Aula 038 Revisada
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Aula 038 Revisada
Olavo de Carvalho
Aula Nº 94
12 de fevereiro de 2011
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.
[O coração forte deseja o ser (Schelling), não se contenta com sombras, ídolos
ou fantasmas.
Em lugar de uma noção abstrata e vaga, uma noção precisa. É que no lugar de
se servir da faculdade de abstração e de generalização, que constitui aquela
parte da alma chamada o entendimento, ele escutou a faculdade prática, que
compreende a sensibilidade e a vontade, e cujo foco é aquilo que se chamou,
nos tempos modernos, o coração.]
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Que é o ser propriamente dito que pertence a primeira e mais alta das
categorias e que é o centro ao qual se reportam todas as outras? É, responde
Aristóteles, a ação, que pode explicar a natureza, a qual é toda movimento.
Observador atento da natureza, que Platão desdenhava, ele reconheceu que
tudo nela é movimento. Ele reconheceu também, como o diz em algum lugar,
que o movimento é uma espécie de vida. Ele reconheceu, enfim, que a causa do
movimento é que é a causa verdadeira, que a vida não pode resultar de outra
coisa senão da vida. (Por isso, aqueles que pretendem explicá-la pelo
movimento invertem a ordem verdadeira das coisas.) O movimento enquanto
fenômeno pode nascer do movimento. Mas a origem primeira dele é algo de
superior, que é a ação. A ação é como um instante que durasse sem sucessão.
Assim busca-se conceber o eterno, o positivo da duração, onde a negação
introduz a sucessão. (Mais tarde se reconhecerá que o fundo da ação é a
vontade e enfim que o fundo da vontade é o amor.)
E, com efeito, observa Cícero, intérprete aqui como por toda a parte da filosofia
grega, aquilo que não faz nada ou não tem nenhuma ação bem parece também
não ser nada. Se a pedra mesma existe é que na pedra também há algo de
ativo e de movente.
Agora, não somente tudo aquilo que é age, mas tem ademais aquela
propriedade de tender naturalmente a se comunicar. É aquela que possuíam no
mais alto grau as maiores almas, as almas heróicas.
O ser completo é o espírito, cuja natureza é tal que, agindo, ele tem consciência
daquilo que ele faz, daquilo que ele é. No fundo, nada pensa sem pensar-se,
ainda que de maneira e em graus diferentes. Somente em Deus a consciência
perfeita do objeto é inteiramente idêntica ao sujeito. É o ápice ao qual tende, de
espécie em espécie, pelos diferentes graus da vida, toda a natureza, e do qual
esses diferentes graus são imitações mais completas ou menos completas. [Na
consciência de si, o espírito, desvencilhado das nuvens da imaginação que lhe
velam os outros objetos, se vê a si mesmo na pura luz. É a visão à qual,
segundo a teologia cristã, estão ligadas, junto com a admiração que causa a
beleza suprema, a alegria e a felicidade.]
Toda a natureza é feita como que de esboços mais ou menos bem sucedidos
dessa suprema perfeição, completando, antes da integração final, a
diferenciação.
Platão, em busca de uma realidade suprema por trás das aparências mutáveis
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Embora haja nisso alguma verdade — isto é, que o conjunto dessas ideias
possa representar o esquema essencial da realidade —, ele é somente um
esquema, não um plano de realidade efetiva. Para que encontremos por trás
dos objetos corporais uma realidade mais profunda, mais efetiva, realidade da
qual eles emergem, é preciso que nós busquemos não apenas formas ou
definições, mas — como diz Aristóteles — Almas ou Espíritos. Ou seja, somente
aquilo que é vivo pode gerar a vida. Os esquemas das espécies não têm vida
por si mesmos. Eles só conseguem ter alguma presença viva por meio dos
indivíduos que as manifestam ou as exemplificam de algum modo. Então, na
realidade o que Platão fez é como que uma abstração incompleta: chegou até
certo grau de abstração e parou. Ele se contentou com as definições, mas não
continuou buscando por trás delas uma realidade efetiva, e a realidade é
justamente aquilo que se manifesta de algum modo na experiência.
De qualquer modo, no esquema do Guénon, à diferença que ele faz entre o ser
e o supra-ser (ou não-ser) corresponde, na escala humana, à diferença que ele
enxerga entre a salvação e a divinização. Ele diz que, de modo geral, as
religiões (e ele considera como religiões somente aquelas do grupo abraâmico:
o judaísmo, o cristianismo e o islã) visam à salvação da alma, mas que para
além da salvação da alma existe outra perspectiva: a divinização, à qual se
tem acesso mediante determinados ritos iniciáticos especiais transmitidos por
uma tradição que, segundo ele, vem desde a origem da humanidade.
Evidentemente ele com isso Guénon sugere que ele mesmo passou por esses
ritos iniciáticos e foi divinizado. Mas de todas as pessoas que conheci no meio
esotérico, não vi nesse meio nenhum sinal de divindade. Aliais, não vi de
santidade, por vezes nem de bondade, e por vezes nem sequer de simples
decência humana. (Podemos comentar isso com mais detalhes em outra
ocasião).
Podemos dizer (como São Tomás de Aquino) que no plano da salvação as almas
estão fundidas, mas não confundidas. Se passarmos um grau acima disso já
fomos divinizados, integrados no próprio Deus; já não sobrevivemos como
almas individuais no Paraíso, mas somos o próprio Deus. E isto me parece ser
contraditório com a simples perspectiva da salvação, porque se existe uma
única alma imortal no Paraíso, ela durará eternamente, não há limites para a
duração dela. Portanto (e isto aqui é absolutamente fundamental), a duração
de uma simples alma humana será mais longa do que toda a História humana
e do que todo o universo físico. Mais ainda: essa alma humana conservará a
sua individualidade, tanto que terá memória de seu tempo de vida terrestre, e
diz São Tomás de Aquino, as almas do Paraíso enxergam as do inferno, portanto
elas têm consciência de seu preciso lugar no universo.
Mas o Deus verdadeiro não pode ser uma abstração! Ele tem de ser um ser e,
mais ainda, tem de ser uma pessoa. Se dizemos que a essência de Deus é o
Amor, então é necessário que haja alguém pelo qual Ele tenha amor, e isto
supõe a sua unidade múltipla nas três pessoas da Trindade.
Ravaisson diz que naquela época Aristóteles percebeu que tinha algo de errado
naquele esquema perfeitamente lógico e abrangente do Platão (esquema que
também se observa no esquema guenoniano) e que precisava voltar à noção
de seres vivos; e que estes de algum modo manifestavam a mesma unidade
divina em vários planos e em distintas modalidades, onde o padrão de unidade
de cada ser tanto mais alto quanto mais se elevavam na hierarquia dos seres,
de modo que, por exemplo, um ser vivo tem uma unidade mais exigente por
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assim dizer do que um mineral e, dentro dos seres vivos, os animais têm uma
unidade mai refinada e intensa do que os vegetais, sendo o ser humano o
cume da escala da unidade na esfera da natureza, na medida em que não tem
apenas uma unidade em si, mas uma unidade para si: a unidade da
autoconsciência. Ainda que essa unidade seja imperfeita e que ela — como diz
aqui o Schelling — se reconhece nos objetos, mas faz de maneira fragmentária
até que ela consegue reintegrar os objetos como conteúdos da própria
consciência.
Muito bem, eu creio que isso aqui encerra o nosso comentário ao Ravaisson.
Antes desejo esclarecer que aquela bronca que dei nos organizadores do
debate no programa [ True Outspeak] passado foi em parte devido a um
tremendo mal entendido, porque existe um grupo guenoniano-schuoniano no
Brasil que é constituído de pessoas da mais baixa espécie e que tem todos os
motivos para desejar uma divulgação do pensamento do Duguin, que é o seu
novo mestre, no Brasil. Me pareceu que o grupo organizador do debate estava
refletindo as ações desse grupo mas parece que não está, que não há
nenhuma relação entre eles, foi apenas uma série de infaustas coincidências.
Eu tenho que confessar a vocês que todas as experiências que tive com
pessoas da esfera guenoniana-schuoniana foram as maiores decepções da
minha vida, pois embora tais pessoas tenham exposições doutrinais
absolutamente fantásticas, eu nada pude observar naquele meio algo que me
lembrasse, nem de longe, o mais mínimo sinal de espiritualidade, apenas de
intelectualidade. Quer dizer, tinham uma experiência elevada ao mais alto
nível de abstração, mas a um nível de abstração tal que estabelecia nelas uma
espécie de corte entre o seu mundo doutrinal e a existência de todos os dias.
Por exemplo: o Frithjof Schuon insistia muito na importância da virtude para a
ascensão iniciática, e eu de fato não vi ali virtude nenhuma; só o que vi foi
fofoca, traição, maldade. Talvez seja interessante eu contar um certo episódio a
vocês.
esse tipo de expediente para intimidar pessoas não tem autoridade para dizer
uma palavra sobre a virtude. Ali não há virtude nenhuma.
No caso do Marco Koslov, ele teve um caso com a mulher do sheik, e daí deu
um conflito. Agora imagine o sujeito vem à minha casa e tem um caso com a
Roxane e daí explode uma série de hostilidades entre nós. Que ambiente é
esse, meu Deus do céu? Isso ai é a Casa de mãe Joana.
É importante contar essas coisas para que vocês entendam que qualquer
presunção de autoridade espiritual tem de se comprovar não na teoria, não na
doutrina. Por exemplo, quando o Schuon foi acusado de pedofilia ele
respondeu: “Não, mas vocês leiam os meus livros. Vejam pelos meus livros que
eu não seria capaz de fazer uma coisa dessas”. Ora, os livros não são você!
São apenas coisas que você disse. Mas para conhecer uma pessoa não basta
saber o que ela disse, é preciso saber o que ela fez, e a carreira espiritual de
Schuon inclui uma série muito impressionante de injustiças, de perseguições...
Tem outro detalhe: tão logo eu entrei para a tariqa do Frithjof Schuon, eu fui
imediatamente nomeado o seu Mukadam, quer dizer, o representante da
organização para o Brasil. Estranhei muito aquilo, já que acabara de cair de
pára-quedas naquele meio. Mukadam é um cargo importante na hierarquia
esotérica, e pensei que tivesse alguma coisa errada naquela nomeação.
Tudo isso foi há mais de 20 anos atrás [00:30] e por eu respeitar a pessoa do
Schuon jamais quis divulgar isso, mas conforme o tempo vai passando se torna
necessário o esclarecimento.
comunicação do Duguin ao Brasil. Eles são o canal por onde o Duguin entrou
no país. Evidentemente, o primeiro a mencionar o Duguin em língua
portuguesa fui eu mesmo, mas não como se ele devesse ser seguido, e sim
apenas como um problema que deveria ser examinado. Mas para os do grupo
schuoniano, não; para eles o Duguin é um mestre, é alguém cujas instruções
eles seguem e por quem têm o maior respeito.
É claro que, por um lado, tudo o que Aleksandr Duguin tem feito se insere até
certo ponto na perspectiva guenoniana, mas modificando-a de acordo com o
seu plano essencial. Esse plano não é de natureza filosófica. Toda obra
filosófica ― ou com pretensões de ser filosófica ― tem alguma chave, ou seja,
o ponto onde está a sua unidade. Se vocês examinarem tudo o que eu falei,
escrevi e ensinei ao longo desses 30 anos, perceberão que essa unidade é, por
um lado, de natureza meramente metafísica, e , por outro, de natureza
gnosiológica e ética. O que tem me interessado é, sobretudo, qual a condição
para que a consciência humana individual possa alcançar a verdade e desfrutar
do dom do conhecimento objetivo (que é o dom do conhecimento humano por
excelência, conforme demonstrou o Xavier Zubiri. Aliás, este é outro ponto que
o Frithjof Schuon também insiste: o que é próprio da inteligência humana é a
objetividade; se você desiste disso está abaixo da condição humana).
divina. O livre arbítrio humano é a expressão direta do poder divino. Isto quer
dizer que o universo inteiro das almas imortais é algo que abrange o cosmos e
que, sob certos aspectos, se sobrepõe aos próprios anjos. Então eu não vejo
motivo para desprezarmos o ser humano ou o estado humano como se fosse
apenas um estado entre muitos outros.
É claro, tive uma fase inicial em que fui militante esquerdista e naquela época
li muito Karl Marx, Lênin, essa coisa toda. Mas naquela época me limitava a
aprender essas coisas; não creio que tivesse alguma pergunta pessoal a
responder. Este tipo de pergunta surge depois, e surge precisamente deste
problema: por que tanto esforço para dominar e esmagar uma coisa que,
teoricamente, já é um nada.
Então, quando foi a primeira vez na história em que esse princípio da liberdade
política se manifestou em leis, instituições, com base em um princípio bíblico?
Foi na Constituição Americana.
Em segundo lugar, a concepção da liberdade política não tem nada a ver com o
individualismo no sentido da pura busca do interesse individual, mas tem a ver
exatamente com a concepção cristã de que a liberdade política é uma
exigência decorrente da própria letra do evangelho (e isso é inteiramente
baseado em motivos cristãos). Leiam o Benjamin Morris e tirarão a dúvida
completamente.
Em outro escrito, o Duguin diz que para caracterizar bem o conflito entre
atlantismo e eurasismo e é preciso ler o livro A sociedade aberta e seus
inimigos, do Sr. Karl Popper, onde o autor traça a noção da sociedade aberta
como aquela na qual não há absolutos, ou seja, não há nenhuma verdade
absoluta acima dos interesses e preferências dos indivíduos, portanto, uma
sociedade sem lei revelada (sem transcendência, por assim dizer). Então, diz o
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Em primeiro lugar, o Sr. Karl Popper é alemão, não americano; e, que eu saiba,
jamais viveu na América (terminou seus dias na Inglaterra, mas aqui na
America, que eu saiba nunca esteve). Em segundo lugar, essa concepção da
sociedade aberta teve alguma importância na formação da elite globalista, não
só americana como européia, mas qual a influência que isso teve nos Estados
Unidos? Praticamente zero. Isso é um enxerto que penetra na elite e tentam
impor à sociedade, contra a resistência maciça dela. É da idéia da sociedade
aberta popperiana que vem toda essa interpretação atual da separação entre
Igreja e Estado, que é não apenas de um Estado laico, mas de um estado
anticristão, e isto é evidentemente obra das elites globalistas, que não têm raiz
nenhuma na tradição americana, nem na nação americana, mas que são
francamente inimigos da nação. O acompanhamento da política dessa elite no
ultimo meio século mostra que ela foi invariavelmente antiamericana.
Todo o esforço dessa elite globalista tem sido no sentido mais claramente
antiamericano e no sentido de favorecer o movimento comunista internacional
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O que eu vejo é que a descrição dos dois blocos não confere absolutamente.
Mesmo por que, se pensarmos que de um lado existem as potências terrestres
(que seria a Europa, a Rússia, a China e os países islâmicos) e do outro lado as
potências marítimas... Mas espere. Quais foram as primeiras potências
coloniais que da modernidade? Foram Portugal e Espanha. Essas sim eram
potências marítimas. O que elas têm a ver com o esquema anglo-saxônico?
Absolutamente nada. Elas foram destruídas por ele. E se foram Portugal e
Espanha, como podemos imaginar que o esquema essencial do império
marítimo é uma mentalidade comercial e mercantil anglo-saxônica e
protestante? Pensar isto é ignorar completamente os fatos históricos e
sobrepor a eles símbolos unificadores que não têm absolutamente nada a ver
com a realidade.
John Adams disse que uma Constituição como a americana só servia para um
povo cristão, e vemos que à mediada que houve uma leve descristianização da
sociedade nos últimos 30 ou 40 anos, a quantidade de corrupção no meio dos
negócios é impressionante. Porém, veja que coisa terrível e significativa: este
aumento da corrupção, que é bastante documentado, tem vários livros a
respeito, (depois posso lhes recomendar alguns, documentando como a ética
nos negócios veio desaparecendo nos últimos 30 anos) coincide com a
disseminação entre os empresários da mentalidade do Sr. Karl Popper: o tipo
do liberal agnóstico, representado aí no Brasil pelo nosso Rodrigo Constantino.
À medida que esse tipo se dissemina na classe empresarial acaba a moralidade
e começam as fraudes. Mais ainda: essas fraudes são diretamente incentivadas
pela elite globalista.
sistema jamais teria condição de atender todas. Isto quer dizer que a maior
parte das pessoas não ligava para os seus direitos previdenciários, não
precisava deles (recorria a previdência privada, fazia poupança), ou seja, cada
um cuidava do seu futuro e do de sua família. Daí esses Cloward-Piven
disseram para incentivar essas pessoas a exigirem os seus direitos. Atualmente
a previdência atende 5%, se ela chegar a atender 50 ou 60% ela vem abaixo; e
se ela cai, caem os bancos. A crise americana foi uma obra de engenharia:
levou 40 anos para fazer, mas finalmente deu certo, aconteceu. E quem é essa
gente que fez isso? É a mesma que trabalha para George Soros, Barack Obama
e outros: a própria elite globalista. Então a identificação da elite globalista com
o Estado americano é completamente falsa, porque estão trabalhando
evidentemente contra o Estado americano, demolindo a economia, cortando as
verbas militares, tentando desmoralizá-los pela entrada forçada do
homossexualismo na organização militar, e assim por diante.
1
http://www.reformation.org/wall-st-hitler.html
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Com relação à primeira parte da aula, acho que foi um pouco confusa devido à
multiplicidade de assuntos que tentamos abranger de uma vez. Gostaria de
lembrar o seguinte: qualquer que seja o caso, a obra do René Guenon continua
sendo indispensável e acho que no final das contas ela mais ajuda do que
atrapalha. Isto por que ele recolocou em circulação várias idéias que haviam
sido perdidas pela cultura dominante na Europa nos últimos três séculos, e
preparou toda a condição para que existisse uma ciência comparativa das
religiões. Todas as objeções que podemos ter a essa obra — e não tenho
poucas — nada tiram do seu valor. Mais ainda: acho que sem passar pela obra
do René Guenon é impossível entender a situação atual do mundo.
Por outro lado, a idéia que depois foi popularizada pelo Frithjof Schuon como
unidade transcendental das religiões acredito que continue válida, mas não se
pode esquecer que essa unidade só existe no que diz respeito às doutrinas
metafísicas, que é a descrição sumária da estrutura da realidade. Então isto
não quer dizer que as religiões estejam de acordo em tudo o mais, e o próprio
Frithjof Schuon fazia questão de frisar que não se pode misturar as diferentes
formas tradicionais: o que é cristão é cristão, o que é muçulmano é
muçulmano, e assim por diante, o que na perspectiva do projeto eurasiano é
completamente escamoteado por que, notem bem, a unidade do império
eurasiano é assegurada, entre outras coisas, pela idéia da unidade
transcendente das religiões dividindo o mundo em uma parte para a qual só
existe o mundo terrestre (que seria o mundo dos impérios marítimos) e, por
outro lado, o mundo dos impérios voltados ao sacro, ao sagrado. Mas conforme
já expliquei, o sagrado não existe; é apenas um conceito acadêmico que ajunta
mal e mal por seus caracteres esquemáticos concepções que são
completamente diferentes entre si.
Em um de seus textos, o René Guenon diz que somente aqueles que estão
ligados à pura noção da eternidade e do absoluto escapam aos ciclos de
mortes e ressurreições, e para justificar essa afirmação ele cita um ditado
hindu que diz: “Aquele que sacrifica a um deus é comido por ele.”. Mas no
cristianismo é exatamente o inverso: é Deus que se dá como alimento, e isso
introduz uma mudança tão radical na doutrina do sacrifício que eu creio que
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O Hélio Rodrigues Pereira avisa que no Rio de Janeiro eles têm um grupo mais
ou menos organizado que se reúne toda semana. Para eles meu filho Gugu dá
aulas de metafísica, o Nivaldo Cordeiro dá um curso sobre Direito Natural, o
Carlos Nougué um sobre Latim, Trivium e Quadrivium etc. Eles fazem uma
reunião na terça e uma no sábado, mas a maioria dos alunos não está em dia
com as aulas. A sala não possui acesso à internet, e eles possuem uma série
de dificuldades, por isso mesmo ainda não estão em condições de fazer as
aulas de repetição.
Aluno: Nos textos do Ravaisson, lemos: “Como admitir que tais abstrações
possam explicar o movimento e a vida, ao sistema todo intelectual e lógico de
Platão, Aristóteles vem substituir um outro, onde o elemento prático ...
desempenha o papel principal, em lugar das puras idéias o as causas primeiras
ai são almas, fontes de movimento e vida”. Ao mesmo tempo lemos no Jardim
das Aflições que Aristóteles não acreditava de fato na imortalidade da alma.
Olavo: Muito bem: o Ravaisson não está se referindo à alma humana, mas a
algo que existe como se fosse uma alma; ou seja, não é nem um objeto dos
sentidos e nem uma forma abstrata, mas algo que existe como se fosse uma
alma; algo que tem vida e personalidade. Penetramos aí na noção do próprio
Deus, portanto a noção da imortalidade da alma humana não tem nada a ver
com essa história.
Aqui tem uma longa mensagem do Rodrigo Diniz, acho que vale a pena ler
alguns pedaços.
Aluno: Em uma das últimas aulas o senhor disse que as transcrições deveriam
ter um caráter documental, pois seria trabalhoso tentar organizar o texto em
busca de uma unidade didática, digamos assim. Pensei comigo: “preciso
desobedecer o professor nesse caso, pois o Seminário é um empreendimento
de grande importância no cenário cultural brasileiro. Ora, acompanhando o
curso vemos que isso não é apenas um modo de falar, mas uma coisa muito
séria, portanto, desde o início pensei que as transcrições deveriam ser feitas
como um livro, como uma obra clara mesmo para aqueles que não
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Olavo: Olha, em parte você tem razão: se fosse possível fazer em cima dessas
aulas o que foi feito, por exemplo, no livro Tópicos sobre a educação, do
Bernard Lonergan... O livro tem esse título mas ele é de filosofia e
importantíssimo. Foi um curso que ele deu no Canadá e ao qual os alunos
foram gradativamente trabalhando e trabalhando e deram um formato de livro
com começo meio e fim. Isso é uma coisa muito difícil; levaram anos para fazer
isso. Pretendo que se faça isso, mas não estou esperando isso num primeiro
momento. Num primeiro momento temos de ter apenas uma transcrição limpa
do ruído. [1:20]; as frases tem de ter começo, meio e fim; eventuais interrupções
são esquecidas, hiatos são preenchidos, mas é a correção mínima. Isso é o que
eu espero em um primeiro momento.
Então, Rodrigo, acho que você tem razão, mas eu não estou esperando tanto.
Daí ele pergunta a respeito de algumas obras minhas não publicadas... Não se
guiem muito por esses títulos, porque várias vezes juntei diferentes escritos
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sobre um mesmo título para ser publicado, o qual não foi publicado; depois
peguei os mesmos textos e botei em outro livro com outro título
completamente diferente. Esses que saíram no livro A dialética simbólica
tinham sido planejados para entrar em outros livros que acabaram não
existindo. Quando ele se refere aqui ao título O antropólogo antropófago, existe
uma apostila com esse nome e eu pensava em juntá-la com outros textos e
publicar como livro, mas isso nunca aconteceu. Tem outro estudo que eu fiz
sobre o Western A Vingança de Liberty Valance, mas isso também não é um
livro, é uma apostila, também para ser juntada com outras. Pensei em juntar
vários escritos sobre cinema e publicar com um título genérico.
Mas notem bem: eu não ligo muito para esses escritos antigos meus. Nos
últimos cinco ou seis anos a montanha de coisa que eu disse, que foi
transmitido e gravado já é suficiente para dar trabalho para muitas décadas.
Então o que for mais antigo tem apenas importância histórico-biográfica. Às
vezes até uma curiosidade. Eu não dou valor a nada do que escrevi antes de
1985 ou 1986. Acho que até ali foi só um período de aprendizado. Muitos
trabalhos são apenas de ordem jornalística, e eu simplesmente esqueceria
essa porcaria toda. E do que eu fiz nos últimos 20 anos acredito que as coisas
do Seminário têm prioridade, pois estou juntando e costurando vários pedaços
do que fiz antes de maneira fragmentária.
No caso, quando São Tomás de Aquino diz que Deus é a última coisa que você
conhece e São Boaventura diz que é a primeira, São Tomás está falando desde
um ponto de vista experimental, ou seja, a ordem real em que se vai
adquirindo os conhecimentos e, sobretudo, em que você vai adquirindo as
provas. Neste sentido, o conhecimento de Deus é de fato o último, porque para
chegar a ele é preciso ter uma série de conhecimentos sobre realidades
terrestres, sobre toda a estrutura da realidade, até chegar a Deus. Mas São
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Olavo: Procure o livro de Michael Walzer que se chama The revolution of the
saints (a revolução dos santos). Esta obra é um clássico a esse respeito. O
autor mostra não apenas a índole revolucionária do governo calvinista
estabelecido na Suíça, mas também que Calvino criou todos os instrumentos
de ação mais tarde usados pela militância; criou a organização da sociedade
civil para uma ação política [1:30]; inventou também o totalitarismo,isto é, o
governo que controla todos os aspectos da vida social e privada dos indivíduos,
até os pensamentos. Foi o primeiro projeto como esse na Europa. Claro que a
coisa não chega a se realizar, fica apenas em projeto, e depois toma outra
direção. Mas que a idéia em si era totalitária e que os meios de ação eram
característicos do movimento revolucionário, isto não podemos negar.
Olavo: Bem, a suspeita de algo que mais tarde eu viria a chamar de paralaxe
cognitiva acho que apareceu mais de quarenta anos atrás, justamente quando
estava estudando as Meditações de Filosofia Primeira do René Descartes. Isto
porque ali ele afirma que a obra em questão é um depoimento verdadeiro; que
não é algo que ele inventou, mas uma experiência que ele realmente teve.
Partindo disso, pensei: se ele fez, eu também tenho que poder fazer. Eu
tentava fazer o raio da dúvida metódica, da dúvida sistemática, e esbarrava
em impossibilidades flagrantes. Via, por exemplo, que a presença do eu
presente, do eu temporal, estava pressuposta em tudo aquilo; que o ego
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cogitas não era uma conclusão a qual pudesse chegar, mas um pressuposto.
Então se na conclusão você chega à mesma coisa que já estava pressuposta,
você não fez absolutamente nada; fez o que se chama petitio principio, uma
petição de princípio: se eu me propus a pensar sobre algo, eu mesmo já disse
que estou pensando.
Depois, quando li o David Hume e ele afirma que não existe prova de que
existe um eu por trás dos pensamentos, e que nós temos apenas estados,
pensei: se nós temos apenas estados, é inútil fixar uma sequência de
pensamentos no papel, porque cada vez olharmos para ele vamos
compreender uma coisa diferente. Conclui então que a teoria de Hume é
contraditória com o fato de ela ter sido escrita. Tudo isto observei há muito
tempo, só que na hora não me parecia um fenômeno geral, e sim apenas erros,
distrações que um filósofo tinha cometido aqui e ali. Mas reparei isso há muito
tempo atrás.
O Kant diz que nós não percebemos a coisa em si, mas só as suas aparências
fenomênicas. E eu, com o livro na mão, pensava: “Mas você quer que eu leia o
seu livro ou apenas a aparência fenomênica dele?”. Porque, afinal de contas,
um livro é um objeto material com uns grafismos que supostamente significam
alguma coisa que supostamente Kant pensou. Bem, se me colocam um
elefante na frente e eu não posso ter acesso ao elefante em si, mas só à sua
aparência fenomênica (o elefante que é uma coisa muito mais densa e
grosseira do que o escrito) por que eu digo que posso captar o pensamento de
Kant? Claro que essa teoria é contraditória com o fato de que ela foi escrita: se
ela é verdadeira não poderia ter sido escrito, e se foi escrito é porque não é
verdadeira.
Tudo isto reparei acho que há 40 anos, quando tinha vinte e poucos anos. Mas
na época eu ficava atormentado, pois achava que o idiota era eu e pensava:
“Vai ver não estou entendendo alguma coisa, não é possível! Ou então o
sujeito cometeu alguma rateada, um lapso”. Depois fui vendo que coisas desse
tipo eram onipresentes, e como já estava meio preocupado com esse negócio
da consciência e estava lendo Santo Agostinho e pensando no negócio da
confissão. Mas não só em termos religiosos. Eu fiz oito análises diferentes com
psicanalistas diferentes porque queria saber como é que funciona isso, e
cheguei à conclusão de que não funciona. Mas a análise, por mais tosca que
fosse, colocava em questão o problema da sua sinceridade, porque o
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Foi bem aos poucos que eu cheguei a essa coisa da paralaxe cognitiva como
um fenômeno que marcava toda uma época da história da filosofia: a época do
teatro. E quando chega o século XX acontece essa coisa surpreendente de que
o diálogo intelectual está todo feito de disfarces e camuflagens, e que as coisas
verdadeiras são encontradas no teatro, no romance. Tudo aquilo que era ficção
virou realidade, e o que era para ser realidade virou ficção [1:40]. Isto
provocado, em parte, pelo próprio desenvolvimento do sistema universitário,
onde ser filósofo se torna uma identidade social, o nome de uma profissão, e
não uma regra de vida (como era para Sócrates, Platão, Aristóteles, para os
Escolásticos).
mesmos fizemos. Claro que isso não é a única coisa que possamos conhecer.
Mas se não soubermos nem aquilo que fizemos; se não somos capazes nem de
contar a nossa própria história para nós mesmos com o mínimo de
fidedignidade, então já perdemos o fio da meada. Eu digo “contar a sua
história para você mesmo”, pois contar para outro é muito difícil: precisa ser
um gênio da confissão, como o próprio Santo Agostinho.
Agora, vamos fazer um teste: vamos ler o pró e o contra; vamos procurar o que
dizem os caras do outro lado. Caso o sujeito faça isso, o esquerdismo dele
acaba em três meses, não mais do que isso. É como diz o Eric Voegelin: leu O
Capital durante as férias e tornou-se marxista; depois fez um curso de
economia política e largou aquela besteira para sempre.
Foi assim dessa forma que surgiu a noção de paralaxe cognitiva. A própria
origem dela poderia ser objeto de um livro, uma autobiografia desse capítulo
(da minha vida) respondendo as perguntas: como é que descobri a paralaxe
cognitiva e como é que descobri que isso não era uma casualidade, mas uma
regra geral? Regra geral ao ponto de podermos chamar o começo da
Modernidade de “Era do fingimento”, porque é tudo fingido: a biografia das
pessoas é fingida, a voz é fingida, é tudo impostado.
Descartes também.
Comigo isto já não acontece mais: eu sei quando sou eu que estou falando.
Mesmo de madrugada, no meio do sonho, eu sei que estou lá e sei que não sou
Deus, por isto mesmo quando Ele põe algo na minha cabeça eu sei que foi Ele
e não eu, pois fico sabendo algo que não sabia antes. Então sei que durante o
sonho o Espírito Santo (que tem como um dos principais trabalhos manter em
funcionamento a nossa inteligência) me ajudou a ter um upgrade. E essa não é
uma ação extraordinária do Espírito Santo, é uma ação ordinária, geral,
constante dele.
Olavo: Pegue qualquer conduta humana monstruosa e veja que você não
consegue ter empatia com ela. Pense em que circunstância poderia fazer a
mesma coisa e você vê que não poderia. Existe uma espécie de obstáculo, um
abismo: você não consegue se conceber fazendo aquilo. Então você esbarrou
no incompreensível, no absurdo, no demoníaco, é ali que termina o mundo da
psicologia humana e começa um outro mundo.
Aluno: Você poderia explicar melhor o que quer dizer quando diz que Deus tem
de ser necessariamente uma pessoa?
Aluno: (...) A restituição dessa unidade faria o sujeito assumir a sua consciência
como causa, o que as teorias psicológicas têm apresentado como produtos de
fatores externos considerados como dominantes. Mas essa evidência está
sendo ameaçada pela mentalidade revolucionária. Está isso aceitável?
Olavo: Está aceitável, mas falta muita coisa aqui. Em primeiro lugar, para você
fazer uma exposição sistemática tem de ir pela ordem dos fatores, e a ordem
dos fatores é o Mundo dos Princípios. Este é um esboço de uma metafísica, e
ela fundamenta essa importância que eu dou ao ato intuitivo, de consciência,
sobretudo de autoconsciência (não da forma atomística do “penso logo existo”
— mas como autoconsciência existencial, vital ou, como diria Ortega y Gasset,
biográfica). O Ortega y Gasset estava enganado em pensar que a vida humana,
como vida biográfica, no sentido de minha vida, seja a realidade fundamental.
Não é, pois existe Deus acima dela, mas ela é a via fundamental para o
conhecimento de tudo quanto existe.
Acho que por hoje é só. Até a semana que vem e muito obrigado. Não
esqueçam do lançamento do livro do professor Wolfgang Smith.
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