Alexandre Dumas Memorias de Garibaldi PDF
Alexandre Dumas Memorias de Garibaldi PDF
Alexandre Dumas Memorias de Garibaldi PDF
Sobre a obra:
Sobre nós:
Giuseppe Garibaldi
Alexandre Dumas
Título Original:
Mémoires de Garibaldi (1860)
Ed. Barbudânia
Índice
I – Meus Pais
V – Os Acontecimentos de S. Julião
VIII – Corsário
IX – O Rio da Prata
X – As Planícies Orientais
XI – A Poetisa
XII – O Combate
XIV – Prisioneiro
XV – A Apoleação
XXV – O Cruzeiro
XXVIII – A Cavalo
XXIX – A Retirada
XXXIII – Anita
L – Escrevo ao Papa
LVIII – 3 de Junho
LIX – O Cerco
LX – A Surpresa
LXI – Fim
Alexandre Dumas.
Memórias de Garibaldi
I – Meus Pais
Tinha também a minha parte a cumprir no movimento que devia ter tido
lugar, e havia-a aceitado sem discutir.
Havia entrado no serviço do estado como marinheiro de primeira classe
da fragata Eury dice. A minha missão era alcançar prosélitos para a nossa causa,
e para conseguir este fim tinha feito tudo quanto me era possível.
Dado o caso que o nosso movimento tivesse bom resultado, devia com os
meus companheiros apoderar-me da fragata e pô-la à disposição dos
republicanos.
Não havia querido, impelido pelo ardor que sentia, limitar-me a este
papel. Tinha ouvido dizer que um movimento teria lugar em Gênova, devendo
por esta ocasião apoderarem-se do quartel dos gendarmes situado na praça de
Sarzana. Deixei aos meus companheiros o cuidado de se assenhorearem do
navio, e próximo da hora em que devia rebentar a rebelião de Gênova deitei uma
canoa ao mar e desembarquei na alfândega, gastando poucos momentos a
chegar à praça de Sarzana, onde, como já disse, estava situado o quartel.
Esperei quase uma hora, mas nenhum indicio de rebelião apareceu. Bem
depressa ouvi dizer que tudo estava perdido, havendo-se posto os republicanos em
fuga; dizendo-se também que varias prisões haviam sido feitas.
Como não me tinha engajado na marinha sarda senão para ajudar o
movimento republicano, julguei inútil voltar para bordo do Eury dice, começando
então a pensar nos meios de me pôr em fuga.
No momento em que fazia estas reflexões, alguma tropa prevenida sem
dúvida do projeto de nos apoderarmos do quartel, começou a guarnecer a praça.
Vi então que não havia tempo a perder. Refugiei-me em casa de uma
vendedora de frutas e confessei lhe a situação em que me achava.
A excelente mulher não fez nenhuma reflexão e escondeu-me nos quartos
interiores do seu estabelecimento. No dia seguinte procurou-me uma roupa
completa de camponês, e pelas oito horas da noite saí, como se andasse
passeando, de Gênova pela porta da Lanterne, começando então essa vida de
exílio, luto e perseguição, que, segundo todas as probabilidades, ainda não
finalizou.
Estávamos em 5 de Fevereiro de 1834.
Abandonando os caminhos batidos e trilhados dirigi-me por atalhos para
as montanhas. Tinha bastantes jardins que atravessar, e muitos muros que saltar.
Felizmente estava familiarizado com estes exercícios, e depois de uma hora de
ginástica achava-me fora do ultimo jardim.
Encaminhando-me para Cassiopea, ganhei as montanhas de Sestri, e no
fim de dez dias, ou antes de dez noites, cheguei a Niza, dirigindo-me logo à casa
de minha tia, na praça da Victoria, afim de que ela prevenindo minha mãe lhe
tirasse todos os cuidados.
Descansei um dia, e na noite seguinte parti acompanhado por dois amigos,
José Jaun e Angelo Gostavini.
Chegados ao Var, achamo-lo inundado pelas chuvas, mas para um
nadador como eu, não era isto um obstáculo. Atravessei-o, metade a nado,
metade a vau.
Os meus dois amigos haviam ficado na outra margem. Disse-lhes adeus.
Estava salvo, ou quase, como se vai ver.
Nesta esperança dirigi-me a um corpo de guardas da alfândega; disse-
lhes quem era, e qual o motivo porque havia deixado Gênova.
Os guardas disseram-me que era seu prisioneiro, até nova ordem, e que a
iam mandar pedir em Paris.
Julgando que acharia facilmente ocasião de fugir, não fiz nenhuma
resistência, e deixei-me conduzir a Grasse, e de Grasse a Draguignan.
Em Draguignan meteram-me em um quarto do primeiro andar, cuja
janela sem grades, dava para um jardim.
Aproximei-me dela como se quisesse ver o jardim: da janela ao chão
havia a altura de quinze pés. Dei um salto, e em quanto os guardas, menos
ligeiros e estimando mais as pernas do que eu estimava as minhas, saíam pela
escada, ganhei-lhes muita dianteira, embrenhando-me nas montanhas.
Não conhecia o caminho, mas era marinheiro, e lendo no céu, nesse
grande livro, aonde estava habituado a ler, orientei-me e dirigi-me a Marselha.
No dia seguinte de tarde cheguei a uma vila de que nunca soube o nome, porque
nem tive tempo para o perguntar.
Entrei numa estalagem. Um mancebo e uma mulher ainda jovem
estavam à mesa esperando pela ceia.
Pedi alguma coisa de comer: desde a véspera que não havia tomado
nenhum alimento.
O dono da hospedaria convidou-me para cear na sua companhia e de sua
mulher. Aceitei.
A comida era boa, o vinho do país agradável, e o fogo excelente. Senti
então um desses momentos de bem estar e felicidade, como só se experimentam
depois de se haver passado um perigo, e quando se julga não haver mais nada a
recear.
O dono da hospedaria felicitou-me pelo meu bom apetite, e pelo meu
rosto alegre e prazenteiro.
Disse-lhe que o meu apetite não tinha nada de extraordinário, porque não
tinha comido havia dezoito horas e que o achar-me alegre e satisfeito era por
haver escapado talvez à morte no meu país – e na França à prisão.
Tendo-me adiantado tanto, não podia fazer segredo do resto. O
estalajadeiro e sua mulher pareciam-me tão boas pessoas que lhes contei tudo.
Então, com grande espanto meu, o estalajadeiro ficou pensativo.
– Que tem? Lhe perguntei.
– É que depois da confissão que acaba de fazer, respondeu ele, não tenho
remédio senão prendê-lo.
Dei uma grande gargalhada porque não tomei este dito a sério, e demais
se o fosse éramos um contra um, e não havia no mundo um único homem que eu
temesse.
– Bem, disse eu, mas como julgo que não tem muita pressa, peço-lhe que
me deixe cear com todo o descanso, pois temos muito tempo depois da
sobremesa. E continuei comendo sem mostrar a mais leve inquietação.
Infelizmente vi bem depressa que se o estalajadeiro tivesse necessidade
de ajudantes para realizar os seus projetos, esses ajudantes não lhe faltavam.
A sua estalagem era o lugar onde toda a mocidade da vila se reunia à
noite para beber, fumar e falar da política.
A sociedade do costume começava a reunir-se, e bem depressa estavam
na estalagem mais de doze mancebos, jogando as cartas, bebendo e fumando.
O estalajadeiro não tornou a falar na minha prisão, mas também não me
perdia de vista.
É verdade que não tendo eu a mais pequena mala, não tinha coisa alguma
que lhe assegurasse o pagamento da minha despesa.
Como tinha na algibeira alguns escudos, fiz barulho com eles, o que
pareceu sossegar o meu homem.
No momento em que um dos bebedores acabava, no meio dos aplausos
gerais, de cantar uma canção, ergui o copo que tinha na mão:
– Agora pertence-me, disse eu.
E comecei a cantar o Deus dos bons.
Se não tivesse outra vocação, teria podido fazer-me cantor, porque tenho
uma voz de tenor que cultivada alcançaria uma certa extensão.
Os versos de Beranger, a franqueza com que eram cantados, a
fraternidade do estribilho, a popularidade do poeta, arrebataram todo o auditório.
Fizeram-me repetir duas ou três cópias e abraçando-me todos quando
acabei, gritaram – Viva Beranger! Viva a França! Viva a Itália!
Depois de haver obtido tal sucesso era escusado pensar ser preso; o
estalajadeiro conheceu isso porque nunca mais me falou de tal, ignorando eu, por
isso se ele falava seriamente ou se zombava.
Passou-se a noite a cantar, a jogar e a beber; e ao romper do dia todos os
meus companheiros da noite se ofereceram para me acompanhar, honra que
aceitei sem dificuldade: caminhamos juntos seis milhas.
Com toda a certeza Beranger morreu sem saber o grande serviço que me
prestou.
VII – Entro ao Serviço da República do Rio Grande
Vou dizer algumas palavras sobre o meu pobre amigo Luiz. E porque é
um simples marinheiro não lhe hei de dedicar algumas linhas? Porque ele não é...
Oh! Posso assegurá-lo, a sua alma era bastante nobre para sustentar em todas as
circunstâncias a honra italiana: nobre para afrontar todas as tormentas, nobre
enfim para me proteger, e para cuidar de mim, como se fosse seu filho! Quando
estava deitado no meu leito de agonia, abandonado por todos, e delirava com o
delírio da morte, era Luiz que sentado a cabeceira do meu leito com a dedicação
e paciência de um anjo não se afastava de mim um instante senão para ir chorar
e ocultar as suas lágrimas. Os seus ossos espalhados no Oceano mereciam um
monumento, onde o proscrito reconhecido pudesse um dia dizer as suas virtudes
aos seus concidadãos, devolvendo-lhe as lágrimas piedosas que me consagrou.
Luiz Carniglia era de Deiva, pequeno país do Levante. Não havia recebido
instrução literária, mas supria esta falta por um maravilhoso entendimento.
Privado de todos os conhecimentos náuticos que são necessários aos pilotos,
governava os navios até Gualeguay com a sagacidade e felicidade de um piloto
consumado. No combate que acabo de referir, foi a ele que principalmente
devemos o não ter caído nas mãos do inimigo: armado de um machado estava
sempre no lugar onde havia maior perigo, sendo por este modo o terror dos
assaltantes. De uma estatura elevada e robusta, reunia uma grande agilidade a
um extraordinário valor. Dotado de uma grande bondade nas coisas da vida,
possuía o raro dom de se fazer amar por todos. Infelizmente todos os melhores
filhos da nossa desgraçada pátria têm morrido como este, em terra estrangeira,
esquecidos e sem ter quem derrame uma lagrima por eles!
XIV – Prisioneiro
Depois deste sucesso nada de importante nos sucedeu na lagoa dos Patos.
Começamos a construção de dois novos lanchões. Os elementos primários
tinham-se achado na presa antecedente, e enquanto à sua confecção éramos
coadjuvados valorosamente pelos habitantes da vizinhança.
Tinham-se apenas acabado e armado os dois novos navios de guerra,
quando fomos avisados para nos juntarmos ao exército republicano que então
sitiava Porto Alegre, capital da província.
O exercito e nós não fizemos coisa alguma enquanto estivemos nesta
parte da lagoa.
Não obstante este cerco ser dirigido por Bento Manuel, quem todos
reconheciam grande mérito como soldado, como general e como organizador,
foi este que, depois, traindo os republicanos, se passou aos imperiais.
Pensava-se então na expedição à Santa Catarina. Fui convidado para
tomar parte nela debaixo das ordens do general Canabarro.
Havia no cumprimento deste projeto uma grande dificuldade que era o
sairmos da lagoa, visto que a embocadura estava guardada pelos imperiais.
Na margem meridional estava a cidade fortificada do Rio Grande do Sul,
e na margem septentrional S. José do Norte, vila pequena, mas fortificada
também. Estas duas praças, bem como Porto Alegre, achavam-se em poder dos
imperiais, tornando-se por isso senhores da entrada e saída da lagoa. Possuíam, é
verdade, unicamente estas duas praças, mas elas eram bastante importantes pela
sua posição.
Para homens como os que tinha debaixo das minhas ordens, não havia
contudo coisa alguma impossível.
Formei então o seguinte plano de guerra. Os dois mais pequenos lanchões,
ficavam na lagoa, sendo seu chefe o excelente marítimo Zeferino Dutra. Eu com
os outros dois lanchões tendo debaixo das minhas ordens Griggs e os melhores
dos nossos aventureiros acompanharia a expedição operando por mar, enquanto
o general Canabarro operava por terra.
Era um belo plano, mas era muito difícil a sua execução. Propus então
que se construíssem duas carretas de um tamanho e solidez necessária para
colocar em cada uma delas um lanchão, devendo se atrelar a cada carreta o
número de cavalos e bois suficientes para as poderem puxar.
A minha proposta foi adotada e fui encarregado de lhe dar execução.
Pensando então maduramente nesse projeto, fiz-lhe as seguintes
modificações:
Mandei construir por um hábil carpinteiro; chamado Abreu, oito enormes
rodas de uma solidez a toda prova para poderem sustentar o extraordinário peso
que devia suportar.
Numa das extremidades da lagoa – a que é oposta ao Rio Grande do Sul –
isto é, ao noroeste, existe no fundo de um barranco um pequeno ribeiro que corre
da lagoa dos Patos ao lago Tramandaí, ao qual tratávamos de transportar os dois
lanchões.
Fiz descer a este barranco um dos nossos carros, depois levantamos o
lanchão até que aquele estivesse em cima do carro.
Cem bois mansos foram atrelados, e vi então com grande satisfação o
maior dos nossos lanchões caminhar como se fosse uma pena.
O segundo carro desceu por sua vez, e como no primeiro, obtivemos um
êxito feliz.
Os habitantes gozaram então de um espetáculo curioso e desusado, isto é,
verem dois navios em cima de duas carretas, e puxados por duzentos bois,
atravessarem cinquenta e quatro milhas, isto é, dezoito léguas, sem a menor
dificuldade, sem o mais pequeno incidente.
Chegados à margem do lago Tramandaí os lanchões foram deitados ao
mar do mesmo modo porque tinham sido embarcados.
Necessitavam de alguns pequenos reparos, que no fim de três dias
estavam concluídos.
O lago Tramandaí é formado por águas que tem a sua fonte na serra do
Espinhaço, e finaliza-o no Atlântico. É pouco fundo, pois nas maiores enchentes
só tem quatro ou cinco pés d’água. Nesta parte da costa reinam sempre grandes
tempestades.
O estrondo que o mar faz batendo nestes rochedos, que os marinheiros
chamam carvueiros, por causa da espuma que fazem voar em roda deles, ouve-
se a muitas milhas de distância, e muitas vezes é tomado pelo rumor da tormenta.
XXI – Partida e Naufrágio
O general tinha determinado que eu saísse com três navios armados para
atacar as bandeiras imperiais que cruzavam na costa do Brasil. Preparei-me para
cumprir esta árdua tarefa, reunindo todos os elementos necessários ao meu
armamento. Os meus três navios eram o Rio Pardo, comandado por mim – a
Caçapava, por Griggs, ambos galeotas e o Seival commandado pelo italiano
Lourenço. A embocadura da lagoa estava bloqueada pelos navios de guerra
imperiais, mas apesar disso saímos de noite e sem ser incomodados. –Anita,
então companheira de toda a minha vida, e por consequência, de todos os meus
perigos, tinha querido acompanhar-me.
Chegados à altura de Santos, encontramos uma corveta imperial que
durante dois dias, nos deu caça inutilmente. No segundo dia aproximamo-nos da
ilha do Abrigo, onde tomamos duas sumacas carregadas de arroz. Continuamos o
cruzeiro e fizemos mais algumas presas. Oito dias depois da nossa partida, dirigi-
me para a lagoa.
Não sei por que, tinha um sinistro pressentimento de que ali se passava,
visto que antes da nossa partida já um certo descontentamento se manifestava
contra nós. Estava além disso prevenido da aproximação de um corpo
considerável de tropas, comandadas pelo general Andréa, a quem a pacificação
do Pará, tinha dado uma grande reputação.
Na altura da ilha de Santa Catarina, quando voltávamos, encontramos um
patacho de guerra brasileiro. – Tinha unicamente comigo dois navios, o Rio
Pardo e o Seival, porque a Caçapava havia muitos dias que se tinha separado de
nós por causa de um grande nevoeiro. Quando descobrimos o navio inimigo
estava na nossa proa, por isso não havia meio de o evitar. Navegamos então
direito a ele e o atacamos resolutamente. Começamos o fogo e o inimigo
respondeu-nos, mas este combate teve um êxito medíocre por causa do muito
mar. – O seu resultado foi a perda de algumas das nossas presas, porque os seus
comandantes assustados pela superioridade do inimigo, baixaram os pavilhões. –
Outros deram à costa.
Uma só das nossas presas foi salva. Era capitaneada por Ignacio Bilbáo, o
nosso bravo biscainho que a conduziu a Imbituba, que então se achava em nosso
poder. O Seival tendo a peça desmontada e fazendo água, tomou o mesmo
caminho, e eu fui obrigado a segui-los porque estava com muito poucas forças
para andar só no mar.
Entramos em Imbituba, impelidos pelo nordeste. Com este vento era-nos
impossível entrar na lagoa e com certeza os navios imperiais estacionados em
Santa Catarina, informados pelo Andorinha, assim se chamava o navio de guerra
com quem tínhamos combatido, não tardariam a vir atacar-nos; era pois
necessário prepararmo-nos para o combate. O canhão desmontado do Seival foi
içado num promontório que fechava a baía do lado do levante, e ali construímos
uma bateria coberta com cestões.
Com efeito, no dia seguinte ao romper da aurora, vimos três navios
dirigindo-se para nós. O Rio Pardo, começou então um combate muito desigual,
porque os imperiais nos eram muito superiores em número.
Havia querido desembarcar Anita, mas ela não tinha consentido, e como
do fundo da minha alma admirava a sua coragem e me achava orgulhoso pelo
seu valor, cedi aos seus rogos.
O inimigo favorecido na sua manobra pelo vento que então fazia,
manteve-se à vela, canhoneando-nos furiosamente. Podia desta maneira
aproveitar todos os seus canhões, dirigindo todo o seu fogo contra a nossa galeota.
Nós, pelo nosso lado, combatíamos com a mais obstinada resolução e estávamos
tão perto que nos podíamos servir das nossas clavinas; as perdas eram de parte a
parte importantes. As nossas contudo eram mais numerosas em razão da
inferioridade numérica, e a coberta já se achava cheia de mortos e feridos.
Apesar de tudo isto, apesar do flanco do nosso navio estar crivado de balas, da
nossa mastreação ter avaria, estávamos resolvidos a não ceder, deixando-nos
matar até ao último. É verdade que éramos conservados nesta resolução pela
vista da amazona brasileira que estava a bordo. Anita, que, como já disse, não
havia querido desembarcar, tinha também tomado parte no combate, e com a
clavina na mão, coadjuvava-nos admiravelmente. Éramos também, devo dizê-
lo, perfeitamente sustentados pelo bravo Manuel Rodrigues, comandante da nossa
bateria de terra.
O inimigo estava muito encarniçado, especialmente contra a galeota.
Muitas vezes durante este combate, aproximou-se tanto que julguei que ia
abordá-la, o que me dava muito prazer, porque estávamos preparados para tudo.
No fim de cinco horas de uma luta terrível, o inimigo, com grande
admiração nossa, retirou-se. Soubemos depois que a morte do capitão da Bella
Americana tinha sido a causa.
Tive durante este combate uma das mais vivas e cruéis emoções da
minha vida. Anita achava-se de sabre em punho em cima do tombadilho,
animando os meus homens. Repentinamente uma bala a derrubou e a dois dos
meus camaradas. Corri para ela, julgando não encontrar mais que um cadáver,
mas Anita levantou-se sã e salva; os dois homens estavam mortos; supliquei-lhe
então que descesse para a câmara.
– Sim, vou descer, me disse ela, mas é para enxotar os poltrões que lá se
foram esconder.
E bem depressa tornou a aparecer, trazendo por diante dois ou três
marinheiros, envergonhados, por serem menos bravos que uma mulher.
Passamos o resto do dia a sepultar os mortos e a reparar as avarias, que
não eram pequenas, causadas à galeota pelo fogo do inimigo. No dia seguinte os
imperiais não apareceram, porque sem dúvida se preparavam para um novo
ataque; vendo isto embarcamos o nosso canhão e levantando âncora pela noite,
dirigimo-nos para a lagoa.
Quando o inimigo deu pela nossa partida, começou a perseguir-nos, mas
só no dia seguinte é que nos pôde enviar algumas balas que não nos causaram
prejuízo algum. Entramos, pois, sem outro incidente na lagoa, onde fomos
festejados pelos nossos, que se admiravam de termos escapado a um inimigo tão
superior em número.
XXVI – Saque de Imaruhy
A boa população de Lages que nos tinha festejado tanto, quando éramos
vitoriosos, havia quando recebeu a notícia da nossa derrota mudado de opinião, e
alguns dos mais resolutos tinham restabelecido o poder imperial. Estes fugiram à
nossa aproximação, e como a maior parte deles eram negociantes, tinham
deixado os seus armazéns providos de muitos objetos. Foi uma providência,
porque julgamos poder sem remorsos, aproveitar-nos das mercadorias dos
nossos inimigos, e graças à variedade do comércio que exerciam, melhorar
muito a nossa posição.
Entretanto Teixeira escreveu a Aranha ordenando-lhe que se nos unisse,
tendo por este tempo a notícia da chegada do coronel Portinho que tinha sido
enviado por Bento Manuel para seguir esse mesmo corpo de Mello, encontrado
desgraçadamente por nós em Coritibanos.
Tinha servido sinceramente na América à causa dos povos, e havia lá
sido, como na Europa, o adversário do absolutismo. Tenho algumas vezes
admirado os homens, muitas lamentado, mas nunca odiado. Quando os tenho
encontrado egoístas e tratantes, tenho posto o seu egoísmo e tratantices de parte,
metendo-os na conta da nossa desgraçada natureza. Como estou afastado duas
mil léguas do lugar onde estes acontecimentos tiveram lugar, e já são passados
doze anos, pode-se por isso acreditar na minha imparcialidade. Digo o tanto pelos
meus amigos como pelos meus inimigos: eram intrépidos filhos do continente
americano.
Era uma audaciosa empreitada a de defender Lages contra um inimigo
dez vezes superior, e além disso orgulhoso pela recente vitória. Separados dele
pelo rio Canoas, que nós não tínhamos podido guarnecer suficientemente,
esperamos durante muitos dias a junção de Aranha e Portinho, e durante este
período o inimigo foi sustentado por um punhado de homens, atacando-o logo que
nos chegaram os reforços, mas foi ele que se retirou sem aceitar o combate,
para a província vizinha de S. Paulo, aonde esperava encontrar um poderoso
socorro.
Foi nesta circunstância que eu verifiquei os vícios geralmente imputados
ao exército republicano, que se compunha de homens cheios de patriotismo e
coragem, mas que não ficam juntos às bandeiras, senão quando o inimigo as
ameaça, abandonando-as quando este se afasta. Este costume foi quase a nossa
ruína, e poderia causar a nossa perda nestas circunstâncias, porque se o inimigo
tivesse mais paciência, teria podido destruir-nos totalmente.
Os serranos foram os primeiros a abandonar as fileiras. Os soldados de
Portinho em breve os seguiram. Note-se bem que os desertores não só levavam
os seus cavalos, mas os da divisão. Em poucos dias as nossas forças se separaram
com tanta rapidez que fomos obrigados a abandonar Lages, retirando-nos para a
província do Rio Grande, temendo a presença desse inimigo, que tinha sido
obrigado a fugir diante de nós, e de que a fuga nos tinha feito vencedores.
Que estes exemplos sirvam aos povos que querem ser livres, e que não é
com flores, festas e iluminações que se combatem os soldados aguerridos do
despotismo, mas com soldados mais disciplinados e aguerridos do que eles, não
querendo para generais os que não são capazes de disciplinar um povo depois de
o haver sublevado.
É verdade que também há povos que não merecem serem sublevados: a
gangrena não tem cura.
O resto das nossas forças assim dizimadas – quando estavam privadas das
coisas mais necessárias, principalmente de vestuário – privação terrível na
aproximação do inverno sombrio e rude nestas regiões elevadas, – o resto das
nossas forças, começou a desmoralizar-se e a pedir para se retirar para suas
casas. Teixeira foi obrigado a ceder à essa exigência, e ordenou-me de descer a
montanha e de me reunir ao exército, enquanto se preparava para fazer outro
tanto. Esta retirada foi rude por causa da escabrosidade dos caminhos e das
hostilidades ocultas dos habitantes da floresta, inimigos encarniçados dos
republicanos.
Em número de setenta, pouco mais ou menos, descemos a Picada do
Pedroso, já disse o que era uma picada – e tivemos que afrontar emboscadas
repetidas e imprevistas que nós atravessamos com uma felicidade incrível devida
à resolução dos homens que eu comandava, e um pouco à confiança que
geralmente inspiro aos que me seguem. O atalho que atravessamos era tão
estreito que unicamente podiam passar dois homens a par, e como o inimigo era
nascido no país, por isso conhecedor do terreno, emboscava-se nos sítios mais
favoráveis, rodeando-nos e dando gritos horríveis, enquanto que um círculo de
chamas nos cercava, sem que nós pudéssemos ver os atiradores, que felizmente
faziam mais barulho do que obra. De resto a união que os meus homens tiveram
no perigo foi tal, que apenas alguns foram feridos, tendo só um cavalo morto.
Estes acontecimentos fazem recordar as florestas encantadas de Tasso,
onde as árvores viviam.
Chegamos então a Mala-Casa, onde se achava Gonçalves, que reunia as
funções de presidente às de general em chefe.
XXXI – Batalha de Taquari
O inimigo, para poder fazer as suas correrias pelos campos, havia sido
obrigado a desguarnecer de infantaria as suas praças fortes. Principalmente S.
José do Norte tinha um pequeno número de soldados.
Esta praça, situada na margem setentrional da embocadura da lagoa dos
Patos, era uma das chaves da província, não só comercialmente, mas
politicamente; a sua posse teria mudado completamente a nossa posição, que
nesta ocasião era bem aterradora; a sua tomada tornava-se, pois, mais que útil,
era necessária. A vila encerrava objetos de toda a qualidade, indispensáveis para
o vestuário dos soldados, que do nosso lado estavam no mais deplorável estado.
Não só por esta razão, mas também por dominar o único porto da província, S.
José do Norte merecia que fizéssemos todos os esforços para nos apoderarmos
dele, mas também porque só deste lado se encontrava a atalaia, isto é, o mastro
dos sinais dos navios, que servia para lhes indicar a profundeza das águas na
embocadura.
Nesta expedição sucedeu infelizmente o mesmo que tinha acontecido em
Taquari. Preparada com admirável ciência e profundo segredo, perdeu-se todo o
trabalho por se ter hesitado em dar o último golpe.
Uma marcha forçada de oito dias, a vinte e cinco milhas por dia, nos
conduziu defronte dos muros da praça.
Era uma dessas noites de inverno, durante as quais um abrigo e um bom
fogo são um benefício da Providência, e os nossos soldados da liberdade,
esfaimados, vestidos de pedaços, tolhidos pelo frio e gelados pela chuva de uma
horrível tempestade, avançavam silenciosos contra os fortes e trincheiras
guarnecidas de soldados.
A pouca distância das muralhas, os cavalos dos chefes toram confiados à
guarda de um esquadrão de cavalaria, comandado pelo coronel Amaral, e todos
nós preparamos para o combate.
O quem vem lá da sentinela foi o sinal do assalto, e a resistência foi
pequena e de pouca duração sobre as muralhas. Á hora e meia da manhã demos
o assalto, e às duas horas estivemos senhores das trincheiras e de três ou quatro
fortes que as guarneciam e que foram tomados à baioneta.
Senhores das trincheiras e dos fortes, tendo entrado na vila, parecia
impossível que ela nos escapasse. Entretanto ainda esta vez, o que parecia
impossível nos estava reservado. – Uma vez dentro dos muros, uma vez nas ruas
de S. José do Norte, os nossos soldados julgaram que tudo estava acabado, e a
maior parte se dispersou, arrastada pelo apetite da pilhagem. Durante este tempo
os imperiais voltando à si da sua surpresa, reuniram-se num bairro que se achava
fortificado. Ali os fomos atacar, mas repeliram-nos. Os chefes procuravam por
todos os lados os soldados para continuar no ataque, mas era inútil, porque se
encontravam alguns, eram carregados dos despojos, ou bêbados, ou tendo
quebrado os fuzis à força de despedaçar as portas das casas.
O inimigo do seu lado não perdia o tempo: muitos navios de guerra que se
achavam no porto tomaram posição, varrendo com o fogo dos seus canhões as
ruas, onde nos achávamos. Pediu-se socorro ao Rio Grande, cidade situada na
margem oposta da embocadura dos Patos, enquanto um único forte que
havíamos desprezado, servia de refúgio ao inimigo. O primeiro destes fortes, o do
imperador, do qual a tomada nos tinha custado um glorioso e mortífero assalto,
foi destruído por uma explosão terrível de pólvora, que nos matou bom número
de soldados. – Enfim, o mais glorioso dos triunfos, estava mudado, ao meio dia,
na mais vergonhosa retirada, e os verdadeiros amigos da liberdade choravam de
desesperação.
A nossa perda, comparativamente à nossa situação, foi enorme.
Desde este momento a nossa infantaria não foi senão um esqueleto;
enquanto que a pouca cavalaria que tinha vindo na expedição, serviu para
proteger a retirada.
A divisão entrou nos seus quartéis da Bella Vista, e eu fiquei em S. Simão
com a marinha.
Todos os meus soldados estavam reduzidos a quarenta homens, contando
também os oficiais.
XXXIII – Anita
O motivo da minha partida para S. Simão teve por fim, o mandar fazer
algumas dessas canoas, construídas de um só tronco de árvore, com a ajuda das
quais eu queria abrir comunicações com a outra parte da lagoa. Mas durante os
meses que eu ali fiquei, as árvores prometidas não chegaram, e o nosso projeto
por consequência não se pôde realizar. Como eu tinha um grande horror pela
ociosidade, não podendo construir barcos, dediquei-me a ensinar cavalos. Em S.
Simão havia uma grande quantidade de potros que me serviram para fazer
cavaleiros dos meus marinheiros.
S. Simão era uma bela e espaçosa herdade, que se achava então
abandonada. Pertencia ao conde de S. Simão, antigamente exilado, e de quem os
herdeiros estavam também exilados como inimigos da república. Eu não sei se
ele era ainda parente do famoso conde de S. Simão, fundador dessa região de
que os adeptos me tinham iniciado na paternidade universal; mas nesta ocasião,
como a família de S. Simão era considerada por nós como inimiga, tratamos a
sua herdade como uma conquista; isto é, apoderamo-nos das casas para ali
habitarmos, e dos animais domésticos que ali havia para fazermos o nosso
sustento.
Os nossos únicos divertimentos eram ensinar os nossos potros, ou, para
melhor dizer, os potros dos S. Simonianos.
Foi nesta occasião que a minha cara Anita deu a luz o primeiro filho. Em
lugar de lhe dar o nome de um santo, dei-lhe o nome de um mártir.
Chamou-se Menotti.
Nasceu em 16 de Setembro de 1840, exatamente no mesmo dia em que
fazia nove meses que tinha tido lugar o combate de Santa Vitória. A sua aparição
neste mundo sem acidente, era um verdadeiro milagre, depois das privações e
dos perigos sofridos por sua mãe. Essas privações e esses sofrimentos de que eu
ainda não fallei, afim de não interromper a minha narração, devem aqui achar
lugar, e é do meu dever fazer conhecer se não ao mundo, ao menos a alguns
amigos que lerem este jornal a admirável criatura que perdi. (É escusado repetir
que estas Memórias tinham sido escritas por Garibaldi unicamente para serem
lidas por alguns amigos.)
Anita, como sempre, tinha querido seguir-me e havia-me acompanhado
na campanha que acabávamos de fazer, e que acabo de contar.
O leitor deve lembrar-se que reunidos aos serranos, comandados pelo
coronel Aranha, nós batemos em Santa Vitória o brigadeiro Cunha, e de tal modo
que a divisão inimiga foi completamente destruída. Durante o combate, Anita, a
cavalo no meio do fogo, era espectadora da vitória e derrota dos imperiais. Foi
ela nesse dia o anjo providencial dos nossos feridos, porque não tendo nós nem
cirurgião nem ambulância, eram curados, sabe Deus como, por nós mesmos.
Esta vitória submeteu de novo, pelo menos momentaneamente, as três
povoações, Lages, Vaccaria e de Cima da Serra à autoridade da república, e já
contei como no fim de alguns dias entramos triunfantes em Lages. O êxito do
combate de Coritibanos longe esteve de ser igual.
Já disse a maneira porque, apesar da bravura de Teixeira, a nossa
cavalaria foi derrotada, e como com os meus sessenta e três infantes me vi
cercado por mais de quinhentos homens de cavalaria inimiga. Anita devia neste
dia assistir às mais terríveis peripécias da guerra. A muito custo submetendo-se
ao papel de simples espectadora do combate, Anita apressava a marcha das
munições receosa de que os cartuchos faltassem aos combatentes: com efeito o
fogo que nos víamos obrigados a fazer era tão violento que dava margem a
supor-se, com toda a razão, que se as nossas munições não fossem renovadas
bem depressa, não teríamos um único cartucho; com este fito aproximava-se do
lugar, onde o combate era mais renhido, quando um esquadrão de vinte
cavaleiros inimigos, perseguindo alguns dos nossos que fugiam, caíram de
improviso sobre os soldados que conduziam a bagagem.
Excelente cavaleira, e montando um admirável cavalo, bem poderia
Anita ter fugido; mas dentro desse peito de mulher batia o coração de um herói:
em lugar de fugir, animava os nossos soldados a defenderem-se, e num
momento se viu cercada pelos imperiais.
Anita enterrou as esporas no ventre do cavalo, e de um salto passou pelo
meio do inimigo, não tendo recebido mais do que uma única bala que lhe
atravessou o chapéu e levou parte dos cabelos, sem lhe tocar no crânio. Talvez
ela pudesse fugir se o cavalo não caísse ferido mortalmente por outra bala, e
sendo obrigada a render-se foi apresentada ao coronel inimigo. Sublime de
coragem no perigo, Anita maior vulto tomava ainda, se é possível, na
adversidade; de sorte que na presença desse estado maior maravilhado do seu
arrojo, mas que não teve o bom gosto de ocultar diante de uma mulher o orgulho
da vitória, Anita repeliu com uma rude e desdenhosa altivez algumas palavras
que lhe fizeram antever um tal ou qual desprezo pelos republicanos, e tão
vigorosamente combateu com a palavra como já o fizera com as armas. Anita
julgava que eu tinha morrido. Nesta persuasão pediu e obteve licença de ir ao
campo de batalha procurar o meu corpo no meio dos cadáveres. Qual a
ventesma infernal passeando sobre a campina ensanguentada, Anita errou só e
por muito tempo procurando aquele que ela receava de encontrar, voltando os
mortos que tinham caído de rosto para a terra, e nos quais pelo fato ou pela altura
ela imaginava terem alguma semelhança comigo.
Foram inúteis as suas pesquisas, era a mim pelo contrario que a sorte
reservava a dor suprema de banhar com as minhas lágrimas suas faces gélidas, e
quando esse momento de angústia chegou, impossível me foi de lançar um
punhado de terra, uma flor, ao menos sobre a cova onde jazia a mãe de meus
filhos.
Desde que Anita esteve segura de que eu existia, não teve senão um
pensamento, o de fugir, e a ocasião não tardou a apresentar-se-lhe.
Aproveitando-se do delírio do inimigo vitorioso, passou para uma casa perto
daquela onde a tinham prisioneira, e ali, sem ser reconhecida, uma mulher a
recebeu e protegeu. O meu capote que eu havia abandonado para ter os
movimentos mais livres, e que tinha caído em poder de um soldado inimigo, foi
por ela trocado pelo seu, que era de grande valor. Quando chegou a noite, Anita
lançou se na floresta e desapareceu. Era necessário possuir um coração de leão
para assim se arriscar. Só quem já viu as imensas florestas que cobrem os cimos
do Espinhaço, com os seus pinheiros seculares que parecem destinados a
sustentar o céu, e que são as colunas desse esplendido templo da natureza, as
gigantescas canas que povoam os intervalos e que estão cheias de animais
ferozes e de répteis de que a mordedura é venenosa, poderá fazer uma ideia dos
perigos que ela correu, e das dificuldades que teve a vencer. Felizmente Anita
ignorava o que era medo. De Coritibanos a Lages são vinte léguas. Como ela
atravessou esses bosques impenetráveis, só, e sem alimentos, só Deus o sabe.
Os poucos habitantes desta parte da província que lla tinha a atravessar
eram hostis aos republicanos, e logo que souberam da nossa derrota, armaram-se
e fizeram emboscadas sobre muitos pontos, e principalmente das picadas que os
fugitivos tinham a atravessar de Coritibanos a Lages.
Nos cabeçaes, isto é, nos sítios quase impraticáveis destes atalhos, teve
lugar uma horrível carnificina nos nossos desgraçados companheiros. Anita
atravessou de noite estes sítios perigosos, e ou fosse a sua boa estrela ou a
admirável resolução com que os atravessou, o seu aspecto fez sempre fugir os
assassinos, que fugiam, diziam eles, perseguidos por um ser misterioso!
Na realidade era estranho ver esta valente mulher, montada num ardente
cavalo, pedido e obtido numa casa onde havia recebido a hospitalidade durante
uma noite de tempestade; galopando por cima dos rochedos, à claridade dos
relâmpagos.
Quatro cavaleiros colocados na passagem do rio Canoas, fugiram à vista
desta visão, escondendo-se atrás das moitas que guarnecem o rio. Durante este
tempo, Anita chegara à margem do rio, tornado muito tempestuoso por causa das
muitas cheias, e atravessou-o, não como o tinha feito dias antes, num excelente
barco, mas sim a vau, animando com a voz o seu magnífico cavalo.
As ondas precipitavam-se furiosas, não num estreito espaço, mas numa
extensão de quinhentos passos, e apesar disso Anita chegou sã e salva à outra
margem.
Uma chávena de café foi o único alimento que a intrépida viajante tomou
durante os quatro dias que gastou em alcançar na Vaccaria a tropa do coronel
Aranha.
Foi ali que nos encontramos, Anita e eu, depois de uma separação de oito
dias e de nos julgarmos mortos.
Que alegria não foi a nossa! Maior foi ainda a que senti no dia em que
Anita, na península que fecha a lagoa dos Patos, do lado do Atlântico, deu à luz
numa casa que nos dava hospitalidade o meu querido Menotti, que veio ao mundo
com uma cicatriz na cabeça procedida pela queda do cavalo que tinha dado sua
mãe.
Renovo aqui mais uma vez os meus agradecimentos às excelentes pessoas
que nos deram esta hospitalidade, assegurando-lhes um reconhecimento eterno.
No campo, onde nos faltavam todas as coisas mais necessárias, e onde eu não lhe
teria podido dar um único lenço, Anita não teria podido triunfar neste momento
supremo, onde a mulher tem tanta necessidade de forças e cuidados.
Decidi-me então a fazer uma viagem a Setembrina para ali comprar
muitas causas de maior urgência que faltavam aos meus entes queridos. Tinha ali
bons amigos, e entre eles um excelente homem chamado Blingini. Comecei
então a minha viagem através dos campos inundados, onde eu tinha a água até o
ventre do cavalo; passei por meio de um campo antigamente cultivado chamado
Roça Velha, onde encontrei o capitão de lanceiros Máximo, que me recebeu
perfeitamente. Aceitei a sua hospitalidade durante dois dias, por causa do
péssimo tempo não me deixar continuar a jornada.
No fim deles, quis partir, apesar de todos os esforços que fez o bom
capitão para me conservar na sua companhia.
Mas o fim para que tinha partido era para mim muito sagrado para que
me demorasse mais, e não obstante as observações deste bom amigo, pus-me a
caminho por essas planícies que pareciam um vasto lago. Na distância de
algumas milhas, ouvi do lado que acabava de deixar o estrondo da fuzilaria;
concebi então algumas suspeitas cheias de angústias, mas não podia voltar atrás.
Cheguei a Setembrina, onde comprei os objetos de que tinha necessidade,
e sempre inquieto por essa fuzilaria que tinha ouvido, pus-me logo a caminho
para São Simão. Descansamos em Roça Velha, onde soube a causa desse
estrondo que tinha ouvido e o triste acontecimento que tinha tido lugar no mesmo
dia da minha partida.
Moringue – o mesmo que me havia surpreendido em Camaquã e que eu e
os meus quatorze homens tínhamos obrigado a fugir com um braço quebrado,
tinha surpreendido o capitão Máximo; todos os seus soldados feitos prisioneiros, e
a maior parte dos seus cavalos também tomados, e os demais mortos.
Moringue havia efetuado esta surpresa com alguns navios de guerra e
infantaria. Embarcou depois a infantaria, e dirigiu-se com a cavalaria para S.
José do Norte, espantando pelo caminho todas as pequenas guerrilhas
republicanas, que julgando-se em segurança se haviam espalhado pelo território;
entre eles achavam-se os meus marinheiros que foram obrigados a refugiar-se
na floresta.
O meu primeiro grito foi, como se deve julgar: “Anita! Onde está Anita?”
Anita doze dias depois de ter tido o seu feliz sucesso, tinha sido obrigada a
montar a cavalo, e meio nua, com o seu pobre filho nos braços, tinha sido
obrigada a refugiar-se na floresta.
Não encontrei pois no rancho nem Anita, nem os nossos hospedeiros, mas
alcancei-os na oureta de um bosque, onde eles se conservavam não sabendo
onde se achava o inimigo, nem se ainda tinham alguma coisa a recear dele.
Voltamos a São Simão, e ali nos demoramos algum tempo, depois
mudamos o nosso acampamento, estabelecendo-nos na margem do Capivari, isto
é, no mesmo sitio onde um ano antes tínhamos transportado os nossos lanchões
em carros para a expedição de Santa Catarina, expedição que tão mau êxito teve.
Nessa ocasião tinha sentido bastante esperanças que infelizmente haviam
desaparecido.
O Capivari é formado de diferentes riachos que tem a sua nascente nos
lagos numerosos que guarnecem a parte setentrional da província do Rio Grande,
sobre as costas do mar e sobre a vertente oriental da cadeia do Espinhaço. Toma
este nome da capinara, espécie de caniços muito comuns na America meridional
e que nas Colônias se chamam capineos.
De Capivari e do Sangrador, Abreu, do canal que serve de comunicação
entre um charco e um lago onde tínhamos reunido com muito trabalho algumas
canoas, fizemos algumas viagens à costa Ocidental da lagoa, estabelecendo
comunicações entre as duas margens e transportando os passageiros.
XXXIV – Levanta-se e Cerco – Rossetti
“Senhor:
Quando no ano passado, dei à legião francesa uma certa quantidade de
terras, esperava que o acaso conduzisse ao meu quartel general algum oficial da
legião italiana, dando-me assim ocasião de satisfazer um ardente desejo do meu
coração, mostrando à legião italiana a estima que lhe consagro pelos importantes
serviços prestados à republica na guerra que sustentamos contra o exército
invasor de Buenos Aires.
Para não demorar por mais tempo o que considero como o cumprimento
de um dever sagrado, incluo nesta, um ato de doação que faço à ilustre e
valorosa legião italiana, como uma prova sincera do meu reconhecimento
pessoal pelos eminentes serviços prestados ao meu país.
A oferta não é igual aos serviços, nem aos meus desejos, e contudo ouso
esperar que não recusareis offerecê-la em meu nome aos vossos camaradas,
informando-os da minha boa vonntade e do meu reconhecimento.
Aproveito esta ocasião, coronel, para vos assegurar a minha perfeita
consideração e profunda estima.
Fructuoso Rivera.”
O que há de mais importante nesta carta é que este excelente patriota nos
fazia este presente da sua própria fortuna, porque as terras que nos oferecia eram
do seu patrimônio.
Em 23 de Maio seguinte, época em que me foi entregue a sua carta,
dirigi-lhe a seguinte resposta:
“Excellentíssimo senhor :
O coronel Parodi me entregou diante de todos os oficiais da legião
italiana, segundo o vosso desejo, a carta que tiveste a bondade de me escrever
com data de 30 de Janeiro, e juntamente com ela um ato pelo qual fazeis
espontânea doação à legião italiana de uma porção de terreno, das vossas
propriedades, existentes entre o Arroio das Avenas e o Arroio Grande, ao norte
do Rio Negro, e de uma manada de bois, e de todas as fazendas ali existentes.
Dizeis na vossa carta que este presente nos é feito como remuneração dos
nossos serviços à república.
Os oficiais italianos depois de terem tomado conhecimento da vossa carta,
declararam unanimemente, em nome da legião italiana que eles oferecendo os
seus serviços à república, não queriam receber senão a honra de partilhar os
perigos que correm os naturais do país que lhe deram hospitalidade. Obrando
deste modo obedecem à sua consciência. Tendo satisfeito ao que eles olham
como o simples cumprimento de um dever, continuarão, tanto quanto as
necessidades do cerco o exigirem, a partilhar os perigos dos nobres
Montevideanos, não aceitando outra recompensa do seu trabalho.
Tenho pois a honra de lhe comunicar a resposta da legião, com a qual os
meus princípios e sentimentos concordam completamente. Por isso vos envio o
original da doação.
Deus vos dê muitos anos de vida.
Giuseppe Garibaldi.”
“Irmãos.
Antes de ontem tivemos nos campos de Santo Antônio, a légua e meia da
cidade, o mais terrível e mais glorioso de nossos combates. As quatro
companhias da nossa legião e vinte homens de cavalaria, refugiados sob a nossa
proteção, não somente se defenderam contra mil e duzentos homens de Servando
Gomes, mas destruíram inteiramente a infantaria inimiga que os tinha assaltado
no número de trezentos homens. O fogo começou ao meio dia e acabou à meia
noite.
Nem o número dos inimigos, nem suas cargas repetidas, nem sua massa
de cavalaria, nem os ataques de espingardeiros a pé, nada puderam contra nós;
embora não tivéssemos outro abrigo mais que um curral arruinado sustido por
quatro pilares, os legionários repeliram constantemente os assaltos dos inimigos
furiosos; todos os oficiais se transformaram em soldados neste dia; Anzani que
tinha ficado no Salto e ao qual o inimigo intimou ordem de se render, respondeu
com o morrão na mão e o pé na bateria, ainda que o inimigo lhe houvesse
assegurado que nós seriamos todos mortos ou prisioneiros.
Tivemos trinta mortos e cinquenta feridos; todos os oficiais foram feridos
levemente, exceto Scarone, Saccarello mais velho e Traversi.
Hoje não dou o meu nome de legionário italiano por um mundo de ouro.
À meia noite pusemo-nos em retirada sobre o Salto; ficamos pouco mais
de cem legionários sãos e salvos. Os que só haviam sido levemente feridos
marchavam à frente para cortar o inimigo quando ele se adiantasse muito.
Ah! É um combate o que merece ser gravado em bronze!
Adeus! De outra vez serei mais extenso.
Vosso, José Garibaldi.
P. S. Os oficiais feridos são Casana, Marchetti, Berutti, Remorini,
Sacarello mais novo, Sachi, Grafigna e Rodi.”
Foi esta a nossa ultima refrega importante em Montevidéu.
L – Escrevo ao Papa
“ORDEM GERAL
O decreto ordenava:
1º. Que as palavras seguintes seriam inscritas em letras de ouro na
bandeira da legião italiana:
E do outro lado:
_____
Garibaldi marchava como já disse sobre Luino; mas antes dali chegar,
recebera noticia de que Luino estava já ocupado pelos austríacos, ao mesmo
tempo que a coluna de Aspres, depois da sua grande vitória sobre nós, se
apoderara de Arcisate.
A retirada de Garibaldi sobre a Suíça tornava-se desde então dificultosa.
Decidiu-se pois a marchar direito a Morazzone, posição muito forte e por
consequência muito vantajosa.
Além disso, o ruído do canhão que tinha ouvido lhe tinha feito crescer
água na boca.
Apenas tinha acampado, viu-se completamente rodeado por cinco mil
austríacos.
Consigo tinha quinhentos homens.
Durante um dia com seus quinhentos homens, sustentou o ataque dos
cinco mil austríacos. Vindo a noite, formou os seus em coluna cerrada, e lançou-
se sobre o inimigo à baioneta.
Favorecido pela obscuridade fez uma sanguinolenta passagem, e achou-se
em campo raso.
A uma légua de Morazzone licenciou seus voluntários, dando-lhes ponto de
reunião em Lugano, e a pé com um guia, disfarçado em paisano, seguiu para a
Suíça.
Uma manhã soube em Lugano que Garibaldi, que todos criam morto, ou
pelo menos prisioneiro em Morazzone, tinha chegado a uma aldeia vizinha.
Então vieram-me à memória as palavras proféticas de Anzani.
Corri a Garibaldi, achei-o na cama, quebrado, moído, e apenas podendo
falar. Acabava de fazer uma marcha de seis horas, e só por milagre havia
escapado aos austríacos.
A sua primeira pergunta ao ver-me foi:
– Tens a tua companhia pronta?
– Tenho, lhe respondi.
– Pois bem, deixa-me dormir esta noite, e amanhã prepararemos a nossa
gente e recomeçaremos.
Não pude deixar de me rir: era evidente que no dia seguinte estaria tolhido
a ponto de não poder mover uma perna.
No dia imediato, com grande admiração minha, Garibaldi estava de pé; a
alma e o corpo neste homem são iguais, ambos de bronze.
Mas nada havia a fazer; a campanha de Garibaldi na Lombardia estava
finda.
Garibaldi então entrou no Piemonte e volveu a Génova.
Ali recebeu propostas que lhe trazia uma deputação siciliana.
Estas propostas eram de embarcar para a Sicília, a fim de ali sustentar a
causa da revolução.
Aceitou-as e partiu com trezentos homens para Lívorno; mas ali sabendo
o que se passava em Roma, abandonou a ideia da sua expedição à Sicilia e partiu
para Roma.
É ali que prestes o encontraremos.
Quanto a mim fiquei em Lugano com a minha companhia, a que tendo
reunido alguns desertores, se achava com o número de oitenta homens, e foi-me
permitido conservar-me com eles em um depósito.
As nossas armas estavam sempre ocultas, mas debaixo de mão.
Durante este momento de repouso, organizamos, para não perder tempo,
uma insurreição na Lombardia.
O governo da Suíça foi prevenido disto, e fez ocupar o cantão de Tessino
pelos contingentes federais.
Resolveu-se então me internar.
Fui com duzentos homens, a maior parte dos quais haviam servido com
Garibaldi, e outros comigo, enviado para Bellinzona, onde nos guardaram em um
quartel, como perigosos e capazes de violar a fronteira.
O projeto não deixou de marchar.
Os generais Ascioni e de Aspre deviam partir de Lugano e dirigir-se sobre
Como pelo vale de Intelvi.
Quanto a mim devia partir de Bellinzona, atravessar a passagem do Jorio,
uma das mais elevadas e difíceis da fronteira, descer sobre o lago Como, e
chamar os habitantes às armas. Depois do que, com a minha gente, iria reunir-
me aos dois generais.
Como éramos guardados à vista, a coisa era difícil de executar.
Sobre uma altura que dominava Bellinzona estão as ruínas de um castelo
que outrora pertenceu aos Visconti.
É ali que tinha feito guardar as nossas armas e as munições que depois
pudera obter.
Ao todo tinha duzentos e cinquenta homens. Dividi-os em oito ou dez
bandos, que deviam ir por muitas estradas, evitando a vigilância das tropas,
reunir-se no castelo.
Contra toda a esperança, o projeto realizou-se completamente.
Cada um se encontrou no ponto de reunião sem encontrar impedimento;
armei todos e estava pronto para partir para a montanha, quero dizer, atravessar
a fronteira.
Repentinamente ouvi tocar a rebate; as tropas dispunham-se a marchar
em minha perseguição.
Mas os habitantes que me tinham votado amizade decidida, sublevaram-
se em meu favor, e ameaçaram se não calasse o tambor, de se armarem e fazer
barricadas.
Livre deste cuidado, dei à minha gente ordem de se pôr em marcha;
estávamos no fim de Outubro; o norte soprava e prometia-nos nova noite de
tempestade.
Marchamos toda a noite contra o vento, com o rosto açoitado pela neve.
Vindo o dia, marchamos sem parar durante o seu curso; era preciso atravessar o
cimo coberto de neve do Jorio; o inverno tinha tornado impraticáveis as
passagens; entretanto atravessamo-lo com neve quase sempre até ao joelho,
muitas vezes até aos sovacos.
Depois de trabalhos infinitos, chegamos, enfim, ao cume; mas ali um
inimigo mais terrível do que todos os que tínhamos vencido até então, nos
esperava: a tormenta.
Em um instante ficamos completamente cegos, e não distinguimos nada a
dez passos de distância.
Disse então aos meus bravos de se apertarem uns contra os outros,
marchar em uma só fila e seguir-me avançando com a maior rapidez. Três
ficaram para trás, caindo para não mais se levantarem, escondidos na neve,
dormindo ou velando talvez no cume do Jorio.
Marchei primeiro, sem seguir nenhuma estrada real, sem saber onde ia,
confiando na nossa boa fortuna, quando repentinamente parei; o rochedo me
faltava debaixo dos pés; um passo mais e caía no precipício!
Fiz alto, ordenando que cada um ficasse no seu lugar até nascer o dia.
Então só com um guia procurei um caminho toda a noite; a cada instante
a terra, ou antes a neve faltava debaixo de nós, ou os pés nos escorregavam. Era
por milagre que um de nós não ficava escondido, ou morto na queda.
Enfim ao raiar do dia, chegamos perto de algumas cabanas abandonadas.
Entretanto como ofereciam um abrigo, quis voltar para os meus homens.
Mas então as forças abandonaram-me, e caí quebrado de fadiga e
transido de frio.
O meu guia levou-me para uma das cabanas, e conseguiu acender fogo,
que fez-me tornar a mim.
Durante este tempo a felicidade quis que os meus soldados seguissem o
mesmo caminho que eu tinha seguido, de sorte que duas horas depois tinham me
encontrado.
Tornamos de novo a pôr-nos a caminho, e descemos a Gravedona, sobre
o lago de Como.
Chegado ali, depois de uma paragem de meio dia, pus-me em marcha
para reunir-me aos dois generais com quem devia encontrar-me, e que durante a
minha passagem deviam haver feito o levantamento.
Mas eles em vez de bater os austríacos haviam sido batidos, e eu ia dar de
face com a divisão Wohlgemmuth que ocupava já o vale de Intelvi, e com alguns
barcos a vapor cheios de austríacos.
Tomei então por um atalho, e entrei no vale Menaggio, e ocupei na sua
extremidade Portey zo, sobre o lago Lugano, reservando para a retirada o vale
Cavarnia, que tocava na fronteira suíça.
A posição era magnífica; estava em comunicação com Lugano, de onde
podia receber gente e munições: mas ninguém veio juntar-se-me, e fiquei ali oito
dias inutilmente.
No fim deste tempo, os austríacos concentraram suas forças e
marcharam sobre Poitecco. Retirei-me ao vale Cavarnia, que separa a
Lombardia da Suíça. Contava, se me atacassem fazer tanto como em São
Maffeo.
Mas houve apenas alguns tiros de espingarda.
Dois dos meus homens morreram de suas feridas.
Nada havia a fazer; todas as passagens eram cobertas de neve; o inverno
tornava-se cada vez mais rigoroso; entrei na Suíça; escondi as espingardas e em
seguida eu mesmo me escondi.
Por desgraça, eu era mais difícil de esconder do que uma espingarda; e
como estava tão comprometido, tratava-se em relação a mim, não de um
simples internamento, mas de prisão; muito feliz seria, se agarrado pelas
autoridades suíças, não me entregassem aos austríacos.
Resolvi pois fazer todo o possível para reentrar no Piemonte.
Emprestaram-me uma carruagem para sair do Lugano. Saindo, iria a
Magadino; de Magadino a Gênova, e de Gênova, Deus sabe aonde.
Atravessava pois Lugano de carruagem, quando um carro carregado de
madeira que obstruía o caminho, me fez parar. Era mister esperar que o
descarregassem. Estava esperando, quando o comandante do batalhão federal
me reconheceu, chamou gente e fez-me prender.
Conduziram-me prisioneiro; era o menos que tinha a esperar.
Entretanto aconteceu-me coisa melhor ainda. Como os principais
habitantes de Lugano eram todos meus amigos, obtiveram que em vez de ficar
prisioneiro, seria levado às fronteiras sardas.
Não fiz mais que atravessar o Piemonte. A Toscana estava governada por
república; embarquei em Gênova, e parti para Florença. Em Liorne um
despacho telegráfico nos noticiou que o grão-duque, iludindo Montanelli por uma
doença, acabava de fugir de Liorne e se tinha refugiado em Porto Ferrajo.
Imediatamente Guerrazzi ordenou à guarda nacional de Liorne de
embarcar, perseguir o duque e prendê-lo.
Quando assinava esta ordem, disseram-lhe que eu tinha chegado a Liorne.
– Oferecei-lhe o comando da expedição, disse Guerazzi, e instai para que
aceite.
Como se compreende bem não foi preciso pedir-me muito; submeti-me
imediatamente às ordens do governo provisório.
Embarcamos a bordo do Giglio e fizemo-nos de vela para a ilha de Elba.
Apenas estávamos no mar, deram-nos sinal de que se avistava uma
fragata a vapor. Era francesa, inglesa, austríaca?
Não sabíamos; mas a prudência ordenava que não nos aproximássemos.
Fiz pois que o Giglio se voltasse e em vez de abordar diretamente em
Liorne, abordei em Golfo di Campo; atravessei a ilha num ápice, e cheguei a
Porto Ferrajo.
Não se havia ali visto o grão-duque.
A expedição estava terminada.
Então volvi a Florença, e ali organizei livremente os despojos da minha
coluna, que reforcei com novos voluntários; porque tudo o que era refugiado em
Florença quis acompanhar-me.
Durante a minha estada ali, foram tentados dois ensaios de reação, e
comprimi-os.
Uma manhã espalhou-se o boato de que os austríacos entravam pela
fronteira de Modena; corri ali com a minha gente.
Não havia.
Uma terceira tentativa de reação vingou; o governo do grão-duque foi
restabelecido, e eu que tinha sido encarregado de o prender, fui naturalmente
obrigado a partir.
Além da minha legião havia em Florença uma legião polonesa,
perfeitamente organizada; chamei-a e seguiu-me.
Atravessei os Apeninos e desci a Bolonha.
Ali fui muito mal recebido pelo governo republicano, que me tratou como
desertor.
O general Mezzacapo formava em Bolonha uma divisão destinada a
marchar em socorro de Roma. Passou-nos em revista, reconheceu que não
éramos desertores, e fez de nós sua vanguarda.
Seguimos a estrada de Foligno, de Nami e de Civita-Castellana. Chegados
lá, apoiamos sobre a Sabina para evitar os franceses.
Entramos em Roma pela porta San-Giovanni.
Digamos onde era Roma.
LV – Roma (por Medici e Vecchi)
Mas a este general que tinha todo o povo a segui-lo faltava-lhe soldados.
Improvisaram-lhe uma brigada de elementos estranhos uns aos outros, de
homens que não se conheciam e que deviam reunir-se, fundir-se num só,
misturar-se por efeito do entusiasmo que ele inspirava.
Esta brigada formou-se de dois batalhões da sua própria legião, entre os
quais havia uns quarenta vindos com ele de Montevidéu, trajando blouse
vermelha com canhões verdes, de trezentos homens de volta de Veneza, de
quatrocentos mancebos da universidade, de trezentos oficiais da alfândega,
mobilizados finalmente de trezentos emigrados, ao todo dois mil e quinhentos
homens que foram encarregados de defender os muros desde a porta Portese até
às portas San Pancracio e Cavallegieri, e ocupando todos os pontos elevados por
fora das muralhas da villa Corsini, conhecidos sob o nome dos Quatro Ventos até
à villa Pamphili.
Segundo toda a probabilidade, era sobre este ponto que empregariam
mais força os franceses que queriam conservar Civita-Vecchia para base das
suas operações.
No dia 28 de Abril a vanguarda francesa estava em Paio, onde tinha
chegado na véspera um batalhão de caçadores para explorar o caminho.
No dia 29, estava em Castel-di-Guido, isto é, a cinco léguas de Roma.
Então o general em chefe mandou em reconhecimento seu irmão, o
capitão Oudinot, e um oficial de ordenança com quinze soldados de cavalaria
ligeira.
Este reconhecimento avançou para o sótio onde se dividiam as duas
estradas Aurelianas, antiga e moderna, e a uma légua de Roma encontrou os
postos avançados dos romanos.
O oficial que comandava os postos avançados dirigiu-se então aos
franceses e perguntou-lhes:
– Que quereis?
– Ir à Roma, responderam os franceses.
– Não é possível, disse o oficial italiano.
– Nós falamos em nome da república francesa.
– E nós em nome da república romana, por tanto para trás, senhores!
– E se nós não quisermos voltar para trás?
– Trataremos de os obrigar a isso.
– Por que meio?
– Pela força.
– Nesse caso, disse o oficial francês, voltando se para os seus, se assim é,
fazei fogo.
E ao mesmo tempo disparava uma pistola que tirara dos coldres.
– Fogo! respondeu o oficial italiano.
O reconhecimento muito fraco para resistir, retirou-se a galope, deixando
em nosso poder um caçador francês, debaixo do cavalo que estava morto.
Foi preso e enviado a Roma.
O boletim francês diz que fomos nós que fugimos e fomos perseguidos,
mas se assim fosse como era possível termos enviado a Roma um prisioneiro
feito por nós que estávamos a pé, enquanto que os franceses estavam a cavalo?
No seguimento teremos de relevar mais de um engano deste gênero.
O reconhecimento foi pois levar ao general a notícia de que Roma estava
pronta a defender-se, e que deviam perder a esperança de entrar ali sem
queimar uma escorva, e no meio das aclamações do povo como esperavam.
O general em chefe nem por isso afrouxou a marcha.
No dia seguinte, 30 de Abril, avançou a passo dobrado, deixando em
Maglianilla as bagagens dos seus soldados.
Relevemos um novo engano relativo ao dia 30 de Abril como relevamos o
de 29.
Certos escritores disseram que vítimas de uma vil intriga, os soldados
tinham sido atraídos para a cidade em perseguição de um simples
reconhecimento e tinham caído numa cilada.
O negocio do dia 30 não foi um reconhecimento aos franceses, não se lhe
armou cilada alguma.
O sucesso do dia 30 foi um combate em que muito esperava o general
francês, e a prova é o plano de batalha que se segue, achado a um oficial francês
morto, e transmitido pelo coronel Masi ao general ministro da guerra. (Não estou
escrevendo um romance, estou, publicando Memórias. Vejo-me pois forçado a
traduzir textualmente. Não nego nem afirmo, instruo um processo diante deste
grande e ultimo juízo que se chama a Verdade.)
A ideia do general francês não só era má, mas foi mal executada; vamos
tentar prová-lo.
A estrada que conduz de Civita-Vecchia a Roma separa-se em duas a
quinhentos metros mais ou menos das muralhas, conduzindo pela direita à porta
San-Pancracio, e pela esquerda à porta Cavallegieri, vizinha do ângulo saliente do
Vaticano.
Ali foi o grande erro que os franceses cometeram. Lançaram na direita
os caçadores a pé do 20º de linha que acharam um caminho áspero e cortado de
bosques e de um difícil acesso e nas alturas da esquerda os caçadores de
Vincennes ; cerca de cento e cinquenta metros dos muros, estes bravos rapazes,
perdidos do exército inimigo, foram fulminados com o chuveiro de metralha que
vomitava a bateria do bastião San Mário.
Contudo o mal não foi para eles tão grande como podia ser, por causa da
habilidade adquirida na guerra contra os árabes, de fazerem muralhas de todos os
acidentes do terreno.
O seu fogo, admiravelmente dirigido, causava-nos grandes perdas. Foi ali
que morreram, o tenente Marducci, mancebo que dava as maiores esperanças, e
cuja mãe depois da entrada do Papa Pio IX foi condenada a oito dias de prisão
por ter ido depor flores sobre o túmulo de seu filho; o major ajudante Enrico
Pallini, o brigadeiro dela Ridova, o capitão Pifferi, o tenente Belli, e outros mais
desconhecidos ao mundo, mas caros para nós; tais como Stephanis, Ludovico e o
capitão Leduc, bravo belga que combatera por nós na guerra da independência.
Não faltavam porém vivos para substituir os mortos.
Desde manhã o rufar dos tambores anunciou aos romanos que os
franceses estavam já à vista e em um momento os muros e os bastiões
cobriram-se de homens.
Enquanto o fogo dos caçadores do 20º de linha e o dos caçadores de
Vincennes respondiam ao nosso, o grosso da coluna francesa avançava sempre.
No momento de ela aparecer, uma bateria de quatro peças colocadas em
um bastião, começou a metralhá-la.
O general francês estabeleceu logo uma bateria sobre os aquedutos,
encarregada de responder ao nosso fogo, e fez montar sobre uma colina duas
outras peças que fizeram face aos jardins do Vaticano, onde estavam poucos
soldados, mas uma grande quantidade de povo armado.
O general francês vendo que o nosso fogo tinha afrouxado, por causa da
certeza do tiro dos caçadores de Vincennes, mandou a brigada Moliére que
avançou com bravura até ao pé das muralhas; mas como já disse, os mortos
tinham sido substituídos com ligeireza, e o fogo animou-se mais ardente ainda,
destruindo a frente das colunas Marulaz e Bouat, forçoso lhes foi pois retirarem-
se e procurarem um abrigo nas curvas que o terreno fazia.
Garibaldi seguia todos estes movimentos dos jardins da villa Pamphili.
Entendeu que tinha chegado a sua vez e mandou vários destacamentos através
das vinhas; esta manobra porém foi descoberta, e do 20º de linha mandaram um
reforço para impedir que os caçadores de Vincennes fossem surpreendidos e
para protegê-los.
Garibaldi então mandou dizer que se lhe enviassem um reforço de mil
homens, responsabilizava-se pelo êxito daquele combate.
Enviou-se-lhe logo o batalhão do coronel Galleti e o primeiro batalhão da
legião romana comandado pelo coronel Morelli. Dispôs várias companhias para
defenderem as passagens ameaçadas, outras foram encarregadas de proteger os
flancos e a retaguarda da saída, e à frente dos homens que lhe restavam
Garibaldi lançou-se sobre os franceses.
Por fatalidade os nossos tomaram os homens de Garibaldi por franceses e
do alto das muralhas fizeram fogo sobre eles. Garibaldi parou até que se
conhecesse o engano, e então, à baioneta, lançou-se a descoberto sobre o centro
do exército francês.
Empenhou-se então um combate terrível, entre os tigres de Montevidéu
como lhes chamavam e os leões da África. Franceses e romanos lutavam corpo
a corpo, matavam-se à baioneta, caíam, mas tornavam a levantar-se para
começar de novo.
Garibaldi achava enfim inimigos dignos dele.
Ali morreram dos nossos o capitão Montaldi, os tenentes Rigli e Zamboni;
foram feridos o major Marochetti, o cirurgião Schienda, o oficial Gliglioni, o
capelão Ugo Bassi que, desarmado afrontava os ferimentos e a morte, para
socorrer os feridos e consolar os moribundos; coração piedoso, alma
misericordiosa, de que os sacerdotes fizeram um mártir ; finalmente, os tenentes
d’All’Oro, Tressoldi Rolla e o jovem Stadella, filho do general napolitano.
Depois de uma hora de luta os franceses foram obrigados a ceder: uma
parte debandou pelo campo e outra refugiou-se no corpo principal.
Ficaram prisioneiros duzentos e sessenta franceses.
Foi então que o capitão de artilharia Faby, oficial de ordenança do general
em chefe, vendo o mau êxito do ataque tão mal combinado pelo general, julgou
remediá-lo, propondo ao seu chefe guiar um novo ataque por um caminho seu
conhecido, dizia ele, e que o conduziria despercebido até debaixo dos muros de
Roma, diante do jardim do Vaticano.
Este caminho era flanqueado por quatro ou cinco casas onde se poderiam
deixar destacamentos, e que estavam ocultas pelas vinhas.
O general em chefe aceitou, deu-lhe uma brigada do corpo Levaillant, e o
capitão Faby partiu.
A empreitada foi fácil a princípio, e a marcha da coluna ficou
efetivamente desapercebida dos defensores de Roma até a estrada consular da
porta Angélica; ali porém ao primeiro brilho das armas francesas um fogo
terrível lançado de todo o circuito dos jardins pontificais recebeu a coluna, e uma
das primeiras balas matou o capitão Faby que a conduzia.
Apesar de privada do seu guia a coluna defendeu-se valorosamente por
algum tempo, respondendo ao togo das muralhas, mas dizimados e destruídos,
tendo na retaguarda as nossas tropas de Monte-Mario, na frente o fogo do castelo
Saint-Ange que lhes tomava o caminho da porta Angélica, expostos a descoberto
ao chuveiro de balas e metralha que saía dos jardins do Vaticano, e que lhes não
permitia readquirir as suas antigas posições; os franceses foram obrigados a
refugiar-se nas casas dispersas nas vinhas e espalharem-se pelo comprimento da
estrada, onde a nossa artilharia continuou a fulminá-los.
Assim, pois, uma brigada completa que formava o flanco esquerdo do
corpo do exercito francês achou-se separada do seu centro, e correndo perigo de
ser toda prisioneira.
Por felicidade para o general Levaillant as nossas tropas de Monte-Mario
não desceram, e dois mil homens aglomerados atrás da porta Angélica não se
moveram.
O general em chefe não era mais feliz à direita, quero dizer, no ponto em
que havia combatido Garibaldi; um instante o fogo e a luta haviam cessado pela
retirada dos franceses; mas sendo sua gente repelida, o general Oudinot receava
ver cortadas as suas comunicações com Civita-Vecchia, e tinha compelido para a
frente os restos da brigada Moliére, e o combate resfriado um instante, retomara
novo ardor. Mas a ciência da guerra, a disciplina, a coragem, o ataque impetuoso,
tudo caiu ante os nossos soldados, apesar de sua juventude e inexperiência.
É que Garibaldi estava ali, erguido a cavalo, com os cabelos soltos ao
vento, como a estátua de bronze do deus dos combates.
À vista do invulnerável, cada um se recordou das façanhas dos imortaius
antepassados e desses conquistadores do mundo de que eles pisavam as
sepulturas; ter-se-ia dito que todos sabiam que a sombra dos Camillos, dos
Cincinnatos e dos Césares os olhavam do alto do Capitólio. À violência, à fúria
francesa, opunham o sossêgo romano, a vontade suprema da desesperação.
No fim de quatro horas de um combate obstinado, o chefe de um batalhão
do 20º de linha, hoje general Picard, graças a prodigiosos esforços, a uma
coragem desmedida, apoderou-se com trezentos homens de uma posição bela,
forçando os jovens universitários a abandoná-la ; mas quase imediatamente,
Garibaldi tendo recebido um batalhão de exilados comandado por Arcioni, um
destacamento da legião romana, com duas companhias da mesma legião, pôs-
se-lhe à frente, e de cabeça baixa, baioneta cruzada, retomou a seu turno a
ofensiva, e com um fogo irresistível, destruindo todos os obstáculos, envolveu na
casa de que ele havia feito uma fortaleza, o chefe do batalhão, Picard, que
atacado de todos os lados pelos nossos, e de face por Nino Bixio, que lutou corpo
a corpo com ele, foi forçado a render-se com os seus trezentos homens.
Esta luta agigantada decidiu a refrega, e mudou completamente a face às
coisas. Já não era questão saber se Oudinot entraria em Roma, mas sim se
poderia volver para Civita-Vecchia.
Garibaldi, com efeito, senhor da villa Pamphili e da posição dos
aquedutos, dominava a via Aureliana, e por um movimento rápido podia
preceder os franceses em Gastei di-Guido e fechar-lhes a estrada.
O resultado deste movimento era certo; a ala esquerda dos franceses,
esmagada nos jardins do Vaticano e abrigada, como o dissemos, nas casinhas
dispersas, não podia bater em retirada sem se expor ao fogo exterminador da
artilharia e da fuzilaria dos muros.
A ala direita, batida e dispersada por Garibaldi, achava-se nesse momento
de desanimação fatal que se segue a uma derrota inesperada, e podia apenas
opor uma fraca resistência. Além disto, os franceses estavam extenuados por um
combate de dez horas, e sem cavalaria alguma que protegesse a sua retirada.
Nós tínhamos dois regimentos de linha em reserva, dois regimentos de
dragões a cavalo, dois esquadrões de carabineiros, o batalhão dos lombardos,
comandado por Manara, preso, é verdade pela palavra de Manucci, e por detrás
deles um povo inteiro.
Garibaldi tinha previsto a situação porque do campo de batalha, escrevia
ao ministro da guerra Avezzana :
Mas então, diz-se, o triumviro Mazzini opôs sua palavra potente a este
projeto.
– Não façamos, disse ele, da França um inimigo mortal, por uma derrota
completa, e não exponhamos nossos jovens soldados de reserva em campo raso,
contra um inimigo batido, mas valoroso.
Este grave erro de Mazzini roubou a Garibaldi a gloria de um dia à
Napoleão, e tornou infrutuosa a vitória de 30; erro fatal e entretanto desculpável
para um homem que tinha firmado todas as esperanças no partido democrático
francês de que Ledru-Rollin era chefe, erro que teve para a Itália incalculáveis
consequências.
O plano de Garibaldi, se se houvesse adotado, podia mudar os destinos da
Itália.
De feito a posição era das mais simples, e eu o recordo, hoje que os ódios
políticos estão extintos, e que um novo dia brilha para a Itália à lealdade dos
nossos próprios adversários.
Oudinot tinha atacado Roma com duas brigadas, uma sob as ordens do
general Lavaillant, outra sob as do general Manara: um batalhão de caçadores a
pé, doze peças de campanha e cinquenta cavalos, completavam a divisão; vimos
a que penoso estado ficara reduzido na noite de 30 de Abril este corpo de
exército, cuja ala esquerda tinha sido inconvenientemente alongada e a ala
direita reunida sobre seu centro por Garibaldi, senhor da villa Pamphili, dos
aquedutos e da antiga via Aurelianna; era preciso sem perder um instante e com
todas as tropas disponíveis, marchar para a frente, forçar os franceses ou a uma
fuga rápida, necessária, se quisessem ganhar Civita-Vecchia, ou a um novo
combate, que terminasse por sua completa destruição na desfavorável situação
em que se achavam.
Ou o exército francês teria sido destroçado ou forçado a depor as armas.
O que há nisto de curioso é que durante toda esta marcha, as músicas
militares romanas tocaram a Marselhesa, combatendo aqueles, que animados
por este canto tinham vencido a Europa.
É verdade que eles já não cantavam.
Além dos mortos e feridos que nos fizeram, as balas e projéteis causaram
nestes encontros grandes danos aos nossos monumentos, e não podemos deixar
de nos rirmos tristemente quando lemos nos jornais franceses que o cerco
cresceria provavelmente em extensão pelo cuidado que tinham os engenheiros
de não ofender os monumentos artísticos.
As balas e os tiros de canhão batiam, com efeito, e se espalhavam como
chuva sobre a cúpula de São Pedro e sobre o Vaticano.
Na capela Paulina, enriquecida com pinturas de Miguel Angelo, de
Zuccari e de Lourenço Sabati, uma das pinturas foi diagonalmente ferida por um
projétil.
Na Sistina um outro danificou um caixão pintado por Buonaroti.
Enfim, os franceses perderam estes combates, feridos e prisioneiros,
trezentos homens. Pela nossa parte tivemos uma centena de homens mortos ou
fora de combate e um prisioneiro.
Este prisioneiro era o nosso capllão Ugo Bassi que em um dos nossos
movimentos de reanimar, tendo encostado aos joelhos a fronte de um
moribundo, junto ao qual se havia sentado para o consolar, não quis abandoná-lo,
senão quando ele exalou o derradeiro suspiro.
Advinha-se facilmente a alegria que se apoderou de Roma em a tarde e
noite que se seguiu a este primeiro combate. Fosse qual fosse o aspecto que dali
em diante tomassem as coisas, a história, pelo menos assim se julgava, não
negaria que não só tínhamos feito frente um dia inteiro aos primeiros soldados do
mundo, mas ainda os havíamos forçado a retirar.
A cidade foi toda iluminada, tomando o aspecto de uma festa nacional: de
todos os lados ouviam-se cantos e músicas. Saindo do quartel general estes cantos
e estas músicas atormentavam os corações dos soldados prisioneiros.
O capitão Faby, voltando-se para um oficial romano, era o historiador
Vecchi, perguntou-lhe:
– Esta alegria e estes cantos são para nos insultar?
– Não, lhe respondeu Vecchi, não suponhais tal; o nosso povo é generoso e
não insulta a desgraça; mas festeja o seu batismo de sangue e de fogo. Vencemos
hoje os primeiros soldados do mundo; querereis impedi-lo de aplaudir a memória
dos mortos e a ressurreição da nossa velha Roma?
Então o capitão Faby mostrou-se vivamente tocado por esta resposta, que
era feita em excelente francês, e tão tocado que, com as lágrimas nos olhos,
gritou:
– Pois bem, debaixo desse princípio, viva Roma e viva a Itália!
Nenhum soldado prisioneiro foi enviado ao quartel que lhes havia sido
destinado, sem que recebesse viveres e que fosse provido de tudo que
necessitava.
Quanto aos oficiais que tinham perdido a espada, foi-lhes no mesmo
instante entregue uma outra.
No seguinte dia, 1º de maio, ao raiar d’alva, o infatigável Garibaldi,
havendo recebido do ministro da guerra autorização para atacar os franceses
com a sua legião, quero dizer, com mil e duzentos homens, dividiu-a em duas
colunas, de que uma parte saiu pela porta Cavallegieri com Masina, e a outra sob
suas ordens, pela porta São Pancracio. A pouca cavalaria que tinha foi
aumentada com um esquadrão de dragões.
O fim de Garibaldi era surpreender os franceses no seu acampamento e
dar-lhes batalha, ainda que as suas forças fossem seis vezes menores que as
deles; além disso esperava que ao ruído da fuzilaria e da artilharia, o povo todo
correria em seu socorro.
Mas chegado ao campo soube que os franceses tinham partido durante a
noite, retirando-se para Castel-di-Guido, e que Masina que tinha seguido caminho
mais curto se havia encontrado com a sua retaguarda e batalhava com ela.
Garibaldi então dobrou a marcha, e alcançou Masina perto da hospedaria
de Mallagrota, onde os franceses se reuniam e pareciam aprestar-se para o
combate. Tomou logo o flanco do exército francês, sobre uma elevação, posição
vantajosíssima; mas no momento em que os nossos iam carregar, um oficial
destacando-se do exército, pediu para falar a Garibaldi.
Garibaldi ordenou que o conduzissem.
O parlamentado disse que era enviado pelo general em chefe do exército
francês para tratar de um armistício e assegurar-se se realmente o povo romano
aceitava o governo republicano e queria defender seus direitos.
Como prova das leais intenções do general, aquele propunha nos entregar
o padre Ugo Bassi, feito prisioneiro na véspera como já dissemos.
Durante isto, chegava-nos a ordem do ministro pedindo a Garibaldi de
volver à Roma.
A legião ali entrou pelas quatro horas da tarde, levando consigo o
parlamentado.
O armistício pedido pelo general Oudinot foi-lhe concedido.
LVI – Expedição contra o Exército Napolitano (por Medici)
“No momento em que soavam seis horas, o general apareceu com seu
estado-maior e foi recebido por um trovão de vivas; via-o pela vez primeira; é
um homem de mediana estatura, rosto crestado pelo sol, mas com linhas de uma
pureza estranha; estava sentado sobre o cavalo, tão tranquilo e firme como se ali
houvera nascido; debaixo do seu chapéu de largas abas e copa estreita, ornada de
uma pluma de avestruz, se espalha uma floresta de cabelos; uma barba ruiva lhe
cobre a parte inferior do rosto; sobre sua camisa vermelha traz um ponche
americano branco; debruado de vermelho como a camisa. Seu estado-maior
trazia a blusa vermelha, e mais tarde toda a legião italiana adotou esta cor.
Atrás dele cavalgava o seu palafreneiro, negro vigoroso que o tinha
seguido da América; vinha vestido com um manto preto, e armado de uma lança
de lâmina vermelha.
Todos os que tinham vindo com ele da América traziam à cintura pistolas
e punhais de um belo efeito; cada um tinha na mão um chicote de pele de
búfalo.”
G. Medici.
LVII – Combate de Velletri
“Cidadão general:
A minha íntima convicção é que o exercito da república romana
combaterá um dia ao lado da república francesa para sustentar os mais sagrados
direitos dos povos. Esta convicção me leva a fazer-vos propostas que espero
aceiteis. Está assinado um tratado entre o governo e o ministro plenipotenciário
de França, tratado que não recebeu a vossa aprovação.
Não entro nos mistérios da política, mas dirijo-me a vós na qualidade de
general em chefe do exército romano. Os austríacos estão em marcha; tentam
concentrar suas forças em Foligno; dali, apoiando a sua ala direita no território
toscano, tem o desígnio de avançar pelo vale do Tibre e de operar pelos Abbruzos
a sua junção com os napolitanos. Não creio que possais ver com indiferença
realizar-se tal plano.
Julgo dever comunicar-vos as minhas suposições acerca dos movimentos
austríacos, sobretudo no momento em que a vossa indecisa atitude favorece
nossas forças e pode dar um sucesso ao inimigo. Estas razões parecem-me
poderosíssimas para que vos peça um ilimitado armistício e a notificação das
hostilidades quinze dias antes de as recomeçar.
General, julgo este armistício necessário para salvar a minha pátria, e
peço-o em nome da honra do exército e da república francesa.
No caso em que os austríacos apresentassem as suas cabeças de coluna
em Civita-Vecchia, é sobre o exercito francês que, perante a historia, recairia
esta responsabilidade de nos ter forçado a dividir as nossas forças em um
momento em que elas nos são tão preciosas, e de ter, obrando assim, assegurado
o progresso aos inimigos à França.
Tenho a honra de vos pedir, general, uma pronta resposta, rogando-vos de
receber a saudação fraternal.
Roselli.”
É nesta batalha que o tenente Moronini, pobre moço que ainda nçao tinha
vinte anos e que se bateu como um herói, foi morto, recusando render-se.
No meio da sanguinolenta confusão, chegou-me um mensageiro da
Assembleia, convidando-me a voltar ao Capitólio.
Devo a vida a esta ordem. Havia de ter feito com que me matassem.
Descendo pela Longara com Vecchi, que era membro da Constituinte,
soube que o meu pobre negro Aguiar acabava de ser morto.
Tinha-me pronto um cavalo de retorno, e uma bala lhe atravessara a
cabeça. Sofri uma dor terrível; perdia mais que um servidor, perdia um amigo.
Mazzini tinha já anunciado à Assembleia o ponto em que estávamos.
Havia só três partidos a tomar, dissera ele:
Convencionar com os franceses;
Defender a cidade de barricada em barricada;
Ou sair da cidade, Assembleia, triumvirato e exército, levando consigo o
paládio da liberdade romana.
Quando apareci à porta da sala, todos os deputados se levantaram e
aplaudiram.
Eu procurava ao redor de mim que coisa deveria despertar seu
entusiasmo a este ponto.
Achava-me coberto de sangue, meus fatos crivados de balas e
baionetadas. O meu sabre, cegado à força de golpes, não entrava senão até ao
meio da bainha.
Gritaram-me:
– À tribuna! À tribuna!
Subi.
De todos os lados era interrogado.
– Toda a defesa é doravante impossível, respondi, a menos que não
façamos de Roma uma segunda Saragosa. Em 9 de Fevereiro propus uma
ditadura militar; só ela podia pôr sobre pé cem mil homens armados. Então
existiam os elementos vivazes: era mister procurá-los, ter-se-iam encontrado
num homem corajoso. Nesta época a audácia foi repelida, os pequenos meios
levaram-na.
Eu não podia avançar mais o argumento. Cedi. Retinha-me a modéstia;
porque, sinto-o, eu teria sido esse homem. Curvei-me nisto ao princípio sagrado,
que é o ídolo do meu coração. Se me houvessem escutado, a águia romana teria
de novo feito seu ninho sobre as torres do Capitólio, e com os meus bravos, e os
meus bravos sabem morrer, bem o tem visto, eu teria mudado a face da Itália.
Olhemos com a fronte erguida o incêndio que já não podemos dominar. Saiamos
de Roma com todos os voluntários armados que quiserem seguir-nos. Onde nós
estivermos, estará Roma. Eu não me comprometo a coisa alguma; mas o que um
homem pode fazer fa-lo-ei, e refugiada em nós a pátria não morrerá.
Esta proposta, já feita por Mazzini, foi rejeitada.
Henrique Cernuschi, o bravo Cernuschi,um dos heróis dos cinco dias
milaneses, o presidente da comissão das barricadas romanas, rejeitou-a.
Sucede-me na tribuna e com as lágrimas nos olhos e a voz abafada:
– Sabeis todos, disse ele, se eu sou um ardente defensor da pátria e do
povo; pois bem, sou eu que vo-lo digo, não temos um só obstáculo a opor aos
franceses, e Roma e o seu bom povo – as lágrimas o abafavam – devem
resignar-se à ocupação.
Depois de uma curta deliberação a Assembleia lavrou o decreto seguinte:
“República romana.
Em nome de Deus e do povo.
A Assembleia constituinte romana cessa uma defesa impossível. Fica no
seu posto.
O triumvirato é encarregado da execução do presente decreto.”
LXII – Quem Me Ama, Segue-me
Giuseppe Garibaldi
_______
Alexandre Dumas.
LUCIANO MANARA
EMÍLIO MOROSINI
GODOFREDO MAMELI
Bertani.
Confira outros lançamentos da Editora Barbudânia.
Curta nossa página. Dê sua opinião sobre os títulos lançados, critique, mostre
erros ortográficos, gramaticais, etc.
Você também pode sugerir quais outras obras em domínio público a Ed.
Barbudânia deveria lançar.
https://www.facebook.com/EdBarbudania