De Volta À Vida - Giselda Laporta Nicolelis
De Volta À Vida - Giselda Laporta Nicolelis
De Volta À Vida - Giselda Laporta Nicolelis
01. Ansiedade
02. Desabafo
03. Reflexões
04. Diálogo
05. Dificuldades
06. Descontrole
07. Novidades
08. Expectativa
09. Controvérsias
10. Tentativas
11. Decisões
12. Coragem
13. A Luz
14. Conflitos
15. Esperança
01. ANSIEDADE
Como nascem os rios? De uma pequena fonte que, por sua vez,
nasce na montanha – essa pequena fonte se transforma num filete de
água, depois num riacho, até que se forma o rio... assim também dos
olhos de Alandra: primeiro escorre uma lágrima solitária, a primeira,
depois outra e mais outra... até que são muitas que vão surgindo, em
cascata, e a menina agora chora, debruçada sobre a mesa da sala
dos professores, os frágeis ombros sacudidos por soluços...
Salete suspira, aliviada: “Até que enfim!”
-Você acha que estamos agindo certo? –sussurra Matilde,
apavorada.
Mas Salete é experiente, sabe que está a um passo de
conquistar o coração da garota. Ela sorri e diz baixinho:
-Deixa ela chorar, é só o primeiro passo...
E Alandra chora... por um bom tempo. E aquele choro vai lhe
dando um alívio tão grande, como se tirasse dos ombros um peso
enorme, um fardo insuportável. Agora é apenas uma garota de
catorze anos, muito sensível, que precisa de apoio.
Finalmente, rosto banhado em lágrimas, ela diz:
-Por favor, me ajudem, estou desesperada.
Como dois anjos bons, Salete e Matilde se aproximam e a
abraçam. Ficam um bom tempo ali, as três, unidas.
Minutos depois, refeita por um copo d’água, enxutas as
lágrimas, o rosto ainda vermelho e olhos inchados, Alandra se decide:
-Vocês têm um tempo?
-Todos o tempo do mundo, querida –responde Salete.
-Então, por favor, me ouçam.
02. DESABAFO
Chegam em casa. Otávio não está. Ninguém sabe por onde ele
anda. Às vezes passa na casa dos pais ou cisma de procurar
emprego, o que sempre dá em nada.
Clarissa, apressada, porque tem de voltar ao trabalho, pergunta
à faxineira se alguém ligou.
-Não, senhora –é a resposta.
-Me faz um favor, Alandra? –pede a mãe. –Hoje é dia de
reunião e, se eu me atrasar, você dá o jantar pro Cássio, ta bem?
-Tá legal, mãe –garante a menina. –Vá sossegada.
Clarissa come alguma coisa, deixa o dinheiro da faxineira em
cima da geladeira e sai, já atrasada.
“Se não fosse a mãe, nem sei o que seria de todos nós”, pensa
Alandra.
Antes, quando o pai ainda trabalhava e ganhava um salário
razoável, moravam numa casa grande, até com piscina. Era alugada,
mas cheia de conforto, pois fora construída para o dono morar.
Tinham empregada fixa, mensalista, dois carros... Passavam
férias na praia e a vida deles era muito boa. Depois Otávio começou a
beber e perdeu o emprego. Conseguiu outro, e a mesma coisa. Até
que ficou desempregado de uma vez.
A vida deles então se transformou. Foram obrigados a mudar
para uma casa menor, de aluguel mais barato, mas que, ainda assim,
pesava muito no orçamento. Despediram até a empregada. Agora só
havia a faxineira, que vinha uma vez por semana para o serviço mais
pesado. Clarissa não conseguia dar conta de tudo, trabalhando o dia
todo e com todas as responsabilidades da família. O carro do Otávio
ele vendera e nem dera satisfação do dinheiro. Com certeza torrara
em bebida ou pagara dívidas. Ele não gosta de dar satisfação do que
faz e posa sempre de vítima. Os outros, o mundo são os culpados de
tudo, não ele.
Clarissa se desdobra: leva e traz os filhos da escola, pois o
dinheiro não dá para pagar ônibus escolar. Os garotos só continuam
estudando em colégio particular porque Clarissa conseguira bolsa
para eles. Caso contrário, teriam de estudar em escola pública
mesmo. Mas na casa é tudo limitado. Qualquer gasto tem de ser
medido e a fartura de antigamente ficou só na saudade.
Quantas vezes Alandra tem vontade de comer uma ou outra
guloseima, mas nem ousa pedir, para não deixar a mãe mais
aganiada. Contenta-se com o que ela pode fazer, mas, no fundo, se
revolta com aquilo. De que adianta um pai imprestável, com o qual
não se pode contar para nada?
Estremece ao barulho da chave na fechadura. É Otávio
chegando. Ele passa por ela meio aéreo.
-Oi –diz, e sobe para o quarto. Ele nem nota o Cássio. Deve
estar naqueles dias de fossa, de não querer papo com ninguém, ou
então com dor de estômago, gastrite ou úlcera, que não o deixa
beber...
Alandra dá de ombros. A mãe prometera resolver de uma vez
por todas aquilo. Precisa dar um tempo. Distraída, liga o toca-CD
para curtir um cantor de que gosta muito. Também, há quanto tempo
não sobra dinheiro para comprar um CD. Cada mês um novo
problema, agora é o Cássio que precisa de dentista.
De repente... o barulho forte lá em cima. Como se alguma coisa
tivesse quebrado... sobe correndo as escadas, gritando:
-Cássio, Cássio, você está bem?
Mas o Cássio aparece e, por sua vez, grita todo assustado:
-Foi daí, do quarto da mãe, que veio o barulho...
Tentam abrir a porta, mas está emperrada. Alguma coisa está
impedindo. Alandra, aflita, força mais uma vez e ela abre alguns
centímetros. Pelo vão, enxerga o pai caído no chão; a cabeça dele é
que segura a porta.
-O que a gente faz? –choraminga o Cássio, apavorado. –Será
que ele morreu aí dentro?
Um gemido prova que não. Alandra tem de decidir rápido o que
fazer. Grita pela faxineira:
-Luísa, corra aqui, depressa!
Ela vem num segundo. Também ouvira o barulho. Ainda bem
que não tinha acontecido nada com as crianças. Alandra pede:
-Me ajude aqui, que o Cássio tem pouca força. É meu pai que
está caído do outro lado.
Com a ajuda de Luísa, Alandra empurra a porta devagar, para
não machucar a cabeça de Otávio. O Cássio então sugere:
-Quer que eu ligue pra mamãe, pra ela vir? Estou com medo...
-Que ligar o quê! –replica Alandra. –Tirar ela no meio de uma
reunião? A gente dá conta, ta quase abrindo. Vá lá buscar a caixa de
curativos, ande moleque!
O Cássio sai correndo e Alandra e Luísa, usando de todas as
suas forças, conseguem finalmente abrir um vão na porta, por onde
pulam por cima do corpo de Otávio, estendido no chão, sangue numa
das têmporas. Uma escadinha estava armada ao lado do armário.
Provavelmente fora subir e perdera o equilíbrio. Na queda batera a
cabeça.
Com muito custo conseguem levantar Otávio e colocá-lo na
cama. Com a queda, perdera os sentidos. O Cássio já está de volta, a
caixa nas mãos. Alandra lembra:
-Corra lá embaixo, Luísa, traga amoníaco.
Enquanto a moça não volta, fica contemplando o rosto do pai,
ali, desmaiado à sua frente. Ainda é jovem, os cabelos empastados
de suor, e aquele hálito horrível de bebida. A pele está opaca, sem
brilho, e alguns fios de cabelo branco já se destacam. Um homem tão
bonito! Podia ser diferente, meu Deus! Por que se matava aos
poucos, daquele jeito. Será que, no fundo, bem no fundo, ele quer
morrer? Bebendo daquele jeito, se entregando à bebida, não seria
uma forma de suicídio lento? E o que fora procurar lá em cima no
armário? Uma idéia sinistra passa pela sua cabeça, lhe dá arrepios;
bobagem, pensa, estou ficando louca.
Alandra pega o vidro e molha um pouco de algodão com
amoníaco. É só encostar nas narinas do pai, que ele acorda na hora.
Luísa ainda comenta:
-Credo, isso levanta até defundo; eu hein?
Otávio olha ao seu redor, os olhos ainda enevoados, a cabeça
girando... pergunta em voz pastosa:
-Que aconteceu, onde estou?
-Você caiu da escada –diz Alandra. –Ficou desmaiado por uns
tempos. Tá sangrando aí do lado da cabeça, bateu em algum lugar,
na queda... acho que precisa ir a um pronto-socorro, dar uns
pontos...
Otávio tenta se levantar, mas não consegue:
-Que pronto-socorro nada, faça um curativo pra mim. Nossa, to
enjoado!
-É da batida, foi forte. É melhor você ficar deitado; se não
melhorar, chamo a vó Mariana pra gente levar você ao pronto-
socorro...
-Chame a sua mãe! –diz Otávio. –Ela é quem deve me acudir,
ta doendo...
-A Clarissa está numa reunião muito importante e, ainda que
pudesse sair, ia demorar por causa do trânsito. A vó Mariana mora
perto, vem mais depressa.
-Não precisa, não –diz, ríspido, Otávio. –Faça um curativo, eu
me agüento. Quando a sua mãe chegar, a gente resolve.
-O que você estava pegando lá no armário? –pergunta Alandra,
fazendo o curativo.
Otávio olha ressabiado para a filha:
-Não é da sua conta, Alandra. Será que eu preciso dar
satisfação de tudo o que eu faço até pra você?
-Até pra mim, por quê? –replica Alandra, ofendida. –Sou sua
filha, sabe?
-Não me diga! –Otávio responde, agressivo: -Você é igualzinha
à sua mãe. Sempre se metendo na minha vida. Se eu não tivesse
caído da escada, você estaria lá embaixo, ouvindo sua música, e nem
se importaria comigo.
-Claro, você passa e só diz: “oi”. Parece um bicho do mato,
chega quase sempre de teto baixo. Garanto que bebeu a manhã
inteira... não sei como a Clarissa agüenta dormir do seu lado, com
esse cheiro de bebida, me dá até nojo...
Otávio pula da cama, dedo em riste:
-Saia daqui! Chega de agressão. Você é ainda pior que sua
mãe. Ela pelo menos é minha mulher, tem esse direito. Você nem
saiu das fraldas e pensa que é gente! Saia daqui antes que...
-Antes do quê? –enfrenta Alandra. –Você vai me bater? Só falta
isso mesmo. Eu nem devia ter acudido você, devia ter deixado aí
largado no chão, pra aprender a se virar sozinho. Pra você não existe
família, nem mulher, nem filhos, só essa maldita bebida. Por que
você não vai embora de uma vez e deixa a gente em paz?
Talvez fosse o olhar de Alandra, talvez sua voz, ou o espanto
mudo no rosto de Cássio, ou a Luísa encolhida num canto do quarto.
Talvez fosse por tudo isso, ou então por alguma coisa mais, que não
fora dita, nem ouvida, mas que pairava latente à sua volta. Otávio cai
de novo na cama, o estômago ardendo em brasa, a cabeça latejando.
Mas, pior que isso, é o que sente no seu íntimo: é apenas um
estranho ali, que a filha põe porta afora. Sua presença não significa
mais nada, apenas aborrecimento, um peso morto. É isso o que ele
se tornara: um peso morto!
Encolhe-se na cama feito um feto. As mãos entre as pernas, as
lágrimas rolando pelo rosto. O que ele fizera de sua vida? Que
estranha sina a dele. De repente, sua alma parece derreter. Ele
deseja morrer, pena que não alcançara o que pretendia, lá em cima
do armário. Teve uma tontura besta, caiu da escada: a esta hora,
poderia estar livre para sempre...
Cássio se aproxima, estende a pequena mão, afaga-lhe a
cabeça:
-Não chore, pai, não chore, você vai ficar bom. Não liga pro que
a Alandra disse, a gente gosta de você...
Mas Otávio não ouve. Está em outra dimensão. Perdido na noite
escura, numa trilha sem volta... Quando haverá paz? Quando seus
pensamentos deixarão de atormentá-lo? Aquelas vozes que surgem
da escuridão e o perseguem como a um condenado.
Está totalmente só, no seu inferno particular. Se ao menos
houvesse uma luz, um caminho, um sinal! Se ao menos tivesse forças
e conseguisse pedir ajuda.
Gostaria de abrir um buraco na parede e lá se esconder, como
um micróbio, ínfimo, inútil. E de lá nunca mais sair. Até que o
esquecessem e ele virasse pó.
06. DESCONTROLE
Alandra entra na escola, dessa vez na hora certa. Diz “oi”, para
Taís, a sua melhor amiga, a única que não implica com ela. São
colegas desde que ela viera morar naquele bairro e entrara no
colégio.
Taís é magrinha e se acha feia. Tem um nariz comprido demais,
que ela pretende operar na primeira oportunidade. Mas precisa
aguardar a idade certa. O médico explicou que é preciso completar o
crescimento do rosto, para não ficar desproporcional. A garota não vê
a hora de isso acontecer; cansou de ser alvo de chacota por parte dos
colegas, que a chamam de “Pinóquio”.
O sofrimento de cada uma as aproximou. Uniram-se contra os
demais. Alandra é supersensível e a colega a compreende. De vez em
quando vai visitar a amiga, mas jamais levaria Taís na sua casa... A
amiga sabe os motivos, entende tal comportamento.
-Tenho novidades –diz Taís, puxando Alandra para um canto no
pátio.
-Boas ou más? –pergunta Alandra, desconfiada.
-Melhor impossível! –entrega a amiga. –Olhe o que me pediram
pra entregar pra você. –Ato contínuo, mostra um papel.
A garota pega o papel, curiosa. Está dobrado em quatro. Abre e
lê: “Quando é que a gente pode ficar, numa boa? Me amarro em
você. Dê sinal verde, gatinha! Edu”.
Um rubor de alegria invade todo o rosto de Alandra:
-Quem é esse Edu, você conhece? –pergunta baixinho, olhando
para os lados.
-Se eu conheço? –A Taís chega até a virar os olhos. –É um
gatíssimo, do segundo grau. Aquele moreno de olhos castanhos. Toda
garota aqui morre por ele. Foi ele quem mandou o recado? Mas que
felizarda! Deixa eu ler...
-Não senhora! –Alandra agarra o papel como se fosse um
tesouro. –É particular, coisa minha. Me conte mais...
-Ora, o gato tem um metro e oitenta, toca guitarra, diz que
está formando uma bando de rock, é ótimo aluno e tem uma voz...
precisa mais?
Alandra está cada vez mais interessada:
-E ele tem alguma namorada, pra valer, você sabe...
-Que eu saiba não – diz Taís toda agitada. –Já ficou algumas
vezes, mas, namorada mesmo, pra valer, nunca vi, não. Só se for
fora do colégio. Um gatão daqueles...
-Obrigada, hein, Taís –diz Alandra, dirigindo-se para a sala de
leitura. Quer curtir sozinha aquele bilhete. Ler, reler, pensar um
pouco sobre o assunto.
Nem tem tempo. Uma voz fala no seu ouvido:
-Recebeu meu bilhete?
Vira-se e dá de cara com o Edu: só pode ser ele! A Taís não
mentiu. Ele é gatíssimo. Lindo de morrer. Alto, mais pra magro,
cabelos escuros encaracolados, bem compridos, quase nos ombros. A
pele é clara, mas os olhos são castanhos, grandes e profundos: um
torpedo!
-Recebi –é só o que consegue dizer.
-Faz tempo que to de olho em você –continua o Edu. –Você é
dez, gatinha. Tem alguma coisa especial. A gente podia ficar por uns
tempos, ver no que dá. Eu, por mim, topo tudo.
Alandra engole em seco, nem sabe o que responder. Mas fora
amor à primeira vista. Aqueles olhos mergulham, entram nela, fazem
cócegas.
-O.k. –diz. –A gente estuda no mesmo colégio. Pode até ser
legal. Mas a gente precisa conversar com mais calma...
-No intervalo, tudo bem? –convida o Edu. –Espero você perto
do barzinho, logo que der o sinal.
Levanta uma das mãos e alisa suavemente os cabelos de
Alandra. Depois sorri e, dando uma piscada, some no corredor.
Naquele dia, Matilde, a professora de história, podia dar a
melhor aula de sua vida, que Alandra certamente não ouviria uma
palavra. Na sua cabeça, em frente a seus olhos, surge a figura de
Edu: os cabelos compridos, escuros e encaracolados, seus olhos
castanhos. O afago no seu cabelo. A piscadinha final. Será possível
que aquele gatão esteja mesmo interessado nela? Vão conversar no
intervalo, dar a maior bandeira. Só quer ver a cara dos colegas.
Quando dá o sinal, sai como um rojão. Pára, ofegante, no meio
do corredor: “Calma, menina!” Toma fôlego, arruma os cabelos,
aquela cascata cor de cobre que lhe cai pelos ombros. Feia nunca
fora. Só faltava a confirmação. E ele ainda dissera que ela é muito
especial: “Ai, céus!”.
O Edu já a espera, ao lado do barzinho, como combinado.
Comprou dois lanches e dois refrigerantes. Sorri, quando ela se
aproxima. Nossa, que boca, que dentes!
-Espero que você goste –diz ele, entregando o sanduíche e a
latinha de refrigerante. –Não comprei diet porque você não precisa
disso, com certeza –fala isso e dá uma olhada rápida, uma geral.
-Obrigada. Vamos sentar ali naquele banco?
-Tá legal.
Por que o intervalo não dura uma eternidade? Por que aquela
maldita sirene teria de tocar? São minutos deliciosos, um abrir de
corações. Edu diz que sua paixão é a música: seu sonho é formar
uma banda de rock, e ele já está tentando. Que estuda guitarra faz
tempo. E quer saber tudo sobre ela: o que faz no tempo livre, se eles
podem se encontrar fora do colégio, ir ao cinema, em algum shopping
ou então curtir uma balada...
Alandra ri, embevecida. Com o canto dos olhos vê as colegas de
classe, cochichando. Até pode imaginar o que dizem: “Imagine só,
um gato como o Edu, no maior papo com a Alandra, que parece um
bicho do mato, ET perdido, é até desperdício...”
Mas o Edu insiste:
-Você está precisando de aulas particulares, sou bom aluno e
posso ir na sua casa, pra dar uma força...
-Na minha casa, não –Alandra reage rápido. –Eu peço pra
Clarissa, a minha mãe, a gente pode até se encontrar fora do
colégio... ela é superlegal, garanto que deixa.
Ficou triste, gatinha? –pergunta Edu, vendo uma sombra passar
pelos olhos da garota.
-Não é nada, não, tô legal. Qualquer dia conto uma coisa pra
você.
-Conta agora.
-Agora não –diz Alandra. –É papo-cabeça; precisa tempo. Mas
gostei de conhecer você. Nossa! Parece que já nos conhecemos a
vida inteira. Adoraria ouvir você tocar guitarra...
-Por isso não –o garoto abre seu lindo sorriso. –Trago a guitarra
amanhã e a gente vai até a sala de música. Eu sou bom, sabe?
-Imagino –Alandra sorri e pensa: “Mas que convencido!”
Edu continua: -Sabe que eu nunca tinha reparado em você,
aqui no colégio? Outro dia, nos cruzamos por acaso, você estava
meio triste, saindo de lá da sala da Salete. Foi aí que eu me toquei.
Você é a gatinha mais linda desta escola!
-Mas eu não quero ser apenas bonita –reclama Alandra. –
Também sou artista, sabe? Faço poemas...
-Uau! Então a gente pode fazer a maior dupla. Eu componho
música e vivo atrás de letristas. Quem sabe a gente se acerta nisso
também, hein?
Alandra concorda:
-Seria superlegal.
-E quando você vai me mostrar seus poemas, hein? –pede Edu,
dando a última mordida no seu sanduíche. Bem a tempo, porque a
sirene toca.
-Qualquer dia –responde Alandra. –Tenho muito ciúme dos
meus poemas. Só escrevo quando estou muito triste.
-E você costuma ficar sempre triste, gatinha? –Edu olha bem no
fundo dos olhos de Alandra.
-Às vezes. Mas agora tenho de ir pra classe. Hoje é dia de
prova. A gente se fala depois, ta legal?
-Posso ligar? –os olhos de Edu pedem, carinhosos.
Alandra dá o número do telefone e ele escreve na palma da
mão.
-Ligo hoje mesmo!
Quando entra na classe, o coração de Alandra canta em festa.
Que dia maravilhoso. Agora é que ela não vai se atrasar nunca mais
para as aulas. Pudera: com um gatinho daqueles à sua espera.
Alandra termina a prova, mas ainda tem duas aulas. Dureza! O
tempo não passa. Está louca para chegar em casa, ficar esperando,
grudada ao telefone, até o Edu ligar. Não vai SAR dali nem que a
vaca tussa. Tomara que o pai não esteja em casa. Ele se pendura no
telefone, falando sei lá com quem.
Falando no pai, algo mudou: desde aquela noite do quebra-
quebra das garrafas, Otávio parece diferente. Não bebe como
antigamente. Pára mais em casa, se alimenta melhor, justo ele que
pulava refeições. A mãe até comentara que ele devia estar anêmico.
Toma banho todos os dias, se veste do jeito de antes, para esperar a
mãe voltar do trabalho. Está se esforçando ao máximo. A Clarissa
dera uma dura nele pra valer.
Quanto tempo isso vai durar? Alandra não sabe responder. Pelo
menos é um consolo passar perto do pai e não sentir aquele cheiro
horrível de bebida.
A mãe também anda ressabiada e não faz comentários. Talvez
se esforce por acreditar que o Otávio mudou de vida – mas cadê
coragem? É preciso muito mais, para restaurar a confiança perdida.
Há quase uma semana que o pai não bebe. Nem sinal de
garrafa pela casa. Ele até saiu uma ou duas vezes, dizendo que ia
procurar emprego.
Será que é um milagre? Será que os milagres existem? Alandra
espanta esses pensamentos. Não hoje! Hoje ela só quer se embalar
nos seus olhos, ainda ouvindo a voz macia do Edu, dizendo aquelas
coisas bonitas, fazendo dela a garota mais feliz da escola.
Na classe, sente os olhares das colegas e os comentários
ferinos, à sua volta: “O Edu pirou! Tanta garota legal e ele foi encarar
essa ostra? Sempre tão fechada, parece que vive na...”
Ela não liga. Não hoje. Que se danem todas elas! Do outro lado
da sala, a Taís, amiga fiel, sorri, acena com a mão, faz o sinal de
vitória. Alandra está vingando as duas; o dia da Taís também vai
chegar quando ela fizer a bendita operação plástica, voltar de nariz
novo, como estrela de cinema.
Alandra está feliz. Perto dali, está o Edu, o garoto mais bonito
do colégio, que passou o intervalo inteiro falando com ela, olhando
dentro dos seus olhos. O céu deve ser assim...
08. EXPECTATIVA
Alandra
Um ano depois...
Otávio lembra-se com emoção da primeira visita aos Alcoólicos
Anônimos, naquela manhã ensolarada, quando saíra de fininho de
casa e deixara Clarissa ainda dormindo. A conversa com Gílson, seu
primeiro contato na irmandade.
A volta para casa... mil pensamentos na sua cabeça. Encontrara
Clarissa ansiosa: “Por que não me esperou? Você foi mesmo? O que
achou?”
Contara tudo a ela; de como fora bem recebido. Sentira-se
quase em casa. E, conhecedor de como funcionava a irmandade,
ficara de pensar...
Aquela a parte mais difícil: tomar uma decisão. Nascer de novo,
não do útero materno, mas de si mesmo: fruta apodrecendo na
fruteira, na qual ainda houvesse um pedaço sadio, onde encontrar
uma seiva nova.
Passara o resto do dia cismarento. Justo ele que não ousava
mais sonhar! De repente, no fundo do túnel, uma luz... era agarrar
ou largar, o que afinal esperava de sua passagem pela Terra, um ser
tão pequeno em relação ao universo, a casa de Deus?
Existiria mesmo esse Deus benevolente, verdadeiro, Pai ou Mãe
– por que não? Deus não tem sexo -, em cujos braços pudesse
entregar sua alma cansada, carente de afetos e cuidados, como
criança perdida na noite escura? Seria tão bom se fosse assim.
Chegar até esse regaço materno, e pedir, na voz mais sincera, tal
qual fonte límpida da montanha: “Me ampare, me socorra, me faça
mudar de vida, me dê forças!”.
Seria bom renascer. Não apenas voltando a ser o homem de
antes: carente, que não suportava nenhuma decepção, vaidoso,
prepotente, egoísta.
Renascer como um homem novo: humilde, tranquilo, sensível
aos seus problemas e aos dos outros; um homem que pudesse se
olhar no espelho toda a manhã e dizer: “Bom dia, eu respeito você,
porque tem dignidade”.
Agora ele tinha certeza: não fora apenas pela mulher ou pelos
filhos que se atrevera a cruzar aquela porta aparentemente
assustadora dos Alcoólicos Anônimos. Porque atrás dela estava a sua
verdadeira história: “Eu sou um alcoólico, sofro de uma doença
incurável, que pode apenas estacionar, mas uma vez alcoólico,
sempre alcoólico, basta tomar o primeiro gole e não me controlo
mais. Mas se eu conseguir não beber por um dia... vinte e quatro
horas é o tempo da minha libertação; hoje, aqui, agora! O passado
não existe mais, o futuro jamais chega, minha luta é com este tempo
presente, a ele pertence todo o meu esforço em direção à
integridade”.
Fora por ele mesmo que entrara ali, que tivera a conversa com
Gílson. O resto, desculpa. Não suportava mais viver daquela forma.
Sem respeito próprio, um homem não é nada, é uma coisa.
Precisava, e quanto, readquirir sua auto-estima, tão avariada nos
anos todos de alcoolismo, de descida da montanha, para um buraco
cada vez mais fundo...
Não seria fácil, sabia... Mas também não era impossível. O que
o impedia de tentar? Pior do que estava, não poderia ficar. Ele já
perdera o amor-próprio, o amor da esposa e dos filhos, a amizade
dos amigos, o emprego: tudo! Faltava apenas perder a vida e, se não
mudasse de rumo, mais dia menos dia também a perderia – mais um
alcoólatra num leito de hospital, num velório, num túmulo e fim.
Fora assim que reunira forças para fazer seu inventário moral,
como Gílson explicara. Fechado no quarto, numa tarde chuvosa, ele
escreveu tantas páginas quantas o permitiram as lágrimas quentes
que rolaram pelo seu rosto.
Quando acabou, estava exausto, mas feliz. Sua vida estava
toda ali, nas páginas manchadas de lágrimas. Mas ainda dava para
ler. Mas a quem as entregaria? Que pessoa seria tão ponderada que
pudesse avaliar o inventário de uma vida?
Foi então que, num insight, lembrou-se de um colega de turma,
quando tivera de frequentar a escola pública, na época em que
Leonardo empobrecera. Revoltado, quase furioso, com o golpe que
lhe tirara o status do qual tanto se orgulhava, Otávio sentou-se pela
primeira vez ao lado do garoto sardento e sorriso aberto: José.
Foram colegas durante anos; quando terminaram o curso, ele
seguiu para a faculdade de economia, enquanto José entrava no
seminário. Desde muito cedo queria ser padre. Ele zombara tantas
vezes de José: “Seu maluco! Na flor da idade, se meter num
seminário! Dou um mês pra você sair de lá correndo...”
Através dos meses, anos, tivera notícias de José. O amigo
telefonava, escrevia, convidou-o para sua ordenação como sacerdote.
Naquela época já bebia, ainda que isso passasse despercebido entre
a família ou no meio social que frequentava. Mas nada escapava a
José, que, dono de uma percepção fantástica, uma vez lhe disse:
-Qualquer problema, amigo, me procure, está bem? Nada
mudou, você sabe que sempre adorei suas histórias malucas...
Por histórias malucas, José se referia aos espetaculares
desabafos de Otávio, sua mania de grandeza, de algum dia ser
milionário, devolver à família tudo que ela perdera; seus
mirabolantes projetos de vingança contra o sócio, que sumira na
poeira e nunca mais dera notícias.
Mas ele, Otávio, abanava a cabeça:
-Sem essa, José, estou legal. Vá curtir teu rebanho de otários,
que gostam de um sermãozinho.
José apenas sorria, não dizendo mais nada. Durante todos
aqueles anos, em que a bebida destruíra praticamente tudo em sua
vida, de amigos só restara José. O único a não lhe dar as costas
(fingindo que não o conhecia na rua), a não fugir quando ele se
aproximava... Em qualquer circunstância, o ombro amigo sobre o
qual podia chorar, a mão estendida sem julgamento moral, apenas
compreensão.
A pessoa certa era José, e foi a ele que entregou seu inventário
de vida. José pediu que ele sentasse, ofereceu um café. Enquanto ele
ficava ali estático, quase com medo... o amigo foi lendo – à medida
que lia, um sorriso se delineava em seus lábios e o cabelo de
moleque parecia mais espetado. Pareciam de novo dois meninos, nos
bancos escolares, a trocar segredos, na inquietação da adolescência.
Quando, finalmente, levantou os olhos, Otávio teve a certeza de
que viera à pessoa certa:
-Estou orgulhoso de você –elogiou José. –Eu sabia que esse dia
chegaria. Você demorou a encontrar Deus, foi difícil sua caminhada.
Mas acho que você, decididamente, agora O encontrou.
-Você acha que ainda tenho chance? –suplicou Otávio,
comovido, feito um menino que, no fundo, ele ainda era.
-Todos nós temos chance, mas precisamos acreditar nisso.
Deus estava em cada curva do caminho, apenas você não O
enxergava. Agora, em companhia Dele, você estará protegido. Ele
será seu escudo.
-Tenho tanto medo! –desabafou Otávio. –Isso me parece maior
do que minhas forças. E se falhar?
-Se você falhar, recomeça do ponto de partida –garantiu José.
–Deus não tem pressa.
Um ano!
Agora, logo de manhã bem cedo, tendo conseguido a bendita
vaga!, Otávio se dirige ao ambulatório, onde passa o dia. Participa de
psicoterapia de grupo e tem informações didáticas sobre sua doença.
O tratamento ainda inclui: ambientoterapia, serviço integrado de
psiquiatria, psicologia, assistência social e terapia ocupacional. O
retorna a casa garante o vínculo familiar.
À noite – no mínimo uma vez por semana -, entra pela porta
dos Alcoólicos Anônimos, como se ali também fosse sua casa. Otávio
sente-se bem entre seus pares, uma irmandade que divide
experiências e se nutre da força de todos, no caminho da esperança
maior: continuar abstêmio.
Há reuniões abertas, nas quais podem participar não-alcoólicos,
amigos e familiares. A única condição é que não quebrem o
anonimato de seus membros. E reuniões fechadas – só para
alcoólicos -, numa das quais falou pela primeira vez, abriu sua alma,
contou suas intimidades, reforçou sua tênue esperança, na
companhia dos irmãos que também torciam por ele...
Eis a palavra certa: irmãos! Nada impede que entre si se
ajudem: na compra de um terno novo, no pagamento de uma
refeição, na solução de alguma dificuldade. A irmandade não se opõe
a isso, desde que seja em nível individual e não seja usado o nome
de “Alcoólicos Anônimos”. Uma corrente de solidariedade permanente
e inquebrantável.
Alguns menos persistentes. Vindo uma, duas, três vezes, de
repente, sumindo. Outros, pertinazes como ele, na busca da
reintegração à sociedade, da face no espelho, da auto-estima, do
autoconhecimento. Uns religiosos, outros ateus... procurando, de um
jeito ou de outro, o poder supremo: a Luz!
Aos poucos... como quando se planta uma semente, a
esperança começa a brotar, aflorando à superfície... “Eu sou um
homem, não um verme. Nasci para ser uma pessoa digna, dotada de
sensibilidade: alguém que possa conviver consigo mesmo e com seus
semelhantes, em paz e harmonia...”
“Meu corpo, não apenas uma massa de músculos e nervos, que
caminha como um cabide ambulante; meu corpo, algo precioso que
contém meu ser interior. A ele devo respeito e devo proteger; planta
rara que me obriga a cuidados diários, estas preciosas vinte e quatro
horas...”
“Hoje não vou beber.” Logo cedo, de frente para o espelho, a
decisão: “Não vou beber! Ontem já passou, amanhã nunca chega.
Poderá haver a tentação de beber um gole amanhã, talvez até beba,
mas até esse amanhã chegar, não me preocuparei com ele. Eu não
vou beber hoje! Esta é a minha fiança, minha garantia. Eu me dedico
ao hoje, como se fosse o dia mais importante da minha vida, o ‘dia
D’, da minha guerra particular contra a doença: o alcoolismo”.
“Não tenho vergonha de ser conhecido como alcoólico; de
encontrar um conhecido que, me vendo agora tão disposto, comente:
‘Não está bebendo mais, Otávio?’ Não me irrito. Apenas respondo:
‘Hoje, garanto que não!’.”
“Pra que me esconder? Por que a vergonha de confessar a
doença? Se eu mesmo me discrimino, como impedir que outros o
façam de forma ainda pior?”
Alguns raros amigos, aos poucos, se reaproximaram, meio
surpresos, a princípio. Depois, confiantes, acabam dando força. Aos
outros, aos que não são capazes de compreender, de que adiantaria
explicar? Por que desperdiçar palavras ao vento? Reconquistando
lentamente a amizade dos filhos – avaliação furtiva de animal
selvagem espreitando, olhares enviesados -, depois, quem sabe, o
dia mágico, Cássio convidando: “Quer jogar bola, pai?”.
Ou Alandra, com seus olhos verdes e profundos, exigindo mais
provas concretas, irrefutáveis; o alvo mais difícil. “Mas chego até
você, filha, me dê esse aval, tenho todo o tempo do mundo pra
reconquistar seu amor, perdido nas trevas de um passado tão
inglório. Devo esperar... mas tenho tanta pressa!”
14. CONFLITOS
Eu era infeliz
Porque me sentia
Como o patinho feio da história de fadas
Que nasceu em casa errada
Agora eu sei
Onde é o meu lugar
Pois não sou uma estranha
No meu verdadeiro lar
Eu quero ser feliz
E acho que já sou
Porque encontrei o amor
E ele também me encontrou
Eu descobri
Que sou um belo cisne
Que pode voar bem alto
E sonhar com as estrelas...
Alandra
Autora e Obra