Gustavo Bomfim Teoria Transdiciplinar
Gustavo Bomfim Teoria Transdiciplinar
Gustavo Bomfim Teoria Transdiciplinar
Transdisciplinar do Design:
morfologia dos objetos de uso e
sistemas de comunicação*
F oundation of a Transdisciplinary
Design Theory: morphology of
products and communications systems
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Por outro lado, existe a crença de que o design Mas, se a criação de uma Teoria do Design for
se caracteriza mais pelo seu campo de ação do utópica, pela sua própria complexidade, a práxis
que pelo domínio de um corpo teórico próprio, do design, como atividade conciliadora, também
pois a variabilidade e a complexidade dos seria uma utopia, pois não há como estabelecer
temas tratados por esta atividade impediriam, a limites sobre o que se deve considerar no
priori, a determinação de um conjunto de processo de criação, desenvolvimento e
conhecimentos adequado à resolução de todos utilização de um objeto. Os limites só podem
os possíveis problemas práticos. Em outras ser determinados artificialmente, quando há
palavras, a instabilidade acima mencionada consenso sobre quem fala (cria, projeta,
seria causa suficiente para desencorajar percebe, experimenta ... ), como fala (linguagem,
qualquer tentativa de formular uma teoria. Esta pensamento, percepção ... ), sobre o que fala
é a base do raciocínio post hoc, ergo propter (objeto, fato ... ). E, notoriamente, este
hoc 6 ainda corrente no meio acadêmico e "consenso" se obtém no cotidiano de modo
profissional: "design se aprende fazendo". Sob arbitrário, já que a abrangência e a profundidade
esta ótica, mais importante do que o conteúdo das soluções são definidas por critérios que não
das ciências que intervêm no processo de pertencem ao plano da teoria ou da práxis do
configuração de objetos é o conhecimento das designo Prazos e orçamentos quase sempre
linguagens utilizadas por elas e por outras falam mais alto e calam eventuais pretensões
formas do saber que não pertencem à categoria (ou lacunas) do saber e do fazer.
científica. Assim, o design abre mão de tentar
construir um corpo teórico próprio, em troca Discutir a possibilidade de uma Teoria do
dos conhecimentos de disciplinas diversas, Design exige questionamento mais amplo, que
combinando-as de modo particular em cada deve anteceder qualquer movimento:
situação específica. O design, através de sua
• como promover a interação entre
práxis, seria o elo conciliador ou interventor
conhecimentos científicos que, por razões
entre especialistas de diversas áreas. A
ontológicas, metodológicas e axiológicas
interdisciplinaridade, como condição inerente e
são irreconciliáveis, ou seja, como constituir
essencial à prática do design, dispensaria a
uma Teoria do Design, que permita o,
constituição de uma outra teoria, que, de resto,
trânsito entre áreas distintas do
seria inviável, pois seu campo de
conhecimento, sem impor redução a estes
conhecimentos não conheceria fronteiras.
conhecimentos?
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é a exceção, e não a regra, no processo de denunciado por Chaplin em Tempos
configuração de objetos. Modernos.
Como atividade recente, que busca métodos e É importante lembrar ainda, que, em virtude do
conteúdos próprios, o design é interpretado ora vazio deixado pela decadência dos grandes
como tecnologia básica, ora como valor relatos do Moderno (hermenêutica do sentido,
agregado, ora como instrumento de dialética do Espírito, Liberdade etc.) e do
publicidade, sempre de acordo com discursos surgimento de "pequenos" relatos, que Lyotard
imperativos. Neste sentido, não é temerária a denomina como "jogos de linguagem",
hipótese de que a fundamentação do design é "agonística" ou "paralogia"9 , a ciência e a
essencialmente ideológica. Assim, uma eficiência de suas aplicações tecnológicas
definição formal sobre os objetivos do design é assumiram o papel de legitimadores de si
necessariamente comprometida e restrita à próprios, o que evidentemente é paradoxal,
literatura, pois sua legitimidade só é alcançada mas real. Na atualidade, a ciência não se limita
em função da eficácia da práxis, nos contextos mais a apresentar enunciados denotativos sobre
cronológicos e cosmológicos em que se insere. aquilo que é ou pode vir a ser realizável, mas
O design seria, antes de tudo, instrumento para invade o campo da ética, emitindo, ela própria,
a materialização e perpetuação de ideologias, enunciados assertivos.
de valores predominantes em uma sociedade,
ou seja, o designer, conscientemente ou não, O viés ideológico e/ou utópico do design não é
re-produziria realidades e moldaria indivíduos descoberta recente. Aliás, um dos clássicos da
por intermédio dos objetos que configura, literatura sobre a configuração de objetos tem
embora poucos designers aceitem a faceta exatamente este título lO • A novidade é o
mimética de sua atividade. desenvolvimento de uma estratégia do
esquecimento, que substitui gradativamente os
Aqui é interessante observar que, se por um discursos filosóficos, políticos ou éticos que,
lado a genética reconhece as graves ao longo da história, procuraram legitimar não
implicações éticas de suas possibilidades só a prática do design, mas a práxis de modo
práticas, como demonstram as discussões em geral, pelas leis de mercado, que promovem o
curso na mídia, pouca atenção se dá ao fato de primado do consumo. Este fato se apresenta
que a "clonagem" de seres teve início há muito
tempo, a partir da padronização do meio em
9 LYOTARD, J. F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro :
que estes vivem e operam, processo cada vez José Olympio, 1986.
mais acelerado, e por muitos desejado, na
10 SELLE, G. Ideologia y Utopia dei Disefío. Barcelona:
globalização de mercados, como já havia sido Gustavo Gili, 1974.
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Fowu1ation oJa Transdisciplinary Design Theory: morphology oJproducls and communicalions syslems
Em qualquer um dos dois casos cabem duas fundamentos teóricos constantes nos projetos
advertências: em primeiro lugar, métodos são são introduzidos a posteriori, para justificar
modelos matemáticos ou lingüísticos de algo resultados previamente alcançados através de
mais complexo, ou seja, o método está no lugar outros recursos extracientíficos.
de alguma outra coisa, tomado-a mais simples e
operacional. Por exemplo, o valor estético de Na prática também são conhecidas as enormes
um objeto e seu significado simbólico podem dificuldades em relacionar diferentes formas de
ser representados através de expressões conhecimento, sejam eles científicos ou não.
numéricas, que permitem operações de soma ou Em outras palavras, entre as teorias
multiplicação. A quantificação é possível, mas disciplinares e sua aplicação em situações de
precária diante da qualificação, que por sua vez projeto não há nenhuma instância intermediária
depende de um interpretante e, portanto, é que facilite o trânsito de conhecimentos, e esta
imprecisa. Em segundo lugar, uma vez que os situação é exemplar no meio acadêmico, quando
métodos fazem uso de linguagens, denotativas se espera que um estudante seja capaz de
ou conotativas, dizem algo sobre a realidade, combinar diferentes informações, apresentadas
mas não são em si a própria realidade. Em em disciplinas isoladas, para solucionar os
resumo, métodos são relatos descritivos ou múltiplos problemas de um projeto. Do mesmo
prescritivos sobre o real e, se em um primeiro modo, são comuns as lamentações de
momento o sujeito cria o método, uma ótica e coordenadores de curso sobre as dificuldades de
uma maneira determinadas de pensar e agir, no se encontrar professores adequados de outros
momento seguinte a persistência desta ótica e departamentos, que compreendam as demandas
desta maneira de agir modelam a realidade e, específicas do design, algo como, por exemplo,
por extensão, o próprio sujeito. A teoria da uma "matemática para o design", mesmo
relatividade, por exemplo, demonstrou que a quando se sabe que a matemática é uma só.
perspectiva derivada da geometria euclidiana é
mera convenção, inaugurada no Renascimento, A questão metodológica revela um dos mais
ou seja, um modo "ideológico" de ver o mundo. difíceis obstáculos para a constituição de uma
No entanto, seu uso continuado através de cinco Teoria do Design: as diferentes linguagens
séculos transformou-a em forma ideal e "real" empregadas pelas ciências, às quais a práxis se
de representação. relaciona. Quando um designer procura, por
exemplo, utilizar elementos da ergonomia, da
Teoria e senso comum, conceitos e pré- estética e da serniótica na configuração de um
conceitos, conhecimento e intuição são pares objeto, depara-se, não raramente, com
constantes no decorrer de projetos, em situações antagônicas, pois estas ciências
mag ni tude tal que muitas vezes os emitem enunciados em códigos diferentes,
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E é talo resultado desta consideração: vemos usuário como "processo de utilização", uma vez
uma rede complicada de semelhanças, que se que, do ponto de vista ontológico, os objetos
envolvem e se cruzam mutuamente. são extensões de um indivíduo em suas relações
Semelhanças de conjunto e de pormenor. com outros indivíduos e com o meio ambiente.
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Outros exemplos de descrição e classificação variáveis de difícil controle. Experimentos
dos fatores da figura permitem afirmar que as desta natureza comprovam apenas que há
diferenças entre eles decorrem de duas diferenças entre os indivíduos, de acordo com
variáveis mais importantes: o grau de faixas etárias, meio socioeconômico, grau de
especificidade ou generalidade com que se instrução, formação cultural, ambiente
caracteriza a figura (por exemplo: ponto, linha geográfico etc., o que torna inviável qualquer
e plano ou forma geométrica) e as diferentes generalização 16 .
possibilidades de análise de cada fator na
relação objetiva/subjetiva: a textura de um A determinação das características da figura
material, por exemplo, é um atributo físico, depende da natureza e da complexidade da
objetivo, embora dependa da visão ou do tato observação da relação objetivo-subjetiva, e
de um sujeito para ser reconhecida. Ainda estas duas variáveis permitem constituir
assim, considerando o reconhecimento da diferentes "gramáticas", que, atualmente, só
textura através da visão, esta pode ser podem ser associadas pelo recurso da adição.
percebida de modo diferente por distintos Estas gramáticas determinam níveis de
sujeitos e até mesmo por um mesmo sujeito, complexidade crescentes na relação objetivo/
dependendo da intensidade e localização de subjetiva. Nível objetivo, em que interessam as
um ponto de luz. A cor, por sua vez, é uma características físicas da figura, sua textura,
sensação, portanto subjetiva, ainda que esta sua cor e suas dimensões. Um objeto, por
sensação possa ocorrer de modo semelhante exemplo, tem um determinado peso, que pode
para diversos indivíduos em relação a um se manter inalterado, embora nada se possa
objeto. afirmar ainda sobre sua qualidade (leve,
pesado). Nível bio-fisiológico, relação que
Várias pesquisas no campo da sociologia são privilegia a compreensão do indivíduo como
realizadas com o intuito de responder a três um conjunto de órgãos sensoriais, através dos
questões essenciais: é possível identificar quais ele pode estabelecer contato com a
através da história leis que determinaram realidade. Neste nível de análise o ver, o ouvir,
preferências por fatores da figura de um o tocar são sensações, que produziriam efeitos
objeto? Em caso afirmativo, em que princípios apenas no plano fisiológico ou biológico. A
se fundamentam estas leis? E, finalmente, seria sensação de calor ou frio pode proporcionar
possível estabelecer relações que permitissem desconforto e alterações na homeostase do
prever mudanças futuras? Estas experiências sujeito, que reagirá também no plano bio-
sobre preferências por cores, formas
geométricas, texturas e outras características
16BECKER, U. Erkundung von Wertvorstellungen. In :
objetivas são sempre empíricas e envolvem Anais do Congresso Erkundungen. Stuttgart, 1986.
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Conhecimento linear-horizontal (interdisciplinar)
Conhecimento
linear-vertical
(disciplinar)
Resumo
Através do estudo dos objetivos, métodos e conteúdos do
Design, este trabalho apresenta algumas questões
relativas a problemas envolvidos na formação de uma
Teoria do Design. Alguns indicadores são considerados
para sustentar a hipótese de que uma Teoria do Design
seria transdisciplinar.
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