KUSNET, Eugênio - Iniciação À Arte Dramática PDF
KUSNET, Eugênio - Iniciação À Arte Dramática PDF
KUSNET, Eugênio - Iniciação À Arte Dramática PDF
e ~
à arte EUGENIO KiJS~\..
dramática ~.
r)/TOPA BRASllIENSf
Lm 1961, por iniciativ a do Teatro Oficina Eugenio
Kusnet iniciou um cur o de interpretação. O grande uce o
obtido, compro -ad o pelos 9 cur o que e
sucederam com mais de trezento atore formado;
profis ionai e amadore , levaram a edição dê te livro,
sÍnte e da apostilhas que por iniciati 'a da niver idade
Iackenzie e posteriormente da Univer idade
atólica, no cursos lá formados, foram
redigida e mimeografada atendendo a nece sidade
de sistematização e fi 'ação das aulas.
O trinta ano de teatro do autor, tanto prático quanto
teóricos e os sete ano de suces o obtido com o
aperfeiçoamento constante da apostilha que lhe deram
origem conferem a e ta publicação o caráter de
indispensável a todos os que se intere sam pelo' teatro.
RODOLFO N AN NI
I
EM TõDAS AS LIVRARIAS OU PELO
REEMBõLSO POSTAL
Rua Barão de Itapetinin&,a, 93 - 12.0 andar
Caixa Postal 30.U' • São Paato
Revisão ortográfica
BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA
Capa de
TlDE HELLMEISTER
E D I T ô R A B R A S I L I E N S E Soe. An.
Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12.0 andar
São Paulo - Brasil
1968
EUGt;:NIO RUSNET
INICIAÇÃO
"
A ,
ARTE DRAMATICA
EDITORA BRASILIENSE
sro PAULO
1968
À minha amiga, a grande
atriz brasileira, Fernanda Mon-
tenegro, dedico com tôda a ter-
nura êste pequeno trabalho.
EUG~NIO KUSNET
íNDIOE
PREFÁCIO •••••••••••••••••••••••••••.••••••••••••••••••••• 11
PRIMEIRA AULA......................................... 15
SEGUNDA AULA 25
TERCEIRA AULA 43
QUARTA AULA 53
QUINTA AULA 63
SEXTA AULA 75
Sl!:TIMA AULA........................................... 83
OITAVA AULA........................................... 91
NONA AULA 99
Dl!:CIMA AULA ................................•......... 113
PREFÁCIO
12 Eugênio Kusnet
as minhas, embora muito vagas, mas que surgiram sob
a influência dêle naquela época, é que eu concebi a idéia
de lecionar Arte Dramática na base do Método.
Portanto, não sou nenhum "especialista em Stanis-
lavski", nunca fui seu alcno, nem tive a honra de con-
tato profissional com êle. Sou apenas um dos muitos pes-
quisadores que procura, na medida do possível, ser útil
aos que se interessam pelo trabalho de teatro. Lecionando
eu continuo a aprender: durante êsses sete anos meus
alunos me ensinaram muito daquilo que, sozinho, nunca
conseguiria descobrir.
E agora vamos ao que interessa.
18 Eugênio KÚ81Iet
diretor use o que achar conveniente e de acôrdo com seus
princípios artísticos, contanto que isso não somente não
prejudique, como também ajude, coopere na realização do
mais importante: a revelação do rico e complicado mundo
interior do homem. Do contrário, o ator não terá nada
que fazer e o diretor nada que procurar". E depois: " O
espetáculo só se realiza quando se consegue revelar êsse
mar de idéias, emoções e desejos; e um mundo inteiro
em cada gôta dêsse mar".
Apesar do seu modernismo, Okhlópkov se enquadra
perfeitamente dentro dos princípios do Método.
É interessante notar que os mais extremados "esquer-
distas" de teatro não fogem dêsse fator - a vida do
espírito humano. Eugêne Ionesco, num artigo em que êle
explica como, a seu ver, deve ser o teatro de hoje, escreve:
"Le théâtre est dans l'éxageration extreme des sentiments,
I'éxageration qui disloque le réel". Portanto, embora extre-
mamente exagerados, os sentimentos continuam a existir
no seu teatro; portanto, existe nêle a vida do espírito
humano.
Assim se apresenta a primeira parte da definição de
Stanislavski : "A capacidade de representar a vida do
espirito humano".
Quanto aos outros dois detalhes da definição, êles
são óbvios: "Representar ... em público . . . " Não se pode
conceber o teatro sem espectador, - êle faz parte da
própria natureza desta arte.
E, finalmente: "... em forma artística". A ação
teatral não deve ser feia. Com isso eu não quero dizer
que ela deve ser "bonita", ela pode ser horrorosa, horripi-
lante, mas, ao mesmo tempo, bela, como é bela a cena da
morte de Desdêmona, apesar do horror que ela causa ao
espectador. Sabemos que a vida humana está cheia de
detalhes feios e que êsses detalhes talvez tenham que fazer
parte da ação teatral, mas cabe aos intérpretes dar-lhes,
na medida do possível , um aspecto que não prejudique
o belo da ação. Uivos prolongados de um homem subme-
tido à tortura, excesso de sangue e uma ferida aberta
numa cena de assassinato, detalhes de vômito numa cena
de doença, todos êsses detalhes, embora representem aspec-
I
gem". Stanislavski foi obrigado a incluir isso no texto
porque a menina não mudava a sua convicção de que sua
filha estava com dor de barriga. Não é um exemplo mara-
vilhoso de inspiração desses melhores atôres do mundo, •
as crianças?
Quanto às suas observações no trabalho de Tomaso
Salvini, Stanislavski constatou que, apesar de sua capa-
cidade de adquirir a fé, Salvini não se limitava a esperar
"o santo baixar". Êle chegava ao teatro duas, três horas
antes do início do espetáculo; lentamente vestia, peça por
peça, a roupa do personagem; a sua maquíagem também I'
levava muito tempo: êle observava como, pouco a pouco,
surgia no espelho o rosto do personagem; e depois disso, '
já vestido e maquiado, êle subia ao palco deserto e andava 1,
sozinho pelos cenários da peça. E só depois começava o I
espetáculo.
22 Eugtlnio Kusnet
Porque Salvini fazia isso.? Pois se êle podia con-
seguir a inspiração instantâneamente! Bastava fazer isso
no último momento! Sim, perfeitamente. Mas então é de
se supor que Salvini não ficava satisfeito com o resultado
obtido, e que foi por isso que passou a procurar os efeitos
da inspiração três horas antes do espetáculo, e depois,
pouco a pouco, punha essa inspiração a funcionar mate-
rialmente, isto é, transformando-a em ação, começando a
agir como se [ ôsse o pereoncçem; Dessa maneira êle tor-
nava a ação não casual, como muitas vêzes acontece sob
o efeito da inspiração, e sim costumeira, exercitada, que
êle podia repetir a qualquer momento.
É curioso que o mesmo se passa com êsses outros
atôres geniais, as crianças: basta sugerir um jôgo, uma
brincadeira para que a imaginação da criança se trans-
forme em ação instantâneamente, mas se a criança repete
o j ôgo, a sua ação torna-se mais rica em detalhes e ainda
mais próxima da "realidade do inventado".
Assim constatamos que, em ambos os casos, a fé
obtida através da inspiração se transforma em ação.
Tanto um ator genial, como uma criança, sob o efeito da
inspiração adquirem a vontade de agir e então agem com
todc o conteúdo da vida do espírito humano.
Sim, êles, os gênios! E nós, coitados? Que devemos
fazer nós que não conseguimos essa fé instintivamente?
Que me adianta tentar o impossível: penetrar no subcons-
ciente de um gênio ou de uma criança para descobrir a
mecânica da inspiração?
E se, em vez disso, eu procurasse analisar e com-
preender como agem os personagens que êles representam?
Em vez de estudar como e por que age Salvini no seu
trabalho de ator, procurasse estudar como e por que age
o Otelo que êle representa? E já que Otelo, embora ima-
ginado por Shakespeare, é um ser humano real, não seria
necessário, antes de mais nada, procurar conhecer tôda
e qualquer ação humana na vida real, e depois, armado
com êsses conhecimentos, não poderia eu usar o caminho
inverso do que os gênios usam, isto é, começar por agir
como personagem na base da simples lógica da vida real,
e então, já agindo, não conseguiria eu acreditar na reali-
I
,
1
24 Eugênio Kusnet
SEGUNDA AULA
l~ão à Ar.teDram4tica~
do verbo operar, ou seja, agir. A palavra "ATOR" que
nos dicionários consta como significando simplesmente
"agente do ato; o que age", é usada quase em tôdas as
línguas como sendo "homem que representa em teatro,
cinema etc." Enquanto aos outros artistas se dá uma de-
finição mais concreta (escultor: o que esculpe; pintor: o
que pinta; violinista: o que toca violino, etc.), ao artista
de teatro ninguém chama de "teatralista" ou coisa que o
valha, mas sim de ator; a uma parte de peça teatral não
chamam de "capítulo" e sim de ato.
Essas nossas considerações que parecem tão óbvias,
quase infantis, são de enorme importância para nós: elas
nos mostram como a idéia da AÇÃO preocupava os ho-
mens de teatro desde milênios e milênios.
Vamos pois analisar como a AÇÃO se processa na
vida real e como ela deve se processar em teatro.
Durante uma aula para um grupo de atôres profis-
sionais, eu pedi a uma aluna, atriz Carmen Montero, que
contasse algum fato impressionante de sua vida. Sua
narração foi por mim gravada.
Ela contou um caso que realmente impressionou mui-
to seus colegas. Às dez horas da noite ela foi atacada numa .
das principais ruas de São Paulo por um indivíduo que
queria levá-la para dentro do seu carro. E como ela re-
sistiu decididamente, foi espancada e atirada no meio da
rua quase inconsciente.
Em seguida ela narrou o que se passou uns dias mais
tarde: quando ela estava passando numa outra rua bas-
tante escura, desceram de um carro dois rapazes, ficando
ainda mais um dentro do carro, e se dirigiram a ela.
Apesar de se ver num perigo muito maior do que na pri-
meira vez (ou talvez exatamente por causa disso), ela
inesperadamente criou coragem porque imaginou que es-
tava armada com um revólver, e pensou: "Agora eu mato
um!" Com as mãos nos bolsos do casaco, ela passou cal-
mamente entre os dois rapazes que não tiveram coragem
de atacá-la. Logo em seguida ela se viu correndo como
uma louca por uma das ruas adjacentes. Essa última parte
foi contada com tanto humor que ela mesma e os ouvintes
riram muito.
Ouvindo a gravação em casa eu fiquei muito impres-
sionado com a expressividade da narração e com a com-
plexidade das emoções da môça, Achei que o material
era digno de ser estudado como uma boa cena de teatro.
Transcrevi a narração e, na próxima aula, propus à mesma
atriz que, depois de ouvir várias vêzes a gravação, estu-
dasse o texto escrito como se fôsse parte de uma peça e,
em seguida, a interpretasse novamente. Notem que se
trata de uma m ôça que eu considero uma jovem atriz de
grande talento e bem estudiosa.
Ela concordou e, depois de uma rápida preparação,
gravou o texto novamente. Surpreendentemente para to-
dos, inclusive para a própria intérprete, todo o valor da
narração espontânea desapareceu. O que era brilhante,
tornou-se monótono; o que produziu compaixão dos ouvin-
tes na primeira narração, provocou sorrisos na segunda;
o que causou risos alegres na primeira, causou uma espécie
de estranheza.
Como podia ter acontecido isso? O problema devia
ser fácil, pois a atriz não precisava de nenhuma expli-
cação , - o texto era dela e o personagem era .ela mesma.
Entretanto, se na primeira vez ouvimos uma exce-
lente interpretação, na segunda foi uma interpretação
cheia de notas falsas ou inexpressivas.
Que aconteceu então? . . . É simples: na primeira vez
essa atriz foi "dir igida" pela melhor diretora do mundo,
dona Natureza, e na repetição, ela simplesmente procurou
imitar a excelente interpretação da primeira vez. Na
primeira ocasião ela não precisou estudar a ação do per-
sonagem, ° personagem era ela mesma e, conseqüente-
mente, ela estava agindo realmente. Que devia ela ter
feito antes de começar a narração pela segunda vez?
Ela devia ter encarado o problema como em teatro,
isto é, realizar o trabalho de uma atriz com um papel,
estudar e compreender as razões, as causas naturais que
a levaram àquela espontaneidade de ação na primeira vez :
com que objetivo ela contou o caso? De que queria con-
vencer os seus ouvintes? Que pensava enquanto dizia esta
ou aquela frase? etc. etc. Pondo em prática os elementos
dêsse estudo, ela estaria agindo como se [ õsse pela primeira
30 Eug8nio KÚ8net
Mas voltemos ao que dissemos a respeito da neces-
~idade de estudar as características da ação na vida real
para, depois, transpô-Ia ao nosso trabalho em teatro.
! A primeira particularidade a ser notada é que, na
vida real, a ação sempre obedece à l6gica. Essa afirmativa,
de início, parece errada. Por exemplo, quem pode consi-
derar lógica a ação de um louco? Realmente, do nosso
ponto de vista, do ponto de vista de gente mentalmente
sã, não existe lógica na ação de um louco. Mas e do ponto
de vista dêle, do louco? Para êle tudo o que êle faz deve
ser perfeitamente lógico. E se nós fazemos o papel de um
louco, a lógica de quem interessa ao espectador, a nossa
ou a do louco?
Isso me faz lembrar o caso de um dos nossos exce-
lentes atôres Sérgio Brito. O caso se passou há mais de
15 anos, pràticamente quase no início de sua carreira
numa peça em que êle fazia o papel de um neurótico em
crise, havia uma cena em que êle beijava um manequim
de matéria plástica, convencido que se tratava de uma
môça viva. Numa certa altura, quando passamos a en-
saiar com as "marcações", o ator começou a cena com uma
porção de gestos, movimentos e entonações de absoluta
incoerência. Quando lhe perguntei a razão disso, êle res-
pondeu: "Mas o personagem é um louco I" Então, anali-
sando as circunstâncias na base de pura lógica, chegamos
à conclusão de que o rapaz não poderia achar nada de
estranho no fato de beijar uma môça de quem gostava
muito. Naquele momento, para êle não existia o mane-
quim artificial, e sim uma pessoa viva. Bastava pois
que o ator agisse com essa lógica e nada mais. O efeito
de loucura era seguro, porque os espectadores viam que,
com tôda essa sinceridade e naturalidade, êle beijava um
manequim, e não uma môça viva. A partir daquele mo-
mento o ator procurava, tanto nos ensaios como nos es-
petáculos, acreditar na realidade da vida do manequim,
sentir através do contato de sua mão, o calor, a maciez
daquele corpo. Como resultado, essa cena sempre pro -
duzia um calafrio na platéia.
Há um outro excelente exemplo de uso da lógica, em
"O Diário de um louco" de N. Gogol, interpretado por
32 E"g~nio Kusnet .
os ruídos da rua para ver mentalmente o que possa amea-
çá-lo, por exemplo, um automóvel que se aproxima en-
quanto êle atravessa a rua. Já que eu vou fazer o papel
de um cego, vou prestar a máxima atenção a êsse parti-
cular e, a título de ensaio, vou andar sem olhar para o
chão procurando imaginá-lo, ou seja, vê-lo mentalmente.
Experimente isso, leitor, da seguinte maneira: peça
que alguém coloque no chão do seu quarto vários objetos,
livros, caixas, táboas etc. Em seguida, atravesse o quarto
de olhos abertos, porém impedindo-se de ver o chão, por
exemplo, segurando na altura do seu queixo um livro ou
um caderno. Ao atravessar o quarto, pense nos obstáculos
cuja posição você ignora, procure vê-los mentalmente quan-
do chegar a tocar nêles com o pé, porque, com um pe-
queno descuido seu, êles podem causar-lhe um tombo.
Ao terminar a travessia, você vai constatar que, ape-
sar de ter andado com os olhos abertos, deixou de ver (ou
quase) o que se achava do outro lado do quarto.
Para maior clareza, faça um colega seu fazer êsse
exercício na sua presença e observe seus olhos enquanto
êle anda: se êle realmente conseguir imaginar o chão com
os obstáculos, vê-lo mentalmente, você verá o olhar de
um cego.
Da mesma maneira podem ser resolvidas outras situa-
ções difíceis: um paralítico que procura andar, uma pes-
sôa que acorda, etc.
Lembro-me que uma outra aluna do curso dos atôres
profissionais me perguntou durante uma aula: "Estou en-
saiando na televisão uma cena em que o meu personagem
age sob hipnose. Como devo encarar êsse problema?"
Respondi que, sendo a hipnose um estado semelhante a
sono, o primeiro problema seria "sentir-se dormindo" e
que, para isso, seria lógico procurar conseguir um estado
de máxima abstração, quando a pessoa está completa-
mente fora do ambiente em que se encontra fisicamente.
Para conseguir essa abstração era necessário encontrar
uma preocupação tão grande que todos os cinco sentidos do
personagem tomassem parte nela. É lógico que, nessas
condições, o ambiente físico deixaria de existir.
Iniciação à Arte Dramática 33
Essa minha explicação não foi suficiente: apesar de
tê-la compreendido teoricamente, a atriz não conseguiu ver!
nela uma solução prática. "Como fazer funcionar os cinco
sentidos numa preocupação imaginária?" - "Como na vi-
da real", respondi eu. "Bem, mesmo assim como isso deve
funcionar"? Uma feliz coincidência ajudou a explicação.
O conhecido psiquiatra, Dr, Bernardo Blay, que assistia à
aula por pura curiosidade, dirigiu-se a uma das alunas:
"O que é que a senhora está fazendo?" A môça em questão
olhou para êle literalmente como se estivesse acordando
naquele momento, e disse: "Nada." E o diálogo seguiu
assim:
- "A senhora ouviu o que nós estávamos dizendo?"
- "Não."
- "Por quê?"
"Eu estava pensando."
- "Em quê?"
- "No exercício que vou fazer agora."
Como vocês vêem, não houve necessidade de uma pre-
ocupação "tão grande" para que ela ficasse completamente
abstraída, bastou uma preocupação pequena" mas real.
A atriz que levantou a questão disse que compreendeu
essa lógica e, mais tarde, contou que a aplicou com suces-
so no seu trabalho.
Mas passemos agora a mais uma característica da
ação na vida real: ela é sempre contínua e ininterrupta.
Nunca deixamos de agir, nem mesmo quando dormimos:
os nossos sonhos talvez sejam a forma mais intensa de
ação na nossa vida. E os bons cristãos dizem que nem a
morte interrompe a ação.
Cada momento de nossa ação na vida real tem seu
passado e seu futuro. Quero dizer que cada momento pre-
sente tem suas origens no passado e seus objetivos no fu-
turo. A frase de Stanislavski: "O nosso "hoje" é apenas
o resultado do movimento do nosso "ontem" em direção
ao nosso "amanhã", define a mecânica da ação contínua
tanto na vida real, como em cena.
Os atôres deveriam preocupar-se muito menos com a
ação do momento do que com a ação anterior e posterior,
34 Eug~nio Kusnet
porque 'a ação do momento 'se realiza auiomãtieamente se
o ator realmente exerce a ação contínua.
Vejamos um exemplo. Uma pessoa vai por uma rua
escura e perigosa, levando consigo uma grande importân-
cia em dinheiro para pagar o resgate de sua filha raptada.
Essa cena foi feita, a título de demonstração durante uma
aula, por uma assistente minha, atriz Júlia Gray, Na pri-
meira tentativa chegamos a sentir nela a presença de um
mêdo real, mas a cena não nos pareceu completa, o perso-
nagem não nos pareceu realmente agindo. Ela estava com
muito mêdo, mas mêdo de quê? J úlía Gray nos explicou
que o mêdo era resultado da ação de quem procura evitar
o perigo da morte ao passar por aquela rua escura em que
ela sentiu a presença dos assassinos. Ora, ela se preocupou
em interpretar unicamente a ação do momento, omitindo
por completo os dados da ação contínua, até o passado e
o futuro da ação, porque na nossa proposição o problema
do personagem não era apenas fugir da morte, e sim fugir
dos assassinos para conservar o dinheiro do resgate para
salvar a vida de sua filha que foi raptada ontem e poderá
ser morta amanhã. Foi por isso que o seu mêdo, embora
real, nos pareceu gratuito. (Veja a fotografia N,? 1).
Quando, depois de levar em consideração as nossas
observações, Júlia repetiu a cena, o resultado foi diame-
tralmente oposto ao primeiro: notamos a presença do ob-
jetivo por nós indicado, isto é, conservar o dinheiro do
resgate, mas o primeiro objetivo, o de salvar sua própria
vida, diminuiu consideràvelmente e, em conseqüência dis-
so, diminuiu também o mêdo. O que nós vemos na foto-
grafia N.? 2 é mais um receio do que um mêdo. Só quando
a atriz conseguiu reunir dentro da sua ação os dois obje-
tivos é que o resultado nos pareceu quase perfeito. (Veja
a fotografia N.° 3).
Em teatro a ação freqüentemente sofre interrupções:
intervalos entre os atos ou quadros, saídas do ator de cena,
grandes pausas em que o ator fica aparentemente inativo.
Que deve fazer o ator para eliminar o efeito nocivo dessas
interrupções? Deve recorrer à ação anterior e posterior,
como vimos no exemplo acima.
Infelizmente nem todos os atôres fazem isso. São ca-
36 EUI~nlo Kumd
nós devemos sentir na sua alegria a influência do seu
cansaço.
As duas formas da ação são ligadas entre si tão inti-
mamente que o ator dificilmente poderá estabelecer como
e onde uma influi sôbre a outra. Só uma experiência ou
um acaso podem indicar-lhe o caminho que deve escolher
no uso dêsse elemento do Método, pois há sempre dois
caminhos: um - de dentro para fora, e o outro - de
fora para dentro. Quero dizer com isso que, por exemplo,
uma emoção adquirida pode produzir um gesto muito ade-
quado, mas também um gesto, encontrado pelo ator atra-
vés de um raciocínio lógico, pode produzir uma emoção
desejada.
A título de maior esclarecimento, quero lhes contar
um caso que me aconteceu durante as representações de
"Canto da Cotovia" de Jean Anouilh, no Teatro Maria
DeIla Costa. Eu me preocupei muito com o lado físico
do comportamento do Bispo Cauchon que eu fazia, pois o
cenário e as roupas eram tão impressionantes que exigiam
um complemento harmonioso por parte do ator. Por exem-
plo, na cena em que Cauchon procura convencer Joana
D'Arc a abjurar, eu fazia um gesto com a palma da mão
virada para cima, gesto êste que, não sei porque, me fazia
sentir mais a harmonia do ambiente. Depois de um dos
espetáculos, o nosso grande cineasta, Lima Barreto, que -
acabava de assistir à representação, me disse que não sen-
tiu naquele meu gesto " um homem de igreja" e que o
gesto deveria ser feito de maneira inversa, isto é, com a
palma da mão virada para Joana, como numa benção, Eu
experimentei e, realmente, me senti muito mais bispo, e
isso me comunicou muito mais a vontade de convencer
Joana. Assim a ação exterior racionalizada, intensificou
a ação interior, ansiedade de convencer Joana.
Em resumo: ao construir seu papel, o ator nunca deve
esquecer a coexistência lógica dessas dois aspectos da ação,
porque só assim êle age realmente.
E agora estamos chegando à última característica da
ação na vida real: não existe ação sem objetivo. Sempre
agimos para conseguir alguma coisa, sempre desejamos
alguma coisa. À primeira vista, isso também não parece
38 Eugênia:Kumet ..
de uma cena em que Maneco faz sinal a seus dois filhos
para que matem o índio que seduziu a sua filha Ana. O
objetivo de Maneco é muito complexo: por um lado, cum-
prir o dever do pai cuja filha foi desonrada, mas por
outro, evitar a todo custo magoar a sua filha adorada.
~sses dois objetivos contraditórios foram cuidadosamente
estudados e usados no trabalho. Casualmente, analisando
com meus alunos alguns detalhes dessa cena, constatamos
que, cobrindo com um cartão a parte inferior do rosto, na
fotografia, e deixando descobertos os olhos, vimos, como
emoção predominante, a crueldade; entretanto, quando co-
brimos com o cartão os olhos, deixando a bõca do perso-
nagem descoberta, encontramos o amargor, e uma tristeza
que chegava às lágrimas; e o conjunto fazia sentir a
complexidade do estado emocional do personagem. Por-
tanto, a presença real dos objetivos do personagem, fêz com
que o ator, embora na imobilidade absoluta da fotografia,
estivesse agindo como personagem.
Quanto mais atraente para o intérprete do papel fôr
o objetivo do personagem, quanto mais complexo fôr o
problema, tanto mais fàcilmente será despertada a ima-
ginação do ator.
O já citado diretor soviético, Nicolái Okhlópkv, disse
num dos seus artigos que o diretor deve colocar o ator
diante das circunstâncias mais complicadas, e ainda pedir-
lhe que as complete com sua imaginação. "Não permita",
escreve êle, "que o ator se sente no lugar mais cômodo pa-
ra êle, porque assim, um dia, na encenação da "última
Ceia", veremos Judas no lugar de Cristo ... " e mais tar-
de: "Não deixe o ator procurar um botão perdido, quando
êle pode procurar um amor perdido."
Para demonstrar que importância enorme tem a atra-
tividade dos objetivos, quero lhes contar um caso que me
parece muito ilustrativo.
Durante os ensaios de "O Canto da Cotovia", na cena
em que Joana D' Arc entra no palácio real, Maria Della
Costa, achava que o estado emocional de Joana devia ser
de timidez, porque ela, uma simples camponesa, pela pri-
meira vez entrava num palácio. Apesar da lógica do
próprio texto em que se sentia sua altivez, apesar das
Iniciação à .~* .
pramátÍÇ{l3~
cenas anteriores em que Joana está em contato direto com
um ser muito superior aos reis, o Arcanjo São Miguel,
Maria não se convencia. Ela raciocinava na base de um
exemplo de sua própria vida, quando ela foi ao Palácio
do Catete para uma audiência com Getúlio Vargas. Ela I'
ia pleitear um subsídio para o seu teatro que, naquela
época, se achava em construção. Ela raciocinava: "Eu vou '.
incomodar o nosso grande presidente com os pequenos pro- '~
blemas do meu insignificante teatro! Já na entrada do
Catete me senti muito intimidada e houve um momento,
em que quase desisti do encontro'.
Vejam bem: com essa forma que tomou o seu obje-
tivo, ela só se podia sentir humilde. E tudo isso provinha
da comparação do grande presidente com a "insignifican-
te" Maria, da grande pátria, com o "insignificante" tea-
tro. Mas, por que a insignificante Maria? Por que o
insignificante teatro? Os problemas da arte em nosso país
não são mais importantes do que muitos, muitos outros
problemas? Por que então essa insignificância? Para dar
maior ênfase à minha idéia, sugeri a Maria que consideras-
se o seu teatro, o fator mais importante do mundo, que se
compenetrasse da idéia de que a falta do seu teatro em
São Paulo prejudicaria o futuro de gerações inteiras, que
mesmo os problemas .da miséria, da fome são menos im-
portante etc. etc. Convencida. disso, em que estado de
ânimo ela entraria no Catete?
Enquanto eu falava, os olhos de Maria brilhavam cada
vez mais, e vocês precisavam ver com que infinito orgulho
ela se ajoelhou perante o delfim e começou a falar: "Gar-
boso delfim, eu, Joana D'Are ... " etc. Assim os problemas
de Joana D'Arc tornaram-se grandiosos, empolgantes para
a atriz Maria Della Costa.
Mas não se deve esquecer que sempre há um perigo
de confundir os objetivos do personagem que induzem o
ator a g ír como tal, com os do próprio ator que o induzem
a se exibir, a brilhar, como naquele caso que citei no início
da segunda aula em que contei o que aconteceu comigo
quando gravei uma cena de "Aquêle que leva bofetadas".
Ao se apoiar no objetivo do personagem, o ator deve saber
defini-lo numa forma simples e, por assim dizer, palpável
para êle, usando para isso o verbo "querer" em nome do
personagem. Certamente, Maria Della Costa, ao entrar
em cena, deve ter pensado mais ou menos assim: "Eu
quero que o delfim me obedeça, porque sou a única pessoa
capaz de salvar a França!" Mas se, em vez disso, Maria
pensasse: "Eu quero fazer essa cena maravilhosamente!
Quero sentir o orgulho no momento de me ajoelhar", a
que resultado ela chegaria? A uma ação completamente
falsa.
Um caso dêsses aconteceu comigo em "Os Pequenos
Burgueses". Na cena da briga de Bessêmenov com o seu
afilhado Nil durante o almôço, só três mêses depois da
estréia da peça eu senti, numa noite, um verdadeiro pavor
quando Nil bateu na mesa, porque, naquele momento, che-
guei a pensar: "Agora êle vai me bater na cara!" Fiquei
tão contente por ter encontrado com tanta clareza essa
emoção de Bessêmenov que, na noite seguinte, preocupado
em não perdê-la, no último momento, pensei: "Eu preci-
so sentir êsse mêdo I" É claro que o resultado foi um
verdadeiro fracasso: nunca fiz essa cena de maneira tão
falsa, porque Bessêmenov não podia querer ter mêdo, êle
podia querer fugir da bofetada, e o resultado desse obje-
tivo seria o verdadeiro mêdo.
Durante esta aula procuramos adquirir a noção do que
é a "AÇÃO" na vida real e quais são suas características.
Na próxima aula procuraremos compreender como essa
noção pode nos ajudar a AGIR em teatro.
44 Eug~nio KU8net
i[
:'
!
l,
sa ação. Mas o aluno deve completar as circunstâncias com
sua imaginação, dentro das características da ação, que
há pouco verificamos. Êle raciocinará da seguinte maneira:
1) A lógica da ação. Ao imaginar tudo o que podia
ter acontecido com o personagem e que o levou a pedir
dinheiro, vou tomar cuidado para evitar tôda e qualquer
contradição:
2) Ação contínua, ou seja, a anterior e a posterior.
O personagem tirou êsse dinheiro da caixa do banco onde
trabalha e deve depositá-lo novamente amanhã na pri-
meira hora, senão será prêso. Por isso precisa achar al-
guém que lhe empreste o dinheiro. Notem: o seu "ontem"
é - tirei o dinheiro; o seu "amanhã" - serei prêso; o seu
"hoje" é - estou pedindo dinheiro emprestado. Estará
tudo certo do ponto de vista da lógica? Parece que sim. E
continua:
3) Ação interna. Êle tem mêdo do que possa acon-
tecer, mas não deve deixar o amigo perceber do que se
trata, porque êle seria capaz de denunciá-lo.
50 Eugênio Kusnet
j
j
3 - Pensando na Ação Exterior dêsse exercício, de-
vemos exercitar com a máxima atenção a nossa ação fí -
sica; sentira realidade da presença do papel na mesa, da
caneta na mão, do movimento da pena e o aparecimento
das linhas escritas, etc ...
4 - Pensando na ação interior, devemos ter presen-
tes os pensamentos naturais que acompanham a ação fí-
sica; ao segurar a fôlha de papel: "Será que o papel é
barato demais? Será que não devia ser mais bonito? .. ,
ao segurar a caneta: "Esta pena arranha um pouco. É bom
experimentar antes . .. "; antes de começar a escrever:
"Preciso encontrar palavras que a convençam.. . que a
comovam . .. Vou escrever assim! .. . " Ao escrever, pare
para reler, pensando: "Será que saiu bom?"; ao fechar o
envelope, imagine o rosto dela quando ela estiver len-
do, etc., etc ...
5 - Pensando no Objetivo da Ação, estabelecer o que
o personagem quer que aconteça (o que representará a
sua vontade) e o que êle não quer que aconteça (ou seja
a sua contra-vontade).
Completada essa parte do trabalho, devemos perguntar
a nós mesmos: "Se eu fôsse êsse rapaz, se eu tivesse uma
namorada tão bonita e desejada, se eu tivesse a esperança
de conseguir o encontro que agora vou pedir, como eu esta-
ria escrevendo a carta?" Complete isso com outras per-
guntas que julgar úteis para levá-lo à vontade de escrever,
e quando chegar a sentir essa vontade, basta começar a
agir escrevendo.
6 - Mas digamos que, contra tôda a espectativa, não
chegue a sentir realmente essa vontade, recorra à "visua-
lização", isto é: repasse alguns detalhes do trabalho ante-
rior, na base da "visualização", materialise os seus pensa-
mentos em forma de visão interna. Por exemplo, quando
você se pergunta quem é a namorada, como ela é, procure
"vê-la" em maiores detalhes, até que chegue a sentir real-
mente a atração por ela; quando pensar no próximo
encontro, visualize-o em todos os detalhes para sentir a
necessidade de pedir êsse encontro; e, principalmente,
quando estiver pensando no Objetivo da Ação, isto é, no
que o personagem quer que aconteça, e no que êle não quer
I ~
r-:::::-l::..--
LÓGICA DA ACÃ
AÇÃO CONTíNU
AÇÃO IN TERNA
~::::::: AÇÃO EXTERNA
~ OBJETIVO DAA -
r •
52 .Eug8nlo KtJ8fIet
I'
QUARTA AULA
54 Eugênio KU$net
o mesmo processo vocês podem observar nas foto-
grafias n.Ps 6 e 7.* Elas foram tiradas durante um exer-
cício feito por J úlia Gray. Na primeira parte dêsse exer-
cício o personagem, que é uma atriz, examina com muita
atenção a "maquette" de um cenário bem complicado, da
peça em que ela vai fazer um papel muito importante. Ela
precisa compreender todos os detalhes das entradas, saídas,
corredores, sacadas e portas do cenário.
Portanto, o que deve ser utilizado nesse trabalho, são
principalmente muitos "Círculos de Atenção" da visão fí-
sica, para corresponder ao objetivo de quem está exami-
nando alguma coisa. É êste o resultado que encontramos
na fotografia n.? 6.
A segunda parte do exercício representa a mesma ce-
na, porém com a introdução de uma circunstância nova:
enquanto olha para a "maquette" a atriz sente atrás de
sia presença de uma pessoa. Ela quer olhar para ver do
que se trata, mas não tem coragem e finge continuar olhan-
do para a "maquette",
Quais os Círculos de Atenção que ela usa nesse caso?
Os da visualização da pessoa que está atrás dela: Essa
pessoa se aproxima ou está parada? Tem uma arma na
mão? Por que arrasta os pés? Por que essa respiração
ofegante? Já está se inclinando sôbre mim?
Veja a fotografia n.? 7. O rosto não mudou, mas os
olhos certamente nada enxergam, embora o olhar continue
dirigido para a "maquette",
Isso explica também a facilidade com que o ator,
olhando para a platéia, consegue ver o que se passa nas
Circunstâncias Propostas: em vez do mar de cabeças, êle
vê um lago com cisnes nadando, etc ...
O uso dos Círculos de Atenção, além de sua enorme
utilidade no trabalho preparatório muitas vêzes salva o
ator em cena aberta.
Durante um dos espetáculos de "A Vida Impressa em
Dólar" aconteceu-me uma verdadeira calamidade. Um
pouco antes do início de uma das mais difíceis cenas do
meu papel, quando eu, sem falar, assistia ao diálogo dos
outros (o que me ajudava muito como preparação para
a minha cena) de repente ouvi atrás de mim, à distância
i
I'
Que fazia Salvini quando, já vestido e maquiado, an-
dava pelos cenários desertos? Êle procurava o contato com
o ambiente.
Como vocês sabem, nem todos os atôres fazem isso.
Alguns violam a ação interrompendo o contato com o am-
biente, uns deliberadamente, outros por acaso. Há muitos
exemplos disso:
- O ator resolve "descansar" em cena porque não
toma parte no diálogo. Êle se permite pensar nas suas
coisas particulares e, às vêzes, age nesse sentido até fls íca-
mente: tira do bôlso sua pequena agenda para verificar
os compromissos para o dia seguinte:
- O ator não presta atenção às falas dos outros, não
as ouve. No amadorismo isso acontece porque o ator, em
vez de ouvir, fica preocupado com sua próxima fala; em
teatro profissional, porque o ator fica preocupado com a
maneira de representar de seus colegas. Lembro-me de
uma atriz cujos lábios se moviam em sincronização com as
falas de uma colega. É claro que sua reação a essas falas
era completamente falsa, porque não podia haver nenhuma
surprêsa para a personagem:
- O ator está preocupado com outras coisas fora dos
problemas do personagem, por exemplo, com um refletor
apagado, que o deixa no escuro, com um móvel ou um
objeto fora do lugar, etc ... É uma verdadeira tortura
contracenar com um colega nessas condições: o seu olhar
ôco faz a gente também perder o contáto com o ambiente;
- O ator procura contato com a platéia por vaidade,
por exemplo: uma atriz preocupada em exibir seus dotes
físicos.
Quero frisar bem que o contato e comunicação com a
platéia é um fator não somente inevitável, como também
útil. Já dissemos que, ao encarnar o papel, a pessoa do
ator não desaparece. O ator apenas aceita todos os pro-
blemas do personagem, assume tôdas as responsabilidades
e, adquirindo através disso a fé na realidade da existência
do personagem, age e vive como êle, Finalmente, o ator
faz o personagem existir como um ser real, mas êle tam-
bém continua a existir ao lado do personagem, controla
i
I!
'I ,
Repito, não sei como isso funciona, mas sei que os
que vão fazer teatro profissionalmente um dia vão ter es-
sa sensação de dualidade e vão sentir enorme prazer nisso.
O têrmo "Dualidade" desmente totalmente as acusa-
ções que os menos avisados ainda fazem a Stanislavsky de
ter êle sido adepto da encarnação mística, da transformação
misteriosa do ator em personagem. O próprio Brecht, no
fim de sua vida, retirou muitas dessas acusações.
Quanto a mim, nuncà pensei que o fator "distancia-
mento" (ou "afastamento", como traduzem alguns), esti-
vesse fora do alcance do Método de Stanislavsky. Pelo
contrário, no meu trabalho nas peças de Brecht o que me
ajudou nas soluções de problemas foi exatamente o uso
de alguns elementos do Método e, entre êles, em primeiro
lugar, a LóGICA DA AÇÃO e o CONTATO E COMUNI-
CAÇÃO COM O AMBIENTE, isto é, com todos os ele-
mentos do espetáculo, inclusive, bem entendido, com a
platéia.
Quando fiz "A Ópera dos Três Vinténs" um crítico
me disse sorrindo: "Kusnet, você está ficando especialista
em Brecht", ao que eu respondi: "É, meu velho, na base
de Stanislavsky". E êle não estranhou, porque realmente
conhece os dois.
Mas voltemos ao "Contato e Comunicação." Seus
meios podem ser divididos em físicos e mentais.
A existência dos primeiros é evidente para o espec-
tador: gesto, voz, atitude corporal, mímica, olhar, mas a
existência dos meios mentais, espirituais, o espectador só
pode constatá-los pelo efeito que êles causam sôbre êle.
Há muitos exemplos disto: um ator que faz uma cena
de costas para a platéia, em absoluta imobilidade e que
apesar disso, nos transmite com grande intensidade sua
ação interior; ou em cinema: "Close-up" de um rosto com-
pletamente imóvel; ou os olhos de um ator "vistos" à
distância de 100 metros.
Não há nenhuma explicação material para êsses efei-
tos, mas a sua existência é indubitável. Stanislavsky cha-
ma a isso de "IRRADIAÇÃO"; parece que dos olhos, de
todo o corpo do ator sai uma espécie de tênues raios lumi-
nosos e que atingem o espectador. Há quem explique isso
66 Eugênio Kusnet
'I: i:
Normalmente isso traz resultados negativos. O ator
que, estando em cena, chega a pensar: "Agora vou usar
a visualização da fala de Teterev!", ou "Agora seria útil
fechar o Círculo de Atenção sôbre o sorriso de Teterev",
êsse ator nunca poderá logo agir como personagem, por-
que o pensamento é do ator que precisaria de uma boa
pausa para assimilar o efeito do uso dêsse elemento.
O personagem não pode estar evocando o nome do
mestre Stanislavski. Em vez disso, ao ouvir a fala de
Teterev, êle deve pensar: ":msse maltrapilho se atreve a
falar assim com minha mulher!.. Ah, agora êle vai ver!
Ou então, prestando a máxima atenção à expressão do
rosto de Teterev, pensar: - "Ah, está achando graça?
Muito bem! Agora você vai é chorar!".
Essa confusão geralmente acontece com os atôres que
se dedicam muito ao estudo do Método, mas ainda não têm
prática suficiente para usá-lo corretamente.
Com permissão do meu amigo Abrão Farc, quero
contar um exemplo seu. Fazendo o papel de um camponês
nordestino na peça de Guarnieri "O Filho do Cão", êle
estava muito preocupado com a realização de uma cena
em que o personagem tem mêdo de descobrir que a criança
recém-nascida seja "Filha do Cão", porque tem pés de
bode. Pois bem, ao levantar o paninho que cobria a ces-
tinha da criança, Abrão chegou a pensar em cena du-
rante o espetáculo: "Agora eu preciso visualizar os pés
da criança" (porque é claro, não havia nenhuma criança
dentro da cesta). É natural que, depois disso, êle não
poderia sentir o efeito da verdadeira visão do personagem.
Os elementos do Método devem ser usados durante o
trabalho preparatório, nos ensaios, no trabalho em casa.
O efeito do seu uso, no início é muito lento, mas, com o
correr dos ensaios, torna-se cada vez mais costumeiro,
transformando-se, pouco a pouco, em ação instantânea,
como na vida real. Se no início do trabalho preparatório
Abrão precisasse olhar dez minutos para os imaginários
pés da criança e só depois começasse a sentir o pavor do
personagem, nos últimos ensaios e nos espetáculos seria-
lhe suficiente um rápido olhar para chegar ao mesmo
resultado.
Iniciação à Arte Dramática 67
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'I
I
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,I
I
Mas quando eu digo que o uso dêsses elementos, em
cena podem salvar o ator, é porque naquele momento êle
já está perdido, já está fora do personagem. Então, se
naquele momento, êle age como ator, pensando: "Vou
usar a Visualização das Falas", não causa com isso mal
maior, porque a ação já foi cortada, e se êle conseguir
realmente interessar-se pelas falas, êle restabelece a ação
perdida. Lembram-se do que contei quando estávamos
falando dos Círculos de Atenção: o sapato de Ralph que
me salvou da influência desastrosa de uma conversa na
platéia?
Resumindo: usem os elementos antes de entrar em
cena e sintam o seu efeito em forma de ação em cena.
Além do benefício que traz o uso dessa simples lei
da fala humana, nós atôres lucramos muito estudando
outras particularidades dessa forma de ação.
O que nos interessa não é somente o sentido das pa-
lavras que compõem a ação de falar - o som, a combi-
nação dos sons é também de enorme importância para o
I nosso trabalho: quanto mais expressiva fôr a palavra pela
I"
sua sonoridade, mais ela facilita a expressividade da ação
de falar.
. Conhecem a origem da linguagem humana? O homem
primitivo começou por imitar os sons da natureza. Creio
que para avisar a um outro que vinha um temporal, êle
i~itava o trovão, t-r-r-r. .. e quando queria impor silên-
CIO, dizia: S-s-s-s... ou Ch-ch-ch , .. Essa imitação pouco
,
a POUco se transformou em palavras como: trovão, silên-
I cio. J1: interessante notar que a influência dessa imitação
i
i I
dos sons da natureza se conservou na formação de muitas
palavras quase em tôdas as línguas, por exemplo: trovão,
donner, tonnêre, thunder, grom (em russo). A letra "r"
está presente em tôdas elas. É mais fácil notar isso com-
I'
; I.! parando as duas línguas mais distantes pela sua origem,
i o russo e o português.
L I
Grosnar - kárkat (em russo)
i i.
Trombeta - trubá "
I' Tambor - barabán "
~ ,:
..
68 EUg~nio KU8net
l i
t,
Notem que na formação das duas últimas palavras
entra, tanto em português como em russo, os sons "b"
e "r":
B de "bum", "ban" e R de "tran" .
e ainda para completar o aspecto onomatopéico, entra o
som M ou N.
As vogais também são de grande importância: bum,
bom, bam, bim.
E vejam como êsses sons caracterizam os nomes de
instrumentos musicais: tuba, trombone, castanhola, cím-
balo. Em russo êsses nomes são usados com as mesmas
raízes latinas.
É interessante comparar o efeito do som "U" nas
duas línguas:
turvo - mútniy (em russo)
crepúsculo - súmrak "
luto - traur "
É curioso que, para o significado de "nuvem", em
russo há duas palavras: 6blako - nuvem branca, e tútcha
- nuvem escura.
É claro que nem tôdas as palavras têm origem ono-
matopéica e nem tôdas elas tem essa expressividade de
sons. O importante para nós é saber que êsse valor existe
e que êle é muito útil na nossa arte.
Um poeta russo, Balmont, procurou exemplificar o
sentido dos sons por meio de algumas poesias que êle criou
especialmente para êsse fim.
Vou citar alguns trechos sem traduzi-los para o por-
tuguês porque o interessante para nós é o sentido dos sons
e não das palavras:
"I Vsdóh paftaríaia paguíbcheí duchí,
Tchut slíchna beschümna churchát camíchí",
Vocês sentiram o significado dos sons "8" e "CH".
E agora um outro:
"Na verchínie górnai córchum prokritchál . . . " É o
sentido do som "R".
"8 lódki skolznúla verIó .
Míliy, móy míliy pridi ", aqui o som predominante
é o "L", que nós encontramos nas palavras "love", em
:i '
I
I i
• I
I I
chítelniy". Não sentem que elas possuem a mesma expres-
sividade dos sons? E entretanto, quantos atôres a pro-
nunciam sem sentir êsse valor.
Por outro lado, como são felizes os atôres que sabem
sentir e encontrar no texto, sons que lhes ajudem a inter-
pretá-lo. Claire Bloom em "Romeu e J ulieta", encenado
pelo "Old Vic", na cena da sacada, nos dá um exemplo
disso. O trecho a que me refiro é o seguinte:
"My bounty is as boundless as the sea;
My love is deep; the more I gíve to thee,
The more I have, for both are infinit."
ll:sse "infinit", ela o pronuncia com cinco "enes":
"innnnnfinit . .. " o que comunica à fala realmente um
sentido de movimento para o infinito.
Houve muitos exemplos disso no excelente espetáculo
"Diário de um Louco" de Gogol, criado por Rubens Correa,
na direção de Ivan de Albuquerque. Entre muitos exem-
plos, gostaria de citar um que me impressionou parti-
cularmente.
Quando Poprístchin conta que, no escritório da re-
partição, êle acabou assinando um documento com o nome
de "Ferrrnando Oitavo", êsses três "erres" que êle pôs na
pronúncia, ajudaram-no muito no problema de transmitir
a firmeza do "nôvo monarca espanhol" em que a loucura
transformou o pobre empregadínho público.
Entretanto, quando, num outro trecho, depois de es-
pancado no hospício, êle responde ao "Grande Inquísídor"
(que na realidade é um funcionário do hospício) com tôda
a humildade: "Mas eu sou Fernando Oitavo 1". .. o único
erre do nome torna-se quase imperceptível.
Há pouco eu disse que o ator deve acostumar-se a
usar o valor sonoro do texto, sem esfôrço, por hábito,
instintivamente. Isso me fêz lembrar um caso quase ane-
dótico, que me foi contado por Brutus Pedreira que fêz
parte da organização do teatro "Os comediantes" sob a
direção de Ziembinsky. O caso que quero contar acon-
teceu com a conhecida atriz polonesa Stepinska que tra-
balhou no elenco. Durante um ensaio ela pronunciou: 4'E
as arv6res em flor ... " Brutus corrigiu: "Arvores", Ela
76 E"g~nio KU8net
Nos últimos momentos da peça, quando Têterev sai
definitivamente da casa de Bessemenov, há um diálogo
como se segue:
T1!':TEREV - E ninguém vai ter pena do seu desa-
fortunado e miserável filho e dirão na cara dêle a verdade,
assim como eu estou dizendo pra você agora: Pra que
você viveu? (PAUSA) Que é que você fêz de bom? (PAU-
SA) E seu filho, como você agora... não vai responder
nada.
BESSEMENOV - É ... é ... falar você fala. .. Mas
o que é que tem no coração? .. Não, eu não acredito em
você. .. Fora... fora de minha casa, chega 1 Já suportei
até demais 1 Você andou enchendo a cabeça dêles contra
• 1
mIm ....
T1!':TEREV - Ah, se fôsse eu 1. .. Mas não, não fui
eu ... (SAI)
BESSEMENOV - (LEVANTA-SE) Pois é ... Va-
mos ter paciência. .. esperar... Tivemos paciência a vida
tôda ... vamos ter paciência ainda ... esperar... (SAI).
Bessemenov que, já na fala anterior de Têterev, fica
fascinado pela certeza com que o bêbado fala sôbre o fu-
turo dêle, escuta-o pensando. Agora, para que vocês pos-
sam entender melhor como funciona o sub-texto, vou pro-
curar concretizar êsses pensamentos em forma de comen-
tários que eu imaginei para poder agir no lugar de
Bessemenov.
a) Ouvindo: "E ninguém vai ter pena. .. etc.", êle
pensa: "É verdade? . . . É? .. É mesmo? . . . "
b) Depois da frase: "Pra que você viveu?", numa
reação muda, Bessemenov pensa. "Mas como, pra quê? ..
Ora essa? .. "
c) Depois de: "Que é que você fêz de bom?", pensa:
"Ora, não vai dizer que não fiz nada 1. .. Vamos e ve-
nhamos ... "
d) Depois de: "E seu filho, como você agora, não
vai responder nada l. .. ", Bessemenov, j á esmagado por
suas profecias em que sente a realidade, mas ainda pro-
cura manter alguma dúvida, pensa: "Parece verdade, mas
não sei, não ... êle tem muita lábia", e diz: "Falar, você
fala, mas ... " e de repente pensa. 'Não, é maldade dêle 1...
78 Eugênio Kusnet
\
I
\
80 Eug~nio KU8net
;
a-
Então o objetivo não era "xingar o sacrl1ego", mas con-
seguir a petição. Então não era a raiva aberta, mas a
ironia maldosa de quem se sente ofendido. O meu sub-
texto ficou outro: "Olha, está assobiando!. .. Que me-
nino formidável!. .. Tão inteligente, tão moderno!. .. :{tle
sabe o que faz! ... " - "Vai assobiando, vai! ... " e para
a continuação: "Mas ajudar um pouquinho o seu velho
pai que sacrificou t ôda a sua vida para o bem dos filhos,
isso é uma bobagem! Pra quê? :{tle não vale nada!", e
para ligar com o texto: "Eu já sabia! Assobiar você
assobia. .. - que liga com o texto: "Mas a minha pe-
tição ... " etc.
O efeito dêsse nôvo sub-texto se sentiu no texto. Em
vez de um velho gratuitamente rabugento apareceu um
personagem muito mais humano e mais complexo.
Quando um ator começa a compor um sub-texto, sua
extenção depende do temperamento do ator, de sua estru-
tura psíquica. O importante é que, curto ou longo, êle
surta o efeito desejado. Além disso, é de notar que, se
no início do trabalho com o texto, o sub-texto é muito
longo, no correr dos ensaios êle ficará cada vez mais con-
densado, até que se reduza à extensão exatamente igual
à que se tem na vida real.
Vou procurar tornar mais clara a mecânica dessa re-
dução gradativa do sub-texto, usando para isso um exem-
plo tirado da vida real.
Um dia eu fui procurar um amigo na repartição em
que êle trabalha. Na sua sala encontrei uma môça que, à
minha pergunta se o Dr. Idarcy tinha deixado algum re-
cado para Eugênio, respondeu sorrindo: "Não senhor,
mas êle não demora. Sente-se, por favor". E depois de
uma pausa: "É verdade que "Pequenos Burgueses", entra
novamente em cartaz?" Lembro-me que eu fiz uma pe-
quena pausa e respondi muito gentilmente: "Sim senhora,
no início do mês que vem". Quando fiquei sozinho, pro-
curei restabelecer na memória, com precisão, o que se
passou na minha mente durante a pequena pausa que fiz.
Lembrei-me que mentalmente fiz uma exclamação "Ah l",
e, simultâneamente, imaginei o bar do nosso teatro du-
82 Eugênio Kusnet
S:f:TIMA AULA
·1
84 Eug~nio K"Snet
entre a vontade e a contra-vontade e essa luta o levava
ao estado de permanente angústia.
Para compreender isso vamos usar o exemplo que
Sartre usa para exemplificar a angústia do existencialista.
Êle conta o caso de um "maquillard" que devia escolher
entre a sua pátria que êle trairia se não entrasse na resis-
tência e a sua mãe que morreria se êle se alistasse.
Como vocês vêem, a luta entre a vontade e a contra-
vontade é causada pela existência simultânea de objetivos
contradit6 rios. No exemplo de Sartre os dois objetivos
são equivalentes: daí a angústia.
Revejam a fotografia de "Maneco Terra" (n.? 6).
Nela vocês também encontram a influência dos objetivos
contraditórios.
Mas normalmente uma das vontades prevalece, tor-
nando a outra quase inexistente, ou pelo menos, imper-
ceptível.
Vamos ver o exemplo de "Romeu e Julieta". É um
poema de "Amor absoluto", mas, já que nós aceitamos a
dialética da vida, não podemos imaginar que os dois apai-
xonados não tivessem a mínima dúvida dos seus senti.
mentos. Não podemos acreditar que as desavenças, os
eternos atritos entre as duas famílias, Capuletto e Mon-
techio, não tivessem nenhuma influência sôbre os senti-
mentos dos jovens. Se não, como podemos explicar a
preocupação de Julieta: "Renega teu pai e recusa teu
nome, mas se não o desejares, jura apenas teu amor e
eu não serei mais uma Capulleto!" Como explicar o susto
de Romeu no diálogo com o frade: "Com Rosalino, meu
pai? Não, eu esqueci êsse nome e a desgraça dêle".
É claro que não podemos duvidar da sinceridade de
Romeu e J ulieta em outros momentos da peça, sabemos
que êles acreditam no seu amor absoluto, senão a cena
da sacada não poderia ter lugar na peça.
.
É claro que, nesse momento, Romeu e J ulieta igno-
ram totalmente a existência de qualquer dúvida, tanto no
presente, como no passado, mas os intérpretes dêsses pa-
péis não podem ignorar que lá no fundo, no sub-consciente,
êle as têm.
j
I
1
extremamente dialética, e assim torna o drama do sui-
cídio mais humano, mais agudo. Lembro-me que no teatro
de Stanislavsky, apesar da simplicidade com que o ator
pronunciava essa fala, apesar do seu "tom branco", o
efeito que êle causava na platéia era de um arrepio, de
uma tensão nervosa quase impossível de suportar.
Assim conseguimos descobrir a CONTRA-VONTADE
numa cena bastante complicada: Trepliov queria morrer,
mas não queria morrer.
Como deve proceder o ator para chegar a êsse resul-
tado? Creio que nem todos os atôres usam a mesma ma-
neira de trabalhar, isso depende do temperamento, da
estrutura psíquica de cada ator. Só posso contar o que
eu julgo mais útil na minha prática.
Depois de estabelecer a Vontade e a Contra-Vontade,
eu procuro transformar essa noção em ação na base da
visualização dos objetivos, mas não dos dois objetivos
simultâneamente. Eu procuro fazer de conta que só existe
a VONTADE e o seu objetivo. O trabalho naturalmente
é feito na base do que vocês já conhecem: as Circunstân-
cias Propostas, o mágico "SE FôSSE", a Visualização,
tec. Quando chego a sentir o efeito dêsse trabalho (no
caso presente, a vontade de morrer) deixo o seu resul-
tado de lado e passo a encarar o problema da Contra-
Vontade como se ela fôsse a única, a vontade de viver.
E, novamente, quando sinto o efeito , volto a atacar o pro-
blema da Vontade e assim por diante, sendo que as alte-
rações tornam-se cada vez mais rápidas, até que a Von-
tade e a Contra-Vontade se fundam, deixando como resul-
tado a angústia, a confusão, a perplexidade.
É claro que, nessa técnica, tem que se levar em con-
sideração a proporção lógica entre a vontade e a contra-
vontade, como já dissemos acima,
92 Eug~nio Kusnet
êle não pensou no desastre ocorrido naquele tempo, e sim
num outro caso: um jovem sérvio amestrador de maca-
quinhos que dava seus espetáculos nos quintais dos pré-
dios, inclinado sôbre o corpo de seu macaco que acabava
de morrer. As emoções produzidas por essa cena se fixa-
ram mais na sua memória do que as da morte do mendigo.
Stanislavsky conclui: "Se eu precisasse transpor para
o palco a cena do desastre com o mendigo, eu iria buscar
o meu material emocional na cena do sérvio com o maca-
quinho".
Vemos, nesse exemplo, como as formas em que se
materializam as emoções passam por processos incontro-
láveis. Daí a dificuldade do uso da Memória Emocional.
Mas procuremos compreender o que se deve fazer pa-
ra conseguir sentir o nosso passado através do uso da
memória.
Se os dois personagens do exemplo de T. A. Ribot fôs-
sem atôres e precisassem contar em cena suas impressões
na forma como elas foram contadas pelo segundo, isto é,
com tôdas as emoções, que deveriam fazer?
O segundo turista não precisaria fazer nenhum es-
fôrço especial porque possuía uma excelente memória emo-
cional que lhe fornecia tôdas as sensações espontânea-
mente. Mas o segundo? Será que, por ser mais inclinado
a usar a Memória Material, não conseguiria recordar as
emoções? :mIe as teve, não há dúvida: não podia ficar sem
mêdo diante do perigo por que passou. Que deveria fa-
zer, então?
Vou lhes contar o que se passou com minha sobrinha.
Ela é francesa e passou os piores momentos da última
guerra em Le Havre, quando tinha apenas sete anos de
idade. Pedi que me contasse suas sensações durante os
bombardeios. Apesar dos pavorosos detalhes que me con-
tou, eu não vi no seu rosto nenhum vestígio do terror da-
queles tempos. Com esperança de levá-la a recordar as
emoções (é um vício profissional da gente!), insisti cada
vez mais nos detalhes. A sua narração a levou finalmente
à Suíça para onde foi deportada a maioria das crianças da
cidade. Morando numa tranqüila aldeia suíça, ela nem se
lembrava mais da guerra. E, entretanto, quando estava
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Muitas vêzes usamos a Memória Emocional sem sabê-
lo. É que, usando outros elementos e chegando a agir
realmente, despertamos no nosso sub-consciente sensações
que tomam aspectos inesperados, mas que se transformam
em armas infalíveis.
Durante uma aula de Memória Emocional, uma aluna
que, por sinal, já tinha feito teatro antes de conhecer o
Método, contou uma das suas experiências. Ela tinha uma
cena difícil: o marido acaba de morrer e ela pronuncia:
":E:le se foi, mesmo sem saber como eu o amava I" A
atriz tinha resolvido o problema usando as recordações de
um caso amoroso em que ela foi abandonada por um rapaz.
As recordações lhe davam a sensação de uma perda irrepa-
rável, comparável à morte da pessoa, mormente porque
mesmo abandonada, ela não sentiu nenhum rancor. Mas,
tendo encaminhado assim o seu trabalho, ela constatou que
paralelamente ela visualizava um outro quadro: ela so-
zinha numa praia, vendo um barco que partia desapare-
cendo, pouco a pouco, no horizonte. Essa imagem lhe dava
muito mais sensação do que a anterior.
Vejam como é importante não forçar a, Memória Emo-
cional, mas ir agindo e confiando na ação da própria natu-
reza.
Felizmente temos muitas fontes para conseguir emo-
ções desejadas. A primeira é a vivência, a experiência
pessoal, de que já demos vários exemplos.
A segunda, é a experiência alheia. Ela consiste em
estarmos presentes num acontecimento em que uma outra
pessoa passe por uma emoção violenta; mas então só po-
demos conseguir a emoção colocando-nos no lugar da pes-
soa, isto é, usando o mágico "se fôsse".
Já que não conseguimos sentir a "paixão" da situação,
ou em outras palavras a sua emoção, talvez possamos con-
segui-la através de uma compaixão.
Lembro-me de uma aluna a quem pedi que procurasse
uma recordação em que constasse o mêdo da morte. Ela
não pôde encontrar nada, mas se lembrou de como uma
pessoa procurou suicidar-se na sua presença. O detalhe
que lhe deu tôda a sensação do mêdo da morte, foi quando
ela procurou tirar o revólver da mão da suicida.
Iniciação à Arte Dram4tica 95
Eu imaginei um caso que, a meu ver, ilustra com bas-
tante clareza o funcionamento do mágico "se fôsse" na
vida real.
Imaginem dois recém-casados que passam sua lua de
mel em Santos num grande hotel. De noite, nos momentos
de máxima intimidade, o marido nota a presença de um
estranho atrás da cortina da janela, - êle vê seus sapatos.
Ao seu primeiro movimento, o intruso consegue fugir
pela janela.
No dia seguinte, no bar do hotel, o marido, ainda agi-
tado pela situação vergonhosa por que tinha passado, conta
o caso a seus amigos. Como vocês, leitores, imaginam a
reação dêles? Creio que, por mais que quisessem demons-
trar a sua compaixão, não poderiam deixar de achar a
situação muito engraçada. Certamente houve muitos sor-
risos disfarçados e, embora o marido apelasse para a sua
imaginação: "Ponham-se no meu lugar !", ninguém o con-
seguiria.
Agora imaginem que um dos amigos de repente excla-
me: "Espera, há pouco me contaram que esta manhã foi
prêso um sujeito que confessou ter estado em todos os
apartamentos de casais neste hotel, sem que tenha sido
notado. Deve ser o mesmo!"
Vocês imaginem o efeito disso sôbre os casais pre-
sentes naquela roda. Garanto que não ficou nem uma
sombra de sorriso naqueles rostos. E por quê? Porque o
mágico "se fôsse" surgiu espontâneamente, sem a leitura
dos livros de Stanislavsky.
Outra grande fonte de emoções é a arte em geral.
Ao ler as grandes obras de literatura, nós chegamos
a viver o que acabamos de ler, o que equivale a dizer:
sentimos o que sentem os personagens da obra. O mesmo
acontece quando vemos uma pintura, uma escultura, quan-
do ouvimos uma música, etc.
E, finalmente, mais uma fonte bem rica: os sonhos.
Vocês sabem que, de acôrdo com Freud, as emoções do
passado são armazenadas no nosso sub-consciente e apa-
recem em nossos sonhos em forma de imagens que, em-
bora irreais, muito diferentes do ambiente real em que os
acontecimentos se passaram, nos fazem sentir as emoções
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do passado. Geralmente, quando alguém conta um sonho,
usa expressões como: " não sei porque me senti tão ale-
gre!" ou, "não sei porque senti tanto mêdo! ... " É que
nas imagens dos sonhos êle não vê a razão do mêdo ou da
alegria, mas os sente, e é o que é o mais importante para
nós, atôres.
Várias vêzes na minha prática, para conseguir a sen-
sação da angústia, eu usei as sensações que um sonho me
dava infallvelmente: eu me via entrar num túnel que, na
realidade, era um cano com paredes de cimento com côr
muito clara. O diâmetro que, no início, era de uns quatro
metros, diminuia na medida que eu avançava, o que me
obrigava pouco a pouco a me curvar, depois me ajoelhar e
finalmente me arrastar, até que nem os meus ombros con-
seguiam passar, enquanto eu continuava a ver lá longe
uma ponta de luz que era a saída do cano.
E até agora, quando penso neste sonho, sinto seu
efeito imediatamente.
É de notar também que, quando não encontramos em
nenhuma das fontes acima mencionadas a emoção dese-
jada, podemos procurá-la nas recordações de uma situação
semelhante.
Em "Método e Loucura" de Robert Lewis, encontra-
mos o exemplo de Bem Ami que usou as sensações de um
chuveiro de água fria para uma cena de suicídio, e uma
aluna minha que não conseguia encontrar na sua memória,
"o empolgamento por uma música", usou o empolgamento
por uma paisagem enquanto ouvia uma música.
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- -
mesmo trecho alterando e velocidade, por exemplo, tocando
um disco gravado em 33 rpm com a velocidade de 78 rpm,
ou vice-versa. Dentro dêsse tipo de evidência não é raro
encontrar uma alegria frívola por uma marcha fúnebre.
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Hetron.
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Persol\.
~U. é ! -aso? nada de grave, es -pera
MODERATO = J 88
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Penon.
Rit. J,i
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Til-da eor-re milito bem
-- or&.Çes à )eus
Metron.
no Eugênio K"Snet
MODERATO J 88
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VISITA
. Que faço?..
Voce sabe como gosto de SUA casa. A. Alice nao
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Não tenho ccragelll ••• Meu :oelW
PC;de v1r ••• stc ..
D:f1:CIMA AULA
EUGÊNIO KUSNET
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