Sentidos Figurados - Cinema - Imagem - Simulacro - Narrativa PDF
Sentidos Figurados - Cinema - Imagem - Simulacro - Narrativa PDF
Sentidos Figurados - Cinema - Imagem - Simulacro - Narrativa PDF
figurados
Cinema • Imagem • Simulacro • Narrativa
João Maria
Mendes
Volume I
Sentidos
figurados
Cinema • Imagem • Simulacro • Narrativa
João Maria
Mendes
Volume I
Editora online em acesso aberto
ESTC edições, criada em Dezembro de 2016, é a editora académica da Escola Superior de Teatro e
Cinema, destinada a publicar, a convite, textos e outros trabalhos produzidos, em primeiro lugar,
pelos seus professores, investigadores e alunos, mas também por autores próximos da Escola.
A editora promove a edição online de ensaio e ficção.
ISBN
978-972-9370-23-6
Citações do texto:
MENDES, João Maria (2018), Sentidos figurados:
Cinema • Imagem • Simulacro • Narrativa - volume I -
Amadora, ESTC Edições, disponível em <www.estc.ipl.pt>.
O conteúdo desta obra está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição,
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como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva responsabilidade dos autores.
Índice do Volume I
Imagem de capa: a partir de fotograma de Bis ans Ende der Welt
(Até ao fim do mundo), Wim Wenders, 1991.
7 Enquadramento
21 Epígrafes
22 1. Quatro preâmbulos sobre • arte • infância • imagem •
animismo
22 Preâmbulo 1. Rilke, Freud, Didi-Huberman
24 O teatro dos brinquedos
28 A Nachleben de Aby Warburg
31 Preâmbulo 2. Lascaux e a Grécia
35 Polissemia da palavra imagem
40 Os meios de Hans Belting
43 Preâmbulo 3. Quartos, templos e museus
46 Definições conservadoras
47 Preâmbulo 4. O cinema é animista
54 Notas
58 2. Bricolage • collage • instituição
61 A digitalização contemporânea
64 Uma transição suave
66 Um novo tempo “pós-cinemático”
68 Um apparatus visto em paralaxe
72 3. Que coisa é o filme
74 A imagem: ícone • índice • símbolo
76 Manovitch e o cinema digital
78 Indexicalidade directa, indicialidade
79 Da múmia à relíquia e ao “transfert de realidade”
81 Lanzmann versus Didi-Huberman
83 Filme, aula do ver
83 Münsterberg e o cinema como “espelho da mente”
85 A marcação peirceana
85 O corpo do filme
87 Sujeito e/ou objecto
89 A subversão de Vivian Sobchack
91 Ver e imaginar
93 Holismo, visível e invisível
94 Figura e fundo
96 Ainda o “quiasma” de Merleau-Ponty
97 Projecções, identificações
98 Duplos e estranhamentos: a Unheimliche de Freud e a Ostranenie de
Chklovski
100 Deleuze e Mendeleev
102 Imagem fixa, imagem em movimento: uma “ontologia”, duas recepções
104 De novo Bazin e os realismos
106 A década do “perfeito equilíbrio”
107 Centralidade de Orson Welles
108 De volta ao povo dos espelhos
110 Anexo 1: O cinema experimental
113 Anexo 2: O cinema do fluxo
117 Anexo 3: Cinema e televisão
120 Anexo 4: Cinema de Poesia • Cinema de Prosa
122 Notas
126 4. A vitória do “simulacro” e do “maravilhoso verdadeiro”
128 A guerra das imagens
130 O medo das falsas imagens
131 O filme e os cegos do ser
132 “O cinema é católico”. Catolicidade do cinema
135 O efeito Pigmalião
137 Objecto-totem e objecto-fétiche
138 Os simulacros de Baudrillard
141 As imagens, novas almas dos corpos biotécnicos?
142 O “maravilhoso verdadeiro”
145 Notas
146 5. Narratividades do cinema e suas cercanias
148 Canudo e as sete artes
151 Walter Benjamin, cinema e narrativas
152 Arnold Hauser e Guido Aristarco
154 Ficções verdadeiras, ficções falsas: o futuro do Céu, Inferno e Purgatório
157 Desvio pelas “espécies de ficções” de Marc Augé
159 O mundo posto no que a narrativa conta
160 Quando queremos crer: as narrativas dos outros e as nossas
161 History, stories: as memórias de Lise London
162 Ética e estética • singular e universal • relativo e absoluto
164 A ideia de transferência
165 Que “espécies de ficções” queremos contar?
167 Êxitos e inêxitos narrativos: Franz Kafka
168 Somerset Maugham e as duas doutrinas da novela
169 Factos, ficção e ideologia em Guerra e Paz de Tolstoi
172 Viagens, desvios, estadias em margens e em “mundos especiais”
175 A facialização dos lugares ficcionais
177 Livros sósias e diegese no Quarteto de Durrell
179 A escrita dos filmes
180 Dois andaimes pedagógicos
183 Império & empório dos três actos
187 Contra os três actos: a diversidade das estruturas
188 A estrutura episódica de Saraband
191 Remapeamentos narrativos
192 Possível • impossível • compossível • incompossível
197 O regaço e a voz de Dafne
198 A obra e o seu “precursor sombrio”
200 Métricas, maneirismos e amaneirados
202 Stanley Kubrick, compulsivo adaptador
203 Eyes Wide Shut: much ado about nothing?
210 Apocalypse Now: a epopeia onde a estrada é o rio
212 Os três (ou quatro) actos de Na Via Láctea
214 Elogio dos mestres de sete ofícios
215 O desenvolvimento de projectos
217 Sinopse, caracterização de personagens, nota de intenções
218 A nota de intenções de Chronique d’un Été
219 Boccaccio: Nastagio e a Traversari
222 Constelação proppiana e resiliência dos géneros
223 Heróis, heróis relutantes e anti-heróis
226 Personagens e “seus” enredos
228 O apelo da sereia de Ballester
229 Histórias mães de histórias
231 Os regressos do mesmo
232 Os gregos e a repetição trágica
233 — O novo herói trágico
234 — O trágico: sentimento e género
236 — Atenas na sua idade de ouro
238 — Deuses e homens: a dupla causalidade
240 — Dioniso e os alvores do género
241 — Outra vez as personagens e “seus” enredos
245 — Patético, tragédia, melodrama
247 — A repetição trágica no cinema
248 — O trágico nos media informativos
249 — A tragédia “morreu”?
250 Muitas histórias vão voltar
253 O método Calvino: Se una notte...
254 Adaptações, remakes e sequelas
256 Rohmer, da escrita aos filmes
257 No Home Movie: dos brutos ao filme
259 Relações com o script
260 A relação com o tempo: Inland Empire
263 If I Forget Thee, Jerusalem (The Wild Palms)
263 J. L. Borges, sua mãe e o Faulkner censurado
266 Outro desvio: a Lucrécia de Klossowski
270 Resíduos narrativos em Julião Sarmento
274 Outras repetições canónicas
276 O espectáculo do dispositivo nos blockbusters pós-clássicos
277 Foreshadowing, Plant & Payoff, MacGuffin
278 O “programa” clássico...
281 ... e o moderno
282 Importância de L’Année dernière à Marienbad
283 Traços da herança moderna
286 Palco e filme: a metamorfose dos objectos
290 A falsa dicotomia documentário-ficção
293 Cinéma-vérité e Direct Cinema
296 Etnoficções e docuficções
297 Morin e o documentário “romanesco”
298 Os semi-híbridos poéticos de José Luis Guerín
300 Poetas e cineastas
301 Deleuze e as “duas eras” do cinema
304 Autor e narrador
305 O unreliable narrator e o Mateus de Pasolini
307 Estado do mundo e conteúdos narrativos
311 Multiculturalidade, nomadismo, exílio
313 Simplificação do plot, redução ao banal
316 Novas virtudes da lentidão
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Enquadramento
mas essa abordagem foi perpicazmente retomada por Jacques Aumont em Que
reste-t-il du cinéma? (2012) e mais recentemente em «Feintise, fiction,
figure: l’opération figurative au cinéma» (2016).
As reflexões que aqui dou a ler têm também em conta outras tão inspiradoras como
as de Luc Ferry em Homo Æstheticus (1990, tr. port. 2003: 286), que, sublinhando
a emergência do individualismo do sujeito-autor nas artes da idade moderna e
contemporânea, e a da concomitante autenticidade, que se instalou no terreno
crítico como valor substitutivo dos anteriores valores de excelência e mérito, anota:
“ (...) Nos anos 60 [do século XX], ideologias hedonistas e narcísicas ocuparam o
espaço das questões morais tradicionais. Se quiséssemos elaborar uma ficha sinalética
do fenómeno, a palavra-chave já não seria a excelência, menos ainda o mérito, mas,
sem margens para dúvida, a autenticidade (…). O essencial (…) já não é o confronto
com normas exteriores impositivas, mas sim conseguir exprimir a personalidade, a
plena afirmação de si próprio. Recordemos a formulação de [Daniel] Bell [in The
Coming of Post-industrial society, 1973], cujas concisão e justeza forçam a nossa
admiração: ‘Hoje a psicologia substituiu a moral e a ansiedade tomou o lugar da culpa’.
Quando a ideia de transcendência se desvanece e, em consequência disso, cada um
pretende permanecer só perante si mesmo, a dilaceração e o mal-estar existenciais já
não podem interpretar-se (…) senão como ‘conflitos psíquicos’: a vitória do terapêutico
sobre o religioso está enfim garantida” (tr. J. M. M.).
Esta “nova” autenticidade, hipostasiada em valor supremo na avaliação ética e
estética do trabalho dos sujeitos-autores modernos e contemporâneos, nasceu no
protectorado do relativismo e do direito à diferença, e da norma, herdada do Maio
de 68 francês, segundo a qual “é proibido proibir”. Mas tais normas só deveriam
instalar-se quando a afirmação da singularidade radical estabelece uma ponte com a
potencial universalidade. E exprimem a ruptura com os códigos que antes
configuravam a excelência e o mérito dos artefactos artísticos, como da literatura e
das artes cénicas. Do mesmo modo que, para Jean Paulhan (póstumo, 1990: 83-84),
as vanguardas da pintura do início do séc. XX foram sobretudo “um vasto Tradições,
empreendimento de demolição que começou por se desembaraçar dos cardeais, dos demolições
nenúfares e das senhoras nuas da pintura académica”, ignorando ao mesmo tempo
as regras da perspectiva estabelecidas no Quattrocento, também o cinema moderno
demoliu a escolástica do studio system e as suas découpages convencionais, para se
libertar dos espartilhos até então legitimados como “boas práticas” e, rejeitando-os,
criar aquilo que viríamos a designar por “tradição do novo”. Mas também aqui, como
de resto aconteceu com a música serial e dodecafónica, os limites da experiência são
definidos pela exigência de que a expressão individual e autónoma do sujeito-autor
seja partilhável e generalizável: tem de instalar um gosto e de gerar um público — e
por vezes consegue-o, outras não.
Estas e outras ideias inspiradoras não são, sublinho-o, meras petições de princípio:
resultam da experiência vivida e reflectida que a fenomenologia existencial
conseguiu, em seu tempo e no seu vocabulário, tematizar. E não são “óbvias”: o
caminho que as transforma de hipóteses em verificações é feito de argumentários
que se movem em disputatio.
Devo esclarecer que, na discussão de todas estas matérias, o meu etos herda ainda o
da antropologia filosófica (não a “consciencialista” e dependente do cogito
cartesiano, como foi ainda a de Sartre, mas a que mais tarde aceitou repensar o
compósito sujeito humano, centro da reflexão filosófica, em função do inconsciente
freudiano e da mente das neuro-ciências) — o que talvez desagrade a gregos e
troianos: filósofos-cinéfilos acharão porventura que estes escritos são
insuficientemente filosóficos; cinéfilos não-filósofos acharão que o são de mais. Mas
minha experiência é esta: a de que só apoiados nestes ramos do pensar entendemos
o que os artistas, e os cineastas entre eles, fizeram, fazem e farão. E o método que
alimenta esta reflexão é, sem surpresa, o do comentário: ela enreda-se na leitura de
autores, no visionamento de filmes, na observação do transmigrar interartes de
substâncias e formas (observação ora diacrónica, ora sincrónica), por vezes na
avaliação de doutrinas e na sua discussão, para construir um corpus que esclareça a
posição do cinema e dos seus filmes entre as artes de que são íntimos e cúmplices.
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responderam a esta depreciação das artes com uma estética negativa e do silêncio —
que Vattimo (loc. cit., 49) descreveu em termos de suicídio de protesto:
“No mundo do consenso manipulado, a arte autêntica só fala calando, e a experiência
estética só pode dar-se como negação do que foram os seus caracteres canonizados pela
tradição, a começar pelo prazer do belo”. (...) Num certo sentido ainda por esclarecer,
a obra de arte, na condição presente, manifesta características análogas ao ser
heideggeriano: dá-se apenas [a ver] como aquilo que, ao mesmo tempo, se retira”.
O mesmo Vattimo aproximava (loc. cit., 52) este fenómeno de depreciação entrópica
e anti-enfática das artes do que se passou na “experiência moral”, evocando a
positividade niilista do Nietzsche de Humano, demasiado humano:
“[Também] a experiência moral já não encontra grandes opções entre valores totais, o
bem e o mal, mas unicamente entre factos micrológicos, em relação aos quais, como
no caso da arte, os conceitos da tradição se revelam enfáticos. Em Humano, demasiado
humano, Nietzshe descreveu esta situação, opondo ao homem ainda ressentido, que
vive como um drama a perda das dimensões patéticas, metafísicas, da existência, o
homem de bom carácter que está ‘liberto da ênfase’”.
De cada vez que reabordamos a questão da “morte” ou do ”ocaso” das artes nas
sociedades actuais, descobrimo-nos diante de uma sua dupla dimensão paradoxal:
por um lado, ela só parece entendível pela Kulturkritik herdada, como problema
nascido na reflexão filosófica e nas ciências humanas, endereçado a um público
informado e reflexivo; por outro, ela é socialmente experimentada por vastos
públicos “distraídos”, que alteram irreflectidamente a sua relação com as artes, não
a problematizando e entendendo-a como “natural”. A questão da “morte” ou do
“ocaso” das artes é, assim, como ocorre em muitas outras com ela comparáveis, ora
suscitadora de uma hiper-sensibilidade minoritária, ora de uma indiferença
maioritária que recusa perder tempo com discussões tidas por “bizantinas”.
• • •
ENSINAR É RE-APRENDER sempre: os textos aqui reescritos, e os novos, rearrumam
tentativamente questões e problemas relativos ao cinema, à imagem, aos simulacros,
às narrativas e ao fantasma da realidade, que lhes faz frente e — por vezes — se lhes
impõe. Reescrever e reorientar, como quem refaz um lance de dados ou como o
coleccionador que reinstala, noutro lugar e com uma nova intenção, objectos a que
adicionou outros, é sempre um rearrumo como o que Bateson e sua filha Mary
Catherine discutiram nos seus Metalogues (1948-1969): rearrumar é ter razões para
não voltar a pôr tudo onde estava, preferindo um desordenamento que levará a uma
nova inteligibilidade do arrumo. E é sempre um exercício de paralaxe, que muda a
posição relativa dos objectos observados e estabelece novas afinidades entre
heterogéneos. Ora, nestes textos falamos de aprender a ver, de aparições e do modo
como o imaginário e as imagens-simulacros conformam e re-formam o real. O
exercício tem em conta a intrasubjectividade e a intersubjectividade da experiência
relacional no mundo humano e a premência de significar e de figurar que lhe dão a
sua hecceidade e a narrativizam. Por vezes, trilharemos aqui linhas de festo de onde
se avistam territórios já explorados pelo Henri Faure de Hallucinations et réalité
perceptive (1965) e de Les appartenances du délirant (1966), os dois livros de Les
objets dans la folie. Mas esta alusão, a que voltaremos, advém do facto de ter sido
comparativamente e negativamente, a partir das patologias, que fomos entendendo
o que são, para nós, normalidades. Os pathos que aqui nos ocupam só por excesso
de zelo interessariam a psiquiatria: são os da criação artística chegada ao tempo do
cinema, hoje pós-cinemático. E os “delírios” que aqui nos ocupam são os que a
“normalidade” melhor conhece: são os nossos, os da cinefilia animista e os dos que
escrevemos e lemos textos como estes.
Quem pensa sobre o cinema e os seus filmes mais de 120 anos depois da sua invenção
deseja por vezes entrar de modo discreto num discurso compósito precedente, não
ter de começar, assumir como sua uma linhagem e um encadeamento para apenas
ocupar, nesse vasto corpo discursivo, um lugar intersticial e lacunar, como desejou
Foucault no já remoto ano de 1970, na sua lição inaugural no Collège de France
(L’0rdre du discours, lição de 2 de Dezembro desse ano, publicada meses depois pela
Gallimard). Esse desejo de inscrição numa comunidade de reflexão e de não ter, por
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isso, de começar, foi também o meu ao escrever, reformular e actualizar estes textos.
A linhagem de que eles são devedores remonta ao episódio de Pigmalião no livro X
das Metamorfoses de Ovídio (mito fundador da ideia “ocidental” de simulacro, que
teve um precursor sombrio na Helena de Eurípides) e inclui a vida posterior desses
simulacros e as suas relações com a realidade ao longo da história das artes até ao
cinema e ao universo pós-cinemático a que ele, fotografia, televisão e vídeo deram
origem.
Não é possível pensar o cinema fora do contexto das artes das imagens e da cena, das
narratividades e da “ansiedade de influência” que percorre o arquipelágico labirinto
das relações interartes. Isso significa, também, pensar o cinema regressando ao
persistente duelo entre iconófilos e iconoclastas e à importância da figuração nos
cristianismos e especialmente na catolicidade, porque a história do mundo
“ocidental” não teria sido a que foi se a igreja de Roma não tivesse desempenhado,
desde os seus primeiros tempos, o papel de promotora da produção de imagens.
Muitos séculos antes de Hollywood, o Vaticano e os seus príncipes montaram e Fábricas
de sonhos
financiaram a principal fábrica de sonhos desse mundo. Os primeiros séculos do
cristianismo, mas particularmente a catolicidade romana posterior ao cisma,
propulsionaram, ciclicamente combatidos por iconoclasmas, o culto das imagens,
apadrinhando a pintura e a escultura desde a longa idade média até ao renascimento
e ao barroco: a cada reforma iconoclasta respondeu uma contra-reforma iconófila,
mesmo quando ela resultou da incerteza teológica ou de contra-ofensivas tão
dogmáticas e impiedosas como a do concílio de Trento.
Reflectir sobre o cinema e os seus filmes convida, assim, a pensar o que foram as
imagens desde que as fabricamos — ou seja, desde há 60 mil ou mais anos. Até
“ontem à noite”, como Régis Debray gosta de dizer, a história da arte dominante no
habitus cultural do ocidente tendeu a convencionar que as artes nasceram na Grécia
clássica. Mas a descoberta das grutas pintadas no paleolítico tardio, como as de
Altamira (em 1879) e sobretudo as de Lascaux (em 1940), desacreditou essa
convenção, afirmada em finais do séc. XVIII e socializada ao longo do séc. XIX. Os
especialistas de Lascaux concordam em que as suas pinturas foram feitas há 17 ou 18
mil anos, como proposto, entre outros, por Arlette Leroi-Gourhan; e datações
directas via carbono 14 situaram as de Altamira entre há 15.500 e 13.500 anos atrás,
embora a polémica sobre estas idades não esteja encerrada e envolva consideráveis
margens de erro. Mas mais antigas e apenas descobertas em 1994 são as de Chauvet
Pont d’Arc (França), com cerca de 32 mil anos. A confirmarem-se estas datas, os
pintores de Lascaux foram sapiens tais como Edgar Morin os descreveu, mais
exactamente cro-magnons magdalenianos. Ora, esse homo sapiens é muito
semelhante ao homem moderno: tornou-se um lugar-comum dizer que, se
encontrássemos um deles, vestido e calçado como nós, num aeroporto ou lobby de
hotel, não o distinguiríamos de um contemporâneo um pouco exótico. Porém, hoje,
de ano em ano novas descobertas fazem continuamente recuar a época presumida
das primeiras pinturas parietais: datações de imagens da gruta de El Castillo indicam
que estas teriam cerca de 40 mil anos, ou seja, que os seus autores podem ter sido
neandertais tardios — talvez também os primeiros a sepultar os seus mortos. E,
enquanto fecho estes escritos, datações de pinturas em grutas de La Pasiega
(Cantábria), Maltravieso (Extremadura) e Ardales (Andaluzia) pelo método do
urânio-tório poderão vir a comprovar que algumas delas, pré-figurativas, terão 65
mil anos ou mais — o que significaria que os seus autores foram neardantais capazes,
portanto, de pintar “signos” e de produzir simbólica.
A função “mágica” dessas pinturas e gravuras parietais é hoje geralmente
reconhecida. E é significativo que a arte das grutas e o hábito de sepultar
conspecíficos sejam coevos e obra desse muito provável neandertal tardio, e depois,
seguramente, do sapiens. Pintura e sepultura, fundando crenças mágico-animistas,
estão juntas no limiar daquilo a que muito mais tarde chamaríamos cultura. Basta
pensar na sumptuosa arte funerária da antiguidade egípcia, que se estendeu ao longo
de três mil anos, para entender o que foi o devir e a posteridade dessa relação. É no
sapiens de Lascaux ou no neardantal de La Pasiega que encontramos o nosso
precursor sombrio, de que se ocupou Deleuze (1968 e 1988) e a que voltaremos a
propósito das narratividades do cinema.
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• • •
FABRICAMOS UMA IMAGEM; ela ganha expressão e, com essa expressão, poderes de
representação vicárica; esses poderes tornam-a independentes de nós, que a
fabricámos; ela passa a exercer esses poderes sobre nós; de feitiço passa a feiticeira,
de escrava a mestra. Eis o processo alucinatório em que o nosso artefacto nos aliena:
passamos a temê-lo, a respeitá-lo, a pedir-lhe benção e protecção. Foi a história da
História da
idolatria
idolatria e das suas variantes (esboçada desde a Encyclopédie de Diderot e
d’Alembert nas entradas “statue”, “sculpture”, “anthropologie”, e depois retomada
por Voltaire, Hume) que nos ajudou a conhecer e a avaliar melhor os recantos das
nossas relações com as imagens. O fiel que fala à imagem do seu santo tem com ela
uma relação tão real quanto imaginada — os dois níveis de relação são, para ele,
indestrinçáveis: a imagem instala a presença do representado e garante o contacto
com ele. Esse fiel venera o artefacto auto-referencial e atribui-lhe poderes apenas
resultantes da engenhosidade de quem o fez. É um parente próximo do Pigmalião
que anima a sua Galateia e do cinéfilo que chora imerso no filme, e antecipa o
contemporâneo que interage eficazmente com toda a espécie de artefactos
simulacrais. Realidade e ficção entrelaçam-se em quiasma no mesmo registo
perceptivo e asseguram a eficácia da relação que com ambas mantemos.
Dois textos oriundos da pragmática da comunicação de Palo Alto (How to do Things
with Words, J. L. Austin, 1962, e How real is real? Communication,
Desinformation, Confusion, Paul Waztlawick, 1976) desbravaram os terrenos da
sobreposição de níveis de realidade e a capacidade dos Speech Acts (actos de
linguagem) para serem, por si sós, acções influentes e obrigantes; fazendo-o,
esclareceram melhor a interpenetrabilidade de ideias aparentemente tão claras e
distintas como a de realidade e a de ficção. Se, falando, faço coisas, e se diferentes
realidades desierarquizadas se disputam na minha mente, a fronteira entre dizer e
fazer, por um lado, e a que se julga existir entre realidade e ficção, por outro,
esbatem-se e tornam-se indecidíveis, aporéticas. Escreveu Watzlawick desde as
primeira linhas do seu prefácio:
“Entre todas as ilusões, a mais perigosa consiste em pensar que apenas existe uma
realidade. O que existe são diferentes versões desta, algumas contraditórias e que são,
todas elas, efeitos de comunicação, e não o reflexo de verdades objectivas ou eternas”.
Watzlawick descreveu (1976, 1984) três tipos de realidade: a de primeira ordem, feita
de res extensa, empiricamente constatável, onde nos movemos fisicamente e em que
tropeçamos todos os dias; a de segunda ordem, a dos valores, onde o ouro deixa de
ser visto como um metal entre outros e passa a ser considerado pelo seu excepcional
valor de troca ou sumptuário; e a de terceira ordem, a do simbólico e do imaginário,
onde não exigimos necessariamente às coisas que a integram (as nossas ficções,
fantasmas e imagines) que satisfaçam o predicado de existência factual tal como o
entendemos aplicado às coisas que integram a realidade de primeira ordem
(Mendes, 2001: 171-177). E essas três ordens de realidade não estão hierarquizadas,
mantêm entre si relações quiasmáticas e de equivalência.
O programa de Austin, sobre os usos performativos da linguagem, não era menos
claro desde a sua primeira conferência, trabalhando exemplos de frases que fazem
coisas (como nos casos declaro-vos marido e mulher, eu te baptizo, lego este relógio
a meu irmão, prometo estar cá amanhã):
“Há enunciações (...) que não descrevem nem reportam coisa alguma, e não são
verdadeiras nem falsas; são execuções de acções (ou partes delas) que não podemos
descrever [apenas] como o acto de dizer alguma coisa”.
O que é uma ficção? É, originalmente, a imagem inventada de um ente, coisa ou lugar
que não corresponde, a não ser alegoricamente, a nada de existente na realidade de
Realidades
e ficções
primeira ordem de Watzlawick: cíclope, sereia, centauro, unicórnio. E o que é uma
narrativa ficcional? É o relato de acontecimentos inventados, imaginários, que
também não ocorrem nessa realidade, mas que pode usar todos os meios dos relatos
de factos “reais”, deles se indistinguindo: A cidade flutuante, de Verne. O efeito de
realidade da ficção (o verosímil) pode, assim, ser idêntico ou superior ao da não-
ficção (o verdadeiro), como sugeriu o Aristóteles da Poética e muito depois
corroborou, no terreno, a pragmática da comunicação de Palo Alto.
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A crise das
A quarta crise, resultante dos efeitos cumulativos das três primeiras, é uma crise de
identidades identidade de boa parte do cinema contemporâneo, alvo de pressões contraditórias
do mercado, do home cinema, da aceleração das mutações tecnológicas, do sistema
dos festivais e do conflito histórico entre arte e indústria (revisitem-se, a este
respeito, as polémicas dos anos 20-30 do séc. XX). Novas gerações de cineastas
tentam situar-se neste universo complexo, hesitando entre um cinema artie e de
autor e um cinema para os públicos, e demorando por vezes a entender que o cinema
sempre teve de gerar os seus públicos a partir dos caminhos que foi trilhando: só
existem públicos generalistas e pré-formatados à espera dos filmes na medida em
que o seu gosto é temporariamente condicionado por uma estética, uma gramática e
formas narrativas hegemónicas (é o caso dos públicos dos blockbusters clássicos e
pós-clássicos). Esta crise de identidade, onde constantemente se oscila entre
heteronomia e autonomia, é em primeiro lugar estética, porque respeita aos modos
de figurar e de dar forma ao mundo e às coisas. Mas é também ética, porque respeita
ao compromisso de cada autor com o que cria e com os destinatários — o putativo
povo por vir — a quem endereça as suas criações.
A montante e a jusante destas crises, qualquer artefacto artístico resultante da
interacção e da convergência de diferentes práticas e/ou técnicas, e que se apresenta
como uma composição mais ou menos complexa, é percepcionado como um “todo”
que é “mais” do que a “soma” das suas “partes”, e por isso requer, para ser entendido
e/ou apropriado por quem o olha, uma abordagem holística. Estão neste caso o
cinema e os seus filmes, não só por herdarem de todas as artes que os precederam,
mas também por exigirem a experiência e o exercício de saberes aplicados muito
diversos — do script “literário” à sua planificação e découpage, à mais ou menos
complexa encenação, à direcção e representação de actores, às técnicas de filmagem
propriamente ditas, à direcção de fotografia e à captação do som, à pós-produção que
pode gerar diferentes versões montadas da mesma obra e às misturas finais —
saberes aplicados que convergem no mesmo objecto, exprimindo, nele, um vasto
leque de competências. Qualquer espectador de um filme sabe, mas antes dele soube-
o a equipa artística e técnica que o produziu, que aquele objecto é um “todo maior
19
que a soma das suas partes” — ou seja, gera o holismo que caracteriza a sua criação
e recepção.
• • •
COMO PERCEPCIONAMOS, no dia-a-dia corrente, as crises acima referidas? Há dias
entrei, a meio da tarde, num café-bar que tinha meia dúzia de grandes ecrãs de
plasma nas paredes, todos ligados e em silêncio. Num deles, o ministro das finanças
respondia a questões de deputados. Noutro passava um jogo de futebol da liga
inglesa. Noutro, o Casablanca de Michael Curtiz na versão colorida. Noutro ainda,
um desfile de moda. No penúltimo, um maître saucier revelava o segredo dos seus
molhos. No último passava o telejornal de uma popular tv. Havia dez clientes
sentados nas mesas, quase todos presos aos seus tablets e smartphones. Nada nos
ecrãs da sala lhes prendia a atenção. Pareceu-me uma boa metáfora do que aconteceu
ao cinema: está enredado no novo labirinto de imagens que ajudou a tecer. Em casa
já ninguém apaga as luzes para ver filmes e eles podem ser travados por pausas,
reiniciados, gravados para serem vistos depois, podem desaparecer ao primeiro
zapping. O cinema e os seus filmes já são apenas uma das componentes do novo
universo das imagens em movimento com que convivemos em ecrãs de todos os
formatos, dos painéis animados das auto-estradas e corredores do metro aos ecrãs
multifunções dos smartphones. A sua desterritorialização tornou-o nómada: ele está
um pouco em toda a parte e em parte nenhuma. Apesar de bem vivo e de subsistir
em salas comercias modernizadas, o cinema que a cinefilia amou emigra cada vez
mais para galerias e museus à mistura com a videoarte histórica e com instalações
de cineastas, ou é cultivado por cinematecas e festivais temáticos e locais, novos
templos para um velho culto. A antiga religião do cinema perde parte dos seus
espaços tradicionais e os seus nichos de público tornam-se mais selectivos e
nostálgicos. Continuamos a precisar de dar resposta à questão que, ao longo de
mais de um século, foi ciclicamente recolocada pela cinefilia: de que falamos quando
falamos, hoje, de Cinema?
Ao mesmo tempo, quando revemos os itinerários pessoais de realizadores que
entraram no século XXI como promessas de continuidade de um grande cinema de Crepúsculos
de deuses
autor que levava públicos às salas — David Lynch, Wim Wenders, Lars von Trier,
Emir Kusturica, Béla Tarr, Van Sant, Terrence Malick — percebemos que a sua
produção se rarefez ou que, em parte, abdicaram de um torneio onde tudo tinham
feito para se tornar campeões. Lynch, que depois de Inland Empire (2006) só filmou
curtas-metragens, prometia regressar em 2017 com novas 18 horas de Twin Peaks
(a série de há 27 anos) para a televisão. Béla Tarr parece ter-se despedido do cinema
com O cavalo de Turim (2011), passando a ensinar. Van Sant saía vaiado de Cannes,
onde The Sea of Trees (2015) foi visto como “o seu pior filme de sempre”. Wenders
não conseguiu, em The Beautiful Days of Aranjuez (2016), senão aludir pobremente
à sua obra anterior. Depois de Ninfomaníaca (2013), que levou mais sexo aos ecrãs
(como fez Gaspar Noé em Irreversible, 2002 e Love, 2015), von Trier centrou-se em
novo projecto “provocador”, uma série de oito episódios para televisão sobre um
serial killer que narra o que faz do seu ponto de vista (ideia tomada de empréstimo
às novas séries de TV americanas) e que afinal se tornará numa longa-metragem,
The House that Jack Built. Quando fechávamos estes escritos, Kusturica regressava
(em 2016) com Na Via Láctea, uma revisitação da sua controversa e desigual obra
anterior. E Malick voltava à cosmologia de The Tree of Life (2011) com o
documentário Voyage of Time (2016). Nem Alejandro González Iñarritu chegava à
praia com The Revenant (2015), grande saga monomítica de perseguição e vingança,
fotografada pela câmara eternamente móvel de Emmanuel Lubezki, que
precisamente tentou oferecer ao filme a imagética cosmológica de Malick. Ou seja:
ora suspenderam o cinema, ora falham regressos, ora demoram cada vez mais tempo
a conceber novos filmes, ora se repetem e revisitam centripetamente a sua obra
anterior. Representarão, cada um a seu modo, a chegada a um impasse, à
reconsideração do que o cinema para eles foi. Cineastas mais jovens, como
Apichatpong Weerasethakul, passam do cinema (Cemitério do Esplendor, 2015) à
projection performance (Fever Room, mesmo ano), apresentando instalações
imersivas onde se testam os limiares de novas experiências cinemáticas. E boa parte
do cinema contemporâneo emigrou para os mind game films ou puzzle films,
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Epígrafes
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COMEÇO POR quatro notas preambulares que ajudarão, espero, a situar o cinema no
contexto mais geral das artes que o precederam e das suas contemporâneas: a
primeira (preâmbulo 1), inspirada em Rilke, Freud e Georges Didi-Huberman,
retoma textos de há cem anos e propõe que a arte é uma infância antiga; no seu
âmbito também abordamos a relação entre brinquedo e objecto artístico. A segunda
(preâmbulo 2) avalia, a partir das pinturas de Lascaux, a dimensão daquilo a que
chamamos imagem, e que se abre num vasto delta de significados sedimentados ao
longo de séculos; no seu âmbito abordamos também os “meios”, que, como diz Hans
Belting, transportam a arte até nós. A terceira (preâmbulo 3) reavalia a relação entre
quartos, templos e museus a propósito do “sagrado” e do “profano” — relação que,
como veremos, também respeita ao cinema e à sua contemporânea
encenação/exibição. A quarta e última (preâmbulo 4) propõe, na esteira da
heterodoxia de Edgar Morin, que o cinema é uma arte animista.
“Sinto-me como alguém que deve recordar-vos da vossa infância (...). Não apenas da
vossa, mas de tudo o que alguma vez foi infância [itálicos J. M. M.]. Pois trata-se de
despertar em vós recordações que não são vossas, que são mais velhas do que vós; de
restabelecer relações e de renovar correspondências que são muito anteriores a vós”.
que o artista cria (levando muito a sério o seu jogo), o estado da mente e do mundo
em que o que criou consegue interpelar-nos. Nas mesmas páginas, Didi-Huberman
invoca a seguir o «Mitsu» de Rilke (1920) para sublinhar a inseparabilidade da
O gato dos figuração e da sobrevivência: um rapazito perde o seu gato Mitsu; para fazer o luto
desenhos da perda irreparável desenha-o compulsivamente num caderno que Rilke elogia
deste modo:
“Tendo deixado de o ver puseste-vos a vê-lo ainda mais. Vive ele ainda? Sobrevive em
vós, e a sua alegria de pequeno gato descuidado, depois de vos ter divertido, obriga-
vos [itálico J.M.M.]. Tê-lo-eis exprimido através da vossa laboriosa tristeza”.
Laboriosa tristeza da sobrevivência da e pela arte, que é ao mesmo tempo lúdica
(referente ao jogo: Spiel) e reinventiva. A infância de que Rilke e Freud falam seria,
assim, e também, um mundus ludens, o mundo lúdico onde fazer arte é possível: um
estado de coisas onde pathos e ludicidade compõem juntos as nossas paisagens
exteriores e interiores e vivem a sua dupla vida apolínea e dionisíaca. Porque
atravessa a história, esta infância é também uma trans-infância. E porque inclui e
permite entender todas as infâncias do mundo é, ainda, uma meta-infância: uma
infância hipostasiada. Também para o Niezsche inventor de Zaratustra, o filósofo
precisaria de voltar a ser criança para reconstruir o que sabia, no termo de um
itinerário de transfigurações (Deleuze, 1966).
La pensée “...Pensamento selvagem não é, para nós, nem o pensamento dos selvagens nem o de
sauvage uma humanidade primitiva ou arcaica, mas sim o pensamento em estado selvagem,
distinto do pensamento cultivado ou domesticado” (itálicos meus), [sendo que todos
os tipos de pensamento coexistem uns com os outros, em vez de se sucederem
historicamente uns aos outros]. “Conhecemos ainda domínios onde esse pensamento
selvagem (...) é relativamente protegido: é o caso da arte (...). As características
excepcionais desse pensamento selvagem (...) vêm sobretudo da amplitude dos fins
que torna seus: ele pretende ser ao mesmo tempo analítico e sintético, ir até aos seus
extremos nas duas direcções, mantendo-se capaz de exercer uma mediação entre os
dois polos” (id. ibid.).
A criança joga com um objecto já feito; o artista joga para criar um objecto —
pensemos de novo no Godard de Histoire(s) du Cinéma. E nesse trabalho criativo
também há agôn (o artista é o seu próprio antagonista, quer ultrapassar-se a si
mesmo ou a um rival), alea (ele experimenta sem garantia de resultados), mimicry
(faz a partir do que outro fez, ou do que ele próprio antes fez) e ilinx (o pathos da
criação é comparável a uma febre, a uma vertigem).
O “estado de infância” é central para a compreensão do que seja a arte, mas não as
obras que a infância faz, porque a obra já resulta de qualquer aprendizagem, da
aquisição de uma teknê ou de algo que vai tornar-se um ofício. Não é pelo seu valor
“artístico” que guardamos os desenhos e bonecos feitos por crianças: é por afecto a
uma colecção que talvez um dia integre uma biografia, uma história de vida. Neste
sentido, a infância não produz “obra”, antes se aparenta à loucura definida por
Foucault como “ausência de obra”. Mas, insiste Fabre, é muito curta a distância entre
o quarto infantil e a galeria de exposições:
“... A maioria dos artistas do séc. XX que se puseram a criar ‘como crianças’ e que vêem
na infância o seu modelo [matriz de iniciativa, matriz comportamental] agiram como Do quarto infantil
à galeria de arte
diante das esculturas ‘negras’ [ou da arte ‘primitiva’ e seus misteriosos objectos]:
deixaram-se fascinar por elas, frequentaram os lugares onde essa arte se deu a ver,
convidaram-na para os seus ateliers. (...) O artista salta, assim, do quarto infantil — o
seu ou o dos seus próximos — para a frequência das publicações sábias e das
exposições”.
porque essa sobrevivência não garante a mesmidade: no seu retorno, o mesmo é por
nós eventualmente experienciado como outro, talvez diferente. Não sei se o
Baudelaire que vejo no daguerreotipo é o mesmo que Daguerre viu. Não estou certo
de ver, nas pietàs de Miguel Ângelo, Palestrina ou Caravaggio, o que o seu tempo
nelas viu. Certamente, não vejo em Lascaux o que os magdalenianos de há 17 ou 18
mil anos ali viam. Na sua viagem nómada ou estática através dos tempos, o artefacto
ou objecto artístico manteve-se fisicamente o mesmo, talvez descontextualizado,
amputado ou tornado ruína como o célebre torso do Belvedere; mas o meu olhar não
é seu contemporâneo, não está seguro do que in illo tempore ele foi. É ele que, na
sua aparição actual, tem de me perturbar com a sua contemporaneidade.
Roubado ao seu memento e à sua historicidade, viajante nomádico que sobreviveu
naquilo a que Belting (2001) chamou sucessivos meios ou encenações da sua
aparição/reaparição (já me ocuparei dos meios de Belting), o artefacto artístico volta
a significar para nós, embora talvez não o que primeiro significou. Melhor diríamos:
volta a figurar (no sentido de dar figura a...), embora talvez não o que primeiro
figurou. Diz Didi-Huberman que os topoi onde estes fenómenos ocorrem são feitos
de “trocas e conversões recíprocas entre espaços e tempos heterogéneos, (...) lugares
feitos de actos que se repetem e que, no entanto, constantemente diferem”. Geram a
Nachleben de Warburg na infância de Baudelaire, Rilke e Freud, onde a arte
sobrevive e é por nós vista. E esse ver suspende o tempo, mesmo que por instantes:
o meu tempo interior suspende-se quando vejo a Pietà ou quando entendo como
ainda a verei: diante dela, passado e futuro tornam-se duração presente. A obra de
arte, disse Bonnard, “é uma paragem do tempo”.
Outra coisa acontece talvez quando repousamos o nosso olhar numa paisagem
natural que se manteve igual a si mesma durante milhares de anos: “O V das íbis
rasantes nas águas do Nilo não tem idade — vemos nele o mesmo arrepio de céu e O meu Nilo e o
água que Akhenaton viu”, diz Régis Debray (Vie et mort de l’image, 1992: 52). Como de Akhenaton
se a natura naturans oferecesse uma garantia de mesmidade desde que intocada
pelo homem, que sempre visa ser seu cartesiano maître et possesseur e a desfigura.
O Nilo, as íbis e os palmeirais das margens não são artefactos artísticos que viajaram
até mim de meio em meio: são o resultado do fluens autopoiético da natureza.
Reproduzindo-se iguais, tornam-se, para mim, stans. Ainda assim, não vejo neles o
que Akhenaton viu: mesmo admitindo que rio e aves se mantiveram iguais no seu
devir e aparecer, oferecendo-me o eterno retorno do que são, o meu olhar e a minha
mente não são os do faraó quase-monoteísta para quem o rio era sagrado e Aton
primeiro deus. Não posso comparar as nossas visões do mundo. O Nilo é para mim
o rio doméstico do bairro francês do Cairo e o do cruzeiro de Luxor: o que sei e sinto
sobre ele e as suas aves não é o que Akhenaton soube e sentiu em Tell-el Amarna há
quase 3.400 anos. Nas íbis do Nilo, vejo o que a minha cultura foto-cinemática, e as
outras, em mim inscreveram sobre elas.
Do mesmo modo sei que, quando a natureza intocada pelo homem é fotografada por
Sebastião Salgado, ou quando os fotógrafos americanos do último terço do séc. XIX
descobrem Monument Valley e o Grand Canyon, ou seja, quando criam a imagem
do que virá a ser o “Oeste” (Buscombe, 1995), essas fotos, tão inspiradas no pathos
da grande pintura paisagística romântica, fundam e passam a ser a imagem epocal
que a minha mente guarda dessas paisagens. Mas ao mesmo tempo não sei se, numa
tarde de Verão, “seguindo com o olhar o perfil de um horizonte de montanhas”,
respiro a mesma aura que Benjamin (1936) respirou. Nos termos do Barthes de La
chambre claire, posso partilhar com ele o studium dessa imagem da natureza — que,
insisto, não é um artefacto artístico chegado até mim de meio em meio, nem um
brinquedo, nem um “modelo reduzido” — mas é improvável que o seu punctum seja
o mesmo para ele e para mim. Seria amável e reconfortante que o voo rasante das
íbis do Nilo, metáfora do que dá rosto à frágil aeternitatum, fosse o mesmo para
Akhenaton, Nefertiti, para as suas seis filhas e para mim. Mas sei que é fraca essa
probabilidade, embora ela integre o meu precursor sombrio.
Quanto à reencenação dos artefactos artísticos nos sucessivos meios de Belting, ela
não respeita apenas ao exílio da estatuária do Parténon no British Museum ou de
Osíris no Louvre. Para além dos objectos confiscados, roubados e depois
30
adaptada, J. M. M.).
Eis um tema que nos levaria de regresso à Susan Sontag do manifesto “contra a
interpretação” (1964) e ao seu elogio da “estética do silêncio” (1975), de que me
ocupei noutro lugar (Mendes, 2015) a propósito da logofobia e da logofilia dos
artistas. E a este respeito teríamos também de reencontrar o «Stultifera navis» de Stultifera
Foucault (1961), onde, a propósito das Tentações de Santo Antão (Bosch, circa 1500, navis
hoje no Museu de Arte Antiga de Lisboa), diz ele que...
“...Entre o verbo e a imagem, entre o que é figurado pela linguagem e o que é dito pela
plástica, a bela unidade começa a desfazer-se (...). Se é verdade que a imagem tem
ainda a vocação de dizer, de transmitir algo de consubstancial à linguagem, reconhece-
se que ela já não diz a mesma coisa; e que, pelos seus valores plásticos próprios, a
pintura se interna numa experiência que se afastará cada vez mais da linguagem (...).
Liberta da sageza e da lição que a ordenavam, a imagem começa a gravitar em torno
da sua própria loucura (...). Tantas significações diversas se inserem na sua superfície,
que ela já não apresenta senão uma face enigmática. O seu poder já não é o de ensinar,
mas o de fascinar”.
Para quem entra nas grutas, os animais pintados parecem correr nas paredes
cercando, na sua viva cavalgada, o visitante. André Glory (2008) escreveu que, se
pararmos na rotunda junto à traseira do auroque de cinco metros e meio, “vemos
correr para nós a horda tumultuosa de todos os animais que rodeiam os dois
primeiros touros”. Mas as figuras estão agrupadas por afinidades entre espécies
(nunca há um auroque junto a um bisonte, por exemplo), e os mais perigosos são
perseguidos por flechas como num exercício mágico de ante-destruição: se se
animassem, as flechas atingi-los-iam (D’Huy e Le Quellec, 2010). Como se a pré-
intuição da animação cinemática tivesse inspirado os pintores de Lascaux,
caçadores-recolectores cuja cosmologia era inevitavelmente mágica.
Lascaux, cena do fosso: o homem itifálico com cabeça de pássaro e o “seu” bisonte.
todas as imagens, seus significados e funções? Não instalam uma relação indecifrável
entre nós e o que mimam, representam, simulam, substituem?
Assim no paleolítico tardio se pintou Lascaux: para se sentir o auroque, para se sentir
que o bisonte é o bisonte, para os mostrar como visões e devires e não apenas como
formas convencionais reconhecidas, é criada uma arte que é desejo em imagens e
cuja eficácia simbólica não se distingue da eficácia mágica visada. Mais holismo: a
monumentalidade eidética das grutas estabelece uma ponte mágico-simbólica entre
o sapiens e o mundo dos animais de que ele depende. Magia, no que toca aos poderes
da arte desse paleolítico tardio, é a capacidade de forçar uma relação animista com
a natureza, produzindo efeitos prodigiosos. Práticas mágicas são, aqui,
procedimentos de acção e de conhecimento que fundam, mais tarde, a religião e
fazem surgir o “sobrenatural” imanente à natureza. A dança imitativa de animais a O devir-animal do
que o caçador mascarado e pintado se entrega até ao transe, o seu devir-animal, é sapiens/demens
um procedimento mágico. A relação mimética e analógica entre o signo e o objecto
do rito é central na magia por gestos e por imagens, que se desdobra na crença do
poder mágico da nomeação, da invocação e do chamamento pela palavra. No
magdaleniano, as práticas mágicas determinam a concepção e produção de toda arte
parietal: são operativas, concretas e experimentais, ligadas às técnicas de
mimetismo, simulação, camuflagem e armadilhagem em que a caça se baseia. Diz
Kurt Lindner em A caça pré-histórica (1906, 1950):
“A magia caçadora e a sua crença no encantamento (...) é mais antiga que qualquer
forma de culto dos ancestrais ou da crença em espíritos, ou seja, é a mais antiga
expressão do sentimento religioso. [O objectivo da] magia é o domínio sobre as forças
secretas da natureza (...), a aquisição de poderes sobre o animal de que depende a difícil
existência da comunidade”.
E reitera René Alleau (1989: 259-262): Altamira e Lascaux, “de acesso difícil, são
lugares reservados aos ritos mágicos de iniciação que, no magdaleniano, adquirem
grande relevância social”. Noutras grutas, acrescenta o mesmo autor, “pegadas de
rapazes e raparigas conservadas na argila endurecida dão testemunho de danças
rituais e de prováveis cerimónias mágicas de fecundidade praticadas diante das
efígies animais”. Magia e pedagogia estão fundidas na iniciação aos segredos que o
jovem aprendiz de caçador precisa de penetrar: tudo útil e concreto. Dispositivos
picturais como o de Lascaux são aparelhos de captura mágico-pedagógicos das
presas animais que povoam um território nem mapeado nem representado (não há
paisagens de fundo, árvores ou montanhas, só animais e signos geométricos).
Imaginemos que narrativa daria conta de tal magia, e que relação teria ela com o
mito: “Se perguntássemos a um ameríndio ‘o que é um mito?’, provavelmente ele
responderia: é uma história do tempo em que homens e animais ainda não se
distinguiam” (Lévi-Strauss e Eribon, 1988: 193).
Dito de outro modo: o que está pintado em Lascaux é a apropriação mágica dos
poderes do mundo animal pelos seus pintores-gravadores, o devir-animal do
sapiens/demens tal como também abordado por Deleuze e Guattari (1980) em Mil
Planaltos (subtítulos «Memórias de um bergsoniano» e «Memórias de um
feiticeiro», 291-297) (3). Mas, nesta abordagem, o devir-animal não torna o homem
animal, não é uma iniciação que transforme um sujeito-objecto noutro sujeito-
objecto: como os Holzwege de Heidegger, é um caminho sem ponto de chegada.
Esse devir-animal não tem outra substância senão ele mesmo, propõe e instala uma
aliança, uma passagem simbiótica que não conduz A a B, antes se estabelece como
34
lugar “entre” e como um desejo nunca inteiramente satisfeito. A ponte é real, mas a
sua realidade é o próprio devir. E não é um fenómeno individual, tem a ver com
população e povoamento: “No devir-animal lidamos sempre com manadas e
matilhas, bandos, população, povoamento, multiplicidade; nós, feiticeiros, sabemo-
lo desde sempre” (op. cit.: 292). “O que é um grito sem a população que ele chama
ou convoca para o testemunhar?” (293). O que é o Grito de Munch sem um “povo”
que o possa ouvir? O desejo de mistura e de contágio pela horda, a manada, a
matilha, eis, nesta leitura, o motor do devir-animal pintado pelo sapiens/demens.
Sobre esse devir escreveu igualmente Martiney (1973: 139):
“As pinturas de Lascaux mobilizaram as formas animais num esboço gestual cujo fluxo
está (...) perpetuamente em emergência. O instante da verdade era, para aquela raça
de caçadores, o momento da aparição, quando o surgimento do animal subitamente
fazia corpo com o sobressalto de todo o espaço do Umwelt (...), devido ao
acontecimento-aparecimento de uma presença perturbadora. Ora, esse gesto (...) é-
nos tornado presente pelo ritmo das formas (...): ‘Estou em devir (...) porque algo
ocorre, mas nada ocorre senão porque estou em devir’.”
Sapiens/ludens O sapiens/demens (4), surgido em África há talvez mais de 350 mil anos mas
chegado à Europa há talvez apenas 45 mil, foi também um homo ludens (Huizinga,
1938): foram a sua ludicidade e a sua “loucura”, o jogo com e contra os seus terrores,
que o tornaram artista, fazendo-o ultrapassar o faber produtor de utensílios. Depois
do neandertal, primeiro “pintor”, o sapiens continuou a sepultar os mortos,
esperando ajudá-los na sua segunda vida; inventou crenças animistas, esboçou o
mapa da porosa fronteira entre sagrado e profano (salvaguardando os interesses de
cada um sobre o outro) e dotou o seu habitus de uma nebulosa transcendência. De
facto, esse ludens/demens (e o seu predecessor neandertal) instituiu os nossos mais
arcaicos tabus e interditos, ao mesmo tempo que aprendia a exorcizá-los pela magia
do jogo e da arte; o jogo foi para ele o lugar possesso da festa, incluindo as danças
mascaradas e os transes transfiguradores, que marcavam ritualmente a frenética
transgressão dos interditos. A sua arte terá nascido do jogo exorcizador dessas festas,
traduzindo e transmutando a sua euforia gestual para desenhos e gravuras: a
primeira arte ganhou, assim, um prodigioso facies dionisíaco. A acção eficaz da
magia dos desenhos e gravuras parietais onde, como em Lascaux, se pintaram
gigantescas paradas animais em movimento, visa decerto a caça, mas ali o caçador
considera o animal um seu igual de que é indispensável respeitar a hecceidade. A
pequenês do homem-pássaro do fosso de Lascaux põe talvez em evidência essa
relação de humildade desafiante do sapiens face ao mundo dos restantes animais de
que a sua sobrevivência dependeu — o mundo dos animais e dos seus homens, como
Paul Éluard viria a titular uma recolha de poemas seus. Foi esse negotium entre o
devir-outro e o jogo, entre os poderes mágicos da possessão e da palavra, por um
lado, e a sua encenação lúdica, por outro, que Jean Rouch ainda pôde filmar em La
chasse au lyon à l’arc (fronteira Mali-Nigéria, 1965-7) e em Les maîtres fous (Accra,
1955-56), como Marta Mendes (2016) recentemente sublinhou. Com Rouch vemos
que esse mundo faz parte do nosso precursor sombrio. A era das grutas pintadas,
das primeiras sepulturas e da arte funcional (decoração de utensílios) deu origem à
transformação do real pelo simbólico e pelo imaginário do sapiens/demens/ludens,
isto é, àquilo que muito mais tarde designámos por cultura (com Tylor, 1871).
Conhecem-se mal as razões da regressão da grande pintura parietal no neolítico
posterior, que produzirá sobretudo desenhos e gravações em rochas ao ar livre, a par
da decoração de utensílios e da criação de adornos e ornamentos. Mas todo o tempo
posterior acentuará o culto dos mortos, até se chegar aos sarcófagos do Alto Egipto,
às necrópoles etruscas e de Micenas, aos retratos funerários do Fayum. A pintura e
os baixos-relevos triunfam nas mastabas e pirâmides do antigo império como nos
hipogeus do Vale dos Reis, moradas eternas das suas múmias.
A arte não “começou na Grécia”, como o séc. XIX ainda pensou. Em 30 páginas do
seu livro sobre a imagem (231-260, «Anatomia de um fantasma: a ‘Arte Antiga’»),
também Debray tenta desconstruir a ideia, herdada da História da Arte da
A herança de Antiguidade de Winckelmann (Geschichte der Kunst des Altertums, 1764), de que
Winckelmann foram os gregos os “inventores” da arte. Os gregos, diz Debray carregando nas tintas,
nunca tiveram um vocábulo para a ideia de arte, sendo teknê um termo denotativo
dos mais variados ofícios. Platão vilipendiou “poetas e pintores” e a sociedade
35
Mas a imagem não se esgota nos devires e na magia de Lascaux nem na re-
presentação do morto na Roma imperial ou na corte francesa. Abordada na longa
duração, a sua definição é morosa, porque a palavra foi oferecendo, ao longo de
tempos e saberes, a sedimentação de sentidos diversos, instalando-se em diferentes
léxicos e idiolectos. Autores há que, em acédia provocada pela polissemia e
degradação do termo imagem, lhe procuram inutilmente substitutos, um pouco
como Bresson, entristecido pelos destinos do cinema, voltou chamar-lhe
cinématographe. Mas o termo imagem está connosco há milénios e por alguma
razão não cedeu o seu lugar a outros, e cinema designa um apparatus que não se
reduz à máquina multifunções inventada pelos Lumière. Aqui, lidamos, sem
36
procurarmos equivalentes, com o conceito de imagem tal como ele chegou até nós,
cientes de que o usamos para designar coisas excessivamente diversas. Vejamos, sem
pretensão de exaustividade, a que constelação semântica a palavra se refere:
São imagens o que os espelhos reflectem e todos os objectos icónicos ou artefactos
criativos produzidos pelas “belas-artes”, da escultura à pintura e às instalações; são
imagens todos os objectos produzidos pela fotografia, pelo cinema e pelo audiovisual
incluindo televisão, vídeo e seus sucedâneos numéricos ou digitais; os hologramas e
todos os simulacros animados tridimensionais. Os ícones das “belas-artes”
representaram por semelhança, ao longo de milhares de anos, coisas, sujeitos-
objectos e objectos, quer bidimensionalmente (desenho, pintura, gravura, outras
impressões em suportes de diversas naturezas) quer tridimensionalmente
(estatuária e escultura, máscaras mortuárias e modelos do natural, réplicas dos
corpos esfolados da anatomia). Originais únicos ou depois replicadas pela gravura,
pela tipografia e outras formas de reprodução mecânica, essas imagens (ou as
imagens dessas imagens) incluíram iluminura e estamparia, tapeçaria e vitral,
ilustrações de textos, geraram álbuns (livros de imagens) e representações de toda e
qualquer coisa pelas artes gráficas e o design. No seio deste grupo feito de imagens
exteriores provenientes do que outros fazem e do mundo onde vivemos submersos,
há ainda as non-art images, os projectos técnicos desenhados à mão ou produzidos
em computador pela arquitectura e a engenharia, ou para a fabricação de toda a
espécie de objectos — máquinas, ferramentas, utensílios — bem como as da
imagiologia clínica, nascida no Renascimento entre a arte e a anatomia, mas que
conheceram um desenvolvimento sem precedentes no séc. XX, desde a invenção do
raio x, da radiografia, da ecografia. Imagens são ainda os efeitos ópticos naturais ou
fabricados que não têm existência material embora possamos fotografá-los e filmá-
los: o arco íris e as sombras produzidas pela luz do sol ou por luz artificial.
Fotografia e cinema (como a posterior televisão e o vídeo) produzem sucedâneos das
imagens especulares. No tempo da fotografia e do cinema analógico, essas imagens
apresentavam duas faces impressas, uma seu “negativo”, a outra a prova
“positivada”. É curioso que este facto quase não tenha suscitado reflexão. Negativos
e sua positivação faziam parte do dispositivo como verso/reverso, avesso/direito da
mesma imagem, as duas faces do anel de Mœbius da indexicalidade.
No seu distinto quadrante, a filosofia instalou, desde há muito, sentidos da imagem
que fogem aos da reprodução física do que é percepcionado pelo olhar ou por uma
máquina, como quando Bergson (1939: I, p.1), se lhe refere do seguinte modo:
“Finjamos nada saber das teorias da matéria ou do espírito, nem das discussões sobre
a realidade ou a idealidade do mundo exterior. Eis-nos assim em presença de imagens
no sentido mais vago em que podemos usar esta palavra, imagens percepcionadas
quando abro os meus sentidos ou inapercebidas quando os fecho. Todas essas imagens
agem e reagem umas sobre as outras...”
Chamamos imagem ao que processamos mentalmente na percepção das coisas com
que interagimos (o processamento neuronal das imagens externas ou exteriores).
Mas também às imagens dos sonhos, das memórias interiores e das recordações
(imagens mnésicas), das alucinações. E passámos a falar da imago especular da
psicanálise, da imago mental e idealizada dos objectos internos. Imagem é ainda, na
retórica e na literatura, um termo aparentado da metáfora e da metonímia. Mesmo
No Lalande atendo-nos ao vocabulário clássico fixado pelo Lalande, imagem significa ainda a
repetição mental, em geral enfraquecida, de uma sensação ou percepção (em forma
de eco, travo, simulacro, fantasma), ou seja, um segundo acontecimento perceptivo
que replica o inicial com as suas emoções e juízos (Taine, «Les images», in De
l’Inteligence, livro II); “traços” ou “vestígios” de uma actividade perceptiva anterior;
e ainda a representação, feita pela mente, de combinações de formas e elementos
resultantes da imaginação; no sentido da Vorstellung (representação) alemã, o
termo designa a um tempo as imagens actuais produzidas pelos sentidos, as da
memória imaginativa e as produzidas pela imaginação propriamente dita.
O que podemos dizer, a partir da filosofia herdada, é que o uso da palavra imagem
para designar, por extensão, sensações ou percepções não-visuais, é moderno: numa
nota para o Lalande, escreveu Lachelier (s.d., mas anterior a 1918) que “é
37
Significa isto que a mundivivência dos “Tempos Modernos”, com a sua nova imagem
ou visão do mundo, embora destinada a coexistir com outras, se fundou na
transformação do homem em sujeito fundamental e do mundo em objecto-imagem,
com o cogito cartesiano, fautor de um novo antropocentrismo: “aquela interpretação
filosófica do homem que explica e avalia, a partir do homem e para o homem, o ente
na totalidade”. Estamos, aqui, no cerne do enfoque antropológico. Mas escreveu
também Heidegger (aditamento 10º ao mesmo texto, tr. port.: 137):
39
O problema desta definição de meio é que, como vimos, ela inclui a nossa mente,
fabricante e processadora de imagens endógenas, as imagens mentais de cada um.
Se a definição de imagem sofre, ao longo da história, a dispersão semântica que
apreciei, a do meio de Belting abrange, por sua vez, elementos muito heterogéneos
de um conjunto por ele redesenhado. Mas, apesar desta dificuldade, a reflexão de
Belting sobre as imagens e seus meios merece uma atenção próxima, pela natureza
do entrelaçamento que propõe entre umas e outros. Diz ele, à medida que vai
formulando a sua ideia: “A marca histórica das imagens lê-se nos meios e nas
técnicas com que surgem em cada época, e no entanto são produzidas por temas tão
intemporais como a morte, o corpo, o tempo” (loc. cit.: 36, trad. adaptada). “Os
meios são suportes ou anfitriões de que as imagens precisam para aceder à
visibilidade” (p. 40). “A questão dos meios é (...) desde o início uma questão da
história desses meios” (id. ibid.). Mas “a imagem tem sempre uma qualidade mental
e o meio sempre um carácter material [itálicos J.M.M.], mesmo se ambos formam
para nós uma unidade na impressão sensível” (p. 43).
42
Ao mesmo tempo, a imagem é sempre, para Belting (como anteriormente foi para
Steiner, 1989), a “presença de uma ausência”, herdada de Roma e de Niceia II (v.,
infra, Facialidades e acheiropoietos, cap 14, Vol. II): “No enigma da imagem,
presença e ausência enredam-se de modo indissolúvel” (id. ibid.). “Através do meio,
chegam-nos imagens que têm origem para lá desse meio” (p. 45). O mesmo se passa
desde a invenção do cinema e das suas posteriores metamorfoses: “Hoje, o ecrã é o
meio dominante em que as imagens se manifestam” (id. ibid.). Mas a diferença entre
Moldura, ecrã, imagem e seu meio faz com que não a confundamos com a moldura ou o espaço que
suporte, mise a instala, nem com o ecrã onde a projectamos. A propósito das imagens digitais e da
en scène realidade virtual, diz Belting, não sem ironia: “de cada vez que os seres humanos se
vêem confrontados com novas formas de percepção, perdem ou receiam perder a
ideia que faziam de si mesmos” (p. 108), o que explica a “nova” desconfiança nas
imagens e na sua capacidade para criarem “real falso”. Conhecemos outros
momentos em que novas formas de percepção foram induzidas pela mutação
técnica, como sucede com as hoje oferecidas pelas novas “tecnologias perceptivas”,
como Vivian Sobchack lhes chamou em Carnal Thoughts (2004).
Diz também Belting que as imagens são nómadas que usam os meios que cada época
lhes oferece como “estações do tempo” (p. 46): “o teatro das imagens foi sendo
remodelado através da sucessão de meios”. Tudo isto lhe permite resumir, mais
adiante, que as imagens são formas contingentes que não se ajustam
necessariamente ao gosto de sucessivas gerações. “Por isso, cumprida a sua função,
cada imagem induz uma nova” (p. 72). Se pensarmos em períodos de mutação
acelerada como a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do séc. XX (na
pintura, escultura e artes gráficas, mas também na fotografia e no cinema), esta
declaração parece justificar-se plenamente. Mas da exposição de Belting terá de se
concluir que a resiliência das imagens, habituadas a sobreviver de meio em meio
como o mito aprendeu a adaptar-se à mudança de épocas, é muito maior do que a
dos seus meios históricos, esses sim, dependentes das metamorfoses das tecnologias,
dos espaços de instalação e das instituições e poderes que os materializam. E
subsiste, neste particular, a dificuldade adicional já mencionada: a de aceitar que as
nossas mentes, fabricantes de imagens interiores e processadoras de imagens
exteriores, são também meios pertencentes ao mesmo conjunto onde se incluem o
templo, o espaço privado e público, o museu. Terá Belting razão, ao propor a
existência de um conjunto composto por elementos tão heterogéneos?
Na história interna da pintura e das artes plásticas em geral, as imagens foram
também fazendo, na sua relação com os meios, o seu vertiginoso caminho de
sucessivas mudanças de relação com o “real”. Até ao Renascimento, paisagem,
retrato, cena mítica ou religiosa, rural ou urbana, serviam a narrativa pré-existente
que ilustravam. E os frescos das igrejas e conventos compunham com a ressonância
sagrada da “casa de Deus”, as suas rezas salmodiadas e a sua música coral: a
arquitectura era o meio que os instalava. No Quattrocento, a invenção das regras da
perspectiva deu aos espaços arquitectónicos pintados nova racionalidade e tornou-
os conteúdos pictóricos autónomos. Mas foi preciso esperar por Turner e pelos
impressionistas para que incidentes climáticos, luzes volúveis e seus instantes se
tornassem motivos de pintura, virando costas à permanência das coisas e tornando-
as efémeras, estritamente dependentes da percepção momentânea. As artes
repensavam o Boécio do “Nunc fluens facit tempus, nunc stans facit aeternitatum”
(“o agora que passa produz tempo, o agora que permanece produz eternidade”, in De
consolatione philosophiæ, c. 524). Muito depois, Dada e Duchamp, dando aos seus
objectos títulos em que a relação significante-significado é destruída e se torna
irrisória, reforçaram, sobretudo, o papel do humor nas artes plásticas; os
surrealistas, com as suas “fotografias de sonhos”, abriram a porta do quotidiano ao
imaginário anti-mimético das imagens interiores e das imagens mentais; Magritte e
o seu “ceci n’est pas une pipe” acentuou a clivagem entre a coisa e a sua
representação pictórica. No território dos abstractos, Kandinsky e Pollock
exprimiram dois pólos antagónicos: o primeiro manteve uma preocupação com a
composição centrípeta em pequenas telas, o segundo fugiu-lhe, preferindo-lhe
grandes telas centrífugas. E a pop-art e o hiper-realismo voltaram à figuração de
objectos e imagens (fotografia, banda desenhada, artefactos industriais, momentos
da vida urbana), competindo com a fotografia — que afinal não matara a pintura,
43
Mas o “quarto” de Genet também pode tornar-se lugar de culto para outros, se for
transformado em casa-museu — o tipo de lugar que se visita, já não para ver e
apreciar obras de arte, mas para penetrar na atmosfera íntima onde beltrano pensou,
escreveu ou pintou, para respirar o ar que ele respirou. A cozinha e a cafeteira onde
ele fazia café, o seu escritório e o recanto da sua mesa de trabalho, a cama onde
dormia, as estantes da sua biblioteca e os sofás onde se sentava para conversar com
amigos, tornam-se assim relíquias que preservam, para o voyeurismo necrófilo, a
sua aura, a meio caminho entre o sagrado e o profano. O privado e o íntimo também
são museologizáveis e podem tornar-se mausoléus visitáveis pelos membros do seu
culto, com horário de abertura e entrada paga: anula-se a fronteira entre quartos,
44
O mesmo escrevera Heidegger (in A origem da obra de arte, tr. port.: 37):
“As esculturas de Egina na colecção de Munique, a Antígona de Sófocles na melhor
edição crítica (...) estão arrancadas ao espaço do seu estar-a-ser [Wesensraum]. Por
mais elevados que possam ser a sua categoria e o seu poder de nos impressionar, por
melhor que possa ser a sua conservação, por mais segura que seja a sua interpretação,
a sua transferência para a colecção privou-as do seu mundo. Mas mesmo que nos
empenhemos em superar ou em evitar tais transferências de obras — quando, por
exemplo, procuramos, no seu sítio, o templo em Pæstum [ou] a catedral de Bamberg
na sua praça —, o mundo das obras (...) já derruiu. Nunca mais é possível anular a
privação do mundo e o ruir do mundo. As obras já não são aquilo que foram”.
como os frisos do Parténon; e nada garante que o próprio museu não se torne, um
dia, numa instituição do passado, que também terá sido moderna no seu tempo
antes de, por sua vez, se metamorfosear.
Apesar da comparativamente pouca idade do cinema, também os seus filmes
sobrevivem de meio em meio: inicialmente feitos para serem mostrados em grandes
salas escuras (e muitas vezes destruídos sem preservação de uma única cópia quando
terminavam a sua vida comercial), sobreviveram na televisão ou preservados por
cineclubes e cinematecas, que lidam com eles como parte da cultural heritage, e
depois por museus e galerias de arte. À semelhança dos frisos do Parténon ou do
Osíris do Louvre, a parte do cinema histórico que sobreviveu também foi
museologizada. A exposicionalidade dos filmes passou pelos drive-ins americanos,
por terraços-esplanadas europeus, por “salas ao ar livre” e por salões privados, antes
da televisão e da convergência digital os terem re-mediado nas plataformas da
internet, transladando-os para salas de espera, quartos de hotel e transportes de
longo curso (avião, comboio, navio de cruzeiro), para cafés-bares e fachadas de
edifícios desafectados. Diz Belting que o meio hoje dominante é o ecrã que mostra
toda a espécie de imagens. Ou a proliferação dos ecrãs multifuncionais, do
smartphone ao Ipad e ao computador portátil, sendo que qualquer superfície de
espaços públicos ou privados pode também ser usada como ecrã. Mas, no caso do
cinema e da relação com os seus meios próprios, a indústria perseguiu sempre, de
inovação em inovação, novos ecrãs e novas salas que ampliassem o “realismo”, o
“verismo” e o “efeito de realidade” das imagens e sons.
Volto, com Bourdieu, ao museu onde alguém estende a mão para um anjo pintado,
querendo tocá-lo como na Bizâncio do séc. VI, se prosterna ou se senta diante de
uma imagem para a contemplar com mais tempo e atenção. A imago pietatis O século VI
residente no templo suscita outro culto no museu: o museu oferece-lhe o culto da no século XXI
arte. A esta luz, ajoelhar no museu não seria, afinal, excessivamente estranho: apenas
significaria que quem ali se ajoelha está de algum modo lost in translation, não
entendeu o tropos, a passagem do templo ao museu. Ou que, como Genet, sente que
determinada estátua de Giacometti transforma o seu quarto em templo, ou se sente
esmagado pelo Osíris do Louvre. Eis como alguns objectos adquirem, mudando de
meio, o valor de sagrados ou profanos. Repitamo-lo: a arte é nómada e sobrevive
adaptando-se a sucessivos dispositivos de mostração, instalações, encenações,
viajando de “hotel” em “hotel”.
Também Miguel Tamen (2003: 74), discutindo o papel dos museus, se refere a
“igrejas e templos onde, embora de modo algo incómodo, fiéis e turistas se podem
misturar”. Uns rezam aos ícones, outros fotografam-nos; e todos fazem o possível
para não tropeçarem uns nos outros. A haver queixas contra esta coabitação, elas
virão dos fiéis, porque são os turistas que profanam o lugar sagrado. Mas Tamen
persegue, aqui, um outro traço do mesmo tropos: como se o fim da iconoclastia, que
combatia o culto religioso de obras de arte tornadas ídolos, tivesse substituído o
furor que impelia os iconoclastas a destruir essas mesmas obras pela complacência
para com elas, preservando-as e manifestando-lhes um novo sentimento não
religioso, o da museológica deferência que lhes é devida. A deferência de Tamen
ocuparia, assim, no museu, o espaço das antigas veneração e adoração. Nesta
medida, o museu e a sua deferência simularam o templo e a sua adoração antes de
transformarem o templo em museu e a adoração em deferência. É neste sentido que
passou a falar-se da aparentemente secularizada “religião das artes”: chassez le culte,
il reviendra au galop.
Na verdade, o problema do estatuto das imagens (das estátuas do mundo grego
clássico, da estátua animada por Pigmalião), inclusive o do seu estatuto “jurídico”,
acompanha-nos desde que as pintamos ou esculpimos. Tamen também invoca (loc.
cit.: 78) o episódio narrado por Pausânias (c. 115 - 180 d.C.) onde um atleta rival do
campeão Teáguenes passa a noite em que este morre a chicotear a sua estátua até
que esta, “presumivelmente agastada”, lhe cai em cima e o mata. Os herdeiros do
Estátuas
chicoteador apresentam queixa contra a estátua homicida e o caso é julgado pelo assassinas
prutaneion, tribunal que avalia a culpa de “agentes desconhecidos e objectos e sinos
inanimados”. A estátua de Teáguenes é, assim, juridicamente imputável, o que degredados
46
significa que é objecto de personificação e tratada pelo tribunal como “pessoa não-
humana”: não simulou ela tão vicariamente o seu protótipo, vingando-o? A estátua
foi, na altura, condenada a ser deitada ao mar — e foi-o — mas a sentença acabou por
ser revista e resgataram-na das águas. Tempos houve, assim, em que estátuas e
imagens, “objectos sem alma”, podiam ser criminalizadas como pessoas — um tempo
de que não estaríamos, afinal, tão longe: ainda em 1892 “um sino russo foi
reconduzido do seu exílio na Sibéria ao qual fora sentenciado em 1591” (id. ibid.).
Outra vez: somos bem mais animistas do que julgamos.
Definições conservadoras
AS IMAGENS-SIMULACROS substituem os seus “protótipos-modelos” ou tornam-os
presentes? Fazem ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas numerosos autores
preservam, ainda hoje, uma definição conservadora e datada da imagem e dos seus
poderes. Entre eles citemos Michel Melot, arquivista paleógrafo e antigo director do
Departamento de Estampas e Fotografia da Biblioteca Nacional francesa. Também
ele aborda, na sua “breve história” da imagem (2007, cap. 1: «Do sonho ao ecrã»), a
polissemia da palavra, sublinhando que, embora “ninguém possa hoje fornecer uma
definição de imagem que faça autoridade”, a imagem é sempre a representação de
um modelo (geralmente ausente), que nos oferece uma relação com esse modelo: “A
imagem não é uma coisa, é uma relação. (...) Qualquer imagem está a meio caminho
entre o modelo imaginário e a realidade”. Ora, parece-nos difícil não atribuir à
imagem o estatuto de coisa. Mais, diz Melot: “Ela é sempre imagem de algo ou de
alguém de que no entanto não é a cópia”. Pode substituir esse modelo, sim, como a
imago romana substituía o defunto na cerimónia fúnebre — aqui o autor invoca, sem
o citar, Debray e a ligação da imagem à morte e aos rituais de passamento. Porém,
para Melot, só “um espírito não prevenido confunde a imagem com o seu modelo
(...). Tal confusão é [até] o princípio da feitiçaria – que ainda funciona quando
queimamos uma efígie, destruímos uma estátua ou rasgamos fotografias de alguém”
(ou seja, quando a herança animista e totémica vem à tona). Eis como, por prevenção
da feitiçaria e fruto de uma pesada méconnaissance, em poucas palavras se ignora
toda a reflexão contemporânea de Morin, Mitry, Baudrillard, Deleuze, Stoichita,
Didi-Huberman, Debray ou Mitchell sobre os simulacros e os poderes da imagem. A
ideia de imagem de Melot é sobretudo subsidiária do retrato pictórico ou fotográfico
— ele ignora toda a figuração abstracta do séc. XX e o debate que acompanhou a arte
moderna sobre a sua auto-referencialidade. Mas a sua formulação tem outras
incidências:
Não é por acaso que a questão da cópia semelhante ou da dissemelhança é, para
Melot, particularmente sensível. Diz ele: “Amuletos e talismãs não se fundam
necessariamente na semelhança, mas nem por isso substituem pior os seus
modelos”. De facto: o poder de amuletos e talismãs sempre consistiu em substituir
“magicamente” os seus referentes (o advérbio é de Freud, como veremos adiante a
propósito de objectos-totens e objectos-fétiches), independentemente da
semelhança, permitindo agir sobre eles ou ser por eles agido. Pergunte-se aos
ameríndios colonizados pelos jesuítas entre o séc. XVI e o XVIII. Mas, talvez por
extensão, Melot crê que “a forma hierática e estereotipada dos ícones religiosos”
visou exactamente garantir “a dissemelhança com o deus (...) cuja imagem deve
manter a distância em relação a ele”. Esquece-se de que a figuração bizantina do
Cristo, ditada pelos teólogos iconófilos de Niceia II a começar por João Damasceno,
quis, pelo contrário, estabelecer a semelhança garantida com o “Deus incarnado”
ou “humanado” e criar, com base nela, uma norma figurativa autoritária (mesmo se
inventada: discutirei este tema em Facialidades e acheiropoietos): “Visto que o
invisível, tendo-se revestido da carne, apareceu visível, podes figurar a semelhança
do Cristo que se fez Teofania”. Foi precisamente a busca obstinada dessa semelhança
que gerou normas iconográficas para os mil anos seguintes, relançou ciclicamente a
guerra entre iconófilos e iconoclastas e gerou os simulacros de Baudrillard, que
passaram a dispensar modelos e protótipos, substituindo-os e relançando novas
idolatrias. Pior: ao citar alegoricamente o Génese para evocar a criação do homem, e
porque lhe interessa defender aquela suposta dissemelhança preventiva, diz Melot
que “Deus criou o homem à sua imagem, embora este não lhe seja semelhante”,
concluindo que a ligação a que se refere, aqui, a imagem, será “de parentesco, não
47
antologia de 1973:
“A arte não é um discurso. (...) Não é feita de signos mas de formas; se dizemos que é
uma linguagem, será preciso reconceber o sentido deste termo. A diferença entre signo
e forma resume-se à fórmula de Henri Focillon [Vie des formes, 1934, 2002: 7]: ‘O
signo significa, a forma significa-se a si mesma’ (‘Le signe signifie, alors que la forme
se signifie’) (1973: 131).
Mais de 40 anos depois, ao reler o meu mémoire de fin de cours, forçoso foi constatar
que parte dele sobreviveu mal ao seu momento, anterior ao post-linguistic turn, que
viria a ser determinante na relativização da hegemonia que o estruturalismo
conheceu durante a década de 60 e na primeira metade da seguinte. Mas, revisitando
a pessoa jovem que então era, surpreendeu-me a atenção que já então dava à
impossibilidade de pensar o presente excluindo dele o peso do passado, e isso desde
as suas primeiras páginas, de onde traduzo, do original francês:
O passado atravessa, fantasmado, a diacronia. Apesar do avizinhar de uma organização
da produção planificada, onde os modos de produção industriais do mundo
contemporâneo encontrarão, salvo acidente, a sua figura ‘final’ [e se houve ‘acidentes’:
estávamos então ainda a 15 anos da queda do muro de Berlim e a 17 da dissolução da
URSS, da posterior globalização e da deslocalização maciça do trabalho e do emprego
que ela provocou, n.a., 2016], o nosso ethos é ainda em parte arcaico: a pequena
produção e o produto personalizado, o que resta das trocas interpessoais marcadas
pelo dom e pela troca, a vontade de reconciliação com a terra enquanto território
libidinalmente investido, a transmissão do sentido da vida como um segredo
escondido, algo querido por um sistema de interditos que resiste aos avanços da
transparência (...), são sintomas onde ganham figura valores provenientes de idades
passadas, que nos habitam como uma reserva inesgotável de matrizes
comportamentais. São pertenças de um equilíbrio imaginário, que insistem junto de
nós para que neles nos reconheçamos, como nos reconhecemos no outro do espelho.
Invocando Jean Starobinski, viria Marc Augé a escrever (1992: 97) a este respeito:
“Presença do passado no presente, que dele transborda e o reivindica: é nesta
conciliação que Starobinski vê a essência da modernidade. Anota ele (...) que ‘autores
eminentemente representativos da modernidade na arte ofereceram a si mesmos a
possibilidade de uma polifonia onde o entrecruzar virtualmente infinito de destinos,
actos e pensamentos, reminiscências, (...) instala o chão que dantes era marcado (e
ainda o poderia ser) pelo antigo ritual’, como no início do Ulysses de Joyce: Introibo
ad altare Dei, frase vinda da antiga liturgia” (tr. adap.).
Ao contrário do que tanto desejaram os modernismos, o século das Luzes e o
seguinte, que viveu entre romantismo e realismo, não se tornaram em lixo da
História: integraram a arca das culturas que herdámos e que em parte ainda nos
configuram. Hoje poderia reformular aquela minha redacção de 1974, mas sem
alteração substancial da ideia que a animava. Em articulação com ela, eu recorria
Jacques Monod mais adiante a Jacques Monod, que publicara pouco antes Le hasard et la nécessité
e o animismo (1971), e afirmava-me em sintonia com ele quando escrevia (p. 186) sobre o
animismo:
“Nenhuma sociedade antes da nossa conheceu semelhante dilaceração (...). Pela
primeira vez na história, uma civilização tenta edificar-se mantendo-se
desesperadamente ligada, para justificar os seus valores, à tradição animista, embora
abandonando-a como fonte de conhecimento e de verdade”. [E antes, pp. 43-44:] “O
movimento essencial do animismo (tal como aqui o defino) consiste na projecção, na
natureza inanimada, da consciência que o homem tem do funcionamento
intensamente teleonómico do seu próprio sistema nervoso central (...). O animismo
estabelecia entre a Natureza e o Homem uma aliança profunda, fora da qual não parece
existir senão uma assustadora solidão”.
Ora, o animismo ganharia nova dimensão na discussão sobre os poderes do cinema.
A reflexão de referência sobre ele assentava então, para nós, em dois pequenos
textos: o capítulo «Animismo, magia e plenipotenciaridade das ideias» do Totem e
Tabu de Freud (1912-13), apoiado em S. Reinach (Cultes, mythes et religions), J. G.
Frazer (The Magic Art), W. Wundt (Völkerpsychologie) e E.B. Tylor (Primitive
Culture), e «A eficácia simbólica» na Antropologia estrutural de Lévi-Strauss
(1958), que alimentava um diferendo com a psicanálise sobre conceitos tão centrais
como os de mito e inconsciente. Em Freud, o animismo, associado à infância, ao
49
Na esteira de Maldiney (1973) mas sem o citar, salientaria Karl Sierek (2013) que as
imagens cinematográficas são mais que signos: são formas operativas que “agem”. As imagens
“agem”
Para ele, que, como outros contemporâneos, considera indispensável reconsiderar o
cinema e a sua história do ponto de vista da sua operatividade animista,
“...na história das teorias do cinema (em Eisenstein, Edgar Morin, Maya Deren, etc.),
emerge uma variedade de conceitos antropológicos da imagem viva. E, na esteira de
Aby Warburg, podem distinguir-se quatro funções da imagem animista: como
geradora e reactivadora da imediaticidade da presença; como indicadora e
amplificadora de forças dinâmicas e de energia cinética; como instrumento de
pensamento e repositório de conhecimentos; e finalmente, como força vital e de
trabalho no sentido político de forma de intervenção e de agitação”.
Sierek conta-se entre os autores que consideram o cinema um dispositivo
intervencionista e um aparelho animista, porque as suas imagens e sons alteram a
percepção espectatorial do mundo, agem e incitam à acção. E recorda como Warburg
fez em 1895, ano de nascimento do cinema, uma longa viagem aos E.U.A. para se
documentar, junto dos índios Hopi, sobre técnicas animistas praticadas na dança da
serpente ou nos ritos de fertilidade, ávido de compreender, alargando a observação
a novos territórios, “a virulência da representação do poder animista das imagens na
Renascença e nas sociedades ditas modernas” (Sierek, § 5).
Depois de Morin, também Jean Mitry (1963, I: 126-134) viria a abordar o animismo
cinematográfico a propósito da “presença” das coisas nos filmes. E já Thomas Edison
deixara, nas suas notas, a ideia de que pretendia, com a mistura de imagens e sons,
criar um ser artificial nascido das capacidades sinestésicas do dispositivo (Sierek, §
11), gerador de um campo de forças e dotado de vida própria e de uma ‘alma’
independente do modelo (§ 13) ou do referente. Eisenstein, na sua viagem
exploratória ao Novo-México (1931), levava na bagagem A mentalidade primitiva
(1922) de Lévy-Bruhl, onde esperava entender o poder animista das imagens, ele que
até ali usara representações de animais (os três leões de pedra do Couraçado
Potemkine, 1925) como meras metáforas de potências de acção. Por sua vez, vinte
anos depois, Maya Deren (The Very Eye of Night, 1955) filmava sistematicamente o
céu das constelações (chave milenar da orientação do ser humano na noite natural),
misturando-o com suas representações gráficas e pondo essas constelações em
movimento. E Jean-Rouch cinematografava Les maîtres fous (1955-1956) e La
chasse au lyon à l’arc (1966-1967), grandes exercícios sobre práticas mágico-
animistas que evocavam o que Lévy-Bruhl (1928) escrevera:
“Dir-se-á que, nas representações colectivas da mentalidade primitiva, os objectos, os
seres e os fenómenos podem ser, de modo incompreensível para nós, ao mesmo tempo
eles próprios e outra coisa para além deles próprios” (Les Fonctions mentales dans les
sociétés inférieures, Paris, Alcan, p. 77).
O cinema transporta consigo a antiga experiência animista do mundo nos termos em
que Monod se lhe referiu — enquanto atribuição, à natureza (ou a objectos
inanimados, incluindo artefactos), da teleonomia e teleologia humanas.
Escrevendo pouco depois da publicação de Phénoménologie de la perception
(Merleau-Ponty, 1945), De Waelhens (1949: 370-371) sublinhava que a percepção
não se confunde com o conhecimento sensível porque gera uma perspectiva e um
horizonte que o transcende, nem com o conhecimento intelectual, que,
conceptualizando o concreto, o torna apenas entendível a partir do geral (ou do
universal). Eis a sua argumentação:
“O mundo da experiência natural dá-se de imediato como significativo. Que quer isto
dizer? Que, precisamente, ele forma um mundo, ou seja, uma totalidade ligada em
que cada elemento ou objecto reenvia intrinsecamente para alguns ou para todos os
outros. Se chamo significação, ou sentido (...) a esse carácter intrinsecamente
referencial dos dados do mundo natural, concluo que a percepção, no sentido mais
originário, contradiz ou destrói a distinção, tão garantida pela filosofia clássica, entre
conhecimento sensível e conhecimento intelectual. A percepção (...) não se confunde
com nenhuma das espécies de conhecimento assim definidas e transcende, quer uma,
quer a outra. De facto, o carácter fundamental do conhecimento sensível é ser
individual e esgotar-se nele. Ora, não é esse o carácter da percepção, que é constitutiva
de perspectiva e de horizonte, implicando a unidade do mundo. E tal percepção
52
também não é conhecimento intelectual no sentido fixado pela tradição, porque este é
conceptual, mediatamente relativo ao concreto, que não é visado e conhecido senão
através do geral. Discutiu-se ad infinitum o estatuto ontológico desse universal; mas
constatemos apenas que a percepção não corresponde ao que o caracteriza. A
percepção não se separa em nenhum momento do concreto, não o visa por nenhuma
intermediação, nem esboça a menor tentativa de generalização” (itálicos J. M. M.).
Também no animismo a totalidade ligada das coisas concretas depende do
pressuposto de significação em que, como diz De Waelhens, “cada elemento ou
objecto reenvia intrinsecamente para alguns ou para todos os outros”. O animismo
separa-se dessa percepção por, precisamente, pressupor a intencionalidade da
natureza, persona multifacetada e volitiva, e porque essa intencionalidade instala
uma intermediação generalizante e universais ditos pré-lógicos, ou míticos — daí o
seu arcaísmo. Esse arcaísmo, porém, tanto respeita às humanidades “primitivas” de
ontem ou de hoje como se mantém contemporâneo e transversal: ele caracteriza o
“pensamento selvagem” tal como Lévi-Strauss o definiu, tão próprio da bricolage e
da criação artística, e traduz-se em actos de fé perceptiva: manifesta-se na crença
em que entes naturais e objectos inanimados podem exprimir uma presença viva,
uma “alma”. O espaço mítico do “primitivo” e o espaço das artes têm em comum a
partilha de uma mais-valia “sobrenatural”, para usarmos um termo obsoleto e
O encantamento inevitavelmente equívoco; melhor diríamos que o “encantamento” imanentista
imanentista instala holisticamente o mundo e os seus objectos num território onde o profano se
deixa sacralizar e se torna sensível a um novo numinoso. Por seu turno Merleau-
Ponty (1945: 395), referindo-se ao “mundo anterior às ciências e à verificação”,
alude ao que está “por baixo” das percepções nos seguintes termos:
“Sob os actos deliberados pelos quais instalo um objecto diante de mim (...), sob as
percepções propriamente ditas, há, sustentando-as, uma função mais profunda sem a
qual o índice de realidade faltaria aos objectos percepcionados, (...) e pela qual esses
objectos começam a contar ou a valer para nós. É o movimento que nos leva para além
da subjectividade e que nos instala no mundo anterior a toda a ciência e a toda a
verificação, por uma espécie de ‘fé’ ou de ‘opinião primordial’ [a Urdoxa ou Urglaube
de Husserl] ou que, pelo contrário, se enleia nas aparências privadas”.
Ora, os objectos “começam a contar ou a valer para nós” quando constituem as
realidades de segunda e terceira ordem de Watzlawick, a dos valores e a das “ficções”.
E a “função mais profunda” de que fala Merleau-Ponty depende da partilha do
pressuposto de significação (que não é apenas uma hipótese, mas sim um acto de
crença necessária, uma postulação e uma aposta —pari— no sentido pascaliano).
Mas em que se funda ela? O que a impede de se tornar numa conjectura privada,
numa tresleitura pessoal da realidade, numa presunção injustificável? A única
resposta possível a esta questão parece ser a partilha e a socialização dessa crença ou
convicção por uma comunidade de usuários, partilha que adquire, mesmo que
transitoriamente, o valor de um imperativo. A Urdoxa de Husserl desloca-se assim
da subjectividade transcendental para o terreno pragmático da convenção que
garante, por um tempo, operatividade e eficácia a essa convicção, nos limites de um
epistema (Foucault) ou de um aquário (Veyne).
No caso do objecto cinematográfico, a percepção animista partilhada pelos
espectadores reconquista terreno por todas as razões acima aduzidas: pelo
pressuposto de significação de todas as imagens e sons e da sua intencionalidade
narrativizada; pelo entendimento do filme como totalidade ligada nos termos de De
Waelhens e pelo holismo a que convida; pela ultrapassagem do conhecimento
sensível (sempre instável, vário e contraditório) devido à perspectiva e ao horizonte
que o visionamento proporciona; pelo esboço de singulares-universais por parte do
espectador na compreensão do que vê e ouve; pela dispensa do conhecimento
conceptual e pela renúncia a qualquer mediação na relação com o concreto que o
filme mostra. Finalmente, o animismo espontâneo (e erradamente considerado
passivo) do espectador de um filme apoia-se, como o animismo “primitivo”, noutro
instrumento igualmente partilhado pela comunidade espectatorial — o código
comunicacional culturalmente gerado pelo habitus e que generalizou significações e
interpretações, como no uso corrente da língua materna ou de uma língua veicular.
Os primeiros espectadores de cinema esboçavam um movimento de pânico diante
de L’arrivée d’un train en gare de la Ciotat porque — por um instante — “não
53
Notas
1. O “degenerado superior” a que se refere Joël Bernat é uma designação vinda do conceito de
“degenerescência”, introduzido na psiquiatria francesa, circa 1850, por Benedict-Auguste Morel, para
caracterizar a etiologia de matrizes comportamentais desviantes, de raiz neurológica e inspiradas por
uma leitura teleológica do evolucionismo. O conceito adquiriu projecção na psiquiatria mas também na
criminologia, propondo que, em certas condições, os desvios comportamentais se traduzem na infracção
de normas de incidência muito variável (biológicas, sociais, morais, jurídicas, económicas). Cf. Stéphane
Legrand, «Portraits du dégénéré en fou, en primitif, en enfant et finalement en artiste», in Methodos,
Savoirs et textes, 3/2003.
2. Tentando sumariar as principais abordagens do objecto artístico por autores do séc. XX, escrevi o que
segue em «Da logofilia & da logofobia na Arts-Based Research» (2015):
Em Mauss (1947), objecto artístico é apenas aquele que é reconhecido como tal por um grupo; não é
universal, depende de um etos e da inscrição numa cultura. Este relativismo expande-se com Eco
(1968: 269): “a primeira operação a efectuar em estética deve consistir numa fenomenologia das
diferentes concepções da arte presentes nos artistas e nas correntes de vários países e de várias
épocas”. Gombrich, pragmático (1950), diz que “não existe algo a que possamos chamar Arte, só
existem artistas”, acrescentando que em vez de Arte existem artes, plural que foi denotando muitas e
diversas práticas na longa duração. E Lévi-Strauss (1962) escreve: “a arte insere-se a meio caminho
entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico; (...) o artista tem alguma coisa do
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sábio e do bricoleur: com meios artesanais confecciona um objecto material que é também objecto de
conhecimento”. Heidegger (1931-32) diz que a obra de arte “instala” e “erige” o seu mundo próprio e
“é um gesto de consagração (...). Consagrar significa tornar sagrado (...). Qualquer instalação que erige
consagrando (...) é também um acto de estabelecimento, de produção (Erstellung) no sentido da
instalação de um monumento ou de uma escultura, no sentido do dizer e do nomear no seio de uma
língua. [Este] facto (...) requer que a obra (...) tenha em si própria o carácter essencial de instalação,
que por si mesma seja instalante”. Tal formulação desaparecerá de versões posteriores,
designadamente da publicada nos Holzwege (1950), onde a obra de arte se torna “poemática” e
“desveladora da verdade”.
A ideia de “instalação de um monumento” [partilhada pela Hanna Arendt de 1958 e pelo Ricœur de
1961] foi revista por Deleuze e Guattari (1991): “Toda e qualquer obra de arte é monumento, mas
monumento não significa aqui o que comemora um passado, antes é um bloco de sensações presentes
que não devem senão a si mesmas a sua conservação e que dão ao acontecimento a composição que o
celebra (...) (158). Composição, composição, é a única definição da arte” (181). Michael Fried (1967)
pré-explicitara ideia próxima desta, mas centrando-a na forma (recorde-se a Gestalt de Eco) e não na
composição; diz ele, apoiado em Clement Greensberg: “a forma (shape) é o objecto. (...) O que garante
a totalidade (wholeness) do objecto é a singularidade (singleness) da sua forma”. Deleuze (1987)
também retoma Arendt e Malraux: a arte é “a única coisa que resiste à morte (...); basta pensar numa
estatueta feita três mil anos a. C. para aceitarmos o bem fundado da definição”. E para Bazin (1945,
1958), uma “psicanálise das artes” reconduzir-nos-ia ao “complexo da múmia” e à compulsão de
vencer a morte. Em Edgar Morin (1984), a arte, como a filosofia, as ciências e as religiões, seria,
imbricada com estas suas irmãs por vezes inimigas, uma das mais pungentes expressões do homo
sapiens/demens, esse animal enlouquecido pelas suas paixões.
3. Os devires (devir animal, planta, mineral, devir outro) interessaram o cinema desde sempre. Devir
lobisomem, devir vampiro, devir pantera ou cat people, devir monstro, encheram os ecrãs em todas as
épocas, ora gerando filmes góticos, “fantásticos” e de terror vividos em primeiro grau e sem ironia, ora
dando origem a abordagens irónicas que se avizinham da comédia, ora tentando sair o mínimo possível
da “realidade de primeira ordem” e tratando esses devires como experiências de possessão e
estranhamento. A esse imaginário corresponde um mapeamento territorial propício: o devir vampiro
requer a fantasiada Transilvânia; o devir pantera, o Zoo urbano; o devir lobisomem, a casa na orla da
floresta; o devir assassino, “não-lugares” pós-industriais e semi-abandonados de qualquer cidade. Cada
devir reclama o seu território ficcional, para se aproximar da consistência convencional do subgénero e
da sua “mitologia” específica. Do devir mágico do sapiens/demens de Lascaux ao devir psicótico que
metamorfoseia o Dr. Jekill em Mr. Hyde (e que traduz o devir outro em fenómeno de dupla personalidade,
pondo em evidência o duplo ou o Doppelgänger), ao devir do místico que abandona o seu antigo perfil
secular e se converte a uma nova vida de vidências e contemplações, é muito vasta a incidência da atracção
pelo “tornar-se outro”, que conhecemos da antropologia e das ficções.
Esse devir (devenir, becoming) foi invocado por Martine Beugnet (2007: 129-148) para analisar o que se
passa com um segmento do cinema francês contemporâneo, que ela designa por cinema “da sensação”:
Sombre, Philippe Grandrieux, 1998; La vie nouvelle, mesmo realizador, 2002; Leçons de ténèbres,
Vincent Dieutre, 1999; Pola X, Leos Carax, 1999; Beau Travail, Claire Denis, 1999; Trouble Every Day,
mesma realizadora, 2001; L’intrus, mesma realizadora, 2004; Baise-moi, Virginie Despentes et Coralie
Trinh Thi, 2000; Dans ma peau, Marina de Van, 2002; À ma sœur, Catherine Breillat, 2001; Tiresia,
Bertrand Bonello, 2002; Twentynine Palms, Bruno Dumont, 2003; Demonlover, Olivier Assayas, 2003.
Em muitos destes filmes, caracterizáveis como um “cinema do corpo” pela extrema proximidade da
câmara em relação aos corpos filmados e pela insistência em grandes planos longos, a aposta imagética e
sonora é deliberadamente alucinatória: personagens e lugares ganham, alterados pelo dispositivo,
diferentes rostos. A autora chama a atenção para o facto de o cinema e os seus filmes serem um meio
particularmente adequado à figuração de metamorfoses e transfigurações (op. cit.: 129):
“O filme é, por definição, o medium do ser em mudança. De uma imagem para a seguinte, espaço e
figura, composição e textura, volume, cores e luz variarão, como sabemos desde o mainstream
cinematográfico, inscrevendo-se essas variações numa lógica narrativa e espacial pré-existente, e, por
extensão, num registo discursivo específico (a que o ver do espectador se submeterá), através de todo
um conjunto de truques, regras e receitas — um sistema de continuidades — que garante ao resultado
final uma estabilidade linear (...). O devir deleuziano é aqui uma noção-chave, porque o infindável
processo de metamorfoses via contágio e proximidade, que esse devir instala, dá notavelmente conta
das mutações inerentes à natureza da imagem cinematográfica”.
Entre o devir deleuziano e o cinema existe, assim, uma cumplicidade oferecida pelo dispositivo e pela
plasticidade mutante das imagens e sons. Os filmes estudados por Beugnet produzem moods urbanos ou
naturais particularmente expressivos e texturados: fachadas de prédios, arquitecturas, paisagens e “não-
lugares” urbanos, florestas ou baldios, são facializados, adquirindo uma aparência eventualmente
inóspita, destinada a produzir um estranhamento deliberado. E por vezes as figuras humanas são sujeitas
a tratamento idêntico, tornando-se, por exemplo, quase espectros ou quase zombies, ganhando
expressões quase-cadavéricas. São casos de construção artificiosa de uma segunda natureza que distorce
a realidade corrente, propondo enfoques “góticos” ou “hiper-noirs”, ou meramente “excessivos”, em
consonância com aquilo a que na pintura nos habituámos a chamar “expressionismo”. São, também,
experiências violentamente imersivas, que contrariam a “distanciação” tão característica de parte do
cinema “moderno”. E “transgressivas”, repletas de violência física, muitas vezes (também) sexual,
próximas da “pornocracia”. Mas, ciente de que, ao mesmo tempo, rejeitam a empatia com os
protagonistas, mantendo-se próximos de um registo experimental e recusando a projecção/identificação
que a antiga narratividade propiciava, acrescenta, prudentemente, Beugnet:
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4. Diz Morin (1973: 113-114) sobre a emergência da pintura entre os sapiens: “Qual o sentido deste novo
fenómeno? Geralmente opõem-se duas interpretações: uma reconhecendo que se trata pura e
simplesmente do surgimento de uma actividade artística e de uma vida estética que têm a sua finalidade
em si mesmas; a outra integra a nova arte das formas numa finalidade ritual e mágica. Na nossa opinião,
é possível combinar as duas interpretações (...): os fenómenos mágicos são potencialmente estéticos e os
fenómenos estéticos são potencialmente mágicos”. Antes (p. 109), Morin tinha dito que o que marca a
novidade do sapiens (que é já socius, faber, loquens) é o seu empenho “na sepultura e na pintura”, tanto
quanto hoje se sabe herdado dos neandertais: a sepultura marca certamente a crença numa segunda vida
do morto, talvez a de que ele poderá renascer. Sobre a idade provável dos primeiros sapiens: as escavações
do sítio arqueológico de Jebel Irhoud, a 150 quilómetros de Marraquexe, alargadas a partir de 2004,
levaram à descoberta de fósseis de caçadores já sapiens, utensílios de pedra e marcas de fogo datados de
há 300 ou 350 mil anos, o que aumentou em 100 mil ou mais anos a idade da espécie.
Vitrúvio recordou a lista dos arquitectos, pintores e escultores que deixaram escritos e tratados sobre
as suas téknai, aproximando assim téknê e epistêmê. Um deles, o pintor e cenógrafo Atatarco, criou
no séc. V a.C., em Atenas, um décor de teatro que tinha em conta as ilusões da percepção e deixou
sobre ele apontamentos que levaram Demócrito e Anaxágoras a escrever tratados de “perspectiva”. E
Plínio refere numerosos escritos de pintores, sugerindo que a pintura desempenhou na antiguidade
clássica, como no muito posterior Renascimento, o papel de arte-piloto que conduzia a reflexão sobre
as restantes artes. (...) A polis que Plutarco cantou em A glória dos atenienses encheu-se, assim, de
artistas logófilos, que, com a sua tratadística e preceituários, se elevaram acima das artesanias
correntes.
6. Kant conheceu o Egipto sobretudo através das Lettres sur l’Egypte de Nicholas Savary (1786), em que
se apoiou para comentar a importância da magnitude das pirâmides e a respectiva avaliação estética. Nas
suas Observações, baseia-se na narrativa de viagem do naturalista sueco Frederick Hasselkist, Reise nach
Palästina in den Jaren 1749-1752. Hegel conheceu os templos e as pirâmides do Egipto antigo sobretudo
pela leitura de Heródoto, onde se apoiou para concluir que tais construções resultam de um saber-fazer
artesanal ainda não dotado de “espírito”. Nietzsche não ignoraria que a ideia de universo cíclico e o eterno
retorno do disco solar, das estações do ano e das cheias do Nilo eram centrais no Egipto antigo, mas são
relativamente escassas, na sua obra, as referências a este.
Em 1989, Lévi-Strauss admitiu sentir-se próximo do animismo, sobretudo o do xintoísmo japonês. Mas a
palavra animismo não surge nunca na sua Anthropologie structurale (1958) e surge uma única vez em La
pensée sauvage (1962, ed.1974: 330), apenas para criticar J.-P. Sartre, que, falando da relação primitiva
com o inerte na natureza, “se limita a restaurar a linguagem do animismo”, deixando implícito o carácter
desusado do termo. Lévi-Strauss evitou-o deliberadamente talvez porque, para ele, a concepção do
animismo por Tylor (Primitive Culture, 1871), como crença na existência de espíritos que coexistem com
os humanos, estava destinada a ser ultrapassada por uma releitura do totemismo como estrutura
pragmática da organização social e como instituição. Extensão conceptual do animismo, o totemismo foi
tradicionalmente entendido como a ligação simbólica entre determinado animal e um clã humano: o clã
do tapir, o clã da tartaruga, etc., onde as características do animal eram associadas às do respectivo clã.
Mas, para Lévi-Strauss, desde Le totémisme aujord’hui (1962, imediatamente anterior a La pensée
sauvage), o totemismo, se de facto institui a relação entre animal e homens (e, desse modo, entre natureza
e cultura), tem expressões muito variadas de sociedade em sociedade: ele vê no totemismo e na sua
inconstância empírica a expressão das diferenças produtoras da variabilidade cultural: do mesmo modo
que os animais diferem entre eles, também os grupos humanos diferem entre si. E outros elementos
podem funcionar, para além de animais, como factores de diferenciação entre grupos humanos: números,
categorias abstractas, orientações astronómicas. Lévi-Strauss pensava, assim, ter redefinido radicalmente
a ideia de totemismo; por isso explorou, em La pensée sauvage, a “lógica das classificações totémicas”,
dependente de uma bricolage generalizada. Nessa lógica integra-se a magia, que a partir de um
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conhecimento concreto e sensível da natureza tenta aplicar as propriedades desta a terapias, por exemplo.
A natureza animista é anterior à de natura naturans concebida como um todo substancial indivisível e
não-causado, única totalidade substancial existente: natureza perpetuamente entregue ao que faz, auto-
generativa, activa, produtiva, dinâmica e animada, como Spinoza, que não era animista, a descreveu na
sua Ética (1677). No prefácio à Parte IV, ele identifica Deus com a Natureza (Deus, sive Natura), “o que é
em si mesmo e concebido por si mesmo e cujos atributos substanciais são expressos por uma essência
eterna e infinita”. Para ele, fora dessa natureza nada existe e ela própria não obedece a qualquer teleologia
nem visa quaisquer “causas finais”, apenas agindo devido à necessidade determinista. Estas afirmações
valeram-lhe a excomunhão (1656). A anterior ideia animista de natureza acrescentava a esta definição
uma intencionalidade e teleologia própria dos entes dos três reinos naturais: animal, vegetal e mineral.
Escreveu Spinoza (I, Apêndice), afastando-se desta concepção: para alguns, “se uma pedra caiu na cabeça
de alguém e o matou, caiu para matar o homem. Ora, não caiu com tal objectivo, (...) mas sim por um
concurso de circunstâncias ocorridas por acaso”. Para a concepção animista, a pedra quis matar o homem,
ou alguma coisa a usou com esse objectivo. Como disse Eduardo Viveiros de Castro (2010):
“A ideia [animista] é a de que o mundo inteiro é composto de pessoas. (...) As árvores falam ou
pensam, os animais são gente (...). Em suma, é a ideia de que o mundo é um mundo encantado, em
que tudo é animado. Nós imaginamos, em geral, que o mundo animado é um mundo muito
reconfortante (...). Posso garantir que não é. Ao contrário, se tudo é humano, tudo se torna
extremamente perigoso. Se todas as coisas são dotadas de intenção, de vontade, de raciocínio e de
capacidade de comunicação, administrar o mundo, viver, torna-se uma tarefa muito perigosa – muito
mais do que para nós, que só temos de nos temer a nós mesmos.”
No ecossistema animista, o “devir outro” é uma experiência muito próxima da possessão: espíritos e
animais “possuem” amiúde seres humanos, por vezes de modo irreversível. Foi um desses episódios de
possessão por um animal que Apichatpong Weerasethakul filmou na segunda metade de Doença tropical
(2004), baseando-se numa lenda da sua Tailândia natal: um soldado perde-se na floresta à procura de um
aldeão desaparecido e é perseguido pelo espírito de um tigre que acaba por o possuir.
Sobre o regresso do animismo às antropologias contemporâneas ler-se-á Philippe Descola, (Par delà
nature et culture, op-cit., 2005); e La Nature domestique: symbolisme et praxis dans l'écologie des
Achuar (1986); Les Lances du crépuscule: relations Jivaros, Haute-Amazonie (1993). E de Eduardo
Viveiros de Castro, From the Enemy's Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society
(1992); The Relative Native: Essays on Indigenous Conceptual Worlds (2015); ou Métaphysiques
cannibales (2009).
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A invenção do cinema “ocupou todo o séc. XIX”, mas o desejo que ele satisfez vinha
de mais longe: tome-se uma moldura vazia e observe-se através dela uma porção de
espaço: o enquadramento foto-cinematográfico (cadrage, framing), que pintores do
séc. XVII anteciparam — pensemos em Vermeer (1632-1675) e no uso que ele fez de
espelhos, lentes e muito provavelmente da camera obscura: esses dispositivos
ópticos alteravam o percepcionado pelo olhar humano, concentrando na composição
de um “dentro de campo” objectos, sua perspectiva e profundidade espacial, mais as
respectivas modulações de luz e cor. Mas no cinema, que pôs imagens em movimento
numa duração, essa alteração qualitativa do olhar também mudou, para além da
percepção dos espaços, a nossa percepção do tempo, ou do continuum espacio-
temporal. A concentração da atenção numa porção delimitada de espaço e de tempo
acentuou o condicionamento de um segundo olhar, o “novo par de olhos”
emprestado pelo dispositivo ao espectador. Se a stasis fotográfica e pictórica
convidavam a uma contemplação numa duração atenta, o cinema impôs, para além
do enquadramento, essa duração, por vezes longa, de cada imagem ou plano, tão
decisiva para muitos realizadores modernos e contemporâneos. A montagem, com
os seus cortes, é um dos instrumentos dessa delimitação: o espectador segue
visualmente a mudança de espaço que o filme lhe apresenta, observando-a na
duração que o plano, depois a montagem, impõem.
Uma palavra mais sobre a duração: arte do espaço que mostra as personagens, os
lugares e objectos que filma, o cinema é também, por ter posto imagens em
movimento numa duração, uma arte do tempo: a duração e o ritmo dos seus planos
e da banda sonora geram atmosferas que nenhuma outra arte criara antes dele. Ao
contrário do teatro, que tradicionalmente depende da presença física e efémera de
um actor diante do seu espectador num determinado espaço cénico, o cinema regista
de modo duradouro o acontecimento efémero: o filme é o conjunto das imagens e
sons que nele estão gravados e que se repetem, idênticos a si mesmos, a cada
projecção. Não precisa do espaço cénico teatral ou operático, embora muitas vezes
os utilize: um plano cinematográfico pode percorrer o interior de uma casa, sair dela
e continuar por uma estrada, atravessar uma praia e terminar à beira-mar ou
mergulhar na água desse mar. Todos os espaços são espaços cénicos para o cinema,
filmados em continuum num só plano ou articulados na montagem.
Os conhecimentos e procedimentos técnicos que permitem a captação de imagens e
sons, bem como os necessários à pós-produção, são vitais para o cinema mas podem
não se transformar em actos de criação artística: muitas vezes são execuções técnicas
da ideia artística do realizador — o autor do filme. O director de fotografia ou de som,
o montador, o especialista em grading ou em misturas, os assistentes, põem as suas
competências técnicas ao serviço da ideia e da intenção do realizador. Sempre houve
realizadores aptos a fazer a fotografia ou o som dos seus filmes, ou que são também
montadores; mas esses foram, ao longo da história do cinema, minoritários. A
divisão de tarefas e de responsabilidades específicas em função das competências de
cada um tem sido predominante. Mas o vocabulário técnico-profissional do cinema
demorou a estabilizar-se. Veja-se como, em 1963, Jean Mitry definia, no seu
dicionário, o que é um realizador e o que é a realização:
“Realizador — denominação relativamente recente e mais adequada, parece, que a de
encenador (metteur en scène). Ela sublinha o papel criador da função e não o trabalho
subalterno (não o de auxiliar do actor, como o encenador teatral). Realização — a
rodagem de um filme, incluindo a sua encenação segundo as indicações da découpage,
a direcção de actores, enfim a montagem definitiva”.
No domínio das artes, as excepções são tantas quantas as regras. É fácil ouvir-se que
a cada procedimento aconselhado pela experiência corresponde um contra-exemplo
baseado no génio de cada um e que contradiz os procedimentos aconselhados. Essa
ideia sustenta-se na capacidade/liberdade criativa individual e menospreza os
conhecimentos e procedimentos anteriores ou actuais. Mas muitas práticas artísticas
envolvem o domínio de procedimentos e de técnicas específicas. É difícil imaginar
um gravurista que desconheça as técnicas da gravura, um pintor de encáusticas que
não saiba usar a cera como aglutinante de pigmentos, um serigrafista que
desconheça o método de impressão de silkscreens, um fotógrafo profissional da era
analógica que não soubesse revelar e positivar os seus negativos, um escultor de
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perguntar para que servem estas complicações visuais, não muito fascinantes em si
mesmas: para pôr à distância um material íntimo? por esperança de o poetisar? para
reivindicar para o cinema o estatuto de arte visual? Decerto que por estas razões; mas,
se há pouca ficção em Fuses, é menos devido a um trabalho visual que capta a atenção,
e mais devido à pobreza intrínseca do material narrativo: o filme instala um pequeno
mundo (...) mas não conta nada”.
Pouco antes dissera Aumont (id. ibid.) que o privilégio dado ao figural contra o
narrativo se traduziu muitas vezes, no cinema, no uso de filtros, desfocagens,
velagens, sobre-exposições da película, raspagens e furos nela feitos, montagem
hiper-rápida — mas que, apesar desta panóplia de experimentos, nunca foi fácil
anular por completo a narração, a não ser no caso de filmes estritamente abstractos.
E pouco depois diria que Fuses é comparável, entre muitos outros, a Flaming
Creatures (Jack Smith, 1963), a muitos Brakhage que parecem filmes de família, a
alguns universos de Kenneth Anger e a Adventures of Jimmy (Broughton, 1950).
A digitalização contemporânea
NA DATA EM QUE ESCREVO, o cinema ultrapassou os 120 anos de idade. Ele começou
por ser feito, como sublinhou André Bazin, por hurluberlus e bricoleurs solitários,
amarrados à sua câmara fixa e ao seu tripé, mas depressa se tornou numa arte e
numa indústria cheia de profissões especializadas: as equipas de produção dos seus
artefactos foram crescendo até se tornarem fábricas tayloristas/fordistas ao serviço
de um negotium multifacetado, que ora visava públicos universais e generalistas ora
nichos de cinefilia minoritários. Hoje, numa nova encruzilhada dessa vasta viagem,
o cinema volta a ser uma arte que pode ser feita de experiências outra vez solitárias:
um jovem cineasta pode achar-se diante do seu filme como o pintor diante da sua
tela ou o escritor diante do seu livro. Este “novo” autor que faz filmes quase sem
orçamento é o resultado da “democratização” digital e ganha outra vez o perfil do
hurluberlu e do bricoleur de Bazin. Mas quer a indústria quer o film d’art caro O regresso dos
permanecem como heranças culturais incontornáveis, endereçados a públicos e hurluberlus e
dos bricoleurs
geradores de consumos socializados. O cinema tornou-se num delta de mil braços
mas não é sobretudo o hurluberlu solitário que o caracteriza e lhe dá identidade.
À digitalização actual da quase totalidade dos dispositivos cinematográficos
correspondeu, porém, a redução de dimensões das equipas técnicas tradicionais.
Cada elemento das novas e mais pequenas equipas é hoje mais polivalente. Mas seria
enganador generalizar: a dimensão da equipa e a diversidade das suas competências
depende das necessidades de cada projecto, de cada filme. Um diário auto-
biográfico, auto-reflexivo ou auto-etnográfico apoiado na voice over do seu autor
pode ser feito por um par de amadores; mas um filme com diversos actores e
figurantes, roupa e adereços próprios, que exige o acondicionamento de diferentes
locais de filmagens, iluminação artificial e uma pós-produção complexa, requer um
produtor criativo, um director artístico, outro para a fotografia e outro para o som.
As equipas técnicas, artísticas e de produção formam-se por medida, em função da
natureza e da especificidade de cada filme.
Nos últimos 20 anos, o cinema transferiu-se maciçamente para as tecnologias
digitais, que abriram uma era de infinitas manipulações da imagem e do som. Essas
manipulações já existiam; o que é hoje novo é a aceleração da oferta de um número
cada vez maior e mais mutante de equipamentos de captação e de ferramentas e
softwares de pós-produção, bem como a amplitude das transfigurações que
propiciam: mudar a cor de um filme está agora à distância de um “clique”. E estes
novos instrumentos de correcção tanto podem afastar como reaproximar o filme do
“real”: um realizador pode usá-los para que um nevoeiro azul que viu e quis filmar,
mas que se tornou róseo na imagem, regresse à cor desejada. E a reversibilidade da
escolha está disponível e é total. Já em 1983, Antonioni (que dois anos anos realizara
em vídeo, para televisão, Il mistero di Oberwald), manifestava o seu profundo
optimismo perante a era da “electrónica” no cinema:
“A gama de possibilidades que a electrónica oferece aos cineastas é infinita. Por
exemplo, no controlo da cor: posso continuar a fazer cor ‘naturalista’, mas com o novo
corrector obtenho as cores electrónicas que achar melhores para exprimir as
subjectividades da história que estou a contar. E a nova ‘marchetaria’ permite corrigir
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Mudança de formato da imagem em Mommy de Xavier Dolan (2014) (fotogramas do filme).
Hoje, o quase fim da película e a digitalização dos procedimentos são vividos como
uma transição muito mais fluida, diluida e tolerada. Mas o virtual desaparecimento
da película e as evoluções do digital e da pós-produção computorizada não nos põem
na melhor posição para antecipar o que serão amanhã o cinema e os seus filmes,
importados por download e vistos em iPads ou em ecrãs domésticos de alta definição
e armazenados na iCloud em vez de em estantes. Os blockbusters, esses serão cada
vez mais animações imersivas destinadas às “salas hápticas” 4DX e tornar-se-ão
parte da rede de conteúdos de entertainment com eles relacionados e disponíveis na
net, como aconteceu desde Star Wars e Avatar. Tem razão Rodowick: perante a
mudança dos suportes, modos de produção, conteúdos e formas de distribuição e
exibição, ainda perguntaremos que coisas são o cinema e os seus filmes, redefinindo-
os face ao que os reconfigura, quer como dispositivos técnicos, quer como
“alucinações verdadeiras” que medusaram a cinefilia.
Há poucos anos, Steven Spielberg e George Lucas (2013) anteciparam os futuríveis
de Hollywood e dos blockbusters multinacionais, sugerindo uma nova bifurcação
nos caminhos do cinema. Por um lado, dizem eles, haverá cada vez mais
investimento em cada vez menos filmes, o que levará esses filmes às salas da
Broadway (e congéneres) por períodos de exibição bem mais longos e a preços cada
vez mais elevados, como acontece há décadas com o teatro. Mas por outro, crescerá
a disseminação da maioria dos outros filmes, muitos deles de baixo orçamento, nas
novas plataformas de distribuição e difusão da convergência digital. Em pano de
fundo está já instalada a socialização do home cinema em ecrãs domésticos
— grandes ecrãs multiusos, que determinarão novos conteúdos e formatos de
televisão e cinemáticos. Vestindo a pele do visionário Verne, Lucas prevê que o
futuro do entertainement incluirá implantes cerebrais como os que já controlam
membros artificiais e que permitirão, por exemplo, controlar sonhos. Mas,
interrogado sobre que mudanças fundamentais os novos cenários tecnológicos
produzirão nos conteúdos, respondeu:
“Ainda será preciso contar histórias. Haverá quem prefira estar dentro de um jogo, mas
também haverá quem prefira que lhe contem uma história. São coisas diferentes. Em
matéria de conteúdos nada mudou em dez mil anos”.
O financiamento do cinema em geral tornou-se, em anos de crise (desde 2008), mais
prudente e calculista. Há, decerto, cada vez mais filmes de baixo orçamento e que as
distribuições clássicas ignoram. Mas, nessa massa de produções votadas a uma vida
breve e pouco visível, formam-se pequenos núcleos de realização que entram no
artie main stream, um dos nichos da cinefilia contemporânea cultivado pelo mundo Artie main
dos festivais. Para os realizadores desse grupo, a produção internacional permanece stream
boa samaritana, porque deles depende parte do futuro do cinema. Cineastas tão
diversos como Albert Serra, José Luis Guerín, Alice Rohrwacher, Atom Egoyan,
Xavier Dolan, Lucrecia Martel, Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro, Carlos
Reygadas, Jacques Audiard, Lázló Nemes, Naomi Kawase, Apichatpong
Weerasethakul, Miguel Gomes ou João Pedro Rodrigues, consagrados nos festivais
e pela bonne presse, integram esse grupo de eleitos.
Este “novo” telão de fundo gera um futuro que já começou: menos blockbusters por
ano significa o emagrecimento das rentrées comerciais e menos estreias de obras
caras. Mas essas rentrées são cada vez mais substituídas por estreias de filmes de
baixo orçamento em festivais locais e temáticos concentrados no mesmo calendário,
festivais que alargam a rede dos públicos de nicho. Ao mesmo tempo, a distribuição
dos filmes em sala, nos casos das cinematografias mais artesanais e de baixo
orçamento, volta a exigir, a par das novas plataformas digitais e de residências
online, redes de pequenas e médias salas onde esses filmes possam manter-se em
exibição por muito mais tempo. A publicidade e o marketing destas obras é feita por
comunicação inter-pessoal no seio dos seus públicos-alvo e nichos cinéfilos,
carecendo de períodos mais alargados (do que os de uma campanha de lançamento
convencional em wide release) para produzir os seus efeitos de atracção. Estes
problemas estão identificados e em discussão desde o último quartel do séc. XX. Mas
a sua configuração evolui, dando à paisagem geral a que pertencem traços de
volatilidade que dificultam a prospectiva apoiada em tendências pesadas: no
algoritmo que os exprime há excessivas variáveis.
66
Este contexto mutante não esgota, porém, o que está em causa na discussão sobre o
cinema de hoje e de amanhã. Há questões que dizem respeito aos filmes que nos
interessa fazer e ver e que subsistem para além das transformações do apparatus:
hoje como ontem, a história das cinefilias conhece bem filósofos-poetas que querem
ser cineastas mas raramente o são e cineastas-poetas que querem ser filósofos e que
por vezes o são: asteróides que na sua errância orbitam temporariamente outros
corpos dotados de um campo magnético incontornável. Há filmes que iluminam a
nossa experiência do mundo e por isso se tornam, como certos livros, certa pintura
e certa música que preferimos, companheiros para a vida: são parte do nosso modo
de ver, da nossa Weltanschauung, tornam-se parte da nossa consolatio. Há outros,
irrelevantes, a que somos indiferentes. E entre uns e outros há a infindável multidão
dos restantes, com que temos uma relação distraída porque só inscrevemos no nosso
vivido um ou outro traço do que mostram. De facto, as questões assim colocadas
nunca disseram apenas respeito ao cinema e aos seus filmes: também no universo
da literatura, das artes de cena e das artes plásticas conhecemos a desproporção
entre a quantidade e a qualidade do que é produzido. Como diz, com acentuada
humildade, o colectivo da Traffic, logo no cartão de visita que apresenta a revista:
“Vivemos um momento em que, cada vez mais, falamos de imagens. Tanto modernas
(‘novas imagens’, imagens de síntese) como arcaicas (mitológicas, religiosas,
picturais). E entre essas elas há as do cinema. As imagens do cinema são preciosas
porque constituem, para duas ou três gerações de todo o mundo, um verdadeiro
arquivo de recordações, um tesouro de emoções armazenadas e também uma fábrica
de questões. Chegou o tempo de usar o cinema para questionar as outras imagens —
e vice-versa”.
Este tom nostálgico evoca talvez a “morte do cinema”, inumeramente glosada em
torno do centenário oficial da “sétima arte”, em 1995. A digitalização, a rarefacção
da película, a desindexicalização das suas imagens, a multiplicação das imagens e
das animações feitas em computador, tudo parece reaproximar o cinema duma arte
do falso, em perda vertiginosa de contacto com o real. Pelo meu lado creio, contra a
corrente do desânimo e contra a necrofilia instalada, que a digitalização não matou
o cinema, antes o conduz a novas metamorfoses e transferências para novos
dispositivos técnicos. As novas gerações de cineastas já nasceram no etos digital mas
não perderam a sua ligação com o “antigo” cinema. O cinema não renascerá das suas
próprias cinzas como a fénix porque não chegará às cinzas, antes se metamorfoseará
propondo novos horizontes estéticos, éticos e narrativos.
mesmo se já só mantém o seu empório nos blockbusters. Mas a resiliência deste juízo
põe em evidência a desconfiança central dos críticos da Frankfurter Schule e dos
seus herdeiros face ao papel que o cinema, grande aparelho, desempenhou no
condicionamento da cultura de massas e do gosto das indústrias culturais.
As artes, repitamo-lo, pertencem, em princípio, ao mundo utópico da produção não
industrialista e não utensiliária, embora possam ter comércio com a indústria e ser
contaminadas pelo valor de troca dos produtos desta (vejam-se os valores atingidos
por certa pintura e escultura nos leilões internacionais do mercado da arte). O
carácter de não-utensílio da obra de arte exprime a parte da produção humana que
visa a mera fruição de simulacros resultantes da impulsionalidade afectiva: essa
intencionalidade afectivamente determinada não “exclui” a obra de arte do universo
do trabalho, mas fá-la depender de uma economia libidinal que mantém uma relação
antagónica com a economia baseada na oferta e na procura de bens supostos
responder a necessidades materiais (mesmo se inventadas), que são o cerne do
produtivismo industrialista. O trabalho artístico, mesmo quando se destina a
satisfazer necessidades materiais dos seus autores, não pertence, assim, ao universo
do trabalho entendido como punição divina e condição social (“ganharás o teu pão
com o suor do teu rosto”; Génese 3:19); antes é entendível como investimento
utópico que obedece à lógica da dádiva e do plotlach tal como os definiu Marcel
Mauss. Nos termos de Hanna Arendt (1958), ele é “obra” e não “trabalho” feito pelo
mero homo laborans. As questões que neste mesmo tópico se põem ao cinema
resultam da promiscuidade que ele, enquanto “última das grandes artes”, alimentou,
desde tão cedo, precisamente com o produtivismo industralista.
O cinema é, assim, um aparelho de jogo, parcialmente distinto dos tradicionais ...mas
aparelhos produtivos fazedores de bens de consumo e que alteram materialmente a aparelho
de jogo
nossa relação com a natureza e o mundo. O trabalho dos cineastas consiste em
“jogar” ou “brincar” (como a criança de Freud e Rilke) com o dispositivo
aparelhístico posto à sua disposição, como o pintor ou o fotógrafo “jogam” e
“brincam”, o primeiros com os seus pigmentos e suportes, o segundo com a black
box que a sua câmara é e de que ele conhece sobretudo os inputs e os outputs. Neste
mundus ludens, alguns jogadores criativos desviam a utilização do aparelho e
tornam-se autores de obras reconhecíveis pelas suas “pequenas diferenças
excessivas”. No seu seminário japonês sobre realização cinematográfica, por
exemplo, Pedro Costa explicou como se opôs ao manual de instruções da câmara
digital com que filmou uma das suas obras, fazendo o contrário do que os seus
construtores ofereciam: imobilizou-a num tripé em vez de usufruir da focagem
garantida em constante mobilidade. Escreveu Vilém Flusser (1983, 2011: 100), sobre
a possibilidade do fotógrafo ou do cineasta romper com o aparelho da tecno-cultura
em que vivemos imersos, saindo da heteronomia em direcção à autonomia:
“1. O aparelho é infra-humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. Os programas
dos aparelhos permitem a introdução de elementos humanos não-previstos; 3. As
informações produzidas e distribuídas por aparelhos podem ser desviadas das
intenções dos aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. Os aparelhos são
desprezíveis. (...) A liberdade é jogar contra o aparelho. E isto é possível”.
Flusser voltou a este tema em 2008. Mas esta evocação da diversidade dos enfoques
suscitados pela actividade foto-cinemática ao longo da sua história tem sido
relembrada por numerosos autores (Aumont, Bergala, Marié e Vernet, 2008: 205)
que dedicam os seus trabalhos ao universo do ensino e da formação:
“Talvez, a bem dizer, quase não haja produção humana que não seja desde cedo
acompanhada de uma reflexão formal, ‘teórica’, ou pelo menos (...) de uma observação,
de uma contemplação aprofundada dessa mesma produção. No caso do cinema,
podemos decerto anotar que a sua invenção, que ocupou todo o séc. XIX, não apanhou
de surpresa a especulação intelectual; e não é menos notória a constatação da
contemporaneidade quase total entre o surgimento do cinema como espectáculo,
depois como arte e meio de expressão, e a sua teorização”. ¢
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“O cinema é uma forma de arte em que o autor pode ver-se a si mesmo como
criador de uma realidade incondicional, literalmente o seu próprio mundo (...).
Um filme é uma realidade emocional e é assim que a audiência o recebe — como
uma segunda realidade”.
Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, 1987.
“Meus personagens são pessoas reais. (...) Acredito neles da mesma forma que
acredito em alguém feito de carne, sangue e ossos. Eles vivem na minha cabeça.
Até mesmo personagens sobre os quais escrevi há 20 anos, ainda penso muito
neles. Volta e meia eles voltam à minha imaginação e de certa forma dialogam
comigo”.
«Paul Auster aos 60», entrevista in O Globo, Prosa & Verso, 11.02.2007.
De resto foram, todos eles, acrescenta Bazin, animados pelo arcaico desejo de um
realismo mecânico ou automático sem intervenção da subjectividade humana, que a
descoberta de “um suporte transparente, maleável e resistente, e [de] uma emulsão
sensível seca, capaz de tomar uma imagem instantânea” (p. 20), tornou realizável:
“O mito director da invenção do cinema é (...) a concretização daquilo que domina
confusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade nascidas ao
longo do séc. XIX, da fotografia ao fonógrafo: o mito do realismo integral, da recriação
do mundo à sua imagem, (...) na qual não pesasse a hipótese da liberdade de
interpretação do artista...” (p. 23).
Mas, num outro texto antologiado em Qu’est ce que le cinéma?, «Le réalisme
cinématographique et l’école italienne de la Libération», de 1948 (1985: 257-285),
Bazin exprime com clareza a contradição básica que pesa sobre os realismos:
74
“O realismo na arte não saberia proceder senão por artifícios. Qualquer estética escolhe
forçosamente o que vale a pena salvar, perder ou recusar; mas quando se propõe
explicitamente, como faz o cinema, criar a ilusão do real, tal escolha constitui a sua
contradição fundamental, a um tempo inaceitável e necessária. Necessária, porque a
arte não existe sem essa escolha (...). Inaceitável, porque tal escolha se faz (...) à custa
dessa mesma realidade...” (pp. 269-270).
Outros autores (Dubois, 1983) pensaram igualmente a fotografia a partir das três
categorias básicas de Peirce, reconhecendo como qualidades indiciais da fotografia
a singularidade (é referido aquele objecto específico que esteve efectivamente diante
da câmara), o testemunho (certificação ou prova da hecceidade do objecto) e a
designação (denotação, capacidade de o identificar e apontar). Geneticamente a
imagem fotográfica é assim, antes de mais, um índice que também é ícone e símbolo.
Mas ao mesmo tempo o filme foi e é objecto de todas as trucagens, deformações e
misturas que introduzem o artifício e o falso nas suas figurações e isso desde Méliès,
Méliès e os que inventou o primeiro “truque” por acidente: filmava na praça da Ópera, em Paris,
“truques” tudo indica que em 1896, quando a película bloqueou e a câmara deixou de filmar;
demorou um minuto a reparar a avaria e retomou o seu plano fixo. Ao projectar as
imagens, viu que um grupo de homens, vários carros e um autocarro se
transfiguravam, em continuidade, num carro funerário e num grupo de mulheres
(Méliès, 1929). Mas sobre as trucagens disse também Jean Epstein (loc. cit.: 187):
“As trucagens estão extremamente próximas do processo pelo qual o espírito
humano fabrica para si mesmo uma realidade” (itálico meu).
75
The Birds (Hitchcock, 1963): fundo pintado, sobreposição de 32 takes. Um pequeno número de aves foi
sucessivamente filmado a diferentes distâncias para se obter a composição final (fotograma do filme).
É sabido que Bazin (1985), em textos dos anos 40, assenta o seu “realismo
ontológico” na indexicalidade directa da imagem foto-cinematográfica e na
“transferência de realidade” do objecto fotografado ou filmado para a película,
ignorando deliberadamente o que pode subjectivizar ou relativizar essa imagem e
aproximá-la do ícone ou do símbolo peirceano que a imagem da pintura sempre foi.
Este realismo assente na “co-naturalidade” da imagem foto-cinematográfica e do
seu objecto ignora também as condicionantes culturais (determinantes do gosto e,
por vezes, da própria compreensão das imagens) e, à la limite, as condicionantes
76
Lev Manovitch terá produzido, na transição do séc. XX para o séc. XXI, a mais
influente síntese dos desafios lançados ao cinema pela “revolução digital”,
discutindo-os, precisamente, em torno da ideia de “realismo” que atravessou a
história das cinemáticas e que sempre se baseou, de Balázs a Bazin e de Sontag a
Barthes, na indexicalidade da imagem foto-cinematográfica — a sua ligação
“ontológica” ao real fotografado ou filmado — ou na co-naturalidade de uma e outro.
Os seus argumentos partem da ideia de que as novas imagens em movimento,
sintéticas, bidimensionais ou tridimensionais, produzidas em computador, visam e
estão destinadas a suplantar o realismo baziniano, levando o cinema a perder
irreversivelmente o seu lugar centenário de principal re-apresentador indicial da
realidade (Manovitch, 2001: 185-191, 293-302):
“Realismo é o conceito que inevitavelmente acompanha o desenvolvimento e a
assimilação da computação gráfica tridimensional. Nos media, nas publicações
comerciais, nos textos de investigação, a história da inovação e da investigação
tecnológica é apresentada como um progresso em direcção ao realismo — a habilidade
para simular qualquer objecto de tal modo que a imagem computorizada se torna
indistinta da fotográfica. Ao mesmo tempo, sublinha-se constantemente que este
realismo é qualitativamente diferente do realismo baseado nas tecnologias ópticas da
fotografia ou do filme, porque a realidade simulada não está indexicalmente [ou
indicialmente] ligada ao mundo existente”.
Se é verdade, diz o mesmo autor, que os 3D computer graphics usam, para criar a
ilusão da profundidade, um conjunto de referenciais geométricos não
particularmente diferentes dos de Giotto e da pintura renascentista, esse facto só
acentua o regresso à composição e à picturalidade da experiência cinemática,
vencendo décadas de hegemonia ideológica da indexicalidade. Para Manovitch, que
segue, nesta matéria, os passos de outrem (Comolli, 1971: 121-142), o cinema lutou
continuamente, ao longo da sua evolução tecnológica, e apesar do seu “dogma” da
indexicalidade, contra o sistemático défice de realismo dos seus dispositivos — e fê-
77
Ora, o salto agora representado pela imagem digital e pelas imagens produzidas em
computador significa que o efeito de realidade sempre procurado pelo cinema já não
se apoia apenas em gravações do real feitas através de lentes e que a imagem deixa
de ser entendida como um “depósito” de realidade (Manovitch, loc. cit.):
“O cinema é a arte do index, uma tentativa de fazer arte a partir de pegadas [footprint].
(...) Mas o que sucede à identidade indexical do cinema quando passa a ser possível
gerar imagens foto-realistas inteiramente feitas em computador (...)? A construção
manual de imagens no cinema digital é um regresso às práticas pró-cinemáticas do séc.
XIX, quando as imagens eram pintadas e animadas à mão. (...) Assim, o cinema já não
pode ser claramente separado da animação: deixa de ser um media da tecnologia
indexical e torna-se num sub-género da pintura” [itálicos meus].
Três notas sobre estes argumentos de Manovitch, que visavam dar o golpe de
misericórdia no “realismo ontológico” baziniano: em primeiro lugar, é estranho que
o objectivo principal da imagem digital seja o de emular um realismo tão eficaz
quanto o da indexicabilidade fotográfica: tanto progresso para nos levar de volta ao
ponto de partida? Em segundo lugar, o próprio Bazin, excepcionalmente intuitivo
mas menos sistemático, reconhece, como referi, que o realismo do cinema vive de
artifícios, ou seja, que o efeito de realidade da imagem foto-cinematográfica
depende da evolução do dispositivo e dos seus meios técnicos; em terceiro lugar, e
talvez mais importante do que “vencer” ou “ultrapassar” a argumentação baziniana,
a nova ponte lançada pelo cinema digital, que, de facto, restabelece uma ligação às
práticas pré-cinematográficas e às do cinema primitivo, volta a dar ao cinema e aos
seus filmes a natureza compósita da arte que começou por estar próxima da pintura
e da fotografia e que nunca abdicou, desde Méliès, das trucagens e “efeitos especiais”
(ricos e pobres) que não punham em causa a indexicalidade, antes a tinham como
material de base sem o qual não seria possível fazer filmes. É talvez essa a razão
porque o cinema de animação foi explicitamente relegado para um lugar tão
claramente separado do “cinema do index” (a animação não visava o mesmo tipo de
78
Também Didi-Huberman recorda, em Devant le temps (2000), que para Plínio o Os moldes de
Velho (no seu Naturalis Historia, do ano 77 d. C.) a imago assentava na semelhança cera do séc. I
por via da materialidade dos moldes de cera ou gesso que, nesse século I de Roma,
79
Logo a seguir (p. 10), Bazin lembra que Luís XIV (morto em 1715) já não se fez
embalsamar, contentando-se com fazer pintar, em vida, o seu retrato por Lebrun —
mas neste caso não acreditamos na identidade ontológica do modelo e do retrato: o
segundo, ícone do primeiro, ajuda-nos, por via da semelhança, a não o esquecer,
vencendo o tempo pela perenidade da forma e evitando-lhe assim uma segunda
morte, esta simbólica: o desaparecimento da sua imagem da nossa memória. A
semelhança tentada pelo pintor retratista é, assim, o âmago do problema do realismo
em pintura, que a fotografia inventada por Niepce, primeiro, e o cinematógrafo dos
Lumière, mais tarde, julgaram tornar obsoleto:
“... A fotografia e o cinema (...) satisfazem definitivamente (...) a obsessão do realismo
[através de] uma reprodução mecânica de que o homem está ausente” (p. 12).
Mas o devir obsoleto da pintura foi, entretanto, mil vezes desmentido pela própria
pintura, desde Niepce até aos nossos dias. Já Benjamin (1931) reconheceu que não
foi a pintura no seu conjunto a principal vítima da fotografia, mas sim um seu sub-
género de época, o pequeno retrato portátil, herdeiro directo dos ícones bizantinos
que se levavam em viagem ou para a batalha. E bem mais perto de nós, um pintor
como Jacques Monory perguntava-se, em linguagem já intermedial, em 1972: “Para
quê pintar? Porque não inscrever directamente a imagem [fotográfica, ou um seu
sucedâneo] no suporte?” (Lyotard 1973: 203-204). Ou seja, a pintura podia
facilmente canibalizar a indexicalidade directa e iconizá-la ou torná-la símbolo — o
que de facto passou a fazer sem hesitar, ora por importação directa, ora
transformando-a, ora “pintando fotografias”, por vezes em telas de grandes
dimensões museológicas, como nas Marylin de Andy Warhol ou no hiperrealismo
dos anos 60-70. Marginalmente, recordemos o facto importante de que, ao mesmo
tempo, são esses os anos em que a fotografia é apropriada pelos museus e em que
esta, acedendo-lhes, passa a ser impressa em dimensões que permitam pendurá-la
em paredes e ser contemplada como pintura.
Foi esta ideia da impressão digital do objecto por via da luz (Manovitch prefere a
expressão footprint, pegada, como vimos) que estabeleceu a natureza da
indicialidade directa da imagem fotográfica, imago lucis opera expressa, como dirá
depois Barthes em tom de ritornello. Bazin desenvolve-a nas páginas seguintes,
substituindo o termo representação por re-apresentação e referindo-se a um
transfert de realidade da coisa para a sua reprodução (pp. 13-14):
80
De novo em nota de rodapé, Bazin diz que, para melhor entendermos o lugar
ocupado pela imagem fotográfica,
“...seria preciso introduzir aqui uma psicologia da relíquia e da ‘recordação’, que
igualmente beneficiam de um transfert de realidade procedente do complexo da
múmia”.
Bazin acrescenta que o sudário de Turim (a que Barthes também se referirá) realiza
a síntese da relíquia e da fotografia (embora desde a sua datação pelo carbono 14, em
1988, portanto bem depois da morte de Bazin e poucos anos depois da de Barthes,
julguemos que ele não é anterior a 1260 nem posterior a 1390). Sublinha ainda Bazin
— num apontamento naturalmente extensivo ao cinema — que o registo do objecto
real através de uma operação fotoquímica dá à fotografia um valor que ultrapassa a
sua qualidade estética. E fá-lo nos seguintes termos, voltando a evocar
metaforicamente o embalsamamento (p. 14):
“A imagem [fotográfica] pode ser pouco nítida, deformada, descolorida, sem valor
documental, [mas] procede, pela sua génese, da ontologia do modelo (...). A fotografia
não cria eternidade como a arte, antes embalsama o tempo, subtraindo-o apenas à sua
corrupção. Nesta perspectiva, o cinema surge como a realização, no tempo, da
objectividade fotográfica”.
Por outras palavras, e como já tínhamos observado, uma eventualmente fraca
iconicidade da imagem foto-cinematográfica não diminui a sua indicialidade. Pouco
depois (p. 16), sobre o mesmo tema, mas alargando-o às relações entre imaginário e
real, escreve Bazin:
“As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real (...). [Nela,] a
distinção lógica entre imaginário e real tende a ser abolida. Qualquer imagem deve ser
sentida como objecto e qualquer objecto como imagem, [produzindo] uma alucinação
verdadeira”.
A ideia de que o ícone revela/desvela o real, tornando visível o invisível através de
um trabalho de “mostração” e sendo até condição da sua “epifania”, é tipicamente
grega e envolve o apagamento da fronteira entre imaginário e real; discutimo-la
A parada grega: adiante a propósito da série είδος, iδέα, εiκών, εiδωλον (eidòs, idea, eikôn,
είδος, iδέα, eidôlon) e do mundo metafísico dos gregos clássicos. Quanto à “alucinação
εiκών, εiδωλον
verdadeira” daquele que vê tal revelação, ou assunção de uma aparência pelo real
invisível, ela refere-se a um ver implicado, crente e volitivo, que é mal expresso pela
clássica dicotomia sujeito percepcionante / objecto percepcionado.
Bazin virá, ainda, a sublinhar a diferença entre o olhar da câmara e o olhar humano
(p. 17), um tema de que Merleau-Ponty também se veio, no mesmo ano (1945), a
apropriar: a fotografia, diz ele, permite-nos “admirar, na sua reprodução, o original
que os nossos olhos não teriam sabido amar”. É um apontamento que nos remete
para o Aristóteles da Poética, para quem a mimesis artística nos faz até apreciar, nas
suas representações, o que nos “repugnaria” na vida real.
Disse que também Sontag e Barthes, comparando, num território epistemológico
ainda próximo de Bazin, o que fazem pintura e fotografia, vieram a glosar o tema da
indicialidade. De facto, Sontag (1977: 136) escreveria, a este respeito, o seguinte, em
termos que os amadores de fotografia não desdenhariam, em meados do séc. XIX,
subscrever:
“Enquanto uma pintura, ainda que conforme aos padrões fotográficos da semelhança,
nunca é mais do que a afirmação de uma interpretação, uma fotografia nunca é menos
do que o registo de uma emanação (ondas de luz reflectidas pelos objectos), um vestígio
material daquilo que foi fotografado e que é inacessível a qualquer pintura”.
81
Barthes (1980: 871) viria, sem citar Sontag nem Bazin e apresentando a sua reflexão
como genuinamente original, a fazer-se eco deste argumento, tratando o “referente”
fotográfico como o real fotografado e referindo a “co-naturalidade” do índice
fotográfico e do seu objecto:
“...Toda e qualquer foto é de algum modo co-natural ao seu referente. (...) Chamo
‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real para a qual uma imagem ou
um signo reenviam, mas a coisa necessariamente real que foi posta diante da objectiva,
e sem a qual não haveria fotografia. A pintura (...) pode fingir a realidade sem a ter
visto. O discurso combina, decerto, signos que têm referentes, mas esses referentes
podem ser e são frequentemente ‘quimeras’. Ao contrário destas imitações, na
fotografia, nunca posso negar que a coisa tenha estado lá ”.
Insistamos num ponto crucial: a indicialidade não desaparece necessariamente com
as trucagens e os efeitos especiais de que o cinema sempre foi, igualmente, uma
gigantesca fábrica, por via do trabalho da câmara e do dispositivo óptico utilizado,
do trabalho com o décor ou em laboratório, em pós-produção. Nem os históricos
espelhos do “processo Shuftan”, nem o uso de maquetes pelos estúdios, nem o
pictograph ou o simplifilm, onde lentes substituíam os espelhos, nem os fundos
fotográficos ou cinematográficos obtidos por projecção de imagens muito ampliadas
e que permitiram durante décadas que uma paisagem previamente filmada
“corresse” para além da janela de um comboio ou que uma estrada vista em
travelling para a frente, ou para trás, fosse “percorrida” por um carro (imóvel no O automóvel
estúdio e provavelmente transformado para efeito das filmagens), alteram a de estúdio
na estrada
definição básica da imagem como “emanando” do objecto filmado. Em todos estes pré-filmada
procedimentos, bem como em todas as sobreposições de imagens em laboratório
(fondus enchainés, layerings vários), cada componente separada da imagem final
mantinha a sua indicialidade original.
Hoje, com as imagens numéricas e feitas em computador, muitas vezes misturadas
com imagens “reais” (recordem-se os argumentos de Manovitch), a questão torna-se
mais complexa, regressando-se a um estádio de fusão entre a indicialidade
fotográfica e a antiga representação pictural — um processo que foi praticado pelo
cinema desde a construção de cenários pictóricos e mais tarde virtuais.
Lanzmann, por seu turno, disse numa entrevista que, se tivesse encontrado um filme
feito por um SS em que se visse a entrada de vítimas para uma câmara de gás e,
depois, o resultado do gaseamento, não só nunca teria utilizado tal filme como o teria
O “óbvio” e o destruído “por razões óbvias, ponto final”. Para os seus críticos, portanto, Didi-
“ponto final” Huberman estaria a promover, através da sua chamada de atenção para imagens da
realidade, um voyeurismo tão intolerável quanto inútil.
trabalho obrigatório do historiador, tanto mais quanto elas dão expressão imagética
aos rolos de textos dos Sonderkommandos enterrados no campo (a maior parte dos
quais se perderam, porque o solo do campo foi saqueado após a libertação por
camponeses polacos à procura do “ouro judeu”), bem como a depoimentos como os
de Primo Levi, de Robert Antelme e até a relatórios nazis sobre a vida nos campos da
morte, como o do SS Filip Müller.
A marcação peirceana
VIMOS que a tripla marcação peirceana da imagem foto-cinematográfica (como
ícone, índice e símbolo) ultrapassa as críticas de Manovitch ao “dogma” da
indexicalidade e permite analisar essa imagem num contexto mais vasto e mais
pictural. Acresce, ainda em matéria de indexicalidade, que o que seja o referente de
um filme tem igualmente alimentado uma discussão que não parece ser fácil
encerrar conclusivamente. Autores contemporâneos (Aumont et al, loc. cit., 2008:
72) insistem na natureza categorial do referente cinematográfico:
“No que respeita à linguagem cinematográfica, a imagem de um gato (significante
icónico + significado ‘gato’) não tem como referente o gato particular que foi filmado,
mas sobretudo toda a categoria dos gatos: é preciso, de facto, distinguir entre o acto da
tomada de vistas, que requer um gato particular, e a atribuição de um referente à
imagem vista por aquele ou aqueles que a olham. Exceptuando o caso das fotos de
família ou do filme de férias, um objecto não é fotografado ou filmado senão como
representante da categoria a que pertence: é para essa categoria que ele reenvia e não
para o objecto-representante que foi utilizado na tomada de vistas”.
Os mesmos autores ilustram a seguir esta afirmação com exemplos como o de Crin
Blanc (Albert Lamorisse, 1953): as imagens do cavalo do filme não têm por referente
a meia dúzia de animais semelhantes uns aos outros que foram necessários para as
filmagens, mas o tipo categorial e idiossincrático de cavalo selvagem ali
representado. O mesmo se poderia dizer da meia dúzia de Fords Thunderbird que
foram necessários para filmar o carro de Thelma & Louise (Ridley Scott, 1991) e de
mil outros exemplos.
Ora, não é esta a vivência das “fotos de família” nem dos “filmes de férias”, diante Fotos de
família e filmes
dos quais dizemos “este sou eu”, “aquela é a minha irmã”. Como poderiam umas e de férias
outros escapar à definição geral da imagem foto-cinematográfica? Voltando à
imagem do gato, se ela pode ser vista como um significante icónico que remete para
a “categoria dos gatos a que ele pertence”, também pode ter como referente o gato
concreto que foi fotografado ou filmado, e a que está ligada pela indexicalidade
directa, como o Mitsou de Rilke estava ligado àquele gato pela semelhança. Do
mesmo modo, a imagem da personagem Elsa Bannister, incarnada por Rita
Hayworth em The Lady of Shangai (Orson Welles, 1947), pode ser o significante que
remete para o significado femme fatale do film noir, mas o seu referente também
pode ser aquela Rita Hayworth e seus restantes desempenhos.
É a este jogo de possibilidades que se reporta a discussão sobre as potências de
referenciação da imagem foto-cinematográfica. Tal jogo parte de três petições de
princípio distintas sobre o modo como este tipo de imagem significa e representa ou
re-apresenta o real fotografado ou filmado: a petição herdada da linguística e
expressa por Aumont et al.; a petição herdada do “realismo ontológico” de Bazin,
Sontag e Barthes, para quem a indexicalidade directa é o valor determinante da
natureza e da percepção de tais imagens; e a petição proposta por Peirce (tais
imagens são ao mesmo tempo ícones, índices e símbolos). Em nosso entender, e sem
prejuízo do interesse teórico da discussão, a proposta pragmática da semiologia de
Peirce é a mais capaz de responder à questão colocada: a imagem foto-
cinematográfica pode ser um índice que também é ícone e símbolo; um ícone que
também é índice e símbolo; ou um símbolo que também é ícone e índice.
O corpo do filme
O FILME É PERCEPCIONADO como um todo pelos seus espectadores, que no entanto
podem ser mais sensíveis a esta ou àquela das suas componentes — porque ele é
sempre um composto, uma composição. O filme apresenta-se-nos como corpo no
sentido que lhe deram Vivian Sobchack (1992) e Raymond Bellour (2009),
86
O todo é mais que a soma das suas partes: ao tornar-se imago metafórica do mundo,
o filme oferece uma fotogénese (produção de luz visível, luminiscência ou
fosforescência) específica a esse mesmo mundo, com os seus objectos, paisagens e
personagens, entendida como também Cavell (1992: 30-38) a entende e de que dá
testemunho a re-apresentação do real em forma de fantasma, resultante do desejo
de o transfigurar. No filme, as coisas são vistas como sendo outras, escreveu
Fétiches e Eisenstein (1944) a propósito da chaleira fumegante de Dickens: o filme feiticisa as
facializações coisas, facializa-as (v., infra, Facialidades, fotografia, cinema, cap. 15, Vol. II),
oferecendo delas outra figura, e propende a lidar com elas no regime da “inquietante
estranheza”, a Unheimliche de Freud a que adiante me refiro com mais detalhe. Dito
de outro modo, qualquer objecto fotografado ou filmado pode ser signo de outra
coisa, remetendo para um imaginário individual ou socialmente determinado que de
algum modo o transfigura, dando-lhe polissemia e convidando-nos a ver nele um
invisível não explicitamente referenciado.
Com a intensidade das suas imagens e dos seus sons, com o seu ritmo e a suas
durações, a sua luz e atmosferas, a sua maior ou menor unidade e homogeneidade,
o corpo do filme propõe-se à nossa percepção holística como um todo expressivo, à
semelhança de qualquer obra de arte. O que o corpo do filme, massa plástica feita de
imagens em movimento e sons, propõe ao espectador, é que este o entenda como
metamorfose e como outra figura do real e seja capaz de activar, através da sua
inteligência perceptiva, a ligação imaginária entre o que vê no ecrã e o que vê no real.
O filme não propõe ao espectador que nele “encontre” o real (exercício que a pintura
tinha saturado com o retrato e o trompe-l’œil), mas o inverso: propõe-lhe que nele
mergulhe e seja depois capaz de o ver no real e de neste o inscrever, percepcionando
emocionalmente, de um modo novo, o que começou por ver no ecrã (o exercício de
matriz idealista a que Bazin chamou “alucinação verdadeira”): a nova realidade é
feita das figurações que o filme ofereceu e que o espectador inscreverá, ou não, na
sua experiência vivida. É deste modo que o filme transfigura o Lebenswelt: um olhar
educado pela imagem não percepciona o mundo de modo banal, porque inscreve no
mundo vivido o que viu, o que apreendeu na imagem. Dito de outro modo: o jogo
hermenêutico do vidente-espectador diante do filme entendido, por sua vez, como
objecto-sujeito vidente, replica autonomamente (e articula-se com) o jogo
hermenêutico do vidente-realizador (ou com o autor implícito da obra).
87
Objecto técnico, artefacto, o filme é um acessório que contém (ou pode conter) o
O registo das registo das três realidades de que falou Watzlawick (loc.cit.): a de primeira ordem,
três realidades feita de res extensa, aquela em que tropeçamos todos os dias; a de segunda ordem,
de Watzlawick
a dos valores, onde o ouro deixa de ser visto como um metal entre outros e passa a
ser considerado pelo seu excepcional valor de troca; e a de terceira ordem, a do
simbólico e do imaginário, onde não exigimos necessariamente às “coisas” que a
integram (as nossas ficções, fantasmas e imagines) a satisfação do predicado de
existência tal como o entendemos aplicado às “coisas” que integram a realidade de
primeira ordem.
O filme é, decerto, pelo menos enquanto tiver existência como suporte material, um
pedaço de res extensa, uma coisa. Mas como signo, como relação significante-
significado, como conjunto de conteúdos e de formas (passe a discutível distinção
entre uns e outras, a que voltarei), será um objecto “mágico” dotado de poderes?
Sobchack (1992) propôs que filme e espectador são cada um deles, ao mesmo tempo,
sujeito e objecto de visão; dir-se-á que esta fenomenologia existencial, vinda de
Merleau-Ponty, é animista porque transforma o filme num feitiço, num artefacto de
vaudou? É contra esta “crença”, porque de “crença”, e supersticiosa, parece tratar-
se, que Quentin Meillassoux (2006) evoca genericamente — sem se referir a filmes
— nas primeiras linhas de Après la finitude, as “qualidades segundas” das coisas em
Locke e em Descartes:
“Quando me queimo numa vela, considero espontaneamente que a sensação de
queimadura está no meu dedo, não na vela. Não toco numa dor que estaria presente
na chama como uma das suas propriedades: a chama não se queima quando queima.
E o que se diz para as afecções deve dizer-se para as sensações: o sabor de um alimento
não é experimentado pelo alimento e não existe senão quando é absorvido. A beleza
melodiosa de uma sequência sonora não é ouvida pela melodia, a cor luminosa de um
quadro não é vista pelo pigmento colorido da tela, etc. (...) Retire-se o observador, e o
mundo esvazia-se das suas qualidades sonoras, visuais, olfactivas, etc.” (tr. adaptada,
J. M. M.).
O filme como coisa em si não sente, não chora nem ri. Dito de outro modo e
generalizando, não atribuimos às coisas “em si”, na prática entendidas como “coisas
sem mim” (as que o realismo ingénuo e dogmático julgou poder ver na realidade de
primeira ordem de Watzlawick) qualidades sensitivas ou perceptivas: percepção e
sensação são relações entre eu e as coisas. As qualidades sensíveis das coisas não
estão nelas, mas sim na minha relação subjectiva com elas. Desde Kant, que criticou
radicalmente o realismo ingénuo e dogmático, sabemos que não podemos
relacionar-nos com as coisas em si senão como coisas para nós, porque o
pensamento não pode sair de si próprio para considerar as coisas em si, apenas pode
considerá-las como coisas para si. Ou, como ironicamente disse Hegel e Meillassoux
recorda, “não podemos surpreender as coisas pelas costas”. O filme pertence decerto
às “coisas” enquanto res extensa e é um artefacto que o espectador vê como coisa e
signo para si. É a relação entre espectador e filme que faz deste último o que ele é.
Também Merleau-Ponty, na sua conferência de 1945 sobre “o cinema e a nova
psicologia”, define sempre o filme como “objecto a percepcionar” (objet à percevoir),
como “forma temporal” que não é a soma das suas partes mas um todo significativo
que nos “diz” alguma coisa e “significa” para nós. E acrescenta que o filme,
eminentemente narrativo, não propõe, apesar do seu “realismo”, a mimesis do real
(devido à découpage, à mise en scène e à montagem, que ele não cita):
“O drama cinematográfico tem, por assim dizer, um grão mais apertado do que os
dramas da vida real, passa-se num mundo mais exacto do que o mundo real”.
O “realismo” ou “naturalismo” vindo, em primeiro lugar, da indexicalidade das
imagens, é ultrapassado pelo que o realizador vê através da câmara, pela duração
dos planos, pela montagem e pós-produção de imagens e sons. O realizador opera,
assim, uma síntese ou uma síncrese holística do real que propõe ao espectador.
89
Ver e imaginar
EMOCIONANDO-NOS, reaprendemos com o corpo do filme a ver e a imaginar: ver e
imaginar estão profundamente implicados um com o outro (Walton, 1990: 295);
imaginar é vermo-nos a nós mesmos envolvidos no que imaginamos. A este respeito
dissera Merleau-Ponty, (evocando Berkeley, para quem o que vemos não são as
coisas propriamente ditas, mas luz e cor) no seu «A primazia da percepção e suas Primado da
consequências filosóficas», p. 16: percepção
“Como disse Berkeley, se tento imaginar um qualquer lugar no mundo que nunca foi
visto por ninguém, o simples facto de eu o imaginar torna-me presente nesse lugar.
Não consigo conceber um lugar perceptível no qual eu não esteja presente”.
Há tempos, depois de um visionamento de Les 400 coups, de Truffaut, um aluno
dizia-me, estupefacto com as suas próprias emoções, que tinha ficado medusado pela
Paris do filme e que desejaria lá viver para sempre. Eu perguntei-lhe: Lá, naquela
Paris de 1958, a preto e branco? Resposta: Sim, naquela Paris de 1958, a preto e
branco. Como disse atrás: as imagens são ficções; mas as emoções que a ficção
provoca são experienciais, incorporam-se e inscrevem-se no vivido e no Lebenswelt
do espectador. É também neste sentido que o cinema e os seus filmes são uma escola
do ver (Gombrich e Eribon, 1983). Por vezes, nas aulas dessa escola, participam
ajudantes oriundos da própria figuração: o envolvimento do espectador ou do
92
Imbuído do espírito de Iena nos primeiros anos do séc. XIX e desenvolvendo uma
“ciência da arte totalmente especulativa”, escrevia Schelling, na sua Filosofia da arte
(1999: 357), sobre as artes figurativas (anote-se o holismo da sua abordagem):
“Toda a arte figurativa é a configuração [itálico meu] do infinito no finito, do irreal no
real. Como em geral procura essa transformação do ideal em real, [então] a mais
perfeita manifestação do ideal como real, a absoluta transformação do primeiro no
segundo, têm de assinalar o cimo da arte figurativa”.
Deleuze, escrevendo sobre o cinema (1983: 84), respondeu-lhe exprimindo o desejo
idealista e baziniano de “alucinação verdadeira” e esperando que o cinema veja a
substância (ουσία) no acidente e o rosto na máscara (persona), mas invertendo os
termos do mestre de Hegel (anote-se, de novo, a abordagem holística):
“[O cinema] não se confunde com as outras artes, que visam sobretudo um irreal
através do mundo; ele faz do próprio mundo um irreal ou uma narrativa [itálicos
meus]: no cinema, é o mundo que se torna na sua própria imagem, e não uma imagem
93
Figura e fundo
A RESPOSTA à questão de saber que coisa é o filme inclui ainda o reconhecimento de
que ele funciona para o espectador como uma nova realidade, que se acrescenta e
convive com as outras — as naturais e as artificiais. A questão de saber porque é o
filme percepcionado como uma nova realidade e não como um exercício mimético
de mostração “fiel e verdadeira” da realidade em que estamos imersos é muito vasta
e presta-se a diferentes enfoques. Bazin, como veremos adiante, considerava (1985:
63-80) que no “realismo” de Welles e Wyler, a duração das cenas e a redução do
papel da montagem permitiam à imagem cinematográfica “inflectir, modificar a
realidade a partir de dentro”. Mas a questão também pode ser abordada como
relevando da psicologia da Forma (Gestalttheorie), a partir do Merleau-Ponty de
1945:
“Agrupamos as estrelas em constelações como já os antigos o faziam, mas muitas
outras configurações do mapa celeste são, a priori, possíveis. Quando nos apresentam
a série
a b c d e f g h i j
. . . . . . . . . .
emparelhamos sempre os pontos segundo a fórmula a-b, c-d, e-f, etc., quando os
grupos b-c, d-e, f-g, etc., são, em princípio, igualmente possíveis. O doente febril que
contempla a tapeçaria do seu quarto vê-a subitamente transformar-se: desenho e
figura tornam-se fundo, enquanto o que se vê habitualmente como fundo se torna
figura. O aspecto do mundo alterar-se-ia profundamente, para nós, se conseguíssemos
ver como coisas os intervalos entre as coisas — por exemplo o espaço entre as árvores
numa avenida — e reciprocamente como fundo as coisas mesmas — as árvores da
avenida”.
Segundo esta leitura, o que o filme nos propõe com as suas imagens em movimento
é um espaço-tempo (e aqui sublinho a dimensão tempo, duração, essencial à
experiência perceptiva) onde figura e fundo coalescem, subvertendo a percepção
visual prevalecente na nossa experiência do mundo e dos outros. Nós não vemos
como o automaton cinematográfico vê. Na imagem cinematográfica projectada no
ecrã bi-dimensional, os “intervalos entre figuras” de Merleau-Ponty oferecem-se à
nossa percepção tão relevantes quanto estas últimas — o que significa que nela, como
na fotografia, tudo é figura — por isso é exacto dizer que o filme cria uma nova
realidade e pede para ser percepcionado em si mesmo: não vemos um rosto como
um grande plano cinematográfico o vê, não vemos a profundidade de campo de um
corredor ou de um salão como uma lente a vê, não vemos uma paisagem como um
enquadramento ou uma panorâmica cinematográfica a vê. Nem os cada vez mais
frequentes filmes 3D apagam esta diferença, antes a acentuam. A tendência
frequente para antropomorfizar o olhar da câmara, tornando-o numa extensão do
nosso olhar natural, falha inteiramente esta diferença constitutiva da nova realidade
que o dispositivo cinematográfico gera e nos dá a ver.
Como escreveu Paul Klee na abertura do seu texto «A Confissão Criadora» (1920),
rejeitando a prevalência da mimesis: “A arte não reproduz o visível, torna visível.”
Ao dar a ver essa sua nova realidade, torna-nos também em seus videntes, por vezes
em vedores. O espectador de cinema vê no filme aquilo que a câmara captou (o
mundo e os outros tornados uma nova realidade) e vê-se a si próprio a ver o olhar da
câmara que cria essa nova realidade, que se acrescenta às outras. No olhar do
espectador cruzam-se e coalescem, como vimos atrás, diversos olhares: o seu próprio
olhar diante do que o filme mostra e que o torna vedor, o seu próprio olhar pasmado
perante o dispositivo cinemático, o olhar intencional do realizador representado pelo
olhar da câmara, os olhares intra-diegéticos no seio do enquadramento, plano ou
cena. E a experiência do espectador é sempre imersiva, mesmo que o filme mostre
brechtianamente o dispositivo cinematográfico, na convicção de que, fazendo-o, se
“distancia” desse espectador.
O “quiasma” de A esta situação de sobreposição simultânea das percepções chamou Merleau-Ponty
Merleau-Ponty quiasma: “É preciso que aquele que vê não seja ele próprio estrangeiro ao mundo
que vê”. Mas isso não significa que, se o filme não tivesse sido feito, veríamos o que
ele vê na realidade do mundo onde vivemos imersos: o filme torna visível o que nos
era invisível na realidade desse mundo, de um modo que implica a reversibilidade
95
do tornado visível e do vidente, nos termos gregos formulados por Goethe: “ce qui
est au-dedans est aussi au-dehors” (o que está dentro também está fora), citado por
Merleau-Ponty (1966: 106). Também Kant (o da Crítica da faculdade de julgar, §
49) é por ele lateralmente invocado a este respeito:
“Kant diz com profundidade que, no conhecimento, a imaginação trabalha em proveito
do entendimento, enquanto na arte o entendimento trabalha em proveito da
imaginação” (1945).
É a seguinte a passagem de Kant invocada por Merleau-Ponty, passagem que de
algum modo se distancia da “revelação” grega e que abre um par de páginas sobre o
que seja o génio, estendendo-se até ao fim do § 50:
“As faculdades da alma (...) cuja união, numa certa relação, constitui o génio, são a
imaginação e o entendimento. [Mas] enquanto no uso da imaginação com vista ao
conhecimento, a imaginação se submete ao constrangimento do entendimento (...),
numa perspectiva estética ela é livre, a fim de fornecer (...) uma matéria rica e não
elaborada para o entendimento (...)”.
Ora, a situação de quiasma perceptivo identificada por Merleau-Ponty suscita aquilo
a que podemos chamar a “experiência interior” do espectador, que merece, sem
prejuízo do que a psicologia dela diz, ser entendida, extremando a sua definição, no
sentido batailliano (Bataille, 1981: 15), tendo embora em conta que este último
reflectiu num território eminentemente paradoxal, desejando uma mística sem
mística, uma crença sem crença, uma transcendência sem transcendência:
“Chamo experiência interior ao que o hábito chama experiência mística: estados de
êxtase, de maravilhamento, de emoção meditada. Mas penso menos na experiência
confessional, sua referência até hoje, do que numa experiência nua, livre de amarras
ou de laços seja a que confissão fôr. É por isso que não gosto da palavra mística”.
É preciso situar e contextualizar a reflexão de Merleau-Ponty (contemporânea da de
Bazin) para entendermos a sua dimensão e inscrição epocal. Escrevendo no fim da
segunda guerra mundial, próximo das ideias estéticas de Malraux, da
fenomenologia, da Gestalt e de Sartre como porta-voz da nova filosofia existencial,
diz ele, reformulando por sua vez a estabilidade da dicotomia sujeito-objecto — que
mais tarde será abordada, como vimos, por Deleuze — e propondo em vez dela a
“inerência” de um e outro:
“Esta psicologia e as filosofias contemporâneas têm em comum o carácter de nos
apresentarem, não, como as filosofias clássicas, o espírito e o mundo, cada consciência
e os outros, mas a consciência lançada no mundo, submetida ao olhar dos outros e
aprendendo, com eles, o que é. Boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial
consiste em espantarmo-nos com essa inerência do eu ao mundo e do eu aos outros,
em descrevermos esse paradoxo e essa confusão, em fazer ver a ligação entre o sujeito
e o mundo, o sujeito e os outros, em vez de a explicar, como faziam os clássicos,
recorrendo ao espírito absoluto”.
Merleau-Ponty sublinhava que não compreendemos um filme pelo pensamento — “Um filme não
daí a sua referência a Kant — antes acedemos a ele pela percepção que ele nos impõe: se pensa, é
percepção, acrescente-se, articulada com a vida sensitiva e sensual, os afectos, as percepcionado”
emoções e os sentimentos — como no que seria mais tarde o programa do cinéma-
vérité e das etnoficções, como veremos adiante. Exigindo-nos um acto de
inteligência perceptiva, o filme convida-nos a partilhar um πάθος (pathos: paixão,
excesso, sofrimento) — o seu πάθος. Pouco antes escrevera ele sobre o que o cinema
pode mostrar, insistindo sobre o seu olhar exterior, sobre a importância das
condutas das dramatis personæ (o que evoca irresistivelmente a prevalência das
acções no Aristóteles da Poética) e rejeitando a ideia de que o sentido dos filmes é
acessível por via de operações do pensamento racional:
“...É pela percepção que podemos entender a significação do cinema: um filme não se
pensa, é percepcionado. Por isso a expressão do homem pode ser, no cinema, tão
interpeladora: o cinema não nos dá, como o romance fez durante tanto tempo, o
pensamento dos homens, dá-nos a sua conduta ou comportamento. (...) Sentiremos
muito melhor a [sua] vertigem se a virmos do exterior (...). Para o cinema como para a
psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio, são condutas.”
96
Quiasma em vez de Para Outrem: isto significa que não há apenas rivalidade eu-
outrem, mas co-funcionamento. Funcionamos como um corpo único
O quiasma não é apenas troca eu outrem (as mensagens que ele recebe é a mim que
chegam), é também troca de mim e do mundo, do corpo fenomenal e do corpo
‘objectivo’, daquele que percebe [percepciona] e do que é percebido [percepcionado]:
o que começa como coisa acaba como consciência da coisa e o que começa como ‘estado
de consciência’ acaba como coisa.
Este duplo quiasma, damo-nos conta dele pelo gume do Para Si e pelo gume do Em Si.
É precisa uma relação com o Ser que se faça do interior do Ser — É no fundo o que
Sartre procurava. Mas como para ele não há interior senão o eu e todo o outro é
exterioridade, o Ser mantém-se para ele por encetar (inantamé) devido à
descompressão que nele ocorre, mantém-se positividade pura, objecto, e o Para Si não
participa dele senão por uma espécie de loucura—”
Projecções, identificações
OBSERVEMOS AGORA A RECEPÇÃO, pelo espectador, do cinema e dos seus filmes. Eles
propõem-lhe, através da encenação das suas dramatis personæ (ou das personagens
“reais” do documentário), um jogo de identificação-projecção herdeiro do “estádio
do espelho” de Lacan (que funda, exactamente, o nascimento do espectador), da
projecção narcísica, do desejo mimético (Girard, 1961, 1963) e, eventualmente, dos
mecanismos básicos da catarse aristotélica. Mas, para além da identificação do
espectador com determinada personagem — a figura mais comum deste mecanismo
— já em 1956 se propunha (Morin, 1956: 110) que as projecções-identificações são,
no cinema, bem mais polimorfas e multímodas, levando o espectador a percepcionar
tanto o semelhante como o estranho como seus duplos, e estendendo-se este
mecanismo aos espaços, às situações e à acção do filme. A projecção-identificação Dispersão
seria, assim, muito mais diversa e contraditória do que a resultante da afinidade identificatória
electiva entre o espectador e uma determinada personagem com quem ele se
identifica. De facto, o fenómeno da identificação-projecção do espectador com o que
o filme mostra tem sido apreciado (Aumont et al., loc. cit.: 187-202) como uma
transferência mais multímoda do que a simples identificação com determinada
personagem, e sobretudo em três aspectos mais relevantes:
Em primeiro lugar com base no célebre exemplo de Hitchcock: uma personagem
entra no quarto de outra e vasculha as suas gavetas, enquanto esta outra começa a
subir as escadas em direcção ao quarto; mesmo que a primeira seja um vilão, o
espectador tenderá a projectar-se na sua situação, desejando-lhe que se apresse para
não ser surpreendido pela chegada iminente da segunda. Ou seja, o espectador tende
a identificar-se difusamente com as diversas personagens e as situações que elas
vivem, mesmo de modo contraditório, “vestindo as suas diversas peles” e
projectando-se quiasmaticamente em cada uma das situações.
Em segundo lugar com base na imediata captação da atenção do espectador por um
filme que se começa a ver a meio (um fenómeno que se banalisou com a televisão):
embora desconheça o que precede a cena em que mergulhou, o espectador percebe
quase automaticamente o que está a ver, identificando espaços e décors, a atmosfera
da cena e a acção das personagens (o que dizem ou fazem), porque não é estranho ao
que está a ver; como disse Lacan: “se ocupamos de imediato o nosso lugar no jogo
das diversas intersubjectividades, é porque nos sentimos em casa seja onde for”.
Em terceiro lugar com base na identificação que o espectador sente com a
multiplicidade dos pontos de vista (p.d.v.) oferecidos pelo filme, por exemplo numa
découpage clássica, onde cada plano representa um novo p.d.v., facto que recorda a
semelhança proposta por Münsterberg entre o filme e o processo mental do
espectador. Estes três exemplos sugerem com clareza a pluralidade das
identificações que entram em jogo no visionamento do filme, mesmo se no conjunto
dessas identificações existe alguma hierarquia (elas coexistem em diferentes graus
de relevância), o que permite talvez falar de primeira, segunda ou terceira
identificação.
Uma outra abordagem aplicada destes mesmos mecanismos polimorfos de
projecção-identificação do espectador de cinema com as componentes espaciais e o
role-playing das dramatis personæ em determinada situação é, por exemplo, a de
Nick Browne (2009: 125-140) na sua análise da cena “uma refeição na estação de
98
Deleuze e Mendeleev
DESVIEMO-NOS AGORA para um domínio tecnicamente mais preciso, abordando
instrumentos básicos do cinema: no segundo capítulo do seu L’image-mouvement,
depois de ter estabelecido a ligação entre o movimento e a duração bergsoniana e o
Quadro, movimento e a duração nos filmes, Deleuze refere-se ao quadro e ao plano, ao
enquadramento, enquadramento e à découpage como conceitos operativos da construção fílmica,
découpage antes de se ocupar de outro, a montagem. Uma micro-colagem de citações permite-
nos seguir o seu pensamento nesta matéria, tendo os leitores em consideração que,
em português, a palavra “quadro” (cadre, moldura) remete sobretudo para a pintura,
e a palavra “enquadramento” (cadrage), essa sim, é usada no léxico técnico da
fotografia e do cinema, designando o acto de “enquadrar”, literalmente “pôr no
quadro”. Deleuze usa ali os dois termos como quase-sinónimos, referindo-os ambos
ao acto de organizar o visível num campo visual limitado:
“Chama-se quadro à determinação de um sistema (...) relativamente fechado, que
inclui tudo o que está presente na imagem, décors, personagens, acessórios. (...) Os
[seus] elementos são, ora em grande número, ora em número restrito. O quadro é
inseparável de duas tendências, para a saturação ou a rarefacção” (p. 23). (...) “Portas,
janelas, guichets, lucarnas, vidros de carro, espelhos, são enquadramentos no
enquadramento. Grandes autores usam este ou aquele destes quadros segundos,
terceiros, etc.”(p. 26). “O quadro depende de um ângulo de enquadramento — o
conjunto fechado é um sistema óptico que reenvia para um p.d.v. sobre o conjunto das
partes” (p. 27). “Enquadrar é a arte de escolher as partes de todas as espécies que
entram num conjunto. Este conjunto é fechado, relativamente e artificialmente
fechado” (p. 31) [e determina sempre] “um fora-de-campo, ora em forma de um
conjunto mais vasto que o prolonga, ora em forma de um todo que o integra”(p. 32).
Deleuze apoia a sua reflexão sobre o quadro e o enquadramento, na sua articulação
com a profundidade de campo, em trabalhos relativos à pintura, especialmente no
101
Desde a reflexão de Deleuze sobre o cinema, a renovada atenção dada aos longos
mergulhos perceptivos que as suas imagens podem oferecer, na sua relação com o
tempo e com a duração (aliada a travellings, panorâmicas, à profundidade de campo
e ao plano-sequência, como nos filmes de Mizogushi, Tarkovski ou Béla Tarr), volta
a identificá-lo como dispositivo eminentemente bergsoniano e desvaloriza a
prevalência das suas performances narrativas clássicas. Se o que o cinema tem de
melhor para nos oferecer é a materialização, em “imagens-cristal” ou em “imagens-
e-sons-cristal”, do “tempo” deleuziano (a passagem do espectador a um novo regime
de percepção da duração, i. e., a percepção da duração e do tempo dilatados em
registos que, como vimos, estão para além do que a percepção humana capta na vida
banal), então, e por exemplo, a ideia de clôture ou de closure desloca-se da
narratividade para a experiência imagética presente, desnarrativizada e “aberta” no
sentido de Eco. Um certo sentido da completude emigra para o interior do filme e
dissemina-se pelas diversas unidades que o compõem (plano, plano-sequência,
sequência de planos) e pelos movimentos de câmara, passando a interessar tanto a
cada um deles quanto ao conjunto da obra entendido como “todo que é mais do que
a soma das partes”. Do ponto de vista narrativo, o fim dos fins acarreta o fim dos
meios e o fim dos princípios, porque o que está em causa não é apenas a redefinição
da closure da obra, mas a reorganização da totalidade dos seus conteúdos e formas,
a maior autonomia semântica de cada uma das suas partes, componentes e
fragmentos.
Imagem fixa, imagem em movimento: uma “ontologia”, duas
recepções
NO ARCO QUE VAI de Benjamin a Sontag e a Barthes, têm sido muito glosadas, em
torno da ideia de contemplação, as diferenças na recepção da fotografia e do cinema
— vale a pena recordar que só nos anos 60 - 70 do séc. XX a fotografia passou a ser
pensada e feita com vista à sua exposicionalidade galerística e museológica, para ser
pendurada em paredes, como Sontag descrevera em 1977 e Michael Fried de novo
referiu (Fried, 2008: 335-337). Vimos que a indicialidade da fotografia e do cinema
é a mesma, e que nesta medida podemos falar das imagens foto-cinematográficas
como um todo. Significa isto que a sua natureza “ontológica” é idêntica, mas não a
sua recepção?
Matéria-forma, “A distinção [aristotélica] entre matéria ['υλη] e forma [µορφή] é por excelência a
forma-conteúdo, avenida onde a filosofia ocidental se move desde há séculos. A distinção entre forma e
falsas dicotomias conteúdo passa por ser o que há de mais óbvio” (230). [Ora,] “a µορφή é dar a ver, mais
precisamente sustentar-se no que se dá a ver e compôr-se aí; numa palavra: é a
composição que se instala no rosto [das coisas], Gestellung in das Aussehen” (234).
coerentes umas com as outras, faz figura de paradigma da teoria do cinema que não
se concebe senão em simbiose com a história deste e com a análise de filmes e da
obra de cineastas, antecipando em meio século a opção de ocupar o lugar intermédio
entre a “grande” e a “pequena” teoria, como recentemente se veio a caricaturizar
(Bordwell e Carroll, 1996; Rodowick, 2006).
Fazendo, em «L’évolution du langage cinématographique» (1985: 63-80), o balanço
do cinema mudo, da primeira década do sonoro e das tendências que se afirmaram
nos anos 40, Bazin sugere que o som parece não ter provocado uma revolução
estética nos filmes, mantendo-se na passagem do mudo para o sonoro a relativa
diversidade das práticas de découpage, mais configuradoras do que a emergência da
banda sonora. Interessa-lhe mais o reconhecimento de algumas afinidades entre
cineastas de 1925, de 1935 e da década 1940-1950 (por exemplo entre Stroheim e
Jean Renoir ou Orson Welles, Dreyer e Bresson). Ou seja: mais do que a oposição
entre mudo e sonoro, interessa-lhe analisar a persistência de valores que transitaram
de um para outro, tendo como telão de fundo as divergências quanto ao modo de
conceber e de fazer o cinema e os seus filmes. Os temas geradores da discussão são
a découpage, a montagem, a profundidade de campo e a duração dos planos. Bazin
pretende distinguir, no período em análise, entre os realizadores que acreditam na
imagem e os que acreditam na realidade.
Bazin dispensar-se-á de definir o que seja a realidade, ou porque dá o conceito como
adquirido pelo bom-senso e pela sabedoria das nações, ou porque deixa à filosofia a
sua discussão, mas explica o que entende por imagem, num parágrafo em que a ideia
de representação volta a ser dominante, como se a questão da re-apresentação e da
indicialidade, já por ele discutida, regressasse mansamente a um segundo plano, ou
autorizasse mesmo o seu re-apagamento, em nome de outra causa maior:
“Por imagem entendo muito genericamente tudo o que pode acrescentar à coisa
representada a sua representação no ecrã. Este acrescento é complexo, mas podemos
entendê-lo essencialmente à luz de dois grupos de factos: a plástica da imagem e os
meios da montagem (a qual não é senão a organização das imagens no tempo). Na
plástica incluímos o estilo do décor e da maquilhagem, em certa medida o desempenho
dos actores, a que juntam naturalmente a iluminação e enfim o enquadramento, que
consumam a composição. Sobre a montagem, saída principalmente, como se sabe, das
obras-primas de Griffith, escreveu André Malraux na Psychologie du cinéma que ela
constituía o nascimento do filme como arte: é ela que o distingue de facto da simples
fotografia animada e cria, por fim, uma linguagem”.
E o que faz a montagem? Fragmentando e colando planos, ela tanto pode ter como
objectivo principal a sua própria invisibilidade, como nos filmes americanos
“clássicos”, convicta de que o seu saber e as suas normas estão natural e estritamente
ao serviço da lógica material ou dramática da cena, como pode tornar-se “paralela”
(Griffith), “acelerada” (Gance em A roda) ou “de atracção” (Eisenstein), assente na
metáfora ou na associação de ideias. Olhando para a “plástica” da imagem e para a
montagem assim descritas, Bazin conclui que, nos últimos anos do cinema mudo, o
cinema já dispunha de todo o arsenal de meios que lhe permitiam afirmar-se como
um media (termo que ele não usa) consolidado. Nos anos seguintes, os soviéticos
extremarão as potencialidades da montagem e os alemães as da plástica da imagem,
como se o expressionismo da montagem e da imagem definissem “o essencial da arte
cinematográfica”. Mas, acrescentará Bazin mais adiante, a montagem das estátuas
dos leões de pedra de Eisenstein, para sugerir que o povo está a erguer-se como o
animal, já seria impensável em 1932, e a mistura do cacarejar de galinhas no
galinheiro com a conversa entre mulheres, feita por Lang em 1935, já então chocava,
porque totalmente heterógena ao resto do filme.
Ora, lembra Bazin, desde o mudo que cineastas como Stroheim, Murnau ou Flaherty Mudos quase
faziam filmes onde a montagem quase não tinha lugar. São exemplos que evidenciam sem montagem
a existência de uma arte cinematográfica exactamente contrária aos expressionismos
da imagem e da montagem. Estes cineastas não procuravam que as suas imagens
acrescentassem nada à realidade, mas sim que a revelassem (subitamente, portanto,
Bazin afasta-se da sua anterior definição de imagem, acima citada). No episódio da
caça à foca em Nanook of the North, de Flaherty, filmado num só plano, a duração
da espera é mais importante do que a eficácia sintética de qualquer montagem, e
106
Bazin crê que essa duração é muito mais “emocionante” do que qualquer montagem
de atracção. Com Murnau, que também pouca relevância atribui à montagem, é
menos o tempo do que o espaço (“a realidade do espaço dramático”) o valor
determinante, em filmes como Nosferatu ou Aurora. Diz Bazin, sublinhando o
“realismo rigoroso” de Murnau e negando que este faça expressionismo:
“A composição das suas imagens não é, de todo, pictural, nada acrescentando à
realidade nem a deformando, antes esforçando-se por mostrar estruturas profundas e
relações pré-existentes que se tornam constitutivos do drama”.
Quanto a Stroheim, campeão do filme que não depende dos expressionismos da
imagem nem da montagem, a aposta da sua mise-en-scène, diz Bazin, consiste em...
“... olhar o mundo de suficientemente perto e com a insistência bastante para que ele
acabe por revelar a sua crueldade e fealdade. Facilmente imaginaríamos (...) um filme
de Stroheim composto por um único plano (...)”.
Concluindo a sua revisitação do cinema mudo, Bazin insiste, assim, em que não foi
o sonoro que produziu uma clivagem significativa entre duas maneiras de fazer
filmes, mas sim concepções do cinema e dos seus filmes que já pré-existiam no mudo
e que continuaram a marcá-los por mais de trinta anos.
ser guiado pela montagem analítica, antes sendo obrigado a fazer escolhas para que
a imagem adquira sentido (argumento a favor do espectador “activo”); deste modo,
a imagem perde univocidade semântica e ganha “ambiguidade”, e a trama do próprio
filme, como em Citizen Kane, torna-se mais “incerta”, deixando de ser óbvia a sua
“chave espiritual ou de interpretação” (argumento “metafísico”). No seu texto de
1948 sobre a «Escola italiana...» (1985: loc. cit.), Bazin reforça esta argumentação,
explicando que Welles “devolveu ao real a continuidade”, que lhe tinha sido roubada
pela découpage clássica:
“Orson Welles devolveu à ilusão cinematográfica uma qualidade fundamental do real:
a sua continuidade. A découpage clássica, vinda de Griffith, decompunha a realidade
em planos sucessivos que não eram senão uma série de pontos de vista, lógicos ou
subjectivos, sobre o acontecimento. (...) Toda a revolução introduzida por Welles parte
do uso sistemático de uma profundidade de campo inusitada. (...) Já não é a découpage
que escolhe por nós a coisa a ver, conferindo-lhe uma significação a priori, é o espírito
do espectador que fica obrigado a discernir, nessa espécie de paralelipípedo de
realidade contínua que tem o ecrã por secção, o espectro dramático próprio da cena.
(...) Graças à profundidade de campo da objectiva, Welles devolveu à realidade a sua
continuidade sensível” (271).
É, assim, uma “linhagem” cinematográfica que ao mesmo tempo se afirma e se
reconstitui — a que Bazin considerara “a mais fecunda” do cinema mudo, com
Stroheim, Murnau ou Flaherty — entretanto “perdida de vista” ou “eclipsada” entre
1930 e 1940. É curioso como é tão evidente, em Bazin, a ideia de que a história do
Solavancos, cinema se faz de solavancos, de recuperações ou regressos a conceitos e modos de
regressos, fazer que, tornados minoritários, virão a ser repescados e reutilizados como
reabilitações
inspirações salvíficas (recorde-se a este respeito a argumentação de Pasolini a favor
do regresso a um Cinema de Poesia contra a hegemonia do Cinema de Prosa).
Retomando o fio da sua ligação às opções neo-realistas, dirá Bazin, aproximando o
Visconti de A terra treme do Welles de Citizen Kane e de Magnificent Ambersons:
“O mais esteta dos neo-realistas, Luchino Visconti, revelava de resto, tão claramente
como Welles, o projecto fundamental da sua arte em A terra treme, filme quase
exclusivamente composto por planos-sequência onde a vontade de abarcar a totalidade
do acontecimento se traduz na profundidade de campo e em intermináveis
panorâmicas”.
Para o autor de Qu’est ce que le cinéma?, essa linhagem, que ele designa por
“tendência”, significa o relançamento do “realismo” nos filmes — entendido como
um conjunto de procedimentos que respeitam mais o “real” — e interessa
particularmente a narrativa fílmica, que se metamorfoseia, revendo o seu habitus e
conceito. Eis os termos em que Bazin se exprime a este respeito, e onde voltamos a
encontrar uma alusão à “escrita” cinematográfica e à caméra stylo de Astruc,
anunciando o surgimento do cinéma d’auteur:
“[A narrativa] volta a ser capaz de integrar o tempo real das coisas, a duração do
acontecimento, que a découpage clássica substituía insidiosamente por um tempo
intelectual e abstracto. Mas, longe de eliminar definitivamente as conquistas da
montagem, [esta tendência] dá-lhe, pelo contrário, uma relatividade e um sentido. (...)
Por outras palavras: no tempo do mudo, a montagem evocava o que o realizador queria
dizer; em 1938, a montagem descrevia; hoje, pode dizer-se que o realizador escreve
directamente em cinema. A imagem — a sua estrutura plástica, a sua organização no
tempo — por se apoiar em maior realismo, dispõe, assim, de muitos mais meios para
inflectir, para modificar a partir de dentro a realidade. O cineasta já não é apenas
concorrente do pintor e do dramaturgo, torna-se um igual do romancista”.
explicando-se sobre a que coisas e a que φύσις se regressa, as mais das vezes em
situações ditas “extremas”, Deleuze se socorra de uma narrativa ficcional de Dickens
(O amigo comum, III, cap. 3) que, segundo ele, diz o que há de mais fundamental
sobre este movimento:
“Um canalha (...) é trazido a morrer, e (...) aqueles que dele cuidam manifestam uma
espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo.
Toda a gente se atém a salvá-lo, ao ponto de no mais profundo do seu coma o homem
vil sentir qualquer coisa de doce a penetrá-lo. Mas, à medida que ele volta à vida, os
Dickens e a vida
seus salvadores tornam-se mais frios, e ele reencontra toda a sua grosseria, a sua
impessoal maldade. Entre a sua vida e a sua morte há um momento que mais não é que uma vida
jogando com a morte. A vida do indivíduo dá lugar a uma vida impessoal, (...) singular,
que solta um puro acontecimento liberto dos acidentes da vida interior e exterior, isto
é, da subjectividade e da objectividade do que acontece. Homo tantum, do qual todos
se compadecem e que atinge uma espécie de beatitude.”
Este Dickens invocado por Deleuze está próximo das “singularidades quaisquer” de
Giorgio Agamben (v., infra, Facialidades, fotografia, cinema, cap. 15, Vol. II). Se o
transformarmos em livro de horas e breviário, novos filmes voltarão a mostrar-nos
a irredutível força da vida singular como parte do real que queremos ver revelado, e
compensaremos melhor a deriva do cinema maioritário, que se dilui no muito mais
vasto mundo do audiovisual e do multimédia, tornando-se nele, tantas vezes,
irrelevante ou indistinto.
Nas conclusões do seu Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss escreveu que foi preciso
muito tempo para se reconhecerem direitos de propriedade sobre a obra artística, e
que as sociedades modernas anseiam pela entrada das obras no domínio público e
são relutantes na concessão de privilégios aos herdeiros do artista. Também os filmes
são dádivas de autor e exprimem o que Mauss ali designou por “prazer da despesa
artística generosa”, sempre holística, por vezes sumptuária: eles fazem parte do
regime do potlatcht, da festa colectiva e da homeostase entre “tribos” e famílias
humanas. ¢
No Sex Last Night, de Sophie Calle e Gregory Shepard (1995) (fotograma reenquadrado do filme)..
Jonas Mekas, Lost, Lost, Lost , 1976, 180’ (The Diary Film Project) (fotogramas reenquadrados do filme)..
que não é lixo fílmico e que inclui citações de clássicos, de cinema de animação, de
news reels e de fotografia e pintura, o trabalho de Godard nas Histoire(s) du Cinéma
tem algo a ver com a inspiração de base do found footage, transformado num filme-
ensaio suportado pela voice over do autor, que vai fazendo avançar a série de
enunciações declaratórias que estrutura toda a obra.
A experimentação cinematográfica segue hoje por diversos caminhos de que por
vezes o mainstream e o cinema independente se reapropriam: em 1999, Mick Figgis
fez em Time Code uma experiência de split screen (o ecrã divide-se em quatro),
filmando em tempo real e sem montagem, com câmaras digitais, quatro segmentos
narrativos diferentes que são visionados simultaneamente, com misturas das
respectivas bandas sonoras — a conversão, para filme projectável em sala, de
experiências de ecrãs simultâneos conhecidas das instalações baseadas em video art.
A experiência evoca indirectamente as colagens picturais e as do cinema primitivo
do início do séc. XX, bem como a câmara à mão de Mekas, e herda da video art
socializada pelo portapak. ¢
NUM OUTRO PERFIL contemporâneo do pensamento sobre o cinema, três curtos textos
de 2002 e 2003, publicados pela revista Cahiers du Cinéma, estão na origem da
reflexão que a partir deles se desenvolveu sobre o “cinema do fluxo” ou a “estética do
fluxo”, e que recolocam, a seu modo, a questão de saber que coisa é o filme. São eles
«Plan contre flux», de Stéphane Bouquet (nº 566 de Março 2002, 46-47); «C’est
quoi ce plan?», de Jean-Marc Lalanne (nº 569 de Junho 2002, 26-27); e «C’est quoi
ce plan (la suite)?» de Olivier Joyard (nº 580 de Junho 2003, 26-27). O primeiro
apresentava-se como “a introdução a um folhetim teórico trimestral em torno de
algumas questões estéticas de hoje”, o segundo e o terceiro são comentários aos
festivais de Cannes daqueles dois anos. Os títulos do segundo e terceiro texto
glosavam o de Pascal Bonitzer, «Qu’est-ce qu’un plan», in Le champ aveugle. Creio
ser vantajoso incluir numa curta meditação sobre estes textos as noções de “quadro”
e de enquadramento, dada a sua natureza seminal ao longo de grande parte da
história do cinema.
Como se verá, e apesar da mudança de idiolecto que o informa e lhe dá pertinência
epocal, neste recente desenvolvimento da reflexão sobre o cinema vêm rebater-se
todas as questões históricas de Bazin sobre o “realismo”, a duração e a montagem,
bem como a “imagem-tempo” e o “cristal-tempo” de Deleuze. É, também, uma
discussão que pede para ser aproximada do terreno dos estudos interartes, dada a
relação que, de novo, estabelece entre cinema e pintura, cinema e fotografia, cinema
e artes plásticas globalmente entendidas.
Apesar da mudança dos tempos e das formas, subsistem hoje cineastas para quem o
enquadramento é ainda (como na tradição pictural), o primeiro princípio
organizador do olhar do filme. Herdam da mais antiga tradição da academia e, se
vivessem no séc. XVII, juntar-se-iam talvez a Poussin contra Caravaggio (Bouquet,
2002: 47), o primeiro defendendo o desenho e as “belas ideias” contra a
voluptuosidade da cor e o menosprezo do desenho pelo segundo — querela que, na
pintura, teve uma enorme posteridade. A relevância do desenho viria, no último
quartel do século seguinte, a ser significativamente reiterada pelo Kant da Crítica da
faculdade de julgar, § 53, nos seguintes termos:
“Entre as artes figurativas eu daria preferência à pintura; em parte porque, como arte
do desenho, serve de fundamento a todas as artes figurativas; em parte porque ela pode
penetrar mais profundamente na região das Ideias e alargar, em conformidade com
esta, o campo da intuição, bem mais do que é permitido às outras artes”.
114
Joyard compara sobretudo os long tracking shots de Elephant (Gus Van Sant,
2003), em que são longamente filmados adolescentes americanos passeando nos
corredores do seu liceu, e os de Shara (Naomi Kawase, mesmo ano), atrás de dois
miúdos primeiro, de um casal de adolescentes depois, no labirinto das ruelas de uma
pequena cidade japonesa, para dizer que eles já nada têm a ver com a technique de
filature (técnica de perseguição) ensaiada pelos irmãos Dardenne em Rosetta (1999)
e O filho (2002), de câmara ao ombro ou sobre “dolly” atrás de um actor, atentos ao
mais mínimo movimento da nuca deste: em Van Sant ou em Kawase, o plano, em Planos sem
vez de acabar, bifurca, ou porque um novo adolescente cruza o campo e passa a ser princípio
seguido pela câmara, ou porque algo ocorreu — por exemplo o vento trouxe chuva — nem fim
e a câmara “distrai-se” do que filmava e muda de objecto sem interrupção do plano.
O tempo fílmico altera-se decerto, comunicando em primeiro lugar a dilatação de
um presente que amplia a percepção da vida banal. Mas tais planos e suas eventuais
bifurcações não perdem a relação com a narrativa, porque contêm eles próprios, por
vezes, as suas elipses internas. Antes, Bouquet (loc. cit.), tentando inventar uma
designação para esta “nova” maneira de fazer cinema, considerava, ao contrário do
que Joyard sugeriria mais tarde, que ela rejeita a concepção clássica e moderna do
plano, porque não quer ver senão a passagem infinita do mundo e das coisas diante
da câmara, e que o seu modelo — sublinhe-se a apreciação claramente depreciativa
— é o do reality show televisivo, que só produz espectadores passivos, solitários e
narcísicos:
“Poderíamos chamar-lhe fluxo — por ser um princípio de desfile das coisas
permanente e infinito — e opô-lo ao plano, série ordenada de composições ordenadas
(ou sabiamente desordenadas). Loft Story [nome do reality show da Endemol
adaptado, no Québec e em França, do original holandês Big Brother] seria uma
representação típica e ideal deste princípio do fluxo, onde nada mais haveria para ver
senão a pura passagem das imagens. Não se pode censurar Loft Story por não produzir
pensamento, visto que a emissão pertence (teme-se que sem o saber) a um regime de
imagens que proclama a abolição do discurso em proveito de um real interessante
porque não organizado, não discursivo”.
Nesta versão, repitamos a pergunta: que coisa é o filme? Longe da clássica O pesadelo
arquitectura, voluntariosamente projectada pelos cineastas do enquadramento e do de Pasolini
plano — construtivistas que eram, apostados em gerar sentido a partir dos
dispositivos da sua τέχνη —, os cineastas “do fluxo” regressariam ao tempo de
Leucipo ou Demócrito, para quem o mundo flui e varia constante e infinitamente,
sem princípio nem fim, bastando filmá-lo, sem interrupção, tal como ele corre ou
decorre diante de nós. De algum modo, tal opção exprime o regresso ao pesadelo de
Pasolini: um plano-sequência infinito que gravaria em tempo real o fluir do mundo
diante da câmara, numa daquelas alucinações borgesianas em que o mapa tanto se
expande que se sobrepõe ao território, já dele não se distinguindo. O plano fixo, que
116
“SÓ O CHOQUE e o enigma que a obra de arte representa face às imagens e aos sons
banalizados, pré-digeridos do consumo quotidiano, são realmente formadores”,
escreveu Alain Bergala em L’hypothèse cinéma. As relações entre o cinema e a
televisão, por exemplo, são complexas devido, ao mesmo tempo, às suas antinomias
e porosidades. As cinefilias correntes, mesmo se e quando consideram existir
sobretudo um continuum entre um e outra, tendem a preservar o cinema como
“aristocracia” do audiovisual. No final dos anos 80 e na década seguinte, produtores
de ficção para televisão adoptaram padrões de Quality TV que a aproximavam do art
cinema: nos EUA, séries como Twin Peaks (ABC) e The Sopranos (HBO), depois
como Empire Falls (HBO, 2005), outras, levaram para a televisão enredos
complexos, filmados com meios mais cinematográficos do que televisivos. Em
Inglaterra, documentários feitos por produtores externos para a BBC adoptaram
padrões de qualidade equivalentes. Hoje, porém, a renúncia ao cinema volta,
118
Não é por acaso que os media informativos audiovisiais — a começar pelas televisões
generalistas — catalogam o cinema como entertainment: ele é por elas destinado a
ocupar a parte da grelha de programas mais geneticamente escapista e evasiva — e é
verdade que parte do cinema que ali vemos é concebido como entretenimento
televisivo: cada vez mais produtoras externas fazem telefilmes adequado às
gramátivas e convenções do media. As televisões generalistas abrem, por vezes,
excepções, criando, a desoras, áreas de “cineclube” onde o cinema adquire uma nova
expressão de objecto museológico e satisfaz o gosto de um nicho.
Televisão e cinema main stream são o último reduto do story telling convencional.
Mas o cinema que adopta e replica a “gramática” da televisão equivoca-se sobre a sua
própria natureza e ipseidade como arte: só contribuirá para a proliferação de
poéticas que mimam as representações, ideologicamente controladas, da realidade
acontecimental e do entertainment que a acompanha. Mesmo para o ecléctico Régis
Debray (1992: 422-3, 432-3), para quem o cinema, na era da televisão e pós-
televisiva, é em grande parte uma “coisa do passado” como as artes virtualmente
foram para Hegel, cinema e televisão são duelistas que, na era da difusão de imagens
que é a nossa, não podem, nem fundir-se, nem ignorar-se:
“A obra de cinema comunica-se, mas não é feita, como o produto televisivo, para
comunicar. O operador de uma cadeia televisiva vende um público a publicitários (...).
O produtor cinematográfico procura um público para um autor (...). Do mesmo modo
que a fotografia libertou a pintura do dever de semelhança, a televisão libertou o
cinema dos seus deveres documentais — dos ‘assuntos de sociedade’ e do dia-a-dia
social. (...) [Mas] a televisão transporta igualmente o cinema, que também passa nela,
depois de décadas em que o cinema a hipnotizou (...). Aqui e ali, cinema e televisão
formam um casal, infernal ou burguês. (...) Porém, sejam quais forem as mestiçagens
e os tandems resultantes desse casal (Jean Renoir e Rossellini trabalharam para o
pequeno ecrã, Santelli e Kassovitz não desonrariam o grande), cinema e televisão não
têm a mesma genealogia. Esta vem da história das telecomunicações, aquele vem da
história das artes. (...) Um bom filme perturba, uma boa série interessa. (...) A nossa
simpatia pode ir para o herói televisivo, mas o filme, como o romance, suscitam
empatia. Um filme prega-nos, silenciosos, ao cadeirão. Diante da televisão passeamos
e conversamos” (tr. adaptada, J. M. M.).
A televisão, tinha antes dito Debray, é um medium onde o consenso e o pronome
reflexo “se” imperam; o cinema é sobretudo uma coisa de autor, a afirmação algo
autoritária da multidão de egos que o fabricam. O facto de boa parte do cinema
sempre ter sido produzida por uma indústria não altera a divergência recorrente
entre os dois media. O cinema foi, maioritariamente, uma arte cara, em cuja criação
participaram equipas técnicas pesadas, que se tornaram mais leves a partir da
nouvelle vague e hoje se aligeiram ainda mais, na era da convergência digital —
Comolli está entre os que defendem um cinema pobre. Mas o cinema foi
maioritariamente caro porque tal apparatus era necessário à criação dos seus
120
Dito isto, é hoje praticamente impensável que o cinema e os seus filmes subsistam
sem o apoio implicado das televisões — e esse apoio é claramente de duas naturezas:
em primeiro lugar, as televisões, que passaram a ocupar o topo da “pirâmide dos
media” (mesmo se hoje têm de se fundir, na convergência digital, com plataformas
audiovisuais mais amplas), são o meio pelo qual o cinema pode ser melhor noticiado,
apresentado e publicitado, e também uma sua forma de exibição complementar; em
segundo lugar, as televisões devem tornar-se num dos principais suportes de
financiamento do cinema, sob a forma de taxas ou de impostos sobre exploração de
antena directamente imputáveis a tal financiamento.
CINEMA DE POESIA contra cinema prosaico como propunha Pasolini nos anos 60 do
séc. XX, imagem-tempo em vez de imagem-movimento como propôs Deleuze vinte
anos depois, aposta no ritmo e na duração de cada plano como escreveu Tarkovski
um ano depois da publicação do segundo livro de Deleuze sobre o cinema, planos e
montagem lentos em vez de découpage veloz... A Art House, o cinema de arte e de
autor, seguiu em grande parte este programa, inscrevendo-o no habitus da cinefilia
contra a eficácia comunicacional dos filmes do main stream e da televisão. O lugar
do cinema no universo audiovisual foi sendo discutido no seio deste diferendo sobre
a missão da “sétima arte” à medida que a televisão foi hegemonizando o campo dos
media. E a gramática do main stream e dos blockbusters tornou-se na bête noire de
todas as suas margens, do cinema moderno e de autor ao cinema experimental e à
videoarte.
Mas a cultura das margens exige competência artística e posicionamentos claros.
Com frequência furtando-se a uma definição simples, o cinema artie e de autor é
facilmente presa de alianças cúmplices e empáticas mas insuficientemente
121
argumentadas, em torno de “uma certa ideia do cinema” que prefere não se definir a
si mesma de outro modo, embora deseje ver-se reconhecida como um etos (o espírito
ou a marca distintiva de uma cultura ou de uma época). Trata-se de definir uma
fileira ou um grupo de pertença inevitavelmente vasto e plural, onde a criação
individual predomina sobre os efeitos de “escola”. O cinema de autor prefere definir-
se negativamente, enfatizando aquilo que “não é”, em vez de tentar afirmar-se por
um enfoque positivo — salvo nos momentos em que faz “doutrina” (veja-se, por
exemplo, o manifesto do Dogma 95). Ora, a dificuldade não reside na identificação
argumentada de tais fileiras e do que elas propõem como projecto de cinema e como
desafio ou acto de resistência — pelo contrário: só essa identificação argumentada
de uma comunidade de preocupações éticas e estéticas, de uma linhagem de aliados,
permite o reconhecimento de adversários e da morfologia da paisagem onde uns e
outros travam a sua infindável batalha. A dificuldade reside na insuficiência da
clarificação do que seja, para uns e outros, essa “ideia do cinema”, e na subsistência
de cumplicidades impressivas que só de forma vaga expõem as suas convicções e os
seus explananda.
A reflexão deleuziana ofereceu, como vimos, uma chave-mestra de entrada nesta
“ideia do cinema” de que aqui é questão: do mesmo modo que Platão, na República,
censurou os poetas pelo seu gosto pelo inverosímil peripatético e espectacular,
também Deleuze criticou o cinema por tanto ter contribuído para a actual descrença
no mundo real, atulhando-o de enredos de acção e movimento que o desfiguraram,
e representando-o como aventuroso e irreal, sobrecarregado de heróis-semi-deuses
implausíveis, mas que entretêm. Deleuze acreditava que, a despeito dessa deriva
maioritária, o cinema poderia reconciliar-se com o mundo através da atenção ao
tempo, à duração, ao que imagens e figurações são capazes de tornar manifesto.
Volta, assim, a evocar-se Pasolini: o Cinema di Poesia é uma forma de resistência e
uma “reconquista”, a reconquista de um território cinematográfico devassado e Reconquista
descredibilizado pelo Cinema di Prosa.
Depois de ter abdicado do desejo de contar histórias causalmente articuladas,
reproduzindo quase inevitavelmente clichés narrativos e imagéticos (“sempre a
mesma história”: Aumont et al., 2008) e dos modelos de découpage assentes na
montagem analítica, esta “ideia de cinema” propõe-se produzir uma realidade
cinematográfica que reinventa, oferecendo-lhe densidade ontológica, a realidade do
dia-a-dia, surpreendendo por revelar novos perfis dessa realidade, para efeitos de
contemplação e de reconhecimento da alteridade do mundo filmado. Nos termos de
Tarkovski, trata-se de “ajoelhar diante do real” reinventado e mostrado, pelo corpo
do filme, no seu esplendor esquecido, recalcado ou menosprezado.
O principal perigo desta jornada consiste em cair numa crença de seita e em novos
tiques maneiristas, quando procurávamos aliados com quem pudéssemos discorrer
livremente sobre como mostrar o mundo e as coisas. Pior: quando assente em
cumplicidades proteccionistas e não em argumentários que não temem a disputatio,
esta ideia de cinema assume facilmente o perfil de uma igreja pré-conciliar,
prisioneira dos seus dogmas e ressentimentos partilhados apenas por iniciados, que
tornam mistérico o seu saber e o seu totemismo — uma comunidade de sacerdos
que, aquém e para além das suas divergências, se limita a aludir à sua adesão a um
vago e esotérico grupo de pertença. A argumentação aberta ao mundo e à cinefilia é
o melhor antídoto contra esse espírito de trincheira.
No seu melhor, revelando e oferecerendo a percepção do mundo heideggeriano e
pós-heideggeriano na sua permanência (stans) e no seu acontecimento (fluens), esta
ideia de cinema hipostasia o mundo da realidade banal, abordando-o de modo
transcendental para forçar o emergir da sua imanência e para mostrar a sua
substância identitária — algo que na vida corrente olhamos e não vemos, e que o
cinema pode, a seu modo, dar a ver. O que a hipóstase do banal que deixámos de ser
capazes de ver propõe, é a mostração de uma substância tida como realidade
ontológica — o que se obtém figurando (10). Como diz o Lalande, hipostasiar
significa ainda “transformar uma relação lógica em substância no sentido ontológico
da palavra”, e até “oferecer sem razão uma realidade absoluta ao que apenas é
relativo”, como quando Bergson escreveu, no seu L’évoluton créatrice: “devia ser
grande, (...) a tentação de hipostasiar essa esperança...” ¢
122
Notas
1. Para verter a alegoria da caverna (Platão, República, VII, 514a-517c) no regime das imagens
contemporâneas, Alain Badiou encenou-a numa sala de cinema. O trecho foi incluído em La République
de Platon (Paris, Fayard, 2012), a hiper-adaptação do texto clássico à problemática do mundo
contemporâneo. Eis a transcrição/tradução do seminário de Badiou sobre Platão (21.01.2009, disponível
in <http://www.entretemps.asso.fr/Badiou/08-09.htm#_ftn5>, «Pour aujoud’hui: Platon»), precedida
de uma explicação complementar do autor — a seguinte:
“Quis verter o texto de Platão para um registo de imagens contemporâneas. As sombras projectadas nas
paredas da caverna têm algo de genuinamente neolítico. Recorri, assim, aos prestígios combinados do
cinema e — para conservar o enigma dos manipuladores e animadores invisíveis — das sombras chinesas.
Para presentificar a violência obscura da saída da sala de espectáculos, recorri a Kafka e a ‘agentes’ que,
sem explicações, arrancam o espectador à sua rotina habitual. Quis ainda pontuar — sem pretender
resolvê-lo — o principal enigma do texto: o de todos os objectos que circulam nas costas dos espectadores
(bonecas, marionetas, outros) e de que ignoramos a proveniência — o que, mais uma vez, é sublinhado
por Amantha, quando ela diz que as sombras da experiência corrente, antes do desenraizamento do
espectador, eram mais ‘reais’ do que esses misteriosos objectos. Finalmente quis dar mais amplitude à
passagem para o exterior em contraponto com a sala de espectáculos, e fui buscar uma passagem de
Samuel Beckett: ‘ele vê nascer Vénus, outra vez’.” Eis o texto de Badiou (tr. J.M.M.) quase na íntegra:
“— Imaginem uma gigantesca sala de cinema. Primeiro o ecrã, que sobe até ao tecto — até tão alto que
o perdemos nas sombras — e que impede a visão de qualquer outra coisa para além dele. A sala está
cheia e os espectadores estão, desde que existem, presos aos seus lugares, de olhos fixos no ecrã. Na
cabeça têm auscultadores rígidos que lhes cobrem as orelhas. Por detrás dessas dezenas de milhar de
pessoas pregadas aos seus cadeirões há, à altura das cabeças, uma vasta passerelle de madeira,
paralela ao ecrã, a todo a largura da sala. Mais atrás, enormes projectores inundam o ecrã com uma
luz branca quase insuportável.
— Estranho lugar!, diz Glauco.
— Não mais que a nossa Terra... Na passerelle circulam toda a espécie de autómatos, bonecas,
silhuetas de cartão, marionetas, animados por mãos invisíveis ou telecomandados. Passam e
repassam animais, maqueiros, falsos carregadores, carros, rolas e cegonhas, todo o tipo de pessoas,
militares armados, bandos de jovens das periferias, animadores culturais, mulheres nuas... Uns
gritam, os outros falam, outros tocam pífaro ou concertina, outros ainda apressam-se em silêncio. No
ecrã vêem-se as sombras, recortadas pelos projectores, deste carnaval incerto. E nos auscultadores a
multidão ouve ruídos e palavras.
— Meu Deus!, pontua Amantha. Estranho espectáculo e ainda mais estranhos espectadores.
— Eles parecem-se connosco. Vêem eles de si mesmos e dos seus vizinhos, da sala e das cenas
grotescas da passerelle, algo mais que as sombras projectadas no ecrã pela torrente de luzes? Ouvem
algo mais do que os auscultadores difundem?
— Decerto que não, exclama Glauco, se têm a cabeça imobilizada desde sempre face ao ecrã e se têm
as cabeças presas aos auscultadores.
— É o caso. Não têm outra percepção do visível senão a mediação das sombras, nem do que é dito
para além do que ouvem. Mesmo supondo que inventam maneira de discutir entre eles, nunca
poderão distinguir o nome de uma sombra que vêem e o do objecto que não vêem (...).
— Sem contar, acrescenta Amantha, que o objecto da passerelle, robot ou marioneta, é já ele mesmo
uma cópia. Dir-se-á que eles não vêem senão sombras de sombras.
— E que não ouvem, completa Glauco, senão a cópia artificial duma cópia física de vozes humanas.
— Aí está! Estes espectadores cativos não têm nenhum meio de concluir que a matéria do Verdadeiro
é diferente da sombra de um simulacro. Mas que se passaria se, grilhetas quebradas e alienação
curada, a sua situação mudasse de repente? Atenção! A nossa fábula torna-se agora noutra coisa.
Imaginemos que libertamos um espectador, que o forçamos a erguer-se, a mover a cabeça para a
direita e para a esquerda, a andar, a olhar a luz vinda dos projectores. Claro, sofrerá nestes gestos
inabituais. Cego pelos fluxos de luz, não poderá discernir que apenas via sombras. Expliquemos-lhe
que a sua antiga situação não lhe permitia ver senão o equivalente, no mundo, do nada do bru-á-á, e
que só agora ele está próximo do que é, pode enfrentar o que é, a sua visão é agora susceptível de se
tornar mais exacta. Não ficará ele estupefacto e incomodado? E pior ficará se lhe mostrarmos, na
passerelle, o desfile dos robots, dos espantalhos, das bonecas e das marionetas, tentando explicar-lhe
o que aquilo é. Porque decerto as sombras anteriores serão ainda, para ele, mais verdadeiras do que
o que lhe mostramos.
— E de certo modo são-no, anota Amantha: uma sombra que valida uma experiência repetida não é
mais ‘real’ do que uma boneca de que se ignora a proveniência?
Sócrates, imóvel e silencioso, fixa Amantha, talvez tão furioso como maravilhado. Depois:
— Temos de chegar ao fim da fábula antes de concluirmos àcerca do real. Suponhamos que obrigamos
a nossa cobaia a olhar fixamente os projectores. Doer-lhe-ão os olhos, quererá fugir, voltar a ver o que
suportava ver, essas sombras sobre as quais pensa que o seu ser está mais garantido do que o dos
objectos que lhe mostramos. Agora, uns rudes seguranças pagos por nós pegam nele e empurram-no
sala fora, abrem uma dissimulada porta lateral e atiram-no para um túnel nauseabundo que leva ao
ar livre, aos luminosos flancos de uma montanha primaveril. Cego, ele cobre os olhos com as mãos
fracas, mas os nossos agentes empurram-no pela encosta escarpada, por muito tempo e até cada vez
mais alto. Chegam ao cimo, em pleno Sol, e os guardas largam-no, deixam-no lá e desaparecem
encosta abaixo. Ei-lo só no meio de uma paisagem sem limites. O excesso de luz devasta-lhe a
consciência. E como sofre por ter sido empurrado, maltratado, exposto! Como odeia os nossos
123
mercenários! Pouco a pouco, porém, tenta olhar os cimos, os vales, o mundo ofuscante. Primeiro cego
pelo brilho de cada coisa, não consegue dizer ‘isto existe, isto está de facto ali’. Não é ele quem pode
dizer, como Hegel diante da Jungfrau, e num tom desprezivo, ‘das ist’, aquilo não faz senão ser. E no
entanto ele tenta habituar-se à luz e ao fim de porfiados esforços, sob uma árvore isolada, acaba por
discernir a sombra do tronco, o recorte negro das folhas, que lhe lembram o ecrã do seu antigo mundo.
Num charco ao pé de um rochedo vê o reflexo das flores e das ervas. Depois vê as coisas propriamente
ditas. Lentamente, maravilha-se com arbustos, pinheiros, uma cabra solitária. Cai a noite. Ergue os
olhos para os céus e vê a lua e as constelações, vê Vénus aparecer. Sentado, hirto, num velho cepo,
observa a radiosa. (...) Depois, de manhã, vê nascer o Sol (...), o Sol ele mesmo, em si e para si, no seu
lugar. Vê-o e contempla-o, na beatitude de que ele é o que é.
— Ah, diz Amantha, que ascencão nos descreves, que conversão!
— Obrigado, rapariga. Farás tu como ele? Porque este nosso anónimo, aplicando o seu pensamento
ao que vê, percebe que a posição aparente do Sol depende das horas e das estações do ano: o estar-ali
do visível está suspenso deste astro, de tal modo que podemos dizer: sim, o Sol é o regente de todos
os objectos de que os antigos vizinhos, os espectadores da grande sala fechada, não vêem senão a
sombra de uma sombra. Evocando assim a sua primeira morada — o ecrã, o projector, as imagens
artificiais, os seus companheiros de impostura — o nosso evadido involuntário felicita-se por dali ter
sido expulso e apieda-se dos que ficaram grudados aos seus cadeirões de visionários cegos”.
O diálogo prolonga-se por mais um par de deixas e réplicas, mas o essencial é o acima traduzido. A alegoria
de Badiou tal como ele a adapta em La République de Platon representa apenas parte do complexo e
conflitual posicionamento do autor face ao cinema, mais apreciável se lermos Cinéma, que publicou em
co-autoria com Antoine de Baecque (Paris, Nova Éditions, 2010), um conjunto de textos e entrevistas que
mostram 50 anos de reflexão sobre a sétima arte. Badiou foi, por exemplo, sensível ao relacionamento
entre cinema e pensamento proposto por Deleuze, discutindo-o de forma matizada, e até aceitou
desempenhar um papel em Film Socialisme de Godard, onde surge fazendo uma conferência para o
auditório vazio do navio de cruzeiros. Mas aqui, no seu seminário de 2009 sobre Platão, o cinema e os
seus filmes são o dispositivo totalitário e despótico a que se referiu Jean-Louis Baudry (1970, 1975, 1978),
o aparelho responsável pela total alienação e total condicionamento do espectador. Questões não
abordadas por Platão na sua alegoria — quem são os encenadores do espectáculo da caverna? Quais os
seus objectivos? Qual a natureza dos adereços cujas sombras são projectadas? — são igualmente deixadas
em aberto por Badiou. Mas, dada a transposição das funções das sombras de Platão para as funções do
cinema contemporâneo, este é apresentado como um espectáculo montado “para sempre” por gestores
do panóptico foucaultiano, com o objectivo de oferecer aos prisioneiros (os espectadores) um artefacto
inteiramente fictício mas operativamente substitutivo do “real”, do mesmo modo que a Matrix é a fábula
platónica que aborda a irrealidade das “alucinações verdadeiras” propostas por uma máquina de
subjugação.
Por outras palavras, nesta sua diabolização, as imagens e sons do cinema são a “máquina tirânica”, o
artifício simulacral malevolente que subsiste, via indústria, para impedir qualquer relacionamento do
espectador com o “real”. A alegoria de Badiou afasta-se, assim, radicalmente, da reflexão de um
Baudrillard, em boa parte relançada por Deleuze, sobre os “poderes do falso” e a “hiper-realidade” gerada
pela fusão, precisamente, do mundo simulacral e do mundo “real”. Finalmente, quando o espectador-
cobaia é arrancado à caverna-sala-de-cinema por polícias saídos do Processo kafkiano e “pagos por nós”,
o mundo real que cá fora o espera não é o mundo contemporâneo, é o de Platão: Sol, Lua e constelações,
o nascimento de Vénus, arbustos e pinheiros, montes e vales, uma cabra solitária. Ele não vê estradas de
montanha, nem automóveis e aviões, nem turistas comendo conservas nas suas caravanas e falando ao
telemóvel. Arrancado esse espectador ao seu cinema, o mundo que ele descobre é o da Grécia de há 2.350
anos e a sua natureza, mantida intocável até hoje. A alegoria necessita dessa sincronia implausível. Mas
reconheçamos que, perante A República, Badiou procedeu como um genuíno adaptador cinematográfico:
inventou para ela uma Amantha, para pôr diante de Sócrates a Jungfrau de Hegel, e outras dramatis
personæ que dialogam com o mestre da maiêutica. Com a sua “hiper-adaptação” de Platão, tornou-se
num dos grandes ironistas da filosofia contemporânea.
2. O Mandylion de Edessa é um pano onde o Cristo terá impresso o seu rosto húmido, oferecendo-o a um
pintor que não conseguia retratá-lo devido à luz que dele irradiava: o episódio está referenciado desde o
séc. IV na História da Igreja de Eusébio de Cesareia, 1.13.5-1.13.22). É uma peça guardada num antigo
hall barroco, hoje Capela Matilda, no palácio residencial dos papas de Roma; raramente visto em público,
o British Museum conseguiu exibi-lo, entre outras relíquias cristãs, no Verão de 2011. O véu de Verónica
(com que, segundo os Actos de Pilatos, do séc. VI, ela limpou a face do Cristo a caminho do Calvário)
desapareceu em 1608 do relicário que o guardava na basílica de S. Pedro; em 2001, um jesuíta alemão
anunciou tê-lo descoberto num pequeno convento capuchinho em Manoppello. O sudário de Turin é
supostamente o lençol funerário que envolveu o corpo do Cristo depois da sua morte na cruz e está
guardado na catedral de S. João Baptista, na mesma cidade. Desconhecem-se, ainda hoje, as técnicas que
neles gravaram as respectivas imagens.
3. Antecipando ironias sobre o uso que aqui faço dos termos vidente e vidência, esclareçam-se os seus
significados nas línguas de referência dos presentes textos. Vidente é, no Dicionário de Morais: “Que vê o
que está fora da visão ocular ou o que está para acontecer. || Sagaz, perspicaz. || Pessoa a quem foi dado
ver coisa sobrenatural. || Pessoa ou aquilo que prevê, que profetiza. || Profeta. || Que ou aquele que tem
vista (opõe-se a cego)”. Em francês diz-se voyant, em inglês clairvoyant com os mesmos significados.
Vidência: capacidade daquilo ou daquele que vê. Não nos interessam aqui as capacidades sobrenaturais
ou proféticas da vidência. Vidente e vidência interessam-nos aqui designando aquilo ou aquele dotado da
capacidade de ver, o “seeing-being” da fenomenologia de Sobchack. É essa capacidade de ver, que tanto
caracteriza animais como artefactos técnicos (máquinas fotográficas e de filmar, outros) que legitima,
aqui, o uso destes termos.
4. Sobre a dicotomia sujeito-objecto escrevi noutro lugar (Mendes, 2015) o que segue, a propósito da
124
Subsistirá (...) a dicotomia sujeito-objecto, pedra angular de tanta filosofia e saber sobre a vida? Será
o sujeito ainda um ego-cogito cartesiano, exterior ao objecto que fabricou? Não o creio. No núcleo da
experiência artística, sujeito e objecto indistinguem-se. Não é operativa a ideia, herdada do idealismo
cartesiano, de que o mundo só é abordável a partir dessa dicotomia e de que sem ela as nossas
percepções se afundariam num maelstrom irracional. Perguntem a Shakespeare e Dante, a Cézanne
e Picasso, a Schönberg e Bartók, ou a contemporâneos vossos, se se consideram sujeitos pensantes
que produziram objectos pensados: é absurdo. Eles “pensaram”, sim, os seus objectos, mas no
quiasma de Merleau-Ponty, enquanto deles se indistinguiam e a paixão por eles os invadia. O pathos
criativo tem a idade do homo sapiens e instalou um dos paradigmas do nosso habitus. A velha
dicotomia foi, in illo tempore, um ansiolítico eficaz, garantiu um dualismo ordenador, separou águas
entre percepção e pensamento? Já não o faz. (...) O actor que encarna uma personagem, o pintor que
vive um corpo-a-corpo com a sua tela, o músico que improvisa “fazendo máquina” com o seu
instrumento, o cineasta que pós-produz imagens que filmou, o poeta que luta com seus versos, o
novelista que inventa personæ, o Pigmalião que esculpe a Galateia, partilham o mesmo núcleo de
experiência onde a fronteira entre sujeito e objecto se dissolve: eles misturam-se um no outro, são
transportados para uma terra-de-ninguém onde se tornam sujeitobjecto. E a prática artística, como o
antigo arrebatamento dos místicos, é apenas um dos baldios onde a velha dicotomia falseia a
experiência e é absurda. A “arrumação de ideias” a que a ela deu origem desrealiza-se, esboroa-se no
quiasma de Merleau-Ponty. E é inútil psiquiatrizar e medicalizar tais experiências, classificando-as
num pathos excepcional: artista e místico (...) conhecem esse quiasma porque ele é constitutivo da
sua aposta, do seu desassossego.
Mas a dicotomia sujeito-objecto não começou por ser posta em causa no núcleo das práticas artísticas.
Recorda Michel Piclin (1995):
“Já em Schopenhauer a dicotomia sujeito-objecto não tinha (...) valor ontológico. Um e outro
aparecem e desaparecem concertadamente, são intermutáveis; procurando o nosso sujeito pensante
só encontramos treva e simulacro. (...) Também Kant (...) atacou o cogito de Descartes, admitindo
que o ‘eu penso’ é um acto de síntese, mas anotando que para além dessa ‘unidade sintética’ não
avançamos mais: o Eu não passa de uma ‘representação vazia de conteúdo’. Na consciência tudo é
fluxo contínuo.”
De facto, a crítica decisiva dessa dicotomia foi feita pela fenomenologia existencial de Merleau-Ponty,
que insistiu na imersão do sujeito no mundo vivido, o Lebenswelt alemão, seu “objecto” no sentido
clássico: sujeito e objecto partilham por condição – a condição humana — o mesmo interface, a mesma
ancoragem no mundo objecta. Escreveu ele (1945):
“...O ser-objecto e o ser-sujeito (...) não são alternativos. O mundo percepcionado está aquém e além
dessa antinomia; o falhanço da psicologia ‘objectiva’ deve ser entendido (...) não como uma vitória do
‘interior’ sobre o ‘exterior’ ou do ‘mental’ sobre o ‘material’, mas como apelo à revisão da ontologia,
ao reexame das noções de ‘sujeito’ e ‘objecto’.”
Depois (1964, póstumo), Merleau-Ponty propôs uma “ontologia selvagem” dos dois termos, assente na
sua reversibilidade e na experiência da percepção e do pensamento, porque uma e outro são o verso e o
reverso do mesmo ser e da mesma experiência, entrelaçados um no outro:
“Como se a visibilidade que anima o mundo sensível emigrasse, não para fora do corpo, mas para
outro corpo mais leve e transparente, como se mudasse de carne e abandonasse a do corpo pela da
linguagem” (loc. cit., p. 198). [E o artista é] “esse homem de trabalho que reencontra dia-a-dia, na
configuração que as coisas adquirem sob o seu olhar, o mesmo apelo, a mesma incitação imperiosa a
que nunca deixou de responder” (La prose du monde, 1969).
5. A psicologia cognitiva terá dado, nas últimas décadas, passos talvez decisivos para o conhecimento dos
dispositivos cerebrais que viabilizam, por imitação de outros (incluindo dramatis personæ retratados
por indicialidade directa), a compreensão e aprendizagem das suas aptidões e intenções, o que pode
contribuir para a descrição do tráfego de influências exercido pela imagem de outrem sobre o seu
spectator: a descoberta dos neurónios-espelho (mirror neurons) em primatas e depois em seres
humanos, na década de 90, ofereceu uma chave de compreensão da capacidade de imitar outros e da
aquisição de linguagens. Os neurónios-espelho são células que disparam na concretização de acções
também quando se observa outro ou outros (em princípio conspecíficos) nessa concretização,
possibilitando a compreensão, quer da acção, quer da intenção desse(s) outro(s) e permitindo a imitação
do que o outro faz como se o observador estivesse, ele mesmo, a realizar essa acção. Os neurónios-espelho
têm sido associados a diferentes registos comportamentais (imitação, aprendizagem de novas aptidões e
entendimento da intencionalidade de outrem, e alteraram a teoria da mente (Gallese, 2005; Rizzolatti,
Fogassi, & Gallese, 2006). A sua descoberta permitiu alargar a reflexão sobre a compreensão da
intencionalidade de conspecíficos, a partir da observação, à transmissão de cultura (Tomasello,
Carpenter, Call, Behne, & Moll, 2005).
6. O cinema-espectáculo peripatético, com a sua galeria de monstros inverosímeis — aliens, lobisomens,
vampiros, zombies, etc. — banalizou as distorções antropomórficas dos contos maravilhosos e das fairy
tales tradicionais e expandiu para o mundo adulto a fantasmática infantil, perpetuando um imaginário
regressivo, que explora o insólito ameaçador e o “estranho” nas suas representações mais primárias.
7. Escreve Van Tuinen (2012: 70) sobre a imagem-tempo e a imagem-cristal de Deleuze: “A imagem-
tempo torna visíveis e criativas as relações temporais que não podem reduzir-se ao presente. A sua pedra
angular é a ‘imagem-cristal’, que substitui a forma empírica ou orgânica do tempo que passa pela sua
forma transcendental (...), onde (...) temporalidades virtuais coexistem — recordações, sonhos, mundos
125
— no fluir do presente, em durações heterogéneas que constantemente se alimentam umas às outras. (...)
O cinema (...) comunica [então] um relevo do tempo, uma perspectiva do tempo”.
8. O que, no “perfeito equilíbrio” dos anos 30-40 e na sua herança, mais incomodou os neo-realistas
italianos, e depois os italianos pós-neo-realistas, os franceses da nouvelle vague e os “modernos”
europeus dos anos 60-70, foi o facto de o cinema dos grandes estúdios se ter deixado “gramaticalizar” e
congelar por um programa informacional (um programa que dava forma a...) e pelos seus inúmeros
funcionários (os apparatchicks do apparatus), reproduzindo no seu seio o modelo organizacional do que
viria a ser a imensa fábrica fordista do cinema industrial, com as suas rotinas técnicas, as suas hierarquias
laborais e os seus procedimentos normativizados. Veja-se, porém como Jean Mitry definia, com alguma
sobranceria e menosprezo, a nouvelle vague no seu Dictionnaire du Cinéma (1963):
“Nouvelle vague — denominação arbitrária que designa em geral um grupo de jovens realizadores
franceses que acederam rapidamente à autoria de filmes devido aos meios financeiros de que
pessoalmente dispunham. Agruparam-se em torno da revista Cahiers du cinéma, onde a maioria
deles escrevia. O seu movimento reflecte um estado de espírito que pode sumariamente definir-se
como uma espécie de anarquismo burguês tendente a demolir os valores recebidos, menos para os
negar do que para neles confortavelmente se instalarem, mudando-lhes as etiquetas sem contrariar,
nem os seus conceitos, nem os seus valores básicos — o que é válido tanto para a forma como para o
fundo (...)”.
9. Fechando o texto que criou em 2002 a designação “cinema do fluxo”, escrevia Bouquet, criando entre
este cinema e o Lynch de Mulholland Drive ou de Lost Highway uma ponte talvez forçada, e que o tempo
parece não ter confirmado:
“No seguimento deste escrito estudaremos os procedimentos rítmicos no cinema do fluxo, de que
podemos dar aqui alguns exemplos: não atribuir a personagens (nem a actores) um ser preciso, antes
os deslocalizando (como Lynch em Mulholland Drive [2001] e Lost Highway [1997] — note-se como
os dois títulos aludem a percursos de estrada); torná-las inidentificáveis (Ashes of Time) [Wong Kar-
Wai, 1994] ou intermutáveis (Flowers of Shanghai) [Hou Hsiao-sien, 1998]; evacuá-las como
personagens para as conservar como corpos a-significantes (Time and Tide) [Hark Tsui, 2000]. Este
último usa também outra estratégia essencial de tal cinema: fazer menos uma mise en scène do que
pôr [corpos, coisas] em movimento ou em continuidade (daí o recurso incessante a passerelles,
corredores, escadas, metáforas da passagem)”.
10. Este uso do termo hipóstase remonta à Epístola aos Hebreus, onde o filho de Deus é chamado
καρακτέρ τες υποστάσεως (caractêr tês upostáseous) de seu Pai, “resplendor da sua glória, efígie da sua
substância” (1.3). Hipostasiar é uma operação “mística”, não por visar o atingimento de um além, mas por
pressupor como possível um regime de correspondências entre o rosto banal do mundo e o seu sentido
transcendental: um longe tornado perto, uma lonjura que se recuperou e que inunda de súbito o que nos
rodeia, sentido interpretado e revelado por uma τέχνη ou por τέχναι artísticas. O poder do cinema é, neste
sentido, o que as suas imagens — que, como lembrei, criamos artificiosamente para que mandem em nós
— forem na sua relação com a antiga imago ou imagines do mundo e dos outros.
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4 A vitória do “simulacro” e
do “maravilhoso verdadeiro”
Mas teria, de facto, a antiga realidade sido esmagada, num duelo desigual, pelas suas
imagens e simulacros? Decerto, a antiga realidade não deixara de existir, apenas “se
escondera” como num eclipse, ou “perdia aos pontos” num infindável combate. O
mundo não passara a ser sinónimo da vontade da sua representação, porque,
evidentemente, “a imensa acumulação de espectáculos” se alimenta dele como o
parasita se alimenta do seu hospedeiro. Este novo mundo dúplice poderia, nesse
caso, ser posto em causa: seria possível rejeitar o mundo das imagens e regressar ao
mundo sem elas — como tentou a New Age nostálgica da vida “natural” e da
horaciana aurea mediocritas (Odes, II, 10, 5), quer, depois, os novos iconoclasmas
confessionais, bárbaros e violentos? Ou, pelo contrário, seria possível manter a
antiga realidade enclausurada na sua torre como a bela adormecida, não lhe dando
voz e fingindo que se podia viver sem ela? A “maioria silenciosa” aprendeu a conciliar
pragmaticamente, quer com os simulacros, quer com o mundo real, sendo que, nesta
coalescência, a “sociedade do espectáculo” de Debord protagoniza uma cultura
dominante, e o antigo “mundo real” recorda uma cultura dominada e colonizada. É
ainda esta nova homeostase, esta relação de forças por ele premonitoriamente
descrita, que domina o habitus e o etos contemporâneo. Cada vez mais continuámos
a preferir “a imagem à coisa, a cópia ao original”. O espectáculo tornou-se o novo
todo holístico; a realidade, o puzzle das suas partes.
Para as disforias científicas e políticas, a relação entre parasita e hospedeiro
continuou a supor a possibilidade de o primeiro se apropriar inteiramente do
segundo, metamorfoseando-se nele e forçando-o a devir outro. Nesta hipótese, o
primeiro torna-se mestre e o segundo escravo, assim se gerando uma nova servidão
— a “alienação”, ou a perda de si mesmo, a que se referira Marx na esteira de Hegel.
É essa ainda a dimensão do pacto de Fausto, uma das grandes histórias-mães-de-
histórias. Para o jovem Debord da Internacional Situacionista, que tanta influência
viria a ter no “programa” do Maio de 68 francês poucos meses depois, essa hipótese
estava então em vias de irreversível concretização.
O mundo dominado pela alienação no espectáculo e no simulacro tem sobretudo três Três rostos
rostos: o mais enraizado na longa duração é o das artes e da cultura, onde as imagens
em movimento do cinématografo propulsionaram a hegemonia do campo mediático
audiovisual, tão combatido, a meio do século XX, pela escola de Frankfurt; o mais
directamente produzido pelo desenvolvimento do capitalismo é o do fétichismo da
mercadoria, gerador de necessidades cada vez mais imaginárias e de mercados onde
a satisfação das necessidades materiais ganha uma incontornável aura de fantasma
efémero (veja-se o funcionamento do sistema da moda ou a vertiginosa substituição
de modelos automóveis pela indústria) e passa a ser gerida por um seu duplo
genuinamente inútil; finalmente, o que mais depende da evolução tecnológica é o
novo sensorium técnico-científico onde proliferam robots, já não os autómatos
mecânicos que fascinaram Descartes e os séc. XVII e XVIII, mas os simulacros
electrónico-cibernéticos de seres humanos — serviçais, sucedâneos dos antigos
escravos, que garantem os interfaces requeridos por uma nova geração de serventias.
O primeiro rosto é dominado pela alucinação do real e pela substituição deste por
imagens simulacrais; o segundo, motor da economia, pela criação de falsas
necessidades e suas deformadas satisfações; o terceiro, pela invasão de replicants e
mimóides que ocupam o lugar de pessoas, dispensando-as como, nas revoluções
industriais, as máquinas que tornaram os homens descartáveis ou os fizeram seus
escravos.
Sintomático é que Debord, representante da “vanguarda” intelectual da jovem
esquerda radical, francófona e neojacobina, tenha, na segunda metade dos anos 60,
edificado o seu argumentário político anti-capitalista sobre a clássica oposição entre
128
Diz por seu turno Fernando Belo (1992: 8) escrevendo sobre a relevância de
Heidegger nesta mesma questão e sublinhando a importância do ver (com os olhos
sensíveis ou “com os olhos da alma”):
“O inteligível é concebido na matriz do olhar sensível e da luz, é o que ‘vê-com-os-
olhos-da-alma’ o eidòs das coisas ou entes, vivos ou não. Platão conceberá a ideia
eterna de que o eidòs (forma, aspecto) de cada coisa é cópia, Aristóteles definirá a
ousia, substância e essência, idêntica nos entes da mesma espécie”.
De facto, o que está aqui em causa é uma inquietação central, a inquietação grega O medo da
perante o perigo da autonomia da vida das formas e dos seus efeitos — a autonomia autonomia
das imagens que tendem a substituir o real, ocupando o seu lugar. Inquietação ou das imagens
desassossego que regressam hoje, num mundo progressivamente mais conquistado
pelo virtual, onde a experiência de contacto com o mundo e com as coisas é cada vez
mais inteiramente mediada por imagens (as da fotografia, do cinema e da televisão,
precisamente). Para além da mediação que é sustentada pela indexicalidade dessas
mesmas imagens, porém, muitas construções imagéticas “hiper-realistas”
contemporâneas (parte das fabricadas em computador, por exemplo) mantêm, como
na pintura, a iconicidade sem indicialidade, visto que o objecto “por detrás” delas já
é apenas um algoritmo ou um programa informático — como notava Manovitch.
Assim regressam o temor e o tremor originais, feitos de incerteza ontológica, sobre
o que seja “realmente” o mundo das imagens na sua relação com o invisível, com o
que não é atingível pelos sentidos. É neste contexto que surge a reflexão
contemporânea de Deleuze, Foucault e Baudrillard (1981) sobre os simulacros.
130
O que sobretudo se teme, como os gregos temiam, é que, como vimos a propósito de
The Address of the Eye de Vivian Sobchack, o mundo das imagens seja instaurador
de real (Cruz: 2000) ou de uma fantasmagoria tão poderosa como ele, e que produza
os seus efeitos autónomos, afirmando-se como força legítima e imparável
independentemente do que a funda, substituindo, não só o antigo ειδος, mas também
a φύσις (physis, natureza) que ele dava a ver, a sua autopoiese e a sua desocultação
verdadeira. O crescendo da virtualização do mundo contemporâneo, reaproxima-
nos da primitiva desconfiança grega face às imagens e à sua aparente consistência, e
reactualiza a clivagem clássica entre o ícone e o ídolo, que o cristianismo viria a
tornar em trave mestra da sua política da imagem. Um tal temor é da mesma
natureza do que o vivido perante a hipótese de uma cada vez maior autonomia da
vida das máquinas, que, artefactos humanos como as imagens, acabariam por nos
substituir e por mandar em nós, como o super-computador Hal no 2001 de Stanley
Kubrick.
Para os gregos, que viviam num mundo frágil de imagens que davam forma,
aparência e “aspecto” ao invisível, e que sempre procuravam o invisível nas imagens,
essas imagens desvelavam ou desocultavam o real verdadeiro, e por isso estavam em
íntima relação com a αλήθεια (alêtheia), a “verdade” do mundo que revelavam. Esse
trabalho de desocultação materializava-se no ícone — como tanto insistiram os
iconófilos de Bizâncio e a diplomacia teológica de Roma. Ainda hoje, quando
observamos uma imagem do ponto de vista estético, procuramos nela o invisível, o
ser que lhe é imanente — como sabemos da nossa experiência de contempladores de
pintura, de fotografia ou de imagens em movimento: também no filme procuramos
o “invisível” nele contido. Não o ser ausente por detrás ou para além da sua
representação, mas o ser imanente, contido nessa representação. Esse ser invisível
pode ser representado pela aura benjaminiana, que ora está moribunda, ora já
morreu, ora ressuscita e quer regressar ao nosso habitus. Pintura e cinema
tornaram-se, já o disse, auto-referenciais. Mas a auto-referencialidade não apaga a
relação transcendental, agora exercida na relação entre significante e significado. Já
não procuramos a “presença ausente” na tela ou no ecrã, o que estava “para lá dela”:
procuramos a imanência das coisas na materialidade da sua re-apresentação.
o que significa que não tem acesso imediato ao mundo. As imagens tornam o mundo
acessível e imaginável pelo homem. Ao fazerem-no, interpõem-se entre o homem e o
mundo. Deviam ser mapas mas tornam-se ecrãs. Em vez de apresentarem o mundo ao
homem representam-no, põem-se a si mesmas no lugar do mundo, de tal modo que o
homem passa a viver em função das imagens que produziu. Deixa de as decifrar, antes
as projecta para o mundo ‘exterior’, e assim o mundo passa a ser como as imagens —
feito de cenas e situações. A esta inversão da função das imagens podemos chamar
idolatria [itálico J.M.M.] e hoje bem sabemos como o mecanismo funciona, porque as
imagens técnicas omnipresentes [fotografia, cinema, televisão] passaram a
reestruturar a ‘realidade’ e a torná-la num cenário imagético. Isto envolve um tipo de
olvido particular: o homem esquece-se de que produz imagens para encontrar o seu
caminho para o mundo, e passa a procurar o seu caminho nas próprias imagens. Já
não as decifra, vive em função delas: a imaginação torna-se alucinação”.
Dito de outro modo: as imagens invadem e substituem vicarialmente o mundo (é um
processo em curso desde sempre e interminável, mas que o cinema e o audiovisual
contemporâneo aceleraram), o re-apresentante ganha importância contra o re-
apresentado e impõe a este último a sua hegemonia, contribuindo decisivamente
para a construção social da realidade, baseada no apagamento da distância que
separava εικών e εἴδωλον. A diferença entre ícone e ídolo também é, deste modo,
entendível à luz do tipo de alucinação que provocam: o primeiro é uma “alucinação
verdadeira”, o segundo uma “alucinação falsa”.
do filósofo que substituiu Husserl em Friburgo, e onde se alerta para o risco da perda
da dimensão do sagrado (no sentido de Bataille, mas a associação é minha), que
sempre deu às comunidades humanas a dimensão da dignidade e da altivez (Bataille
diria soberania mas, de novo, a associação é minha):
“O que, porventura, há de mais admirável na lição de pensamento em Heidegger, é a
confiança que ele encontrou nesse primeiro pensamento grego da Terra como
desvelamento abrigante, confiança que, não tendo nada a ver com optimismos que a
conjuntura torna hoje insensatos, nos previne que o destino que foi aberto há vinte e
alguns séculos contém ainda possibilidades abertas, em que as nossas decisões se
farão. Ele lê a técnica como a última possibilidade da metafísica, o seu ‘acabamento’,
já que ela desdobrou tudo o que havia a desdobrar no seu campo de causalidade. A
única possibilidade ainda em aberto é a da habitação poética da Terra, mas abre-se,
por assim dizer, num abismo de catástrofe, de crise”.
Relevante para o que nos ocupa aqui é, assim, o que Heidegger (1968: 215) diz sobre
a cegueira ontológica, aquela que nos impede de ver o ser no mundo, porque aquilo
que está sempre-e-já disponível para qualquer olhar é precisamente o que deixámos
de ser capazes de reconhecer:
“Do mesmo modo que existem cegos da cor, também há cegos da φύσις, [natureza,
mundo...] que não são senão um género dos cegos do ser (...) e que são, não só mais
numerosos que os cegos da cor, mas também mais poderosos e obstinados, até porque
estão mais escondidos e geralmente não são reconhecidos como tais. Por isso os cegos
do ser acabam por passar por únicos videntes autênticos”.
O cinema está assim, para Deleuze, em ligação directa com a encenação ritual de
grandes cultos, porque herda dela como teatro e ópera herdaram. Mas, escrevendo
sobre psicanálise e cinema, já Julia Kristeva (1975) sublinhava, referindo-se mais Kristeva:
especificamente aos poderes das imagens, que foi Agostinho de Hipona quem a crença
consolidou “a ordem simbólica e fantasmática para dois mil anos de cristianismo”, é imagem
ao designar a imagem como constitutiva da mens (mente): “a ordem simbólica está
assegurada desde que há imagens nas quais se acredita sem reservas, porque a
própria crença é imagem”; e “a penumbra das igrejas, mais do que qualquer outra,
conhece, multiplica e explora esse fascínio”. Antecipando o que virá a ser a opinião
de Deleuze, também Kristeva considera que “com o cinema, a eficácia semiótica do
monoteísmo atingiu o seu apogeu”, e que nada há de melhor que o filme para
cumprir a constatação agostiniana: ‘Apesar do homem se inquietar em vão, ele
caminha na imagem’ (De Trinitate, As imagens, XXIV, IV, 6). Ora, qual é o limite
desse caminhar na imagem? Seria porventura o humor e a ironia, se o espectador
fosse capaz de des-animar o que vê, transformando, à custa da repetição, a tragédia
em farsa. Mas Kristeva duvida de que tal des-animação aconteça:
“Seria sem dúvida necessário que a fascinação especular chegasse à sua realização
perfeita e total através do cinema, para que do seu pavor e da sua sedução pudessem
irromper risos e distâncias. Se essa desmistificação não suceder, o cinema será apenas
mais uma Igreja entre outras”.
Pois bem, essa des-animação não ocorreu, e o cinema e os seus filmes geraram a
igreja cinéfila — a nova geração de iconófilos nascida na idade das imagens em
movimento. Deleuze insiste (loc. cit.) na necessidade de regresso a uma crença como
modo de restaurar a aliança perdida entre o homem contemporâneo (a antiga aliança
animista a que se referira Monod), o mundo e suas coisas, o que o homem “vê e
ouve”; nesta passagem, o mundo deixa de ser o objecto pelo qual o “bom” cinema
deve interessar-se; para ele, esse objecto passa a ser, deve ser a própria crença no
mundo:
“Só a crença no mundo pode religar o homem ao que ele vê e ouve. É preciso que o
cinema filme, não o mundo, mas a crença nesse mundo, nosso único laço (lien). Muitas
vezes nos interrogámos sobre a natureza da ilusão cinematográfica. Devolver-nos
crença no mundo, tal é o poder do cinema moderno (quando ele deixa de ser mau).
134
O efeito Pigmalião
RECONQUISTA da “crença” no mundo quando este se tornou num “mau cinema”,
reencontro da “natureza” grega e da de Heidegger? Tudo isto é melancolicamente
requerido como se estivéssemos a pedir a lua e não a terra, ou a ressurreição de algo
que perdemos e de que fazemos, mal, o luto. A meio caminho da vida do cinema, o
ecossistema real/virtual em que ele se inscreve evoluiu: tornou-se num “mundo
mobilizado pela técnica” e pela sua “tecnocultura”, cujo pano de fundo é a mudança
de natureza de parte das imagens que o integram. As imagens, que tinham começado
por ser representantes ou re-apresentantes de alguma coisa, substituiram o
representado ou o re-apresentado e ocuparam o seu lugar.
Inspirador dos simulacros de Baudrillard e fundindo natureza e artefacto desde
muito antes da hiper-realidade ou da realidade virtual, o arqui-texto da paixão e da
atracção erótica pela estátua viva é o de Ovídio sobre Pigmalião (Metamorfoses, X,
243-297): revoltado com os vícios das mulheres dissolutas mas desejoso de
conjugalidade heterossexual, Pigmalião esculpe em marfim um corpo feminino O artista anima
(Ovídio omite a dimensão da estátua mas, apesar do marfim, seria em tamanho a sua estátua.
Nasce o
natural) e enamora-se da sua obra: beija-a, tacteia-a, acaricia-a, dorme com ela e ao simulacro.
ser acariciado o marfim ganha vida, torna-se mole e respondente — “tal como a cera
do Himeto sob o sol amolece”. Vénus é, naturalmente, a madrinha da união: o
escultor e a mulher de marfim casam-se e ela dá à luz Pafo, de quem a ilha homónima
herda o nome. A paixão pela estátua viva é o tema de O efeito Pigmalião, de Victor
Stoichita (2008).
Toda a fantasmática da animação/criação se cruza naqueles 54 versos de Ovídio: o
artista cria vida a partir do inanimado, que por sua vez é mais belo que o animado e
lhe serve de modelo (a vida imita a arte); ao dar vida a uma peça morta (mármore,
marfim, bronze, celulose), o artista é um ressuscitador; mas o que se tornou esposa
foi um simulacro por ele criado para substituir uma esposa real. O simulacro usurpou
o mundo real, tornou-o mais apetecível e desejável, insuflou-lhe mais vida. A estátua
de Pigmalião não imita nenhuma mulher, torna-se na mulher que a imita. As love
dolls das indústrias do sexo são, hoje, os sucedâneos materiais da imaginada Galateia
de Pigmalião. No seu ensaio, Stoichita analisa, num vasto período que vai “de Ovídio
a Hitchcock”, a persistência do mito de Pigmalião e seus avatares na literatura, nas
artes de cena, nas artes plásticas e visuais e no cinema, sugerindo que a metamorfose
da estátua é uma arqui-ideia que passou a simbolizar o desígnio do artista de se
tornar criador no sentido divino, alter Deus. Particularmente interessante no âmbito
dos estudos fílmicos é o seu capítulo final sobre Vertigo de Hitchcok (1958),
adaptado da novela D’entre les morts de Boileau-Narcejac, onde uma femme fatale
da alta burguesia americana (Madeleine) é duas vezes “criada” a partir de uma actriz
pobre e com fracos meios de vida (Judy), sendo ambas representadas por Kim Novak
(o paralelo com Pygmalion de Bernard Shaw, herdeiro da vasta tradição de
Pigmalião e Galateia, é evidente). O filme suscita um clima de grande proximidade
136
Objecto-totem e objecto-fétiche
ENQUANTO SIMULACRO que é, o filme — como sucedera já com a pintura e a escultura
— substitui, em boa parte, a realidade e influi na percepção que dela temos. A
cinefilia sabe que por vezes o mundo não parece o mesmo à saída de um
visionamento: o filme alterou a percepção do mundo pelo espectador, impôs uma
mudança. Uma imagem pode ser “melhor” do que a realidade a que se refere, e nesse
caso tendemos a substituir a realidade por essa imagem. A Galateia de Pigmalião e a
Helena de Eurípides estão na génese ficcional dos poderes do simulacro, que o
cinema recriou no Solaris de Tarkovski e no Blade Runner de Ridley Scott. Aqui,
como no caso das real dolls das indústrias do sexo, os replicants e mimóides que
substituem os humanos repetem a metamorfose da estátua. A diferença entre esses
replicants e mimóides e as real dolls é que os primeiros são “apenas” imagens
animistas projectadas num ecrã, enquanto as segundas são corpos animados como
em Eurípides e Ovídio. A pornografia cinematográfica, como antes a fotografia e a
gravura pornográficas, constitui um dos exemplos mais claros da substituição da
realidade pelos seus simulacros.
Em Totem e Tabu (1912), Freud propôs, como vimos, a existência de uma conexão
directa entre arte, animismo, magia e crença na omnipotência das ideias, conexão
que exprime o significado mitológico e fundador do episódio Pigmalião em Ovídio.
Freud invoca E. B. Tylor para definir o princípio que rege a acção mágica como
técnica animista, e até rejeita o juízo de valor negativo contido na frase de Tylor: o
acto de magia consiste em “mistaking an ideal connexion for a real one” (tomar
erradamente uma conexão ideal por uma conexão real) (p. 62). E acrescenta: “O
princípio que rege a magia, a técnica do pensamento animista, é o da ‘omnipotência
das ideias’ ” (p. 67). Quanto à arte, o seu pensamento não poderia ser mais claro,
como já mencionei em Arte, infância, imagem. Repitamos a citação:
“A arte é o único domínio onde a omnipotência das ideias se manteve até hoje. Só na
arte ainda acontece que um homem, atormentado pelos seus desejos, faça qualquer
coisa que se parece com uma satisfação [desse desejo]; graças à ilusão artística, esse
jogo produz os efeitos afectivos de qualquer coisa real. Falamos com razão da magia da
arte e comparamos com razão o artista a um mágico (...). A arte, que decerto não
começou como ‘arte pela arte’, estava inicialmente ao serviço de tendências (...) entre
as quais bom número de intenções mágicas” (p. 70).
A seguir, Freud invoca o Frazer de Totemism and Exogamy para definir o totem
como “um objecto material pelo qual o selvagem nutre um respeito supersticioso,
por acreditar que entre a sua própria pessoa e cada um dos objectos dessa espécie
existe uma relação absolutamente particular” (p. 79). Logo depois, a ligação à arte é
depreciada: “o totem distingue-se do fétiche porque nunca é um objecto único como
este último, mas sempre o representante de uma espécie animal ou vegetal, mais
raramente de uma classe de objectos inanimados, mais raramente ainda de objectos
artificialmente fabricados” (p. 80). Mas se tivermos em conta o que Baudrillard
propôs sobre a natureza e funções dos simulacros, concluiremos talvez que objectos-
totem (que instalam alianças e grupos de pertença) e objectos-fétiches (que instalam
dependências) tenderam a confundir-se na história das imagens, e que objectos
inanimados ou fabricados tenderam a substituir as representações de espécies
animais ou vegetais características de sociedades “primitivas”. Esta conjunção
quiasmática torna os objectos artísticos em fétiches intensificados e em artefactos
animistas geradores de superstição totémica — facto extensivo às imagens
138
Os simulacros de Baudrillard
NESTE PROCESSO baudrillardiano, as imagens, em vez de representarem, re-
apresentarem e aludirem passaram, como genuínos duplos do real, a substituí-lo,
reconfigurando-o e ajudando-o a tornar-se virtual. A ideia de substituição é, aqui,
central. Quem é a estátua de Pigmalião? E quem foi raptada por Páris e levada para
Tróia: a bela esposa de Menelau, ou uma sua réplica feita pela deusa Hera, como
sugeriu Eurípides na sua Helena? Quem é a mimóide de Solaris? Quem são os
replicants de Blade Runner? Em termos renascentistas, houve uma vitória do
maravilhoso verdadeiro sobre o real — um maravilhoso verdadeiro que hipostasiou
o verosímil do Aristóteles da Poética. Tal vitória abre a crise da representação
genericamente considerada e a das suas variantes, que tão intimamente associamos
à crise das imagens. Foi a esses novos duplos substitutivos do real que Baudrillard
chamou simulacros, resultantes de um movimento de simulação que se enraiza em
Ovídio e que chega até nós.
Também para Deleuze (1967: 292 e ss.), o ícone é cópia de uma coisa e o simulacro
é auto-referencial e dispensa a relação de representação com a coisa a que o ícone
dava forma. O simulacro autonomiza-se, só se figura a si mesmo. Em termos
platónicos, o ícone dependia da semelhança com um qualquer ser. O simulacro
instaura a dissemelhança porque depende da relação com um não-ser. O ícone
figurava o mundo real, o simulacro instala um mundo simulacral. O simulacro altera
a antiga relação entre as coisas e as suas imagens, o original e a cópia, o modelo e a
sua figuração. A potência do mundo simulacral é a de dispensar as coisas e as suas
cópias e de remeter para uma “falsa” realidade tão “efectiva” (produtora de efeitos)
quanto a realidade. Diz Deleuze (loc. cit.: 303):
“O simulacro não é uma cópia degradada, antes instaura uma potência positiva que
nega quer o original quer a cópia e o modelo da reprodução. É o triunfo do falso
pretendente”.
Nesta acepção, o signo deixa de ser aliquid stat pro aliquo, algo que está ali em vez
de, em representação ou em re-apresentação de alguma coisa: ele dispensa essa
coisa, tornou-se auto-suficiente, auto-referencial. Boa parte da realidade virtual
contemporânea operou essa transferência; outra parte manteve-se referencial. É a
convivência destes dois registos — um alucinatório, outro referencial, que gera a
ambiguidade do novo ecossistema onde real e virtual se tornam indistintos.
Perguntava o Baudrillard de 1981 o que sucessivamente foram sendo as imagens, ao
longo do caminho percorrido: 1 — O “reflexo de uma realidade profunda” (ou a boa
forma de uma ideia)? Nesse caso foram uma boa aparência, uma aparência da
ordem do sacramental. Precisamente, os ícones bizantinos foram praticamente
tornados sacramentos. 2 — “Uma máscara que desnaturava a realidade profunda”?
Nesse caso foram ídolos, más aparências falsificadoras do real, embora o passado
não seja aqui o tempo verbal adequado, porque, apesar das mudanças de
vocabulário, a discussão sobre o poder dos ídolos ainda não terminou. Nestas duas
primeiras figuras regressa assim como seu pano de fundo, embora Baudrillard não o
mencione, o litígio entre ícones e ídolos, entre imagens “verdadeiras” e imagens
“falsas”. 3 —“Máscaras da ausência da realidade profunda”? Nesse caso foram um
teatro do vazio, nada existindo a que a sua mise en scène se referisse. Enquanto
máscaras, personæ, tais imagens foram personificadas, passaram a ser “pessoas-
imagens” que dispensam os seus protótipos, modelos ou referentes. 4 — “Ou
perderam qualquer relação com a realidade, tornando-se em seus simulacros
puros”? Neste caso, que apenas hipostasia, ampliando-as, as consequências da etapa
anterior, as imagens já não são aparências do que quer que seja, mas meras
simulações (op.cit., 17).
Disfórico em toda a linha, portanto, o Baudrillard dos simulacros. Tanto mais quanto
esses simulacros não se limitam às imagens e às narrativas: expandindo-se, atingem
também os comportamentos e a acção. Se o antigo real desapareceu, substituímo-lo
por um novo, reciclado: se as pessoas já não se tocam recorrem à contactoterapia; se
já não correm na natureza fazem jogging na passadeira de um ginásio; se já não
fazem amor vêem pornografia; se já não comem produtos naturais substituem-nos
por sintécticos; se já não viajam mergulham em vídeos de viagens. A palavra-chave
deste mecanismo é a transferência: o quotidiano passa a estar ocupado por
simulacros de capacidades perdidas e por uma multidão de curas, terapias,
reciclagens. Mas ao mesmo tempo, este exército de substitutos produz, enquanto
houver memória viva ou narrada do antigo real, acédia e nostalgia por esse real
perdido — saudade dele, como dizemos em português. Por isso também foi preciso,
diz Baudrillard (op.cit., 27), “reinventar a penúria, a ascese, a naturalidade selvagem
desaparecida: natural food, health food, yoga”, novos simulacros compensatórios.
É o que o levará, no fim do livro, a afirmar que a melancolia, associada à dor do luto,
ao sofrimento devido a uma perda, se tornou inexoravelmente na nossa principal
paixão e que hoje “somos todos melancólicos”:
“Já não é o spleen nem o triste langor (vague à l’âme) do fim de século (XIX), nem
o niilismo, essa paixão ressentida que tudo visa normalizar pela destruição. Não: a
melancolia é a tonalidade fundamental dos sistemas funcionais, dos actuais sistemas
141
O “maravilhoso verdadeiro”
A VITÓRIA DOS SIMULACROS sobre boa parte do mundo real (para os mais incréus, pelo
menos a sua vitória sobre boa parte da “realidade de primeira ordem” descrita por
Watzlawick) transporta no seu ADN a mais antiga vitória do “maravilhoso
verdadeiro” sobre os velhos ícones de quem Platão esperava que revelassem “a
O ídolo salvo verdade” das coisas e do mudo: o mundo dos ídolos, instauradores de “falsas
dos antigos realidades” platónicas (mas trata-se das realidades de segunda e terceira ordem de
anátemas Watzlawick) ganhou ao dos ícones.
Como se chegou a este maravilhoso verdadeiro, tão instituinte do nosso mundo real-
virtual? Como e por quem foi o ídolo salvo dos antigos anátemas que o tinham
exilado? O maravilhoso verdadeiro fascinou o romantismo, que o levou até aos
surrealismos, e através destes a sua influência estendeu-se até aos dias de hoje. A
crença na verdade do maravilhoso requereu o furor de poetas e artistas que “não
tivessem outro mestre senão eles mesmos” e nasceu de sínteses complexas feitas pelo
Rinascimento italiano. Regressando por momentos ao que foi o devir do εἴδωλον
143
Notas
1. Observemos a diferença entre εἴδωλον e εικών com detalhe: o εἴδωλον é o que é visto como se fosse a
própria coisa embora desta não seja senão um duplo ou um simulacro ilusório — sombras de mortos no
Hadès (Odisseia XI, 476), sósia de Helena criada por Hera (Eurípides, Helena, 33), efígie ou retrato que,
em cerimónias funerárias, substituem o ausente, ou ainda o que pode ver-se num espelho sem no entanto
“lá estar” (Le Robert: 2003): é ilusão, ao contrário do ειδος/ιδεα de Platão (Crátilo, 89b 3), forma
“verdadeira”. Por produzir ilusão, o εἴδωλον adquiriu cedo a conotação pejorativa de figuração
inconsistente (Septantes, II, Reis, 17, 12) e na acusação de “idólatras” feita pelos iconoclastas contra os
“adoradores de imagens” (Le Robert, ibid.). O εικών, também por oposição ao εἴδωλον, é a efígie ou o
retrato que reproduzem fielmente o seu modelo (Platão, Sofista, 235d-e): é o vero-símil, valor positivo da
µίµησις (mimesis, imitação por semelhança), enquanto o εἴδωλον distorce o modelo ou o falsifica,
impondo a sua presença intra-mundana: o εἴδωλον implica, assim, a declaração de que “o não-ser é”, e
exerce, por excelência, a função de instaurador de um real falso. Logo depois de Platão, o verosímil ganha
o poder de ser “mais verdadeiro que o verdadeiro” (Aristóteles, Poética, 9, 1451a 36.38).
2. A noção de “pessoa não-humana” não diz respeito aos simulacros mas sim, em primeiro lugar, a certos
animais, e foi relançada quando o governo indiano atribuiu esta qualidade aos golfinhos (Outubro de
2013), interditando os delphinariums no seu território. Os golfinhos são animais sencientes e dotados de
um sistema de comunicação complexo que lhes permite a identificação como indivíduos e o
reconhecimento mútuo (à semelhança dos grandes símios: chimpanzés, bonobos ou chimpanzés pygmy,
gorilas e orangotangos, capazes de raciocínio e de usar utensílios para alcançar objectivos). Das quatro
dimensões que historicamente definiram a pessoa — a metafísica, a jurídica, a moral e a relacional — são
as três últimas que sobressaem na “nova” qualificação, porque às “pessoas não-humanas” são
reconhecidos direitos, dignidade individual e capacidades de relacionamento baseadas em linguagens e
para-linguagens. Activistas tentam estender esse reconhecimento, não só ao mundo animal globalmente
considerado, mas também ao mundo vegetal ou a parte dele, reabilitando o antigo animismo.
3. As competências requeridas para a apropriação pessoal deste conjunto de instrumentos foram
transmitidas mais em oficina neo-medieval do que nos ensinos formais, passando muitas vezes de mestre
a aprendiz e correspondendo a uma iniciação. Este conjunto de inscrições que definiam um ofício vão
muito para além da distinção sumária entre cinema “clássico” e “moderno” e são-lhe conceptualmente
anteriores, atravessando escolas e épocas: encontramo-lo desde Griffith e Murnau a Hawks e Hitchcock,
mas também em Renoir e Rossellini, Welles e Ray, em Tarkovski e Kieslowski. Dominadas as τέχναι e o
savoir-faire requeridos, sempre com uma mão na artesania e outra na arte, os autores — fossem eles
“monomaníacos, hurluberlus ou bricoleurs”, para recordar os termos de Bazin — construíam a sua
idiossincrasia, estilo e identidade através das suas “pequenas diferenças excessivas” e faziam cada um o
seu percurso próprio da heteronomia para a autonomia.
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5 Narratividades do cinema
e suas cercanias
“...A literatura, oral ou escrita, é sempre filha da mitologia e herda as suas funções:
conta as aventuras, o que se passou de significativo no mundo. (...) Toda a narração
(...) prolonga as grandes histórias contadas pelos mitos, que explicam como o mundo
veio a ser o que é e como a nossa condição é a que hoje conhecemos. Ela responde à
necessidade de ouvir o que se passou, de ouvir o que os homens fizeram e o que podem
fazer: os riscos, aventuras, provações de todo o tipo. Não estamos cá imóveis como
pedras, nem como flores e insectos cuja vida está pré-determinada. Somos seres de
aventura e nunca deixaremos de escutar histórias”.
Mircea Eliade, L’Épreuve du Labyrinthe, entretiens avec Claude-Henri Rocquet, 1978
“Estamos longe de pressentir o carácter da narrativa quando vemos nela o relato (...)
de um acontecimento (...) que ocorreu e que alguém tenta reproduzir. A narrativa não
é o relato do acontecimento, mas precisamente esse acontecimento, a aproximação
desse acontecimento, o lugar onde ele é chamado a produzir-se.”
Maurice Blanchot, Le livre à venir, 1959.
“Há filmes que começam e que acabam, que têm um princípio e um fim, que conduzem
uma história desde a sua premissa até que tudo volte a estar em ordem e em sossego,
haja neles mortes, um casamento, ou a descoberta de uma verdade: há Hawks,
Hitchcock, Murnau, Ray, Griffith. E há filmes onde não há nada disso, que procuram
o tempo como os rios procuram o mar e que, no fim, nos propõem apenas as imagens
mais banais: rios que correm, multidões, exércitos, sombras que passam, cortinados
que se agitam infinitamente, uma rapariga que dança até ao fim dos tempos: há Renoir
e Rossellini”.
Jacques Rivette, «Lettre sur Rossellini» in Cahiers du Cinéma, nº 46, Abril de 1955.
“Hoje, um rapaz ou uma rapariga de 20 anos não farão um filme que não tenham
escrito; no meu tempo era diferente: os autores completos eram raros (...). Não filmo
romances porque não quero uma história que o espectador já conheça. Por isso o
argumentista deve estar verdadeiramente comprometido com a produção.”
Alain Resnais, entrevista no Nouvel Observateur com Pascal Merigeau, 1997.
EXISTEM REGRAS PARA CONSTRUIR HISTÓRIAS? Não. Mais precisamente: Não, mas.
Em vez de regras, existe a imensa experiência acumulada de mil formas narrativas e
outras tantas tradições, por vezes multi-milenares, que desde Homero e desde os
contos tradicionais sedimentaram morfologias e modos de as conceber e contar.
Sempre vivemos, ao mesmo tempo, sob o peso das tradições e a compulsão do novo,
ora glosando formas antigas ora desconstruindo-as e demolindo-as para testarmos
novas arquitecturas do contar. Por vezes, academias tomaram essas tradições por
regras, tentando impô-las como “boas práticas” normativas e únicas aceitáveis: os
italianos da segunda metade do séc. XVI, por exemplo, transformaram os
ensinamentos da Póetica de Aristóteles sobre a tragédia num cânone intemporal e
indiscutível, que não podia nem devia ser superado. Mas, como logo a seguir
percebeu Shakespeare, os modos e as formas de contar histórias dependem, em
primeiro lugar, do que cada autor experiencia livremente em contacto com o seu
público. E na modernidade todas as artes narrativas, saturadas de normas e
espartilhos, desafiaram os seus públicos, fazendo tábua rasa do já exaustivamente
experimentado e testando novos graus zero de escrita. Em alguns destes casos,
autores desistiram igualmente de contar histórias: substituiram as narrativas
147
convencionais por figurações libertas de laços internos, virando costas aos teares
onde outros as urdiam.
No Enquadramento inicial destes textos recordei, a propósito das relações entre
realidades e ficções, que Watzlawick descreveu (1976, 1984) três tipos de realidade:
a de primeira ordem, feita de res extensa, empiricamente irrecusável, onde todos os
dias nos movemos materialmente; a de segunda ordem, a dos valores, onde o ouro,
por exemplo, deixa de ser visto como um metal entre outros e passa a ser considerado
pelo seu excepcional valor de troca ou sumptuário; e a de terceira ordem, a do
simbólico e do imaginário, onde não exigimos às coisas que a integram (as nossas
ficções, fantasmas e imagines) que satisfaçam o predicado de existência factual tal
como o entendemos aplicado às coisas da realidade de primeira ordem. O que é,
neste contexto, uma ficção? É, originalmente, a imagem inventada de entes, coisas
ou lugares que não correspondem, a não ser por eventual alegoria, a nada de
existente na realidade de primeira ordem: cíclope, sereia, cavalo alado, deuses, anjos
e demónios, Avalon, Hogwarts, Land of Oz. Uma narrativa ficcional é, assim, o relato
de acontecimentos imaginários que não ocorrem nessa realidade de primeira ordem
(ocorrem nas duas outras), mas que pode usar todos os meios dos relatos de factos
“reais”, deles se indistinguindo.
Mais genericamente, o que é uma narrativa? É o que dá sentido(s) ao Mundo e ao
que nele ocorre. As coisas a que os gregos chamavam natureza (physis) nunca se
contaram a si mesmas: repetem-se mudamente devido à necessidade (ao sistema de
causalidades e de ligações) e ao acaso, incluindo nessa repetição acidentes e
catástrofes, comportamentos predadores e adaptativos que ora geram novas espécies
ora extinguem outras, sem esquecer os “cisnes negros” (Nassim Taleb, 2007), os
improváveis que destroem paradigmas estabilizados (a descoberta de cisnes negros
na Austrália do séc. XVII anulou a ideia, então universal, de que só existiam cisnes
brancos). Essa natureza e suas ocorrências não são sencientes nem explicam o seu
sentido ou sentidos: existiram durante muitos milhões de anos sem serem contadas.
Nem o mundo dos artefactos que com ela se misturou e a altera, o dos diques dos
castores ou o dos favos das abelhas, nem as alterações nela provocadas por acção de
utensílios, máquinas e construções humanas, que levaram Moscovici (1968: 122) a
listar três “idades” da natureza (a “orgânica”, a “mecânica” e a “cibernética”),
viveram essa necessidade. Tanto quanto sabemos, também as inúmeras formas de
comunicação animal não são narrativas, antes satisfazem a necessidade de
sinaléticas funcionais, por vezes de enorme complexidade, ao serviço da
sobrevivência de cada espécie.
A excepção é a que tornou idiossincrático o animal humano: ao descobrir-se mortal,
precisou que mundo e coisas fizessem sentido, e por isso inventou e inventa
narrativas porque só nelas se fixa e é transmissível o sentido que para o mundo ele
foi e vai criando. Do mesmo modo que, devido ao tipo de consciência que adquiriu
de si mesmo, começou a sepultar conspecíficos e a pintar os animais de que
dependia, o homem, inicialmente organizado em tribos predadoras, recolectoras e
defensivas, inventou histórias para dar sentido à sua existência entre as demais e
para transmitir esse sentido de geração em geração, tornando-se, assim, no único
animal narrador. Com que grau de rigor ou de justeza essas narrativas O animal
correspondiam ou correspondem à realidade de primeira ordem é outra questão; narrador
mas rigor e justeza não são, aqui, de importância capital — todas as épocas e culturas
os perseguiram com os meios de que dispunham e respectivas margens de erro. A
minha interrogação de há vinte anos atrás: Por quê tantas histórias?, mantém,
assim, a centralidade que então lhe atribuí: que fazem e como o fazem as narrativas?
Que fio de Ariadne as trouxe de Heródoto e Homero a Joyce e Beckett?
E o que é a narrativa cinematográfica? É obviamente a que, adoptada uma resposta
à primeira questão genérica, está em exercício no cinema, que conta mostrando por
projecção de imagens em movimento. O cinema entendeu-se a si mesmo como o
dispositivo que permitiria reciclar, transformar e relançar a infinitamente variada
tradição narrativa e, ao mesmo tempo, como ponto-de-não-retorno que separava,
doravante, dois tempos: o anterior à invenção das imagens em movimento
projectáveis em ecrã e o que estas inauguravam e prenunciavam. Narrativa e
figuração disputavam-se no seu seio. Qual seria a sua vocação principal? Essa dupla
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os distancia do teatro, a relevância do close up, dos truques de dispositivo (fade ins,
fade outs, dissolves) e das reversões diegéticas, a apresentação sucessiva ou
sobreposta de séries simultâneas de acontecimentos, a intermitência de duplos
enredos, o retardar e o acelerar das imagens, o jogo com os padrões cronométricos,
o long cutting e o short cutting — só parcialmente observados pelo Benjamin de 1936
(na primeira versão de A obra de Arte..., que Hauser cita).
Também a narratividade no cinema interessa Hauser, e é curioso como ele a define,
em 1951, como estando “em crise”, crise de que dá testemunho o difícil encontro
entre autores literários — designadamente os romancistas, solitários e solipsistas —
e a escrita e a concepção de filmes, como parte do que adiante designamos por
desenvolvimento de projectos cinematográficos (loc. cit.: 510):
“A crise do filme, que parece estar a tornar-se numa doença crónica, é devida, mais do
que tudo, ao facto de ele não estar a encontrar os seus escritores ou, para ser mais
exacto, ao facto de os escritores não estarem a encontrar o caminho que leva ao filme.
Habituados a fazer o que lhes apetece dentro das suas quatro paredes, exige-se-lhes
agora que tomem em consideração realizadores, produtores, script writers, fotógrafos,
directores artísticos e técnicos de toda a espécie, ainda que não reconheçam a
autoridade deste espírito de cooperação, nem mesmo qualquer tipo de cooperação
artística” (tr. J. M. M.).
Essa “doença crónica” parecia enraizar-se na diversificação dos núcleos de
experiência narrativa — o do story teller, o do romancista, o do jornalista — a que,
sem mencionar o cinema, Benjamin se referira em O Narrador. No tempo de
Hauser, porém, não faltavam exemplos de boa cooperação entre escritores e
realizadores: Graham Greene, no curto prefácio de The Third Man, a novela que
escreveu para servir de base ao script do filme homónimo de Carol Reed (1949; eles
já tinham trabalhado juntos em The Fallen Idol, 1948), explicava que ela “não foi
escrita para ser lida mas para ser vista” e dava conta da sua dificuldade em abordar
uma história directamente na forma script, dada a economia narrativa e o carácter
depurado deste, que renuncia à retórica literária:
“É-me quase impossível escrever um argumento para um filme sem primeiro escrever
uma história [uma novela]. Até um filme depende, além do enredo, de uma certa dose
de caracterização, disposição e atmosfera; e estas parecem-me quase impossíveis de
captar directamente em forma de script. (...) O Terceiro Homem, embora não escrito
para ser publicado, teve de começar como uma história, antes das aparentemente
intermináveis transformações de um tratamento para outro. Nestes tratamentos, Carol
Reed e eu trabalhámos em conjunto, calcorreando quilómetros de alcatifa por dia e
representando cenas um para o outro” (tr. J. M. M.).
Assim, antes do script, Greene escreveu a novela (que só publicou anos depois, em
1963): “o filme encontrara o seu escritor”, que aceitou partilhar com Reed as
sucessivas alterações a que ela foi sujeita. Comparando novela e filme, essas
alterações revelam pequenas e grandes reorientações do texto inicial — incluindo
supressão de cenas e de episódios inteiros — a que, de comum acordo, ambos
procederam. Concluía Greene:
“O leitor notará muitas diferenças entre a a novela e o filme, e não deverá pensar que
essas alterações foram forçadas ou feitas contra a vontade do seu autor, como também
é provável que não tenham sido por ele sugeridas. O filme, na verdade, é melhor que a
novela, porque, neste caso, é o seu estado acabado ”(tr. J. M. M.).
Outros autores, sobretudo de detective stories, foram também guionistas de cinema.
Um dos mais adaptados e mais adaptador foi, entre outros, Raymond Chandler
(1888-1959), criador de Philip Marlowe e que deixou novelas tão marcantes como
The Big Sleep (1939), Farewell, My Lovely (1940) ou The Long Goodbye (1953),
tornando-se num autor de culto. Mas Chandler e Greene não estavam na mira de
Hauser, que, apostado em abordar o cinema como grande arte do século, ignorou
“géneros menores” e a pop culture de Hollywood.
Curioso, do ponto de vista da metodologia da sua exposição, é que, no seu capítulo
final sobre o cinema, Hauser tanto tarde a citar filmes concretos; há uma menção
genérica (loc. cit.: 507) aos desenlaces dos primeiros filmes de Griffith, outra a
Chaplin (511), que contra a cooperação técnica tipicamente cinematográfica tendeu
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a “fazer tudo” (a ser realizador, autor do script, actor principal, autor da música). Só
na meia dúzia de páginas finais vem a jogo um par de russos (o Eisenstein do
Couraçado Potemkine, Outubro e A Greve, o Pudovkin de O fim de S. Petersburgo),
mas apenas para sublinhar o modo como entre o jovem estado soviético e a sua
intelligentzia cinematográfica houve desde cedo forte entendimento — “o filme
ajustava-se perfeitamente ao bolchevismo, com o seu romanticismo da máquina, o
seu feiticismo da técnica e a sua admiração pela eficiência”. Conclui Hauser a este
respeito, sem ter perdido tempo com estudos de casos ou análises de filmes (loc. cit.:
519-520):
“O filme é a única arte em que a Rússia Soviética atingiu importantes e justificados
êxitos. As afinidades entre o jovem Estado comunista e a nova forma de expressão são
evidentes. Ambos são fenómenos revolucionários que trilham caminhos novos, sem
passado histórico, sem tradições que limitem e paralisem, sem pressupostos de
natureza cultural ou de rotinas de qualquer espécie” (tr. J. M. M.).
Típico, também, da mesma época de reflexão sobre o cinema: no mesmo ano (1951)
em que Hauser publicava The Social History of Art, Guido Aristarco publicava o seu
Storia delle teoriche del film. Mas o teórico italiano fez do livro, em 1960, uma nova
edição revista e aumentada (que em Portugal viria a tornar-se obra de referência
para a cinefilia filo-comunista agrupada em torno da revista Seara Nova: tr. port.
História das Teorias do Cinema, vol. I 1961, vol. II 1963), a que acrescentou um
longo prefácio de quase 80 páginas. Ora, esse prefácio retoma literalmente, em
longas citações, «A Era do Filme» de Hauser: as suas primeiras 20 páginas resumem
as ideias, temas e argumentos do autor húngaro que, nove anos depois, ainda
delimitavam o campo de reflexão do italiano. E este também abordava, desde as suas
primeiras páginas (1961: 10-11), a “crise” das narrativas, tanto literárias como
cinematográficas, referindo-a nos seguintes termos:
“Depois de ter renunciado à trama — escreve Hauser — o romance moderno renuncia
também ao protagonista. Em vez do fluir dos acontecimentos, Joyce descreve o fluir
dos pensamentos e das associações; em lugar do herói único, o fluxo da consciência:
um interminável e contínuo monólogo interior. Insiste-se sempre na continuidade do
movimento, no ‘continuum heterogéneo’, na imagem caleidoscópica de um mundo
desintegrado. Apresenta-se uma nova interpretação do conceito bergsoniano do
tempo, que é simultaneamente uma purificação e um desvio desse conceito. Insiste-se
sobretudo na simultaneidade dos conteúdos da consciência, tanto para o indivíduo
como para a classe e a humanidade; insiste-se no constante confluir dos diversos
tempos, no fluir amorfo da experiência interior. (...) E a concordância entre os meios
técnicos do filme e as características do novo conceito de tempo é tão perfeita que
somos levados a julgar os modos temporais da arte moderna como nascidos do espírito
da forma cinematográfica e a ver no filme a forma de arte típica do momento histórico
actual [‘actual’ refere-se a 1960, J. M. M.].”
Duas constatações se impõem diante das reflexões de Hauser e do seu posterior
decalque por Aristarco. A primeira é a de que, para se ocuparem de cinema, ambos
desenvolvem previamente um amplo périplo pelo estado das artes e da literatura,
reconhecendo a intimidade dos laços e das contaminações existentes entre elas e os
filmes. No que toca à literatura, não se trata apenas de relacionar o cinema com a
moderna — a de Proust, Kafka, Joyce: anotava Hauser, citando o Marx da
Introdução à Crítica da Economia Política (loc. cit.: 519), que a epopeia grega e
Homero ainda hoje nos satisfazem esteticamente e fazem figura de “norma ou
modelo inatingível.” Segunda constatação: a centralidade do conceito de tempo de
Bergson na literatura e no cinema modernos não foi sublinhada em primeira
instância pelo Deleuze de L’image mouvement de 1983 e de L’image temps de 1985,
apesar da relevância que aqui adquiriu; Hauser propô-la em 1951 evocando o Jean
Paulhan de dez anos antes e Aristarco repetiu-a em 1960.
os Limbos, projecto que já acalentava quando ainda era cardeal. Os dois outros,
discorrendo sobre Céus e Infernos, fizeram circular (à margem da sua “infalibilidade
em matéria de fé”, vinda de Pio IX) propostas que põem em causa ficções
verdadeiras consagradas pelo aparelho.
(sobretudo, mas não só) ocorrências imaginadas que poderiam ter acontecido: esta
refere-se, tornando-os verosímeis, a possíveis, prováveis, futuríveis. Para referir
ocorrências de facto, a primeira mimetiza-as por palavras; para referir ocorrências
imaginadas, a segunda mimetiza a primeira. Ricœur identifica, a este respeito, três
tipos de exercícios miméticos correntes. E escreve Augé (loc. cit.), sintetizando
aquilo a que chamou as três mimesis:
“A mimesis I é uma ‘auto-mimesis’ — as diversas mediações simbólicas que, no seio de
um mundo dado, tornam a acção possível e pensável; a mimesis II é o mundo da
produção de enredos (mise en intrigue) e de narrativa — o das ‘configurações
narrativas’ que põem o Mundo no que a História ou as ficções contam; a mimesis III
é a interacção do mundo do texto com o mundo do ouvinte ou do leitor” (it. J.M.M.).
relação — por exemplo quando um mito “morto” (que perdeu a sua energia e carisma
originais) se perpetua em ritos que, encenados, parecem mantê-lo “vivo”.
Conhecemos a entropia que atinge episódios ritualmente celebrados apesar da sua
memória viva se ter apagado. Mas as sociedades tentam reanimar, em ritos (se
possível celebrados em “lugares de memória” e em datas simbólicas), narrativas que
reclamam, de diversos modos, o seu património — chamando por nós.
criaram uma sua segunda natureza, que refigura a primeira como um seu duplo e se
propõe como “alucinação verdadeira”. Depois, o audiovisual dominado pela
televisão e a convergência digital herdaram esses poderes e alargaram a hiper-
realidade do Lebenswelt.
A fórmula de Augé — “os outros vivem numa espécie de ficção a que não aderimos
mas que estudamos” — remete-nos para o exótico terreno onde ele estudou “ficções
particulares de lugares particulares”. Aí, passados sobreviveram com seus mitos e
crenças, fétiches, totens e tabus. Mas, uma vez expostos às narrativas de outros
próximos de nós, continuaremos a “não aderir a elas”, apenas as “estudando”? Ou,
imersos no mesmo etos, no mesmo aquário (Veyne) ou no mesmo epistema
(Foucault), a disponibilidade para partilharmos as “espécies de ficções” de
semelhantes altera a nossa observação, tornando-nos nelas implicados? Quem
observa outros com base nas análises qualitativas do sociólogo ou nas entrevistas do
antropólogo, ou quem ficciona criando egos alternativos figurados em personagens,
sente esboroar-se a fronteira entre observador e observado. As “espécies de ficções”
em que vivemos com outros tornam-se nossas, como as de Homero se tornaram para
os gregos. E os nossos mitos, fétiches, totens e tabus surgem-nos talvez como
reciclagens de outros mais antigos, traduzidos para o nosso habitus, nas linguagens
do mundo actual. Nestes casos a fórmula de Augé pede, creio, um reajuste: os outros
e nós mesmos vivemos em diversas espécies de ficções a que aderimos e que ao Reajuste
mesmo tempo estudamos. Diferentes sujeitos comparam narrativas, constroem
pontes entre si. Augé reconhece, de resto, a possibilidade de nos encararmos como
implicados numa rede de “espécies de ficções” interligadas pelos mais diversos vasos
comunicantes:
“A ficção dos outros muda de sentido a partir do momento em que tomamos
consciência de que todos vivemos de ficções. (...) Se conseguir desfazer-me da
‘unilateralidade do [meu] ponto de vista’, o facto de os outros viverem na ficção – ou,
digamos para afastar ambiguidades, no narrativo – contribuirá para os aproximar de
mim e a mim deles, porque também eu vivo na ficção e no narrativo (…). Os outros
ajudam-me a tomar consciência da dimensão narrativa de toda a existência”.
seus ideais, embora ela e Arthur tenham sido vítimas dos que, em nome desses
ideais, detinham o poder. São 17 páginas (101-117) de patética contenção, onde ela
conta a sua aventura, a do marido e de comunistas próximos, numa “história de vida”
cautelosamente auto-censurada — o que a protege da excomunhão de camaradas e
amigos. Rejeitou as “espécies de ficções” estalinistas, não as do mito fundador de
crença. E é muito rico o texto em que Spire apresenta Lise (pp. 88-95), concluindo
que “a sua incapacidade para pôr em causa aquilo em que crê explica ao mesmo
tempo a sua firmeza moral e a sua falta de lucidez por excesso de fé”.
A memória de Lise cobre o período que vai da guerra civil espanhola à ressaca do
relatório Kruchtchev, de 1956, sobre o estalinismo (longamente “ignorado” pelos
partidos comunistas europeus à excepção do italiano), passando pela resistência
anti-nazi, a deportação, a vivência do casal na nomenklatura checa, o processo de
Praga, a condenação, os trabalhos forçados, a reabilitação e o exílio, a escrita de
L’Aveu. Apesar da sua fidelidade política aos ideais que não abandonou, o exercício
passa em revista mais de vinte anos de história pessoal no seio do movimento
comunista internacional. Em nenhum momento lemos o que ela diz como uma
ficção: Lise quer contar “a verdade” dos factos, interpretando-os à luz das suas
convicções, embora reconheçamos nela a postura do unreliable narrator (aquele
cuja fiabilidade nos surge, dada a fragilidade da sua postura, como insuficiente).
Lendo a entrevista, apetece talvez encená-la na sua literalidade, satisfazendo a
“obrigação de não esquecer” e presentificando, num rito anamnésico, aquele
passado. Os dois protagonistas (entrevistada e entrevistador ou quem os
representasse) poderiam até ler em cena a transcrição da conversa, poupando-se
parte do trabalho de actor. E um terceiro leitor poderia intercalar na conversa
citações de L’Aveu respeitantes ao que Lise conta. Divaguemos ainda: um quarto
actor poderia assumir em cena o papel do antigo coro grego, representando a opinião
contemporânea sobre os relatos que vai ouvindo e que provavelmente situa mal, ou
sobre os quais tem dúvidas e um défice de informação. Tudo isto daria hora e meia
de teatro “de câmara”, onde em vez de uma peça ficcional se representaria uma
“narrativa de realidade” — uma história de vida protagonizada por alguém que, por
razões ideológicas, amacia parte do que se passou.
Como classificaríamos a encenação das memórias de Lise London, que não são uma
“espécie de história” ficcional, antes transporiam para a cena ou para o ecrã a leitura
da narrativa censurada de factos reais? Como um “documento histórico”? Um
documentário? Um rito celebratório? A resposta a esta questão é simples: perante a
entrevista Lise-Spire, sabemos que a entrevistada ali produziu uma série de relatos
Autobiografia autobiográficos; ora, na autobiografia, autor, narrador e protagonista coincidem; e
outros, a quem os seus relatos também se refiram, beneficiam do mesmo registo da
enunciação e do seu protocolo de veridicção — existem ou existiram de facto, e o que
sobre eles é dito é suposto ser “verdade”. O registo “verdadeiro” acentuar-se-ia se
ouvíssemos a entrevista na rádio ou a víssemos na televisão: trata-se, de facto, de
Lise e de Spire, gravados em tal data, tal local.
Mas que dizer de uma autobiografia que não é escrita pelo próprio — mas por um
ghost writer que trabalhou informações fornecidas pelo “autobiografado”? Aqui o
género desliza para um seu gémeo que em tudo o mimetiza, mas cujas garantias de
veridicção mudam: alguém se faz passar por outro, como na ficção em que o autor,
K., conta na primeira pessoa a história da personagem, também K., que no entanto
é ficcional e diferente desse autor — um ego experimental, como diria Kundera. O
narrador autodiegético tanto pode contar a realidade ou uma ficção, ou confundir a
primeira com a segunda. Se não sabemos que o autor-narrador-protagonista de uma
autobiografia é outro, não estaremos em condições de discutir o seu respeito ou
desrespeito pela mais básica convenção do género: realidade e ficção tornam-se
indistintos porque o dispositivo narrativo é o mesmo.
“A verdade de hoje será o erro de amanhã. (...) Mas a verdade de amanhã será também
o erro de depois... (...) Se eu sinto que a minha verdade de hoje é o erro de amanhã,
não sinto então tal verdade como verdade (...). Na medida em que a vivo, ela é um
absoluto. Que me importa admitir (...) que a Guernica amanhã será menosprezada, se
ela representa hoje para mim uma evidência de beleza? (...) É evidente que o conflito
absoluto-relativo se estabelece sobretudo ou apenas no domínio das verdades que nos
não são indiferentes, essas que jogam a nossa pessoa inteira, o nosso destino (...). É
precisamente nestas que, uma vez aceite uma, por mais que admitamos ser ela
164
temporária, a vivemos como absoluta e não a imaginamos como o erro de amanhã (...),
porque não podemos imaginar a pessoa que não somos. Saber que uma obra de arte
por mim hoje admirada será esquecida amanhã, em nada pode alterar-me a adesão
que me promove”.
Por outras palavras, no nosso posicionamento estético como no ético vivemos de
modo “absoluto” o “relativo”, embora cientes dessa relatividade, sob pena de
anularmos quem somos e de ignorarmos de que modo estamos “situados” no mundo
que para nós tem uma dimensão eminentemente actual — e que requer de nós um
comprometimento. Mais: defendemos argumentando em disputatio o “absoluto”
desse “relativo” porque ele constitui, para nós, prova de vida. Essa defesa não nos
impede de compreender, como exemplarmente fez Foucault, as verdades e os
enganos de epistemas que já não são os nossos; mas inibe-nos, face ao futuro
desconhecido, de adoptarmos, no presente, uma postura passiva, não-interventiva.
Man for all seasons é, antes de mais, o do seu tempo.
Existe um primado da ética sobre a estética, ou vice-versa? Velha questão, que está
connosco desde o séc. XVIII. Se olharmos para a diversidade do cinema
contemporâneo, por exemplo, e apesar dos experimentalismos formais que nele se
manifestam, é difícil não reconhecer que o juízo ético tende a ombrear com o juízo
sobre as formas, dada a responsabilidade social e política das significações das
histórias que ele conta. Fazem-se, evidentemente, filmes sobretudo preocupados
com o atingimento de deliberadas maneiras estéticas. Mas num tempo em que a
violência simbólica (portanto, cultural) tão acentuadamente regressou à vida das
sociedades, o juízo ético tende a reocupar um primeiro plano que perdera de vista na
travessia dos sucessivos modernismos (que se impuseram violentamente, tanto
contra a canga dos juízos éticos, quanto contra a dos juízos de gosto).
Da experiência do mundo corrente sabemos, por exemplo, que o valor da vida
humana é muito diversamente cotado em diferentes lugares e circunstâncias: ora é
entendido como a pedra sobre a qual assenta o contrato social herdeiro do
humanismo renascentista, ora é “barbaramente” desapreciado. Se diferenças como
esta coexistem na realidade material, exprimindo sedimentações civilizacionais tão
dramaticamente antagónicas, como não entender que diferenças equivalentes se
exprimam igualmente no universo da cultura, da narrativa e das artes? Mais uma
vez: a tolerância cultural e artística valoriza a relatividade, mas rejeita o relativismo
que enfraquece as opiniões críticas argumentadas.
O clássico preceito ético regulador da liberdade individual, “não faças a outrem o que
não desejas que te façam a ti”, poderia, então, não limitar o âmbito da sua aplicação
ao que fazemos na realidade de primeira ordem de Watzlawick, e ganhar espaço nas
duas outras ordens de realidade a que ele se referiu — a dos valores e a das entidades
imaginárias a quem não exigimos a satisfação do predicado da existência. Dito de
outro modo, esse princípio tende a produzir, por contágio, efeitos nas narrativas e
artefactos artísticos — no mundo das ficções, da novela e do romance, das artes de
cena e dos filmes. Como dizia Tarkovski no documentário que co-realizou com
Tonino Guerra: “Não se esqueçam de que serão sempre moralmente responsáveis
pelo que fizerem acontecer nos vossos filmes”.
A ideia de transferência
A IDEIA DE TRANSFERÊNCIA — transferência de conteúdos, formas, temas,
personagens, situações, técnicas e modos de fazer — é, aqui, capital para a
compreensão das ekphrasis, transmutações, adaptações e influências que regem a
circulação de soluções nas trocas e migrações interartes, inter-narrativas. Os trágicos
gregos transferiram personagens e enredos da epopeia e da poesia épica para as suas
peças; Coppola transferiu O coração das trevas de Conrad para a guerra americana
do Vietname; o West Side Story de Robert Wise transferiu Romeu e Julieta para a
guerra de gangs autóctones e porto-riquenhos da Nova York de 1961. “Fazer como...
ou a partir de...” é a embraiagem mais comum na criação narrativa e artística, como
na concretização de qualquer ideia.
Para as psicologias, transferir é deslocar valores ou características de uma pessoa
para outra, projectar noutro um afecto positivo ou negativo (como na experiência
165
A política No cinema, a politique des auteurs instalada pela nouvelle vague francesa e pelos
dos autores “modernos” europeus quebrou a hegemonia da indústria herdada do studio system
dos anos 30-50 e elevou os cineastas ao estatuto do criador artístico — o realizador
cinematográfico passou a ombrear com grandes romancistas, pintores e músicos,
abandonando a antiga dependência do entertainement e conquistando um lugar
entre os “intelectuais”. E esse “novo” reconhecimento do autor, herdado das
literaturas, deixou uma marca profunda na paisagem cultural da segunda metade do
século XX: esperava-se pelo último filme de Fellini, Antonioni, Bergman, como se
esperara pelo último romance de Thomas Mann, Faulkner, Camus. Na transição dos
anos 70 para os anos 80 do século XX, o “programa” moderno que já fora o de
Rimbaud cem anos antes — “il faut être absolument moderne” — pareceu esgotar-
se quer em matéria de temas quer de formas, e aquilo a que passou a chamar-se “pós-
modernidade” ou “tardo-modernidade” reinstalou uma nova liberdade que pôs em
causa os cânones dos modernismos e os seus déjà vus e deu origem a uma nova
política das mil flores — deixou, de novo, de haver obras de referência e uma
“tradição do novo” que fosse preciso respeitar. A percepção da ideia de crise da
narrativa é, assim, permanente; mas em certos períodos a história acelera ou
desacelera: a inovação muda de ritmo, tornando-se vertiginosamente rápida ou
repousando sem ansiedade em águas de acalmia. A questão central das narrativas
continua, porém, a ser a mesma: ainda queremos, hoje, contar histórias, “espécies
de ficções”? E, se queremos fazê-lo, que tipo de histórias nos interessam, e como as
contaremos?
Há uma primeira resposta a esta questão, vinda da antropologia, partilhada pela
generalidade das ciências humanas e que se enraiza no “bom senso” e na “sabedoria
das nações”: nunca deixaremos de contar histórias porque são elas que dão sentido
holístico à experiência humana do mundo. Cada nova geração precisa de story tellers
— como os pais que contam aos filhos, já deitados, histórias para os adormecer — e
essa necessidade é até animada pelo incansável desejo de repetição, de reiteração do
já narrado, e ganha a forma de um rito. Como sublinhou Blanchot, “a narrativa não
é o relato do acontecimento, mas precisamente esse acontecimento, a aproximação
desse acontecimento, o lugar onde ele é chamado a produzir-se” — e, acrescento, a
repetir-se. É na narrativa que parte da consciência reflexiva se fixa e que a
experiência ganha sentido e corpo e se inscreve, por apropriação, no vivido de quem
a ouve, lê ou vê.
E há também uma segunda resposta à mesma questão, vinda do universo autoral,
que diz sobretudo respeito ao estilo ou ao género, ao modo de contar histórias:
quereremos ainda fazê-lo à maneira de Homero, Dickens, Kafka, Faulkner, ou, no
cinema, repetir Eisenstein, Welles, Renoir, Antonioni? Para quem se embrenha no
mundo saturado de qualquer arte narrativa, é este o problema principal: que
histórias quero ainda contar e, sobretudo, como as contarei? Ao reflectir sobre as
narratividades do cinema e suas cercanias, tenho em conta, quer a primeira, quer a
segunda resposta a esta questão: a antropológica e a criativa, porque as narrativas
vivem, tanto de repetições desviantes e de metamorfoseados regressos do “mesmo”,
quanto de “pequenas diferenças excessivas” que as tornam únicas e diferentes.
Mas a questão de saber que histórias queremos ainda contar e como as contaremos
Quatro subdivide-se, mal a formulamos, em várias outras, que podem exprimir-se
questões recorrendo a categorias convencionais. Questão de forma: queremos contar histórias
ainda obedientes à sequência princípio-meio-fim e por esta ordem? Questão de
167
para ali enviado para tentar manter a Rússia em guerra com a Alemanha, objectivo
que ninguém teria podido alcançar. Significativo é que, talvez devido ao carácter
fragmentário e pouco interligado dos diversos episódios que ali narra, Maugham
anote, nesse prefácio, que há uma ideia de novela onde o enredo...
“...começa geralmente por acaso (...), se arrasta inconsequentemente e se some,
deixando traços indecisos, sem nenhuma conclusão; arma uma situação interesssante
e deixa-a no ar, para seguir uma direcção diferente, que nada tem a ver com a história;
não se prende a nenhuma ideia de clímax e desperdiça inconsequentemente os seus
efeitos dramáticos. Existe uma escola de novelistas que considera isto o modelo
perfeito da ficção. (...) Quando as circunstâncias que relatam parecem levá-los a um
efeito dramático, fazem o possível para evitá-lo. Não apresentam uma história, mas
sim material com que o leitor pode construir a sua, a seu modo”.
Leitores destas palavras em 2018 não deixarão talvez de reconhecer a sua
actualidade, como se, embora escritas há 90 anos, elas ainda descrevessem com
pertinência opções narrativas e dramáticas de autores contemporâneos, que
preferem a deriva, o desvio e a inconclusividade (uma estratégia esboçada no séc.
XVIII mas que demorou a ombrear com o gosto dominante). Mas, apesar do carácter
fragmentário do que narra em The British Agent, Maugham estava longe de ser rever
nessa “escola de novelistas”, defendendo, imediatamente a seguir, uma ideia de
enredo bem mais tradicional e que o coloca entre os herdeiros do cânone
superficialmente dito néo-aristotélico:
“Um enredo tem certas características que não podem desprezar-se. Tem um princípio,
um meio, um fim e é completo em si mesmo. Começa com uma série de circunstâncias
que têm consequências, embora as suas causas possam ser desconhecidas; e essas
consequências, por sua vez causas de novas circunstâncias, prosseguem até ao ponto
em que o leitor se sente satisfeito por não serem elas as causas de posteriores
consequências dignas de consideração. Significa isto que a história deve começar em
determinado ponto e acabar noutro igualmente determinado. Não deve vaguear
desordenadamente; deve seguir, desde a exposição até ao clímax, uma curva definida
e rigorosa”.
Foi a esta canónica forma de composição e à sua dinâmica interna de causa-efeito,
narrada em continuidade diegética, que Maugham quis obedecer em The British
Agent, dando aos diversos episódios uma sequencialidade que “não imita a vida”,
antes “a usa como matéria-prima que a ficção arruma de maneira engenhosa”. A
artificiosa composição a que deste modo se chega adopta o método do clássico story
teller, que inventa acontecimentos e os interliga, respeitando os protocolos da
verosimilhança — outra herança maior da Poética.
Revisitada a nove décadas de distância, pode parecer estranho que a exposição, por
Maugham, desta dupla doutrina da novela, ainda pareça espelhar suficientemente
duas opções narrativas e dramáticas que, vindas da literatura, tiveram depois tão
forte expressão no cinema e nos seus filmes: o cinema moderno e de autor
experimentou muitas vezes o primeiro modelo — o que “não apresenta uma história,
mas sim material com que o leitor pode construir a sua”; o cinema narrativo
dominante, o do main stream, preferiu nunca voltar costas ao segundo modelo — o
que vive de princípio, meio e fim e é levado a um desfecho conclusivo numa diegese
“consistente”. Livros e filmes atravessaram o século XX e instalaram-se no século
XXI na senda de uma ou de outra destas estratégias dicotómicas.
A novela de Maugham veio a ser livremente adaptada ao cinema por Hitchcock, a
partir de apenas dois dos seus capítulos (Secret Agent, 1936).
mas na sua relação com a história que vai contar — e deixando, de entrada, uma
sugestiva nota sobre a antiguidade desta:
“Acontece a [esta] história o que (...) acontece também aos homens, e entre estes (...)
aos contadores de histórias: ela é muito mais velha que os seus anos; a sua vetustez não
pode ser medida em dias, nem o tempo que sobre ela pesa por revoluções em torno do
sol. Numa palavra, não é propriamente ao tempo que esta história deve o seu teor de
antiguidade (...)” (tr. adapt., J.M.M.).
Perto do fim do livro, um grande tédio apodera-se dos internados, que ora estudam
esperanto e tentam falá-lo à mesa, ora se dedicam a jogos de salão e a sessões de
espiritismo. Ao cabo de anos no Berghof, Hans já não usa relógio, que um dia lhe
caiu ao chão e que ele não mandou consertar: só lhe interessa o tempo que a erva
demora a crescer e a sucessão das incertas estações “lá de cima”. Mas eis que de
súbito estala, “como um trovão”, o que virá a ser a Grande Guerra: Hans, que já não
lê jornais e a quem pouco interessa o que se passa “lá em baixo”, nem se teria dado
conta do que sucedeu se não fossem os outros, que agora não falam de outra coisa e
que, em tumulto, desertam do sanatório. Curados ou moribundos, os tísicos voltam
à vida deixada para trás e que de súbito clama por eles, porque, se ainda estão vivos,
de alguma serventia serão. Hans não está curado, mas também ele “desce” no magote
e parte, num comboio apinhado até aos estribos, para, como bom alemão, ir
guerrear. A sua jornada na montanha mágica desemboca num anónimo campo de
batalha onde, fugidia silhueta, o entrevemos uma última vez: encharcado pela chuva
e enterrando-se na lama, foge de obuses, pisa cadáveres de amigos e tirita, trôpego e
de baioneta em riste, em direcção a trincheiras inimigas. Três mil homens avançam,
só lá chegarão dois mil. E Mann conclui assim a sua história:
“Adeus! Agora sim, vais viver ou morrer! Tens poucas hipóteses. Este baile macabro
para onde te deixaste arrastar durará ainda alguns anos criminosos e não queremos
apostar muito na possibilidade de escapares. Para falar com franqueza, não sentimos
grandes escrúpulos ao deixar sem resposta esta questão” (tr. adapt., J.M.M.).
A montanha mágica foi adaptado ao cinema por Hans Geissendorf (1982).
Há, porém, outras viagens, desvios e derivas que começam por ser abruptas “quedas
em si” antes de se tornarem “físicas”. Veja-se a de Kees Popinga em O homem que
via passar os comboios, de Georges Simenon (1938): uma noite ele descobre o seu
patrão, respeitável abastecedor de navios, embriagado num sórdido botequim de
No botequim Groningue que normalmente não frequentaria; ouve-o e percebe que,
de Groningue fraudulentamente, o homem levou a firma à falência e se prepara para simular um
suicídio e para desaparecer com o que conseguir levar. Popinga fica, de súbito, sem
emprego e sem futuro: aquela conversa fracturou o seu tempo num antes e num
depois. Na manhã seguinte, para espanto da esposa, não se levanta da cama: a sua
vida, até ali feita de ingénuas certezas e de prudentes renúncias, desabou e nada
voltará, para ele, a ser como era. Sai de casa, virando costas a mulher e filhos, para
Amesterdão, numa nova vida marginal onde anula os valores que o regiam; mas
nessa vida assedia e mata uma dançarina, amante do patrão, que o desprezou e se
riu dele. Torna-se num fugitivo de quem os jornais falam. Preso em Paris quase por
acaso, fecha-se num total mutismo. Dado como louco e internado num asilo da sua
cidade natal, pede um caderno para escrever a verdade sobre o caso Popinga. Mas
o caderno ficará em branco. Premissa da novela: se não sabes viver livre, não te
desamarres do que te sustém.
Reavaliemos o contado: rodeado de tísicos que recaem e vão morrendo, Hans deixa-
se cativar pela Chauchat, com quem de início não simpatizara porque ela batia com
a porta ao entrar no refeitório do Berghof. O agrimensor K. rouba Frieda a Klamm
para impor a este um improvável encontro “entre homens” que clarifique o seu
destino. Popinga mata a amante do patrão na primeira visita que lhe faz porque ela
se ri dele e do seu desejo de dormir com ela, e assim sela o seu destino. Eis três
histórias, vividas em margens, sobre devir outro, sobre sexo e morte. Margens,
desvios e derivas espaciais, mas também do tempo: o romanesco usa-os — sanatório,
aldeia longínqua, fuga — para se distanciar de percursos e cronologias correntes e
criar bolhas espacio-temporais onde a lógica e a motivação dos comportamentos
175
um proibido fogareiro a álcool para nele fazer chá e que espera ir viver para Paris. O
narrador apaixona-se vagamente por ela, mas nunca tal amor se tornará físico. Stasia
acabará por se ligar a um primo dele, que de início desprezava e que, para melhor
lhe fazer a corte, também se mudou para o hotel.
Simbolicamente, no fim da novela de Roth o Savoy arde e no incêndio perece parte
dos seus hóspedes miseráveis. Mas, antes, instala-se nele um financeiro emigrado e
enriquecido na América, Bloomfield, filho de um falecido Jechiel Blumenfeld local,
que toda a gente vem visitar para lhe propor negócios e para lhe pedir empréstimos;
mas o grande mecenas partirá à sucapa, no tumulto que talvez tenha provocado o
mortífero incêndio, deixando à cidade uma nova sala de cinema e uma fabriqueta de
brinquedos — investimentos perdulários com que parece tentar reconciliar-se com
um passado a que está a virar costas: nenhum negócio ali o interessa; ele só voltou à
cidade, uma última vez, para visitar a campa do pai. Quanto a Gabriel, foi três anos
prisioneiro de guerra na Sibéria e depois “operário, trabalhador rural, guarda-
nocturno, bagageiro e ajudante de padeiro”; mas na escola teve luzes de grego e latim
e aprendeu quem foram Cristovão Colombo e Alexandre da Macedónia, o que o
tornou num “homem culto”. Também ele espera viajar para Ocidente, mas chega ao
Savoy apenas com a roupa que traz no corpo — um tio cede-lhe um fato que o torna
apresentável. Quando pensa na sua vida, vê “o soldado, o assassino, o quase
assassinado, o ressuscitado, o prisioneiro, o vagabundo”. No fim, porque Bloomfield
o contratou como secretário e lhe pagou bom dinheiro, talvez possa finalmente
concretizar o sonho de ir conhecer Paris — a Paris para onde gostaria de ter ido com
Stasia e onde o próprio Roth veio a morrer, aos 44 anos, no ano em que estalou a
Segunda Guerra. Mas o sonho que anima o protagonista não é parisiense: nas
últimas linhas da novela, partindo com um conhecido num comboio de emigrantes
da Eslavónia, ouve-o dizer: “Quando eu chegar a Nova York, a casa do meu tio...”, e
lembra-se de um amigo que também passava o tempo a suspirar pela América. Quase
40 anos depois, Elia Kazan veio, por seu turno, recordar que a terra prometida dos
centro e leste-europeus foi durante décadas a que ficava à sombra da estátua da
Liberdade.
Hotel Savoy bem poderia ter sido filmado pelo Fellini de Roma, Amarcord e La nave
va, se a este alguma vez tivessem interessado os esfarrapados migrantes e os
pequeno-burgueses da mitteleuropa pós-prussiana dos anos 20, ou a exilliteratur
posterior a 1933, a dos intelectuais em fuga dos plenos poderes de Hitler. Mas Fellini,
romano de Rimini nascido em 1920, cresceu e chegou ao cinema na Itália de
Mussolini e tinha outro mundo com que se ocupar — o seu. Os escritos de Roth, que
os nazis teriam gostado de queimar e talvez tenham queimado, deram origem,
sobretudo a partir dos anos 60, a pelo menos 16 filmes e adaptações televisivas na
Alemanha e na Áustria — et pour cause — incluindo A rebelião, de Michael Haneke
(1993), a maioria dos quais pouco é hoje recordada (a primeira adaptação fora
americana, dos anos 30). Também o italiano Ermanno Olmi dele adaptou A lenda
do bebedor sagrado (1988).
Certo é que a simples descrição de um lugar e de um ponto de vista sobre ele pode
sugerir ou oferecer, por vezes, a ideia para um livro ou para um filme. Deixemos o
Na Roma de Savoy de Roth e pensemos na Roma dos telhados tal como se vê do terraço de
Palomar Palomar, de Italo Calvino (1983). A cidade que Palomar dali observa nada tem em
comum com a das ruas, praças e calçadas lá de baixo: é a dos pardais, dos pombos
invasores e dos estorninhos migrantes. Vista dali, diz o autor, não se imagina que
Roma tenha chão e subsolos. E, em tempo de câmaras montadas em drones
teleguiados, apetece pensar que é possível filmá-la directamente, sem ter de a
construir em estúdio e sem recurso a imagens geradas em computador. Descreve-a
assim Calvino:
“A forma verdadeira da cidade está nestes altos e baixos de tectos, telhas velhas e novas,
redondas e chatas, chaminés finas ou grossas, alpendres de palha ou telheiros de
lusalite ondulada, parapeitos, balaustradas, pilares, suportes que sustentam vasos,
reservatórios de água feitos de chapa, sotãos, clarabóias de vidro, e sobre tudo isto a
floresta das antenas de televisão, direitas ou tortas, cromadas ou ferrugentas, (...) todas
magras como esqueletos e inquietantes como totens. (...) Terraços proletários
enfrentam-se uns aos outros com os seus estendais de roupa e tomates plantados em
alguidares de zinco; terraços de luxo, com trepadeiras agarradas a armações de
177
narrador dos dois primeiros livros como apenas mais uma das personagens
observadas); o de Clea regressa à posição do narrador dos dois primeiros.
Curiosamente o Quarteto, solidamente ancorado na Alexandria quase-real de entre-
duas-guerras, nunca suscitou, como um todo, o interesse do cinema. Apenas foi feita
uma adaptação livre de Justine assinada por George Cukor (1969), com Anouk
Aimée na protagonista; mas essa adaptação transformou a novela, ignorando as três
outras, num thriller de amor-&-espionagem recheado de tráfico de armas e só
remotamente durrelliano (o realizador inicial do filme foi Joseph Strick, substituído
por Cukor já em fase adiantada da produção).
A complexidade do conjunto do Quarteto, os seus múltiplos e sobrepostos registos,
atmosferas e enfoques, o grande número de personagens e de micro-acontecimentos
narrados, terão dificultado a sua abordagem fílmica: seria preciso, para adaptar a
obra no seu todo, reduzir, simplificar; sempre foi difícil pôr em script mil páginas de
romance, obrigando a suprimir personagens e parte dos enredos. Mas tais
dificuldades nunca impediram as adaptações cinematográficas do Guerra e Paz de
Tolstoi. Abdicando da totalidade do Quarteto, o cinema perdeu a oportunidade de
se confrontar com um monumento literário incontornável, feito nos meados tardios
do séc. XX, e que se tornou em objecto de culto para sucessivas gerações de leitores
— um empreendimento que até foi contemporâneo da primeira geração de cineastas
da nouvelle vague e do cinema moderno europeu.
“FADE IN:
EXTERIOR, DIA — SIMPLES IMAGENS DE ÁRVORES
VEMOS coqueiros semi-distorcidos como num sonho. Aqui e ali surgem colunas
de fumo colorido movendo-se no ENQUADRAMENTO, amarelas, depois violetas.
MÚSICA começa baixo, sugerindo 1968-69. Talvez "The End" pelos Doors.
Agora NO ENQUADRAMENTO MOVEM-SE helicópteros, formas agrestes que
parecem planar ao acaso. Um deles, fantasmático e em GRANDE PLANO, flutua
sobre as árvores e subitamente, sem aviso, elas INCENDEIAM-SE no vermelho
alaranjado das chamas do napalm.
A CÂMARA MOVE-SE AO LONGO das árvores que ardem enquanto
os helicópteros-fantasmas vão e vêm no fumo.
DISSOLVE PARA:
INTERIOR, DIA — HOTEL, SAIGÃO
GRANDE PLANO invertido do rosto hirsuto de um homem jovem. É WILLARD,
capitão do exército. Ele ABRE OS OLHOS... O seu olhar é intenso e vago. A CÂMARA
MOVE-SE em torno dele, que fixa a ventoínha rotativa no tecto do quarto.
EXTERIOR, DIA — IMAGENS DOS HELICÓPTEROS
Eles continuam a voar devagar e pacificamente sobre a selva que arde. Os fumos
coloridos vão e vêm. Morrison continua a cantar "The End".
INTERIOR, DIA — HOTEL, SAIGÃO
A CÂMARA MOVE-SE lentamente no quarto... VEMOS WILLARD. Ele vai à janela
para espreitar, através dos estores, a movimentada rua de Saigão.
WILLARD (V. O.)
Saigão... merda. Ainda estou em Saigão. Cada vez que acordo
penso que estou de volta à selva.
Regressa à cama, deita-se. Tem a barba por fazer, está exausto, parece bêbado.
VEMOS garrafas de álcool, fotografias e documentos desarrumados sobre a mesa.
WILLARD (V. O.)
Quando fui a casa de licença ainda foi pior. Acordava sem saber
onde estava. Quase não disse uma palavra à minha mulher
até ter dito sim ao seu pedido de divórcio. Aqui, só queria estar lá.
Lá... só pensava em voltar para a selva.
Estou aqui há uma semana. À espera de uma missão. E a amolecer.
A cada minuto neste quarto fico mais fraco. (...) De cada vez que
olho à minha volta, estas paredes apertam-me mais e mais.
Ele está agora de pé, nu, num transe qualquer, bebendo e treinando artes marciais
até que cai, desamparado, no chão.”
archplot clássico ancorado num inciting incident; ou The Writer’s Journey (1992),
de Christopher Vogler, que adaptava The Hero with a Thousand Faces (1949), de
Joseph Campbell, por sua vez a adaptação, às narrativas, dos Ritos de passagem
(1909) de Van Gennep. Apesar de, na sua espartilhada diversidade, se dar a ler como
uma espécie de escolástica do screenwiting, este corpus não perdeu interesse: sem
o conhecermos, não perceberemos como foi o cinema narrativo lidando com a
estrutura e a organização interna das histórias que conta — ele constitui um pequeno
bosque em que qualquer pedagogia especializada precisa, temporariamente, de se
internar.
20 anos depois Há 20 anos, em Por quê tantas histórias — o lugar do ficcional na aventura humana
(escrito na segunda metade dos anos 90 mas só editado em 2001), assumi que se
justificava avaliar os núcleos de experiência e as explícitas normatividades que
transpiravam desta bibliografia. Tive, então, boas razões para o fazer: nos anos 80
não existia em Portugal qualquer ensino aplicado de escrita para cinema e, para o
criar e instalar, era preciso alicerçá-lo numa literature review e num estado da arte
que permitisse a constituição de um corpus reflexivo que era, como disse, sobretudo
americano. Mas a escola que dava os primeiros passos neste ensino — a Escola de
Cinema do Conservatório Nacional, depois Departamento de Cinema da ESTC —
nascera (em 1973) da geração do novo cinema português, sendo seus anjos tutelares
o cinema de autor da nouvelle vague francesa e o cinema moderno europeu, que
deliberadamente não produziram reflexão própria e consistente sobre as
narratividades cinematográficas. Havia, sim, uma voluntária incultura (que se dava
a ler como contra-cultura ou como cultura selvagem, meramente assente no
desprezo por quaisquer cânones) sobre esse corpus, embora nos mentideros de
bastidor se acusasse o cinema português de ser sobretudo vítima da sua
“incapacidade para contar histórias”. Estabilizar um tal corpus e manter com com
ele uma relação crítica pareceu-me então indispensável para instalar uma pedagogia,
embora empreendendo um exercício que, por dar atenção a americanos herdeiros do
studio system, era, na época, “politicamente incorrecto”.
À margem dessa incultura deliberada, em grande parte promovida pelo meio
profissional, tinha-se entretanto imposto, no ensino universitário, a herança
estruturalista, sobretudo francófona, que, especialmente ao longo dos anos 70,
abordara a semiologia e a semiótica da imagem a partir da linguística, afastando-se
de uma pedagogia aplicada e privilegiando abordagens teóricas inspiradas pelo
linguistic turn para-filosófico dos estudos em comunicação. Esta abordagem, que
olhava para o cinema como mais uma “linguagem”, contribuiu, a seu modo, para o
codificar e gramaticalizar, mas tratou os filmes como cadáveres destinados a serem
dissecados em aulas da nova anatomia: estudava-se a sua retórica e significância,
mas não os modos de os fazer. Semiologia e semiótica, no seu forte pendor teórico,
ajudavam a compreender mas não a estruturar, em concreto, histórias e filmes.
Mais tarde, em Culturas narrativas dominantes — o caso do cinema (2009), propus
uma abordagem não doutrinária e a-normativa dos ensinamentos dos “manuais” de
escrita para cinema, entendendo as estruturas narrativas neles propostas como
jogos; dediquei-me, ali, a analisar ludicamente o que designei por Big Game Closed
Plot (o grande jogo do enredo fechado) — apenas um dos planaltos da vasta paisagem
marcada pela diversidade de aberturas a novas morfologias e arquitecturas
narrativas contemporâneas, oriundas da literatura, da dramaturgia e das que se
testavam em outras artes da cena. Hoje, a literacia sobre o corpus desses manuais e
sobre a literatura deles afluente generalizou-se, embora em boa parte estereotipada
e caricatural, alimentada por sínteses simplificadoras e por vulgatas. Como sempre
acontece, as sínteses de uma época adquiriram a forma de sebentas e de syllabus
feitos por vulgarizadores que visam “democratizar” o ensino, “facilitando-o” e
“resumindo-o”: esses sylllabus, muitas vezes oferecidos como cursos pagos que é
possível “frequentar” à distância, proliferam na internet e, salvo excepção,
pretendem ensinar em cinco horas o que deliberadamente se ignorou durante
cinquenta anos.
Reescrita e Em matéria de aprendizagem de escritas há, porém, um obstáculo incontornável:
polimento como melhor sabe quem escreve, um dos principais segredos oficinais da escrita é a
reescrita e o seu paciente polimento — tarefas lentas e morosas que requerem tempo
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série de partidas que se arrasta por 25 horas. Mas o calcanhar de Aquiles de Eddie é
o álcool: depois de ter ganho a Fats 18 mil dólares, embebeda-se e vai perdendo jogos
e todo o dinheiro. Com duas últimas notas amarrotadas no bolso, ainda pede ao
adversário que continuem a jogar mas este declara que o jogo acabou e Eddie cai,
ébrio, no chão. O filme poderia terminar aqui, na mortífera “25ª hora” de Eddie:
seria uma curta-metragem sobre um jovem excessivamente auto-confiante, que
desafia um jogador bem mais experiente e acaba por este esmagado. Esta primeira
parte do filme é autónoma, tem o seu próprio princípio, meio e fim e não pede
qualquer continuação inevitável. Mas Eddie “ressuscita” como o canónico náufrago
que afinal não morreu na praia, e inicia-se uma longa segunda parte onde conhecerá
Sarah, alcoólica como ele, que tenta regenerá-lo e regenerar-se a si própria. Num
final resolutivo, Sarah morre, Eddie volta a desafiar Fats e desta vez ganha, mas
acaba proibido pelo seu novo e poderoso manager, Bert Gordon, de voltar a jogar —
é proscrito do mundo do bilhar.
Quase 40 anos depois, em Gladiator (2000), Ridley Scott ainda usou, para a longa
primeira parte do filme, o design conceptual do primeiro acto de The Hustler: em
180 d.C., Maximus — jovem general romano a quem o velho Marco Aurélio quer
passar o poder — é vítima do golpe de estado urdido pelo filho do imperador,
Commodus, que mata o pai e precisa de eliminar Maximus, seu principal rival. Este
foge, ferido pelos pretorianos, para tentar salvar a mulher e o filho, que ignoram o
que se passou e o esperam, longe, em casa. Mas os esbirros de Commodus
antecipam-se e matam-lhe a família. A primeira parte do filme acaba quando,
exausto e enfraquecido pelos ferimentos, Maximus chega finalmente a casa, que
incendiaram e onde a mulher e o filho foram assassinados. Então cai como morto: o
seu mundo está destruído. Não tem motivos para “ressuscitar”: só deseja juntar-se à
mulher e ao filho. Mas “ressuscita” como Eddie em The Hustler, e por isso a história
continua. O primeiro acto de Gladiator conta o fim de um mundo — aquele onde o
protagonista vivia no início da história.
Mónica e o desejo e The Hustler são exemplos de filmes construídos em três actos
ou partes, mas onde a passagem de um acto para o outro não é (ainda) feita por um
plot point como Field o definiu em 1979 (um gancho de enredo que impõe mais
história, inevitável gerador de continuidade e causalidade neo-aristotélicas). A fuga
de Harry e Mónica não impunha a narrativa do Verão, como a derrota e a queda de
Renoir, Eddie não impunha a sua “ressurreição”. Mas já em 1951, em The River, Jean Renoir
1951 filmara, longe da estrutura em “actos” ou em “partes”, o primeiro amor de três moças
adolescentes, duas inglesas e outra filha de mãe indiana e pai britânico, nas margens
de um rio sagrado na Índia pós-colonial (a independência foi declarada em 1947,
mas subsistiram no país famílias de industriais e de comerciantes britânicos). Renoir
apostou na narração, em voice over e em tom memorialista, de Harriet, a mais jovem
das três moças (as outras são Valérie e Mélanie); a acção desenvolve-se em torno do
Diwali, festa anual das luzes, durante a visita de um desconhecido, o jovem capitão
John, que voltou da guerra ferido e tem uma perna de madeira, por quem as três
raparigas se sentem atraídas. A fluidez dominante da voice over e dos
acontecimentos a que ela se refere apaga qualquer dependência de uma estrutura
narrativa baseada em “actos” ou “partes”: nada aproxima o filme do que viria depois
a ser a estrutura marcante do main stream. Renoir ignorou-a deliberadamente,
evitando quaisquer decisivos turning points e preferindo-lhes o mero fluir dos
acontecimentos, que se sucedem sem sobressaltos e com inteira naturalidade. E
misturou a sua ficção com descrições da Índia que, embora encenadas, evocam a
curiosidade etnográfica por uma civilização exoticamente amável, com os seus
homens meditativos e sagrados e muito próxima da natureza — mantendo a
expositio até ao fim.
Tal não significa que The River não contenha uma clara exposição inicial que
apresenta a família de Harriet e seus vizinhos (o equilíbrio inicial do mundo da
história); a perturbatio (ou inciting incident) causada pela chegada do visitante; o
fim do mundo onde as adolescentes brincavam juntas no mesmo jardim e sua
alteração pelo modo como vão disputar as atenções do recém-chegado (é o tema do
filme, assumido por Valérie: o adeus à infância); um acidente traumático (o irmão
de Harriet é morto pela cobra que tentava “encantar”); e a sábia aceitação final dos
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factos da vida por Mélanie, a hindu-britânica, que, como John, vive um problema de
identidade: ela terá de optar pela Índia ou pela Inglaterra, ele terá de aprender a
viver sem uma perna num mundo onde toda a gente tem duas. Em pano de fundo, o
rio que corre imutável, alheio aos dramas que nas suas margens se sucedem.
Estes exemplos põem em evidência dois regimes de filmes: os resultantes de uma
estrutura em actos que demorou a estabilizar, depois tornada em molde por autores
como Field (a eficácia narrativa do “paradigma” ia torná-lo na forma a imitar); e os
resultantes da experimentação independente de tradições e escolas, gerando filmes
que, como na literatura e no teatro, inventavam o seu design, fugindo de moldes
heteronómicos e acreditando que os públicos não estavam irremediavelmente
dependentes de um cânone. Porém, Renoir, Bergman e a maioria dos seus
contemporâneos não se interessaram por um cinema solipsista e que não cativasse
públicos: queriam encher salas e trabalhavam para isso. Mas nem Bergman se
manteve fiel aos três actos de Mónica e o desejo (embora a eles tenha regressado),
nem Renoir foi um militante anti-actos. Para muitos cineastas, mesmo se
desobedientes a modelos narrativos, a organização em actos foi um utensílio a que
recorreram em certo projecto — pense-se no Dune de David Lynch (1984), autor que
mais tarde tanto combateu convenções narrativas. Os três (ou quatro, ou cinco) actos
vêm, decerto, de uma forte tradição, enraizada num pesado etos e habitus
dramatúrgico. Mas são uma estrutura dúctil, maleável: são um mero dispositivo
narrativo disponível — um entre outros.
Sommaren med Monika, Ingmar Bergman, 1953 (fotogramas reenquadrados do filme).
The River (Le Fleuve), Jean Renoir, 1951 (fotogramas reenquadrados e imagens promocionais do filme).
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Seria impossível invocar aqui, porque são incontáveis, os romances e filmes que
ignoram a construção em três actos ou partes e são explicitamente arquitectados por
um número muito variável de segmentos ou capítulos. E há autores para quem
outras fórmulas arquitectónicas se tornam invariantes ou quase, dando testemunho
da sua fidelidade a estruturas inteiramente pessoais. Numa entrevista incluída em A
arte do romance, o entrevistador pede a Milan Kundera (1986: 108-110) que fale do Kundera, 1986
“plano arquitectónico dos seus romances”, porque todos eles, menos um, “estão
divididos em sete partes”. Kundera empreende então uma inesperada explicação
sobre a inevitabilidade dessas sete partes, para no fim concluir:
“Não é uma mania supersticiosa sobre um número mágico nem um cálculo racional, é
um imperativo profundo, inconsciente, incompreensível, arquétipo de uma forma a
que não consigo escapar. Os meus romances são variantes de uma mesma arquitectura
fundada no número sete.”
Mais adiante (op. cit.: 195-196), o mesmo Kundera explica que o romancista trilha,
através de “egos experimentais” (personagens, dramatis personæ), derivas que o
fazem mergulhar em questões que a filosofia também aborda (mas esta sem
histórias). E é expressiva a sua defesa da composição digressiva no romance do séc.
XVIII (onde destaca Fielding, Goethe e Laclos). Ele prefere Sterne, que descobriu
uma nova forma de deambulação entre mundos possíveis:
“De todos os romances dessa época o meu preferido é Tristam Shandy [The Life and
Opinions of Tristram Shandy, Gentleman], de Laurence Sterne. (...) Sterne abre-o
evocando a noite em que Tristam foi concebido, mas mal começa a falar dela outra
ideia sedu-lo e essa outra ideia, por associação livre, suscita outra reflexão, depois
outra anedota, de maneira que ele vai de digressão em digressão e Tristam, herói do
livro, é esquecido por umas boas cem páginas. (...) A poesia da existência, diz o
romance de Sterne, está na digressão”.
A estrutura de cada obra foi por vezes um jogo iniciático para o próprio autor, como
no Quarteto de Durrell. Já em Ulysses, que se ocupa de 18 horas da vida do seu Joyce,1922
protagonista Leopold Bloom e de Stephen Dedalus em Dublin (entre as 8 da manhã
de 16 de Junho de 1904 e a madrugada do dia seguinte), Joyce glosou a Odisseia de
Homero, organizando o livro em três partes (Telemaquia, Odisseia e Nostos) e 18
episódios ou capítulos que se referem a personagens ou segmentos narrativos
homéricos: na primeira, Telémaco, Nestor, Proteu; na segunda, Calipso, Lotófagos,
Hades, Éolo, Lestrigões, Cila e Caríbdis, Os rochedos falantes, As sereias, Ciclope,
188
Nausicaa, os Bois do Sol, Circe; na terceira, Eumeu, Ítaca, Penélope. Mas esta
estrutura, que Joyce quis deliberadamente lúdica e irónica, labiríntica e charadística,
não consta do texto original publicado por Sylvia Beach em Paris em 1922 nem das
edições seguintes: Joyce expô-la em carta a um amigo, Carlo Linati, em 1920, em
forma de um esquema onde estabelece o horário da acção de cada episódio, atribui
a cada um uma cor dominante, enumera as personagens clássicas a que as suas se
referem, alude à disciplina com que está relacionado (teologia, história, filologia,
mitologia, química, etc.) e apontando, ainda, as relações metafóricas entre os seus
segmentos e os da epopeia inspiradora. E no ano seguinte enviou a outro amigo,
Stuart Gilbert, um novo esquema que completa o primeiro e onde também alude aos
tipos de escrita dos seus 18 segmentos (narrativa jovem, narrativa madura,
catecismo, narcisismo, incubismo, labirinto, alucinação, etc.); sugere ainda com
que orgãos do corpo está cada segmento relacionado e identifica a cena dominante
em cada episódio (torre, escola, casa, banho, almoço, biblioteca, taberna, hospital,
bordel, etc.). O “esquema Linati” e o “esquema Gilbert” tornaram-se, assim, em
curiosos “guias” de leitura propostos pelo próprio autor (Gilbert publicou o “seu” em
James Joyce's Ulysses: A Study, 1930) — mas desconhecidos da generalidade dos
leitores. Joyce mudou de estilo de episódio em episódio, discorrendo entre narrativa
clássica, diálogos e monólogos dependentes do fluxo de consciência: as últimas 50
páginas do romance são um monólogo interior de Molly, esposa de Bloom, redigido
sem qualquer pontuação.
Ulysses foi considerado “obsceno” e proibido nos EUA: só em 1934 ali foi publicado
(e no Reino Unido só em 1936). Ao correr do tempo foi sendo reconhecido como uma
das obras-primas da literatura do séc. XX, mas a sua recepção inicial foi, no mínimo,
difícil: Valery Larbaud e Samuel Beckett contaram-se entre os seus poucos
defensores incondicionais, mas Gide desprezou-o e Virginia Wolf, no seu diário (16
de Agosto de 1922) chamou-lhe “debitador de indecências”, “grosseiro” e obra de
um “autodidata aprendiz”, antes de reconhecer que “não lhe falta génio” (6 de
Setembro) e de se deixar convencer por uma crítica que dava ao livro “uma dimensão
maior do que [ela] lhe atribuíra” (7 de Setembro). Mudou de opinião num invulgar
contra-relógio. Porquê? Surpreendente reversão do gosto pessoal.
entre ambos revela o que há de diabólico no filho de Johan, ela é travada, à saída,
por uma “divina” luz exterior que inesperadamente ilumina o altar. Volta atrás e
demora-se a olhar para um baixo-relevo rústico que evoca uma última ceia. Então
fecha os olhos e leva as mãos ao rosto, reencontrando alguma paz interior. E no final,
a seguir à partida de Karin e à tentativa de suicídio de Henrik, Johan acorda de noite
em crise de ansiedade, bate à porta do quarto onde Marianne dorme e esta convida-
o a deitar-se com ela. A pedido dele despem-se e, nus, voltam, 30 anos depois, a
partilhar uma cama — é o momento de mais intensa proximidade e de consolatio
que dois personagens se oferecem em todo o filme.
1. A foto do retiro de Johan é da casa dos avós de Bergman, onde o realizador passou férias de infância. 2. 30
anos depois, Marianne decide, sem conseguir explicar porquê, visitar o antigo marido. 3. O beijo incestuoso
de Henrik e Karin. 4. Karin decidiu partir: Henrik tenta, sem sucesso, suicidar-se (imagem fixa, um segundo de
filme): “Ele nem matar-se consegue”, dirá desprezivamente Johan. 5. O retrato de Anna (Ingrid, última esposa
do realizador). 6. Abrindo o epílogo, uma das “fotografias impossíveis” do filme, vinda da cena precedente.
(Fotogramas reenquadrados do filme).
Bergman despedira-se do cinema 20 anos antes, com Fanny e Alexandre. Mas não
resistiu ao desafio digital e quis fazer um último filme com um dispositivo de que
não tinha experiência pessoal: arriscou. Depois, na pós-produção, não gostou da luz
das imagens, demorou a transpor o filme para um suporte destinado a salas,
191
Remapeamentos narrativos
EM DOIS TEXTOS de 2009 e 2011, Thomas Elsaesser analisou mutações de filmes
contemporâneos que, a seu modo, exprimem a adaptabilidade do cinema a públicos
e ecossistemas eles próprios mutantes. O primeiro, «The Mind-Game Film», é um Jogos mentais &
ensaio sobre uma mudança de paradigma narrativo: a construção de mosaicos Filmes-puzzles
fragmentários, os procedimentos e os tipos de narrativas “estilhaçadas” que, em
época de desconstrução, ganharam progressivamente mais espaço e mais mercado
(como em Inland Empire). Destinam-se a um novo espectador habituado a lidar com
jogos mentais e com a ambiguidade perceptiva, e a dispender um maior esforço
hermenêutico do que o exigido pelas antigas straight stories. O segundo, «James
Cameron’s Avatar: access for all», é uma curiosa análise dos modos como a actual
Hollywood aprendeu a jogar com a dissonância cognitiva e o double bind para
manter elos complexos com públicos internacionais que são, a vários títulos e em
diferentes contextos regionais, anti-americanos. Trata-se de uma reflexão centrada
na “nova” tecnologia cinemática imersiva (a 3D) mas apoiada em instrumentos
característicos dos cultural studies e da comunicação política.
Uma nova literatura ocupa-se crescentemente deste fenómeno: em Hollywood
Puzzle Films, coordenado por Warren Buckland (2014), um extenso grupo de
autores (Elsaesser, Cameron, Paolo Russo, Garrett Stewart, Edward Branigan,
outros) comenta a reorientação de parte deste segmento para os blockbusters — de
Déjà Vu (Tony Scott, 2006) a The Lake House (Alejandro Agresti, 2006) e de
Inception (Christopher Nolan, 2010) a Source Code (Duncan Lones, 2011) —
inspirado na ambiguidade narrativa, no “labirinto ontológico”, na dissonância
cognitiva, na teoria do caos (ou nas bases-de-dados não-lineares) e investindo em
territórios antes apenas explorados por produtores e realizadores do international
art cinema. A indústria aventura-se em territórios de desconstrução e acronia,
namorando novos públicos de narrativas não-lineares e “indisciplinares”. Inception
(Absorção), por exemplo, que custou à Warner Bros $160 milhões, é sobre um ladrão
e indutor de sonhos (Leonardo DiCaprio) que usa tecnologias experimentais para
entrar no “subconsciente” das suas vítimas e fazer espionagem industrial. O
dispositivo, coadjuvado por um “arquitecto de espaços oníricos” que desenha
realidades virtuais indistinguíveis do “mundo consistente”, permite que um grupo
partilhe o mesmo sonho e que diversos indivíduos saltem de “realidade” em
“realidade”, sendo que o que fazem em cada uma delas condiciona o que se passa em
cada uma das outras. É um exercício de ficção “científica” sobre a eficácia e as
consequências da acção em “mundos paralelos”, recheado de imagens de
computador e de clássicas cenas de luta, tiroteio e perseguição automóvel ao gosto
dos blockbusters, filmado no regime da intensified continuity de Bordwell.
tradição já inspirara séries televisivas como The Twilight Zone (Rod Serling, anos
80) ou X-Files (Chris Carter, anos 90) e cruza-se eventualmente com a da ficção
científica que inclui 2001, A Space Odissey (Kubrick, 1968), sobre o duelo entre a
inteligência humana e a artificial e sobre o renascimento do protagonista num
universo alien que o recebe, ou Interstellar (Christopher Nolan, 2014), cujo
protagonista viaja através de um buraco negro em busca de um planeta que funcione
como morada alternativa da humanidade, enquanto a sua filha vive num quarto
assombrado por fenómenos de poltergeist. Universos paralelos, viagens no tempo
e/ou acronias, personagens possuídas por perturbações inexplicadas ou a mistura de
todos estes factores, alimentam, sobretudo no cinema americano, filmes que se
transformam facilmente em objectos de culto adolescente.
Mas não percamos o bom humor: não é forçoso propender para o poltergeist ou para
a twilight zone para imaginar ou ver poltronas moverem-se sozinhas a meio da noite,
como em certo despertar de Lezama Lima em Paradiso (1966), que apesar do
estranhamento não perde o sono, limitando-se, em rêverie, a distinguir entre a
gravitação do invisível e a levitação do irreal, como o entomologista que em seu
laboratório rotulasse, distinguindo-as, borboletas aparentemente semelhantes:
“...A veces lo invisible, que tiene una pesada gravitación, y en eso se diferencia de lo
irreal, que tiende más bien a levitar, se muestra limitado, reiterado, con lamentable
tendencia al lugar común. Me dormí con un sueño ocupado y hojoso hasta la
medianoche. (...) Casi despertándome en esa media noche, noté un ruido que venía del
(...) sillón. (...) El sillón y el ruido no se me mostraron en una sola acabada sensación
hasta que encendí la lámpara. Pero entonces pude notar (...) que el sillón se movía sin
impulsarse, se movía sobre sí mismo pudiéramos decir. (...) La movilidad del sillón
tenía tal sencillez (...) que pude volver a dormirme.”
Felizes os que readormecem em sossego quando as suas poltronas se movem
sozinhas: nada os espantará; já viram, talvez, de mais. E feliz o realismo fantástico
caribenho e sul-americano, que tanta mestiçagem audiovisual gerou, sobretudo en
la casa del gringo, o vizinho de cima (gringo: do Green! Go! da revolução mexicana
e de Pancho Villa: as fardas das tropas americanas eram verde olivo).
Nos mundos que visita pela mão de Palas, Teodoro vê os destinos possíveis de
Sextus: um deles é o determinado pelos crimes que vai cometer; noutro, para evitar
cometer esses crimes, ele desiste de Roma e refugia-se na Trácia; noutro ainda,
desposa a filha de um rei grego. Nestes mundos possíveis estão, como sempre, em
litígio o determinismo que condiciona o sujeito e a sua margem de liberdade ou livre
arbítrio — mas esse não foi um problema grego: nunca o Édipo de Sófocles dispôs de
meios para vencer o seu oráculo. Poderá Sextus iludir o dele? Conseguirá, contra o
oráculo, devir outro? É este o arco dramático onde Sextus evolui: tentará ele vencer
o que o determina? Muita ficção foi feita deste drama. Mas os mundos possíveis de
Leibniz e os seus Sextus aproximantes (na sua bela formulação) dependem apenas
da mudança de uma variável num algoritmo; e essa mudança, que pode ser um
pormenor aparentemente sem importância (um dos piccoli equivoci senza
importanza de Tabucchi), tanto pode ser fruto de uma decisão como do acaso. Foi
sobre esta hipótese que, por exemplo, Resnais construiu, adaptando a novela
Intimate Exchanges de Alan Ayckbourn (1985), a dinâmica narrativa do díptico
Smoking/No smoking (1993), sendo seu motor a alternativa Ou bien... (Ou então...),
que se vai repetindo.
A consideração dos mundos possíveis de Leibniz conduz-nos aos compossíveis e
incompossíveis. São ditos incompossíveis dois ou mais mundos (ou factos, ou
194
Um script que fizesse uma síntese rigorosa destes apócrifos poderia gerar um filme
que evidenciasse a sua compossibilidade com os canónicos, se conseguisse evitar os
habituais clichés e déjà vus: a discussão sobre a identidade do “discípulo dilecto”
sentado à direita do Mestre na Última ceia de Da Vinci, na parede do refeitório de
Santa Maria delle Grazie, e a vulgata da conjugalidade de Jesus e Maria de Magdala
(tornada best seller por Dan Brown), as efabulações não apoiadas da “última
tentação” do Cristo, de Scorsese, inventadas por Paul Schrader. (Os interessados nos
apócrifos poderão ler, entre outros: Queré, 1936-1995; Crépon, 1983; Focant, 2001;
Scopello, 2007; Campeau, 2011).
O que são, então, compossíveis? Esboço uma sua definição genérica: é em princípio
compossível o que pode coexistir num mesmo mundo contínuo desde que os efeitos
ou consequências já ocorridos não se alterem: os acontecimentos alternativos de
Smoking/No smoking são compossíveis — mudam se alterarmos uma variável do
algoritmo que a eles levou; ou funcionam como futuríveis uns dos outros (numa
versão resultante da modificação da causa bastante que gerou os primeiros). A
questão geral a que os compossíveis respondem é a de saber o que sucederia se...,
(representada pelo Ou então... de Resnais), sendo esse se... o clássico What if?... de
Stanislavski, a variável do algoritmo. Como bem anotou Anna Marmiesse (2012),
aproximando o modelo de Resnais dos primeiros hipertextos:
“Smoking/No smoking parece um daqueles livros em que as crianças são convidadas
a saltar para certa página em função da decisão que atribuíram ao protagonista. Mas
aqui é o livro que salta de página em página e escolhe a ordem em que o lemos. (...) O
DVD do filme é a maneira ideal de o ver, porque o índice dos capítulos permite
escolher, na arborescência de destinos, o que queremos ver e por que ordem. Em si
mesmo, o seu esquema adopta uma certa ‘resignação’, acabando num cemitério (não
os seus vários ramos, mas ambos os filmes: escolha relevante). A exploração das
trajectórias possíveis não é uma variação sobre o livre arbítrio (como sugerem as
escolhas do dispositivo (ou bien... ou bien). Pelo contrário, estamos numa espécie de
tragédia onde nenhum destino nos salvará de um outro, porque todos conduzem ao
impasse: nenhuma escapatória é possível” (tr. adapt., J. M. M.).
vez, los senderos de ese laberinto convergen; por ejemplo, usted llega a esta casa, pero
en uno de los pasados posibles usted es mi enemigo, en otro mi amigo”.
Também Cortázar (1956) em «Continuidad de los Parques», um conto de apenas 500
palavras, testou a simbiose de pontos de vista heterogéneos e incompossíveis: o leitor
de uma novela lê nela a descrição da acção de um personagem que se prepara para o
matar; o conto termina um instante antes do homicídio (13). Depois, estes exercícios
de Borges e Cortázar cresceram e multiplicaram-se em numerosos autores que neles
directa ou indirectamente se inspiraram. A passagem da incompossibilidade à
compossibilidade permanece como o desafio que alguma ficção faz ao mundo
existente e dominante de Palas e de Leibniz. Essa ficção vê para além desse mundo,
como Teodoro viu no palácio dos destinos; mas, em princípio, não produz, nesse
mundo, consequências que alterem o seu curso, precisamente porque é ele o
dominante. É essa ausência de consequências que permite à ficção ver o que vê, ser
o que é: sueño, como la vida foi para Caldéron (1635), onde se lia, no monólogo de
Segismundo: “¿Qué es la vida? Un frenesí./¿Qué es la vida? Una ilusión,/una
sombra, una ficción,/y el mayor bien es pequeño;/que toda la vida es sueño,/y los
sueños, sueños son.” Caldéron seria, muito depois, desmentido pelo Llorca de
«Ciudad sin sueño»: “No es sueño la vida. ¡Alerta! ¡Alerta! ¡Alerta! / Nos caemos por
las escaleras para comer la tierra húmeda”. Llorca redesperta aqui a realidade de
primeira ordem de Watzlawick, o mundo existente de Leibniz: aquele onde
falangistas-fascistas vieram de facto a fuzilá-lo, em Agosto de 1936, acusado de
“socialista, homossexual e maçon”.
Resultante lateral do desafio dos incompossíveis: nas ficções propendem a perder
determinismo as consequências mais que prováveis das “tendências pesadas” e das
“tempestades perfeitas” que a prospectiva consagrou (iluminada pela lei dos grandes
números), e ganha relevância o “efeito borboleta” (o voo de uma borboleta em certo
lugar do mundo pode causar um tufão no lado oposto do mesmo mundo). Micro-
acontecimento, macro-efeito: como em O sacrifício de Tarkovski, onde uma
aterrorizada promessa feita a Deus por um improvável convertido e/ou uma noite
por ele passada com uma bruxa salva(m) o mundo do holocausto nuclear. Quem fez
o milagre? Deus e/ou a bruxa? Tarkovski prefere não responder: o milagre de Deus
e/ou da bruxa são, para ele, compossíveis, talvez até cooperantes. Talvez a bruxa
tenha sido o modus operandi de Deus, o seu auxiliar proppiano, o seu agente.
Adiante reconsiderarei O sacrifício a esta luz, em capítulo (6, Vol. II) dedicado ao
seu realizador.
Na ficção peripatética, finalmente, Superman pode ainda (!) inverter a rotação da
Terra e obrigar Cronos a andar às arrecuas, para levar a cabo uma acção que, no
Acontecerá passado (ontem, por exemplo), salvará o Mundo da catástrofe. Por isso — por
ontem inventarem incompossíveis e histórias improváveis sobre os deuses — quis Platão, in
illo tempore, expulsar os poetas da sua República. Como também expulsaria Borges,
Cortázar, Tarkovski e alguns de nós, se, tendo perdido o relógio, ainda por lá
deambulássemos. Mas também por isso o Aristóteles da Poética se afastou de Platão
e defendeu que, nas ficções, a verosimilhança ganha à verdade, tornando-se mais
cativante o que poderia ter sido do que o que foi. Esse Aristóteles devolveu os poetas
à república e vice-versa, mas para o fazer teve de separar o mundo existente do das
ficções. Como anotou Badiou (1998: 14), generalizando sobre o tratado de paz que
poetas e filósofos celebraram:
“... A paz entre filosofia e arte reposa inteiramente sobre a delimitação entre verdade e
verosimilhança. Por isso a máxima clássica por excelência é ‘o verdadeiro pode por
vezes não ser verosímil’. (...) Definição clássica da filosofia: a inverosímil verdade”.
Ora, foram precisamente os diferentes mundos que aqui considerámos que as três
ordens de realidade de Watzlawick (1976; 1984) religaram numa nova aliança,
desierarquizando-os e fazendo-nos repensar a disputatio entre Caldéron e Llorca.
Mas já para o Shakespeare do Macbeth, 30 anos antes do primeiro, o mundo fora
“uma história contada por um idiota, cheia de ruído e de furor mas que não significa
nada”. E muito antes escrevera o autor anónimo do Eclesiastes: “Olhei as obras que
se fazem sob o sol: tudo é vaidade e busca de vento. (...) O meu coração tentou
perceber a sageza e o saber, a estupidez e a loucura. (...) Também tudo isso é busca
de vento (...). Detesto a vida, desagrada-me o que se faz sob o sol. (...) Não há
197
felicidade para o homem senão a das suas obras (...).” Os incompossíveis tornados,
na ficção, compossíveis, não expandiram o sueño de Calderón, nem a idiotia do
mundo de Macbeth, nem o saudável vendaval do Eclesiastes. Nem desmentiram o
¡Alerta! de Llorca. Acrescentaram, porém, complexidade às narrativas, de um modo
que nos ajuda a entender o que esteve em causa, em diálogo com a literatura
filosófica, com o romance e o drama, na morosa passagem (onde se transpuseram
incontáveis limiares) do cinema clássico para o moderno e para o contemporâneo,
até chegarmos à tormentosa enseada dos labirintos narrativos actuais.
Basta, porém, um relance por estreias recentes e por projectos em curso para Novas
confirmar que o cinema narrativo próximo de arquitecturas mais clássicas não resiliências
lineares
abdica do seu território. Pense-se, por exemplo, em dois filmes que vivem de uma
actriz excepcional, Isabelle Huppert: L’Avenir (Things to Come, 2016), da francesa
(apesar do nome dinamarquês) Mia Hansen-Løve, sobre a difícil reavaliação, por
uma professora de filosofia, da sua vida actual; e Elle (2016), do holandês Paul
Verhoeven, sobre a complexa resposta de uma mulher à violação de que foi vítima e
que não denunciou à polícia. Ou em Toni Erdman, da alemã Maren Ade (2016), uma
falsa comédia sobre a tentativa de reaproximação de um velho músico reformado e
excêntrico à sua filha distante, perdida e em break down na sua carreira de topo
como consultora em Bucareste. Ou em Knight of Cups, de Terrence Malick (2015),
sobre a entrega de um argumentista de Los Angeles ao seu trabalho e à sua deriva
entre as mundaneidades que o assolam — uma reedição das críticas ao hedonismo
de Hollywood. Pense-se ainda em Zama, da argentina Lucrecia Martel, que esteve
para estrear em Cannes em 2016 mas cuja pós-produção foi adiada, só devendo
concluir-se em 2017: o filme, uma das mais caras produções latino-americanas
actuais, conta a história de um oficial espanhol de finais do século XVIII que se
eterniza no Paraguai, esperando a carta real e o transporte que o transferirão,
promovido, para Buenos Aires. Por seu turno, quando estas linhas eram escritas,
Claire Denis aventurava-se na ficção científica com High Life, sobre um pai e uma
filha perdidos no espaço na sequência de uma missão que fez experiências com a
reprodução humana. E Michael Haneke preparava Happy End, um filme sobre uma
família burguesa europeia que ignora o mundo que a rodeia, mundo onde novos
migrantes e refugiados ocupariam um lugar relevante. Os novos labirintos narrativos
e os puzzle films coexistem, assim, com apostas que não têm a “inovação narrativa”
como seu primeiro objectivo. A narratividade cinematográfica é simultaneamente
mutante e conservadora: ora testa novas formas de contar-mostrando, ora regressa
a antigos construtos, apenas usufruindo das mudanças tecnológicas que lhe
permitem renová-los.
Decerto, hoje, nas novas condições de recepção dos filmes, longe das salas escuras,
essa relação tornou-se mais remota. Mas o “regaço de Dafne” e a sua voz são ainda a
matriz imersiva arquetipal da situação do espectador. A transferência do íntimo
story telling para a sala de projecção ocorreu sempre que, num filme, o jogo e a acção
dos actores e actantes foi servida pela voice over de um narrador — “a voz de Dafne”.
Se essa voice over não existia, o espectador substituía-a, de bom grado, pelo que via
e ouvia em cena, como já os gregos de antanho tinham feito em seus anfiteatros.
A narrativa literária, teatral ou fílmica é o lugar onde volta a suceder o que nela se
conta. Bem o sabe o pequeno Gonzalo, quando se imagina entre os almirantes e
De regresso comandantes espanhóis que travaram a batalha de Trafalgar: “O facto é que,
a Trafalgar cavalheiros, nos encontramos outra vez na noite de 18 de Outubro de 1805, numa
situação já vivida, com a vantagem, em comparação com a anterior, de todos
conhecermos os acontecimentos (...)”. Os acontecimentos: a catástrofe de três dias
depois, que ele espera reverter, ressuscitando o estado-maior e expondo-lhe um
melhor plano de combate magicado na mesa da sala de jantar de sua avó (onde os
navios eram feijões ou pedacitos de madeira). Que pede ele? “Que a batalha possa
planear-se e combater-se outra vez, mas com diferenças no seu planeamento (...) e
desenlace”. Para a ganhar, claro; senão, “para quê matar de novo tantos mortos?”
Ora Trafalgar já não era, na infância de Ballester, um case study, a não ser histórico,
em nenhuma academia de marinha: os meios com que a batalha se travara em nada
se assemelhavam aos de guerras marítimas posteriores. O cenário poderia, assim,
ser qualquer outro: não tivesse Gonzalo nascido em Ferrol, que a Trafalgar deu
tantas vidas, bem poderia ensinar a atenienses o que fazer para não serem vencidos
e humilhados por espartanos. Mas, no relato de Ballester, o estado-maior fantasma
ouve, atento, o rapazito. No fim, o célebre comandante do San Juan Nepomuceno,
Cosme Churruca, que na batalha combateu seis navios inimigos, comenta o plano do
garoto: “Irrepreensível, mas...” e ergue-se, “calmo mas com um esgar de dor; (...)
tem uma perna metida num barril de farinha para não se dessangrar”. Conclui o
desventurado herói, opondo o que aconteceu ao que poderia ter acontecido: “...Nas
nossas condições, sempre seremos derrotados em Trafalgar”. Dito isto e embora
dirigindo um sorriso “de simpatia” ou “de perdão” ao rapazito, desvanece-se
Churruca na escuridão envolvente, voltando à sua morte mas ainda arrastando com
o coto da perna a barrica de farinha. O mundo consistente (ou “existente” de Leibniz)
rejeita assim os futuríveis de Gonzalo (os “possíveis” de Leibniz): na re-
presentificada iminência do confronto fatal, os chefes espanhóis, forçados aliados de
Napoleão, nem por sombras voltarão à batalha que perderam contra a armada de
Horatio Nelson, também ele nela morto. Deveras, só no “regaço de Dafne” a História
se revê na sua reescrita pelas histórias.
A paulada gera o relâmpago, atordoa; na sabedoria popular faz “ver estrelas ao meio-
dia” ou “36 chandelles” (36 velas). É também o momento em que Arquimedes grita
“Eureka” e é achada resposta à pergunta de Saramago sobre de onde vêm as ideias.
Diria Saramago, reescrito/reinventado por Evan do Carmo (2015: 42):
“Não somos nós que nos pegamos a pensar; é o pensamento que nos pega, como se ele
não fosse uma coisa imaterial. Somos por ele surpreendidos, por um pensamento que
insiste em vir à luz do mundo material. Então nós, escritores, mesmo estando longe de
uma máquina de escrever ou de um computador, passamos a escrever como que em
papel invisível essas ideias perturbadoras, que vão crescendo juntas com aquele
pensamento original, aquela ideia que nos despertou...”
Com Proust, disse também Deleuze que “o pensamento nada é sem algo que o force
a pensar, sem algo que lhe faça violência” (1976: 117), sendo esse “algo” uma pressão
exterior. Se tivesse escrito sobre o devir das suas ideias, talvez o
sapiens/ludens/demens de Lascaux partilhasse tal formulação. Mas eis a passagem
de Diferença e repetição a que Deleuze se referiu no Abecedário:
“Quem é esse agente, essa força que assegura a comunicação? O raio fulgura no embate
entre intensidades diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio, invisível,
insensível, que determina antecipadamente o caminho (...). Qualquer sistema contém
o seu precursor sombrio, que assegura a comunicação entre séries que o bordejam. (...)
O caminho que ele traça é invisível, e não se tornará visível senão no avesso (à l’envers),
recoberto e percorrido pelos fenómenos que induz no sistema: o seu lugar é aquele a
que ele ‘falta’: ele é precisamente o ‘objecto x’, o que falta ao seu lugar como à sua
própria identidade” (Deleuze, Différence et répétition, P.U.F., 1968, p.156-7).
SOBRE OS MODOS de construção de histórias vale a pena ter em conta que, muitas
vezes, eles resultam de meras convenções arbitrárias, instaladas como regras de
jogos de salão. E que uma cartilha narrativa constrangedora e normativa pode não
ser óbvia à primeira leitura por mais convencional que seja, apesar de ter invadido o
modo de contar e de se esconder na evidência, como a carta roubada de Edgar Allan
Poe foi escondida ficando à vista de todos. Qualquer história pode resultar de uma
composição charadística ou amaneirada. Tomarei um exemplo simples:
Amaro viu a barca vazia desamarrar-se e zarpar. Bom homem, foi tentar saber de quem
era. Correu tudo a perguntas mas todos o evitaram. Decidiu não desistir de entender o
insólito caso. Entrou na capitania e avisou do que vira. Foi ao molhe mostrar onde
estivera a barca. Gostou de saber que um rebocador a procuraria. Helena viu-o
deambular e perguntou-lhe ao que andava. Incrível, disse ele, uma barca partiu sem
ninguém. Já andavas mal e estás pior, pensou ela. Lá adiante, insistiu ele, ela foi para
além. Mas decerto a corrente a levou, transigiu ela. Não, a corrente vai para acolá,
apontou ele. Ó Amaro, toma juízo, riu-se ela e desandou. Por que não me acredita ela,
assustou-se ele. Que achar do que vi ou não vi? Ressoou de novo nele aquela dúvida já
antiga. Será de facto possível que me tenha enganado? Terei visto uma coisa que afinal
não sucedeu? Uma vez já se passou algo como isto. Vi ou não vi certa égua saltar
muros? Xiste, vou ser alvo do xiste de todos. Zumbiam-lhe os ouvidos, sentou-se
tapando-os com as mãos.
As regras Eis o conto do que Amaro viu ou não viu. Onde está, nele, o jogo de salão? Nas regras
“escondidas” a que obedece: as frases que o compõem (chamo aqui frase a um período contido
entre pontos finais e/ou de interrogação) começam por cada uma das letras do
alfabeto português pela ordem em que o recitamos de A a Z (excluindo K, W e Y) e
são, por isso, 23: Amaro, Bom, Correu, Decidiu, Entrou, Foi, Gostou, Helena,
Incrível, Já, Lá, Mas, Não, Ó, Porquê, Que, Ressoou, Será, Terei, Uma, Vi, Xiste,
Zumbiam-lhe. E cada uma dessas frases tem oito palavras. Essas duas regras
arbitrárias determinam a forma e a dimensão do conto. Uma terceira terá sido só
nomear duas personagens — ali, Amaro e Helena. As três regras ou parâmetros
instalam o jogo narrativo: o tema do conto é livre, mas só se pode abordar desta
maneira. Muito barroco narrativo se fez de ludicidades formalistas como esta, ou
por exemplo polindo o texto até fixar cada frase, ou verso, em dodecassílabos, assim
refazendo antigos metros — essa seria ainda outra norma, que o conto de Amaro não
satisfaz. Se a tivesse satisfeito começaria, por exemplo, assim:
Amaro viu partir a barca sem ninguém (12 sílabas)
Bom homem, foi tentar saber de quem era (12 sílabas)
Correu a perguntar, ninguém lhe respondeu (12 sílabas) ...
Mas por quê, para quê compor nestes preparos? Pergunte-se também: porque ainda
escreverá sonetos um contemporâneo? Decerto, não para satisfazer necessidades de
entendimento por quem o lê. Ele procura um ritmo, um canto reconhecível para o
conto ou o poema, satisfazendo a forma reiterativa das melopeias infantis como a do
Tranglomanglo ou da Nau Catrineta, ou a dos cancioneiros que se apoiam em
prosódias de embalamento que convidam à dança ou a uma oscilação repetitiva do
corpo. Maneirismos e ludicidades à primeira vista inúteis e comparáveis a estes,
sempre os conhecemos da música e da literatura, das artes de cena e do cinema:
ritornellos, refrões e leitmotivs regidos a metrónomo, regressos à mesma imagem,
palavra ou som, mesmos tempos dos planos, simetrias, jogos de espelhos, diálogos
metricamente concebidos, jogo de raccords ou ausência deles. Muito cinema
abstracto e experimental quis, no seu tempo, apenas viver do ritmo. Em busca de
uma hipnose, suscitada pelo metro ou obedecendo a outro plano e a outra geometria,
a forma, nas artes, nunca é apenas forma.
A origem do metro literário está na poesia que, desde Homero, na passagem da
oralidade à escrita, a ele obedece por escolha própria e o reinventa, emparelhando
elementos rítmicos e prosódicos, e de que o exemplo clássico se tornou, dois milénios
depois, o hendecassílabo de Dante (verso de onze sílabadas) como em “Nel mezzo
del cammin di nostra vita”, que reinstalou outra duradoura métrica. Mas, como
escreveram Halle e Keyser («Métrica», 1984: 179-208):
201
Tom Cruise contou depois que Kubrick lhe pediu que repetisse vezes sem conta cada
203
ameaça Bill: se revelar o que ali viu, as consequências, para si e para a sua família,
serão terríveis. O médico parte, abandonando ao seu destino a vítima sacrificial que
o substitui.
8. Chega a casa de madrugada e percebe que Alice está mergulhada num pesadelo.
Acorda-a e insiste com ela para que lhe conte o sonho perturbador. Ela hesita, mas,
sobressaltada e em lágrimas, conta-lho: estavam ambos, nus, numa cidade deserta,
e a situação apavorava-a. Bill parte para tentar encontrar roupa para ambos, e,
sozinha, ela relaxa, sente-se feliz, está num edénico jardim. Ressurge do nada o
oficial da marinha, com quem ela se envolve e faz amor, mas logo a seguir está a ser
possuída por inúmeros homens. Bill reaparece mas ela quer humilhá-lo e ri-se dele.
É neste momento que o marido a acorda. O pesadelo altera o fantasma de
infidelidade de Alice, que assustada, se vê agora a si mesma como prostituta que
despreza o marido. Também ela teve a sua onírica “orgia”, mas sente-se culpada.
Ambos fragilizados, abraçam-se. Fim da aventurosa jornada nocturna de Bill.
No dia seguinte, o médico decide descobrir quem eram os mascarados da orgia. Volta
à mansão de Long Island e um guardião entrega-lhe, sem uma palavra, uma carta
não assinada que reitera as ameaças contra ele; percebe que o amigo pianista foi
espancado e expulso da cidade; que a simpática prostituta com quem quase teve sexo
acaba de saber que é seropositiva; que o alugador de roupa (a quem foi pagar 375
dólares, esquecendo-se da máscara) prostitui a filha; que está a ser seguido por um
desconhecido, decerto a mando da seita de oligarcas. Mais tarde descobre que certa
jovem aparecida morta por overdose é a Mandy que reanimou na casa Ziegler e que
depois o salvou na orgia; e que a seita, de que Ziegler faz parte (o milionário confirma
que lá esteve e viu o que sucedeu a Bill) é um consórcio de poderosos magnatas. Diz-
lhe Ziegler: “Se dissesse, e não vou dizer, os nomes deles, você perderia o sono”.
Arquitectura Descontando o genérico final, o filme tem 153 minutos e o ecrã vai a negro na
narrativa passagem da 1ª para a 2ª e da 2ª para a 3ª partes, pontuando a separação entre elas.
A sua arquitectura narrativa obedece ao clássico design dos três actos: a matriz
sequencial ordem → desordem → restauração da ordem (ou equilíbrio →
desequilíbrio → reequilíbrio). O equilíbrio do mundo inicial da história é ameaçado
por um incidente que o destrói (a confissão de Alice), mas será reposto ao cabo de
problemáticas peripécias (a jornada de Bill é conceptualmente gémea da dos ritos de
passagem: separação→ iniciação → regresso). Mas Kubrick demora-se em
episódios-desvios articulados com o tema do adultério ou devidos às consequências
da ida do médico à orgia: foi nesses episódios-desvios que ele investiu,
desequilibrando a favor deles a quase-comédia de costumes que filmou.
1. A primeira parte (38 minutos de filme, pouco mais que um clássico set up),
apresenta-nos os protagonistas, leva-nos com eles ao baile de Natal de Ziegler e
desemboca na conversa em que Alice declara, provocadora e agressiva, ter estado à
beira do adultério — o turning point que desmorona o mundo de Bill.
2. A segunda parte (60 minutos: clássica duração de um 2º acto) é a resposta
ressentida do médico à inesperada confissão da mulher, a sua “viagem ao fim da
noite” em busca de compensações narcísicas: a deambulação e a sucessão de
encontros na Village, a orgia na mansão (reverso satânico do baile de Natal) e, de
madrugada, o regresso a casa. As situações que Bill vive nessa noite são metáforas
de sonhos e sucedem-se umas às outras no limite do verosímil: como em tanta ficção,
essa sucessão e concatenação é possível mas pouco provável. A deriva de Bill evoca
a faustiana noite de Walpurgis, a Nighttown (adaptação, por Marjorie Barkentin, do
episódio Circe do Ulysses de Joyce: 1958), ou ainda o After Hours de Scorsese
(1985). Cada episódio foi tratado com autonomia dramática e tem o seu próprio arco
e desfecho — o que, apesar da sua entrada sequencial no plot, dá a cada um deles
deliberada independência e significação. A operática mise en scène da orgia (17
minutos de filme) ganha uma atmosfera ainda mais onírica: é uma animation de
tableau que, como sugeriu Robert Ebert (robertebert.com, 16.07.1999), deve tanto a
Sade como a Bosch: Bill percorre os grupos de sexo explícito (dignos de um teatro de
manequins mecânicos) e os grupos estáticos de voyeurs (dignos de um museu de
cera) hipnotizado pela sua irrealidade. Desde que entrou na mansão, ele suspeita que
207
Kubrick concebeu cada episódio do filme como um momento de interacção entre Bill
e apenas um ou dois outros personagens: as duas modelos do baile (que funcionam
como uma só); Mandy em overdose (e Ziegler); a filha do morto (e o seu noivo); a
prostituta; o pianista; o alugador de roupa (e sua filha); o guardião da mansão da
Que retrato
orgia (cena muda); a empregada do café; o recepcionista do hotel; a colega da
dos Harford?
prostituta; o homem que o persegue (cena muda); Mandy morta (e o funcionário da
morgue, cena muda); outra vez Ziegler. Até na orgia, Bill interage separada e
sucessivamente com o mascarado que o saúda, com Mandy e com o sacerdote — os
restantes são mera massa coreográfica.
208
Nem Bill nem Alice são personagens particularmente positivas: do mesmo modo que
o pianista é tratado como um criado a quem pagam para tocar de olhos vendados em
orgias, o médico é chamado para, discretamente, ressuscitar prostitutas em overdose
nos bastidores dos bailes de Natal. E na orgia acobarda-se, abandona à sua sorte a
mulher que o salvou. Bill não é suficientemente rico para pertencer à oligarquia
satânica, mas não resiste a espiolhar as suas festas secretas. O facto de ele se deslocar
de táxi à mansão da orgia, pedindo ao taxista que o espere na estrada quando dentro
da propriedade estão parqueadas dezenas de limusines dos orgiastas (ele não se dá
conta de que ter vindo de táxi o denuncia, por si só, como intruso), mostra a diferença
de classe que o separa deles. Mas só na conversa final com Ziegler, porque é lento a
decifrar o mundo em que vive, Bill percebe que ele próprio, bom samaritano
prestador de serviços, é tão vulnerável como Mandy ou como o amigo pianista, ex-
colega de curso que se tornou num pobre biscateiro com mulher e quatro filhos a
cargo. Para os oligarcas da seita, médico, músico e prostitutas são meros
serventuários descartáveis a quem não se tolera que se tornem intrusos, incómodos
ou metediços.
Quanto a Alice, cujo cuidado central é parecer sempre fascinante e que tanto se vê
ao espelho, alienou-se no fantasma da Whore Wife: largaria tudo por um
desconhecido, sonha prostituir-se para humilhar o marido E a filha, a quem deram
o nome da bela Helena de Tróia, parece estar a ser educada para devir igual à mãe:
deixam-na ver uma série onde o brinquedo se transforma no príncipe-encantado da
menina que o comprou; Alice acompanha-a num trabalho de casa em que ela tem de
calcular “qual dos rapazes ficou com mais dinheiro”; na loja escolhe tudo o que
deseja. E em todo o filme, a relação de Bill com a filha é quase inexistente.
A publicidade da Warner lançou o filme como thriller erótico. Mas Kubrick fizera
outra coisa e o filme decepcionava essa expectativa: fugia ao género e dava-lhe outra
natureza mais fria, mais mental e mais céptica. Ao longo da jornada nocturna em
territórios extra-conjugais onde vai esbanjando dinheiro, o rico Dr. Bill (Bill: nota,
factura, conta) não obtém sexo compensatório com ninguém. E Alice, apesar das
suas confissões sobre o desejo de adultério, acaba por não ser fisicamente infiel ao
marido, o que torna as suas rêveries em much ado about nothing: tanto barulho por
“nada”, mas um “nada” que por vezes é “tudo” — é esse o valor do fantasma, do desejo
confessado e insatisfeito. Alice foi adúltera em pensamentos e em palavras, mas não
em actos. Onde está o thriller erótico? Nas fantasias do médico sobre a mulher e o
marinheiro, que, como Kidman admitiu, o realizador quis “quase pornográficas”?
Eyes Wide Shut é decerto o “filme sobre sexo” que Kubrick sonhara fazer. Mas é
também um anti-thriller-erótico.
Dentro de Eyes Wide Shut haverá outro filme encriptado — o das referências
esotéricas ao satanismo internacional, presentes nos décors e adereços, mas que o
espectador corrente dispensa: no início do filme, Alice/Kidman, objecto de desejo, é
oferecida nua ao male gaze do espectador (cf. a Laura Mulvey de «Visual Pleasure
and Narrative Cinema»). Eis, para os esoteristas, os supostos sentidos ocultos na
imagem: as colunatas do vestidor seriam as de Boaz e Jachin (pilares do poder) à
entrada do templo de Salomão; as cortinas da janela desenham uma pirâmide, outro
símbolo esotérico. Depois, os motivos do chão do hall da casa Ziegler são os dos
templos maçons-livres. No salão de baile há várias estrelas de oito pontas, as de
Ishtar, deusa babilónica do sexo, cujo culto envolvia prostituição ritual (como na
orgia do filme) (9). Junto das escadas que levam ao andar de cima há um Cupido,
deus do desejo, ligado ao culto de Vénus. E o nome do playboy húngaro, Sandor, que
bebe o copo de Alice e tenta seduzi-la invocando A arte de amar de Ovídio, recorda
talvez o de Sandor LaVey, fundador de uma igreja satânica walpurgisiana. Para os
esoteristas, a lista de exemplos é mais extensa e inclui adereços deliberadamente
filmados da orgia. Mas não é óbvio que Kubrick tenha entregue o sentido do filme a
essa encriptação: o bricabraque esotérico está lá para quem queira vê-lo, mas é
supletivo — um conjunto de hieroglifos no telão de fundo.
209
Ainda no seu rico apartamento, os Harford preparam-se para sair para o baile de Natal na casa Ziegler.
De olhos bem fechados: a fantasia de Bill sobre Alice e o marinheiro (ao todo, um minuto de filme).
.
A atmosfera da orgia (reverso satânico do baile de Natal na casa Ziegler) é deliberadamente onírica e irreal:
em nada contribui para o “thriller erótico”.
Cartazes não utilizados para a estreia do filme, concebidos por Christiane e Katharina Kubrick (in Castle: 2005,
The Stanley Kubrick Archives). Alusão ao Persona de Bergman? (Fotogramas reenquadrados do filme e imagens
da sua publicidade ).
210
deus. É uma road movie cuja estrada é o rio; e na subida do rio, como nas road
movies, fazem-se encontros inesperados, nascidos dos acasos da viagem e não
necessariamente indispensáveis ao plot principal.
O tema central de Apocalypse Now é o da legalidade-legitimidade de acções de
comando, no caos da guerra, por parte de oficiais que fazem essa guerra de acordo
com o código de que a hierarquia é a guardiã ou rompem com esta, tornando-se
renegados. Os dois pólos desse diferendo são Kilgore, que, embora enlouquecido e
“apaixonado do cheiro do napalm pela manhã”, segue o primeiro guião, e Kurtz, que
deixou para trás uma carreira fulgurante para fazer a guerra à sua maneira,
desobedecendo à hierarquia — e se tornou, por isso, num alvo a abater. Ao longo da
viagem, lendo o dossier Kurtz, Willard percebe que este foi um oficial sobredotado,
destinado às cúpulas militares, até ter começado a implementar os seus desviantes
métodos de guerra enquanto lia T. S. Eliot e recitava clássicos. O filme confronta dois
modelos de loucura assassina: uma legitimada pela instituição militar, outra
heterodoxa e intolerável para esta. São o verso e reverso da mesma medalha — e
Willard, o encarregado de missão, é o go-between que faz a ponte entre ambos.
Kurtz: “Não têm o direito de me chamar assassino”. Kilgore: “Adoro o cheiro do napalm pela manhã”.
Willard: “Eu queria uma missão e para mal dos meus pecados deram-me uma”. A cavalaria aérea
ataca a aldeia vietnamita (fotogramas reenquadrados do filme).
Vinte anos depois, para relançar o filme em DVD, Coppola pediu ao montador e
sound designer Walter Murch que encontrasse cenas não utilizadas em 1979 e fizesse
uma versão mais extensa da obra — o Apocalypse Now Redux. Esta versão, com mais
49 minutos, acrescenta ao filme um episódio de sexo delirante com as playmates, o
encontro com uma família de colonos franceses que decidiu obstinadamente ficar no
Vietname (encontro que sublinha as diferenças entre a guerra francesa e a guerra
americana na Indochina, e que é para Willard um momento de “repouso do
guerreiro”) e dá mais espessura, no terceiro acto, à relação entre este e Kurtz. Estes
novos elementos alteram o ritmo da versão de 1979 e acrescentam patético ao que já
a marcava. Em entrevistas, Murch sublinhou a importância do som (feito em Dolby
Stereo 70 mm Six Track) dos helicópteros no filme de 1979 (Macaulay, 2014): é com
esse som que o filme começa, com o ecrã ainda em negro — o som da cavalaria do ar:
os helis eram os novos cavalos de guerra (os cavalos tinham desaparecido das
batalhas na primeira guerra mundial e reapareceram, voando, na guerra da Coreia e
depois, em força, na do Vietname). Murch e Coppola inspiraram-se em gravações
quadrifónicas de Isao Tomita para criar o som do filme: “É este som que quero para
212
o filme, esta imersão, quero estar rodeado de som por todos os lados” (Coppola
citado por Seymour, 2011). A complexidade da mistura de seis registos é
determinante na criação da atmosfera do filme, mergulhando o espectador no ponto
de vista subjectivo do protagonista. O som dos helis (o efeito ghost heli) foi
transformado por sintetizadores e misturado com todos os outros, criando o mood
sonoro que Murch designa por “hiper-realista” (um hiper-realismo feito de artifícios)
e que por vezes é surreal.
O desenvolvimento de projectos
DESENVOLVER UM PROJECTO cinematográfico profissional é um empreendimento
complexo que envolve quem o realizará, quem escreve o guião (no caso de um filme
ficcional), quem o produz, bem como quem será responsável pela sua direcção
artística, de imagem e de som, por vezes quem o financia. O projecto tanto pode
partir de uma ideia já amadurecida e eventualmente redigida, como exigir um longo
período de gestação. Seja qual for a sua natureza, o trabalho a fazer baseia-se na
articulação entre produção, realização e argumento (sendo que este está, por razões
óbvias, ausente dos documentários). De um modo geral, entende-se por
desenvolvimento de projeto cinematográfico o conjunto das acções preparatórias de
filmagens, tal como, por exemplo, o plasmei no regulamento do Mestrado em
Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, de onde transcrevo:
1. O desenvolvimento de um projecto cinematográfico inicia-se pela formulação
redigida da ideia que anima esse projeto, seu tema e intenções, sua comparação com
obras já realizadas, seu interesse e seu carácter inovador. O projecto é dotado de um
título, eventualmente provisório (working title), pelo qual será referido e designado. É
claramente identificada a sua autoria, que deve registar a sua propriedade intelectual.
A exposição da ideia tem de prestar-se a ser discutida interpares e por especialistas —
por exemplo um júri de avaliadores — requerendo clareza e dispondo-se o(s) seu(s)
autor(es) a prestar, em sessão de pitching, todos os esclarecimentos necessários à sua
cabal compreensão e viabilização. Esta disposição é extensiva a todas as etapas a seguir
indicadas:
2a. Do ponto de vista da sua concretização, tratando-se de um projeto de filme
ficcional: esse desenvolvimento inclui a redação de uma sinopse da narrativa; a
caracterização das personagens envolvidas; uma nota de intenções que descreve de
modo expressivo o universo a abordar, a sua atmosfera e abordagem estética; a
redacção de um tratamento da matéria narrativa que expande a sinopse para um
resumo da história cena a cena, sem diálogos; a eventual redacção de uma primeira
versão do script (que pode, como o tratamento, ser relegada para etapa posterior);
répérages de locais das filmagens, traduzidas em galeria fotográfica ou em imagens
em movimento; uma proposta de casting referente às personagens principais;
eventuais maquetas de cenas ou sequências; descrição das especificidades técnicas
eventualmente exigidas pelo projeto; o plano de trabalho e a duração da preparação e
das filmagens previsíveis, bem como da pós-produção.
2b. Tratando-se da adaptação cinematográfica de obra pré-existente: a satisfação, em
muitos casos exigida como condição prévia, dos direitos sobre ela detidos por terceiros,
através de uma sociedade de autores ou de um seu equivalente legal.
2c. Tratando-se de um projeto de filme documental: a redacção de uma descrição
previsível do documentário; a caracterização das personagens envolvidas; uma nota de
intenções que se refere de modo expressivo ao universo a abordar e ao enfoque estético
e técnico desse universo; répérages de locais das filmagens, traduzidas em galeria
fotográfica ou em imagens em movimento; eventuais maquetas de cenas ou
sequências; descrição das especificidades técnicas eventualmente exigidas pelo
216
Para apresentar La machine infernale aos seus leitores, Cocteau redigiu uma sinopse
que recobre toda a back story que a peça não conta, como o Édipo-Rei de Sófocles
também não a contava. A peça de Sófocles abre a um passo do inquérito que Édipo
vai conduzir e que o conduzirá à sua perda. Como é característico da tragédia grega,
Sófocles começa a história in media res, muito tarde, já próximo do seu desfecho,
porque a lenda do parricídio e do incesto de Édipo era conhecida do seu público
ateniense de 429 a. C.. A peça de Cocteau abre glosando o Hamlet de Shakespeare:
o fantasma do rei morto ronda, como em Elsinore, as muralhas da cidadela, tentando
avisar Jocasta de um perigo mortal que a ameaça. Eis a sinopse de Cocteau que
recupera a back story — a fábula ausente:
“Ele matará seu pai e desposará sua mãe: para fugir a este oráculo de Apolo, Jocasta,
rainha de Tebas, abandona o filho, com os pés furados e atados, na montanha. Um
pastor de Corinto encontra o recém-nascido e leva-o a Políbio e Mérope, rei e rainha
da cidade, que lamentavam a sua esterilidade. Respeitado por ursos e lobas, Édipo, o
pés-furados, cai-lhes do céu e eles adoptam-no. Jovem, Édipo interroga o oráculo de
Delfos. Diz-lhe o deus: Matarás teu pai e casarás com tua mãe. Portanto é preciso
fugir de Políbio e de Mérope. O temor do parricídio e do incesto lança-o para o seu
destino. Numa escura noite de viagem, na encruzilhada dos caminhos para Delfos e
para a Dáulia, cruza-se com uma escolta. Um cavalo empurra-o; explode uma disputa;
um servo ameaça-o; ele responde com um golpe de bastão. O golpe erra o alvo e atinge
o nobre que viajava com a escolta. O velho morto é Laio, rei de Tebas. Eis o parricídio.
Temendo uma embuscada, a escolta foge; Édipo não sabe o que fez. Jovem aventureiro,
cedo esquece o incidente. Numa sua paragem contam-lhe a praga da Esfinge: a ‘jovem
alada’, a ‘cadela que canta’, está a dizimar os jovens de Tebas. O monstro propõe uma
adivinha e mata os que falham na resposta. Jocasta, viuva de Laio, oferece a sua mão e
a coroa de Tebas ao que vencer a Esfinge. Como o jovem Siegfried, Édipo assume o
desafio, devorado pela curiosidade e a ambição. O confronto com a Esfinge tem lugar.
Qual a sua natureza? Mistério. Facto é que Édipo entra em Tebas vencedor e desposa
a rainha. Eis o incesto. Mas para que os deuses se divirtam, a sua vítima deve cair de
alto. Passam-se prósperos anos. Duas filhas e dois filhos complicam o casamento
monstruoso. O povo ama o seu rei. Mas estala a peste. Os deuses acusam um criminoso
anónimo de infectar o país e exigem que o apanhem. Édipo conduz o inquérito ébrio
de infelicidade e é encostado à parede. Fecha-se a armadilha. Faz-se luz. Jocasta
enforca-se na sua écharpe vermelha. Édipo fura os olhos com o broche da enforcada
(...)”.
eternamente. Quis o destino que a jovem — esta mesma que os mastins agora
assaltam — morresse pouco depois e a ele viesse juntar-se no inferno. Foram
condenados, ele a persegui-la como inimiga mortal, ela a ser por ele eternamente
assassinada. Por isso todas as sextas-feiras, neste lugar e a esta hora, repete-se a cena
atroz: ela foge nua no pinhal, os cães derrubam-na rasgando-lhe a carne, ele
trespassa-a com a espada. Depois, com a adaga, arranca-lhe o coração e dá-o a comer
aos cães. Instantes depois, penosamente, a jovem ressuscita e tudo recomeça: fuga,
perseguição, nova morte idêntica.
Em vertigem, Nastagio assiste ao drama que só se consuma para recomeçar: a jovem
cai de joelhos, o cavaleiro trespassa-a pelas costas num transe demente, ela abate-se
de borco, ele arranca-lhe o coração, lança-o aos cães que o disputam e depois atacam
o cadáver para o devorarem. Finda a carnificina a vítima acorda, reergue-se em
agonia e, de novo em desespero, foge a correr para o mar. Nastagio vê desaparecer
os dois vultos e os mastins, já mergulhados na infinita repetição da cena celerada.
No seu furor homicida, o cavaleiro ainda lhe diz que, nos outros dias da semana,
estão em outros lugares onde a vítima, em vida, o desprezou. Em todos eles, a
rapariga corre de morte em morte e ele nada mais faz senão matá-la.
De volta às suas tendas, Nastagio congemina um plano: fingindo ter esquecido a sua
paixão, convidará todo o clã Traversari para um banquete de despedida no lugar da
chacina, na sexta-feira seguinte. A coisa faz-se e no dia aprazado, com os conciliados
à mesa entre pinheiros e já no último prato, estrondeia a aparição da rapariga nua,
dos mastins, do cavaleiro, e a atrocidade repete-se. Alguns dos comensais
conheceram em vida vítima e cavaleiro e, perturbados, recordam o caso. Mas a quem
tenta travar a sua fúria o assassino riposta, fatal, com a sua história e ninguém ousa
interpor-se. Em choque, os convidados regressam a Ravena. E a cada momento a
rapariga do pinhal volta a ser morta pelo pretendente rejeitado e a ser devorada pelos
mastins.
Dias depois, decidindo-se em terror, a filha Traversari manda em segredo uma criada
às tendas do suplicante rejeitado: ele que volte à cidade e faça dela o que quiser.
Nastagio saboreia a terrível vitória, mas manda responder que nada quer da amada
até que solenemente se casem. Diz Boccaccio que a boda se fez logo a seguir e que
Nastagio e a Traversari viveram felizes muitos anos. E, imoralista, acrescenta que o
terror das damas de Ravena foi tão grande que, avisadas, passaram a oferecer-se à
fome dos homens.
O conto acaba assim — a violência funde um novo molde para o desejo. Bem o viu
Botticelli, que em 1483, talvez por encomenda de Lorenzo de Medici, pintou o conto
em quatro têmperas sobre madeira — outra sinopse e outro story board, feito quatro
séculos antes do nascimento do cinema. E, bem mais económico do que eu,
Boccaccio sintetizou como segue, no seu índice, a acção:
“Por amor duma Traversari, Nastagio degli Onesti dilapida a sua fortuna sem ser
correspondido. A pedido dos seus retira-se em Chiassi e aí vê uma jovem ser caçada e
morta por um cavaleiro e depois devorada por mastins. Convida para um repasto
parentes e a sua bem-amada. Esta assiste à repetição do martírio da mesma jovem e,
temendo sofrer igual destino, aceita Nastagio como esposo”.
Cinco linhas, nem tanto. É um teaser, um trailor, não uma sinopse. Mas
poderosamente eidético: vemos Nastagio em gastos sumptuários com a Traversari,
vemo-lo partir destroçado, vemo-lo ver a caçada infernal, vemo-lo a convidar os
convivas do repasto, vemo-los ver a repetição do assassínio, vemos a conversão da
Traversari e o desfecho. Falta a narrativa do cavaleiro voltado do inferno com a
mulher que o não quis e a sua transformação, por Nastagio, em argumento decisivo.
Uma sinopse não desenvolve o tema nem substitui a nota de intenções: narra
resumidamente a acção concreta, visível, de modo que o seu leitor possa, num
relance, antecipar a história que lhe vai ser contada. A sinopse miniaturiza a
narrativa, não a comenta nem interpreta.
221
Detalhes das quatro têmperas de Botticelli sobre a história de Nastagio (1483): outra sinopse, outro story board.
222
de quem as pagará. Só se vive uma vez, diz Alonso, diz Emma: vamos tentar a nossa
sorte! Tente a sua sorte (...). Veja o que consegue arranjar”. (tr. J.M.M.)
Ora, o protagonista de Slow Man está convencido de que a escritora o assedia
continuamente porque não desiste de o transformar numa personagem do livro que
está a escrever, e diz-lhe isso mesmo, rejeitando o incitamento: “Vejo o que posso
arranjar? Para você poder meter-me num livro?” Mas ela enfada-se e insiste,
sublinhando ao mesmo tempo que personagens e que literatura prefere, e explicando
por que se deve ler os clássicos:
“...Para alguém, algures, poder eventualmente metê-lo num livro! Para alguém poder
querer metê-lo num livro. Para merecer ser metido num livro. Ao lado de Alonso e de
Emma. Torne-se importante (...), viva como um herói. É o que os clássicos ensinam.
Seja uma personagem principal. Se não o for, para que lhe serve a vida?” (tr. J.M.M.)
Ou seja: para ela, desde Homero nada mudou. Ulisses quererá sempre libertar-se da
ilha de Calipso e regressar a Ítaca e a Penélope, ganhando essa viagem de regresso o
valor da odisseia. Electra e Hamlet quererão sempre vingar o pai assassinado pelo
homem que se casou com sua mãe. Emma fugirá sempre da clausura de um
casamento insípido. O seu fim pode ser trágico, mas o que fizeram redime-os. Alonso
Quijano (Dom Quixote) é um velho alucinado pelas suas leituras, mas as
infortunadas aventuras e as batalhas perdidas em que se enreda são símbolos de
honra e coragem mal colocadas, meros erros de avaliação: na sua “espécie de
ficção”— como nas de que falou Augé — os moinhos são gigantes. Pelo contrário, o
estrangeiro de Camus não se apaixona, “não está senão mais ou menos em todas as
coisas”, alheia-se da sua própria experiência, pouco reflecte sobre ela. E o K. de Kafka
não se transforma, antes se adapta ao processo que lhe movem até que morre vítima
dele. O homem sem qualidades, de Musil, deambula entre experiências erráticas,
como o Franz de Döblin deambula na Berlim a que voltou depois de sair da prisão.
A estes protagonistas modernos passámos a chamar anti-heróis ou heróis relutantes
(só forçados pelas circunstâncias farão algo de excepcional ou talvez nem o façam).
Também o protagonista de Slow Man não é um herói nem quer ser importante. É
um sexagenário divorciado e sem filhos, um ciclista solitário que é atropelado na
primeira página da história e a quem amputam uma perna doze páginas depois.
Incapacitado, apaixona-se pela enfermeira croata que o assiste em casa e só sonha
pagar os estudos ao filho da desejada balcânica e ir viver para um barraco no quintal
dela — sonho insensato, porque a enfermeira é casada, tem duas filhas além do rapaz
e está farta de idosos a quem presta cuidados domiciliários e que por ela se
apaixonam. Bem insiste a escritora para que ele vire a página, mude de sonho e se
torne outro:
“Faça alguma coisa. Qualquer coisa. Surpreenda-me. Se a sua vida lhe parece
repetitiva, circunscrita e cada vez mais enfadonha, é porque quase nunca sai deste
maldito apartamento (...). Quando foi a última vez que passeou sob um céu estrelado?
Bem sei que ficou sem uma perna e que, para si, andar não é divertido. Mas ao fim de
certa idade todos nós ficamos mais ou menos sem uma perna. A sua perna perdida é
apenas um sinal, ou um símbolo, ou um sintoma — nunca me lembro da diferença
entre os três — do envelhecimento, de ficar velho e desinteressante. Se assim é, de que
lhe valerá queixar-se?” (tr. J. M. M.)
Coetzee nasceu em 1940 e é um coleccionador de grandes prémios literários: entre
outros recebeu dois Booker Prizes, três CNA, o Femina Étranger, o de Jerusalém
(1987) e o Nobel (2003). Sul-africano de Cape Town, foi um académico e autor anti-
apartheid. Depois exilou-se na Austrália meridional e ficou a viver em Adelaide: ele
sabe de histórias e o que é mudar de vida, tornar-se outro. E também sabe que o
protagonista de Slow Man não precisa de emular o Quixote de Cervantes nem a
Bovary de Flaubert. No fim, a escritora que o assedia propõe-lhe que coabitem
castamente e se amparem um ao outro, mas ele obstina-se na sua solidão. Eis o que
diz e faz nas últimas linhas do romance: “Quanto a mim, quanto ao presente — adeus.
Curva-se para diante e beija-a três vezes, da maneira formal que lhe ensinaram em
criança — esquerda direita esquerda”. Recusa o fim de vida remediado que ela lhe
oferecia. Há nisso uma vaga reminiscência de Emma Bovary: o que a escritora lhe
propõe “Não é amor. É algo diferente. Algo menor”. Não está à sua altura; ele não
fará “alguma coisa, qualquer coisa”. Desinteressa-se. Fim.
225
Fecha-se o livro e anota-se que o autor não explica minimamente porquê nem como
entra a escritora na vida do protagonista. Ela cai dos céus sem explicações, deus ex
machina em aterragem de emergência, misteriosamente informada sobre a vida dele
e a dos outros: é um anjo da guarda insidioso, que trabalha por conta própria e que
assumiu uma missão. Não é uma funcionária divina: a sua independência é
inconciliável com qualquer autoridade superior. Faz pensar na oracular vizinha
polaca que visita Nikki no início do Inland Empire de Lynch; mas em vez de sair de
cena, como esta, ao fim de cinco minutos, a escritora de Coetzee instala-se no
romance na sua página cem e disputa, nas duzentas seguintes, o lugar principal,
intervindo em tudo o que pode. Não é a verosimilhança que interessa Coetzee: é a
intensidade que a importuna personagem transporta consigo, como se fosse a
encarnação do antigo destino, da moïra grega.
Slow Man ocupa-se também de outras coisas: de cuidados de saúde domicilários, da
família da enfermeira croata — ela sonhou, noutra vida, em Dubrovnik, ser artista,
cursou belas-artes e trouxe de lá um diploma de restauro de arte, mas em Adelaide,
Austrália, só conseguiu trabalho como enfermeira. O seu marido também foi
restaurador de antiguidades, consertou na Croácia um pato mecânico com 200 anos
que ninguém conseguia remontar e pô-lo de novo a nadar, a grasnar e a pôr ovos,
mas em Adelaide só arranjou trabalho como mecânico de automóveis. O filho do
casal, a quem o protagonista se propõe pagar estudos caros em Camberra, acaba por
lhe roubar, da sua colecção de fotos históricas (que ele tenciona doar à biblioteca
pública), um original precioso; o incidente dá lugar a uma discussão entre o
protagonista e a enfermeira croata sobre o que é um original em fotografia,
defendendo ela que qualquer foto é uma reprodução ou cópia a partir do seu
negativo, e que a ideia de original fotográfico não pode, ao contrário do que se passa
nas artes, ser valorizada. Não são underplots, são curtas derivas a partir do plot
principal e que com ele se entrelaçam. Mas quem adaptasse Slow Man para o cinema
teria de ponderar o peso específico de cada uma destas componentes,
hierarquizando-as e atribuindo-lhes os respectivos espaços e durações no script.
Sempre que, pensando em filmes, nos interessamos pela fábrica de um autor,
queremos conhecer a sua economia narrativa, o modo como gere o que inventa.
Contamos palavras, linhas, a duração de cada episódio, de cada diálogo, de cada A fábrica
digressão. Veja-se como Ian McEwan entra no seu assunto em Sábado (2005): McEwan
e das coisas. McEwan é um narrador que gosta de derivas e de abordar com vagar
the state of affairs. Adaptá-lo ao cinema instalou sempre este dilema: deve reduzir-
se esse filosofar e trabalhar apenas a acção descrita? Ou deve usar-se a voice over
herdada dos noirs dos anos 40 e injectar no filme um discurso segundo, uma
narrativa sobreposta à acção?
Depois deste set up de Sábado, a aventura propriamente dita pode começar: o carro
do médico será levemente abalroado pelo de um rufia acompanhado por dois outros
e que quase o espanca. O meliante passará a hostilizá-lo e à família, acabará
assaltando-lhe a casa mas será mal-sucedido e cairá de uma escada, baterá com a
cabeça e ficará entre vida e morte. Apesar do ódio que o homem lhe vota, o
neurocirurgião decide operá-lo e salva-lhe a vida. Mas Henry Perowne também não
é um herói clássico, é apenas um médico cujas únicas acções “extraordinárias” são
as suas cirurgias. Ele bem tenta evitar o conflito com o meliante, mas este provoca-
o e persegue-o, obriga-o a reagir. McEwan nasceu em 1948 e desde 1975 publicou
mais de vinte livros. Ganhou o Booker Prize em 1998 e desde aí a chuva de prémios
não mais terminou. Muitos dos seus romances têm uma particularidade: falam de
uma prática profissional específica, sobre a qual o autor se informou o suficiente para
poder escrever sobre ela. Ou seja, esses romances vivem de um know how ou de um
knowledge que a personagem principal transporta consigo. Quem os lê fica a saber
mais sobre neurocirurgia, sobre tribunais de família, sobre miúdos que preferem
estar sozinhos, ou sobre o túnel 57 sob o muro de Berlim.
Nesta acepção, não podemos prescindir, nem da “excelência” das personagens, nem
da “excelência” da estrutra narrativa ou do plot. Mas outros autores, como Irwin R.
Blacker (The Elements of Screenwriting, pp. 35-36) mantiveram-se fiéis à herança
aristotélica e privilegiam indiscutivelmente o plot:
“Disse Aristóteles que os homens se distinguem e individualizam pelos seus traços de
carácter, mas que são felizes ou infelizes devido às suas acções. Por isso, o drama não
é o retrato de uma personagem, mas sim das suas acções; a alma do drama é o plot. O
227
plot é mais importante do que as personagens. Os dramaturgos não usam a acção para
retratar personagens: criam personagens devido à sua relação com a acção”.
Proposta inversa destas é de Lajos Egri em The Art of Dramatic Writing, onde, Lajos Egri
contra a tradição aristotélica, defende a personagem contra o enredo e argumenta a
sua escolha. Sugere Egri que se parta de uma personagem idiossincrática,
obstinadamente convicta de qualquer coisa ou confinada por um problema pessoal,
sublinhando-se esse seu traço até ao limiar do desequilíbrio: no seu relacionamento
com outros, tal personagem gerará tensões devido aos seus excessos: desejando ser
reconhecida, requerendo o amor de outrem ou impondo-se a quem com ela interage,
gerará antagonistas que a consideram impertinente ou abusiva: a mãe possessiva
que rivaliza com a namorada ou esposa do filho e o pai que procede do mesmo modo
em relação à filha são, entre outros, protótipos canónicos deste tipo de excesso. Ao
propor que se criem personagens fortes e perturbadadoras como a Bovary de
Flaubert, mas evitando caricaturá-las, Egri rejeitou a tradição da Poética, onde as
personagens são meros instrumentos do enredo. O seu conselho é útil, pelo menos,
a neófitos que dão primeiros passos em contos e histórias curtas.
Para Egri, qualquer drama é, assim, uma character’s driven story — uma história
conduzida por personagens e pelas tensões e conflitos entre elas. Uma personagem
obsessiva e desequilibrada criará por si mesma situações tensas, ou seja: gerará, pelo
que diz e faz, o enredo — a história nascerá dela. Ao mesmo tempo, diz ele, as
características dessa personagem e da sua aposta devem poder ser traduzidas por
uma premissa — uma declaração com valor ético: “o amor é mais forte do que a
morte” é a premissa de Romeu e Julieta; “a ambição desmedida é auto-destrutiva” é
a premissa de Macbeth; “a confiança cega leva à catástrofe” é a premissa de King
Lear. Lembra Egri que, no teatro, a premissa foi sendo designada de muitos outros
modos: é o “tema”, a “tese”, a “ideia” ou “fio condutor”, a “emoção-base”, o lema ou
o provérbio que a história glosa ou perpetua. É esse o seu segundo conselho: que a
história assente numa premissa entendível e a satisfaça — uma exigência que,
embora hoje menosprezada, ainda subsiste no pitching de projectos para cinema,
onde jurados que avaliam sinopses e notas de intenções querem entender com
exactidão que objectivos perseguem os respectivos autores.
O terceiro conselho de Egri é que, nos diálogos e situações criadas, se dê a maior
atenção às transições convincentes que estabelecem e evidenciam o(s) conflito(s),
evitando, quer situações estáticas (as personagens não evoluem emocionalmente
nem entram em oposição), quer reversões precipitadas (as personagens mudam de
atitude ou de opinião sem motivo entendível). Leia-se transição convincente como
sinónimo de progressão verosímil: o espectador há-de entender o que leva à
mudança de atitude ou de comportamento das personagens que interagem. É toda
uma escola, assente num classicismo herdado; mas, já nos anos 50, filmes como East
of Eden (Elia Kazan, 1955) ou Rebel Without a Cause (Nicholas Ray, mesmo ano)
desafiavam protagonistas transparentes e entendíveis, preferindo-lhes perfis
psicológicos e comportamentos ambíguos e contraditórios — por exemplo os criados
para James Dean, actor que, em matéria de motivações e de complexidade
emocional, subia a fasquia das personagens a que Marlon Brando, seu modelo, dera
vida. E o Actors Studio de Nova York, criado em 1947 por Kazan, Robert Lewis e
Cherl Crawford, deslocou todo o conflito para a interioridade das personagens,
propondo a imersão total do actor no psiquismo singular da dramatis persona.
Apesar da sua obsessão principal com a estrutura narrativa, com o enredo e seus
pontos de viragem, também Field (Screenplay, p. 22-23, 28) sublinhou a
centralidade da personagem e do seu ponto de vista na concepção de qualquer
história:
“Quem é a vossa personagem principal? (...) A personagem é o fundamento essencial
do que vão escrever. (...) Antes de escreverem a primeira palavra, conheçam a vossa
personagem. (...) Depois separem as componentes da sua vida em duas categorias
básicas: a interior e a exterior. A vida interior da vossa personagem decorre (...) até ao
momento em que o vosso filme começa. É o processo que formou essa personagem. A
sua vida exterior começa no momento em que o vosso filme se inicia e dura até ao fecho
da história. É o processo que revela a personagem”.
228
trajectórias (ou arcos) emocionais, rise and fall (ascensão e queda) de personagens.
Eis a diminuta listagem de modelos que propõem:
— Ascensão estável e sustentada dos valores emocionais como em Alice’s Adventures
Underground, adaptado de Lewis Carroll ou nas histórias do tipo rags-to-riches (dos
trapos à fortuna, da miséria à riqueza);
— Queda estável e sustentada dos valores emocionais até ao clímax trágico como em
Romeu e Julieta de Shakespeare;
— Queda seguida de ascensão, como no exemplo clássico de Kurt Vonnegut (1995,
citado no mesmo texto): alguém cai num buraco mas consegue sair dele, ou como no
Feiticeiro de Oz;
— Ascensão seguida de queda, como no mito de Ícaro;
— Ascensão, queda, ascensão como em Cinderela (na versão de Perrault e dos irmãos
Grimm);
— Queda, ascensão, queda, como em Édipo-Rei (Sófocles, c. 429 a. C.).
Estas histórias-tipo ou histórias-padrão, são, em geral, narrativas complexas que,
funcionando como pré-textos inspiradores, se projectam em inúmeras outras. Mas a
sua redução às combinações mais frequentes de ascensão e queda torna os modelos
abstractos, desencarnados e de duvidosa utilidade — eles precisariam de se
materializar em trajectórias concretas (plots, intrigas, enredos) para terem serventia
referencial. Antes, Denis Johnson, estudioso de dramaturgia (referido por Philip
Parker, 1998), propusera oito histórias-padrão correspondentes a outros tantos
grandes temas ou arcos de personagens:
1, Cinderela — o reconhecimento final da virtude inicialmente não reconhecida; 2,
Aquiles (e o seu calcanhar) — a vulnerabilidade fatal do herói aparentemente
invencível; 3, Fausto — a dívida contratual que tem de ser paga, sendo que o devedor
procrastina quanto pode mas o credor não perdoa; 4, Tristão — o triângulo amoroso
(Tristão, Isolda e o rei Marcos); 5, Circe — alquimista e envenenadora, deusa da lua
nova, domadora de homens e de bichos: também representa a estratégia da aranha
para apanhar os insectos de que se alimenta; 6, Romeu e Julieta — a paixão
compulsiva, mas proibida e fatal; 7, Orfeu — a prenda roubada e a luta para a reaver
(cf. o protagonista de Solaris); 8, Conan — o herói invencível, como todos os James
Bond e seus congéneres.
Comentando a listagem de Johnson, Parker (loc. cit.) propôs, em vez de oito, dez
histórias-tipo (Mendes 2001: 339-343): ignorou Tristão, considerando-o uma mera
variante do vasto tema “romance” e acrescentou, além deste, “o vagabundo”, que se
instala temporariamente numa qualquer comunidade e ajuda a resolver um
problema local antes de partir de novo (Shane, O fugitivo, outros); “a demanda” (The
Quest), representada pelas jornadas do herói dos contos estudados por Propp, pelas
sagas arturianas e romanceiros de cavalaria; e os “ritos de passagem” — a chegada
ao limiar de uma nova idade e as tentativas para a assumir (adolescente de Stand by
Me, coming of age stories e bildungsroman). Outros autores, perdendo-se no
labirinto dos modelos, admitiram até 30 ou mais histórias-padrão, por vezes
multiplicando-as em subtipos, o que torna os seus inventários morosos mas não-
exaustivos. Escreveu Pascal Bonitzer (in Carrière, 1990: 89), recordando, a propósito
da escrita para filmes e do trabalho do guionista, autores que tentaram enumerar
“histórias-tipo” ou “mães de histórias”:
“O número de histórias é infinito, mas os tipos de situações dramáticas, épicas ou
cómicas que as compõem são em número limitado. ‘Gozzi defendia que não existem
senão 36 situações trágicas. Schiller bem procurou enumerar mais, mas nem
identificou tantas quanto Gozzi’, como anotou Goethe nas suas Conversas com
Eckerman [1836-1848]. E, no fim do século XIX, inspirando-se nele, Georges Polti
escrevia o seu Les Trente-Six Situations Dramatiques [1895, ano de nascimento do
cinematógrafo dos Lumière], com títulos de capítulos como ‘22ª situação: Tudo
sacrificar à paixão; 23ª situação: Ter de sacrificar os seus’, etc”.
Significava isto, para Bonitzer, que não existem histórias para cinema (nem para
outros suportes) genuinamente originais, e que todo e qualquer guião se constrói a
partir de “uma trama de situações-tipo, de encadeamentos-tipo, e de uma
estereotipia a que as histórias devem ao mesmo tempo submeter-se e escapar”. No
centro desta contingência, como veremos a seguir a propósito da tragédia grega,
estão as ideias de repetição e de transferência — se tivermos em conta que, na
literatura como nas artes de cena e no cinema, distinguimos sempre, como já a
231
Os regressos do mesmo
TODOS CONHECEMOS A CRIANÇA que protesta quando alguém que, “no regaço de
Dafne”, lhe conta uma história, se afasta da narrativa a que ela se apegou e quer
revisitar: “Não é assim!”, queixa-se ela. A criança precisa da re-iteração, precisa da
repetição de cada peripécia, de cada fala e de cada entoação para fruir da reactivação
da sua experiência de ouvinte-participante, para refazer a viagem emocional a que
se habituou e de que não quer prescindir. A repetição confirma e garante a
sedimentação dos sentidos, o transporte para o já vivido que a criança quer reviver.
Quer mais, e outra vez mais, do mesmo: eis a necessidade antropológica da repetição
narrativa, que já mencionei. Será preciso que o contador de histórias seja um
verdadeiro demiurgo para que essa criança aceite desvios por ele propostos e que a
transportem, desafiadoramente, para novas paragens que, embora desconhecidas,
vale a pena descobrir e desbravar.
Foi este lento percurso feito de pequenas diferenças excessivas que os contos de
fadas, fantásticos e infantis fizeram, na tradição oral que os estabilizou, antes da sua
passagem a escritos, e ao longo das suas sucessivas versões escritas. Do mesmo
modo, todas as grandes recolhas de romanceiros e de contos e lendas populares
contêm numerosas versões das mesmas histórias, variantes inspiradas em matrizes
comuns (no caso português, v. Leite de Vasconcelos, 1958-1960 e 1964-1969). Mas
também quem relê o Hamlet ou Guerra e Paz quer voltar onde já esteve e reviver o
que lá viveu, voltar a sentir o que sentiu e muitas vezes descobre, com espanto, que
a releitura continua, como na infância, a oferecer-lhe novas percepções e novos
entendimentos do que julgava conhecer. É igualmente esse o desafio das
reencenações teatrais das mesmas peças, onde se dão novos rostos e expressões a
personagens e diálogos que passaram a integrar um cânone. E o mesmo se passa com
os filmes e seus remakes — o cinema é uma arte recheada de glosas, pastiches,
plágios e repetições. Mas o inverso também é verdadeiro: todos sabemos que a
releitura de um romance ou o revisionamento de um filme pode decepcionar-nos: já
não percebemos o que nos fascinou na primeira leitura, no primeiro visionamento,
porventura ocorridos anos antes. A obra “esgotou-se” para nós: nada nos oferece que
mereça revisitação. Por cada obra que para nós se tornou numa companheira de
estrada e com quem convivemos longamente, há cem outras que não merecem que
a elas regressemos.
Julgo que a maioria de nós partilha a percepção de que a maneira de contar, a forma
e o estilo, envelhecem mais depressa do que os temas e enredos. Mas isso não
significa que mitos e histórias antigas não ressurjam com êxito, por vezes
obsessivamente, em novas roupagens, prosódias e retóricas recicladas. Observadas
com atenção, as antigas tragédias gregas são, tipicamente, um desses casos: a sua
232
300 peças; mas o número total de obras escritas entre os sécs. VI e IV a.C. rondará
talvez mil, incluindo dramas satíricos. É, assim, imenso o que desconhecemos dessa
produção.
Maneiras A maneira trágica afirma-se como género quer pelos seus temas e conteúdos quer
de género pelas suas formas próprias, distinguindo-se de outros que a precedem e com que
coexiste: ela é ao mesmo tempo um genus scribendi (estilo, maneira própria de
determinado uso da palava) e um dos genera literários já classificados, a posteriori,
pelo Platão da República: os sérios (epopeia e tragédia) e os burlescos (comédia e
drama satírico); ou, noutra formulação do mesmo Platão (op. cit.: 392e-394b), é um
235
vasta frota que junte gregos e seus aliados para arrasar Tróia e resgatar Helena. Entre
os expedicionários estão guerreiros quase invencíveis como Ajax e Aquiles e o arguto
Ulisses. Mas uma longa acalmia impede a frota de zarpar e um oráculo diz a
Agamémnon que imole sua filha Ifigénia para obter a ajuda dos deuses. Para travar
a ira das tropas imobilizadas, ele aceita sacrificar a filha; a pretexto de a casar com
Aquiles, chama-a, e à mãe, a Áulis, o porto onde a armada espera. Tenta forçar
Clitemnestra a regressar a casa e a não permanecer no meio da tropa, mas esta recusa
e sabe, por Aquiles, que não está previsto casamento algum e que Ifigénia veio, sim,
para ser morta pelo próprio pai. Agamémnon sacrifica a filha e a armada parte com
ventos favoráveis. A guerra de Tróia durará dez anos e matará milhares de gregos e
troianos; a cidade é por fim arrasada e Menelau recupera Helena, que os gregos
odeiam, para a mandar lapidar. Agamémnon também regressa; mas, em Micenas,
Clitemnestra, que não esqueceu os seus crimes, quer vingar Ifigénia e, com Egisto,
seu amante, assassina, por sua vez, o pai dos seus quatro filhos. Cede o poder a Egisto
e este, temendo a vingança de Orestes e de Electra, degreda o primeiro e rouba à
segunda os seus direitos de filha de rei e de rainha. Crisotémis mostra-se indulgente
face à mãe e a Egisto. Mas Electra quer agora, por sua vez, vingar o pai assassinado:
reencontra-se com o irmão exilado e ambos tramam matar, quer a mãe, quer o
usurpador Egisto — e fazem-no. Eis os “funestos crimes dos da raça de Agamémnon”,
transferidos das lendas e mitos e sucessivamente retomados pelos trágicos do séc. V
a. C.
Mas, na tragédia, estas personagens que concretizam acções extremas justificam até
à obsessão, na sua veemente retórica, a inevitabilidade ou a legitimidade dos seus
actos e crimes, a sua “inocência” original: tais crimes são inerentes à condição
humana, resultam dela e tornam-se entendíveis à sua luz, garantindo a passagem do
particular ao universal; e esse transporte é sustentado, como anotou Aristóteles, pela
solenidade do tratamento dramatúrgico. Os caracteres das personagens trágicas,
disse ele de forma simples, “devem ser bons” (Poética, 1454a). E, também ela à
procura da especificidade do género trágico, insiste Romilly no tratamento dado, nas
peças, a tais crimes (op. cit.: 144):
“Descrever o crime de uma mulher que mata o marido ou de uma mãe que mata os
filhos, mostrar o desastre de um homem que descobre ter casado com a mãe, poderia
fornecer belos melodramas. Mas para que tais actos se tornem trágicos e escapem ao
melodrama, é preciso mais um elemento, uma outra luz, uma significação própria”.
Que elemento, que outra luz, que significação própria? A resposta a estas questões
está em parte contida na definição da tragédia pelo Aristóteles da Poética, um texto
de apoio ao seu ensino no Liceu (c. 335-323: 1449b, 27-28):
“É (...) a tragédia imitação de uma acção de carácter elevado, completa e de certa
extensão, por uma linguagem revestida de certos ornamentos distribuídos pelas suas
diversas partes, [imitação que se faz] não por simples narrativa mas com actores e que,
suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. Digo
ornamentada a linguagem que tem ritmo, harmonia e canto; servir-se separadamente
de cada um destes ornamentos significa que algumas partes da tragédia adoptam só o
verso, outras também o canto”.
Quanto ao peso da realidade social, política, militar e do habitus citadino na tragédia, O peso do etos
ele revela-se diversamente nos seus principais autores: o austero Ésquilo escreve
sobre a ruína dos vencidos em Salamina; as tragédias geram grandes lamentações
onde ecoam as desgraças da guerra (como nos Persas, nos Sete contra Tebas e no
Agamémnon de Ésquilo, ou na Andrómaca, na Hécuba e nas Troianas de Eurípides,
o seu ciclo alusivo à crueldade dos gregos na antiga guerra contra Tróia, repetida na
guerra do Peloponeso). Em Eurípides, nas histórias repescadas no passado meio
mítico, meio histórico, sobrenadam questões que a Atenas sua contemporânea
discute no espaço público, o que lhe dá uma tonalidade mais “moderna”; Sófocles é
talvez, dos três, o mais conservador e arcaizante, arredando o seu teatro de questões
momentosas. Mas de facto, em geral, os trágicos gregos evitam — à excepção de
Ésquilo em Os Persas — referir-se directamente a acontecimentos recentes, mesmo
quando a eles parecem aludir: preferem-lhes os da antiga história mítica. O passado
deve, para eles, elucidar e ser metáfora bastante do presente. Desse modo, o
acontecimento singular (histórico) é por eles tornado universal (poético); e o
238
[mas] com o sentimento íntimo de que nada é sem o deus (…): a sua solidão é um
reflexo existencial da ‘excentricidade’ do humano na sua relação com o divino.”
Também Romilly (loc. cit.: 146-147) anota que, em Eurípides, pesam menos as
sobredeterminações divinas, e bem mais a decisão autónoma de cada personagem:
“Nenhum destino obriga Medeia a matar os filhos (…): ela forja o seu próprio destino,
sem que no entanto lhe possa escapar. (…) [Do mesmo modo,] nenhuma fatalidade
decide a tomada de Tróia, a vingança de Hécuba, a sorte de Andrómaca”.
A autora refere assim, como especificidade trágica, a “dupla causalidade”: por um
lado, existe a sobredeterminação divina ou do destino; por outro, existem os
desígnios e vontades humanas, o que mais tarde (em 388-395 d. C.) Agostinho de
Hipona designará por libero arbitrio, conceito inventado para se imputar às
criaturas de Deus, e não a este, a responsabilidade do mal errante, do mal corrente:
“Quando um mortal corre para a ruína, os deuses ajudam [Ésquilo, Persas, 742]. Nada
sucede sem a vontade de um deus, nem sem que um homem dela tome parte e se
comprometa com o que sucede: divino e humano combinam-se, sobrepõem-se”
(Romilly, loc. cit.: 148).
Karl Reinhardt propôs, no seu Sophokles (1933), uma leitura dos heróis trágicos
baseada em dois eixos: o eixo vertical, que regista a relação da personagem com os
deuses, e o eixo horizontal, que regista a sua interacção com outros homens e
mulheres, para concluir que em Sófocles os dois eixos se equilibram, respeitando a
personagem os desígnios divinos embora discutindo-os e avaliando-os interpares. Se
aplicássemos estes dois eixos de análise a Ésquilo e a Eurípides, observaríamos que
no primeiro o eixo vertical é dominante, e que no segundo o eixo horizontal se torna
decisivo. Tal observação põe em evidência a diferença da posição “metafísica” do
herói trágico de Ésquilo a Sófocles e a Eurípides.
A menorização-relativização do papel dos deuses por Eurípides, que não hesitava em
os considerar imorais, volúveis e cruéis, está explícita em numerosas passagens das
suas peças. Diz-se por exemplo no seu Héracles, distinguindo o que eventualmente
sejam efectivas divindades e as representações delas propostas pelos poetas, como
também Platão virá a fazer na posterior República (374-372?):
“Que os deuses condescendam em amores ilícitos e uns aos outros se encadeiem, nisso
nunca acreditei, nem em que um deles possa submeter outro ao seu poder. Deus, se
existe um deus, decerto é isento de defeitos, e tudo o resto não passa de mentirosas
fantasias de poetas” (itálicos J. M. M.).
Ou, como diz Orestes na sua Ifigénia em Táuris, separando-se da crença antiga na
necessária sageza desses deuses (mas não podendo ir mais longe: ele escreveu
durante meio século para os festivais dionisíacos, celebrações ao mesmo tempo
cívicas e religiosas):
“Os deuses, que passam por sábios, não enganam menos do que os leves sonhos.
Grande é a confusão reinante sobre as coisas divinas e as humanas. Dói-me que, por
fazer caso de adivinhos, pereça aquele a quem não falta prudência e sensatez”.
Dois mil anos depois, a meio do séc. XVI, a tragédia francesa, influenciada por
Séneca, por reescritas italianas e mais tarde pelos comentários da Poética da autoria
de Scaliger e Castelvetro, reelege como seu principal tema, como escreveu Jacques
Morel (1989, id. ibid.), “o infortúnio dos grandes deste mundo (...), que da grandeza O infortúnio
excessiva se precipitam na miséria insuportável ou na morte”, como já em As dos grandes
Troianas de Garnier (1579), que atesta o gosto do tempo “pelos dramas mais
sombrios”. Mas será preciso esperar por Corneille e Racine, no séc. XVII, para que a
tragédia francesa conheça a maturidade: em Corneille, diz Morel, “os heróis só
adquirem expressão plena renunciando a tudo o que parecia assegurar a sua
felicidade”; em Racine, o grande tema é igualmente “a impossibilidade de ser feliz”.
Eis como Morel sintetiza o que está em jogo nas tragédias francesas do séc. XVII:
“Elas tratam sempre de alguém que, envolvido numa história (em geral mítica), é
obrigado, sob a pressão dos acontecimentos, a fazer uma escolha decisiva. No Cid como
na Fedra, a tragédia começa no momento em que o protagonista, observado na sua
condição social e política e na sua individualidade própria, é levado a tomar uma
240
decisão que comprometerá as suas aspirações e interesses mais legítimos numa luta
desigual, e que o forçará a sacrificar o essencial de si mesmo ou a perder a vida”.
trágicos representam, deste modo, uma evolução muito rápida do género. Que o diga
Aristóteles, que os comentou mais tarde: o estagirita preferia Sófocles, que
considerava o mais equilibrado, mas não desdenhava a maior teatralidade e os ardis
de Eurípides, que considerava “o mais trágico dos trágicos”. Segundo um velho
aforismo da época, Sófocles “representa os homens como eles devem ser”,
dominados pela grandeza trágica do seu protagonismo; Eurípides representa-os
“como de facto são”: mais humanos (“demasiado humanos”, dir-se-á parafraseando
Nietzsche), contraditórios, vacilantes, frágeis, e por isso imprevisíveis e perigosos.
que se lhe referiu, bem como o comentário crítico que a acompanhou ao longo de
séculos, ora desumanizou ora reumanizou a personagem, ora transformou Jasão em
herói que se torna abjecto ora em homem ponderado que tenta livrar-se da esposa
louca e/ou diabólica. Cada um refaz a sua Medeia.
Fedra Atentemos agora na Fedra de Eurípides, esposa de Teseu, rei de Atenas, que se
apaixona por Hipólito, filho de uma anterior ligação do marido. É sua confidente a
antiga ama, que a vê e ouve deprimir-se e definhar. A ama dá conta da paixão
proibida ao jovem que a sensual madrasta ama, mas este, que respeita o pai, rejeita-
a com violência. Fedra prefere então pôr termo à vida e enforca-se. Teseu regressa
inesperadamente e encontra junto da mulher morta um escrito em que ela acusa
Hipólito de a ter violado, o que a levou ao suicídio. Teseu amaldiçoa o filho, que se
exila; virá depois a saber que um acidente o matou. Eurípides escreveu duas versões
de Hipólito, a primeira das quais se perdeu. Séneca retoma o tema e a sua Fedra é
mais malévola e obstinada na tentativa de sedução do enteado; a protagonista só se
mata depois do rapaz, expulso pelo pai, ser espezinhado pelos cavalos que puxam o
seu carro, assustados pelo raio de uma tempestade. Mas uma deusa revela a Teseu a
verdade diante do filho agonizante. Com a morte na alma, Teseu perdoa ao filho
enquanto este falece. Manda então preparar as suas exéquias mas recusa sepultura
a Fedra, que por sua vez se matou.
Em 1573, Robert Garnier funde os enredos de Eurípides e de Séneca para reescrever
um Hipólito. Em 1646, Gabriel Gilbert refunde a história com novas variantes: Teseu
é agora um marido inconstante e é Hipólito que se apaixona pela madrasta. Vendo
no filho um rival, Teseu expulsa-o; segue-se, glosando as versões anteriores, a morte
do rapaz, a confissão e o suicídio de Fedra. Em 1677 estreia em Paris Fedra e Hipólito
de Racine, que ele considera “a melhor das suas peças”: a madrasta, vítima da paixão
que não confessa, quer morrer desde o início da peça. E o autor respeita o seu
carácter indutor de catarse — ela aterroriza pelo que o seu amor pode causar, mas é
também objecto de empatia e piedade: no final, Fedra confessa a verdade a Teseu e
envenena-se depois de saber que Hipólito morreu. Dois dias depois, em deliberada
concorrência, Pradon estreia noutra sala parisiense a sua Fedra; mas quando ambas
são publicadas, a sua não consegue rivalizar com a de Racine.
A madrasta mortalmente apaixonada pelo enteado chegará ao cinema na Phaedra
de Jules Dassin (1962) com Melina Mercouri, Anthony Perkins e Raph Vallone, que
se reaproxima de Eurípides transportando a acção para a actualidade grega e
redesenhando as personagens; ou, mais próxima de Racine, nos filmes de Pierre
Jourdan (1968) e Stephane Metge (2003). Sobre a recorrência da Fedra no teatro,
romance, ópera, cinema, v. Fedras de Ayer y de hoy (Pociña e López, 2008).
Electra Quanto a Electra, outra grande personagem da tragédia clássica: Ésquilo abordou-a
como a filha que lamenta o assassínio do pai; Sófocles, como a vingadora desse
assassínio; Eurípides, como justiceira persecutória e obsessiva. O ódio de Electra
centra-se, como vimos, na mãe, Clitemnestra, que, para vingar o sacrifício de
Ifigénia, sua outra filha, matou Agamémnon, seu marido, e vive agora com Egisto,
seu amante e cúmplice no crime. Esta Electra ecoará vivamente no Hamlet de
Shakespeare (de 1599-1601), seu duplo ou doppelgänger masculino, apesar da
diversa caraterização das duas personagens e da distância entre os respectivos
enredos. Ruth Hazel, em «Complex Electra» (2001), refere-se a essa “hamletização
de Electra” (e vice-versa) vinda da comparação das duas peças, mas prevenindo-se,
desde as primeiras palavras, contra a colagem excessiva de uma à outra:
“Não vou forçar uma correspondência ponto-a-ponto entre Hamlet e Electra. (...) Mas
farei sugestões sobre a ressonância intertextual entre ambos, ressonância que pode ser
comparativamente apreciada, quer nos textos, quer na sua didascália”.
Com Jüng, a Electra mítica e trágica daria nome a um “complexo” que replica, no
feminino, o de Édipo, apesar da crítica de que a metáfora foi objecto. As Electras
foram sendo discutidas do ponto de vista do seu significado: tratam elas do mortífero
ajuste de contas entre gerações de uma família disfuncional? Ou são mais tragédias
políticas, que lidam com as consequências de deposições e reposições de poder
vindas de crimes, sendo o derradeiro crime redentor, porque repõe a ordem que não
deveria ter sido desalojada? Em sucessivas versões, as Electras são uma ou outra
243
(1972), no mais claro exemplo do bode expiatório de que a cidade precisa para sobre
ele fazer recair a culpa dos males que sobre ela se abatem.
Menelau morto, quer desposar a troiana exilada: têm de fugir. Encenadora e story
teller, Helena inventa um estratagema: diz ter confirmado que o marido morreu num
naufrágio e por isso tem de lhe prestar honras fúnebres no mar. A viuvez de Helena
favorece os desígnios do seu pretendente, que cede ao pedido e lhe empresta um
navio e remadores. Menelau e a verdadeira Helena fogem nele a caminho de casa,
não sem que os gregos ficados na gruta subam também a bordo, dizimem e deitem
ao mar a tripulação local. Há muitos mortos e memórias trágicas no passado que a
peça invoca, mas a Helena de Eurípides acaba bem: reconciliado, o casal real volta,
venturosamente, a casa.
N’As troianas do mesmo Eurípides, porém, a história é outra: arrasada Tróia,
Menelau recupera Helena como troféu de guerra para ser lapidada em Argos;
trazem-na puxada pelos cabelos e ela espera, entre as cativas troianas, que a levem
para bordo de um navio — mas não o do antigo marido, porque, como diz a velha
Hécuba, “não há amante que páre de amar sejam quais forem os caprichos da que
ele ama.” Helena bem tenta inocentar-se, mas Menelau não a ouve, como Ulisses não
ouviu as sereias: os gregos odeiam-na e exigem a sua morte. Em Helena, como vimos,
a atitude de Menelau face à mulher que o traiu é, no mínimo, ambígua: viajam juntos
e ele protege o seu εἴδωλον, para depois se reconciliar com a verdadeira esposa no
palácio de Proteu. A peça, de 412, antecipa em quatro séculos, com o
doppelgänger de Helena, a Galateia de Ovídio (as Metamorfoses são de 8 d. C.), e
em 24 séculos a mimóide de Solaris, as replicants de Blade Runner, as real dolls da
indústria do sexo e a “eficácia substitutiva” dos simulacros de Baudrillard.
Catástrofes Na Andrómaca de Eurípides, finalmente, a catástrofe final não se abate sobre o(a)s
“desviadas” protagonistas, que lhe escapam, antes vitima personagens que, embora citadas, nem
estiveram em cena. Aqui, como n’As troianas, Andrómaca, viúva de Heitor (que
pereceu em Tróia às mãos de Aquiles), é entregue, cativa, ao filho do grego que lhe
matou o marido, Neoptólemo. Este aprecia a bela escrava e tem dela um filho,
Molosso. Mas depois desposa Hermione, filha de Menelau e Helena, embora
mantendo a relação com a troiana. Hermione vê nesta uma rival mortífera e crê que
a sua própria infertilidade é provocada pelos seus sortilégios. Aproveitando a
ausência de Neoptólemo, que foi a Delfos pedir perdão a Apolo por uma ofensa
antiga, Hermione decide matar Andrómaca e Molosso, ainda criança. Quando a peça
começa, a troiana refugiou-se no templo da deusa Tétis, lugar sagrado onde não
podem fazer-lhe violência, e escondeu o filho numa casa estrangeira. Mas chega
Menelau, que descobriu o paradeiro de Molosso e o raptou; vem ajudar a filha a
consumar o crime. Ele ameaça a troiana: ou ela se entrega e sai do templo para ser
morta, ou morrerá a criança em seu lugar. Andrómaca entrega-se para salvar o filho,
mas Menelau não cumpre a palavra dada e decide que perecerão os dois. Mãe e filho
só serão salvos, in extremis, pelo velho Peleu, pai de Aquiles e rei vizinho, que,
chamado à pressa por uma antiga serva de Andrómaca, força Menelau a recuar da
sua decisão e a partir. Furioso, Menelau parte, mas prometendo voltar para concluir
o que deixou a meio. Primeiro desfecho: a cativa troiana e seu filho saem de cena e
partem, a salvo, protegidos por Peleu.
Mas agora, numa das abruptas reversões que Eurípides tanto cultivou, é Hermione
que, abandonada pelo pai e arrependida do duplo homicídio que congeminou, teme
que Neoptólemo lhe não perdoe a fuga de Andrómaca e Molosso e, alucinada, quer
matar-se. Chega então Orestes, de passagem, para se informar sobre ela — que é sua
prima e lhe foi em tempos prometida por Menelau, antes deste, faltando à sua
palavra como sempre, a ter oferecido a Neoptólemo. Hermione suplica-lhe que a
salve e a leve dali e ele aceita fazê-lo, revelando-lhe, ao mesmo tempo, que
Neoptólemo tem, em Delfos, as horas contadas: Orestes quer vingar-se do homem
que lhe roubou a prometida e preparou um plano para o matar. Segundo desfecho:
Hermione é salva pelo primo e parte com ele.
Com as duas rivais saídas de cena e esvaziado o seu conflito, a catástrofe final
desloca-se para Delfos: no templo de Apolo, onde foi pedir o perdão do deus,
Neoptólemo vê-se cercado por homens da cidade; um cúmplice de Orestes
convenceu-os de que o visitante não veio para prestar culto, mas sim para saquear o
templo. Ele não consegue convencê-los das suas boas razões para ali ter vindo e ali
mesmo o matam, num combate desigual. A única morte da peça é, assim, a de alguém
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que nunca pisou o palco. Trazem o corpo mutilado a Peleu, seu avô, para que este o
chore e sepulte. Peleu perdeu o filho em Tróia e agora o neto em Delfos: sem
descendentes, a sua vida já não tem sentido. Mas Tétis, a deusa que foi sua esposa e
mãe de Aquiles, vem consolá-lo: torná-lo-á imortal e voltarão a coabitar. Conclui o
coro: “Por vezes os deuses desiludem-nos as esperanças: o que esperávamos não
ocorre, e um deles faz acontecer coisas imprevistas”.
— A tragédia “morreu”?
MUITO SE PERGUNTOU, no séc. XX, se a tragédia herdada dos gregos morreu ou entrou
em agonia. Mas, nesse séc. XX, Claudel regressou a Ésquilo, Von Hofmannsthal
reescreveu a Electra, O’Neill retomou os Átridas, T.S. Eliot recriou Orestes em
Harry, Cocteau voltou quase parodicamente ao Édipo, Giraudoux à Electra e
Anouilh a Antígona e a Medeia. Lateralmente, Camus tentou inventar a tragédia do
homem absurdo em Calígula (1939-1944) e Sartre a do homem engagé em As
moscas (1943). Agora, porém, os deuses já não ditavam a lei; o Deus do judeo-
cristianismo “morrera”, segundo Nietzsche; e as moïras gregas ou as parcas
romanas, antiga fatalidade, foram substituídas pelo inconsciente e pela libido de
Freud, ou pelo peso da história e das culpas nela vividas: que tragédias escrever
depois dos milhões de mortos das duas guerras mundiais, depois da Shoah e de
Auschwitz? Aristóteles disse que “a poesia é mais filosófica e elevada do que a
história, por contar o geral enquanto a história conta o particular.” Brecht dirá que a
tragédia é uma impostura, por propor “soluções gerais” e “uma ordem” num mundo
que passou a ser de “desordem”. Também Beckett optou, no seu teatro, pela farsa
metafísica; mas ainda escreveu, sobre a tragédia (in Proust, 1931), que esta “não se
ocupa da justiça humana (...), antes representa a expiação do pecado original — o
pecado de ter nascido — do homem e de todos os seus soci malorum e compagnons
de misères” (tr. adaptada). Sugeriu Bernard Dort (1989, loc. cit.: 835) que hoje
parece não restar ao teatro senão a escolha entre “a utopia do mito, como em
Artaud”, ou a “contribuição para uma prática política, como em Brecht”. Num
mundo desertado pelos deuses, a “dupla causalidade” trágica passa o seu bastão-
testemunho a outra, desdivinizada e apenas humana, que a reveza como numa
corrida de estafetas. Daí as sucessivas certidões de óbito passadas à tragédia desde o
fim da II Guerra Mundial.
Concluamos, sobre as eventuais facécias da tragédia: mortíferos incestos, adúlteros
homicidas, nobres personagens “melhores que nós” mas matricidas e parricidas,
infanticidas e suicidários, justiceiros/vingadores subjugados pela hubris ou pela Da tragédia
moira, comportamentos possessos e medusantes como os das bacantes, à farsa
atravessaram os tempos da austera solenidade aristotélica até ao barroco e ao
neoclássico. Na reflexão de Steiner ainda ecoam, como na de Sidney, defensor
obstinado do “regresso aos antigos”, mil outras, vindas dos prefácios e posfácios, dos
comentários e estudos académicos que a tragédia grega suscitou e suscita. Mas,
acerca da introdução, na tragédia posterior, de “personagens triviais” que
substituem os antigos Átridas e Labdácidas e sua solene prosódia, escreverá Steiner
(loc. cit., 271-272) que o Woyzeck de Büchner, deixado inacabado em 1836...
“...É a primeira verdadeira tragédia da vida corrente, rejeitando o postulado, implícito
no teatro grego, isabelino e clássico, segundo o qual o sofrimento trágico é o privilégio
sombrio dos grandes deste mundo. (...) Lillo, Lessing e Diderot alargaram a seriedade
dramática ao destino das classes médias, mas as suas peças são homilias sentimentais
onde se mantém latente o antigo preconceito aristocrático segundo o qual as desgraças
dos serviçais são, no fundo, cómicas...”
Poucos anos depois mas nos antípodas de Büchner, os dramas dos Átridas e dos
Labdácidas chegavam, já como remotas reminiscências, aos hiper-patéticos “Maria
não me mates que sou tua mãe”, de Camilo (1848) e mais tarde aos faits divers dos
popular media contemporâneos. Ironizando sobre uma anotação de Hegel,
escrevera já o corrosivo Marx em O 18 de Brumário de Louis Bonaparte (1852):
“Hegel anotou algures que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos
se repetem pelo menos duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar que se repetem
primeiro como tragédia, depois como farsa”.
Será então a farsa a estação terminal da repetição trágica? É pouco crível: a farsa
contar-se-á decerto entre os seus futuríveis, mas não os esgotará. Os enredos,
peripécias e desfechos trágicos vão, reciclados, voltar. A Medeia de Anouilh (1946),
na sua roulotte de nómada pobre, é decerto patética, mas não é melodramática nem
tragicómica: a sua prosódia mudou, mas ela ainda herda a nobre desmesura da
personagem de Eurípides. Como escrevia Romilly a abrir o seu livro de 1970:
250
“Há algo de fascinante no sucesso que este género conheceu. Ainda hoje, 25 séculos
depois, se escrevem tragédias (...) [e] continua-se a tomar de empréstimo aos gregos
os seus temas e personagens: escrevem-se Electras e Antígonas”.
E as personagens trágicas também regressam em novas figuras, ersatzes não menos
Charlotte fatais do que antes foram: longe dos deuses, a Charlotte Rittenmeyer de The Wild
Rittenmeyer Palms (Faulkner, 1939) rompe com o seu destino e abandona marido e filhas para ir
viver “em pecado” com Harry Wilbourne, pobre e desajeitado interno de hospitais
por quem se apaixonou. Ela rejeita, na conservadora New Orleans de 1938, as
normas e o habitus que moldam, no jardim da respeitabilidade (subitamente
tornado Waste Land pelo coup de foudre dos dois amantes), a imagem da casada
honesta — e responde à chamada das desviantes Fedras e Medeias, de Emma Bovary
e Anna Karenina. Nesta Charlotte, que conduz toda a acção da novela e cuja
determinação a leva à morte (devido a um aborto mal feito pelo companheiro), e a
Harry a uma longa pena de prisão (ou ao cianeto, nova cicuta), regressa a desmesura
das personagens femininas de Eurípides, Flaubert e Tolstoi, e a hipnótica atracção
pelos amores “loucos” e fautores de catástrofes, com a sua danação, expiação e
redenção, que a Atenas do séc. V a. C. tanto agraciou. Mais que “os outros”, o
murmúrio das palmeiras no vento faz, aqui, de coro. Ainda voltarei à Charlotte de
Faulkner a propósito da abusiva “tradução” de The Wild Palms por J. L. Borges e das
honestas Palmeiras Bravas de Jorge de Sena.
A tragédia morreu? Creio que mais vale não lhe passar novas certidões de óbito: ela
metamorfoseou-se e aclimatou-se à deserção dos deuses, mas ainda chora os seus
mortos, ainda exprime os “paradoxos terminais” que também fascinaram Kundera.
Assim persistem os mitos: na forma tornam-se dúcteis, para desposarem novos
gostos, novos habitus onde inesperadamente os reencontramos. Já antes o lembrei:
disse Lévi-Strauss que, para sobreviver, o mito oferece a mínima resistência possível
ao que o ameaça; adapta-se, disfarça-se, transfigura-se, reformula-se. E hiberna, nas
épocas que lhe não são propícias.
ilha que os escondeu, e que um erro de cartografia localizava mal, ainda é habitada
por descendentes do grupo de rebeldes. Até Jules Verne se interessou pela história e
publicou, em 1879, Les révoltés de la Bounty, adaptado de notas compradas a um
amigo. Escrevia ele, apresentando o texto:
“Esta narrativa não é uma ficção. Todos os seus detalhes são extraídos dos anais
marítimos da Grã-Bretanha. A realidade fornece por vezes factos tão romanescos que
a imaginação nada lhes poderia acrescentar”.
O peso relativo Avaliemos com humildade o peso relativo do “velho” e do “novo” nas narrativas que
do velho e do novo imparavelmente produzimos: ao cabo de pouco menos de 30 séculos de relatos
redigidos, sobretudo representados — no Ocidente — pela dupla tradição de
Heródoto e de Homero (a da História e a das histórias, da History e das Stories),
não é, decerto, fácil vislumbrar temas e enredos genuinamente novos. Nessa tão
longa duração, culturas e civilizações implantaram-se e desapareceram; o mundo
dos artefactos, das máquinas e das técnicas transformou-se continuamente; nele, o
homo sapiens/demens/ludens conheceu sucessivos e muito diversos etos, habitus e
saberes. A inscrição historial dos temas narrativos e das formas que os abordam
exprime decerto a sua adequação aos aquários (Veyne) e epistemas (Foucault) a que
pertencem, e esse fenómeno sempre teve expressão sincrónica (dada a diversidade
dos mundos contemporâneos uns dos outros) e diacrónica (dada a viagem das
narrativas através da sucessão dos tempos, com as suas inevitáveis metamorfoses e
actualizações). E não foram tempos de evolução contínua, foram tempos de avanços
e recuos, de estagnações e de rupturas abruptas.
A multitudinária deambulação narrativa assenta, porventura, em dois pilares
estáveis e contraditórios que ao mesmo tempo a sustentam, balizam e suscitam: por
um lado, o que vale a pena ser narrado ressurge perpetuamente como manifestação
de um retorno ao já experimentado, ao já vivido; por outro, cada mundo actual foi e
é essencialmente feito de acontecimentos novos, muitas vezes imprevisíveis: as
narrativas exprimem essa rivalidade axial entre a repetição do mesmo (que assume
diversos rostos) e a novidade do mundo, que cada geração e cada indivíduo explora
por sua conta, longe do aprendizado da memória. Novo e perene, volátil e duradouro,
253
está a ler contém por erro cadernos de outro, ora, reclamado novo exemplar à
livraria, o erro se repete de livro em livro e de autor em autor — como numa colecção
de filmes que montassem sempre cenas de outros filmes, labirintizando-as mas
procurando um qualquer nexo ou coerência entre elas.
Esse chegou a ser, como já vimos, o irónico projecto de Jonas Mekas, que imaginou
um tempo em que todos os filmes de Hollywood, supostos contarem “sempre a
Found mesma história”, se tornariam em mero found footage para pacientes montadores.
footage Mais recentemente, os remplois (re-usos) dos franceses adoptaram o mesmo
programa. Ora, o método já fora praticado em Westerns de baixo orçamento: uma
cavalgada corria no ecrã da direita para a esquerda em certo filme e reaparecia
noutro correndo o ecrã no sentido inverso. E quem impediria um bem-humorado
literator de montar uma novela que apenas entretecesse, num complexo tear ou
fabricando um patchwork, citações de Boccaccio, Cervantes, Melville, Valéry,
Carver, Kawabata? Foi o que fez Calvino montando heterogéneos em Se una notte...
mas inventando, como Borges, os autores-fontes da sua colagem. Constate-se a que
ponto o recurso a esse tear é transversal: encontramo-lo nas mais eruditas narrativas
(em Borges e Calvino) como no entretenimento mais chão (os antigos Westerns de
baixo orçamento).
O método de Calvino em Se una notte... foi por ele exposto num curioso documento,
«Como escrevi um dos meus livros» (incluído em Actes Sémiotiques — Documents,
VI, 51, 1984, com apresentação de A. J. Greimas), composto de 42 diagramas
legendados; longe de oferecer uma desnecessária “chave de leitura” do romance, é
uma genuína charada suplementar, um divertimento autoral. Foi publicado pelo co-
tradutor José Manuel de Vasconcelos como apêndice à edição portuguesa,
precedendo um posfácio seu. E este autor agradece a outro, João David Pinto
Correia, ter-lhe dado conhecimento do documento e ter-lho facultado, exactamente
como sucessivos personagens do romance de Calvino vão agradecendo uns aos
outros preciosas informações sobre os textos e autores imaginários com quem vão
viajando: a repetição alarga os seus domínios. E, fiel à arquetipalidade proppiana
dos géneros com que humoriza, Calvino conclui Se una notte... com um capítulo de
um só parágrafo em que casa os protagonistas, Leitor e Leitora, embora sem a antiga
garantia de que serão felizes para sempre:
“Agora, Leitor e Leitora, sois marido e mulher. Um enorme leito matrimonial acolhe
as vossas leituras paralelas. [Ela] fecha o seu livro, apaga a luz, abandona a cabeça na
almofada, diz: — Apaga a luz também. Não estás farto de ler? [Ele:] — Só mais um
instante. Estou quase a acabar Se uma noite de Inverno..., de Italo Calvino”.
Penélope. Uma noite, os dois rivais discutem. Harry, bêbedo, cai na piscina. Em vez
de o ajudar a sair da água, Jean-Paul afoga-o. As duas mulheres já dormiam e nada
viram. Na incerteza, Marianne ajuda-o a mascarar o crime de acidente. A polícia
suspeita de homicídio mas não consegue prová-lo. Marianne leva Penélope ao
aeroporto e aceita reatar com Jean-Paul — ambos viverão com o que fizeram. No
filme de Guadagnino, Marianne (Tilda Swinton) é uma rock star temporariamente
afónica porque convalesce de uma cirurgia às cordas vocais. Descansa com Paul
(Matthias Schoenaerts), fotógrafo, numa vivenda da ilha siciliana de Pantelleria, a
80 km da costa tunisina. Harry (Ralph Fiennes) chega com Penélope (Dakota
Johnson) e a história de 1969 repete-se. O script de Deray fora adaptado por ele e
Jean-Claude Carrière da versão de Jean-Emmanuel Conil. David Kajganich
reescreveu-o para Guadagnino e explicou em entrevista (2016):
“O que se faz “Escrevo muitas adaptações de livros e remakes porque é o que sobretudo se faz hoje
na indústria” na indústria. Os estúdios sentem-se mais seguros com materiais pré-existentes. Por
isso pego em conceitos e personagens de outros autores, em diferentes concepções do
story-telling — novelas, livros de memórias, textos jornalísticos, etc. — e tento
descodificá-los e reconfigurá-los para o cinema. Não estudei screenwriting na escola;
estudei escrita ficcional [na Iowa Writers Workshop], por isso tenho uma reverência
particular por livros e pelo modo como são feitos. Mas há limites para a estrutura
rítmica dos livros face às exigências de um script para cinema (...): chega sempre o
momento em que temos de inventar as nossas próprias soluções (...)”.
As personagens de Deray vinham da França burguesa, alheadas dos confrontos
sociais e políticos de 1968. As de Guadagnino vêm da affluent society do show
business (Marianne tem a sua legião de fãs e Harry foi produtor dos seus discos e
espectáculos). Mas para além das personagens e do plot há traços dos dois filmes que
os aproximam de muitos outros: a acção decorre num reduto de veraneio rico e
isolado, que favorece o fechamento dos protagonistas sobre si próprios; os
autóctones são sobretudo serviçais dos hóspedes temporários; o habitus local está
com frequência presente através de quaisquer manifestações semi-etnográficas —
festa popular ou cerimónia religiosa (Kajganich e Guadagnino tentaram adicionar a
essa função a presença de migrantes tunisinos em Pantelleria, mas não souberam o
que fazer deles no filme); e na atmosfera de ócio sensualista há um hedonismo
transgressivo e complacente que vai tornar-se na causa do drama: o mood da história
é o do thriller erótico que dará lugar à violência e à catástrofe.
Mortes em piscinas são correntes nos filmes, desde Sunset Boulevard (Billy Wilder,
1950), que abre com a recuperação do cadáver do narrador, a The Great Gatsby (Baz
Luhrmann, 2013), que fecha com o assassínio do protagonista. Mas nestes casos
estamos apenas perante cenas úteis ao contexto narrativo que as integra. Outra coisa
são os dramas “de” piscina onde esta é o cenário dominante e que vêm até La
Ciénaga (Lucrecia Martel, 2001), contraponto desnarrativizado de La piscine ou de
A Bigger Splash, onde a realizadora ajusta contas com tristes férias de infância,
passadas por toda a família numa casa de campo argentina, em torno da piscina de
água pútrida. E é frequente que um filme invoque outro sem ser, em rigor, um
remake: não repete enredos mas glosa temas ou plagia cenas, copia movimentos de
câmara, imita atmosferas, luz, cenários, diálogos — veja-se o que fez Terrence Malick
em The Tree of Life, a partir de O espelho de Tarkovski.
Rohmer, da escrita aos filmes
CHANDLER, GREENE OU MCEWAN, que fui mencionando como novelistas e guionistas
de cinema, são meros exemplos dos muitos tipos de relação existentes entre novela
e filme. Realizadores houve que começaram por escrever os seus filmes em forma de
contos antes de os transvasarem para scripts. Vejamos como trabalhava Eric
Rohmer (aliás Jean-Marie Scherer), que começou por ser professor de literatura e
crítico de cinema (fundou em 1950 a Gazette du Cinéma com Godard e Jacques
Rivette e foi chefe de redacção dos Cahiers du Cinéma de 1957 a 1962). Ele filmou,
entre outros, seis “contos morais”: La boulangère de Monceau (1962), La carrière
de Suzanne (1963), La collectionneuse (1967), Ma nuit chez Maud (1969), Le genou
de Claire (1970) e L’amour l’après-midi (1972). Depois, em 1974, publicou os contos
que começara por escrever e que deram origem aos filmes, contos feitos “numa idade
em que ainda não sabia que viria a ser cineasta”. Os contos são textos literários que
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adoptam, diz ele, “uma retórica narrativa com mais de cem anos” e se “ficam por aí”.
Rohmer diz ter descoberto, ao escrevê-los, que não iria ser escritor: se a escrita o
tivesse satisfeito, ter-se-ia “ficado por essa forma acabada”. Mas diz também que
escreveu os contos em sintonia com as aspirações dos cineastas da sua geração: “A
ambição do cineasta moderno, que foi também a minha, é ser inteiramente autor da
sua obra, assumindo a tarefa que, tradicionalmente, era confiada ao guionista”. Ora, Realizador
Rohmer sabia que os filmes saquearam avidamente o repertório do romance, do e guionista
teatro, da crónica, mas nunca geraram, ao contrário do teatro, um acervo ou uma
biblioteca de “textos para cinema”:
“Por mais que cavemos, apercebemo-nos de que não há argumentos originais: os que
assim se intitulam copiam, com maior ou menor fidelidade, uma obra dramática ou
romanesca a que foram buscar a maioria das situações e a sua problemática. Não existe
uma literatura de cinema comparável à de teatro; não existe [para cinema] nada que
se pareça com uma obra, uma peça, nada que seja capaz de inspirar e desafiar mil
realizações possíveis, de as mobilizar.”
É curioso, no entanto, que, embora assumindo-se como escritor mal sucedido (ele
publicara em 1946 uma novela, Elisabeth, sob outro pseudónimo, Gilbert Cordier) e
admitindo que “um texto para cinema nada vale por si mesmo” porque “de escrita só
tem a aparência ou, se quisermos, a nostalgia”, Rohmer tenha começado por escrever
os seus filmes como contos e se tenha, ao filmá-los anos depois, mantido fiel ao que
escrevera, salvo no caso de raros improvisos no plateau ou de reescritas de diálogos
com os actores. Também ele não partiu directamente para o script, como sucede com
tantos realizadores-autores, só para ele avançando a partir de originais escritos como
peças literárias clássicas. Esta maneira de trabalhar evoca de algum modo a de
Greene em de The Third Man: só feito o filme publicou a novela prévia, como
Rohmer viria a fazer. Apresentando ao leitor os seus contos morais, explicava ele que
outras consequências teve para si a relação conto—script—filme e a liberdade de, no
plateau, improvisar situações ou diálogos:
“Se improvisamos diálogos e situações, na montagem (...) a tirania da coisa escrita é
substituída pela tirania da coisa filmada; ora, é mais fácil compor imagens em função
de uma história do que inventar uma história a partir de imagens filmadas ao acaso.
Mas foi este procedimento que começou por me seduzir: pensava que, nos filmes em
que o texto é primordial, a redacção antecipada desse texto ia privar-me do prazer de,
nas filmagens, inventar. Fosse o texto meu ou de outrem, não queria ser apenas seu
criado (...). Devagar, fui percebendo que a confiança nos acasos, que tal método
requeria, se dava mal com o carácter premeditado, estrito, da minha tarefa; teria de
haver um milagre — e perdoar-me-ão por não ter acreditado nele — para que todos os
elementos da combinação se encaixassem uns nos outros com a precisão exigida”.
Católico movido por questões éticas (fidelidade e tentação de a trair são nele um
tema recorrente), Rohmer fez filmes intensamente dialogados onde a acção ocupa
um lugar secundário. E esses diálogos são muitas vezes discussões filosofantes que
envolvem escolhas ou “apostas” confessionais: por exemplo em Ma nuit chez Maud,
o filme que o “consagrou”, o protagonista argumenta contra o jansenismo de Blaise
Pascal e aceita ser apodado de jesuítico pelos seus interlocutores, sobretudo pela
mulher que o tenta, assumidamente ateia e vinda de uma família de livres-
pensadores. Essa propensão intelectualista torna os seus filmes em fábulas reflexivas
sobre as consequências das opções e experiências da vida quotidiana — talvez por
isso Rohmer seja considerado um realizador tão “literário”.
Achab que encontra a baleia branca; Homero torna-se no Ulisses que ouve o canto
das sereias; Proust reune “aqui e agora” os heterogéneos passos dados em Veneza e
Guermantes. Insiste Blanchot: como um “relâmpago”, o “então” do passado e o
“aqui” do presente fundem-se numa sobreposição de “agoras” que “suprimem o
tempo”.
conversa parece absurda. Mas esse aparente absurdo não é relevante: relevante é a
obsessão de obter essa entrada. Como nas charadas do sonho: que alguém nos exija
uma “entrada” não implica necessariamente que saibamos onde essa “entrada”
levará esse alguém. Inland Empire está repleto de mecanismos como estes. Também
a passagem de um espaço para o outro se processa como num sonho: contamos um
sonho dizendo “estava num jardim, ou num quarto...”, mas o sonho não conhece
disjunções, não pratica o ou/ou, só pratica o e/e. No sonho, o jardim afinal era um
quarto: o que vimos no sonho foi a mesma cena passar-se primeiro no jardim, depois
no quarto. Do mesmo modo, sonhamos que estamos em Roma mas afinal Roma é
(transforma-se em) Praga.
Tudo ali se tece em torno de Nikki (Laura Dern), a actriz que é convidada a
desempenhar o papel principal em On High in Blue Tomorrows, e que visitará o Vier
Sieben, circulando nos três filmes e suas envolvências. É uma viagem alucinatória no
tempo e num labirinto mental onde ela pode perder-se, porque inclui incursões em
territórios desconhecidos — o subtítulo do filme é A Woman in Trouble. O filme
monta uma rede de situações, cada uma das quais está em relação com outras ou
com outros filmes de Lynch. Não há flashbacks nem flashforwards: o tempo não
conta, aqui, como a priori da experiência, como em Kant. Inland Empire destrói a
cronologia e propõe uma experiência acrónica sobretudo visual. Dir-se-ia que Lynch
quis trabalhar no território do inconsciente — e no inconsciente não há tempo. O
O inconsciente inconsciente não sabe lidar com ele e ignora-o (Le Guen, 1997). O inconsciente
ignora o tempo
recalca a irreversibilidade do tempo (Corral, 2016).
Acontecimentos de infância que ganharam para nós valor de trauma regressam
instantaneamente, colando-se directamente a acontecimentos da vida adulta que os
invocam: atraem-se uns aos outros sem mediação, actualizando o mesmo
significado. A colagem ignora o tempo e salta, medusando, sobre ele: o trauma antigo
impõe-se no presente com a sua energia original. Não é um déjà vu, é uma forma
perturbadora de retorno do mesmo. Assim em Inland Empire: imagens de
acontecimentos passados e presentes, reais ou imaginários, são ímanes que se
atraem uns aos outros, coexistindo e coabitando com a variedade das outras
experiências de que é feita a singularidade de uma vida. Nos modernismos artísticos,
as associações livres seguiram muitas vezes esta mecânica das reactivações
traumáticas (pensemos em L’Année dernière à Marienbad). Se as observarmos
como uma dramaturgia, estas associações mnésicas formam conjuntos de “cenas
fulgor”, de “aparições” que dispensam um enredo que as articule. Os núcleos
associativos “aparecem” suscitados uns pelos outros.
Muita da narratividade contemporânea, tanto literária como cinemática, navega
numa destas águas ou entre elas: a da montagem de “cenas fulgor” que dependem
da sua energia semântica e desprezam a narrativa, como nos textos de Maria
Gabriela Llansol; ou a da expansiva narrativização dessas cenas para lhes oferecer
um contexto compreensivo ou explicativo como desde Proust — é por meio da
narrativa, das suas compreensões e explicações, que uma história de vida deixa de
ser uma colecção de traumas medusantes e passa a fluir em homeostase com o nosso
habitus, tornando entendíveis as nossas paisagens interiores. Lynch segue, em
Inland Empire, o primeiro guião, criando interfaces entre incompossíveis e
adoptando a indistinção de Watzlawick entre as três ordens de realidade com que
lidamos no Lebenswelt.
As reactivações traumáticas manifestam-se por imagens mentais a que regressamos
compulsivamente. Mas sempre as figurámos, sempre lhes demos forma, sempre as
tornámos ícones ou ídolos. Parte da pintura e da cinemática contemporânea
procuram criar imagens que figurem estes fenómenos — o retorno de um “mesmo”
particular, a associação em casulo de várias “cenas fulgor”, a composição de
significantes heterogéneos que remetam para o mesmo significado. Muita arte e
literatura contemporâneas mostram um perfil obsessivo: autores e artistas
trabalham formas de reiteração, parecendo procurar sempre o mesmo dia ou a
mesma noite, o mesmo tema, o mesmo tom (veja-se Tarkovski).
263
A violação de Lucrécia numa das versões de Ticiano (c. 1570) e na de Rubens (c. 1610).
O suicídio de Lucrécia numa das versões de Lucas Cranach o velho, 1550. E por Luca Giordano, c. 1660.
O episódio vinha referido por numerosas fontes, desde Tito-Lívio (Ab Urbe condita,
livro I, caps. 57-58) a Dionísio de Halicarnasso, Ovídio, Agostinho de Hipona (De
civitate Dei, livro I), mais tarde Boccaccio (De mulieribus claris, 1374). Ei-lo: a bela
Lucrécia foi a esposa de Tarquinius Collatinus, sobrinho do rei Tarquínio o Soberbo.
Durante o cerco a Árdea, Sextus, filho do rei e amigos seus, fazem apostas sobre a
conduta das esposas dos combatentes, sozinhas em Roma, e vão à capital para as
espiar. Vêem que muitas damas se entregam a um faustoso festim. Mas a virtuosa
Lucrécia, na sua casa de Collatia, perto da capital, fia lã a sós com as suas servas.
Dias depois, ali hospedado pela jovem dama, o filho do rei tenta seduzi-la e ela
268
rejeita-o. Ele congemina então um duplo crime, contra a anfitriã e contra as leis da
hospitalidade: à noite introduz-se nos aposentos de Lucrécia, de adaga na mão, para
a estuprar. Diz Tito Lívio que ela acaba por lhe ceder porque ele ameaça matá-la e
atirar para o seu leito o corpo nu de um escravo degolado com quem ela teria
cometido adultério — suprema infâmia. Na manhã seguinte Lucrécia chama o pai, o
marido e seus amigos, revela o que se passou reclamando vingança contra Sextus e
mata-se diante deles com um punhal que dissimulou nas vestes: não é culpada mas
não quer sobreviver à desonra. As testemunhas do suicídio incitam a um
levantamento popular contra a tirania da família real e tomam Roma. O rei regressa
de urgência à cidade mas encontra fechadas as suas portas e é condenado ao exílio.
A violação de Lucrécia pelo filho do rei e o seu suicídio terão provocado o fim da
monarquia e a emergência da república, em 509 a. C.
Na relação entre narrativa e pintura, porém, como na relação entre narrativa e
cinema, muitos episódios de referência viram-se por vezes reconcebidos,
metamorfoseados no seu reverso ou desviados para imprevistas veredas. Em certo
momento, algum autor usou aquele mesmo tema ou episódio para lhe mudar a
natureza ou os seus sentidos, tornando-se temporariamente causa de escândalo.
Nesse momento, a enfática reiteração do mesmo conteúdo é desviada e o sentido
edificante do conto exemplar é discutido, reinterpretado ou pervertido como num
novo conluio a seu respeito: revirada, a sua narrativa muda. Entre a narrativa
original e o seu desvio esboça-se uma terra (hermenêutica) de ninguém.
Foi também o que fez Klossowski, em dois esquissos e numa aguarela, à lenda da
violação e morte de Lucrécia. Vejamos como e porque o fez. Mas para o explicar
tenho de apresentar o autor, vestindo, em três parágrafos, a máscara do
enciclopedista ocasional:
1. Pierre Klossowski (1905-2001), romancista, desenhador, ensaísta, tradutor, foi
um ecléctico intelectual parisiense filho de um pintor e historiador de arte polaco,
Erich Klossowski, e de uma aluna francesa de Bonnard, Elisabeth Dorothea Spiro,
dita Baladine Klossowska. Autor de uma escrita de rara elegância e erotómano
impenitente, elaborou boa parte da sua ficção com base em duas personagens
centrais, Octave (um alter-ego ou doppelgänger de si mesmo) e Roberte (alter-
ego ou doppelgänger de sua mulher Denise Marie Roberte Morin-Sinclaire).
Como autor literário, deveu parte da sua boa recepção a Foucault e a Deleuze, que
o estimaram e elogiaram sempre. Como desenhador e aguarelista, a sua obra foi
longamente ensombrada pela do seu irmão mais novo, Balthasar, dito Balthus. Os
Klossowski mudaram-se para Berlim no início da Primeira Guerra mas o casal
separou-se, devido à relação que Baladine manteve com Rainer Maria Rilke. Mais
tarde, de regresso a Paris e protegido por André Gide, Pierre, bilingue, traduziu
para francês, com Jean-Pierre Jouve, os Poemas da Loucura de Hölderlin, depois
a primeira versão de A obra de arte na época da sua reprodução mecanizada, de
Benjamin, a Gaia Ciência de Nietzsche, o Tractatus logico-philosophicus e as
Investigações filosóficas de Wittgenstein, a Eneida de Virgílio, o Nietzsche de
Heidegger, outros.
2. Rilke e Gide marcaram a infância e a adolescência de Pierre, vivida entre
escritores e artistas. Georges Bataille, que conheceu em 1935 (ficaram amigos até
à morte deste, em 1962) apresentou-o a André Breton e Maurice Heine, mais tarde
a André Masson. Em 1947, Pierre casou-se com Denise, viúva de guerra, resistente
anti-nazi e deportada no campo de Ravensbrück; e publicou o seu primeiro grande
ensaio, Sade mon prochain. O segundo, de 1969, seria Nietzsche et le cercle
vicieux. O terceiro, de 1970, La monnaie vivante, que Foucault qualificou como “o
livro mais elevado da sua época”. Publicara ainda uma colectânea de artigos sobre
Nietzsche, Gide, Bataille, Blanchot, outros: Un si funeste désir (1963).
3. Em 1965, a Gallimard editava Les lois de l’hospitalité, trilogia ficcional que
incluía La Révocation de l’Édit de Nantes, Roberte ce soir e Le Souffleur,
acrescentada de um preâmbulo e de um posfácio. “Há dez anos que vivo ou julgo
viver sob o signo de Roberte”, escrevia o autor apresentando o livro. E esse signo
era o das “leis da hospitalidade”: Octave, professor de filosofia escolástica,
proporcionava a Roberte, austera parlamentar, ocasiões para se oferecer a
terceiros como objecto de desejo — ocasiões que ela aproveitava, complacente ou
instigando-as também. Nos muitos desenhos ilustrativos da obra, Roberte,
269
Ecce homo, na minha micro-versão enciclopédica. Vejamos agora o que ele fez da
lenda da violação e morte de Lucrécia. No início de La Révocation... (1959),
Klossowski inventa um pintor, Tonnerre, e descreve minuciosamente um dos seus Tonnerre
quadros, Lucrécia, alusivo à violação da nobre romana por Sextus Tarquínio. O
pintor imaginário afasta-se da representação canónica da violação e incorpora-lhe
uma ambiguidade que a perverte. Eis como o autor descreve (ed. 1970: 29-31) o
quadro do seu Tonnerre, “pintado no género vulgarmente ilustrativo e obediente aos
estereótipos da imaginação popular”:
[Ele] “mostra-nos Lucrécia deitada no seu leito (...), a cabeça, de perfil, soerguida, uma
perna apoiada, a outra erguendo a coxa de modo inquietante, talvez rejeitando o
agressor mas abrindo-lhe caminho (...); já sobre ela, Tarquínio aproxima o seu rosto
do da dama, abraçando-lhe o torso com um braço e já acariciando um seio enquanto
ela, com um braço de cotovelo em riste e a mão aberta, tenta afastar os lábios do
homem, estendendo a outra mão para o ventre com os dedos alongados, parecendo
menos cobrir a sua vergonha do que esperar (...). Repare-se no rosto perturbado de
Lucrécia, na mão que, a pretexto de travar a boca gulosa de Tarquínio lhe oferece
flagrantemente a palma, na outra que, mais abaixo, em vez de impedir o acesso ao
tesouro (...) alonga os dedos... Tonnerre quis exprimir a simultaneidade da
repugnância moral e a irrupção do prazer na mesma alma, no mesmo corpo (...).
entramos num local, sentamo-nos, as luzes apagam-se, a acção tem lugar, voltam a
acender-se as luzes e abandonamos o local. Nos primeiros, é o espectador que escolhe
a quantidade de tempo e a intensidade da atenção que dedicará a cada obra, é ele que
marca a velocidade dos acontecimentos (...). Na obra de Sarmento encontramos
vaivéns constantes entre tipos de sensibilidade, por vezes opostos, por vezes
simultâneos. Palavra e imagem coexistem em numerosas obras, o som está presente
em instalações e o cultivo do meio cinematográfico aparece com frequência e
constância na produção do artista até aos nossos dias.”
Pós-pop, pós-conceptual, pós-minimalista, neo-figurativo (as taxonomias pouco
importam aqui; sobre a recepção crítica da sua obra leia-se Bruno Marques, 2010),
Julião Sarmento, cuja obra é muito marcada por representações do desejo sexual e
pelo erotismo — figurações libertinas que se repetem até Casanova, série de 1997, e
até hoje — e para quem autores como Bataille e Klossowski foram referências
primevas, atravessou a década de 70 fotografando, articulando fotografia e textos
com outros meios e testando os limites do super 8 e do vídeo antes de, nos anos 80,
“regressar” à pintura (na Documenta 7, Kassel, 1982) (6). Cinema, literatura,
pintura, arquitectura, cartografia, manuais (zoológicos, botânicos), são citados ao
longo da sua obra, e há nela autores recorrentemente presentes; além de Bataille e
Klossowski há Martin Amis, Céline, J. L. Borges, Wittgenstein, Carver, Novalis,
Kleist, Byron, Poe, Virgínia Woolf, Herberto Helder, outros. Ao longo de décadas,
Julião Sarmento foi (e é) um grande citador: os seus trabalhos aludem
constantemente a outros, em diálogo com exterioridades cúmplices e com afinidades
electivas que ele transporta para títulos, legendas, palavras ou frases inscritas em
telas, ou textos que com elas compõem. Essa teia de citações é uma malaxagem quase
artesanal, que se faz “mastigando o mundo visual como um atlas de imagens e textos”
(Delfim Sardo, 2001). O mesmo fez Godard, outro grande citador, no seu cinema: a
afirmação da obra faz-se invocando uma multidão de outros autores e obras,
heterogéneos que com ela compõem, satisfazendo um imperativo de alusões
empáticas e rejeitando o solipsismo, mesmo quando tais alusões parecem resultar
de meras associações livres.
Para além da imagerie literária e fílmica geradora de citações, a obra plástica de
Julião é subsidiária da narratividade: muitas vezes criou sequências de imagens
proto-narrativas (vejam-se os seus Quatre Mouvements de la Peur, 1978/1995, nove
fotografias que parecem decompôr, numa sucessão de fotogramas de uma sequência
cinematográfica, um episódio, movimento ou “acção” inseparável de algo que “está
a ser contado”), na esteira dos picture artists, mas sublinhando a natureza intervalar
dessas imagens: elas mostram momentos imediatamente anteriores ou posteriores
a algo de estável, o fluens mais que o stans. Encenam instantes fugidios, transições
dependentes da relação com o seu antes e o seu depois e também com o dentro e o
fora de campo. Sugerem narrativas, não as ilustram como as têmperas de Botticelli
sobre Boccaccio ou como as imagens de Klossowski. Sobre o narrativo em Sarmento
escreveu Pinharanda (loc. cit.):
“Por narrativo, entenda-se algo que se pode encadear numa sequência de imagens
visuais (fixas ou em movimento) e verbais (escritas ou lidas). Há um tempo de
percepção próprio (e muitas obras - por exemplo Déjà Vu, 1979; Rosebud, 1979 -
desenvolvem ainda essa dimensão como algo de autónomo): é o tempo da leitura dos
textos, da visão do loop, da relação entre a leitura ou audição e a visão das imagens.
Nalguns casos há dominantes analíticas, noutros narrativas. Em ambas as situações
Sarmento encarrega-se, obra a obra, de deslocar os estatutos dos discursos, de negar
as chaves de ligação, de semear pistas multiplicadoras de sentidos - embora eles sejam
sempre obsessivamente concentrados num mesmo tema ou clima (...). Estamos no
domínio de um discurso que (de Joyce a Burroughs ou do nouveau roman a Llansol)
rompe os códigos da narrativa linear”.
Em 2012, na montagem de Noites Brancas, a maior retrospectiva que Serralves lhe
dedicou (160 obras), acompanhada de tableaux vivants inspirados em motivos e
situações representados na sua obra, o artista recusava de novo reduzir à pintura a
transversalidade das suas práticas (Nuno Crespo, Público: 23.11.2012):
“Não sou pintor. Pintor era o Cézanne. Para mim a pintura é um meio. (...) Desde o
início, os media com que trabalho não foram um fim em si mesmos. Sou um artista
conceptual, ou seja, a matéria do meu trabalho serve-me de meio para veicular uma
272
ideia”. [E sobre as telas de fundo branco, uma nova etapa do seu trabalho:] “Talvez
estas telas sejam muito reconhecidas porque não é normal um artista trabalhar sobre
tela e fazer pinturas que não são pinturas, mas desenhos. (...) Percebi que não era
preciso aquilo tudo (cor, fotografias, muitos elementos pictóricos) e comecei a ser mais
minimal. A partir daí preferi o preto e branco.”
Mais tarde, em entrevista de 2013, Elsa Garcia perguntava-lhe como trabalhara ele
as fotografias dos anos 70. E ele respondia (http://umbigomagazine.com/um/ 2013-
02-13/juliao-sarmento-esse-obscuro-objecto-de-desejo.html):
“Nunca me apeteceu contar histórias, mas sim fragmentos, coisas que se passavam
antes ou depois da história. Nessa altura estava muito interessado numa espécie de
linguagem fotonovelística e não a queria realizar em cinema mas sim em imagens fixas,
stills. Todas as fotografias eram (...) encenadas conforme o movimento que eu achava
que as personagens deviam fazer.”
Imediatamente antes ele tinha esclarecido a sua relação prática com o “cinema dos
cineastas”, porque a entrevistadora lhe perguntara se a paixão pelas imagens em
movimento nunca o tinha feito desejar tirar um curso:
“Tirava o curso e passava-me logo a paixão. Gosto muito de ser autodidata e de saber
as coisas de uma forma quase atávica. O meu interesse pelo cinema é um interesse de
espectador. Nunca seria capaz de realizar um filme. Reparei nisso quando trabalhei
com Atom Egoyan no filme Close [curta, 2001]. Eu trabalho sozinho, o Atom trabalha
com 50 pessoas. São duas maneiras completamente diferentes de funcionar”.
De facto, Julião Sarmento também filmou (a maioria desses filmes foi Os filmes
acidentalmente destruída num incêndio) mas não como um “cineasta”: lidou com as
imagens em movimento como mais um suporte de fixação de figuras, gestos e
durações, consciente de que o dispositivo cinemático propicia uma relação única
com o tempo e também conhecedor da sua artificiosidade como medium. É um
273
Os temas de Julião Sarmento regressam em leit-motifs recorrentes, numa grande variedade de meios e
suportes, importados da colagem, da banda desenhada, da literatura, de fllmes e de mixed media.
Perante uma obra cuja publicação se iniciara em 1946 e que agora, 50 anos depois,
devia recomeçar, Van Hamme e Benoit sabiam que a mera reedição dos álbuns de
Jacobs vendia 17.000 exemplares/ano e que cada exemplar era lido em média por
três pessoas; ou seja, a reedição dos Blake & Mortimer existentes criava, para a antiga
série, 50.000 novos leitores/ano. Para além do desafio que a Dargaud lhes fazia do
ponto de vista criativo, a dimensão comercial do empreendimento era, assim,
considerável. A editora convidou mais tarde uma segunda equipa (Yves Sente,
argumentista, e André Juillard, desenhador) a trabalhar em paralelo em novos
álbuns, para assegurar a regularidade da publicação. E, pontualmente, outros
argumentistas e desenhadores colaboraram, com maior ou menor êxito, na criação
da nova série. Obsessões e cenários característicos dos “mundos de Jacobs”:
civilizações escondidas sob o oceano (O enigma da Atlântida), explorações de
fundos marinhos por escafandristas (O segredo do Espadão), grutas com rios
subterrâneos vindos da mitologia grega (outra vez a Atlântida e O segredo do
Espadão), labirintos inexplorados das pirâmides egípcias (O mistério da Grande
Pirâmide), laboratórios e/ou instalações militares secretas dissimuladas no subsolo
(S.O.S Meteoros) ou em cavernas (O segredo do Espadão), caves tecnológicas sob
mansões particulares (A Marca Amarela e As três fórmulas do prof. Sato), os
esgotos de Londres (A Marca Amarela), um labirinto de catacumbas em Paris e um
276
bunker da resistência francesa (O caso do colar). Outros traços do universo dos Blake
& Mortimer de Jacobs, relativos aos seus personagens: os dois bachelors, que
partilham a mesma casa londrina e jantam juntos, regularmente, no Centaur Club
de Piccadilly, são um físico nuclear cujo hobbies são a arquelogia e as línguas da
antiguidade, e um capitão dos serviços secretos militares britânicos, habituado a
aceitar missões “inexistentes”. O primeiro é um prodígio de capacidade científica, o
segundo um operacional de acções especiais. São dois gentlemen conservadores e
action men que não resistem ao desafio da aventura e que, no rescaldo da Segunda
Guerra, se tornam em paladinos do “Ocidente” e do “Mundo Livre”. Foi esse patético
“espírito de 1946” que a Dargaud quis recuperar, meio século depois.
literaturas e pelas artes, apesar das dúvidas inicialmente suscitadas, a este respeito,
pelo hoje clássico Eco dos anos 60.
Foreshadowing, Plant & Payoff, MacGuffin
PARA ALÉM DA ESTRUTURA EM ACTOS, Hollywood cultivou dispositivos narrativos
destinados a densificar a coerência interna de cada script e a criar, no seu seio, mais
ligações que acentuam a sucessividade causal. Entre eles contam-se o
foreshadowing e o plant & payoff e a invenção de motivos ou pretextos que por si
sós despoletem histórias — o MacGuffin. Vejamos brevemente como funcionam:
Foreshadowing (o equivalente fílmico da prolepse literária) é prenunciar ou
antecipar, por vezes através de uma simples deixa, algo que se tornará relevante
mais tarde, no decurso da acção. É uma relação de encadeamento ou implicação
(visual ou sonora) entre um primeiro e um segundo momento, que só ganha pleno
significado nesse segundo momento — um implante de sentido com vista a um eco
ampliado posterior. Um caso particular de foreshadowing é o plant & payoff
(semear e colher), que introduz no filme um dado aparentemente anódino mas que
será mais tarde dramaticamente necessário. Por exemplo, no início de Aliens 3
(Cameron, 1986), a protagonista testa um esqueleto mecânico que a reveste e que é
usado na base espacial para descarregar objectos pesados; mais tarde, ela usá-lo-á ,
como uma armadura, no combate final com a rainha alienígena. Em Thelma &
Louise, (Ridley Scott, 1991), Louise leva relutantemente para o fim-de-semana que
vão passar juntas a pistola de Thelma; essa pistola será usada a meio do primeiro
acto, no inciting incident que muda a história: Louise matará com ela o homem que,
no parking deserto de uma boîte de estrada, tentava violar a amiga. Tchekhov
aconselhava a não mostrar em cena uma espingarda a não ser que ela viesse a ser
disparada na peça; se não o fosse estaria ali a mais, geraria uma expectativa
destinada a ser defraudada e prenderia inutilmente a atenção do espectador.
Em Thelma & Louise, o plant & payoff estabelece relações causais entre momentos
narrativos dentro da história; mas, noutros casos, pode não satisfazer a tradicional
causalidade, limitando-se a estabelecer uma mais vaga ligação entre momentos. Por
vezes, o foreshadowing e o plant & payoff só surgem nas reescritas do script,
quando, perto da versão final, se procura que o texto ganhe mais consistência, mais
lógica interna e mais auto-referencialidade, acentuando a ligação entre diferentes
cenas ou sequências. O foreshadowing pode estar contido numa frase, num objecto
ou numa competência adquirida como em Cinema Paradiso (Tornatore, 1988): o
garoto aprendeu com Alfredo como se projectam filmes, portanto sabe como
substituí-lo quando este sofre um acidente; ou pode antecipar comportamentos
futuros: em Wall Street (Oliver Stone, 1987), um jovem corretor da Bolsa discute ao
telefone com um rico investidor; quando desliga diz a um amigo: ‘Sabes qual é o meu
sonho? É vir a estar do outro lado deste telefone’. A frase prenuncia e explica o arco
da personagem que a seguir acompanharemos.
Mas por vezes um objecto é apenas um MacGuffin (ou McGuffin: termo adoptado
por Hitchcock), um mero pretexto que despoleta a história. Pode ser algo tão vago
como os segredos de Estado em North by Northwest (1959), os projectos de um novo
avião militar memorizados por um Mr. Memory em The 39 Steps (1935), uma chave
perdida em Dial M for Murder (1954). MacGuffins são também as “cartas de
trânsito” em Casablanca, (Michael Curtiz, 1942), documentos “mágicos” à guarda
de Rick Blaine, que permitem voar para a Lisboa neutral e a que todos, incluindo Ilsa
Lund e Victor Laszlo, querem deitar mão. Em Avatar (James Cameron, 2009), toda
a acção é provocada pela busca de unobtanium, um mineral raro cuja utilidade
desconhecemos (é caro e precioso — eis tudo o que a história sobre ele diz). Na
trilogia The Lord of the Rings (Peter Jackson, 2001-2003), o MacGuffin é o anel. “O
MacGuffin não é nada”, disse Hitchcock a Truffaut (1967). Ou, noutra formulação
(mesmas entrevistas): “O MacGuffin é o dispositivo, o artifício, os papéis que os
espiões procuram... A única coisa relevante é que, no filme, os planos, documentos,
segredos têm de ser de importância vital para as personagens. Para mim, narrador,
o que sejam não tem qualquer importância”. Michael Kurland (Gotham Writers,
«What Is A McGuffin?», in <https://www.writingclasses.com
/toolbox/articles/what-is-a-mcguffin>) atribui ao realizador a seguinte anedota:
278
... e o moderno
EM CONTRASTE COM AS NORMAS e procedimentos técnicos do cinema clássico, o
carácter a-normativo e declaratório do cinema moderno significa em primeiro lugar
que, “des-gramaticalizando” e despadronizando os seus filmes, cada autor
interiorizou que o(s) seu(s) ponto(s) de vista sobre o mundo e as coisas eram apenas
pontos de vista possíveis entre muitos outros. O ponto de vista autoral moderno foi
predominantemente relativista e reflexivo (como nos casos de Bresson, Antonioni,
Resnais, Bergman, Godard, Robbe-Grillet, Pasolini e tantos outros) e o discurso
declatório incluia uma retórica argumentativa e justificativa que abriu caminho ao
filme-ensaio. Mas esta retórica não era “linguística”, era indigenamente
cinematográfica (e já o era no cinema clássico). Parte do cinema moderno continuou
a usar o “monólogo interior” eisensteiniano como fio narrativo, mas a sua
característica fundamental é que a sua discursividade dependeu muito mais do olhar
subjectivo do autor (e da câmara) sobre o que filma, e do trabalho mais livre do som,
do que da ideia de que o cinema é “uma linguagem” codificada e convencionada.
Uma maneira de sintetizar o que significou, na cultura europeia, a emergência do
cinema moderno, pode ser a adoptada por András Bálint Kovács na abertura da sua
introdução a Screening Modernism — European Art Cinema, 1950-1980 (2007, xiii,
§ 1), apesar dos primeiros filmes do pós-neorealismo italiano e da nouvelle vague
francesa datarem de meados e do final da década de 50. Mas a síntese de Kovács
refere-se a um momento já de consagração, de “vitória” dos modernos nos campos
de batalha da cultura europeia:
“Nos anos 60, o cinema afirmou uma nova posição no seio da cultura ocidental: os
cineastas passaram a ver-se a si mesmos como os mais eminentes representantes dessa
cultura. A arte moderna tornara-se no símbolo de um novo zeitgeist e novas gerações
estavam em luta aberta contra a cultura burguesa clássica. Reformas culturais e na
educação em 1968 foram celebradas por uma geração cujos membros tinham crescido
a reclamar a existência de uma tradição cinematográfica própria: vindos dos anos 30
ou 40, já no cinema sonoro [Godard e Chabrol nasceram em 1930, Truffaut em 1932,
Rivette em 1928, mas Antonioni em 1912, Fellini e Rohmer em 1920, Resnais em 1922;
n. J.M.M.] viam no cinema mudo a sua tradição cultural e artística identitária e
desprezavam o entretenimento de massas”.
Se considerarmos, de modo aproximativo, que o “programa moderno” se esgotou, e
não só no âmbito do cinema, em finais da década de 70, assumiremos que uma nova
diversidade cinematográfica se foi afirmando e conquistando mercados (em
primeiro lugar os das cinefilias) desde a década seguinte, a de 80. Muitas vezes a
travessia multímoda desse vasto e complexo limiar tem sido descrita, no idiolecto
voluntarioso da crítica das artes, em termos de emergência da pós-modernidade, ou
da tardo-modernidade, ou de uma segunda modernidade — uma discussão
semântica e ideológica que é relevante do ponto de vista das historiografias mas que
não desenvolverei aqui. O cinema posterior à exaustão estilística e temática do
período “moderno”, ou seja, o cinema que conhecemos das últimas três décadas e
meia, fez frutificar muitas das sementes narrativas que aquele deixou plantadas, ou
desenvolveu-se a partir da sua herança.
Embora a título exploratório, recordarei aqui alguns dos traços que caracterizam
essa vasta herança moderna, e que remontam, como vimos, a filmes realizados desde
Inventário de finais da década de 50 (os exemplos poderiam multiplicar-se e são dados a título
diferenças apenas indicativo). A respeito da mudança de paradigma narrativo v. também
Elsaesser (2009) e o já citado Kovács (2007):
• Questionamento ou abandono do conjunto de códigos de mise-en-scène, de
découpage e de montagem herdados das práticas sedimentadas do studio system
dos anos 30 e 40, num movimento de emancipação autonómica contra o
academismo por elas representado, “navegando à vista” e inventando, em vez de
seguir um guião de procedimentos heteronómicos e maioritariamente adoptados.
• Desobediência às funções narrativas convencionais da escala de planos e procura
de enquadramentos e movimentos de câmara “incompreensíveis” à luz das práticas
estabilizadas pelo cinema clássico, muitas vezes dando deliberadamente consciência,
ao espectador, da presença e do trabalho da câmara — como em todo o “cinema do
corpo” de Philippe Garrel, em La maman et la putain de Jean Eustache, 1973, ou no
cinema de Resnais e Tarkovski.
• Forte tendência para o abandono da estrutura em actos correspondentes a funções
narrativas invariantes, que migravam de narrativa em narrativa como um construto
heteronómico de cada obra (cf. o “paradigama” de Syd Field, os quatro actos de
Kristin Thompson ou o archplot de McKee, apesar da adaptabilidade destes
modelos). Em consequência desta opção, desvalorização dos tradicionais pontos de
viragem (turning points ou plot points) e dos momentos culminantes da narrativa
(climaxes) e sua substituição por outros, menos teleologicamente orientados —
como em quase todo o cinema de Jarmush ou de Lynch.
• Propensão para a subestimação da narrativa mimética clássica, a favor de mais
presente enunciação discursiva autoral, ora recorrendo a uma voice over extra-
diegética (narrador como o de Jules et Jim e Les deux anglaises et le continent, de
Truffaut, 1962 e 1971), ou intra-diegético, expandindo para o domínio enunciativo a
tradição herdada do film noir dos anos 40-50 (onde o narrador era muitas vezes
também uma personagem da história) como em Deux ou trois choses que je sais
d’elle, de Godard, 1967 — mas expandindo-se mais tarde para a exposição
declaratória do filme ensaístico como em Histoire(s) du cinéma do mesmo Godard,
de 1998.
• Dissociação acentuada do syhuzet e da fabula, abandonando-se a ligação causal e
“necessária” entre os sucessivos segmentos narrativos, e substituindo a causalidade
por casualidade (pelo acaso) ou por associações livres de ideias e/ou imagens e sons.
A dissociação de syhuzet e fabula torna, por vezes, impossível a reconstituição
diegética do que foi narrado — como em Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, 1994,
ou mais acentuadamente em Lost Highway de David Lynch, 1997, ou Mulholland
Drive, do mesmo autor, 2001.
• Em articulação com a tendência anterior, abandono da sucessividade diegética
tradicional a favor de de um espaço/tempo difuso, mais errático, mais complexo e
mais nomádico, onde surgem indistintamente imagens do passado (que deixam de
ter a forma de flashbacks), presente ou futuro (que deixam de ter a forma de
flashforwards). O espaço/tempo torna-se mais vago, menos relevante a sua
consistência “realista” — o exemplo pode ser, aqui, Memento de Christopher Nolan,
2000, ou o Deux de Werner Schroeter, 2002, ou ainda O espelho de Tarkovski.
• Maior ambiguidade semântica da narrativa, tornando mais difícil a convergência
hermenêutica “à saída do cinema” ou, hoje, no fim do visionamento em home cinema
— como em L’année dernière... ou Memento, ou nos exemplos citados de Lynch.
• Forte tendência para substituir a tradicional “jornada do herói” proppiana por um
continuum ou por uma soma de acontecimentos não orientados para um final
conclusivo, preferindo-lhe finais abertos ou deixados in media res, como em The
Station Agent de Thomes McCarthy, 2003, Half Nelson de Ryan Fleck, 2006, ou
Paranoid Park, de Gus van Sant, 2007. Esta tendência, e as restantes do seu grupo
de pertença, exprimem a fadiga perante as closures do cinema “clássico” e deram
285
Os objectos encenados — nas artes de cena como no cinema — são, ou podem ser,
alvo de investimento animista (v., nos preâmbulos, O cinema é animista), dotados
de expressão que por si sós não tinham: a sua expressão pode ser alterada. Do
mesmo modo que o pintor dispunha, rearranjava, encenava e coreografava objectos
inanimados para os pintar como naturezas mortas, também os adereços ou
accessoires, para usar expressões canónicas no teatro, são ou podem ser alvo de
atenção do mesmo tipo pela encenação-realização, pela art direction ou pela
luminotecnia, se e quando elas pretendem que adquiram um valor semântico
específico na cena, num plano.
Tarkovski, por exemplo, atribuiu aos adereços uma importância central: há três
filmes seus (Solaris, Espelho e Stalker) onde se repete obsessivamente a mesma
colecção de objectos (garrafas, livros velhos, espelhos, outros) apesar da diversidade
de contextos onde ele os incluiu. Os objectos representam, no mínimo, uma cultura
material, um gosto de época ou de grupo, a que a cena ou o filme dá maior ou menor
importância deliberada. São marcadores de gosto. Mas para além da
intencionalidade da encenação-realização ou da art direction, os espectadores
semantizam-nos ou re-semantizam-nos inevitavelmente, atribuindo-lhes valores e
sentidos que dependem da subjectividade, das inscrições culturais e do vivido de
cada um (a diferença entre o sentido proposto e o sentido recebido pode talvez ser
aproximada da diferença entre studium e punctum, a que Barthes aludiu a propósito
do que vemos numa fotografia). Artificiosamente iluminados ou contando como
elementos decisivos num enquadramento ou num plano, como no cinema de Ozu, os
objectos mudam de rosto. Mas, do mesmo modo que não existem dicionários para
as formas, também não existem dicionários para os objectos. O que eles
subjectivamente “significam” depende da relação que se estabelece entre eles e um
seu observador.
Também Stanley Cavell foi sensível à mudança do estatuto ontológico das “coisas” Em que se
tornam
filmadas, perguntando-se “em que se tornam as coisas nos filmes”. O rosto ou “alma” as coisas
suplementar dada aos objectos começou por exprimir, no caso do cinema, o nos filmes?
animismo estrutural do dispositivo e a sua capacidade de distorção “expressionista”
do que é filmado — lembremo-nos outra vez das imagens espectrais dos filmes de
terror ou dos que procuraram imitar alucinações provocadas por estados mentais
muito perturbados, como no já citado Repulsion de Polanski (muitas vezes
contribuindo o som para sublinhar redundantemente essas distorções). Com o
moderno cinema de autor, dir-se-ia que a atenção dada aos objectos passou
progressivamente a depender mais da esteticização generalizada do quotidiano,
estendendo-se rapidamente à concepção plástica e ao enquadramento de interiores
(o que pôs em evidência o trabalho de decoradores), ao modo de observar a
arquitectura e ao relançamento da atenção, que já vinha dos anos 20 e 30, dada às
cidades como objectos fílmicos (com em Metropolis de Fritz Lang, Berlin de Walter
Ruttmann, Aurora de Murnau; fenómeno que no cinema moderno ressurgiria em
autores como o Antonioni de L’eclisse, La notte, Il deserto rosso, Blow Up). De facto,
parte do cinema moderno assumiu uma nova atitude face à materialidade pró-
fílmica. Quando pensamos no modo como o cinema foi lidando com os objectos de
uso corrente, por exemplo, torna-se clara a ligação entre os diferentes enfoques
históricos e a questão da narratividade: o cinema clássico sempre os trivializou nas
suas funções e valores de uso convencionais, através da banalização e secundarização
da sua imagem e da sua inclusão na atmosfera a que pertenciam, raramente os
questionando como coisas ou oferecendo-lhes algum protagonismo — a não ser
quando eles eram cruciais para o plot: a tesoura com que a mulher mata o
estrangulador contratado pelo marido em Dial M for Murder (Chamada para a
Morte, 1954), de Hitchcock; a chaleira fumegante de Dickens comentada por
Eisenstein; o vaso de flores que vai cair na cabeça de Charlot. Ou quando, como no
Falcão de Malta, determinado objecto era um MacGuffin ou um fétiche de
importância central para a narrativa.
288
Dial M for Murder (Chamada para a Morte, 1954), Alfred Hitchcock (fotograma reenquadrado do filme).
O regresso da tesoura de Hitchcock em Pierrot le fou, J.-L. Godard, 1965 (fotograma reenquadrado do filme).
Uma reflexão sobre o que liga as paisagens naturais, a sua percepção estética e os
artefactos artísticos nasceu com o Georg Simmel de Filosofia da Paisagem (Die Simmel,
Philosophie der Landschaft, 1913), nele inspirada por Kant e Goethe. Mas Simmel 1913
alargou a sua reflexão às paisagens urbanas edificadas pelo homem, escrevendo
sobre Roma (1898), Florença (1907) e Veneza (1908). E em Cultura filosófica
(Philosophische Kultur, 1919), considerou que “a essência da modernidade é o
psicologismo, a experiência e interpretação do mundo em acordo com as nossas
reacções interiores. Ela torna-se num universo interior, na dissolução de todos os
conteúdos fixos no elemento líquido da alma, de onde desaparece a substância e
onde as formas são apenas formas de movimento” (ed. Suhrkamp, 1996: 346).
Podemos considerar que este vocabulário está datado, mas foi ele que primeiro
instalou uma área de reflexão então inovadora.
Ora contribuindo conservadoramente para a estabilização dos códigos que
sustentavam o antigo sistema dos objectos, ora rompendo inovadoramente com eles
a partir de Duchamp (há cem anos atrás) e propondo novos olhares, novas misturas,
novas objecticidades, quer a cena teatral quer o cinema sempre lidaram com os
objectos que encenam, ora como meros utensílios que não devem ser separados da
sua função, ora como portadores de identidades insuspeitadas, que vale a pena
desvelar e sublinhar. E esta partilha nunca dependeu apenas nem sobretudo de
opções expressionistas. O sistema dos objectos era determinante para a identificação
dos interiores de uma mansão vitoriana? Volta a sê-lo, depois de várias revoluções
dos seus códigos ao longo do século XX, para a definição do que é hoje um
apartamento da upper class londrina ou da bourgeoisie parisiense. Do mesmo modo
que no sistema da moda (que regeu a esteticização generalizada do quotidiano entre
modernos e pós-modernos), os códigos do sistema dos objectos mudaram, mas a
importância do sistema não.
No que respeita às relações entre o artefacto artístico e os objectos em geral, ou à
relação entre arte e não-arte, uma reflexão de referência continua a ser a de Michael
Fried em «Art and Objecthood» (1967), que discutiu a natureza dos objectos criados Michael
pela arte minimalista, que ele preferiu designar por literalista. Muito próximo do Fried, 1967
Clement Greenberg de «Recentness of Sculpture» e de «After Abstract
Expressionism», Fried defendia então (loc. cit.: III, ) que “o casamento entre o
literalismo e a objecticidade não é mais que a defesa de um novo género de teatro;
ora o teatro é, hoje, a negação da arte” — declaração principal do texto, que adiante
esclarecia, mas que não desenvolverei aqui. Interrogando-se sobre a natureza da
percepção da presença dos artefactos minimalistas, muitas vezes feitos à dimensão
ou à escala do corpo humano e impondo assim o seu incontornável volume ao
observador, escrevia ele (loc. cit.: IV), atribuindo a tais objectos o valor de “pessoas
postiças” ou de “estátuas”, que são “menos esculturas do que presenças de um certo
tipo”:
“... A presença da arte literalista, que Greenberg foi o primeiro a analisar, é
basicamente um efeito ou uma qualidade teatral — uma espécie de presença de palco. paisa
É uma função, não apenas do papel obstrutor e, não raro, mesmo da agressividade do
trabalho literalista, mas da especial cumplicidade que esse trabalho quer extorquir do
observador. Diz-se que uma coisa é dotada de presença quando exige do observador
que a tenha em consideração, que a leve a sério — e quando o acatamento desse
requisito consiste simplesmente em estar-se consciente da coisa e, por assim dizer, em
agir de acordo com essa condição. (...) A experiência de ser mantido à distância pela
peça em questão parece ser crucial: o observador está ciente de estar numa relação
indeterminada, aberta e imprecisa (...). Ser mantido à distância por objectos desse tipo
ge
não é, eu diria, muito diferente de ser mantido à distância, ou ser invadido, pela
presença silenciosa de outra pessoa”.
O monolito de 2001, de Stanley Kubrick: artefacto minimalista teatralmente encenado num cenário neoclássico
(fotograma do filme).
muitos documentários mentem para dizer a verdade, e que todos são falsos porque
não são o mundo que tão fielmente parecem gravar...”
Nanook of the north de R. J. Flaherty, 1922. Misère au Borinage, de Joris Ivens e Henry Storck, 1934.
Les maîtres fous, Jean Rouch, 1954. La pyramide humaine, Jean Rouch,1959.
The Kennedy’s Films, 1960, realizados para a televisão por Robert Drew & Associados: Richard Leacock,
Albert Maysles, D.A. Pennebaker e Gregory Shuker (fotogramas reenquadrados dos filmes).
Na discussão que se instalou em torno deste cinema, feito para gerar um olhar
etnográfico sobre pessoas e grupos humanos, Leacock, Drew, Ruspoli e Louis
Marcorelles defendiam o “cinema directo”; Morin, Rouch, Marker (por um tempo) e
Sadoul, o “cinéma-vérité”. Os primeiros queriam filmar sem que a câmara fosse
percepcionada pelos actantes, para garantir a espontaneidade das suas
representações. Os segundos consideravam, mesmo o mais reticente Joris Ivens (in
«Vive le cinéma-vérité!», Lettres française nº 970, Março de 1963), que os filmes
não podiam resultar apenas do quase apagamento dos dispositivos de captação nas
filmagens: pelo contrário requeriam, desde a sua ideia inicial à sua preparação
prática, um compromisso e uma intencionalidade assumidos e partilhados com os
seus actantes.
295
Jean Rouch, Marcelline Loridan e Edgar Morin no prólogo de Chronique d‘un été, 1960. Outra cena do filme
(fotogramas reenquadrados).
Regard sur la folie, Mario Ruspoli, 1962 (fotograma reenquadrado do filme).
Le Joli Mai, Chris Marker e Pierre l’Homme, 1962 (fotogramas reenquadrados do filme).
Pour la suite du monde, Pierre Perrault e Michel Brault, 1963: reconstituição da caça artesanal ao boto no
Québec: o animal capturado no filme é oferecido a um aquário (fotogramas reenquadrados do filme).
296
Apesar deste diferendo, os dois grupos partilharam opções práticas quanto ao modus
faciendi dos seus filmes: tenderam a abdicar de tripés, claquettes e de iluminação
artificial; optaram pela câmara ao ombro sem cablagens e reduziram o dispositivo e
as equipas de filmagem ao mínimo indispensável.
Mas, como outras vezes sucedeu na criação de designações para escolas e
movimentos, foi a imprensa que insistiu na ideia, pouco rigorosa, de que passara a
existir um grupo coerente de cineastas movidos pelo programa do “cinéma-vérité”
(pense-se na expressão nouvelle vague, “inventada” pela jornalista Françoise Giroud
no L’Express de 3 de Outubro de 1957 e retomada por Pierre Billard em Fevereiro do
ano seguinte, na revista Cinéma 58). Recorda Graff (loc. cit.: 36):
“...A imprensa, referindo-se mais a Chronique d’un été do que aos eixos teóricos do
artigo de Morin, agrupou [em 1962] filmes como L’Amérique insolite (François
Reichenbach, França, 1960), Shadows (John Cassavetes, E.U.A., 1961), La pyramide
humaine (Jean Rouch, França, 1959), Primary, Eddie Sachs e Kenya (Robert Drew,
Richard Leacock, E.U.A., 1960-62), Les inconnus de la terre e Regard sur la folie
(Mario Ruspoli, França, 1962) num movimento baptizado de cinéma-vérité”.
Etnoficções e docuficções
OBRAS COMO La pyramide humaine (1959), Jaguar (1954-67), Moi, un noir (1958)
ou Pour la suite du monde, de Pierre Perrault (1963) vieram, depois, a ser entendidas
mais como etnoficções (termo a que o próprio Rouch aderiu) do que como cinema
etnográfico, por dependerem do convite explícito do realizador aos seus actantes
para que assumissem representações de si mesmos, diante da câmara, como no role
playing do sociodrama — o que, em parte, ainda inspirou as longas-metragens de
António Reis e Margarida Cordeiro (Rouch elogiou, em termos passionais, Trás-os-
Montes, de 1976). À distância de quase 60 anos, a doutrina do cinéma-vérité, do
direct cinema e as discussões programáticas em seu torno, embora datadas, ainda
ecoam no cinema e na antropologia visual, sobretudo devido ao regresso das
docuficções, que fundem ficção e documentário, produzindo um hibridismo dos dois
grandes “géneros”. Mas as docuficções já nem nos anos 60 eram novas no cinema: a
primeira fora Moana, de Robert Flaherty (1926).
No princípio dos anos 60, a querela entre as seitas do cinéma-vérité e do direct
cinema, que inundou a imprensa e os festivais, suscitou uma multidão de encontros
e recontros, onde os filmes tinham tanta importância como os discursos críticos e
doutrinários sobre eles — publicitados em entrevistas, conversas gravadas,
declarações e manifestos, dissenções militantes. A discursividade para-fílmica
ganhava de novo, como ocorrera face à emergência do cinema sonoro no final dos
anos 20, uma centralidade inusitada. Ao mesmo tempo, essa querela exprimia a seu
modo duas abordagens rivais do “realismo” cinematográfico. Mas é curioso que os
escritos de Bazin, “pai” do “realismo ontológico” do cinema, nunca tenham sido
invocados pelos realizadores, historiadores e críticos nela envolvidos.
Realizadores-autores da nouvelle vague como Truffaut e Godard criticaram tanto o
direct cinema como o cinéma-vérité, recusando-lhes valor artístico e tentando
reduzi-los a meras experiências com o aligeiramente das técnicas de captação de
imagens e sons: do seu ponto de vista, ambos diminuíam, precisamente, o papel do
autor. Truffaut escreveria uma «Lettre contre le cinéma-vérité» (1963: 110) e Godard
exprimiria a sua distância em relação a este cinema, de forma paródica, em Le grand
escroq (1964). A carta de Truffaut era corrosiva:
“...Os filmes do cinéma-vérité são muito úteis à gente do espectáculo — realizadores,
produtores, actores — mas não têm nenhum interesse para o público; (...) esses filmes
deviam ser mostados gratuitamente. Não estou a brincar: as reacções dos espectadores
a Chronique d’un été foram diametralmente opostas conforme a projecção foi paga ou
gratuita. Por outras palavras, deve-se pagar para ver uma mentira organizada, mas não
para ver uma verdade verdadeira”.
Rossellini
versus Rossellini foi talvez o crítico mais contundente do posicionamento de realizadores
Morin como Rouch e Morin ou como os seus (fugazmente) próximos americanos e
297
canadianos: “Querem eles fazer arte, ou não querem? Se querem, é arte sem autor.
São realizadores à procura de um autor.”
Numa intervenção já tardia, «À propos de cinéma-vérité», gravada em Janeiro de
1966, Morin (<http://www.ina.fr/video/I08015623>), um dos mais persistentes
defensores deste modo de fazer cinema, aceitava diplomaticamente a razão de
Rossellini mas explicava-se sobre a mudança de natureza da autoria:
“Há três tipos de cinema: um cinema comercial que depende do produtor; um cinema
de arte que depende do autor; e há também um cinema da realidade vivida, que
depende da realidade provocada pela câmara. No cinéma-vérité quase não há autor no
sentido de encenador (metteur en scène), porque o autor é ao mesmo tempo o operador
de câmara, o entrevistador, o entrevistado, o acontecimento filmado (...). Mas existe
uma estética do cinéma-vérité, uma estética do improviso, da espontaneidade, do
desajeitamento, da vida bruta e do espelho. (...) O cinéma- vérité procura o contacto
com pessoas que sejam, por um instante, diante da câmara, os autores da sua própria
existência”.
data em que escrevo estas linhas) desde Los motivos de Bertha, de 1984, sem contar
com os super 8, os 16 mm e os vídeos experimentais com que começou.
En la Ciudad de Sylvia mostra bem o relacionamento de Guerín com o cinema como
aparelho de captura, no sentido literal que Deleuze e Guattari deram a esta
formulação em Mille Plateaux, mas também como dispositivo discursivo, que
convida à criação de obras que, quer do ponto de vista estético quer do ponto de vista
narrativo, são ensaios de forte afirmação autoral. O aparelho de captura está nele,
em primeiro lugar, ao serviço do veio documental, por mais encenadas que sejam,
por vezes, as suas imagens documentais. Quanto ao dispositivo discursivo, está, em
primeiro lugar, ao serviço das ficções que inventa.
O trabalho com o som é outra componente que torna os seus filmes tão
idiossincráticos: em La Ciudad..., a mistura não-diegética de sons diegéticos cria um
registo autónomo e metafílmico, que, sobrepondo-se às imagens e co-
responsabilizando-se pela atmosferização das situações filmadas, acentua
fortemente a abordagem proxémica que conduz toda a sua cinematicidade — salvo
em casos como o da sequência da esplanada do café do Conservatório, onde duas
jovens tocam um dueto para violinos, ou na do bar-discoteca Les aviateurs, onde a
dança é filmada com o som ambiente. Nestes casos o som nasce da cena e faz parte
dela, como preconizado pelo casto manifesto do Dogma 95, que no seu momento
“proibiu” o uso de som não-diegético no cinema. E o filme, embora inteiramente
autónomo, faz parte de um empreendimento experimental mais vasto de Guerín: no
mesmo ano ele acabava um outro, Unas fotos en la ciudad de Sylvia, montagem
sequencial de imagens fixas, muda e a preto-e-branco, integrando apontamentos e
esboços feitos em viagem, quadros, outras fotografias, referências a novelas e
poemas; e a instalação Las mujeres que no conocemos, que exibiu no pavilhão
espanhol da bienal de Veneza.
“Novo crime”, diz o jornal lido por um protagonista tão insondável como o de Pickpocket
(fotogramas reenquadrados do filme)..
Vemo-lo esboçar, sob o título Dans la ville de Sylvie, um retrato da jovem que procura. Por baixo escreve: “Elle”.
Mas depois acrescenta um “s” e a sua busca torna-se plural: já não é só Sylvia que ele procura, são todos os seus
duplos e avatares, todos os seus ersatzs e seus possíveis ícones (fotogramas reenquadrados do filme).
De que trata En la Ciudad...? De um jovem de quem não sabemos o nome e que visita
uma muito reconhecível Estrasburgo (o filme foi apoiado pela região alsaciana e pela
cidade) em busca de uma jovem, Sylvia, que ali terá conhecido em tempos. Quando
o filme começa, ele está no quarto que alugou num hotel barato, sentado na cama
300
Poetas e cineastas
INSISTAMOS: parte do cinema moderno privilegiou o cinema poético contra o dos
contadores de histórias (ou contra a gramática do story telling de Hollywood),
valorizando o que se tornou no paradigma das artes de todo o séc. XX: a recusa da
obediência à comunicação fácil com os seus públicos. Reconheceu-o cedo Susan
Sontag num seu escrito sobre a “estética do silêncio” (1967), referindo-se, não ao
cinema, mas aos artistas em geral, e radicalizando, no contexto da época, a questão:
“O artista acaba por escolher entre duas possibilidades inerentemente limitadoras: tem
de optar pelo servilismo ou pela insolência — ou adula e satisfaz o seu público,
oferecendo-lhe o que este já conhece, ou agride-o, dando-lhe o que ele não quer”.
Diriam tais cineastas (e seria fácil multiplicar transduções com esta comparáveis):
“... O cinema é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas,
a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o
filme não fala de uma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela,
ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos
rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite (...)”.
Um dos traços mais pedagógicos da releitura dos dois livros de Deleuze revela-se no
cotejo das categorias e conceitos neles produzidos com o vocabulário técnico mais
tradicional e, antes deles, consagrado pelos manuais. No que às narrativas concerne,
as suas análises convidam, de facto, à comparação com os constructs seleccionados
pelo cinema clássico e pelo studio system (as menções e citações que seguem
referem-se a Cinéma 1 — L’image mouvement, na edição da Minuit de 1983). No
A “grande forma” capítulo IX, «L’image-action: la grande forme», Deleuze começa por definir de modo
sucinto o “realismo”, em termos que evocam irresistivelmente a estrutura dinâmica
dos ritos de passagem (separação, iniciação, regresso), e que o autor designa pela
fórmula S-A-S (passagem de uma situação a outra em resultado da acção da
personagem), fórmula que pede de empréstimo ao Noël Burch de um texto sobre M
de Fritz Lang. O modelo S-A-S é aquilo que designei (Mendes: 2009) por construct
heteronómico e arquetipal, vindo do The Hero With a Thousand Faces de Campbell
e da tradição neo-aristotélica que conduziria aos manuais do último quartel do séc.
XX sobre o “archplot” (McKee), a “jornada do herói” (Vogler) e as estruturas em três
actos (Field), entre muitos outros equiparáveis; diz Deleuze (loc. cit.: 196-198):
“O que constitui o realismo é apenas isto: meios [ambientes ou englobantes, n.a.] e
comportamentos; meios que actualizam e comportamentos que encarnam. A imagem-
acção é a relação entre uns e outros (...). É o modelo que fez triunfar universalmente o
cinema americano (...). O meio e as suas forças encurvam-se, agem sobre a
personagem, lançam-lhe um desafio e provocam uma situação de que ele fica
prisioneiro. A personagem reage (...) de modo a responder à situação (...). Tem de
adquirir uma nova maneira de ser (habitus) ou de elevar a sua maneira de ser até às
exigências do meio e da situação (...). A acção [da personagem] é, ela mesma, um duelo
entre forças, uma série de duelos: duelo com o meio, com os outros, consigo próprio.
Enfim, a nova situação saída da acção articula-se com a situação inicial.”
Deleuze reencontra, sem os citar, Propp e Campbell: nos contos maravilhosos, como
no Hamlet em Elsinore, é precisa uma iniciação do herói, um seu retiro e um mentor,
coadjuvantes e uma comunidade. E nada disto, admite ele, resulta apenas da
inspiração behaviourista, do binómio estímulo-resposta ou do reflexo condicionado
que gerariam “acção”: como o Actor’s Studio veio a propor (desde 1947), “só o
interior conta” — o conflito interior da personagem tem de ser mostrado, porque dele
depende a natureza e a qualidade da acção que essa personagem vai empreender (v.
America, America de Elia Kazan, 1963, desde a situação inicial, na Anatólia, à
última, a chegada à terra prometida — Nova York). Nas histórias complexas, o
esquema S-A-S reduplica-se por dentro para garantir a sua composição episódica:
passa-se de S1-A1-S2 para S2-A2-S3, daqui para S3-A3-S4, e assim sucessivamente
até à closure ou resolução. Certo é que a “grande forma” subsumiu tudo, até os
protagonismos degradados (os alcoólicos de Hawks), na esteira da tradição de
Fitzgerald, e de preferência se a atribulada jornada do herói conduz à sua redenção
final (Lost Weekend de Billy Wilder, 1945; The Hustler de Robert Rossen, 1961). O
western e as suas mitologias específicas foram outro contributo decisivo para a
consagração do modelo: solidamente ancorado em meios e situações adversas, ele
põe em acção a comunidade e o seu território para produzir um chefe — alguém
capaz de acções “enormes”. De certo modo, diz Deleuze, Hollywood nunca deixou de
refilmar The Birth of a Nation, de Griffith, a génese sempre refazível do mito
americano.
Quase insensivelmente, diz Deleuze, esta “grande forma” S-A-S veio a
metamorfosear-se, sem modificação dos seus objectivos principais (o primado do
comportamento e da acção na mudança de uma situação para outra) numa outra
dela derivada mas que inverte a posição das suas componentes. Deleuze designa-a,
por oposição à fórmula de Noël Burch, por “pequena forma”, e representa-a pela A “pequena
sigla A-S-A (acção-situação-acção), característica, em primeiro lugar, da detective forma”
story ou da investigação policiária. Eis como ele descreve a inversão:
“...Há outra forma que (...) vai da acção à situação e de novo à acção (...), A-S-A. Aqui
é a acção que desvela a situação, ou parte, ou um aspecto dela, e ao fazê-lo desencadeia
nova acção. A acção avança às cegas, e a situação desvela-se em negro ou na
ambiguidade. De acção em acção, a situação surgirá pouco a pouco, variará, esclarecer-
se-á finalmente ou preservará o seu mistério” (loc.cit.: 220).
Em Por quê tantas histórias (Mendes, 2001) referi que o detective que tenta, de
indício em indício, reconstituir a história de um crime, como quem tenta chegar à
figura final de um puzzle a partir da articulação de algumas das suas peças, é a figura
protagonística por excelência desta fórmula A-S-A, exprimindo a inversão típica da
relação entre syhuzet e fabula (a que Deleuze nunca se refere). O syhuzet é o enredo
fragmentário que se desenrola diante de nós, a fabula a reconstituição diegética dos
factos, que se vai revelando in absentia — a fabula é uma reconstituição mental da
ordem dos factos narrados e raramente está presente no que vemos. Este modelo
progride da parte para o todo, por segmentos ou fragmentos não-autónomos porque,
precisamente, cada um deles só faz sentido como parte de um todo holístico que se
vai discernindo ou que é mantido até ao fim como presumível mas não inteiramente
discernível. Bem antes da estabilização da metodologia clássica da detective story e
do deliberado labirinto dos seus indícios, diz Deleuze, tal forma parece ter tomado
304
Autor e narrador
COMPARANDO A DIVERSIDADE dos procedimentos narrativos na literatura e no cinema,
Seymour Seymour Chatman tentou descrever, no seu Story and Discourse (1978), os modos
Chatman como a narrativa é percepcionada pelo espectador. As suas considerações
complicam, inevitavelmente, a invisibilidade da técnica naturalista/realista, e isto
desde os seus mais básicos pressupostos. Por exemplo na literatura, e por
importação de procedimentos no cinema, autor e narrador não são confundíveis,
porque, ao escrever, o autor inventa um ou vários “autores implícitos” (Wayne C.
Booth, The Rethoric of fiction, 1961) que não coincidem consigo, ou um alter ego ou
second self (Kathleen Tillotson, «The Tale and the Teller», 1959) subsidiário do seu
ego principal. O autor implícito é aquele que o leitor/espectador atribui
imaginariamente à obra que está a ler / ver, e não coincide necessariamente com o
autor real. Do mesmo modo, o leitor / espectador implícito está sempre presente: é
aquele a quem, na intencionalidade autoral, a obra é endereçada, mesmo se ele não
coincide com os leitores / espectadores reais.
305
O narrador, criatura inventada pelo autor e que se responsabiliza pelo que é contado,
tanto pode ser omnisciente e assumir a posição “divina”, como exprimir um ou vários
pontos de vista de personagens. E em qualquer dos casos pode ser unreliable, não
fiável (Booth, op. cit.), construído com base em constrangimentos ou limitações que
condicionam deliberadamente o seu ponto de vista ou alteram os seus valores, como
na Carta de uma mulher desconhecida de Stefan Zweig (1922), adaptado ao cinema
por Max Ophüls (1948), onde o espectador tem de decidir se a voice over de Lisa
Berndle distorce, ou não, factos sobre o seu amante Max Brand. Ou como em The
Usual Suspects, de Bryan Singer (1995), que relançou este tipo de narração e
influenciou uma série de filmes posteriores. Em muitos casos, o autor propriamente
dito desapareceu, mas o autor implícito está sempre presente, como salienta
Chatman:
“Há sempre um autor implícito, embora possa não haver um autor real e singular no
sentido comum: a narrativa pode ter sido composta em comité (como nos filmes de
Hollywood), por um grupo disperso de pessoas durante um longo período de tempo
(como em muitas baladas populares), pela composição aleatória de um programa de
computador ou de outro modo qualquer” (loc.cit.: 149).
Num filme, o “olhar da câmara” tanto pode mostrar o ponto de vista de uma ou várias
personagens como pode mostrar o olhar do “dispositivo” ou do “autor implícito”; no
cinema clássico, esse olhar era, como vimos, suposto apagar-se enquanto presença
do dispositivo, e devia ser invisível ou inidentificável para o espectador; no cinema
moderno, novas movimentações de câmara passaram a dar ao espectador
consciência de um olhar intencional que quer ser reconhecido e notado como tal: a
presença autoral no filme passou a ser deliberadamente sublinhada. O apagamento
do autor em que o cinema clássico se inspirou corresponde àquilo que Platão
designou por mimesis: o autor cede inteiramente o seu lugar às personagens que,
como no teatro clássico, assumem a total responsabilidade pelo que está a ser
contado, mesmo quando uma delas desempenha o lugar parcial de narrador — o
mensageiro da tragédia.
Quando o narrador ou o autor implícito assumem a responsabilidade do narrado,
usando o pronome “Eu” e apenas dando voz a personagens quando delas precisa,
adoptamos a forma narrativa que Platão designou por diegesis. Parte da narratologia
distinguiu depois narrador autodiegético — aquele em que autor e narrador
coincidem, por exemplo na autobiografia ou na diarística — e narrador
homodiegético — uma personagem criada pelo autor, que também usa o pronome
“Eu” mas com valor ficcional (é sobretudo na narrativa homodiegética que o
unreliable narrator tende a surgir). Aquilo a que Chatman chama nonnarrated
stories corresponde à pura mimesis de Platão tal como a conhecemos do drama:
“O polo negativo da presença do narrador — o polo da mimesis ‘pura’ — é representado
pelas narrativas supostas serem transcrições intocadas de comportamentos de
personagens” (loc. cit.: 166).
O Evangelho segundo Mateus, Pasolini, 1964. Um auto da prédica e da paixão cheio de não-actores
(fotogramas reenquadrados do filme).
doutrina estética e/ou ética diluiu-se na modernidade líquida que Zygmunt Bauman
(2000) descreveu. Já não estamos a caminho de um fim da História
teleologicamente orientado e nenhuma grande narrativa cosmogónica sustenta tal
jornada ou tal direcção. Um novo cepticismo dispersivo tomou conta da paisagem —
a das sociedades de risco de Ulrich Beck e Anthony Giddens. O próprio Rimbaud
cedo mudara de programa: uma dúzia anos depois do seu categórico imperativo de
modernidade, escrevia ele à família, de Aden (Iémen), explicando que era agora
negociante de armas e rogando-lhe que não acreditasse que se tornara “mercador de
escravos”. Também os Rimbauds contemporâneos devem explicar à família e a si
mesmos de que se ocupam e de que vivem, o que estão a fazer aqui, como Bruce
Chatwin tentou fazer (em What Am I Doing Here?, de 1988).
africanos, e o seu embate com as condições de vida e o habitus autóctone. Mas Lisboa
é um exemplo ainda suave das novas multiculturalidades urbanas, apesar dos seus
ghettos periféricos, geralmente zonas de realojamento alternativas aos demolidos
bairros de lata. E, do mesmo modo que segmentos dos tradicionais centros urbanos
se metamorfoseiam e se tornam áreas hegemonizadas por culturas migrantes — veja-
se a Bruxelas do séc. XXI —, há periferias que exprimem mais concentradamente o
mesmo fenómeno: por exemplo na Amadora, pequeno concelho com menos de 24
km² mas com a maior densidade populacional do país, coexistem 120 nacionalidades
— com maior destaque para os oriundos de Cabo Verde, Brasil, Guiné-Bissau,
Angola, São Tomé e Príncipe, Roménia, Ucrânia, China, Índia, Paquistão — cerca de
10% do total de residentes: dados de um censo recente mas em constante evolução.
Em Lisboa está, porém, em curso outra notória mudança de cenário: a capital, hoje
“gentrificada”, vive o seu momento cosmopolita; tornou-se num apinhado destino
turístico e formigueiros de europeus peregrinam a pé pelas suas íngremes calçadas,
enchem-lhe a hotelaria e as esplanadas, os comboios para Sintra e Cascais; nela
proliferam filas de rickshaws, bajaj ou bemo neo-indianos ou tailandeses, os tuk-
tuks. E enquanto se reabilitam prédios de há cem anos, mais carismáticos do que os
dos modernismos posteriores, e o preço do imobiliário dispara, nos bairros
históricos o negócio dos alugueres de curta duração despeja os autóctones (como
também sucede no Porto), ao mesmo tempo que a câmara se obstina em reduzir para
metade a circulação automóvel na cidade. Irreconhecível para a sua população
envelhecida, esta nova capital, babelizada e sob nova pressão turística (e por isso
mais semelhante a Veneza, Barcelona e Amesterdão), entesoura com este
cosmopolitismo, cujos rostos chegarão, tarde ou cedo, ao cinema. Ao mesmo tempo,
os Fernão Mendes Pinto de hoje peregrinam nas ruelas da noite e já não em
longínquas paragens exóticas; e apagaram-se as histórias trágico-marítimas escritas
por Bernardo Gomes de Brito para D. João V. Nos verões actuais, o país interior,
esquecido e incapaz de reordenar a sua floresta, arde e morre em incêndios. A
população portuguesa, já hoje a segunda mais envelhecida da UE a seguir à alemã,
decresce e concentra-se no litoral urbano, sobretudo nas áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto mas também descendo de Viana do Castelo até Setúbal e no litoral
algarvio. E em 2050 o país será o quarto mais envelhecido do mundo: quase metade
dos seus habitantes terá mais de 60 anos. Talvez este novo Portugal emergente, mas
de futuro incerto, suscite um dia tanto interesse entre os novos cineastas portugueses
como as ama-san de Isa-Shima (idosas japonesas que ainda mergulham em apneia
à procura de pérolas), a guerra da Bósnia, as improváveis Estónias, as antigas
actrizes e as grandes solidões de Sarajevo.
Em matéria de multiculturalidade, tenha-se em conta que, quando diferentes
culturas convivem no mesmo território, raramente mantêm entre si relações
igualitárias: as culturas tendem a manter entre si relações de dominação herdadas
do colonialismo — uma é dominante, a(s) outra(s) dominada(s). Uma cultura
hegemónica, geralmente a autóctone (salvo no caso de territórios ocupados), vê-se a
si mesma como “superior” às outras com que convive; uma cultura dominada tende
a reconhecer, em parte, o seu carácter subalterno, adoptando, por aculturação, o
habitus autóctone. Racismos, segregações e comportamentos de exclusão tendem,
assim, a subsistir. Mas se a relação de forças se altera — por exemplo no microcosmos
dos ghettos de realojamento ou nos reocupados bairros dos centros — a hegemonia
pode inverter-se. Deste modo, a desterritorialização e o desenraizamento, vividos
por migrantes para quem as suas nações de origem se tornam cada vez mais em
memórias, é um dos traços que passaram a caracterizar as sociedades
contemporâneas. E com frequência, o contacto com o território de origem perde-se
numa só geração: os filhos de migrantes não regressam ao país dos pais e ficam entre
dois mundos, um perdido, outro que os integra pouco ou mal.
Outra experiência é, como vimos, a do nomadismo cosmopolita das carreiras
internacionais e a oferecida pela mobilidade estudantil no Erasmus, que geram um
novo tipo de deambuladores. Estes não são “danados da terra” (Fanon, 1961):
beneficiam de uma mundivivência privilegiada. Mas também aqui o fenómeno novo
— que pode interessar a ficção — é o nomadismo sistémico que altera as antigas
identidades ligadas a territórios, perturbando-as e pondo-as em crise num universo
313
Há, ainda, filmes recentes cujo objectivo é refazer, extremando-as, novas relações do
cinema com o tempo real: Boyhood (2014), de Richard Linklater, filmado ao longo Boyhood
de 12 anos com o mesmo grupo de actores que vão crescendo e envelhecendo diantes
das câmaras, centra-se na vida de um rapaz, Mason, entre os seis e os 18 anos. O
realizador começou a filmá-lo em 2002 e só o terminou pouco antes da estreia. O
projecto é simples, mas devido ao seu grande fôlego diegético assumiu um enorme
risco — o de filmar de ano em ano, durante curtos períodos, o mesmo casal de
crianças e o mesmo casal de adultos, apostando em que nada, na vida de cada um
deles, impediria o filme de ser levado até ao fim. Ali, Mason Jr. e Samantha, dois
anos mais velha que o irmão, são filhos de pais divorciados, Patricia e Mason Sr., e
vivem com a mãe, que volta esforçadamente a estudar e virá a tornar-se professora,
tentando ao mesmo tempo refazer a vida familiar com novos maridos que se revelam
más escolhas e de quem se vai separando; o pai, desempregado crónico que por vezes
tem um trabalho temporário, vem, se pode, buscar os filhos aos fins-se-semana. Os
12 anos de filmagens tornam o filme, de três horas, numa exorbitante experiência de
relação com esse tempo real, visitando sucessivas idades e etapas da vida das duas
crianças (e de seus pais) até que ambas, no fim da adolescência, entram para a
universidade. É, a seu modo, uma coming of age story, quer no que toca aos filhos
quer aos pais. Linklater já filmara com os mesmos actores em sucessivas idades na
trilogia Before Sunrise (1995), Before Sunset (2004) e Before Midnight (2013), como
Truffaut fizera com a série dos seus Antoine Doinel. Mas Boyhood conseguiu a
proeza de fazer o “retrato contínuo” de uma família texana na sua vida banal e em
parte disfuncional, com as suas alegrias e decepções, seguindo os percursos de cada
uma das personagens principais. Esta rara relação com o tempo real torna o filme
numa morosa experiência de observação que evoca o ensaio antropológico de Oscar
Lewis em La vida (1966) e os estudos que publicou com base na família Sanchez (The
Children of Sanchez, 1961, e A Death in the Sanchez Familiy, 1969). No fim, quando
Mason Jr. sai de casa para ir estudar fotografia na universidade, a mãe faz, chorando,
uma síntese brutal daqueles 12 anos: depois dos estudos, do professorado, dos
divórcios, das mudanças de casa devidas às constantes dificuldades económicas, da
difícil educação dos filhos, estes finalmente partem para novas vidas e a ela, sozinha
apesar de ainda jovem, “já só resta morrer”. O filho diz-lhe que ela está a apagar 40
anos de vida futura, mas ela insiste no lamento: “Eu julgava que haveria mais”. Mais
vida, mais família, mais felicidade, mais tempo? O happy ending aberto (para os
filhos) é relativizado pelo balanço desencantado que ela faz de todos aqueles anos:
Patricia culpa-se por ter feito sucessivas opções erradas em matéria de homens e
sabe que perdeu a vida tal como uma vez a imaginara e desejara.
Em torno do tema da sida, a que atrás aludi de passagem, veja-se, entre outros, o
recente Juste la fin du monde: adaptação livre, por Xavier Nolan (2016), québécois, Apenas o
da peça de Jean-Luc Lagarce (1999). Louis, dramaturgo de sucesso de 34 anos, fim do
mundo
decide visitar a família, a que virou costas há 12 anos, para anunciar à mãe e aos
irmãos que está doente e vai morrer. Mas eles (a mãe, Martine, a irmã mais nova,
Suzanne, o irmão mais velho, Antoine, e a mulher deste, Catherine), não sabem como
receber o “filho pródigo”, recriminam-no pela sua longa ausência e não lhe dão
qualquer oportunidade para que ele cumpra o seu objectivo. Numa nevrosada
jornada dominical à huis clos (à porta fechada, como na peça homónima de Sartre),
perguntam-lhe o que veio ali fazer mas, sobrepondo a cada passo os seus perturbados
discursos ao dele, impedem-no de responder. Catherine esboça uma ponte com o
cunhado que só agora conheceu, mas é demasiado frágil e não sabe fazê-lo. O mais
agressivo é Antoine, que não pára de o insultar e de lhe repetir que, ao fim de tantos
anos de ausência, se tornou inútil ouvi-lo e, ressentido, acaba por o expulsar. A
câmara de André Turpin, director de fotografia, filma as personagens em longos
grandes planos, dando campo aos seus silêncios e hesitações, às suas explosões
descontroladas e à sua incomunicabilidade. Louis criou entre si e eles um abismo
intransponível. No fim parte de novo, mais fechado ainda na sua solidão perante a
morte próxima, tendo tentado infrutiferamente despedir-se de Suzanne, Catherine,
Antoine e da mãe. A peça de Lagarce era autobiográfica — ele morreu de sida pouco
depois de a ter escrito. E o filme quase ganhava a Palma de Ouro em Cannes: saíu de
lá com o Grande Prémio e com o do júri ecuménico.
316
maioria dos filmes de Godard e de Orson Welles, e pensava que Antonioni soçobrou
ao seu próprio tédio. Tarkovski nunca se considerou próximo dos seus
contemporâneos. As desconsiderações interpares multiplicaram-se, bem como as
reavaliações auto-críticas: Antonioni distanciou-se de Il deserto rosso e do final de
L’eclisse. Bergman rejeitou A fonte da virgem, considerando-o uma “pobre imitação”
de Kurosawa, e desmereceu outros filmes seus. Mas tais dissonâncias, a inexistência
de um sentimento de pertença a um grupo comum e o peso das auto-críticas, são
traços da pluralidade de enfoques que faz a riqueza de cada época.
E claro que, à margem da diversidade de estilos e da velocidade a que contamos o
que queremos contar, é sempre possível voltar esperançosamente aos clássicos da
literatura e insistir, com e sem ironia — como Zoran Zivkovic (2016), romancista
sérvio e professor de “escrita criativa” na Universidade de Belgrado — que é neles
que reside a “salvação”:
“O melhor curso possível de escrita criativa é a leitura criativa. Leiam no Verão os
contos de Tchekhov: tudo o que há para aprender sobre a arte da escrita está nesses
contos. Se querem saber como se escrevem histórias está lá tudo. Mas para isso é
preciso ser-se um leitor criativo (...). Digo sempre aos meus alunos que não devem
esperar ser leitores antes dos 50 anos (...). Até lá têm 30 anos para ler e reler. Não há
milagres na arte da escrita (...). A vida de um escritor é uma vida de leitor”.
Tchekhov: sobre a sua morte num hotel de Badenweiler, na Floresta Negra, no Verão
de 1904, leia-se Errand, o conto de Carver com que este, pouco antes de, por sua vez,
morrer, decidiu fechar, em 1988, Where I’m Calling From; quando o médico
chamado por Olga para assistir o moribundo percebe que nada mais pode fazer por
ele, manda vir uma garrafa de Moët Chandon e três cálices para que o escritor possa
despedir-se da vida bebendo, com eles, champanhe.
Benjamin, como vimos atrás, preferia o story teller tradicional, que interagia com o
seu público, ao romancista, que escreve sozinho para leitores igualmente solitários.
Mas novas gerações de novelistas e romancistas quebraram, em parte, essa tradição
de solipsismo auto-centrado, mostrando uma solicitude explícita para com as suas
fontes e materiais inspiradores. É uma nova atitude.
Agradecimentos Entre os autores que agradecem publicamente a quem os ajudou a abordar certo
a fontes mundo especializado leia-se, por exemplo, o Leonardo Padura de La neblina del ayer
(2005), onde o antigo polícia Mario Conde se torna negociante de livros raros e
descobre, entre as páginas de um velho pantagruel cubano, um recorte de revista
sobre uma cantora de boleros dos anos 50 por quem se interessará porque seu pai
teve por ela uma paixão. Antes de iniciar o romance, Padura, também argumentista
de cinema, passou meses a tornar Conde no protagonista de quatro possíveis filmes
e não pensava recuperá-lo tão depressa para a sua ficção escrita; mas o negócio dos
livros velhos e os segredos da cantora motivaram-no e achou que Conde bem podia
regressar com a nova história. No fim, Padura agradece a um livreiro-alfarrabista de
Havana que o iniciou ao negócio, a duas funcionárias da Biblioteca Nacional e do seu
Fundo de Livros Raros, a outra bibliófila que lhe mostrou preciosidades da sua
colecção e a uma dezena de leitores “que pelejaram com as diversas versões do
manuscrito”. Ou seja: não só precisou de consultoria especializada sobre o mundo
da antiga edição cubana e se sentiu obrigado a referi-la, como não prescindiu da
crítica do que ia escrevendo por amigos em quem confiava.
Estes agradecimentos, que começaram por ser de regra em ensaios e dissertações,
tornaram-se moeda corrente para certos autores de ficção contemporânea: Ian
McEwan e em menor grau Paul Auster incluíram-nos em diversos dos seus romances
e novelas. Alguns autores de histórias inventadas passaram assim, como
académicos, a citar nominalmente as suas fontes e os trabalhos que os inspiraram —
e ao fazê-lo revelam parte dos utensílios e máquinas-ferramentas da sua fábrica de
ficções. Esta “nova atitude” ultrapassa o solipsismo herdado e abre-se a um trabalho
de reconhecida cooperação com fontes sem as quais a criação ficcional teria sido
mais difícil ou impossível. Eis um novo aspecto das relações entre ficções e
realidades que, a seu modo, põe termo a uma época de segredos autorais e de
patentes que deliberadamente escondiam parte da génese das histórias.
319
de mais, a fruição espectatorial da desdita dos que, por inépcia, são piores (mais
desajeitados, menos performativos), mas não muito piores que nós — é essa a matriz
aristotélica do Charlot de Chaplin. ¢
A par dessa relação com a cultura clássica, porém, Freud sempre desconfiou do
cinema (viu um filme em sala pela primeira vez em 1909, em Nova York, com Jung,
Ferenczi, Brill e o seu futuro biógrafo Ernest Jones). Em 1925, convidado por Samuel
Goldwyn, produtor americano, a colaborar num filme “sobre os amantes mais
célebres da história da humanidade”, recusou. Goldwyn oferecia a Freud 100 mil
dólares pela sua colaboração no projecto, dinheiro que teria confortado a Sociedade
Psicanalítica de Berlim, presidida por um dos seus discípulos, Karl Abraham.
Convidado quase ao mesmo tempo pela Universum Film AG (UFA, primeira
produtora de cinema alemã) a envolver-se num filme sobre a psicanálise, voltou a
recusar. O filme acabou por ser realizado, naquele mesmo ano, por Georg Wilhelm
Pabst, com o título Geheimnisse einer Seele (Mistérios de uma alma — o estranho
caso do Dr. Mathias) e foi um êxito: contava a história de um químico perseguido
pela obsessão de assassinar a esposa. A Abraham, que colaborou no script, escreveu
Freud (Freud, Abraham, 2002): “O famoso projecto não me agrada (...). A minha
principal objecção é que não me parece possível fazer das nossas abstrações uma
apresentação plástica que preserve algum respeito por si própria. Não vamos dar o
nosso acordo a algo insípido (...)”. Abraham insiste, argumentando que, se o projecto
não fosse dirigido por ambos, acabaria por sê-lo “por incompetentes: não faltam em
Berlim psicanalistas selvagens...” Mas Freud mantém-se taxativo: “Prefiro que o
meu nome fique longe de tudo isso”. O filme foi apoiado pela Sociedade presidida
por Abraham e no seu genérico elogiava-se o trabalho de Freud, mas este insurgiu-
se contra a citação do seu nome e cortou relações com Abraham, que veio a morrer
no mesmo ano. Filme e incidente geraram controvérsia e mal-estar na comunidade
psicanalítica.
Mas o cinema interessou-se, a seu modo, por Freud: numerosos filmes referem-se
distorcidamente à psicanálise, a começar, remotamente, por O gabinete do Dr.
Caligari (Robert Wiene, 1919). Na década de 40, as referências multiplicaram-se,
com A casa do Dr. Ewardes (Hitchcock, 1945), O segredo atrás da porta (Fritz Lang,
1948), O misterioso Dr. Korvo (Otto Preminger, 1949). A psicanálise inspirou até
westerns, como O vale do medo (Raoul Walsh, 1947). Mas Hollywood simplificou-a
e caricaturizou-a, e na maioria dos casos diluiu-a num nebuloso milieu clínico que a
incluiria. Temas para-psicanalíticos foram sobretudo usados como inspiração de
plots semi-policiais para o grande público, dando razão à desconfiança de Freud face
ao cinema. Mais tarde, John Huston realizaria uma tentativa biográfica, Freud: The
Secret Passion (1962), protagonizada por Montgomery Clift, mas queixando-se de
não saber como cinematizar ideias psicanalíticas como a de recalcamento. Essas e
outras dificuldades não obstruíram, porém, o interesse de cineastas pelos escritos de
Freud: Pasolini leu parte deles com 20 anos e realizou Œdipus Rex (1967), que
remete para o mito e para a tragédia de Sófocles reinterpretados por Freud. E esse
tipo de fascínio manteve-se, para muitos outros, até mais tarde.
Marc Vernet (1975), que listou dezenas de filmes estadunidenses de temática
supostamente alusiva à psicanálise, já sublinhava a presença dessa confusa e
simplificada influência em comédias, melodramas familiares, filmes de terror e
thrillers psicológicos, policiais e westerns. E tentou mostrar como tais filmes
propuseram muitas vezes a redenção compreensiva do louco, mas sobretudo a do
terapeuta que transpira fé, esperança e caridade na tentativa de conduzir a essa
redenção. Tal terapeuta pode, em função dos enredos ou dos géneros, vestir a pele
do psiquiatra, auxiliar de saúde ou médico de qualquer especialidade — incluindo
lobotomistas —, do polícia ou do detective “bom”, do professor ou do padre, todos
eles subsidiários da função proppiana do mentor. Na sua versão negativa, esse
mentor bem intencionado e carregado de bom-senso torna-se no sábio louco (desde
Caligari), espécie de Fausto que fez um pacto com forças obscuras (com o “mal”), do
mesmo modo que, na sua versão negativa, o louco é o assassino compulsivo ou o
serial killer cuja motivação se manterá sempre inexplicada, o psicopata ou sociopata
que, salvo excepção, perecerá no fim da história.
Mais que os filmes, porém, os semiólogos dos estudos fílmicos, oriundos da geração
dos estruturalistas francófonos, tornaram a obra de Freud (re-iluminada pela de
Lacan) numa referência incontornável para a reflexão sobre o que o cinema faz e não
faz: em 1975, a revista Communications dedicava o seu nº 23 ao tema Psicanálise e
324
Cinema, publicando, entre outros, dois textos de Christian Metz, «Le signifiant
imaginaire» e «Le film de fiction et le spectateur», um de Raymond Bellour, «Le
blocage symbolique» e um de Jean-Louis Baudry, «Le dispositif. Approches
métapsychologiques de l’impression de réalité» e outros de Roland Barthes, Julia
Kristeva, Guy Rosolato, Catherine B. Clément. Ali, Félix Guattari, por exemplo,
ironizava dizendo que, face à psicanálise, prática elitista, o cinema era o “divã do
pobre”, e imaginava um diferendo sociopolítico entre as funções da terapia freudiana
e o consumo do cinema:
“Pagamos o nosso lugar no divã [do psicanalista] para sermos invadidos pela presença
silenciosa de um outro – se possível alguém de distinto, alguém de um standing
nitidamente superior ao nosso – e pagamos o nosso lugar no cinema para nos
deixarmos invadir seja por quem for e para embarcarmos em todo o tipo de aventuras,
em encontros em princípio sem futuro. Em princípio! Porque, de facto, a modelização
resultante desta vertigem barata deixa marcas: o inconsciente fica cheio de índios e
cowboys, de polícias e ladrões, de belmondos e de marylin monroes (…). O cinema
comercial não é, por isso, apenas uma droga barata. A sua acção inconsciente é
profunda, talvez mais do que a de qualquer outra forma de expressão. A seu lado, a
psicanálise perde peso.”
Criou-se, assim, uma tradição reflexiva que daria lugar a sucessivas expressões: a de
Michel Collin (1982) em «Psychanalyse et cinéma», a de Jacques Aumont e Michel
Marie (1989) em L’analyse des films, outras. A influência de Freud atingiu, através
de Lacan, muitos autores que, escrevendo sobre o cinema, tomaram como referência
conceitos psicanalíticos na análise da experiência do espectador: desde a relação
entre simbólico e imaginário à identificação e projecção, à relação entre conteúdo
manifesto e conteúdo latente, ao recalcado e seu regresso, ao fantasma e ao sintoma,
à polissemia das figurações ou à subtil passagem do que é vivido como Heimlichkeit
(familiaridade partilhada, sentimento de estar “em casa”) ou como Unheimlich
(estranhamento, inquietante estranheza. Sobre a definição de Heimlichkeit e
Unheimliche, cf., supra, Que coisa é o filme). Aqui, não esboçarei um enfoque que
eventualmente actualizasse o de Vernet, nem explorarei preferencialmente a
condição do espectador. Limitar-me-ei a sugerir as proximidades entre a criação
ficcional propriamente dita e o trabalho do sonho tal como descrito no capítulo VI
de Die Traumdeutung. O texto de Freud ainda interessa ao cinema devido à
“inquietante estranheza” que este tanto proporciona, ao clima de rêverie diurna que
com frequência propõe, devido à montagem, aos raccords e falsos raccords, à
associação e sucessão de imagens por vezes dissonantes ou contraditórias, às
distorções deliberadas de objectos e personagens, à condensação ou compressão do
tempo nas suas montage sequences e nas elipses narrativas, e ainda devido à sua
experimentação acrónica e fragmentária e à proposta de significantes imagéticos
encriptados, hieroglíficos ou polissémicos. O dispositivo cinematográfico
especializou-se em figurações e elaborações sobre as quais a reflexão de Freud é
ainda sugestiva e elucidativa.
Sobre a criação literária e artística, e apesar de, na Selbstdarstellung (Auto-
apresentação, 1935), ter afirmado que “a análise nada pode dizer que esclareça o
problema do dom artístico”, Freud propôs ideias fortes que interessam, por
semelhança, ao cinema, arte historicamente tão ancorada na tradição narrativa e na
produção de imagines do mundo. Por esse motivo, vale a pena reler os seus escritos
sobre a tagtaum ou tagesphantasie (rêverie diurne, devaneio) e o trabalho do
sonho, em busca de esclarecimentos sobre as pontes discerníveis entre actividade
inconsciente e criatividade artística.
goste de] reduzir a distância entre a sua originalidade e a maneira de ser dos homens
em geral, garantindo que em cada homem há um poeta (...)” (tr. adaptada).
O que faz e como o faz o criador literário? A resposta de Freud a esta pergunta banal
é, aqui, a já esboçada na Traumdeutung e que invoquei a propósito de Rilke lido por
Didi-Huberman (cf., supra, os preâmbulos): “O poeta faz como a criança que joga:
cria um mundo imaginário que leva muito a sério”; ou faz como o adolescente que
“inventa castelos em Espanha e persegue o que designamos por sonhos acordados”.
“Faz como a criança... que leva muito a sério”: esta formulação é muito semelhante
à de Rilke, para quem, como então vimos, “a arte é uma infância”, e poderia ter sido
objecto do mesmo comentário de Didi-Huberman. A esses fantasmas, a essas
“criações aéreas” dos que “se abandonam às suas fantasias”, chamamos “sonhos
diurnos” que, à semelhança dos “sonhos nocturnos”, são “realizações de desejos” ou,
como Freud corrigirá no fim da vida, “tentativas de realização de desejos”.
Recordem-se alguns dos traços característicos desses sonhos diurnos: eles surgem
entre o estado de vigília e o sono, quando a mente começa a divagar e a imaginação
se torna dominante, fazendo-nos deambular em cenários fictícios ou fantasistas.
Estas divagações diurnas, que Freud também designou por fantasmas, são “cenas”,
“ficções”, “romances” que o sujeito conta a si próprio, realizando imaginariamente a
satisfação de desejos: como a personagem de Le Nabab de Daudet, que deambula
pelas ruas enquanto as suas filhas pensam que ele está no emprego, ao mesmo tempo
que ele próprio imagina que, através de favores influentes, conseguiu recuperar
“uma situação”.
Ora, a actividade onírica é fundamentalmente egoísta, auto-centrada, narcísica: “Sua
majestade o Eu” é, as mais das vezes, o herói “invulnerável” desses sonhos diurnos
do poeta; o fantasma narcísico de omnipotência, ou do poder sem limites do sujeito,
exprime-se sem censura na ficção, onde, como nos sonhos, “nada é impossível”.
Freud ironiza, evocando o estereótipo do protagonista de tanta ficção decalcada dos
sonhos diurnos: deixado agonizante no fim de um episódio, estará já em recuperação
no próximo; se o seu barco se afundou no primeiro capítulo, o segundo inicia-se com
a descoberta de que ele afinal sobreviveu ao naufrágio. E Freud encontra
procedimentos semelhantes mesmo onde esse estereótipo parece ausente: por
exemplo, no romance “ex-cêntrico”, onde o herói “desempenha o papel menos activo
e observa como simples espectador o desfile dos actos e das misérias de outrem” —
como, diz Freud, em diversas obras do seu contemporâneo Émile Zola. Ou mesmo,
diz ainda, no “romance psicológico”, que “deve a sua característica à tendência do
autor moderno para cindir o seu Ego, por auto-observação, em Egos parciais”. Em
qualquer dos casos, porém, a fórmula criativa provém do mesmo molde e Freud A “fórmula
resume-a como segue: criativa”
O curto texto de 1908 conclui abrindo perspectivas para outra questão, muito
influenciada, na sua formulação, pela antropologia dominante em finais do séc. XIX:
se, por vezes, a obra literária não parece depender da fusão entre a anamnese
individual e uma ocorrência actual, antes se fundando ora em mitos, ora em contos
e lendas, é provavelmente, diz Freud, porque, alimentando-se no “tesouro do
folclore”, se torna no “relicário deformado dos fantasmas de desejo de nações
inteiras — os sonhos seculares da jovem humanidade”. Esta foi a linha de
investigação que cativou Jung, já depois da sua ruptura com Freud em 1913, e o levou
a trabalhar os seus conceitos de arquétipo e de inconsciente colectivo, convicto da
existência de uma matriz de símbolos culturais universais.
Em Freud, a importância do sonho diurno ressurge ainda na Selbstdarstellung
(1925), onde ele anota sobre a Gradiva de Jensen, e de novo glosando o tema da sua
conferência de 1908:
“A partir de uma novela sem grande valor intrínseco, mostrei que os sonhos inventados
por poetas se prestam às mesmas interpretações que os sonhos propriamente ditos, ou
seja, que os mecanismos inconscientes que nos são conhecidos do trabalho do sonho
estão igualmente activos na produção literária”.
Depois de Freud, o conceito de sonho diurno pouco reapareceu na prática
psicanalítica, salvo em autores desviantes como Robert Desoille, que quis
transformá-lo, desde que dirigido por um terapeuta, em instrumento de cura. Mas
na literatura o seu legado é mais extenso e compósito, abarcando a escrita
automática (que Freud não entendia e rejeitava), já sugerida por Taine (De
l'intelligence, prefácio da 6ª ed., 1892: 16-17) e que reaparece nos surrealistas pela
mão de Breton, no Manifesto de 1924. Eis como o então enfermeiro psiquiátrico,
curioso de Freud, definia então os procedimentos da escrita automática:
“Automatismo psíquico puro pelo qual propomos exprimir quer verbalmente, quer por
escrito ou de qualquer outro modo, o funcionamento real do pensamento. Ditado pelo
pensamento, na ausência de qualquer controlo exercido pela razão e fora de qualquer
preocupação estética ou moral”.
A técnica deste automatismo herda, pelo menos indirectamente, da deriva do sonho
diurno, embora contendo elementos de dissociação psíquica do sujeito (Taine,
loc.cit.) que não coincidem com os parâmetros da sua definição por Freud.
O trabalho do sonho
«A CRIAÇÃO LITERÁRIA e o sonho acordado» sintetiza, abreviando-os, diversos temas
abordados na Traumdeutung, sobretudo em O trabalho do sonho. Perguntar-se-á
porque exerceu este texto tão duradoura influência sobre a compreensão do
funcionamento da “fábrica” da literatura e das artes em geral. Será decerto porque
os conceitos ali desenvolvidos — os de condensação (Verdichtung), deslocação
(Verschiebung), figurabilidade (Darstellbarkeit) ou transformação dos
pensamentos em imagens visuais, e elaboração secundária (Sekondäre
Bearbeitung) — sugerem uma ponte entre o que se passa nos sonhos do sono, nos
diurnos e na criação artística e literária. Essa ponte não resulta necessariamente da
aplicação directa e rigorosa dos mesmos conceitos à actividade onírica, à rêverie e à
criação artística e literária — apesar das especificações acrescentadas na conferência
de 1908. Mas, no mínimo, podemos usar esses conceitos nos três registos
mencionados como alusões e sugestões fortes, que iluminam parte do que se passa
nessas práticas criativas.
Leiamos portanto «O trabalho do sonho» — o trabalho de condensação, o trabalho
de deslocação, os procedimentos de figuração e a elaboração secundária. O que
Freud lançou, neste vasto capítulo de quase 200 páginas, foi a base da teoria
psicanalítica do sonho, abordando a complexa rede de deformações, conversões,
metalepses e outras passagens entre os significantes imaginários a que o trabalho do
sonho se dedica sob a pressão da censura psíquica, para a iludir e para conseguir
significar. A elaboração do sonho consiste na transposição dos seus pensamentos e
conteúdos latentes para conteúdos manifestos através de um multímodo trabalho de
deformação (Entstellung). O capítulo ocupa-se dos procedimentos a que a
actividade onírica se entrega para produzir a significância hieroglífica dos seus
conteúdos manifestos — ora obstruindo, ora desobstruindo as vias que os ligam aos
conteúdos latentes — procedimentos que oferecem o material de base para o
328
entendimento da articulação que, oito anos depois, Freud propõe entre os conteúdos
dos sonhos (nocturnos e diurnos) e a criação literária. Freud refere-se ao sonho como
“uma charada, uma adivinha” (un rébus, como viria a recordar Jacques Lacan).
Tenha-se no entanto em conta o obstáculo levantado, entre outros, por Maldiney
(1973: 27), citando a reflexão de G. Politzer e sublinhando que o que está presente
na interpretação do sonho nunca são imagens, mas sim a transformação dessas
imagens, pelo sonhador, em narrativas:
“O material da interpretação freudiana não é constituído pelas imagens do sonho, mas
sim pela narrativa do sonhador. Mais precisamente, as imagens que constituem a base
de partida para a análise não são as do sonho sonhado, mas as oferecidas pela narrativa
do sonhador, agora em estado de vigília. Isto bastaria para mostrar (...) que a expressão
literal conteúdo de consciência (e correlativamente a de conteúdo inconsciente) é
irrecebível”.
À luz do capítulo VI da Traumdeutung, porém, o sonho pode ser entendido como
uma semeiosis (σηµείωσις), produção semiótica baseada na deformação metaléptica
a que os seus signos são sujeitos, pela narrativa do sonhador, na passagem dos
conteúdos latentes para os manifestos. Apesar da semiótica do sonho não ser um
domínio particularmente explorado no seio da “metadisciplina” em que poderia
incluir-se, autores como John Pier (2007) sublinham as analogias que se oferecem
aos estudiosos da Zeichenbeziehung, ou “relação intersignos” — um conceito usado
pelo próprio Freud — entre os procedimentos daquela passagem e dicotomias como
a proposta por Peirce entre o signo e o seu interpretante, a de Frege entre Sinn e
Bedeutung, a de Saussure, que divide o signo em significante e significado e até, do
ponto de vista narratológico, a distinção, herdada dos formalistas russos, entre a
fabula de uma narrativa e o syhuzet do seu fenotexto.
Procedimentos da figuração
A RESPEITO DA FIGURAÇÃO, Freud propõe uma comparação explícita com o que se
passa nas artes plásticas, comparação que vale a pena considerar in extenso:
“As artes plásticas, pintura e escultura, comparadas com a poesia que se serve das
palavras, estão numa situação análoga [à do sonho]: também aqui, a insuficiência da
expressão se deve à natureza da matéria usada por estas artes no seu esforço de
exprimir alguma coisa. Dantes (...), a pintura remediava este handicap pondo diante
da boca dos indivíduos que representava legendas onde o pintor escrevia as palavras
que desesperadamente queria fazer entender” (id. ibid.).
Referimo-nos, no texto sobre Facialidades e acheiropoietos, a esta agrafagem dos
nomes às coisas, típicas do vasto período em que os pintores figuravam cenas
narradas nos textos sagrados: eles temiam que a representação pictórica não
conseguisse “colar-se” suficientemente aos textos que invocavam, e as legendas
evitavam esse risco de dissociação. Mas, acrescenta Freud no mesmo fôlego,
“... Do mesmo modo que a pintura acabou por descobrir como exprimir, sem ser por
legendas, as intenções das personagens que representava (ternura, ameaça,
admoestação, etc.), também o sonho consegue evidenciar algumas das relações lógicas
entre os seus pensamentos, modificando convenientemente a sua figuração” (p. 270).
O trabalho Mais adiante (p. 292), ele referir-se-á de forma explícita ao trabalho pictural (e nós
pictural acrescentaríamos: cinematográfico) do sonho, sublinhando que o que este faz é dar
forma figurativa ao pensamento abstracto de onde provém. Esta figuração onírica,
condicionada pela condensação e pela deslocação resultantes da censura, exprime
mal, por exemplo, relações causais: em vez de o acontecimento ou situação a serem
figurados como causa do acontecimento ou da situação b, ambos são oferecidos pelo
sonho em simultâneo (p. 271) ou sucessivamente, mas perdendo-se a conexão causal
entre uma e outra. Anota o autor a este respeito:
“O sonho dispõe de outro procedimento (...) para indicar a relação causal: é a
transformação de uma imagem em outra, tratando-se de uma pessoa ou de uma coisa.
(...) A causação é representada por uma sucessão: sucessão de sonhos [dois ou mais
sonhos que se seguem na mesma noite], ou transformação imediata de uma imagem
em outra. Na maioria dos casos (...), a relação causal não é de todo indicada, antes é
escondida pela sucessão dos elementos que inevitavelmente se produz no processo do
sonho” (p. 272).
Elaboração secundária
QUANTO AO “quarto elemento participante na formação do sonho”, a elaboração
secundária, ele é introduzido na Traumdeutung quase cem páginas depois (p. 382),
do seguinte modo:
“...Prende-nos a atenção o facto de, nos sonhos, se manifestar um poder psíquico que
estabelece o seu encadeamento aparente e que por isso submete o material produzido
pelo trabalho do sonho a uma elaboração secundária”.
Uma fachada A exposição deste conceito só reaparecerá, porém, depois de novo salto explanatório,
ou andaime bem mais adiante, a pp. 416 e ss. Para Freud, procedimentos como o da mise en
narrativo
abîme de um pedaço de sonho são suficientes para revelar um desejo de organização
interna dos seus conteúdos por parte da nova instância que é necessário ter em
conta. De algum modo, portanto — mas é uma hipótese que avanço para além do que
o autor escreveu a este respeito — a elaboração secundária resulta do desejo de
arquitectura narrativa referido por Maldiney: é ela que acrescenta aos conteúdos
manifestos do sonho uma “fachada” ou um “andaime” que, contra o seu carácter
charadístico e independentemente da sua posterior interpretação, visa
proporcionar-lhe alguma inteligilidade. Mas Freud acrescenta que se por vezes a
elaboração secundária dá ao sonho um rosto inteligível, outras vezes falha
completamente a sua missão, não conseguindo sobrepor-se ao amontado de
fragmentos incoerentes (p. 418).
Para o Freud da Traumdeutung e da conferência de 1908, a chave de compreensão
dos procedimentos da elaboração secundária é, precisamente, o tagtraum, o sonho
diurno, que as diferentes línguas europeias traduziam então por day-dream, story,
rêve, petit roman. Adianta ele que a relevância do sonho diurno nunca escapou aos
romancistas (nem aos cineastas, n. a.), dando como exemplo o sonhador de Daudet
em Le Nabab. Os sonhos diurnos, diz Freud, são fantasmas edificados sobre
recordações e não recordações propriamente ditas, e tanto os há conscientes como
inconscientes — estes últimos permanecem tais devido ao seu conteúdo e porque
resultam de material recalcado (p. 419). Mas o que Freud sublinha nesta
apresentação é que eles são “análogos aos nossos sonhos [nocturnos]”, com quem
partilham os seus “traços essenciais”. Diz ele, clarificando a homologia:
“Como os sonhos, também eles são realizações de desejos; como os sonhos, eles
333
Desconstruções/reconstruções narrativas
A SÍNTESE FINAL de Freud é elucidativa sobre a importância dos desenvolvimentos
anteriores e sobre a relativa menorização do “quarto elemento participante na
formação do sonho”: o sonho não pensa, não calcula, não julga: limita-se a
transformar (p. 432). Porque tem de iludir a censura, enganando-a, ele usa
intensivamente a deslocação, o que o leva à transvaloração dos próprios materiais
psíquicos. Porque tem de traduzir pensamentos abstractos e traços mnésicos em
formas visuais e auditivas, torna-se figurativo, o que envolve novas deslocações.
Intensificando essa figuralidade dissimuladora de que se ocupa, procede a um
enorme trabalho de condensação, desinteressando-se das relações lógicas existentes
entre os materiais que condensa (id. ibid.). O sonho procede, assim, por
desconstrução-reconstrução narrativa: desconstrução porque semeia fragmentos
estilhaçados e ininteligíveis; reconstrução porque, em contrapartida, tenta, através
da elaboração secundária, repôr de pé um andaime ou uma fachada narrativa que
sustente, tentativamente, a ligação entre esses fragmentos.
Para quem, fazendo-o com prudentia, aproxima metaforicamente os conceitos de O
trabalho do sonho e alguns dos procedimentos característicos da criação ficcional na
literatura ou no cinema modernos e contemporâneos, a elaboração secundária pode
sugerir a emergência de uma intriga ou enredo que a escrita ou o filme vão tecendo.
Tal estrutura resultaria assim do work in progress que a compreensão de
fragmentos, cenas ou situações vai exigindo. Mas, também metaforicamente, vale a
pena valorizar sobretudo, como Freud, a condensação, a deslocação e os
procedimentos de figuração: são estes trabalhos que mostram maior analogia com
os motores da criação ficcional, pelo menos em tão grande medida quanto o esforço
para dar ao seu agenciamento, o syhuzet final, a forma de uma “fachada” coerente e
inteligível.
“Mefistóteles — Estendamos esta capa, ela nos levará através dos ares; para
uma corrida tão ousada não levarás bagagem pesada. Um pouco de ar
inflamável, que vou preparar, nos levantará em breve da terra e se formos
leves iremos depressa. Felicito-te pelo novo tipo de vida que escolheste!”
Goethe, Fausto, 1808, 1832
ITALO CALVINO (1923-1985) foi um apaixonado pela pintura mas pouco escreveu
sobre fotografia e preferia-lhe o cinema por este propôr um processo narrativo fluido
e produtor de continuidade, mais próximo da escrita romanesca. Desconfiando da
fotografia devido ao seu mimetismo (à sua indexicalidade) face ao real, Calvino temia
um mundo sobrecarregado de imagens, como disse numa das suas “lições
americanas” sobre visibilidade:
335
“Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens que já não sabemos
distinguir a experiência directa do que vemos por uns segundos na televisão”.
Apesar desta desconfiança, os temas que seleccionou para essas lições interessam
directamente o cinema, quer devido aos problemas específicos da sua narratividade,
quer devido ao que ele imagina para criar os seus mundos. Por esse motivo vale a
pena regressar às suas Lezioni Americane, os textos escritos para as “Norton
Lectures” de Harvard de 1985-1986. Ele chamou-lhes Lightness (Leveza), Quickness
(Rapidez), Exactitude (Exactidão), Visibility (Visibilidade), Multiplicity
(Multiplicidade) e a sexta, que não chegou a escrever, seria sobre Consistency
(Consistência); esperava escrevê-la já nos Estados Unidos mas morreu antes de
poder fazê-lo, a um mês de completar 62 anos. A sua viúva, Esther, disse que Calvino
tencionava abordar nela o Bartleby de Melville e que preparava mais duas; uma
delas seria “Sobre começar e acabar (romances)”, de que ficou um escrito
suficientemente autónomo, que tem vindo a ser publicado com as Sei proposte per
il prossimo millenio (Six Memos for the Next Millenium era o working title inglês
do autor) a seguir às cinco concluídas. Mas na verdade o texto de “Começar e acabar”
parece uma apresentação inicial ao conjunto das conferências, ou pelo menos assim
sugerem as suas primeiras e últimas linhas. Lidas as conferências, fica-se com o
sentimento de que leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e
consistência eram porventura para Calvino signos maiores de contemporaneidade,
meta-signos que ele desejava ver transportados para o futuro “sem ter esperanças de
encontrar mais nada nele senão o que seremos capazes de levar” (p. 44): a bagagem
do viajante.
Sempre abordei estes textos com um misto de fascínio e prudência, creio que por três
razões principais. Em primeiro lugar devido à assumida desmesura do seu projecto:
Calvino propõe meia dúzia de tópicos “para o milénio”. Não para a entrada no séc.
XXI, não para os vinte anos seguintes, mas “para o milénio”. Lembro-me de que,
quando Edgar Morin publicou (em 1984) o seu Para sairmos do séc. XX, tive a
sensação que ele se propunha uma síntese excessivamente complexa para um só
livro: não tínhamos nós passado parte do séc. XX a avaliar o XIX? Não passará o séc.
XXI boa parte de si a reavaliar o séc. XX? Propor, como Calvino, tópicos para mil
anos, ultrapassava em demasia o que me parecia tecnicamente plausível; antecipar
tendências para além da curta duração, no domínio da criação literária e artística,
parecia-me desmedido. Acabei pensando que ele se referia, não ao “milénio”, mas à
“passagem do milénio”, e que as suas propostas eram uma pequena escatologia
adequada à travessia de um Rubicão milenarista. Mas ele próprio insistiu, numa das
conferências (Multiplicidade, p. 134) naquela desmesura: “A literatura só vive se se
propuser objectivos desmedidos, mesmo para além de qualquer possibilidade de
realização”.
Em segundo lugar, porque Calvino procede por oposições binárias, sem nunca
invalidar os atributos opostos aos que propõe: falando de leveza, ele respeita e
considera a relevância do peso; falando de rapidez, valoriza igualmente a lentidão (e
quanto a estes dois primeiros atributos o seu interlocutor desejado parece ser Milan
Kundera). Quando aborda a exactidão não esquece a relevância da indeterminação;
quando propõe a visibilidade respeita o invisível; ao defender a multiplicidade não
condena a criação “unitária” (cujo melhor representante lhe parece ser L’amour
absolu de Alfred Jarry). Ou seja, ele sugere as suas escolhas de forma culturalmente
ponderada, sabendo que elas emergem de binómios relativamente contraditórios, ou
pelo menos disjuntivos, que têm a seu favor a travessia resiliente de muito longas
durações. Nesta matéria, a maturidade das suas ponderações compensa a quase
juvenil desmesura do projecto.
Em terceiro lugar porque, sendo italiano e escrevendo para americanos, Calvino fez
questão de enraizar os seus argumentos em fontes nacionais: Giordano Bruno,
Dante, Boccaccio, Cavalcanti, Leopardi, autores menos conhecidos como Carlo
Emilio Gadda, sem esquecer clássicos latinos como Lucrécio e Ovídio, estão entre os
autores mais citados nestas conferências. Como ele explica num curtíssimo prólogo
(p. 13):
336
Isto não significa que o thesaurus de autores citados menospreze o mais extenso
corpus “ocidental”: Homero, Platão e Aristóteles, Cervantes e Flaubert, Baudelaire e
Mallarmé, Borges e Kafka, Ponge e Proust, Joyce e Musil, Beckett e Thomas Mann
emergem, entre muitos outros, a cada passo.
Leveza e rapidez
AO ABORDAR A LEVEZA, diz Calvino que ele próprio tentou “tirar peso à estrutura do
conto e à linguagem” (p.17), em sintonia com o facto das mudanças tecnológicas
estarem a aligeirar prodigiosamente os conteúdos do mundo actual: “Continuam a
existir máquinas de ferro, mas obedecem aos bits sem peso” (p. 22). O De rerum
natura de Lucrécio e as Metamorfoses de Ovídio vêm, aqui, em seu apoio: o primeiro
porque Lucrécio acreditava que a matéria era feita de imponderáveis átomos
invisíveis, o segundo porque o mundo de Ovídio era feito de não menos
imponderáveis qualidades, atributos e formas. O conflito entre o leve e o pesado, de
que Calvino parte, é por ele expressa do seguinte modo:
“Duas vocações opostas disputam o campo da literatura através dos séculos: uma tem
tendência para fazer da linguagem um elemento sem peso, que flutua sobre as coisas
como uma nuvem, ou melhor, como uma finíssima poeira, ou melhor ainda como um
campo de impulsos magnéticos; a outra tende a comunicar à linguagem o peso, a
espessura, a concreção das coisas, dos corpos e das sensações” (p. 29).
Entre as duas “vocações” ele escolhe a primeira, na senda de Valéry: “Devemos ser
leves como o pássaro (...)” (p. 30). E cita a célebre passagem de Cervantes em que
Quixote trespassa uma vela de moinho e é por ela projectado no ar: são uma dezena
de linhas de texto sem uso de quaisquer recursos estilísticos, mas que se tornaram
“numa das passagens mais famosas da literatura de todos os tempos” (p. 32). Eis a
referida passagem do Quixote:
“...Dio de espuelas a su caballo Rocinante, sin atender a las voces que su escudero
Sancho le daba, advirtiéndole que, sin duda alguna, eran molinos de viento, y no
gigantes, aquellos que iba a acometer. (...) Levantóse en esto un poco de viento y las
grandes aspas comenzaron a moverse, lo cual visto por don Quijote, dijo:
— Pues, aunque mováis más brazos que los del gigante Briareo, me lo habéis de pagar.
Y, en diciendo esto, y encomendándose de todo corazón a su señora Dulcinea,
pidiéndole que en tal trance le socorriese, bien cubierto de su rodela, con la lanza en el
ristre, arremetió a todo el galope de Rocinante y embistió con el primero molino que
estaba delante; y, dándole una lanzada en el aspa, la volvió el viento con tanta furia que
hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al caballero, que fue rodando muy
maltrecho por el campo”.
Na verdade, Dom Quixote não “levanta voo”, antes vai “rodando muy maltrecho por
el campo”. Mas a leveza, a ascenção, o voo estão na literatura desde que a
conhecemos: nos contos maravilhosos estudados por Propp, recorda Calvino, o herói
Anjos e voa pelos ares como os anjos, como o xamã se elevava para outro nível de percepção
ultra-leves ou como as bruxas voavam a cavalo em vassouras e em espigas ou palhas (pp. 42-
43). A Europa do séc. XVIII descobre os encantos dos tapetes voadores, dos cavalos
alados e dos génios que saem (subindo) de lâmpadas nas Mil e uma noites. Parece
existir, conclui ele, um nexo antropológico entre “a levitação desejada e a privação
sofrida”, sendo a leveza uma “reacção ao peso de viver” (p. 42), que se estenderá até
ao misterioso Kübelreiter (o cavaleiro do balde) de Kafka (p. 43).
Porque a rapidez, tema da segunda conferência, assenta na “economia da narração”
(p. 50), na sinopticidade e na velha fórmula siciliana “lu cuntu nun metti tempu” (o
conto não perde tempo, p. 51), depressa entendemos que ela é uma aliada da leveza.
Calvino, para quem os mestres da “escrita breve” e da “concisão” eram
indiscutivelmente Jorge Luís Borges e Francis Ponge, foi ele próprio um cultor da
short story e do fragmento em Palomar, Le città invisibile ou Le cosmicomiche:
337
Uma nota marginal sobre Borges: Calvino diz dele (p. 66-67) que a sua invenção de
si próprio como narrador (eu preferiria dizer: a invenção de si próprio como meta-
narrador) “foi o ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueamento que o
impedia, desde os 40 anos, de passar da prosa ensaística à prosa narrativa”. Fingindo
que o que pretendia escrever já fora escrito por outro, por um autor imaginário que
ele citaria e comentaria, e que os seus comentários seriam referíveis a livros e autores
de uma biblioteca tão real como imaginária, Borges inventou uma “literatura
potencial” que tanto abre para ficções como para cosmogonias infinitamente
labirínticas, e por isso mesmo rizomáticas (a expressão “literatura potencial” vem do
Oulipo, Ouvroir de littérature potentielle, o grupo parisiense onde Calvino
conheceu, em 1968, Raymond Queneau, Barthes, Pérec e Lévi-Strauss).
Apesar de Calvino considerar que “escrever prosa não deverá ser diferente de
escrever poesia”, porque em ambos os casos “se trata da procura de uma expressão
necessária, única, densa, concisa, memorável” (p. 65), o facto é que a tensão entre
rapidez e lentidão invoca a precedente, entre leveza e peso: ele sabe sobre si mesmo
que nele coexistem a influência taciturna e melancólica de Saturno e a agilidade O saturnino
alada de Mercúrio. Saturno é lento e pesado, Mercúrio rápido e aéreo: ele próprio, que sonha ser
mercurial
Calvino, é “um saturnino que sonha ser mercurial” (p. 68). Tal bipolaridade resolve-
se, nele, por intromissão de um terceiro, Vulcano, o artesão concentrado nas suas
338
tarefas, e que por isso não é lento nem rápido, nem leve nem pesado — é o que a
focalização no trabalho da forja lhe exige: a identificação com Vulcano salva-o da
atracção pendular, ou bipolar, por Saturno e por Mercúrio.
A conferência sobre a rapidez não poderia terminar de modo mais eloquente: um rei
chinês pede a um pintor que lhe desenhe um caranguejo; o pintor diz-lhe que, para
o fazer, precisará de cinco anos e de uma casa com doze criados. O rei concorda;
passados cinco anos o pintor diz-lhe que precisa de outros tantos anos e ainda da
casa e dos criados, e o rei concorda outra vez. No fim dos dez anos contratados, o
pintor pega no pincel e, num só instante e de um só traço, desenha o caranguejo mais
perfeito que jamais se viu (p. 70).
Exactidão e multiplicidade
NA CONFERÊNCIA sobre a exactidão, Calvino começa por definir com clareza o seu
objecto: “Exactidão para mim quer dizer sobretudo três coisas: 1 - um projecto da
obra bem definido e bem calculado; 2 - a evocação de imagens visuais nítidas,
incisivas, memoráveis (ele lembra que em italiano existe um adjectivo que não existe
em inglês, ‘icástico’, do grego εικαστικός, quase sinónimo de icónico, e que se diz
daquilo que representa, claramente e sem artifícios, objectos ou ideias); 3 - uma
linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as
nuances do pensamento e da imaginação” (p. 73). Sublinho a relevância, aqui, do
adjectivo “icástico”, pelo peso que virá a assumir na conferência, posterior, sobre a
visibilidade.
Alguns autores representam para Calvino a procura do rigor e da exactidão que ele
pretende ver recuperada: sobretudo a fileira que remonta de Valéry a Mallarmé, a
Baudelaire e a Edgar Allan Poe. Por momentos, Calvino parece levar-nos a território
wittgensteiniano, onde entrariam em relação complementar a sinopticidade e a
Sinopticidade e panoramicidade da linguagem, ou mais precisamente da gramática. Cada frase, cada
panoramicidade
texto deveriam ser construídos por forma a produzir um efeito de compressão
sinóptica que ao mesmo tempo se abrisse para o panorama dos seus significados
mais vastos. A este respeito, ele evoca a célebre declaração de Flaubert, para quem
“Le bon Dieu est dans le détail” (o bom Deus está no pormenor) (p. 86). Mas a sua
explanação cedo se dirige para a defesa de duas outras figuras que representam os
poderes da linguagem rigorosa: o cristal, o “modelo de perfeição” que ele mais tem
procurado, “imagem de invariação e de regularidade de estruturas específicas”, e a
chama, “imagem de constância de uma forma global exterior, apesar da incessante
agitação interna” (p. 88). Diz Calvino ue “existe um partido do cristal na literatura
do nosso século”, mas que poderia igualmente falar-se de um “partido da chama” (id.
ibid.).
339
No fim da sua conferência sobre a multiplicidade, Calvino reafirma que “cada vida é
uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objectos, um catálogo de estilos
onde tudo pode ser constantemente remexido e reordenado de todas as maneiras
possíveis”. Mas para quê lidar com a literatura como com essa figura da vida? “Para
fazer falar o que não tem a palavra, o pássaro que poisa no beiral, a árvore na
Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico” (p. 145) — o
programa de Ponge. Este movimento é nele invariante: da complexidade
infinitamente reorganizável, Calvino quer sempre regressar ao pormenor da
superfície onde reside a leveza, a rapidez e até o bom Deus de Flaubert. A
multiplicidade não se opõe à exactidão, antes se requerem uma à outra.
340
Começar e acabar
COMPLEMENTANDO esta reflexão sobre a expansão interna de parte das ficções
modernas e contemporâneas, o texto talvez inconcluído sobre “Começar e acabar
(romances)” ocupa-se dos incipit predominantes na história da literatura e das suas
diversas figuras, desde o “Era uma vez” e da cena fixa da dramaturgia clássica aos
romances dos sécs. XVII a XIX, que começavam por apresentar personagens e factos
bem localizados no tempo e no espaço (mesmo quando se limitavam ao “Call me
Ishmael” de Melville) e aos inícios in media res de Turgueniev, Tolstoi ou
Maupassant. Calvino repertoria um considerável conjunto de inícios saídos de
diversos moldes narrativos, sublinhando que há habitualmente mais força e
determinação neles do que nos finais, que se foram tornando cada vez mais
indeterminados, não correspondendo necessariamente ao ponto para que parecia
apontar a acção narrada. Em Fim dos fins e fechamento da obra (v. infra, Vol. II),
desenvolvi uma reflexão relacionada com a de Calvino sobre o acabamento e o
inacabamento da obra. Em “Começar e acabar”, que talvez estivesse destinado a
fornecer material para a conferência final sobre a consistência, Calvino evoca O
narrador de Walter Benjamin para se focar no contador de histórias capaz de
transmitir “o sentido da vida” a partir da experiência, e o ensaio de Auerbach sobre
a técnica de construção da novela, de onde extrai a seguinte citação, que exprime
com clareza a sinopticidade de Wittgenstein:
“Para escrever uma novela tinha de se cumprir a seguinte tarefa: da infinita abundância
dos acontecimentos sensíveis tinha de se focar um em especial, e desenvolvê-lo depois
com os seus principais pressupostos de modo que pudesse ser representativo daquela
abundância” (pp. 156-157).
depois montadas na moviola. Este cinema mental funciona sempre em todos nós —
sempre funcionou, já [desde] antes da invenção do cinema — e nunca deixa de
projectar imagens na nossa imaginação interior” (p. 103).
Hoje entendemos que imagens visuais como as de Dante no Purgatório nos vêm do
inconsciente individual (Freud) ou colectivo (Jung), do tempo reencontrado pela
rêverie narrativa (Proust), de concentrações epifânicas de sentido num único ponto
ou instante (o Aleph de Borges, a sinopticidade de Wittgenstein) ou da senciência
fitzgeraldiana de António Damásio. Vale a pena recordar aqui o que Damásio
escreveu sobre o “filme-no-cérebro”, formado por “um fluxo contínuo de imagens
(...) que avança no tempo, rápido ou lento, ordenadamente ou aos trambolhões, e às
vezes segue não uma, mas várias sequências. Às vezes as sequências são
concorrentes, outras vezes convergentes e divergentes, ou ainda sobrepostas”.
Acrescenta ele ainda, sobre a produção desse “filme”:
“A minha solução para o problema da mente consciente é que o sentido do ‘eu’ no acto
de conhecimento surge dentro do filme. A auto-percepção é na verdade parte do filme
e cria assim, dentro do mesmo quadro, o ‘que é visto’ e o ‘que vê’, o ‘pensamento" e o
‘pensador’. Não existe um espectador independente para o filme-no-cérebro. A ideia
de espectador é construída dentro do filme, e nenhum homúnculo fantasmagórico
assombra [esse] cinema”.
Mas, como escreveu D. R. Hofstadter aqui citado por Calvino (p. 107), saberemos
nós, como o criador literário (der Dichter) ou o artista, de onde lhe vem tudo isso?
“Só muito vagamente. A maior parte da sua fonte, como um iceberg, está
profundamente imersa na água (...)”. Eis o que nos separa de Dante e do imaginário
medieval: ele acreditava que todas essas imagens visuais lhe chegavam directamente
da fonte celeste, ou seja, de Deus, ou seja, do mundo das ideias de Platão.
Por outras palavras: mesmo que eu não seja capaz de entender a ligação entre o seu
conteúdo manifesto e o conteúdo latente que a gerou. Por exemplo, a imagem de
“um homem cortado em duas metades que continuavam a viver independentes uma
da outra”; ou a de um rapaz “que trepava a uma árvore e depois saltava de uma para
outra sem nunca mais pôr os pés no chão”; ou ainda a de “uma armadura vazia que
se mexe e que fala como se tivesse alguém lá dentro” (id. ibid.). Atente-se na natureza
das imagens a que Calvino aqui se refere: sendo ele um ficcionista “fantástico” e
342
Le chef-d’œuvre inconnu
NUMA VASTA METÁFORA FINAL respeitante ao modo como se transportaria a
visibilidade e a imaginação icástica individual para o terceiro milénio, Calvino
sugere que o primeiro texto que premonitoriamente exprimiu a agudeza e as
dificuldades das escolhas icásticas foi talvez Le chef-d’œuvre inconnu de Balzac (cf.
as nossas referências a La belle noiseuse de Rivette em Cinema e estudos interartes).
De “conto fantástico” na versão de 1831, passou a “estudo filosófico” na de 1837, e ao
longo desses sete anos de acrescentos e reescritas Balzac hesitou entre apresentar o
velho pintor Frenhofer como um “vidente” ou um “louco”, fazendo-o, na prática,
oscilar entre dois regimes de loucura. Na versão final, os seus amigos Pourbus e
Poussin não entendem a tela que ele pintou (na primeira tinham-na gabado apesar
da estupefacção que ela lhes provocava) e ele refugia-se no seu atelier, incendeia-o e
morre. A maior parte da recepção de Le chef-d’œuvre inconnu entendeu o conto
como uma parábola sobre os caminhos que a arte moderna se preparava para trilhar;
mas Calvino diz que a leitura de Fenêtre jaune cadmium, de Hubert Damish, o fez
compreender que “o conto também pode ser lido como uma parábola sobre a
literatura” (p.116): há um mundo onde vivemos a vida vivida com as suas formas de
ordem e desordem; há outro, o da fantasia do artista, onde se manifestam
potencialidades que a obra só muito dificilmente conseguirá pôr em acção. E depois
há um terceiro mundo “mais governável, menos refractário a uma forma”, onde “as
camadas de palavras se acumulam nas páginas como as camadas de tinta sobre a
tela”, gerando as figurações que Giordano Bruno atribuiu ao spiritus phantasticus
(p. 117-118).
No seu Por quê ler os clássicos, Calvino ironiza sobre o modo como nos referimos a
eles — é a sua primeira definição do que são os clássicos: “Os clássicos são aqueles
livros de que costumamos dizer: Sim, estou a relê-lo, e nunca Sim, estou a lê-lo”,
porque ninguém gosta de reconhecer que não leu determinado texto canónico.
Adiante, ele acrescenta que devia haver, na vida adulta, um tempo reservado a
repetir as leituras mais importantes da juventude; se os livros são os mesmos, nós
mudámos e o reencontro é um acontecimento inteiramente novo. Ainda mais
adiante, nas suas duas últimas definições do que é um clássico (a 13ª e a 14ª), diz ele
que “é clássico o que tende a relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo,
mas que ao mesmo tempo não pode prescindir desse ruído de fundo”; e, jogando
com o paradoxo, diz a seguir que “é clássico o que persiste como ruído de fundo, Os clássicos
e o ruído
inclusive onde a actualidade mais incompatível se impõe”. Creio que é esta aporia,
344
As seis propostas para o próximo milénio tornaram-se num clássico que vale a pena
reler nel mezzo del cammin di nostra vita, não só por defender uma pedagogia da
imaginação icástica contra a “peste da linguagem” e o “dilúvio de imagens pré-
fabricadas” (que nos obrigam a reciclá-las ou a fazer o vácuo em torno de nós), mas
igualmente por reconsiderar persistentemente meia-dúzia de meta-signos
compósitos, também eles clássicos, em companhia dos quais Calvino desejaria ter
entrado no séc. XXI. Leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e
consistência perderam, com ele, o carácter de valores resultantes de uma escolha
arbitrária e tornaram-se num vasto património do trabalho criativo, quando o
observamos nos tempos modernos e contemporâneos, como quando os estudamos
na longa duração. ¢
last
345
recepção crítica erudita, alargou a audiência cinéfila do seu nicho original e ganhou
espaço de mercado, convicto da sua capacidade para alterar o gosto dos amantes de
cinema.
Quase meio século depois da sua “carta alemã”, mas ainda em reminiscência do
programa logoclasta, escrevia Beckett quase a abrir Worstward Ho (de 1982,
publicado em 1983), um dos seus últimos textos (Prá Frente o Pior, na tradução
brasileira de Ana Helena Sousa, Pioravante Marche na do português Miguel Esteves
Cardoso, Cap au pire (Direitos ao pior), aceite pelo autor, na versão francesa de
Edith Fournier):
“All of old. Nothing else ever. Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again.
Fail better.” Esboço de tradução: Tudo antigo. Nunca outra coisa. Nunca tentado.
Nunca falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor. [Na
versão de M.E.C.: Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca
ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor. Na de
Edith Fournier: Tout jadis. Jamais rien d’autre. D’essayé. De raté. N’importe. Essayer
encore. Rater encore. Rater mieux.]
Traduções: neste caso, quase transcriações de um texto deliberadamente difícil
porque reduzido ao osso, sucessão de sintagmas feitos de haicai. Os pontos finais e
alguns pontos de interrogação (única pontuação do texto, para além dos separadores
—) travam a dinâmica da construção discursiva e dividem as frases em micro-
segmentos semânticos que se sustêm uns aos outros par étayage, por mero
“encosto”. Cada segmento, muitas vezes de duas ou três palavras, é o que resta de
uma declaração truncada, incompleta. Esta escolha da linguagem como ruína,
restolho de uma paisagem narrativa devastada ou resto moribundo de uma terra
queimada, dá forma a um estilo que Beckett cultivou longamente e que o “teatro do
absurdo”, ou “da derrisão”, em parte adoptou.
Tresleituras fortes
TALVEZ ESSES PROTAGONISTAS desejem ainda ouvir, na sua solidão, other voices, other
rooms e sentir-se por elas, mas não com elas. Creio que é possível ler a obra de
Beckett como um grito que persistentemente exprime, recusando calar-se e abdicar
de discurso, o “absurdo” e a “derrisão” da existência humana, no sentido que lhe deu
a “filosofia do absurdo” francófona, também ela nascida na e da Segunda Guerra.
Os raptores Mas o Fail better que o inglês também permite traduzir no imperativo — Tenta outra
da auto-ajuda vez. Falha outra vez. Falha melhor — foi entretanto desviada pelas seitas da auto-
ajuda e pelos seminários anabolizantes do empreendedorismo: Richard Branson,
criador do grupo Virgin, fê-la sua no fecho de um artigo sobre o futuro da sua
multinacional de capital de risco. E Mark O’Connell (2014), colunista da Slate Books,
diz tê-la ouvido em circunstâncias ainda mais medusantes:
“A mais bizarra e dissonante invocação do fail better (...), ouvi-a na sessão de
encerramento de uma conferência sobre tecnologia em Dublin, em Outubro (2013). No
palco estavam o primeiro-ministro irlandês Enda Kenny, Elon Musk (fundador da
PayPal, Tesla Motors e Space X) e Shervin Pishevar (bilionário do capital de risco
ligado ao Tyra Banks). No fim, o moderador (...) evocou a great line de Beckett ‘Ever
tried ... Fail better’, acrescentando: And that’s what keeps me going, in many ways”
(e é ela que me faz continuar, de muitos modos).
Detestava todos os clichés que utilizavam; queria escrever sobre algo que fosse
genuíno. Algo que tentasse descrever por que razão era uma pessoa capaz de cometer
o pior dos pecados, tirar a vida a outro ser humano”.
Ora, este já fora o programa de Simenon (que conflito, por vezes muito antigo, pode
levar uma pessoa a matar outra?), depois repetido nos universos e atmosferas de
Ruth Rendell, Patricia Highsmith, Magdalen Nabb.
Farão Farão estes autores história, ou, depois do seu êxito de circunstância, estarão
história? condenados às estantes de férias onde a maioria dos trhillers vive as suas segundas
vidas? A probabilidade de qualquer deles vir a integrar o cânone da “grande
literatura” tal como a crítica erudita a entende é mínima, dada a sua conformidade
aos padrões de um subgénero acentuadamente comercial-epocal, que os impede de
ultrapassar o limiar de temas, estilos e linguagens menos dependentes das suas
convenções. A probabilidade de um deles vir a integrar o cânone da literatura policial
tal como os seus públicos a entendem existe, e nesse caso a sua relevância será um
dia reconhecida na história do género, como sucedeu a Dashiell Hammet ou a
Raymond Chandler. Mas o mais provável é que lhes seja difícil afirmar a sua marca
autoral fora do enxame que os determina. A minha curiosidade por tal enxame deve-
se, aqui, à porosidade entre alguns dos textos que escrevem e dois subgéneros
cinemáticos também eles comerciais-epocais: o do blockbuster pós-clássico e o das
séries televisivas, onde a violência ganhou espaços com que os antigos códigos
censórios, hoje hesitantes e em retracção, nunca sonharam. E também ao facto de os
seus autores convergirem em estratégias narrativas e em “normas de coesão” muito
partilhadas. Ao mesmo tempo, o seu arquivo audiovisual tornar-se-á numa arca
eventualmente útil para a reconstituição do que terão sido algumas das ficções mais
populares do início do século XXI.
face às outras. Há autores que dão a este fio da trama expressão tipográfica
autónoma, acentuando a sua lateralidade — mancha de página ou formato próprio,
mudança de fonte tipográfica, de lay-out da página. Por vezes é esse registo
heterogéneo, que só tardiamente faz corpo com os restantes, que é decisivo na
compreensão do(s) desfecho(s), dele dependendo as explicações finais a que Agatha
Christie, in illo tempore, tanto recorreu (veja-se, entre outros, Os diários secretos de
Läckberg).
7. As personagens são construídas a partir da repetição das suas rotinas quotidianas,
da sua vida privada: reformado soturno que sempre à mesma hora passeia o cão;
mãe que de manhã leva as crianças à escola antes de mergulhar, atrasada, nos seus
afazeres profissionais; pai de família cuja imagem depende da sua capacidade para
manter soterrado certo acontecimento do passado; antigo colega de escola que se
tornou borderline e bipolar; adolescente de há anos atrás que passou a traficar droga
ou pior; filha que vive no fio da navalha entre um comportamento não-problemático
e uma cada vez maior propensão para o desvio e a deriva; tia-ou-avó-refúgio que
passa a vida a oferecer apetitosos bolos de canela. E estas novelas são também
thrillers psicológicos que seguem os dramas interiores das personagens ou de parte
delas, ou deles dão testemunho por mera observação exterior: as vulnerabilidades
das personagens estão à vista.
8. As rotinas diárias, base narrativa onde ocorrem os inciting incidents e os turning
points da história, são muitas vezes actividades profissionais mais ou menos
minuciosamente descritas, como noutro tipo de novelas fizeram autores como Ian
McEwan. A leitura da história oferece, assim, uma viagem suplementar ao leitor —
ele entra em contacto com uma profissão ou actividade que conhece mal: o que faz
em concreto um neurocirurgião, o juiz de um tribunal de menores, um patrão de
pesca, um hacker informático, um artista plástico, um galerista? Mas aqui há risco
de vernismo ou salgarismo: explode uma discussão violenta entre o capitão Nemo e
o seu imediato, mas Verne deixa entrever a fauna submarina pela escotilha do
Nautilus e passa as próximas dez páginas a descrevê-la; quando voltaremos ao
conflito entre os dois homens? O tigre da Malásia, nos Sandokans de Salgari, escapa-
se in extremis entre a vegetação subtropical: as próximas dez páginas descrevem a
flora da floresta; quando voltaremos à caçada?
Cenários 9. Os cenários onde as histórias se desenrolam são, salvo excepção, reais e
reais correspondem com rigor à topografia, topologia e toponímia locais: Estocolmo, Oslo
ou Helsínquia, pequenas vilas costeiras como a Fjällbacka de Camilla Läckberg ou
localidades menores, são deliberadamente reconhecíveis nos textos, com as suas
ruas e bairros, avenidas e parques, bem como os seus cafés, bares, outros comércios.
Estocolmo criou itinerários turísticos que revisitam as locations urbanas de Larsson
(como Dublin fizera com os lugares de Joyce e Londres com os de Jack the Ripper).
A aposta consiste em injectar ficções em lugares que os leitores conhecem bem ou
conhecerão se os visitarem. No cinema, esta opção foi também a das primeiras
longas-metragens da nouvelle vague: Les 400 coups de Truffaut ou À bout de souffle
de Godard mostravam uma Paris imediatamente reconhecível pelos espectadores.
Nos scandi noirs, este princípio é extensivo a todos os espaços da acção, envolvendo
répérages de itinerários ou de lugares de encontro necessários ao enredo. Já Eça o
fizera, escrevendo sobre os hotéis e restaurantes de Lisboa e Sintra ou sobre o
hipódromo de Belém em Os Maias, de 1888.
10. Estes autores não desdenham flirtar com a modernidade corrente ditada pela
moda e pelas facilities do consumo: se uma personagem de Larsson muda de casa,
vai à IKEA comprar uma dúzia de móveis, entre os quais “um polivalente de arrumos
Ivar, um armário de três portas Pax Nexus e uma cama Lillehammer”, decerto
constantes do catálogo da loja daquele ano. E moda e Zeitgeist invadem o perfil das
personagens: a cyberpunk Lisbeth Salander, com as suas tatuagens e piercings, é
uma borderliner bissexual, xadrezista e apaixonada por matemática, além de hacker
— traços que detalham o retrato de uma jovem inteligente e autónoma, mas sempre
à beira de perturbação psicológica forte. Em compensação, o seu aliado Mikael
Blomkvist, mais estável e espécie de alter ego do autor, é um clássico jornalista de
investigação vindo da velha galáxia Gutenberg.
357
11. Boa parte dos autores de scandi noirs são politicamente cépticos e não confiam
no establishment: na trilogia Millenium, que mostra o lado negro da Suécia, as
implicações políticas e profissionais das opções feitas pelas personagens têm um
peso marcante; elas conhecem o poder e suas corrupções e observam-no
criticamente; aceitam negociações e pressões que mudarão as suas vidas; conhecem
a chantagem dos micro e biopoderes com que vivem paredes-meias. São, ou
“idealistas” ou “realistas” que tentam manter-se à margem dos comportamentos que
revelam os vícios da sociedade. Não são indignados no sentido político recente nem
resignados: obedecem a uma ética pessoal que respeita metade das regras do jogo
investigativo e desrespeita a outra metade.
12. Uma última nota: parte destes autores refere-se a acontecimentos reais que
datam a acção — momentos políticos, conteúdos televisivos datados, provas
desportivas que marcam um instante. Mas o risco desta prática é elevado: muitos
leitores estrangeiros não reconhecem as referências e precisam de notas de rodapé
do tradutor (frequentemente fornecidas).
Há uma tradição de crítica sociopolítica vinda dos anos 60 e 70 do século XX que
marca parte da nova geração de autores destes noirs. Henning Mankell diz que a
série de dez novelas com o protagonista Martin Beck, escritas por Maj Sjöwall e Per
Escritos nas
Wahlöö entre 1965 e 1975, “mudou a tendência da anterior ficção criminal”: são esquadras
thrillers cépticos e críticos. Sjöwall e Wahlöö influenciaram neófitos nas décadas
seguintes e criaram, em parte, o mood dos scandi noirs. Larsson, jornalista,
especializara-se no estudo de organizações neonazis e de extrema-direita, do racismo
e da violência contra mulheres. Mankell tanto se ocupa de adolescentes assassinos
(Firewall) como da exploração de imigrantes (The Dogs of Riga), suspeitando, como
o seu personagem Kurt Wallander, que a sociedade sueca não sobreviverá à
desintegração dos seus valores. Os noirs escandinavos são um confessionário onde
o lado negro da região se retrata. Jørn Lier Horst, ex-polícia norueguês, interrogava-
se, no festival de literatura de Jaipur (Índia, 2014: Crime e Castigo), sobre o
“segredo” dos scandi noirs, admitindo que atractivos internacionais do género são,
além da melancolia escandinava (invernos escuros, sol da meia-noite, desolação das
grandes paisagens), o retrato de sociais-democracias atacadas, por dentro, pelo
crime e a corrupção. Dizia ele (em The Hindu, 5.4.2014) que muitos dos seus autores
tomam o partido dos perdedores da sociedade e alimentam preocupações políticas
nos seus leitores, “longe da literatura de entretenimento”: as detective stories
contrabandeiam, como sucedeu nos EUA, o cepticismo político. Mas o caso Horst
exemplifica uma tendência nova: há entre estes autores antigos polícias que trazem
para os livros o que aprenderam nas investigações criminais. Serão os próximos
autores polícias que viram costas às esquadras a favor da escrita de novelas?
Beneficiarão de licenças sem vencimento para as escrever? Escrevê-las-ão
directamente nas esquadras?
Os industriosos maneirismos dos scandi noirs geraram um pomar de vida curta,
onde poucas árvores sobreviverão. É inevitável que produzam um efeito de saturação
e que só uma mão-cheia de autores lhe sobrevivam. Mas demonstraram que, mesmo
se vetusta, a pirotecnia de um subgénero ainda gera públicos e “oportunidades”, se
pagar religiosamente o seu tributo aos temas ficcionais que de mil modos a
precedem: violência e morte, fome de poder e de sexo, de justiça ou de vingança, de
sobrevivência a todo o custo — o velho empório de Eros e Thanatos.
Notas
1. Os textos de Benjamin aqui citados foram reunidos em Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, tr.
port. da Relógio d’Água, 1992.
2. O “manual” de Castelvetro (1570) foi precedido por traduções e comentários latinos e italianos do texto
de Aristóteles. No seu reencontro com a “doutrina clássica”, os italianos impõem à dramaturgia princípios
rígidos, tidos por intemporais: o cânone aristotélico é por eles tornado numa máquina censória que
inspira anátemas e estabelece um padrão que tem de ser respeitado. Robortello e Maggi são os arautos do
ataque ao humanismo renascentista: o que para eles conta é que a Poética de Aristóteles se traduza em
preceitos para o ensino autoritário da construção de enredos: as letras devem educar (docere), comover
(movere), dar prazer e seduzir (placere). Longe dos hedonismos pagãos, esta conversão à rigidez agrada
ao Vaticano do concílio de Trento, iniciado em 1545: Aristóteles já fora suficientemente “domesticado”
por Tomás de Aquino e os escolásticos na Idade Média, não constituindo, para a Igreja, uma ameaça pagã.
E a Poética, que consagrava a purificação do terror e da piedade, convinha às virtudes que o catolicismo
exaltava.
3. Reproduzo a seguir o esquema gráfico do “paradigma de Syd Field”, modelo construtivista para a longa-
metragem ficcional (primeira formulação em Screenplay: The Foundations of Sreenwriting, 1979;
segunda formulação, incluindo o “MiddlePoint”, em The Screenwriter’s Workbook, 1984). A introdução
do “Middle Point” alterou, mas apenas na terminologia, a estruturação anterior, segmentando a história
em quatro actos ou partes de igual duração. Para outros autores, os “plot points” e o “middle point” de
Field são outra designação para os mais antigos “turning points” que fazem avançar a intriga ou enredo.
O “inciting incident”, abaixo representado, não é um conceito de Field, mas de McKee (em Story...). Nesta
concepção, um filme de duas horas contém dezenas de “turning points”; mas Field seleccionou, com base
na análise de filmes, os “turning points” que constituem os principais pilares da arquitectura narrativa, e
que são supostos sustentar e provocar mudanças significativas de direcção na história que está a ser
contada. Hitchcock, por exemplo, considerava que tinha de surpreender o espectador a cada cinco
minutos de filme, sob pena de o desinteressar do que se passava no ecrã. (Sobre a permeabilidade entre
os modelos construtivistas de três, quatro e cinco actos, cf. Mendes, 2009: 51-76, Do Big Game Closed
Plot).
4. Trágicos completos, edições de referência: todas as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides estão
traduzidas nas edições bilingues de Les Belles Lettres, Paris. Outras edições: Tragiques grecs, Eschyle,
Sophocles, tr. do grego antigo por Jean Grosjean, ed. Raphaël Dreyfus, Paris, Gallimard NRF,
Bibliothèque de La Pléiade, nº 193, 1967. Tragiques grecs, Euripide, Théatre complet, tr. do grego antigo
e ed. Marie Delcourt-Curvers, Paris, Gallimard NRF, Bibliothèque de La Pléiade, nº 160, 1962. Em
formato de bolso: Eschyle, Tragédies complètes, Paris, Gallimard, Folio classique, 1982; Sophocle,
Théatre complet, Paris, GF Flammarion, 1993; Euripide, Tragédies complètes I e II, Paris, Gallimard,
Folio classique, 1989 (Vol. I: Le cyclope - Alceste - Médée - Hippolyte - Les Héraclides - Andromaque -
Hécube - La Folie d'Héraclès - Les Suppliantes – Ion. Vol. II: Les Troyennes - Iphigénie en Tauride -
Électre - Hélène - Les Phéniciennes - Oreste - Les Bacchantes - Iphigénie à Aulis – Rhésos, mas, esta,
apócrifa). Les tragiques grecs: Eschyle, Sophocle, Euripide, Théatre complet, Le Livre de Poche, La
Pochothèque. Em inglês: The Complete Greek Tragedies, ed. David Greene, Richmond Lattimore, Mark
Griffith, Gleen W. Most: Aeschylus I e II, Euripides I, II, III, IV e V, Sophocles I e II, University of Chicago
360
Press, 3ª ed., 2013. Em espanhol: Esquilo, Tragedias, Madrid, Editorial Gredos, 1993; Sófocles,
Tragedias, Madrid, Editorial Gredos, 1998; Euripides, Tragedias, 4 vol., Madrid, Gredos, 2000.
5. Eis o que Borges escreveu sobre The Wild Palms em El Hogar, onde era responsável pelas recensões
de obras e autores estrangeiros, em Maio de 1939:
“Que yo sepa, nadie ha ensayado todavía una historia de las formas de la novela, una morfología de la
novela. Esa historia hipotética y justiciera destacaría el nombre de Wilkie Collins, que inauguró el
curioso procedimiento de encomendar la narración de la obra a los personajes; de Robert Browning,
cuyo vasto poema narrativo La sortija y el libro (1888) detalla el mismo crimen diez veces, a través
de diez bocas y de diez almas; de Joseph Conrad, que alguna vez mostró dos interlocutores que iban
adivinando y reconstruyendo la historia de un tercero. También —con evidente justicia— de William
Faulkner. Éste, con Jules Romains, es de los pocos novelistas a quienes interesan por igual los
procedimientos de la novela y el destino y carácter de las personas.
“En las obras capitales de Faulkner —en Luz de agosto, en El sonido y la furia, en Santuario— las
novedades técnicas parecen necesarias, inevitables. En The Wild Palms son menos atractivas que
incómodas, menos justificables que exasperantes. El libro consta de dos libros, de dos historias
paralelas (y antagónicas) que se alternan. La primera —Wild Palms— es la de un hombre aniquilado
por la carnalidad; la segunda —Old Man—, la de un muchacho de ojos descoloridos que trata de
asaltar un tren, y a quien, después de muchos y borrosos años de cárcel, el Mississippi desbordado
confiere una libertad inútil y atroz. Esta segunda historia, admirable a veces, corta y vuelve a cortar el
penoso curso de la primera, en largas interpolaciones.
“Es verosímil la afirmación de que William Faulkner es el primer novelista de nuestro tiempo. Para
trabar conocimiento con él, la menos apta de sus obras me parece The Wild Palms, pero incluye (como
todos los libros de Faulkner) páginas de una intensidad que notoriamente excede las posibilidades de
cualquier otro autor.”
6. Os anos 80 foram os da diluição das doutrinas e da experimentação individual fora das “grandes
narrativas” de que Lyotard se despedira no final da década anterior. Foram também a década do regresso
à pintura, muita dela figurativa e neo-figurativa, e do empório do mercado, resultado do liberalismo
económico e das desregulações de Thatcher e Reagan. Muitos artistas passaram a vender caro os seus
quadros, num ambiente galerístico resultante do mini-boom; parte dessa arte redescobria a sua vocação
comercial e, feita em grandes dimensões, destinava-se a instituições e empresas. A cantora e performer
Laurie Anderson viria a resumir os anos 80 nestes termos: “Good for military spending / Bad for social
activism / Good for very big paintings / Bad for my neighborough” (Bons para os gastos militares / Maus
para o activismo social / Bons para as pinturas muito grandes / Maus para o meu bairro). No cinema, os
anos 80 foram a década que apeou os “modernos” do lugar de referência que tinham ocupado nos vinte
anos anteriores e muitos cineastas regressaram, a exemplo de pintores e arquitectos, a códigos
conservadores e revivalistas, enquanto o discurso crítico legitimava esse regresso em nome de uma
“política das mil flores”: foram os anos de Indiana Jones e de Star Wars, de Raging Bull e de Blade
Runner, de Back to the Future e de E.T., de The Shinning e de Ran, de Blue Velvet e Amadeus, de Tootsie
e Cinema Paradiso: parecia haver lugar “para tudo”, dos blockbusters ao cinema independente.
7. Sobre a metodologia de trabalho de Antonioni, a natureza de “esboços” dos seus guiões e a margem que
deixava às decisões já em pleno plateau, leia-se o que escreveu David Saul Rosenfeld (2007) na nota 4 do
seu «Michelangelo Antonioni’s L’eclisse — a broken piece of wood, a matchbook, a woman, a man»:
“Há três scripts publicados de L'eclisse, que tanto diferem entre si como do filme final (...). O original
italiano foi editado por [John Francis] Lane em 1962 no seu livro L'eclisse di Michelangelo
Antonioni. (...) Os dois outros são o publicado em 1963, em inglês, pela Orion Press e o de 1964 pela
Einaudi, mais próximos um do outro do que da primeira versão. (...) A transcrição dos diálogos do
filme foi depois editada pela L’Avant-Scène Cinéma, nº 419, Fevereiro de 1993, em italiano e
francês. (...) Sobre as rodagens do filme, escreveu Lane: Gianni di Venanzo, director de fotografia,
nunca sabia que trabalho de câmara queria Antonioni até chegarem ao décor. Indovina, a script-girl,
só depois de filmada uma cena sabia como ficaria o shotting script. (...) Quando um plano estava
acabado toda a gente deixava Antonioni sozinho. Era tabu interrompê-lo enquanto ele pensava no
plano seguinte. Quando estava pronto, chamava Di Venanzo e Indovina e explicava-lhes o que queria”.
No seu Ingmar Bergman, Robin Wood (2013: 10-11) propõe uma diferença genérica entre Antonioni e o
realizador sueco: ela consistiria sobretudo na natureza das jornadas que ambos concebem: para Bergman,
a jornada tem um propósito definido que é, salvo acidente, atingido: em Uma lição de amor, David vai a
Copenhaga para recuperar a mulher dos braços do amante e restabelecer a ligação matrimonial perdida;
em Morangos Silvestres, Isak Borg vai a Lund para receber um doutoramento honoris causa; em A fonte
da virgem, o pai dá-se como tarefa vingar a violação e morte da filha; em Saraband, Marianne vai visitar
o ex-marido porque julgou sentir que este a chamava. Em Antonioni, as jornadas tendem a não ser
motivadas por objectivos ou tornam-se derivas erráticas como as de Aldo em Il Grido, a de Lídia em La
notte ou a de Vittoria em L’eclisse, ou falham os seus propósitos, como a de Thomas em Blow Up. Bergman
tende para a conclusividade e Antonioni para a inconclusão e o esvaziamento de sentido. Antonioni visou
longamente a “desrealização” do real através de experiências deceptivas; Bergman tentou passar do real
concreto ao onírico, em obediência à sua convicção de que um filme, “quando não é um documentário, é
um sonho” (o que o levou a elogiar tão fortemente, em A lanterna mágica, o cinema de Tarkovski).
8. Eis o diálogo que precede imediatamente as palavras finais dos Harford em Eyes Wide Shut, muito
próximo do que o script propunha, clarificando a permeabilidade entre sonho, rêverie e realidade de que
a história viveu, e sublinhando o papel dominante de Alice no casal, numa dupla referência às comedies
of remarriage estudadas por Cavel e às screwball comedies dos anos 30 e 40 do século XX, anos do código
Hays:
“Bill: — Que achas que devemos fazer?
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Alice: — (...) Talvez ache que devamos estar gratos por termos conseguido sobreviver às nossas...
aventuras, tenham elas sido reais ou apenas um sonho.
Bill: — Tens a certeza disso?
Alice: — (...) Só tenho a certeza de que a realidade de uma noite, como às vezes a de uma vida inteira,
nunca é a verdade completa.
Bill: — Nem nenhum sonho é nunca só um sonho...
Alice: — ...Pois.... Mas o importante é que agora estamos acordados... E que, com sorte, ficaremos
acordados por muito tempo.
Bill: — Para sempre.
Alice: — Para sempre...? Não usemos essas palavras... elas assustam-me”.
9. É fraca, creio, a probabilidade de Kubrick ter lido o Michel Leiris de L’âge d’homme, originalmente de
1939 (ed. cit.: 1946), auto-retrato memorialista e ensaístico que dedicou a Georges Bataille; mas é forte a
analogia conceptual entre uma passagem do seu livro, sobre “lupanares e museus”, e a cena da orgia em
Eyes Wide Shut. Escreveu Leiris (loc. cit.: 65-67):
“Nada me parece assemelhar-se mais a um bordel do que um museu. Um e outro partilham o mesmo
carácter equívoco e petrificado. Num, as Vénus, Judites, (...) Junos, Lucrécias, Salomés e outras
heroínas em belas imagens imóveis; no outro, mulheres vivas nas suas roupagens características, com
as suas poses, locuções e gestos estereotipados. Num caso como no outro estamos, de certo modo, sob
o signo da arqueologia. Se longamente gostei de bordéis, foi porque também eles participam da
antiguidade, devido ao seu lado mercado de escravos e à prostituição ritual. (...) O que me parecia
mais incrível nesta instituição é que ela envolvesse alugueres: aluga-se uma mulher como se aluga
um quarto de hotel. Comprar uma mulher em vez de a alugar ter-me-ia parecido menos
surpreendente. (...) Hoje, o que mais me toca na prostituição é o seu lado religioso, o seu ritual (...)
tão consagrado (...) que parece vindo da eternidade. Comove-me como os ritos nupciais de certos
folclores, pelo que têm de ancestral e primitivo”.
10. O apontamento sobre No Home Movie adapta e sintetiza o que sobre o filme escrevi em «Absurdo,
como estás? Há quanto tempo... Reencontro em ABR», coord. José Quaresma, 2015.
11. Escreveu Metz a propósito da indústria, do enchimento e do esvaziamento das salas: “A instituição
cinematográfica (...) não é apenas a indústria do cinema (que existe para encher salas e não para as
esvaziar), é também a maquinaria mental —outra indústria— que os espectadores ‘habituados ao cinema’
historicamente interiorizaram e que os torna aptos a consumir filmes.” ...Torna-os aptos a consumir
filmes porque o espectador, antes e para além de se identificar com as personagens e situações da história,
se identifica com o dispositivo cinematográfico propriamente dito, a começar pelo olhar da câmara. Se
assim não fosse, escreve Metz, como perceberia o espectador que uma panorâmica de 360 graus lhe
permite “deslocar-se” na observação de uma paisagem sem ter de mover a cabeça? Vale a pena recordar
que Metz nunca entendeu o estado do espelho de Lacan como matriz das identificações-projecções do
espectador de cinema: em vez dele propôs a ideia de que o cinema e o seu dispositivo criam um estado
fílmico próximo do onírico.
12. O apócrifo atribuído a “Judas” terá sido escrito por gnósticos caínitas na segunda metade do séc. II
(ele aborda uma polémica da época em torno da constituição do aparelho eclesial); é referido desde o fim
desse século por Ireneu, bispo de Lyon (Contra as heresias, livro 1, cap. 31, alínea 1). Foi descoberto em
1978 durante buscas numa gruta que serviu de sepulcro, no deserto egípcio (em Djébel Qarara). O apócrifo
atribuído a “Maria” datará da mesma época, provém do mesmo grupo e também nos chegou em copta
saídico do séc. V, embora se conheçam fragmentos seus em grego, decerto mais antigos.
13. «Continuidad de los Parques», Julio Cortázar (1956), conto de abertura de Final del juego, Buenos
Aires, Editorial Sud Americana, 1964. As Obras Completas de Cortázar estão disponíveis em Clases
Particulares en Lima, pdf, desde 13/01/2016: <https://clasesparticularesenlima.wordpress.com/2015
/06/05/obras-completas-de-julio-cortazar-en-pdf-descarga-gartuita>.
14. Dominique Vivant Denon (1747-1825), personagem ecléctico, grande viajante, desenhador e pintor,
gravurista, arqueólogo, coleccionador e antiquário, diplomata além de autor de teatro e escritor, director
do Louvre sob Napoleão de 1805 a 1812. A primeira edição de Sans Lendemain, de 1777, era assinada
pelas iniciais M.D.G.O.D.R., que segundo um seu prefaciador de 1847 significaria “Monsieur Denon,
Gentilhomme Ordinaire du Roi”. Um monograma, V. D., aparece junto à epígrafe escolhida para depósito
da edição de 1812 na Biblioteca Imperial.
15. A reedição de 1992 do The Linguistic Turn de Richard Rorty inclui dois ensaios finais posteriores,
«Ten Years Later» e «Twenty Five Years Later», que dão conta do distanciamento do autor em relação à
problemática que abordara em 1965. Do segundo destes textos respigo as seguintes passagens: “O que
mais me espanta no meu ensaio de 1965 é o quão a sério levei então o fenómeno do linguistic turn, quão
portentoso ele me parecia (...). As controvérsias em que participei tão a peito em 1965 já me pareciam
vazias em 1975. Mas agora parecem-me antiguidades” (p. 371). Depois, reflectindo sobre o futuro da
filosofia, conclui Rorty (p. 374): “Embora não creia que a filosofia possa acabar, programas de
investigação filosófica com séculos de história podem acabar e alguns acabaram (pense-se no tomismo).
Talvez a ideia de que a filosofia é um campo especial de investigação, dotado de um método especial,
também possa acabar. O fim desta ideia não provocaria, creio, danos à cultura. Se a ‘filosofia’ passar a ser
vista em continuidade com a ciência (como deseja Quine), ou em continuidade com a poética (como
amiúde sugerem Heidegger e Derrida), os nossos descendentes ficarão menos preocupados com questões
sobre o ‘método filosófico’ ou sobre a ‘natureza dos problemas filosóficos’ (...).”
16. Textos e autores citados no anexo sobre os Scandi noirs não remetem para a biliografia final: trata-se,
ora das ficções, fáceis de localizar por pesquisa electrónica, ora de artigos e apontamentos de imprensa
cuja autoria e publicação são referenciados no texto.
362
17. A viragem para os policiais foi, para muitos autores, uma guinada de recurso: Sjöwall foi jornalista e
tradutora antes de se dedicar à literatura de crime; Fossum era uma poetisa premiada; Mankell tinha
escrito sete romances e uma dúzia de peças de teatro sem grande êxito; Larsson começou por trabalhar
numa revista anti-racista, depois noutras de ficção científica, e escreveu artigos políticos. Høeg foi
marinheiro, professor de educação física e dançarino, apesar de ter um mestrado em Letras. Nesser foi
professor até se tornar escritor de whodunits a tempo inteiro. Sara Blædel começou por ser editora e
jornalista.
DURANTE A MAIOR PARTE do séc. XX, o cinema, nas suas salas
escuras, hipnotizou e medusou, alucinou, mostrou aparições.
Ainda hoje o faz. Só um dispositivo mágico-animista poderia ter
exercido tão longamente tais poderes. Mas nos nossos dias,
habitando tanto espaços privados como públicos, visto em casa
ou em qualquer sala de espera em televisores, tablets e portáteis,
misturado e partilhado com imagens comerciais e jornalísticas, a
sua antiga “magia” dilui-se no mundo audiovisual que ele propul-
sionou mas que agora o inclui e menospreza.
Sentidos
os seus filmes já são apenas uma das componentes do novo
universo das imagens em movimento com que convivemos em
ecrãs de todos os formatos, dos painéis animados das auto-estra-
das e corredores do metro aos ecrãs multifunções dos
figurados
telemóveis. A desterritorialização do cinema tornou-o nómada:
ele está um pouco em toda a parte e em parte nenhuma. Apesar
de bem vivo e de subsistir em salas comercias (parte delas vai até
tornar-se háptica: as 4DX), o cinema que a cinefilia amou emigra
cada vez mais para galerias e museus à mistura com a videoarte
Cinema • Imagem • Simulacro • Narrativa histórica e com instalações de cineastas, ou é cultivado por
cinematecas e festivais temáticos e locais, novos templos para
um velho culto. A velha religião do cinema perde parte dos seus
João Maria espaços tradicionais e os seus nichos de público tornam-se mais
selectivos e nostálgicos.
Mendes
Esta paisagem é o pano de fundo da reflexão aqui desenvolvida.
Ela tenta responder à questão que, ao longo de mais de um
século, foi ciclicamente recolocada pela cinefilia: de que falamos
Volume I
quando falamos, hoje, de Cinema?