DECCA, Edgar De. O Nascimento Das Fábricas
DECCA, Edgar De. O Nascimento Das Fábricas
DECCA, Edgar De. O Nascimento Das Fábricas
A Industrialização Brasileira
O NASCIMENTO
Francisco Iglésias DAS FÁBRICAS
Londres e Paris no Séc. XIX
Maria Stella Bresciani 8? edição
■' Mercantilismo e Transição
Francisco Falcon
s i A Revolução Industrial
Francisco Iglésias
editora brasiliense
Copyright © b y Edgar Salvadori de Decca, 1982
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.
ISBN: 85-11-02051-9
Primeira edição, 1982
5? edição, 1991
ÍNDICE
Revisão: N ew ton T. L. Sodré e Júlio D. Gaspar
Capa: 123 (antigo 27) A rtistas Gráficos
IMPRESSO N O BRASIL
It ---------------------
INTRODUÇÃO
nalam a dor e o esforço inerentes à condição do sociedade. Assim, a fábrica ao mesmo tempo que
homem, e algumas como ponos e Arbeit têm a mes confirmava a potencialidade criadora do trabalho
ma raiz etmológica que pobreza (penia e Arm ut em anunciava a dimensão ilimitada da produtividade
grego e alemão, respectivamente). humana através da maquinaria.
Essa transformação moderna do significado da Para esse pensamento movido pela crença do
própria palavra trabalho, em sua nova positividade, poder criador do trabalho organizado, a presença da
representou também o momento em que, a partir do máquina definiu de uma vez por todas a fábrica
século XVI, o próprio trabalho ascendeu da “mais como o lugar da superação das barreiras da própria
humilde e desprezada posição ao nível mais elevado e condição humana. “A invenção da máquina a vapor
à mais valorizada das atividades humanas, quando e da máquina para trabalhar o algodão” , escrevia
Locke descobriu que o trabalho era a fonte de toda a Engels em 1844, “ deu lugar como é sobejamente
propriedade. Seguiu seu curso quando Adam Smith conhecido a uma Revolução Industrial, que trans
afirmou que o trabalho era a fonte de toda a riqueza, formou toda a sociedade civil.” Essa imagem crista
e alcançou seu ponto culminante no “ sistema de lizada já no pensamento dos homens do século XIX
trabalho” de Marx onde o trabalho passou a ser a apagou todo o percurso sinuoso da organização do
fonte de toda a produtividade e expressão da própria trabalho da época Moderna, ao reduzir definitiva
humanidade do homem” (Hannah Arendt, La Con- mente a fábrica a um acontecimento tecnológico.
dición Humana, p. 139). Contudo, os ecos das resistências dos homens
A dimensão crucial dessa glorificação do tra pobres a se submeterem aos rígidos padrões do tra
balho encontrou suporte definitivo no surgimento da balho organizado são audíveis desde o século XVII e
fábrica mecanizada, que se tornou a expressão su assinalam a presença da fábrica a partir de um mar
prema dessa utopia realizada, alimentando, inclu co distinto daquele definido pelos pensadores do sé
sive, as novas ilusões de que a partir dela não há culo XIX.
limites para a produtividade humana. Aqueles primeiros homens, que se viram cons
Essa descoberta delirante da fábrica como lu trangidos pela pregação moral do tempo útil e do
gar, por excelência, no qual o trabalho pode se apre trabalho edificante, sentiram em todos os momentos
sentar em toda a sua positividade não só alimentou de sua vida cotidiana o poder destrutivo desse novo
as projeções dos apologistas da sociedade burguesa, princípio normativo da sociedade. Sentiram na pró
como também a de seus próprios críticos, na medida pria pele a transformação radical do conceito de
em que ela foi entendida como o momento de uma trabalho, uma vez que essa nova positividade exigiu
liberação sem precedentes das forças produtivas da do homem pobre a sua submissão completa ao man-
10 Edgar Salvadori de Decca
do do patrão.
Introjetar um relógio moral no coração de cada
trabalhador foi a primeira vitória da sociedade bur
guesa, e a fábrica apareceu desde logo como uma
realidade estarrecedora onde esse tempo útil encon
trou o seu ambiente natural, sem que qualquer modi
ficação tecnológica tivesse sido necessária. Foi através
da porta da fábrica que o homem pobre, a partir do
século XVIII, foi introduzido ao mundo burguês.
A reflexão que agora propomos visa ultrapassar NUNCA TEMOS
a imagem cristalizada que o pensamento do século TEMPO PARA SONHAR
XIX produziu sobre a fábrica, reduzindo-a a um
acontecimento tecnológico.
Nosso intuito é desfazer o manto da memória da
“Todas as pessoas que se encontram traba
sociedade burguesa e reencontrar a fábrica em todos lhando nos teares mecânicos estão ali de modo
os lugares e momentos onde esteve presente uma forçado, porque não podem existir de nenhum
intenção de organizar e disciplinar o trabalho através outro modo; via de regra são pessoas cujas
de uma sujeição completa da figura do próprio tra fam ílias foram destruídas e seus interesses ar
balhador. Por isso, os leitores não devem se sur ruinados... têm a tendência de ir como pequ e
nas colônias colonizar esses moinhos. ”
preender quando no decorrer do texto encontrarem
no engenho de açúcar da colônia o esboço da fábrica Inspetor governamental inglês (1834)
que iria produzir o futuro operário europeu.
*
12 Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 13
retira dos homens a própria dimensão do pensar, bricar balas, por exemplo, não significa imediata
como algo além do já dado. mente que não tenhamos condições de impor téc
Dentro daquilo que nos interessa, determinadas nicas de produção eficazes para a concorrência no
respostas já são bastante conhecidas. Por exemplo, mercado. Um outro mecanismo antecede essa ilusão.
quando falamos da produção de conhecimentos téc O que nos é vetado, antes de mais nada, é justa
nicos que não conseguem se impor socialmente, bus mente a possibilidade de pensarmos o ato mesmo de
camos a resposta, via de regra, no nível do próprio poder fabricar balas. Alguma coisa já se hipostàsiou,
mercado. Assim, uma tecnologia é ineficaz porque ganhou aparência de “condições objetivas”: o fa
não consegue romper a barreira da concorrência im bricar balas já encontrou socialmente um determi
posta por uma ordem implacável. Nesse sentido, a nado estatuto e, a não ser para alguns espíritos recal
conclusão é imediata. Não existem outras tecnologias citrantes que insistem em fazer festas, balas devem
além daquelas conhecidas, porque o próprio mer ser reconhecidas como produto da eficiência de in
cado se responsabiliza em eliminar as “ menos efi dústrias altamente conceituadas, segundo seus pa
cazes” . Contudo, deveríamos ser menos ingênuos em drões de qualidade.
questões que colocam explicitamente em jogo as re Somos induzidos, então, a pensar dentro de
lações de dominação social. Em outras palavras, as uma lógica definida, que não é ditada por leis de
relações de mercado vão bem mais além do que as mercado, mas sim regida por mecanismos sutis de
puras determinações econômicas. O estabelecimento controle social. Portanto, vejamos bem o que é esse
do mercado é também o estabelecimento de um dado pensar, pois há nisso tudo um modo de pensar, pró
registro do real, no qual os homens pensam e agem prio da esfera desse controle. Até agora nos referimos
conforme determinadas regras do jogo. Assim, o à possibilidade de emergência de saberes que inter
mercado não só impõe aos homens determinadas rompiam uma lógica de identificação social. Isto é,
tecnologias “eficazes” , como também impede que um não-saber, porque se situava na esfera daquilo
lhes seja possível pensar outras tecnologias. que não poderia ser pensado. Pensar, portanto, é_
Daí falarmos em impotência social. Não é isto pensar segundo regras já definidas, e o seu contra-”
um mecanismo regulado por leis econômicas do mer ponto, no nível da sociedade, é justamente a impos
cado, mas uma esfera de domínio social na qual os sibilidade de pensar além das regras.
homens" se vêem impossibilitados de pensar além de Portanto, ao falarmos em mercado ou em divi
registros que se impõem à vista de todos como uníà são social do trabalho não estamos nos referindo à
oraem natural. questão dé maior ou menor produtividade do tra
Portanto, quando nos sentimos incapazes de fa- balho, mas sim à apropriação mesma dos saberes.
14 Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 15
Deve, assim, existir um mecanismo social no qual reconhecimento supõem a imposição de normas e
aquele que detém um saber se tom a imprescindível valores próprios de determinados setores da socie
para a imposição do próprio processo de trabalho, iá dade e que vão aparecer dotados de universalidade.
que aos outros homens está vetada a possibilidade, Por exemplo, quando pensamos o desenvolvimento
desse saber. da ordem burguesa no seio da sociedade feudal, logo
Èvidentemente, a solução para este impasse não imaginamos a instituição do mercado como esfera
é reivindicar um direito para todos produzirem ba universalizante e universalizadora de uma nova or
las, já que isto seria uma saída edulcorada para o dem que se impõe.
problema. Contudo, até nisso há uma dose de refle Essa imposição de normas e valores por um
xão. Como restituir aos homens saberes que lhes determinado setor da sociedade pode ser percebida
foram retirados e que hoje servem para reger uma decisivamente quando tomamos a noção de tempo
ordem de domínio político, técnico, cultural etc., que útil, produzida pela ampliação da esfera do mercado
lhes é estranha e antagônica? e que não só disciplina a classe burguesa como tam
Mas não estamos aqui para oferecer respostas bém procura se introjetar no âmbito da gente traba
acabadas. Preocupemo-nos mais em levantar algu- lhadora. Essa introjeção de um relógio moral no
mas questões que permitam pensar a problemática corpo de cada homem demarca decisivamente os dis
da tecnologia para além dos estreitos limites impos positivos criados por uma nova classe em ascensão.
tos pela lógica da eficácia, da produtividade e da Autodisciplina, controle de si mesmo, crítica à ocio
neutralidade. Pensamos, isto sim, na apreensão do sidade, são exigências imperiosas para o comerciante
problema como uma estratégia de controle da socie que se envolve na esfera do mercado. “ Utilize cada
dade imposta por uma determinada classe no mo um dos minutos como a coisa mais preciosa. E em
mento mesmo do seu engendramento e afirmação no pregue-os todos no seu dever.” Pregações desse tipo
mundo. ou aquelas em que o tempo se relaciona com o di
Assim, conceber uma classe de capitalistas e nheiro nos mostram todo o artefato moral de uma
uma sociedade capaz de se engendrar e ser engen classe de mercadores que se impõe a si mesma os cri
drada por ela supõe, de início, registros determi térios de sua identificação:
nados pelos quais se tome possível a criação de um
mundo. Isto é, a sociedade, para se tornar reconhe “Recordai quão recompensadora é a Redenção
cida por ela mesma, passa pelo imperativo de insti do Tempo... no mercado, ou no comerciar; na
tuição de mecanismos capazes de identificá-la. lavoura ou em qualquer ocupação remunera
Contudo, tais mecanismos que permitem esse dora; só nos resta dizer que o homem se torna
Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 17
16
rico quando faz bom uso do seu tempo” (E. P. dominantes de toda a sociedade através de um persis
tente e minucioso trabalho de introjeção de novas
Thompson, Tiempo, Disciplina de Trabajo y
normas e valores, isto é, pela introjeção definitiva da
Capitalismo, p. 280).
imagem do tempo como moeda no mercado de tra
balho.
ou então;
“Posto que nosso tempo está reduzido a um
“Observai as horas de intercâmbio, atendei aos Padrão, e os Metais preciosos do dia acunhados
mercados; há épocas especiais que serão favo em horas, os industriosos sabem empregar cada
ráveis para despachar vossos negócios com faci parcela de tempo em verdadeiro benefício de
lidade e fartura;... as épocas de fazer ou receber suas diferentes profissões; e aquele que é pró
bens não duram sempre” (E. P. Thompson, digo com suas horas é, na realidade, um perdu
p. 281). lário. Eu me recordo de uma mulher notável,
que era muito sensível ao valor intrínseco do
Contudo, essa autodisciplina de uma classe de tempo. Seu marido fazia sapatos e era um exce
mercadores que afirma o seu lugar no mundo através lente artesão, mas não se preocupava com a pas
da instituição do mercado aos poucos transforma-se sagem dos minutos. Em vão ela inculcava-lhe
em um artefato moral que procura prescrever uma que Tempo é dinheiro. Ele tinha muita destreza
nova disciplina para a gente trabalhadora. Ness^ (habilidade) para compreendê-la, e isto foi sua
medida, o destinatário do discurso moralizante do ruína. Quando estava na taverna com seus ocio
tempo útil deixa de ser exclusivamente o mercador e. sos companheiros, se alguém observava que o re
a crítica à ociosidade procura atingir todas as esferas lógio havia tocado (dado) onze horas, ele dizia, o
da sociedade. que é isso para nós, companheiros? Se ela lhe
mandava um aviso por seu filho de que já pas
“Preguiça, silenciosa assassina, não mais sava das doze horas do dia, ele respondia, diz-
tenha minha mente aprisionada lhe que fique tranqüila, que as horas não podem
Não me deixes nenhuma hora mais ser mais. Se havia dado uma hora, ele ainda
contigo, sono traidor” (E. P. Thompson, p. 282). respondia, peça-lhe que se console, que não po
de ser menos” (E. P. Thompson, p. 283).
Essa mudança de destinatário do discurso mora
lizante do tempo útil nos dá a medida de como as Entretanto, a instituição do mercado também
idéias de uma classe dominante tornaram-se as idéias
18 Edgar Salvadori O Nascimento das Fábricas 19
supõe desde o princípio a divisão social do trabalho, torna-se também o lugar (imaginário e real) onde
e portanto a afirmação dq classe burguesa. O mer se opera efetivamente a divisão do social. Em outras
cado transforma-se, assim, em uma entidade uni palavras, a produção histórica de uma classe de pro
versal através da qual os homens se reconhecem a si prietários dos meios de produção, ao mesmo tempo
próprios e se opõem a qualquer dispositivo imagi que uma outra classe se constitui como assalariada e
nário que coloque a ordefn social fora do âmbito despossuída, decorre de um confronto que, no final,
desse novo universo. faz aparecer para os sujeitos sociais a imagem de que
Mas tenhamos cuidado com essas reflexões. Se existe a imperiosidade da figura do capitalista, como
esse mercado designa o registro do real, pelo qual a elemento indispensável para o próprio processo de
sociedade reconhece a si mesma, isto é, torna-se a trabalho.
dimensão normativa a partir da qual os homens pen Vários autores estudaram esse processo de en-
sam e agem, não devemos perder de vista que essa gendramento das relações sociais da ordem burgue
universalização que ocorre no interior do social re sa. Contudo, nem todos pensaram esse processo,
presenta, fundamentalmente, o modo pelo qual as justamente, na dimensão de uma luta.
idéias de uma classe dominante se tornam idéias Stephen Marglin, preocupado com a análise da
dominantes para toda a sociedade. Por isso podemos constituição do sistema de fábrica, como sistema,
falar de um imaginário do mundo burguês e, desde por excelência, da divisão e do parcelamento do tra
já, descartar a idéia de que, por exemplo, os setores balho, isto é, como locus privilegiado do controle
dominados desta mesma sociedade estejam subme sociál no âmbito da sociedade burguesa, procura
tidos a uma enorme mentira ou a um engano uni pensar, em seu livro Para que Servem os Patrões,
versal, isto porque a presença histórica das classes quais os caminhos desenvolvidos por um confronto
nessa sociedade se dá justamente a partir da univer que produz as classes sociais.
salização desse imaginário burguês, e, nessa medida, Seu ponto de partida é, justamente, o movi
a produção mesma das classes está intimamente li mento de constituição do mercado no interior da
gada ao modo pelo qual essa sociedade impõe os ordem feudal e a progressiva constituição da figura
registros do imaginário para o seu próprio reconhe do negociante como elemento indispensável para o
cimento. funcionamento do próprio processo de produção ar-
Portanto, há uma luta ali mesmo onde as classes tesanal. Em outras palavras, Marglin está preocu
se produzem. Isto quer dizer que, se pensarmos na pado em acompanhar o desenvolvimento clássico do
gestação da sociedade burguesa, a ordem do mer “putting-out system” , primeira configuração da pro
cado, dimensão na qual os homens pensam e agem, dução capitalista. Os passos de Marglin são extre-
20 Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 21
se resume no controle tecnológico do processo pro Ora, transferir esse controle da produção que
dutivo. No “putting-out system” , o capitalista tem o estava nas mãos dos trabalhadores para as mãos do
acesso ao mercado e veta aos trabalhadores diretos capitalista não significou, absolutamente, segundo
esse contato, mas, ainda assim, esses últimos ditam o Marglin, maior eficácia tecnológica nem tampouco
processo de produção. Essa divisão social torna im uma maior produtividade. O que se verificou, isto f
periosa a figura do capitalista no interior do processo sim, foi uma maior hierarquização e disciplina no
produtivo, e o trabalhador, distante do mercado, trabalho e a supressão de um controle determinado:
tanto para a obtenção de matéria-prima como ma o controle técnico do processo de trabalho e da pro
téria-prima como para a comercialização de seus dutividade ditado pelos próprios trabalhadores. En
produtos, detém, única e exclusivamente, o controle fatizamos, mais uma vez, que essa transferência,
do processo de trabalho. Claro está, nesse caso, que a ainda conforme esse autor, não significou progresso
razão técnica, estando sob o domínio de quem parti técnico (coisa que muitos afirmam), resumido nos
cipa do processo de trabalho, ainda não representa termos de um desenvolvimento tecnológico que teria
um instrumento através do qual se possa exercer o posto por terra o “putting-out system” ante o sistema
controle social. de fábrica. Muito pelo contrário, Marglin nos mostra
Entretanto, seguindo as pistas do autor, vale a que nenhuma tecnologia muito avançada determinou
pena indagar por que esses trabalhadores foram reu a reunião dos trabalhadores no sistema de fábrica, e
nidos a partir de um determinado momento num aponta na direção de como esse sistema possibilitou a
mesmo local de trabalho, constituindo aquilo que disciplina e a hierarquia na produção, já que o “put
ficou conhecido como sistema de fábrica. ting-out system” , baseando-se na dispersão dos tra
Mais uma vez, Marglin sugere algo muito im balhadores domésticos, criava algo muito problemá
portante. Para ele, a reunião dos trabalhadores na , tico para o capitalista, isto é, o desvio de parte da
fábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicas produção, a falsificação dos produtos, a utilização de
de produção. Pelo contrário, o que estava em jogo matérias-primas de qualidade inferior àquelas forne;
era justamente um alargamento do controle e do ridas pelo capitalista etc. etc.; enfim, vários tipos de
poder por parte do capitalista sobre o conjunto de “sabotagem” .
trabalhadores que ainda detinham os conhecimentos Contudo, quando Marglin fala de sabotagem,
técnicos e impunham a dinâmica do processo produ refere-se à perspectiva dos capitalistas, já que do
tivo. E isso é muito importante, uma vez que do lado ponto de vista dos trabalhadores domésticos do “put
dos trabalhadores estava a resposta ao problema da ting-out system” ela representava uma resistência j ,
eficácia técnica e da produtividade. perda do próprio controle do processo de trabalho.
24 Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 25
E, nesse sentido, o sistema de fábrica repre no nosso marco organizador desses desejos empre
sentou, justamente, a perda desse controle pelos tra sariais. Por isso mesmo, embora pudessem ser en
balhadores domésticos. Na fábrica, a hierarquia, a contradas máquinas nas primeiras fábricas, muito
disciplina, a vigilância e outras formas de controle raramente essas máquinas chegaram a se constituir
tornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalha na razão do surgimento das fábricas. Enfim, o sur
dores acabaram por se submeter a um regime de gimento do sistema de fábrica parece ter sido ditado
trabalho ditado pelas normas dos mestres e contra por uma necessidade muito mais organizativa do que
mestres, o que representou, em última instância, o técnica, e essa nova organização teve como resultado,
domínio do capitalista sobre o processo de trabalho. para o trabalhador, toda uma nova ordem de disci
Um outro autor, David Dickson, em seu livro plina durante todo o transcorrer do processo de tra
Tecnologia Alternativa, resume muito bem as razões balho.
que tornaram imperativa a constituição do sistema Contudo, esse autor não pára aí. Mostra-nos,
de fábrica. Segundo ele, seria possível enumerar pelo inclusive, como a partir da constituição do sistema de
menos quatro razões importantes para o estabele fábrica vai se impondo, progressivamente, um deter
cimento do regime de fábrica. Em primeiro lugar, os minado padrão tecnológico, isto é, um padrão que,
comerciantes precisavam controlar e comercializar acima de tudo, garantia ordejp, disciplina e controle
toda a produção dos artesãos, com o intuito de redu de produção por parte do capitalista. Assim, existem
zir ao mínimo as práticas de desvio dessa produção. dois pontos fundamentais na constituição do sistema
Além disso, era do interesse desses comerciantes a de fábrica: em primeiro lugar, ele não decorreu de
maximização da produção através do aumento do um grande avanço tecnológico; em segundo, as tec
número de horas dê trabalho e do aumento da velo nologias empregadas constituíram-se em elementos
cidade e do ritmo de trabalho. Um terceiro ponto de controle e de hierarquia na produção.
muito importante era o controle da inovação tecno Retomemos David Dickson nos seus argumentos
lógica para que ela só pudesse ser aplicada no sentido^ sobre o surgimento das fáb rica têxteis durante o
de acumulação capitalista; e, por último, a fábrica período de Revolução Industrial. Segundo ele, “ a
criava uma organização da produção que tornava organização da indústria têxtil baseada no estabele
imprescindível a figura do empresário capitalista. cimento de fábricas não foi, como deixam supor
É indiscutível que só a concentração do traba alguns historiadores, um desenvolvimento direto a
lhador num mesmo local de trabalho poderia pro partir de uma base técirica mais eficaz, pelo contrá
porcionar todas essas vantagens para o empresário rio, muitas das máquinas só foram desenvolvidas e
capitalista. Nesse sentido, a fábrica transformou-se introduzidas depois que os tecelões já haviam sido
26 Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 27
senvolvido um sistema de fichas, além da criação de las que tornaram inevitável a concentração das ativi
uma ampla e detalhada série de instruções relativas à dades produtivas sob a forma de fábricas. Dickson
disciplina do trabalhador dentro da fábrica, estabe afirma, por exemplo, que “um tear holandês que
lecendo inclusive a categoria especial dos capatazes podia tecer de modo simultâneo vinte e quatro tiras
responsáveis pela vigilância do processo de trabalho. estreitas, e uma complexa estrutura manual para a
Assim como os tecelões, os ceramistas não esta elaboração do ponto para o tecido de malha para a
vam acostumados com esse novo tipo de disciplina. confecção de calças e meias, ambos instrumentos
Segundo um historiador inglês, “os ceramistas ha perfeitamente adaptados à indústria doméstica, fo
viam gozado de uma independência durante muito ram abandonados rapidamente dando lugar a má
tempo para aceitar amavelmente as regras Wedg- quinas mais amplas, cuja superioridade mecânica
wòod procurava implantar, a pontualidade, a pre eliminou paulatinamente as formas tradicionais de
sença constante, as horas prefixadas, as escrupulosas produção manual” (Dickson, p. 60). E acrescenta,
regras de cuidado e de limpeza, a diminuição do “os exemplos mais importantes destas inovações me
desperdício, a proibição de bebidas alcoólicas”. Mas cânicas foram a estrutura hidráulica de Arkwright
apesar de todas as resistências desse trabalhador an (1768), desenhada a fim de utilizar a energia hidráu
te o regime fabril, Wedgwood, aferrado em seus lica para a fiação de algodão, o tear mecânico de
princípios, afirmava, após 10 anos de existência de Cartwright (1784), que podia funcionar por meio de
sua fábrica, que havia transformado esses “traba rodas hidráulicas, ou de máquinas a vapor, e as
lhadores lentos e bêbados e inúteis” em um “magní máquinas intermitentes de fiar, de Crompton, desen
fico conjunto de mãos”. volvidas em 1779 e capazes de produzir fios fortes e
Nas próprias palavras de Wedgwood, a fábrica finos apropriados para numerosos tipos de elabo
se materializa como uma nova organização do tra rações têxteis. A comparativamente ampla produção
balho, sem a necessidade de ocorrência de qualquer dessas máquinas representou uma rápida superação
transformação profunda do aparato tecnológico. En da capacidade das pequenas correntes de água que
tretanto, ainda podemos avançar alguns esclareci faziam funcionar os moinhos. Em 1875 se realizou o
mentos a respeito do uso das máquinas durante a último passo lógico ao se adaptar a máquina de
Revolução Industrial. Tanto Dickson como Marglin vapor de W att às funções de proporcionar energia
nos fazem supor que ás máquinas criadas e usadas para aquelas outras máquinas. Cada um desses de
durante os anos cruciais da revolução industrial não senvolvimentos foi crucial no que se refere ao esta
foram apenas e tão-somente aquelas que substituí- belecimento do sistema fabril, e contribuiu para a
ram o trabalho manual, mas, principalmente, aque efetivação de uma disciplinarização geral na força de
30 Edgar Salvadori de Decct O Nascimento das Fábricas 31
trabalho. De acordo com Ashton, “foi somente sob o as motivações que levaram os trabalhadores a des
impacto de poderosas forças, atrativas ou repulsivas, truir o maquinário das instalações fabris. Se, de um
que o trabalhador ou artesão inglês se transformou lado, esse movimento de resistência visava investir
em mão-de-obra fabril” (Dickson, p. 60). Por isso contra as novas relações hierárquicas e autoritárias
mesmo a Revolução Industrial foi vitoriosa, uma vez introduzidas no interior do processo de trabalho fa
que representou uma mudança crucial não apenas no bril, e nessa medida a destruição das máquinas fun
aparato técnico produtivo, mas, principalmente, nas cionava como mecanismo de pressão contra a nova
estratégias de administração das empresas fabris. direção organizativa das empresas, de outro lado,
Em outras palavras, o êxito da revolução estava inti inúmeras atividades de destruição carregaram impli
mamente ligado à afirmação de novas relações de citamente uma profunda hostilidade contra as novas
poder hierárquicas e autoritárias. máquinas e contra o novo marco organizador da
Alguns historiadores ingleses afirmam mesmo produção que essa tecnologia impunha. Nesse caso,
que o êxito alcançado por alguns empresários capi “ as máquinas não só supunham uma ameaça com
talistas, em meio a tantos fracassos que rodearam as respeito aos postos de trabalho, mas contra todo um
primeiras tentativas de instalação das fábricas, de modo de vida que compreendia a liberdade, a digni
veu-se muito mais à qualidade de direção dessas dade e o sentido de parentesco do artesão” (Dickson,
empresas do que a uma substancial mudança de p. 61). Os destruidores de máquinas da região do
qualidade do trabalho ou das máquinas. Lancashire nos anos de 1778 a 1780 ilustram, inclu
Nesse sentido, a despeito de a historiografia tra sive, a maneira criteriosa.de como essa luta era de
dicional sobre a revolução industrial negligenciar as sencadeada não contra a mecanização em geral, mas
dimensões do fracasso das primeiras experiências fa em direção a determinadas máquinas em particular.
bris, ainda assim podemos afirmar que a resistência “Estes destruidores de máquinas distinguiram entre
do trabalhador ante os avanços do sistema de fábrica aqueles tornos de fiar que tinham vinte e quatro ou
foi decisiva durante esse período. Afinal, nem todos menos fusos, apropriados para a produção domés
os homens se renderam diante das forças irresistíveis tica, e que não destruíam, e entre aqueles outros
do novo mundo fabril, e a experiência do movimento mais amplos, apropriados exclusivamente para a sua
dos quebradores de máquina demonstra uma inequí utilização em fábricas, que destruíam” (Dickson,
voca capacidade dos trabalhadores para desencadear p. 62).
uma luta aberta contra o sistema de fábrica. Essa Apesar de toda a resistência e das vitórias al
luta ganhou contornos dramáticos mas, acima de cançadas pelos quebradores de máquinas já por volta
tudo, muito difusos, se procurarmos levar em conta de 1820, “os avanços tecnológicos adicionais muda-
32 Edgar Salvadori de Deccc ( j Nascimento das Fábricas 33
baixos salários” (Dickson, p. 63). dições de se livrar dos fiandeiros indiferentes ou in
E. P. Thompson, em The Making o f the English quietos, e de cõnverter-se de novo no dono de sua
Working-class, relata-nos a dificuldade dos patrões fábrica, o que não é uma pequena vantagem” , mes
em conseguir uma paz industrial até a década de mo que isso tenha acarretado tanto um aumento
1830, em virtude da crescente organização do traba considerável nos custos de produção como uma am
lhador fabril, e indica inclusive que a única possi pla organização espacial do processo de trabalho. E o
bilidade encontrada pela indústria algodoeira para mesmo autor iria, ainda, concluir, “ que este invento
garantir uma força de trabalho estável e um plantei confirma a grande doutrina já exposta, isto é, quan
de trabalhadores hábeis e experimentados foi a ado do o capital consegue que a ciência se coloque a seu
ção de novas técnicas de organização de trabalho que serviço, a mão-de-obra refratária aprende a ser sem
superaram as antigas e brutais concepções de disci pre dócil” .
plina fabril. Nessa medida, a tecnologia transfor- O próprio Marx em O Capital, embora saudasse
mava-se tanto num elemento tático cotidiano das o advento do universo fabril como o limiar de uma
lutas entre o capital e o trabalho como fazia parte da nova era, não deixa de ficar profundamente apreen
estratégia global de ampliação do controle social por sivo com relação à introdução da máquina automá
parte desse mesmo capital, introjetando no próprio tica no processo de tabalho. Escrevia ele, “ a má
corpo do trabalhador as marcas da nova disciplina. quina possui, como capital e através da instrumen-
Em 1835, Andrew Ure, um apologista do sistema de talidade dos capitalistas, tantQ consciência como de
fábrica, descrevia em sua obra The Philosophy o f sejo, por conseguinte está animada pelo desejo de
Manufactures a maneira pela qual os patrões enfren reduzir ao mínimo a resistência oferecida pelas natu
taram as pressões dos sindicatos militantes, contro rais mas elásticas limitações do material humano por
lando os trabalhadores não através da redução de meio do qual funciona” . Embora Marx coloque essa
salários, mas sim pela introdução de inovações tecno resistência no nível do próprio corpo do trabalhador,
lógicas nas fábricas. As inovações introduzidas na sabemos muito bem que essas resistências tiveram
indústria têxtil durante a década de 1830 atingiram registros bastante diversos, e diziam respeito muito
profundamente a organização operária através da mais a uma negação deliberada desse trabalhador a
diminuição do número total das máquinas de fiar, introjetar uma nova disciplina, a regularidade crono
reduzindo drasticamente a autoridade do trabalha metrada, e o automatismo do processo de trabalho.
dor especializado adulto no interior do processo de Nessa medida, seria um paradoxo pensarmos a intro- '
produção. Como afirmou Ure, “ ao dobrar o tam a dução de máquinas no universo fabril capazes de
nho de sua máquina de fiar, o proprietário teve con- aumentar o rendimento da produção sem se conse-
36 Edgar Salvadori de Decca (, Nascimento das Fábricas 37
guir ao mesmo tempo um controle intermitente do âmbito da técnica produtiva e, logo em seguida,
trabalhador, com o intuito de assegurar a utilização transformasse todo o registro dos saberes técnicos.
dessas mesmas máquinas com o máximo de capaci Isto significou, por fim, a criação de um imaginário
dade. Por isso, em 1832, já vaticinava o inglês James social voltado para o reconhecimento de uma esfera
Philip Kay, “ a máquina animal — frágil no melhor determinada de produção de saberes técnicos total-
dos casos, sujeita a mil fontes de sofrimento — se mente subtraída e alheia ao controle dos trabalha
encontra firmemente encadeada à máquina de ferro, dores fabris.
que não conhece nem o sofrimento nem o cansaço A fábrica produziu, ao mesmo tempo em que
(Asa Briggs, The Age o f Improvement, p. 61). proliferou, um conjunto complexo de instituições ca-
Desde as origens do sistema de fábrica, esti pazesde garantir a sua permanência e, o que é mais
veram em jogo, portanto, relações de poder que, importante, capazes de garantir a continuidade da
passo a passo, determinaram o próprio limite, da acumulação capitalista, representada agora pelo aim
produção de saberes técnicos.. Em outras palavras, a plo domínio, controle e apropriação de saberes téc
luta transcorrida desde a instalação do “putting-out nicos,. Aqui, o momento em que, para o social, a
system” até a consolidação do sistema de fábrica não fábrica, ou a indústria mecanizada, transforma-se,
foi outra coisa a não ser a instituição do próprio como num passe de mágica, na única medida capaz
social e do domínio desse social como apropriação de de aferir os avanços da sociedade. Assim, esse con
saberes. Se, do lado do “putting-out system” , o dis junto de instituições que se desdobrou desde a fá
positivo do mercado fazia com que o saber técnico, brica até os organismos científicos, pouco a pouco,
detido pelos trabalhadores domésticos, representasse foi transformando a produção de saberes técnicos
um momento de sua autonomia quanto ao domínio numa esfera especializada de controle social, e, pro
do processo de trabalho, na fábrica, a divisão social, gressivamente, as questões de eficácia e produtivi
impondo uma disciplina férrea aos trabalhadores, dade tornaram-se regras do jogo da acumulação ca
retirava-lhes saberes — dentre eles o técnico — e pitalista. Isto é, eficácia e produtividade foram redu
transferia-os para o mando do capitalista. A partir zidas aos problemas de melhor e mais racional utili
desse momento, o empresário pode desenvolver toda zação da tecnologia pelos trabalhadores fabris.
uma estratégia para que o processo tecnológico não Nesse sentido, enfatizamos que um determinado
fugisse mais de seu controle. Por isso mesmo, na saber técnico se tornou possível a partir da consti-
ordem social, um conjunto de instituições iria apa tuição do sistema de fábrica, cujo fundamento esteve
recer para que, principalmente, pudesse ser garan- ligado ao maior controle e disciplina do processo de
tida a permanência e o controle do capitalista no trabalho. Por isso mesmo, o sistema de fábrica, como
38 Edgar Salvadori de Decc <>Nascimento das Fábricas 39
riamente, uma relação de exterioridade entre o cen para o fato de que esse sistema, como universo ima
tro do sistema e sua periferia, a tal ponto que, so ginário e real, e como instituição das próprias rela
mente depois que determinadas formas de produção ções sociais no momento de consolidação do mercado
capitalistas amadureceram no centro, se tornou pos capitalista, não pode se reduzir ao seu aspecto mate
sível a sua transferência para a periferia. Assim, o rial, isto é, à fábrica como uma realidade tangível.
sistema de fábrica, forma de organização superior do Em outras palavras, os vários momentos aqui discu
processo de produção capitalista, precisou antes tidos até agora atestam, apenas, uma forma parti
(cronologicamente) encontrar o seu ambiente natural cular assumida pelo sistema de fábrica no desenvol
no centro do sistema e somente depois pôde se esten vimento histórico do capitalismo.
der para o resto do mundo. O que gostaríamos de chamar a atenção é que
Por isso mesmo, na análise da historiografia, essa forma que se desenvolveu a partir do “ putting-
nada mais corriqueiro do que determinar a gênese da out system” não foi a única pela qual se tornou
indústria e do capitalismo, no Brasil, no final do possível aparecer o sistema de fábrica, como produ
século XIX, no momento em que o país se reposi- ção e engendramento das relações sociais e da divisão
cionou na órbita do mercado mundial, incorporando do trabalho no capitalismo.
o processo de trabalho típico do capitalismo hege No momento histórico do desenvolvimento do
mônico e central. Entretanto, isto nos induz a en “putting-out system” na Europa, a partir do século
ganos irreparáveis, posto que a existência de relações XVI, nas áreas coloniais a concentração de trabalha
capitalistas deixa de ser percebida em determinadas dores destituídos de meios de produção e expropria
formas de organização da produção e do trabalho dos de qualquer saber técnico apareceu como a orga
que se produzem nas tais zonas periféricas do sis nização do trabalho mais eficiente para se levar a
tema. Nessa medida, nada mais corriqueiro do que cabo os interesses do lucro capitalista, e ali também a
encontrarmos análises nas quais o “capitalismo b ra figura do empresário se tomou imprescindível para o
sileiro” aparece dotado de qualificativos do tipo atra processo de produção. Disciplina, ordem, hierar
sado, tardio, dependente... quia, foram elementos sempre presentes durante to
Gostaríamos, aqui, de desviar dessas análises, do o período em que se desenvolveu a produção
porque, sem levar em consideração problemas já dis colonial, e o capitalista, na busca de maiores lucros,
cutidos por nós, elas tomam o sistema de fábrica se transformou em elemento central para a organi
como invariante, isto é, como puro desdobramento zação do trabalho. Não apenas na esfera da circu
daquilo que é conhecido como o modelo clássico lação, onde se produzia a acumulação primitiva do
manchesteriano. Ora, chamamos a atenção até agora capital, a figura do empresário era indispensável; ali
Edgar Salvadori de Decc ) Nascimento das Fábricas
balho no Período Colonial, p. 31). setor açucareiro” (Maria Sylvia de C. Franco, pp.
26-27).
Se a autora em seu texto nos dá elementos para O que importa enfatizar, agora, é que, seja a
entendermos a formação do sistema de fábrica nas forma assumida na Europa pelo sistema de fábrica,
áreas coloniais, fica ainda sem resposta a questão da seja esta que apareceu com antecedência nas áreas
utilização do trabalho escravo nesse novo universo de coloniais, essas duas expressões da organização so
organização de produção. Na historiografia em geral cial do trabalho não se desenvolveram, segundo a_
a tônica explicativa do escravo recai num argumento opinião dos autores aqui citados, a partir de uma_
de oposições. A viabilidade do escravo é explicada exigência tecnológica. Em outras palavras, tanto na
pela total impossibilidade da utilização do homem Inglaterra como nas colônias, a concentração de tra
livre expropriado europeu, dada a abundância de balhadores despossuídos num mesmo local de tra
terras disponíveis na colônia. Lembremos entretanto, balho sob o mando do capitalista, que não só orga
como afirma Maria Sylvia, “que o entrosamento en nizava a produção como também a disciplinava, se
tre produção colonial e comércio capitalista, que le deveu a imperativos bastante diversos e muito pouco
vou à organização das grandes propriedades fundiár se pode adiantar no que diz respeito às imposições
rias, ocorreu numa época em que jamais poderiam, lecnológicas. A fábrica, na Europa, e o engenho de
ter sido utilizados homens livres, pela muito simples açúcar, nas colônias, não foram resultados imediatos
e muito forte razão de que o sujeito expropriado dos de um desenvolvimento crucial das bases técnicas de
meios de produção e obrigado a vender sua força de produção, mas, ao contrário, representaram formas
trabalho não existia como categoria social, capaz de peculiares de organização social do trabalho para a
preencher as necessidades de mão-de-obra reque- obtenção, sob garantia absoluta, do lucro capitalista,
fídas pela produção coloniaL Esta não prescindia'' c ambas se configuraram pela concentração em um
como já se viu, de homens expropriados em grande mesmo lugar de trabalho, e em larga escala, de tra
número, e isto já no século XV. O lento processo que balhadores despossuídos de meios de produção e de
através de alguns séculos, mediante contínuas pres saber técnico.
sões econômicas, socializou a classe operária, apenas Outra autora, Alice P. Canabrava, comentando
se esboçava no ponto da história ocidental em que se o trabalho de Antonil, Cultura e Opulência do Bra
deu a expansão portuguesa. Então, só a forma vio sil, em inúmeros momentos registra de forma perti
lentamente aberta e juridicamente garantida de apro nente questões relacionadas à disciplina e à divisão
priação da força de trabalho alheia, que é a escra do trabalho, mencionando, inclusive, alguma coisa
vidão, poderia prover o contingente requerido pelo parecida com um código de trabalho (As Ordenações
48 Edgar Salvadori de Decct <>Nascimento das Fábricas 49
Filipinas). Dá destaque particular, ainda, às técnicas aos borbotões de cada uma pelas duas bocas ou
produtivas que eram capazes de organizar o processo ventas, por onde respiram o incêndio; os etío
de produção, além de sugerir a importância e o papel pes, ou ciclopes banhados em suor tão negros
imprescindível do mando capitalista para organiza como robustos que subministram a grossa e
ção do trabalho nos engenhos de açúcar. dura matéria ao fogo, e os forçados com que o
Essas questões, dentre outras — e o livro de revolvem e atiçam; as caldeiras em lagos fer
Antonil é uma fonte documental inestimável —, po ventes, com os canhões sempre batidos e reba
dem oferecer uma idéia bem mais clara daquilo que tidos, já vomitando espumas, exalando nuvens
procuramos definir como o sistema de fábrica, desde de vapores, mais de calor que de fumo, e tor
que se entenda aí, contudo, a maneira pela qual o nando-se a chever para outra vez os exalar; o
engenho de açúcar nas colônias representou, inequi ruído das rodas, das cadeias, da gente toda de
vocamente, uma das expressões mais contundentes cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e
dessa peculiar organização do trabalho do mundo gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento
capitalista, sem que a mesma possa ser confundida de tréguas, nem de descanso; quem vir enfim
com a clássica forma manchesteriana. toda a máquina e aparato confuso e estrondoso
Ao nos aproximarmos dos textos de viajantes e daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda
de habitantes de colônia que descreveram em porme que tenha visto Ethnas e Vesúvios, que é uma
nores o universo do engenho, o nosso espanto pode semelhança do inferno.”
ser grande, já que inadvertidamente podemos con
fundi-los com qualquer descrição das fábricas do Essa “ machina e fabrica incrível” nas palavras
período de Revolução Industrial. Todo o universo de Padre Vieira impressionava a todos aqueles que o
infernal das “satânicas fábricas escuras” descritas conheciam e era capaz de concentrar sob um ritmo
por Engels, em 1844, em sua obra A situação da do trabalho rigoroso uma grande quantidade de tra
classe trabalhadora na Inglaterra, pode encontrar balhadores. Inúmeros autores já descreveram as eta
correspondência num extraordinário sermão do Pa pas do processo de trabalho no engenho de açúcar, e
dre Vieira, datado de 1633, que anuncia assusta mais recentemente Antonio de Barros Castro em Es
doramente a sua visão do engenho de açúcar: cravos e Senhores nos Engenhos do Brasil (tese de
doutorado, mimeo.) procurou enumerar as suas prin
“E verdadeiramente quem via na escuridade da cipais características:
noite aquelas fornalhas tremendas perpetua
mente ardentes; as labaredas que estão saindo “ — a jornada de trabalho é tão extensa quanto
Edgar Salvadori de D ecc\ \ >Nascimento das Fábricas
fisicamente possível;
— a elaboração do açúcar-é^um processo múl
tiplo e conplexo, mas a divisão do trabalho
encontra-se suficientemente avançada, para
que a tarefa de cada um seja simples e repeti
tiva. Contrastando com o trabalho artesanal,
o serviço do escravo não tem ‘poros’ — mo
mentos de folga em que o trabalho é inter
rompido para mudanças de local ou de fer
ramenta;
— a matéria-prima percorre diferentes estágios
e os escravos em equipes; I
— revezadamente ocupam os seus postos de o^
trabalho. Os escravos num certo sentido não .. xá
tre os escravos estabelecia um certo tipo de escala de avaliado nos seguintes relatos de Antonil, reorde
valorização capaz de aparecer como mecanismo efi nados por Alice Canabrava:
caz para garantir a disciplina no engenho.
Como afirma Antonio B. Castro, “os escravos “No topo da hierarquia do trabalho qualificado
adquiridos pelos senhores — 65 a 70% dos cativos se situava o mestre de açúcar: pelos seus conhe
teriam por destino os engenhos — serão introduzidos cimentos sobre o preparo do produto fazia jus à
na engrenagem do engenho através das tarefas mais mais alta remuneração, 120J000 por safra, o
simples. Seu aprendizado que o levará de ‘boçal’ a que expressa o julgamento social de sua habili
‘ladino’, é também um processo de valorização, co tação específica. De tal modo se impunha a sua
mo atesta Antonil, para quem um escravo adaptado capacidade técnica que os salários vigentes para
e treinado ‘vale por quatro boçais’. Somente entre os os outros postos de chefia não traduzem uma
‘ladinos’ serão escolhidos os caldeireiros, tacheiros, hierarquia gradual de remuneração, caindo seus
carapinas, calafates, barqueiros e marinheiros” (An níveis imediatamente a 50% para o feitor-mor
tonio B. Castro, p. 17). e o carapina da moenda, e mais baixo ainda
A tarefa disciplinadora, como se sabe, cabia aos para os outros. Assim acontecia porque, no es
feitores e mestres de açúcar, e só a eles, na medida tágio de desenvolvimento da técnica de produ
em que era de sua inteira responsabilidade extrair o ção dq açúcar, o mestre, sendo um empírico,
maior rendimento possível do trabalho do escravo: deveria possuir altas qualidades de inteligência,
“Deveria se descobrir seus limites de resistência, es observação, dedicação e experiência, esta adap
tabelecer normas para o reforço de alimentação nas tada às circunstâncias locais, como acentua An-
tarefas que o exigiam, e bem assim, no trato dos dreoni. Cabia ao feitor uma área ampla de ati
enfermos” (Antonio B. Castro, p. 17). vidade, qual seja, ‘governar a gente e reparti-la
A hierarquia do trabalho começava aí, entre os a seu tempo, como é bem, para o serviço’. Seria
mestres de açúcar e feitores, isto é, começava e ter o que poderíamos chamar, em linguagem de
minava no trabalho qualificado, remunerado e téc hoje, o administrador do pessoal. Sua autori
nico do engenho. Aí, a especialização das tarefas dade é claramente definida, devendo ele con
além de se colocar como imprescindível era condição formar-se estritamente com os padrões prescri
para se garantir a disciplina no trabalho, como tam tos de ação, ou seja, contentar-se em ser ‘os bra
bém, do ponto de vista estritamente técnico, fazer ços de que se vale o senhor de engenho’, e não
frente ao crescimento da produção e do número de arvorar-se em cabeça. O cotejo do texto de An-
trabalhadores nela envolvidos. Isto pode ser bem dreoni com o regimento dado por João Fernan-
56 Edgar Salvadori de Decc ) Nascimento das Fábricas 57
des Vieira em 1663 mostra com nitidez um de pois trabalhava por tarefa, isto é, por quantidade
senvolvimento no sentido da especialização das estipulada. Se ultrapassasse esse limite, pelo desen
chefias, ou pelo menos, de que modo se resolvia volvimento de uma nova técnica, esse novo limite
o problema em engenhos menores. Em Cultura passava a ser incorporado a seu trabalho, sem que
e Opulência, as funções do feitor-mor se pren houvesse algum tipo de compensação. No mínimo,
dem de modo especial à distribuição dos escra ficava disponível para a execução de outras tarefas
vos pelas tarefas do engenho e às que mantêm não qúalificadas no engenho de açúcar. Pelo lado do
com o senhor, como preposto de seus interesses, senhor de engenho, a solução para os necessários
donde derivavam, naturalmente, encargos im aumentos da produção de açúcar era encontrada de
plícitos quanto à conservação do patrimônio. No forma explicita, já que se tratava de trabalhadores
regimento do século XVII, encontram-se afetas escravos não-qualificados. Isto é, antes que houvesse
ao feitor-mor tarefas mais amplas, que incluíam o bloqueio ao tráfico negreiro, a partir de meados
supervisão técnica, atribuídas ao purgador e ao do século XIX, imposto pela Inglaterra, os aumentos
caxeiro, como chefes de serviço, no texto de An- de produção se davam pelo aumento das horas dedi
dreoni. A especialização e a multiplicidade de cadas ao trabalho, quase sempre até o limite da
chefias mostra o aperfeiçoamento das tarefas de exaustão física, bem como pela introdução de mais
supervisão, imposto pelo desenvolvimento quan escravos no processo de trabalho. Quanto a isso, a
titativo da produção e o maior número de tra autora Alice Canabrava não poderia ser mais explí
balhadores nela engajados” (Alice P. Canabra- cita — para ela, também, a questão central passava
va, pp. 62-63). pelas técnicas de minar as resistências ao trabalho:
Nesse sentido, diante de uma estrutura de par “Não se tratava apenas da elaboração de uma
celamento do trabalho extremamente rígida e de es técnica de controle da rentabilidade do trabalho
cassa mobilidade social, já que ao escravo estava escravo, adaptada à sua mentalidade rudimen
destinada a realização de trabalho não-qualificado, tar, mas visava também vencer sua resistência
e diante de sua utilização de forma extensiva (era passiva com respeito às tarefas impostas” (Alice
propriedade do senhor), não se colocava de maneira P. Canabrava, p. 58).
decisiva para o processo de trabalho no engenho a
necessidade de se desenvolver técnicas capazes de Essas resistências (o assassínio do senhor, as
elevar a produtividade do trabalho escravo. Pelo lado fugas para os mocambos ou matos, o suicídio, a
do escravo, nenhuma destreza poderia lhe ser útil, embriaguez, o aborto, as práticas fetichistas, bèm
58 Edgar Salvadori de Decc O Nascimento das Fábricas 59
como as enfermidades de natureza psíquica — des ções fosse bastante eficaz para proceder à hierar
consolo e melancolia — etc.), contrárias ao processo quização (espiritual) de papéis do trabalho es
de ajustamento ao trabalho servil no engenho, econ- cravo nos engenhos de açúcar, ele foi insuficiente
travam, como afirma esta autora, mecanismos de para fazer frente às resistências, já que a existência
compensação e amparo aos desagravos sofridos no de um código disciplinar não deixa margem à dú
interior da economia do engenho na libertação espi vida.
ritual. Libertação esta que, utilizando-se de todo um Quanto às técnicas, como resposta a mais ade
conjunto de instituições (sacralizadas ou não), criava quada possível para os objetivos da organização capi
ao mesmo tempo a hierarquização de papéis que a talista do trabalho nos engenhos, estas aparecem
execução do trabalho não-qualificado não poderia descritas de maneira minuciosa no decorrer de toda a
proporcionar no processo produtivo. O seguinte re obra de Antonil. Seria ociosa uma descrição porme
lato, nesse particular, é bastante esclarecedor: norizada das técnicas e dos maquinários utilizados
para a produção de açúcar nos engenhos. Gosta
“Entre os aspectos positivos, como ações volun ríamos, apenas, de chamar a atenção para o fato de
tárias do escravo, estava a sua integração nas que essas técnicas não eram incompatíveis com a
irmandades. Corresponderia, segundo René Ri organização do trabalho no sistema de fábrica repre
beiro, ao seu desejo natural de encontrar um sentado pelo engenho, e aí talvez fique patente a
• lugar na estrutura social, independente dos la maneira pela qual a tecnologia atendeu de forma
ços de escravidão, mas sob o amparo da Igreja, exemplar aos imperativos da organização disciplinar
e assegurar para si, ao morrer, uma sepultura e hierárquica do trabalho.
condigna. Do mesmo modo, os reinados do É preciso, porém, que se esclareça nesse ponto
Congo mencionados por Andreoni, entrosados que se o trabalho servil, aqui identificado como tra
com as irmandades dos pretos, com seu sistema balho não-qualificado, rotineiro, era pouco propenso
próprio de papéis hierarquizados, conferiam a absorver novas técnicas capazes de elevar a sua
status com a organização de suas cortes e reis. A produtividade, não se pode concluir que entre este e
alusão do jesuíta aos ‘feitiços’ e às ‘artes diabó o progresso técnico houvesse uma terrível incompa
licas’ mostra a continuidade da prática dos ritos tibilidade, baseada exclusivamente na incapacidade
fetichistas das suas religiões em suas pátrias de intelectual do escravo para acompanhar os avanços
origem” (Alice P. Canabrava, pp. 59-60). tecnológicos requeridos pelo sistema de fábrica. Con
vém lembrar, recorrendo mais uma vez a Maria Syl-
Contudo, ainda que esse conjunto de institui- via de C. Franco, que os vínculos entre Metrópole e
60 Edgar Salvadori de Decci () Nascimento das Fábricas
das técnicas. Quanto à metalurgia, esta encontrava qualquer forma, é bom frisar que os avanços tecno
aí pouca utilização, e limitava-se a algumas peças e lógicos obedeciam, ao lado dos imperativos da disci
superfícies submetidas a grande desgaste. Assim, a plina e da hierarquia no trabalho, às necessidades da
roda de dentes, que era conhecida há muito tempo, acumulação de capital, e, por isso mesmo, os aper
e o engatamento das rodas de dentes, em uso há feiçoamentos adotados nas Antilhas, por exemplo,
vários séculos, eram de madeira, o que teria valo não deveriam encontrar, necessariamente, grande
rizado sobremaneira o trabalho de carpintaria, mais correspondência nos engenhos de açúcar no Brasil:
conhecido como carapina da moenda.
“Nas duas grandes áreas de produção açuca
“Na casa da moenda, participamos de um mun reira da América, nas Antilhas e no Brasil, a
do da técnica, ainda em seu esplendor, mas moenda de três tambores conserva os mesmos
fadado a desaparecer com o desenvolvimento da elementos fundamentais. Todavia, nas ilhas,
metalurgia que começava a avançar no século desde o fim do século XVII, a redução dos três
XVII. Por esse motivo, o carpinteiro, ou melhor, tambores a um tipo único com as mesmas di
o carapina da moenda, indispensável durante mensões, indica a linha dos aperfeiçoamentos
toda a safra, deveria ser um assalariado alta não adotados no Brasil, mais condizentes com
mente qualificado. Aliás, sua remuneração ele o menor custo de feitura e facilidade de subs
vada, de $500 por dia de trabalho (cerca de tituição do que, propriamente, de melhoria de
60S000 por safra), equivalente à de um feitor- rendimento na produção” (Alice P. Canabrava,
mor de engenho, é expressiva da importância p. 70).
que as condições sociais da época lhe confe
riam” (Alice P. Canabrava, p. 68). Contudo, das técnicas empregadas nos enge
nhos, talvez a mais importante tenha sido a utili
Outro momento importante no desenvolvimento zação da água como força motriz, não só porque
das técnicas nos engenhos de açúcar foi a introdução exigia aparelhamento de custo elevado e restrito aos
no Brasil, entre 1608 a 1612, da moenda de três investimentos de maior vulto e com maiores possi
tambores, pelos espanhóis vindos do Peru. Ao que bilidades de acumular capital, como também pelas
parece, pela sua maior eficiência, esta moenda aca alterações no processo de trabalho proporcionadas
bou substituindo as moendas de dois tambores hori pela sua introdução — maior necessidade de mão-de-
zontais, descritas como sendo as típicas do sistema, e obra especializada, maiores dimensões do engenho
difundidas na América a partir das Antilhas. De para uma utilização mais racional da energia produ-
66 Edgar Salvadori de Decc
Ou ainda,
“A nova indústria fe z o poder crescer a um
grau notável. ”
“No conjunto da organização do trabalho, o de
sempenho do senhor de engenho está exclusi J. L. e Barbara Hammond (1917)
vamente ligado àquelas ações que dão cunho
pessoal às relações com os lavradores e que ten
dem a afirmar o seu prestígio em face deles Agora temos condições de fazer uria pergunta
ou à defesa do patrimônio, o que também ex crucial: por que uma determinada forr í de expres
pressava prestígio e autoridade, pelas articu são do sistema de fábrica — aquela que se deu a
lações com os organismos de cúpula que se fa partir da concentração de trabalhadores despossuí-
ziam necessárias. De qualquer forma, em seu dos e assalariados — se tornou vitoriosa ante a quais
desempenho, o senhor de engenho agia como quer outras?
representante do poder e do prestígio de todo Não há como deixar de reconhecer que a res
o sistema de produção” (Alice P. Canabrava, posta estaria, justamente, no desenvolvimento acele
p. 63). rado das bases técnicas que organizaram o processo
de trabalho. Contudo, mais uma vez, enfatizamos
que tais bases técnicas se tornaram importantes mui
to mais em função das necessidades de disciplina e
controle do trabalho do que pela sua eficácia. Isto é,
*
O Nascimento das Fábricas 69
68 Edgar Salvadori de Deca
<L>
dentro da própria realidade do confronto entre o H
capital e o trabalho, a tecnologia, embora apareça s:
comó índice de aumento de produtividade e como £a
base material da acumulação capitalista, ela res
ponde também aos imperativos de disciplinar, con
trolar hierarquicamente e não permitir ao trabalha
dor o controle do próprio processo de trabalho.
Nesse sentido, o desenvolvimento das bases téc- C
nicas, do ponto de vista do empresário capitalista,
representou uma estratégia no interior de um con *
£
fronto com os trabalhadores livres, despossuídos e_ a
assalariados, que resistiram permanentemente à acei «5; oo
tação da natureza própria do sistema de fábrica. Por
isso mesmo essa estratégia, na qual a tecnologia re o oõ
^
£2
presentou um dos instrumentos mais eficazes de con
trole social, não se reduziu evidentemente aos li
mites da fábrica. O sistema de fábrica, como um 'S.
■w "5
encontrou possibilidades para a sua produção. As reza dessa transformação, já que boa parte da biblio
sim, no interior do próprio mercado capitalista, a grafia acaba reduzindo o problema à discussões do
tecnologia iria aparecer como elemento determinan tipo: formas arcaicas e pré-capitalistas de produção
te, uma vez que, constituído esse mercado, a sua versus produção capitalista. Muito pelo contrário, o
expansão passou a se dar a partir da produção e do que esteve em jogo nessa transformação não foi a
consumo crescente de bens de produção (bens de passagem de uma organização social do trabalho
consumo produtivo). Esse é o momento no qual as pré-capitalista para uma organização capitalista do
próprias categorias e instâncias do capital aparecem trabalho, mas sim o modo pelo qual no interior da
autonomizadas, e a técnica, agora apropriada e de organização social capitalista do trabalho, já no sé
senvolvida pelo capital, passa a determinar de ponta culo XIX, determinadas formas se impuseram sobre
a ponta a lógica do próprio mercado, impondo uma outras — a usina de açúcar superou o engenho,
progressiva e crescente divisão social do trabalho. Nessa medida, vale ressaltar que em plena se
Por isso mesmo, ao falarmos de tecnologia, tor gunda metade do século XIX, o aparecimento tam
na-se difícil isolá-la num ponto em que tornê possível bém da indústria têxtil no Brasil respondeu a exigên
avaliá-la sob as noções de eficácia e produtividade, cias muito precisas de organização social do trabalho
uma vez que, na lógica mesmo do mercado capitalis no mundo capitalista. Ela representou, aqui no Bra
ta, ela cumpre o seu papel determinante naquilo que sil, uma transformação radical na própria estratégia
se refere à acumulação de capital. Assim, o sistema de de organização do trabalho levada a cabo pelo man
fábrica manchesteriano, a nosso ver, tornou-se vito do capitalista, e superou, a partir de suas bases técni
rioso porque nele desenvolveram-se as condições cas, todas as outras formas de organização do traba
para que a tecnologia pudesse se transformar num lho cuja obtenção do lucro estivesse garantida por me
elemento prioritário da acumulação capitalista. No canismos menos eficientes de controle e disciplina.
âmbito desse mesmo mercado capitalista, portanto, O cortejo tecnológico que acompanhou mun
uma determinada expressão do sistema de fábrica, dialmente o setor manufatureiro, no século XIX,
inevitavelmente, acabou se impondo sobre outras excluía do mercado capitalista não apenas as peque
formas de organização social do trabalho, posto que nas iniciativas individuais, como também, tornando
essa expressão manchesteriana respondia de maneira imprescindível a figura do capitalista — e aí estava
estratégica às próprias necessidades da acumulação em jogo o papel do grande capital —, organizava o
do capital. Nessa medida, o engenho deu lugar às processo de trabalho sob a égide de uma disciplina
usinas de açúcar, para usarmos uma expressão cor imposta pelo próprio funcionamento do aparato tec
rente que nem sempre consegue apreender a natu nológico.
O Nascimento das Fábricas 73