do limite; mesmo em sua
queda, porém, ele deu testemunho da força vinculadora de um pensamen-
to pictórico que — em homenagem a Mondrian e para evitar a reminiscên-
cia errônea da subjetividade do "pintor" — talvez seja melhor chamar de
plástico.

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