NOVARINA, Valère - O Ateliê Voador
NOVARINA, Valère - O Ateliê Voador
NOVARINA, Valère - O Ateliê Voador
O ateliê voador
Valère Novarina
Nove personagens:
Senhor Boucot
Senhora Boca
O Doutor
I
Todo o dispositivo cênico fica exposto. Entrada dos atores: os seis empregados e o Doutor
entram e se escondem atrás de um grande lençol estendido. Um tempo, depois o Senhor
Boucot e a Senhora Boca entram, abrem uma cortina sobre o ateliê e se escondem atrás de
um lençol que a Senhora Boca segura com o braço. Durante alguns instantes, todos os
atores e todos os elementos do dispositivo cênico ficam escondidos.
Abertura: Senhora Boca deixa cair a cortina e revela o seu marido: Boucot, braços
estendidos, segura um espelho e se examina com atenção:
Boucot (escandido) – Os resultados, do meu exame d’umbigo, não estão grandes coisas.
(Cantado) Essa fisionomia abatida: tomara que eu não emagreça!
Senhora Boca – Ah, Senhor Boucot, o senhor é i-ni-mi-tável!
Ela joga uma serpentina em cima dele.
Boucot – A senhora está zombando do teatro?... Hoje tenho que me enfeitar, pois vou
contratar pessoal novo. Adeus, bela ave, cuide bem do Mozartzinho!
Cena: Boucot desce da plataforma, vai até o Ateliê e abre a longa cortina que o cobria.
Boucot – Meus ateliês estão desertos... Me diga, Doutor, o senhor não achou nenhuma mão
de obra?
O Doutor aparece e arranca o lençol que cobria o grupo de empregados:
Doutor – Admire, Senhor Boucot, essa magnífica coleção francesa! Pessoal de
primeiríssima qualidade! Obedecem à voz e ao gesto!
Boucot – Oh, que belos manuais! Estou louco de desejo!
Doutor – O lote está à venda... Há comprador?
Boucot – Eu, Boucot, sou amador, grande colecionador de empregados subordinados! (Ele
os examina) Boas patas... Bons cérebros... Bonita trupe, tudo muito bom, contrato o todo.
Doutor – É para a relação?
Boucot – Sim.
Doutor – Fecundidade máxima!
Boucot (se aproximando dos empregados) – Estaria a cara senhora procurando trabalho? A
senhora permitiria que eu lhe fizesse uma oferta? Sobram ainda algumas vagas...
Os empregados dançam para seduzi-lo:
B – Eu aqui, Senhor Diretor!
Por favor, considere meus talentos!
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II
Boucot os instala no Ateliê. Os empregados enfiam guarda-pós de trabalho:
O trabalho retoma.
Monólogo: um empregado do andar inferior se dirige ao público:
A – O senhor Verdit me dá ordens, mas eu dou ao senhor Verdet. Verdit é um babaca.
Verdet é um babaca. Boucot também, aliás. Vou aumentar o meu ritmo. O senhor Boucot
vai reparar em mim e vai me fazer subir dois degraus. Lá em cima, vou ganhar dois dólares
a mais. Vou continuar levando pancada, mas vou poder dar duas vezes mais. Logo, saio
ganhando. Triste lei da natureza cada um iça o seu rabo. O rato defende a pele contra os
outros ratos. Aliás, o senhor Boucot deve ter começado como eu. É um lobo bichado, um
porco cruel; mas ele chegou lá com a força dos seus punhos, é preciso reconhecer. Ele
começou nos empregos baixos, agora ele está nos empregos altos. Se eu trabalhar muito, eu
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também vou me elevar nas condições. Aliás não é por egoísmo, subo comigo uma família
inteira, para circunstâncias melhores! (Ele se eleva, trepa até o andar superior.) Me segue
com os olhos, querida, não tira os olhos de mim! (Já no topo:) Ah, daqui, de fato, se está
muito melhor! Já se está mais no alto da casa, tem uns acessos!
Agora, vou colaborar ao telefone!
III
Fim da jornada de trabalho. Boucot agita uma matraca:
Boucot – Seis horas, hora de fechar, passem os produtos! (Ele recolhe os objetos fabricados
e distribui aos empregados moeda em grão.) Eis um bom salário!
Cena entre Senhora Boca e um cliente. Senhora Boca segura nas mãos dois objetos
idênticos:
Senhora Boca – Certeza esplêndida! Aquisição, exceção! Quem deseja qual?
A – Mim! Moá! Çaqui ali io lhe piss...não, issi não, ssi gordão que se agrupa... nada
dissacó, dissaqui! (A senhora Boca continua mostrando aquele que ele não quer.)
A grupa não, a brisa: Ali, à arca do cochete!
Senhora Boca – “Puro pergamóide por cento.”
A – Na, desse pluchô mal partido e meio-gordo não me leca! Io lhe piss, envesgo miurfar as
brossas desse bágico-aí que me estende sua rotunda! Não, o outro!
Senhora Boca – “Essa compra aí, a muitos fregueses petisca; quem não se arrisca, vira a
bisca da história.”
A – Incrível! Ela quer porque quer me empurrar o outro!... Se continuar assim, vou partir
embora daqui...
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Senhora Boca – Sem, o senhor não irá longe. O senhor quer quem?
A – Esse aqui ou me mando!
Senhora Boca – Há pouco o senhor queria o outro!
A – Afinal, a senhora fala francês, ou não? (Dança furiosa)
Se eu disser, você verá!
Se eu disser eu vou querer!
Se você não quiser eu me vou! Pois eu quero esse aqui.
Esse aqui estendido no seu braço, estendido nesse aqui dos seus braços! Esse que está nessa
aqui das suas mãos estendido nesse aqui dos seus braços! Esse! Este!
Esse ali!
Esse ali aqui ali embaixo!
Esse ali aqui ali embaixo daqui!
Esse aqui ali aqui embaixo daqui ali daqui!
Esse ali!
Senhora Boca – Esse aqui?
A – Sim.
Senhora Boca – Não é possível. É um par. Não dá pra desagrupar.
A – Quanto pelas duas?
Senhora Boca – Francos oito.
A – Embolso. Vamos embolsar. (Ele sai com os dois objetos.)
Casa II: o comprador dos dois objetos e sua mulher. Primeiro melodrama:
Ela – Ô maravilha!... Por que dois?
Ele – Um vai quebrar por último.
Ela – Não dá pra dizer qual é o mais bonito! E olha que...
Ele – Não está rachado, né?
Ela – Não, não... Caros produtos, caros ornamentos!
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Ele – Cobre eles. Fiquei com eles por pouco! Isso representa grosso modo cento e vinte e
sete horas do meu trabalho! São meus frutos! (Ele pega um dos objetos e o aperta tão forte
contra o peito que o quebra.) Ô desgraça, quebrei, partiu, se perdeu... Desgraça, quebrou, se
partiu! Agora não tem mais o par... Anda, anda, joga esses cacos no mar!
Ela – Não! Vamos guardar, vamos guardar!
Ele – Se a gente guardar, vai ter que colar; isso vai nos tomar dinheiro e anos...! Se a gente
jogar, vai nos cavar um baita vazio dentro de casa...
Ela – Joga no ralo!
Ele – Isso, ninguém pode me pedir, pois eu o segurei com as minhas mãos, eu o vi morrer
entre as minhas mãos, eu o marquei com o meu pé! Ele não se parece com ninguém. Se
você o jogar, eu vou com ele, ralo abaixo!... Anda, anda, varre isso tudo aí!
Ela – Nada de injustiça! Não é porque não sobrou nada que a gente tem que se privar!
Apesar das queixas que se pode ter, ele é uma testemunha das nossas horas difíceis! E
também eu amo ele, afinal de contas, tanto quanto ou até mais do que esse aqui que é
apenas o estrangeiro do casal! (Ela pega o objeto ainda intacto.) Vou quebrá-lo!
Ele – Alto lá! Pensa no que isso vale: cento e trinta horas da minha pele!... Pois sim.
Justamente! O que isso vale, se não dá pra serem contados os pedaços? (Ele pega o objeto
intacto.) Se nossa relação quiser persistir, a gente vai ter que quebrá-lo! Vou rachá-lo à tua
imagem... Rola na poeira, cara de pato!
Ela – Piedade, poderoso senhor, não bate no meu focinho!
Ele – Vitória!... (Ele joga o objeto e o quebra.)
Ela - Com quantas penas a gente ficou agora?
Ele – Quatrocentas penas. Quase um quilo!
Ela – Temos que ficar com elas, temos que ficar com elas! Toma conta!
Ele – Se alguém aparecer... me jogo em cima delas.
Ela – Querido, você é magnífico! (Ela se joga no pescoço dele.)
Casa I:
A mulher – Parabéns! Quilos de ouro por um artigo tão pequeno, que merda!
O homem – Não julga sempre pelo exterior.
Casa III: Um casal no meio de muitos pacotes. Segundo melodrama: crise de sentimentos
maternos num pai de família:
O pai – Comprei tudo. Há muito tempo que eu desejava. Agora, estamos guarnecidos.
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A mãe – Você acha mesmo que está cheio de vantagens? Meu Deus, meu Deus, será que
têm qualidade suficiente?
O pai – Olha, está aqui, está escrito: “Com isso, dá para se fazer uma família frutificar
dentro de um buraco.”
A mãe – Cuidado com os reclames, René!
O pai (lírico) – Junto meus pedaços. São meus bens, devo juntar meu rebanho. Sou a mãe
dos meus filhinhos...
A mãe – René, o que você está dizendo? Virou maníaco.
O pai – Estou sentado no meio dos meus móveis e todos os meus objetos vêm beber.
Assiste, cara esposa, à formação de meu segundo corpo... Você entende, tenho a vida inteira
para me reconstituir. Alimento uma família numerosa: mulher, filhos e objetos de lar. Dou.
Estou coberto por uma abundância de seios... Fabrico moeda e meus filhinhos vêm comê-la.
É por isso que eu gostaria que se lembrassem de mim sob a forma de uma mãe porca.
A mãe – René, você está delirando! Você não tem vergonha de dizer isso?
O pai – Não. Tenho seios, Maria, juro a você. Estou coberto de seios.
O mãe – Da onde vem o teu leite?
O pai – Vem de lá onde trabalho: ganho setenta e cinco mil sobre a cruz... não sei muito
bem como. Carreguei minha paciência: a vida inteira, por vocês, eu me sacrifiquei...!
A mãe – O senhor está louco, vou bater no senhor, o senhor é uma verdadeira fêmea! Não
quero mais saber do senhor, nunca!
O pai – Não bata na vaca leiteira! (Ela pula no pescoço dele.)
Casa I:
A mulher – O que você fez hoje?
O homem – Hoje, ele me mandou fazer conservas, vendeu elas para mim, me fez comê-
las... Vingança!
A mulher – Pierrette, André, venham! O pai de vocês chegou. Ele vai lhes fazer justiça. Ela
vai buscar duas cabeças de crianças, macho e fêmea. O homem as pega e as segura com os
braços estendidos:
O homem (como um rei) – “Imagem ou buraco,
filho ou filha, venham cá
que eu lhes distribua o devido.
Imagem, pegue esse todo.
Quanto ao senhor, Buraco, pegue esse nada para aprender!
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Breve noite: os empregados dormem. Boucot vigia. Senhora Boca cantarola um pouco.
Parlenda:
Senhora Boca – “O comércio é de cem francos,
Senhora, Senhora,
Meu cão pega e morde a lata.
Ele abre a sua lata: a couve foi vendida!
Pegue meu coração!”
IV
Abertura da segunda jornada: Boucot agita sua matraca, os empregados se levantam com
dificuldade.
Boucot (escandido) – À máquina, à seis horas da manhã, à marcha! Seis horas, são seis
horas: vistam seus animais! (Falado:) Duro calçamento de barraco, hein? Tem que pastar!
(Cantado:) “Vamos, vamos, depressa, depressa!” (Os empregados retomam o trabalho.
Boucot os inspeciona:) Rápido! Andem filhinhos, vocês não estão numa vitrine! Silêncio, e
rápido! Trabalhem com o coração! Tem que tomar o freio nos dentes!... Esse aqui está gagá,
está bom para o sótão... Silêncio, silêncio, engolindo a saliva!... Mostra as tuas patas, teu
nariz! Tudo bem... Abatido: tomara que não vá nos cair doente!... Mais rápido, seu quebra-
nozinho, se você se arrastar, vai perder seu lugar!... Bravo Guillaume, foi bem na labuta:
chegue pra frente para ser alçado! Sua testa... obrigado! Vejam vocês todos que ficam
remanchando, o camarada de vocês levou a fita. Ele chegou lá, de tanto. Ele está feito.
Silêncio, silêncio! Me passem com toda urgência o mil oitocentos e cinqüenta e três! (Ele
pega o telefone e o sacode como um termômetro para conseguir a ligação.) Alô, alô, é do
Exporta? Alô, querida, é Boucot! (Longo discurso em inglês...) ... there is the market, take,
take, take. O sweet, sweet! Fechado. Sem falta. Daqui a dois minutos.
Enquanto isso, Guillaume pegou escondido o telefone e tentou, em vão, obter uma ligação
sacudindo o aparelho como fez Boucot.
Guillaume – Senhor Bou...Boub...Boucot, o telefone está que...quebrado.
empregados tremem e estendem suas fichas:) Tudo bem, tudo bem... o conjunto está
razoável... Silêncio! Ah, se vocês pudessem saber a solidão dos chefes!
Senhora Boca (aparecendo de repente atrás dos empregados) – Eles não sabem, eles não
sabem... Eles ninam suas bonecas de metal de noite, eles não vêem os fios...
Boucot – Boucot, Boucot, está ouvindo? É um sinal. De hostilidade. Não é um bom sinal. A
trupe se irrita. É a vida das capitais! Silêncio! (Vaias selvagens dos empregados.) Ah! Se
eles explodissem?... Esses corpos espremidos, eles vão explodir, se ficarem assim tão
travados! Se não forem purgados, vão ficar revoltados! Senhor, o que fazer, está muito
arriscado! Vamos Boucot, se há cara feia, des-tranca-os!
Vinte e quatro horas longe dos tornos!
Vou levar para o campo suas pessoas privadas e vou deixá-los se ex-primir nas relvas. Isso
vai acalmá-los. Quando for segunda-feira, eles vão ter recobrado o caminho do
estabelecimento, eles vão voltar a comer na minha mão.
Andem, andem, li-ber-da-de!
Aves, saiam das nassas!
Boucot os libera como galinhas e recobre o Ateliê com uma capa verde. Os empregados
liberados esbarram uns nos outros como pássaros. Os casais voltam a se formar
precipitadamente. Dois empregados, de quatro, correm, batem e morrem.
Senhora Boca – Essas saídas de carro são um verdadeiro massacre de bichanos.
Cena: apresentação e venda do mar. Boucot desenrola uma longa tela azul. Os
empregados, agrupados, olham.
Boucot (enfático) – Senhores, o mar!... Olhem pra isso, como é bonito: ele espelha, ele
brinca, ele galopa! Seria realmente uma pena se ele lhes escapasse.
Sua superfície é considerável,
água natural e irrefutável,
oferecemos a vocês a chance inestimável
de mergulhar nesse azul definitivo.
O acesso custa seis francos.
D – Ele é muito lindo, claro, mas eu fico assim com medo de não ser realmente seu
proprietário.
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A – Belo afogador. Ali na frente, não adianta, não dá para dizer patavina. Será que ainda
tem algum peixe?
Boucot – Forrado por debaixo da superfície.
C – Tem que se entrar numas de nadar.
Boucot – Entrada: seis francos.
Outro casal:
O homem e a mulher – Levanta a pata! (Eles saúdam.) Ô mar, eu queria que você lavasse
minha cabeça! É hora de voltar e passear nosso cão!
não teria um selo? (Ele começa a escrever um cartão postal em voz alta, os olhos fixados no
público:) “Querida Teresa, passo aqui alguns instantes breves demais de lazer aproveitável,
bem longe do tumulto e das penas de Paris. Estou deitado. As ondas sobem umas nas outras
e o mar mexe a sua barriga, sou aspirado, desarmado, sob a sua sombra: estou na água e
suas tetas. Ô natureza, abre o teu alforje! Então, ele me pega, me leva e fecha o seu círculo
branco. Sim querida Teresa. Vejo morrer por lá alguns gatos ou bichos, dar uns saltos de
animal por lá e cair, dançar e saltar no fundo, eles saem da água e brincam e depois caem no
fundo. Olhar em volta e cair. Talvez eles se agarrem entre as patas, já que eles agarram a
água entre as patas, já que eles caem na água... Uma centena pelo menos, talvez mais. São
pássaros. Talvez ele os mantenha agrupados. Na sua voz nem sempre aparecem peixes,
agrupados para morrer e eles se vão agrupados, saindo da garganta da rainha, eu diria talvez
imóvel e silenciosa, pois sempre se pode perguntar se alguma coisa saiu dali aonde ele vai.
Mas chego agora ao final do cartão e preciso te dizer adeus pois alguém acaba de me
chamar e já vai certamente ser a hora da comida. Pensei muito em você segunda-feira.
Ficaria realmente muito feliz se você passasse na tua prova de carteira de motorista. Você
pode me escrever pra cá. Mas anda logo, pois não vou ficar mais por muito tempo.”
Brusca aparição de Boucot no meio dos banhistas. Ele está nu mas ficou com o telefone:
Boucot – Alô Morgenstern?... Está tudo bem: estão ganhando forças. Vocês compraram as
ações Lustucru?... A 5%?... Até logo... Sim, sim, Orly às 19h30.
vedor! Ao gosto dágua nula, abram seus dentes rosas mais que imediatamente! Nenhum
nadador pesa muito pesado na minha balança, principalmente se eu o laçar. Filhos de entre
duas águas, percam aqui o passo, e até a sombra de seus pensamentos de lenço, nos belos
fundos. Ou nas folhas... Que tumba! Toca. Ele bebeu até a taça. Silêncio: os senhores estão
mergulhando! Queda dágua na calha. Me diga está molhando? Ô que banho! Que banho,
eles estão tomando, esses peixes!... Me diga, minha senhora, é sobre o cofre-couve, eles
ainda estão dentro dágua? Não, não, sob o degrau, chegam às pedras conversando. Nada de
olho pisca aqui, nada sob a manga, a não ser pássaro, o nó de suas cabeças laçadas, longe de
meu quadril. Me diga, minha senhora, eles não vão alçar vôo pelos fundos?
Pássaros marinhos, pássaros pintados, pássaros pretos, abram essa rosa no lugar dos
seus chapéus! Buracos, estendam seus pesados lenços de cabeça e mostrem-me, usados,
seus corações saídos!
Viva a náutica!
Durmam, belos olhos, tesouros de pele, nos meus casacos de pele de água, nos meus
braços de guardiã!
Veja, meu anjo, a sociedade é reta como o mar.
Ele mesmo na água, o sol se comeu: ele brinca fora da terra, mostra o seu corpo
àquela que o devorou.
Eis seis membros de população, dos quais três mulheres ornamentadas de três
babacas!
Lavo seus cérebros no mar,
coloco-os para nadar na água do meu chapéu.
Todas as suas rosas caem.
Na praia, colho muitas flores.
(Os empregados se mexem um pouco, começam a acordar.) Esponjas, esponjas,
redes, ouriços... estrelas do mar! Por alguns centavos, comprem esses souvenirs! (Ela joga
alguns e vai embora...)
Os empregados acordam:
A – Ei!
B – Quanto?
E – Um milhar.
A – Esses banhos, esses banhos...! Que momento!
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E – Não sei se você é como eu, mas quando vejo o que estou vendo, dá uma vontade de
tomar uma espécie de largo definitivo: pular dentro dágua, se abraçar, rolar com as duas
patas na alegria, se entregar no afogamento do afogamento!
Apito: os empregados se agrupam e vão embora andando de costas, agitando lenços, como
um coro de ópera.
Os empregados – “Adeus Natureza, adeus Estadia!”
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Tem um retardatário: a Senhora Boca o pega pelos pés e o faz andar “como carrinho de
mão”:
Senhora Boca – Anda, de volta ao lar! Esse banhista queria dos trilhos se afastar. Mas
cuidei bem dele. Ele é um pouco retardado.
Boucot tira a lona verde que cobria o Ateliê e recoloca cada um no seu lugar.
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V
Os empregados enfiam os seus guarda-pós e retomam o trabalho, sem entusiasmo.
Primeira conversa:
E – Passa rápido. Tomara que as próximas cheguem logo!...
F - ... Quando?
E – As de vocês foram boas?
F – Breves... breves...! Que diferença entre aqui e por lá! Já estou cheia!
E – Calma, calma... Eu, veja você, consigo ter boa esperança. Veja se me acompanha; falta
ainda seis semanas até o final do ano, aí terei três dias. Depois oito semanas e terei um.
Depois de quatro semanas e meia, terei quatro só pra mim, quatro! Aí depois de dez
semanas, terei um dia inteiro (infelizmente breve demais!); depois vai faltar seis semanas
para o ano seguinte, quando terei três grandes dias.
F – Pois então, você pelo menos não tem do que se queixar! Eu só terei um dia, daqui a
onze anos.
E – Mas você ganha muitos francos, muito mais que eu! E daqui a quinze anos você terá
sete meses... Mas você terá então setenta e três anos! Bem feito!
Voz de Boucot – Silêncio! Parem com isso! Andem rápido!
E – Me diga uma coisa, eu não quero ser indiscreta, cada um com sua opinião privada, cada
um com seu cada qual, não tenho nada a ver com isso... Eu queria perguntar para você: você
se interessa por política?
A – A grande política?
B – Sim. Essa mesma.
A – Assim, oh eu, assado... enfim, como todo mundo. Veja bem, não acredito em milagre.
Ora! Não passam de homens... Veja você, na política, são apenas homens fazendo. Isso diz
tudo, não é?... Em tudo o que as pessoas dizem, tem muita ilusão.
B – Claro.
A – Então pô. Tem que ter cuidado. E também teria que saber, não é, todos esses políticos,
o que eles dizem em particular! Repare só que não estou atacando ninguém. Mas os
bastidores da política, sei muito bem o que é e prefiro não ver...
B – Ah não, realmente não tem nada de bonito pra se ver! Mas tem que se respeitar as
opiniões, mesmo divergentes.
A – O cidadão paga o pato, é assim em toda parte. Não dá pra se iludir. Porque, veja você,
hoje é tudo científico. É aí que está a jogada. É por isso que não dá pra acompanhar. Veja
por exemplo a ponte de Tancarville...
B – Com certeza... Não estamos gabaritados.
Ele estende uma folha para uma empregada que a lê com atenção:
E – Bem, bem... Mas me diga, Senhor Boucot, por que está assinado “A cabra do Senhor
Seguin”?1
Boucot – Deve ser um erro de digitação... Corrija, por favor, coloque... “O Marechal-
Observador dos Experts” (Ele faz com que a grande roda que está acima do Ateliê gire
mais rápido: o ritmo dos trabalhos se acelera.) Não posso fazer nada e vocês também não,
1
La chèvre de Monsieur Seguin de Alphonse Daudet, é um clássico da literatura francesa para todas as idades.
No caso de se querer adaptar para uma obra conhecida do público brasileiro, pode-se pensar em Meu pé de
laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. (N.da.T.)
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corda já esticou ao máximo? A minha também, sabia!... Olha só! Acessos de impaciência!...
Freqüentes?... Tenha paciência, tudo vai melhorar! Boucot vai certamente bater as botas,
um dia...
Boucot sobe calmamente até a sua casa e se entrega a uma grande crise de raiva:
Boucot – Cú de bico, Boucot! Tudo vai mal! Eu lhes dou isso e eles querem isso, dê-lhes
isso, eles vão querer isso e isso e isso e isso! Vocês não terão mais nada. Mas vocês falam
realmente qualquer besteira, vocês reclamam de qualquer um em qualquer lugar! Rápido,
rápido, o mundo está se estragando, não há mais consciência profissional, esse povo se
polui!
Ele agita a sua matraca: os empregados fazem algumas compras e voltam para casa.
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VI
Os empregados nas suas casa.
Casa I:
O homem – Com o dinheiro obtido graças ao Senhor Estojo, comprei isso aqui: emissor-
receptor! (Ele tira um telefone de um pacote.)
A mulher – Ih, bacana!
O homem – Tome, minha senhora, é para a senhora! (Ele lhe dá o telefone, corre até o
outro lado do cômodo e tampa os ouvidos.) Me telefona!
A mulher – És um babaca, só tem um! Se eu falar, quem vai me ouvir?
O homem – Não posso fazer nada, o par valia o dobro, comprarei o outro no ano que vem.
A mulher – Enquanto isso, não pode deixar pegar poeira: vamos cobrir!
O homem – Se a gente cobrir, não vai ouvir tocar... Silêncio! Podem nos chamar a qualquer
momento.
A mulher – Telefona para os vizinhos, telefona para os Cochet!
O homem – Não temos fio. Tudo bem! (Ele bate na parede.) Ei, ô do lado, tem um
chamado telefônico pra vocês!
A mulher – O que a gente vai dizer pra eles?
O homem – “Alô, alô, eu queria pedir, no final dos fins, que vocês fizessem um pouco
menos de barulho: a gente não consegue mais se ouvir por aqui! (Ele bate contra a parede.)
Acabem com isso, Cochet escrotos, vocês vão calar a boca? Se o telefone tocasse, a gente
nem ouviria tocar!”
Casa II:
O vizinho – Quem telefonou?
A vizinha – Os aí do lado, os Hurche.
O vizinho – A gente não conhece eles. O que eles disseram?
A vizinha – Não entendi: eles batiam contra a parede ao mesmo tempo.
O vizinho – Será que o barulho não vinha do aparelho?
A vizinha – Um aparelho novinho em folha, você está de brincadeira!
O vizinho – Novinho em folha, mas extremamente frágil: olha só! (Ele o deixa cair. O
aparelho se quebra.)
Na primeira Casa:
A mulher – Que barulho é esse? Telefona pra eles se calarem!
O homem (escutando no aparelho) – Eles não estão mais atendendo.
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Na primeira Casa:
A mulher (se debruçando sobre os cacos) – Ih que sorte: a parte receptora do aparelho
ainda está intacta!
O homem – De que adianta se não tem mais emissor?
A mulher – Nada disso, querido: mesmo modesto, um receptor é para nós mais do que
suficiente. Aliás, a gente não tinha nada para emitir.
O homem – E nossos votos?
A mulher – Estojo os transmitirá.
O homem – Está tudo quebrado. Como avisar?
A mulher – Basta você bater.
O homem (batendo) – Alô Estojo, presta atenção, aqui ora essa! Faço, aqui, o voto que
minha condição melhore de uma maneira fun-da-men-tal!
Ele bate contra a parede. Mas alguém, na coxia, bate ainda mais forte. Três grandes
batidas: a parede do fundo vem abaixo e se abre sobre um grande buraco negro.
Uma voz – “Atravessem essa escuridão, loucas cabeças de pássaros!”
O homem – Silêncio, miserável!... O que é isso?
A mulher – Não é nada. Um cabo solto. Quando você bateu, você deve ter derrubado a
grade de uma boca de ventilação.
O homem – É uma passagem. Vai dar uma olhada!
A mulher – Nunca exploramos esse lugar. Esse poço não anuncia nada que valha.
O homem – Ouro ou dragão, quem estiver do outro lado, responda! (Ele dá um passo à
frente.)
A mulher – Prudência: o buraco é imenso. Não vai entrando levianamente!
O homem – Manda o menino: se um bandido estiver lá do outro lado, ele não vai ousar
bater nesse inocente.
A mulher – Não, não, vou eu!
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Súbita luz: Boucot aparece ao fundo, sobre um praticável, com um nariz falso.
Os empregados (aliviados) – Ah, é o Senhor Boucot! (Eles se sentam.)
Boucot (dando uma de animador) – Então, coloquem-se pés assim, mãos assim, os olhos
bem fechados e a língua pra dentro. (Os empregados obedecem e se agrupam de dois em
dois, abraçados.) Quem quer correr e mostrar o seu saber?
C – Eu, eu quero mostrar o meu!
Boucot - Façam entrar o primeiro concorrente! (O empregado se junta a Boucot sobre o
praticável.) Categoria?
C – Corro no “Mundo amoroso”, do lado do coração. Quero ser interrogado sobre as
posições afetivas.
Boucot – Primeira pergunta: olhe para a imagem! (Ele lhe mostra o grupo de empregados,
sempre na mesma postura.) Do que se trata? O que eles estão fazendo? O que eles estão
fazendo?
C – Não, não, não estou vendo, não sei.
Boucot – Pois bem, caro concorrente, vou ler para você uma página de informações. Quanto
mais cedo você me fizer parar mais você vai ganhar. (Ele lê a “página de informações”.
Muito rápido, com o máximo de selvageria:) “Veja-os se agrupar de dois em dois, voltar pra
casa e comer os pés! Você está com a mão bem lá no fundo? Ei, pirados, olhem os buracos!
Anda cavalo três vezes saído: o vizinho tira a calça, e a vizinha? Tomba da cama, solidão,
tomba um e outro pra fora da cama, tomba, tomba, criança de chumbo.”
C – Não, não, não estou vendo, não sei, não sei mais o que isso quer dizer. Lamento, perdi,
não sei mais.
Boucot – Resposta, resposta!
C – Não sei... “Simpatia”?
31
Boucot – Não, não. E olha que era fácil. Vou ler o resto: quando você não vir mais a
relação, bata no nariz. Mas se achá-la, você grita! Atenção, prova de cabeça e de rapidez.
Pronto? (Nova leitura:) “Aqui jaz acolá o grupo dos irritados cobiçando a minha lua no
fundo do buraco. Mas eles não acham o de dentro, então eles morrem diante, patas cruzadas
e gritando, e eu sempre lhes digo: não insiste Gregório, você só coloca ali um olho mesmo.
Chora na porta: não é por aí que você vai sair, classezinha!”
C – “Sodoma”!
Boucot – Errado. Inexato.
C – Eu queria continuar, tentar ainda a minha sorte.
Boucot – Atenção, é a ultimíssima vez! Contato! (Leitura:) “Belo abridor de corpo colocado
debaixo de pouco espaço se batendo, corre esbarrar nos meus cenários. Eu te lanço minhas
asas, eu estalo tua cabeça, eu subo teu corpo roliço, contra a noite esmagada. Em breve
passará Boucot o catador de penas. Ninhadas da noite, recolham seus capitais, contem suas
pedras. Gastem-se, filhos de ferro, vocês só parem pregos.”
C – É dramático. Não, não, lamento, perdi, não consigo fazer a relação. Não era bem um
assunto pra mim. Eu deveria ter estudado mais a reprodução. Tudo bem.
Fim do jogo: Boucot coroa com papel aquele que perdeu e lhe faz um sinal para voltar
para o seu domicílio. Os empregados aplaudem:
Os empregados – Ele perdeu! Que cara nulo!
Inebriado com o seu sucesso, Boucot dança. Os empregados batem o ritmo com as mãos. O
concorrente infeliz volta pra casa:
C (para sua mulher) – Vi, sim, Boucot, trocamos nossas visões. É um homem
excessivamente culto. Apesar dos seus encargos, ele tem muito carinho pelos seres.
O que não anda bem? Digam? Alô, alô, respondam, meus serviços de informação os
escutam.
Um empregado se levanta:
B – Minha mulher e eu, nós nos perguntamos muito, do ponto de vista da remuneração... do
funcionamento geral das finanças. Nós queríamos saber: qual é a natureza exata de suas
moedas? Diga, Senhor Boucot, como é que o preço sobe, onde e por quê?
Boucot – É bem delicado. É bem delicado manter o equilíbrio da balança do ágio entre a
taxa, a porcentagem, as cargas suntuárias, os extratos efetivos, os créditos notórios, os
valores parciais, o curso fiduciário, o tamanho real, o salário legal. A finança não é em nada
acessível ao não especialista que corre grande risco de queimar os pêlos. Estão satisfeitos
com minha resposta?
B – Sim, Senhor Boucot, mas a questão do lucro ainda me persegue.
Boucot – Certo! mas vou logo prevenindo, serei mais técnico. Veja se me acompanha.
Pronto? Considerando um valor V e seu superávit S, sob a intervenção (inelutável,
infelizmente!) do fator tempo, ela vai engendrar uma taxa hipotética T, a qual, se
superpondo a ela mesma segundo as leis de Finck, acaba mais cedo ou mais tarde gerando
um lucro L, convertido em duas partes gêmeas: massa salarial e investimentos produtivos.
A taxa de crescimento está assegurada desde que a soma dos juros capitalizados não exceda
a taxa real do balanço dos encargos. Tal é o princípio do equilíbrio.
C – Mas Senhor Boucot, de onde vem o ouro? De onde vem o ouro, afinal? Para onde vão
os lucros?
Senhora Boca – Questões baixas... Problema difícil de tocar... Nada bonito, nada
interessante. Se a gente passasse logo o filme? Vocês querem que eu mostre meu rabo?
C – Não, não! De onde vem o ouro afinal? De onde vem o ouro afinal?
Boucot – É um longuíssimo e belíssimo milagre...
A – Ora senhor Boucot, o ouro não vem das cegonhas!
Boucot – Não... O ouro vem de Nova York... depois ele passa pela Bolsa, onde é elevado,
alçado e porcentado... depois ele passa pelo canal dos Bancos, se lasca um pouco... depois
inunda o mercado, inunda vocês...
E – E antes de Nova York?
Senhora Boca – Antes de Nova York...? É um dos segredos mais bonitos do meu jardim!...
Aliás, o ouro verdadeiro é o que vem do Amor e quem sabe amar sabe que o homem vale
ouro e que vocês, vocês são ouro.
D – E quem possui o ouro?
33
2
Jean Lecanuet foi por duas vezes ministro da justiça nos anos 1970, quando Jacques Chirac era primeiro
ministro da França. (N.da T.)
34
Boucot – Você acha mesmo que eu a como, minha filha? Talvez você se considere um
animal e eu um animal maior?... Mas a sociedade vai pegar você, porque ela é ainda maior
que você... Você segura a minha cabeça entre as suas mãos, mas eu seguro as suas mãos e
você está no meu papo. Ou seja, filhinha, o Estado é grande demais para você. Nem vale a
pena se agitar... Mas se você continuar recriminando, você vai fazer a firma capitular! E se
a firma capitular, não haverá mais dólar pra ninguém, o curso das altas ruirá, e vocês junto!
Hoje, veja você, é preciso olhar as coisas de frente... e compreender bem que vocês estão
definitivamente debaixo dos meus lençóis. (Eu vou lhes confessar que me acontece de me
sentir eu mesmo tomado num sistema de conjunturas tão complexo, que por pouco eu me
perguntaria quem as puxa...) Então, fiquem nos seus galhos! Ou vocês vão cair nos buracos!
D – Ele tem razão. Cada um com sua tarefa. Ele é especialista, afinal de contas! Não dá pra
se ter todas as capacidades. Vamos assegurar nossas retaguardas!
E – Ah Senhor Boucot, isso é terrível! Eis que agora já estou eu de novo cheio de
perguntas! Faça alguma coisa!
Boucot – Caro povo, vocês são bem simpáticos, mas vocês são todos tapados e ultra-
fechados... Vocês gostariam de fazer a firma girar, mas vocês nem sabem como é que ela
gira vocês fazendo vocês girarem em volta das outras firmas que giram em volta de vocês!
E a concorrência internacional, então? E as investidas japonesas? E o plano Müller?
Lembrem-se dos Croqués de dezoito e do fim trágico da República de Biarritz! Lembrem-se
que juntos é que metemos o Príncipe abaixo! (Aplausos.) Se vocês fossem com um pouco
mais de freqüência à universidade, vocês seriam menos burros! (Aplausos.) Ninguém é
senhor dos acontecimentos, mas todo mundo pode tomar ali um belo de um lugar!
B – É verdade. Os babacas têm mesmo é que morrer!
Fim do discurso do Senhor Boucot. Aplausos. Boucot se vira pra sua mulher, ansioso:
Boucot – Embromei eles o bastante?
Senhora Boca – Foi muito bom, você foi muito bem. Está muito bom.
F – Ele calou nosso bico!
E – Quase.
Boucot (aos empregados) – Mais alguma coisa?
B – Senhor Boucot, estamos com fome.
Boucot – Como vocês podem estar com fome, já que vocês estão com a barriga cheia?
B – Certo.
C – Pare Senhor Bocó, a gente não viu todas as perguntas!
Boucot – Claro que não!
35
B – Senhor Boucot, por favor, queira por favor distribuir tudo imediatamente e abrir a sua
Bolsa pra nós.
Boucot – Não posso distribuir para vocês já que é a minha. Não estou pedindo a de vocês.
B – Ah Senhor Boucot, o senhor se faz de rei da palavra, mas eu sou o rei dos ouvidos,
cuidado! O senhor pode até dirigir os negócios, mas o senhor não vai me impedir nunca de
agitar minhas coxas!
Boucot – Pois claro! Se você tem um investimento você tem todo interesse em fazê-lo
frutificar: pegue um quadrado, instale ali uma mulher, rache-lhe o ventre e façam uns
filhos!
E – Quem vai sangrar para alimentá-los? Nós. Quem vai comê-los? O senhor.
Boucot – Nunca comi pessoa alguma. Vocês estão loucos?
B – Em todo caso, mulher e filhinhos, eu os pegarei e os levarei para passear de automóvel,
debaixo do nariz do bocó!
F – Cuidado, não pode ter acidentes!
Boucot – Um acidente de trânsito, o que é isso?
A – Eu sei.
C – Eu!
A e C voluntários, dirigem e batem.
Boucot – Pois bem, quem ganhou?
C – Ninguém. Cada um de nós perdeu uma roda.
A – Ah esse babaca, eu bem que teria atropelado ele! Sinto muito não ter matado você.
Boucot – Chega de dirigir! Agora é preciso pagar os carros.
A – Mas estão quebrados!
Boucot – Foram vocês que quebraram. Têm que me pagar.
Os empregados pagam Boucot.
C – Minha bolsa está vazia agora. O que isso tudo quer dizer?
Boucot – Mmmm...
C – Parem, não soprem mais! Parem de me levantar a questão da língua!
Boucot – Estou feliz por você me fazer essa pergunta, eu queria justamente ensinar a língua
a vocês.
C – Sim, sim, no final agora, nós queríamos saber o que é a língua e aonde ela vai? De onde
vem a língua e aonde ela vai? A língua, será que é essa que me sai do buraco ou essa que
me sai do buraco? Será que é essa que me sai do buraco ou será que é essa que me sai do
buraco? Ela não quer que eu me cale. Senhor Boucot, por favor afinal, o que quer de mim a
minha língua aqui que me trava?
37
mas isso não é suficiente.”... Pois bem, o que o senhor tem a responder a tudo isso? O que
pensa de tudo isso, Senhor Boucot? Responda!
Boucot – Sinto muito, realmente sinto muito: em cinqüenta e sete palavras, você cometeu
dezessete erros de ortografia... Você sabia, seu cabra esfolado, que não se coloca um ^ em
tem quando está no singular, que imediato só tem um M e que aumentados fica mesmo com
o O quando se o coloca?... Mas não era você mesmo que há pouco falava de
C.O.L.H.A.O.til?
Senhora Boca – Isso mesmo, quem não sabe falar, que cale a boca!
Ela faz os empregados aplaudirem no ritmo.
Boucot – Tem um próximo?
Um outro vem para a tribuna:
A – “Nossas condições de existência, materiais e morais, fisiológicas e psicológicas...”
Boucot – Não dê uma de cisne quando você é apenas um rato! (Gargalhadas dos
empregados.) Continue!
A – Não sei mais: o senhor me cortou... Basicamente, o que eu queria dizer é que nós
trabalhamos muito por coisa nenhuma. O senhor dá uma de coletor: cuidado com o dia em
que os pastados tomarão o bastão.
Boucot – Quem é pastado?
A – Eu. Se a minha boca está torta, é por causa disso.
Boucot – Quem se sentir lesado, que fique deitado!
Aplausos.
A – Chega, chega!
Boucot – Chega de quê?
A – Aqui os cliportadôs, aqui os briquebaliôs, os reclamôs, aqui os pastadôs, aqui os
tapiôs!...
Boucot – Aqui Boucot.
Ele o retira.
A – Eu queria acrescentar que o senhor é um guarda-corpo e uma espécie de esgoto.
Boucot – Bravo! O próximo!
Outro orador:
E – “Juventude deve se passar, velhice deve logo chegar, logo deve falecer, clipe-clape,
vida deve morrer... Não devemos nós então por demais inflar e passar vida pequena
depressa feita? Não, pois...”
Senhora Boca – Stop! Lembre-se que a gente entra na vida por um buraquinho.
E – E por onde a gente sai?
39
Boucot – Ninguém sabe. Mas não se esqueçam nunca que é de quatro que se trepa melhor.
Obrigado, vocês foram muito bem...
O orador seguinte:
F – “Caros caramadas... caros camanadas...”
Senhora Boca – Já teve algum distúrbio mental?
Ela lhe indica a saída. Um novo orador se apresenta:
B – Mister Boco, não estou mais com toda minha língua, então vou falar com os dentes!...
Boucot – Pois bem? Abre o teu funil, seu materialista malvado!
Ele escancara a sua boca. Ela fica bloqueada.
E – O que ele disse?
Boucot – Nada. Vejam para onde vocês vão quando lhes soltam a rédea! Já já ele mostrará
seu fundo... Falando dos dentes, eles rebaixam o homem ao nível do cú.
Um silêncio. Depois Boucot vai desbloquear a mandíbula do orador: o empregado
descarrega logo gesticulando:
B – “Panzani! Raticídio! Eu Luzinho exijo Rapid Dama Renault do Trique-Traque com
Solex Instamático! Senão te Pronchar meu Robust ou engolir três tubos de Aspirina
efervescente depressa! Esso, Esso! Basta de Dramamine Veja Lux Pax Pic!... Milliats-
Irmãos, Irmãos-Lissac, levantem e abotinem ele com seus calçados André!”
Um grande silêncio. Depois ele é encestado de pancadas.
Senhora Boca – Pois bem, seu cérebro já retomou seu lugar? Já reencontrou o francês?
B – Sim.
Boucot – Você está absolutamente certo de sabê-lo?
B – Sim, sim, eu sei o vocabulário francês: com à lá cada um nada onde me pois então o
qual algum de cada porque ora contra dentro muito... Muito puco pé pelo pá pivô porco
pantalona pau pombo truque ali eu mim nós te o vós meu lhe teu si disse disseram.
Boucot – Ele é bom. Nada a acrescentar?
B – Não.
Um espectador aplaude:
A – Ela é craque!
Um empregado se levanta, furioso e vai falar com o público:
Fnac! Raticídio! Eu Carrefour exijo Rapid Dama Renault do Trique-Traque com
Rolex Instamático! Senão te Peugeot meu Robust ou engolir três tubos de Aspirina
efervescente depressa! Esso, Esso! Basta de Dramamine Veja Lux Pax Ajax!... Danone,
L’Oréal, Leroy-Merlin, levantem e abotinem ele com seus calçados André!” (N.da T.)
40
C - Oustral pô, se él fá o crú: ni quer nad uvir, ni quer se axpliqui! Nus pudem log nad
intindir. Má di mim a culp? Ni querê gustá, sataná marcanti? Di pô, tudo trová seu plá! jaeu
prafar furir mi buraco, invés de tão boba criancice! Sis franguinhos n’têm mais a línga no
mei do bruaco, agora... Em vez de brochar, que se escaravelhem as plantas ! Io me lo lixo!
Boucot – Você aí! Ei, limpador de chaminé, venha se explicar!
C - Nem por um pio!
Ele acaba sucumbindo e sobe à tribuna:
C – “Meu sinhô o Boucot, noss já tam chêi di tramar pru seus binhos e de só colher
rodinhas e doenças. Noss quríamu ir mais dentro dágua e ali fico mais tempu. Noss quríamu
rebatar casas grandes com vistas e saídas no andar. Noss vida si passá si mordê i crupi e
pegá i mosqui, issento qui si dora su fuce, i né justo, dio du cé! Então si vai nu dar pataca e
logo! Mossa kirimidas e mossa lhes riclamo 624. Num é mui, per uma vida tota passá no
chum! II povi ban ni zi dar, nada de Diu! 624, por favir! Si voss quir nad uvir, noss ni quir
nass uvir tambô! Risponda!... Noss quríamo assi que stope de comprar nossa pele e de noss
fare bricar objetos pra nos empurrar pregos que nos devolvem para nos empurrar objetos.
Compranda Sinhô Bocú, noss vida, fora diss tud, enfi ol quiú, enfi ol quiú!”
Boucot – Entendi nada, lamento! Você tem um defeito de pronúncia?
C – Isso não, Bocú... Sei dizer, mas não tenho tanto vocabulário.
Boucot – Podemos ajudar você. Quais são os termos que lhe fazem falta?
C – Pois então, quando é por assim dizer a minha pele que estou vendendo para o senhor,
como é que se chama?
Boucot – Recruting.
C – Recruting, bom. E quando eu te dou de novo meu dinheiro para tentar recuperar os
objetos que fabriquei?
Boucot – Marketing.
C – E quando você faz a gente aumentar o ritmo?
Boucot – Vitaliting!
C – E quando você nos coloca aqui e ali, enquanto que eu queria ir ali e aqui?
Boucot – Holding, planing.
C – E se eu cair, de tanto quê?
Boucot – Jumping.
C – E quando você enche os seus bolsos?
Boucot – Prosperiting.
C – E quando os meus se esvaziam?
41
C – Não é nada. É a trabalhose. Não se pode fazer nada. Não se preocupe. Deixa rolar.
Relaxe... Esqueça...
Boucot - Alguém... teria... alguma coisa... a dizer?
Os empregados – Não.
Senhora Boca – Pois bem, agora, como vocês ficaram bem comportados, vamos passar para
vocês um filme artístico!
Os empregados – Sim, sim, arejem nossas cabeças! (Aplausos.)
Cinema: sempre do alto de seu palquinho, o Sr. e a Senhora Boucot representam para os
seus empregados uma ceninha de filme:
Senhora Boca – Querido, tenho uns escrúpulos: me diga, você não vai me deixar?
Boucot – Não, meu amor, não. Mas esse tal de Roland me preocupa: ele está sempre entre
nós. Sinto você a cada dia tão diferente.
Senhora Boca – Foi você que mudou: você já não é mais o mesmo.
Boucot – Nada disso, nada disso. Me dê a sua boca!
Senhora Boca – Ah, para fazer o ato, ele está sempre ali! Você não entenderá nunca que,
para mim, o equilíbrio físico não é nada sem a segurança moral!
Boucot – Oh perdão, perdão!
Senhora Boca – Pára com essa chantagem odiosa!
Boucot – Ah não, eu não mereço isso mesmo!
Senhora Boca – Vem, vamos embora! Vamos recomeçar do zero!
Fim do filme. Exclamações de espectadores:
D - Que elegância!
E – Duas horas
de vida interior
cultivam
o coração animal.
Lançar do lençol: Sr. e Senhora Boucot pegam uma cortina grande e a estendem sobre os
empregados adormecidos.
Senhora Boca – Aqui jaz, debaixo, os olhos: cabra e cão não reconhecem mais ali seus
filhotes. Eles dormem todos já. Belo caçador, você já caçou todas as moscas!
Boucot – Sim, sim. Não há mais zumbido: as papilas eu já as soprei, com um passar de asa
na caixa de prego.
Senhora Boca – Seu discurso estava notavelmente dosado: o senhor semeou os espíritos.
43
VII
Trevas. Boucot percorre o teatro com uma lanterna e ilumina um primeiro empregado, com
a vassoura na mão. Primeira estação:
B – Ei, pare! Já tenho duas listas para ouvir, não posso responder com as duas mãos!... De
tanto me causar preocupação, vocês vão acabar me fazendo pegar um galho! Minha calçada
já está pequena demais para as minhas patas... Fique quieta minha alma, daqui a dois
comprimentos você planta a tua barraca... Admirem meu belo esforço ou me taxem de
moinho, vocês não vão me impedir de, daqui a um ano, estar um pouco mais longinho!...
Aliás, quem o faria em meu lugar? Senão por que eu tenho orelhas, eu pergunto a vocês?...
Alô, alô, vou passar para o telescópio dos gêmeos (para eles, deve ser difícil trabalhar nas
condições!) um segundo! tenho já dois pedaços pra juntar, então evitem por favor de me
apresentar um terceiro imediatamente, multiplicação tem limites!... Quando chegar o dia de
entrar em contato com a vida, vão tocar, de uma vez por todas: o lobo virá em pessoa dar a
resposta, ele dirá: “Se eu me chamar, digam que não estamos.”... Então será uma maneira
como outra qualquer de administrar na tropa de todos os olhos a prova do meu savoir-faire
estrondoso!... Principalmente se eu vier a desaparecer. Senão-senão!... Senhoras, Senhores,
vocês entendem que estou com a doença? (Falando no primeiro aparelho): Alô, alô, eis
aqui todas as minhas informações: as camisas sobem, o preço dos calçados sobe e já
ultrapassa de uma cabeça o das luvas, a calça aumenta, só a corda fica num preço acessível!
(No outro:) Sim, sim, sim, houve uma grande explicação, ele lhe perdoou tudo, ele lhe
jurava que sim, então ele lhe passou uma borracha... (Para Boucot:) Me diga, Senhor Do
Boucot, e as minhas condecorações, vão chegar?... Fui prisioneiro de guerra, meu cunhado
foi deportado, minha mulher está invalidada no trabalho a 67%, meu filho foi queimado,
minha cunhada estourou. Estou amargo. Talvez as condecorações?
Boucot – Me diga, Hurche, você não passou o aspirador hoje de manhã?
B – Aspirador?... Faltou tempo... aspirador. Faltou.
A – Seu Voucot, eu queria custamente ir pê-lo bara lhe denunciar Hurche: eu o vi com o seu
jornal, ele pensa em se fazer molhar a mão e sonha de lhe enrolar um pecúlio de tostões.
Sinceramente. Aspiro em seguir carreira na denúncia.
Boucot, entre os dois larápios, inverte os dois acessórios; ele pega o telefone de B e dá a A,
pega a vassoura de A e dá a B:
B (telefonista derrotado recebendo a vassoura) – Di...va... Dii-ââbo... Diabo de destino!
A (ex-varredor promovido a telefonista) – Alô, alô, Senhor Boucot, estão chamando das
ilhas Canárias!... Ei, pare, todas ao mesmo tempo não! Parem, não se sabe mais por onde
me começar! Ele diz esquerda, ela diz direita: se vocês colocarem um terceiro, a gente vai
acabar não sabendo mais!... Basta, basta, a seiscentos e vinte e três não está respondendo
mais!
Boucot – Emburrada?
A – São os reumatismos. Cada vez que vai chover, meu pé range.
Boucot – É a nervose. Você deveria ir ao médico. Talvez você vá morrer.
A – Talvez, mas sozinho não! Luc-Paul, meu primo, sucumbiu ontem à noite ao seu
engarrafamento.
Boucot – Meu Deus, que horror! Quais foram suas últimas palavras?
A – Olha, tudo aconteceu tão depressa, o senhor sabe... Ele cuspiu tudo de uma vez e foi
embora.
Boucot – Era um ser insubstituível. Quem o substitui agora?
A – Ninguém, claro... Enquanto isso contratamos um macaco.
A essa palavra, os empregados fazem caretas. Boucot agita sua matraca. Os empregados se
limpam, tomam uma fisionomia serena, apagam rugas e caretas. Cortejo: Boucot e sua
mulher passam no meio dos empregados, recolhendo os objetos fabricados e distribuindo
alguns grãos.
C – Esplêndida vitrine! (Recuando) Pena tão depressa amadurecer! Eis agora já o fim, eis-
me aqui na forca. Eu não tinha condições!
Senhora Boca – De toda minha vida de comerciante nunca vi cliente mais burro dar
exemplo tão feio!
Os Empregados – Ele descompensou!
Senhora Boca – Parem! Por aí não! Aqui a saída! Aproveitem os nossos pássaros!
Os Empregados – Quais? Quais? Ah, Senhor Boucot, estamos tontos, estaríamos bem
precisados de um par de calças!
Todas as facas são vendidas. Os empregados voltam pra casa. Boucot e sua mulher ficam
sozinhos:
47
Boucot – Fiz bons negócios: vendi pra eles todas as minhas facas!
Senhora Boca – Você ficou sem nenhuma... Eles não vão saber usar, espero! (Boucot
treme.) Boucot, você está com medo?
Boucot – Não, estou com frio. Céus, não é que o medo está me pegando pelo pescoço!
Estou com medo que eles me guilhotinem e suprimam minhas liberdades... que eles percam
o pumo e nos requisitem a pessoal!
Senhora Boca – Meu Deus, que horror, me deixem pelo menos meu ânus!
Boucot – Não Senhora, não, o amor, isso não, eles não vão poder tocar nisso!
Senhora Boca – Sabe querido, se viesse a acontecer uma desgraça a nossas intimidades, eu
prefiro bater as botas! Ó tenho medo de não aproveitar ao máximo e de ver todas as nossas
penas voando em fumaça!
Boucot – Calma, meu anjo... Não é nada, é humano, é ligado ao tempo que foge... É aí que
o instinto de propriedade se aninha... Vamos falar com eles, vamos explicar pra eles, eu vou
dizer a eles: “Como assim? Vocês não vão me violentar? Eu? Enérgico partidário da paz nas
sociedades?... Evitemos as violências... Façamos comércio. O que aprecio na vida são as
trocas humanas, de buraco a buraco... os diálogos, os contatos... Vamos, vamos, guardem
suas facas!”
E – E se a gente esperasse uns quinze dias... É cedo. Vamos agüentar até a volta ao trabalho
dos políticos.
C – É cedo. O tempo não está maduro. Boucot desaparecendo, novas tarefas nos aguardam.
Os responsáveis não foram prevenidos, a situação está muito embolada, não vamos arriscar
meter um pé no buraco... Não se mexam mais, esperem! Escondam suas facas debaixo dos
travesseiros!
A (em voz baixa) – Um instante!... Faço um brinde ao desaparecimento do boco! (Aplausos
abafados.) Talvez amanhã!
Os empregados se deitam e dormem. Numa elevação, aconchegados um contra o outro, o
Senhor e a Senhora Boucot tremem:
Boucot e Senhora Boca (os dois) – “Querido, há três dias, não durmo mais, tenho medo da
noite da faca!”
Senhora Boca – Eles têm facas, mas não vão saber usá-las, espero... Deus, que horror!
Longo grito. Ela mostra para Boucot um empregado, sonhador, que se levantou, um lençol
na cabeça e uma faca na mão.
Boucot – Só um sonâmbulo!... Não há risco de ele nos ferir.
Senhora Boca – Ó sonâmbulo!... O que lhe ordena o seu cú?
Boucot – Mil trapaças!
O sonâmbulo estende o braço, levanta a sua faca de papelão.
Boucot – Eis que ele sobe o punho em riste, içando seu quê mais alto que si. Ele eleva uma
palavra: esse prego se acha pontudo, caramba! Pulga em posição sentada se achando um
ogro em estado, eleito ou rei, pensando passar o seu pescoço dois pés acima da trupe!
Sombra de macaco, você tem um belo de um pescoço de sorte, não o deixe cair no alçapão!
Procura no chão o teu pescoço de sombra de nada de pé, escolhe certo, ele ainda está de pé!
Sim! Talha a tua parte, sonhador tão brilhante, que só vê nele, só fogo, cuidado, vocês vão,
pegar uma tumba, cara pessoa dentro! Andem o corpo no coração da questão! Bravo
pedaço, mais um número de braço! Bela carnagem de papel. Não escute Senhora, ele é
bobo, ele comeu flauta! Príncipe Bússola, indique pra nós o saco do gato por favor!
Senhora Boca – Não dá pra ver os fios. Por onde ele está preso?
Boucot – Pelas solas, na tábua que está debaixo. Homem de madeira em repouso esperando
as visitas.
Senhora Boca – A hospitalidade desse buraco deve ser recompensada... Obrigada Bravo,
você foi eleito, ganhou o número. Ele o levará direto à sua cabeça: siga esse entalhe ali na
tábua a ambulância no final o espera... Juro, juro, esse sonho-oco me exaspera: se for um
49
flutuador, me pergunto se ele vai durar; se ele falar, me pergunto o que o leva.
Desapareça!... Ô Boucot, estou com medo: se ele chegasse a penetrar nos segredos!
Boucot - Ele só penetra mesmo corpos com espada de papelão, só chega a morder seus
órgãos de uva.
Senhora Boca – Aprecio a arte de todo especialista em papel oco.
Boucot – Vamos! Mais! Mostra pano! Dá um espetáculo para a senhora, mostra o teu cú
mascarado!... Mais, Senhor, por favor, saia, faça ressoar sob o seu pé a tábua!... Acabado,
obrigado, pronto!... Bravo por esse panorama esplêndido sobre as lutas de bolso. E obrigado
mais uma vez pela visita ao porão.
Senhora Boca – Que porão?
Boucot – Paciência, interrogue a sua casca, ele vai responder... Veja: ele está contando o
buraco dele.
Senhora Boca – Esse pensamento vazio de sentido se exaspera de tanto se quebrar a cabeça
com sua faca de quê.
Boucot – Senhora, é uma colher, não é uma faca que ele lança! Olha ele estirando a língua:
no primeiro pano que ele acha, ele mergulha de cabeça, rasga a sua pele e tira a sua frase,
uma boneca no dedo!... Andem os batentes!
Senhora Boca – Essa máscara me exaspera, espero que ele vá voltar pro vestiário!... Chega
escarlate, dobre as suas patas!... Criança de três ou quatro pregos, passe pela porta, volte nos
lençóis! (O sonâmbulo volta a se deitar.) Céus, que sorte, ele obedece! Cuidado, Boucot,
eles ainda estão com as facas!
Boucot – Estou com medo. Acorda eles!
Senhora Boca – É meia noite, muito cedo.
Boucot – Acorda eles! A segurança está em jogo!
escrita. A gente diria que alguém é hipócrita quando ele teria uma escrita de cavalo. Um
cavalo não sabe escrever. Logo ele mente. É incrível. Seus olhos são de uma brancura
assassina! Você quer que eu lhe exponha algumas noções às quais minha mulher se apega
muito?...
Boucot – Silêncio! Vamos manipular.
Trevas. Boucot aponta a sua lanterna para o empregado que acaba de falar. Este voltou
para o seu lugar no Ateliê e continua o seu discurso ao mesmo tempo em que manipula:
A – Fiz muito mal em tentar. Devia ter engatilhado ele direto. E lançado assim pra ele: “Eu
me chamo Pique, e você? Hirque, talvez?” Teria sido uma fórmula de lhe cortar o flanco...
Por ora, mil cães! derrota total. Tomara que ele não vá começar a correr que eu tenho a
mínima menor cara de estomo por sua pose...! De qualquer maneira, amanhã, vou agir:
assim que ele fraquejar, coloco-lhe os pontos nos Us, sem parêntese e em bom passo!... Ao
breve! Ao breve! Labore sempre pobre-e! Minais ao alto! Devastem os treves! Labirâmides!
Fim dos túneis! Labirâmides de barro!
Boucot – Vai tocar?
A – Ao breve, ao breve!
Senhora Boca – Molhem os nervos, a dose foi ultrapassada! Rápido, aos jogos metê-los!
Boucot – Alto lá a todos, que cessem! Vou lhes dar a hora da pausa. Pássaros, pássaros!
Fim dos labores, retomem os amores!
Trevas. Breve lazer: Boucot aponta a sua lanterna para um empregado que está brincando
com uma enorme bola preta. O empregado examina a bola de muito perto, faz ela girar,
comenta, decifra a bola como se fosse uma grade de palavras cruzadas:
B – Lazer! Oba, depressa! Em que ponto parei? Ah é! Desembaralhar os fios... Ramsés,
Jasão, trespassam na vertical. Eis que no horizonte, onze letras... onze desmoronam e rolam
na garganta do pombo... achei! Robespierre! Era ele. Os onze são bem esses: os pássaros-
de-todas-as-gaiolas não-perigam-sair nesse-espelho... A cruz está cheia. Que alguém venha
e vire a minha página! Oba, aqui, encontrei! Deus do céu, caras quebradas, ataque, Reims,
Santo Etienne, Raúl de Brinhac! Vai passar apertado, tomara que... ai minha cabeça! Bingo,
mais um! é pra mim! Ô louca escapada!... Depressa um pouco de mansidão, obrigado...
Rex, Pipo II. O primeiro ainda não! Basta, já, bebi tudo. Depressa, ler o resto, no verso.
Ataco a próxima: música!...
Boucot – Ó céus, que chegue logo a hora! Acabou, retome o seu galo!
Fim do lazer. Trevas. Boucot aponta de novo a sua lanterna para o primeiro empregado,
sempre manipulando:
53
A – Fossa dos ursos; entrada e saída, luzes de porrinha!... Todo lazer cai. Toda luz é fogo de
palha. Durante muito tempo pensei evitar o fim. Mas no final todo lazer cai. Não faz mal: a
criança seguinte sobreviverá! Ela sairá da tumba, é preciso, estou dizendo. Eu mesmo, se eu
sobreviver, não vou parar no caminho, esperarei o fim, direi: que venha a hora, que soe a
hora! que ela venha e que ela caia! Quando chegar a hora da minha morte, não terei medo,
direi: “Realmente, realizei tarefas mínimas... mas não foi por minha culpa.” Quantas
mordidas daqui ali? Quantas vezes ainda mexer as minhas patas? Mil?... Meninas, vejam:
nesses lugares amaldiçoados, rola a seis milhões de lágrimas-segundo. Que chegue a hora,
que caia a hora, que ela caia!... Quem agita, aqui, para quem, que mãos? Esplêndida
existência: como preço por cada esforço meritório, obtenho, uma mordida que me avança
com um passo rumo à saída. Todos os sinos podem muito bem tocar! Minha detestável
posição de belo badalo elevado, não varia, de um centímetro! (Ouve-se um revoar de sinos.)
Céus... esperança, esperança! A criança vai sobreviver!... Ele vive, ele vive! Eis o orifício,
eis o horizonte!
Amanhece. Aparição no horizonte: a Senhora Boca e uma empregada monologam, cada
uma numa extremidade do teatro. As palavras de uma cobrem as da outra:
D – Unha pelo avesso, polegar pelo lado direito, ponto!
Senhora Boca – Eu queria que ele viesse, e que ele me trepasse, pimba!
D – Dobre um pouco o pouco de nada!
Senhora Boca – Um pouco do meu sob pouco do seu!
D – Canto, jato, toque o quê!
Senhora Boca – Rei, entre, toque meu cantinho!
Fraternização e troca de receitas: elas se aproximam e vão andando de braços dados,
empurrando um carrinho de criança.
Senhora Boca e D – Lindo, lindo, qual é sua receita?
Senhora Boca e D – Um raminho de nada, só uma pitadinha, um jogo de bico!
Senhora Boca e D – Você o amamenta?
Senhora Boca e D – Daqui a pouco ele vai pra escola, vai seguir seu rumo...
Senhora Boca – Olha só os seus dentinhos já de lobo!
D – Veja só os seus dentinhos já de glogo!
Senhora Boca – Veja só o seu lote já de pequeno bracinho dado!
D – Veja só o seu lote já de bracinho dado!
Jogo de cena com o carrinho.
54
VIII
Ruptura. Troca-se a disposição dos elementos cênicos. Única ligação entre o antigo e o
novo dispositivo: o carrinho de bebê. Um casal olha para dentro dele. No meio das
tempestades.
A – Aqui em círculo... o suor da minha testa seca. Ao abrigo dos ratos... Degusto uma bela
de uma fatia.
D – Não fuma tão perto do berço!
A – O que é que tem? Mais cedo ou mais tarde, tudo parte, em fumaça... Ele também, vai
ser preciso que ele pare e coma o cabo depois da colher.
D – Muitas lágrimas ainda, infelizmente... um danado de um pacote de lágrimas espera por
ele... (Ele se aproxima do carrinho.)
A – O que você está fazendo?
D – Estou virando ele pra que ele deite sobre o flanco.
A – Cuidado, pela alça não, a vida é frágil!
D (ela beija a criança) – Caro monumento da cavidade do meu tronco!
A – Você quer dizer do meu...!
D – Cale-se encrenqueiro!... Que felicidade, já estamos partindo em fumaça. Ele ficará, ó
estou enternecida com esse flanco de pássaro... Pensar que nós chupamos talvez nossa
última...
A – Não fala assim tão alto desse buraco maldito!
D – Mas por quê?
A – Tudo sobe. A vida aumenta. Estou segurando o timão. Não se toca nunca o fundo.
D – Defende a tua pele! Não desespera, não dramatiza! Um tubo de pasta de dente, mesmo
vazio, sempre dá pra tirar algo de dentro, de tanto tentar. Realmente, na natureza, o grande
come o pequeno. Lamento tanto quanto você esse rapto. Mas nada impede o pequeno de
entrar menos que si! Ora você não está assim tão mal postado. Pensa que tem gente pra
quem não se fornece nem a calça... Pára de fumar, eu te peço, você vai fazer ele pegar o
crancho!...
A se vira e se dirige de repente diretamente ao público:
A – Senhoras, Senhores... antes, eu teria que lhes contar a história completa do meu
casamento. Antes de desposar essa mulher aqui, eu já tinha encontrado uma outra. Rosa. Há
várias semanas nós comíamos todo dia na mesma mesa, o acaso tinha nos colocado na
mesma fileira. Um belo dia, ao mesmo tempo em que eu manipulava ao alegre som das
bigornas, eu me engano e pego a sua...
55
Ele começa a fazer a cena com a empregada F. Os dois se posicionam no novo dispositivo,
muito simplificado: uma mesa coberta por uma toalha descendo até o chão, uma espécie de
palquinho de marionetes (o que vai facilitar depois a aparição e o desaparecimento dos
objetos.). Sentados à mesa, de frente para o público (só se vê as suas cabeças e as suas
mãos), eles seguram cada um um sapato e batem:
A – Perdão, não teria eu, por acaso, pego a sua?
F – Bem que eu achei, não estava ousando lhe dizer... Olha, se preferir a minha...
A – Não, não, por favor, não valeria a pena... Pelo pouco tempo que vou passar por aqui!
Você está me vendo aqui, mas estarei rapidamente em outro lugar: consegui uma vaga na
entrega. De onde eu poderei facilmente solicitar uma na dobragem. Uma vez dobrador, mais
dois degraus e chego no controle! E ficando ali dez anos, com um pouco de sorte, termino
Amarrotador Geral!... Cortar reto, mirar espertamente numa vaga, me dar uma pilha, depois,
acabou, a gente fecha e eu me forneço tudo em dobro! (Senhor, me perdoe, menti o tempo
todo!)
F – Me tome, me carregue! Sonho em levar uma vida afetiva! Estou com pressa de deixar
esse lugar!
Eles param de bater. Silêncio profundo. Durante toda essa cena, o empregado B (Verdet)
está de pé, do lado da mesa. Boucot, não muito longe, numa elevação:
Boucot – Verdet, o que está acontecendo?
B – Crise na produção, patrão. Não tem mais matéria prima. Estamos rateando.
Boucot – Fuga de mina de pena de trapo de porto de morro de pouco! Que fazer, que fazer?
Voz do Doutor – Estique o ouvido para a escuta! (Breve silêncio.)
C (em casa, lendo o jornal, com uma voz quase inaudível) – Olha só, o papel está na sua
cotação mais baixa.
Boucot – Krapon, vá comprar pra mim duzentas toneladas!
C obedece: ele vai buscar uma pilha de jornais e a coloca sobre a mesa de manipulação.
Ele parece reconhecer a empregada F:
C – Mas é... mas então, você está!...
Boucot – Silêncio, vamos manipular!
Ele bate e C desmaia. Na mesa, A e F começam a rasgar os jornais, ao mesmo tempo em
que continuam conversando:
F – Quanto mais vejo você, mais sua personalidade me fascina!
A – (Sua vadia!) Uma viagem de tochas é sempre arriscado... (Ela quer pegar a minha
metade!)... É preciso pensar se os farrapos combinam...
Os jornais rasgados por A e F se amontoam. Crise de Boucot:
56
ser rei.” Devotamente eu me preparava para recolher os seus restos, mas uma voz gritou por
cima da barreira: “Ei, arrivista, você o mete sem tê-lo tido?” Era a minha mãe mais uma vez
escondida atrás da porta com o Senechal. Em quinze segundos ela me informou que eu
tinha um irmão mais velho de reserva, alimentado à minha revelia durante vinte anos nos
seus sótãos. Era necessário então que eu renunciasse, esperasse ainda talvez cem anos para
usar o chapéu legítimo... Eu tinha seis anos, eu me submeti; me consolaram com uma bola e
uma coroa de papel. Eles aproveitaram a minha extrema juventude e na própria noite dos
súbitos funerais do meu pai, eles executaram todos os meus partidários. Essa garota quis se
casar com meu título! (Cantado:) “Jovem ainda perdi minha coroa, o que me importa o seu
anel no dedo!”
Ele colocou um chapéu de papel na cabeça e dança. Boucot arranca o seu chapéu, bate
nele e ele morre. Grito de D, sua primeira mulher, que ficou sozinha com o carrinho:
D – Longe!
Boucot pega o chapéu do defunto e o passa pra B (Verdet):
Boucot – Me faça um estudo desse protótipo!
B – Pronto, aqui estão os mapas!
Boucot – Lance a produção!
F – Senhor Boucot, Gregório Luis acaba de morrer. Posso ficar no lugar dele?
Boucot – Claro, claro.
F se instala no lugar de seu ex-noivo e começa a dobrar os jornais fazendo deles chapéus.
Grito de D:
D – Gregório!
Os Boucot fazem uma rápida oração fúnebre para A:
Boucot – “Não importa o que acontecer, guardarei para sempre viva dentro de mim, a
lembrança desse cão duro na flor, vítima do mal-estar economíaco.”
Senhora Boca – “Ó o teu silêncio! Estou ferida, de não mais ouvir gritar, a tua cabeça de
alfinete. O túmulo é violento quando ali se entra com tudo. Derramo toneladas de flores
sobre esses quatro ferros de costas.”
Fim da história de A. Novo grito de D, sua primeira mulher, sempre perto do carrinho:
D – Partiu como fumaça!... Mais ninguém em vista. Será que era um sonho? (Ela volta para
o carrinho e o esvazia: não tem nada dentro.) Sua teimosinha boba, mais uma vez a
enganar-se? Merda, merda, merda, continuo com quatorze anos.
Último rumor da oração fúnebre:
Senhora Boca – “Peão de marfim, desça ao buraco negro sem fim!”
Monólogo:
58
D – Toca, toca, cançãozinha! “Meu marido morreu, pobre menina você o perdeu!”... Esse
grito que ele dá em sua mortalha, eu o lançava nos meus cueiros: no dia de minha saída, me
expuseram às máscaras reunidas. Meu pai chorava: “Sou um padre”, ele disse. Com um
dedo levantado, ele designou a minha haste ausente. A multidão se aglomerava nas portas
do templo. Nevava. Me levaram pelos esgotos. Preta, eu achava estar ainda ensangüentada,
eu urrava: “O quê, o quê, deixar tão cedo o belo Issudum!” Depois foi a saída dos canais: eu
me lembro das estrias, das asas feridas do turbante. As migalhas do tique-taque, espaçadas,
depois todos os ziguezagues: a estrada dava uma danada de uma serpenteada nos recifes.
Caleches, penachos, pastagens. Depois a fumaça dos mosquetes, as margens do Aubrac. Em
breve, as flechas de Crecy. Eu tinha dois anos, eu era ignara: tiveram que me inscrever num
estabelecimento. Seis anos passados, entrei pra oitava. Fui eleita ali primeira da
recuperação; numa noite de junho, trepei nos louros e recebi sobre o palco o beijo breve de
um bigodudo grandalhão... A guerra que estourou nos surpreendeu em Châlons. Depois os
anos voaram, ah como a realidade é amarga: tive que agüentar o horrível espetáculo de meu
pai envelhecendo a olhos vistos. Seu fim foi particularmente horroroso: filha feliz em
segredo, me tiraram do buraco: eu tive que tocar com o dedo a tábua onde nada cresce.
Pensei morrer... Assim passaram julho, março, abril e todas as estações. Nós tínhamos
comido todas as provisões do inverno. Eu tinha doze anos: todos os meus primos me
tratavam de maçã verde. Eu, sempre empoleirada no alto das árvores, eu tinha pressa em
ativar a chegada dos climas. Desde então, treze tempestades passaram. A última data de
ontem. Tudo isso nos leva a hoje. Em que dia do mês estamos? Estamos pelo menos em
doze de março. Eu o digo, eu o provo: vejam a página no meu caderno da escola: a doze
está em branco para a data de hoje. Ontem onze. Vejam a cruz e as seis letras em iniciais:
M.P.L.S.A.N. Minhas Primeiras Lágrimas Sobre A Neve. Ontem! Voem, vermelhos
pássaros de março! Há oito dias, ao sair da escola, não sei muito bem por que, brinco
sozinha de estátua: num montão de neve, me deixo cair, fico um tempo, depois levanto,
abandonando na neve, cavada, a estátua delicada do meu corpo. Ontem já havia nesse
monte oito corpos de menina, oito estátuas, todas minhas! Decidi imprimir ali mais
profundamente a minha nona e última: me joguei de costas, me deixei cair em cruz, mais
uma vez, como uma dama que desmaia. Imóvel, no berço, na neve, na minha tumba, dez
minutos, fiquei no interior de minha própria estátua. No final eu não sentia mais o frio, eu
não sentia mais a mordida. Mas o sino tocou, eu me levantei, oh tinha passado pelo menos
uns bons quinze minutos! Eu me levanto, Senhoras Senhores, me viro e olho pro monte:
Senhoras Senhores, havia sangue na neve, na minha estátua! A minha nona era a minha
primeira manchada de vermelho! No dia dos meus treze anos! Então eu gritei por toda
59
parte, rápido, orgulhosa, louca de alegria! “Está tudo pronto para a chegada do esposo!” Oh,
eu tenho que contar pra uma amiguinha!...
Ela corre até a mesa de manipulação, se junta a F que continua trabalhando ali, se senta e
começa, ela também, a fabricar chapéus de papel:
D – Sabe, acabo de ter as minhas primeiras lágrimas. Na neve. Espero minhas bodas para
dentro em breve... E você, continua tendo alguém em vista?
F – Não mais, por enquanto, ele faleceu. Meu Luis.
D – Me desculpa. Pra você, a viuvez deve ser um estado terrível.
F – É um terrível estado. Mas pra você deve ser formidável.
D – É.
Voz da Senhora Boca – Estou muito feliz: estamos produzindo muitos chapéus.
D – Eu desconheço o meu noivo. Você chora o seu morto.
F – Socorro estou revendo os detalhes da partida! Luis, Luis! A alma no bico. A mão
segurando a alça, a última palavra que ele jogou: “Cuidado cum pontudo, cuidado cum
pontudo!” A crina, a pele molhada, o pão branco urrando trancado! O horror do tremor
final, depois nada mais... O negro berço. As pastilhas do cadafalso, o círculo com colunas,
os cordões do arco, a superfície das águas, o fundo furado do barco! Luis nos seus
estrados... Nesse ano, o tempo estava lindo: pássaros ficaram até a chegada do inverno.
Luis, Luis, tão depressa aparecer, desaparecer!
Boucot – Silêncio e rápido, fabriquem!
D – Ele te largou, eu espero por ele... Irmã bússola, você chora aos prantos desparafusada,
eu me preparo para a felicidade máxima. Para ele, com ele, para sempre, somos duas
sombras puxando as cordas do batente vertical: a positiva e a negativa. Nós nos
encontramos as duas aqui, depois de o ter cruzado: você viúva, das tuas lembranças a única
a sustentar o castelo; eu, aberta, inclinada sobre o meu futuro majestoso, esperando o
pássaro raro que me leva longe da beira. As duas sozinhas, folhas, felizes, decapitadas, à
beira do mesmo canal vertente, uma no levante, a outra no poente!
Boucot – Rápido e silêncio!
F (cantado) – “Como um pássaro ele atravessou nossos céus gêmeos!”
D – Não chora. Pensa no seu fim feliz. Ele te largou, eu espero por ele. Lancemos,
abraçadas, lancemos o mesmo refrão!
“Nunca a menor hesitação-ão
vai o-ofuscar o destino!
Sigamos o mesmo caminho
andando e nos dando a mão!”
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proletário, me lembro ainda do cheiro do seu traje azul quando ele o mergulhava na sopa;
nesses terríveis invernos de outrora! Os tempos mudaram, vocês sabiam que esse ano o
chapéu está muito na moda? Senhora Boca, por favor! (A Senhora Boca entra, deixa o seu
vestido cair e foge.) Se vocês não comprarem, seremos a última das economias. (Volta da
Senhora Boca:) Oh, como a senhora está abatida! Ela não está nada bem. (Ele lhe dá um
chapéu de papel: ela toma imediatamente uma pose viril.) Veja o indivíduo furar, agir,
decidir! Um vasto panorama social se abre pra ele! Vocês, cabeças descobertas, cabeças de
sapos, o que estão esperando?... Ovelhas raspadas, você vai ficar com esse seu cú nu?...
Tenho o dever de anunciar a vocês que de agora em diante a nossa empresa está condenada
a ganhar dinheiro ou desaparecer. E vocês junto!... Em toda a história os animais circulam
se passando a mão sem nada na cabeça, só o homem, Senhoras, ornamenta o seu topo!...
Essa bandagem é ideal, arremata o seu corpo, pense naqueles que não a podem ter!...
Coloque-se aqui, isso aqui, como ele aqui: nem bem foi lubrificado, anjo sob a capa já tinha
virado, empurrou três portas ou duas e saiu todo tinindo, com o nariz dentro reluzindo mais
alto que três pés graças à testa no fundo da sua casa de acolchoados!... Andem seus pirados,
conto com vocês, enquadrem seus buracos! Bem depressa. Obrigado. Todos ao mesmo
tempo. Escoem essas tampas, escoem essas tampas!”
Fim do discurso. Ele se vira para a sua mulher, na coxia:
Boucot – Ah, já sei, cala a boca, fui mal, não direto o bastante, não cordial o bastante!...
Senhora Boca – Não, não. Saiu muito bom. Você levou muito bem. Só no final, talvez...
Boucot sobe logo de novo no palco, bate o pé no chão e urra, como conclusão:
Boucot – “Contemporâneos do futuro!”
Breve grito do empregado C, invisível:
C – Fogo pastorinha!
Os empregados comentam o discurso de Boucot. Em casa, A e D em volta do carrinho de
neném, como no início do quadro:
D – Quer saber de uma coisa?... Isso se aplica direitinho nuns caras como vocês que
esperam sempre até o último dia pra cobrir a careca. Agarra essa ocasião: compra logo um
pra dar um trato na pose!
A – Pôs em quê? Pôs em rabo da vida do rato. Pôs em rabo da popa. Que rato? Pôs em rabo
do bicho, pôs em rabo do pescoço. TEU pescoço. Secção!... Se você acha que dá pra ver por
debaixo das cartas!
D – O que você está rosnando!
A – Nada, nada estou bebendo.
D – Toma aqui uma boa sopa de papel.
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A – A que preço? Sopa: chapéu. Por que que ele não nos engarrafa logo diretamente, pra
facilitar?... A gente está ali, tranqüilo, fumando debaixo da escada, enquanto isso, o tempo
vai indo, crucial, e passa por debaixo... Realmente, coisas passam por debaixo... Tramóia.
D – Silêncio, estão te observando.
Ela sai com a sopeira. A fica só, por um instante, com o prato vazio... Uma outra mulher
(F) chega e lhe traz a mesma sopeira:
F – Toma, bebe. Está sonhando com o quê, rei da casa?
A – Com nada. Com pouco. Com o fim. Com o abrigo. Com nossos ossos. Com o lobo e o
carneiro. Estou pensando nas chances mínimas do carneiro. Melhor procurar um centavo
num bilhão por umas penas.
Ele desfalece em cima do prato.
F – Ei Brigneau, não vai morrer? Não vai morrer, Brigneau?
Numa outra casa: monólogo de um solteiro.
C – Fogo seus pastores! O outro aí com seu chapelão, ele pode ficar falando que nada me
escapa! As causas são claras, essa noite deu pra ver, eles se perfilaram: três luas no céu
negro, por trupe levavam os bicos pro caldo. Sem que ninguém desconfiasse de nada,
exceto os da seita. Escondido com meus dois últimos pombos, eu podia até entoar a trompa,
os presságios estavam se realizando, os urubus escrotos piavam ao passar, carimbavam seus
territórios; vacas de madeira eram por toda parte instaladas. Empoleirado no alto de um pé
de ameixa, eu avistei minha irmã, gritei pra que ela fugisse e escapasse! Sem que ela me
ouvisse. Por causa do barulho das águas já negras. Eu gritei pra que ela fugisse! Torta de
tanto rir e apontando pra mim, eis que ela grita: “Jesus-Maria, um fantasiado!” Impossível
convencer ela: tinham me obrigado a alugar um figurino de barão de ópera. Depois foi tudo
muito breve. Fui encontrado agarrado aos lençóis, os três quartos do peitoral destruído...
Chega o dia... Há vinte anos, minha irmã está na cova. Melhor assim. Minha vez de falar
agora, de agora em diante vão ter que me escutar. (Narração ao público:) Meu nome é
Krapon. Compreendam Senhoras Senhores a seqüência estranha de meus últimos
acontecimentos: minha queda, vocês bem podem adivinhar, não tinha me desesperado por
completo; mas ela tinha definitivamente aniquilado em mim qualquer esperança de partilhar
meu pão com Rosa, cujo comportamento em relação a mim tinha sido odioso, vocês
puderam constatar... Sem querer justamente procurar em outro lugar, eu comecei a
freqüentar as festas de feira. Um dia, pouco tempo depois do final do meu resguardo,
conheci essa mulher, cujo nome não importa, mas que eu sempre secretamente apelidei de
Bernadette von Parabum. Num carrossel, totalmente por acaso. Exatamente, num “Trem
Fantasma”... Esse se chamava “O Reino de Netuno”. Nós tínhamos nos sentado, por acaso,
64
Senhora Boca – Um pêlo. Penso, remoída, à vida curta, às tosas de outono ceifando os tufos
com facilidade.
Boucot – Eles não tinham a energia, eles não tinham o peso. Na luta pela vida,
naturalmente, algumas penas são perdidas.
D (apresentando C a seu marido A) – Nós nos encontramos, totalmente por acaso, nesse
Trem Fantasma.
C – Prazer.
Senhora Boca – O que você vai fazer, Bocó, com um cesto cheio de madeixas? Eles não vão
querer mais agora que eles têm chapéus. De que serve até uma tonelada de penas, quando
não se tem mais a trupe a quem vender?
Boucot – Senhora, não pense sempre no dia depois de amanhã, mas olhe antes para esse
lindo amanhecer...
A, C e D apertam as mãos uns dos outros. A Senhora Boca se aproxima:
Senhora Boca – Querem tomar alguma coisa?
A – É a minha rodada. É a minha alvorada.
A Senhora Boca lhes serve a bebida envenenada preparada por seu marido. Eles bebem...
perdem imediatamente as suas perucas, se levantam e saem de costas, heróicos.
Testamentos:
C – A seco...! Talvez eu vá para o hospital, venham me visitar. Se eu ficar por lá, venham
me buscar, caso necessário. Sinto um pouco de tristeza pensando na minha cabeça que
mereceria algo muito melhor do que quatro ou três curtos goles... Sem dúvida eles vão
conseguir em breve prolongar as doses, duplicar as vidas e dar mais grãos... Eu não verei
isso. É duro descer pro buraco, justo quando a coisa melhora.
D (ao seu marido, admirando a partida heróica de C) – Henri deu provas de uma coragem
esplêndida! Ele não pia. Ele deixa a trupe sem piar.
A – O cão que se senta só no seu rabo não tem nenhum mérito por deixar seu lugar! (Ele se
levanta:) Eu estou deixando vários hectares, choro... não jogue a pedra em mim se tenho os
olhos cheios dágua!
D – Essa atitude não te engrandece René, muito pelo contrário! (Ela se levanta e vai pra
perto de C.) Adeus, não tenho remorsos!
A – Isso! Segue o cachorro que você merece! Eu não serei nunca o teu!
D (já longe) – Então você vai ser o seu próprio! (Ela canta:) “Nunca a menor hesitação-ão,
vai o-ofuscar o destino! Sigamos o mesmo caminho, andando e nos dando a mão!”
A partir de “vai ofuscar o destino”, A e C se juntam a ela. Os três chegam em coro diante
de Boucot:
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Boucot – Senhores?
Ele vende chapéus para eles. Partida de outro trio (E, F e B):
B – Adeus bezerros, vacas, porcos, ninhadas! Adeus, caras velhas rosas de outono!
E – Quem é esse desconhecido que vem soluçar nos nossos ombros?
B – Adeus, adeus!
F – Nós não temos tempo, nós também estamos de partida!
B – Simone, você não está me reconhecendo? Adeus, não tenho mais pele! (Ele sai de
costas, rodopiando, com as duas mulheres. Para Boucot:) O que o senhor teria para mim?
Boucot – Como?
B – Pêlo. Estou me sentindo descoberto. Ou então uma tampa de papel. Perdi todos os
cabelos da cabeça! Foi o vento que deve ter passado por cima.
Boucot – Para você, esse deve ser um momento muito duro.
Boucot vende para eles os últimos chapéus.
F e E – Ah, isso não é nada cor-de-rosa!
Senhora Boca – A vida não é rosa pra ninguém, Senhora.
B – É nossa sina. Enfim, quando já se tem a sorte de poder a cada manhã colocar as duas
patas pra fora da cama, já não dá pra se queixar! Contanto que se tenha ainda a força de
pular pra fora da cama com as suas patas.
Boucot – Ei, não esqueça o seu prego!
Ele estende um chapéu para o empregado B, que o estava esquecendo.
B – Que pena, as abas não são exatamente largas o suficiente. E o cano é muito estreito. Eu
devia ter uma cabeça menor! A gente acaba se habituando, é bem verdade...
Boucot – Crise muito bem reabsorvida. Estamos guarnecidos. E agora?
Senhora Boca (extra-lúcida) – Já estou vendo desabrochar nos rostos a comovente
expressão da falta a ganhar: as pessoas virão com a barriga vazia comer na nossa mão.
68
IX
Ruptura: nova disposição dos elementos cênicos. A um sinal de Boucot, os empregados
desmontam o cenário, limpam o palco. Os Boucot desaparecem. Forte ventania: o espaço
todo é percorrido pelo vento, grande deslocamento de ar. Fim de baile.
F – Mil e uma noites! já estou cheia: me acompanhe, moro aqui do lado, na rua das
Lentilhas, número dezesseis.
A – Ele! Ela! Revólver!
D – O sol está descendo... Uma bebida! Uma bebida!
A – Taverneiro das trevas, nos chafurde uma tontura!
D – Duas taças! Duas garrafas de corrosivo!
A (cantado) – “Suco bom da trepadeira, belo dom de Baco!”
E – Lambam com menos barulho!
A – Tampo danado!... Rápido, oba, salta rolha!... Lá fora a ventania está forte: o dia está
ficando mais curto a olhos vistos.
C - ...O inverno era terrível. Tropas saíam dos bosques. Cavavam sob a muralha... Lado a
lado, nossos Anciãos resistiram o dia inteiro... mas deu um vento, apagou-lhes a vela...
Então eles se aconchegaram. Até a manhã onde foram encontrados gelados... Dá pra ver
ainda as marcas na descida da ponte... Fim de carnaval. (Riso. Lento:) Penardeiro,
Penardeira se arrependeram logo de ter deixado o seu buraco. (No ouvido:) No final, a alma
se estende, para a sua toca. (Lágrimas.) No Contentin, departamento de Íris! (Ele chora no
ombro de seu vizinho. Depois se recompõe:) O quê, o quê? Não vai largar! A gente se
defende, segue as ladeiras aqui embaixo... Socorro! Todo mundo! Ouçam! Eu aqui presente,
vinte anos a fio, segurei firme na minha dívida; e as garras ultra-apertadas no meu pouco.
Depois, tudo se desamarrou...
O vizinho o empurra, quer pegar o seu chapéu:
B – Cai fora! Cai fora! Cuidado com o eclipse!
C – Está empurrando? Ei, possuído?
B – Cuidado com a tua bunda, pálido garoto daqui de baixo!
C – Presta atenção! Pra quem me liga, eu mostro o nulo... e molho a bilha nele!... Anda,
anda, vê se circula, simples conselho!...
A (sozinho no bar) – Silêncio, seus tortos! Chega de estrago, parem com os bris!... Ó! os
amores... levanta esse copo de espuma, estendido, evita qualquer sacudida, evita que o dia
venha e te represe... levanto a todos esse último antes do eclipse!... Um trago, não vale
nunca a pena se privar, aqui embaixo. Liquidação!...
C – Vocês estavam falando de ir ao cú um pouco antes... sim mas aonde? Sim, mas
aonde?...
Silêncio profundo. De repente o empregado B arranca o seu chapéu:
B – Parem! Parem tudo! Alto lá a todos! O quê, o quê, sempre morrer? Chegou de
gravidade, o inimigo exagerou: abaixo os Boucot!
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D – Exatamente!
Revolta: todos se erguem, lançam seus chapéus.
C – Buraco Sagradú, vai ter que dar um basta! No baile dos bocos, somos sempre
derradeiros. Vamos pôr um termo aos seus procedimentos. Abaixo os Boucot!
B – Companheiros, vamos prestar o juramento de colocar um fim nisso. Que aqueles que
querem se juntar dêem um passo à frente e levantem a mão. (Batidas na porta são ouvidas.)
Silêncio! Prestemos o juramento de lutar lado a lado. (Novas batidas na porta.)
Voz de Boucot (atrás da porta) – Irmãos, irmãos, abram!
A – Quem está aí?
Abrem a porta: os Boucot entram, disfarçados (roupas parecidas com as dos empregados,
só que com mais penas). Eles puxam uma carroça.
Boucot – Somos uns pobres atores expulsos do Egito.
Senhora Boca – É aqui o baile?...
E – São os Boucot!... Desapareçam, vocês foram desmascarados!
Boucot – Não, não, nós não somos os Boucot.
F – Vocês são os Boucot, vocês estão nos pregando uma peça.
Senhora Boca – Não, não. Os Boucot, nós os cruzamos no caminho, não foi querido? A
senhora estava com um chapéu bem grande, o homem uma bolsa.
D - ... De lucros, provavelmente... Não há dúvida, eram eles. Mas vocês, o que estão
fazendo aqui?
Boucot – Passamos de baile em baile... Propomos umas atrações.
B – Não é o momento para isso, o baile aqui já acabou! Irmãos, eles querem nos distrair do
projeto sombrio. Desconfiem. Prestemos o juramento... Vocês, saiam daqui. Prestemos o
juramento.
Boucot – Somos uns ambulantes. Apresentamos nossas atrações, somos ou não somos
livres?
B – Eles querem nos distrair do projeto sombrio... Fora!
A – Seja liberal Bobby, deixa esse canto pra eles... Mas vocês, Senhores viajantes, não
tentem se infiltrar!
Boucot – Não, não. Juramos sobre nossas sacolas.
Os Boucot se instalam num canto, no outro os empregados preparam a revolta:
C – Antes de fazer mil balanços, tratemos de ver quantos somos.
B – Seis. Vai dar pra mudar. Os Boucot, até a última contagem, eram só dois.
D – E o Doutor?
E – Ele está aqui.
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Doutor – Enfim, enfim. Estamos de acordo sobre alguns pontos. Sobre outros muito menos,
cada opinião é razoável, que me sirvam uma soda! Vamos abrir um centro de estudo, mal
ou bem somos todos doentes mentais, é preciso ir buscar a enfermeira, acabo de fazer uma
alusão, vamos praticar a escolha.
Boucot – No voto!
Algumas mãos se levantam.
Doutor – Dezoito, vinte e um, vinte e cinco: abaixo os Boucot!
C – Lutemos, lutemos!
Boucot – Peço a palavra.
Doutor – Vinte e seis, vinte e sete: aceito!
Boucot – Obrigado... Irmãos, escutem o testemunho de um desfavorecido...
E – Quem é esse indivíduo?
Boucot – Gustavo Tavernier... (Arenga:) Bem colocado pra nada saber por ouvir dizer,
triturado pelos Boucot, atolado em taxas e pressionado, passei trinta anos, no coração dos
girais, aprendendo diretamente e sem desvios que não somente quanto mais você dá a ele e
mais ele tira de você, mas também que quanto mais você pede a ele e menos ele te entrega!
Ele se ajeita todo de lado, só me deixa o meu pouco!... Basta, basta, miséria sempiterna!
Paguei demais, o copo está cheio, é preciso agir!... Espera um pouco que ele decida nos
descontar de novo a taxa das Seguradoras, não é a minha pena que eu vou pegar para
balbuciar uma reclamação lida a jato e jogada no lixo pelos empregadinhos, é o meu
trabuco, direto: desço na rua e apareço no Centro de Hospedagem. Então ali, barka chuia,
espero a noite cair. Aí eu tiro o trabuco, arrombo a porta e apago rapidinho uns doze ou
quinze crioulos sem que ninguém nem note. Entendeu? Pela sede. Segundo ponto. Outro
exemplo: há exatamente um ano, voltando da sepultura de meus Pais e Mães, eu me vi
sozinho no interior do nosso lar. Pela única janela da casa, lancei um olhar maquinal para
fora: vista sinistra sobre um terreno inutilizável onde tínhamos o costume, entre outros
destroços, de sepultar num montículo os velhos trajes dos nossos defuntos. Ora, nessa noite
aí, avistei uma mancha branca, anormal, no alto do túmulo. Saí e me aproximei dele: era
uma touca que pertenceu a minha mãe e que eu tinha eu mesmo enterrado ali dois dias
antes. Eu a afundei com o pé e passei adiante... No dia seguinte, na mesma hora, a touca
voltou ainda à superfície. Voltei para a afundar... E seguiu assim, durante três dias... Eu fui
ver um padre e expliquei a ele que ela não queria descer, que ela subia sempre de volta.
Soube por ele então que minha mãe tinha falecido sem receber a comunhão e me entregou
um pedaço de pão bento. Já em casa, seguindo os conselhos do padre, esperei a noite,
peguei a touca, enrolei o pão dentro dela e a enterrei com ele, no monte. Desde então ela lá
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ficou, não aparecendo nunca mais. Ora, coisa estranha, eu lembrei então que foi nesse
mesmo monte que, criança, tentando voar, como muitos outros nessa idade, eu caí virando e
fiz esse corte profundo aqui: olhem a marca!... Então ó confusão, eu rolei no chão, os pés
pra frente, presa de um imenso cansaço, ó escuridão total!...
F – Que catástrofe...
C – Então, batendo nos vidros, os Antigos viram as trupes, saindo dos bosques, e todas as
fendas do zodíaco se abriram!... Fim do lanche de pássaros. Nossa-Senhora dos Climas dê-
nos dias melhores!...
D – Sem muita esperança de nos encontrarmos vivos, pois os tempos correm, os projetos
afundam... Ele mergulhou nosso projeto!
A – Provisoriamente!... Faço esse brinde ao desgarrado, aos dias sem aurora! Noite
provisória, passe sobre nós! Secante vã, sepulte nossas cabeças de pouco!...
Boucot – Irmãos, está tarde, uma volta triunfal dos Boucot é improvável, vamos descansar
um pouco...
Ele distribui vestidos pretos. Os empregados os vestem e adormecem... Noite.
Voz da Senhora Boca (ao longe) – “Venham, venham, almas cativas!”
Segunda atração: do fundo do teatro chega, toda branca, pendurada em pernas de pau, a
Senhora Boca, disfarçada de Cartaz. O empregado A, sonâmbulo vítima da aparição, se
levanta:
A – Céus, essa voz, esse fantasma em minhas cortinas... Rosa em cartaz, vai embora!
Forquilha, como ela está maltrapilha: lambe esse painel laqueado, plantado no meu
ganhador! Pára: põe o bumbum desse pássaro de cordas na mira! Volta pra fora, falsa
presença! Salve Miss Zabôô! Sofia Paladium! Wanda Monpolka! Rosa Fumetto! Candy
Capitol! Prima Symphony! Bonita Super! Diana Westminster! Vicky Toboggan!... Salve,
habitantes da pista!
Senhora Boca – Salve, lençol sombrio!
Canto do Cartaz, no ritmo do passo vacilante das pernas de pau:
Salve a todos! Salve a vocês todos, seus invejosos! Senhores vejam a minha roda e a
minha boca no topo!
Rosa com a aba achatada de meus painéis, escancara o teu coração sob os anéis por
mim plantados, no verso de seus lençóis que assombra assaz, mordaz, minha face sombria e
pálida.
Vocês, lâminas, hastes de toda altura, pedestres errantes fora dos rebentos, guardem
seus cálices e tomem cuidado com a vara de meu escorrimento!
Bebo, caros corações... Pálidos secantes, abram seus corações à aba!
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Senhora Boca – Come tanto quanto te agradar esse belo corpo de olhar. Se está com fome
eis a minha pele a ti oferecida em pintura. Vai! Já estou sentindo dentro, teu dente de
alfinete, no deserto.
A – A senhora não é lógica!
Senhora Boca – Sou sim! Belos olhos cacheados, procure aqui nem rim nem risco (abro o
coração apertado, paro ali com doçura) mas a cabeça guardiã de suas frontes.
Cheia, aqui em cima, num branco alto, espalho meu poente. Crianças belas, vejam a
pose que assumo no planante. Senhores, venham! Eu lhes darei alguma coisa. Comprem
isso aqui... ou aquilo ali. Nesse pacote, tem pra mais de um punhado. Tome, compre sim,
isso aqui. Tem alguma coisa dentro.
Ela se imobilizou. Ela carrega um pacote numa mão e está com a outra aberta. A a encara.
Boucot aparece:
Boucot – Quarenta-e-sete-e-cinqüenta.
A – Quem? O que houve?
Boucot – Vamos, vamos! Ele vai comprar ou o quê?
A – Minuto: estou abrindo o bico.
Enquanto A continua encarando o Cartaz, o empregado C, novo sonâmbulo, se levanta:
C – Doutor, a Dama de outrora que me raspou a cabeça me mostra seu nu no cartaz. O que
devo fazer?
Voz do Doutor – Compre alguma coisa dela.
Durante a fala que segue, C atravessa lentamente o palco, passa na frente do Cartaz,
deposita dinheiro na mão direita estendida e pega o pacote que lhe estende a mão
esquerda:
C – Senhora Boca, rainha dos tornos, você está se mostrando sem teus casacos de pele e
toda crua no cartaz...
Quando eu a vejo, esqueço os pêlos que perdi... Nem sei mais aliás quem tirou eles
de mim... Foi a natureza, acho, ela é moderna e não quer mais todo esse matagal, essa
cabeleira e essa tosa onde a poeira se aloja.
Me sinto melhor desde que meu crânio está liso: o vento passa por cima sem
arranhar ninguém e desliza... Ele atravessa você, sem te fazer cair, aqui embaixo.
Aliás que importância, já que minha vida já passou toda agora...? Exit!
Ele desaparece. O outro empregado continua ao pé do cartaz:
Senhora Boca – Sem embalagem, você não irá longe.
A – Não Senhora, pra acabar não estou com fome.
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Senhora Boca (tentadora) – “Durante muito tempo eu tirava o meu corpo da água do banho
de espuma...”
A (louco de desejo) – Alma de minha lâmina, S.O.S, onde está você?
Senhora Boca - “Espuma, lis, lótus...” Ventríloquo!
A – A mim, alças, pensamentos! (Ele dança.)
Senhora Boca – Esquilo louco na gaiola de seu tronco. Chega, roca!
A – Senhora, se enlouqueci, é devido a si!
Senhora Boca – Ó o galã se insurge! Como estou tocada...
A – Senhora de meus arroubos, estou no olho da rua, abra-me o cofre!
Senhora Boca – Estaria falando, Senhor, de minha crina de baixo?
A – Exatamente.
Senhora Boca – Senhor, não estou aqui para isso, aconselho simplesmente que faça uma
compra: veja esse artigo industrial. (Ela agita o pacote.) Venha, meu coração, pelo prazer,
pegue esse pedaço de rei.
A – Eu a quero sem detalhe!
Senhora Boca – Abra os olhos, veja o meu tamanho colossal: sou alta demais para um
homem tão baixo. Leve isso, menor que eu, por envio delegado. Ele é de meu corpo o
pedaço melhor eu te garanto.
A – O que tem dentro?
Senhora Boca – Surpresa, surpresa...
A – Levo!
Boucot – O quê?
A – Isso que se vê. Esse pedaço de quê... Em espiral!
Boucot – Quarenta-e-nove-e-cinqüenta!
A – Não, não, aqui, grátis! (Ele late.) Exigimos! Belo objeto, vogue no meu lábio...! Ande,
ande, venda ele pra mim nos detalhes!
Boucot (tirando o pacote) – Tome! (Ele olha dentro da mão estendida do empregado:)
Céus, que desgraça! você não tem muita sorte, você não tem dinheiro bastante.
A – Eu quero que venha pra mim: me dê um trocado!
Senhora Boca – Dance pra mim!
Boucot – Vamos, vamos, dance para a Senhora...
O empregado dá alguns passos de valsa esportiva. Depois da dança, Boucot lhe remete três
grãos. O empregado os devolve a Boucot que lhe dá em troca um pacote menor que o do
Cartaz.
A – Não, não, aqui, grátis! (Ele late.)
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Boucot – Impossível!
A – Então me dê dois desses se preciso de dois para estar no fim.
Boucot – Se você quiser o dobro, tem que dançar em dobro... (O empregado dança...) Mais
um pouco!
Ele dança ainda. Cada vez mais rápido.
Senhora Boca – Cuidado, você vai morrer!
Fim da dança.
A – Ai.
Boucot – O quê?
A – Claque! Cuidado com a vida por ali! (Ele toca no seu coração rindo.) É o métier.
(Boucot lhe dá os seus três grãos.) Obrigada Senhora.
Senhora Boca – Aproxime-se... Que sorte, você ganhou o topo dos seus sonhos!...
Setecentos-e-sessenta-e-quatro francos. (Ela troca o pacote contra o punhado de grãos.)
Toma, lobo doméstico! (Céus! No olhar que me lançou, vejo tripas e bofes!) Obrigada.
O empregado com seu pacote fica um momento imóvel, encarando a Senhora Boca que
desce das pernas de pau e vai embora.
Boucot – Pois bem, pronto... Suma, nobre urubu. O ato está concluído. Cada um leva a
metade.
A – Sim, sim, eu paguei, é meu. (Ele sai com seu pacote. Vai e vem:) Você, eu te peguei.
Mas não tenho mais minhas moedas. Tudo bem. Normal. Nada contra nada. Para obter isso,
é preciso mesmo deixar aquilo. Muitas vezes é preciso perder isso para ter aquilo. Onde
isso? Se você o quiser, você tem que dar aquilo ou isso. Àquele que diria “Eu quero isso e
aquilo”, eu digo: “Lamento, isso não é possível. Olha pra mim: entre aquilo e isso, eu
escolhi isso. No meu lugar alguém teria feito a mesma coisa.” Muitas vezes o tempo se
gasta nisso por aquilo e de fato gastei numa compra mas numa compra a gente se gasta, é
obrigatório... Eu almejava aquilo ou isso? Nem sei mais. Devia ser esse aqui, já que me
devolveram ele. Será que eu queria comprar isso ou vender aquilo? Isso ou aquilo? (Para o
objeto:) Você, eu te tive por bom preço. O.K. Vamos voltar pra casa. Esse babaca desse
objeto não pensa em nada, claro. De fato, ele não está com a palavra, esse babaca. Eu o
amo. Me diga, a gente vai resistir? Sou um babaca mesmo. Talvez não tão babaca, se eu
valho o preço desse objeto tão lindo? Não? (Ele cai. O dia voltou. Fim da travessia. Ele se
aproxima dos empregados adormecidos e os acorda:) Ei... ei... velhos companheiros! É a
hora do pássaro do horizonte! Ei... ei!
F – Enfim.
B – Enfim, não temos mais moeda: vamos ter que recolocar a coleira.
80
X
Luz sobre o Ateliê, reconstruído ao contrário. Tudo está parado. O empregado A está no
topo de um mastro, bem no alto do teatro. Ele faz umas vocalises, imóvel. Todos olham
para ele.
Senhora Boca – Quem içou ele?
C – Silêncio, deixem esse pescoço falar!
Senhora Boca – Com os gritos estridentes que ele está soltando...
Doutor – Bandeira, queira descer, queira juntar os seus pés!
Novas vocalises de A.
Boucot (surgindo) – Lupas ensacadas dos dois lábios, que bordoada é essa? Urso, que olho
comprido é esse, sempre lamber? O que você quer, caro culaburador?
Jato de confetes. Ele desaparece.
Senhora Boca - Com os gritos estridentes que ele está soltando...
C – Silêncio, deixem esse pescoço falar! (Ao empregado pendurado lá em cima no mastro.)
Ei, você! Da onde vem esse buraco no seu coração?
A – O vermelho da bandeira me furou... E você, de onde vem esse teu buraco?... Silêncio,
pássaros!... Ouçam de onde eu peguei essa rosa!
A polícia atirava, os camaradas davam prova de uma coragem esplêndida. A gente
hasteou a bandeira. Eu ia morrer. Uma salva crepitou, iluminando a praça. Eu afastei as
cortinas: o outro estava subindo ali nu, puxando sempre os seus hinos; depois com um salto
içou ao estandarte o seu grito de pavor e caiu! Umas damas inclinadas em cima dos
arcabouços gritavam “dez centavos pelas belas maneiras!” Atiraram de novo, a sombra nos
sobrevoou. Eu quis me jogar nos braços de Louise... um traço preto nos separou.
Quando voltei a mim, eu vi Lavran, com a pança aberta, estendido no prado; Vrenlá,
sombra rival, jazendo a seu lado. O ouro se derramava, Lavran morreu sem grito. Mas o
outro me pegou: ele se levantou, virou o seu quadril nas minhas costas e me pregou sua
palheta batente de caniço! Cantando ele liberou cantado meu quadril mordaz de rosa! Do
buraco que ele fez eu não sei nada, nem do estouro. A pedra veio ricochetear e me matou.
Pelo buraco, a alma escapa, em pegadas brancas, pelas lausas do telhado. O primeiro golpe
me reergueu. O vermelho do segundo me fez perder o sentido, a cabeça no branco dos
lençóis. Os olhos viravam, veio o terceiro que me acertou: ele desamarrou o nó, içado no
estandarte do lençol, e eu caí ensangüentada, branca ainda sob as asas... Um corpo gemendo
me galopou. Eu vi uma última vez a praça vazia, as glórias, o vermelho desfalecido da
bandeira...
82
Senhora Boca – Se debruce, que a gente ouça você! Mas sobretudo, cuidado para não
engatar suas pernas, para não se atrapalhar, para não se enganar de quê, para não entravar o
engate, cuidado! Ó o isso, está indo pro telhado!
Boucot aparece. Para os empregados:
Boucot – Senhoras, Senhores, deixem ele, tenho plenamente confiança no bom senso
popular de vocês!... Tomem nota, entretanto, desse curativo que ele traz, aqui. (Ele joga um
chapéu pra ele. A o coloca: o chapéu desce até os seus olhos.)
Doutor – Visto.
Senhora Boca – Estamos ouvindo. Lance os seus quê, que a gente possa explicar!
Os Boucot e o Doutor desaparecem no meio dos empregados. A, lá no alto, se dirige aos
seus camaradas agrupados embaixo do mastro. Ele arranca o seu chapéu e o lança.
Arenga:
A – Assa! Oisse! Usse! Oieça! Assaz! Iça! Içu! A vida está mal organizada. Vamos exigir o
fim das tramóias imediatamente. Stop. Alto lá! Ascoltem o que eu depeno lhes dizer, minas
de bocas. Nós, trupes do Boco, decidimos nos assemblar a fim de desmontar a sua tona para
que vocês desapareçam e que nós aspareçamos; vamos decidir aqui, desde imediatamente,
de nos aspra até a última bluta contra qualquer rabo e de fazer cessar de imediato toda
condição de louco e de lhes desembolotar o rabo!... Todos os peões reunidos são o bastante
para sair da gaiola de bocó!... De fato, sem dúvida vai ser preciso não hesitar em quebrar
alguns plegos e em se ligar contra as popas, de fato vai ser preciso quebrar alguns plegos.
Será o pescoço da Senhora ou o do Senhor que eu vou cortar primeiro, confesso que não sei
ainda... Não sei ainda pois ele embaralha sem parar o alfabeto de meus buracos me
escorregando incessantemente e por debaixo, de cima para de fora e de dentro para debaixo!
Chega. Felizmente isso não pode mais durar, pois ele não percebeu que eu no meu foro eu o
reconheci muito bem e vi se fazer muitas vezes por aquele que queria se fazer passar por
meus traseiros, então, todos os buracos abertos e até se eu cair três vezes dentro, sei ainda
muito bem que os encerra! Vamos, vamos, Senhoras e Senhores, vocês deixam de ignorar
quem está em cima e quem está embaixo?... É o bocó que segura o alfabeto, isso é muito
evidente... Vai se levantar tudo ao mesmo tempo, meu foro me diz e estou bem com pressa
desse momento. Eis o que me diz o meu foro: que você esteja dentro ou fora, chega de jogar
com a minha bola agora, ela já não está rolando mais mesmo.
Voz da Senhora Boca – O que não está rolando? É você, é...
A – Dubo! De abuso! De pé! De inícios! De pé! Eleitos! Abaixo os lotes! Está na hora!
Chega de subreptício! Todas as direções! É absolutamente necessário revirar os onde que se
fazem passar sem razão por uns por e os entroncar junto, soar os novos, atribuir os diantes e
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os fortificar! Vigiar os erros, circundar os melhores, prever os alguns e verificar todos os de,
acabar com os preços mercantes, encorajar as grandes correntes! Algo esquecido? Sim.
Encorajemos o isso a perseverar, despachemos os faltosos e elejamos a nós todos,
inteirinhos, em seu lugar, para a melhor partilha e frutificação do onde e do quê!
Voz da Senhora Boca – É bem vasto... muito, muito vasto...
A – A quem sorri do meu enguiço de vocábulos, eu digo: ainda sei o bastante para dizer
onde está o Norte e onde o Sul!... O novo mundo não vai demorar a chegar. Daqui já vejo
muitas das chamas!
Voz da Senhora Boca – Belo voltofágico bem lá no alto, estamos ouvindo: continue seus
contos...
A – Chega de contar estoco, exigimos o todo! Por que miniatura e onde? As patas se
multiplicam para quem? Para onde vai o resto, quem puxa os fins e aí quem é que vai lá?
Nós não. Fim, já rolamos demais sob esses somente de já que!... Os agora seguram a barra,
eis do qual que chega com dois bons cada um em volta de si! Que importa ficou atrás,
pegou o lugar de na frente, Deus! eis que em volta se levanta e dá a volta nisso! Não se
deixe levar por esse enfim de mina que o engana todo!... Ah Senhores, eu juro, tudo isso
não está muito longe! Nós ainda podemos salvar a vida de com, se colocarmos um freio
perto de certo cada... Vocês entenderam quem estou nomeando?
Os Boucot e o Doutor aparecem, grosseiramente travestidos de empregados. Eles vão ficar
com essa fantasia até o final da cena.
Boucot – Sim, sim. Você está nomeando qualquer coisa.
Doutor – Sendo bem camarada, a gente é obrigado a te dizer que você está citando qualquer
um.
Senhora Boca – Filho, se cubra, você está com a cabeça lascada.
Boucot – Louco pendurado no mastro, muito cuidado! Não é por aí a saída. Resposta!
Doutor – Quietos. Vocês morderam o canto da sua toalha. Sabido. Doidão se põe no alto e
dá uma de surdo.
Senhora Boca – Querido chega volta, volta querido chega desce, fica embaixo da tua, chega
volta! (Aos outros:) Ó estou muito envergonhada, fiz tudo o que eu pude para trazê-lo de
volta ao lar, não estou entendendo mais, ele era tão bem educado, eu sempre trouxe a sua
boca nos trinques. Eu lhes peço, queiram desculpá-lo por subir no quê, a gente fica se
perguntando por quê.
Doutor – Não é absolutamente por sua culpa, Senhora... Atenção, primeiro argumento:
ejecte ou será ferido!
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A – Grade de telha! Estou dizendo a vocês que é o bode, o pai Boca, que bloqueia os lábios;
então tem que cessar, quebrar os lambos!
Boucot – Lábio-lambo!... Veja caro badalo, você só tem o sentido de onde o vento o leva,
os seus sons só têm a rima ali onde o vento os empurra; deixa a sua cima, e volte pra fila
retomar seus assentos, reencontrar os seus debaixo.
A – Mas estou lhe dizendo que há provas de base que os debaixo estão nas toalhas onde
perdi o fio!...
Doutor – Chega. Pilha de palavras! Nos devolva o sentido, imediatamente!
A – Eu o soava para vocês há apenas dez segundos. Onde ele está? Por favor, olhem pra
mim, na minha boca!
Boucot – Aproxime que a gente o explore!... Céus! você não tem um dedo d’alma e é
somente uma casca, sem muito homem dentro. Bem que eu achava... Senhores, não
procurem o homem nesse maluco sem dedo, não tem sequer uma polegada ali dentro. Um
homem anda com a alma no dedo, ele anda de braço com um buraco, não dentro... Não é
como você, não é assim que anda um homem... Porque você não tem uma polegada de
coração.
A – Tudo bem, mas por dois segundos eu estava a ponto de tê-los ainda todos eles na manga
há cinco minutos. Vocês entendem, eu pensei seguir o outro pela uma que me persegue,
mas ela escapava sempre na frente e eu corria sempre atrás dos meus rastros!
Senhora Boca – Belo furador de espirais, você devia estar trancado. Ele pode se enforcar!
Doutor – Pior pra ele! Caras assim tão pouco realistas, a sociedade pode muito bem
prescindir deles... Anda Bernard, volta, não dá uma de babaca, não deixa os amigos, anda
volta, vamos fazer uma partida de boliche!...
A – Boliche oblíquo não corre nenhum risco, fica no seu nicho!
Senhora Boca – Estão ouvindo o pássaro desbundado? Ele multiplica as conchas e deixa
sensivelmente os rastros: vigiem ele!
A – Máscara! À nassa, à nassa!
Doutor – O que ele está enfiando? Se continuar assim, vão colocá-lo no ar.
A – Eixo de bode, se pendure embaixo! Pra mim, está fora de cogitação! “O mundo se
levanta, o mundo se levanta!”
Boucot e Doutor – Anda, pára de babaquice, fica na tua natureza Bob... Vai às damas, não
te mete com os bovinos, faz como nós: deseja um ovinho. Quem quer mais que um ovo,
nunca nada obterá... Vira a página, deixa o bovino, pega o ovinho... Bernard Bernard, sou
teu cordão, não trepa mais alto que o teu rabo, traz teus desejos pra casca!
A – Soluçar, embolsa aqui teu jato a trincar!
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seu grito de pavor: demora Ninive, sem reprimenda, quantas pratas são? A firmeza perdida,
restou o fio, a sombra amante e rara, a parte do leão. Como se chama a fêmea do leopardo?”
Boucot, a Senhora Boca e o Doutor aplaudem.
Senhora Boca – Outra! (A aplaude) Recomece do zero!
A – Com quantas palavras?
Senhora Boca – Nove e cinco.
A – “Senhoras Senhores, saído de fumaça...”
Doutor – Atenção, todo gato que sairá de si será defenestrado!
A – “Senhoras Senhores, nem bem saído de fumaça...”
Boucot – Stop. Mostra o teu bico... e segura firme nessa espada de nada!
Doutor – Que pé!
Senhora Boca – Use a sua língua estirada e agitada!
A – “Saído de fumaça...”
Senhora Boca – Minuto, por favor: nós gostaríamos de ver o seu corpo. Onde ele está?
A – Aqui.
Senhora Boca – Mostre mais e levante pra nós imediatamente alguma coisa sua!
A – Pare! Já não sei mais muito bem em que face sopro o meu louco!
Senhora Boca – Então retome dos inícios! O que quer dizer e em primeiro lugar da onde
você vem, pra onde você quer ir, nos dê exemplos!
A – Aonde? Passo. Vamos ao passo. Mas é preciso não dar nenhum passo em cima de nós.
Preciso nenhum braço. Está indo, está indo. Vai passar.
Boucot – Stop! Atenção, não perca o fio, diga na sua cabeça: “o que é que é essa mosca?”
A – Essa mosca é...
Boucot – E o fio?
A – O fio é...
Boucot – Estamos lhe perguntando o que é que é essa mosca que fia na tua manga.
A – Que mosca?
Boucot – Bravo. E a moral? Arranque uma flor pra você!
A – Stop! Pronto! Está quente, está quente... Eu queria dizer, desde o início, está pronto, eu
queria dizer, está quente, está quente, minha boca queimada, perdida na estrada, vou achar.
Ela está entre isso aqui. Esperem três segundos!
Senhora Boca – Criança de ferro, no fio, procurando jogar seus pregos bem nas faces da
bola. Cuidado: quem sobe aqui de uma polegada, cai de uma braçada!
A – Sinta-se beijada!
Senhora Boca – Ó o sexo! Pisoteie isso imediatamente!
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A – Vocês querem me deixar sim? Vocês estão cortando as minhas asas sob os pés!...
Cuidado: vou começar a morrer.
Senhora Boca – Saia... Saia, saia... Gato maquiado sem razão, você não é do grupo!
A – Se estou dizendo que foi o pai Bucú que me mandou embora, que eu só subi aqui pra
dizer a vocês que só peço pra voltar e ir direto pro pau!
Senhora Boca - Renuncie, ainda é tempo, no pau você não verá nem puic!...
A – Achei!
Boucot – Cuidado com a continuação...
A – Irmãos ratos, vamos nos juntar contra os gatos!
Doutor – Rato você! Eu sou gato, eu também, nas minhas horas...
A – Irmãos gatos, vamos exterminar os ratos!
Boucot – Nós somos todos os mesmos ratos, melhor matar os urubus!
A – Senhoras Senhores, eu estava só avançando uma pena assim, não é nada muito sério!
Senhora Boca – Pára, pára! Senão, senão!...
Boucot – Sereia desça! Deixe a arena e volte pra casa!
A – Outrem mora no meu relógio, se você me tira minha rampa pra onde irei?
Boucot – Reintegre o seu domicílio!
A – Onde ele está? Onde ele está?
Doutor – Aqui, ora essa, nesse lugar.
A – Magnífico! Obrigado! (Descendo do mastro:) Estou no fim das minhas penas. Alguma
besta queria me pôr dentro, você me reergueu no sentido do vento.
Enquanto ele volta pro seu lugar, Boucot, a Senhora Boca e o Doutor tiram seus disfarces
de empregados.
Boucot – O gato já desceu do telhado?... (Mudando de voz para dar a resposta:) Já sim.
A Senhora Boca e o Doutor puxam rapidamente as cortinas.
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