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Faculdade Santa Marcelina

José Mário Monteiro

As canções de Toninho Horta e os desdobramentos harmônicos sobre a herança da Bossa


Nova

Trabalho apresentado como


requisito parcial para a conclusão
da pós-graduação lato sensu
Canção Popular: criação, produção
musical e performance sob
orientação do Professor Ms.
RICARDO TEPERMAN.

São Paulo
2014
As canções de Toninho Horta e os desdobramentos harmônicos sobre a herança da Bossa
Nova

José Mário Monteiro (Faculdade Santa Marcelina - FASM) 1

Resumo: Este estudo pretende apresentar informações e argumentar quais foram as


conquistas alcançadas pelo compositor e instrumentista Toninho Horta, tendo em suas canções
conceitos harmônicos que podem ser considerados herança da Bossa Nova, tendo como
referência alguns procedimentos adotados por Tom Jobim, através das canções INSENSATEZ
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes), DESAFINADO (Tom Jobim e Newton Mendonça) e INÚTIL
PAISAGEM (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira). Desta forma serão analisadas três canções de
Toninho Horta que são: BEIJO PARTIDO (Toninho Horta), PEDRA DA LUA (Toninho Horta e
Cacaso), ambas do álbum TERRA DOS PÁSSAROS, de 1980, e a canção BONS AMIGOS
(Toninho Horta e Ronaldo Bastos), do álbum TONINHO HORTA, também de 1980. Toninho
Horta é integrante do movimento Clube da Esquina, mas considerável parte de sua obra tem
aderência estilística com a Bossa Nova, com enorme sofisticação harmônica presente em todo
seu repertório, que representa um desdobramento evolutivo dos processos iniciados com a
Bossa Nova.
Palavras-chave: Tom Jobim. Toninho Horta. Bossa Nova. Canção. Clube da Esquina.
Harmonia.

1 - Tom Jobim – harmonia e herança


Entre os vários argumentos que surgem a respeito da bossa nova para interpretá-la e
defini-la, sempre é apontado e soa como uma unanimidade, o fato de que as figuras de João
Gilberto e Tom Jobim são a espinha dorsal do movimento. Quando penso em bossa nova,
penso diretamente na harmonia sofisticada que as canções têm. Obviamente que esse conceito
é associado aos diversos compositores que participaram do movimento como Carlos Lyra,
Roberto Menescal, João Donato, Marcos Valle, Johnny Alf (esse considerado o precursor),
entre outros. Mas é na figura do compositor Tom Jobim que a palavra harmonia ganha força,
muito pela importância e vastidão de sua obra, ou seja, essa harmonia está inserida no
contexto das composições de Tom Jobim (embora seja válido considerar as reharmonizações
presentes nas interpretações de João Gilberto). Tom Jobim, através do movimento, apontou
um caminho até então não trilhado na Música Popular Brasileira, o caminho das harmonias
complexas. O tratamento cuidadoso prestado à harmonia e a melodia foi e ainda é de grande
importância à música brasileira.
Luiz Tatit (2004, p.179), propõe que a Bossa Nova seja analisada em dois momentos:
da forma “Intensa” pela criação de um estilo de canção e atribui isso às todos os personagens

1
Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-Graduação “Canção Popular: criação, produção musical e
performance” da Faculdade Santa Marcelina. Orientação – Professor Ms. Ricardo Teperman – Agosto de 2014.
envolvidos no movimento, que durou de 1958 a 1963, a influência estava em precursores do
movimento como Johnny Alf, por sua vez influenciada pelo cool jazz, inclui aí as figuras de
Tom Jobim e João Gilberto. A chamada Bossa Nova “Extensa”, segunda proposta de análise
de Luiz Tatit, diz respeito apenas às figuras de Tom Jobim e João Gilberto, muito pelo
“projeto de depuração de nossa música, de triagem estética, que se tornou modelo de
concisão, eliminação dos excessos, economia de recursos e rendimento artístico”. Na Bossa
Nova “Extensa” encontra-se a chamada herança estética para a criação da música brasileira
que sucedeu ao movimento.
Grandes nomes que sucederam a Bossa Nova se apropriaram dos caminhos
harmônicos propostos por Tom Jobim, tais como os movimentos que sucederam à Bossa
Nova, portanto tornaram-se herdeiros da harmonia, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil,
João Bosco, e figuras como a de Ivan Lins e Toninho Horta que dão a essa harmonia uma
espécie de sofisticação evolutiva.
Toninho Horta ao longo de sua carreira ressaltou a importância da Bossa Nova como
estilo decisivo nas composições, a complexidade de suas harmonias demonstram
características pessoais na abordagem que propõem uma espécie de evolução, desde sua
formação musical a Bossa Nova esteve presente como estilo marcante.
Vários autores apontaram a importância da Bossa Nova na formação musical de
Toninho Horta. Thais Lima Nicodemo (2009, p. 16) em sua dissertação de mestrado “Terra
dos pássaros: uma abordagem sobre as canções de Toninho Horta” aponta a influência da
Bossa Nova presente nas canções de Toninho Horta e lista algumas delas, tais como MEU
CANÁRIO VIZINHO AZUL (BETO GUEDES, DANILO CAYMMI, NOVELLI E TONINHO
HORTA, 1973), BEIJO PARTIDO (TERRA DOS PÁSSAROS, 1980) e BONS AMIGOS
(TONINHO HORTA, 1980), além das composições instrumentais WAITING FOR ÂNGELA
(DIAMOND LAND, 1988) e BICYCLE RIDE (MOONSTONE, 1989). A autora ainda aponta o
fato de Toninho Horta ter dois álbuns dedicados à Bossa Nova, que são: SEM VOCÊ, de
1995, gravado no Japão, em parceria com a cantora Joyce e FROM TON TO TOM, de 2000.
Toninho Horta inseriu em todas essas músicas a sofisticação harmônica que é peculiar
em suas composições. Em declaração exposta em sua biografia escrita por Maria Tereza R.
Arruda Campos, Toninho Horta (2010, p. 190) aponta a diligência dada à harmonia:
“Harmonia é um cuidado, um carinho que a gente tem de ter. É uma forma de vestir a
melodia. E deve fazer isso de uma forma carinhosa. Dependendo de como constrói essa
harmonia, você pode abrir a música pra diversas paisagens”.
2 - Diversas Paisagens
Para entender alguns dos processos harmônicos presentes nas canções de Tom Jobim,
há necessidade de uma análise prévia. Essas harmonias tem relação direta com as melodias
(canto das canções), quase sempre longas e assimétricas, das músicas. O desdobramento das
melodias é que definem a roupagem harmônica. Lorenzo Mammì (2010, p.16) ao analisar a
canção SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), composição do
ano de 1956, descreve que “a canção não possui uma forma fixa, determinada por repetição de
segmentos estanque, mas flui livremente a partir das mutações de uma unidade melódica
mínima”, um pequeno fragmento melódico é repetido ao longo da música, mas com durações
diferentes, dando a cada passagem um sentido diferente, onde os acordes aparecem
complementando o discurso melódico da canção.
A canção INSENSATEZ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), composição do ano de 1961,
que no mesmo motivo melódico se repete integralmente em compassos subsequentes, a
harmonia propõe um novo acontecimento, o desenvolvimento acontece a cada acorde, nesse
caso assim como nos quatro primeiros compassos de INÚTIL PAISAGEM a harmonia propõe a
descendência do baixo cromaticamente, mas com sugestão de um motivo estável no que diz
respeito à frequência das notas.

Figura 1 – Motivo melódico da canção INSENSATEZ, que se repete com a ocorrência de três acordes que descem
cromaticamente durante o desenvolvimento, com conclusão no primeiro tempo do quinto compasso.

A frase (“Ah! Insensatez o que você fez”) contêm, como material sonoro somente duas
notas (fá# e sol) que ganham sentido emocional a medida que aparecem os acordes.
Outra característica muito comum nas composições de Tom Jobim são os repousos
melódicos que geram tensão sobre a harmonia. Podemos observar o exemplo clássico da
canção DESAFINADO (Tom Jobim e Newton Mendonça), feita no ano de 1958, onde o
contorno melódico extenso repousa em notas tensas, que muitas vezes já estão inseridas na
formação do acorde e em alguns momentos não (de qualquer forma gerando tensão).
Com total aderência entre a letra e a melodia2 propositalmente sugere um desafio3 a
quem se põe a cantar, embora José Miguel Wisnik no programa “O Tom de todos nós – Bloco
1”, gravado para o Instituto Moreira Salles em parceria com Arthur Nestrovski, mostra que
com o passar dos tempos tornou-se natural entoar a melodia, mas para o período em que foi
criada causou grande impacto. E a intenção era essa: desafiar cantores e ouvidos.

Figura 2 – Primeira parte da canção DESAFINADO onde a melodia reforça as tensões dos acordes – sétimas
(maiores e menores), quintas diminutas, nonas menores.

Percebe-se que o tratamento dado à harmonia nas canções segue caminhos diversos,
apontam para modulações, alterações dos acordes, relação melodia/harmonia (tensões), baixos
(encarados como contrapontos). Para Lorenzo Mammì (2010, p. 15) “certamente, a técnica
harmônica de Jobim deve muito ao jazz. No entanto, sua maneira de construir melodias e
harmonizá-las remete à sua formação erudita”. Maneira essa que é descrita pelo autor no texto
“João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, para a revista Novos Estudos (CEBRAP),
ao citar novamente o violonista João Gilberto, Lorenzo Mammì (1992, p. 67) descreve que o

2
Ver Cacá Machado, “O Samba, A Prontidão E Outras Bossas: São Coisas Nossas”, em: Folha Explica – Tom
Jobim (São Paulo: Publifolha, 2008); p. 31.
3
Ver HOMEM, Wagner; OLIVEIRA, Luiz Roberto. Histórias de canções: Tom Jobim. (São Paulo: Leya, 2012);
pp. 70-71.
canto (melodia), de fato, não se apoia nos acordes. “Muitas vezes, o que se ouve é o contrário,
acordes pendurados no canto como roupas no fio de um varal”. A progressão harmônica
responde aos estímulos melódicos, a harmonia sofre mutações de acordo com o contorno
melódico que é sempre tortuoso, os acordes surgem para complementar o sentido melódico,
onde não é raro encontrar conclusão em acordes que não são da tonalidade da música, o
terceiro compasso de DESAFINADO é um exemplo desse conceito, onde a melodia repousa
sobre o acorde de G7(b5) evidenciando no acorde a nota da melodia (ré bemol), quinta
diminuta do acorde e sexta menor da tonalidade de Fá maior (tonalidade da canção).

3 – Inútil Paisagem
Podemos observar esses caminhos melódicos assimétricos nos primeiros compassos da
canção INÚTIL PAISAGEM (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira), feita no ano 1963, já no fim do
movimento que impactou a música popular brasileira, a Bossa Nova “intensa”, ilustra bem os
procedimentos harmônicos adotados pro Tom Jobim e que se tornaram característicos.
A composição expõe uma variação entre acordes diatônicos (dentro da tonalidade) e
não-diatônicos (fora da tonalidade) a canção está na tonalidade de Lá bemol maior e inicia
com o acorde de Ab6 já no segundo compasso há o aparecimento do acorde G7(13), VII/III,
dominante secundário, seguido do acorde Gbmaj7 (#4) ou Gb7M (#4), Acorde de Empréstimo
Modal [AEM], dando o caráter de uma resolução deceptiva já que o acorde esperado para a
resolução da passagem seria o Cm7, IIIm7, com função de tônica (resolução) e no quarto
compasso aparece o acorde de F7(b13), V7/II, dominante secundário, que resolve no quinto
compasso com o acorde de Bbm7 (IIm7), subdominante, que se estende até o sexto compasso.
Progressão: | Ab6 | G7(13) | Gb7M(#4) | F7b(b13) | Bbm7 | % |  | I | V7/III |
bVII7M(#4) | V7/II | IIm7 | % |
Esses são os seis primeiros compassos da canção que já demonstram o processo
harmônico presente nas canções de Tom Jobim. Do primeiro compasso ao quarto há
movimento descendente cromático do baixo [lá bemol – sol – sol bemol – fá], procedimento
comum nas canções de Tom Jobim, podemos notar essa construção em obras como
INSENSATEZ (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), CORCOVADO (Tom Jobim), BRIGAS NUNCA
MAIS (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), entre outras. Chama a atenção, entre o primeiro
compasso e terceiro o contraste que a melodia emprega ao ascender cromaticamente [mi
bemol – mi – fá | 5J – 6M – 7M] combinando perfeitamente com a indagação da letra (“Mas
pra que”) e se opondo ao movimento do baixo, mas ambos soando como unidade de
compasso, ou seja, cada nota preenche o compasso inteiramente.
Figura 3 – Três primeiros compassos de Inútil Paisagem – movimento de baixo descendente e melodia
ascendente (cromáticos).

E para descrever o papel do baixo nas harmonias de Tom Jobim, Lorenzo Mammì, no
mesmo texto aponta a importância da maneira de tocar violão de João Gilberto.

As durações oscilantes da batida de João são a tradução rítmica perfeita das


alterações harmônicas de Tom. Antecipando os acordes na região central, em
relação ao pulso marcado pelo baixo, é possível fazer com que as notas graves
não carreguem a harmonia, mas ao contrário sejam antecipadas e conduzidas
por ela. Livre dessa função de apoio, a linha de baixo, embora muito simples,
torna-se melódica, quase um contracanto. (MAMMÌ, 2000, p. 14).

No quarto compasso surge o acorde de F7(b13), V/II, dominante secundário, que


prepara o acorde de Bbm7, IIm7, subdominante, no quinto compasso. Interessante notar o
caráter assimétrico que a melodia começa a tomar a partir do compasso onde as notas
aparecem em tercinas de semínimas sobre o acorde de F7(b13) [fá – mi bemol – ré bemol –
dó – ré bemol – mi bemol | I - 7m – 6m – 5J – 7m] e o mesmo padrão rítmico se repete no
sexto compasso, mas agora sobre o acorde Bbm7 [mi bemol – ré bemol – dó – si bemol – dó –
ré bemol | 4J – 3m – 7m – I – 7m – 3m]. Na passagem dos dois acordes a melodia segue
dentro de notas diatônicas.
Nos compassos 7 e 8 surge a seguinte sequência: |Dbm Dbm7(maj7) | Dbm7 Dbm6|,
todos acordes são o IVm da tonalidade, Acordes de Empréstimo Modal, [AEM] e todos esses
acordes são considerados subdmominates menores, pois todos em suas formações contêm a
nota Mi, ou seja, a sexta menor [6m] da tonalidade de Lá bemol maior. Interessante que nessa
progressão existe uma descendência cromática também, mas agora esse movimento aparece
na região mediana do acorde entre as notas [ré bemol – dó – si – si bemol | I – 7M – 7m –
6M].
Nos compassos 9 e 10 segue a seguinte sequência | C7(13) C7(b13) | Cm7 | F7(b9) | 
| V7/VI V7/VI | IIIm7 V7/IIm7 |  dominante estendido (pois resolve em um acorde
dominante secundário F7(b9), V7/II) – subdominante – dominante secundário. A melodia fica
na nota Dó até o primeiro tempo do compasso 10 e conclui no segundo tempo com o
movimento ascendente até a nota Mi bemol e posteriormente descendente entre as notas mi
bemol – ré bemol – fá.
Os compassos 11 e 12 têm a mesma estrutura da progressão anterior, mas um tom
abaixo | Bb7(13) Bb7(b13) | Bbm7 Eb7(b9) |  | V7/V V7/V | IIm7 V7 |  dominante
secundário – subdominante – dominante.
Entre os compassos 13 e 14 há a progressão tipicamente de blues, onde o acorde de
Ab7(13), V7/IV, dominante secundário, mas podemos encarar como se fosse o acorde de
tônica com a alteração de 7(13), se dirigindo ao acorde Db7(9), V7/bVII, dominante auxiliar,
pois a resolução mais lógica seria sobre um Acorde de Empréstimo Modal [AEM] do tipo Gb
(maior, menor ou de sétima dominante), mas a resolução é de uma cadência deceptiva, ou
seja, resolve em acorde inesperado que é o acorde Abmaj7 ou Ab7M, I7M, tônica, no
compasso 15. No compasso dezesseis tem-se o acorde A7(13), SubV7, substituto da sétima da
dominante, acorde que prepara a música para o retorno da segunda exposição (chorus).
Em INÚTIL PAISAGEM nota-se o predomínio de acordes não-diatônicos, acordes que
não pertencem ao Campo Harmônico da tonalidade, mecanismo que é muito comum nas
canções de Tom Jobim, em geral os acordes surgem em resposta a pequenos fragmentos
melódicos, fragmentos que se unem e constroem um contorno assimétrico, tornando-se
modulante durante o percurso (já nos três primeiros compassos percebemos essa modulação).
As respostas harmônicas a esse percurso melódico é responsável também pelo aspecto
emotivo da (s) canção (ões).
Outro fator importante é associado aos fragmentos melódicos que se repetem, mas são
expostos às roupagens harmônicas que mudam no percurso da canção.

Figura 4 – Motivo melódico que ocorre no quarto compasso da canção INÚTIL PAISAGEM – sobre acorde de
F7(b13).
Figura 5 – Motivo melódico que ocorre no sexto compasso da canção INÚTIL PAISAGEM – sobre o acorde de
Bbm7.

Diversos são os tratamentos harmônicos presentes nas composições de Tom Jobim e


mediante análises prévias é possível constatar características do compositor nesse aspecto que
são: sequências melódicas que se repetem integramente e ganham sentidos diferentes com o
aparecimento de acordes diferentes ao longo da música; motivo melódico com duração
estendida ou oscilante, que tornam as melodias mais densas e estimulam o surgimento de
roupagens harmônicas diferentes; alterações dos acordes que respondem às tensões melódicas
(a melodia enfatiza a tensão do acorde); baixo que segue cromaticamente descendente, sendo
guiado pelo acorde como apontou Lorenzo Mammì (2000, p.14), o baixo não carrega os
acordes, mas o processo acontece a contrário, onde o baixo surge como um contraponto.
Essas são algumas das características harmônicas que ficaram em suas canções como
herança utilizadas por diversos nomes da música popular brasileira, posteriores ao movimento
Bossa Nova. Desta forma analisarei de que forma essa herança harmônica representa um
quadro evolutivo dentro das canções do compositor e instrumentista Toninho Horta.

4 – Toninho Horta – herdeiro da harmonia


Toninho Horta é referência quando o assunto é harmonia na música popular brasileira
e ao longo de sua carreira seguiu esse caminho, o caminho dos acordes “impossíveis”, termo
que utilizo baseado na declaração do guitarrista norte-americano Pat Metheny que no texto do
álbum DIAMOND LAND (Toninho Horta, 1988) afirma que “de forma única, ele escreve
progressões de acordes que desafiam a gravidade, movendo-se para cima quando você pensa
que vão descer” executados no violão e/ou guitarra, seja como compositor, intérprete,
instrumentista ou músico acompanhante de outros artistas. Toninho Horta é sempre associado
ao movimento Clube da Esquina, devido à sua participação intensa nos discos do movimento
e sobre tudo devido à sua atuação ao lado de Milton Nascimento. Amaral (2013, p. 176)
demonstra que a primeira composição de Toninho Horta gravada por Milton Nascimento foi
AQUI, Ó (Toninho Horta e Fernando Brant), no disco MILTON NASCIMENTO, no ano de
1969. A produção ao lado de Milton Nascimento foi decisiva na carreira de Toninho Horta ao
longo dos anos 1970 e logo se tornou um músico requisitado em gravações e apresentações de
outros compositores e cantores que atuavam no mesmo período. Suas atividades foram
intensas e variadas, neste mesmo período Toninho Horta começa a deixar a sua marca
registrada como músico e compositor. Vários autores apontam as participações de Toninho
Horta nos discos de Milton Nascimento4.
Thais Lima Nicodemo (2009, p. 31) destaca as participações nos álbuns CLUBE DA
ESQUINA (1972), MILAGRE DOS PEIXES AO VIVO (1974), MINAS (1975), GERAES
(1976), MILTON (1976) e CLUBE DA ESQUINA 2 (1978), que com exceção de MILAGRE
DOS PEIXES AO VIVO, onde tocou apenas guitarra, nos demais discos Toninho Horta tocou
diversos instrumentos. O destaque fica para a gravação de BEIJO PARTIDO (Toninho Horta) no
disco MINAS, onde o músico tocou violão, piano, fez os vocalizes e criou a ambientação
musical. Ivan Vilela (2010, p. 23) aponta as características de ambientação musical dos
músicos mineiros do Clube da Esquina e denomina de “massa sonora” ou “nuvem” devido a
presença de uma instrumentação inusitada como a utilização de órgão e violão misturados aos
vocalizes, instrumentos de sopro como o sax misturado às vozes e também as doses de
psicodelia das bandas de rock da época. É interessante observar esses recursos utilizados por
Toninho Horta como músico acompanhante e também em seus discos solos, e esses recursos
reforçam a estética harmônica de seus trabalhos5.

O conceito de massa sonora, ou nuvem, que surge no álbum de 1972, alcança


seu ápice em 1975 com o álbum Minas. Ali voz e saxofone se fundem na
canção “Beijo Partido”, de Toninho Horta, resultando em um terceiro timbre.
Em diversos momentos buscou-se uma timbragem diferente, quer seja na
união da voz com algum instrumento, quer seja no timbre da guitarra que foi
característico durante toda a década. (VILELA 2010, p. 24).

Thais Lima Nicodemo (2009, p. 15) ressalta que a cena musical que acontecia em Belo
Horizonte proporcionava a Toninho Horta o contato com várias manifestações musicais, e
principalmente a Bossa Nova, através do irmão mais velho, Paulo Horta, e de outros músicos

4
Ver CAMPOS, Maria Tereza R. Arruda. Toninho Horta: harmonia compartilhada. 1. ed. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2010. pp. 51-53-54-72-75-76.
Ver Entrevista de Milton Nascimento concedida a Chico Amaral. In: AMARAL, Francisco Eduardo Fagundes. A
Música de Milton Nascimento. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Gomes, 2013. pp. 175-176-177.
5
Ouvir os fonogramas da canção BEIJO PARTIDO nos discos MINAS (Milton Nascimento, 1975) e TERRA DOS
PÁSSAROS (Toninho Horta, 1980). Este último com o uruguaio Hugo Fattoruso tocando Arp String Emsemble e
Wagner Tiso tocando Órgão.
envolvidos com o jazz e a Bossa Nova, entre esses músicos estão: Chiquito Braga, violonista
que influenciou fortemente Toninho Horta, e Wagner Tiso.
E a forte influência da Bossa Nova, e especialmente do compositor Tom Jobim, pode
ser confirmada com suas composições dedicadas ao estilo e nas gravações dos álbuns
dedicados à Bossa Nova, SEM VOCÊ, em parceria com a cantora Joyce, de 1995, e FROM
TON TO TOM, de 2000, este último sendo uma homenagem a Tom Jobim.

5 – Terra dos Pássaros


Entre as onze composições contidas no álbum TERRA DOS PÁSSAROS (Toninho
Horta), 1980, é possível afirmar, após a escuta, que todas as faixas são merecedoras de análise
harmônica, tamanha a riqueza do seu conteúdo. O destaque fica evidente na forma de tocar
violão e guitarra de Toninho Horta, onde a vertente de instrumentista e arranjador é
evidenciada em suas composições.
A forma de Toninho Horta montar e arpejar os acordes no braço do violão e/ou
guitarra é elemento que interfere diretamente em suas canções. Thais Lima Nicodemo (2009,
p. 129) em sua dissertação de mestrado “Terra dos pássaros: uma abordagem sobre as
canções de Toninho Horta” descreve em um capítulo dedicado à técnica de acordes que “a
densidade sonora dos acordes com cinco, ou seis vozes, usados constantemente por Toninho
Horta, pode ser considerada um elemento essencial em sua concepção musical”. Percebe-se
nos acordes utilizados por Toninho Horta uma busca pela movimentação das notas medianas e
agudas entre as progressões.
A canção PEDRA DA LUA (Toninho Horta e Cacaso), gravada no disco TERRA DOS
PÁSSAROS, de 1980, já no primeiro compasso de exposição da melodia (canto) o acorde
EM7 (#11) (#9), I7M, tônica, desliza descendentemente a nota ré sustenido até a nota ré
natural, e esta nota já aparece no acorde subsequente de E7 (#11) (#9), V7/IV, dominante
secundário, o movimento que ocorre dentro do acorde, nesse caso, obedece ao movimento da
melodia canto, algo parecido com o que acontece em DESAFINADO (Tom Jobim e Newton
Mendonça), onde a melodia reforça as tensões dos acordes, embora nesses dois acordes de
PEDRA DA LUA existam muitas tensões que não estão na melodia. Eis aí um exemplo da
densidade sonora apontada por Thais Lima Nicodemo, onde no acorde de função tônica, I7M,
aparecem as notas [ré sustenido – sol – lá sustenido | 7M – 9aum – 4aum], procedimento esse
pouco comum ao se iniciar a exposição de uma canção.
Figura 6 – Acordes iniciais da canção Pedra da Lua, com a movimentação descendente entre as notas ré
sustenido e ré natural, repetindo o movimento da melodia.

Uma movimentação harmônica muito parecida como a exposta acima acontece na


canção BEIJO PARTIDO (Toninho Horta), gravada no mesmo disco de 1980. O movimento
acontece no vigésimo segundo compasso, onde a aparece o mesmo acorde de E7M (#11) (#9),
I7M, Acorde de Empréstimo Modal, [AEM], já que a canção está na tonalidade de Mi menor,
e caminha para o acorde de Em7(11), Im7, tônica menor.

Figura 7 – Movimentação harmônica que ocorre na canção BEIJO PARTIDO, processo semelhante aos
primeiros acordes de PEDRA DA LUA.

Em muitas situações as canções de Toninho Horta não estabelecem progressões


cadenciais6 como observamos na canção INÚTIL PAISAGEM (Tom Jobim e Aloysio de
Oliveira).
Thais Lima Nicodemo (2009, p. 87) demonstra também dentro da canção PEDRA DA

LUA a ocorrência, entre os compassos 2 e 4, de um fragmento modal, descartando assim as


relações funcionais da progressão. Desta forma os acordes respondem à sonoridade dos
modos em questão. Através de uma cópia de um manuscrito (partitura) do próprio Toninho
Horta (vide anexos) podemos observar a movimentação dos acordes respondendo ao
modalismo (Figura 8), enquanto o baixo se mantém na nota lá, muda apenas uma nota entre o

6
Sequência harmônica caracterizada pela combinação funcional dos acordes, com sentido de tensão e resolução.
primeiro e o segundo acorde de cada compasso, e a formação dos acordes se repete entre os
compassos 2 e 3, mas em 1 (um) tom abaixo.

Os mesmos shapes (desenhos dos acordes no braço do


violão) se repetem entre os compassos 2 e 3, mantendo a
nota Lá no baixo.

Figura 8 – Fragmento modal presente entre os compassos 2 e 4 da canção PEDRA LUA, com movimentação de
um tom descendente entre o segundo e terceiro compasso.

Novamente a condução entre as vozes do acorde tem maior peso, e com a presença do
baixo pedal. Esse trecho da música pode ser facilmente associado ao um procedimento muito
comum nas canções de Milton Nascimento e do Clube da Esquina de um modo geral, que é a
utilização dos chamados slash chords7, que são acordes em tríades executados sobre o mesmo
baixo. Mas no caso desse trecho de PEDRA DA LUA, Toninho Horta opta pelo encadeamento
das tétrades, no caso [A13(sus4) A7(13) | Dm9(11)/A G7(13)/A | B(sus9)/A Bm/A |  |
V7sus/VIIb V7/VIIb | VIIbm V7/VIb | V7 Vm7], trecho modal onde não se abandona
totalmente a tonalidade, mas recheia a canção com acordes não diatônicos. Embora a
movimentação seja baseada em tétrades, é importante ressaltar as tríades como as notas mais
agudas dos acordes, como se estivessem matizadas no encadeamento harmônico,
principalmente nos compassos 2 e 3. O acorde A13(sus4) tem em sua formação a tríade de ré
maior [ré – fá sustenido – lá | I – 3M – 5J], o acorde A7(13) tem a tríade de fá sustenido
menor [dó sustenido – fá sustenido – lá | 5J – I – 3m], no acorde Dm9(11)/A ocorre a tríade de

7
Ver AMARAL, Francisco Eduardo Fagundes. A Música de Milton Nascimento. 1. ed. Belo Horizonte: Editora
Gomes, 2013. pp. 243-346-347
Nas páginas 346 e 347 há uma análise sobre a canção TRASTEVERE (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos),
disco MINAS, de 1975, onde o autor aponta a utilização dos slash chords.
dó maior [dó – mi – sol | I – 3M – 5J] e no acorde G7(13)/A ocorre a formação da tríade de mi
menor [si – mi – sol | 5J – I – 3m].
As vozes dos acordes em um pequeno trecho de dois compassos sugere, em uma
canção que é tonal, um efeito de suspensão característico do modalismo. E essa alternância
entre tonalidade e modalismo, dá a cada acorde uma sonoridade única mesmo que em seu
desenho esteja a formação de intervalos que já aconteceram na música (shapes).
Ao contrário do processo analisado anteriormente, onde o baixo soa durante um
período determinado em apenas uma nota com a mudança das vozes dos acordes, também há
nas canções de Toninho Horta a utilização dos baixos em progressão descendente, assim como
nos processos que foram apontados e analisados nas canções de Tom Jobim. A ocorrência
desse tipo de progressão acontece na canção BEIJO PARTIDO (Toninho Horta), também gravada
no álbum TERRA DOS PÁSSAROS, de 1980, canção que antes de ser gravada por Toninho
Horta recebeu as interpretações de Milton Nascimento no disco MINAS, de 1975, e de Nana
Caymmi, no mesmo ano.
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1999, p. 209) expõem BEIJO PARTIDO como
uma “canção meio enigmática” e “com sua linha melódica simples e harmonia sofisticada”.
Os autores seguem descrevendo que “a frase ‘é quem sabe de ti’, em movimento melódico
ascendente contrastando com a sutil harmonia descendente, ajuda a entender esse lado
intrigante de sua obra”. O trecho apontado por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, de
fato demonstra o requinte das harmonias de Toninho Horta, vale lembrar que o contraste entre
a melodia ascendente e a harmonia com baixo descendente, tem o mesmo movimento
utilizado nos três primeiros compassos de INÚTIL PAISAGEM (Tom Jobim e Aloysio de
Oliveira), mas em um contexto diferente (Figura 9).

Contraste entre os baixos


descendentes dos acordes
e a melodia ascendente.

Figura 9 - Movimento harmônico com baixo descendente e melodia ascendente de Beijo Partido, entre os
compassos 12 e 14.
Embora o processo seja semelhante ao de INÚTIL PAISAGEM, cabe lembrar que nesse
trecho Toninho Horta mantém praticamente os mesmo shapes de acordes que progridem
ascendentemente como acordes subV7 estendidos (procedimento tipicamente violonístico).
A sensação “meio enigmática” apontada por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello
(1999, p. 209) no livro “A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras vol. 2: 1958-
1985” deve-se não só ao trecho apontado pelos autores, mas à canção como um todo. Essa
sensação também é fruto dos conceitos apontados por Ivan Vilela8 (2010, p. 24) em seu artigo
“Nada ficou como antes”, escrito para a Revista USP, na qual aponta os conceitos de massa
sonora ou nuvem.
Thais Lima Nicodemo (2009, p. 112) em análise da progressão harmônica de BEIJO
PARTIDO (Toninho Horta) informa que existem harmonias que utilizam acordes que favorecem
certo obscurantismo, dando à canção uma ambiguidade tonal, a autora demonstra que a
canção tem duas tonalidades possíveis, que são Mi menor ou Ré Maior. A autora optou pela
tonalidade de Mi menor, devido a aparecimento mais frequente da progressão dominante –
tônica menor [V7 – Im7], o que na tonalidade de Ré Maior teria a tônica como elemento
oculto em diversos momentos da canção como veremos abaixo (Figura 10).

Figura 10 – Sequência harmônica inicial da canção BEIJO PARTIDO e a característica de ambiguidade tonal.

Do primeiro para o segundo compasso poderíamos encarar como uma cadência [IIm7
– V7], dentro da tonalidade de Ré Maior, nos acordes Em9(11) e A7(sus4), mas com uma
resolução deceptiva no acorde de G7M(4#) [IV7M], posteriormente surge os acordes [
F#7(b5) | B7(b5) | Em7(9) |  | V7/VI | V7/II | IIm7]. Vale lembrar-se de uma curiosidade
sobre essa análise. Ao contrário de Thaís Lima Nicodemo, que analisou a canção na
tonalidade de Mi menor, Almir Chediak (1987, p. 226-227) no livro “Harmonia &
Improvisação - Vol. 2” analisa a música na tonalidade de Ré Maior, como no exemplo acima,
fator que confirma a ideia exposta por Thais Lima Nicodemo (2009, p. 112). Abaixo a opção
de análise de Thaís Lima Nicodemo, na tonalidade de Mi menor:

8
Ver VILELA, Ivan. O Movimento - uma nova perspectiva musical. Escrito para o site
www.museuclubedaesquina.org.br/o-movimento/.
No texto o autor aponta a importância das harmonias de Milton Nascimento e Toninho Horta.
[Em9(11) | A7(sus4) G7M(#4) | F#7(b5) | B7(b5) | Em7(9) |  | Im7 | V7/VII IIIb7M |
V7/V | V7 | Im7]  | Tônica menor – dominante secundário – tônica – dominante secundário
– dominante – tônica menor ].
O flerte das resoluções com acordes de tonalidades diferentes, acordes de empréstimos
modais, resoluções deceptivas (cadências que não resolvem em acordes da tonalidade), são
alguns dos recursos harmônicos que acontecem em BEIJO PARTIDO e favorecem o clima
enigmático da canção.

6 - Toninho Horta – Bons Amigos


Outra canção que merece destaque é BONS AMIGOS (Toninho Horta e Ronaldo Bastos),
do álbum TONINHO HORTA, de 1980. Trata-se de uma Bossa Nova construída também com
movimentações entre as vozes dos acordes. Assim como BEIJO PARTIDO, não há uma definição
com relação à tonalidade da canção. A canção oscila entre as tonalidades de Mi Maior e Si
Maior, na análise aqui estabelecida optei pela tonalidade de Mi Maior devido à ocorrência de
cadências com a resolução na tonalidade em questão.
A introdução da canção sugere a tonalidade de Mi Maior com a seguinte cadência:
[A#m7(b5) | D#7(b9) (11) D#7(b9) | G#m7(b5) | C#7(b9) (11) C#7(b9) | F#m7(b5) | B7 (b9)
(11) B7(b9) | E7M |  | IIm7(b5)/III | V7/III V7/III | IIm7(b5)/II | V7/II V7/II | IIm7(b5) | V7
V7 | IM7]. Mas logo em seguida, ao iniciar o tema (canto), surgem cadências que sugerem a
tonalidade de Si Maior, da seguinte forma: [E7M (#4) | C#m7(9) F#7 (13) | B7M(9) | B6 (9) |
 | IM(#4) | IIm7/V V7/V7 | V7M | V6/9 ], essa sequência, embora analisada na tonalidade
de Mi maior, é diatônica à tonalidade de Si Maior. O surgimento do acorde de EM7 (#4)
sugere a nova tonalidade e um novo rumo à canção, o acorde é o IV [modo lídio] no tom de Si
Maior e a tensão gerada pela nota [lá sustenido – 4aum (essa é também a 7M na tonalidade de
Si Maior)] reforça ainda mais a mudança de tonalidade, assim como o desenho melódico
presente nesses quatro compassos.
As modulações são constantes nessa canção o que é perceptível logo na introdução,
além das tonalidades de Mi Maior e Si Maior a música também passa pela tonalidade de Lá
Maior e tem sua conclusão no acorde de C7M(#4) em um fade out com uma sequência atípica
[E6 (9) (#4) | A7 (13) | E6 (9) (#4) | A7 (9) (#4) (13) | G#m7 C#m7 CM7 (9) (6) (#4) | CM7
(9) (6) (#4) |  | I7M | V7/bVII | I7M | V7/bVII | IIIm7 VIm7 bVIM7 | bVVIM7].
Recursos como os apontados acima são comuns nas canções de Toninho Horta o
surgimento e/ou movimento de uma nota dentro do acorde sugere uma mudança harmônica e
sonora significativa dentro das composições, bem como o deslocamento para acordes não-
diatônicos e sem cadências prévias que indiquem essas resoluções que estão fora da
tonalidade.

Introdução com resolução no acorde de E7M Mudança de tonalidade através do acorde de I grau, com a
– cadência V7 – I7M [dominante – tônica]. inserção da 4aum no acorde, transformando-se no IV grau da
tonalidade de Si Maior.

Figura 11 – Introdução e início da exposição do tema (canto) da canção BONS AMIGOS.

Considerações Finais
Ao analisar as canções aqui presentes, de Tom Jobim e Toninho Horta, através de
registros discos e de estudos bibliográficos fica evidente alguns fatores em comum, como
sequências melódicas que se transformam com o surgimento de acordes diatônicos e não-
diatônicos, as tensões dos acordes que respondem as estímulos melódicos e vice e versa,
cadências com baixo cromático-descendente, contraste entre melodia ascendente e baixo
descendente. Tudo isso está atrelado à influência evidente de Tom Jobim sobre Toninho Horta.
Lembrando que este estudo não propôs uma visita à fase “mateiro” de Tom Jobim, presente
em seus álbuns dos anos 1970, MATITA PERÊ, de 1973 e URUBU, de 1975, onde o
compositor utiliza formas mais extensas. MATITA PERÊ (Tom Jobim e Paulo César Pinheiro) é
a canção que melhor exemplifica essa fase, com sua passagem por onze tonalidades e que
mantém o mesmo contorno melódico, mas com alterações mínimas em cada passagem tonal9.

9
Ver Cacá Machado, “Mateiro”, in: Folha Explica – Tom Jobim (São Paulo: Publifolha, 2008); p. 56-61.
Algumas particularidades no tratamento harmônico de Toninho Horta devem ser
listadas, que são:
- movimentação entre as notas medianas e agudas dos acordes, como nos exemplos de
PEDRA DA LUA e BEIJO PARTIDO.
- utilização do modalismo como no caso dos compassos 2, 3 e 4 de PEDRA DA LUA,
onde a sequência passa pelos modos de lá mixolídio, lá eólio e lá mixolídio novamente
(recurso muito comum nas canções dos compositores mineiros, principalmente de Milton
Nascimento).
- utilização de acordes com baixos descendentes contrastando com melodias muitas
vezes ascendentes, assim como Tom Jobim, mas no caso de Toninho Horta o instrumentista
opta por manter os mesmos shapes de acordes, priorizando novamente a movimentação das
vozes dos acordes, procedimentos que são violonísticos.
- a técnica violonística Toninho Horta, uma espécie de busca para soar como um
pianista, onde seus acordes soam com quatro (o que é mais comum para os violonistas), cinco
e seis vozes.
- a movimentação da mão esquerda sobre o braço do violão e/ou guitarra em busca de
diferentes arpejos no mesmo ou em diferentes acordes.
- a indefinição tonal das canções, onde em muitas vezes observamos uma ambiguidade
tonal, como nas composições BEIJO PARTIDO e BONS AMIGOS.
- condução de vozes que resultam em harmonias incomuns10, como no exemplo de
BONS AMIGOS (fade out), onde as cadências consideradas óbvias são descartadas.
Há sem dúvida alguma, nas canções de Toninho Horta, elementos que estão
diretamente ligados à herança harmônica da Bossa Nova. Mas devemos considerar, somado a
isso, o viés de instrumentista de Toninho Horta que bebe de fontes diversas como jazz, a
música erudita, a música de seus parceiros de Clube da Esquina e também à sua forma
particular de tocar violão e guitarra. E não é a toa que Ivan Vilela em seu texto “O Movimento
– uma nova perspectiva musical” (escrito para o site www.museuclubedaesquina.org.br/o-
movimento) ressalta a importância da harmonia de Toninho Horta para músicos consagrados
mundialmente como Pat Metheny e Wayne Shorter, e também a declaração do cantor e

10
Ver NICODEMO, Thais Lima. Terra dos pássaros: uma abordagem sobre as composições de Toninho Horta.
2009. 222p. (Dissertação de Mestrado - Curso de Mestrado em Música do Instituto de Artes da UNICAMP).
Instituto de Artes, UNICAMP. Campinas. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000470578
p. 133.
A autora descreve a movimentação de vozes dos acordes de cinco notas em canções de Toninho Horta.
compositor João Bosco (1998, p. 36), que em entrevista à revista Guitar Player Brasil disse:
“talvez, o Toninho, seja o Jobim da garotada, dos guitarristas de hoje. Ele sabe tudo sobre
sofisticação, sensibilidade e delicadeza! Com aquela mão grande, ele é impossível”.
De fato os adjetivos listados por João Bosco vão ao encontro das canções e das
harmonias de Toninho Horta e sua obra é merecedora de atenção e visita, pois nelas
observamos a herança e também a evolução da proposta surgida com a Bossa Nova.

Referências Bibliográficas

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Horizonte: Editora Gomes, 2013.
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CHEDIAK, Almir. Harmonia & Improvisação, Vol. 2. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumiar Editora,
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CHEDIAK, Almir. Songbook – Bossa Nova, Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1990.
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Bibliografia Cosultada

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WISNIK, José Miguel. Global e Mundial. In: WISNIK, José Miguel. Sem Receita. São Paulo:
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Discografia
HORTA, Toninho & Orquestra Fantasma. Terra dos Pássaros. Brasil: Dubas Música, 1995
(CD).
HORTA, Toninho. Toninho Horta. Brasil: EMI, 2002 (CD).
HORTA, Toninho. Diamond Land. USA: Verve/Polygram Records, 1988. (LP).
JOBIM, Tom. Elis & Tom. Brasil: Trama, 2004 (CD).
JOBIM, Tom. Antonio Carlos Jobim – Coleção Folha 50 Anos de Bossa Nova. Brasil: Folha
de São Paulo, 2008 (CD).
NASCIMENTO, Milton. Minas. Brasil: EMI, 1995 (CD).

Sites
http://www2.uol.com.br/tomjobim
http://www.miltonnascimento.com.br/site/
http://www.toninhohorta.com.br/
http://www.museuclubedaesquina.org.br/
Anexos

Anexo 1 – Letra de Inútil Paisagem (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira)


Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar,
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem
Pode ser
Que não venhas mais
Que não venhas nunca mais
De que servem as flores que nascem
Pelo caminho
Se o meu caminho
Sozinho é nada
É nada
É nada

Anexo 2 – Letra de Insensatez (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)

A insensatez que você fez


Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai meu coração ouve a razão


Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração pede perdão
Perdão apaixonado
Vai porque quem não
Pede perdão
Não é nunca perdoado

Anexo 3 – Letra de Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça)

Se você disser que eu desafino amor


Saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical
Eu, mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é bossa nova
Que isto é muito natural
O que você não sabe, nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolleiflex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Só não poderá falar assim do meu amor


Este é o maior que você pode encontrar, viu
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
Que no peito dos desafinados
Também bate um coração

Anexo 4 – Letra de Beijo Partido (Toninho Horta)

Sabe, eu não faço fé nessa minha loucura


E digo
Eu não gosto de quem me arruína em pedaços
E Deus é quem sabe de ti
E eu não mereço um beijo partido
Hoje não passa de um dia perdido no tempo
E fico longe de tudo o que sei
Não se fala mais nisso, eu sei
Eu serei pra você o que não me importa saber
Hoje não passa de um vaso quebrado no peito
E grito
Olha o beijo partido
Onde estará a rainha que a lucidez escondeu?

Anexo 5 – Letra de Pedra da Lua (Toninho Horta e Cacaso)

Dia mania
Tarde covarde
Noite açoite
Minha mãe calma e serena
Com seu sorriso inseguro
Toda vestida de branco,
Hoje parece mentira
Hoje parece verdade
Menino levante cedo
Menino não chegue tarde
Dia folia
Tarde covarde
Minha mãe no seu piano
Morrendo dentro da tarde
Com seu sorriso mais puro
Toda vestida de branco
Eu só quero pensar
Que um dia você possa ser
Minha pedra da lua
Minha paixão
Meu coração
Velando os meus passos
Velando os meus tropeços
Menino não morra cedo
Menino não chegue tarde

Anexo 6 – Letra de Bons Amigos (Toninho Horta e Ronaldo Bastos)

Diz que vai sumir


Finge não me ouvir
Briga por brigar
O amor passou
O melhor passou
Fala por falar
Diz que vai morrer
Louca pra me ver chorar
Faz que se enganou
Perto de me perdoar
Mas se o tempo muda
Ela se faz mulher
Vem a saudade do que a gente é
Vem a vontade de estar junto e ser
O caso mais antigo
Mais que bons amigos somos
Muito mais que bons amigos
Anexo 7 – Cópia de manuscrito de Toninho Horta – partitura de Pedra da Lua
Anexo 8 - Quadro com as funções harmônicas e graus representando os acordes
diatônicos

FUNÇÃO HARMÔNICA
ESCALA
Tônica Subdom. Tônica Subdom. Domin. Tônica Domin.
Maior
I7M IIm7 IIIm7 IV7M V7 VIm7 VIIm7(b5)

Menor
Harmônica Im(7M) IIm7(b5) bIIIM7M(#5) IVm7 V7 bVI7M VIIº

Menor
Natural Im7 IIm7(b5) bIII7M IVm7 *Vm7 bVI7M bVII7

Menor
Melódica Im(7M) IIm7 bIIIM7M(#5) IV7 V7 VIm7(b5) VIIm7(b5)

Fonte: CHEDIAK, Almir. Harmonia & Improvisação, Vol. 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1986.

*Dominante Menor

**Subdominante com sétima (IV grau blues).

Anexo 9 - Símbolos dos Intervalos

SÍMBOLOS INTERVALOS / INTERVALOS ENARMÔNICOS


I Tônica ou Fundamental
2m 2ª menor / 9ª menor
2M 2ª maior / 9ª maior
3m / 9aum ou #9 3ª menor / 9ª aumentada
3M 3ª maior
4J 4ª justa
5dim ou b5 / 4aum ou #4 5ª diminuta / 4ª aumentada
5J 5ª justa
6m / b13 / 5aum ou #5 6ª menor / 13ª menor / 5ª aumentada
6M / 13 / 7ª dim 6 maior / 13ª maior / 7ª diminuta
7m 7ª menor
7M 7ª maior

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