BORGHI, Renato - Borghi em Revista PDF

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Renato Borghi miolo.

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Renato Borghi

Borghi em Revista

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Renato Borghi

Borghi em Revista

Élcio Nogueira Seixas

São Paulo, 2008

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Governador José Serra

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Diretor-presidente Hubert Alquéres

Coleção Aplauso
Coordenador Geral Rubens Ewald Filho

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Apresentação

A relação de São Paulo com as artes cênicas é


muito antiga. Afinal, Anchieta, um dos fundado-
res da capital, além de ser sacerdote e de exercer
os ofícios de professor, médico e sapateiro, era
também dramaturgo. As 12 peças teatrais de sua
autoria – que seguiam a forma dos autos medie-
vais – foram escritas em português e também em
tupi, pois tinham a finalidade de catequizar os
indígenas e convertê-los ao cristianismo.
Mesmo assim, a atividade teatral somente se
desenvolveu em território paulista muito len-
tamente, em que pese o marquês de Pombal,
ministro da coroa portuguesa no século 18, ter
procurado estimular o teatro em todo o império
luso, por considerá-lo muito importante para a
educação e a formação das pessoas.
O grande salto foi dado somente no século 20,
com a criação, em 1948, do TBC – Teatro Brasileiro
de Comédia, a primeira companhia profissional
paulista. Em 1949, por sua vez, era inaugurada a
Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que mar-
cou época no cinema brasileiro, e, no ano seguin-
te, entrava no ar a primeira emissora de televisão
do Brasil e da América Latina: a TV Tupi.
Estava criado o ambiente propício para que o
teatro, o cinema e a televisão prosperassem

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entre nós, ampliando o campo de trabalho para
atores, dramaturgos, roteiristas, músicos e téc-
nicos; multiplicando a cultura, a informação e o
entretenimento para a população.

A Coleção Aplauso reúne depoimentos de gente


que ajudou a escrever essa história. E que conti-
nua a escrevê-la, no presente. Homens e mulhe-
res que, contando a sua vida, narram também
a trajetória de atividades da maior relevância
para a cultura brasileira. Pessoas que, numa lin-
guagem simples e direta, como que dialogando
com os leitores, revelam a sua experiência, o seu
talento, a sua criatividade.

Daí, certamente, uma das razões do sucesso des-


ta Coleção junto ao público. Daí, também, um
dos motivos para o lançamento de uma edição
especial, dirigida aos alunos da rede pública de
ensino de São Paulo e encaminhada para 4 mil
bibliotecas escolares, estimulando o gosto pela
leitura para milhares de jovens, enriquecendo
sua cultura e visão de mundo.

José Serra
Governador do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso
O que lembro, tenho.
Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi-


cial, visa a resgatar a memória da cultura nacio-
nal, biografando atores, atrizes e diretores que
compõem a cena brasileira nas áreas de cinema,
teatro e televisão. Foram selecionados escritores
com largo currículo em jornalismo cultural, para
esse trabalho em que a história cênica e audio-
visual brasileiras vem sendo reconstituída de
maneira singular. Em entrevistas e encontros
sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e
biografados. Arquivos de documentos e imagens
são pesquisados, e o universo que se reconstitui
a partir do cotidiano e do fazer dessas persona-
lidades permite reconstruir sua trajetória.
A decisão sobre o depoimento de cada um na pri-
meira pessoa mantém o aspecto de tradição oral
dos relatos, tornando o texto coloquial, como se
o biografado falasse diretamente ao leitor.
Um aspecto importante da Coleção é que os resul-
tados obtidos ultrapassam simples registros bio-
gráficos, revelando ao leitor facetas que também
caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e
biografado se colocaram em reflexões que se esten-
deram sobre a formação intelectual e ideológica
do artista, contextualizada naquilo que caracteriza
e situa também a história brasileira, no tempo e
espaço da narrativa de cada biografado.

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São inúmeros os artistas a apontar o importante
papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida,
deixando transparecer a firmeza do pensamento
crítico ou denunciando preconceitos seculares
que atrasaram e continuam atrasando nosso
país. Muitos mostraram a importância para a sua
formação terem atuado tanto no teatro quanto
no cinema e na televisão, adquirindo, portanto,
linguagens diferenciadas – analisando-as com
suas particularidades.
Muitos títulos extrapolam os simples relatos
biográficos, explorando – quando o artista per-
mite – seu universo íntimo e psicológico, reve-
lando sua autodeterminação e quase nunca a
casualidade por ter se tornado artista – como
se carregasse desde sempre, seus princípios, sua
vocação, a complexidade dos personagens que
abrigou ao longo de sua carreira.
São livros que, além de atrair o grande público,
interessarão igualmente a nossos estudantes, pois
na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado
processo de criação que concerne ao teatro, ao ci-
nema e à televisão. Desenvolveram-se temas como
a construção dos personagens interpretados, bem
como a análise, a história, a importância e a atu-
alidade de alguns dos personagens vividos pelos
biografados. Foram examinados o relacionamento
dos artistas com seus pares e diretores, os proces-
sos e as possibilidades de correção de erros no
exercício do teatro e do cinema, a diferença entre
esses veículos e a expressão de suas linguagens.

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Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção
e a opção por seu formato de bolso, a facilidade
para ler esses livros em qualquer parte, a clareza e
o corpo de suas fontes, a iconografia farta e o regis-
tro cronológico completo de cada biografado.

Se algum fator específico conduziu ao sucesso


da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,
é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o
percurso cultural de seu país.

À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um


bom time de jornalistas, organizar com eficácia a
pesquisa documental e iconográfica e contar com
a disposição, o entusiasmo e o empenho de nossos
artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com
a Coleção em curso, configurada e com identida-
de consolidada, constatamos que os sortilégios
que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filma-
gem, cenários, câmeras, textos, imagens e pala-
vras conjugados, e todos esses seres especiais –
que nesse universo transitam, transmutam e
vivem – também nos tomaram e sensibilizaram.
É esse material cultural e de reflexão que pode
ser agora compartilhado com os leitores de todo
o Brasil.

Hubert Alquéres
Diretor-presidente da
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Introdução

Desde o início dos anos 90, divido e multiplico


a cena do mundo com Renato Borghi. O ator é
uma legião, uma praça pública, uma procissão,
um cabaré. Cacilda Becker, Madame Morineau,
Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes manifes-
taram sua presença a mim através de Borghi;
presença concreta e indelével como tatuagem.
Uma peça escrita pode se perpetuar por séculos;
também podemos ler a respeito do trabalho
de atores, diretores, grupos e seus métodos.
Além disso, há muitos arquivos fotográficos e
vídeos sobre teatro espalhados pela Internet.
Mas há um tipo de memória que só se propaga
pelo espanto da presença. Enquanto público, 11

absorvemos nossos ícones; como atores, somos


antenas que amplificam os sinais remotos des-
ses mitos. Os sinais são olhares, gestos, malan-
dragens, filosofias e uma sabedoria cotidiana
dos bastidores. Este processo de transmissão é
arcaico, exige um ser perante outro e o contato
direto entre diferentes gerações.

Quando concebi o roteiro de Borghi em Revista


para o teatro em 2004 (com a inestimável cola-
boração de minha amiga Luah Guimarãez), tive
o cuidado de manter a fala natural e improvisada
do ator. Tratava-se de um espetáculo baseado
na tradição oral dos camarins. Entrevistamos o
Renato até extrairmos dele aproximadamente

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6 horas de narrativa sobre suas experiências no
palco, nas coxias, na platéia, nas estradas. Edita-
mos o roteiro até que a montagem ficasse com 2
horas e 45 minutos. Alguns semanários culturais
me pediram uma classificação de gênero para o
que havíamos criado; a única expressão que me
ocorreu foi documentário cênico. E, realmente,
como eu havia imaginado, a presença de Borghi
dando passagem às grandes presenças de sua
vida teve enorme poder de imantação sobre
o público. A improvável peça obteve êxito por
todo o Brasil e desfrutou uma carreira longa
diante das audiências mais variadas. Um dia,
Renato me pediu: Vamos dar um tempo, não
suporto mais me ouvir contando essa estória
12 toda noite. Compreendi.

Enquanto ainda estávamos em cartaz com Borghi


em Revista, recebi o convite da Coleção Aplauso
para transformar o roteiro teatral em livro. O
espetáculo acontecia como um improviso pon-
tuado por estações; temi que a transposição da
linguagem falada para a escrita pudesse apagar a
espontaneidade do relato. Foi, então, que percebi
em mim o espanto da presença de Renato Borghi:
as palavras dele eram minhas também; e, assim,
como seus ancestrais se mantiveram vivos nele, a
experiência dele passou a ser viva em mim. Portan-
to, o ritmo da fala, o timbre da voz, as esfregadas
de olho tão características de Borghi devem estar
impressas de alguma forma nestas páginas.

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Aproveito esta apresentação para fazer uma
breve atualização do livro: em 2006, produzimos
duas peças de Shakespeare (Timão de Atenas e
Macbeth). Como em trabalhos anteriores, nos
cercamos de uma horda de promíscuos desgar-
rados e adoráveis que deixaram suas presenças
carimbadas em nossa carne.

Em 2008, Renato Borghi completa 50 anos de


teatro. Decidimos comemorar montando uma
peça inédita de sua autoria: Cadela de Vison.
Nela, um artista de teatro vaga com sua musa da
Rádio Nacional (vivida por sua sobrinha, Luciana
Borghi) pelas coxias de um palco abandonado.
Não poderia haver contraponto mais irônico
para uma solenidade cinqüentenária. É aí que
13
se manifestam o humor e a presença singular
de Renato Borghi.

Gostaria também de agradecer ao Francisco


Márcio de Araújo e ao próprio Renato Borghi
que tanto colaboraram comigo na organização,
elaboração e revisão deste livro.

Por fim, revelo o apelido de infância do Renato:


PRESENÇA.

Elcio Nogueira Seixas

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O de Duas Portas – Dionisios – Re-Nato

Aplausos crepitantes a Renato Borghi, ator


que hospeda em seu corpo-alma uma espécie
de liquor, de substâncias de viradas coletivas
revolucionárias do teatro brazyleiro, vivas em
formas carnais de suas personagens. Óbvio que
exemplifico com o que de mais forte num pe-
ríodo revolucionário da Multidão conseguimos
fazer vir à tona e que está vivo no eterno pre-
sente em seu cavalo, bastando ser agenciado
para retornar. O Rei da Vela, de Oswald de An-
drade, é o ponto de ruptura com o colonialis-
mo do Teatro Brasileiro que orgulhosamente
se dizia nato da catequese de Anchieta e esse
enjeitado, o teatro brasileiro desligado do seu 15
cordão umbilical metropolitano se religou ao
momento da devoração do Bispo Sardinha pe-
los Caetês, a devoração da catequese. Esta cena
é a da Origem da Tragédia Mítica Brazyleira.
Renato faz toda esta viagem de ruptura sincrô-
nica, a sua re-ligação com a antropofagia dos
tupys, ao soul do candomblé e da umbanda, à
eletricidade do espiritismo, à Radio Nacional,
à Chanchada, ao teatro brasileiro pré-TBC, ao
TBC de C de Cacilda, ao cinema russo de Eiseins-
tein e CherKassov, ao Group Theatre de Francis
Farmer, ao Stanlislavsky mais animista e possu-
ído possível, ao Brecht vivo das montagens do
Berliner Ensamble, à Opera Italiana paterna, ao
Carnaval e, sobretudo, à maior das Divas: Dalva
de Oliveira; para criar estes Monstros Sagrados

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que são as personagenes gigantes que aloja
em seu corpo pequenino como de uma criança.
Abelardo I é a Primeira Grande interpretação
Antropofágica de Teatro Mundial. Ainda este
ano em Berlim, revendo o Rei da Vela exibido
no Cine Babilon, numa projeção excepcional da
versão com legenda em alemão, extremamen-
te bem cuidada na Cinemateca de Berlim, vi o
público perplexo: Quem é este extraordinário e
monstruoso ator? O que é isto?

Uma das atrizes do Oficina Uzina Uzona que es-


tava comigo, Ana Gui, foi cumprimentada, con-
fundida com Esther Góes, pois o publico via o
filme como se estivesse sendo lançado, aconte-
16
cendo hoje em 2005, tamanho o arrebatamen-
to vital trazido pela encarnação presente desta
entidade viva do Banqueiro Abelardo I, puxan-
do o filme como puxava a peça. É um ator pro-
tagonista que contagia todo um elenco a cada
sessão de atuação. Um puxa vida. O filme con-
seguiu captar exatamente o que está no cor-
po do ator vivo sempre, eterno. Se ele diz uma
frase da peça, mantricamente se tem o eterno
retorno epifânico não somente da vida intensa
da personagem, mas a do espírito materializa-
do de toda uma época, de um tempo que se
faz hoje novamente. Tanto no filme como no
corpo, ecologicamente, este ator traz intacta e
viva sua cultura de gueza gravada nos seus ner-
vos e sua libido, espalhando-se eletricamente
pelo cosmos. Nascemos no mesmo dia, do mes-

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mo ano. Nos entendemos num plano passional
elétrico que traz muito conhecimento e percep-
ção. Renato é meu duplo, ou sou eu o duplo
dele, quer dizer não somos nada, mas as proje-
ções que, como atores, nos fazemos entre nós.

Como Procópio Ferreira que foi benditamente


condenado a fazer toda sua vida Deus lhe Pa-
gue. Renato somente não está todos os anos
nos nossos palcos, transformando-os em terrei-
ro porque o Teatro brasileiro ainda está doente
e saindo da convalescença difícil, mas grandio-
sa em torno dessa própria atuação de Teatro de
Estádio do próprio Renato, renascido, aberto
como uma Avenida Carnavalesca em direção a
uma Apoteose que só se viu parecida na anti- 17
guidade na Tragédia Grega viva.

Assim como foi tombado o Samba de Roda, o


Abelardo I deveria ser tombado para trazer a
nós todos sempre o eterno retorno do corpo
revolucionário Oswaldiano, desta vitamina que
contamina e como a Banana, yes, faz crescer a
Multidão. É obvio que ele faz milhões de novas
maravilhas. Renato não se resume à magnitude
do Rei da Vela, mas o ator de Teatro, como o
músico, pode cantar sempre como Caetano Ve-
loso canta Sampa, Leãozinho, etc. para nossa
Alegria Alegria ou como Isaurinha Garcia can-
tou eternamente sua Mensagem das mais dife-
rentes maneiras, de acordo com o vinho que foi
sua vida, como a de Re-nato que tem o mes-

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mo nome que Dionisios, o de duas portas, o de
dois (muitos mais… infinitos) nascimentos. São
obras eternas enquanto vivem seus cantores e
que no caso de Renato vai permanecer na in-
fluência passada de seu corpo-a-corpo com as
gerações que vêm por este caminho e também
pela imortalização conseguida nas telas e nos
DVDs que vão sair este ano para o gozo do pú-
blico mundial. Monique Gardenberg, através da
Dueto Filmes, faz este importante trabalho de
remasterização de O Rei da Vela e lançamento
da peça montada nos seus três atos contínuos.

Que outro ator revolucionou mais a arte de


atuação do que este Cantor Incorporado, Diti-
18
râmbico Renato Borghi?

Sua vocação de cantor que pegou um santo fa-


zendo uma cena do Papa em Galileu Galileu e
a partir daí trouxe para o Teatro brasileiro o
BRAZ(YL)EIRO, esta energia desconhecida que
é a dos deuses do inconsciente pagão da Multi-
dão arcaica, bárbara e futurista do mundo.

Que ator é este que guarda o tempo vivo em


seu corpo e que somente cresce e nunca vira
múmia? São os segredos da própria vitalidade
desta cultura que dá no Brasil, de escravos re-
belados contra a própria escravidão e apaixo-
nados por não amaldiçoar a vida, não se deixar
submeter jamais pelo Teatro do Oprimido, ou
por qualquer teatro, ou qualquer pose.

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Vamos vê-lo no Timão de Atenas todo Poesia
& Ritmos como Shakespeare concebeu, cantan-
do os versos desta grande tragicomédyorgya,
saindo do padrão careta dos chamados maiores
atores brasileiros. Renato é uma divindade, um
Rei, um Orixá-Exu do Teat(r)o Brazyleiro, um
nobre gêmeo em grandeza do grande Raul Cor-
tez e no nosso Olympo ele está ao lado de João
Gilberto e Carmem Miranda. Há uma guerra no
mundo e há no Teatro também, como as que se
referia Shakespeare no seu tempo. Uma guerra
movida pelas castas da especulação, inclusive
teatral, que não querem perder seus privilégios
e se alinham hoje à extrema-direita com a Igre-
ja, Bush e o moralismo burro; por isso nunca
vão poder se dar ao luxo de aceitar a originali-
19
dade, a grandeza, a genialidade de Oswald de
Andrade ou de Renato Borghi.

Torço pelo Timão e sei que vem aí mais um Gol!

Merda!

José Celso Martinez Corrêa

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Aos três anos de idade, 1940

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Capítulo I
Rádio Nacional, Samba e Ópera

Nasci na Tijuca, Rio de Janeiro, em 1937. Fui


embalado ao som das rádios cariocas da época.
A primeira música que aprendi a cantar foi a
Jardineira. A casa de meus avós maternos era
extremamente musical. Minha mãe tocava pia-
no muito bem e eu cantava uma infinidade de
marchinhas e sambinhas sempre acompanhado
por ela. Lembro-me claramente das vozes da-
quele tempo: Orlando Silva, Chico Alves, Silvio
Caldas, Dircinha Batista, Linda Batista, Carmem
Miranda, Ciro Monteiro, Carlos Galhardo e
muitos outros que não me ocorrem agora. O 21
Galhardo cantava uma valsa que tinha uma le-
tra que eu achava engraçada: E uma cortina de
veludo, encobre a porta oval, por onde um dia
hás de passar. A criança Renato ficava matu-
tando sobre como seria essa tal porta, por que
oval? Por que uma cortina de veludo encobrin-
do uma porta por onde alguém deveria passar?
Chico Alves era uma febre nacional, e as irmãs
Batista eram as rainhas dos números musicais
das chanchadas cinematográficas. Dircinha can-
tava: Meu piriquitinho verde, tira a sorte por
favor, eu quero resolver esse caso de amor, se
eu não caso, nesse caso, eu vou morrer. Linda
Batista cantava Vingança a plenos pulmões:
Mas enquanto houver força em meu peito eu
não quero mais nada, só vingança, vingança,

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vingança, aos santos clamar. Você há de rolar
como as pedras que rolam na estrada, sem ter
nunca um cantinho de seu pra poder descansar.

O samba exaltação estava em grande moda com


o incentivo de Getúlio Vargas. As favelas eram
cantadas como recantos poéticos e o malandro
era mais um cara cheio de bossa do que um mar-
ginal perigoso. Uma espécie de herói popular.

Já na casa de meus avós paternos só se ouviam


óperas. Eram todos italianos e não entendiam
nada de samba. Aprendi rapidamente a cantar
em italiano, mesmo sem saber muito bem o sig-
nificado das palavras. Gosto de óperas até hoje
e costumo ouvi-las de vez em quando. A comi-
22
da lá também era outra e maravilhosamente
deliciosa. Macarronadas com mil espécies de
molhos e as carnes as mais diversas: cabrito,
coelho, rã, galinha-d’angola, codorna e outras
variedades de que não me lembro agora. Ah! O
pão era feito em casa no forno do quintal. Uma
delícia. Jamais vou esquecer aquele cheiro de
pão italiano saindo do forno.

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Capítulo II
O Chamamento de Dalva

Eu devia ter 7 anos, quando ganhei dois bola-


chões 78 rotações com a estória da Branca de
Neve. Achei linda a voz da princesinha, pergun-
tei à minha mãe: Mãe, de quem é essa voz? É
Dalva de Oliveira, meu filho. Aquela voz não
saiu mais da minha cabeça. Foi o meu primeiro
chamamento para a arte. Comecei a procurar
aquela voz. Em 1948, ela voltou pela Rádio Na-
cional do Rio de Janeiro, que estava no auge. O
peixe é pro fundo das redes, segredo pra qua-
tro paredes, era o refrão de Segredo, um gran-
de sucesso de Dalva. 23

Diziam tanta coisa daquela mulher: que ela ti-


nha amantes, era ninfomaníaca; na época, eu
nem imaginava o que era isso. O marido de Dal-
va, o compositor Herivelton Martins, atacava a
mulher publicamente através de suas letras: Ati-
raste-te uma pedra no teto de quem só te fez
tanto bem. E ela se defendia: Errei sim, manchei
o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado.

Que emoção tinha aquela voz! Acho que a mi-


nha vida inteira, mesmo no teatro, eu andei
perseguindo aquela emoção dálvica.

Quando fiquei mais taludinho, com uns 11 anos


mais ou menos, passei a fugir de casa à noite,

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dizendo que ia estudar com um colega vizinho,
para ir com a empregada lá de casa, Maria, ao
auditório da Rádio Nacional ver Dalva cantar.
Era um verdadeiro Indiana Jones semanal de mil
perigos até chegarmos à mal falada Praça Mauá,
local de malandros e prostitutas. Era lá que fica-
va o auditório da Rádio Nacional. Inesquecível!
Dalva cantava aos prantos com uma voz linda e
penetrante que me deixava todo arrepiado. A
cada número, as macacas de auditório atiravam
blusas e Revistas do Rádio para o alto gritan-
do: É a maior! Tinha gente que se rasgava. Eu
também tinha vontade de gritar, mas o menini-
nho de família falou mais alto me obrigando a
manter uma atitude recatada. Já Maria gritava
que só vendo. Só meus olhos arregalados reve-
24
lavam espanto e admiração. Um dia, minha mãe
descobriu tudo e acabou-se a aventura. Graças a
Deus, nada aconteceu à Maria. Minha mãe per-
doou a travessura e ela continuou conosco até
se casar aqui em São Paulo. Fomos, minha mãe
e eu, seus padrinhos de casamento.

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Capítulo III
Teatro de Revista

Eu era muito criança, quando os meus avós ma-


ternos me levaram pela primeira vez ao teatro.
Era o Teatro de Revista, na Praça Tiradentes.
Walter Pinto era o grande produtor da épo-
ca. Escadarias enormes com gelo-seco caindo
(não foi o Gerald Thomas quem inventou o
gelo-seco). Polacas e francesas fazendo topless,
segurando cachorros galgos pela coleira. E as
vedetes: Mara Rúbia, loira, estilo violão; Rena-
ta Fronzi, morena, estilo violoncelo. E a mais
graciosa de todas era Virginia Lane: pequeni-
ninha, corpinho perfeito, dentinho de coelho. 25
Foi ela quem inventou a interação no teatro,
não foi o Zé Celso. Ela descia pra platéia can-
tando: Sa-ssa-ssaricando, todo mundo leva a
vida no arame, e fazia improvisos, sentando no
colo dos cavalheiros da platéia. Diziam que ela
era amante de Getúlio Vargas. Corria também
que o presidente era fã das revistas e ajudava
os produtores com subvenções, contanto que
criassem quadros ufanistas, com favelas doura-
das, o bom malandro, enfim, a miséria brasilei-
ra cantada com charme e muito brilho.

Mas, o que eu gostava mesmo, era quando fe-


chava a cortina e vinham os cômicos: Grande
Otelo cantando: Boneca de piche, da cor do
azeviche, boneca de piche é tu que me acaba.

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Oscarito e Dercy Gonçalves faziam números no
doublé sens (sentido duplo), porque não se po-
dia falar palavrão. Mas a Dercy já entrava cus-
pindo no palco e dizia pro Oscarito: Escuta aqui,
malandro, se você fizer o que eu tô te pedindo,
eu te dou a minha baratinha preta com um ris-
quinho rosado no meio. Eu ficava perguntando
aos meus avós: Que barata é essa, vovô? Que
barata é essa, vovó? Ninguém me explicava. Eu
só fui descobrir a barata muito tempo depois.
Tinha também o Mesquitinha. Quase não se
fala nele hoje em dia, mas era um grande ator.
Cara de brasileiro, bigodinho, peito de tuber-
culoso. Ele fazia monólogos cômicos e trágicos.
De repente, aquele bando de homem que ia
ver as vedetes acabava fungando com os olhos
26
cheios d’água ao acompanhar a emoção que o
Mesquitinha transmitia.

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Capítulo IV
Cinelândia

Minha avó também me levava para ver um


outro teatro: o teatro da Cinelândia, a Broa-
dway carioca. Eram vários teatros enfileirados,
várias companhias, e todas elas pertenciam às
estrelas da época. Era mais ou menos assim: ti-
nha o ponto na sua casinhola soprando o texto,
as peças mudavam de 15 em 15 dias e ficava
muito difícil pros atores decorarem as suas fa-
las; os cenários eram telões pintados, jardins
com chorões e hortênsias ou salões de castelos
pintados em perspectiva; a luz principal era a
da ribalta, que vinha de baixo e ajudava a dis-
farçar os papinhos das estrelas maduronas. O 27
repertório, em sua grande parte, vinha de uma
tradição luso-brasileira: melodramas e comedi-
nhas ligeiras. Alguns títulos: Maria Caxuxa, Iaiá
Boneca, As Solteironas do Chapéu Verde, As Ár-
vores Morrem de Pé, As Mãos de Eurídice, Esta
Noite Choveu Prata, etc. Eu me lembro de uma
peça em que a atriz Lourdes Mayer vivia um
triângulo amoroso: seu marido, interpretado
por Rodolfo Mayer (seu verdadeiro marido), e o
melhor amigo do casal eram ambos apaixona-
dos por ela. Mas o amigo sublima este amor pe-
caminoso e continua íntimo do casal. No final,
ela vem à boca de cena, estende as mãos para
os dois e diz: Obrigado, pelo amor de vocês (era
esse o nome da peça). E fechava o pano! Pode?!
Nunca mais me esqueci desta cena.

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Não havia diretores, somente ensaiadores, que
preparavam o elenco coadjuvante marcando os
atores nos arredores do palco. A área central
era ocupada por uma cadeira. Tratava-se do lu-
gar reservado às estrelas, que só compareciam
aos ensaios dois dias antes da estréia. Devia ser
muito difícil ser um coadjuvante naquele tem-
po: os atores carregavam uma maleta pessoal
com bigodes, cavanhaques, smokings, sapatos
e outras quinquilharias; as atrizes podiam ser
contratadas segundo o figurino que possuíssem,
como vestidos de baile. Um coadjuvante valia
o quanto pudesse oferecer à produção. Além
disso, acho que eles deviam ganhar muito mal,
as estrelas-empresárias é que levavam tudo.
28
Havia muitas companhias importantes na Ci-
nelândia, uma delas era a Cia. Dulcina e Odi-
lon, que tinha sede no Teatro Regina, hoje,
em homenagem, Teatro Dulcina. As estrelas da
companhia eram Dulcina de Moraes e sua mãe,
Conchita de Moraes. Dona Conchita parecia
uma velhinha adorável, estilo Vovó Benta, gor-
dinha com um coque no topo da cabeça. Mas,
de repente, ela ficava diabólica, dizia pros com-
panheiros de cena: Cala a boca! E fazia monólo-
gos de cacos de 20 minutos, deixando o elenco
atônito, sem saber como retomar a peça. Já a fi-
lha, era uma atriz completamente diferente da
mãe: tinha um jeito afetaaado de falar, soava
como uma música estranha; também era uma
mulher muito sofisticada, que lançava modelos

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ousados em cena, vestidos fechados na frente e
com decotes imensos nas costas que chegavam
até o início do reguinho. A mulherada corria
pra ver as novidades. Dulcina, além de tudo, foi
uma das atrizes mais importantes do seu tem-
po, levava legiões de fãs ao seu teatro. Foi ela
quem criou o repouso semanal da segunda-fei-
ra, porque antes, atores e técnicos tinham de
trabalhar a semana inteira, com sessões duplas
e matinês, além dos ensaios. O Paulo Autran
que me contou isso. A estrela também se dava
de presente peças sofisticadas de autores como
Bernard Shaw, Lorca, entre outros. Me lembro
muito dela em Chuva, de Somerset Maugham.
Chovia, chovia, chovia numa ilha calorenta. Ela
fazia uma prostituta com saia preta e blusa bran-
ca com bolinhas vermelhas, às vezes segurando 29
uma sombrinha. A prostituta queria comer o Re-
verendo David, que estava isolado na ilha com
ela, mas o reverendo estava duro-na-queda. Me
lembro da Dulcina andando inquieta pela sala,
olhando pelas janelas e dizendo: E esta chuuu-
va que não paaassa! Até hoje, quando me le-
vanto à noite pra ir ao banheiro, ouço aquela
voz ao longe: E esta chuuuva que não paaassa!

Outra companhia de sucesso era a de Eva Todor,


a eterna ingênua do nosso teatro. Pra mim, é
inesquecível A Amiga da Onça, com Eva vestida
de tenista e uma raquete na mão.

O Teatro Rival, que hoje recebe shows da MPB,


era a sede de Alda Garrido, a mais maluca de

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todas, piradex total. Pouca gente se lembra
dela, mas Alda foi uma comediante excepcio-
nal e muito popular. Seu carro-chefe era Dona
Xepa, de Pedro Bloch, onde ela fazia uma fei-
rante desdentada, descuidada, que ganhava
muito dinheiro na feira, mas entregava tudo
pros filhos, pra eles estudarem nos melhores
colégios, com roupas caras. Até que ela desco-
bre que os filhos morrem de vergonha dela. No
terceiro ato, acontece uma reviravolta: Dona
Xepa aparece com robe de seda pura, cabelo de
cabeleireiro, uma biblioteca atrás e ainda se dá
ao luxo de declamar: J`ai, tu as, il a, nous avons,
vous avez, ils ont!

30
Do Jaime Costa, eu digo: Cessa tudo, que a an-
tiga musa canta, enquanto valor mais alto se
alevanta. Jayme Costa foi um gigante ator, que
habitava o Teatro Glória. Ele trouxe Arthur Mil-
ler pela primeira vez ao Brasil com A Morte do
Caixeiro-viajante. Eu vi esta peça depois com
outros grandes atores, mas nenhum deles me
impressionou tanto quanto o Jayme Costa. Suas
caracterizações eram famosas. D. João VI foi
uma de suas criações insuperáveis, maquiagem
e composição gestual perfeitas. Chegava a co-
mer, em cena, um frango inteiro com as mãos,
ficando todo engordurado. Uma maravilha!

Quando eu vi Procópio pela primeira vez, a


criança ficou chocada com sua aparência: era
um homem pequenino, mais baixinho que eu,

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o pescoço enterrado no ombro, um narigão de
Cyrano de Bergerac. Me lembro de ter dito: Que
homem feio, vovó! Minha avó me repreendeu:
Psiu! É Procópio Ferreira! A peça começou com
ele sentado numa escadaria de igreja, vestido
como mendigo, pedindo esmolas. A cada mo-
eda que recebia, o mendigo agradecia: Deus
lhe pague! Deus lhe pague! Este era o título da
peça de Joracy Camargo. Não lembro como era
o cenário, os outros atores, nada, só Procópio
ficou na minha cabeça. Ele tinha um carisma do
tamanho do universo. Compreendi, então, a re-
verência de minha avó e dos milhares de fãs es-
palhados por todo o país que o consideravam o
maior ator de sua época. Acho que o Procópio foi
o homem que mais inaugurou bustos no Brasil, 31
tem busto dele espalhado do Oiapoque ao Chuí.

Procópio queria que a filha, Bibi Ferreira, estu-


dasse no Colégio Sion, mas freiras não permi-
tiram: Filha de artista, gente de má vida. Nós
éramos muito malvistos naquele tempo; eu
mesmo, quando estreei no teatro, cheguei a
portar o cartão rosa do DDP, que era o mesmo
usado pra fichar as putas. Procópio, então, re-
solveu esnobar, ele estava muito rico, mandou
a filha pra Europa. Bibi estudou nos centros
teatrais mais avançados, voltou poliglota, lin-
dinha, cantando, dançando e representando,
uma garota-prodígio. Ela trouxe pro Brasil um
repertório moderno, sofisticado e era (e ainda
é!) dona de uma técnica extraordinária. Quan-

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do eu vi Senhora, de José de Alencar, fiquei
estupefato. Bibi caía nos braços do amante de
costas pra platéia e sussurrava ao ouvido dele:
Eu te amo, e todo mundo lá na torrinha do tea-
tro ouvia claramente: Eu te amo. Ficou todo
mundo dizendo: Como é que pode?, Como é
que ela consegue?, Que técnica! Até hoje, Bibi
é um assombro!

32

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Capítulo V
Teatro Amador: a Vanguarda

A vanguarda daquela época era representada


pelo teatro amador. Havia duas companhias
muito importantes no Rio de Janeiro: o Teatro
dos Estudantes e o Teatro dos Comediantes. No
caso dos Estudantes, é preciso abrir um parên-
tese para falar de Paschoal Carlos Magno. Ele
amava e incentivava o teatro amador e o pro-
fissional. Fez vários festivais de amadores com
grupos de todo o país. Plínio Marcos foi lançado
num destes festivais com Barrela. O próprio Tea-
tro Oficina, em seu início, recebeu muito apoio
do Paschoal. Ele também criou um teatro expe-
rimental na ladeira de Santa Tereza, o Teatro 33
Duse; deu bolsa de estudos para estudantes po-
bres e elevou ao máximo o nível do repertório.
Ele montou Hécuba, peças de Shakespeare. Foi
em Hamlet que apareceu um jovem de 22 anos,
considerado o maior ator brasileiro de todos os
tempos: Sérgio Cardoso. Era Sérgio no Brasil e
Laurence Olivier na Europa. Procópio e Jayme
Costa devem ter ficado ralados, pois, até então,
eles eram os maiores. Sérgio Britto e Maria Fer-
nanda (como Ofélia) também apareceram aí.

O Teatro dos Comediantes era feito por profis-


sionais liberais: engenheiros, médicos, dentis-
tas, advogados, professores de literatura, etc.
Eles queriam um repertório avançado para o
Brasil, de um nível londrino, parisiense.

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Queriam evolução para o teatro brasileiro. Foi
quando chegou ao Brasil um polonês fugido da
Segunda Guerra: Zbigniew Ziembinski. O polo-
nês se encantou com o Rio de Janeiro, Copaca-
bana e com tudo que ele viu na praia de Copa-
cabana. Zimba, como foi carinhosamente ape-
lidado pelos brasileiros, já tinha 60 peças como
diretor e 40 como ator protagonista na Polô-
nia. Os comediantes sacaram a riqueza do ho-
mem e convidaram Zimba para dirigir uma das
primeiras peças de um jovem autor brasileiro:
Nelson Rodrigues. A peça era Vestido de Noiva.
Um texto revolucionário em sua escrita, frases
curtas, telegráficas: Eu odeio o seu pai (ponto)
Que sua mãe vá pro inferno (ponto). Era tudo
34
ponto. Ponto. Ponto. Nada a ver com a Maria
Caxuxa. A carpintaria também era inovadora,
abolia a linearidade dos melodramas. A peça
acontecia em vários planos: Morte, Realidade,
Delírio. Zimba encantou-se com a peça e cha-
mou Santa Rosa, consagrado artista plástico,
para fazer os cenários. Inspirado pela estrutu-
ra do texto, Santa Rosa também criou vários
planos na cenografia, objetos com volume.
Zimba fez uma verdadeira revolução na luz,
deitou e rolou: aboliu a ribalta, criou refleto-
res com latas de banha, novos efeitos, usou
o contraluz. A estréia foi um susto. Quando
a peça acabou, silêncio. Ninguém disse nada.
Brasileiro tem medo de ser burro, não emite
opinião quando não sabe classificar, fica quie-
to, não diz o que pensa.

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O silêncio prolongado criou um constrangimen-
to no teatro. Dizem que o Nelson Rodrigues
saiu desesperado pela rua gritando com a boca
mole que lhe era peculiar: Minha peça foi um
fracasso! De repente, no teatro, um aplaudiu,
outro aplaudiu, outro aplaudiu, o teatro inteiro
aplaudiu. O aplauso durou uns quinze minutos
pra compensar o silêncio. Foi aquela consagra-
ção. Da noite para o dia, Nelson Rodrigues foi
proclamado o maior dramaturgo brasileiro de
todos os tempos. Esse episódio aconteceu no
ano de 1943, eu tinha 6 anos, e, é claro, não
pude ver. Minha avó dizia que ele era um ta-
rado, maníaco sexual, Febrônio. Não entendia
direito essa estória de Febrônio, só sabia que
era um nome feio. Minha família dizia que tudo
35
que o Nelson escrevia tinha sabor de pecado.

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Capítulo VI
São Paulo e o TBC

Em 1955, minha família mudou-se para São


Paulo, e eu vim com eles, onde vai a corda, vai
a caçamba. Logo nos primeiros tempos, meus
colegas do Colégio São Bento me levaram para
ver o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. Que
susto! O TBC era sólido, como sólida era a cida-
de de São Paulo: Viaduto do Chá, Santa Ifigê-
nia, Anhangabaú, o meu Colégio São Bento. Os
cenários do TBC eram concretos: tinham portas,
janelas, cicloramas, chovia quando tinha que
chover. Parecia cenário de filme de Hollywood
dos anos 40, 50. Havia uma concepção para 37
cada espetáculo. Cenários, figurinos, interpre-
tações, trilha sonora, luz, tudo convergia para
formar a cara de obra como dizia Ziembinsky.
O repertório era adulto, pecaminoso. Uma das
primeiras peças que vi foi Gata em Teto de Zinco
Quente, de Tennessee Williams. Cacilda Becker
ficava rodeando uma cama, chamando o marido
pra transar. Walmor Chagas, que fazia o mari-
do, se recusava e andava pela casa com a perna
engessada e uma muleta. Quando a insistência
dela se tornava irritante, ele ameaçava dar uma
muletada na cabeça dela. Ele dizia estar de luto
pelo amigo que havia se suicidado. Cacilda, qua-
se gemendo, dizia algo como: Ele se matou por
sua causa, ele te amava. Eu disse a ele: Skipper,
Skipper, pare de amar o meu marido!

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Eu nunca tinha ouvido isso na Maria Caxuxa
nem na Iaiá, Boneca. O primeiro beijo de ho-
mem com homem que eu vi na minha vida
também foi no TBC, anos mais tarde, em Pa-
norama Visto da Ponte, de Arthur Miller, onde
o Leonardo Villar tascava um beijo na boca
do Egydio Eccio. Foi um escândalo! O teatro
lotou. Aqui no Brasil, quando tem escândalo,
lota! O repertório do TBC era muito sofistica-
do. Eles montavam Sófocles, Schiller, Anouilh,
Pirandello, Maxim Gorky, Tennessee Williams,
Arthur Miller e outros grandes. Entre as peças
mais fortes, a companhia montava também co-
médias sofisticadas, o boulevard, que o elenco
representava com um estilo muito elegante.
38
Cacilda dizia que conhecia uma atriz vendo se
ela sabia virar no calcanhar. Esse aplomb eu-
ropeu, os atores receberam dos diretores es-
trangeiros que o TBC importou: Adolfo Celi,
Flaminio Bollini Cerri, Ruggero Jacobi, Lucia-
no Salce, Alberto D`Aversa, Maurice Vaneau e
Ziembinsky, que foi imediatamente incorpora-
do a este grande time. Tudo isso foi obra de um
napolitano malucão chamado Franco Zampari,
que queria dar a São Paulo um teatro à altura
dos teatros de Londres, Paris e Nova Iorque. O
TBC era equipado com o que havia de mais mo-
derno do ponto de vista técnico, duas salas de
ensaio, salas de figurinos, salas de maquiagem,
carpintaria própria, artistas e técnicos profissio-
nais contratados a ótimos salários, enfim, um
luxo para a época. Zampari estava atendendo

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à demanda da burguesia progressista paulista-
na. São Paulo era a cidade que mais crescia no
mundo; rolava uma grana preta por aqui. Toda
essa gente rica não queria nada com a Iaiá, Bo-
neca, eles ansiavam por um repertório interna-
cional e sofisticado. Para vocês terem uma idéia
do luxo, o TBC estreou em 1948 com Madame
Henriette Morineau interpretando A Voz Hu-
mana, de Cocteau, em francês. Em seguida, no
mesmo programa, estreava um jovem autor
brasileiro: Abílio Pereira de Almeida, com Paiol
Velho. Acho que o Abílio foi sempre um pouco
injustiçado. Em Moeda Corrente do País, a meu
ver, era uma peça brilhante.

Que elenco tinha o TBC, que unidade! Das es- 39


trelas aos coadjuvantes, todos perfeitos. Era
um verdadeiro trabalho de equipe. O elenco
do TBC pode ser descrito como a realeza do
teatro moderno no Brasil. Por ali passaram:
Cleyde Yaconis, Cacilda Becker, Walmor Cha-
gas, Ziembinsky, Sérgio Cardoso, Nydia Licia,
Maria Della Costa, Sandro Polônio, Paulo Au-
tran, Tonia Carrero, Fernanda Montenegro,
Fernando Torres, Jardel Filho, Luiz Linhares,
Raul Cortez, Ítalo Rossi, Nathalia Timberg, Ma-
rina Freire, Célia Biar, Dina Lisboa, Elizabeth
Henreid (linda fazendo a Pombinha de Vol-
pone!), Ruy Affonso, Carlos Vergueiro, Fredi
Kleeman, Waldemar Wey (que fazia caracte-
rizações fantásticas), o galã Maurício Barroso,
Rubens de Falco, isso pra só falar de alguns,

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pois o TBC não era teatro de uma estrela e sim
de uma constelação. Também irrigava o TBC
uma fábrica de bons e jovens atores, a EAD –
Escola de Arte Dramática, criada pelo Dr. Al-
fredo Mesquita, que tinha grande amor pelos
estudantes em São Paulo, assim como o Pas-
choal Carlos Magno, no Rio.

40

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Capítulo VII
Paixão por Cacilda

Dentre todas essas estrelas que amei, houve


uma que se entranhou em mim patologicamen-
te e me influenciou demais, assim como a Dalva
na infância. Era Cacilda Becker. Via de 10 a 15
vezes cada peça interpretada por ela. Quando
iniciei minha carreira, costumava perguntar a
meu pai: Gostou? Ele respondia sem muita con-
vicção: Gostei, meu filho... Mas por que você
não diz mamãe como todo mundo? Claro que
eu digo mamãe! repliquei. Ele disse: Não, você
diz (com ar sôfrego): mámáe, mámáe! Percebi
que estava, inconscientemente, imitando Ca- 41
cilda. Ela tinha um jeito só dela de falar, uma
respiração curta. Meu pai dizia que ela falava
sem ponto, sem vírgula, parecia uma japonesa.
Pra mim, era uma experiência espiritual, nunca
mais me esqueci de algumas de suas criações.
Em Pega Fogo, ela fazia um menino. Puxava os
seios para os lados com esparadrapos. Dizem
que, às vezes, os seios ficavam em carne viva.
Mas Cacilda era meio masoca, mesmo ferida,
ela continuava a apertar os seios. A gente podia
ver, através da camisa ligeiramente aberta, os
ossinhos de um peito magro de garoto. Maria
Stuart era um duelo de gigantes. Ela e a irmã
Cleyde Yaconis incendiavam o palco, não se sa-
bia quem era melhor. Fiquei chocado quando
a Cleyde tirou sua peruca de Rainha Elizabeth

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e mostrou uma cabeça completamente careca!
Na Dama das Camélias, Cacilda se fazia linda e
frágil. Seus figurinos pareciam mais pesados do
que ela poderia suportar. Diziam que as roupas
de Marguerite custaram uma fortuna. E verda-
de seja dita: ela sabia se maquiar! Os críticos
diziam que Cacilda era como um graveto incen-
diado, que ainda se dava ao luxo de deixar as
cinzas flutuando no ar! Que inveja! Ninguém
nunca escreveu uma coisa tão linda sobre mim.
Saudade, Cacilda!

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Capítulo VIII
Teatro de Arena

Em 1958, levei outro grande susto em São Pau-


lo: o Teatro de Arena. Vocês podem imaginar
o que é para um menino que veio lá da Iaiá,
Boneca, deu de cara com o TBC e que, de re-
pente, é levado pra assistir Eles Não Usam Bla-
ck-Tie, do Gianfrancesco Guarnieri? Em primei-
ro lugar, o teatrinho da Rua Teodoro Baima
tinha gente por todos os lados, uma novidade
na época. A peça, com direção do Zé Renato,
retratava a vida de uma família da periferia ou
da favela mesmo. Mas uma favela de verdade,
sem o antigo glamour das revistas. Nem parecia 43
cenário, os móveis eram de uma pobreza fran-
ciscana: mesa remendada, cadeira de pé que-
brado. A Lélia Abramo catava feijão em cena,
o cheiro do café que ela fazia dava vontade de
pedir uma xicrinha! A temática era social: furar
ou não furar a greve, eis a questão. O Arena já
se posicionava bem mais à esquerda de Deus-
pai. Outra inovação: os atores também eram
dramaturgos. Guarnieri escrevia, Chico de Assis
escrevia. Vianinha, em 1960, escreveu Chape-
tuba Futebol Clube, sobre um time de várzea.
Esta peça já foi dirigida pelo Augusto Boal, que
tinha chegado dos Estados Unidos trazendo as
novidades do Método, ou seja, as técnicas de
Stanislavsky reinterpretadas pelos americanos.
Acho que o Boal absorveu muito do Actor`s Stu-

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dio, de mestres como Lee Strasberg, Elia Kazan.
Tudo isso deu ao Arena um estilo muito pe-
culiar de atuação, uma coisa híbrida. De um
lado, a pesquisa do comportamento do homem
popular brasileiro. De outro, as influências do
Actor´s Studio. O resultado foi um jeitão meio
quebrado no corpo. Tinha sempre alguém um
pouco torto, apoiando a perna numa cadeira
e falando de um jeito swingado: Nega, tu não
gosta de eu... Uma espécie de James Dean da
Mooca, Marlon Brando do Bexiga. Abaixo a
elegância européia do TBC! Eu achava aquilo
um charme. Imitei muito o gestual do Arena
no começo do Oficina. A equipe do Arena era
excepcional: Guarnieri, Lélia Abramo, Miriam
Muniz, Miriam Mehler, Dina Sfat, Paulo José,
44
Milton Gonçalves, Lima Duarte, Flávio Migliac-
cio, Juca de Oliveira, Xandó Batista, Celeste
Lima, Henrique César, Riva Nimitz, Vera Guer-
tel... Ufa, quanta gente boa! Completamente
outra coisa, nada a ver com o TBC. Eu até ficava
imaginando uma maldade: obrigar o Paulo Au-
tran, o Sérgio Britto, o Ruy Affonso, o Sérgio
Cardoso, o Carlos Vergueiro, o Walmor Chagas,
o Fredi Kleeman, o Raul Cortez, o Ítalo Rossi, o
Maurício Barroso e o Rubens de Falco a repre-
sentar Chapetuba Futebol Clube, reproduzin-
do aquele timinho de várzea! Com o Zimba de
juiz e Celi e o Waldemar Wey de bandeirinhas.
Acho que não ia dar muito certo.

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Capítulo IX
Cantor ou Ator?

Esse ano de 1958 foi muito mágico pra mim.


Acabei entrando pro Teatro meio que por aca-
so. Eu estava no terceiro ano da Faculdade de
Direito do Largo São Francisco. Eu não tinha
nada a ver com Direito. Sabe aquelas mocinhas
que vão estudar enquanto esperam marido.
Eu estava exatamente assim, só que esperando
por alguma coisa artística, embora não soubes-
se bem o quê. Meus colegas chamavam meus
óculos escuros de travesseiro: eu me sentava no
fundo da sala, colocava os óculos e dormia du-
rante todas as aulas, de ponta a ponta. Se me
perguntarem hoje como se faz uma petição, 45
não tenho a menor idéia. Eu cantava muito
nesse tempo e me acompanhava ao violão.

Descobri uma brincadeira sado-masoca que


me encheu as tardes de satisfação: eu tocava
no apartamento de meus pais, que era térreo,
e a nossa vizinha chorava no primeiro andar.
Eu tocava embaixo e ela chorava em cima. Uma
tarde, ela me convidou pra lanchar. Queria que
eu cantasse pra uns convidados. Peguei meu
violão e fui na maior cara-de-pau. Vergonha
de me mostrar era algo que eu não conhecia.
Quando criança, meu apelido era Presença.
Meu avô me chamava: Presença, vem almoçar!,
Presença, vem jantar! Subi e cantei. Cantei to-
dos os números que ela pediu.

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Um dos convidados era Jordão de Magalhães,
empresário do Agnaldo Rayol e do Almir Ribei-
ro. Quando terminei de cantar, ele me disse: O
senhor está contratado. Esteja amanhã, às duas
horas em ponto na Boite Cave. Você vai ensaiar
quatro meses com a minha orquestra, das 14
às 17 horas e, a seguir, vamos gravar um dis-
co na Gravadora Philips. Fiquei zonzo! A Boite
Cave era o máximo naquela época. No dia se-
guinte, o Presença estava lá, ensaiando com a
orquestrinha do Cave. Que delícia cantar acom-
panhado de um conjunto como aquele. E no
microfone! Parecia outra voz. Ele me proibiu
de tocar violão, disse que eu tocava muito mal.
Dali por diante, só cantaria com a orquestra. E
me proibiu também de cantar em casa. Queria 47
corrigir meus vícios de amador. Era o tempo de
Elizete Cardoso, a Divina. Ela era uma das es-
trelas que costumavam se apresentar no Cave.
O Jordão me fez cantar quase todo o repertó-
rio da Elizete. Era o lançamento da Bossa Nova:
As suas mãos, onde estão? Onde está o seu ca-
rinho, onde está você?... Eu preparava minha
voz com D. Alice Pincherle, mãe da Nydia Licia,
casada com o Sérgio Cardoso, donos da Compa-
nhia Nydia Licia – Sérgio Cardoso, com sede no
Teatro Bela Vista. Um dia, entre um vocalize e
outro, D. Alice me sugeriu: Renato (com forte
sotaque italiano), por que você não vai fazer
um teste com Sérgio Cardoso para fazer o pro-
tagonista de Chá e Simpatia no Rio de Janeiro?
O ator que está fazendo aqui em São Paulo,

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quando terminar a temporada, vai deixar o tea-
tro para abrir um escritório de contabilidade.
Eu falei: Que louco, D. Alice, deixar um papel
desses pra virar contador! Ao que ela me res-
pondeu: Pois é, ele disse que quer ficar rico. É
claro que o Presença foi. A entrada do Teatro
Bela Vista era pela Rua Conselheiro Ramalho e
não pela Rua Rui Barbosa, como é hoje o Teatro
Sérgio Cardoso.

O Presença com Elizete Cardoso, 1958

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Abro aqui um parêntese: não sei por que cons-
truíram esse elefante branco do Teatro Sérgio
Cardoso, colocando abaixo o Teatro Bela Vista.
Sérgio tinha transformado um antigo cinema
num teatro magnífico, com 600 lugares, uma
acústica perfeita e infinitos recursos técnicos.
Por que colocar abaixo talvez o melhor teatro de
São Paulo para construir uma lingüiça compri-
da sem acústica, sepulcro de grandes interpre-
tações. Só pode ter sido por aquelas mutretas
de licitação, superfaturamento... Enfim, deixe-
mos para lá, pois este não é um relato político.
Ah!!! Pelo que eu me lembro, houve um erro na
construção e tiveram que fazer tudo de novo!

Mas, voltando à vaca fria, como dizia minha tia, 49


o Presença chegou na hora marcada. Na porta
do teatro, estava um homem de cabelos negros
puxados para trás, um carisma solar. Ele me
olhou de forma inquisitorial e perguntou:
– Você é o Renato?
– Sou.
– Veio fazer teste para o Chá?
– Sim.
– Você quer abraçar a carreira profissional?
– Claro, eu adoro teatro! (Sem nenhuma con-
vicção, eu estava ali de alegre, mais um número
do Presença)
– Venha, vou te mostrar o Bela Vista.

Ele passou a mão no meu ombro e me intro-


duziu naquela maravilha de teatro, me levou

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até o palco, onde fui apresentado à Nydia Licia,
linda, loira, de olhos azuis. Ela estava com uma
xícara na mão, esperando o próximo candidato
do teste para o Chá. Sérgio me entregou um
texto enorme e disse: Vou lhe dar este calhama-
ço para decorar, assim já testo a sua memória.
Esteja aqui depois de amanhã, às 14 horas em
ponto. Nada mais temos a dizer.

Corri para casa. Decorei, decorei, decorei. Dor-


mindo, acordado, na sala de aula. Nunca deco-
rei tanto na minha vida. Cheguei para o teste
decoradíssimo. Sabia as minhas falas e as da
Nydia. Tinha até medo de trocar e acabar dizen-
do algumas falas dela. Sérgio me perguntou:
50
– Está prontoôôô? (Ele tinha um ô tão grave
que parecia acabar lá no fundo do peito)
– Estou.
– Vou lhe dar as marcações, somente as mar-
cações. Não represente! Na hora, eu quero ver
como você faz.
– Claro.
– Até a fala tal, você está ajoelhadinho no chão,
com uma xícara de chá na mão, conversando
com Nydia. Depois, você vai ficar de pé nesta ca-
deira e ela vai experimentar em você um vestidi-
nho que o personagem vai usar na peça de fim
de ano da universidade (não é à toa que diziam
que o meu personagem era gay). Depois, você
vai até aquela porta e termina a cena seguran-
do na maçaneta (até hoje, não entendi por que
eu tinha que ficar segurando aquela maçaneta).

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Sérgio desceu para a platéia e perguntou:
– Podemos começar?
– Sim. (Olhei pra Nydia. Ela sorria para mim,
como quem quer transmitir confiança.)
– Entãoô, açãoôôô!!!

Bendita juventude, bendita inocência, bendi-


ta irresponsabilidade! Por incrível que pareça,
eu não estava nem um pouquinho nervoso.
Eu não tinha a menor noção do que poderia
acontecer comigo, das responsabilidades de um
profissional. Ela falou e eu respondi. Ela falou
e eu respondi. Ela falou e eu respondi. No final,
aquele homem subiu correndo no palco, me
deu um abraço apertado e disse:
– O papel é seuuuu! (O u do Sérgio também era 51
muito grave e sonoro) Nunca deixe o Teatro,
você é um ator. Você tem tudo contra você. Você
é baixinho, magrinho, franzino. Você é o anti-
Physique du Rôle de um primeiro ator. Mas você
é um ator, haverá sempre um espaço pra você!

Fiquei alucinado! Meu ídolo dizendo aquelas


coisas! Subi a Brigadeiro gritando: Ganhei! Ga-
nhei! De repente, me lembrei da Boite Cave, do
Jordão, do disco! Já estava quase na hora de
gravar. Havia até uma foto-prova pra capa do
LP. Corri até o Cave. Encontrei o Jordão exami-
nando a tal foto pra capa do disco. Aí sim, eu
fiquei nervoso. Eu tinha um pouco de medo da-
quele homem. Ele era um tipo bem machão que
se vangloriava da sua superpotência sexual.

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Dizia que, quando ficava de pau duro, seu pau
ficava tão duro que podia sustentar um piano
de cauda! Tomei coragem:
– Jordão, não vou mais cantar!
– Como, não vai mais cantar?
– Eu vou fazer Chá e Simpatia no Rio de Janei-
ro, com a Nydia Licia e o Carlos Zara, direção do
Sérgio Cardoso, e o protagonista sou eu! Vou
estrear no Teatro Copacabana, no Hotel Copa-
cabana Palace! (eu achava o máximo aquela es-
tória de Copacabana Palace)
– (Já irado) O quê, seu irresponsável?! Você acha
que eu gastei todo esse dinheiro com a minha
orquestra, ensaiando você todas as tardes... Já
assinei até contrato com a Philips... Pra agora
52
você me deixar na mão?! Olha aqui a foto que
vai ser a capa do disco!
– (Já me encaminhando furtivamente para a
porta de saída) Infelizmente, não vai ser pos-
sível Jordão. Estou embarcando esta noite pro
Rio, com toda a companhia do Sérgio. Quem
sabe na volta...
– (Mais irado ainda) Rua!!! Irresponsável!!!
Nunca mais pise o solo desta boate! Vai ser po-
bre na vida, filho-da-puta! Trocar uma carrei-
ra milionária pra fazer teatro! Teatro não dá
camisa a ninguém! Vai morrer na sarjeta, que
é o que você merece! Rua!! Antes que eu te
quebre essa cara, seu moleque!! Subi correndo
a Consolação e aquele homem na porta da bo-
ate gritando maldições: Vai ser pobre na vida,
filho-da-puta! Vai morrer na sarjeta!!

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Foi assim que troquei minha carreira de cantor
pelo teatro. Deixei um futuro popular pra ser
um ator de vanguarda. Estranho, eu era cria da
Rádio Nacional e acabei trocando Emilinha Bor-
ba por Brecht. Por outro lado, às vezes penso
que, como cantor, eu já poderia estar superado
há muito tempo, cantando Ave-Maria em festa
de casamento. O fato é que até hoje ando fu-
gindo das pragas do Jordão!

53

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Capítulo X
Estréia no Copacabana Palace

Sérgio me ensaiou com muito carinho. Lembro-


me bastante de como ele cobrava a musicalida-
de das falas. Não foi muito difícil pra mim, já
que eu era cantor. Em novembro de 1958, es-
treei como profissional no Teatro Copacabana,
no Hotel Copacabana Palace! Chá e Simpatia,
uma peça que, hoje, pode parecer ingênua, ti-
nha um grande apelo na época. Meu persona-
gem, Tom Lee, era um rapaz sensível, leitor de
poesia, adorava música clássica, teatro e odiava
beisebol, além do mais, era virgem. Ah, e ainda
por cima, foi visto tomando um banho de mar à
noite, na companhia de um professor e ambos 55
estavam nus. É claro que a universidade intei-
ra e vocês que estão lendo poderiam jurar que
Tom Lee era gay, mas acreditem, ele não era!
O tema provocava um enorme frisson entre o
público (o que ajuda a comprovar minha teo-
ria do escândalo). Também é preciso dizer que
Sergio, Nydia e Carlos Zara já eram nomes con-
sagrados. Tudo isso me deu a sorte de estrear
com um belo sucesso no Rio de Janeiro, ainda a
capital da República. Acho que fui salvo, nova-
mente, pela inocência e irresponsabilidade da
juventude. Estreei calmo como no teste. Porém,
o mais curioso disso tudo é que, ao final das
apresentações, formava-se uma fila de rapazes
sensíveis e perfumados na porta do meu cama-
rim para pedir autógrafo.

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Eles me diziam: Me sinto como você!, Ninguém
me compreende na minha casa. Eu sorria in-
quieto e pensava comigo mesmo: Será que es-
tou dando muita pinta?!

Quem adorava a peça era a grande cantora do


momento, Elizete Cardoso. Ela fazia um show
dirigido por Zilco Ribeiro no Golden Room do
Copacabana Palace. Elizete passava pelo teatro
e assistia todos os dias ao terceiro ato. Tinha
uma fala que ela adorava. Quando Nydia Licia se
entregava ao rapaz interpretado por mim para
provar que ele não era gay, ela dizia, quase sus-
surrando: Quando você se lembrar disso, e eu
sei que você vai se lembrar, por favor, que seja
58
com ternura. A cantora me pediu para escrever
trechos do Chá em folhas de caderno. Ficamos
muito amigos. Uma noite, Elizete me convidou
para assistir ao show lá no Golden Room. Não
era exatamente um show e sim uma revista de
luxo, muito bem dirigida por Zilco Ribeiro: uma
sucessão de quadros lindamente cenografados.
Num desses quadros, quase perdi a compostura
de tanto rir com Carmem Verônica, uma extraor-
dinária comediante-vedete. Elizete cantava uns
cinco números. Num deles, ela aparecia vestida
num longo preto, justíssimo. Cantou uma mú-
sica do Ary Barroso que eu ainda não conhe-
cia: Jogada Pelo Mundo. Terminava assim: Pois
tendo tudo, não tenho nada, ando jogada por
esse mundo, não tenho um bem, nem o amor
de ninguém. Aplaudi de pé.
Em Chá e SImpatia: nas páginas anteriores, com Nydia Licia,
e, à direita, com Raimundo Duprat, 1958

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Capítulo XI
O Encontro com Zé Celso

Vocês podem imaginar o que é pra cabeça de


um menino de 21 anos, que acabou uma tem-
porada de sucesso no Teatro Copacabana, vol-
tar pra São Paulo pra terminar a faculdade de
direito? Mas eu tinha prometido à minha famí-
lia. Naquele tempo a programação era: formar,
ter um escritório, casar, ter filhinhos, guardar
dinheiro, filhinho ter filhinho, ficar vovozinho...
Ah! Nada disso cabia na minha cabeça, estava
cheio de sonhos artísticos. Fiquei por ali, nas ar-
cadas. Havia um movimento cultural, discussões
filosóficas que se estendiam até o Pari Bar, na
praça da Biblioteca Mário de Andrade. Carlos 61
Henrique Escobar e Celso Luiz Paulini eram os
papas da época. Foi numa dessas reuniões do
Pari Bar que eu conheci um jovem muito tími-
do, de terno, gravata e sobretudo. Era José Cel-
so Martinez Corrêa, ele fazia parte da jeunesse
doreé de Araraquara, a nata intelectual da ci-
dade, junto com Ignácio de Loyola Brandão e
Luiz Roberto Salinas Fortes. Apesar disso, o nos-
so primeiro papo não teve nada de intelectual,
foi sobre MPB. Zé Celso me perguntou:
ZC: De quem você gosta como cantora?
R: Dalva de Oliveira.
ZC: A prima-dona do samba-canção! Você co-
nhece Isaurinha Garcia?
R: Ainda não.

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ZC: Então você tem de conhecer, é importante.
R: Por quê?
ZC: Ela é uma cantora do Método.
R: Como? (eu ainda era muito desinformado)
ZC: É uma cantora do Actor`s Studio.
R: Sei... (com cara de não estar entendendo nada)
ZC: É uma espécie de James Dean do samba.

Aí, eu entendi um pouco melhor. Numa noite de


inverno, ele me levou pra ver Isaurinha cantar
no Captain‘s Bar. Foi uma revelação. Na minha
frente estava uma mulher pequenininha, de ca-
belo louro cortado bem curtinho, parecia uma
personagem de Felinni, uma Giulietta Masina.
Ela era diferente de tudo, tinha uma eletrici-
62
dade no corpo, as mãos muito marcantes. Suas
mãos participavam da estória do samba. Algo
nada convencional. Ela era, de fato, Persona-
líssima. Quando ela cantou Velho Enferrujado,
fiquei tonto com o estilo e a divisão de Isaura.
Acho que ainda me lembro um pedacinho da le-
tra: Chega pra lá seu velho sem vergonha / com
essa cara de cegonha / querendo só me beliscar
/ chega pra lá / senão eu faço a bulha / chamo
a Rádio Patrulha para te pegar / chega pra lá /
velho saliente / saia correndo vá lamber sabão /
se você ficar me beliscando / careca de uma figa
eu te meto a mão... Saí de lá fã da Isaurinha,
comprei todos os discos que encontrei à venda.

Comecei uma amizade com o Zé. Nós tínhamos


muitas afinidades. Tanto ele quanto eu quería-

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mos romper com os padrões vigentes da classe
média. Odiávamos direito, estávamos à espera
de que alguma coisa acontecesse. Foi quando o
Zé escreveu uma peça: Vento Forte para um Pa-
pagaio Subir. A peça representava tudo que a
nossa geração queria: libertação dos valores da
família, conflito de gerações. Ele compôs uma
música para o espetáculo que era uma bandeira:

Eu hoje vou fugir com o vento


Vou até o firmamento
Vou ver a Terra brilhar
Vou abrir bem os meus braços
Me lançar por este espaço
A ventar, a ventar...
63
Esta peça, junto com A Ponte, de Carlos Queiroz
Telles, formou o primeiro espetáculo do Grupo
Oficina Amador, composto, em sua maioria,
pelos estudantes da Faculdade de Direito. A
seguir, Zé Celso escreveu outra peça, A Incuba-
deira, também sobre o tema libertação dos va-
lores da família. Ele me entregou o texto e dis-
se: Quero que você faça o Tarcísio (personagem
da peça). Ele já era meio impositivo. Eu li a peça
e adorei o personagem. Tarcísio era um rapaz
asmático, passava a peça inteira quase sem con-
seguir respirar, tomando remédios de 15 em 15
minutos, que ficavam numa farmacinha de vi-
dro. O menino era filho de uma mãe castradora
que não permitia que ele tivesse amigos, namo-
rada, vida social.

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Em duas cenas de A Incubadeira, com Maria Alice
Almeida, 1959

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Para fazer esta mãe, chamamos uma professo-
ra da Cultura Inglesa, que era nada menos do
que Etty Fraser, minha companheira querida
se tornaria minha mãezinha oficial no Teatro
Oficina. A relação sufocante entre mãe e filho
vai até o ponto em que Tarcísio toma consciên-
cia de sua condição submissa e, numa explo-
são emocional, quebra a farmacinha de vidro
e sai pra vida gritando: Ora, perdeu a graça!
Vocês não acham ridículo um homem barbado
brincando de Gulliver? Quem dirigiu a peça foi
Amir Haddad, meu colega de turma. Ele esta-
va com a perna quebrada e dirigia a gente ba-
tendo a sua bengalinha no chão para marcar o
ritmo. Quando a gente saía fora do ritmo, ele
dava uma ligeira bengalada no tornozelo da
66
gente. A Etty, coitada, levou muita bengalada
até entrar no ritmo.

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Capítulo XII
Brasília, Cuba e Sartre

Estávamos vivendo o Brasil de Juscelino Kubits-


chek: desenvolvimentismo, nacionalismo, a in-
dústria pesada brasileira, o Fusca, o Dauphine,
a Romiseta, todos de fabricação nacional. Havia
também o milagre da construção de Brasília:
cal, cimento, tijolos, ferro, tudo transportado
de avião pra construir a capital, no coração de
Goiás. O que mais nos mobilizou nesse tempo
foi a Revolução Cubana. Fidel Castro quebrou
a incubadeira e instaurou um regime socialis-
ta ali, na cara de Miami. Começamos a perce-
ber que a incubadeira não era só familiar, mas 67
também imperialista. Nossa economia não era
traçada por nós e sim, pelo governo norte-ame-
ricano (e, ao que parece, continuamos assim
até hoje). Fomos nos conscientizando da nos-
sa ignorância pequeno-burguesa e passamos
a freqüentar o Iseb – Instituto Brasileiro de Es-
tudos Superiores. Lá, ouvimos conferências de
sociólogos como Hélio Jaguaribe, Roland Corbi-
sier, e historiadores como Caio Prado Jr. À me-
dida que amadurecíamos politicamente, íamos
nos posicionando cada vez mais à esquerda de
Deus-pai, a exemplo do Arena que, em 1960, já
era um grupo totalmente engajado.

Outro personagem fundamental em nossa for-


mação foi Jean-Paul Sartre, o filósofo do exis-

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tencialismo. Liberdade individual com responsa-
bilidade era uma espécie de lema para a nossa
geração e Sartre, um deus. Devoramos todos
aqueles livros de 600, 700 páginas em francês,
procurando as palavras desconhecidas no dicio-
nário. Era um verdadeiro trabalho de devoção.
A Bíblia pra nós foi Furacão sobre Cuba, um li-
vro que, pra nossa sorte, era bem sucinto e tinha
tradução portuguesa. Tratava-se de uma defesa
da revolução de Fidel. De repente, o aconteci-
mento: Sartre e Simone de Beauvoir vieram ao
Brasil para uma série de conferências. Minha pri-
meira impressão quando vi Sartre pessoalmen-
te foi um tanto curiosa: diziam que, durante a
Segunda Guerra Mundial, ele havia ficado um
68
pouco paranóico e via caranguejos e lagostas
subindo pela parede. Enfim, achei que o Sartre
tinha cara de caranguejo. Já a Simone era uma
bela senhora, de olhos muito azuis. A jeunesse
doreé conseguiu levar o casal para fazer confe-
rências em Araraquara, segundo me confirmou
o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso du-
rante uma das apresentações da versão teatral
de Borghi em Revista. Aproveitamos a oportuni-
dade e, com a maior cara-de-pau, pedimos que
Sartre nos cedesse gratuitamente os direitos de
um roteiro de cinema que ele havia recém-ter-
minado: A Engrenagem. O roteiro era inspirado
na recente Revolução Cubana. Ele, gentilmente,
nos concedeu os direitos para uma montagem
teatral. A peça estreou em 1960, no Teatro Bela
Vista, com a direção do Augusto Boal.

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Em A Engrenagem, com Rosamaria Murtinho, 1960

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O espetáculo provocou, por parte da imprensa,
muitos elogios e muita discussão. Porém, o epi-
sódio mais significativo de A Engrenagem acon-
teceu fora do teatro. Queríamos representar o
espetáculo em praça pública. O local escolhido
foi o Monumento da Independência, em frente
ao Museu do Ipiranga. Quando começamos a
representar a primeira cena, fomos imediata-
mente impedidos por um grande aparato poli-
cial. Em protesto, nos amordaçamos e ficamos
postados em silêncio em frente ao monumento.
Em seguida, saímos em pequena passeata, ain-
da amordaçados, pelas ruas do Ipiranga. Coin-
cidentemente, cruzamos com uma enorme pas-
seata dos grevistas da Fábrica Aimoré (aquela
da Bolacha Maria). Nos juntamos a eles. Quan-
70
do passamos pela porta da Clube Atlético Ipi-
ranga, nos separamos do grupo, pois tínhamos
uma apresentação agendada no clube. Entre-
tanto, fizemos um convite aos operários para
que assistissem ao espetáculo e eles toparam.
Nova surpresa: a direção do clube proibiu a en-
trada dos operários em suas dependências. Este
fato foi bastante revelador do abismo entre as
classes sociais no Brasil. Os operários, ainda mais
grevistas, não poderiam pisar o mesmo solo do
publiqueto de classe média do Clube Atlético
Ipiranga (aposto que isso também não mudou
muito até hoje). Com A Engrenagem, surgiu
em nosso grupo um claro desejo de participa-
ção nas lutas políticas e sociais do nosso tempo.

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Capítulo XIII
Um Caminho Sem Volta

Bom, a faculdade estava terminando, não dava


mais pra enrolar a família. Zé e eu queríamos
radicalizar. Em frente ao índio da Praça Oswal-
do Cruz, numa noite de inverno, vestindo so-
bretudos pretos, como dois bruxos, fizemos um
juramento: teatro irreversível, um caminho sem
volta. Mas não um teatro de arte pela arte e
sim um teatro pela transformação da sociedade
brasileira. Foi assim que o grupo Oficina passou
de amador a profissional. O primeiro passo para
a profissionalização era ter uma sede. O TBC ti-
nha uma sede, o Arena tinha uma sede. Meu 71
pai, Adriano Borghi, foi um personagem impor-
tante nesse capítulo. Confiou em nós e avalizou
um contrato de aluguel de um imóvel situado
à Rua Jaceguai 520, onde o Oficina mora até
hoje. Quando alugamos o imóvel, ele era um
teatro ocupado por um grupo espírita. Chama-
va-se Teatro Novos Comediantes. O tal grupo
foi despejado por falta de pagamento (teatro
espírita não tinha muito ibope naquele tempo,
ao contrário de hoje). Quando entramos no es-
paço para tomar posse do que havíamos aluga-
do, encontramos só um grande espaço vazio:
paredes, teto e chão de cimento batido. Os es-
píritas levaram cadeiras, arquibancadas, palco,
cortinas, enfim, tudo que lhes pertencia. Leva-
ram a alma e deixaram o esqueleto.

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Era preciso começar do zero, construir um novo
teatro dentro de um garajão.

Aí, é que eu tento explicar aos jovens de hoje e


não consigo: era difícil construir um teatro, mas,
ao mesmo tempo, era fácil. Era um tempo de mo-
bilização, as pessoas se mobilizavam facilmente.
O que é que tinham que vir o Vinícius de Moraes
e a Nara Leão, lá do Rio de Janeiro, pra fazer
shows de Bossa Nova no auditório do Macken-
zie, pra ajudar um grupo de jovens, que eles mal
conheciam, a levantar fundos para a construção
de um hipotético teatro? Mas eles vieram e não
só uma vez, algumas vezes. As poltronas do tea-
tro foram conseguidas através da influência do
72
saudoso Paschoal Carlos Magno. Inventamos vá-
rios outros expedientes: livro de ouro, donativos,
cadeiras cativas. Meu Deus, como a Etty vendeu
cadeira cativa! A gente saía no fusquinha dela
vendendo pelo Pacaembu inteiro. Parecia o Síl-
vio Santos com o Baú da Felicidade.

O que eu me lembro é que, em pouco tempo,


levantamos os recursos e construímos o nosso
teatrinho sanduíche, com duas platéias, uma
em frente à outra e cenografia nas laterais do
palco. A planta foi de Joaquim Guedes. Essa geo-
grafia seria, um pouco depois, magnificamente
usada pelo cenógrafo Flávio Império.

Também é preciso não esquecer que os críticos


deram uma grande força para a formação do

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Oficina profissional. Décio de Almeida Prado e
Sábato Magaldi nos acompanhavam desde os
primórdios, do Vento Forte..., da Incubadeira,
sempre afirmando que nós éramos um grupo
sério, do qual muito se poderia esperar. É claro
que isso dava moral para enfrentarmos proble-
mas que ainda não conhecíamos: contabilida-
de, alvarás, todo tipo de burocracia e responsa-
bilidade jurídica.

73

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Em A Vida Impressa em Dólar, com Célia Helena, 1961

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Capítulo XIV
A Vida Impressa em Dólar

Enquanto o teatro surgia no garajão, ensaiáva-


mos nossa primeira peça profissional: uma peça
escrita por Clifford Odetts, autor americano li-
gado ao Group Theatre, notoriamente um gru-
po de esquerda nos Estados Unidos. A peça, ori-
ginalmente, chama-se Awake and Sing, mas nós,
em nosso ímpeto revolucionário, já traduzimos
o título como A Vida Impressa em Dólar. Era a
nossa vida aprisionada na incubadeira do dólar.
O convite do espetáculo era uma nota de dólar.

Continuando na trilha da mobilização, nós cha- 75


mamos alguns profissionais importantes para
trabalhar conosco. E eles vieram. Convidamos
o Eugênio Kusnet, que já era um ator consa-
grado, havia trabalhado no TBC, com a Maria
Della Costa, no Arena. E ele aceitou: Claro que
eu aceito, Renato. Contanto que eu também
possa ser professor de interpretação do grupo.
Olha que luxo! O herdeiro de Stanislavsky, nos-
so professor! Em seguida, o Zé convidou a Célia
Helena, que já era bastante conhecida, tinha
feito filmes, trabalhado com Cacilda Becker. A
Célia ficou ali, de nossa irmãzinha, ensaiando
durante toda a construção. A emoção de Ce-
linha me deixava espantado. Um dia, num la-
boratório com o Jairo Arco e Flexa, ele deu um
soco numa mesa e gritou: Que caia o teto!!!

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A mesa rachou no meio, como num filme de
Kung-Fu. Parecia técnica de caratê. Trouxemos
também o Fauzi Arap, que tinha acabado de
se formar em engenharia, mas, assim como nós
com o direito, ele não queria nada com enge-
nharia. Só que ele foi menos esperto que nós,
pois em engenharia ele teve que estudar muito
mais. Não consigo imaginar um prédio construí-
do pelo Fauzi! Ele era mais fã da Isaurinha Gar-
cia do que o Zé e eu. Ele tinha aquelas mãos de
Isaurinha, cortando o ar o tempo todo, às ve-
zes, ocultando um pouco o rosto, enfim, perso-
nalíssimo. Na Vida Impressa em Dólar, ele fazia
um judeu pobre desprezado pela mulher (Célia
Helena) que ficava se queixando com a sogra
76 (Etty Fraser): A Reny não me ama! Não quer
mais fazer amor comigo. (tudo isso com forte
sotaque) Me faz trocar fralda de bebê... Logo
na sua primeira entrada em cena, ele deveria
dizer: Este interruptor não acende?! Mas, na
estréia, ele foi logo mandando: Este CORRUP-
TOR não acende?! Isso provocou uma grande
gargalhada no público e ele já entrou em cena
debaixo de aplauso.

Danado, o Fauzi! Ele me causava inveja pela li-


berdade cênica. Ele e o Guarnieri. Eu ainda era
muito presinho nesse tempo. Ainda não tinha
conseguido achar um jeito meu de atuar. Esta-
va muito amarrado às influências de Cacilda,
Cleyde, Walmor. Imitava um pouco o James

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Eugênio Kusnet em A Vida Impressa em Dólar, 1961

Dean da Mooca, do Arena. Minha personalida-


de cênica ainda estava indefinida, embora eu
já tivesse um temperamento bastante pródigo.
Por temperamento, eu entendo aquela ligação
permanente, aquele fogo aceso.
O único profissional que não conseguimos foi
um diretor experiente e renomado para nos di-
rigir. Ziembinsky não podia. Flávio Rangel foi
simpático ao projeto, mas consultou sua agen-
da e me disse com aquela saudosa voz de Pato
Donald: Não posso, Renatinho. Estou compro-
metido até dezembro do ano que vêm.

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Então, eu disse ao Zé Celso: Vai você! Ele resis-
tiu: Mas eu sou autor! Eu insisti: Não tem nada
disso, não. Vai ser você. Pode começar. Ele assu-
miu a direção com a assessoria do Kusnet para a
interpretação dos atores. Logo no começo dos
ensaios, Zé Celso já mostrou quem era: radical.

Hoje em dia, o choro com lágrimas na TV é uma


coisa corriqueira, pois a proximidade do vídeo
exige. Embora, muitas vezes, aconteça como
uma técnica mecânica, sem nenhuma emoção.
Mas, naquele tempo, chorar lágrimas de ver-
dade, num momento exato e com a emoção
específica, era uma lenha. A Etty, coitadinha,
tinha um desses momentos dificílimos, e o Zé
78
queria emoção de verdade com lágrimas bro-
tando aos borbotões (é importante lembrar
que estávamos muito influenciados pelo Mé-
todo). Quando chegava o momento crucial, a
Etty empacava. Parece que o organismo intei-
ro conspira para não liberar uma gotinha se-
quer da almejada lágrima. A Etty se desculpava:
Hoje não vai dar. Acho que não vou conseguir.
O Zé então descobriu que ela tinha trazido de
casa pro ensaio uns pratos de porcelana mui-
to delicados, com bordas douradas e florzinhas
pintadas em esmalte. Um dia, ele passou a
mão num desses pratos e ficou segurando, en-
quanto observava a Etty fazer a cena-proble-
ma. No tal momento crucial, ele largou o prato
no chão. O pratinho fez plaft e se quebrou. Ao
ver os cacos, a Etty explodiu num choro deses-

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perado, exatamente como a cena pedia: Tra-
balhei demais a minha vida inteira pra ser tra-
tada feito lixooo, oh, oh, oh... Ela nunca mais
deixou de chorar naquele momento, nunca
mais errou o canal. Danado, o Zé Celso! Esta-
va muito bem iniciada sua carreira de diretor.

Bem, chegou o tempo de estrear a Vida e inau-


gurar o novo teatro: o Teatro Oficina. Acho que
Zé Celso e eu, embora ainda muito ingênuos
naquele tempo, já intuíamos que seria bom ter
uma madrinha poderosa que nos ajudasse a
resolver entraves burocráticos, tais como visto-
ria da casa de espetáculos, alvará de funciona-
mento da Prefeitura e outras exigências legais
para que o teatro pudesse funcionar. Surgiu 79
um enxame de fiscais querendo ganhar propi-
na, criando falsos problemas, usando de inti-
midação e ameaçando impedir a abertura do
teatro, além de nos enviar multas descabidas
e mil exigências que sabíamos desnecessárias.
Quem melhor para nos amadrinhar do que a
esposa do próprio Prefeito Prestes Maia? Con-
vidamos Dona Maria Prestes Maia para cortar a
fita de inauguração no dia da estréia. Ela acei-
tou. Dona Maria era uma ex-atriz portuguesa,
muito despachada, falante. Gabava-se muito de
sua franqueza rude e, pra falar a verdade, era
muito franca mesmo, muito além dos limites da
boa educação. Depois de assistir ao nosso en-
saio geral, aquela senhora gorduchinha largou
o pau português no nosso trabalho.

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Ela disse horrores com aquele sotaque carrega-
do: Os atores brasileiros não sabem o que fazer
com as mãos; ou fumam o tempo inteiro ou en-
fiam as mãos nos bolsos para esconder a sua fal-
ta de repertório; e as atrizes não têm elegância,
não sabem sentar-se numa cadeira nem abrir
um leque e abanar-se com estilo; e as inflexões
são duras, sem aqueles volteios sonoros tão ne-
cessários ao trabalho de palco. Kusnet ficou fu-
rioso. Ficamos arrasados, mas nosso mestre nos
tranqüilizou dizendo que estávamos represen-
tando personagens muito pobres e desprovidos
de qualquer toque de elegância. Procurar vol-
teios vocais seria um erro fatal na encenação. O
mestre disse ainda que aquela senhora era uma
80
representante do velho teatro e seus critérios
estavam completamente superados. Claro que
o mestre só disse isso depois que Dona Maria já
havia ido embora. No dia da estréia, a esposa
do Prefeito compareceu com chapéu enterrado
na cabeça e, depois de pronunciar algumas pa-
lavras portuguesas, cortou a fita verde e amare-
la debaixo de uma salva de palmas.

Estreamos a Vida Impressa em Dólar num dia e,


no outro, a peça foi retirada de cartaz e o tea-
tro lacrado. Como dizia minha Vó Dinda, aqui
acresce uma circunstância: a censura no Brasil,
mesmo antes da ditadura, já era bastante in-
fluente e reacionária. Eles nunca admitiram,
mas acho que o nome da peça soou provocati-
vo aos ouvidos da feroz direita brasileira.

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Mas hoje eu devo dar graças a Deus por essa
proibição! Foi um escândalo imenso. Como eu
já disse, era um tempo de mobilização. Décio e
Sábato protestaram contra a censura da peça,
assim como vários outros intelectuais de São
Paulo, Rio e outros estados, além de órgãos
públicos, como o Serviço Nacional de Teatro.
O movimento foi de tal monta, que o então
Governador Carvalho Pinto pediu vistas ao pro-
cesso. A censura quis botar a culpa na casa de
espetáculo, afirmando que ela não preenchia
condições mínimas de segurança, mas o Prefei-
to ouviu os apelos de sua esposa e manteve o
nosso HABITE-SE. Em poucos dias, a peça nos
foi devolvida e o teatro, reaberto. Como onde
há escândalo, há público, o espetáculo voltou 81
com uma enorme visibilidade e tornou-se um
grande sucesso para os padrões de um grupo
iniciante. O público queria saber que peça era
aquela, que causou tanto alvoroço. Na verdade
e, felizmente, tratava-se apenas de uma peça
muito bem realizada do ponto de vista realista
que agradava bastante a platéia. A peça per-
maneceu vários meses em cartaz, nos permi-
tindo pagar o restante de dívidas da constru-
ção, o salário dos profissionais e garantir nossa
própria sobrevivência. Foi aí que descobrimos
a importância da bilheteria. Naquele tempo
não tinha Petrobras, Eletrobrás, Brasil Telecom,
Centro Cultural Banco do Brasil, Sesc, Sesi, etc.
Era fichas na caixa, do you understand?! Quer
dizer: pagou, ficou; não pagou, faliu!

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Formando em Direito, pela USP, 1960

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Capítulo XV
Namoro Com as Estrelas

A revelação da bilheteria nos aproximou de


algumas grandes estrelas da época. Nosso pri-
meiro namoro foi com Maria Fernanda, filha
da poetisa Cecília Meirelles. Maria Fernanda
era uma mulher muito bela, de cabelos e olhos
negros, pele morena e um sorriso lindo que re-
velava dentes muito brancos e provocava duas
covinhas atrevidas em seu rosto. Além de talen-
tosa, ela era muito culta, conhecia profunda-
mente os poetas e declamava Lorca em espa-
nhol com sua voz de contralto: Verde que te
quiero Verde. Também cantava em russo. Ela
tinha feito na Bahia, com a direção de Martim 83
Gonçalves, Um Bonde Chamado Desejo, de Ten-
nessee Williams. Convidamos Maria para fazer
o Bonde no Oficina com a direção de Augusto
Boal. Ela olhou a pequena marquise do nosso
teatrinho e me disse: Meu bem, o meu nome
é tão grande que sozinho encheria a marqui-
se do seu teatro. Acho que ela queria o nome
dela com exclusividade na fachada do teatro. E
assim foi feito. E foi ótimo, porque ela encheu a
nossa marquise de público. Maria foi uma com-
panheira estimulante e muito bem-humorada,
engraçadíssima quando se punha a contar ca-
sos e aventuras vividas na Europa. Um dia, ela
quase me mata de rir no final do ensaio. Boal,
como sempre muito meticuloso, explicava deta-
lhadamente nossas motivações.

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Maria tirou da bolsa um perfume tipo spray e
começou a perfumar-se dos pés à cabeça. Boal
parou de falar e, em seguida, reclamou: Pom-
bas, Maria, você não está nem aí para o que
eu estou dizendo? Ela respondeu fazendo um
charme irresistível: Meu bem, você fala e eu me
perfumo, o que é que tem? Estou ouvindo e
registrando tudo, isso não impede que minhas
mãos acionem o spray do meu perfume francês.
Boal ficou em silêncio algum tempo, depois re-
tomou seu discurso. Quase explodi numa gar-
galhada sonora, mas me contive a duras penas.
Alguns anos depois, encontrei com ela na Cine-
lândia, durante uma manifestação política, no
auge da ditadura. Era uma manhã de verão e
84
o sol do Rio brilhava numa intensidade eston-
teante. Avistei Maria Fernanda sentadinha na
grama passando creme no rosto, nos braços e
nas pernas. Beijei-a e perguntei como ela es-
tava. Maria radiante respondeu: Estou ótima,
meu bem. Enquanto me politizo ouvindo o
Wladimir Palmeira, aproveito esse sol maravi-
lhoso pra me bronzear um pouco. Maria Fer-
nanda era o que eu chamo de fora de série.

Uma vez, durante a temporada do Bonde Cha-


mado Desejo, Vivien Leigh veio a São Paulo fa-
zer uma temporada no Teatro Municipal. Ela
havia sido a criadora máxima de Blanche Du-
Bois, personagem que Maria estava fazendo
no Oficina. Fomos vê-la e voltamos encantados
com a beleza da atriz inglesa.

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Ela já estava bem madura, mas seu rosto, em
cena, parecia com a Scarlett O’Hara de E o Ven-
to Levou. Resolvemos homenageá-la. Maria era
fã de carteirinha de Vivien e ficou encantada
com a idéia. Convidaríamos a atriz para vir ao
Oficina durante a tarde, e então Maria Fernan-
da e Maurício Nabuco representariam a famosa
cena de Mitch e Blanche. Ronaldo Daniel, que
era filho de ingleses (tinha dupla cidadania), fa-
ria uma speech em inglês, entregaria uma placa
de prata a Vivien, testemunhando nossa admi-
ração. Fomos ao Municipal convidá-la e, para
surpresa nossa, ela aceitou, com a condição de
que não houvesse ninguém da imprensa, espe-
cialmente fotógrafos. Concordamos, é claro. No
dia marcado, um táxi parou na porta de teatro 85
e Vivien desceu acompanhada de seu protegé,
um namorado muito mais moço do que ela. A
deusa usava um capuz que lhe cobria os cabelos
pintados e o rosto estava um pouco intumescido,
como quem tivesse acabado de acordar depois
de dormir horas demais ou, quem sabe, um leve
tom de ressaca... Seus imensos olhos azuis, po-
rém, eram ainda mais belos do que no cinema.
Eu estava imerso em seus olhos, quando apare-
ceu, não sei de onde, um fotógrafo pipocando
flashes. Vivien fez uma cara de horror e entrou
correndo no teatro sem conhecer nada do espa-
ço e desapareceu. Procuramos por toda a par-
te, banheiros, camarins e não encontrávamos
nada. Maria Fernanda começou a ficar nervosa.
Foi quando me deu a idéia de descer ao porão.

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Tudo escuro. Ouvi um leve suspiro. Acendi as
luzes e lá estava a diva agachada, com a cabe-
ça enfiada num caixote. Fui me aproximando e
falei carinhosamente com ela: Miss Leigh, they
are gone. No press anymore. Let’s go upstairs.
Maria Fernanda is waiting for you. Ela tirou a
cabeça do caixote e perguntou: Are you sure?
Yes, of course, respondi. Vivien levantou-se e,
elegante, sorriu para mim, murmurando: Thank
you. Em seguida, me deu o braço e subimos, em
silêncio, as escadas do porão para o teatro. Era
a própria Blanche DuBois, na cena final do Bon-
de. A cerimônia começou: Maria representou
duas cenas e Ronaldo discursou entregando a
placa de prata. Depois, um alegre bate-papo.
86
Vivien ficou encantada ao saber que Fernan-
da era filha de uma poetisa. Fernanda contou
que a mãe estava com câncer, internada num
hospital no Rio de Janeiro. Quando Vivien fez
a temporada carioca, ficou quase todo o tempo
como acompanhante de Cecília Meirelles. Fica-
ram grandes amigas.

Outra grande estrela que nós namoramos foi


Madame Henriette Morineau. Pra quem não
sabe, Madame foi uma grande atriz na França.
Ela veio ao Brasil com a Companhia de Louis
Jouvet. Chegou de casamento marcado com um
tal de Morineau, um francês muito chato com
quem ela teve uma filha, Antoinette. O casal se
deu pessimamente. Madame queria retomar a
excursão pelo mundo com Jouvet, levando a fi-

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lha, mas o marido a impediu judicialmente. Ma-
dame foi ficando no Brasil, lutando pela filha.
Durante esse tempo, Madame entrou em con-
tato com o teatro profissional brasileiro: dirigiu
peças para Bibi Ferreira, aprendeu a falar por-
tuguês (embora com um sotaque carregado) e,
logo, já estava representando pra nós.

Madame se tornou uma das grandes estrelas


do nosso teatro, na Companhia Artistas Uni-
dos, que ocupava, permanentemente, o Teatro
Copacabana. Ela fazia um repertório moderno
pra época: Chérie, Gigi, Medéia. Madame não
se dizia adepta de laboratórios de cena, mas,
sem saber, ela fazia exercícios que lembravam
métodos de Lee Strasberg. Ela me contou que, 87
enquanto ensaiava Medéia, não se sentia no
direito de exclamar: Ai de mim! Ai de mim!
Então Madame pediu ao elenco que colocasse
uma cama em cima dela e que todos ficassem
pulando sobre a cama até que ela quebrasse
e que, ainda assim, todos permanecessem so-
bre o estrado quebrado exercendo sobre ela
uma opressão física. Só então, esmagada por
todos os lados, ela conseguiu um gemido ver-
dadeiro: Aiii de mím!! Aiiii de mim!!! Marília
Pêra fazia uma das filhinhas assassinadas pela
Medéia/Morineau.

Convidamos Madame para fazer Todo Anjo


é Terrível, de Katty Frings, peça inspirada no
romance Look Homeward, Angel, de Thomas

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Wolfe. Eu fiz o convite por telefone e ela pron-
tamente disse: Quando começam os ensaios?
Eu respondi: Quinta-Feira. Estarrrei aí, disse
Madame, encerrando o telefonema. Nem per-
guntou quanto ia ganhar. No dia marcado, ela
chegou de fato. Mas que chegada foi aquela,
meu Deus! Zé e eu não estávamos ainda forma-
dos na Universidade das Estrelas. Não entendía-
mos nada das etiquetas e formalidades exigidas
para receber alguém como Henriette Morineau.
Madame veio de trem e, quando desembarcou
na estação Roosevelt, não havia nenhum de nós
esperando por ela. Um secretário meloso de um
metro e meio acompanhava a grande atriz. Em
meu pequeno apartamento na Rua Humaitá,
88
dormíamos todos tranqüilamente: Zé, eu e mais
um monte de gente. Meu apartamento era, na-
quele tempo, uma espécie de albergue para os
colegas sem-teto. Lá pelas oito da manhã, mais
ou menos, tocou a campainha. Acordei meio
tonto e fui ver quem era. Quase desmaiei de
susto. Na minha frente, estava uma imponente
senhora de quase dois metros de altura, ladeada
por seu minúsculo secretário. Fiquei paralisado.
Eu estava ali, de cuecas, e Madame na minha
frente. Quando dei pela coisa, cobri a região
genital com as duas mãos, como se adiantasse
alguma coisa. Depois de um silêncio que me pa-
receu eterno, consegui exclamar: MADAME!!!!
Ela invadiu o apartamento, batendo palmas e
falando muito alto: Que verrrrgonha! Todos es-
ses meninos dorrrmindo até essa horrra. Isso é

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maneirra de receberrr uma atriz que vocês con-
vidaram para trabalharrr? Ninguém na estaçon,
nem uma florr! Ela correu para a janela da sala
arreganhando-a impiedosamente. Continuava
a bater palmas: Vamos, vamos levantando que
Morineau chegou. Os colegas de sono estavam
aparvalhados, todos cobrindo o pinto, correndo
pro banheiro, pra cozinha, um deus-nos-acuda.
Ela continuava batendo palmas: Vamos, vamos
vestindo essas rroupas que eu querro conhecerrr
o teatrro. Vamos trabalharrr, seus prreguiçosos,
eu vim aqui para trabalharrr. Vestimo-nos ra-
pidamente (um no quarto, outro no banheiro,
outro na cozinha), e saímos pela manhã paulista
com Madame e seu secretário, caminhando em
grupo em direção ao Oficina. 89

Com Madame, aprendi muitas coisas que Sta-


nislavsky, através do Kusnet, não deixava muito
claras pra mim. Quando se deve andar, quando
se deve parar para expressar mais claramen-
te uma idéia. Quando a gesticulação é livre e
quando é melhor manter as mãos quietas. Ma-
dame dominava muito bem a ciência corporal.
Aprendi também algumas outras malícias de
bastidores. Não se deve chegar na estréia de
alguém e ir ao camarim depois para dizer fran-
quezas como: Achei uma droga o seu espetácu-
lo! A pessoa ainda está com o coração quente,
suada da estréia, fez o melhor que podia, não
merece esse choque. Fui ver com Madame A Vi-
sita da Velha Senhora, de Dürrematt.

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Duas cenas de Todo Anjo é Terrível, com Henriette
Morineau, 1962

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Era a primeira direção de Walmor Chagas. Quem
fazia a protagonista era a minha deusa Cacilda
Becker. Uma grande produção. Antes da entra-
da triunfal da Velha Senhora, desfilavam pelo
palco jaulas com panteras, onças, macacos,
cotias; parecia um jardim zoológico. Num de-
terminado momento, Cacilda dizia: O mundo
fez de mim prostituta, eu faço do mundo um
bordel! Eu achei lindo! Aliás, tudo que Cacilda
fazia eu achava lindo. Quando terminou o es-
petáculo, olhei pra Madame e ela me disse com
aquele sotaque carregado: Eu non gostei! En-
tão eu propus a Madame que fôssemos embora
logo. Ela rechaçou a idéia: Non, eu preciso ir
lá dentrrro falarrr com eles. Eu tentei impedir:
92
Madame, mas a senhora não gostou. Ela me
olhou muito séria e respondeu: Deixe comigo.
Entrou para os camarins. Quando Cacilda viu
Madame ficou comovidíssima, estendeu pra ela
os bracinhos magros e suspirou: Madame, que
alegria! A senhora veio. Então, o que achou
do nosso espetáculo? Madame agarrou Cacil-
da num abraço tão forte que quase quebrou
aqueles ossinhos frágeis e exclamou: Ooooooo-
hhhhhhh!!! Sssssshhhhhhh!!! Então saiu sem
dizer mais nada. Lá fora, eu quis satisfazer mi-
nha curiosidade ingênua: Madame, mas a se-
nhora odiou!. Ela me respondeu sorrindo: Non
seja bobo, eu posso ter dito: Oooohhhh, que
drrroga! Ou Sssshhhhh, que merrrda! Ah! Ain-
da me lembro que, alguns anos depois, ela me
comunicou: Vou levantar as persianas.

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Na hora não entendi. Ela queria dizer que ia
fazer uma plástica com o Pitanguy. Essa era mi-
nha querida Madame Henriette Morineau. Fo-
mos amigos durante toda a sua vida. Um dia,
muitos anos depois, fui vê-la representar em
Ensina-me a Viver. Estava, como sempre, genial.
Acho que foi Madame quem lançou no teatro o
jovem ator Diogo Villela. Fui dar um beijo nela
depois do espetáculo. Madame estava radian-
te: Oh, meu filho, que saudade. Como estás?
Viste que sucesso! Foi então que me segredou
no ouvido: Sabes, ontem tive uma isquemia no
corraçon em cena aberrta, mas levei o espetá-
culo até o fim. Eles querriam me prenderr no
hospital, mas eu não concorrdei. Não querro
pararr o espetáculo. Fiquei inquieto e adverti: 93
Madame a senhora está correndo um perigo
enorme. Ela sorriu e me disse com todas as le-
tras: Querro morrerr no palco, meu filho, aqui
é meu lugarr. C’est la gloire!

Meses depois, ela teve o enfarte anunciado.


Veio internar-se no Hospital do Coração para
ser operada pelo Dr. Zerbini. Quando as visitas
foram liberadas, fui visitá-la. Ela estava feliz,
com muitos planos, mas precisaria ficar em São
Paulo por mais de dois meses para consultas
semanais. Convidei-a a ficar morando comigo
durante esse tempo de recuperação. Madame
aceitou o convite e veio com sua filha única, An-
toinette. Conversamos demais nesse período.
Madame contava seu passado na França, seus

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estudos de teatro no Conservatoire de Paris, seu
amor por um pai misterioso que ela nunca via,
enfim, seus primeiros amores e o casamento in-
feliz com um tal de Morineau, pai de Antoinet-
te. Ficávamos sentados na sala: Elias Andreato,
Madame e eu. Às vezes, parecia que o século 19
tinha invadido meu apartamento. Nessa altura,
eu já havia deixado o Oficina há muitos anos e
morava num grande apartamento na Al. San-
tos, onde resido até hoje. Madame voltou para
o Rio e ainda fez uma peça. Voltava a cada mês
para consultas de rotina. Foi então que comecei
a notar mudanças acentuadas em seu compor-
tamento: lapsos freqüentes, perda de memória;
às vezes, no meio de uma conversa banal, ela
94
se punha a falar numa língua incompreensí-
vel. A seguir, pedia desculpas e continuava a
conversa normalmente de onde havia inter-
rompido. Foi o princípio de uma longa agonia.

Não era possível continuar trabalhando. Antoi-


nette tentou levá-la para Miguel Pereira, onde
Madame tinha uma casa de campo. Não foi
possível permanecer lá por muito tempo. Mi-
nha amiga desaparecia durante a noite e va-
gava pelas ruas da cidade de camisola. Um dia,
sumiu por longas horas, vagando pelos campos.
Foi preciso interná-la. Quando melhorou um
pouco, ficou uns tempos na Casa do Artista. De-
pois a situação agravou-se. Não conhecia mais
ninguém e, logo a seguir, voltava a conhecer.
Era uma esclerose galopante.

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Maria Fernanda liderou um movimento de ar-
tistas solicitando das autoridades a internação
permanente de Morineau. E assim foi feito. Ela
permaneceu internada por uns tempos e faleceu
num leito de hospital. O velório foi no saguão
do Teatro Villa-Lobos. Minha comadre Regina
Malheiros me telefonou do Rio me avisando.
Tomei o primeiro avião. Quando cheguei, uma
enorme decepção. Havia pouquíssima gente no
velório. Marília Pêra e Beatriz Segall estavam
lá, mas a classe teatral esteve quase ausente.
A noite foi muito triste. A filha, Antoinette,
eu e mais algumas pessoas ficamos por lá. Pela
manhã, apareceram mais algumas pessoas. Na
hora de fechar o caixão, ouviu-se uma voz de
homem que perguntava aos gritos com uma 95
voz chorosa: Onde está ela? Onde está ela?

Era Guilherme Figueiredo que chegava. Ele


adentrou o recinto, aproximou-se do caixão e
pronunciou um discurso de cortar o coração:
Madame, hoje a casa não está lotada como a
senhora gostaria. Em compensação, estão aqui
presentes aqueles que a amaram de verdade,
todos eles representantes do que se faz de me-
lhor no Teatro Brasileiro. Descanse em paz, mi-
nha grande amiga, e leve consigo a nossa eter-
na saudade. Como reconhecimento de todo seu
maravilhoso trabalho e tudo que a senhora fez
pelo teatro de nosso país, eu a condecoro com
a medalha da Legião de Honra que me foi con-
cedida pelo governo francês. A mais alta con-

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decoração da França para a francesa mais brasi-
leira do que qualquer um de nós. Receba nossa
homenagem e nossa infinita gratidão.

Dizendo essas breves palavras, soluçando alto,


Guilherme condecorou o peito de Madame
com a medalha que ele dizia ser o seu bem mais
precioso. Todos nós soluçamos com ele. Fecha-
ram o caixão. Certamente, esse não é o fim de
uma grande estrela. Ela continua a empunhar
a tocha com o fogo-sagrado do Teatro. Esta foi
uma das últimas imagens que tive de Madame
em uma leitura de O Rei da Vela, feita pelo
Zé Celso nos anos 80: ela estava paramentada
como uma espécie de Estátua da Liberdade, em-
punhando a famosa tocha e tendo, a seus pés,
96
as atrizes-sacerdotisas Norma Bengell e Odete
Lara. Que saudades, Madame!

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Capítulo XVI
Os Pequenos Burgueses

Meses depois de eleito, o Jânio Quadros renun-


ciou. Nunca disse por quê. Até na hora da ex-
trema-unção, o Padre deve ter perguntado com
a hóstia na mão: Por que você renunciou? Por
quê?!!! Mas o Jânio não disse, levou o segredo
pro túmulo. Quem devia tomar posse no lugar
dele era o vice-presidente eleito pelo voto po-
pular, João Goulart, o Jango. Ele tinha ideais so-
cialistas. A extrema-direita do exército e a classe
média reacionária não queriam a posse de Jango
de forma alguma. Começou uma luta pela lega-
lidade. O Brizola ameaçava vir do Rio Grande do 97
Sul com suas tropas para garantir a posse de Jan-
go. Os eternos políticos de centro tentaram pas-
sar uma vaselina na situação com uma emenda
parlamentarista para diluir os poderes do Presi-
dente Jango. Foi uma palhaçada, ninguém tinha
a menor experiência com parlamentarismo. É
claro que não funcionou. O Jango tomou posse
e parecia que o país mudaria efetivamente de
rumo. Falava-se em Reforma Agrária, Ligas Cam-
ponesas, Revolta dos Marinheiros e a adesão dos
estudantes ao movimento socialista era eviden-
te. O Brasil estava caminhando para a esquerda.
Foi quando o Kusnet colocou em nossas mãos
uma peça russa do começo do século que era o
retrato do Brasil de 1963. Tratava-se de Peque-
nos Burgueses, de Maxim Gorky.

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A peça mostrava uma Rússia em mutação, as
primeiras manifestações de revolta popular
contra a injustiça e o absolutismo do poder cza-
rista. Além disso, o texto também abordava o
nosso tema fundamental da época, o conflito
de gerações: pais que não entendem os filhos
críticos e apáticos, e filhos que não entendem
os pais ignorantes e conservadores. Pensionis-
tas da casa dos Burgueses também traziam ecos
da revolução para o ambiente familiar. A peça
terminava com a Internacional Comunista não
como propaganda, mas como um prenúncio do
que aconteceria em 1917. A peça era perfeita
para o momento e para nós. Ela abrigava todo
o elenco do Oficina, tinha ótimos papéis pra to-
98
dos os atores. Ítala Nandi, Fernando Peixoto e
Moema Brum, recém-chegados do Sul, também
foram incorporados à montagem.

Os ensaios foram muito rigorosos; seis meses


aproximadamente. Nós íamos da análise cien-
tífica do texto à total liberdade emocional
dos laboratórios para depois voltarmos a um
novo exame racional da partitura de Górky.
Até então, confesso que ainda não tinha com-
preendido de forma orgânica a aplicação do
Sistema Stanislavsky, que já estudava com o
Kusnet havia dois anos. Acho que fingia que
entendia. Ficava me espremendo por uma me-
mória emotiva e nada. Mas nos Burgueses, a
ficha caiu. Não só pra mim, acho que a ficha
caiu pra todo mundo.

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Ensaio de Pequenos Burgueses:
Liana Duval, Célia Helena e Miriam Mehler

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Com Liana Duval, na primeira versão de Pequenos Burgueses

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A tal ponto, que causávamos no público a im-
pressão de que éramos aquelas pessoas. A publi-
cidade da peça foi inspirada nesse processo de
identificação: Você pode ser um personagem,
Com quem você se identifica? O trabalho do
Kusnet para criar o pai Bessemenov era assom-
broso. O texto dele, com as anotações de seus
subtextos, devia estar exposto em um museu. O
curioso é que o trabalho dele partia de um exa-
me meticuloso, frio e calculado das falas e situa-
ções da personagem, mas o que aparecia no
palco era de um forte impacto emocional. Tanto
que, anos mais tarde, Abraão Farc e eu fizemos
este mesmo papel e não conseguimos nos liber-
tar da forma Kusnetiana. Eu me surpreendia fa-
lando com sotaque russo! É impossível esquecer 101
do Kusnet tentando trazer com os braços as cal-
ças largas até a cintura e bradando: Outra vez
compraram açúcar em tabletes! Quantas vezes
já falei! E a Etty, que fazia a mamãezona apazi-
guadora, sempre tentando acalmá-lo e colocar
panos quentes nas brigas intermináveis do pai
com os filhos: Deixa, paizinho! Que importân-
cia tem isso? Sobraram uns pasteizinhos doces
do almoço, quer? A Célia Helena fazia a minha
irmã, era o tédio em pessoa, uma jovem que
não tinha fé em absolutamente nada. Ela cami-
nhava lânguida pela casa e murmurava em tom
profundo: Nada mais me parece que é verdade.
Apenas que isso sou eu e aquilo é uma cadei-
ra. Quando eu digo sim ou não, eu não digo
com convicção. Eu digo sim e logo em seguida

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penso: será? Talvez seja não. Lembro-me mui-
to bem de um diálogo engraçado que abria a
peça entre a Célia e a Miriam Mehler, que era a
Polia, a criadinha ingênua, cheia de esperanças:

Miriam / Polia
(ajoelhada ao lado de Tatiana que lê um livro)
Eu queria tanto conhecer esse autor. Como será
ele? Moço, velho, moreno?

Célia / Tatiana
Quem?

Miriam / Polia
O escritor!
102
Célia / Tatiana (com desprezo)
Morreu!

E o meu personagem, o Piotr, um estudante de


direito pusilânime, reacionário, fazendo discur-
sos para encobrir sua fraqueza: Eu não quero,
não sou obrigado, não me submeto à lei de
sociedade nenhuma. Eu sou um indivíduo e o
indivíduo é livre!

O Bêbado Teteriev era um dos personagens


que mais impressionavam. Ele era o arauto da
destruição da classe média. Todos que fizeram
esse papel se saíram muito bem na carreira:
Raul Cortez, Fauzi Arap, Ítalo Rossi, Luiz Linha-
res, Francarlos Reis.

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Teteriev
Veneráveis bípedes, pagai o bem estritamente
com o bem. Quanto ao mal, pagai cem vezes
mais. Sede pródigos em retribuir ao próximo
pelo mal que ele vos ocasionou. Se, quando pe-
dirdes um pão, vos derem uma pedra, descarre-
gai sobre a sua cabeça uma montanha!!!

Com Beatriz Segall, Otávio Augusto, Fernando Peixoto,


Moema Brum, Othon Bastos e Marta Overbeck, na primeira
versão de Pequenos Burgueses

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Com Raul Cortez, em ensaio da primeira versão de
Pequenos Burgueses

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Capítulo XVII
Andorra e o Golpe de 64

Era uma vez uma cidade branca como a neve:


Andorra. Todos os cidadãos eram bons, puros,
honestos. A Segunda Guerra Mundial estava
em curso, mas Andorra ainda permanecia um
local seguro. Um professor da cidade tinha ne-
gócios pra além da fronteira, no lado nazista.
No retorno de uma de suas viagens, ele surge
com uma novidade: um garotinho. O professor
disse que trouxe o menino para Andorra para
salvá-lo dos nazistas, pois o garotinho era ju-
deu. Mentira. O menino era filho dele com uma
mulher do lado nazista. Mas ele cria Andri como
filho adotivo para não ter que dar explicações 105
à sua mulher em Andorra. Andri cresce num
ambiente feliz. Todos na cidade gostam muito
dele. Ele se torna um exímio marceneiro.

Até que um dia começa a pairar sobre Andorra


a ameaça da invasão nazista. Os andorranos se
apavoram com a idéia de perder seus negócios
e propriedades. Era preciso entregar alguma
coisa aos nazistas. A cidade, inconscientemen-
te, começa a buscar por um bode expiatório.
Quem melhor do que Andri, o judeu. A partir
daí, o olhar dos andorranos muda para com
Andri. Tiram o rapaz da marcenaria porque ju-
deu não sabe trabalhar com madeira. Colocam
o menino no caixa do bar, porque judeu gosta
mesmo é de tratar com dinheiro.

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Acima, e nas páginas seguintes, com Miriam Mehler,
em Andorra

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Depois, tiram ele do caixa porque judeu gosta
demais de dinheiro. E começam a dizer que ju-
deu torce as mãos como usurário e que judeu
não tem sentimentos, judeu não ama. As atri-
buições vão a tal ponto que Andri se assume
como judeu, mesmo depois de saber pela mãe
verdadeira que não o era. Andri é fuzilado pelos
nazistas em praça pública com a população de
Andorra assistindo quieta e de braços cruzados.

Andorra foi a resposta que o Grupo Oficina en-


controu para discutir com sua platéia a nova
realidade criada pelo golpe militar de 1964. Foi
a época da caça às bruxas, do dedo-duro, da
criação do bode expiatório e da omissão. Onde
estava escrito judeu, a platéia, cúmplice de nos- 107
sa metáfora, lia esquerdista, socialista, comu-
nista. Muita gente foi presa e a classe média
reacionária fazia que não via: Quem mandou
ser comunista?! Problema deles, eu tenho de
cuidar é da minha família: eu, meu marido e
meus filhos. Quando eu disse pra minha em-
pregada que era comunista, ela se benzeu três
vezes e me olhou como se eu fosse um bicho-
papão. Nora Ney foi expulsa da Rádio Nacional
por ter visitado a União Soviética.

Eu, Zé Celso e Fernando Peixoto tivemos de fu-


gir no auge do sucesso de Pequenos Burgueses.
Um telefonema nos salvou. Seríamos presos no
dia seguinte ao golpe porque a peça acabava
com a Internacional.

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Ficamos refugiados num sítio do pai da Célia
Helena lá pelo interior, na região de Taubaté.
Sem luz elétrica. A única coisa que se ouvia de
noite era o mugido dos bois. Um confinamento
de dois meses. Até que resolvemos descer ao
Rio de Janeiro pelo litoral, que era mais ermo.

No Rio, constituímos advogados e voltamos a


São Paulo para depoimento no Dops. Quem nos
ajudou muito foi Cacilda Becker. Ela foi uma es-
pécie de advogada da classe teatral, levava os
generais no bico. Cacilda nos orientava: Não se
preocupem, eu vou dar a idéia de que vocês são
burrinhos e muito ingênuos. Aí, ela argumen-
tava com os generais: General, eles são apenas
110
rapazes idealistas. Não me diga que o senhor
também não foi idealista na juventude. Duvi-
do que não. Eles são rapazes honestos, amam o
Brasil, só querem trabalhar em paz.

Fomos liberados junto com Pequenos Burgue-


ses, mas tivemos de trocar a Internacional pela
Marselhesa no final da peça. Enquanto estáva-
mos fugidos, Etty Fraser e Ítala Nandi produ-
ziram, às pressas, uma comédia bem ingênua
para desviar a atenção dos milicos do Oficina
e ainda garantir a sobrevivência econômica do
grupo. A comédia era Toda Donzela Tem Um
Pai Que é Uma Fera, do Gláucio Gil. Chamaram
também alguns atores que já faziam sucesso na
época como galãs de televisão: Tarcísio Meira e
Fúlvio Stefanini.

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No elenco feminino tínhamos Miriam Mehler
e Ítala Nandi, que foi reconhecida pela crítica
como uma grande revelação de atriz no papel
de uma loira burra, a Loló. Kusnet permaneceu
solidário conosco e fez o general, pai da donzela.

Na volta dos Burgueses para o Oficina, transferi-


mos a Donzela para o Teatro Natal e tivemos, pela
primeira vez, a feliz experiência de contar com
a bilheteria de dois sucessos ao mesmo tempo.

A peça que estávamos trabalhando antes do


golpe era Pena Que Ela Seja Uma Puta, um clás-
sico renascentista de John Ford, que havia sido
encenada pelo Visconti com a Romy Schneider
e o Alain Delon. Em nossa versão, os papéis dos 111
irmãos incestuosos seriam feitos por mim e pela
Miriam Mehler. Eu estava com ela em Campos
do Jordão estudando a peça. Quando descía-
mos para São Paulo, escutamos pelo rádio do
carro o anúncio do golpe.

Antes de fugirmos pro sítio do pai da Célia, per-


cebemos que a montagem colorida de Pena Que
Ela Seja Uma Puta não fazia mais sentido diante
da urgência da situação. Foi quando decidimos
pela aridez de Andorra. Definitivamente, era a
peça certa na hora certa. Andorra também repre-
sentou para o Oficina uma transição de lingua-
gem. Já estávamos namorando Brecht e a tensão
criada pelo golpe de 64 nos aproximou ainda
mais das estratégias de encenação do alemão.

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O texto de Max Frisch (Andorra) se prestava in-
teiramente às nossas experiências brechtianas.
O autor rompia com a quarta parede, aquela
parede imaginária insuportável que foi criada
para fingir que o público não está ali. Em An-
dorra, os atores-personagens tinham de prestar
depoimentos à platéia. Precisavam explicar por
que deixaram Andri ser assassinado. No campo
da cenografia, deixamos de lado a incubadeira
das salas familiares. Flávio Império criou uma
praça pública toda branca. Carrinhos entravam
e saíam trazendo as sugestões dos ambientes.
Luminosos estilizados davam um toque ori-
ginal à cidade. Os figurinos variavam entre o
branco e o preto.
112
Na interpretação, acho que dei um grande sal-
to como ator. Descobri que na estrutura des-
ta peça, a histeria emocional não me levaria
a lugar algum. A clareza das idéias importava
mais que tudo. Quanto mais lúcido e conscien-
te eu fosse na comunicação, mais eu tocaria a
cabeça e o coração da platéia. Lembro de um
monólogo de quase 20 minutos em que eu,
lentamente, ia escorregando por uma parede.
O público ficava em estado de suspensão. Acho
que começava assim: Atirei meu nome pro ar
como se fosse um boné e o que vem de volta
é uma pedra que me mata. Morineau traba-
lhou conosco pela segunda vez no papel mis-
terioso da mulher de negro, que, na verdade,
era a mãe nazista do pseudojudeuzinho Andri.

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Ela era habitante do lado nazista e cruzava as
fronteiras para contar a Andri que ele era seu
filho com o professor andorrano que o adotara,
mas que, na verdade, era seu verdadeiro pai. A
participação de Madame durava cerca de vinte
minutos e ninguém conseguia ver mais nada
além da presença daquela maravilhosa atriz.
Após um silêncio, ouvia-se o som de passos fir-
mes produzidos por um sapato de salto alto.
Aquela mulher enorme preenchia toda a cena,
as pernas como duas colunas do Parthenon.
De repente, Madame exclamava: Non exixtem
mulherres em Andorrra?! Inesquecível!

Com Miriam Mehler, em Andorra

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Capítulo XVIII
Tônia Carrero: a Fada Madrinha da Fama

Todo mundo tem uma fada madrinha. A nossa


foi a fada mais bela que se pode conceber: Tô-
nia Carrero. Ela passou por São Paulo na época
de Pequenos Burgueses e disse: Gente, vocês
têm de levar esta peça para o Rio de qualquer
jeito! Naquele tempo, era o Rio de Janeiro que
lançava moda para o Brasil. Mas como? Nós
éramos um grupo iniciante, sem condições de
bancar uma temporada por nossa conta no Rio:
hospedagem, alimentação, transporte, mídia,
aluguel de teatro. Ela sorriu: Eu emprego vocês
no Rio. Pago todas as despesas de produção e 115
ainda divido o lucro com vocês. Só mesmo uma
Fada Madrinha!

A estréia dos Burgueses no Rio de Janeiro foi uma


explosão. O Maison de France lotado com ante-
cedência, meses a fio. A imprensa nos dedicou
o maior espaço que já vi ser dado a uma mani-
festação teatral até os dias de hoje. A crítica nos
exaltava. Nos tornamos um mito de qualidade e
seriedade, uma reunião de grandes talentos. A
versão para o palco italiano do Maison foi diri-
gida por Fernando Peixoto, pois Zé Celso estava
em bolsa de estudos na Europa desde meados
de 64. Ele foi pra lá como um diretor sério e pro-
missor. Ao voltar, no auge do sucesso carioca de
Pequenos Burgueses, Zé Celso havia se tornado

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uma celebridade, uma Malu Mader. No primei-
ro dia que viu o espetáculo no Rio, ele odiou
tudo, deu a maior bronca em todo mundo, nos
chamou de mecânicos, vendidos por uma risada.
Mas, logo em seguida, ele compreendeu que a
peça tinha um humor provocante, que os pro-
blemas daquela família eram risíveis e começou
a nos conduzir para um realismo mais crítico e
menos psicológico. A identificação das famílias
de classe média cariocas com as personagens foi
um fenômeno. Aquela publicidade usada em
São Paulo: Você pode ser um personagem! Com
quem você se identifica? pegou como uma pra-
ga. Às vezes, você estava deitado na praia, se
bronzeando ao sol de Ipanema e, de repente,
116
alguém passava e gritava apontando o dedo na
sua cara: Eu sou você! Levei cada susto!

O sucesso foi de tal monta que até o ditador


Castelo Branco também foi assistir ao espetácu-
lo. Comprou dez cadeiras, cercou-se de seguran-
ças e ficou sentado do meio do círculo. No final,
dirigiu-se ao camarim comovido. Queria cum-
primentar o elenco. Ele foi recebido por Tônia
Carrero, nervosíssima, sabendo do pepino que
tinha nas mãos. Tônia entrou nos camarins com
seus olhos azuis bastante arregalados e nos co-
municou suplicante: Gente! O presidente está
aí, ele quer cumprimentar o elenco. Claro que
ela já sabia a resposta, tratava-se de um elenco
radical. Todos respondemos em uníssono: Não
damos a mão a ditador.

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Tônia estava prestes a chorar, andando de lá
pra cá e falando conosco baixinho: E agora, o
que é que eu faço? O homem está aí fora, meu
Deus. Claro que a múmia diplomática (eu) com-
padeceu-se com a aflição de nossa fada madri-
nha. Fui até lá:
– Boa-noite presidente.
– Eu queria cumprimentar o elenco e dizer que
me identifiquei especialmente com o senhor.

Fiquei mudo. O ditador se identificava comigo.

117

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Capítulo XIX
Teatro Opinião

O Teatro de Arena desse período pós-golpe ti-


nha mudado completamente sua postura. Nin-
guém brincava mais de casinha ou de James
Dean da Mooca. Os atores (e autores) adota-
ram uma atitude guerreira, marcial. Erguiam os
braços de punho cerrado e cantavam: É Zumbi
no açoite – ti – ti – É Zumbi. Era um tempo de
guerra, era um tempo sem sol.

O Vianinha já tinha saído do Arena e formado


um grupo no Rio com Ferreira Gullar e João das
Neves: o Grupo Opinião, que ficava sediado na 119
mesma galeria do Teatro Tereza Rachel, em Co-
pacabana. Foi lá que eu assisti a um show dirigi-
do pelo Boal com Nara Leão, João do Valle e Zé
Ketti. Nara, depois, foi substituída pela jovem
Maria Bethânia, que foi lançada no show Opinião
para todo o Brasil. Nunca mais vou me esquecer:

Podem me prender,
podem me bater
e podem até deixar-me sem comer,
que eu não mudo de opinião,
aqui do morro eu não saio não.

Ah, é dessa época também o espetáculo Liber-


dade, Liberdade, de Millôr Fernandes, com di-
reção de Flávio Rangel. Paulo Autran contrace-

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nava com Vianinha nesse histórico espetáculo
do Teatro Opinião. Começava com o Paulo di-
zendo assim: Eu sou um homem de Teatro... e
todo mundo aplaudia.

Atualmente, estou fazendo essa peça depois


de passados 40 anos. É impressionante a atua-
lidade que o texto revela junto aos jovens uni-
versitários, provocando discussões e debates
altamente esclarecedores sobre o momento
que estamos vivendo em nosso país. O projeto
Teatro nas Universidades foi criado por Paulo
Goulart e Nicette Bruno. O objetivo do projeto
é reconquistar o público universitário que vem
sistematicamente abandonando nossas salas de
espetáculos nos últimos vinte anos. O sucesso
120
do projeto configurou-se de forma absoluta.
Fizemos 40 espetáculos em mais de 30 Universi-
dades na Grande São Paulo, sempre com casas
lotadas e reações calorosas. A nova montagem
da peça não foi um caso de nostalgia explícita.
Mais que nunca é preciso pensar!

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Capítulo XX
O Incêndio do Oficina

Em 1966, já consagrado nacionalmente, o Ofi-


cina retornou a São Paulo para a criação de seu
novo espetáculo: Os Inimigos, de Maxim Gorky.
A peça radicalizava em uma questão que apa-
recia apenas timidamente em Pequenos Bur-
gueses: a luta de classes, a luta entre patrões e
empregados.

Zé Celso tinha visitado o Berliner Ensemble du-


rante seus estudos na Europa. Voltou com uma
mala cheia de preciosidades: discos com Lotte
Lenia cantando Kurt Weill, Gisella May cantan-
do Eisler e Dessau, além de gravações com as vo- 121
zes de Ernst Bush, Ekhart Shaw e Helene Weigel
interpretando textos de Brecht. A Antígone de
Weigel era especialmente surpreendente, por
expressar os fatídicos Ai de mim! Ai de mim! não
com gritos grotescos e sim com claros sussurros.

A influência de Brecht foi evidente no resultado


de Os Inimigos. A trilha sonora foi encomenda-
da a um menino-prodígio chamado Chico Buar-
que. Os cenários de Flávio Império eram épicos
e grandiosos, a tal ponto que não era possível
encenar o espetáculo em nosso pequeno teatro
sanduíche. Arrendamos então o TBC e aluga-
mos o Oficina para Ary Toledo, que teve ali seu
primeiro grande sucesso: A Criação do Mundo
Segundo Ary Toledo.

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Não havia papel pra mim em Os Inimigos. Du-
rante o longo período de ensaios fui à Europa
para ver o teatro por trás da antiga cortina de
ferro. Passei quase um mês convivendo com os
atores do Berliner Ensemble e assistindo a seus
magníficos espetáculos.

Era inverno, muitos graus abaixo de zero. Na


frente da sede do Berliner havia um lago de
águas negras cercado de neve e com um único
pato nadando em meio à bruma invernal. En-
fim, sobre essa viagem e algumas outras, preci-
sarei de outro livro para contar. Voltei ao Brasil
após a estréia de Os Inimigos. Adorei o espe-
táculo. Era uma transição, uma passagem do
122
Oficina para outra fase que eu não sabia muito
bem como seria. Lembro demais de Célia Hele-
na no papel da atriz Tatiana Lugova, vestindo
figurinos suntuosos de Flávio Império. Celinha
mudava de personalidade fumando uma lon-
ga e elegante piteira. Outra bela interpretação
esteve a cargo de Beatriz Segall no papel da
tempestuosa proprietária Cleópatra. A cena de
Beatriz sobre o cadáver do marido assassinado
era de uma originalidade rara em nossos pal-
cos. Aliás, anos antes, Beatriz havia substituído
Madame Morineau em Andorra, trazendo um
clima todo seu à personagem, sem qualquer
preocupação com o que Madame tinha apre-
sentado. A atriz fez sua própria criação. O mes-
mo fenômeno aconteceu quando Bia substituiu
Célia Helena em Pequenos Burgueses.

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Uma manhã, nossa empregada subiu correndo
a Rua Humaitá gritando: Seu Renato, Seu Zé,
acorda! O Teatro tá pegando fogo!!! Abri a ja-
nela que tinha vista para o Oficina e deparei
com o nosso teatrinho em chamas. Corremos pra
lá, Zé e eu. Não havia mais nada que fazer. Os
bombeiros tentaram de tudo, mas, em poucos
minutos, o teto caiu e do nosso Oficina só resta-
vam paredes queimadas. Até hoje, não se sabe
ao certo se o incêndio foi acidental ou criminoso.

Eu e Zé Celso sentamos no meio-fio perplexos,


sem saber o que fazer. De repente, parou um táxi
preto na frente do teatro e desceu o Antunes
Filho. Bem, essa estória é muito boa, mas deixa-
rei aqui um gancho para uma nova publicação. 123
Passado o atordoamento inicial com a tragédia,
decidimos que era preciso agir: construir outro
teatro no mesmo local. Cacilda Becker foi nossa
madrinha nessa fase difícil. Numa tarde memo-
rável, com quase toda a classe teatral presen-
te, ela quebrou uma garrafa de cachaça sobre
os escombros, dando início à reconstrução.

Ela e Walmor nos cederam seu teatro para


que fizéssemos lá um festival retrospectivo
dos maiores sucessos do Oficina até então. O
repertório escolhido foi A Vida Impressa em
Dólar, Pequenos Burgueses e Andorra. O Jornal
da Tarde, através do Sábato Magaldi, lançou a
campanha Dois por um – Compre dois ingressos
pelo preço de um.

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Com seus pais, Adriano e Maria de Castro Borghi, recebendo
o Molière por Andorra, Rio de Janeiro, 1967

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O Teatro Cacilda Becker lotava todas as noites.
Com o sucesso da renda, começamos a organi-
zar a reconstrução do Oficina. Flávio Império
foi incumbido da planta do novo teatro. Segui-
mos para o Teatro Maison de France, no Rio,
com outro repertório: Andorra e Quatro Num
Quarto, inéditas no Rio, e o incansável suces-
so Pequenos Burgueses. Andorra, para minha
surpresa, me deu o primeiro prêmio Moliére de
minha carreira, aos 28 anos.

Além disso, a renda da bilheteria no Rio foi


tão generosa que permitiu ao grupo todo se
instalar na cidade por nove meses. Os lucros
eram enviados a São Paulo para as obras do
novo Oficina, que já estavam em pleno vapor. 125
Durante a temporada de sucesso no Rio, não
conseguíamos nos aquietar e chegar ao tea-
tro somente à noite para representar os espe-
táculos. Criamos seminários: um de filosofia e
marxismo com Leandro Konder e outro sobre
o gesto social com o Luiz Carlos Maciel. O gru-
po foi tomado de uma febre, pesquisamos o
comportamento físico de várias classes sociais e
profissionais: o operário, o bancário, o empre-
sário, o político, a dona-de-casa, a feminista, a
empregada doméstica, etc.

Nosso alvo favorito continuou sendo a classe


média, ou melhor, a cafonice da classe média: o
pingüim de geladeira e todos os valores reacio-
nários e equivocados.

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Estes laboratórios se expandiram para além do
nosso grupo, começaram a ser freqüentados
também por toda a classe teatral carioca. Lem-
bro-me muito dos exercícios com a Odete Lara
brincando de Ferreira Gullar com o guarda-chu-
va debaixo do braço, a Betty Faria fazendo a
Nara Leão com o pescoço caído pro lado. Impul-
sionado por essas experiências, passei a sentir
a necessidade de trabalhar um texto genuina-
mente nacional.

Com Fernando Peixoto, em Quatro Num Quarto, 1963

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Capítulo XXI
O Rei da Vela

Um dia, por acaso, encontrei na estante de mi-


nha casa um livrinho com as páginas amarela-
das e comidas de traça. Era O Rei da Vela, de
Oswald de Andrade. Li e me espantei que aque-
le texto fosse praticamente desconhecido até
então. Oswald cometia nessa peça o exercício
da antropofagia, ou seja, devorava o Brasil capi-
talista-colonial. Miseráveis na jaula, explorado-
res comprando ilhas na Baía de Guanabara. O
escritor modernista tinha uma lucidez cáustica,
impiedosa; fazia uma autopenetração através
da peça como se nos enfiasse uma faca no peito 127
e nos deixasse escorrer a dor de ser brasileiros.
O verbo era de fogo, incandescente.

Li a peça para o grupo. Fernando Peixoto e


Ítala Nandi aprovaram minha idéia imediata-
mente; Zé Celso ficou um pouco receoso. Era
uma dramaturgia caótica, diferente de tudo
que o Oficina tinha realizado até então. Pas-
sei a ler o texto em vários apartamentos de
amigos, em universidades, clubes, etc. Eu lia
todos os papéis. A reação dos ouvintes era de
espanto, perplexidade e diversão. O Rei da
Vela divertia, apesar de machucar. Zé Celso
também acabou se apaixonando pela peça e
faria de O Rei da Vela uma direção-marco do
teatro brasileiro.

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As obras do novo Teatro Oficina em São Paulo
estavam chegando ao fim. Retornamos do Rio
para iniciar os ensaios da peça antropofágica.
De todos os processos de ensaio do Oficina,
acho que este foi o mais rápido e vertiginoso. Se
não me engano, em 45 dias aprontamos tudo.
A genialidade do cenógrafo Hélio Eichbauer
colaborou muito para uma revolução formal na
linguagem do espetáculo.

Primeiro ato: Circo; segundo ato: Revista; ter-


ceiro ato: Ópera. O elenco engolia o Brasil e vo-
mitava em cena, mas um vômito organizado,
poético, estético. Eu pude me reconciliar com
meus ídolos do passado que eu havia renegado
128 por força da sofisticação intelectual. Voltaram
para mim o Oscarito, a Dercy, o Grande Otelo, o
Mesquitinha e todo aquele pessoal da Revista.
Era a minha antropofagia.

Todo o espetáculo foi inspirado no manifesto


antropofágico do Oswald de Andrade. Quería-
mos dar porrada na elite intelectual com um
deboche irado, irreverência e postura anár-
quica; tocar o âmago das consciências tanto
da direita quanto da esquerda; questionar o
próprio Teatro e seu público. Era um grito, um
berro do Oficina. Nossa musa foi Chacrinha,
símbolo máximo da breguice brasileira. O es-
petáculo encerrava ao mesmo tempo ritualis-
mo e pornografia.

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129

Em O Rei da Vela

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130

Com Etty Fraser, em O Rei da Vela

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Chegou a estréia. O novo Teatro com planta do
Flávio Império estava de pé, com palco giratório
e tudo (clara influência do Berliner Ensemble).
O palco giratório foi feito por um mecânico lá
do Bexiga, e quase nunca o motor tinha for-
ça pra impulsionar o primeiro giro com todo o
elenco em cima dele. Bolei um jeito de fazer a
coisa funcionar: com um pé no palco giratório e
o outro no chão fixo do palco restante, eu dava
vários impulsos, em estilo patinete, até que ele
se movesse, quase sempre aos solavancos, pro-
vocando reações inquietantes no público.

A estréia do Rei da Vela deve ter sido muito


parecida com a estréia do Vestido de Noiva do
Nelson Rodrigues em 1943. Quando o espetá-
131
culo terminou, ninguém disse nada, não houve
aplausos, ninguém manifestou qualquer sinal
de reação por menor que fosse. Silêncio! Nin-
guém levantava, ninguém saía, ninguém dizia
nada. As pessoas se cumprimentavam com ace-
nos, faziam expressões de Como vai, tudo bem?
É como eu sempre digo: brasileiro tem medo de
ser burro, de ser apanhado em flagrante.

Quando viemos para a platéia cumprimentar


os amigos, as pessoas sorriam para nós com um
ar enigmático e o máximo que diziam era Que
coisa, hein! Confesso que fiquei decepcionado
com o clima da estréia e dos primeiros dias de
temporada. Um sujeito subiu no palco, no fim
do espetáculo, procurando o autor.

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Cena de O Rei da Vela

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Queria matá-lo. Foi preciso que Décio de Al-
meida Prado, Sábato Magaldi, os irmãos Cam-
pos, Décio Pignatari, Yan Michalski e muitos
intelectuais de peso viessem em nosso socorro,
enchendo páginas e páginas de jornais com crí-
ticas e crônicas maravilhosas, para que o públi-
co paulista perdesse o medo de testemunhar
aquela coisa nova escrita entre 1932/33.

O Rei da Vela foi considerado um marco, uma


linha divisória na história do moderno teatro
brasileiro. Nosso espetáculo foi dedicado a
Glauber Rocha por causa de Terra em Transe.
A antropofagia oswaldiana ressurgia com força
total no filme de Glauber e atingia seu ápice
com a montagem do Rei da Vela numa genial 133
direção de Zé Celso. O Cinema Novo veio todo
ao nosso encontro e começou aí um movimen-
to que só vai ser batizado, meses depois, com a
estréia do Rei da Vela no Rio de Janeiro em ple-
na Praça Tiradentes, no Teatro João Caetano,
berço das antigas Revistas Cariocas.

Tivemos, em São Paulo, dois espectadores cati-


vos: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os dois es-
tavam iniciando suas carreiras fora da Bahia e
seu sucesso nacional já se evidenciava em1967.
Caetano era o que se pode chamar de uma fi-
gura: cabelo estilo black, ponche roxo e, se não
me falha a memória, um dia apareceu no tea-
tro trazendo um jaboti com o casco pintado
de esmalte verde e amarelo como se fosse um

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cachorrinho na coleira. Gil era bem mais gordi-
nho do que hoje. Os dois inteligentíssimos, cul-
tos, brilhantes mesmo. Zé Celso e eu nos apro-
ximamos muito deles. O apartamento imenso
em que moravam na Av. São Luiz passou a ser
freqüentado por nós. Eu adorava ouvi-los falar
sobre poesia. Foi quando Caetano me propôs
compor uma música para acompanhar um dos
monólogos da peça: A História do Jujuba. Pas-
samos uma tarde trabalhando sobre o texto de
Oswald e em poucos dias a canção do Jujuba
estava incluída no espetáculo. O meu persona-
gem, Abelardo I, em agonia, cantava:

Era um simples cachorro,


134
um cachorro de rua,
mas um cachorro idealista.
Os soldados de um quartel adotaram-no,
Jujuba ficou sendo o mascote do batalhão.
Mas o Jujuba era amigo
dos seus companheiros de rua.
Na hora da bóia aparecia trazendo
dois, três, quatro,
em pouco tempo a cachorrada
magra, suja, miserável
enchia o pátio do quartel.
Um dia o major deu o estrilo.
Os soldados se opuseram à saída do mascote,
tomaram Jujuba nos braços
e espingardearam os outros cachorros.
A cachorrada vadia voltou para a rua,
mas quando o Jujuba se viu solto

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recusou-se a gozar do privilégio
que queriam lhe dar.
Foi com os outros, foi com os outros

(Abelardo II gritava: DEMAGOGIA! E Abelardo I


continuava a canção)

Não, ele provou que não,


nunca mais voltou pro quartel.
Morreu batido, esfomeado,
como os outros, solidário
com a sua classe, solidário
com a sua fome.
Os soldados ergueram um monumento
ao Jujuba no pátio do quartel.
Compreenderam? 135
O que não trai, que não trai, que não trai.
Eram seus irmãos.
Os soldados também são da mesma classe
do Jujuba, um dia também deixarão
atropeladamente os quartéis.
Será a revolução social!
Os que dormem nas soleiras das portas
se levantarão e virão até aqui
procurar o usurário Abelardo
e hão de encontrar vocês.

A canção se tornou um sucesso e os milicos


morriam de ódio. Como censurar um dos líde-
res da Semana de Arte Moderna de 22? E além
do mais, o texto tendo sido escrito em 1932?

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136

Com Ítala Nandi, em O Rei da Vela

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Claro que nos aproveitamos muito disso para
falar do Brasil de 1967/68. O Rei da Vela era de
uma atualidade chocante. Abelardo I falava do
imperialismo americano como ninguém antes
ousara falar: Você acha que Nova Iorque teria
aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vin-
te mil pernas mais bonitas da Terra se não se
trabalhasse pra Wall Street de Ribeirão Preto a
Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou
um simples feitor do capital estrangeiro, mas
eu não me queixo. É por isso que eu possuo
uma ilha, uma lancha e você, meu amor!

Seguiam-se outras falas igualmente contun-


dentes: Era o país mais lindo do mundo, não
tem agora uma nuvem desonerada. Devemos 137
tudo. O que temos, o que não temos. Hipoteca-
mos palmeiras, quedas-d’água, cardeais!

Abelardo I era um capitalista usurário que em-


prestava dinheiro a juros altíssimos aos excluí-
dos do sistema capitalista, mas tinha plena cons-
ciência crítica e existencial do papel que desem-
penhava nesse regime. Ele vendia velas de sebo
para os agonizantes e uma de suas falas eu
jamais esquecerei: Num país medieval como o
nosso quem se atreve a ultrapassar os umbrais
da eternidade sem uma vela na mão. Herdo um
tostão em cada morto nacional.

Essa fala era invariavelmente aplaudida todas


as noites.

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Em dezembro de 1967, terminamos a primeira
temporada do Rei da Vela em São Paulo. Tínha-
mos estréia marcada no Rio para os primeiros
dias de janeiro de 1968. Dessa estréia em diante
a peça virou um mito nacional. O verão de 1968
foi particularmente brilhante. Caetano e Gil
lançaram o disco Tropicália inspirados na peça.
Artistas plásticos como Vergara, Hélio Oiticica
com seus parangolés vieram juntar-se a nós.
Compositores como Jards Macalé, Capinam,
Torquato Neto entraram na geléia geral do
movimento que foi batizado de Tropicalismo.
Isso virou a epidemia do verão carioca. Nós éra-
mos celebridades. O João Caetano lotado até o
teto com um público ávido pelas descobertas,
138
discussões e as revoluções de linguagem cênica
propostas pelo espetáculo. O Brasil estava ali,
ensangüentado no meio do palco.

Comecei a ser convidado para comparecer em


festas da alta sociedade carioca. Lembro-me de
ter mandado fazer um terno de linho branco
que eu usava com um chapéu de panamá, sapa-
to bico-fino duas cores e um charutão na boca.
As crônicas sociais registravam minha presença
como uma das atrações daquelas noitadas. Nós
atacávamos o sistema, mas o sistema, sem que
percebêssemos, começava a nos devorar pelos
pés. Fomos convidados a posar vestidos com os
figurinos da peça para a revista Manchete jun-
to com os modelos da Rhodia. Ofereceram um
cachê altíssimo e claro que todos aceitaram.

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Só percebemos a doce cilada quando come-
çamos a encontrar nas butiques de Ipanema
modelitos tropicalistas a preços exorbitantes.
Tínhamos virado objeto de consumo pra gran-
fino. Tudo bem. A peça não perdia a sua força.
Antropofagia é isso: eles nos comem e a gente
continua devorando o imenso cadáver gangre-
nado do Brasil por dentro. Autópsia canibal.

O elenco do Rei da Vela no Rio de Janeiro

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Capítulo XXII

Roda-Viva

Zé Celso foi convidado para dirigir Roda-Viva,


de Chico Buarque fora do Oficina. Achamos
que o texto era bom, de dramaturgia talentosa,
mas um tanto frágil. Entretanto, Zé Celso viu na
peça a possibilidade de um espetáculo radical.
Roda-Viva era a estória de um ídolo da MPB de-
vorado pelo Ibope ávido de sucessos. No final
da peça, restava só o fígado do ídolo Ben Sil-
ver. Zé impôs à produção a contratação de um
coro antropofágico. Zezé Motta, Pedro Paulo
Rangel, André Valli, Samuca, Érico Vidal e mais
outros atores igualmente talentosos fizeram 141
parte do coro antropofágico.

O comportamento desse coro provocou um es-


cândalo nacional; Zé Celso trouxera do Rei da
Vela a poética da agressão e levou os corifeus
a conduzirem o espetáculo em ritmo de uma
grande trepada. O corpo dos integrantes do
coro passou a ser um elemento muito impor-
tante no desenvolvimento da peça. Em certo
momento, as luzes da platéia se acendiam e o
coro invadia ameaçadoramente o espaço do
público que se apavorava diante da investida (é
importante lembrar que esse tipo de interação
com a platéia era algo absolutamente novo no
Brasil daquela época).

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Imaginava-se que as pessoas estavam adorme-
cidas e conformadas com a ditadura; o coro
avançava sobre elas e as sacudia violentamente
em suas poltronas provocando gritos, desmaios,
protestos etc. No final do espetáculo, Zé Celso
representou o fígado de Ben Silver com um fíga-
do de boi. O coro antropofágico foi convencido
pela concepção de Zé Celso de que era neces-
sário comer pedaços desse fígado cru e depois
descer à platéia oferecendo nacos sangrentos
deste mesmo fígado ao público espectador.
Algumas pessoas saíam da sala, vomitavam e
outras desmaiavam. Paulo César Pereio tinha
um personagem que provocava escândalo na
parcela mais conservadora do público. O ator
142
ficava num canto do palco, sentado numa mesa
de boteco, bebendo cachaça e gritando pala-
vrões apocalípticos: Filha da puta, vai tomar no
seu cu, caralho seco, boceta murcha, pentelho
branco e outros insultos que deixavam a platéia
em estado de choque. Eram improvisos diários
feitos ao sabor da inspiração do ator.

Zé Celso foi muito atacado pela crítica conser-


vadora que acusava o diretor de ter adulterado
o texto do até então anjo de olhos azuis Chico
Buarque. Entretanto, Chico tomou uma atitude
corajosa, que revelava a firmeza de seu caráter,
assumindo a violência antropofágica do espetá-
culo como sua: Assisti a todos os ensaios, tudo
que está no palco foi feito e bolado junto comi-
go. Isso encerrou por uns tempos o debate.

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Afinal, Chico era o nosso Golden Boy. Não é
preciso dizer que Roda-Viva foi um sucesso de
bilheteria sem precedentes. Assistir à peça era
como entrar num trem fantasma. E os milicos
morrendo de ódio. Ninguém queria mexer com
o Chico. Confesso que morri de inveja, queria
ter feito aquele Ben Silver, mas eu já era o Rei
da Vela, não se pode ter tudo, Mr. Smith. O que
mais me doía é que as músicas eram lindas e eu
cantava bastante naquele tempo. Gostava espe-
cialmente da última música que elenco e coro
cantavam juntos. Uma provocação maravilhosa:

Quem não gostou dessa peça,


saia daqui diga horrores.
Nos divertimos à beça,
143
e tomem flores, flores, flores,
flores para los muertos!

Ao final da canção, os atores atiravam flores so-


bre a platéia defunta. Imaginávamos, naquela
época, que o Brasil era um imenso cadáver gan-
grenado sobre o qual nos lançávamos alegre-
mente à autópsia.

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Capítulo XXIII
Os Cortes da Censura

Voltamos para São Paulo. O ano de 1968 trans-


corria dentro de um clima de repressão irres-
pirável. Tudo era proibido. O teatro era o alvo
principal. Nossos dramaturgos eram proibidos
e engavetados em série. Os militares pousaram
seus olhos sobre nós. No entanto, a perseguição
só aguçava ainda mais a nossa criatividade.

No Teatro Ruth Escobar um argentino chamado


Victor Garcia dirigiu o Balcão, de Jean Genet,
uma montagem inesquecível. Só uma produtora
como Ruth permitiria que o diretor destruísse o 145
seu teatro do porão até o teto. Ele construiu
um engradado que vinha subindo desde os
alicerces do teatro, passava pela platéia des-
truindo o piso, assim como o balcão e chegava
até o limite máximo do teto. Havia elevadores
internos com o elenco subindo e descendo con-
forme a ação da peça. Atores seminus escala-
vam o engradado. Nós, do público, assistíamos
ao espetáculo em pequenas plataformas sobre
o abismo.

Não é preciso dizer que Genet é um autor radi-


calmente contra os bons princípios e a moral
da pequeno-burguesia. A censura mais uma
vez não sabia como agir. Victor Garcia era um
diretor internacional, o Balcão era montado

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no mundo inteiro. Como proibir? A censura
estava perplexa com a criatividade da classe
teatral. O Rei da Vela voltou do Rio de Janeiro
e ocupou novamente o Oficina. O sucesso era
enorme. Aconteceu então um fato que até pa-
rece anedota. Na boca de cena do teatro, Hélio
Eichbauer criou um bonecão, réplica do meu
personagem, Abelardo I, com coroa da Shell e
tudo na cabeça. O fantoche era enorme, che-
gava quase ao urdimento do palco e trazia en-
tre as pernas um canhão-cacete que fuzilava os
devedores inadimplentes que suplicavam para
renovar seus papagaios.

Acho que já mencionei a dificuldade que era


146
para a censura proibir em 1967/68 um texto es-
crito em 1932/33 por um ícone da Semana de
Arte Moderna; seria como passar um atestado
público de imbecilidade. Já que eles não po-
diam cortar os textos, decidiram cortar outras
coisas. Um dia, uma Kombi parou na porta do
teatro, desceram uns homens mal-encarados
carregando uma escada, entraram no teatro
sem cumprimentar ninguém, pararam diante
do bonecão, ergueram a escada e, calmamen-
te, cortaram o pau do boneco. Depois, saíram
a passos lentos, abriram a porta da Kombi, ati-
raram lá dentro o cacete decepado, fecharam a
porta, entraram na Kombi e partiram sem dizer
uma palavra levando com eles o pau de Abelar-
do I. Claro que fui atrás, afinal de contas era o
meu pau! Fernando Peixoto, Zé Celso e eu com-

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parecemos à censura paulista pedindo o pau
de volta. Eles nos disseram que devolveriam o
membro se assinássemos um termo em que nos
comprometeríamos a manter Abelardo impo-
tente, ou seja, o pau não levantaria mais até o
final da temporada. Concordamos e assinamos.
Que remédio? Eles nos devolveram o cacete-ca-
nhão e voltamos, Zé, Fernando e eu, carregan-
do aquele mastro de compensado pesadíssimo.
Caminhamos tristemente pela Av. Ipiranga, São
Luís até chegarmos ao Oficina com o cacete na
mão. O membro de Abelardo ficou deposita-
do no porão do teatro até o fim da temporada
paulista, só voltando a levantar no Festival In-
ternacional de Florença, na Itália.
147

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Capítulo XXIV
Maio de 68 na França

Chegamos a Florença certos de repetir o suces-


so brasileiro. Era um festival internacional de
teatro realizado no Teatro Della Pergola, que,
só fomos saber depois, era um local freqüen-
tado unicamente pela alta burguesia florenti-
na. Muito luxo, todos os recursos técnicos, um
palco giratório que funcionava às mil maravi-
lhas nos deram a certeza de um sucesso sem
precedentes. As maravilhosas poltronas de ve-
ludo vermelho eram aparelhadas com fones
de ouvido para que o público acompanhasse a
peça por tradução simultânea. Uma tradutora 149
portuguesa acompanhava os ensaios e técnicos
supercompetentes atendiam a todas as neces-
sidades do grupo.

A imprensa anunciava o Rei da Vela como a


principal atração do festival. Até achei que ti-
nha valido à pena termos pagado as passagens
aéreas e o transporte dos cenários dos nossos
bolsos. Claro que tentamos de tudo no Brasil
para que o Itamarati bancasse nosso trans-
porte. Tudo inútil. A última conversa que tive
com o embaixador Donatello Grieco no Rio de
Janeiro foi desanimadora. O homem afirmou
com todas as letras que Oswald de Andrade
era um autor anarquista de pequena estatura
e que o nosso Rei da Vela era um amontoado

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de insultos e obscenidades e, no final das con-
tas, não merecia representar o nosso país no
estrangeiro. Resolvemos enfrentar os custos da
viagem. Ensaiamos bastante e nos sentíamos
preparados para enfrentar a crítica italiana.
Confesso que, antes da estréia, dei umas olha-
das pela fresta da cortina, observando a entra-
da do público. Estranhei bastante o vestuário
da platéia: mulheres vestidas com longos chi-
quérrimos, muitas peles valiosas, jóias, perfu-
mes, cavalheiros de smoking... Enfim, parecia
a estréia de gala de alguma ópera no Scalla de
Milão. Quando o espetáculo de estréia come-
çou, percebi uma certa inquietação na platéia.
As pessoas pareciam estar reagindo contra o
150
texto de Oswald e, principalmente, contra o
espetáculo. Do palco, começamos a ouvir mur-
múrios vindos da escuridão da sala. Minha que-
rida amiga Liana Duval tinha feito um labora-
tório nas ruas da cidade para o momento em
que seu personagem, João dos Divãs, fazia um
improviso de palavrões com o público. No Bra-
sil, esse era um momento aplaudido em cena
aberta. Os populares florentinos ensinaram à
Liana as expressões e gestos considerados mais
obscenos e imorais naquela região da Itália.
Quando Liana engatou no improviso em ita-
liano, foi um momento de total escândalo. As
pessoas começaram a se levantar e abandonar
o teatro batendo as cadeiras. Uma revolta aris-
tocrata tomou conta do recinto. Foi difícil levar
o espetáculo até o fim.

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No dia seguinte, os jornais estampavam ofensas
pesadas sobre o nosso trabalho: Brasileiros sel-
vagens, Índios antropófagos se apresentaram
ontem à noite no Teatro Della Pergola. O único
crítico a nos defender foi Ruggero Jacobi (que
havia sido um dos grandes diretores do TBC).
Ele afirmou que nosso espetáculo estava mui-
to além do que o conservadorismo italiano po-
deria compreender e que o Rei da Vela estava
muito além de todas as vanguardas européias,
daí a rejeição.

Fomos para Nancy, na França, nos sentindo um


tanto deprimidos com os insultos italianos. Mas
o clima foi completamente diferente por lá. En-
contramos uma enorme quantidade de amigos 151
exilados: políticos, professores, combatentes e
opositores à Ditadura Militar que aumentava a
repressão a cada dia. Vieram todos nos assistir
no Festival de Nancy. O sucesso foi tão grande
que os críticos franceses promoveram uma tem-
porada nossa em Paris no Teatro Aubervillier.

A França estava em plena Revolução de Maio de


68. Para nós, que estávamos vivendo sob uma
ditadura com mãos de ferro, a vivência dessa
revolução comandada por jovens intelectuais
parecia uma libertação, uma espécie de licen-
ça-prêmio da ditadura brasileira. A atmosfera
era excitante. Jovens intelectuais comandavam
as mais diversas correntes do pensamento mo-
derno. A Sorbonne estava transformada numa

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espécie de comitê de vários partidos políticos
universais. Havia barraquinhas com panfletos
e livretos do pensamento trotskista, comunis-
ta, maoísta e outras propostas de jovens filóso-
fos para o mundo contemporâneo. O amor era
livre. As pessoas transavam nas salas de aula,
nos telhados. Havia um clima de liberdade ain-
da que muito tardia. O Teatro Odeon, de Jean
Louis Barrault, transformou-se numa tribuna
popular. Subiam ao palco operários, estudan-
tes, donas-de-casa e todos discursavam sobre o
que bem entendessem. Às vezes, chegavam a
contar suas vidas. Paris era uma praça de guer-
ra, Estudantes x Polícia, numa longa batalha.

152
As ruas mudavam de feição, à noite eram uma
coisa, no dia seguinte estavam irreconhecíveis.
É que os estudantes arrancavam os paralelepí-
pedos pra fazer barricadas. Cortavam árvores,
amontoavam coisas preparando o campo de
batalha. Assistimos a vários conflitos. Num de-
les também fomos vítimas da violência. Estáva-
mos, Zé Celso, Ítala e eu, na sacada do Hotel
Saint Séverin quando começou um confronto
entre a polícia e os estudantes. Pedradas, gás
lacrimogêneo, cassetetes, valia tudo. Um cine-
asta com a câmera na mão filmava tudo quan-
do foi violentamente atacado por um policial.
Ítala o reconheceu, era Godard. Minha com-
panheira enlouqueceu na sacada e começou a
gritar para os policiais: N’arretez pas, c’est Go-
dard!. Um policial olhou para cima, viu os três

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pombinhos na sacada, rodopiou uma granada
de efeito moral e atirou-a em nossa direção.

Burros! Devíamos ter permanecido na sacada,


mas apavorados corremos pra dentro do quarto.
Claro que a granada quebrou o vidro da janela
e explodiu na cabeça de Zé Celso que desmaiou
em meio àquela fumaceira venenosa produzida
pela bomba. A granada era de cera laranja. O
pobre Zé ficou parecendo uma múmia laranja
com aquela cera derretida sobre a cabeça. Mi-
nutos depois, ele começou a murmurar: Aaa-
asssppprrrooooo. Ítala e eu não conseguíamos
entender o que ele queria e, com os olhos em
brasa, conseguimos arrastá-lo para fora do
quarto. Ele continuava murmurando: Aaaasss- 153
ppprrroooo. Finalmente, Ítala decifrou o enig-
ma: Ah!, ele quer ‘Aspro’, aspirina em francês.
Corri dentro do quarto fumacento e apanhei
na gaveta logo quatro aspirinas de uma vez.
Fizemos com que o Zé as engolisse quase sem
água. Uma hora depois, melhoramos.

Nos banhamos, fomos jantar e, mesmo com os


olhos vermelhos, fomos ao cinema ver um fil-
me com Jeanne Moreau. Em seguida, voltamos
para o hotel, dormimos e acordamos bem tar-
de no dia seguinte. Abri os olhos e estranhei,
não estava vendo nada, só uma neblina bran-
ca; assustado, acordei Zé Celso. Ele despertou e
ao abrir os olhos começou a dizer: Estou cego,
estou cego! Chamei o gerente do hotel e pedi

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que ele ligasse para o quarto de Ítala. Ela acor-
dou já aos gritos: Não estou vendo nada, não
estou vendo nada!

Fomos levados ao oculista, ou melhor, eu fui a


um oculista particular, pois papai era rico. Zé
Celso e Ítala foram tratados pela medicina pú-
blica. Uma enfermeira direitista, partidária de
De Gaulle, segurava uma seringa de injeção
com uma agulha bem pontuda e aplicava o
conteúdo no branco do olho do apavorado Zé.
Durante a sessão de tortura, a enfermeira apro-
veitava para passar um pito no Zé Celso: Bem
feito, vocês merecem muito mais, seus anarquis-
tas desordeiros. Estreamos em Paris tateando o
cenário, quase cegos, mas assim mesmo foi de-
154
licioso representar o Rei da Vela na Cidade luz.

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Capítulo XXV
Comando de Caça aos Comunistas

Ainda em 1968, durante a temporada paulista


de Roda-Viva, aconteceu um ato de violência
extrema que nos deixou muito assustados. A
peça estava em cartaz num dos teatros de Ruth
Escobar, o Teatro Galpão, onde hoje é o Teatro
Dina Sfat. Ao final de uma das sessões, parou
um carro diante do teatro e vários homens ar-
mados saíram do veículo. Era o CCC – Comando
de Caça aos Comunistas. Eles invadiram o teatro,
destruíram as instalações e passaram a espan-
car violentamente o elenco; quebraram pernas
de atores e queimaram o bico do seio das atri- 155
zes com brasa de cigarro. Em Porto Alegre, o
CCC seqüestrou um ator do elenco ameaçando
matá-lo caso os produtores tivessem a ousadia
de estrear o espetáculo naquela cidade.

Nossos dramaturgos continuavam pagando o


pato. Plínio Marcos proibido, Vianinha proibi-
do, Dias Gomes proibido, Guarnieri proibido.
Mas o teatro sempre reagiu à violência da cen-
sura. Outros autores escreveram a Feira Paulista
de Opinião, retratando a violência militar sobre
o trabalho intelectual e a manifestação livre do
pensamento. Não esquecerei nunca do meu
colega Renato Consorte vestido de gorila com
uma farda militar, lápis vermelho numa mão e
um texto teatral na outra, sentado num penico,

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cortando trechos enormes do referido texto.
Claro que a peça estreou num dia e foi proibi-
da no outro. Quando Cacilda Becker soube, fi-
cou indignada: Outra proibição é demais. Estão
nos tratando como delinqüentes. Não podemos
mais aceitar passivamente esse estado de coi-
sas. Eu vou até lá!

A atriz comunicou o ocorrido ao seu elenco,


interrompeu os ensaios e dirigiu-se rapidamen-
te ao Teatro Ruth Escobar, onde estava a Feira
Paulista de Opinião. O público já se aglomerava
na pracinha em frente ao teatro, todo mundo
indignado por não poder assistir à peça proibi-
da. Cacilda entrou no prédio, confabulou com
o elenco por uns quinze minutos e depois abriu
156
ela mesma as portas do teatro e convocou o pú-
blico a entrar com um pequeno discurso: Esta
peça está proibida em todo o território nacio-
nal. Entretanto, esta noite, nós vamos repre-
sentá-la assim mesmo. Quem tiver coragem de
me acompanhar que entre nesse recinto, pois
este é um ato de desobediência civil! Certa vez
ouvi de Zé Celso uma frase lapidar: No tempo
de Cacilda tínhamos classe teatral, agora temos
castas. Dói, mas é a pura verdade.

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Capítulo XXVI
Galileu e a Tortura

O ano de 1968 transcorria cada vez mais difícil.


Uma noite, num camarim dos fundos do Teatro
Oficina, nosso elenco ouviu, em clima de total
perplexidade, a promulgação do Ato Institucio-
nal nº 5 (AI-5): repressão pesada, prisões, proibi-
ções, suspensão de todos os direitos e garantias
constitucionais dos cidadãos. Acho, se não me
falha a memória, que o crítico Yan Michalski
ouviu junto conosco o terrível comunicado.

A tortura foi institucionalizada. Colegas nos-


sos foram presos, torturados e desapareceram
para sempre nas masmorras da ditadura. Uma 157
diretora teatral de Santo André, após ser tortu-
rada, foi atirada ainda viva de um helicóptero
na Baía de Guanabara com um paralelepípedo
amarrado nos pés para desaparecer mais de-
pressa. Uma outra grande amiga foi torturada
com choque elétrico na vagina. Ficou com os
cabelos brancos da noite para o dia. Nós artis-
tas estávamos cada vez mais visados pelos mi-
litares. Era preciso que o Oficina continuasse o
diálogo crítico e necessário com sua platéia for-
mada principalmente por universitários e pela
classe média progressista. Dentre várias peças
propostas para o repertório, escolhemos Gali-
leu Galilei, de Bertolt Brecht. Lembro-me de ter
sido um defensor ardoroso dessa montagem.
Era ideal para aquele momento.

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Na primeira montagem de Galileu, Galilei, 1968

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Galileu comprovou que a Terra não é o centro
do universo e que ela gira feito uma maluqui-
nha em torno do sol, colocando em xeque os ali-
cerces sobre os quais se fundamentavam a Igre-
ja Católica e seu braço policial, a Santa Inquisi-
ção. O cientista ainda tentou convencer o clero
da importância de suas descobertas. Chegou a
fazer lobby com o futuro Papa, que era um ma-
temático muito culto e grande admirador das
idéias de Galileu. Mas como seria possível negar
a Bíblia diante de um povo faminto e miserá-
vel? Só as Escrituras explicavam e conformavam
aquela massa eternamente mendicante.

É evidente que o sábio Galileu foi ameaçado de


tortura e até mesmo de ser queimado vivo em 159
praça pública se não abjurasse de suas convic-
ções. Galileu adorava comer bem, beber bem:
Quando eu como bem, é que me vêm as melho-
res idéias! Definitivamente, a idéia de ser espre-
mido naqueles terríveis instrumentos medievais
de tortura para depois virar um presunto assa-
do não lhe agradava. Ele abjurou. Foi condena-
do a permanecer em cárcere privado num belo
castelo, porque o Papa, apesar de tudo, era seu
amigo. Frades o mantinham sob constante vigi-
lância, mas Galileu dava um porre de vinho nos
padres durante a noite e à luz da lua escrevia
sua obra definitiva: os Discorsi.

O esforço foi tão grande que Galileu foi fican-


do cego de tanto forçar a vista para escrever no

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escuro. Um dia, um antigo discípulo foi visitá-
lo cheio de recriminações: O senhor traiu a sua
causa. Infeliz o país que não tem heróis. E Gali-
leu respondia: Não, infeliz o país que precisa de
heróis. Após o diálogo, Galileu então entrega
ao rapaz o manuscrito de sua obra clandestina
dizendo: Vai, atravessa a fronteira da Holanda
e dá conhecimento do que está escrito aqui.

Quando os Discorsi chegaram à Holanda fo-


ram a causa de um grande avanço na astro-
nomia e na física modernas. A peça era genial
sob todos os aspectos: denunciava a tortura, a
violência sobre o trabalho intelectual e ainda
questionava o heroísmo e a vocação de mártir
160
provando que, em alguns casos, é preferível vi-
ver e revolucionar por meio de um trabalho pa-
ciente, realizado na clandestinidade. O espetá-
culo mais uma vez desafiava a censura. Proibir
Brecht, montado no mundo inteiro, como?!

Falar bem de José Celso Martinez Corrêa é cho-


ver no molhado. A concepção de Galileu Gali-
lei era genial. Os cenários e figurinos de Joel
de Carvalho eram de ousadia sem precedentes
para os tempos de repressão. O clero do Vatica-
no usava batinas verde-oliva com corte eviden-
temente militarizado assim como os chapéus
que lembravam os quepes de nosso exército. O
Papa, obrigado a exigir que Galileu abjurasse
de suas convicções pela violenta argumentação
reacionária do Cardeal Inquisidor, era, duran-

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te a cena da paramentação, ornamentado com
instrumentos de tortura: uma mitra de cobre
com bordas cercadas por uma coroa de espi-
nhos metálica e um manto forrado de arame
farpado. Conforme a repressão aumentava,
desciam placas de cobre que iam fechando o
palco dentro de um clima opressivo, mas este-
ticamente primoroso. No final do espetáculo,
subia uma grade negra na boca de cena nos
separando do público. Uma grade de cadeia.
Durante o agradecimento, elenco dançava um
twist na voz de Cely Campello, uma música
muito conhecida até hoje:

Tomo um banho de lua,


fico branca como a neve. 161
Se o luar é meu amigo,
censurar ninguém se atreve,
é tão bom sonhar contigo,
oh, luar tão cândido.

O twist era um deboche trágico. Lembro ain-


da que a grade tinha dupla utilidade: servia
ao mesmo tempo para nos separar do público
e, quem sabe, para nos defender num caso de
ataque do CCC. Na peça de Brecht havia uma
cena em que o povo toma conhecimento das
novas descobertas do cientista. As novidades
chegam à praça do mercado. E tudo isso era
cantado pelos populares como um enredo de
escola de samba. Era a chamada cena do Car-
naval do Galileu. Para representar essa cena,

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Na segunda fase de Galileu Galilei, como Galileu, 1970

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Zé importou o coro de Roda-Viva, aquele coro
destemido e antropofágico. Criamos o espetá-
culo em grande harmonia. Devo confessar que
era grande fã da cena do carnaval. Jamais vou
esquecer a figura de Samuca, que pulava numa
corda balançando-se sobre a platéia. A música
séria e um pouco dura de Eisler foi adaptada
para um ritmo mais brasileiro pelo maestro Jú-
lio Medaglia. A cena assumia um ritmo quase
de candomblé e possessão. O momento mais
aplaudido era o da criação da pirâmide social.
Os atores subiam um no ombro do outro for-
mando pirâmides humanas. Cada uma delas
era formada por três ou quatro atores. A letra
de Brecht era genialmente subversiva. Se ainda
164
me lembro, o elenco cantava assim:

Embaixo do Papa, o Cardeal


Embaixo do Cardeal, o industrial
Embaixo do industrial, o vigário
Embaixo do vigário, o funcionário
Embaixo do funcionário, o operário
Embaixo do operário, o serventuário
Embaixo do serventuário, as galinhas,
os mendigos e o rebotalho.
Essa, minha gente, é a ordo ordinorum
Ordem instituída que a todo custo
precisa ser mantida, Amém.

O convívio das cenas racionais com o transe car-


navalesco tinha um equilíbrio delicado, o que
tornava o espetáculo irresistível. Durante a car-

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reira do espetáculo, entretanto, esse equilíbrio
foi rompido pelo crescimento e excessos come-
tidos pelo coro antropofágico. Percebi então
que estavam se formando dois partidos anta-
gônicos dentro do Oficina: o partido do coro,
ou se quisermos, o partido do corpo e os atores
da palavra, que falavam o texto e representa-
vam bem. O convívio cordial muitas vezes foi
quebrado por agressões verbais e atitudes hos-
tis. Zé Celso estava naturalmente excitado com
suas descobertas no Roda-Viva, havia nele um
interesse nitidamente maior pelas atividades do
coro antropofágico. Hoje, acho que o Zé come-
çou a intuir aí novos caminhos para o seu futuro
teatro. A hostilidade crescia. A turma do coro
apelidou-se de regimália, e nós, os atores expe-
165
rientes do texto, fomos apelidados de represen-
tativos. Não havia nenhum elogio no termo, ao
contrário, tratava-se de uma ironia pejorativa.

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Com Cláudio Corrêa e Castro e Fernando Peixoto,
em Galileu Galilei

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Capítulo XXVII
Na Selva das Cidades

À medida que a repressão apertava o cerco


sobre nós, Galileu ganhava ainda mais força e
sentido. O sucesso do espetáculo foi tamanho
que tivemos aproximadamente nove meses
para ensaiar o nosso próximo espetáculo. A
violência externa, as perseguições constantes
contra artistas e intelectuais, aquele olho verde
-oliva em cima de nós, tudo isso foi provocando
um enorme cansaço. A luta entre os partidos
internos do Oficina (regimália e representati-
vos) aparecia intermitentemente. Nas ruas, já
se travava a guerrilha urbana. Acho que foi sur- 167
gindo em nós um desejo de representar o que
se passava internamente conosco: uma guerra
de morte por uma opinião arrastando tudo à
destruição e ao caos.

A peça era Na Selva das Cidades, do jovem Bre-


cht, do Brecht expressionista, que cantava com
sua guitarra nos cabarés de Berlim e dizia versos
de conteúdo surpreendente. Sempre tive pai-
xão por esse texto, aliás ele morou na minha ca-
beceira por vários anos. Confesso que o li várias
vezes sem decifrá-lo completamente. Zé Celso
também era um fã ardoroso do jovem Brecht.
Nós nos lançamos aos ensaios, nos embrenha-
mos na Selva. Nessa época, estávamos estudan-
do Grotowski e essas leituras eram discutidas e

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aplicadas por nós em laboratórios que preten-
díamos que fossem grotowskianos, mas ainda
não havíamos testemunhado o que seria um
laboratório proposto pelo próprio Grotowski. E
não tínhamos a menor idéia dos exercícios de
preparação física dos atores daquela corrente.

Lembro-me que nos preparamos muito fisica-


mente, mas da maneira que supúnhamos útil e
aplicável ao espetáculo. A luta foi a preparação
fundamental, com aulas diárias de caratê, mi-
nistradas pelo nosso amigo Jacques. Trouxemos
uma professora de Curitiba para fazer conos-
co exercícios físicos que eu diria de vanguarda
naquele tempo. Esses exercícios visavam um
autoconhecimento de nosso corpo. Se não me
168 falha a memória, ela chamava-se Eloá. E ainda
praticávamos alongamentos com a atriz e pro-
fessora Jura Otero. Isso na parte da manhã; à
tarde, ensaios de mesa e laboratórios práticos,
o que nos ocupava até as 19 horas. Depois, uma
pausa, com um tempinho que só dava pra fazer
uma refeição ligeira e tomar um banho porque
às 21 horas Galileu começava a descobrir a ver-
dade que teve de ser abjurada. Pra vocês terem
idéia de como trabalhávamos nesse tempo: ter-
ças, quartas, quintas, sextas, duas sessões no
sábado e duas no domingo. Repouso só as se-
gundas, graças à Dulcina. Quanto aos laborató-
rios, se eram grotowskianos ou não, penso que
isso não teve muita importância. Fomos criando
uma nova linguagem, muito nossa, que brotava
durante os improvisos sobre os temas da peça.

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Às vezes, havia um clima mágico. Certa vez, du-
rante um improviso em que Othon Bastos e eu
ficávamos frente a frente num combate final,
convivendo vinte e um dias às margens do lago
de Michigan, lutando, resistindo, tendo fome,
frio, comendo peixe podre pra não morrer e nos
abrigando de um temporal em uma cabana feita
de galhos, recordo-me de ter ficado assustado e
ao mesmo tempo convicto da minha fé nos deu-
ses do teatro: fora do Oficina caiu uma enorme
tempestade com trovões, raios, muita água e
inundações. Othon e eu, escondidos debaixo das
folhagens, tivemos a certeza de que tudo aquilo
existia, não só de uma forma realista mas atra-
vés de uma poética cênica que raras vezes tive a
oportunidade de experimentar novamente. 169

O coro antropofágico vivia seus dias de gló-


ria representando gângsteres empregados de
Schlink, o papel do Othon. Os personagens dos
antropófagos finalmente tinham falas e eles
os representaram magistralmente. Os gângste-
res tinham nomes de animais: Gorilão, Verme,
Lombriga, etc. Os atores do coro fizeram uma
profunda pesquisa corporal assumindo postu-
ras que lembravam esses animais. Descobrimos
que nossas vozes podiam sair de outras cavida-
des. Também criamos uma técnica que apelida-
mos de artificialismo, que consistia em escolher
certas palavras de algumas frases e depois de
tê-las representado de uma forma natural pas-
sávamos a repeti-las sem a lógica de uma psi-

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cologia imediata, uma espécie de mantra de-
sesperado. Outras vezes, depois de falas suaves,
começávamos a gritar e grunhir como animais
selvagens. Isso causava uma certa estranheza,
mas, ao mesmo tempo, um clima tão envolven-
te, que na primeira semana de apresentação
do espetáculo, quando ele durava seis horas, as
pessoas permaneciam tão tomadas quanto nós
até o final. Quem assumiu a responsabilidade
visual pelo espetáculo ou ambientação, como
ela preferia, foi a extraordinária arquiteta e ce-
nógrafa Lina Bo Bardi.

Com Othon Bastos, em Na Selva das Cidades

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Naquele tempo, o quarteirão em frente ao tea-
tro tinha sido demolido para a construção do
Minhocão. O porta do teatro parecia ter sofri-
do um bombardeio. Tijolos, cimento, cal, areia,
tudo meio desordenado ali na frente. Às vezes,
num dia de ventania, uma poeira branca ficava
pairando no ar. Quando Lina chegou ao teatro
e viu aquela demolição exclamou: Que lindo, a
peça é exatamente isso, vamos fazer com a es-
tética do lixo. O lixo pode ser lindo. Pode ficar
bonito. E ela radicalizou. Arrancou a platéia da
frente e ali construiu um ringue de boxe com
madeira de construção, aquela madeira bruta,
cheia de farpas, um ringue hostil cercado por
cordas grosseiras que machucavam as mãos
quando nos agarrávamos a ela. 171

No início, estranhei muito, cheguei mesmo a


abandonar o ensaio, mas com o correr do tem-
po compreendi que aquele ringue era a expres-
são visual da guerra sangrenta que se travava
entre o personagem de Othon e o meu. Tudo
era feito pra ser destruído: cadeiras, móveis
eram quebrados pelos gângsteres a mando de
Schlink, vivido por Othon Bastos. Não só os mó-
veis viravam um entulho atirados para fora do
ringue, como também as demais personagens:
o pai, a mãe, a irmã e a noiva de meu Geor-
ge Garga, todos destruídos. Há uma frase que
sempre me volta à cabeça: Dessa cidade, nada
vai restar, só o vento que passa por ela. O tea-
tro quase voltou a ter a sua forma primitiva (o

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teatro sanduíche), a segunda platéia permane-
cia com as suas poltronas. No local onde estaria
a primeira platéia ficava o ringue e no palco ela
fez uma arquibancada daquela mesma madeira
brutalista e grafitou as paredes com frases que
se viam sobre os muros de São Paulo.

Há coisas que a gente não esquece. No meio da


peça, numa cena em que a guerra já ia adian-
tada com o chinês Schlink, George Garga, ajoe-
lhado no chão e segurando aquelas cordas que
me feriam as mãos, dizia: Ah, toda essa gente
boa, toda essa gente boa e honesta que fica em
volta dos tornos mecânicos, construindo mon-
tes de mesas boas para os bons comedores de
172
pão, com suas boas famílias, que são tantas que
já viraram multidão e não aparece ninguém,
meu Deus, para cuspir na sopa deles, nem pra
mandá-los pro outro mundo com um bom pon-
tapé no rabo ao som de mar tormentoso, fu-
riosa tempestade! Aaaaaaaaaahhhhhhhh!!!
Esse era um grito absolutamente surpreenden-
te que contrariava qualquer interpretação na-
turalista. Era o nosso Grotowski. Pode não ter
sido Grotowski ao pé da letra, mas o resultado
foi belíssimo.

Lina atingiu as raias da genialidade. Lá pelo meio


do espetáculo, ela fazia descer sobre o ringue
dois cabos de vassoura pendurados em cordi-
nhas como se fossem dois trapézios. Os gângs-
teres traziam quilômetros de filó tingido de ver-

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melho, passando-o sobre os trapézios improvi-
sados. Então, quando os maquinistas elevavam
esses trapézios, formava-se uma enorme lanter-
na vermelha, o Bordel Chinês, belo, misterioso,
místico, onde a minha amiga e companheira de
tantas peças Ítala Nandi fazia o primeiro nu do
Teatro Brasileiro. Para mim, a Selva foi a mais
bela encenação do Teatro Oficina enquanto eu
lá permaneci. O sucesso de crítica foi imenso e o
público lotou o Oficina e depois o Teatro João
Caetano no Rio de Janeiro, mas em curtíssimas
temporadas. Nós sabíamos que o sucesso da Sel-
va não teria a longevidade de Galileu. Foi um
processo rico, artisticamente gratificante, mas
nós nos machucamos muito, nos ferimos uns aos
outros no decorrer deste processo.
173

Quando a temporada do Rio de Janeiro termi-


nou, resolvemos dar um tempo. Ítala foi fazer
um filme com Ruy Guerra (Os Deuses e os Mor-
tos), Fernando Peixoto foi fazer Arena Conta Ti-
radentes com seus amigos do Teatro de Arena e
Zé Celso e eu fomos a Paris, passar o réveillon.

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Capítulo XXVIII
Dropout na Europa

A chegada na Europa teve uma atmosfera de


inesperada loucura. Em Londres, em plena Pica-
dilly Circus, havia um grande número de jovens
vestidos de um modo estranho: calças de flane-
la meio sujas, ensebadas, usadas bem abaixo da
cintura, com fitas coloridas amarradas nas cabe-
ças emolduradas por longos cabelos também en-
sebados, oferecendo uma variedade colorida de
drogas alucinógenas. Eram os primeiros hippies
estendendo as mãos como bandejas, exibindo
os mais diversos tipos de LSD (sunshine, péro-
la negra), haxixe, mescalina, marijuana. Estava 175
tudo à venda, ali, em pleno coração de Londres!
Era um tempo novo, a era das comunidades, o
famoso dropout: salte fora do sistema.

A juventude européia se rebelava contra o ca-


pitalismo selvagem vigente no mundo. Além
do mais, fatos científicos sensacionais sinaliza-
vam a aproximação desse Novo Tempo. O ho-
mem já havia chegado à Lua! Um importante
teatro londrino apresentava um musical que
esgotava as lotações com a antecedência de
meses. Tratava-se de Hair, um espetáculo com
uma belíssima partitura musical. Alguns núme-
ros fizeram um estrondoso sucesso mundial. O
famoso nu frontal masculino também foi cau-
sa da explosão das bilheterias. Os rapazes que

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possuíam uma benga avantajada ficavam na
fila de trás e os possuidores de bengas normais
formavam a fila da frente. Diziam que isso era
pra não ofender a platéia.

Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam exilados


em Londres. Fomos visitá-los várias vezes. Es-
tavam saudosos do Brasil, mas aproveitavam o
tempo para aprender inglês. Estavam naquela
fase do this is a book, this is a table, mas cami-
nharam rápido no aprendizado. Pouco tempo
depois, Caetano já estava compondo letras de
músicas em inglês. Foi na casa deles que vi a
primeira TV em cores. Uma tarde, encontrei-os
dando muita risada. Eles tinham assistido ao
show da esposa do John Lennon, a japonesa
176
Yoko Ono. Era um show-solo de Yoko. Caetano
dizia que ela parecia uma gata no cio miando
pelos telhados da cidade: Iaaaôôiôiiiiii tako-
domoiáaaaaaaaa. Conversamos muito sobre
aquele mundo novo das comunidades, sobre os
hippies, drogas e política internacional.

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Capítulo XXIX
Living Theatre

Depois de um tempo, voltamos a Paris. Estáva-


mos muito curiosos, Zé e eu, para conhecer o
Living Theatre, um grupo americano que tinha
sido expulso dos Estados Unidos por sua radica-
lidade. Eles tinham abolido o texto dramático,
as personagens psicologicamente construídas.
Construíam roteiros e levavam o público a parti-
cipar do evento através da animação. Orgulha-
vam-se de ser mais animadores do que atores.

O Living era um tremendo sucesso em toda a


Europa. Muito se escreveu sobre o trabalho de- 177
les. Jornais e revistas publicavam artigos imen-
sos sobre os trabalhos apresentados pelo grupo.
Creio que os mais comentados eram Frankenstein
e Paradise Now. A filosofia do grupo era absolu-
tamente contrária aos sistemas vigentes na velha
Europa. Eles demoliam o capitalismo selvagem,
o imperialismo americano, as ditaduras sob qual-
quer ideologia, enfim, onde houvesse opressão,
o Living estaria se manifestando contra.

O grupo também era pela liberação dos cos-


tumes, contestava os hábitos conservadores e
pregava a liberdade individual e coletiva atra-
vés do prazer corporal e do orgasmo. Livros e
ensaios foram escritos sobre o grupo. O próprio
Living escreveu livros sobre suas experiências.

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Quando Zé e eu chegamos na França, eles eram
a epidemia do momento cultural, queríamos
conhecê-los. Soubemos que estavam hospeda-
dos na casa do famoso ator francês, Pierre Cle-
menti. Um dia, no metrô parisiense, me deu na
cabeça de irmos visitá-los a pretexto de fazer
um convite ao grupo para vir ao Brasil fazer um
espetáculo em parceria com o Oficina. Desco-
brimos o endereço e rumamos para lá.

Fomos recebidos por uma moça muito bonita


que se apresentou como Cleópatra, maquiada
como a rainha egípcia, com os olhos pintados
de negro e a boca muito rubra. Fomos intro-
duzidos na Mansão Clementi e convidados a
178
sentar em roda. Eu não sabia que estaria con-
denado a sentar em roda por anos a fio. Fomos
apresentados ao casal líder do grupo: Julien
Beck e Judith Malina. Tive a melhor impressão
dos dois. Eram informadíssimos, liam todos os
jornais do dia, ouviam noticiários nas rádios e
TVs a cada meia hora e depois selecionavam o
que lhes interessava para discutir e esmiuçar em
intermináveis reuniões. Eles estudavam muito.

Além de serem marxistas-anarquistas e pela li-


beração sexual, eram completamente bruxos,
praticando uma espécie de telepatia avançada
e uma série de outras práticas que envolviam
rituais, mentalizações, mandalas e mais um
sem-número de outras técnicas místicas. Duran-
te aquelas horas em que estivemos sentados

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em roda, foram passando um cachimbinho que
exalava um odor muito agradável em sua fuma-
ça branca e delicada. Com o passar do tempo,
comecei a me sentir muito alegre. Estávamos
todos felizes, animados e, sobretudo, garga-
lhando por qualquer motivo. Era haxixe.

Acho que foi meu primeiro contato com as


proibidíssimas drogas. Confesso que gostei bas-
tante. Bem, depois de uma tarde agradável,
despedimo-nos do Living, deixando no ar um
vago convite ao grupo para um possível traba-
lho conjunto com o Oficina.

179

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Capítulo XXX
Medo de Virar Comédie-Française

Voltamos para o Brasil, ou melhor, fomos para


Nova York. De lá, voltei para o Rio e Zé Celso
ainda visitou alguns países da América Latina
antes de retomar os trabalhos no Oficina. Ele
esteve em Cuba também. Na volta, disse que
tinha um segredo para me contar e numa voz
comovida me disse que foi visitar um campo
de treinamento de guerrilha e quase desmaiou
quando encontrou a nossa Ítala Nandi de fuzil
na mão. Emocionado, quase lacrimejando, ele
me disse: Renato, Ítala é uma santa guerreira,
a nossa Joana D’Arc. Exultei com a coragem e o 181
desprendimento de minha amiga.

Era o ano de 1970, em plena ditadura do temi-


do Garrastazu Médici. Não achávamos a peça.
Nem sabíamos se era uma peça mesmo o que
queríamos fazer. Governo Médici, Copa do Mun-
do. Médici capitalizando a vitória do Brasil e ti-
rando fotos segurando a bola do Pelé. A bola de
futebol, é claro.

Vivíamos um tempo de guerrilha urbana, de


violência, pessoas assassinadas, desaparecidas,
seqüestros... Era uma barra pesada no Brasil. A
gente não encontrava um texto, não tinha... E
tudo que a gente falava soava velho, esquisito.
Íamos comemorar 10 anos de existência. E isso

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deu medo! Olha que gente louca: estávamos
com medo de fazer dez anos! Dez anos só! E
a gente estava com medo de virar uma insti-
tuição, de virar uma Comédie-Française. Lutá-
vamos pra ser insubordinados, mas não dava,
todo mundo avalizava, diziam que era ótimo,
genial. A gente queria fazer alguma coisa que
rompesse, abalasse as estruturas, que transfor-
masse aquela ideologia comodista de classe
média. E não dava pé, tudo que fazíamos era
sempre nota 10!

Ficamos naquela crise, naquela coisa, e as dívi-


das aumentando. Esse negócio de dívida é um
terror: aluguel, comida, empregada, arroz inte-
gral (é, muito arroz integral!) e aquela necessi-
182
dade de fazer alguma coisa nova.

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Capítulo XXXI
Prata Palomares

Ítala Nandi estava recém-casada com o cineas-


ta André Faria. O casal nos trouxe a proposta
do que viria a ser a coisa verdadeiramente nova
para nós. Tratava-se da proposta do primeiro
filme, de um primeiro longa do Oficina. O ro-
teiro era do André. Era a estória de dois guerri-
lheiros urbanos em fuga pelo país que acabam
se refugiando numa ilha quase desconhecida.
O primeiro esconderijo que encontram é uma
igreja abandonada. Inspecionando o local, os
dois percebem que o antigo padre foi assassi-
nado. Há manchas de sangue por todo lado. 183

O roteiro era relativamente simples. Um de-


les permanece calmo, aguardando um comu-
nicado da base para seguir o seu percurso em
caso de vitória do movimento ou permanecer
escondido até Deus sabe quando. O outro ele-
mento resolve se fazer passar pelo novo padre
da ilha e se apresenta como tal ao prefeito e
a outras pequenas autoridades daquela ilha.
Aos poucos, o falso padre assume a personali-
dade do seu antecessor e passa a rezar missas e
fazer longos sermões delirantes. Em suma, ele
é tomado por uma loucura gradativa que vai
aumentado ao longo do filme. O louco era eu
e o racional, o jovem Carlos Gregório. Zé Celso
achou maravilhoso o projeto do primeiro filme

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do Oficina, entretanto, pensava que o roteiro
ainda era meio primário e propôs reescrevê-lo.
André Faria consentiu e Zé lançou-se ao traba-
lho numa espécie de fúria santa.

A cabeça do meu amigo estava totalmente to-


mada pelo Glauber e o resultado foi um roteiro
belíssimo, mas completamente distante da pro-
posta inicial trazida pelo André, que não de-
monstrou qualquer afinidade com a nova ver-
são. Mas ele aceitou fazer o filme com o novo
roteiro. Fiquei perplexo com a facilidade com
que levantamos a grana para realizar o projeto.
Todos nós sabemos que cinema é outro lance.
É indústria e só se move com muito capital. O
184
prestígio do Oficina, na época, era enorme.

O diretor do Banco da Bahia comprou a idéia.


Entrou com capital próprio e permitiu que o
Banco nos emprestasse um capital enorme
através de papagaios em meu nome avalizados
pelo Zé; em nome do Zé avalizados por mim;
em nome de Ítala avalizados por André e em
nome do André avalizado por Ítala, ou seja,
ninguém avalizava realmente nada no fim das
contas. Enfim, tudo feito em confiança na qua-
lidade e no prestígio do Oficina, uma vez que
nenhum de nós possuía qualquer propriedade
que garantisse o ressarcimento do Banco no
caso de alguma falha no projeto e cronogramas
apresentados. Tivemos também outros associa-
dos de cujos nomes já não me lembro.

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As locações escolhidas foram em Florianópolis.
Conseguimos também grandes facilidades lo-
cais com o Governo do Estado de Santa Catari-
na e com a Prefeitura da capital: hospedagem,
alimentação, mais verbas adicionais, etc. Tudo
no papo. Afinal, embarcamos atores, técnicos e
toda a parafernália que o cinema exige. Tudo
parecia um céu aberto. As filmagens começa-
ram. Nossa cenógrafa era nada mais, nada me-
nos do que a genial Lina Bo Bardi.

Parecia que tudo correria muito bem até que,


na segunda semana, começaram as divergên-
cias entre Zé Celso e André Faria. Divergências
sérias. Na verdade, André não se identificava
com as idéias propostas pelo novo roteiro. Tudo 185
era motivo de discussões: tomadas de câmera,
angulações, tom das interpretações dos atores.
André queria um tom mais intimista, confor-
me sua escola e seus princípios básicos sobre a
interpretação cinematográfica. Zé Celso que-
ria um tom aberto, épico, conforme sua total
admiração pela linguagem glauberiana, algo
como observamos em Deus e o Diabo na Terra
do Sol e Terra em Transe.

Os dois diretores tinham suas razões, mas eram


pontos de vista irreconciliáveis. Brigas se suce-
diam. Finalmente, André exigiu o afastamento
do Zé. Ele concordou, contanto que eu ficasse
responsável, junto com Lina, pela qualidade
que o selo Oficina exigia.

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Triste função, infeliz incumbência! Fernando
Peixoto, que havia terminado sua direção de
Don Juan no Teatro Oficina, com Gianfrances-
co Guarnieri e Martha Overbeck, foi chamado
às pressas para nos ajudar a terminar o filme.
Fernando é um sujeito calmo, ponderado. Sua
presença nos ajudou muito a manter um am-
biente mais suave e criativo. Chegamos ao fim,
mas as relações de Ítala com o Oficina estavam
rompidas para sempre. Ela se foi sem dirigir a
palavra a Zé Celso e a mim.

Dublei meu papel no Rio de Janeiro pisando


em ovos. Eu amava minha amiga de tantos
anos, mas tanto ela como André só falavam
comigo para indicações profissionais. Foi duro
186
de agüentar. Ítala deixou o Oficina. Logo em
seguida, Fernando Peixoto também começava
um gradual desligamento do grupo.

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Capítulo XXXII
Los Lobos e Living no Brasil

Nessa altura, chegou um grupo – acho que foi o


Fernando Peixoto quem convidou, o culpado foi
ele – chamado Los Lobos, de Buenos Aires, que
chegou em crise. Nós em crise e eles em crise.
Chegaram em crise e aí diziam: La dramaturgia
esta muerta, el personaje esta muerto, la pala-
bra esta muerta, el teatro esta muerto, todo esta
muerto. Nossa, eu ficava perplexo com aquilo!

Eles tinham umas barrinhas esportivas que pu-


nham lá no palco e ficavam pulando de uma bar-
ra para outra; aí, se tocavam igual à Capela Sis- 187
tina, sabe, faziam aquela comunicação de Deus
tocando o dedo de Adão. Eu pensava: Gente, eu
não sou trapezista, eu não tenho nada a ver com
isso. Achava muito esquisito aquilo tudo. De re-
pente, chega o Living Theatre sem avisar. Eles
também estavam em crise. Quer dizer, ao invés
de uma comunhão internacional de grupos de
teatro, tínhamos uma soma de crises. Estávamos
sem um tostão para segurar aquela gente.

Como é que faz?! Bota na casa do Renato. Pron-


to! Foram todos para a minha casa, um aparta-
mento de quarto e sala; ficou todo mundo entu-
pido lá e eu e o Zé Celso, de malinha na mão,
fomos embora pro Hotel Coliseu, uma maloca
que tinha na esquina, lá na Rua Jaceguai.

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Ficava perto do teatro. Nessa altura, a filha de
Julian e Judith, de uns quatro ou cinco anos,
começou uma destruição sistemática da minha
nova forração do apartamento. A garotinha
urinava sobre os tapetes a todo momento. Eu
ficava revoltado, mas Zé Celso me explicava
que aquilo era um procedimento natural do
grupo, ou seja, ninguém poderia ser reprimido
em qualquer impulso, principalmente a meni-
ninha mijona. O único reprimido era eu. O Zé
me dizia: Reprima seus instintos pequeno-bur-
gueses. Que sacanagem! Era minha casa, meu
Tabacow comprado a tanto custo.

A gente esperava, de alguma maneira, que hou-


188
vesse uma união do Living e sua técnica inova-
dora, mais o Oficina com a sua experiência e
Los Lobos com... Enfim, que, de repente, a gen-
te pudesse fazer um trabalho novo. E começou
aquele convívio, aquela coisa. Los Lobos sempre
muito simpáticos. Mas, no Living, eu percebia
um olhar estrangeiro sobre nós. Percebi neles
uma coisa de Anchieta e os índios, sabe? Impe-
rialismo intelectual! Era uma coisa assim: todo
mundo em roda, tinha um julgamento pra ver
quem era apto a entrar para o grupo america-
no ou não. Os brasileiros, que queriam parecer
avançados, tiravam logo a roupa, dizendo: Eu
não tenho preconceitos. Eu nunca tirei a minha
roupinha, de jeito nenhum. Não, não, não! E,
aí, eu notei também que as pessoas mais pen-
santes e inteligentes não eram bem aceitas no

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Living. Nossa, como o Flávio Império, uma ilus-
tre cabeça, não foi considerado apto para tra-
balhar no Living! Nem o Zé Celso!

Claro, quem pensava com autonomia não era


muito bem visto pela versão americana de co-
letivismo inventada pelo Living. Para o Oficina
pagar as dívidas, eu tive que remontar Galileu
Galilei. Comecei a representar o Galileu em São
Paulo de novo. Aquela peça era um sucesso que
não parava nunca! Mas o Living saía lá da sala
de julgamentos, passava pela platéia e olhava
pra mim em cena e Há, há, há!!!, como se eles
estivessem vendo uma palhaçada, um dinossau-
ro falante, sei lá o que eles achavam. Eu fiquei
puto e decidi: Não vou trabalhar com eles, não
189
quero trabalhar com eles! Fechei posição. Eu
acho que isso fez com que o Oficina não fosse
trabalhar com o Living porque, de uma certa
maneira, eu ainda tinha uma força muito gran-
de dentro do grupo. Não vou, não quero e en-
cerrei o papo. E foi aí que começou uma transa-
ção do Living de pegar uns brasileiros – aqueles
que tiravam a roupinha na roda – e fazer um
grupo. Depois, eles foram para Belo Horizonte,
para Ouro Preto, onde foram presos por porte
de drogas. O Paulinho, sonoplasta do espetácu-
lo Borghi em Revista, diz que fui eu que dedei,
mas não é verdade. Eu nunca dedei ninguém.
Mas não posso negar que eu adorei quando
eles foram embora.

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Capítulo XXXIII
As Comunidades

Eles foram expatriados. Mas, antes, eles haviam


montado uma peça com aqueles brasileiros que
toparam a catequese, chamava-se A Herança
de Caim. Parece que essa Herança de Caim caiu
sobre mim. A herança do Living foi a idéia do
extermínio da empresa Oficina. Acabou a em-
presa. Viramos uma comunidade. Todo mundo
morando junto, todo mundo dormindo junto
no mesmo apartamento. A minha casa ficou
pequena porque já tínhamos, nessa ocasião,
umas trinta pessoas morando juntas.

Alugamos um outro apartamento na Av. Rio 191


Branco; tudo mundo amontoado. Era um mo-
mento de muito arroz integral, tonéis de ar-
roz integral. Tinha uma mocinha de quem eu
gostava muito, a Silvinha, que salpicava uma
ervinha em cima do arroz integral; ficava tudo
verdinho, feito orégano. Era maconha. A gente
comia aquilo e ficava doidaço! Eu saía por aí
fazendo negócios com bancos, assinando papa-
gaios, tudo sob efeito daquele arroz mágico. E
a empregada, com quem a empregada vinha
se queixar? Comigo, é claro: Olha, Seu Rena-
to, meu filhinho vai comer dessa comida, mi-
nha criança vai enlouquecer! Anos mais tarde,
depois de dissolvida a comunidade, soube que
Silvinha havia morrido na África, picada pela
mosca do sono, a famosa mosca tsé-tsé.

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Há uma outra versão em que ela teria sido de-
vorada por uma tribo canibal. Pra falar a verda-
de, não sei o que realmente aconteceu. Muito
louca aquela fase toda! Todo mundo estava
completamente pirado.

Quanto ao episódio do filho da empregada, a


nossa querida Zuria foi queixar-se com minha
mãe, D. Mariazinha. Mamãe, atendendo aos
pedidos de nossa desesperada cozinheira, in-
vadiu o apartamento da comunidade, naque-
le momento sediada em Copacabana, e atirou
toda a maconha no vaso sanitário para salvar
o filhinho de Zuria. Pra quê?! Quando a turma
voltou, quase fui crucificado numa daquelas ro-
192
das inquisitoriais. Minha mãe, se isso fosse pos-
sível, seria queimada viva em praça pública.

Quantas coisas hilárias aconteceram naquele


tempo. Vocês acreditam que teve um julgamen-
to porque um indivíduo reclamou – coitadinho! –
que usaram a escova de dentes dele. Fizeram
um julgamento dizendo que ele era um peque-
no proprietário de uma escova de dentes, que
aquilo não era propriedade privada, que aque-
le objeto não era pessoal, mas pertencia a toda
a comunidade.

E o sexo coletivo? Olha, vou te falar! A gente


botava a língua de fora, punha uma mescalina,
engolia a mescalina, começava o efeito. Aí, vi-
nha... Você pensa que dava tesão? Não dava.

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Ficava uma coisa mecânica, não era espontâ-
neo. Pra mim, pelo menos, não funcionava.
Não sei, acho que eu sou careta mesmo, comigo
não dava certo. Era uma coisa que não funcio-
nava. Não era uma suruba, uma sacanagem au-
têntica, um tesão que brota espontaneamente
num grupo de pessoas. Não, era uma proposta
intelectual, uma coisa conceitual. E depois, eu
estava casado com uma mulher lindíssima e os
machos do grupo ficavam rondando em volta
de nós fingindo querer fazer sexo com o casal,
mas, no fundo, queriam comer a minha mu-
lher e eu ali, brigando com todos os gaviões,
bancando o guardião da gruta. O Zé Celso teve
uma experiência completamente diferente da
minha. Ele me disse, recentemente, acho que 193
por ocasião do Borghi em Revista, no teatro,
que o sexo coletivo lhe fez muito bem, foi mui-
to gostoso, uma liberação total.

O Teatro Oficina também sofreu uma transfor-


mação naquela época. Não tinha mais peça de
teatro, então virou uma Casa de Transas. Mas
não transa de sexo, era uma transação, mui-
tos acontecimentos ao mesmo tempo. O grupo
inventou uma banda de Rock chamada Urubu
Roxo, com Henricão na liderança, o nosso Mick
Jagger. Também tocaram no Oficina o Made in
Brazil, o Brazilian Antropofagic Sound, as Co-
ristas do Inferno. Até a Rita Lee e os Mutantes,
no seu começo, andaram se apresentando por
lá. Havia também um bar macrobiótico, um bar

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alternativo que funcionava ao lado do nosso
antigo bar careta que vendia Coca-Cola, sanduí-
ches de presunto, chocolate e outros venenos.
Os alternativos macrobióticos vendiam bolinhos
de arroz integral, chicória cozida e, por mais in-
crível que pareça, quentão! Nunca entendi essa
combinação de macrobiótica com quentão.

194

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Capítulo XXXIV
A Revolição

As transações podiam ser um barato, como se


dizia na época, mas isso não dava dinheiro. O
buraco das dívidas do grupo, ou melhor, da
comunidade, não tinha mais fundo. Imagina a
quantidade de grana que era necessária para
manter aquela gente toda. Tínhamos que to-
mar uma decisão: ou a gente assumia um suicí-
dio coletivo; desaparecia, igual àqueles animais
do Discovery, aquelas espécies suicidas, aqueles
bichinhos que saltam do abismo e desaparecem
todos de uma vez sem ninguém saber por que;
ou então, a gente resolvia voltar a querer: re-
volere, revolição, querer de novo. E foi o que 195
nós fizemos: remontamos todo o repertório de
sucesso do Teatro Oficina. Foi maravilhoso!

Fizemos Pequenos Burgueses, fizemos Galileu


Galilei, fizemos O Rei da Vela, que foi até fil-
mado. Acho que foi o último grande luxo do
Oficina daquele tempo. Um luxo, porque gran-
des profissionais vieram todos trabalhar com a
gente. Por exemplo, eu tive a honra de ser coa-
djuvado, no papel de Galileu, pelo meu amigo
Raul Cortez que topou fazer o Cardeal Inquisi-
dor. Obrigado! Eugênio Kusnet, meu querido
mestre, voltou ao seu papel de Bessemenov em
Pequenos Burgueses. Foi a última vez que con-
tracenamos com o Mestre. Poucos anos depois,
Kusnet se foi para sempre.

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Nessa mesma temporada, tive o imenso e ine-
narrável prazer de contracenar com Henriqueta
Brieba em Rei da Vela e também com o Primo
Pobre, Brandão Filho. Dois gênios. Foi uma fes-
ta! Estér Góes entrou no Oficina fazendo todos
os grandes papéis femininos, todas as musas do
Teatro Oficina. Ela encarnou todas. E nós fo-
mos por aí afora, um sucesso total. O Oficina
era uma espécie de Rolling Stones do Teatro.
Havia multidões para ver nossos espetáculos.
As pessoas brigavam por um ingresso. O povo
que ficou de fora na primeira apresentação de
Burgueses chegou a quebrar a porta do Teatro
João Caetano. A gente pagou a porta, é claro.
Já estávamos endividados e ainda tivemos que
pagar aquela porta caríssima. Mas não teve
196
problema, o dinheiro estava correndo como
um Amazonas. Aquela temporada popular
transcorreu numa felicidade de lua-de-mel. Me
dá seis ingressos, me dá sete, me dá dez!; mil e
quinhentas pessoas por noite! E a gente foi po-
dendo pagar aquele buracão das dívidas de São
Paulo. Também foi possível produzir o filme do
Rei da Vela. E, além de tudo, nos capitalizamos
para subvencionar as experiências de um tra-
balho novo. Este Trabalho Novo consistia num
roteiro muito interessante muito inspirado por
nossa convivência com o Living. Eu achava que
aquilo poderia ser um caminho de uma coisa
nova para o grupo.

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Capítulo XXXV
A Coluna Oficina-Brasília

O capital gerado pelo estupendo sucesso no Rio


de Janeiro nos permitiu traçar um plano de via-
gem pelo país para experimentarmos o nosso
Trabalho Novo. Partimos pelo Brasil numa Colu-
na Oficina, que foi parar em Manaus. Uma de
nossas primeiras paradas foi Brasília. A jovem ca-
pital foi o lugar onde esse Trabalho Novo foi me-
lhor recebido e compreendido. Fizemos a expe-
riência no prédio das Ciências Biológicas, ainda
em construção. Tinha o apelido de Minhocão.

O Trabalho Novo propunha várias etapas. Uma 197


delas era dizer que a gente estava dentro de
um processo esquizofrênico: um lado oficial,
jurídico e careta em contraposição a um lado
libertário e criativo. Diante do problema, colo-
cávamos duas possíveis saídas. Em uma delas,
os atores em fila, com formão e martelo nas
mãos, propunham a lobotomia dos nossos cé-
rebros e os da platéia que eram representados
por repolhos, ou seja, assumindo a lobotomia,
a gente poderia se acalmar e esquecer os hor-
rores da ditadura e da sociedade de consumo.
Com as ferramentas cirúrgicas em punho para a
lobotomia entoávamos uma conhecida canção:
Hoje, a festa é minha, de um novo dia... De um
novo tempo que começou... Todos nossos so-
nhos serão verdades...

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Com Ester Góes, em imagens do Trabalho Novo, 1971

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Ninguém acreditava que era verdade, mas o
elenco cantava pra valer aquela musiquinha
símbolo, numa alegre radicalidade quase infan-
til. A saída alternativa à lobotomia seria descer
aos infernos, como em A Divina Comédia. No
inferno, assumiríamos a ditadura, a sociedade
de consumo, a violência; assumiríamos todo o
sofrimento de nossa época. E não é que o pes-
soal de Brasília topou descer aos infernos?!

A descida aos infernos acontecia em várias esta-


ções. O Brasil tinha ganhado a Copa do Mundo
de 70 e o Médici capitalizou vergonhosamente
aquela vitória. Então, numa das estações, a gente
pegava várias bolas de futebol, colocava dentro
200
de saquinhos de supermercado – que, naquele
tempo, eram umas redinhas – e nos espancáva-
mos com violência. Passávamos a bola para o pú-
blico e o público se espancava e nos espancava
também. Era uma cena violentíssima acontecen-
do dentro da Universidade de Brasília!

E também tinha outra coisa linda que era a es-


tátua do consumo: pegávamos o Henricão – que
era um ator muito alto e magro – e jogávamos
sobre o seu corpo seminu uma série de itens
de consumo veiculados nas propagandas de
TV: Danone, sabão em pó, farinha de trigo... E
o Henricão virava uma estátua de Bienal. Ah!
Havia um momento de que eu gostava particu-
larmente. Nosso elenco pedia ao público que
escrevesse pensamentos secretos em pequenos

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pedaços de papel. Esses pensamentos eram re-
colhidos numa urna e, depois, num certo ponto
do espetáculo, os papéis eram lidos em voz alta
e, em seguida, queimados numa grande pira,
cujas chamas representavam a energia presente
naquela sala, naquele dia, naquela noite.

A leitura desses pensamentos anônimos era,


quase sempre, muito emocionante. Ao final da
descida aos infernos, a gente morria. Ficávamos
todos deitados, imóveis, por um bom tempo.
Então, de repente, renascíamos para a vivência
de uma utopia no navio de Serafim Ponte Gran-
de, de Oswald de Andrade. Embaixo do Equa-
dor, onde não existe pecado! Em Brasília, isso
foi lindo. Foi lindo porque os estudantes dança- 201
ram, cantaram, fizeram uma festa. Foi um lugar
onde isso realmente aconteceu.

Eu tive até esperança de que a gente tivesse


achado algum caminho, algo novo para o que
seria um Segundo Oficina. Ao encerramento
de nossa experiência no Planalto Central, plan-
tamos nosso bastão no campus da Universida-
de de Brasília. O bastão ficou iluminado pelos
faróis dos carros dos professores e estudantes,
porque já era noite. Com nossas caras pinta-
das com o barro de Brasília (pois Max Factor
foi considerado o máximo da caretice), fomos
para Goiânia cantando de felicidade no ônibus.
Acreditei, realmente, que havíamos descoberto
uma trilha promissora para o futuro do grupo.

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Capítulo XXXVI
Goiânia

Em Goiânia, aconteceu um episódio que me


deixou profundamente contrariado e acirrou
as divergências adormecidas, colocando por
terra todas as expectativas boas que eu tinha
vislumbrado em Brasília. Ao entrarmos no Cen-
tro Acadêmico da Universidade de Goiânia
para fazermos uma segunda experiência com
a estrutura do Trabalho Novo, nos deparamos
com uma salinha de baile decorada com umas
baianinhas estilizadas confeccionadas de ferro
batido, com saias e turbantes de palha e mais
uns representantes do frevo construídos com o 203
mesmo material; enfim, bonequinhas de baila-
rinas clássicas e outros representantes da dança.

O grupo Oficina, munido de canivetes, partiu


pra cima das figurinhas decorativas com um fu-
ror messiânico. Destruímos tudo, alegando, aos
gritos, que era preciso acabar com aquele gos-
to cafona representante da classe média. Ma-
nifestei, em nossas reuniões seguintes, a minha
desaprovação ao vandalismo praticado por nós.
Cheguei mesmo a classificá-lo como uma práti-
ca nazi-fascista. Claro que fui criticado por qua-
se todos os membros daquela célula migrante.
Só Estér Góes, sempre muito lúcida, Eugênia
Álvaro Moreira e alguns outros poucos ele-
mentos do grupo me deram razão. Tivemos, no

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entanto, um dos momentos mais memoráveis
de nossa peregrinação naquela mesma cidade.
Fizemos um espetáculo de Pequenos Burgueses
na concha acústica de Goiania para, aproxima-
damente, seis mil pessoas. Pouco antes do início
do espetáculo, a concha já estava tomada pelo
povão goiano e mais uma infinidade de gali-
nhas e cabritos circundando o palco. Quando
o espetáculo começou, milagrosamente, todos
fizeram silêncio, inclusive as galinhas. Tudo foi
mágico naquela noite quente e estrelada no
cerrado de Goiás.

204

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Capítulo XXXVII
Salvador

Quando chegamos a Salvador, decidimos fazer


uma entrevista coletiva numa casa que aluga-
mos no bairro do Rio Vermelho. Durante a en-
trevista, já aplicaríamos a estrutura do Trabalho
Novo aos jornalistas. Bem, aí começou um ou-
tro capítulo que me deixou em crise. Fazíamos
os jornalistas presentes apresentarem suas car-
teiras de identidade ou carteiras de trabalho, e
então pedíamos que eles declarassem em voz
alta os seus nomes e os respectivos números de
suas carteiras. Depois de um longo processo de
convencimento, pedíamos aos repórteres que 205
queimassem seus documentos numa bacia co-
locada no centro da sala, alegando que aqueles
papéis eram sua camisa-de-força, representa-
vam sua esquizofrenia, sua submissão ao mun-
do careta. Foi uma coisa inacreditável.

Tinha gente que queimava tudo! Fiquei mui-


to puto com aquela nossa proposta. Sabia que
eles teriam que entrar em filas enormes para
tirar novos documentos no dia seguinte. Ainda
em Salvador, novas aventuras estavam por vir.
Estreamos o Rei da Vela no Teatro Castro Alves
com um sucesso retumbante. A Bahia aguarda-
va o Oficina ansiosamente. Galileu Galilei era
uma das grandes expectativas. Entretanto, uma
cisão interna dentro do grupo nos deixou des-

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falcados. Alguns atores profissionais, que ainda
estavam nos seguindo desde o Sudeste, volta-
ram para São Paulo e Rio de Janeiro. E aí?! Era
preciso fazer muitas substituições em papéis
dificílimos. Os elementos que continuavam co-
nosco eram muito jovens e despreparados para
enfrentar as imensas dificuldades dos persona-
gens. Zé Celso não se deu por vencido e passou
a ensaiar Galileu durante as 24 horas do dia. Eu,
que detinha o papel de Galileu, tive que repetir
aquela peça imensa milhares de vezes, cena por
cena, fala por fala, até que os novos atores con-
seguissem decorar o texto e dar alguma forma
a seus personagens. A estréia de Galileu Galilei
no Castro Alves foi uma das maiores vergonhas
cênicas que já passei na vida. Meus únicos es-
206 teios no palco foram a presença de Estér Góes,
Cecília Rabelo, Cláudio Macdowell e a do pró-
prio Zé Celso, que encarnou o Cardeal Inquisi-
dor. Pequenos Burgueses nem vou comentar.

Mas, graças aos deuses, coisas espantosamente


surpreendentes também aconteceram. Nossa
administradora, não suportando mais conviver
com o grupo, fugiu sem deixar qualquer explica-
ção. No meio daquela dificuldade, que parecia
insuperável, Zé e eu tivemos uma iluminação.
Eu tinha uma camareira, uma negona gorda e
inteligentíssima que era, além de tudo, de total
confiança nossa e uma de minhas maiores ami-
gas para todo o sempre. Era Regina de Souza
Malheiros, a Reginona, como era chamada por
todos nós. Claro! Era ela a pessoa certa.

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Fizemos a proposta, Regina não se fez de roga-
da e aceitou. Naquela mesma noite, já estava
lá na bilheteria do teatro fiscalizando tudo. Em
uma única noite, Regina descobriu um esque-
ma de filas fantasmas, que não constavam do
mapa da platéia do teatro e mais uma entra-
da lateral por onde passavam os que pagavam
por fora aos funcionários do teatro. Reginona
descobriu um enorme desvio de dinheiro no es-
quema de venda de ingressos em prejuízo nosso
ou de qualquer companhia que se apresentasse
naquele teatro. Além do mais, Reginona impu-
nha muito respeito sem despertar antipatias.

Minha amiga descobriu sua verdadeira vocação.


Em poucas semanas, já dominava livro-caixa,
207
toda nossa contabilidade e fazia remessas de di-
nheiro para São Paulo com o objetivo de tapar o
buracão de dívidas do grupo de uma vez por to-
das. Ela fez um planejamento econômico super-
rigoroso e não fazia concessões nem para mim,
que era amigo do peito. De vez em quando, ela
me pagava um peixinho agulha frito que ven-
diam na beira da praia. Outro anjo que viajava
conosco era a segunda camareira, Helena, uma
mulher divertidíssima, que passou a assumir as
funções de Regina juntamente com as suas pró-
prias, e olha que não era coisa de pouca monta.
Essas duas mulheres me deram muita força pra
continuar com aquela Olimpíada Teatral.

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Capítulo XXXVIII
Recife e Mandassaia

Próxima parada: Recife. Gente, em Recife, eu


comecei a ficar meio emputecido porque aque-
las peças do Rei da Vela, do Galileu, etc. começa-
ram a ser chamadas de tralha. Para os radicais a
tralha era um mal necessário para a construção
do Trabalho Novo. E a estrela da tralha era eu!
O Renatinho aqui é que tinha de fazer aqueles
papéis enormes, com substituições infinitas. Era
uma loucura! Então, comecei a ficar muito irri-
tado, pois era o dinheiro faturado pela tralha
que subvencionava aquela pesquisa toda.
209
Depois de terminada a temporada do Recife,
a gente foi para Fazenda Nova, em Nova Jeru-
salém, aquele local maravilhoso onde todos os
anos a Paixão de Cristo é encenada. De lá, partía-
mos para fazer algumas experiências nas comu-
nidades rurais. Essas experiências não podiam
ser aquelas da lobotomia, não podia ser aquilo
de esquizofrenia, o pessoal daquelas comunida-
des não sabia nada disso. Então, nós resolvemos
fazer trabalhos adaptados para aquela região.
Tinha uma cidade que diziam ser cercada de rios
por todos os lados e que as pessoas, quando cho-
via, tinham que atravessar o rio com água pela
cintura. Pensamos: Vamos deixar uma sugestão
de ponte pra que eles reivindiquem do gover-
no a construção de uma ponte. Então, fizemos

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um plano estratégico; só que planejamos tudo
errado, porque fizemos um plano mágico, caba-
lístico, sei lá! Entramos cegos na cidade em ho-
menagem ao glaucoma. Com o bastão na mão,
marcamos um ponto no cemitério, fizemos uma
mandala no centro da praça (essa mandala me
perseguiu a vida inteira). E aí, partimos para a
construção da ponte! O rio era largo pra burro,
era profuuundo! E ninguém mediu nada. Nin-
guém sacou que cidade era aquela, como é que
aquelas pessoas viviam.

Eles eram meeiros, ou melhor, não tinham sa-


lário. Plantavam feijão, levavam um pouco de
feijão para casa; plantavam couve, levavam um
tico de couve pra comer com feijão e assim por
210 diante. Ninguém viu isso! Estávamos muito mís-
ticos. Eu era o dissidente, o tempo todo chaman-
do atenção para isso. Logo surgiu o problema
crucial. De que vamos fazer a ponte? Ah, já sei!
Vamos cortar dois coqueiros, a gente emenda
um no outro e, pronto, a ponte está feita! Na
hora que a gente levantou o facão, chegou um
cara meio cangaceiro e disse: Se cortar, vai mor-
rer. Porque a gente precisa desses coco pro mó
de beber a água quando tem seca. Uma coisa
violenta! Paramos imediatamente. Vamos fazer
de quê? De pedra! Onde é que estão as pedras?
No chão! Aí, todo mundo começou a arrancar
com as unhas as pedras do chão. Inventamos
um hino parecido com aqueles da Igreja Uni-
versal: Uma ponte, uma ponte de peeedra; uma
ponte entre nós e vocês...

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O grupo entrou numa espécie de possessão. Os
que queriam agradar ao Zé carregavam pedras
enormes com as mãos sangrando. Eu, que sem-
pre odiei carregar peso, pegava duas pedrinhas
bem pequenininhas, cantava bem João Gilber-
to: Uma ponte de pedra, pedra, pedrinha... Aí,
jogava as pedrinhas no rio: Plim... Plim. No ca-
minho, pensava comigo mesmo: Renato, você
quer isso? Não. Você quer continuar com isso?
Não. Renato, do que é que você gosta? Da
tralha. Eu gostava da tralha. Vou assumir, eu
gostava mesmo era da TRALHA!!! Gostava de
fazer aqueles grandes papéis daquelas peças
incríveis; gostava dos grandes teatros, das co-
xias, dos camarins com espelhos iluminados, da
maquiagem, da ilusão e da verdade do palco.
211
De volta a Mandassaia (esse era o nome da ci-
dadezinha ilhada), já estava anoitecendo. No
sertão, quando anoitece, faz um frio dos dia-
bos. É o contrário do dia em que o calor deixa
a gente com a língua de fora. Aquelas pessoas
carregando pedras já com a água pelo pescoço,
congelando; jogando as pedras no leito do rio
e nada de aparecer uma pedrinha na superfície,
uma coisa inacreditável! Aí, eu me cansei da-
quilo; fui até um barzinho e perguntei:
R: Escuta aqui, onde é que tem pedra?
Cara do bar: Na pedreira.
R: Mas como é que eu faço pra levar as pedras
pra beira do rio?
Cara do bar: Ah, o senhor vai até a casa do Seu
Romualdo, aquela terceira casa ali. O senhor co-

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nhece o Seu Romualdo? Ele tem um caminhão,
aí ele leva as pedras lá no rio.
R: Mas como um caminhão, moço? A cidade
não é cercada de rio por todos os lados?
Cara do bar: Não, senhor. O senhor está engana-
do, tem uma ponte lá do outro lado da cidade.

Nossa, eu fiquei pirado! Corri até a beira do rio,


falei: Gente, está furado o trabalho. Gente, pelo
amor de Deus, vamos parar com isso. Ninguém
me ouviu, estavam todos em transe com aque-
le hino messiânico: Uma ponte, uma ponte de
peeedra... Mesmo gemendo nas águas frias do
rio, as pessoas não despertavam para a lucidez.
Aí, me enchi o saco, fui na casa do Seu Romu-
212
aldo, peguei o caminhão. Eu, a Estér Góes e a
Eugênia Álvaro Moreira, ambas muito críticas
também daquele processo, enchemos o cami-
nhão de pedras, trouxemos o caminhão para a
beira do rio.

Eles disseram: Graças a Deus! Porque, afinal de


contas, arrancar pedra do chão com as unhas
estava uma barra, era noite e todo mundo ge-
lado. O pessoal avançou no caminhão, pegaram
as pedras e clá, clá, clá, clá, clá, clá... Num mi-
nuto, apareceram as pontas de umas pedrinhas
na superfície. Então, todo mundo disse: Ah, o
trabalho está completo. Uma ponte, uma pon-
te de peeedra, uma ponte entre nós e vocês. Foi
quando apareceu uma mulher bebum, dessas
que ficam no bar a noite inteira; no que apa-

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receu, disse: Tá tudo muito bem, tá tudo muito
bom, mas como é que nós vai fazê quando cho-
vê? Vocês fizeram uma barragem, um dique, vai
inundar a cidade toda. Foi muito louco aquilo!

Eu queria discutir aquele trabalho, ninguém


me ouvia. Eu não era mais ouvido, que coisa
estranha isso! Eu comecei a ser um elemento
dissidente, que coisa difícil isso. Houve sempre
uma sintonia tão grande, uma parceria tão bo-
nita entre Zé Celso e eu e, de repente, aquilo
estava ficando esquisito, estava ficando compli-
cado. Zé Celso não dava o braço a torcer. De-
pois de todas as críticas que fiz ao trabalho da
construção da ponte, ele pediu que me olhasse
no espelho e afirmou que o trabalho tinha me
213
abençoado, pois eu estava especialmente boni-
to aquela manhã. Claro que fui olhar. E não é
que estava bonito mesmo? Concluí que, quanto
mais emputecido você fica, mais bonito do que
o normal você se apresenta. A raiva nos torna
mais coloridos.

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Capítulo XXXIX
Natal e Fortaleza

A viagem prosseguiu sempre em clima muito con-


turbado. Os atores que já dominavam papéis im-
portantes, apesar de sua inexperiência, cindiam,
rompiam, voltavam. Os poucos profissionais en-
tão, nem se diga. Ao mesmo tempo, uma legião
de jovens apaixonados pelas propostas de uma
nova forma de vida acenadas pelo Oficina iam
se juntando ao grupo numa grande caravana.
Cada peça tinha que ser novamente ensaiada do
começo com os novos elementos que chegavam.
Porém, não eram ensaios gostosos de novas des-
cobertas, e sim uma repetição interminável de 215
cena por cena, fala por fala, marca por marca,
até que os recém-chegados fossem pegando seus
personagens, embora, pelo pouco tempo e pela
quase nenhuma experiência, de forma tosca e
mal-acabada. Parecia que estavam me punindo
por amar representar meus personagens naque-
les espetáculos. Virou tortura o que antes era só
prazer. Em Natal, antes de começar um daqueles
ensaios massacrantes, fui tomado de uma sen-
sação estranha. Entrei em estado de semi-cons-
ciência por 48 horas. Minha língua travou e não
consegui pronunciar uma só palavra por quase
dois dias. Era, sem dúvida, uma defesa orgâni-
ca contra aquela violência que se repetia a cada
nova capital. Em Fortaleza, fizemos um espetá-
culo de Galileu numa quadra de basquete.

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Não é preciso revelar que tínhamos descoberto
a maconha e fazíamos uso dela para pesquisar o
que, na época, chamávamos de liberdade cênica
a favor da inspiração. Bem, antes de ter início o
espetáculo, ainda com o elenco todo reunido no
vestiário da quadra, percebemos que não havia
maconha naquela noite. Houve uma revolta nos
vestiários. Estér, que ajudava Reginona no con-
trole das finanças, explicou a todos que, pagas
todas as despesas, não havia sobrado dinheiro
para a compra da erva. Foi um deus-nos-acuda!
O pessoal do grupo berrava, quase agrediram
a tapas a pobre colega. Gritavam: Careta! Você
fez de propósito porque você é uma caretona!
Não vamos entrar sem maconha! Sem maconha
ninguém faz o espetáculo. Foi quando alguém
216
entrou nos vestiários com cara de pavor e disse:
Gente, pelo amor de Deus, os microfones estão
abertos! Há microfones ligados aqui bem em
cima da cabeça de vocês! Foi quando ouvimos
o público, que lotava a quadra, gargalhando
sonoramente, mas era um riso sem preconcei-
tos. Entramos e fizemos o espetáculo na maior
moral. Tenho lembranças empolgantes dessa
noite. Por exemplo, o público aplaudia em cena
aberta de um jeito completamente novo para
nós. Tocavam castanholas com os dedos para
não atrapalhar a representação. Aplaudiam as
falas inteligentes e como, em Galileu, elas são
muitas, representamos Brecht ao som de casta-
nholas. Foi empolgante!

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Capítulo XL
São Luiz do Maranhão

Em São Luiz do Maranhão, durante uma ses-


são de Galileu, faltou luz. Foi quando tivemos
a idéia de propor ao público continuarmos à
luz de vela com a nova experiência do Trabalho
Novo. Todo mundo topou. Iniciamos, então,
aquela estrutura de Brasília: descemos aos in-
fernos; morremos; renascemos; embarcamos no
navio de Serafim Ponte Grande; fizemos a co-
munhão dos corpos; nos abraçamos; saímos pe-
las calçadas em torno do teatro, em procissão;
enfim foi mais um teste muito bem-sucedido do
nosso futuro espetáculo que não seria mais um
espetáculo de teatrão e sim, um roteiro com a 217
participação dos espectadores.

O público adorou. Voltamos para o hotel e


adormecemos profundamente. Na manhã se-
guinte, logo cedo, fomos acordados por bati-
das violentas na porta do quarto. Levantei num
salto e fui correndo abrir a porta. Foi quando
me deparei com soldados do exército armados
de carabinas nos dando ordem de prisão. Pen-
sei que a coisa fosse só comigo e com Zé Celso,
mas não, o grupo inteiro estava sendo preso.
Corri até a janela e vi a praça cercada com tan-
ques de guerra, brucutus, caminhões cheios de
soldados armados com fuzis. Fiquei perplexo.
Pra que todo aquele aparato pra prender um
grupo de artistas?!

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Fomos obrigados a subir nos caminhões e nos
levaram, às pressas, para o quartel-general. Fo-
mos conduzidos até uma sala onde nos obriga-
ram a sentar em carteiras escolares, do tipo usa-
do nas escolas primárias. Logo entrou um gene-
ral aos berros: Os senhores estão sendo pagos
por Cuba ou pela União Soviética para destruir
os alicerces da família brasileira! Retruquei:
Mas general... E ele: Cale a sua boca, elemento
subversivo, cobra cubana de veneno incurável!
Vocês estão aplicando o reflexo de Pavlov para
condicionar nosso povo à dissolução dos nossos
sagrados costumes.

Depois, ele lançou um olhar cheio de falsa pie-


218
dade sobre as moças do grupo e atacou: E vocês,
pobres meninas, onde estão os seus pais? Vocês
têm aspecto de serem mocinhas de família. O
que é que estão fazendo andando soltas pelo
país? Vocês podiam ser noivas, esposas, mães
de família... O que é que estão fazendo, gali-
nhando por esse mundo de Deus? Os senhores
têm 24 horas para deixar o Maranhão e nem
um minuto a mais. Eu me arrisquei: General,
nós temos um contrato para fazer o Galileu Ga-
lilei na quadra de basquete depois de amanhã.
Ele me interrompeu aos gritos: Já sei, o senhor
vá hoje mesmo à Secretaria de Cultura que seu
cheque já está pronto. Pegue o dinheiro e caia
fora com seus companheiros agitadores. E ago-
ra: Rua!!! Já temos seus lugares reservados no
vôo de 6:30 hs. Nossos soldados vão conduzi-

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los até a porta da avião. Cuidado com o que
vão fazer em Belém, estarão sendo observados
o tempo todo pela Polícia Federal. Saímos de
lá com o rabo entre as pernas. Depois de fazer
as malas, tomei um banho, sequei meus lon-
gos cabelos com um secador francês, vesti uma
roupa novinha que ainda não tinha estreado
durante toda a viagem. Era um traje completo
todo branco composto de uma jaqueta, calça e
camiseta. Vesti e saí andando pela rua de cabe-
ça erguida e queixo levantado para expressar o
meu desprezo pelo que tinha ouvido daquele
general do exército maranhense.

Foi quando passou por mim um carro cheio de


menininhas estilo Jovem Guarda. Elas me viram
219
e gritaram: E aí, pãozinho. Me senti orgulhoso
com a aprovação feminina e segui meu cami-
nho pisando firme. Mas logo depois que o carro
passou, ouvi novos gritos e gargalhadas: CARE-
CA!!! Aquilo foi uma punhalada nas costas. De
fato, não estava mais conseguindo esconder
uma ainda pequena coroa peladinha bem no
topo de cabeça. Merda.

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Capítulo XLI
Belém do Pará, Manaus e o Retorno

Em Belém do Pará fomos recebidos por poli-


ciais do Dops, que nos conduziram à delegacia,
onde fomos todos fichados com fotos de frente
e de perfil, impressões digitais e outras forma-
lidades. Quase morri de susto atrasado quando
soube que um colega nosso que estava regis-
trando a viagem em película cinematográfica
simplesmente tinha feito o vôo de São Luiz a
Belém com latas de filmes plenas de maconha.
Isso com todas as forças armadas no nosso pé!
A seguir nos enviaram ao hotel onde preten-
diam nos encerrar durante nossa temporada no 221
Teatro da Paz. Nós não demos a mínima. Tinha
sempre um ou dois agentes que nos seguiam
de longe. Levei vida normal. Fui onde quis. A ci-
dade de Belém era linda com suas mangueiras.
A temporada, naquele teatro belíssimo, esteve
sempre com muito público. Os policiais não nos
incomodaram mais.

Seguimos para a última cidade programada:


Manaus. Ficamos hospedados na Maromba, um
lugar do governo um pouco afastado do cen-
tro. Naquele tempo, achei a cidade feia e o ca-
lor me levou a sentar na calçada várias vezes.
Lembro que o asfalto ficava meio derretido sob
o sol de meio-dia e prendia nossos sapatos. O
Teatro Amazonas era inacreditavelmente belo.

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Fizemos Rei da Vela e o repertório completo da
tralha. Também em Manaus, me senti seguido
por agentes policiais. Chegou, depois de nove
meses de viagem, o momento de voltar.

Meus pais estavam preocupados e cheios de


saudades. Compraram uma passagem de avião
Manaus-Rio de Janeiro e me trouxeram direto
para sua nova residência em Ipanema. Os pais
de Estér fizeram o mesmo. Zé e mais alguns
companheiros ainda se embrenharam por ou-
tras pequenas cidades amazônicas. Os demais
componentes do grupo voltaram de navio de
Manaus até Belém e, depois, de ônibus até Bra-
sília e novamente de ônibus até Rio ou São Pau-
lo. Só Flávio São Thiago ficou sem dinheiro em
222
Brasília sem poder voltar. Fiz uma vaquinha no
Rio e até Marília Pêra colaborou. O pessoal que
fez aquele percurso de navio contou que vie-
ram encenando o Carnaval do Galileu para os
demais passageiros. Contaram que a pirâmide
humana, ilustrando as diferenças sociais, foi o
maior sucesso.

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Capítulo XLII
Gracias, Señor

Em janeiro de 1972, aproveitando a experiência


de todos os laboratórios realizados pelo Brasil,
decidimos apresentar nosso roteiro revisado do
já citado Trabalho Novo. A estréia foi no Rio,
Teatro Tereza Rachel, ainda em construção. O
trabalho foi batizado com o nome de Gracias,
Señor, em homenagem ao comportamento
subserviente do latino-americano subdesenvol-
vido diante do poder imperialista.

O lançamento foi uma loucura! Para inovar,


não queríamos dar entrevistas de óculos escu- 223
ros, blazer, falando coisas inteligentes. Eu não
podia imaginar que, nos dias de hoje, a coisa ia
piorar muito, porque agora a maioria das en-
trevistas é feita por telefone. De qualquer for-
ma, o que aconteceu foi que combinamos en-
trar em frangalhos na redação do JB, o Jornal
do Brasil, que era o máximo da comunicação
cultural na época, e morrer em cima das mesas
dos jornalistas. Vinte pessoas mortas nas mesas
dos jornalistas! Eles se revoltaram: Sai daí, está
me atrapalhando, eu tenho que entregar mi-
nha matéria até às cinco da tarde, pelo amor
de Deus! Que história é essa? Pára com isso! E o
cara, na mesa do quem eu morri, falou assim no
meu ouvido indefeso de morto: Renato, fran-
camente! Você é o Rei da Vela, você é o Gali-

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leu, você é o fundador do Oficina. Por que está
fazendo esse papel de moleque deitado aqui
na minha mesa? Fiquei um defunto rubro de
vergonha, completamente rubro, com vontade
de sair correndo.

O clima místico aumentava a cada dia. Nossa


caminhada até o teatro era ritualística. Saía-
mos em fila, em absoluto silêncio, entrávamos
no teatro depois do público, nos colocávamos
contra a parede e começávamos a proclamar
nossos nomes e os números de nossas identi-
dades. Ah! Antes de nos reunirmos em nosso
apartamento-comunidade para a caminhada
até o teatro, tomávamos um longo banho de
224
mar que começava às 18 horas.

Para mim, o momento mais difícil do espetácu-


lo, ou melhor, do happening, era a declaração
de morte da palavra. Esse foi um capítulo difícil.
Eu vinha montado nos ombros do Henricão com
um bastão na mão (era uma cena até bonita,
imponente); eu vinha dizendo Calderon de La
Barca. Aí, desmontava tudo, todo mundo ficava
de frente ao público e dizíamos: A Palavra está
morta. O Teatro está morto. Entendo que, para
alguns colegas, isso soasse como verdade, mas,
para mim, era uma mentira deslavada. Nunca
acreditei nisso. Nunca acreditei que a dramatur-
gia, nem a interpretação, nem a fábula estavam
mortas. Então, começou um momento violento,
um momento muito difícil para mim.

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Em cena de Gracias, Señor, 1972

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Em cena de Gracias, Señor, 1972

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Depois, passávamos por aquelas fases da lobo-
tomia, esquizofrenia, a descida aos infernos
com o espancamento coletivo, a estátua do con-
sumo e outros momentos importantes. Chega-
va então a hora da morte. Deitávamos no chão
e permanecíamos mortos por mais de quinze
minutos. Isso deixava o público muito inquieto.
Uma saudosa psicóloga, Regina Sneiderman, se
aproximou do meu cadáver e começou a pisar,
de verdade no meu frágil pescocinho, dizendo
entre-dentes: Agora eu quero ver se você tem
fé no que está fazendo. Mostre que você não é
um impostor e agüente firme enquanto eu te
estrangulo, seu filho da puta!. Claro que eu me
levantei num pulo.
227
Outra vez, também durante a morte, minha
amigona e administradora, a famosa Reginona,
chegou no meu ouvido indefeso de morto e co-
chichou: Meu compadre, está na hora do meu
ônibus pro Rio. Eu sei que você está morto, mas
presta atenção: o dinheiro da renda de hoje está
na gaveta da bilheteria, fechadinho a chave. A
chave tá aqui, tá sentindo? Tô enfiando no seu
bolso. Tchau, até segunda. Depois vinha o re-
nascimento. Convidávamos o público a embar-
car conosco no navio de Serafim Ponte Grande.
Brincadeiras eram propostas. O público amava
esse pedaço. As pessoas dançavam, cantavam.
Houve um moço que comparecia ao espetáculo
todas as noites. Uma vez, ele veio vestido de
bailarina clássica, de sapatilha e tudo.

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Tinha uma corda que era estendida nesse mo-
mento para que as pessoas atravessassem o pal-
co se segurando na corda com as mãos. Claro que
a bailarina bêbada quis descer feito uma equi-
librista profissional pisando em ponta naquela
corda frouxa. Evidentemente, esborrachou-se
no chão e pareceu ter se machucado muito. Pen-
sei que ela tinha quebrado o pescoço.

Eu sabia que estávamos sendo permanentemen-


te vigiados e, cruelmente, arrastei-a pra dentro
de um camarim e tranquei a porta por fora. A
loucura era tal que não pensei em socorrê-la, só
fazê-la desaparecer sem chamar atenção. Bem,
o pescoço era exagero, ela sairia dali andando,
228
roxa, manca, mas andando. A seguir, começava
a comunhão dos corpos. Embaixo do Equador
não existe pecado! O público era convidado a
vir comer abacate conosco. Todo mundo senta-
do em roda, comendo abacate. Era uma cena
bonita. Depois, formávamos uma fila de atores
de frente para uma fila de público. Caminhá-
vamos uns para os outros; a gente se abraça-
va e dava um beijo no rosto. Só que, você sabe
como é que é... Tem gente que ficava a fim do
elenco. Naquela época, eu era gatinho e a Es-
tér era linda, nossa! (Ela é linda até hoje) Ela
era o máximo! Então, o público vinha vindo,
nos abraçavam e alguns nos beijavam na boca.
Bem, nós estávamos propondo uma comunhão
de corpos, éramos radicais, como poderíamos
negar uma coisa dessas?

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Ester Góes em cena de Gracias, Señor, 1972

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Em cena de Gracias, Señor, 1972

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Aí, o Dops começou a mandar oficiais disfarça-
dos de estudantes e mocinhas disfarçadas de
estudantes. Eles vinham e beijavam direto na
boca. E a gente beijava, claro. Não guardo ne-
nhuma lembrança desagradável ou constrange-
dora daqueles momentos. Um beijo é um beijo,
quer dizer, é sempre uma coisa emocionante. E
a peça foi proibida em todo o território nacio-
nal!! O que é que aconteceu, gente? O que é
que houve? O que é que houve? Precisa saber o
que foi que aconteceu. Tem que ir a Brasília!

Quem teve que ir a Brasília? Eu! Fui para Bra-


sília. Botei o blazer, gravata e fui para o aero-
porto. Só que fiquei muito nervoso e tasquei
um LSD na língua. Era a época das drogas, não
vamos enganar ninguém, estava todo mundo 231
muito louco – e aquilo fez um efeito! O avião
parecia se expandir e encolher feito sanfona.
As nuvens formavam figuras inacreditáveis.
Desci em Brasília, os prédios balançavam, o
Banco Central parecia querer me estrangular.
Uma coisa! Entrei no prédio da censura fede-
ral. Topei com o Gal. Bandeira, o Carrasco da
Ditadura. Parecia o Dragão da Maldade soltan-
do fogo pelas ventas. Eu falei: General, por que
proibiram a nossa peça, Gracias, Señor?

– Mas o senhor ainda pergunta? Olha esse dos-


siê de denúncias, olha aqui: dia tal do tal, oficial
fulano de tal beijado de língua pelo ator Rena-
to Borghi; dia tal do tal, a oficial tal beijada de
língua por Maria Alice Vergueiro.

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Era uma bíblia interminável de denúncias. Fa-
lei: Mas o senhor não compreendeu, general,
foi uma coisa inocente, essa é a cena da comu-
nhão dos corpos.

– O quê? O senhor tem a coragem de chamar


suruba de comunhão dos corpos? Ponha-se da-
qui para fora! Os senhores estão subvenciona-
dos pela União Soviética, ou então por Cuba, pra
dissolver os alicerces da família brasileira! (Igual-
zinho ao general de São Luiz, parecia discurso
ensaiado) Ponha-se daqui para fora! Saia daqui!

Eu peguei o avião desesperadamente louco, saí


do avião andando de costas e cheguei no tea-
tro. Sentei na roda, falei com o meu pessoal de
232
um jeito sorridente e despreocupado de quem
está muito louco: Acabou, viu gente. Vamos en-
cerrar tudo. O General não quer. CRISE!

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Capítulo XLIII
Três Irmãs e a Despedida do Oficina

Era preciso fazer alguma coisa, era preciso des-


viar a atenção daquela ditadura, daquele Dops
maldito. Então, resolvemos montar uma peça
que eu amava muito e que Zé Celso amava mui-
to também. Era As Três Irmãs, de Tchekhov.

Uma peça que, de certa forma, tratava da gen-


te, porque as três irmãs estão sendo expulsas de
casa; as românticas estão sendo expulsas de casa
pelo princípio da realidade burguesa encarnado
pela cunhada Natasha, que vai, pouco a pouco,
botando as coitadas pra fora. Assim como nós.
Também estavam querendo nos expulsar do tea- 233
tro. Então, tinha muito a ver com a gente.

Para esse espetáculo, trouxemos de volta anti-


gos profissionais que já tinham brilhado muito
em outros momentos do Oficina: Maria Fer-
nanda, Othon Bastos, Kate Hansen integraram
o elenco e Analú Prestes fez uma de suas pri-
meiras aparições. A encenação tinha um lado
visual inspirado em alguns símbolos do Gracias,
Señor; era muito forte em sua linguagem poé-
tica. O cenário era uma mandala imensa. Tinha
um relógio que era uma mandala. Tinha uma
piorra (a gente tinha uma cena linda olhando
aquela piorra rodando), tinha coisas de uma
poesia extrema. Eu me lembro também de uma
cena que é o balanço do Rei da Vela.

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Zé Celso ficava balançando sobre a platéia.
Eu fazia o Andrei, com um filhinho pequeno
dentro de um carrinho de bebê preto, girando
como um louco em torno da mandala, pensan-
do alto: O que é que eu vou fazer da minha
vida, meu Deus. Ariel tinha acabado de nascer.
Tudo em cena parecia muito verdadeiro. A cri-
se, a loucura do LSD, a alegria da paternidade;
tudo isso dissolvia a frágil fronteira entre ficção
e realidade. Foi aí que meu querido Ariel en-
trou em cena nas vidas de Ester e do Renato.
Pensava na Tempestade, de Shakespeare. Eu
ficava com o carrinho, girando e murmurando
baixinho: O que é que eu vou fazer da minha
vida, meu Deus? Era quase um mantra.
234
Nossa, quem viu esse espetáculo disse que ele
foi arrebatador. Eu fiquei só uma semana. Por-
que no dia 31 de dezembro, de 1972 para 73, fi-
zemos um espetáculo de comemoração de pas-
sagem de ano e, durante esse espetáculo, quan-
do terminei o primeiro ato, fui até o camarim
trocar de roupa quando, de repente, ouvi uma
coisa estranha na platéia, uma batucada de
Candomblé. Todo mundo louco! Maria Fernan-
da louca correndo pelos camarins: O que é que
está acontecendo, meu Deus? O que é isso? Os
atores convidados completamente transtorna-
dos e a platéia em transe. Zé Celso incentivava
a formação de uma corrente: Corrente, firma!
Corrente, firma! Eu tive um insight, não sei.

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Em cena de As Três Irmãs, 1972, com Zé Celso, Kate Hansen
e Maria Fernanda

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De repente, voltei pro meu camarim, abri a por-
ta, olhei no espelho e perguntei para mim mes-
mo com toda sinceridade: Renato, você acredita
nisso? Não. Você acha que você pode continuar
com isso? Não. Você acha que isso vai mudar?
Não. Então, o que é que você quer?

Tirei minha roupa de cena, vesti minha roupi-


nha de rua e fui pro meio do palco. Cheguei
lá no meio do palco e falei: Olha Zé Celso, por
aquela porta que eu entrei há treze anos, estou
indo embora. Estou indo embora porque a nos-
sa parceria acabou. Eu não acredito nesse tipo
de pesquisa que vocês estão fazendo, eu acho
que você vai voltar à dramaturgia mas, nesse
momento, você não pode admitir isso. Pra mim
236
é impossível continuar. Então, eu vou procurar
o meu caminho, vou te dizer adeus e desejar
boa sorte. Fui embora pra sempre e hoje sei que
pra sempre é uma bolha de goma de mascar.

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Capítulo XLIV

Teatro Vivo

Foi um momento muito difícil pra mim, Estér e


Ariel, mas a sorte estava a nosso favor. O casal
foi convidado pelo Maurício Segall e pela Bea-
triz Segall para fazer o Frank V, do Dürrenmatt,
com a direção de Fernando Peixoto. Fica aqui o
meu abraço carinhoso para os três, por terem
colaborado com o reinício de minha carreira e
com o leitinho da criança, por que não?

Realmente, foi um momento muito difícil. Eu ti-


nha medo. Estava apavorado. Tinha medo de não
ser aceito no mercado de trabalho. Estava com
237
fama de drogado, de anarquista. Parecia que a
gente não gostava das coisas que os outros fa-
ziam. Tinha uma suspeição em cima de nós. Esta-
va com muito medo de ser recusado. Mas, ao con-
trário, eu fui abraçado, acarinhado pelos colegas
que me receberam de braços abertos. A Beatriz
Segall, o Maurício e o Fernando Peixoto foram o
meu melhor abraço. Foi importantíssimo, naquele
momento, ter aquela peça para fazer. Estávamos
de volta à fábula, de volta ao personagem, de
volta à dramaturgia, de volta a um momento lin-
do de teatro. Serginho Mamberti fazia o Frank V,
um diretor-gângsteres de banco; eu era o braço
direito dele, gângsteres também. Estér era outra
gângsteres. Fazíamos duetos musicais amorosos
entre gângsteres, o que pra nós era sopa no mel.

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Cenas de Frank V, 1973

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Momentos belíssimos! E tem uma música que não
me sai da cabeça. Nossa, como é que era mesmo?

Antigamente era fácil encontrar em qualquer


parte um bom auxiliar, para roubar, para ma-
tar. Os bons rapazes, ladrões capazes, já não
existem mais: Trapaceiros profissionais!

Era o momento de mostrarmos nossa cara,


era o momento de retomar o diálogo com a
platéia, o diálogo político interrompido. Re-
solvemos fazer um teatro que fosse a cara do
Renato e da Estér. Então, fizemos uma incur-
são na obra de Bertold Brecht. Lemos peças,
poemas, canções, escritos, enfim, percorre-
mos toda a obra do dramaturgo. Chamamos 241
o genial maestro Paulo Herculano pra fazer os
arranjos, José Antônio de Souza para dirigir.
Que pesquisa fantástica! Fomos fundo naque-
le universo. A gente tratava da falência das
utopias dentro de regimes autoritários: falên-
cia da bondade, da justiça, da ciência e da so-
lidariedade. A peça veio a se chamar O Que
Mantém um Homem Vivo? e começava com a
música-tema:

O que é que nos mantém, mantém o homem? O


que, por dia, agarra, esgana e consegue roubar.
O homem vive só, se esquecendo, que, no final,
um homem ele é. Os fatos enfrentemos com co-
ragem, o homem vive só de sacanagem!

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Foi uma prova de fogo para mim. Parecia um
exame vestibular. Estava rolando aquele papo:
O que o Renatinho vai fazer sem o Oficina? Ago-
ra eu quero ver. Acho que passamos na prova
com nota 10, porque a peça foi um sucesso não
só de crítica como também de público e, real-
mente, nos manteve vivos por muito tempo nas
várias remontagens. Nosso maior fã era nosso
filho Ariel. Acho que ele assistiu a quase todas
as apresentações. Ele sempre me diz que, assim
como Dalva de Oliveira foi meu primeiro cha-
mamento para as artes, Estér e eu, sem saber, o
chamamos também para o teatro.

Imagens das montagens de


O Que Mantém um Homem Vivo?, com Ester Góes

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Imagens das montagens de
O Que Mantém um Homem Vivo?, com Ester Góes

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Em O Que Mantém um Homem Vivo?, com Ester Góes

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Capítulo XLV
Mahagonny e o Teatro de Resistência

Pouco tempo depois, fizemos um outro Bre-


cht: Mahagonny. Para mim, a coisa mais fun-
damental que aconteceu nesse espetáculo foi
a presença de Lili Canhão. Sabem quem era Lili
Canhão? O rapaz que fazia o canhão de luz era,
nada mais, nada menos, que o grande ator Elias
Andreato. Maravilhoso ator, grande amigo!

A direção foi do saudoso Ademar Guerra, os ar-


ranjos musicais do maestro Paulo Herculano e a
coreografia de Marika Gidali. Durante a prepara-
ção corporal, Marika pedia de nós o máximo ren-
dimento. Os alongamentos eram especialmente 247
martirizantes para mim. Um dia, ela me alongou
tanto, que travei numa posição de forma irre-
movível. Fui parar no hospital como uma estátua
de gesso. Custei muito a voltar ao normal. Em
Mahagonny tudo era pago a peso de ouro. Meu
personagem era eletrocutado porque não teve
dinheiro para pagar uma Coca-Cola.

Aí, começou uma nova fase: o Teatro de Resistên-


cia. Minha grande e imensa amiga, Marta Over-
beck, uma de nossas mais valorosas e talentosas
atrizes, e seu marido e grande parceiro de cena,
Othon Bastos, me convidaram para uma grande
aventura: correr o Brasil com a peça do Guarnie-
ri Um Grito Parado no Ar. Teatro de Resistência
pelo Brasil, numa excursão até Manaus.

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Cenas de Mahagonny,
com Ester Góes e José Rubens Chachá

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Cena de Um Grito Parado no Ar, com Marta Overbeck

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Eu já estava viciado nessas colunas teatrais. Um
ano antes, já tinha viajado o país com O Que
Mantém um Homem Vivo?, dando sessões ex-
tras em Salvador e Recife. Vamos lá! Uma nova
aventura que enlouqueceu as platéias do Nor-
deste. A peça era belíssima. Uma trombada
poética na ditadura. Ela falava de atores en-
saiando e cada cena ensaiada era uma cena de
opressão. Foi o momento em que abrimos mão
de muitos de nossos sonhos para fazer um tea-
tro de enfrentamento, de resistência àquela di-
tadura que já durava mais de 11 anos. Lembro
que o espetáculo tinha um refrão, uma música.
Só um pedacinho diz o que era a peça:

Quem souber de alguma coisa, venha logo me 251


avisar. Sei que há um sol sobre essas nuvens e
um grito parado no ar.

Isso dizia tudo. Logo depois de terminada a ex-


cursão, Miriam Mehler me convidou a co-pro-
duzir com ela e Lenine Tavares uma comédia
inglesa muito inteligente chamada Absurda
Pessoa do Singular. O autor era Alan Aickbourn
que fazia um enorme sucesso em Londres e
Nova York. A peça se passava em três noites
de Natal em três cozinhas de casas diferentes.
Miriam Mehler fazia uma suicida que enfiava
a cabeça no forno e se atirava sobre facas. Era
sempre impedida de consumar o intento maca-
bro por seu marido, feito pelo jovem, talentoso
e carismático Tony Ramos.

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Aqui cabe abrir um parêntese para comentar o
profissionalismo desse ator que ainda era um
contratado da saudosa TV Tupi. Tony gravava
novelas e ensaiava a peça ao mesmo tempo. Às
vezes, comia barras de chocolate pra conseguir
energia para ensaiar depois de um dia de gra-
vações exaustivas na TV. Agora, recentemente,
encontrei com ele nas gravações de Mad Maria
na TV Globo. Tony só confirmou a impressão
que eu guardara do passado. Um colega extraor-
dinariamente pródigo, sempre disposto a me
dar dicas de posicionamento de luzes, marcas
que me favoreciam nas cenas, além de procurar
me fazer sentir à vontade diante das câmeras.

252
Era minha estréia na Globo. Claro que, apesar de
tantos anos de teatro, eu estava tenso. Tony per-
cebeu isso e começou a me contar anedotas en-
graçadíssimas e conseguiu me deixar num ótimo
astral na hora do famoso Gravando! Isso, sem
falar no apoio cênico, que só um ator de muito
talento e espiritualmente desenvolvido é capaz
de oferecer a seu companheiro de cena. Aliás,
apoio emocional e carinho foi o que não me fal-
tou nesse debut global. Ricardo Waddington, Zé
Luís Villamarin e Amora Mautner foram sempre
cuidadosos e extremamente estimulantes duran-
te as gravações. Edwin Luisi foi bem mais que
um colega, foi um amigão divertidíssimo.

Bem, acho que me afastei dos fatos históricos.


Estamos em 1975 nos ensaios de Absurda Pes-

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soa. Estér Góes fez um trabalho excelente nes-
se espetáculo, uma espécie de Doris Day subur-
bana. Gostei da experiência na direção. Era mais
uma possibilidade em minha carreira. Lembro
com tristeza a reprovação da crítica pelo fato de
eu ter aceitado dirigir um sucesso da Broadway,
que infelizmente estreou no dia em que Wladi-
mir Herzog tinha sido assassinado na prisão.

Com Martha e Othon ainda produzi e atuei em


vários espetáculos. Fizemos mais uma grande
excursão pelo Brasil com outra peça de Guar-
nieri, Castro Alves Pede Passagem. Tive o pra-
zer de criar uma espécie de Silvio Santos que
ia fazendo sensacionalismo enquanto a vida do
nosso poeta seguia para um desfecho trágico. 253

Logo depois, a dupla Overbeck-Bastos me con-


vidou para fazer Murro em Ponta de Faca. Uma
peça pela volta do exilado ao Brasil. Gente,
estava todo mundo exilado; todo mundo que
prestava estava fora do Brasil. É verdade! Esta-
vam fora os professores da USP, nossos amigos,
políticos, todo mundo exilado, todo mundo
fora. Uma coisa difícil! Eles estavam mortos de
saudade do Brasil, a gente estava com saudade
deles. A peça foi o Boal que escreveu e man-
dou do exílio. A gente recebeu aquela peça,
chamou o Paulo José pra dirigir e teve uma
equipe de ouro defendendo o espetáculo: Dina
Sfat, Otávio Augusto; os meus saudosos amigos
Yara Amaral e Francisco Milani; um monte de

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Cena de Murro em Ponta de Faca, com Dina Sfat

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gente legal fez aquela peça e ela teve um re-
sultado objetivo pela volta do exilado. A peça
virou campanha pela volta do exilado. Marthi-
nha estava num grande momento como uma
exilada pouco convicta, sentindo falta de seus
confortos. Othon era nosso líder. Meu persona-
gem era um compositor da MPB. Como o Chico
Buarque já tinha estado exilado, eu pedi a ele
para compor uma música-tema para o meu per-
sonagem. O Renatinho aqui cantaria se acom-
panhando ao violão. E não é que o Chico fez! A
letra era assim:

Eu até que não gostava


De sair da minha casa
Mas quando eu menos esperava 255
Parece que criei asa
Errando de porto em porto
Sou ave de migração,
Mala de mão, peso morto,
Ou quilombola ou balão.
Não sei se sou inimigo,
Ou do inimigo me escondo,
Não sei se fujo ou persigo
Por esse enredo, enredo
Em redondo.

Essa peça deu frutos, os exilados começaram a


voltar. Foi por aí, que se começou a falar no
fim de censura. Othon e eu estávamos andando
pelas ruas de Belo Horizonte, no final da excur-
são do Murro, quando vimos Calabar, de Chico

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Cena de Murro em Ponta de Faca, com Yara Amaral

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Buarque e Ruy Guerra, colocado numa vitrine
de livraria. Eu falei: Nossa, essa é a peça! Essa
peça foi proibida em 1973, dando grave prejuí-
zo para Fernanda Montenegro e Fernando Tor-
res, porque eles proibiram no ato do ensaio ge-
ral, quando todas as despesas já estavam feitas.
Eles proibiam ali, no ensaio geral, para levar as
companhias à falência. Então, eu falei: Vamos
fazer essa peça, porque essa peça será um gran-
de sucesso. Vamos festejar o fim dessa censura
filha da puta! Elis Regina já cantava uma série
de músicas que pertenciam a Calabar: Quero fi-
car no teu corpo feito tatuagem, que é pra te
dar coragem de seguir viagem quando a noite
vem. E aquela outra: Bárbara, Bárbara, nunca é
tarde, nunca é demais... E tinha uma outra que
257
era uma festa com todo o pessoal, bailarinos,
coral, todo mundo junto cantando o fim da
censura e a abertura que estava chegando:

Não existe pecado do lado debaixo do Equa-


dor. Vamos fazer um pecado, rasgado, suado,
a todo vapor. Me deixa ser teu escracho, capa-
cho, teu cacho, riacho de amor... Quando é li-
ção de esculacho, olha aí, sai de baixo que eu
sou professor!

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Cenas de Murro em Ponta de Faca, com Othon Bastos,
Ada Chaseliov, Otávio Augusto e Thaia Perez

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Com Marta Overbeck, Othon Bastos e
o elenco de Calabar

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Capítulo XLVI
Édipo, o Fim da Ditadura e
a Geração Yuppie

Finalmente, demos os primeiros passos a cami-


nho da abertura. O Brasil ia abrir, que maravi-
lha! Eu queria me dar de presente algumas coi-
sas que não tinha feito. Eu passei anos dando
muito de mim na luta contra a ditadura, não
podendo fazer exatamente o que eu queria. Ti-
nha uns sonhos malucos: Ricardo III inspirado
no físico do Castelo Branco; tinha vontade de
fazer essas coisas, mas abri mão.

Fui fazer Teatro de Resistência. E eu tinha so-


nhos. Mas aí apareceu na minha vida um dire- 261
tor que hoje é famosíssimo, chamado Marcio
Aurelio, acompanhado do meu amigo e imenso
ator Elias Andreato. Edith Siqueira (que saudo-
sa memória!), Márcio Aurélio e Elias me convi-
daram para fazer Édipo, de Sófocles. Eu fiquei
encantado. Nossa! Entrei naquela pesquisa,
trabalhei, fiz aula de caratê, aula de corpo, de
yoga, fiz de tudo. E a felicidade suprema foi
voltar a trabalhar com minha companheira de
Oficina, Ítala Nandi. Ela veio fazer o papel de
Jocasta. Imaginem, ela é 10 anos mais moça do
que eu! Teatro tem dessas coisas. Minha mãe
Jocasta era linda e jovem.

No dia da estréia, me vestiram de Apolo, com


uma tanguinha, um couro de porco com pedras

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Cena de Édipo Rei, com Ítala Nandi

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rudes na cabeça, braçadeiras de metal que me
escorriam pelo braço o tempo todo e um man-
to vermelho que sempre ficava preso em algum
prego do cenário. Eu olhei no espelho antes
do terceiro sinal, falei: Renato, você parece um
frango assado!

Todos os Édipos que eu tinha visto eram atléti-


cos. Paulo Autran, quando fez o papel, era um
deus grego e eu... Era um galeto, uma coisa!
Comecei a falar alto comigo mesmo: Não posso
fazer isso, meu Deus, como é que eu vou en-
trar? Segundo sinal. Foi quando, de repente, eu
olhei pro meu pé e vi que ele estava enfaixado,
porque o Édipo foi pendurado por uns ganchos
quando queriam que ele morresse lá no Citerão, 263
e ele não entende por que tem aquelas feridas
nos pés. Isso provoca uma dúvida quanto à sua
própria identidade por causa daquelas feridas
mal explicadas.

E eu, com meu manto... Uma coisa difícil, en-


trei em cena, me empurraram. Olhei, o coro
já estava fazendo aquela música: Édipuuuuu,
Édipuuuuu, uma música moderna meio operís-
tica que o Lívio Tratenberg compôs. Eu entrei
em cena: Meu filhos, filhos da terra de Tebas.
Por que vindes aqui perante mim suplicantes,
enquanto uma nuvem de incenso veste toda a
cidade? Sabem que me enganei?! Ou melhor,
enganei o público. Ganhei um prêmio! Quer di-
zer, enganei o público e a crítica.

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Cena de Édipo Rei, com Ítala Nandi

Acontece muito raramente, mas às vezes acon-


tece. Porque eu não fiz, eu enganei. Porque eu
não era Édipo. Mas aquela dúvida me alimentou.
Eu fiquei preenchido com aquilo, consegui fazer
a peça, fazer uma temporada com essa motiva-
ção da dúvida sobre mim mesmo. Isso foi uma
coisa surpreendente! O teatro tem coisas mági-
cas que acontecem. E depois... Novos desafios.

A peste de Édipo Rei foi bem simples de concei-


tuar. Era a Aids. O ano corrente era o de 1983.
As pessoas morriam aos montes sem qualquer
esperança de cura.

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Não se sabia quase nada sobre essa peste. Ha-
via, no início dos anos 80, uma maldição sobre
ela. Era a peste gay. Os gays eram os únicos
culpados por aquele flagelo social. Os gays,
segundo opiniões de leigos e populares, eram
amaldiçoados por Deus. Perdi muitos amigos.
Estava completamente sensibilizado por aque-
la catástrofe mundial. Como processo de ator,
acho que encontrei o caminho que leva um
homem a arrancar os próprios olhos quando
se descobre o culpado da punição divina que
recai sobre seus entes amados. Era como se, no
decorrer da peça, eu incorporasse a culpa por
todos, me assumindo como o bode, e tentas-
se salvá-los pela mutilação de meus olhos. Um
processo que só atores sabem fazer. É claro que, 265
intelectualmente, eu achava de uma burrice to-
tal aquela tendência de culpar a comunidade
gay pela existência da Aids. Mas a motivação
emocional, naquele início dos anos 80, era ne-
vrálgica e mobilizante.

Vocês lembram do princípio dos 80? Nossa! Era


uma coisa difícil pra burro. Todo mundo esta-
va muito reservado, as pessoas estavam meio
afastadas, todo mundo meio enclausurado,
meio fechado. Eu me lembro, assim como se as
pessoas se escondessem por trás de uma mem-
brana protetora, estava todo mundo protegi-
do, esquisito, meio individualista. Uma coisa
estranha! Eu entrava no teatro e via pesquisa
de mercado nas poltronas: O que você prefere:

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tragédia ou comédia? Você gosta de peça curta
ou peça longa? As pessoas respondiam comé-
dia, é o óbvio: A vida já é tão triste, eu quero
comédia. Ou então: Quero uma peça só de uma
hora e meia pra depois comer uma pizza com a
família. Era mais ou menos isso. Então, eu ficava
um pouco deslocado, porque a minha geração
era muito orgulhosa. A gente lançava moda.
Eu achava meio esquisito aquela coisa de pedir
licença para entrar na moda. Mas, naquele mo-
mento, tudo apontava para a comédia.

266

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Capítulo XLVII
Com a Pulga Atrás da Orelha e
a Comédia do Brasil

Foi uma era muito importante para a drama-


turgia pós-ditadura. Surgiram grandes comedió-
grafos como o Marcos Caruso, Juca de Oliveira,
Jandira Martini... Isso só lembrando de alguns.
Surgiram verdadeiras obras-primas no gênero da
comédia. Sempre tivemos ótimos autores: Con-
suelo de Castro e Leilah Assumpção já vinham de
muito antes. No Rio de Janeiro, também prenun-
ciando o gênero de comédias insubordinadas e
irreverentes, já havia surgido, ainda no começo
dos anos 70, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombo- 267
ne, uma equipe de gênios – Luiz Fernando Gui-
marães, Regina Casé, Patrícia Travassos, Evandro
Mesquita – dirigida por Hamilton Vaz Pereira.

O besteirol pintou com toda a força nos primór-


dios dos anos 80. Um movimento criticamente
impiedoso com a babaquice da classe média
carioca, ou melhor, brasileira. Como me diver-
ti com Falabella e Karan! Autores importan-
tes surgiram naquele tempo: Vicente Pereira
e Mauro Rasi. Houve muito mais gente, mas a
memória não registra tudo como eu gostaria.
Resolvi entrar de cabeça na onda da comédia.
Fiz um personagem duplo na genial comédia
de Feydeau Com a Pulga Atrás da Orelha. Gen-
te, é muito bom fazer comédia!

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Foi minha comadre Regina Malheiros quem
me jogou essa peça nas mãos. Ela dizia assim,
fingindo preocupação: Já lotou para sábado! E
era um prazer enorme a gente ter aquela casa
cheia de gente gargalhando! Comédia – é bo-
bagem dessa gente que afirma que a comédia é
um subgênero – é o gênero talvez mais nobre e
difícil de ser bem executado no teatro. Entendi
isso nessa temporada.

Seus personagens em Com a Pulga Atrás da Orelha, com


Othon Bastos

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Capítulo XLVIII
Transição, Televisão e o Retorno de Dalva

Estávamos vivendo a era da transição. Ah, foi


tudo oposto do que se imaginava. A gente que-
ria Diretas Já. No Brasil, quase nada acontece
de baixo para cima. A Independência, de cima
pra baixo; Abolição da Escravatura, de cima pra
baixo; Proclamação da República, de cima pra
baixo. A gente gritando Diretas Já e eles en-
tregaram um governo de transição. Aí, ficou o
Tancredo, morre, não morre. Coitado daquele
homem! Parecia que o lado escuro da força ti-
nha jogado uma praga sobre ele. A tempora-
da caía, oscilava. Que coisa difícil! Depois veio 271
o Sarney e a ciranda financeira: você aplicava
100,00 num dia; no dia seguinte, você tinha
200,00. Em compensação, o aluguel aumenta-
va para 300,00. Ninguém conseguia entender
nada do que se passava no Brasil. Eram planos:
Cruzeiro Velho, Cruzeiro Novo, Cruzado Novo,
Cruzado Velho, eu não entendia mais nada.

Foi quando resolvi me abrigar na televisão.


Cheguei lá na TV Manchete e fiz um gênero,
porque o diretor da Manchete era um grande
amigo, fã do Oficina, o Zevi Givelder. Eu che-
guei pra ele e falei: Eu queria fazer televisão.
Ele se espantou: Mas como? Você só faz teatro.
Eu falei: Não. Eu quero vestir a camisa da Man-
chete. Ele me abraçou e disse: Seja bem-vindo!

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Me deu um contrato maravilhoso, dinheiro
bom mesmo, passagem de avião toda semana
para vir ver o meu filho adolescente que anda-
va botando banca de metaleiro. Toda semana,
eu vinha ver meu guri com camisa de caveira
aqui em São Paulo. Como a grana estava boa,
comíamos sempre em restaurante japonês.

Fiquei três anos na televisão. Foi ótimo, uma


espécie de bolsa de estudos. Tive tempo para
escrever. Nunca tinha escrito teatro na minha
vida. Então, o jovem sociólogo João Elíseo Fon-
seca me convidou para uma aventura: escrever
a vida de Dalva de Oliveira em parceria com ele.
Nossa! Era a minha musa, minha inspiração, foi
272
a pessoa que me levou pra arte. Escrevemos a
Estrela Dalva.

Dalva, essa figura me acompanhou até a mor-


te. Eu fiquei com ela no hospital, uma paixão...
Quando minha amiga foi internada pela última
vez, fui com ela para a internação. Ela pedia,
num sussurro: Liguem o rádio, liguem a televi-
são, abram as janelas e fiquem aqui comigo de
mãos dadas. Ela está querendo me levar, mas
eu ainda não quero ir. Ainda quero gravar um
último disco. De fato, nossa corrente deu cer-
to. Dalva só veio a falecer três meses depois.
Essa presença foi muito forte! Ainda continua
sendo muito forte na minha vida. Que alegria
poder resgatar essa mulher que foi banida pela
Bossa Nova.

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Marília Pêra, a Estrela Dalva

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Marília Pêra, a Estrela Dalva

Num certo momento, chegaram a dizer que


ela era cafona, que era isso, que era aquilo...
Então, de repente, com a Estrela Dalva, inter-
pretada por Marília Pêra, que fez divinamente
o papel, aconteceu um espetáculo grandioso!
Conseguimos resgatar a figura de Dalva de Oli-
veira. As pessoas começaram a chamá-la de Edi-
th Piaf, de Billie Holiday; os discos começaram
a ser gravados aos milhares. A pessoas conti-
nuam comprando discos de Dalva de Oliveira
até hoje. CDs remasterizados estão continuan-
do esse movimento de resgate da Estrela Dalva.
Tenho um orgulho enorme de poder ter ajuda-

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do nisso. Até acho que ela me abençoou, por-
que o Roberto Talma, que tem o sucesso como
sina, dirigiu e produziu o espetáculo. Foi o pri-
meiro patrocínio grande que vi na minha vida:
C&A apresenta. E tem outra coisa, criei coragem
e escrevi outra peça: Lobo de Rayban. Acho que
a bênção de Dalva pairava sobre mim, porque
cheguei pro Raul Cortez e falei: Quero ler uma
peça para você. Ele escapou: Deixa que eu leio.
Eu disse: Não, eu quero ler para você. E ele: Não,
eu leio. Eu disse: Não, eu quero ler pra você. Aí,
não teve jeito. Fui na casa dele, fiz meu amigo
sentar-se à minha frente e li o texto.

Acho que ele estava com medo de achar uma


merda, ele era meu amigo... Eu li sem levantar
277
os olhos do papel. Quando acabou, o Raul pe-
gou a peça e falou: É minha. Levamos para o
Talma, ele leu e declarou: Eu produzo.
O José Possi Neto: Eu dirijo. A Christiane Torlo-
ni: Eu faço. Pronto, explodiu um sucesso imen-
so! Ganhamos todos os prêmios de 1987. Eu
estava com duas peças em cartaz e as duas iam
muito bem. Comecei a ganhar dinheiro! Muito
dinheiro não faz mal a ninguém. Dinheirinho
gostoso. Comecei a ter meus primeiros delírios
burgueses: Ah, vou construir minha mansão na
praia, onde vou escrever minhas obras comple-
tas, como se fosse um Ernest Hemingway.

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Capítulo XLIX
Collor e a Derrocada Geral

Foi quando Fernando Collor e a queixuda Zélia


Cardoso de Mello grampearam toda a minha
grana. Fiquei desesperado, sem um puto no
bolso. Gritava pela casa: Não, não é possível...
Zélia, sua bruxa, vai pro inferno. Vai pro infer-
no, bruxa! Some daqui! Vocês não sabem o que
foi isso! Virei um personagem shakespeariano,
dizendo maldições na Av. Paulista: Você não vai
terminar seu mandato, seu presidente miserá-
vel! Zélia, você vai ser queimada na Praça da Sé!
Eu queria que fosse na Praça da Sé! Acho que o
ódio dominou a nação brasileira, todo mundo
estava puto com aquilo. Uma coisa terrível! Eu 279
fiquei pobre, pobre; com 50,00 no bolso; numa
situação difícil demais!

A novela que eu estava fazendo, Cortina de


Vidro, uma produção independente gravada
no edifício Dacon, foi a uma semifalência, por-
que os produtores tiveram também o dinheiro
grampeado. A solução encontrada foi assassi-
nar a metade do elenco. Fizeram um incêndio
lá no edifício Dacon e as pessoas tinham que
passar pelo fogo pra que eles decidissem depois
quem vivia e quem morria. Só que ninguém
queria passar pelas chamas com medo de per-
der o emprego. As atrizes tinham ataques: Eu
não vou entrar, não vou perder meu emprego,
não vou entrar no incêndio!

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Os diretores chegavam pra elas e diziam: Não,
boba, entra, eu já vi no roteiro da próxima se-
mana, você está lá vivinha, você vai continuar.
Aí, as bobas faziam uma cena linda no meio do
fogo e estavam mortas na semana seguinte.

Uma coisa terrível! A situação era de uma tal


maneira difícil... Fiquei numa crise tão séria
que meu amigo Elias Andreato teve dó de mim.
Elias, você me salvou! Ele foi convidado para
fazer Tâmara; Elias me viu num desespero tal
que declinou do convite para atuar na peça. Ele
disse aos produtores: Não posso, estou ocupa-
do, mas o Renato pode.

280
– Será que ele topa mesmo?, disseram os pro-
dutores.

– Claro, o Renato adorou o espetáculo!

Mentira, acho que eu nem tinha visto ainda.


Dei uma chegadinha lá. Fui muito bem rece-
bido pelo Roberto Lage que me dirigiu com
muito carinho. Era uma peça-franquia. Quer
dizer, seguia a mesma linha de montagem
no mundo todo. Era uma coisa assim: se você
seguisse um personagem ou outro, acabava
sempre se inteirando da história inteira. Era o
ingresso mais caro de São Paulo. A alta socie-
dade toda exibindo colares, vestidos, modelos
e perfumes fortíssimos. O espetáculo tinha que
acontecer num palacete de verdade. Todos os

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Com Jarbas Toledo em Tâmara

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móveis que compunham o espaço cenográfico
estavam à venda. A coisa também funcionava
como um antiquário.

Você fazia cenas dramáticas, aí tinha uma mu-


lher, de repente, falando assim: Ah, que encan-
tador esse tapete! É persa! Ai, amor, pergunta
o preço que eu vou comprar. Ou então: Olha
esse baú, ai, que lindo! Uma loucura! Em uma
outra cena, tinha um ator que fazia o chofer.
O moço ficava anunciando para todo mundo:
Ó, no segundo ato, eu vou tomar banho nu.
Quando chegava o intervalo, ele ficava bom-

Com Joyce Ruiz em Tâmara

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bando, que era pra ficar assim mais imponen-
te... Aí, quando chegava a hora...

É incrível, homens e mulheres; héteros, homos


e afins; é impressionante, o público todo descia
pra ver o banho do chofer.

E nós ficávamos sozinhos em nossos aposentos.


Um dia, eu fiquei sozinho no meu aposento.
Agora, eu vou contar até cinqüenta, pensei co-
migo. Quando chegasse a cinqüenta, era hora
de entrar em outro aposento. Eu estava no: um,
dois, três... quando apareceu a Estér Góes na
minha frente... E ficou assim... Sorrindo. E eu
com vontade de dizer: Dá um tempo, Estér, me
deixa... Vai ver o chofer! Mas ela... Ali, firme,
283
sorrindo pra mim! E eu tive que fazer um tele-
fonema dramático só para ela! Era um momen-
to muito difícil, eu não estava muito adaptado.
Havia um jantar no intervalo que durava mais
de uma hora. Quando o espetáculo recomeça-
va, o público se locomovia pesadamente com o
estômago cheio de macarrão e vinho branco.
Era um tal de arrotar pelo nariz, de reprimir ga-
ses insubordinados. Teve também um episódio
absurdo e engraçado com a minha amiga Tere-
za Rachel, no dia que ela foi assistir à peça. Bem,
essa vou deixar para a curiosidade de vocês.

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Capítulo L
A Fênix Renasce; Torta, Mas Renasce

Confesso que estava arquitetando um plano


para deixar o teatro. Ficava pensando comigo
mesmo: Vou largar isso. Vou largar isso... Estou
ficando meio decadente, não estou mais en-
contrando espaço, grampearam meu dinheiro
todo, não posso produzir, estou sem inspiração,
enfim, numa merda federal. Vou parar.

Lembrei da Maria Della Costa, que abriu um


hotel lá em Parati. Tinha estado recentemen-
te em Parati e fui visitar Maria. Ela estava tão
feliz dentro de um viveiro de araras, alimen-
tando os bichinhos com sementes de girassol! E 285
as araras pareciam adorar aquela bela mulher.
Elas soltavam guinchos alegres e pousavam em
seus ombros, seus braços, se equilibravam so-
bre sua cabeça... Um completo barato. Pensei
que, quando me devolvessem o dinheiro gram-
peado, eu abriria um boteco lá em Parati para
degustações de cachaças raras com bolinhos de
bacalhau e outras especialidades. Cheguei a so-
nhar comigo mesmo servindo cachaça e coçan-
do o saco porque, realmente, estava difícil de
imaginar como é que eu poderia continuar com
aquela coisa toda de teatro.

Repentinamente, fui salvo pelo gongo, a Fênix


renasceu, a mulherada me salvou. Gente, essa
mulherada é um babado muito firme!

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Era Beth Coelho, Daniela Thomas, Giulia Gam,
mulherada fantástica! Elas estavam na proa da
vanguarda, herdeiras do Gerald Thomas. Elas
faziam aquele teatro avançado com muita fu-
maça e foco de luz olho. E, de repente, eu fui
convidado para fazer Rancor, do Otávio Frias
Filho. Chique! Chegou uma Kombi da Folha na
minha casa trazendo o texto. Li, o personagem
era adorável, o demoníaco Dadá. Aliás, me cha-
mam muito de demoníaco por causa desse per-
sonagem. Não tenho nada de demoníaco, mas,
enfim... Ficou essa coisa durante um tempo. Aí,
teve a primeira leitura, chiquíssima, na casa da
Cosette Alves. A sociedade toda presente. A
gente em volta de uma mesa com nossos tex-
286
tos, quando a Beth Coelho, repentinamente,
pegou o texto, levantou-se e começou a repre-
sentar de pé. Entrei em pânico: Meu Deus, ela
está fazendo de pé, como é que eu vou fazer?
Me deu um nervoso! Tinha um whisky estran-
geiro – na casa da Cosette é tudo muito fino.
Peguei o copo que estava à minha frente, enchi
de whisky até a boca, entornei de uma vez só,
levantei e comecei a dar o meu texto de uma
forma tão livre que cheguei a ficar assustado
comigo mesmo. Aí, foi uma delícia de leitura.
Depois, tive ensaios fantásticos! Olha, tem uma
coisa que é séria, que eu preciso falar para vo-
cês: essa mulherada é responsável por muita
coisa na minha vida. Porque eu fui rebobina-
do, eu fui retrabalhado; porque eu tinha dado
tudo de mim, estava cansado, meio gasto.

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Em Rancor

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Com Bete Coelho em Rancor

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E, de repente, elas fizeram um trabalho lindo
em cima de mim. A Beth foi de um carinho sur-
preendente. E a Ana Kfouri fez comigo foi uma
coisa que... Eu quero trabalhar com essa mulher
outra vez... Uma coisa fantástica!

Depois, me chamaram para fazer Pentesiléias,


de Daniela Thomas (uma adaptação livre do
clássico alemão). Representei um eunuco que
virava rainha. Comecei a suspeitar que estava
ficando meio velhinho... Porque elas estavam
fazendo todas as minhas vontades. Gosta de
Dalva de Oliveira? Canta Dalva de Oliveira. A
Daniela fez uma cena linda pra mim todo ves-
tido de rainha, cantando um dos grandes su-
cessos de Dalva: Que será da minha vida sem o
289
teu amor... Era aplauso em cena aberta todas
as noites. Numa outra cena, ela me vestiu todo
de branco e me colocou debaixo de um foco
lindo dizendo palavrões que deixariam a Dercy
coradinha. Tudo isso era muito bonito! Tinha
um resultado cênico maravilhoso! Essas mulhe-
res são uma coisa muito séria. Elas têm aquela
bruxaria do teatro, uma coisa muito forte.

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Com Bete Coelho em Pentesiléias

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Élcio Nogueira Seixas em Babel

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Capítulo LI
Teatro Promíscuo, Beijos e Depois do Final

Acontece que tudo isso era bonito, mas, como


todas as manifestações de vanguarda, não dava
grana suficiente. Então, eu tive que dar aulas.
Esse negócio de dar aulas parecia difícil, mas
descobri que adorava. Descobri uma vocação
nova: dar aulas. Que coisa boa! Parece que Eu-
gênio Kusnet incorporou em mim.

Comecei a dar aulas no Célia Helena, na Ofici-


na Cultural Oswald de Andrade. Comecei a dar
aulas e mais aulas, a fazer cursos, seminários.
De repente, estava cercado de jovens interes- 293
santes e cheios de energia. Foi aí que conheci o
Elcio Nogueira Seixas. Descobrimos uma gran-
de afinidade na arte. Da parceria criativa entre
o velho e o moço surgiu o Teatro Promíscuo:
um teatro sem camisinha, exposto ao contágio,
contagiante, transando com as mais distintas
influências da criação e que não estivesse sob
o comando exclusivo de um guru. Babel, nosso
primeiro espetáculo de ares promíscuos, foi um
belo projeto de dramaturgia sobre a coloniza-
ção do Bom Retiro. Foi aí que pude conhecer
melhor a dimensão do talento de Elcio Noguei-
ra Seixas. Tive um problema de doença na famí-
lia e fui obrigado a fazer somente a supervisão
do trabalho. Elcio me disse: Eu faço. Fez um tra-
balho de gigante.

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Realizamos também uma Oficina Beckett, outra
Oficina Tchekhov. Conheci jovens, muitos jovens.
Acho que esse é o momento de renascimento
do Renato, quando comecei a transacionar com
o jovem, porque era uma gente curiosa, ávida;
eles queriam saber das coisas, dos segredos da
interpretação. Era estimulante! Além do Elcio,
outros jovens talentosos de sua geração parti-
ciparam também da formação do grupo: Cris-
tiane Esteves, Amazilis de Almeida, Leonardo
Alckmin, Ulisses Ferraz e, mais tarde, Gustavo
Machado, Klaus Novaes, Débora Lobo, a minha
queridíssima Isabel Teixeira, o Cacá Machado, a
Simone Mina, o Vadim Nikitin, ih... é só gente
boa. Em Édipo de Tabas, encontrei a filhinha de
294
minha grande amiga Dina Sfat: a Ana Kutner; e
também o Milhem Cortaz, a Karyne Carvalho, a
Cida Moreno, o Ricardo Rizzo.

E o Ary França, que maravilha! O Marquinhos


Pedroso, que hoje está arrasando na direção de
arte de cinema, criou um visual de índios acul-
turados que deve ter inspirado uns criadores de
moda que utilizaram a linguagem pouco tempo
depois nas passarelas. E a gente foi se reunindo
e coisas importantes foram acontecendo. Para
nós, a estréia do Ham-Let, de Zé Celso reabrin-
do o meu Oficina para os 90, foi um marco e
nosso maior estímulo. Tudo aquilo com que eu
havia brigado no passado estava lá organica-
mente colocado em cena. Era uma poesia cêni-
ca fantástica! Era um grito de liberdade.

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Édipo de Tabas

Um Hamlet de seis horas. Zé estava pouco se li-


xando para o mercado. Era o que ele queria fa-
zer. Lindo isso! E era um Hamlet brasileiro que
vinha ao som de João Gilberto, de Villa-Lobos,
de Carlos Gomes, de Dalva de Oliveira. Surpreen-
dente! Eu olhei pro Ariel que estava comigo, e o
Élcio também, os dois saíram enlouquecidos com
o que tinham visto. Para mim, não era tão novo,
mas para eles era um grito de independência. El-
cio acabou se atirando dentro desse Ham-Let e,
anos depois, Ariel participaria de outro espetácu-
lo memorável desta fase recente do Zé: Cacilda!

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E a minha casa foi ficando aquele centro de
gente boa fazendo ciclos de leituras de peças.
A minha baixinha gigante Cibele Forjaz e e
seu grupo me convidaram junto com o Elcio
e nossa promiscuidade para fazer Galileu Ga-
lilei. Não pude recusar. Fui representar o meu
amado Galileu junto com eles lá numa salinha
da Funarte. Não esqueço do Celso Sim fazen-
do a Dona Sarti.

De supetão, Elcio me deu uma peça e disse: Faz,


é a tua cara! Era Tio Vânia, de Tchekhov. Gente,
eu li de novo, era a estória de um fracassado!
Mas pensei: Não tem importância, porque tem
muito das minhas decepções dentro desse tex-
296
to. E essa peça me lavou a alma com as águas de
março ao final, que os puristas odiaram (Onde
já se viu Bossa Nova em Tchekhov?! Oh!!!) e eu
adorava. Belas musas estiveram conosco: Maria-
na Lima e Leona Cavalli. E um de meus melhores
parceiros em cena, o Luciano Chirolli. Encontrei
o Abraão Farc novamente nessa peça; ele aca-
bou arrebatando um prêmio merecidíssimo de
melhor ator coadjuvante. Beijos pra você, Geisa
Gama, nossa carinhosa e fecunda Bá! E pra Jo-
landa Gentilezza e o Wolney de Assis. Algum
tempo depois, nós chegamos à promiscuidade
máxima, que consistia em pegar toda a turma
jovem e unir aos ramos mais tradicionais do tea-
tro brasileiro: Tônia Carrero fazendo o Jardim
das Cerejeiras. Gente, vocês não sabem o que
foi o ensaio com a Tônia Carrero.

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Tio Vânia,
com Leona Cavalli e Mariana Lima (próximas páginas)

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300

Com Tônia Carrero em Jardim das Cerejeiras

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Eu entendi o que é uma pessoa que precisa sa-
ber o por que de tudo. Por quê? Por quê? Por
quê? Ela realmente tem um fundamento no
trabalho dela, porque ela vai atrás dos sentidos
mais objetivos do trabalho. E a Beth Goulart,
que era de outro ramo. E mais a Dirce Migliac-
cio, que era de outra família e eu, que era do
Oficina e mais aqueles jovens todos reunidos:
Ana Kutner, Milhem Cortaz, Nilton Bicudo,
Roberto Alvim, a Bel Teixeira. Era um renasci-
mento. Acho que esse convívio fez de mim uma
outra pessoa. Eu estava muito triste lá pelo co-
meço dos noventa e agora me sinto feliz, con-
tente, caminhando.

Eu vejo o teatro como uma coisa auspiciosa. Eu 301


vejo o teatro assim: Eu sou filho do grupo, fa-
lei para vocês. Então, esse movimento que está
acontecendo agora onde você começa a teste-
munhar os trabalhos de grupos talentosos como
o Teatro da Vertigem, a Cia Livre, Cia. do Latão,
Cia do Feijão, Os Fofos Encenam, os super-Sa-
tyros; onde você começa a ver um Marco Anto-
nio Rodrigues fazendo um Othelo maravilho-
so, cheio de público; esse movimento é muito
positivo. Mesmo grupos estabelecidos há mais
tempo também ganharam mais força, como o
Tapa do Tolentino. Isso é muito bom! É uma
retomada. É o momento em que a gente encon-
tra a força dos grupos e percebe que o teatro
não depende tanto assim só de ícones televisi-
vos, que você pode fazer um teatro pesquisa-

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do, com temáticas mais aprofundadas. Porque
a linguagem da pesquisa, essas coisas novas,
elas acontecem mais no seio dos grupos. Acho
que isso está começando a acontecer de novo.

Agora, estamos apenas começando a retomada.


É uma pena que nosso país nunca tenha elabo-
rado um plano cultural para o crescimento do
povo. Sempre que se tem que cortar qualquer
coisa nos orçamentos municipais, estaduais e
federais, os cortes recaem, em primeiro lugar,
sobre a Cultura. Será que nenhum político bra-
sileiro jamais se preocupou com a Cultura? Pro-
ver a Cultura do povo brasileiro é uma obriga-
ção constitucional. Não há possibilidade de cres-
302
cimento e desenvolvimento de uma nação sem
um programa cultural atuante.

Que povo as elites desejam ter sob seu contro-


le? A impressão que se tem é de que os pode-
rosos não desejam o crescimento de uma sólida
consciência nacional. Um povo menos lúcido e
pouco informado é massa de manobra. As artes
cênicas, então, coitadas, são as mais prejudi-
cadas; a enjeitada, talvez porque já conheçam
seu poder de fogo na transformação de cons-
ciências enganadas, de homens conformados
com a situação injusta em que nasceram e vão
morrer. Por que nunca aceitaram os projetos de
um teatro popular? Já levei inúmeros projetos
a representantes de vários governos. Eles me
chamam de maluco. Por que separar a Educa-

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ção da Cultura? Qualquer inteligência media-
na compreende que se educa fazendo Cultura
e se faz Cultura educando. Enquanto as artes
cênicas, a dança, o circo, o incentivo à leitura
em bibliotecas populares são deixados de lado
ou, o que é mais nocivo, enquanto se cria uma
imagem negativa dessas atividades como supér-
fluas, nosso povo se vê atolado numa perpétua
ignorância involuntária. É tempo de devolver-
mos ao teatro sua legitimidade cultural e, mais
ainda, fazê-lo caminhar em direção ao desen-
volvimento futuro de nosso povo. Não estou
falando de teatro político-partidário ou qual-
quer outra bullshit ufanista eleitoreira. Falo da
imensidão inexplorada de nossa existência, da
aventura que temos pela frente, do afastamen- 303
to da banalidade.

Ah, eu queria viver mais! Quero fazer mais


teatro. Quem me conhece sabe que eu vivo
reclamando teatro, mas a verdade é que o
teatro é meu elixir da juventude. Eu me sinto
vivo, eu me sinto capaz de transmitir coisas,
de alterar valores falsos da ordem vigente...
Eu tenho um prazer enorme, lúdico, de virar
personagens, de fazer novas propostas, de co-
laborar com a diminuição da burrice que amea-
ça nos destruir como civilização. O teatro é
um encantamento na minha vida. Já está tudo
acertado para eu fazer o Timão de Atenas, de
Shakespeare: eu nunca fiz um Shakespeare.
Ou, então, fazer um Molière. Ou um contem-

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Renato (página anterior) e o elenco de Timão de Atenas

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porâneo genial. Abrimos o novo milênio com
a Mostra de Dramaturgia Contemporânea. Foi
uma experiência profícua que tem dado frutos
inestimáveis. Entre os participantes das duas
edições da Mostra estão os autores Fernando
Bonassi, Vítor Navas, Bosco Brasil, Mário Bor-
tolotto, Marcelo Rubens Paiva, Otávio Frias
Filho, Dionísio Neto, Pedro Vicente, Aimar
Labaki, Samir Yazbek, Newton Moreno, Mar-
cos Barbosa, Luiz Felipe Botelho, Sérgio Sálvia
Coelho, Alberto Guzik, José Mora Ramos, Leo-
nardo Alckmin, Marici Salomão, Hugo Possolo,
Pedro Vicente, Cássio Pires, Elísio Lopes, entre
outros. Ainda nas duas Mostras, os diretores:
Fauzi Arap, Ariela Goldman, Elias Andreatto,
308 Márcia Abujamra, Ary França, William Pereira,
Sérgio Ferrara, Marcio Aurelio, Johana Albu-
querque, Ivan Feijó, Maurício Paroni, Marcelo
Lazzarato, Regina Galdino, Fernando Kinas,
Débora Dubois, Francisco Medeiros, Nilton Bi-
cudo, Alvise Camozzi e outros. Eu precisaria vi-
ver vinte anos mais para poder trabalhar com
tantos autores contemporâneos e tantos dire-
tores como a gente fez nessa Mostra de Dra-
maturgia. Além disso, tive o imenso prazer de
conhecer e trabalhar com duas grandes atrizes
e extraordinárias companheiras de trabalho
que são Débora Duboc e Luah Guimarães. Isso
sem esquecer o prazer que foi conviver e re-
presentar com Regina França, Renato Modes-
to, Valéria Pontes e Germano Melo.

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Termino falando o nome dessa gente toda por-
que serão eles o material da biografia futura
do teatro de hoje. Aplauso pra eles!

É claro que eu devo ter esquecido de muita


gente que contracenou a vida comigo. Aplauso
pra vocês também!

Mais Luzes!!!

Não tem final.

E viva a Revista de amanhã!!!

309

O depoimento deste livro foi gerado durante a


pesquisa para o espetáculo teatral Borghi em
Revista, que estreou em abril de 2004.

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310

Passeata dos Cem Mil, com Othon Bastos, Chico Buarque,


Zé Celso, Dedé e Caetano Velloso, Nana Caymmi e Gilberto
Gil, entre muitos outros, 1968

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311

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Com Etty Fraser em Pequenos Burgueses (3ª montagem)

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Cronologia Artística

Teatro

2006 • Timão de Atenas

2005 • Liberdade, Liberdade

2000 • O Jardim das Cerejeiras

1999 • Nostradamus (direção)


• Clone (autoria)

1998 • Galilei – A Vida de Galileu


por Bertolt Brecht
• Tio Vânia 313

1996 • Édipo de Tabas (direção, ator)

1995 • Senhora do Camarim (autoria, ator)

1994 • Pentesiléias

1992 • Solo Mio (autoria)

1990 • Pequenos Burgueses

1989 • Decifra-me ou Devoro-te (autoria, ator)

1988 • O Lobo de Ray-Ban (autoria)


• O Amante de Mme. Vidal
(produção, ator)

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1987 • A Estrela Dalva (autoria, ator)

1984 • Com a Pulga Atrás da Orelha


(produção, ator)
• Senhorita Júlia (direção)

1983 • Édipo Rei

1982 • O Que Mantém um Homem Vivo?


(direção, adaptação)

1980 • Calabar, o Elogio da Traição


(produção, ator)
• Pegue e Não Pague

1978 • Murro em Ponta de Faca


314

1977 • Pequenos Burgueses (direção, ator)

1976 • Mahagony: A Cidade dos Prazeres


(produção, ator)

1975 • Absurda Pessoa (direção)

1973 • Um Grito Parado no Ar


• O Que Mantém um Homem Vivo?
(direção, ator)

1972 • Gracias, Señor


• O Casamento do Pequeno Burguês
• As Três Irmãs

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Com Analu Prestes em
O Casamento do Pequeno Burguês, 1972

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1971 • Castro Alves Pede Passagem

1969 • Na Selva das Cidades (tradução, ator)

1968 • Galileu Galilei

1967 • O Rei da Vela


• Quatro num Quarto

1964 • Andorra
• Pequenos Burgueses (Uruguai)
• Andorra (Uruguai)

1963 • Pequenos Burgueses

1962 • Todo Anjo é Terrível


316 • Quatro num Quarto

1961 • A Vida Impressa em Dólar

1960 • A Engrenagem

1959 • A Incubadeira

1958 • Chá e Simpatia

Cinema

2006 • Os Desafinados (Cônsul Carlos José)

2004 • Cabra-cega

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Com Ester Góes em
O Amante de Madame Vidal, 1988

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Com Lígia Cortez em Decifra-me ou Devoro-te, 1989
(à esquerda), e em Senhora do Camarim, 1995

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2003 • O Vestido (Seu Pequeno)

2002 • Lost Zweig (Getúlio Vargas)

1997 • A Grande Noitada (Bêbado)

1994 • A Causa Secreta

1992 • Sua Excelência, o Candidato (Orlando)

1990 • Corpo em Delito

Televisão

2007 • Sítio do Pica-pau Amarelo – Elias


320
(TV Globo)

2005 • Bang Bang – Ernest (TV Globo)


• Mad Maria – Rui Barbosa (TV Globo)

2001 • O Direito de Nascer – Ramiro (SBT)

2000 • Marcas da Paixão – Zé Biriba


(Rede Record)

1998 • A História de Ester – Memucã


(Rede Record)
• A Turma do Pererê – Seu Neném

1995 • As Pupilas do Senhor Reitor


João da Esquina (SBT)

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1989 • Cortina de Vidro – Ricardo (SBT)

1986 • Mania de Querer – Getúlio


(Rede Manchete)
• Dona Beija – Fortunato
(Rede Manchete)

1985 • Antônio Maria – Fernando Nobre


(Rede Manchete)

1984 • Joana – Caetano (Rede Manchete/SBT)

1983 • Vida Roubada (SBT)


• Fernando da Gata

1982 • Música ao Longe (TV Cultura)


321
• As Cinco Panelas de Ouro
Dadau Prates (TV Cultura)

1979 • O Todo-Poderoso – Dudu


(Rede Bandeirantes)

1978 • Roda de Fogo – Bogo (TV Tupi)

1973 • A Volta de Beto Rockfeller (TV Tupi)

1966 • Ninguém Crê em Mim – Tonga


(TV Excelsior)

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Índice

Apresentação – José Serra 5


Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7
Introdução – Elcio Nogueira Seixas 11
O de Duas Portas – Dionisios –
Re-Nato – José Celso Martinez Corrêa 15
Rádio Nacional, Samba e Ópera 21
O Chamamento de Dalva 23
Teatro de Revista 25
Cinelândia 27
Teatro Amador: a Vanguarda 33
São Paulo e o TBC 37
Paixão por Cacilda 41
Teatro de Arena 43
Cantor ou Ator? 45
Estréia no Copacabana Palace 55
O Encontro com Zé Celso 61
Brasília, Cuba e Sartre 67
Um Caminho Sem Volta 71
A Vida Impressa em Dólar 75
Namoro Com as Estrelas 83
Os Pequenos Burgueses 97
Andorra e o Golpe de 64 105
Tônia Carrero: a Fada Madrinha da Fama 115

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Teatro Opinião 119
O Incêndio do Oficina 121
O Rei da Vela 127
Roda-Viva 141
Os Cortes da Censura 145
Maio de 68 na França 149
Comando de Caça aos Comunistas 155
Galileu e a Tortura 157
Na Selva das Cidades 167
Dropout na Europa 175
Living Theatre 177
Medo de Virar Comédie-Française 181
Prata Palomares 183
Los Lobos e Living no Brasil 187
As Comunidades 191
A Revolição 195
A Coluna Oficina-Brasília 197
Goiânia 203
Salvador 205
Recife e Mandassaia 209
Natal e Fortaleza 215
São Luiz do Maranhão 217
Belém do Pará, Manaus e o Retorno 221
Gracias, Señor 223
Três Irmãs e a Despedida do Oficina 233

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Teatro Vivo 237
Mahagonny e o Teatro de Resistência 247
Édipo, o Fim da Ditadura e a Geração Yuppie 261
Com a Pulga Atrás da Orelha
e a Comédia do Brasil 267
Transição, Televisão e o Retorno de Dalva 271
Collor e a Derrocada Geral 279
A Fênix Renasce; Torta, Mas Renasce 285
Teatro Promíscuo, Beijos e Depois do Final 293
Cronologia Artística 313

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Crédito das Fotografias

Acervo Beatriz Segall 239


Acervo Etty Fraser 130
Acervo Miriam Mehler 106, 133
Agência Estado 64, 69, 74, 126, 162, 248, 264, 295, 318
Alexandre de Oliveira 317
Ana L. Amaral 230
Carlos – Rio 56, 57, 59, 99
Cláudia Ribeiro 274
Ed. Abril/Fernando Abrunhosa 244
Edson Cláudio 170
Fredi Kleeman 114
João Maria 297
Joaquim 90, 100
Lenise Pinheiro 288, 290, 291, 298, 299
Luiz Sérgio 163
Oficina 5º Tempo 65
Ronaldo 315
Sérgio Bernardo 225, 226
Silvinha 229
Takayama 82
Valdir Silva 250, 259
Vania Toledo 245, 246

Demais fotografias acervo Renato Borghi

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Coleção Aplauso
Série Cinema Brasil
Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma
Alain Fresnot
O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias
Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muy-
laert e Cao Hamburger
Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro
Luiz Carlos Merten
Ary Fernandes – Sua Fascinante História
Antônio Leão da Silva Neto
Batismo de Sangue
Roteiro de Helvécio Ratton e Dani Patarra
Bens Confiscados
Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos
Reichenbach
Braz Chediak – Fragmentos de uma vida
Sérgio Rodrigo Reis
Cabra-Cega
Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo
Kauffman
O Caçador de Diamantes
Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro
Carlos Coimbra – Um Homem Raro
Luiz Carlos Merten
Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver
Marcelo Lyra
A Cartomante
Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis
Casa de Meninas
Romance original e roteiro de Inácio Araújo
O Caso dos Irmãos Naves
Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person

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O Céu de Suely
Roteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe Bragança
Cidade dos Homens
Roteiro de Paulo Morelli e Elena Soárez
Como Fazer um Filme de Amor
Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto
Torero
Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade
Org. Luiz Carlos Merten
Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: Os
Anos do São Paulo Shimbun
Org. Alessandro Gamo
Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Anali-
sando Cinema: Críticas de LG
Org. Aurora Miranda Leão
Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser
Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak
De Passagem
Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias
Desmundo
Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui
Djalma Limongi Batista – Livre Pensador
Marcel Nadale
Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro
Jeferson De
Dois Córregos
Roteiro de Carlos Reichenbach
A Dona da História
Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho
Os 12 Trabalhos
Roteiro de Claudio Yosida e Ricardo Elias
Fernando Meirelles – Biografia Prematura
Maria do Rosário Caetano

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Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil
Luiz Zanin Oricchio
Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo
Luiz Zanin Oricchio
Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas
Pablo Villaça
O Homem que Virou Suco
Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane
Abdallah e Newton Cannito
João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas
Histórias
Maria do Rosário Caetano
Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera
Carlos Alberto Mattos
José Carlos Burle – Drama na Chanchada
Máximo Barro
Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção
Renata Fortes e João Batista de Andrade
Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema
Alfredo Sternheim
Maurice Capovilla – A Imagem Crítica
Carlos Alberto Mattos
Não por Acaso
Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e
Eugênio Puppo
Narradores de Javé
Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu
Onde Andará Dulce Veiga
Roteiro de Guilherme de Almeida Prado
Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela
Rogério Menezes
Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar
Rodrigo Capella

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Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente
Neusa Barbosa
O Signo da Cidade
Roteiro de Bruna Lombardi
Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto
Rosane Pavam
Viva-Voz
Roteiro de Márcio Alemão
Zuzu Angel
Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende

Série Crônicas
Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças
Maria Lúcia Dahl

Série Cinema
Bastidores – Um Outro Lado do Cinema
Elaine Guerini

Série Ciência & Tecnologia


Cinema Digital – Um Novo Começo?
Luiz Gonzaga Assis de Luca

Série Teatro Brasil


Alcides Nogueira – Alma de Cetim
Tuna Dwek
Antenor Pimenta – Circo e Poesia
Danielle Pimenta
Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral
Alberto Guzik
Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio
Org. Carmelinda Guimarães

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Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e
Uma Paixão
Org. José Simões de Almeida Júnior
João Bethencourt – O Locatário da Comédia
Rodrigo Murat
Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher
Eliana Pace
Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba
Adélia Nicolete
Maurice Vaneau – Artista Múltiplo
Leila Corrêa
Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem
Rita Ribeiro Guimarães
Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC
Nydia Licia
O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joy-
ce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso –
Pólvora e Poesia
Alcides Nogueira
O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um
teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os
Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do
Teatro
Ivam Cabral
O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona
Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma
Noemi Marinho
Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar
Neyde Veneziano
O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingi-
dor – A Terra Prometida
Samir Yazbek

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Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Déca-
das em Cena
Ariane Porto

Série Perfil
Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo
Tania Carvalho
Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros
Rogério Menezes
Bete Mendes – O Cão e a Rosa
Rogério Menezes
Betty Faria – Rebelde por Natureza
Tania Carvalho
Carla Camurati – Luz Natural
Carlos Alberto Mattos
Cleyde Yaconis – Dama Discreta
Vilmar Ledesma
David Cardoso – Persistência e Paixão
Alfredo Sternheim
Denise Del Vecchio – Memórias da Lua
Tuna Dwek
Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida
Maria Leticia
Etty Fraser – Virada Pra Lua
Vilmar Ledesma
Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar
Sérgio Roveri
Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema
Maria Angela de Jesus
Ilka Soares – A Bela da Tela
Wagner de Assis
Irene Ravache – Caçadora de Emoções
Tania Carvalho

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Irene Stefania – Arte e Psicoterapia
Germano Pereira
John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida
Neusa Barbosa
José Dumont – Do Cordel às Telas
Klecius Henrique
Leonardo Villar – Garra e Paixão
Nydia Licia
Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral
Analu Ribeiro
Marcos Caruso – Um Obstinado
Eliana Rocha
Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária
Tuna Dwek
Marisa Prado – A Estrela, o Mistério
Luiz Carlos Lisboa
Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão
Vilmar Ledesma
Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família
Elaine Guerrini
Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras
Sara Lopes
Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador
Teté Ribeiro
Paulo José – Memórias Substantivas
Tania Carvalho
Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado
Tania Carvalho
Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto
Wagner de Assis
Renata Fronzi – Chorar de Rir
Wagner de Assis

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Renato Consorte – Contestador por Índole
Eliana Pace
Rolando Boldrin – Palco Brasil
Ieda de Abreu
Rosamaria Murtinho – Simples Magia
Tania Carvalho
Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro
Nydia Licia
Ruth de Souza – Estrela Negra
Maria Ângela de Jesus
Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema
Máximo Barro
Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes
Nilu Lebert
Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte
Vilmar Ledesma
Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro
Sonia Maria Dorce Armonia
Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?
Maria Thereza Vargas
Suely Franco – A Alegria de Representar
Alfredo Sternheim
Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra
Sérgio Roveri
Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza
Tania Carvalho
Vera Holtz – O Gosto da Vera
Analu Ribeiro
Walderez de Barros – Voz e Silêncios
Rogério Menezes
Zezé Motta – Muito Prazer
Rodrigo Murat

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Especial
Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso
Wagner de Assis
Beatriz Segall – Além das Aparências
Nilu Lebert
Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos
Tania Carvalho
Cinema da Boca – Dicionário de Diretores
Alfredo Sternheim
Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira
Antonio Gilberto
Eva Todor – O Teatro de Minha Vida
Maria Angela de Jesus
Eva Wilma – Arte e Vida
Edla van Steen
Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do
Maior Sucesso da Televisão Brasileira
Álvaro Moya
Lembranças de Hollywood
Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim
Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida
Warde Marx
Ney Latorraca – Uma Celebração
Tania Carvalho
Raul Cortez – Sem Medo de se Expor
Nydia Licia
Rede Manchete – Aconteceu, Virou História
Elmo Francfort
Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte
Nydia Licia
TV Tupi – Uma Linda História de Amor
Vida Alves
Victor Berbara – O Homem das Mil Faces
Tania Carvalho

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Formato: 12 x 18 cm

Tipologia: Frutiger

Papel miolo: Offset LD 90 g/m2

Papel capa: Triplex 250 g/m2

Número de páginas: 340

Editoração, CTP, impressão e acabamento:


Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Coleção Aplauso Série Perfil

Coordenador Geral Rubens Ewald Filho


Coordenador Operacional
e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana
Projeto Gráfico Carlos Cirne
Editor Assistente Felipe Goulart
Assistente Edson Silvério Lemos
Editoração Aline Navarro dos Santos
Selma Brisolla
Tratamento de Imagens José Carlos da Silva
Revisão Wilson Ryoji Imoto

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© 2008

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Seixas, Élcio Nogueira


Renato Borghi : Borghi em revista / Élcio Nogueira Seixas
– São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2008.
340p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador
geral Rubens Ewald Filho)

ISBN 978-85-7060-603-7

1. Atores e atrizes de teatro – Brasil – Biografia 2. Atores


e atrizes de cinema – Brasil – Biografia 3. Atores e atrizes
de televisão – Brasil – Biografia 4. Borghi, Renato, 1937 I.
Ewald Filho, Rubens. II.Título. III. Série.

CDD 791.092

Índices para catálogo sistemático:


1. Atores brasileiros : Biografia : Representações públicas
: Artes 791.437 098 1

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional


(Lei nº 10.994, de 14/12/2004)
Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Rua da Mooca, 1921 Mooca
03103-902 São Paulo SP
www.imprensaoficial.com.br/livraria
[email protected]
Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109
Demais localidades 0800 0123 401

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Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site
www.imprensaoficial.com.br/livraria

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