A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER Milan Kundera
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER Milan Kundera
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER Milan Kundera
MIlan KunDERa
MIlan KunDERa nasceu em 1929 em Brno, na
Checoslováquia. Em 1975, fixou residência em
Paris, tendo entretanto adoptado a nacionalidade
francesa. Toda a sua obra ficcional (A
Insustentável Leveza do Ser, A Brincadeira, A
Valsa do Adeus, A Vida Não é Aqui e a
Imortalidade), bem como o ensaio A Arte do
Romance, se encontram editados em Portugal.
Principais prémios que obteve: Prémio da União
dos Escritores Checoslovacos (1968); Prémio
Médicis (1973); Prémio Mondello (1978); Prémio
Commonwealth (1981); Prémio Literário
Americano do Los Angeles Times (1984); Prémio
Jerusalém (1985).
PRIMEIRA PARTE
O PESO E A LEVEZA
O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que,
com
ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos:
pensar que,
um dia, tudo o que se viveu se háde repetir outra vez e que
essa
repetição se háde repetir ainda uma e outra vez, até ao
infinito!
Que significado terá este mito insensato?
O mito do eterno retorno diznos, pela negativa, que esta
vida,
que háde desaparecer de uma vez por todas para nunca mais
voltar, é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso,
que, de
hoje em diante e para todo o sempre, se encontra morta e
que, por
muito atroz, por muito bela, por muito esplêndida que seja,
essa
beleza, esse horror, esse esplendor não têm qualquer
sentido. Não
vale mais do que uma guerra qualquer do século xIv entre
dois
reinos africanos, embora nela tenham perecido trezentos mil
negros
entre suplícios indescritíveis.
Mas algo se alterará nessa guerra do século xIv entre dois
reinos
africanos se, no eterno retorno, se vier a repetir um número
incalculável de vezes?
Sem dúvida que sim: passará a erguerse como um bloco
perdurável cuja estupidez não terá remissão.
Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, a
historiografia francesa orgulharseia com certeza menos do
seu Robespierre.
Mas, como se refere a algo que nunca mais voltará, esses
anos sangrentos reduzemse hoje apenas a palavras, teorias,
discussões, mais
leves do que penas, algo que já não aterroriza ninguém. Há
uma
enorme diferença entre um Robespierre que apareceu uma única
vez
na história e um Robespierre que eternamente voltasse para
cortar a
cabeça aos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa
uma
perspectiva em que as coisas não nos aparecem como é
costume,
porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua
fugacidade. Essa circunstância atenuante impedenos, com
efeito, de pronunciar um veredicto. Poderá condenarse o que
é efémero? As nuvens
alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da
nostalgia;
mesmo a guilhotina.
Não há muito, eu próprio me defrontei com o facto: parece
incrível mas, ao folhear um livro sobre Hitler, comovime
com algumas das suas fotografias; faziamme lembrar a minha
infância passada durante á guerra; diversas pessoas da minha
família morreram
nos campos de concentração dos nazis; mas o que eram essas
mortes
comparadas com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar
um
tempo perdido da minha vida, um tempo que nunca mais háde
voltar?
Esta minha reconciliação com Hitler deixa entrever a
profunda
perversão inerente a ao mundo fundado essencialmente sobre a
inexistência de retorno, porque nesse mundo tudo se encontra
previamente perdoado e tudo é, portanto, cinicamente
permitido.
Se cada segundo da nossa vida tiver de se repetir um
número
infinito de vezes, ficamos pregados à eternidade como Jesus
Cristo à
cruz. Que ideia atroz! No mundo do eterno retorno, todos os
gestos
têm o peso de uma insustentável responsabilidade. Era o que
fazia
Nietzsche dizer que a ideia do eterno retorno é o fardo mais
pesado
(das schwerste Gewicht).
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre
tal pano
de fundo, as nossas vidas podem recortarse em toda a sua
esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaganos, verganos, comprimenos
contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a
mulher
sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto,
o
fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do
momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais
pesado
for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida
e mais
real e verdadeira é.
Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o
ser
humano se torne mais leve do que o ar, fálo voar, afastar
se da
terra, do ser terrestre, tornao semireal e os seus
movimentos tão
livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?
Foi a questão com que se debateu Parménides, no século VI
antes de Cristo. Para ele, o universo estava dividido em
pares de contrários: luzsombra; espessofino; quentefrio;
sernão ser. Considerava que um dos pólos da contradição era
positivo (o claro, o quente, o fino, o ser) e o outro,
negativo. Esta divisão em pólos positivos e negativos pode
parecer de uma facilidade pueril. Excepto num caso: o que é
positivo: o peso ou a leveza?
Parménides respondia que o leve é positivo e o pesado,
negativo.
Tinha razão ou não? O problema é esse. Mas uma coisa é
certa: a
contradição pesadoleve é a mais misteriosa e ambígua de
todas as
contradições.
Há vários anos que ando a pensar em Tomas, mas só à luz
destas reflexões é que o vi pela primeira vez com toda a
nitidez.
Vejoo de pé, a uma janela da sua casa, a olhar fixamente
para o
prédio em frente do outro lado do pátio. Sem saber o que
fazer.
Conhecera Tereza mais ou menos há três semanas numa
cidadezinha da Boémia. Só tinham passado pouco mais de uma
hora
juntos. Ela acompanharao à estação e tinha esperado até ele
entrar
no comboio. Dez dias mais tarde, veio vêlo a Praga. Fizeram
amor
logo no próprio dia da sua chegada. Durante a noite, Tereza
ficou
cheia de febre e passou uma semana inteira com gripe em casa
dele.
Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que
mal
conhecia. Parecialhe uma criança que alguém pusera numa
cesta
untada com pez e abandonara às águas de um rio para ele
recolher
na margem da sua cama.
Ficou uma semana em casa dele e, depois, uma vez curada,
voltou para a cidade onde morava, a duzentos quilómetros de
Praga.
E é aqui que se situa o momento de que falei há pouco e onde
vejo
a chave da vida de Tomas: está de pé à janela a olhar
fixamente
para o prédio em frente do outro lado do pátio, e reflecte:
Develhe propor que venha instalarse em Praga? É uma
responsabilidade que o apavora. Se a convida agora a vir
passar uns dias a
sua casa, ela virá imediatamente oferecerlhe a vida
inteira.
Ou deve renunciar? Nesse caso, Tereza continuará a ser
criada
numa cervejaria daquele buraco de província e nunca mais a
verá.
Quer que ela venha ter consigo ou não?
Olha para o pátio, tem os olhos fixos no prédio em frente
e
procura uma resposta.
Volta, ainda e sempre, à imagem daquela mulher deitada no
seu divã; nunca conhecera ninguém assim. Não era nem uma
amante nem uma esposa. Era uma criança que tirara de uma
cesta
untada com pez e que poisara na margem da sua cama. Ela
adormecera. Ajoelhouse ao seu lado. O hálito febril
acelerouse e ouviu um leve gemido. Encostou o rosto ao dela
e soprou algumas
palavras de repouso para dentro do seu sono. Um instante
depois,
pareceulhe que a respiração de Tereza se acalmava e que o
seu
rosto se levantava maquinalmente em direcção ao dele.
Cheiravalhe nos lábios o cheiro um pouco acre da febre e
aspiravao como
se se quisesse impregnar da intimidade do seu corpo. Pôsse
então
a pensar que Tereza já lá morava em casa há muitos anos e
que
estava moribunda. De repente, tornouselhe evidente que não
sobreviveria à sua morte. Deitarseia a seu lado para
morrer
também. Escondeu o rosto contra o dela na almofada e assim
ficou
por longo tempo.
Neste momento, está de pé à janela e invoca esse instante.
O que seria que assim se dava a conhecer senão o amor?
Mas o amor era isso? Tinhase convencido de que queria
morrer
ao lado dela, e este sentimento era manifestamente
excessivo: se era
só a segunda vez que a via! Não seria antes a reacção
histérica de
um homem que, ao aperceberse, no seu foro íntimo, da sua
incapacidade para amar, começava a representar para si
próprio a comédia
do amor? Ao mesmo tempo, o seu subconsciente era de tal modo
cobarde que escolhia para essa comédia uma pobre criada de
província que não tinha praticamente hipótese nenhuma de
entrar na
sua vida!
Olhava para as paredes sujas do pátio e percebia que não
sabia
se aquilo era histeria ou amor.
E, numa situação em que qualquer homem a sério saberia
imediatamente como agir, censuravase intimamente por
hesitar e
por assim privar o momento mais belo da sua vida (ajoelhado
à
cabeceira da rapariga, convencido de que não sobreviveria à
sua
morte) de todo e qualquer significado.
Censuravase intimamente, mas acabou por pensar que, no
fundo, não se saber o que se deve querer é normal:
Nunca se pode saber o que se deve querer porque só se tem
uma vida que não pode ser comparada com vidas anteriores nem
rectificada em vidas posteriores.
É melhor ficar com Tereza ou ficar sozinho?
Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões é
melhor porque não há comparação possível. Tudo se vive
imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um
actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que
vale a vida se o
primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com
que a
vida pareça sempre um esquisso. Mas nem mesmo nesquissonn é
a
palavra certa, porque um esquisso é sempre o esboço de
alguma
coisa, a preparação de um quadro, enquanto o esquisso que a
nossa
vida é, não é esquisso de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete em silêncio o provérbio alemão, einmal isr
keinmal,
uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão
uma
vida é pura e simplesmente como não viver.
Um dia, porém, num intervalo entre duas operações, uma
enfermeira chamouo ao telefone. Era Tereza. Estava a
telefonarlhe da
estação. Ficou contente. Infelizmente, tinha um compromisso
para
essa noite e só no dia seguinte é que podia estar com ela.
Mal
desligou, arrependeuse de não lhe ter dito para vir
imediatamente.
Ainda estava a tempo de desmarcar o outro encontro! Ficou a
pensar no que faria Tereza durante as longas trinta e seis
horas que
faltavam até estarem um com o outro e só tinha vontade de
pegar
no automóvel e de pôrse à procura dela pelas ruas da
cidade.
Tereza apareceu no dia seguinte à noite. Trazia uma
carteira
presa a tiracolo com uma fita muito comprida e achoua mais
elegante do que da última vez. Tinha um livro na mão. Ana
Karenina
de Tolstoi. Falava com jovialidade, talvez mesmo um pouco
alto de
mais e esforçavase por mostrar que tinha vindo
perfeitamente por
acaso, devido a uma circunstância precisa: viera a Praga por
motivos
profissionais, talvez (diziao de uma forma muito vaga) à
procura de
outro emprego.
Em seguida, encontraramse, nus e cansados, deitados lado
a lado no divã. Já era de noite. Perguntoulhe onde é que
estava
porque podia levála de carro. Com um ar aflito, Tereza
respondeu
que ia procurar um hotel e que deixara a mala depositada na
estação.
Ainda na véspera receava que, se a convidasse a vir a
Praga, ela
viesse oferecerlhe a vida inteira. Agora, ao ouvila dizer
que a mala
estava depositada na estação, pensou que Tereza metera a
vida
nessa mala e que a tinha deixado depositada na estação antes
de lha
oferecer.
Entrou com ela para o carro, estacionado à frente do
prédio, foi
à estação, levantou a mala (que era grande e pesadíssima) e
levoua
para casa juntamente com Tereza.
Como conseguiu decidirse tão depressa, depois de ter
hesitado
durante quase quinze dias sem lhe dar o mais pequeno sinal
de vida?
O próprio Tomas se sentia admirado. Estava a ir contra
todos os
seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da
primeira
mulher, tinha vivido o divórcio com a mesma euforia com que
outros celebram o casamento. Compreendera nessa altura que
não fora
feito para viver com uma mulher, fosse ela qual fosse, e que
só
poderia ser verdadeiramente ele próprio se vivesse sozinho.
Assim,
protegia a sua vida até ao mais ínfimo pormenor para que
nenhuma
mulher munida de uma mala pudesse um dia vir instalarse em
sua
casa. Era por isso que só tinha um divã. Embora o divã fosse
bastante largo, dizia sempre às amigas que era incapaz de
adormecer
ao lado de outra pessoa e, depois da meianoite, levavaas
sempre a
casa. Aliás, da primeira vez, quando Tereza lá ficou em casa
com
gripe, não dormiu com ela. Passou a primeira noite num sofá
e, nas
seguintes, dormiu no consultório do hospital onde tinha uma
chaise
longue para quando estava de serviço.
Desta vez, porém, adormeceu ao lado dela. De manhã, ao
acordar, constatou que Tereza, ainda a dormir, lhe agarrava
na mão.
Teriam dormido toda a noite de mão dada? Custavalhe a
acreditar.
Com uma respiração muito funda, Tereza continuava a dormir,
sempre agarrada à sua mão (com tanta força que não conseguia
desprenderse). Ao lado da cama, a pesadíssima mala.
Não se atrevia a tirar a mão com medo de a acordar. Com
mil
cautelas, voltouse de lado para poder observála melhor.
Mais uma vez, pensou que Tereza era uma criança que alguém
pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas do
rio.
Pode lá deixarse à deriva das águas furiosas de um rio a
cesta onde
se abriga uma criança? Se a filha do faraó não tivesse
retirado das
águas a cesta de Moisés, nem o Antigo Testamento nem a nossa
civilização existiriam! No começo de inúmeros mitos antigos,
há
sempre alguém que salva uma criança abandonada. Se Políbio
não
tivesse recolhido Édipo, Sófocles não teria escrito a sua
tragédia
mais bela!
Tomas ainda não sabia que as metáforas são uma coisa
perigosa.
Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma
única
metáfora.
Vivera pouco mais de dois anos com a primeira mulher.
Tinham
tido um filho. O juiz confiou a criança à mãe e condenou
Tomas a
darlhes um terço do ordenado. Ao mesmo tempo, concedeulhe
o
direito de ver o filho duas vezes por mês.
Mas sempre que o ia ver, a mãe adiava o encontro. Com
certeza
que se lhes tivesse comprado prendas caras, teria podido vê
lo com
mais facilidade. Percebeu que tinha de pagar o amor do filho
à mãe,
e pagálo antecipadamente. Viase mais tarde a querer
ingenuamente inculcar no filho as suas ideias,
diametralmente opostas às da
mãe. Só de pensar nisso, ficava cansado. Num domingo em que,
como de costume, a mãe desmarcara o encontro à última da
hora,
decidiu nunca mais ver o filho em dias da sua vida.
É evidente que ninguém estava preparado para aceitar tal
raciocínio. Os seus próprios pais condenaram a atitude que
tomara e
declararam que se Tomas não se interessava pelo filho,
também
eles, pais de Tomas, deixariam de interessarse pelo seu.
Continuaram portanto a manter com a nora relações de uma
ostensiva cordialidade, gabandose a amigos e conhecidos da
sua atitude exemplar e do seu alto sentido de justiça.
Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto,
desembaraçarse de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de
um pai. Só lhe ficara
o medo das mulheres. Desejavaas, mas elas atemorizavamno.
Entre o
medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que
chamava
amizade erótica. Dizia peremptoriamente às amantes: só uma
relação expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma
relação em
que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito
especial sobre a
vida e a liberdade do outro, pode fazêlos felizes a ambos.
Para se assegurar de que a amizade erótica nunca se
deixaria
vencer pela agressividade do amor, espaçava intencionalmente
os encontros com as suas amantes permanentes. Tinha o método
por
perfeito e costumava apontarlhe as vantagens, dizendo aos
amigos:
Há que observar a regra dos três. A mesma mulher, num
espaço
de tempo muito curto, nunca mais de três vezes. Anos e anos,
só se
deixarmos passar pelo menos três semanas entre cada
encontro.nn
Este sistema davalhe a possibilidade de nunca romper com
as
amantes e de têlas em abundância. Nem sempre era bem
entendido. De todas as suas amigas, quem o entendia melhor
era Sabina,
uma pintora. Esta dizialhe: Gosto muito de ti porque és
precisamente o contrário do kitsch. No reino de kitsch, tu
eras um monstro.
Num filme americano ou num filme russo nunca passarias de um
caso
repugnante. nn
Foi portanto a Sabina que pediu ajuda para arranjar
trabalho em
Praga para Tereza. Como exigiam as regras não escritas da
amizade
erótica, Sabina prometeulhe fazer o melhor que pudesse e,
efectivamente, não tardou a descobrir um lugar no
laboratório de fotografia
de um semanário. Era um trabalho que não exigia qualquer
espécie
de qualificação mas, de qualquer forma, Tereza abandonava a
cervejaria para se integrar na corporação do pessoal da
imprensa. A própria Sabina foi, em pessoa, apresentála à
redacção e Tomas ficou a
pensar que nunca tivera melhor amiga.
A convenção não escrita da amizade erótica implicava que
Tomas excluísse o amor da sua vida. Se transgredisse esta
condição, as
suas outras amantes, a partir daí numa posição subalterna,
revoltarseiam imediatamente.
Arranjou portanto um quarto para onde Tereza teve de levar
a
sua pesadíssima mala. Queria tomar conta dela, protegêla,
gozar a
sua presença, mas não sentia necessidade nenhuma de mudar de
vida. Por isso não queria que se soubesse que ela dormia em
sua casa.
A partilha do sono era o corpo de delito do amor.
Com as outras mulheres nunca dormia. Quando ia a casa
delas,
era fácil, porque podia sair quando lhe apetecia. O caso era
mais
delicado quando eram elas que vinham a sua casa e lhes
explicava
que, depois da meianoite, tinha de leválas porque sofria
de insónias e não conseguia dormir ao lado de outra pessoa.
Esta explicação não andava longe da verdade, mas a razão
principal era menos
nobre e Tomas não se atrevia a confessar às companheiras
que, nos
momentos que se seguem ao amor, sentia um desejo imperioso
de
ficar sozinho. Eralhe profundamente desagradável acordar a
meio
da noite ao lado de uma criatura estranha; o despertar
matinal do
casal causavalhe repugnância; não tinha vontade nenhuma que
o
ouvissem a lavar os dentes na casa de banho e a intimidade
do
pequenoalmoço a dois não lhe dizia nada.
Qual não foi, pois, a sua surpresa quando, ao acordar,
percebeu
que Tereza lhe agarrava a mão com toda a força! Olhava para
ela
sem conseguir perceber o que lhe tinha acontecido.
Recordando as
últimas horas, parecialhe que se desprendia delas o perfume
de
uma felicidade desconhecida.
A partir de então, ambos sentiam antecipadamente um grande
prazer na partilha do sono. Sintome quase tentado a dizer
que o
que procuravam no acto sexual não era a volúpia mas o sono
que se
lhe segue. nSobretudo Tereza não podia dormir sem Tomas. Se
ficava
sozinha no estúdio (que era cada vez mais um mero álibi),
não
conseguia pregar olho toda a noite. Mesmo presa da maior
agitação,
nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomas
contavalhe em voz baixa contos que inventava só para ela,
pequenos
nadas, coisas tranquilizantes ou divertidas que ia repetindo
num tom
monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavamse
em
visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomas
tinha
um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre
no
exacto segundo que ele escolhera para isso.
Quando estavam a dormir, ela agarravao como na primeira
noite: seguravalhe com toda a força no pulso, num dedo ou
no tornozelo. Quando Tomas queria afastarse sem que ela
acordasse, tinha
de valerse de uma artimanha. Desprendia o dedo (o pulso, o
tornozelo), o que a fazia ficar meio acordada porque mesmo a
dormir o
vigiava atentamente. Para a acalmar, em vez do pulso, metia
lhe na
mão um objecto qualquer (um pijama enrolado, uma pantufa, um
livro) que ela passava a segurar com toda a força como se
fosse
uma parte do seu corpo.
Uma noite, acabara de a adormecer e Tereza encontravase
naquela antecâmara do primeiro sono de onde ainda lhe podia
dar
resposta. Disselhe: nn Bom! Agora voume embora. Para
onde?,
perguntou ela. Vou sair, respondeu com uma voz severa.
Vou
contigo!, disse ela, pondose de pé em cima da cama. Não,
eu não
quero. Voume embora e nunca mais voltonn, disse ele,
saindo do
quarto e passando para a entrada. 'Tereza levantouse e
seguiuo até
à entrada com os olhos a piscar. Só tinha vestida uma camisa
muito
curta. Tinha o rosto imóvel, sem expressão, mas o corpo
movimentavase energicamente. Saiu de casa e fechoulhe a
porta na cara. Tereza abriua com um gesto brusco e seguiu
o, ainda meio a dormir,
convencida que Tomas queria irse embora para não voltar e
que
tinha de retêlo. Desceu um andar, parou no patamar e
esperou por
ela. Tereza foi ter com ele, agarrouo pela mão e levouo
para a
cama, para o pé dela.
Tomas pensava consigo próprio que ir para a cama com uma
mulher e dormir com ela são duas paixões não só diferentes
como
quase contraditórias. O amor não se manifesta através do
desejo de
fazer amor (desejo que se aplica a um número incontável de
mulheres), mas através do desejo de partilhar o sono (desejo
que só se
sente por uma única mulher).
A meio da noite, Tereza começou a gemer. Tomas acordoua,
mas, ao ver a sua cara, ela disse com ódio: nVaite embora!
Vaite
embora!n Depois, contoulhe o sonho que tivera: Estavam
ambos
algures com Sabina. Num quarto enorme. Havia uma cama no
meio,
só parecia o palco de um teatro. Tomas mandoua ficar num
canto e
pôsse a fazer amor com Sabina à frente dela. Ela olhava e o
espectáculo causavalhe um sofrimento insuportável. Para
abafar a dor da
alma com a dor física, pôsse a enfiar agulhas por baixo das
unhas.
n<Doíame horrivelmente!nn, disse, com os punhos fechados
como se
realmente tivesse as mãos magoadas.
Abraçoua e assim, muito devagar (porque Tereza não parava
de
tremer), ela voltou a adormecer.
No dia seguinte, ao pensar no sonho, lembrouse de uma
coisa.
Abriu a secretária e tirou um maço de cartas de Sabina.
Pouco depois, deparou com a seguinte passagem: "nQueria
fazer amor contigo
no meu atelier como se fosse o palco de um teatro. Estaria
gente em
toda a volta e ninguém teria o direito de se aproximar. Mas
não
conseguiriam despregar os olhos de nós...n
O pior era que a carta tinha data. Era uma carta recente,
escrita
numa altura em que Tereza vivia com Tomas já há bastante
tempo.
Ralhoulhe: nAndaste a vasculhar nas minhas cartas!nn
Sem procurar desmentilo, ela disse: nnPois andei! Então
porque
é que não me pões na rua?nn
Mas Tomas não a pôs na rua. Viaa era a enfiar as agulhas
debaixo das unhas, encostada à parede do atelier de Sabina.
Pegoulhe
nos dedos, fezlhes festas, levouos aos lábios e beijouos
como se
tivessem marcas de sangue.
A partir desse momento, tudo parecia conspirar contra ele.
Não
se passava praticamente um dia sem que lhe chegasse mais uma
novidade sobre os seus amores clandestinos.
Primeiro, negava tudo. Quando as provas eram evidentes de
mais,
tentava demonstrar que não havia contradição nenhuma entre a
sua
vida de polígamo e o seu amor por ela. Não era nada
coerente:
umas vezes, negava as infidelidades, outras, justificavaas.
Um dia, estava a marcar um encontro pelo telefone com uma
amiga e quando desligou pareceulhe ouvir um barulho
esquisito na
outra divisão, o barulho de dentes a bater.
Tereza viera a casa por acaso e ele não dera por isso.
Tinha um
frasco de calmante na mão e, como estava a beber pelo
gargalo e a
mão lhe tremia, o vidro batialhe contra os dentes.
Correu para ela como se fosse salvála de morrer afogada.
O frasco de valeriana caiu, fazendo uma grande nódoa na
carpete.
Tereza debatiase, queria escaparlhe. Teve de mantêla
durante um
quarto de hora numa espécie de coletedeforças até que se
acalmou.
Sabia que se encontrava numa situação injustificável
porque baseada numa desigualdade absoluta.
Muito antes de Tereza ter descoberto a sua correspondência
com
Sabina, tinham ido a um cabaré com alguns amigos festejar o
novo
emprego de Tereza. Deixara o laboratório de fotografia
porque a
revista a aceitara como fotógrafa: Como Tomas não gostava de
dançar, um dos seus colegas mais novos do hospital convidara
Tereza. Deslizavam ambos sobre a pista e Tereza estava mais
bonita do
que nunca. Estupefacto, via com que precisão e com que
docilidade
ela adivinhava uma fracção de segundo antes a vontade do seu
par.
Tal forma de dançar parecia proclamar que a sua devoção,
aquele seu
ardente desejo de fazer o que lhe lia nos olhos, não estava
necessariamente ligado à pessoa de Tomas e que podia
perfeitamente ter respondido ao apelo de outro homem
qualquer que lhe tivesse aparecido em
seu lugar. Nada mais fácil do que imaginar Tereza e o seu
jovem
colega como amantes. Era mesmo a facilidade com que o
imaginava
que mais o feria. O corpo de Tereza era perfeitamente
imaginável
unido a qualquer outro corpo masculino. A ideia pôlo
maldisposto.
Noite dentro, quando voltaram, confessoulhe que tinha
ciúmes.
Estes ciúmes absurdos, causados por uma possibilidade
absolutamente teórica, eram a prova de que a fidelidade dela
era para ele um
princípio intangível. Como censurála então por ter ciúmes
das suas
amantes mais do que reais?
De dia esforçavase (mas, de facto, não conseguia) por
acreditar
no que Tomas dizia e por mostrarse alegre como sempre fora.
Mas
os ciúmes, contidos durante o dia, manifestavamse ainda
mais violentamente nos sonhos que tinha e que acabavam
sempre num gemido que Tomas só conseguia interromper se a
acordasse.
Os sonhos repetiamse como temas com variações ou como
episódios de uma telenovela. Sonhava, por exemplo, muitas
vezes, com
gatos a saltaremlhe para a cara e a cravaremlhe as garras
na pele. Na
verdade, este sonho tem uma explicação óbvia: é que em calão
checo,
quando se quer falar de uma rapariga jeitosa, dizse
gatonn. Tereza
sentiase ameaçada pelas mulheres, por todas as mulheres.
Todas as
mulheres eram amantes potenciais de Tomas e ela tinha medo
delas.
Nunn outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa
noite
em que acordara a gritar de terror, contoulhe o seguinte
sonho:
"Havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos
vinte.
Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos
de
marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada
no
tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas
largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu.
Davasnos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e
a flectir os
joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu
disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse
momento, as outras
desatavam todas a rir e punhamse a cantar ainda mais alto.
E tu,
tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento
de
través, abatiala imediatamente. A água estava cheia de
cadáveres a
flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a
flexão
seguinte e que tu me ias matar! nn
O terceiro ciclo de sonhos contava o que lhe acontecia
depois de
morrer.
Estava deitada num carro funerário tão grande como um
camião
de mudanças. À sua volta, só cadáveres de mulheres. Havia
tantos
que era preciso deixar a porta de trás aberta e algumas
pernas de
fora.
Tereza pôsse a gritar: nnOlhem para mim! Eu não estou
morta!
Ainda sinto tudo!
Também nós sentimos tudonn, diziam os cadáveres, entre
risinhos.
Tinham exactamente a mesma maneira de rir que as mulheres
vivas que dantes se divertiam a dizerlhe que era
perfeitamente
normal que um dia também tivesse os dentes estragados,
doenças
nos ovários e rugas, visto que elas também tinham os dentes
estragados, doenças nos ovários e rugas. E agora, com o
mesmo riso,
explicavamlhe que estava morta e que isso era a ordem
natural das
coisas!
De repente, teve vontade de fazer chichi. Gritou: "Mas se
eu
tenho vontade de fazer chichi! Isso é a prova de que não
estou
morta! nn
Desataram outra vez a rir às gargalhadas: n"Ter vontade
de fazer
chichi é normal! Ainda vais sentir tudo durante muito tempo.
É como
as pessoas a quem amputaram uma mão e que ainda a sentem
muito
tempo depois. Nós, nós já não temos urina mas continuamos a
ter
vontade de mijar.nn
Deitada na cama, Tereza chegavase para junto de Tomas,
dizendo: n"E tratavamme todas por tu, como se me
conhecessem desde
sempre, como se fossem minhas amigas, e eu tinha medo de ser
obrigada a ficar com elas para sempre!nn
Em todas as línguas derivadas do latim, a palavra
compaixão
formase com o prefixo comnn e a raiz passionn que, na
sua origem,
significa sofrimento. Noutras línguas, como, por exemplo, em
checo,
em polaco, em alemão, em sueco, a palavra traduzse por um
substantivo formado por um prefixo equivalente seguido da
palavra
sentimentonn (em checo: soucir: em polaco: wspolczucie:
em alemão:
Mitgefühl: em sueco: medkänsla).
Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão
significa que
ninguém pode ficar indiferente ao sofrimento de outrem; ou,
de outra maneira: sentese sempre simpatia por quem sofre.
Outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, e que é
piedade (em
inglês pitv, em italiano pierà, etc.), chega até a sugerir
uma espécie
de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma
mulher é sermos mais favorecidos do que ela, é inclinarmo
nos, baixarmonos até ela.
Por isso é que a palavra compaixão inspira geralmente uma
certa
desconfiança; designa um sentimento considerado como de
segunda
ordem e que não tem grande coisa a ver com o amor. Amar
alguém
por compaixão é de facto não amar essa pessoa.
Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a
raiz passio = sofrimentonn mas com o substantivo
sentimentonn, a
palavra é empregue mais ou menos no mesmo sentido, mas
dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou
medíocre.
A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma
outra luz
e dálhe um sentido mais lato: ter compaixão (cosentimento)
é poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas
sentir também
todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia,
felicidade, dor.
Esta compaixão (no sentido de soucit, wspolrzurie,
Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta
capacidade de imaginação afectiva, ou seja, a arte da
telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o
sentimento supremo.
Sonhando que estava a enfiar agulhas por baixo das unhas,
Tereza traíase a si própria porque revelava a Tomas que
mexia às escondidas nas suas gavetas. Se fosse outra mulher,
nunca mais lhe
dirigiria palavra. Consciente disso, Tereza disseralhe:
Põeme na
rua!nn Ora, ele não só não a tinha posto na rua como lhe
pegara na
mão e lhe beijara a ponta dos dedos, já que, nesse momento,
sentia
a mesma dor que ela por baixo das unhas, como se os dedos de
Tereza estivessem directamente ligados ao seu cérebro.
Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co
sentimento) não pode senão condenar friamente o
comportamento de
Tereza, porque a vida privada do outro é sagrada e não se
devem
abrir as gavetas onde ele guarda a sua correspondência
pessoal. Mas
como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de
Tomas,
parecialhe que fora ele que se ajoelhara em frente da
gaveta da
secretária e ficara hipnotizado pelas frases escritas pela
mão de Sabina. Compreendia Tereza e não só era incapaz de
quererlhe mal
como o seu gesto o fazia amála ainda mais.
10
Os gestos de Tereza eram cada vez mais bruscos e
incoerentes.
Há já dois anos que descobrira as infidelidades de Tomas e
tudo ia
de mal a pior. Era um caso insolúvel.
Mas como? Tomas não podia acabar de vez com as suas
amizades eróticas? Não, isso seria o seu fim. Não tinha
força suficiente
para refrear o seu apetite por outras mulheres. E depois,
parecialhe
uma coisa supérflua. Ninguém melhor do que ele sabia que
essas
aventuras não punham Tereza minimamente em questão. Privar
se
delas, porquê? Era uma eventualidade que lhe parecia tão
absurda
como renunciar a ir ao futebol.
Mas ainda poderia falarse em alegria? Mal a deixava para
ir ao
encontro de uma das amantes, esta tornavaselhe indiferente
e jurava a si próprio que era a última vez. A imagem de
Tereza estava
sempre a bailarlhe diante dos olhos e tinha que se
embebedar imediatamente para deixar de pensar nela. Desde
que a conhecia, era
incapaz de ir para a cama com outras sem a ajuda do álcool!
Mas o
cheiro a álcool era precisamente o indício através do qual
Tereza
ainda descobria com mais facilidade as suas infidelidades.
A armadilha fecharase sobre Tomas: mal a deixava para ir
ao
encontro delas, o seu desejo desvaneciase, mas se passava
um dia
sem elas punhase logo a telefonar para marcar um encontro.
Ainda era em casa de Sabina que se sentia melhor porque
sabia
que ela era discreta e que não havia razão para temer ser
descoberto. No atelier, pairava como uma recordação a sua
vida passada, a
sua vida idílica de celibatário.
Talvez ele não se desse conta de como mudara: tinha medo
de
voltar tarde para casa porque Tereza estava à espera. Uma
vez, enquanto faziam amor, Sabina viuo espreitar para o
relógio e percebeu que ele se esforçava por apressar a
conclusão.
Em seguida, puserase toda nua a passear negligentemente
pelo
atelier e forase postar diante de um cavalete onde estava
um quadro inacabado, enquanto espiava Tomas a enfiar a roupa
a toda a
velocidade.
Em breve este se encontrava outra vez vestido, mas com um
pé
descalço. Olhou em redor de si e depois pôsse de gatas
debaixo da
mesa com se estivesse à procura de qualquer coisa.
Sabina disse: n"Quando olho para ti, só sinto que estás a
ficar
cada vez mais parecido com o eterno tema dos meus quadros: o
encontro de dois mundos. Uma dupla exposição. Por detrás da
silhueta de Tomas, o libertino, transparece o incrível rosto
do apaixonado romântico. Ou então, é precisamente o
contrário: através da
silhueta do Tristão que não pensa senão na sua Tereza,
apercebese
o belo universo traído do libertino.nn
Tomas puserase de pé e não prestava grande atenção ao que
Sabina dizia.
"De que é que andas à procura?; perguntou ela.
De uma peúga.n
Inspeccionou o quarto com ele e depois Tomas voltou a pôr
se
de gatas debaixo da mesa.
ncAqui não há peúga nenhuma, disse Sabina. Já não a
trazias,
com certeza.
Não a trazia, o quê?!, exclamou Tomas, olhando para o
relógio. Não posso ter vindo só com uma peúga!
Não é de todo impossível. Andas tão distraído
ultimamente...
Estás sempre com pressa, passas a vida a olhar para o
relógio... Não
é de admirar que te esqueças de calçar uma peúga...nn
Decidirase já a calçar o outro sapato sem peúga.
n"Está frio lá fora, disse Sabina. Vou emprestarte uma
meia!nn
E estendeulhe uma meia enorme de rede branca à última
moda.
Tomas sabia perfeitamente que aquilo era uma vingança.
Sabina
esconderalhe a peúga para o castigar de ter olhado para o
relógio
enquanto estavam a fazer amor. Mas com o frio que estava,
não
podia senão submeterse a ela. Entrou em casa com uma peúga
numa
perna e, na outra, uma meia branca de mulher enrolada no
tornozelo.
Estava numa situação de onde não havia saída: aos olhos
das
amantes, marcado pelo selo infamãnte do seu amor por Tereza;
aos
olhos de Tereza, pelos estigmas das suas aventuras com as
amantes.
11
Para lhe minorar o sofrimento, casouse com ela (puderam
finalmente desistir do estúdio alugado onde Tereza já não
vivia há muito) e arranjoulhe um cachorrinho.
Era filho de uma cadela sãobernardo de um colega de Tomas
e
do pastoralemão do vizinho. Ninguém queria os rafeiros e o
seu
colega sentia as entranhas revolveremselhe só de pensar em
matá
los.
Tomas tinha de escolher um cachorro e sabia que os que não
escolhesse seriam abatidos. Estava na mesma situação que um
presidente da República quando há quatro condenados à morte
e só pode
agraciar um. Acabou por escolher um cachorro, uma fêmea, que
parecia ter o corpo do pastoralemão e cuja cabeça fazia
lembrar a do
sãobernardo. Levouo a Tereza. Esta pegou nele ao colo,
apertouo
contra os seios e o bicho fezlhe imediatamente chichi na
blusa.
Depois, tiveram de baptizálo. Tomas queria que, pelo
nome, se
ficasse logo a saber que o cão era de Tereza e lembrouse do
livro
que ela trazia debaixo do braço no dia em que viera a Praga
sem
prevenir. Propôs que lhe chamassem Tolstoi.
nnNão lhe podemos chamar Tolstoi, replicou Tereza, porque
é
uma menina. Vamos mas é chamarlhe Ana Karenina.
Não lhe podemos chamar Ana Karenina, uma fuçazinha assim
tão engraçada não é de mulher, disse Tomas. Karenine, sim. É
isso
mesmo. Foi sempre assim que o imaginei.
Mas não achas que se se chamar Karenine pode ficar com a
vida sexual perturbada?
Não é de todo impossível que uma cadela que se habitue a
responder por um nome de cão venha a ter tendências
lésbicas...nn
O mais curioso é que a previsão de Tomas veio a confirmar
se.
As cadelas gostam normalmente mais do dono que da dona, mas,
com Karenine, passavase precisamente o contrário. Resolveu
apaixonarse por Tereza e Tomas estavalhe reconhecido por
isso.
Fazialhe festas na cabeça e dizialhe: nnTens razão,
Karenine, era
exactamente isso que eu esperava de ti. Já que não consigo
sozinho,
tu× tens de me ajudar.nn
Mas, mesmo com a ajuda de Karenine, não conseguiu fazêla
feliz. Foi o que percebeu uns dez dias depois da ocupação do
país
pelos tanques russos. Estavase em Agosto de 1969 e o
director de
uma clínica de Zurique, que conhecera num colóquio
internacional,
todos os dias lhe telefonava da Suíça. Temia que lhe
acontecesse
qualquer coisa de mal e punha um lugar à sua disposição.
12
Se Tomas não hesitara sequer um minuto em recusar a oferta
do
médico suíço fora por causa de Tereza. Pensava que ela não
devia
querer irse embora. Aliás, Tereza passou os sete primeiros
dias da
ocupação numa espécie de transe que quase se assemelhava à
felicidade. Andava sempre na rua com a máquina fotográfica e
distribuía
os seus negativos por jornalistas estrangeiros que se
disputavam entre si para os obter. Num dia em que fora um
pouco longe de mais
e fotografara de perto um oficial a apontar a pistola às
pessoas que
iam numa manifestação, apreenderamlhe a máquina e
obrigaramna
a passar a noite no quartelgeneral russo. Ameaçaramna com
o pelotão de fuzilamento, mas, assim que se viu em
liberdade, voltou a
ir para a rua tirar fotografias.
Assim, qual não foi a surpresa de Tomas quando, no décimo
dia
da ocupação, ela lhe perguntou: Ora dizme, no fundo,
porque é
que tu não queres ir para a Suíça?nn
E porque é que havia de ir?
Aqui têm contas a ajustar contigo...
Com quem é que não têm?, replicou Tomas, fazendo um
gesto de resignação. Mas, e tu: eras capaz de viver no
estrangeiro?
E porque não?
Depois de te ter visto pronta a dar a vida por este
país, não
percebo como é que agora te podias ir embora?!
Desde que Dubcek voltou, tudo mudounn, disse Tereza.
Era verdade: a euforia geral só durara os sete primeiros
dias de
ocupação. Os homens de Estado checos tinham sido levados
como
criminosos pelas tropas russas, ninguém sabia do seu
paradeiro, todos temiam pelas suas vidas e o ódio aos russos
era inebriante como
vinho. Era a exaltante festa do ódio. As cidades da Boémia
cobriamse de cartazes pintados à mão recheados de
inscrições
sarcásticas, epigramas, poemas, caricaturas de Brejnev e da
sua tropa, de que todos faziam pouco como se ela não
passasse de uma
companhia de palhaços analfabetos. Mas não há festa que dure
eternamente. Entretanto, os russos tinham forçado os
representantes do
povo checo, sequestrados a assinar um compromisso com
Moscovo.
Dubcek voltou para Praga com esse compromisso e fez um
discurso
pela rádio. Os seis dias de cárcere tinhamno diminuído a
tal ponto
que mal podia falar: gaguejava e parava para tentar tomar
fôlego,
fazendo pausas intermináveis de quase meio minuto no meio
das
frases.
O compromisso salvou o país do pior: das execuções e das
deportaçöes em massa para a Sibéria que todos receavam. Uma
coisa,
porém, se tornou imediatamente clara: a Boémia tinha de
baixarse
perante o conquistador. Daí em diante, e para todo o sempre,
ia
gaguejar, tartamudear, parar para tentar tomar fôlego como
Alexandre Dubcek. A festa acabara. Passavase à banalidade
da humilhação.
Tereza explicava tudo isto a Tomas e .Tomas sabia que era
verdade mas que, sob essa verdade, se escondia uma razão que
explicava melhor a sua vontade de deixar Praga: é que, até
aí, ela não
fora feliz.
Vivera os dias mais belos da sua vida quando andara a
fotografar soldados russos pelas ruas de Praga e se expusera
a todos os
perigos. Fora o único período em que a telenove(a dos seus
sonhos
se interrompera e em que tinha tido noites serenas. Montados
nos
seus tanques, os russos tinhamlhe trazido a harmonia.
Agora, que a
festa acabara, voltava a ter medo das suas noites e queria
fugir antes que regressassem. Descobrira que havia
circunstâncias em que
podia sentirse forte e satisfeita e era na esperança de
tornar a
encontrálas que queria irse embora para o estrangeiro.
E não te importas que Sabina tenha emigrado para a
Suíça?,
perguntou Tomas.
Genebra não é Zurique. disse Tereza. Deve incomodarme
menos na Suíça do que em Praga.nn
Quem quer deixar o lugar onde vive é porque não é feliz.
O facto de Tereza querer emigrar foi como que um veredicto
para
Tomas. Submeteuse a ele e, pouco tempo depois, encontrava
se, na
companhia de Tereza e de Karenine, na maior cidade da Suíça.
13
Comprou uma cama para se poderem instalar numa casa vazia
(ainda não tinham com que comprar mais móveis) e atirouse
ao
trabalho com toda a fúria possível num homem obrigado a
encetar
vida nova depois dos quarenta anos.
Falou várias vezes ao telefone com Sabina, que agora vivia
em
Genebra. Tinha tido tanta sorte que, oito dias antes da
invasão
russa, inaugurarase uma exposição sua naquela cidade e os
apreciadores de pintura suíços, num movimento de simpatia
para com o seu
pequeno país, tinhamlhe comprado os quadros todos.
"Enriqueci graças aos russos!n, disselhe ao telefone,
soltando
uma gargalhada. Convidouo a ir ter com ela ao seu novo
atelier,
garantindolhe que era igualzinho ao que Tomas conhecia em
Praga.
Gostaria de ir vêla mas não conseguia arranjar pretexto
nenhum
para explicar a viagem a Tereza. Portanto, foi Sabina que
veio a
Zurique. Ficou num hotel. Tomas foi ter com ela quando saiu
do
hospital; fezse anunciar na recepção e subiu ao quarto.
Sabina veio
abrir a porta e, com as suas longas e belas pernas, postou
se frente
dele, quase despida, só de cuecas e soutien. Tinha um chapéu
de
coco encarrapitado na cabeça. Em silêncio e perfeitamente
imóvel,
olhou demoradamente para Tomas que também se conservava
calado, sem fazer um gesto. De súbito, percebeu que estava
comovido.
Tiroulhe o chapéu de coco da cabeça e poisouo na mesinha
decabeceira. Depois, sempre sem dizer palavra, fizeram
amor.
Ao voltar para casa (que já se encontrava guarnecida há
bastante
tempo de uma mesa, de cadeiras, de sofás e de uma carpete)
ia a
pensar, o que lhe dava uma grande sensação de bemestar, que
andava sempre com o seu modo de vida atrás como o caracol
anda com a sua casota. Tereza e Sabina representavam os dois
pontos da
sua vida, dois pólos afastados, inconciliáveis, mas
igualmente belos.
Mas como, fosse para onde fosse, levava sempre atrás de si
o
seu sistema de vida como um apêndice do corpo, Tereza
continuava
a ter os mesmos sonhos.
Já estavam em Zurique há seis ou sete meses quando, numa
noite em que chegara bastante tarde a casa, encontrou uma
carta em
cima da mesa. Tereza anunciavalhe que voltara para Praga.
Forase
embora por não ter força suficiente para viver no
estrangeiro. Cabia
que devia têlo apoiado melhor em Zurique, mas também sabia
que
não fora capaz. Pensara ingenuamente que a vida no
estrangeiro poderia modificála. Depois do que tinha vivido
durante a invasão,
pensara que nunca mais voltaria a ser mesquinha, que havia
de ser
adulta, ajuizada, corajosa. Mas sobrestimarase. Na
realidade,
tornarase um peso e era precisamente isso que não queria.
Queria
tirar todas as consequências disso, antes que fosse tarde de
mais.
E pedialhe desculpa por levar Karenine.
Tomas tomou um sonífero fortíssimo mas só adormeceu de
madrugada. Felizmente era sábado e podia ficar em casa. Pela
centésima quinquagésima vez pôsse a recapitular a situação:
as fronteiras
que separavam a Boémia do resto do mundo já não estavam
abertas
como na época em que se tinham vindo embora. Nem o telégrafo
nem o telefone poderiam trazer Tereza de volta. As
autoridades já
não a deixariam sair. Embora lhe parecesse incrível, Tereza
forase
mesmo embora para não voltar.
14
Pensar que não podia fazer absolutamente nada mergulhouo
num estado de grande estupor, mas, ao mesmo tempo, era uma
ideia
que o tranquilizava. Não havia ninguém que o obrigasse a
tomar
uma decisão. Não era obrigado a contemplar a parede do
prédio em
frente e pensar se queria viver com Tereza ou não. Quem
decidira
fora ela.
Foi almoçar fora. Sentiase triste, mas, durante a
refeição, o desespero inicial pareceu atenuarse, como se
tivesse perdido o vigor e
dele não restasse senão a melancolia. Pensava nos anos que
passara
com Tereza e parecialhe que aquela história não podia ter
acabado
melhor. Se fosse inventada, não podia acabar senão assim:
Um belo dia, de surpresa, Tereza viera para casa dele. Um
belo
dia, também de surpresa, partira. Chegara com uma mala
pesadíssima. Com uma mala pesadíssima partira.
Pagou a conta, saiu do restaurante e foi dar uma volta,
repleto
de uma melancolia cada vez mais radiosa. Atrás de si, sete
anos de
vida em comum com Tereza para agora constatar que esses anos
eram mais belos na memória do que no instante em que os
vivera...
Belo, o amor deles certamente que o era mas também tão
penoso: sempre a esconder qualquer coisa, sempre a
dissimular, a
fingir, a reparar, a levantarlhe o moral, a consolála,
continuamente
a provarlhe que a amava, a ouvila queixarse dos seus
ciúmes, do
seu sofrimento, dos seus sonhos, a sentirse culpado, a
justificarse,
a desculparse. Agora, o esforço desaparecera e não ficara
senão a
beleza.
A noite de sábado estava a começar. Era a primeira vez que
passeava sozinho a pé em Zurique. Pôsse a respirar fundo o
perfume da liberdade. A aventura espreitava em cada esquina.
O futuro
tornava a estar envolto em mistério. Voltava à sua vida de
celibatário, àquela vida a que, noutros tempos, sabia estar
destinado porque
era a única em que podia ser tal e qual como era.
Vivera sete anos acorrentado a Tereza que seguira
constantemente com os olhos o seu mais ínfimo movimento. Era
como arrastar as grilhetas que ela lhe pusera nos
tornozelos. Agora, de súbito,
o seu andar tornavase mais ligeiro. Quase voava. Estava no
espaço
mágico de Parménides: saboreava a doce leveza do ser.
(Sentia alguma vontade de telefonar para casa de Sabina,
em
Genebra, ou de entrar em contacto com uma das mulheres que
conhecera em Zurique nos últimos meses? Não, nenhuma. Bem
sabia que a partir do momento em que estivesse com outra, a
memória de Tereza lhe faria sentir uma dor insuportável).
15
O seu estranho e melancólico encantamento durou até
domingo
à noite. Na segundafeira tudo mudou. Tereza irrompeu no seu
pensamento: sentia agora o que ela sentira enquanto lhe
escrevia a
carta de despedida; sentia como as mãos lhe tremiam; viaa,
arrastando com uma mão aquela mala pesadíssima e com a trela
de Karenine na outra; imaginavaa a meter a chave na
fechadura da casa
de Praga e sentia no fundo de si próprio a desolação que lhe
varrera o rosto quando abrira a porta.
Durante aqueles dois belos dias de melancolia, a sua
compaixão
(essa maldição da telepatia sentimental) estivera a
descansar.
A compaixão dormira como o mineiro dorme ao domingo, depois
de
uma árdua semana de trabalho, para poder voltar ao fundo na
segundafeira.
Estava a observar um doente e quem via era Tereza.
Ordenava a
si próprio: Não penses nisso! Não penses nisso! Dizia para
si
mesmo: Estou doente de compaixão e por isso é bom que ela se
tenha ido embora e que eu nunca mais a veja. Não é dela que
tenho de me libertar, mas da minha compaixão, desta doença
que
dantes eu não sabia que existia e que ela me inoculou!
No sábado e no domingo sentira a doce leveza do ser vir
lhe do
fundo do futuro. Segundafeira sentiuse esmagado por um
peso que
até aí nunca tinha conhecido. As imensas toneladas de ferro
dos
tanques russos não eram nada comparadas com esse peso. Não
há
nada mais pesado do que a compaixão. Mesmo a nossa própria
dor
não é tão pesada como a dor cosentida com outro, por outro,
no
lugar de outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em
centenas de ecos.
Admoestavase a si próprio, intimavase a não ceder à
compaixão e a compaixão ouviao de cabeça baixa como um
culpado.
A compaixão sabia que estava a abusar dos seus direitos mas
continuava discretamente a obstinarse, o que fez com que,
cinco dias
depois da partida de Tereza, Tomas anunciasse ao director da
clínica
(precisamente aquele que lhe telefonava todos os dias para
Praga
depois da invasão russa) que tinha de voltar imediatamente
para o
seu país. Sentiase envergonhado. Sabia que o director
acharia a sua
conduta irresponsável e imperdoável. Teve mil e uma vezes a
tentação de contarlhe tudo e de falarlhe de Tereza e da
carta que lhe
deixara em cima da mesa. Mas acabou por não fazer nada
disso.
O médico não poderia encarar o procedimento de Tereza senão
como um odioso comportamento de mulher histérica. E Tomas
não
queria que ninguém pensasse mal de Tereza.
O director ficou seriamente magoado.
Encolhendo os ombros, Tomas disse: Es muss sein. Es muss
sein.nn
Era uma alusão. O último andamento do último quarteto de
Beethoven é composto a partir dos dois temas seguintes:
Muss es sein'
(Tem de ser'?)
Es muss sein! Es muss sein!
(Tem de ser!) (Tem de sern)
Para tornar o sentido destas palavras perfeitamente claro,
Beethoven inscreveu no início do último andamento: Der
schwer gefasste Entschlussnn a decisão gravemente pesada.
Para Tomas, a alusão a Beethoven era, na realidade, uma
forma
de referirse mais uma vez a Tereza, porque fora ela que o
obrigara
a comprar os discos com os quartetos e as sonatas de
Beethoven.
Era uma alusão mais oportuna do que podia pensar porque o
director da clínica era melómano. Com um sorriso sereno,
disse suavemente, imitando com a voz a melodia de Beethoven:
Muss es
sein? Tem de ser?"
Tomas repetiu uma vez mais: Sim, tem de ser! Ja, es muss
sein!nn.
16
Ao contrário de Parménides, parece que Beethoven
considerava o
peso como algo de positivo. Der schwer gefasste Entschluss,
a decisão
gravemente pesada está associada à voz do destino (Es muss
sein!); o
peso, a necessidade e o valor são três noções íntima e
profundamente
ligadas: só é grave o que é necessário, só tem valor o que
pesa.
A origem desta convicção situase na música de Beethoven
e,
sendo embora possível (senão provável) que seja mais da
responsabilidade dos seus exegetas do que do próprio
compositor, hoje quase
todos nós a partilhamos: para nós, a grandeza de um homem
reside
no facto de carregar com o seu destino como Atlas carregava
aos
ombros a abóbada dos céus. O herói beethoveniano é um
halterofilista de pesos metafísicos.
Tomas guiava em direcção à fronteira suíça e eu imagino um
Beethoven carrancudo e com a cabeleira em desordem a dirigir
em
pessoa a fanfarra dos bombeiros e a tocar, em homenagem ao
seu
adeus à emigração, uma marcha intitulada Es muss sein!
Mais tarde, já depois de ter atravessado a fronteira
checa,
deparouselhe uma coluna de tanques russos. Parou o carro
num
cruzamento e esperou meia hora até eles acabarem de passar.
Um
soldado russo, com um ar terrível e de uniforme preto,
postarase
no meio do cruzamento a dirigir o trânsito como se as
estradas da
Boémia fossem todas propriedade sua.
Es muss sein! Tem de ser!nn, continuava Tomas a repetir
de si
para si, mas, dentro em pouco, começou a ter dúvidas: tinha
mesmo
de ser?
Tinha. Seria insuportável ficar em Zurique e imaginar
Tereza sozinha em Praga. Mas durante quanto tempo mais é que
a compaixão
havia de atormentálo? Toda a vida? Um ano'? Um mês? Ou só
uma semana?
Como sabêlo? Como verificálo?
Numa aula de trabalhos práticos de física, qualquer aluno
pode
fazer uma experiência para confirmar uma dada hipótese
científica.
Mas o homem, porque só tem uma vida, não tem qualquer
possibilidade de verificar as hipóteses através da
experiência e nunca poderá
saber se teve ou não razão em obedecer aos seus sentimentos.
Estava neste ponto das suas meditações quando abriu a
porta do
apartamento. Karenine saltoulhe para a cara, o que
facilitou o
reencontro. A vontade de atirarse para os braços de Tereza
(que
ainda sentia quando se metera no automóvel em Zurique) tinha
pura e simplesmente desaparecido. Estava à sua frente no
meio de
uma planície nevada e ambos tremiam de frio.
17
Desde o primeiro dia de ocupação que os aviões russos se
cruzavam durante toda a noite no céu de Praga. Tomas
desabituarase do
barulho e não conseguia adormecer.
Viravase na cama, ao lado de Tereza já a dormir, pensando
no
que ela lhe dissera há vários anos no meio de uma conversa
banal.
Estavam a falar de Z., um amigo de Tomas, e Tereza
declarara: nnSe
não te tivesse encontrado, tinhame apaixonado por ele.nn
Já na altura, essas palavras o tinham feito mergulhar numa
estranha melancolia. Com efeito, compreendera de súbito que
Tereza se
apaixonara por ele e não por Z. perfeitamente por acaso.
Que, para
lá do seu amor por Tomas, já realizado, havia no reino dos
possíveis
um número infinito de amores não realizados por outros
.homens.
Achamos todos que é impensável que o grande amor da nossa
vida seja algo de leve, algo que não pesa nada; supomos que
já
estava escrito que o nosso amor tinha de ser o que é; que a
nossa
vida não era a mesma sem ele. Estamos todos convencidos de
que o
próprio Beethoven em pessoa, com o seu ar carrancudo e os
cabelos
em desordem, toca o seu Es muss sein! em homenagem ao grande
amor da nossa vida.
Ao lembrarse do que Tereza dissera de Z., Tomas
constatava
que a história do grande amor da sua vida não estava marcada
por
um nnEs muss seinnn, mas antes por um nnEs konnte auch
anders
seinnn: podia muito bem ser de outra maneira...
Sete anos antes, declararase por acaso um surto muito
grave de
meningite no hospital da cidade de Tereza e o chefe do
serviço onde Tomas trabalhava fora chamado de urgência. Mas,
por acaso, o
chefe do serviço estava com ciática e, como não se podia
mexer,
Tomas fora em seu lugar a esse hospital de província. Havia
cinco
hotéis na cidade mas, por acaso, Tomas instalarase no hotel
onde
Tereza trabalhava. Por acaso, ficara com uns momentos livres
antes
de ir para o comboio e fora sentarse na cervejaria. Tereza
estava,
por acaso, de serviço e, por acaso, estava de serviço à mesa
de Tomas. Fora portanto necessária toda uma série de seis
acasos para
fazer chegar Tomas até Tereza, como se, entregue a si
próprio,
nunca tivesse podido encontrála.
Regressara à Boémia por causa dela. Uma decisão tão fatal
tinha
a sua raiz num amor a tal ponto fortuito que nem sequer
existiria
se, há sete anos, o chefe do serviço não estivesse com
ciática. E essa mulher, essa encarnação do acaso absoluto,
estava agora deitada
a seu lado a dormir e a respirar profundamente.
Era muito tarde. Tomas sentiu que o estômago lhe começava
a doer como lhe acontecia sempre nos momentos de grande
tensão.
A respiração de Tereza transformouse por duas ou três
vezes
num leve ressonar. Tomas não sentia a mínima compaixão. Não
sentia senão uma coisa: aquela pressão na boca do estômago e
o
desespero de ter voltado.
O CORPO E A ALMA
É perfeitamente inútil o autor tentar convencer seja quem
for de
que as suas personagens alguma vez tiveram uma existência
real. Na
verdade, elas não nasceram de um corpo materno, mas do poder
de
evocação de algumas palavras ou de uma situaçãochave.
Tomas, de
um provérbio (einmal ist keinmal). Tereza, dos seus
borborìsrnos.
Da primeira vez que foi a casa de Tomas, as suas vísceras
puseramse a gorgolejar. Não era de admirar, pois não
almoçara
nem jantara, tendose contentado com a sanduíche que
engolira ao
fim da manhã, já no cais, antes de entrar para o comboio.
Estava
tão concentrada na sua audaciosa viagem que se esquecera de
comer. Mas, quanto menos nos preocupamos com o nosso corpo,
mais
depressa somos vítimas dele. Só a tortura de perceber que,
no momento em que voltava a ver Tomas, eram as suas tripas
que usavam
da palavra! Sentiase à beira das lágrimas. Felizmente que
alguns
segundos depois já se encontrava nos braços de Tomas e pôde
esquecerse das vozes da sua barriga!...
Tereza nasceu, pois, de uma situação onde essa experiência
humana fundamental que é a inconciliável dualidade do corpo
e da
alma se revela em toda a sua brutalidade.
Noutras eras, há muito, muito tempo, o homem estranhava o
martelar cadenciado que lhe vinha do fundo do peito e
interrogavase sobre o seu significado. Não conseguia
identificarse com essa
coisa inquietante e desconhecida que era um corpo. O corpo
era
uma jaula dentro da qual se dissimulava algo que via, ouvia,
se assustava, pensava e se espantava; essa coisa, esse
relicário que, deduzindo o corpo, subsistia, era a alma.
É claro que, hoje em dia, o corpo já não é um mistério.
Todos
sabemos que aquilo que nos bate no peito é o coração e que o
nariz
não é senão a extremidade de um tubo que sai cá de dentro
para ir
buscar oxigénio para os pulmões. O rosto não é senão o
quadro de
comando onde os mecanismos físicos vão dar: a digestão, a
vista, o
ouvido, a respiração, a reflexão.
Desde que pode nomear todas as partes do seu corpo, o
homem
inquietase muito menos com ele. Hoje em dia, todos sabemos
também que a alma não é senão a actividade da matéria
cinzenta do
cérebro. Dantes, a dualidade da alma e do corpo ocultavase
por
detrás de termos científicos; hoje, não passa de uma
crendice francamente ridícula.
Mas basta alguém estar loucamente apaixonado e ouvir os
seus
próprios intestinos gorgolejar para que a unidade da alma e
do
corpo, essa ilusão lírica da era científica, se dissipe
imediatamente.
Tereza tentava verse através do corpo. Por isso passava
horas à
frente do espelho. E, como tinha medo de ser apanhada pela
mãe,
os olhares que ia lançando traziam a marca de um vício
secreto.
Não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o
espanto de
lá descobrir o seu eu. Esqueciase de que o que tinha diante
dos
olhos era o quadro de comando dos mecanismos físicos.
Parecialhe
que o que se lhe revelava sob os traços do rosto era a sua
própria
alma. Esqueciase de que o nariz é a extremidade do tubo que
leva
ar aos pulmões. O que nele via era a fiel expressão da sua
natureza.
Contemplavase longamente ao espelho e, por vezes,
reconhecia,
contrariada, os traços da mãe no seu próprio rosto. Quando
isso
acontecia, concentravase melhor e fazia um grande esforço
de
vontade para se abstrair, para fazer tábua rasa da
fisionomia da mãe
e só deixar subsistir o que era verdadeiramente ela própria.
Quando
conseguia, era um momento inebriante: a alma voltava a subir
à
superfície do corpo como a tripulação a sair do ventre de um
navio,
a invadir a ponte, a levantar os braços para os céus e a
cantar.
Tereza não só se parecia fisicamente com a mãe como, por
vezes, chego mesmo a ter a impressão de que a sua vida não
foi senão
o prolongamento da vida da mãe, um pouco como a trajectória
de
uma bola de bilhar é o prolongamento do gesto executado pelo
braço de um jogador.
Onde e quando nascera esse gesto que viria mais tarde a
transformarse na vida de Tereza?
Sem dúvida que no instante em que a mãe ouvira pela
primeira
vez o pai, um comerciante de Praga, elogiar a sua beleza. A
mãe
tinha três ou quatro anos e o pai disseralhe que só parecia
uma
madona de Rafael. Tinha apenas quatro anos, mas fixara bem
aquelas palavras. Mais tarde, quando andava no colégio, em
vez de ouvir
o professor, entretinhase a pensar com que pintura é que se
pareceria agora.
Quando se tornou casadoira, teve nove pretendentes.
Punhamse
todos de joelhos à volta dela. Ela ficava no meio, como uma
princesa, sem conseguir decidirse por nenhum: o primeiro
era mais bonito, o segundo mais espirituoso, o terceiro mais
rico, o quarto mais
desportivo, o quinto de melhores famílias, o sexto recitava
lhe
versos, o sétimo viajava pelo mundo inteiro, o oitavo tocava
violino
e o nono era o homem mais viril de todos. Mas ajoelhavamse
todos
da mesma maneira e todos ficavam com as mesmas bolhas nos
joelhos.
Acabou por escolher o nono, não por ser o mais viril, mas
porque nos momentos em que, na cama, lhe segredava baixinho
ao
ouvido n"tem cuidado! tem muito cuidado!nn, ele fazia de
propósito e
não lhe ligava, de forma que tiveram de casar à pressa: não
encontrara a tempo um médico que lhe fizesse um aborto.
Assim nascera
Tereza. A infindável família afluíra de todos os cantos do
país,
debruçarase sobre o berço e ceceara. A mãe de Tereza não
ceceava. Só pensava nos outros oito pretendentes e achavaos
a todos
melhores do que o nono.
Tal como a filha, a mãe de Tereza também gostava de se
mirar
ao espelho. Um belo dia, constatou que tinha rugas à volta
dos
olhos e, pensou que o seu casamento fora um erro. Encontrou
um
homem nada viril, com várias falcatruas e dois divórcios no
activo.
A mãe de Tereza detestava amantes com joelhos cheios de
bolhas.
Queria era ser ela a ajoelharse. Caiu de joelhos aos pés do
escroque e deixou o marido e a filha.
O homem mais viril de todos tornouse no homem mais triste
de
todos. Tão triste que tudo passou a serlhe indiferente.
Dizia alto e
bom som e em qualquer lado tudo o que pensava e a polícia
comunista, indignada com as suas reflexões pouco ortodoxas,
intimouo,
condenouo e enfiouo na cadeia. Tereza, expulsa do
apartamento
selado, foi viver com a mãe.
Ao fim de algum tempo, o homem mais triste de todos morreu
na prisão e a mãe, acompanhada por Tereza, foi instalarse
com o
escroque numa pequena cidade do sopé de uma montanha. O
padrasto era empregado de escritório, a mãe, empregada de
balcão.
Teve mais três filhos. Depois, um belo dia, quando uma vez
mais se
mirava ao espelho, percebeu que tinha envelhecido e se
tornara feia.
Ao constatar que tinha perdido tudo, pôsse à procura de
um
culpado. Culpados eram todos. Culpado era o primeiro marido,
viril
e malamado, que lhe desobedecera quando ela lhe sussurrava
ao
ouvido para ter cuidado. Culpado era o segundo marido, pouco
viril
e bemamado, que a arrastara para fora de Praga, para uma
cidadezinha provinciana onde andava atrás de tudo quanto era
saia, não
lhe deixando a ela nem aos seus ciúmes um minuto de sossego.
Sentiase desarmada perante os seus dois maridos. O único
ser humano que lhe pertencia e não podia escaparlhe, o
refém que podia
pagar pelos outros, era Tereza.
Aliás, talvez Tereza fosse mesmo responsável pelo destino
da
mãe. Tereza: essa absurda união de um espermatozóide do
homem
mais viril de todos com um óvulo da mulher mais bonita de
todas.
Nesse segundo fatídico chamado Tereza, a mãe começara a
maratona da sua vida em ruínas.
Explicava e tornava a explicar a Tereza que ser mãe é
sacrificar
tudo. Eram palavras convincentes porque exprimiam a
experiência
de uma mulher que perdera tudo por causa da filha. Tereza
ouviaa
e iase convencendo que o valor mais alto da vida é a
maternidade
e que a maternidade é um grande sacrifício. Se ser mãe é o
Sacrifício por excelência, o destino de uma filha é a Culpa
que nada nem
ninguém poderá resgatar nunca.
Tereza desconhecia, evidentemente, o episódio da noite em
que
a mãe dissera ao ouvido do homem mais viril de todos para
ter
cuidado. Sentiase culpada, mas de uma culpabilidade
indefinível como o pecado original. Fazia tudo para expiá
la. Como a mãe a tirara do colégio, desde os quinze anos que
era criada e lhe dava tudo
quanto ganhava. Estava disposta a tudo para merecer o seu
amor.
Tomava conta da casa, tratava dos irmãos e das irmãs,
passava os
domingos a esfregar e a lavar. Era pena, porque no liceu era
a
melhor aluna da turma. Queria elevarse, mas onde, naquela
cidadezinha? Enquanto lavava a roupa tinha sempre um livro
aberto ao
lado da banheira. Quando virava as páginas, o livro ficava
todo
cheio de gotas de água.
Em casa não havia pudor de espécie nenhuma. A mãe
passeavase por todo o apartamento em roupa interior, às
vezes sem soutien
e até, outras vezes, no Verão, completamente nua. O padrasto
não
se passeava nu, mas esperava sempre que Tereza estivesse na
banheira para ir à casa de banho. Por isso, um dia, fechou
sé à chave, mas a
mãe fezlhe logo uma cena: nQuem é que tu pensas que és?
Quem é
que te julgas? Olha que ele não ta come, essa tua beleza!n
(Não pode quererse situação mais clara para mostrar que o
ódio
que a mãe tinha à filha era mais forte do que os ciúmes que
o
marido lhe inspirava. A culpa da filha era imensa, tão
imensa que as
próprias infidelidades do marido estavam lá contidas. Que o
marido
trouxesse Tereza debaixo de olho, ainda era admissível, mas
o que
não podia permitir era que a filha quisesse emanciparse e
ousasse
reivindicar alguns direitos, nem que fosse o de fecharse à
chave na
casa de banho!)
Num certo dia de Inverno, a mãe pôsse a passear nua numa
sala que tinha a luz acesa. Tereza apressouse a correr o
estore para
que os vizinhos da frente não vissem a mãe toda nua. Esta
desatou
a rir nas suas costas. No dia seguinte, a mãe teve visitas.
Uma vizinha, uma colega da loja, uma professora primária do
bairro e mais
duas ou três mulheres que se encontravam regularmente.
Tereza
veio passar um bocadinho com elas, acompanhada por um rapaz
de
dezasseis anos, filho de uma das senhoras. A mãe aproveitou
imediatamente para contar como Tereza quisera proteger o seu
pudor.
Pôsse a rir e todas as mulheres a imitaram. Depois,
observou: nnA
'Tereza nunca mais se convence que o corpo humano é uma
coisa
que se mija e se peida!nn Tereza ficou coradíssima, mas a
mãe continuou: cnSim, que mal é que há nisso?...nn Em
seguida, respondendo
ela própria à pergunta, deu dois ou três peidos bem sonoros.
As
mulheres desataram todas a rir.
A mãe assoase ruidosamente, descreve pormenorizadamente a
sua vida sexual, exibe a dentadura postiça. Soltaa com a
língua com
uma agilidade surpreendente, deixa cair a parte de cima
sobre os
dentes de baixo e ela abrese sozinha num largo sorriso;
fica, de
repente, com uma cara tão arrepiante que as pessoas têm um
calafrio.
Não é senão uma maneira de renegar brutalmente a sua
juventude e a sua beleza. No tempo em que os nove
pretendentes se ajoelhavam à volta dela, era extremamente
ciosa da sua nudez. O preço
do seu corpo era proporcional ao pudor que tinha dele. Se
agora é
impudica, éo radicalmente; com o seu despudor, passa um
risco solene por cima da vida e grita bem alto que a
juventude e a beleza,
que tanto sobrestimou, não valem realmente nada.
Tereza pareceme ser o prolongamento desse gesto, desse
gesto
da mãe a expulsar para bem longe um passado de mulher jovem
e
bela.
(E não é de admirar que Tereza também tenha modos nervosos
e que aos seus gestos falte a graça da lentidão. Esse grande
gesto da
mãe, autodestruidor e violento, é ela, é a própria Tereza.)
A mãe quer que lhe façam justiça e que o culpado seja
castigado. Insiste para que a filha fique com ela no mundo
impudico onde
a beleza e a juventude não têm sentido, onde o universo não
passa
de um gigantesco campo de concentração de corpos idênticos
com
uma alma invisível.
Podemos agora perceber melhor o sentido do vício secreto
de
Tereza, dos seus longos e frequentes momentos em frente ao
espelho. Era um combate contra a mãe. Era o desejo de não
ser um
corpo como os outros corpos e de ver subir à superfície do
rosto a
tripulação da alma vinda do ventre do navio. E isso não era
fácil
porque a alma, triste, receosa, amedrontada, escondiase bem
lá no
fundo das suas vísceras e tinha vergonha de se mostrar.
Também foi assim no dia em que conheceu Tomas. Esgueirava
se como podia por entre os bêbedos do restaurante, com o
corpo
vergado pelo peso das canecas de cerveja que levava num
tabuleiro
e tinha a alma na boca do estômago ou no pâncreas. Foi nessa
altura que Tomas chamou por ela. Era um acontecimento
importante
porque quem estava a chamar por ela não conhecia nem a mãe
nem
os bêbados, que todos os dias a martirizavam com ditos
obscenos e
gastos. O seu estatuto de desconhecido elevavao acima dos
outros.
Mas havia mais uma coisa: umn livro aberto em cima da
mesa.
Nunca ninguém abrira um livro numa mesa daquele café. Para
Tereza, o livro era o santo e a senha de uma ìrmandade
secreta. Para
enfrentar o mundo grosseiro que a rodeava não tinha, com
efeito,
senão uma arma: os livros que ia buscar à biblioteca
municipal e
que eram sobretudo romances; liaos aos montes, de Fielding
a Thomas Mann. Davamlhe uma oportunidade de evasão
imaginária,
arrancandoa a uma vida que não lhe oferecia satisfaçäo de
espécie
nenhuma, mas, enquanto simples objectos, também tinham um
sentido. Gostava de andar na rua com livros debaixo do
braço. Eram
para ela o que a bengala era para os dandies do século
passado.
Distinguiamna dos outros.
(A comparação entre o livro e a bengala elegante do dandy
não
é totalmente exacta. A bengala era o distintivo do dandy, e
tornavao uma personagem moderna e à última moda. O livro
fazia Tereza
distinguirse das outras raparigas, mas tornavaa um ser
antiquado.
Também é certo que era nova de mais para perceber o que é
que
estava fora de moda na sua pessoa. Aos adolescentes que
passeavam
à sua volta com transístores tonitruantes, achavaos
idiotas. Não
percebia que eram modernos.)
Em conclusão: o homem que acabara de chamar por ela era ao
mesmo tempo desconhecido e membro de uma irmandade secreta.
Falava de um modo delicado e Tereza sentiu a alma a lançar
selhe
para a superfície através de todas as veias, de todos os
capilares e
de todos os poros para que ele a visse.
A partir de então, Beethoven tornarase para ela a imagem do
mundo nndo outro ladonn, a imagem do mundo a que aspirava.
Agora, enquanto se afastava do balcão com a aguardente de
Tomas,
esforçavase por ler nesse acaso: como explicar que, no
preciso momento em que estava a servir uma aguardente àquele
desconhecido
que lhe agradava tanto, tivesse começado a ouvir Beethoven?
O acaso tem destes sortilégios, a necessidade, não. Para
um
amor se tornar inesquecível é preciso que, desde o primeiro
momento, os acasos se reúnam nele como os pássaros nos
ombros de São
Francisco de nAssis.
Durante a viagem de regresso de Zurique para Praga, Tomas
sentiuse invadir pelo malestar quando pensou que o seu
encontro
com Tereza fora o resuLtado de seis acasos improváveis.
Mas um encontro não é precisamente tanto mais importante e
cheio de significação quanto mais depende de um grande
número de
circunstâncias fortuitas?
Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. O que
acontece por necessidade, o que já era esperado e se repete
todos
os dias é perfeitamente mudo. Só o acaso fala. Nele é que
deve
tentarse ler, como as ciganas fazem com as figuras deixadas
no
fundo de uma chávena pela borra do café.
Para Tereza, a presença de Tomas no restaurante foi a
manifestação do acaso absoluto. Estava sentado sozinho a uma
mesa com
um livro aberto à frente. Levantou os olhos para ela e
sorriu: nnUma
aguardente! nn
Nesse momento, a rádio estava a transmitir um programa de
música. Tereza foi buscar a aguardente ao balcão e fez girar
o botão do
aparelho para ouvir melhor. Tinha percebido que era
Beethoven.
Ouvira pela primeira vez a sua música quando um quarteto de
Praga
que andava em digressão pelo país viera àquela cidadezinha.
Tereza
(que, como sabemos, aspirava a nnelevarsenn) foi ao
concerto. Sala
vazia. Só ela, o farmacêutico e a mulher. Havia, portanto,
um quarteto
de músicos no palco e um trio de espectadores na sala, mas
os músicos
foram tão simpáticos que não anularam o concerto e tocaram
só para
eles durante uma noite inteira os três últimos quartetos de
Beethoven.
Em seguida, o farmacêutico convidara os músicos para
jantar e
pedira àquela espectadora desconhecida que os acompanhasse.
(os pássaros do acaso reuniamselhe nos ombros) que o
desconhecido lhe estava predestinado. Ele chamoua e
convidoua a sentarse
ao seu lado. (Tereza sentiu a tripulação da alma a lançarse
para a
ponte do corpo.) Pouco depois, acompanhouo à estação e, no
momento em que estava a despedirse dela, estendeulhe um
cartãodevisita com um número de telefone: cnSe, por
acaso, for um dia destes a
Praga... nn
10
Chamoua porque queria pagar. Fechou o livro (o santo e a
senha de uma irmandade secreta) e Tereza ficou com
curiosidade de
saber o que é que ele estava a ler.
n"Pode juntar isto à minha conta?, perguntou o
desconhecido.
Com certeza. Que número é o seu quarto?nn
Ele mostroulhe uma chave presa a uma placa de madeira com
um seis pintado a vermelho.
nnQue engraçado! Está no número seis!, disse ela.
Engraçado, porquê?nn, perguntou ele.
Vieralhe à cabeça que, quando morava em Praga na casa dos
pais, antes do divórcio deles, o prédio era o número seis.
Mas disse
uma coisa completamente diferente (e não podemos senão
tirarlhe
o chapéu): nnEstá no quarto número seis e eu acabo de
trabalhar às
seis!
Pois eu vou apanhar o comboio das seten>, disse o
desconhecido.
Não sabendo o que acrescentar, deulhe a conta para ele
assinar
e levoua para a recepção. Quando acabou o trabalho, o homem
já
tinha saído da sala. Teria compreendido a sua discreta
mensagem?
Saiu toda nervosa do restaurante.
Em frente, no meio daquela cidadezinha suja, havia um
largo
ajardinado, triste e ralo, que sempre fora uma ilha de
beleza para
ela: era um relvado com quatro álamos, bancos, um chorão e
forsítias.
O desconhecido estava sentado num banco amarelo de onde se
via a entrada do restaurante. Era precisamente o banco onde
estivera sentada na véspera com um livro ao colo!
Compreendeu então
11
Muito mais do que aquele cartãodevisita dado à última da
hora,
foi o apelo dos acasos (o livro, a música de Beethoven, o
número seis,' o banco amarelo do largo) que encorajou Tereza
a sair de
casa e a mudar de vida. Foram talvez esses poucos acasos
(aliás bem
modestos e banais, realmente dignos de uma cidadezinha
insignificante) que puseram o seu amor em movimento e se
tornaram a
fonte da energia onde, até ao fim, háde ir beber.
A nossa vida quotidiana está sempre a ser bombardeada
pelos
acasos, mais exactamente por encontros fortuitos entre as
pessoas e
os acontecimentos, ou seja, por aquilo a que costuma chamar
se
coincidências. Há uma coincidência quando dois
acontecimentos
inesperados se produzem ao mesmo tempo, quando se encontram
um com o outro: por exemplo, Tomas aparece no restaurante
precisamente no momento em que a rádio está a dar Beethoven.
Na sua
imensa maioria, este tipo de coincidências passa totalmente
despercebido. Se o homem do talho tivesse vindo sentarse a
uma mesa do
restaurante em vez de Tomas, Tereza não teria reparado que a
rádio estava a dar Beethoven (embora o encontro de Beethoven
com
um homem do talho também não deixe de ser uma coincidência
interessante). Mas o amor a nascer aguçoulhe o sentido da
beleza
e, por isso, nunca mais esquecerá essa música. Sempre que a
ouvir,
háde sentirse comovida. Tudo o que se passar à sua volta
nesse
instante ficará aureolado com o brilho dessa música e será
belo.
No começo do grosso volume que Tereza trazia debaixo do
braço no dia em que veio a casa de Tomas, Ana vê pela
primeira vez
Vronsky em circunstâncias bastante estranhas. Estão ambos no
cais
de uma estação onde alguém acabara de cair para debaixo de
um
comboio. No fim do romance, é Ana que se atira para debaixo
de
um comboio. Esta composição simétrica, em que o mesmo tema
aparece no princípio e no fim, pode parecer demasiado
romanescann. Entou disposto a admitilo, mas só se
romanesco não significar
para os que me estão a ler algo de inventadonn,
artificialnn, sem
semelhança com a vidann. Porque a vida humana também é
assim
que é composta.
É composta como uma partitura musical. O ser humano,
guiado
pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito
(uma música de Beethoven, uma morte numa estação) e faz dele
um tema
que, em seguida, insereverá na partitura da sua vida. Como o
compositor faz com os temas de uma sonata, está sempre a
voltar a
ele, a repetilo, a modificálo, a desenvolvêlo, a transpô
lo. Ana
poderia ter posto termo à vida de outra maneira qualquer.
Mas, no
momento do desespero, foi atraída pela sombria beleza do
tema da
estação e da morte, desse tema inesquecível associado ao
nascimento
do amor. Mesmo nos momentos da mais profunda desordem, é
segundo as leis da beleza que, secretamente, o homem vai
compondo
a sua vida.
Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances
o
seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos (por
exemplo
o encontro de Vronsky, de Ana, do cais e da morte, ou o
encontro
de Beethoven, de Tomas, de Tereza e do copo de aguardente),
mas
há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses
acasos
na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão
de
beleza.
porte que tinha era essa miserável senha e isso davalhe
vontade de
chorar. Para evitar chorar, mostrouse volúvel, pôsse a
falar alto e
a rir. Mas, como da outra vez, mal passou o limiar da porta,
Tomas
tomoua nos braços e foram fazer amor. Deslizou para dentro
de
um nevoeiro onde não havia nada para ver, nada para ouvir, a
não
ser o seu grito.
12
Incitada pelos pássaros dos acasos que se tinham reunido
nos
seus ombros, tirou uma semana de licença sem dizer nada à
mãe e
meteuse no comboio. Passou grande parte da viagem a ir aos
lavabos verse ao espelho e suplicar à alma que não
abandonasse um só
segundo que fosse a ponte do seu corpo nesse dia decisivo da
sua
vida. De repente, enquanto se olhava, encheuse de pânico:
tinha a
garganta irritada. Iria adoecer logo nesse dia fatídico?
Mas já não podia recuar. Telefonoulhe da estação e, no
momento em que a porta se abriu, inesperadamente, a sua
barriga pôsse a emitir uns gorgolejos horríveis. Ficou
cheia de vergonha. Era
como ter a mãe na barriga e ouvila a rirse maldosamente
para lhe
estragar o encontro.
Primeiro, pensou que ele ia pôla na rua por causa desses
barulhos tão despropositados, mas, em vez disso, ele tomoua
nos braços. Reconhecida pela indiferença com que encarara os
seus borborismos, com os olhos velados de bruma, beijouo
ainda mais apaixonadamente. Um minuto depois, estavam a
fazer amor. E enquanto
fazia amor, Tereza gritava. Já tinha febre. Estava com
gripe. Tinha
a extremidade do tubo de passagem do ar para os pulmões
encaroada e tapada. Tempos depois, voltou com uma mala
pesadíssima onde amontoara tudo o que possuía, resolvida a
nunca mais regressar
à sua cidadezinha provinciana. Tomas convidoua a ir no dia
seguinte à noite a casa dele. Dormiu numa pensão barata. De
manhã,
depositou a pesadíssíma mala na estação e passou o dia
inteiro pelas
ruas de Praga com Ana Karenina debaixo do braço. À noite,
tocou
à porta e ele veio abrir; o livro, não o largava. Como se
fosse o seu
bilhete para entrar no universo de Tomas. Sabia que o único
passa
13
Não era o sopro de uma respiração ofegante, não era o
sopro de
uma respiração difícil, era mesmo um grito. Gritava tão alto
que
Tomas teve de afastar a cabeça da cara dela como se, perto
dos
ouvidos, o grito lhe furasse os tímpanos. Não era uma
expressão de
sensualidade. A sensualidade é a mobilização máxima dos
sentidos:
observase o outro intensamente e escutamse todos os seus
ruídos,
mesmo os mais imperceptíveis. O grito de Tereza, pelo
contrário,
era para anestesiar os sentidos, para impedilos de ver e de
ouvir.
O que gritava nela era o idealismo ingénuo do seu amor que
pretendia ser a abolição de todas as contradições, a
abolição da dualidade do corpo e da alma e talvez mesmo a
abolição do tempo.
Tinha os olhos fechados? Não, mas os seus olhos não
olhavam
para lado nenhum, estavam pregados no vazio do tecto e, por
breves momentos, a sua cabeça virouse convulsivamente de um
lado
para o outro.
Quando o grito se acalmou, adormeceu junto a Tomas,
agarrandolhe na mão durante toda a noite.
Já aos oito anos adormecia com as mãos uma na outra,
imaginando que se agarrava ao homem que amava, ao homem da
sua
vida. Portanto, é perfeitamente compreensível que segure tão
afincadamente a mão de Tomas sempre que está a dormir: foi
pará isso
que se preparou, foi para isso que se treinou desde a
infância.
14
*/*
Uma rapariga que, em vez de se ncelevarN, é obrigada a
servir
cerveja a bêbados e a passar os domingos a lavar a roupa
suja dos
irmãos e das irmãs, acumula dentro de si uma imensa reserva
de
vitalidade, inconcebível para os jovens que andam na
faculdade e
bocejam com um livro aberto à frente. Tereza lera mais do
que eles,
sabia mais da vida, mas nunca se aperceberia disso. O que
distingue
as pessoas que estudaram dos autodidactas não é o seu nível
de
conhecimento mas o grau de vitalidade e de confiança que têm
em
si próprios. O fervor com que Tereza, uma vez em Praga, se
lançou
na vida, era ao mesmo tempo voraz e frágil. Parecia ter medo
que
alguém lhe dissesse um dia: 0 teu lugar não é aqui! Volta
para
donde vieste!n Toda a sua fome de viver estava suspensa de
um fio:
a voz de Tomas, que fizera subir às alturas a alma
timidamente escondida nas vísceras de Tereza.
Arranjou um lugar num laboratório de fotografia de uma
revista,
mas não podia contentarse com isso. Queria era ser
fotógrafa.
Sabina, uma amiga de Tomas, emprestoulhe algumas
monografias
de fotógrafos célebres, encontrouse com ela num café e, com
os
livros abertos à frente, explicoulhe porque é que aquelas
fotografias eram originais. Tereza ouviaa em silêncio e com
uma atenção que só muito raramente um professor consegue ver
na cara dos
alunos.
Graças a Sabina, Tereza apercebeuse do parentesco
existente
entre a fotografia e a pintura e passou a obrigar Tomas a
acompanhála a todas as exposições. Em breve conseguiu
publicar fotografias suas na revista e deixou o laboratório
para se tornar fotógrafa
profissional.
Nessa noite, foram a um cabaré festejar com alguns amigos
a
promoção de Tereza; dançaram. Tomas foi ficando com um ar
cada
vez mais carrancudo e, como Tereza insistisse para lhe dizer
o que
tinha, quando chegaram a casa, confessoulhe que ficara com
ciúmes
por têla visto a dançar com o colega.
Fizte mesmo ter ciúmes de mim?" Repetiu esta frase uma
boa
dúzia de vezes, como se Tomas lhe tivesse anunciado que
tinha ganho o Prémio Nobel e se recusasse a acreditar nisso.
Agarrouo pela cintura e pôsse a dançar com ele no meio
do
quarto. Era muito diferente da dança mundana de há pouco, no
bar.
Era uma espécie de dança aldeã, era uma série de pulos
extravagantes. Levantava as pernas muito alto, dava saltos
enormes e desajeitados, arrastandoo atrás dnla para os
quatro cantos do quarto.
Mas, ai! Dentro de pouco tempo, quem tinha ciúmes era ela!
E os seus ciúmes não foram o Prémio Nobel para Tomas, mas um
fardo de que só se libertaria um ou dois anos antes de
morrer.
64
15
Desfilava nua à volta da piscina no meio de uma multidão
de
outras mulheres, Tomas estava lá em cima, de pé, dentro de
uma
cesto pendurada na abóbada, a gritar, a obrigálas a cantar
e a flectir os joelhos. Quando uma mulher fazia um movimento
em falso,
abatiaa com um tiro de pistola.
Gostava de voltar mais uma vez a este sonho: o horror não
começava só no momento em que Tomas disparava pela primeira
vez.
Era um sonho atroz logo desde o princípio. Marchar nua, a
passo
militar, no meio de outras mulheres, era para Tereza a
imagemtipo
do horror. Quando morava com a mãe, estava proibida de se
fechar
à chave na casa de banho. Para a mãe, era uma maneira de lhe
dizer: o teu corpo é igual a todos os outros corpos; não
tens direito
ao pudor; não tens nada que esconder uma coisa que existe de
uma
forma idêntica em milhões de exemplares. No universo da mãe,
os
corpos eram todos iguais e marchavam a passo uns atrás dos
outros
num interminável desfile. Desde a infância que a nudez era
para
Tereza a marca da uniformidade obrigatória do campo de
concentração; a marca da humilhação.
Ainda havia outra coisa horrível logo no começo do sonho:
as
mulheres tinham todas que cantar! Com os corpos todos iguais
uns
aos outros, todos igualmente desvalorizados como simples
mecanismos sonoros e sem alma, as mulheres ainda se
regozijavam com
isso! Era a jubilante solidariedade das desalmadas. Sentiam
se felizes
por estarem libertas do fardo da alma, dessa ilusão da
diferença,
desse orgulho ridículo, e por serem todas iguais. Tereza
acompanhavaas no seu canto, mas sem qualquer alegria.
Cantava porque tinha
medo que as mulheres a matassem se não cantasse.
Mas o que significava o facto de Tomas as abater com tiros
de
pistola e elas caírem mortas umas atrás das outras na
piscina?
Na realidade, aquelas mulheres que se regozijavam por
serem
exactamente iguais e indiferenciadas estavam era a celebrar
a sua
morte futura, que tornaria a sua semelhança ainda mais
absoluta.
O disparo não era, portanto, senão a feliz conclusão do seu
macabro desfile. Desatavam alegremente a rir a cada tiro de
pistola e,
enquanto os cadáveres se iam afundando, cantavam ainda mais
alto.
E porque é que quem disparava era Tomas? E porque é que
ele
também queria abater Tereza?
Porque tinha sido ele quem a mandara para o meio das
mulheres. Era o que o sonho estava encarregado de revelar a
Tomas, já
que Tereza não sabia como dizerlho directamente. Tinha
vindo viver com ele para o seu corpo se tomar único e
insubstituível. Mas
ele tinha traçado um sinal de igualdade entre ela e as
outras:
beijavaas a todas da mesma maneira, prodigalizavalhes as
mesmas
carícias, não diferenciava em nada, mas em nada de nada, o
corpo
de Tereza dos outros corpos. Remeteraa para o universo
donde tinha pensado que se escapara. Mandaraa desfilar nua
para o meio
de outras mulheres nuas.
66
16
Tinha três séries sucessivas de sonhos. A primeira, onde
havia
gatos a serem torturados, dizia o que sofrera ao longo da
vida. Outra mostrava, em múltiplas variantes, imagens da sua
execução.
A última falava da sua vida no além, onde a sua humilhação
se
tornara um estado eterno.
Nos sonhos de Tereza não havia nada para decifrar. A
acusação
que faziam a Tomas era tão evidente que este não podia senão
calarse e afagar, de cabeça baixa, a mão de Tereza.
Para além da sua evidente eloquência, os sonhos ainda por
cima
eram belos. Foi um aspecto que escapou a Freud na sua teoria
dos
sonhos. O sonho não é apenas uma comunicação (e
eventualmente
uma comunicação cifrada), é também uma actividade estética,
um
jogo da imaginação que tem um valor próprio. O sonho é a
prova
de que imaginar, sonhar com o que nunca existiu, é uma das
necessidades mais profundas do homem. Essa é a razão do
pérfido perigo
que se oculta no sonho. Se o sonho não fosse belo, podíamos
esquecêlo depressa. Mas Tereza estava constantemente a
lembrarse
deles, a revivêlos em pensamento, a transformálos em
lendas. Tomas vivia sob o encanto hipnótico da angustiante
beleza dos sonhos
de Tereza.
Tereza, minha querida Tereza, só parece que estás a
afastarte
de mim. Para onde queres ir? Sonhas todas as noites com a
morte,
como se quisesses mesmo irte embora...nn, disselhe um dia
em que
estavam sentados à mesa de um bar.
Era em pleno dia, a razão e a vontade tinham voltado aos
comandos. Enquanto uma gota de vinho tinto deslizava
lentamente pela superfície do copo, Tereza disse: Não
posso fazer nada, Tomas.
E natural que quem quer nelevarseu sempre mais, um dia,
acabe por ter vertigens. O ynne são vertigens? Medo de
cair? Mas então
porque é que temos vertigens num miradoiro protegido com um
parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do
vazio por
debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair
do qual,
logo a seguir, nos protegemos com pavor.
O cortejo de mulheres nuas em torno da piscina, os
cadáveres no
carro funerário a manifestarem o seu contentamento por
Tereza
também estar morta, são o npor baixonn que a apavora, de
onde já
fugiu uma vez, mas que também a atrai misteriosamente. As
suas
vertigens: ouvir um suave (e quase alegre) apelo que a
incita a renunciar ao destino e à alma. É o apelo à
solidariedade das desalmadas. Nos momentos de desespero, tem
vontade de lhe responder e
de voltar para a mãe. Tem vontade de fazer retirar da ponte
do seu
corpo a tripulação da alma; de descer e de se sentar com as
amigas
da mãe a rir quando uma delas se peida ruidosamente; de
desfilar
nua com elas em torno da piscina e de cantar.
18
É certo que, antes de deixar a família, Tereza já estava
em guerra com a mãe, mas não nos esqueçamos que, ao mesmo
tempo,
tinha um amor bem infeliz por ela. Estava disposta a fazer
tudo pela
mãe, desde que ela lho pedisse com um tom de ternura. Foi
por
nunca ter ouvido esse tom que teve forças para se ir embora.
Quando a mãe percebeu que a sua agressividade tinha
perdido
toda e qualquer influência sobre Tereza, passou a escrever
lhe cartas
lacrimejantes para Praga. Queixavase do marido, do patrão,
da saúde, dos filhos e dizia que Tereza era o único ser que
possuía à face da
terra. Tereza julgou estar finalmente a ouvir a voz do amor
materno
de que, durante vinte anos, sentira saudades, e teve vontade
de
voltar. Tanto mais porque se sentia fraca. As infidelidades
de Tomas
tinhamlhe revelado bruscamente a sua impotência e desse
sentimento de impotência nasciam as vertigens, um imenso
desejo de cair.
A mãe telefonoulhe. Disselhe que tinha um cancro. Que só
lhe
restavam alguns meses de vida. Ao ouvir isto, o desespero em
que
ficara com as infidelidades de Tomas transformouse em
revolta.
Censuravase por ter traído a mãe com um homem que não
gostava
dela. Estava pronta a esquecer o que a mãe lhe fizera. Agora
já
podia compreendêla. Estavam ambas atoladas na mesma
miséria.
A mãe amava o marido como Tereza amava Tomas, e as
infidelidades do padrasto torturavam a mãe exactamente como
as de Tomas
atormentavam Tereza. A mãe só tinha sido má para ela por ser
muito
infeliz.
Falou a Tomas da doença da mãe e anuncioulhe que ia tirar
uma semana de licença para poder ir vêla. Disseo com um
certo
tom de desafio na voz.
Adivinhando que deviam ser as vertigens que estavam a
atraíla
para a mãe, Tomas desaconselhou a viagem a Tereza. Telefonou
para o posto clínico da cidadezinha. Como na Boémia os
dossiers
dos diagnósticos de cancro são extremamente minuciosos,
facilmente
pôde verificar que a mãe de Tereza não tinha o mínimo
sintoma de
cancro e, até, que há mais de um ano não ia ao médico.
Tereza obedeceulhe e não foi ver a mãe. Mas, nesse mesmo
dia,
deu uma queda na rua; passou a ter um andar hesitante; caía
quase
todos os dias, tropeçava nas coisas ou, na melhor das
hipóteses, deixava cair os objectos que tinha na mão.
Sentia um desejo imperioso de cair. Vivia numa vertigem
contínua.
Quem cai, quer dizer: nnLevantame!nn Com toda a
paciência, Tomas levantavaa.
Queria fazer amor contigo no meu arelier como se fosse o
palco de um teatro. Haveria gente em toda a volta e ninguém
teria
o direito de se aproximar, mas não conseguiriam despregar os
olhos
de nós... nn
À medida que o tempo ia passando, a imagem perdia a
crueldade inicial e começava a excitála. Várias vezes
evocou a situação ao
ouvido de Tomas enquanto faziam amor.
Decidiu que havia uma maneira de se livrar da condenação
que
lia nas suas infidelidades: era levála com ele! Era levála
a casa das
amantes! Talvez assim, através desse desvio, o seu corpo
voltasse a
ser único e primeiro entre todos. O seu corpo seria o alrer
ego de
Tomas, o seu ajudante e assistente.
Enlaçados, Tereza sussurralhe ao ouvido: n"Despiatas,
lavavatas na banheira e levavatas...nn Queria que se
transformassem os
dois em hermafroditas e que os corpos das outras mulheres se
tornassem no seu brinquedo comum.
20
Seryirlhe de alrer ego na sua poligamia. Tomas não queria
entendêlo, mas Tereza não conseguia deixar de pensar nisso
e
tentava aproximarse de Sabina. Disselhe que queria
fotografála.
Sabina convidoua a ir ao atelier. Tereza acabou
finalmente por
ver com os seus próprios olhos aquele divisão imensa, com o
enorme divã quadrado ao meio, armado como um estrado.
Que vergonha nunca teres cá vindo!nn, disse Sabina,
enquanto
lhe mostrava os quadros arrumados de encontro à parede.
Chegou
mesmo a ir buscar uma tela muito antiga, pintada no seu
tempo de
estudante. Era uma pintura de altosfornos em construção.
Tinhaa
feito numa época em que, na escola de BelasArtes, se exigia
o
realismo mais rigoroso (porque a arte não realista era então
considerada como uma tentativa de subversão do socialismo) e
Sabina,
que gostava de levar as apostas até ao fim, esforçavase por
ser
ainda mais rigorosa do que os professores. Nessa altura,
pintava de
maneira a que o traço do seu pincel fosse perfeitamente
imperceptível e os seus quadros pareciam autênticas
fotografias a cor.
Olha, este quadro, tinhao estragado. Caiulhe tinta
encarnada
por cima. Ao princípio, fiquei furiosa, mas, a partir de
certa altura,
comecei a gostar da mancha porque parecia uma fissura, como
se os
fornos não fossem fornos verdadeiros, mas um velho cenário
rasgado
onde os fornos tivessem sido pintados em rrompe l'oeil.
Comecei
a brincar com a greta, a aumentála, a imaginar o que
estaria lá
atrás. Foi assim que começou o meu primeiro ciclo de
quadros.
Chameilhes cenários. É evidente que não podia mostrálos a
ninguém. Expulsavamme logo da escola. Em primeiro plano,
havia
sempre um mundo perfeitamente realista, mas, um pouco mais
longe,
corro por detrás de um cenário de teatro rasgado, aparecia
uma
coisa diferente, uma coisa misteriosa ou abstracta.nn
Calouse por um momento e, depois, acrescentou: nnEm
primeiro
plano, era a mentira inteligível. Atrás, a incompreensível
verdade.nn
Tereza ouviaa com aquela incrível atenção que só
raramente um
professor consegue ver na cara de um aluno, enquanto
constatava
que, de facto, todos os quadros de Sabina, tanto os antigos
como os
de agora, falavam sempre da mesma coisa, todos eram o
encontro
simultâneo de dois mundos, como fotografias que tivessem
sido
submetidas a uma dupla exposição. Uma paisagem e, ao fundo,
à
transparência, um candeeiro de mesadecabeceira aceso. Uma
mão
a rasgar por detrás uma idílica naturezamorta com maçãs,
nozes e
árvore de Natal iluminada.
Sentiu subitamente uma grande admiração por Sabina e, como
a
pintora se mostrava extremamente amigável, nenhum receio ou
desconfiança se juntavam à sua admiração que, dentro em
pouco, se
tinha transformado em simpatia.
Quase se esquecia que viera para lhe tirar fotografias.
Sabina
teve de lho lembrar. Ao desviar o olhar dos quadros,
deparouselhe, no meio da sala, o divã armado como um
estrado.
21
Havia uma mesadecabeceira ao lado do divã e, em cima
dela,
um suporte em forma de cabeça, um expositor daqueles que os
cabeleireiros usam para pôr perucas. Em casa de Sabina, a
cabeça
postiça não tinha uma peruca, mas um chapéu de coco. Com um
sorriso, Sabina disse: nnHerdei este chapéu de coco do meu
avô.nn
Chapéus como aquele, pretos, redondos, rígidos, Tereza
nunca
tinha visto senão no cinema. Charlie Chaplin usava sempre
um.
Sorriu por seu turno, pegou no chapéu de coco e examinouo
demoradamente. Depois, disse: nnQueres ficar com ele nas
fotografias?nn
A resposta de Sabina foi uma grande gargalhada. Tereza
poisou
o chapéu de coco, pegou na máquina e começou a tirar
fotografias.
Ao fim de uma curta hora, disse: nnE se eu te tirasse
fotografias
nua?
Nua?, perguntou Sabina.
Sim, nua, disse Tereza, repetindo heroicamente a sua
proposta.
Para isso, primeiro é preciso bebernn, disse Sabina,
indo abrir
uma garrafa de vinho.
Tereza sentia uma espécie de torpor e deixavase estar
calada,
enquanto Sabina passeava para trás e para diante, com um
copo de
vinho na mão, falando do avô que era presidente da câmara de
uma cidadezinha de província; não chegara a conhecêlo. Tudo
o
que restava dele era o chapéu e uma fotografia onde se viam
as
pessoas importantes da terra numa tribuna; um deles era o
avô de
Sabina; não se sabia muito bem o que lá estava aquela gente
a
fazer, mas talvez estivessem a inaugurar um monumento à
memória
de outra pessoa importante que, com certeza, também usava
chapéu
de coco nas ocasiões solenes.
Sabina falou demoradamente do chapéu de coco e do avô.
Depois do terceiro copo, disse: Espera um instante!nn e
enfiouse na
casa de banho.
Voltou em roupão. Tereza pegou na máquina e ajustoua ao
olho. Sabina abriu o roupão.
22
A máquina servia a Tereza tanto de olho mecânico para
observar a amante de Tomas como de véu para se esconder
dela.
Só depois de passado um bom momento é que Sabina se
resolveu a tirar o roupão. A situação era mais complicada do
que imaginara. Depois de posar alguns minutos, aproximouse
de Tereza e
disselhe: Agora, é a minha vez! Despete!nn
Este despete!nn, que Sabina tantas vezes ouvira da
boca de Tomas, tinhase gravado na sua memória. Era portanto
a ordem de
Tomas que a amante dava agora à mulher dele. As duas
mulheres
estavam assim unidas pela mesma frase mágica. Era o processo
que
Tomas usava para transformar uma conversa anódina numa
situação
erótica: faziao não com carícias, toques, elogios ou
súplicas, mas
com uma ordem que proferia bruscamente, de improviso, com
uma
voz suave, embora enérgica e autoritária, e à distância.
Nesse momento, nunca tocava na mulher a quem a dirigia.
Mesmo à própria
Tereza dizia, exactamente no mesmo tom: Despete!nn. E
embora
falasse com suavidade, embora sussurrasse, tratavase
realmente de
uma ordem. Só por lhe obedecer, ela ficava logo excitada.
Ora, acabara precisamente de ouvir essas mesmas palavras e
desejava tanto
mais submeterse a elas quanto é loucura obedecer a um
estranho e,
neste caso, loucura ainda mais bela por não terem sido
proferidas
por um homem mas por uma mulher.
Sabina tiroulhe a máquina das mãos para ela se poder
despir.
Tereza ficou de pé, nua e desarmada à sua frente.
Literalmente desarmada porque privada da máquina de qne se
servira para esconder
a cara e que, momentos atrás, apontava a Sabina. Encontrava
se à
mercê da amante de Tomas. Essa docilidade enebriavaa. Se os
segundos em que está nua em frente de Sabina pudessem nunca
mais
acabar!
Penso que também Sabina foi tocada pelo encanto insólito
daquela situação em que, à sua frente, estranhamente dócil e
tímida,
se encontrava a mulher do amante. Disparou duas ou três
vezes e,
depois, como que assustada com a magia daquele encantamento
e
para dissipála o mais depressa possível, desatou a rir
muito alto.
Tereza imitoua e ambas se foram vestir.
23
Os crimes do Império Russo foram sempre perpetrados ao
abrigo de uma discreta penumbra. Tanto da deportação de meio
milhão
de lituânios e da morte de centenas de milhares de polacos,
como da
liquidação dos tártaros da Crimeia não restaram provas
fotográficas
nenhumas, ficando tais acontecimentos gravados apenas na
memória
como algo de indemonstrável que, mais cedo ou mais tarde, se
faria
passar como uma mistificação. A invasão da Checoslováquia em
1968 foi, pelo contrário, fotografada, filmada e arrumada
nos arquivos do mundo inteiro.
Os fotógrafos e operadores de câmara checos souberam
aproveitar a oportunidade que se lhes oferecia de fazer a
única coisa que
ainda podia ser feita: preservar para o futuro longínquo a
imagem
da violação. Tereza. passou esses sete dias na rua a
fotografar soldados e oficiais russos nas mais diversas
situações, todas comprometedoras. Os russos foram apanhados
desprevenidos. Tinham recebido
instruções precisas quanto à atitude a adoptar no caso de
serem atacados com armas ou com pedras, mas ninguém lhes
indicara como
reagir perante a objectiva de uma máquina fotográfica.
Gastou centenas de negativos a tirar fotografias. Deu mais
ou
menos metade dos rolos a jornalistas estrangeiros (as
fronteiras
continuavam abertas, os jornalistas estrangeiros estavam
sempre a
chegar, pelo menos para uma curta estada quase só de ida e
volta,
e aceitavam reconhecidamente o menor documento). Muitas das
fotografias de Tereza apareceram no estrangeiro, nos mais
variados
jornais: eram fotografias de tanques, de punhos ameaçadores,
de
prédios destruídos, de mortos cobertos com bandeiras
tricolores, de
jovens a andar de moto a toda a velocidade à volta dos
carros de assalto, agitando grandes paus com bandeiras
checas na ponta, e de
rapariguinhas muito novas com minissaias incrivelmente
curtas que
provocavam os infelizes soldados russos sexualmente
esfaimados,
bnijando, sob os seus narizes, o primeiro desconhecido que
passasse.
A invasão russa, voltamos a insistir, não foi apenas uma
tragédia;
foi também uma festa do ódio cuja estranha euforia nunca
ninguém
poderá compreender.
24
Levara para a Suíça umas cinquenta fotografias, que ela
própria
revelou com toda a arte e todo o engenho de que era capaz.
Foi
oferecêlas a uma revista de grande tiragem. O chefe de
redacção
recebeua amavelmente (em torno da fronte de cada checo
brilhava
a auréola da desgraça colectiva de um povo, coisa a que os
suíços
eram extremamente sensíveis), convidoua a sentarse num
sofá,
examinou as fotografias, elogiouas, para depois explicar
que não
tinham qualquer hipótese de publicação (nnpor muito bonitas
que sejam!nn). Já se passara tempo de mais sobre os
acontecimentos.
nnMas em Praga tudo continua na mesma!nn, exclamou
Tereza,
com indignação, tentando explicar, no seu péssimo alemão,
que, naquele preciso instante, no seu país ocupado, contra
tudo e contra
todos, se constituíam conselhos operários nas fábricas, os
estudantes
continuavam em greve e toda a população continuava a viver
como
muito bem entendia. Isso é que era incrível! E era
precisamente isso
que já não interessava ninguém!
O chefe de redacção sentiu um certo alívio quando,
interrompendo a conversa, entrou na sala uma mulher
enérgica. Estendeulhe
um dossier, dizendo: "Tragote uma reportagem sobre uma
praia de
nudistas. nn
O chefe de redacção tinha a subtileza suficiente para
temer que
aquela checa que tirava fotografias a tanques achasse as
imagens de
gente nua na praia um pouco frívolas de mais. Afastou o
dossier para
a borda da secretária e apressouse a dizer à recémchegada:
nnDeixame apresentarte esta tua colega de Praga. Trouxe
me umas
fotografias esplêndidas.nn
A mulher apertou a mão a Tereza e pegou nas fotografias.
"Enquanto eu vejo as suas, veja você também as minhas!nn
Tereza debruçouse sobre o dossier e tirou as fotografias.
Como que a desculparse, o chefe de redacção disse a
Tereza:
É exactamente o contrário daquilo que você fotografou!nn
Tereza respondeulhe: De forma nenhuma! É precisamente a
mesma coisa!nn
Ninguém compreendeu estas palavras, e eu próprio sinto
alguma
dificuldade em entender que semelhanças podiam ter para
Tereza
uma praia de nudistas e a invasão russa. Pôsse a observar
atentamente as provas, particularmente uma, onde se via uma
família de
quatro pessoas disposta em círculo: a mãe, toda nua,
debruçada
sobre os filhos, com umas grandes mamas pendentes como as de
uma cabra ou de uma vaca e, de costas, também debruçado para
a
frente, o marido, cujos testículos pareciam tetas em
miniatura.
Não gosta?nn, perguntou o chefe de redacção.
Está muito bem tirada.
Pareceme que você a acha chocante, disse a fotógrafa.
Só de
olhar para si, adivinhase logo que nunca háde pôr os pés
numa
praia de nudistas.
Ai, de certeza que não!nn, disse Tereza.
O chefe de redacção sorriu: Vêse imediatamente de onde
é
que você vem. É incrível como os países socialistas são
puritanos!nn
A fotógrafa acrescentou, com uma amabilidade maternal:
Corpos nus. E então? É normal! Tudo o que é normal é belo!
nn
Tereza lembrouse da mãe a passear nua pela casa. Ainda
tinha
nos ouvidos o riso que a acompanhara quando fora a correr
baixar
o estore para as pessoas não verem a mãe toda nua.
25
A fotógrafa convidou Tereza a ir tomar um café ao bar.
As suas fotografias são muito interessantes. Reparei que
tem
um jeito fantástico para tratar o corpo feminino. Sabe com
certeza
no que estou a pensar! Naquelas raparigas em poses tão
provocantes!
Nos casais a beijaremse à frente dos tanques russos?
Isso mesmo. Você dava uma fotógrafa de moda notável. É
evidente que, primeiro, tinha de trabalhar com um modelo. De
preferência, com uma jovem estreante como você. Depois,
podia fazer
algumas fotografias e apresentálas a. uma agência. Mas uma
carreira
demora forçosamente um certo tempo a começar. Entretanto,
talvez
eu possa fazer alguma coisa por si. Vou apresentála ao
jornalista
que dirige a rubrica 0 Seu Jardimnn. Talvez precise de
fotografias.
De cactos, de rosas, de coisas desse género.
Ficolhe muito agradecidann, disse Tereza com toda a
sinceridade, vendo que a mulher sentada à sua frente estava
cheia de boa
vontade.
Mas, depois, perguntou a si própria: porque é que heide
tirar
fotografias a cactos? Sentia uma espécie de enjoo ao pensar
em
voltar a fazer o mesmo que já fizera em Praga: baterse por
um
lugar, por uma carreira, por cada fotografia publicada.
Nunca fora
ambiciosa por vaidade. Tudo quanto queria era escapar ao
mundo
da mãe. Sim, viao agora de repente com toda a nitidez:
tinha exercido a sua profissão de fotógrafa com grande
fervor, mas teria posto
exactamente o mesmo fervor noutra actividade qualquer,
porque a
fotografia não fora senão uma maneira de elevarsenn e de
viver
com Tomas.
Disse: Sabe, o meu marido é médico e pode sustentarme.
Não
tenho necessidade nenhuma de trabalhar.nn
A fotógrafa respondeulhe: Não consigo perceber como é
que
pode renunciar à sua profissão depois de ter tirado
fotografias tão
bonitas!nn
Era verdade. As fotografias dos dias da invasão eram outra
coisa. Essas, não as tirara para Tomas. Tiraraas por
paixão. Não por
paixão pela fotografia, mas por paixão pelo ódio. Essa
situação
nunca mais se repetiria. Aliás, essas fotografias que tirara
por paixão, também já ninguém as queria: tinham perdido a
actualidade. Só
um cacto é que é eternamente actual. Mas os cactos não lhe
interessavam absolutamente nada.
Disse: "Isso é muito simpático da sua parte. Mas prefiro
ficar
em casa. Não tenho necessidade nenhuma de trabalhar.nn
A fotógrafa disse: E ficar em casa, satìsfála?nn
Tereza respondeu: aMais do que tirar fotografias a
cactos."
A fotógrafa disse: Mas apesar de tirar fotografias a
cactos tem
uma vida sua. Se viver só para o seu marido, não tem uma
vida
sua. ni
De súbito, Tereza sentiuse irritada: cnA minha vida é o
meu
marido, e não os cactos.nn
A fotógrafa também já falava com uma certa irritação:
Então
quer dizer que você é feliz assim?nn
Tereza (sempre irritada) respondeu: É claro que sou
feliz!nn
A fotógrafa disse: Uma muther que diz uma coisa dessas é
forçosamente muito...nn Preferiu não continuar.
Tereza completou : Você quer dizer com certeza:
forçosamente
muito limitada.nn
A fotógrafa contevese e disse: Não, limitada não.
Anacrónica.nn
Com um ar sonhador, Tereza disse: Tem razão. É
exactamente
o que o meu marido diz de mim. nn
26
Mas Tomas passava dias inteiros fechado na clínica e ela
ficava
sozinha em casa. Felizmente que ainda tinham Karenine para
ela o
levar a passear! Quando voltava para casa, sentavase diante
de um
manual de alemão ou de francês. Mas davalhe uma grande
tristeza
e não conseguia concentrarse. Muitas vezes, punhase a
pensar no
discurso que Dubcek fizera na rádio depois de vir de
Moscovo. Não
se lembrava já de nada do que ele dissera, mas ainda tinha
nos
ouvidos aquela sua voz tão trémula. Pensava nele: soldados
estrangeiros tinhamno feito prisioneiro no seu próprio
país, a ele,
chefe de um Estado soberano, tinhamno levado, tinhamno
mantido
sequestrado durante quatro dias algures nas montanhas. da
Ucrânia,
tinhamlhe dado a entender que iam fuzìlálo como tinham
fuzilado
doze anos antes o seu precursor húngaro Imre Nagy, depois
tinhamno transferido para Moscovo, tinhamno mandado tomar
banho, fazer a barba, vestirse, pôr uma gravata, tinhamlhe
anunciado que já
não o destinavam ao pelotão de fuzilamento, tinhamlhe
ordenado
que voltasse a considerarse como um chefe de Estado,
tinhamno
feito sentar a uma secretária à frente de Brejnev e tinham
no obrigado a negociar.
Voltara humilhado e fizera o seu discurso a um povo
humilhado.
Estava tão humilhado que quase não conseguia falar. Tereza
nunca
mais háde esquecer as pausas atrozes que ele fazia no meio
das
frases. Estaria no limite das suas forças? Estaria doente?
Têloiam
drogado? Ou não era senão o desespero? Se não restasse mais
nada
de Dubcek, restavam pelo menos esses longos e atrozes
silêncios
durante os quais não era capaz de respirar, durante os quais
tentava
tomar fôlego perante um povo inteiro grudado aos aparelhos
de rádio. Nesses silêncios, estava todo o horror que se
abatera sobre o
país.
No sétimo dia de ocupação, ouvira aquele discurso na sala
de
redacção de um jornal diário que se tornara durante esses
dias no
portavoz da resistência. Todos os que estavam naquela sala
a ouvir
Dubcek o odiavam nesse momento. Reprovavamlhe o mau
compromisso ao qual dera o seu consentimento, sentiamse
humilhados com
a sua humilhação, e a sua fraqueza ofendiaos.
Mas agora, em Zurique, ao pensar nesses momentos, não
sentia
qualquer desprezo por Dubcek. A palavra fraqueza deixara de
soar
como um veredicto. Mesmo com um corpo de atleta como Dubcek,
somos sempre fracos quando confrontados com uma força
superior.
Sentiase subitamente atraída por essa fraqueza que então
lhe parecera insuportável, repugnante, e que a fizera deixar
o seu país.
Compreendia que fazia parte dos fracos, do campo dos fracos,
do
país dos fracos e que lhes devia fidelidade precisamente por
serem
fracos e tentarem tomar fôlego no meio das frases.
Sentiase atraída por essa fraqueza como se tivesse
vertigens.
Sentiase atraída porque também ela se sentia fraca. Tinha
outra vez
ciúmes e as mãos a tremer. Apercebendose disso, Tomas fez o
gesto do costume: pegoulhe nas mãos para acalmála com a
pressão
dos seus dedos. Ela escapouselhe.
n"O que tens?
Nada.
O que queres que eu faça por ti?
Quero que sejas velho. Que tenhas mais dez anos. Mais
vinte
anos! nn
Queria dizer com isso: quero que sejas fraco. Que sejas
tão fraco
como eu.
27
Karenine nunca vira com bons olhos aquela ida para a
Suíça.
Karenine detestava as mudanças. Para os cães, o tempo não
anda
em linha recta, o curso do tempo não é um movimento contínuo
sempre a direito, cada vez mais para diante, de uma coisa
para a
coisa seguinte. Para eles, o tempo descreve um movimento
circular
como o tempo dos ponteiros do relógio, porque os ponteiros
também não andam sempre estupidamente a direito, mas à volta
do
mostrador, dia após dia, na mesma trajectória. Em Praga,
bastava
comprarem um sofá ou mudarem uma jarra de flores de sítio
para
Karenine se indignar. Ficava com o sentido do tempo
perturbado.
Um pouco como aconteceria aos ponteiros se lhes mudássemos
os
números do mostrador.
No entanto, conseguiu em pouco tempo restabelecer no
apartamento de Zurique a maneira como costumava empregar o
tempo e
os seus antigos rituais. De manhã, como em Praga, reuniase
lhes de
um salto na cama para inaugurar o dia, a seguir ia com
Tereza fazer
as primeiras compras da manhã e, como em. Praga, também
passara
a exigir que o levassem regularmente a passear.
Karenine era o relógio da vida deles. Nos piores momentos
de
desespero, Tereza esforçavase por se convencer a si própria
que
tinha de aguentar por causa desse cão ainda mais fraco do
que ela e
talvez ainda mais fraco do que Dubcek e do que a sua pátria
abandonada.
Um dia, quando voltavam de um passeio, o telefone estava a
tocar. Tereza levantou o auscultador.
Era uma mulher que perguntou em alemão se Tomas estava.
Mostravase impaciente e Tereza pensou adivinharlhe uma
ponta de desprezo na voz. Quando respondeu que Tomas tinha
saído e não
sabia quando voltava, a mulher desatou a rir do outro lado e
desligou sem se despedir.
Tereza sabia que não devia dar qualquer importância ao
caso.
Era provavelmente uma enfermeira do hospital, uma doente,
uma
secretária ou outra pessoa qualquer. Mas sentiase tão
perturbada
que não conseguia concentrarse. Percebeu que perdera a
pouca
força que ainda tinha em Praga e que era absolutamente
incapaz de
suportar um incidente, afinal de contas, bem fútil.
Quem vive no estrangeiro deixa de ter por debaixo de si a
rede
de segurança que é; para todo o ser humano, o país natal, o
país
onde se tem a família, os colegas, os amigos e onde é fácil
fazermonos entender na língua que nonhecemos desde
crianças. É certo que
em Praga dependia de Tomas mas só pelo coração. Aqui,
dependia dele para tudo. Se ele a deixasse, o que lhe
aconteceria a ela?
Estava condenada a passar a vida inteira no terror de o
perder?
Punhase a pensar que aquela relação repousava num erro
desde
o princípio. Ana Karenina, o livro que levava bem apertado
debaixo
do braço naquele dia, era o bilhete de identidade falso de
que se
servira para enganar Tomas. Tinham feito a vida num inferno
um ao
outro embora se amassem muito. E era bem verdade que se
amavam. Isso era a prova de que a culpa não era destes, dos
seus
comportamentos ou do seu sentimento lábil. A culpa era da
incompatibilidade que havia entre eles por ele ser forte e
ela fraca. Ela
era como Dubcek a fazer pausas de meio minuto no meio das
frases, era como a sua pátria a gaguejar, a tentar tomar
fôlego sem
conseguir falar.
Mas era precisamente o fraco quem devia saber ser forte e
partir
quando o forte se encontrava demasiado fraco para poder
sequer
ofender o fraco.
Era nisto que Tereza estava a pensar. Depois, apertando a
cara
contra a cabeça felpuda de Karenine, murmurou: nnNão te
zangues,
Karenine, mas acho que temos de mudar de casa outra vez.nn
28
Com a sua pesadíssima mala por cima da cabeça e Karenine
enroscado aos pés, Tereza seguia encolhida a um canto do
comparti mento. Pôsse a pensar no cozinheiro do
restaurante onde trabalhava quando vivia com a mãe. Nunca
perdia uma ocasião de lhe dar
uma palmada no rabo e disseralhe por mais de uma vez à
frente de
toda a gente para ir para a cama com ele. Estranho era
estar agora
a pensar nele! Era a encarnação de tudo o que lhe causava
repugnância. Mas agora só tinha uma ideia fixa, que era ir
ter com ele para
lhe dizer: "Dantes querias ir para a cama comigo. Pois
aqui me tens!nn
Tinha uma vontade brutal de fazer qualquer coisa que a
impedis se de voltar atrás. Tinha vontade de anular
brutalmente os últimos
sete anos da sua vida. Eram as vertigens. Um inebriante,
um incontrolável desejo de cair.
Poderia talvez dizer que ter vertigens é embriagarmonos
com a
, nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa
fraqueza, mas,
em vez de resistirlhe, queremos abandonarnos a ela.
Embriagamo nos com a nossa própria fraqueza, queremos
ficar ainda mais fracos, cair por terra em plena rua à
frente de toda a gente, ficar por
' terra, ainda mais abaixo do que a terra.
Estava convencida de que não ficaria em Praga e que
deixaria de
ser fotógrafa. Voltaria para a cidadezinha de onde a voz
de Tomas a
arrancara.
Mas, uma vez chegada, tinha de ficar uns tempos em Praga
para tratar
de algumas coisas práticas. E, assim, ia adiando o momento
da partida.
De forma que, ao fim de cinco dias, Tomas apareceu
inesperada mente em casa. Karenine saltoulhe para a cara,
poupandoos durante algum tempo à necessidade de falar.
Foste ao jornal?
Não, telefonei para lá.
E então?
Ainda não sei nada. E
De quê?nn
Tereza não respondeu. Não
estava à espera.
Voltemos àquele momento já nosso conhecido. Tomas estava
desesperado e com dor de estômago. Só adormeceu muito tarde.
Alguns instantes depois, Tereza acordou. (Os aviões russos
continuavam a cruzarse no céu de Praga e era difícil dormir
com a barulheira.) O primeiro pensamento que teve foi: ele
voltara por causa
dela. Por causa dela, mudara de destino. Agora, já não era
ele que
era responsável por ela; daí em diante, ela é que era
responsável
Parecialhe uma responsabilidade superior às suas forças.
Depois, lembrousen ontem, Tomas aparecera à porta de
casa e,
alguns instantes depois, tinham dado seis horas numa igreja
de Praga. Quando se encontraram pela primeira vez, ela tinha
acabado de
trabalhar às seis. Viao à sua frente, sentado num banco
amarelo, e
Não, não era superstição, era o sentido da beleza que a
libertava
subitamente da angústia e lhe trazia um desejo renovado de
viver.
Uma vez mais, os pássaros do acaso tinham poisado nos seus
ombros. Tinha os olhos marejados de lágrimas e a sua
respiração tão
próxima davalhe uma sensação de infinita felicidade.
lnRCEIRA PARTE
AS PALAVRAS MAL ENTENDIDAS
Genebra é uma cidade de fontes e fontanários. Ainda hoje
os
seus jardins conservam os velhos coretos onde outrora as
bandas de
música tocavam. A própria universidade se encontra no meio
de um
parque. Franz, que acabara as aulas da manhã, saiu do
edifício. Dos
torniquetes das mangueiras jorrava uma poeira de água que se
espalhava em gotas minúsculas pelo relvado. Sentiase
extremamente
bemdisposto. Foi directamente da universidade a casa da
amiga que
morava apenas a algumas ruas de distância.
Ia frequentemente a casa dela, sempre como amigo e nunca
como amante. Se fizesse amor com ela no arelier, passaria no
mesmo
dia de uma mulher para outra, isto é, da esposa para a
amante e
viceversa. Como em Genebra marido e mulher dormem à
francesa,
na mesma cama, passaria portanto, num intervalo de× poucas
horas,
da cama de uma mulher para a de outra. Na sua opinião, isso
era
humilhar tanto a mulher como a amante e, em última análise,
era
humilharse a si próprio.
O amor que sentia pela mulher por quem se apaixonara há
uns
meses era algo de tão precioso que lhe arranjara
engenhosamente
um espaço autónomo, um território inacessível de pureza. As
universidades estrangeiras convidavamno frequentemente para
proferir
conferências; agora aceitava pressurosamente todos os
convites. Como não eram suficientes para justificar aos
olhos da mulher as suas
inúmeras viagens, completavaas com imaginários congressos e
colóquios. A amiga, que era dona e senhora do seu tempo,
acompanhavao. Fizeralhe assim descobrir num espaço de
tempo recorde várias cidades europeiãs e uma cidade
americana.
cnSe não tiveres nada em contrário, daqui por uns dez
dias podíamos ir a Palermo, disse.
Prefiro Genebra.>> De pé, diante de um cavalete, ela
examinava um quadro inacabado.
Franz tentou gracejar: nnComo é que se pode viver sem
conhecer
Palermo?
Já conheço Palermo, disse ela.
Como?, perguntoulhe, num tom quase ciumento.
Uma amiga minha mandoume um postal de lá. Coleio com
fitacola na casa de banho. Não reparaste?nn
Depois, acrescentou: nn Vou contarte a história de um
poeta do
começo do século. Estava muito velho e era o secretário que
o levava a passear. Um dia, este disselhe: "Levante a
cabeça, Mestre, e
veja! Olhe o primeiro aeroplano a passar por cima da cidade!
Posso muito bem imaginálo", replicou o Mestre, sem
levantar os
olhos. Ora muito bem! Também eu posso imaginar Palermo. Há
lá
exactamente os mesmos hotéis e os mesmos automóveis que nas
outras cidades. Ao menos, no meu atelier, os quadros são
sempre diferentes. nn
Franz ficou contrariado. Estava tão habituado à ligação
que havia entre a sua vida amorosa e as viagens que aquele
seu nnVamos a
Palermo!nn continha uma inequívoca mensagem erótica.
Responder
n"Prefiro Genebra!nn não podia querer dizer senão que à
amiga já
não lhe apetecia dormir com ele.
Como explicar esta falta de segurança perante a amante?
Não
tinha razão nenhuma para duvidar a tal ponto de si próprio!
Quem
dera os primeiros passos fora ela e não ele. Era um homem
interessante; estava no auge da sua carreira científica e os
colegas chegavam a temêlo pela altivez e obstinação com que
se engalfinhava nas
polémicas da especialidade. Então porque é que pensava todos
os
dias que a amiga ia deixálo?
Só posso explicálo dizendo que o amor estava para ele,
não no
prolongamento, mas nos antípodas da sua vida pública. O amor
era
para ele o desejo de abandonarse ao arbítrio e à mercê do
outro.
Quem se entrega ao outro como um soldado se deixa fazer
prisioneiro tem de despojarse previamente de todas as
armas. Vendose
sem defesas, não pode coibirse de estar sempre a pensar no
momento em que o golpe fatal será dado. Posso portanto dizer
que,
para Franz, amar era estar constantemente à espera do golpe
que
iria atingilo a qualquer minuto.
Enquanto assim se deixara invadir pela angústia, a amiga
poisara
os pincéis e saíra da sala. Voltou trazendo uma garrafa de
vinho.
Abriua em silêncio e encheu dois copos.
Franz sentiu um peso enorme a sairlhe do peito e achouse
ridículo. As palavras n<Prefiro Genebra!nn não significavam
que ela já
não queria fazer amor com ele mas, muito pelo contrário, que
estava farta de confinar os momentos de intimidade a breves
estadas em
cidades estrangeiras.
A amiga ergueu o copo e esvaziouo de um trago. Franz
imitoua. Embora tivesse ficado extremamente satisfeito por
constatar que
a recusa de ir a Palermo era, na realidade, um convite ao
amor,
sentiu, pouco depois, uma certa pena; a sua amiga decidira
infringir
a regra de pureza que ele introduzira na relação; não
entendia o
significado dos angustiados esforços que fazia para proteger
o amor
da banalidade e separálo radicalmente do lar conjugal.
Absterse de ir para a cama com a amante em Genebra era,
de
facto, uma punição que se infligia a si próprio para se
castigar de
ter casado com outra. Vivia esta situação como uma culpa ou
uma
tara. Da sua vida amorosa com a mulher não havia
praticamente
nada a dizer mas, apesar de tudo, sempre dormiam na mesma
cama.
O ressonar de um acordava o outro e os miasmas do corpo de
um
eram aspirados pelo nariz do outro. É evidente que teria
preferido
dormir sozinho, mas o leito conjugal continuava a ser o
símbolo do
casamento e, como é sabido, nos símbolos não se toca.
Sempre que se deitava ao lado da mulher, pensava na sua
amiga
a imaginálo a deitarse ao lado da mulher. Sempre que o
pensava
sentiase envergonhado com a ideia: era por isso que queria
criar a
maior distância possível entre a cama onde dormia com a
mulher e
a cama onde dormia com a amante.
Esta serviuse de outro copo, bebeu um golo e depois, sem
dizer
palavra, com uma estranha indiferença, como se Franz não
estivesse
lá, despiu lentamente a blusa. Comportavase como um aluno
de
arte dramática se comporta quando tem de fazer um exercício
de
improvisão para mostrarse tal e qual como é quando está
sozinho e
sem ninguém a ver.
Ficou de saia e de soutien. Depois (como se se lembrasse
de
repente que havia alguém na sala), olhou demoradamente para
Franz.
Era um olhar que o incomodava porque não o compreendia.
Entre todos os amantes estabelecemse rapidamente regras de
jogo inconscientes mas com força de lei que não devem,
portanto, ser
transgredidas. Este olhar escapava a essas regras; não tinha
nada de
parecido com os olhares e os gestos que ela costumava fazer
antes
de irem para a cama. Neste olhar não havia nem provocação
nem
coquetterie, mas antes uma espécie de interrogação. Só que
Franz
não fazia a mínima ideia da pergunta de que se tratava.
Ela despiu a saia. Agarrouo pela mão e fêlo rodopiar até
junto
de um grande espelho que, um pouco mais adiante, se
encontrava
encostado à parede. Sem lhe largar a mão, observavao no
espelho
com o mesmo olhar interrogativo de há pouco, que ia poisando
ora
nele, ora nela.
No chão, ao pé do espelho, havia um velho chapéu de coco
enfiado numa cabeça postiça. Baixouse, apanhouo e pôlo na
cabeça.
A imagem do espelho transformouse imediatamente: agora, era
a
imagem de uma mulher em nroupa interior, bela, inacessível,
fria,
com um chapéu de coco completamente despropositado na
cabeça.
Estava de mão dada com um senhor de fato cinzento e de
gravata.
Mais uma vez, sentiuse admirado por conhecer tão mal a
sua
amante. Não se tinha despido para convocálo ao amor, mas
para
lhe representar uma farsa bizarra, um happening íntimo só
para
dois. Fez um sorriso de compreensão e de assentimento.
Pensara que ela também lhe ia sorrir, mas enganouse.
Continuou de mão dada com ele a olhar ora para a imagem de
um, ora
para a imagem de outro.
A duração do happening estava a ultrapassar os limites do
razoável. Franz sentia que a farsa (embora, tinha que
admitilo, encantadora) se prolongava um pouco de mais.
Pegou delicadamente com
dois dedos no chapéu de coco, tirouo a sorrir da cabeça de
Sabina
e voltou a pôlo no suporte. Era como apagar os bigodes
feitos por
um miúdo rabino na imagem da Virgem Maria.
Sabina ainda continuou imóvel a olharse ao espelho
durante
mais alguns segundos. Depois, Franz cobriua ternamente de
beijos.
Pediulhe mais uma vez que o acompanhasse a Palerroo daí a
uns
dez dias. Desta vez, ela anuiu sem rodeios e Franz foise
embora.
Recuperara o bom humor. Genebra, que toda a vida apelidara
de metrópole do tédio, parecialhe bela e cheia de
aventuras. Voltouse para trás e olhou para cima, para a
varanda envidraçada do
atelier. Eram as últimas semanas da Primavera, estava calor,
todas
as janelas tinham toldos às riscas. Franz chegou a um
jardim; ao
longe, por cima das árvores, pairavam as cúpulas douradas da
igreja
ortodoxa, como balas de canhão rutilantes imobilizadas nas
alturas
por uma força invisível que as tivesse retido antes do
impacto. Era
muito bonito. Franz dirigiuse ao cais para apanhar um barco
que o
levaria à margem direita onde a sua casa ficava.
Sabina ficou só. Voltou a instalarse à frente do espelho.
Continuava em roupa interior. Tornou a pôr o chapéu de coco
e passou
um bom bocado a examinarse ao espelho. Era espantoso que,
ao
fim de tanto tempo, ainda se sentisse perseguida pelo mesmo
instante perdido!
Há vários anos, uma vez que Tomas viera a sua casa, ficara
cativado com o chapéu de coco. Puserao na cabeça e postara
se à frente do grande espelho que, no estúdio de Praga,
também estava encostado à parede. Queria ver a figura que
faria se tivesse sido presidente da câmara de uma
cidadezinha no século passado. Depois,
quando Sabina começou vagarosamente a despirsé, pôslhe o
chapéu de coco na cabeça. Encontravamse de pé à frente do
espelho.
Era sempre aí que se despiam e espiavam as suas imagens.
Sabina
estava em roupa interior com o chapéu de coco na cabeça. De
repente, percebeu que estavam ambos excitados com o quadro.
Como era isso possível, se apenas alguns momentos antes o
único efeito que o chapéu de coco tinha na sua cabeça era o
de uma
simples brincadeira'? Do cómico ao excitante, não haveria
então senão um passo?
Sim, era isso mesmo. Quando olhou para o espelho, primeiro
não viu senão uma situação burlesca; mas, depois, o cómico
foi afogado pela excitação: o chapéu de coco deixara de
funcionar como
um gag e passara a significar violência; violência sobre
Sabina, sobre
a sua dignidade de mulher. Viase a si própria com as pernas
nuas e
as cuecas quase transparentes através das quais o triângulo
do sexo
se lhe apercebia. A roupa interior sublinhava o encanto da
sua feminilidade; o chapéu, masculino, de feltro rígido,
negavaa, violavaa, ridicularizavaa. Tomas encontravase a
seu lado, todo vestido, o
que contribuía para que a cena que se lhes ia descobrindo
aos dois
no espelho não se revelasse, afinal, como um gag (para isso
ele
também teria de estar em roupa interior e de chapéu), mas
como
uma cena de humilhação. Em vez de rejeitála, Sabina
representavaa, provocante e orgulhosa, como se se deixasse
violar em público;
por fim, quando já não podia mais, empurrou Tomas e
arrastouo
consigo para o chão. O chapéu de coco rolou para baixo da
mesa
enquanto os seus corpos se contorciam na carpete aos pés do
espelho.
Voltemos uma vez mais a esse chapéu de coco.
Em primeiro lugar, era uma vaga recordação deixada por um
antepassado esquecido que fora presidente da câmara de uma
cidadezinha da Boémia no século passado.
Em segundo lugar, o chapéu pertencera ao pai de Sabina.
Depois do enterro, o irmão apropriarase de tudo quanto era
dos pais
e, por orgulho, ela recusarase obstinadamente a lutar pelos
seus
direitos. Tinha declarado em tom sarcástico que ficava com o
chapéu de coco, a única coisa que queria herdar do pai.
Em terceiro lugar, era o acessório dos seus jogos eróticos
com
Tomas.
Em quarto lugar, era o símbolo de uma originalidade que
cultivava deliberadamente. Quando emigrara, não pudera
trazer grande
coisa e, para transportar esse objecto incómodo e sem
utilidade
nenhuma, tivera de renunciar a outras coisas bem mais úteis.
Em quinto lugar, o chapéu de coco tornarase um objecto
sentimental desde que vivia no estrangeiro. Quando fora ver
Tomas a
Zurique, levarao e puserao na cabeça para lhe abrir a
porta do
quarto do hotel. Algo de inesperado acontecera então. O
chapéu de
coco já não lhes pareceu nem cómico nem excitante; tornara
se um
vestígio do passado. Ficaram ambos comovidos. Fizeram amor
como
nunca tinham feito: não havia lugar para qualquer jogo
obsceno,
porque aquele encontro não era o prolongamento dos jogos
eróticos
de outrora, onde havia sempre mais um vício a inventar, mas
uma
recapitulação do tempo, um hino à memória do passado dos
dois, a
recapitulação sentimental de uma história nada sentimental
que se
perdia na noite dos tempos.
O chapéu de coco tornarase o tema da partitura musical
que a
vida de Sabina era. Um tema que estava constantemente a
repetirse, mas sempre com uma significação diferente; todas
passavam pelo chapéu de coco como a água pelo leito de um
rio. E, posso dizêlo, era bem o leito do rio de Heraclito:
cnNão nos banhamos duas
vezes nas águas do mesmo rio!nn O chapéu de coco era o
leito de
um rio e o que Sabina via correr era sempre outro rio, outro
rio
semântico: o mesmo objecto suscitava sempre outra
significação, mas
nessa significação repercutiamse (como um eco, como um
cortejo
de ecos) todas as significações anteriores. O vivido ia
ressoando com
uma harmonia cada vez mais rica. Em Zurique, no quarto do
hotel,
comoveramse com o chapéu de coco e fizeram amor quase à
beira
das lágrimas porque aquela coisa preta não era apenas uma
recordação dos seus jogos amorosos, era também um rasto do
pai de Sabina
e do seu avô, que vivera no tempo em que não havia nem
automóveis nem aviões.
Sem dúvida que se percebe agora melhor o abismo que
separava
Sabins de Franz: enquanto falavam das suas vidas um ao
outro,
escutavamse com uma grande avidez. Compreendiam com toda a
exactidão o sentido lógico das palavras do outro, mas não
ouviam o
murmúrio do rio semântico que corria através dessas
palavras.
Por isso Franz se sentiu incomodado como se estivessem a
falarlhe numa língua desconhecida quando Sabina pôs o
chapéu de coco
na cabeça à sua frente. Não via nada de obsceno nem de
sentimental no gesto, era apenas um gesto incompreensível
que o desconcertava pela sua falta de significação.
Enquanto as pessoas são novas e as partituras musicais das
suas
vidas ainda só vão nos primeiros compassos, podem compôlas
em
conjunto e até trocarem temas (como Tomas e Sabina trocaram
o
tema do chapéu de coco). Porém, quando se conhecem numa
idade
mais madura, as suas partituras musicais já estão mais ou
menos
acabadas e cada palavra, cada objecto, tem um significado
diferente
na partitura de cada uma.
Se eu recapitulasse todas as conversas que Sabina e Franz
tiveram, a lista dos seus malentendidos dava um dicionário
bem volumoso. Mas contentemonos com um pequeno léxico.
3
Pequeno léxico de palavras mal entendidas (primeira parte)
MULHER
Para Sabina, o facto de ser mulher é uma condição que não
escolheu. O que não é efeito de uma escolha não pode ser
considerado como mérito ou como fracasso. Sabina pensa que,
face a um
estado que nos é imposto, temos de saber adoptar a melhor
atitude
possível. Parecelhe tão absurdo insurgirse contra o facto
de ter
nascido mulher como glorificarse com ele.
Numa das primeiras vezes em que estiveram juntos, Franz
disselhe, com uma estranha entoação: "Sabina, você é uma
mulher. nn
Não percebeu por que é que ele lhe estava a dar essa notícia
com
tanta solenidade como um Cristóvão Colombo que acabasse de
divisar a costa da América. Só mais tarde veio a compreender
que a
palavra mulher, que Franz pronunciava com um ênfase
especial, não
era para ele a designação de um dos dois sexos da espécie
humana,
mas um valor. Nem todas as mulheres mereciam ser chamadas
mulheres.
Mas se, para Franz, Sabina é a mulher, o que será então
MarieClaude, a sua esposa legítima? Uns vinte anos antes
(conheciamse
na altura há alguns meses), esta ameaçara suicidarse se ele
a deixasse. Franz ficara maravilhado com a ameaça. Não
gostava por aí
além de MarieClaude, mas o amor dela pareceulhe sublime.
Achavase indigno de um tão grande amor e sentiu que devia
curvarse humildemente perante ele.
Curvarase, portanto, até ao chão, e casarase com ela. E
embora MarieClaude nunca mais lhe tivesse manifestado a
mesma intensidade de sentimentos que mostrara quando
ameaçara suicidarse,
continuava a sentir, bem lá no fundo, o imperativo de nunca
fazer
mal a MarieClaude e respeitar sempre a mulher que havia
nela.
Esta frase é curiosa. Não pensava: respeitar MarieClaude,
mas:
respeitar a mulher que havia em MarieClaude.
Só que, sendo MarieClaude uma mulher, quem será essa
outra
mulher que se oculta dentro dela e que ele tem de respeitar?
Não
será a ideia platónica de mulher?
Não. Essa mulher é a sua mãe. Nunca lhe passaria pela
cabeça
dizer que o que respeitava na mãe era a mulher. Adorava a
mãe,
não uma mulher qualquer que se ocultasse dentro dela. A
ideia platónica de mulher e a sua mãe são uma e a mesma
coisa.
Franz tinha mais ou menos doze anos quando a mãe ficara
sozinha com ele, porque um dia, inesperadamente, o pai
tinhase ido
embora. Franz suspeitou que estava a passarse qualquer
coisa de
grave, mas a mãe disfarçou o drama com uma conversa neutra e
ponderada para não traumatizar o filho. Foi nesse dia que,
ao saírem de casa para dar uma volta pela cidade, Franz
percebeu que a
mãe tinha dois sapatos desemparceirados. Ficou aflito e quis
prevenila, mas teve medo de magoála. Passou duas horas com
ela na
rua sem conseguir despregar os olhos dos seus pés. Foi então
que
começou a fazer uma ideia do que devia ser o sofrimento.
A EIDELIDADE E A TRAlÇÀO
Amaraa desde a infância até ao dia em que a acompanhara
ao
cemitério, e ainda continuava a amála em recordações. Por
isso
pensava que a fidelidade é a virtude mais importante, que é
a fidelidade que dá unidade à nossa vida, que, sem ela, se
dispersaria em
mil e uma impressões fugidias.
Talvez por um cálculo inconsciente, Franz falava
frequentemente
da mãe a Sabina: supunha que ela ficaria seduzida com a sua
aptidão para a fidelidade, o que era uma boa maneira de
guardála ao
pé de si.
Só que o que seduzia Sabina era a traição e não a
fidelidade.
A palavra fidelidade fazialhe lembrar o pai, provinciano
puritano e
pintor de domingo; os seus temas predilectos eram os pores
do Sol
atrás da floresta e as jarras com ramos de rosas. Graças a
ele, começou a desenhar muito cedo. Aos catorze anos,
apaixonouse por
um rapaz da sua idade. O pai teve medo e proibiua de sair
sozinha
durante um ano. Um dia mostroulhe algumas reproduções de
pinturas de Picasso e fez muita troça delas. Sabina então
pensou que, já
que não podia amar um rapaz da sua idade, ao menos podia
apaixonarse pelo cubismo. Depois de acabar o liceu, foi
estudar para
Praga com a reconfortante impressão de poder finalmente
começar a
trair a família.
A traição. Desde crianças que ouvimos os nossos pais e os
nossos professores repetir que é a coisa mais abominável que
pode
ser concebida. Mas o que é trair? Trair é sair da fila e
partir em
direcção ao desconhecido. Para Sabina não há nada mais belo
do
que partir para o desconhecido.
Inscreveuse na escola de BelasArtes, mas lá não lhe era
permitido pintar à maneira de Picasso. Nessa altura, era
obrigatório praticar aquilo a que chamavam realismo
socialista e as BelasArtes
eram uma fábrica de produzir retratos dos chefes de Estado
comunistas em série. Não podia satisfazer o seu desejo de
trair o pai
porque o comunismo não era senão outro pai, igualmente
severo e
limitado, que lhe proibia não só o amor (era uma época de
puritanismo) como também Picasso. Casouse com um actor
medíocre de
Praga, unicamente pela sua reputação de excêntrico e por ser
totalmente inaceitável aos olhos dos seus dois pais.
Depois, a mãe morreu. No dia seguinte, ao voltar a Praga
depois
do enterro, recebeu um telegrama: o pai matarase com o
desgosto.
Ficou cheia de remorsos: era assim tão mau o pai pintar
jarras
com rosas e não gostar de Picasso? Era assim tão censurável
ter
medo que a filha engravidasse aos catorze anos? Era assim
tão ridículo não ter conseguido viver sem a mulher?
Encontravase de novo prisioneira do desejo de trair:
tratavase
agora de trair a sua traição original. Anunciou ao marido
(tinha deixado de ver o excêntrico para só se sentir
incomodada pelo bêbado)
que ia deixálo.
Mas não se trai B., por causa de quem se traiu A., para
nos
irmos reconciliar com A. Depois do divórcio, a vida da
pintora não
passou a assemelharse em nada à vida dos pais que traíra. A
primeira traição é irreparável. Por reacção em cadeia,
provoca outras
reacções que fazem a pessoa afastarse cada vez mais do
ponto da
traição inicial.
A MÚSICA
Para Franz, é a arte que se encontra mais perto da beleza
dionisíaca concebida como embriaguez. Dificilmente perdemos
o controlo
com um romance ou. com um quadro, mas podemos embebedarmo
nos com a Nona Sinfonia de Beethoven, com a Sonata para Dois
Pianos e Percussão de Banok e com uma canção dos Beatles.
Franz
não faz qualquer distinção entre música erudita e música
ligeira.
Parecelhe uma distinção hipócrita e anacrónica. Gosta da
mesma
maneira de Mozart e de rock.
Para ele, a música é libertadora: libertao da solidão e
da clausura, libertao da poeira das bibliotecas e abrelhe
portas no corpo por
onde a alma pode sair e confraternizar. Gosta de dançar e
tem pena
que Sabina não partilhe essa sua paixão.
Estão a jantar no restaurante do hotel e os altifalantes
acompanham a refeição com música barulhenta e ritmada.
Sabina diz: nnÉ um círculo vicioso. As pessoas estão a
ficar
surdas porque põem a música cada vez mais alto. Mas como
estão a
ficar surdas, o único remédio que têm é voltar a aumentar o
som.
Tu não gostas de música?, pergunta Franz.
Nãonn, responde Sabina. Depois acrescenta: nnTalvez se
tivesse
vivido noutros tempos...nn e fica a pensar na época de João
Sebastião
Bach, quando a música parecia uma rosa aberta na imensa
planície
nevada do silêncio.
Sob a máscara da música, o ruído perseguea desde muito
nova.
Quando andava a estudar em BelasAnes, era obrigada a passar
as
férias nos Estaleiros da Juventude, como então se dizia. Os
jovens
ficavam alojados em barracões colectivos e tinham que
trabalhar na
construção de altosfornos. Das cinco da manhã às nove da
noite, os
altifalantes vomitavam música em altos berros. Davalhe
vontade de
chorar, mas a música era alegre e não se lhe podia escapar
em sítio
nenhum, nem na casa de banho nem na cama, nem mesmo debaixo
dos cobertores, porque havia altifalantes por toda a parte.
A música
era como uma matilha de cães a perseguila.
Pensava nessa altura que o universo comunista era o único
onde
essa barbárie da música reinava. No estrangeiro, acabara por
constatar que a transformação da música em ruído é um
processo planetário, que faz a humanidade entrar na fase
histórica da fealdade total.
A fealdade absoluta começou por manifestarse através da
omnipresença da fealdade acústica: carros, motorizadas,
guitarras eléctricas, escavadoras, altifalantes, sirenes.
Não tardará a seguirse a omnipresença da fealdade visual.
Jantaram, subiram ao quarto, fizeram amor. A seguir, quase
a
nadormecer, as ideias começaram a baralharse na cabeça de
Franz.
Lembrouse da música barulhenta do restaurante e pensou:
nnO ruído tem uma vantagem. É que as palavras não se
ouvem.nn Desde a
juventude não fizera outra coisa senão falar, escrever, dar
aulas, inventar frases, procurar fórmulas, corrigilas, de
tal maneira que as
palavras já não tinham nada de exacto, o sentido esbatiase
lhes,
perdiam o conteúdo e só ficavam migalhas, moinhas, poeira,
areia
que lhe flutuava no cérebro e lhe fazia dor de cabeça, que
era a sua
insónia, a sua doença. Apeteceulhe então, confusa e
irresistivelmente, uma música enorme, um ruído absoluto, uma
barulheira
infernal que se espalhasse sobre todas as coisas, inundasse
tudo,
abafasse tudo, onde a dor, a vaidade e a mesquinhez das
palavras
perecessem para todo sempre. A música era a negação das
frases, a
música era a antipalavra! Apetecialhe ficar enlaçado para
sempre
com Sabina, apetecialhe calarse, nunca mais pronunciar
palavra e
deixar o prazer confluir no clamor orgiástico da música. Foi
nessa
bemaventurada barulheira que adormeceu.
.n LL'Z E A OBS(nURIDADE
Para Sabina, viver significa ver. A visão encontrase
limitada por
duas fronteiras: uma luz de tal modo intensa que nos cega e
uma
obscuridade total. Talvez seja daí que lhe vem a repugnância
por
todos os extremismos. Os extremos marcam a fronteira para lá
da
qual não há vida, e, tanto em arte como em política, a
paixão do
extremismo é um desejo de morte disfarçado.
Para Franz, a palavra luz não evoca a imagem de uma
paisagem
suavemente iluminada pelo sol, mas a fonte da luz enquanto
tal:
uma lâmpada, um projector. Vêmlhe à cabeça as metáforas
habituais: o sol da verdade, o brilho da razão, etc.
É atraído pela luz como também o é pela obscuridade. Nos
dias
que correm, quem apaga a luz para fazer amor arriscase a
cair no
ridículo; como ele tem consciência disso, deixa sempre uma
luzinha
acesa por cima 'da cama. No entanto, no momento em que
penetra
em Sabina, fecha os olhos. A volúpia que o invade exige a
obscuridade. Uma obscuridade pura, absoluta, sem imagens nem
visões,
uma obscuridade sem fim, sem fronteiras, uma obscuridade que
é u
infinito que cada um de nós tem em si (sim, porque quem
busca o
infinito só tem .de fechar os olhos!).
No momento em que sente a volúpia espalharselhe pelo
corpo,
Franz dissolvese no infinito da sua obscuridade, ele
próprio se
transforma em infinito. Mas quanto mais um homem cresce na
sua
obscuridade interior, mais diminuído fica na sua aparência
física.
Um homem de olhos fechados não é senão um rebotalho de si
próprio. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha
os olhos.
Para ela, a obscuridade não é o infinito. Fecha os olhos
porque quer
separarse do que está a ver, porque quer negálo. Recusase
a ver.
Sabina deixarase convencer a ir a uma reunião de
compatriotas
seus. Uma vez mais, os presentes acabaram por pôrse a
discutir se
os checos deviam ou não ter lutado contra os russos de armas
na
mão. Claro que ali, ao abrigo da emigração, toda a gente
proclamáva que sim. Sabina perguntou: Então porque é que
não voltam
para lá e lutam contra eles?nn
Não era coisa que se perguntasse. Um senhor de cabeleira
grisalha, frisada no cabeleireiro, apontoulhe o seu enorme
indicador e
disse: Não diga uma coisa dessas. Somos todos responsáveis
pelo
que se passou. Você também. O que é que você fazia no nosso
país
para lutar contra o regime comunista? Pintava os seus
quadros e
davase por muito satisfeita...nn
Nos países comunistas, a inspecção e o controlo dos
cidadãos são
actividades sociais permanentes e essenciais. Um pintor,
para ser autorizado a expor, um simples cidadão, para obter
um visto para
passar férias à beiramar, um futebolista, para poder jogar
na selecção nacional, têm primeiro que recolher os mais
variados relatórios
e certificados (da porteira, dos colegas, da polícia, da
célula do
partido, do comité da empresa), que depois são amontoados,
sopesados, lidos e relidos por funcionários especialmente
afectos a essa tarefa. O que vem escrito nos atestados não
tem absolutamente nada
a ver com a competência de um cidadão para pintar ou jogar à
bola
ou com um estado de saúde que exija uma estada à beiramar.
Só
contêm informações a respeito de uma coisa que é o chamado
perfil políticonn do cidadão (aquilo que o cidadão diz,
aquilo que
pensa, a maneira como se comporta, se vai ou não às reuniões
e aos
desfiles do 1.o de Maio). Como tudo (vida quotidiana,
empréstimos,
férias) depende da forma como se é classificado, todos os
cidadãos
são obrigados (para poderem jogar na selecção nacional,
expor os
seus quadros ou passar férias à beiramar) a comportarse
de maneira a serem bem classificados.
Era isto que Sabina pensava enquanto o senhor de cabelos
grisa lhos falava. Ele estavase bem nas tintas para que os
seus compatriotas jogassem bem futebol ou tivessem talento
para pintar (nunca
nenhum checo se interessara pela sua pintura). Só tinha
uma preocupação: apurar se eram opositores activos ou
passivos, opositores
da primeira ou da última hora, opositores a sério ou só
para dar
bom aspecto.
Como era pintora, Sabina tornarase uma boa fisionomista e
Í aprendera em Praga a distinguir os homens com a paixão de
inspeccionar e classificar os outros. Tinham todos um
indicador um
pouco mais comprido do que o dedo médio e todos o
apontavam
aos seus interlocutores. Aliás, o presidente Novotny, que
reinou catorze anos seguidos na Boémia até 1968, tinha
exactamente os
, mesmos cabelos grisalhos frisados no cabeleireiro e podia
orgulhar se de possuir o maior indicador de todos os
habitantes da Europa
Central.
Quando o emérito emigrante ouviu da boca daquela pintora,
cujos quadros nunca vira, que era parecido com o
presidente comunista Novotny, corou, empalideceu, voltou a
corar, voltou a empalidecer, quis dizer qualquer coisa, não
disse nada e acabou por cair
num profundo silêncio. Todos os presentes fizeram o mesmo
e Sabina acabou por levantarse e sair.
Sentiase penalizada, mas, uma vez na rua, pôsse a
pensar: no
fundo, porque é que tinha de conviver com checos? O que é
que
tinha em comum com eles? Uma paisagem? Se ainda há pouco
alguém lhes tivesse perguntado o que é que a palavra Boémia
significava para eles, de certeza que perante os seus olhos
se desenhariam
imagens totalmente díspares e sem unidade nenhuma.
A cultura? Mas o que é a cultura? A música? Dvorak e
Janacek? Claro que sim. Mas se houver um checo que não gosta
de
música? A identidade checa desvanecese imediatamente.
Os grandes homens? Jan Hus? Aquela gente nunca lera uma
linha dos seus livros. A única coisa que era acessível a
todos era a
fogueira, a glória da fogueira onde ardera por ser herege,
a glória
das cinzas em que se transformara, de forma que, pensava
Sabina,
para eles a essência da alma checa não era senão um
pequeno
monte de cinzas e nada mais. Aquela gente só tinha em
comum a
derrota e as recriminações que faziam uns aos outros.
Caminhava depressa. Mais do que a discussão com os
emigrantes, o que a perturbava eram os seus próprios
pensamentos. Sabia que estava a ser injusta. Sabia que havia
mais checos para além
daquele tipo do indicador desmesurado. O silêncio e o mal
estar que
se tinham seguido às suas palavras não significavam de forma
nenhuma que toda a assistência a reprovasse. As pessoas
tinham ficado com certeza desconcertadas com aquela irrupção
do ódio, com
aquela incompreensão de que todos se tornam vítimas na
emigração.
Porque não lhe inspiravam então piedade nenhuma? Porque não
os
olhava então como pobres criaturas infelizes e abandonadas?
Sabemos já qual é a resposta para estas perguntas: quando
Sabina traíra o pai, a vida abrirase à sua frente como um
longo caminho de traições e cada nova traição a atrai como
um vício e como
uma vitória. Não quer ficar na fila e não fica mesmo! Não
ficará
para sempre na mesma fila com as mesmas pessoas e com as
mesmas palavras! Por isso é que se sente perturbada com a
sua própria
injustiça. Mas não é uma perturbação desagradável, muito
pelo contrário, tem a impressão de ter alcançado uma vitória
e de estar a ser
aplaudida por uma personagem invisível.
Mas, dentro em pouco, a embriaguez cedeu o lugar à
angústia.
Um dia haveria de chegar ao fim do caminho! Um dia haveria
de
acabar com as traições! Um dia haveria de parar de uma vez
por
todas!
Era de noite e caminhava apressadamente pelo cais da
estação.
O comboio para Amesterdão já estava formado. Pôsse à
procura da
carruagem. Foi conduzida até à porta do compartimento por um
revisor bem simpático. Abriua. Franz estava sentado em cima
da cama, que tinha os cobertores puxados. Levantouse para
acolhêla;
agarrouse a ele e cobriuo de beijos.
Sentia uma vontade terrível de lhe dizer, como a mulher
mais
banal: não me abandones, deixame ficar ao pé de ti,
subjugame, sê
forte!
Quando Franz se libertou, apenas lhe disse: cnEstou tão
contente
por estar contigo!nn A sua discrição habitual não a deixou
dizer mais
nada.
Pequeno léxico de palavras mal entendidas (continuação)
OS DESFILES
Em Itália ou em França, o problema é fácil de resolver.
Quando
os pais obrigam os filhos a ir à igreja, os filhos vingamse
e
inscrevemse num partido (comunista, trotskista, maoísta,
etc.). Só
que o pai de Sabina começou por mandála à igreja e a
seguir,
cheio de medo, obrigoua a aderir à Juventude Comunista.
Nos desfiles do 1.o de Maio nunca conseguia acertar o
passo e a
rapariga de trás passava o tempo todo a insultála e a
pisarlhe os
calcanhares. Quando era preciso cantar, nunca sabia a letra
das canções, abria e fechava a boca como os actores do
cinema mudo. Os
colegas perceberam e denunciaramna. Desde a juventude que
tinha
horror aos desfiles.
Franz estudara em Paris e, como era excepcionalmente
dotado,
já aos vinte anos tinha a sua carreira científica
assegurada. A partir
dessa altura, sempre soube que havia de passar a vida
fechado entre
as paredes de um gabinete universitário, de algumas
bibliotecas
públicas e de dois ou três anfiteatros; só de pensar nisso
ficava abafado. Davalhe vontade de sair dessa sua vida como
nos dá vontade
de sair de casa para ir à rua tomar ar.
Ainda morava em Paris e ia de bom grado às manifestações.
Fazialhe bem ir comemorar qualquer coisa, reivindicar
qualquer
coisa, protestar contra qualquer coisa, não ficar sozinho,
ir para a
rua para o meio de outras pessoas. As manifestações que
percorriam
o Boulevard SaintGermain ou iam da République à Bastilha
fascinavamno. A multidão em marcha, gritando ritmicamente
os
seus slogans, era para ele a imagem da Europa e da sua
história.
A Europa é uma Grande Marcha. Uma Marcha de revolução em
revolução, de combate em combate, sempre cada vez mais para
a
frente.
Posso talvez dizêlo de outra maneira: para Franz, a vida
no
meio dos livros era uma vida irreal. Aspirava à vida real,
ao contacto com outros homens e outras mulheres a marcharem
lado a lado
com ele, aspirava ao seu clamor. Não se dava conta de que
aquilo
que julgava irreal (o seu trabalho no isolamento das
bibliotecas) era
a sua vida real, enquanto as manifestações que tomava pela
realidade não passavam de um espectáculo teatral, de uma
dança, de uma
festa, ou, por outras palavras, de um sonho.
Enquanto estudante, Sabina morava numa residência
universitária. No 1.o de Maio, eram todos obrigados a estar
de madrugada
nos pontos de concentração. Para que ninguém pudesse faltar,
alguns estudantes, militantes remunerados, iam verificar se
a residência tinha ficado completamente vazia. Sabina
escondiase na casa de
banho e só voltava para o quarto muito tempo depois de se
terem
ido todos embora. Reinava então um silêncio como nunca
conhecera
em dias da sua vida. Muito ao longe, ouviase a música de
uma
marcha. Era como estar escondida dentro de uma concha e
ouvir ao
longe a ressaca de um universo hostil.
Dois anos depois de ter deixado a Boémia, encontravase
por
mero acaso em Paris no dia do aniversário da invasão russa.
Havia
uma manifestação de protesto a que não pôde deixar de ir.
Jovens
franceses de punho erguido berravam palavras de ordem contra
o
imperialismo soviético. Eram palavras de ordem que lhe
agradavam,
mas constatou com surpresa que era incapaz de as gritar em
uníssono com os outros. Só conseguiu aguentar a manifestação
durante
alguns minutos.
Contou esta experiência a uns amigos franceses.
Espantados, estes perguntaramlhe: nnMas então tu não
queres lutar contra a
ocupação do teu país?nn O que tinha vontade de lhes dizer
era que o
comunismo, o fascismo, todas as ocupações e todas as
invasões ocultam o mesmo mal fundamental e universal; para
ela, a imagem
desse mal eram as manifestações com gente a desfilar de
braço erguido e a gritar em uníssono as mesmas sílabas. Mas
sabia que não
poderia explicar isso aos seus amigos. Sentiuse aborrecida
e preferiu passar a outro assunto.
A BÈLEZA DE NOVA IOR()UE
Passavam horas a andar a pé em Nova Iorque: como se
seguissem por um caminho sinuoso numa paisagem montanhosa e
fascinante, o espectáculo alteravase a cada passo: no meio
do passeio,
havia um rapaz ajoelhado a rezar; a dois passos dele,
encostada a
uma árvore, uma negra belíssima passava pelo sono; um homem
de
fato preto atravessava a rua a gesticular como se dirigisse
uma orquestra invisível; a água caía nas bacias de um
fontanário; mesmo
ao lado, estavam uns operários sentados a almoçar.
Escadarias metálicas trepavam pelas fachadas das casas de
tijolo encarnado, casas
que, de tão feias, até chegavam a parecer bonitas; mesmo ao
lado,
erguiase um gigantesco arranhacéus de vidro por detrás do
qual
havia outro arranhacéus que culminava num palaciozinho
árabe
com torres, galerias e colunas douradas.
Era como as suas pinturas: nelas também havia coisas sem
relação nenhuma umas ao lado das outras: altosfornos em
construção
e, ao fundo, um candeeiro de petróleo; ou ainda mais outro
candeeiro com o abat jour antiquado de vidro pintado
pulverizado em
pequenos fragmentos e, ao fundo, uma paisagem pantanosa e
desolada.
Franz disse: nnNa Europa, a beleza foi sempre
premeditada. Havia sempre uma intenção estética e um
projecto de grande fôlego;
uma catedral gótica ou uma cidade renascentista que
obedecessem a
esse projecto demoravam séculos a construir. A beleza da
Nova
Iorque tem uma origem completamente diferente. É uma beleza
involuntária. Nasceu sem que houvesse qualquer intenção por
parte do
homem, um pouco como uma gruta de estalactites. Formas que,
isoladas, são horrorosas, encontramse aqui umas ao lado das
outras
numa vizinhança perfeitamente improvável, que
inesperadamente as
faz brilhar, com uma poesia mágica.nn
Sabina disse: nnA beleza involuntária. Claro. Mas também
podia
dizerse: a beleza por engano. Antes de deixar
definitivamente o
mundo, a beleza ainda háde subsistir alguns instantes, mas
por
engano. A beleza por engano é o último estádio da história
da beleza. nn
Estava a pensar no seu primeiro quadro verdadeiramente bem
conseguido; tinhalhe escorrido tinta por cima por engano.
Sim, os
seus quadros eram construídos a partir da beleza por engano
e Nova
Iorque era a verdadeira e secreta pátria da sua pintura.
Franz disse: nnTalvez a beleza involuntária de Nova
Iorque seja
muito mais rica e muito mais variada do que a beleza
demasiado
austera e elaborada resultante de um projecto humano. Mas já
não
é a nossa beleza europeia. É um mundo estranho.nn
Mas como? Afinal, sempre concordam com alguma coisa?
Não. Também aqui há uma diferença. A estranheza da beleza
noviorquina atrai loucamente Sabina. A Franz, fascinao,
mas, ao
mesmo tempo, assustao: dálhe saudades da Europa.
A PÁTRIA DE SABINA
Sabina compreende bem as suas reticências em relação à
América. Franz é a encarnação da Europa: a mãe era
originária de Viena
e o pai era francês. Franz, esse, é suíço.
Em contrapartida, Franz sente uma grande admiração pela
pátria
de Sabina. Quando ela fala do seu passado e dos seus
amigos da
Boémia e as palavras prisão, perseguição, tanques na rua,
emigração, pantletos, literatura proibida, exposições
proibidas são pronunciadas, sente uma inveja estranha e
mesclada de nostalgia.
Confessa a Sabina: "Um dia, um filósofo escreveu que todas
as
minhas teses eram meras especulações impossíveis de
demonstrar e
qualificoume como "um Sócrates quase inverosímil". Sentime
terrivelmente humilhado e respondilhe com toda a violência.
Imagina tu
que este episódio grotesco é o conflito mais grave que vivi
em toda
a minha vida! Foi assim que a minha vida me revelou o máximo
das
suas potencialidades dramáticas! Tu e eu não vivemos na
mesma
escala. Apareceste na minha vida como Gulliver no país dos
liliputianos. nn
Sabina põese a protestar. Diz que os conflitos, os
dramas, as
tragédias não significam absolutamente nada, não têm valor
nenhum,
não merecem nem respeito nem admiração. O que toda a gente
pode invejar a Franz é a paz que tem para trabalhar.
Franz abana a cabeça: nnNuma sociedade rica, as pessoas
não têm
necessidade de trabalhar com as mãos e podem consagrarse a
uma
actividade intelectual. Há cada vez mais universidades e
cada vez
mais estudantes. Estes, para obterem os seus canudos,
primeiro têm
que fazer uma tese sobre um dado tema. E não é difícil
arranjar um
tema, porque basta glosar o que já foi dito. E como tudo
pode ser
glosado, há um número infinito de temas. E assim, cada vez
há mais
e mais resmas de papel enegrecido amontoadas em arquivos
ainda
mais tristes do que cemitérios, porque ninguém lá entra, nem
mesmo no dia de Todos os Santos. A cultura está a
desaparecer
numa infinidade de produtos, numa avalanche de letras, na
demência da quantidade. Acredita em mim: um único livro
proibido no teu
antigo país tem um significado infinitamente maior do que os
milhões de palavras escarrados pelas nossas
universidades.nn
É neste sentido que a fraqueza de Franz por todas as
revoluções
pode ser entendida. Primeiro simpatizara com Cuba, depois
com a
China e a seguir, desgostado com a crueldade dos seus
regimes, acabou por admitir que não lhe restava senão esse
oceano de letras que
não pesam nada e não são a vida. Foi ensinar para a
Universidade
de Genebra (onde não há manifestações) e, com uma espécie
de
abnegação (numa solidão de onde mulheres e manifestações
estavam
, afastadas), publicou várias obras científicas que tiveram
uma certa
repercussão. Depois, um dia, Sabina surgiu como uma
aparição; vinha de um país onde as ilusões revolucionárias
tinham murchado há
muito, mas onde subsistia aquilo que ele mais admirava nas
revoluções: uma vida vivida à escala grandiosa do risco, da
coragem e da
proximidade com a morte. Sabina devolveulhe a confiança
que tinha outrora na grandeza do destino da humanidade. A
sua silhueta
recortavase sobre o drama de um país e, para ele, ela
ainda era
mais bela por causa disso.
Mas, aí!, infelizmente, Sabina não vê esse drama com bons
olhos. Para ela, as palavras prisão, perseguição, livro
proibido,
ocupação, blindado, não são senão palavras feias e sem
romantismo
nenhum. A única palavra que lhe retine suavemente aos
ouvidos
como a lembrança nostálgica do seu país é a palavra
cemitério.
O CEMlTÉRlO
Os cemitérios da Boémia parecem jardins. Têm as campas
cobertas de relva e de flores de cores garridas e os seus
humildes jazigos
espreitam por entre a verdura da folhagem. À noite, o
cemitério fica
I
cheio de velinhas acesas como se os mortos estivessem a
dar um
baile infantil. Um baile infantil, sim, porque os mortos
são inocentes
como crianças. Por muito cruel que a vida seja, reina
sempre a
mesma serenidade no cemitério. Mesmo durante a guerra,
mesmo
no tempo de Hitler, mesmo no tempo de Estaline, mesmo sob
qual quer outra ocupação. Quando se sentia triste, pegava
no automóvel
e ia para fora de Praga dar uma volta num dos seus
cemitérios preferidos. Aqueles cemitérios campestres
recortados sobre um fundo
azulado de colinas eram belos como uma canção de embalar.
Para Franz, um cemitério não é senão um imundo depósito de
ossadas e cascalho.
Nunca me hãode obrigar a entrar num automóvel! Terei
sempre medo de ter um desastre! Mesmo quando não se morte,
ficase
traumatizado para a vida inteira!nn, dizia o escultor,
agarrando maquinalmente no indicador que quase serrara a
esculpir madeira. Só
por milagre é que os médicos tinham conseguido salvarlhe o
dedo.
Mas de maneira nenhuma!, proclamou uma MarieClaude em
excelente forma. Quando eu tive o meu desastre foi
magnífico! Como não conseguia pregar olho, lia
ininterruptamente, de dia e de
noite! nn
Todos olharam espantados para ela, o que lhe causou uma
visível satisfação. Ao enjoo que Franz sentia (lembravase
que a mulher
ficara extremamente deprimida depois do desastre e que
passava o
tempo a queixarse) juntavase uma certa admiração (aquele
dom
que MarieClaude tinha de metamorfosear tudo o que vivia era
bem
o testemunho de uma incorrigível vitalidade).
MarieClaude prosseguiu: Foi no hospital que comecei a
classificar os livros em duas categorias: os diurnos e os
nocturnos. E é
mesmo verdade! Há livros para ler de dia, e outros que só se
podem ler à noite.nn
Toda a gente manifestou o seu espanto e a sua admiração;
só o
escultor, que continuava agarrado ao dedo, tinha o rosto
crispado
pela sua dolorosa recordação.
MarieClaude voltouse para ele: "Em que categoria é que
tu
incluías os livros de Stendhal?nn
O escultor não tinha ouvido e encolheu os ombros com um ar
aborrecido. A seu lado, um crítico de arte declarou que, na
sua
opinião, Stendhal era para ler de dia.
MarieClaude abanou a cabeça e proclamou com a sua voz
tonitruante: Mas de maneira nenhuma! Não, não e não! Não
percebes
mesmo nada disto! Stendhal é mas é um autor nocturno!nn
Franz seguia muito de longe o debate sobre arte nocturna e
arte
diurna, não pensando senão no momento em que Sabina faria a
sua
aparição. Tinham ambos passado vários dias a ponderar se ela
devia
aceitar ou não o convite para o cnoc×ktnil que MarieClaude
dava em
honra de todos os pintores e escultores que alguma vez
tinham exposto na sua galeria privada. Desde que conhecera
Franz, Sabina
evitava a sua mulher. Mas, com medo de se trair, acabou por
decidirse a aceitar porque isso era mais natural e menos
suspeito.
Enquanto ia deitando olhares furtivos para a entrada,
apercebeuse que, no outro extremo da sala, perorava
infatigavelmente a voz
de MarieAnne, a sua filha de dezoito anos. Trocou o grupo
onde a
mulher oficiava pelo círculo onde a filha pontificava. Havia
um
sentado num sofá, outros de pé e MarieAnne estava sentada
no
chão. Franz tinha a certeza que, dentro em pouco, no extremo
oposto da sala, seria a vez de MarieClaude se sentar na
carpete. Nessa
época, sentarse no chão à frente dos convidados era uma
atitude
obrigatória em quem pretendia mostrarse natural,
desinibido, progressista, sociável e parisiense. Marie
Claude sentavase no chão
com tanta paixão em todo e qualquer lugar que Franz às vezes
receava ir encontrála sentada no chão da loja onde ela
costumava ir
comprar ciganos.
Em que é que andas a trabalhar agora, Alan'?nn,
perguntou
MarieAnne ao homem aos pés do qual estava sentada.
Alan, jovem ingénuo e honesto, quis responder com
sinceridade
à filha da dona da galeria. Começou por explicarlhe a sua
nova
maneira de pintar, que combinava a fotografia e a pintura a
óleo.
Mal pronunciara duas ou três frases, MarieAnne deu uma
assobiadela. O pintor falava devagar, todo concentrado
naquilo que estava
a dizer; por isso, não deu pelo assobio.
Franz perguntoulhe baixinho: Podes dizerme porque é
que assobiaste?
Porque detesto ouvir falar de políticann, replicoulhe
a filha,
alto e bom som.
Efectivamente, dois homens que faziam parte do mesmo grupo
falavam, em pé um em frente do outro, das próximas eleições
francesas. MarieAnne, que se sentia no dever de dirigir a
conversa,
interrompeuos para lhes perguntar se iam na próxima semana
ao
GrandThéâtre ouvir a companhia lírica italiana que lá
estava cantar uma ópera de Rossini. Entretanto, Alan, o
pintor, continuava obstinadamente à procura de fórmulas cada
vez mais precisas para explicar a sua nova maneira de
pintar, e Franz sentiuse envergonhado
com a filha. Para a calar, disse que, quando ia à ópera,
se aborrecia
mortalmente.
Não percebes nada disso, disse MarieAnne, tentando dar
palmadinhas na barriga do pai sem ter que se levantar, o
intérprete
principal é tão giro! É um espanto! Vio duas vezes e fiquei
doida
por ele!"
Franz constatava mais uma vez que a filha era atrozmente
parecida com a mãe. Porque é que não havia antes de se
parecer com
ele? Mas não, era um caso desesperado. Já ouvira milhares de
vezes
MarieClaude proclamar que estava apaixonada por este pintor
ou
por aquele, por um cantor, por um escritor, por um político
e, uma
vez até, por um ciclista. É claro que aquilo não passava de
retórica
de sociedade, mas às vezes vinhalhe à cabeça que vinte anos
antes
ela dissera exactamente o mesmo a seu respeito, brindandoo
ainda
por cima com uma ameaça de suicídio.
Nesse preciso instante, Sabina entrou. MarieClaude viua
e
avançou ao seu encontro. A filha continuava a conversar
sobre
Rossini, mas Franz só tinha ouvidos para aquilo que as duas
mulheres diziam. Depois de darlhe educadamente as boas
vindas, MarieClaude pegou com os dedos no medalhão de
cerâmica que Sabina
trazia ao pescoço e disse muito alto: Mas que coisa
horrorosa é
esta?nn
Franz ficou fascinado com esta frase. Não fora pronunciada
num
tom agressivo porque, muito pelo contrário, a gargalhada
tonitruante
que se lhe seguira devia indicar imediatamente que a opinião
de
MarieClaude sobre o medalhão não fazia mexer uma palha na
sua
amizade pela pintora, mas, apesar de tudo, era uma frase que
saía
do tom habitual de MarieClaude com os outros.
Fui eu que o fiz, disse Sabina.
Sinceramente, achoo horroroso, repetiu muito alto
MarieClaude. Não devias usálo!nn
Franz sabia que para a mulher era perfeitamente
indiferente que
uma jóia fosse feia ou bonita. Feio era o que ela queria ver
dessa
maneira, e bonito também. As jóias das amigas eram, a
priori, bonitas. Podia achálas feias, mas disfarçava
cuidadosamente a sua opinião, já que a lisonja se tomara há
muito a sua segunda natureza.
Então porque é que teria decidido achar feia a jóia que
Sabina
tinha feito com as suas próprias mãos?
Franz percebeu imediatamente porquê. MarieClaude
declarara
que a jóia de Sabina era feia porque podia permitilo a si
própria.
Ou, ainda mais exactamente, MarieClaude proclamara que a
jóia de Sabina era feia para deixar bem vincado que podia
permitirse a si própria dizer a Sabina que a jóia dela era
feia.
No ano anterior, a exposição de Sabina não tivera grande
sucesso e, portanto, MarieClaude não ficara nada
interessada em
conquistar a simpatia de Sabina. Sabina, pelo contrário,
tinha todas
as razões para tentar conquistar a simpatia de MarieClaude.
Mas
nada no seu comportamento o deixava transparecer. Sim, Franz
compreendiao com toda a nitidez: MarieClaude tinha de
aproveitar
aquela ocasião para mostrar claramente a Sabina (e aos
outros) qual
era a verdadeira relação de forças que havia entre ambas.
7
Pequeno léxico de palavras mal entendidas (fim)
A VELNA (ATEDRAL DE AMESTERDÀO
De um lado ficam as casas e, através das janelas do rés
dochão,
tão grandes como montras, apercebemse os minúsculos
quartinhos
das putas. Estas estão em roupa interior, sentadas à janela
em pequenos sofás cheios de almofadas. Só parecem grandes
gatos entediados.
O outro lado da rua é ocupado por uma gigantesca catedral
gótica do século xlv.
Como um rio a separar dois reinos, entre o mundo das putas
e o
mundo de Deus, paira o cheiro ácido da urina.
Na parte de dentro da igreja, do antigo estilo gótico não
restam
senão as paredes, muito altas e despidas, as colunas, a
abóbada e as
janelas. Não há um único quadro, nem há imagens em sítio
nenhum.
O interior da catedral está tão vazio como um ginásio. Tudo
o que
lá há são filas de cadeiras dispostas de maneira a formarem
ao centro um grande quadrado, em torno de um estrado em
miniatura
sobre o qual se ergue a mesinha do pregador. Atrás das
cadeiras, há
camarotes de madeira destinados às famílias dos moradores
mais ricos.
As cadeiras e os camarotes estão dispostos sem qualquer
respeito
pela configuração das paredes ou pela disposição das
colunas, como
se assim manifestassem à arquitectura gótica a sua
indiferença e o
seu desdém. Há vários séculos já que a fé calvinista
transformou a
igreja num simples hangar, cuja única função é proteger os
fiéis da
neve e da chuva.
Franz estava fascinado: aquela sala gigantesca fora
atravessada
pela Grande Marcha da história.
Sabina lembrouse que, depois do golpe de Estado
comunista,
todos os castelos e palácios da Boémia tinham sido
nacionalizados e
transformados em centros de aprendizagem, casas de repouso
ou até
em estábulos. Visitara uma vez um desses estábulos; nas
paredes de
estuque, havia ganchos com anéis de ferro aos quais estavam
presas
as vacas, que olhavam com um ar sonhador através das janelas
para
o jardim do palácio onde as galinhas corriam de um lado para
o outro.
Franz disse: n"Sintome fascinado com este vazio.
Acumulamse
os altares, os quadros, as esculturas, as cadeiras, os
sofás, os tapetes,
os livros e depois vem o momento de júbilo libertador em que
tudo
é varrido como as migalhas de cima de uma toalha. És capaz
de
imaginar a vassoura de Hércules com que esta catedral foi
varrida?nn
Sabina apontou para um camarote de madeira. nnOs pobres
ficavam de pé, e os ricos tinham camarotes. Mas o banqueiro
e o pobre
tinham uma coisa em comum. Era o ódio à beleza.nn
nnO que é a beleza?nn, perguntou Franz, e veiolhe
imediatamente
à cabeça a inauguração de uma exposição onde, daí a dias,
tinha de
acompanhar a mulher: a vacuidade dos discursos e das
palavras, a
vacuidade da cultura, a vacuidade da arte.
Na época em que, quando era estudante, trabalhava nos
Estaleiros da Juventude e tinha na alma o veneno das alegres
fanfarras que
brotavam ininterruptamente dos altifalantes, Sabina saíra um
domingo de motorizada. Percorreu vários quilómetros de
floresta e parou
numa aldeiazinha desconhecida, perdida no meio das colinas.
Encostou a motorizada à igreja e entrou. Era precisamente a
hora da
missa. Nessa altura, a religião era perseguida pelo regime
comunista
e a maior parte das pessoas evitava as igrejas. Sentados nos
bancos
só havia velhos. Esses não tinham medo do Governo; só tinham
medo da morte.
Com uma voz melodiosa, o padre pronunciava uma frase e as
pessoas repetiamna em coro logo a seguir. Era uma litania.
As palavras, sempre as mesmas, voltavam continuamente, como
um peregrino que não consegue arrancar os olhos da paisagem,
como um
homem que não consegue dizer adeus à vida. Sentouse num dos
bancos de trás; às vezes fechava os olhos só para ouvir
aquela música das palavras, depois voltava a abrilos:
imediatamente lhe aparecia a abóbada azul com grandes astros
dourados pintados em cima.
Cedia ao encantamento.
O que encontrara inesperadamente naquela igreja não fora
Deus, mas a beleza. Ao mesmo tempo, tinha perfeita
consciência que
aquela igreja e aquelas litanias não eram belas em si
mesmas, mas
que a sua beleza lhes vinha do contraste com os Estaleiros
da Juventude onde os seus dias se passavam no meio da
barulheira infernal das canções. A missa era bela por lhe
ter aparecido súbita e
clandestinamente como um mundo traído.
Aprendeu nesse dia que a beleza é um mundo traído. Só
podemos encontrála quando aqueles que a perseguem a deixam
por engano num sítio qualquer. A beleza escondese atrás dos
cenários de
um desfile do 1´.o de Maio. Para dar com ela, primeiro é
preciso
furar a tela do cenário.
nnNunca tinha ficado fascinado com uma igrejann, disse
Franz. Não
era nem o protestantismo nem a ascese que o entusiasmavam.
Era
outra coisa, qualquer coisa de muito pessoal e da qual não
se atrevia a falar à frente de Sabina. Parecialhe estar a
ouvir uma voz que
o desafiava a pegar na vassoura de Hércules para varrer da
sua vida
as inaugurações de MarieClaude, os cantores de MarieAnne,
os
congressos, os colóquios, os discursos inúteis e as palavras
vãs.
O enorme espaço vazio da catedral de Amesterdão acabava de
lhe
oferecer a imagem da sua própria liberdade.
A EORÇA
Na cama de um dos inúmeros hotéis onde faziam amor, Sabina
apalpava um braço a Franz e exclamava: nnTens uns músculos
incríveis! >>
Franz gostava de ouvir este elogio. Levantouse da cama,
agarrou mesmo rente ao chão o pé de uma pesada cadeira de
castanho e
começou lentamente a tentar levantála no ar. Enquanto isso,
dizia
para Sabina:
Já não tens que ter medo de nada: agora tensme a mim
para
te defender! Fui campeão de judo na minha juventude!nn
Conseguiu endireitar o braço na vertical sem largar a
cadeira e
Sabina disselhe: nnÉ bom saber que és tão fortennn
Mas, bem lá no fundo, acrescentou para si própria: Franz é
forte, mas a força dele está unicamente voltada para fora.
Com as
pessoas com quem vive, com aqueles que ama. é muito fraco. A
fraqueza de Franz chamase bondade. Franz seria incapaz de
dar
uma ordem a Sabina. Nunca lhe ordenaria, como Tomas dantes
fazia, que deitasse o espelho no chão e se pusesse a passear
toda nua
em cima dele. Não que a sensualidade lhe falte não tem é
força
para dar ordens. Há coisas que só se podem fazer com
violência.
O amor físico é impensável sem violência.
Sabina olhava para Franz a passear no quarto brandindo a
sua
cadeira bem lá no alto; a cena parecialhe ridícula e
sentiuse invadida por uma estranha tristeza.
Franz poisou a cadeira e sentouse com o rosto voltado
para
Sabina.
<<Não que eu não goste de ser forte, disse, mas para que é
que
me servem uns músculos destes em Genebra'? Usoos para me
enfeitar. São penas de pavão. Nunca parti a cara a
ninguém.nn
Sabina prosseguia as suas melancólicas reflexões. E se
tivesse tido um homem que lhe desse ordens? Que tivesse
querido dominála. Durante quanto tempo suportaria isso? Nem
durante cinco minutos! Portanto, não havia homem que lhe
conviesse. Nem forte
nem fraco.
Então, perguntou a Franz: nnE porque é que de tempos a
tempos
não te serves da tua força contra mim?
Porque amar é renunciar à forçann, disse Franz, com
doçura.
Sabina percebeu duas coisas: primeiro, que aquela frase
era bela
e verdadeira; segundo, que, com aquela frase, Franz acabara
de se
desvalorizar para sempre na sua vida erótica.
VIVER NA VERDADE
É uma fórmula que Kafka utilizou no diário ou numa carta.
Franz já não se lembra muito bem onde. Sentese seduzido por
ela.
O que será isso de viver na verdade? Uma definição negativa
não é
difícil: é não mentir, não esconder, não dissimular nada.
Desde que
conhece Sabina que vive na mentira. Fala à mulher de um
imaginário congresso de Amesterdão ou de umas conferências
de Madrid
que nunca existiram, e em Genebra tem medo de andar na rua
com
Sabina. Mentir e esconderse são coisas que o divertem
porque
nunca as tinha feito. Dãolhe a mesma sensação de prazer que
a
primeira gazeta ao melhor aluno da turma.
Para Sabina, viver na verdade, não mentir nem a si próprio
nem
aos outros, só é possível se não houver público nenhum. A
partir do
momento em que os nossos actos têm uma testemunha, quer
queiramos quer não, adaptamonos aos olhos que nos observam;
e, a
partir de então, nada do que fazemos é verdadeiro. Ter um
público, pensar num público, é viver na mentira. Sabina
despreza aquele tipo
de literatura em que o autor revela não só toda a sua
intimidade,
como também a dos amigos. Quem perde a sua intimidade, perde
tudo, pensa Sabina. E quem renuncia voluntariamente a ela é
um
monstro. Por isso, Sabina não se importa de ter uma relação
clandestina. Bem pelo contrário, para ela, é a única maneira
de viver
nnna verdadenn.
Mas Franz, quanto a ele, está seguro de que a divisão da
vida
em domínio privado e domínio público é a origem de toda a
mentira: as pessoas são sempre diferentes em público e em
privado. Para
Franz, viver na verdadenn é abolir a barreira entre o
privado e o
público. Cita frequentemente André Breton, quando este dizia
que
gostaria de ter vivido numa casa de vidronn aberta a
todos os olhares e onde nada fosse secreto.
Ao ouvir a mulher dizer a Sabina: Que jóia horrorosa!
nn, compreendera que era incapaz de continuar a viver
aquela vida dupla.
Nesse momento, deveria ter acorrido em defesa de Sabina. Se
não o
fizera, fora unicamente com medo de trair o seu amor
clandestino.
No dia seguinte ao do cocktail, estava de partida para
Roma, para
passar dois dias com Sabina. As palavras: Que jóia
horrorosa!nn
vinhamlhe constantemente à cabeça e faziamlhe ver a mulher
com
outros olhos. Passara a ver uma mulher muito diferente
daquela que
julgara conhecer. A sua agressividade, invulnerável,
espalhafatosa,
dinâmica, aliviavao do peso da bondade que pacientemente
carregara durante vinte e três anos de casamento. Lembrouse
do imenso
espaço interior da catedral de Amesterdão e voltou a sentir
o entusiasmo incompreensível e singular que esse vazio lhe
suscitava.
Estava a fazer a mala quando MarieClaude entrou no
quarto;
falava dos convidados da véspera, aprovando energicamente
certas
opiniões que ouvira e condenarão acerbamente outras.
Franz olhou demoradamente para ela e depois disse: Não
vai
haver conferência nenhuma em Roma.nn
MarieClaude não entendeu: Então para que é que lá vais?
nn
Replicoulhe: Tenho uma amante há sete ou oito meses.
Não
quero ter encontros com ela aqui em Genebra. Por isso é que
tenho
viajado tanto. Pensei que mais valia prevenirte.nn
Após ter dito estas palavras, foi assaltado pela dúvida: a
coragem inicial começava a abandonálo. Desviou os olhos
para não ter
de ver na cara de MarieCtaude o desespero que as suas
palavras
não podiam deixar de causarlhe.
Depois de uma curta pausa, ouviu: Sim, eu também acho
que
vale mais estar prevenida.nn
Isto foi dito num tom de grande firmeza; Franz levantou os
olhos: MarieClaude não estava minimamente perturbada.
Continuava a ser a mulher que dizia com uma voz tonitruante:
Que jóia
horrorosa! nn
Ela prosseguiu: Visto que tens a coragem de me anunciar
que
me andas a enganar há sete ou oito meses, já agora também
não
posso ficar a saber com quem?nn
Sempre procedera de modo a não ofender MarieClaude e a
respeitar a mulher que havia nela. Mas o que acontecera à
mulher
que havia em MarieClaude? Ou, por outras palavras, o que
acontecera à imagem da mãe que associava sempre à da mulher?
A sua
mãe, a sua mãe triste e magoada, com dois sapatos
desemparceirados nos pés, deixara de estar dentro de Marie
Claude; e se calhar
nem isso, porque, de facto, nunca lá devia ter estado.
Quando o
percebeu veiolhe o ódio ao de cima.
Não tenho razão nenhuma para não te dizernn, disse.
Já que ela não ficara magoada por saber que ele a
enganava,
saber quem era a rival magoálaia com certeza. Olhandoa
bem nos
olhos, pronunciou o nome de Sabina.
Pouco depois, foi ter com Sabina ao aeroporto. À medida
que o
avião ganhava altura, sentiase cada vez mais leve.
Finalmente ao
cabo de nove meses, podia começar a viver outra vez na
verdade!
Para Sabina, foi como se Franz forçasse a porta da sua
intimidade. Era como se pelo postigo espreitassem a cabeça
de MarieClaude, a cabeça de MarieAnne, a cabeça de Alan, o
pintor e a cabeça
do escultor sempre agarrado ao dedo, a cabeça de todos os
seus
conhecidos de Genebra. Sem querer, involuntariamente, ia
tornarse
na rival de uma mulher que lhe era perfeitamente
indiferente. Franz
divorciarseia e ela iria ocupar o devido lugar a seu lado
num grande leito conjugal. De perto ou de longe, todos os
olhares estariam
pregados nela; de uma maneira ou de outra, teria de estar
sempre a
representar; em vez de ser Sabina, verseia forçada a
interpretar o
papel de Sabina e, ainda por cima, a fazê!o da melhor
maneira que
conseguisse encontrar. Servido ao público como pasto, o amor
ganharia cada vez mais peso e tornarseia um fardo. Só de
pensar
nisso, sentiase já dobrar sob o peso desse fardo.
Encontravamse a jantar num restaurante romano e a beber
vinho. Sabina estava taciturna.
nnA sério que não estás zangada?nn, perguntou Franz.
Garantiulhe que não estava zangada. Sentiase confusa e não
sabia se devia
regozijarse ou não com a notícia. Pensava no encontro na
carruagemcama do comboio de Amesterdão. Nessa noite, tivera
vontade de lançarse aos seus pés, de suplicarlhe que a
mantivesse sempre ao seu lado,
nem que fosse pela força, e que a não deixasse nunca irse
embora.
Nessa noite, tivera vontade de acabar de uma vez por todas
com essa
perigosa viagem de traição em traição. Tivera vontade de
parar.
Agora, tentava com todas as suas forças voltar a sentir
esse desejo, tentava invocálo, apoiarse nele. Mas em vão.
O enjoo era
mais forte.
Regressaram ao hotel por entre a animação das ruas. Os
gritos,
os gestos, os risos que havia em redor permitiamlhes seguir
calados
um ao lado do outro sem ouvir o seu próprio silêncio.
Depois, Sabina demorou imenso tempo na casa de banho
enquanto Franz esperava debaixo do lençol do grande leito
matrimonial. Como sempre, havia uma luzinha acesa.
Ao voltar da casa de banho, desligou o interruptor. Era a
primeira vez que fazia tal coisa. Franz deveria ter
desconfiado. Mas
não deu qualquer importância ao caso porque, para ele, tanto
lhe
fazia que houvesse luz ou não. Como já sabemos, fazia amor
de
olhos fechados.
É precisamente por causa desses olhos fechados que Sabina
acaba de apagar a luz. Recusase a ver, nem que seja por
mais um
segundo, essas pálpebras cerradas. Como costuma dizerse, os
olhos
são as janelas da alma. O corpo de Franz a debaterse por
cima de
si de olhos fechados é para ela um corpo sem alma. É como um
anìmalzinho ainda cego que, quando está com sede, emite uns
sons
de fazer dó. Quando Franz, com os seus músculos magníficos,
fazia
amor com ela só lhe parecia um cachorro gigante a amamentar
se
nos seus seios. E é bem verdade, ainda agora, com um dos
seus
mamilos na boca, ele parece mesmo que vai mamar! Pensar que
Franz é um homem adulto por baixo, mas que em cima é um
recémnascido a mamar e que, portanto, vai para a cama com
um
recémnascido é uma ideia que raia a esfera da abjecção.
Não,
nunca mais quer vêlo a debaterse desesperadamente em cima
de
si, nunca mais lhe estenderá o peito como uma cadela ao
filho, hoje
é a última vez, hoje é irrevogavehnente a última vez!
Sabia evidentemente que a sua resolução era o cúmulo da
injustiça, que Franz era o melhor dos homens que alguma vez
conhecera,
que era inteligente, que compreendia os seus quadros, que
era bom,
honesto, bonito, mas quanto mais consciência tinha disso
tudo, mais
vontade lhe dava de violar essa inteligência, essa bondade
de alma,
essa força débil.
Nessa noite, amouo com mais ardor do que nunca, excitada
com
a ideia de ser a última vez. Amavao e já lá não estava, já
se encontrava muito longe dali. Já ouvia soar à distância as
trombetas da
traição e bem sabia que era incapaz de resistir a essa voz.
Parecialhe que, mais uma vez, se abria diante de si um
imenso espaço de
liberdade, e essa extensão enorme davalhe uma grande
exaltação.
Amava Franz loucamente, ferozmente, como não o amara nunca.
Franz soluçava sobre o seu corpo, pensava que agora já
entendia tudo: Sabina pouco falara ao jantar e não lhe
dissera nada a respeito da sua decisão, mas agora
manifestavalhe a sua alegria, a sua
paixão, o seu consentimento, o seu desejo de viver com ele
para
todo o sempre.
Sentiase um cavaleiro a cavalgar num vazio soberbo, um
vazio
sem mulher, sem filha, sem casa, um vazio soberbo varrido
pela
vassoura de Hércules, um vazio soberbo que ele preenchia com
o
seu amor.
Um por cima do outro, ambos cavalgavam. Ambos se
encaminhavam para os horizontes longínquos pelos quais
ansiavam. Ambos
se aturdiam numa traição que os libertava. Franz cavalgava
Sabina e
traía a mulher, Sabina cavalgava Franz e traía Franz.
9
Durante vinte anos, a mulher fora para ele a encarnação da
mãe,
um ser frágil que precisava de ser protegido; era uma ideia
tão profundamente enraizada em si que não podia
desembaraçarse dela em
dois dias. Quando entrou em casa, vinha cheio de remorsos;
talvez
ela tivesse tido uma crise depois de ele ter saído, talvez
fosse
encontrála abatida pela tristeza. Fez timidamente girar a
chave na
fechadura e foi para o quarto. Entrou com todo o cuidado
para não
fazer barulho e pôsse à escuta; sim, MarieClaude estava em
casa.
Hesitou durante um momento e depois foi ter com ela como de
costume.
Fingindose surpreendida, MarieClaude levantou as
sobrancelhas
e perguntou: n"Então sempre voltaste para cá?nn
Teve vontade de responderlhe (e o seu espanto era
sincero):
"Para onde é que querias que fosse?nn, mas não disse nada.
MarieClaude voltou a insistir: nnPara que fique tudo bem
claro
entre nós, por mim, não há inconveniente .nenhum em mudares
te já
para casa dela.nn
Quando, no dia da partida, lhe confessara tudo, não tinha
um
plano concreto. Pensava que, quando" regressasse, poderiam
discutir
calmamente todos os pormenores para que as coisas se
passassem da
forma menos penosa possível para nela. Não previra de forma
nenhuma que ela insistisse friamente para que se fosse
embora.
Era uma atitude que lhe facilitava a vida mas,
inconscientemente, sentiase um pouco decepcionado. Toda a
vida receara
magoála e fora unicamente por isso que se impusera a si
próprio a
disciplina voluntária de uma monogamia estupidificante.
Agora, ao
fim de vinte anos, constatava que essa atenção para com ela
fora perfeitamente inútil e que se privara de dezenas de
mulheres só por
causa de um malentendido!
Depois das aulas da tarde, foi directamente da
universidade a
casá de Sabina. Contava pedirlhe que lhe deixasse passar lá
a noite.
Tocou e ninguém abriu. Foi pôrse à espera no café da
frente, sempre com os olhos pregados na entrada do prédio.
As horas iam passando e não sabia o que fazer. Toda a vida
dormira na mesma cama que MarieClaude. Se agora voltasse
para
casa, ainda teria de deitarse ao lado dela? Claro que
também podia
dormir no divã do quarto ao lado. Mas não seria um gesto um
pouco ostensivo de mais? Não poderia ser interpretado como
uma manifestação de hostilidade? Queria ficar amigo da
mulher! Mas ir
dormir para o pé dela também não podia ser. Já estava a
ouvila
perguntar, cheia de ironia: Mas como? Afinal não preferia a
cama
de Sabina? Acabou por optar por um quarto de hotel.
Passou todo o dia seguinte a tocar à porta de Sabina.
Sempre
em vão.
No outro dia, foi a casa da porteira do prédio do atelier
de Sabina. Esta não sabia de nada e remeteuo para a dona do
atelier.
Telefonou e disseramlhe que Sabina se mudara na
antevéspera, pagando, como constava do contrato, o aluguer
de mais três meses.
Durante vários dias ainda tentou surpreender Sabina em
casa,
até que acabou por encontrar o apartamento aberto. Estavam
três
homens em fatomacaco lá dentro a carregar os móveis e os
quadros
para um grande camião de mudanças estacionado à frente do
prédio.
Perguntoulhes para onde é que iam levar a mobília.
Os homens responderam que estavam formalmente proibidos de
dar a morada.
Encontravase prestes a enfiarlhes algum dinheiro na
algibeira,
quando perdeu subitamente a coragem. Ficou completamente
paralisado de tristeza. Não entendia nada, não conseguia
encontrar qualquer espécie de explicação para o que se tinha
passado. Só sabia que
que não esperava outra coisa desde o momento em que
conhecera
Sabina. Acontecera o que tinha de acontecer. Franz não se
revoltava.
Arranjou um pequeno apartamento na parte antiga da cidade.
Numa altura em que tinha a certeza de não encontrar nem a
mulher
nem a filha, passou por casa para trazer o fato e alguns
livros absolutamente indispensáveis. Teve o cuidado de não
levar nada que pudesse fazer falta a MarieClaude.
Um dia, divisoua através da montra de uma casa de chá.
Estava
com mais duas senhoras e no seu rosto, onde aquela
infatigável mímica gravara há muito um não acabar de rugas,
liase uma viva
animação. As senhoras ouviamna falar e não paravam de rir.
Franz
não pôde deixar de pensar que ela lhes devia estar a falar
dele.
Sabia com certeza que Sabina desaparecera de Genebra no
preciso
momento em que tinha decidido ir viver com ela. Era
realmente
uma história divertida! Não era de espantar que fosse o alvo
predilecto da chacota das amigas da mulher.
Voltou para a sua casa nova, onde chegava o som dos sinos
da catedral de São Pedro. Nesse dia, tinham vindo entregar
uma
mesa. Esqueceuse de MarieClaude e das amigas. E, por
instantes, esqueceuse também de Sabina. Sentouse à mesa.
Sentiase orgulhoso por ter sido ele a escolhêla. Durante
vinte anos,
vivera rodeado de móveis que não escolhera. MarieClaude
encarregavase de tudo. Pela primeira vez na sua vida, tinha
deixado de ser um rapazinho e tornarase independente. No
dia
seguinte, devia vir um carpinteiro a quem ia encomendar as
estantes. Passara vários dias a desenhar minuciosamente a
biblioteca para que as formas e as dimensões ficassem bem
claras e
para que depois não houvesse problemas quando viessem montá
la.
Então, de repente, percebeu com espanto que não se sentia
infeliz. A presença física de Sabina contava muito menos do
que pensara. O que contava era o rasto doirado, o rasto
mágico que traçara
na sua vida e que nunca ninguém lhe poderia roubar. Antes de
desaparecer do seu horizonte, ela tivera tempo de passarlhe
para a
mão a vassoura de Hércules com que varrera da sua existência
tudo
de que não gostava. Aquela inopinada felicidade, aquele bem
estar,
aquela alegria que a sua liberdade e a sua nova vida lhe
davam,
eram, afinal, um presente dela.
Aliás, sempre preferira o irreal ao real. Tal como se
sentia
melhor nas manifestações (que, como já disse, não passam de
um
espectáculo e de um sonho) do que atrás da cátedra onde dava
aulas, também era mais feliz com Sabina metamorfoseada em
deusa
invisível do que fora em companhia de Sabina enquanto
percorriam
mundo e ele tremia a cada passo pelo seu amor. Ela
presentearao
com a súbita liberdade do homem só, ornarao com a aura da
sedução. Tornavase um homem atraente para as mulheres; uma
das alunas apaixonouse por ele.
De repente, num espaço de tempo incrivelmente curto, todo
o
cenário da sua vida mudou. Há pouquíssimo tempo morava num
128 n 129
grande apartamento burguês, com uma criada, uma
filha e uma esposa; agora mora num estúdio da parte antiga
da cidade e a sua
jovem amiga dorme praticamente todas as noites lá em casa!
Não
têm qualquer necessidade de ir para o estrangeiro ou de
dormir em
hotéis; pode fazer amor com ela no apartamento que é bem
seu, na
cama que é bem sua, na presença dos seus livros e do seu
cinzeiro
poisado na mesadecabeceira.
A rapariga não era nem feia nem bonita, mas era muitíssimo
mais nova do que ele. E sentia uma grande admiração por
Franz, tal
como Franz, pouco tempo antes, sentia uma grande admiração
por
Sabina. Isso não lhe desagradava nada. Embora talvez
considerasse
como uma pequena perda a substituição de Sabina pela
universitariazinha de óculos enormes, a sua bondade velava
para que ele a
acolhesse com alegria e sentisse por ela um amor paternal
que, aliás,
comportandose MarieAnne não como sua filha mas como uma
outra MarieClaude, nunca pudera satisfazer.
Um dia, foi ver a mulher e disselhe que queria voltar a
casarse.
MarieClaude abanou a cabeça.
Mas se nos divorciarmos, fica tudo na mesma. Não te tiro
nada.
Deixote tudo!
Para mim, o dinheiro não, conta, disse ela.
Então o que é que conta?
O amor.
O amor?nn, perguntou Franz, admirado.
MarieClaude sorria: cn0 amor é um combate. Heide lutar
o
tempo que for preciso. Até ao fim.
O amor é um combate? Não tenho a mínima vontade de
lutarnn, disse Franz, e saiu.
10
Depois de quatro anos passados em Genebra, Sabina vivia em
Paris e nunca mais se recompunha da sua melancolia. Se lhe
perguntassem o que lhe acontecera, não teria palavras para o
dizer.
Pode sempre explicarse o drama de uma vida através da
metáfora
do peso. Costuma dizerse que nos caiu um fardo em cima.
Carregamos com esse fardo, suportamolo ou não o suportamos.
Lutamos com ele, perdemos ou ganhamos. Mas o que acontecera
ao
certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá
lo.
Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingarse?
Não.
O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que
se
abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável
leveza
do ser.
Até aqui, os momentos de traição exaltavamna e ficava
sempre
cheia de alegria só à ideia do novo caminho que se abria e
da aventura sempre nova da traição que a esperava no fim da
viagem. Mas
que aconteceria se a viagem acabasse? Pais, maridos, amores,
pátrias
podem trairse, mas o que resta para trair quando já não
houver
pais, nem marido, nem amor, nem pátria?
Sabina sentia um grande vazio em tomo de si. E se esse
vazio
fosse precisamente o fim de todas as traições?
Até aqui, é claro que não tinha consciência disso, e é bem
compreensível: o fim que se persegue está sempre oculto. Uma
rapariga
que quer um marido, quer uma coisa que desconhece
completamente. O rapaz que anda em busca da glória não faz a
mínima ideia
do que a glória é. O que dá sentido à nossa conduta é sempre
uma
coisa completamente desconhecida. Também Sabina não sabe que
fim se oculta no seu desejo de trair. A insustentável leveza
do ser
poderá ser considerada como um fim'? Desde que deixou
Genebra,
encontrase tremendamente próximo dela.
Estava há três anos em Paris quando recebeu uma carta da
Boémia. Era uma carta do filho de Tomas. Tinha ouvido falar
dela,
procurara a sua direcção e dirigiaselhe porque ela era
nna amiga
mais chegadann do pai. Davalhe a notícia da morte de Tomas
e de
Tereza. Segundo o que dizia na carta, tinham passado os
últimos
anos de vida numa aldeia onde Tomas era motorista de camião.
Iam
de vez em quando à cidade mais próxima e passavam a noite no
hotel. A. estrada atravessava uma serra, tinha muitas curvas
e o camião caíra numa ravina. Os corpos tinham ficado
completamente
desfeitos. A polícia constatara que os travões estavam em
muito
mau estado.
Não conseguia recomporse do estado em que a notícia a
deixara. Quebrarase o último laço que a unia ao passado.
Como era seu hábito, tentou acalmarse com uma volta num
cemitério. O cemitério mais próximo era o de Montpamasse.
Era
composto por delicadas construções em pedra, por capelas em
miniatura erigidas ao lado das campas. Sabina não percebia
como é
que os mortos podiam gostar de ter aqueles falsos palácios
por cima
de si. Aquele cemitério era o orgulho feito pedra. Longe de
recobrarem a razão depois de mortos, os moradores daquele
cemitério
ainda se cobriam mais de ridículo do que em vida.
Escarrapachavam
a sua importância em jazigos. Quem ali repousava não eram
nem
pais, nem irmãos, nem filhos, nem avós, mas funcionários
públicos, e
pessoas importantes, carregadas de títulos e de honrarias;
ali, mesmo
um simples empregado dos correios oferecia à admiração
pública a
sua classe, o seu posto, a sua posição social enfim, a sua
dignidade.
Quando percorria uma álea do cemitério, apercebeuse de
que,
pouco mais adiante, havia um enterro. O mestredecerimónias
tinha
os braços carregados de flores e distribuíaas aos parentes
e amigos:
uma × a cada uma das pessoas. Estendeu uma a Sabina. Esta
juntouse ao cortejo. Era preciso contornar vários jazigos
antes de chegar
à cova de onde tinha sido retirada a pedra tumular.
Debruçouse à
beira dela. A cova era muito funda. Largou a flor.
Descrevendo
pequenas espirais, a flor lá foi caindo e acabou por bater
no caixão.
Na Boémia, as covas não são tão fundas. Em Paris, as covas
são tão
fundas como as casas são altas. Os seus olhos poisaram na
pedra
que, ao lado da cova, continuava à espera. De repente, ficou
aterrorizada com aquela pedra. Voltou para casa quase a
correr.
Pensou na pedra o dia inteiro. Porque é que a aterrorizara
tanto %
A resposta que achou foi a seguinte: é que se o túmulo
está
fechado com uma pedra, o morto nunca mais pode sair.
Mas, seja como for, o morto nunca mais sairá da campa!
Então
tanto faz estar debaixo do barro como de uma pedra!
Não, não é exactamente a mesma coisa: se a campa está
fechada
com uma pedra, é porque ninguém quer que o morto volte.
Aquela
pesada pedra está lá para lhe dizer: nnDeixate estar onde
estás!nn
Sabinz lembravase da campa do pai. Por, cima do caixão
havia
barro, no barro cresciam flores e havia um bordo que
estendia as
suas raízes para o caixão: era como se o morto saísse da
campa por
aquelas flores e por aquelas raízes. Se o pai tivesse sido
enterrado
debaixo de uma pedra, nunca mais teria podido falarlhe,
nunca teria ouvido a sua voz na folhagem da árvore a
perdoarlhe.
Então como seria o cemitério onde Tereza e Tomas
repousavam`?
Uma vez mais, voltara a pensar neles. Iam de vez em quando
à
cidade mais próxima e passavam a noite no hotel. Tinha
reparado
especialmente naquela passagem da carta. Atestava que eles
eram
felizes. Revia Tomas como se ele fosse um dos seus quadros:
em
primeiro plano, um Dom Juan pintado como um cenário aparente
pela mão de um pintor naíf.n através de uma fenda do
cenário, apercebiase um Tristão. Morrera a fazer de
Tristão, não de Dom Juan.
Os pais de Sabina tinham morrido na mesma semana. Tomas e
Tereza no mesmo segundo. De repente, apeteceulhe estar com
Franz.
Quando lhe falara dos seus passeios pelos cemitérios,
Franz tivera quase um vómito e comparara os cemitérios a
depósitos de ossadas e de cascalho. Nesse dia, cavarase
entre eles um abismo incompreensível. Só hoje, no cemitério
de Montparnasse, é que acaba de
compreender o que ele queria dizer. Tem pena de ter sido
impaciente. Se tivessem ficado juntos mais tempo, talvez
tivessem começado a pouco e pouco a compreender as palavras
que pronunciavam.
Os seus vocabulários terseiam aproximado pudicamente,
vagarosamente, como amantes muito tímidos, e a música de
cada um
teria começado a fundirse na música do outro.
Mas, claro, é tarde de mais e Sabina sabe que não ficará
em
Paris, que irá para longe, cada vez mais para longe, porque
se ali
morresse ficaria fechada debaixo de uma pedra, e uma mulher
que
não pode estar parada não suporta a ideia de que lhe acabem
de
uma vez por todas com a caminhada.
11
Todos os amigos de Franz estavam ao corrente do que se
passava com MarieClaude, e todos estavam ao corrente do que
se passava com a universitariazinha dos óculos muito
grandes. Só que a
história de Sabina ninguém a sabia. Franz enganavase ao
pensar
que MarieClaude falava dela às amigas. Sabina era bonita e
MarieClaude não queria que os seus rostos pudessem ser
mentalmente
comparados.
Com medo de ser descoberto, nunca lhe pedira nem um quadro
nem um desenho, nem mesmo uma fotografia de passe. Ela
desvanecerase portanto da sua existência. Passara com ela o
ano
mais belo da sua vida, mas não ficara com nenhuma prova
palpável. Tudo isso só torna ainda maior o prazer de
continuar a serlhe fiel.
Quando se encontram a sós no quarto, às vezes, a sua jovem
amiga levanta a cabeça do livro e poisa um olhar
interrogativo sobre
ele: cnEm que estás tu a pensar?nn
Franz está sentado num sofá com os olhos perdidos no
tecto.
Responda o que responder, está certamente a pensar em
Sabina.
Quando publica um trabalho numa revista científica, a sua
universitariazinha é sempre a primeira a lêlo e quer
discutilo imediatamente com ele. Mas ele, ele só pensa no
que Sabina diria do
texto. Tudo quanto faz, fálo para Sabina e de uma forma de
que
Sabina gostasse.
É uma infidelidade muito inocente, talhada à medida de
Franz,
que é incapaz de fazer mal à sua universitariazinha de
óculos.
O culto de Sabina que pratica tem muito menos a ver com o
amor
do que com a religião.
Aliás, segundo essa teologia, a sua jovem amante foilhe
enviada
por Sabina. Reina portanto uma concórdia perfeita entre o
seu amor
terreno e o seu amor extraterreno e se o seu amor
extraterreno
contém necessariamente (só pelo simples facto de ser
extraterreno,
uma grande dose de inexplicável e de ininteligível (não nos
esqueçamos do léxico de palavras mal entendidas, dessa lista
enorme!), o
seu amor terreno, esse, repousa num verdadeiro entendimento.
A estudante universitária é muito mais nova do que Sabina,
a
partitura musical da sua vida mal começou a ser esboçada e
ela lá a
vai compondo com os temas que tira a Franz. A Grande Marcha
de
Franz também é um artigo da sua fé. Para ela, tal como para
ele, a
música é uma embriaguez dionisíaca. Vão dançar muitas vezes.
Vivem na verdade, não têm segredos para os outros. Procuram
a
companhia dos amigos, dos colegas, de estudantes e de
simples
desconhecidos, sentemse bem à mesa a beber e a conversar
com
eles. De vez em quando, vão em excursão aos Alpes. Franz
dobrase para a frente, a rapariga saltalhe para as costas
e ele levaa a
galope através dos prados, declamando muito alto um longo
poema
alemão que a mãe lhe ensinou quando era pequeno. A pequena
ri
às gargalhadas, e sentese orgulhosa das suas pernas, das
suas costas
e dos seus pulmões.
A única coisa cujo sentido lhe escapa é a singular
simpatia que
Franz manifesta por todos os países sob dominação russa. No
dia do
aniversário da invasão, há uma cerimónia comemorativa levada
a cabo por uma organização checa de Genebra. A sala está
quase vazia.
O orador tem cabelos grisalhos frisados no cabeleireiro. Lê
um
discurso muito comprido e consegue aborrecer mortalmente o
punhado de entusiastas que ali vieram só para ouvilo. Fala
um
francês impecável, mas com um sotaque terrível. De tempos a
tempos, para sublinhar as palavras que profere, aponta com o
indicador, como se estivesse a ameaçar as pessoas que estão
sentadas na
sala.
A universitariazinha dos óculos enormes está sentada ao
lado de
Franz e reprime um bocejo. Mas Franz sorri beatificamente.
Tem os
olhos pregados no homem de cabelos grisalhos, achalhe um ar
simpático, com aquele seu indicador surpreendente. Imagina
que
aquele homem é um mensageiro secreto, um anjo que o mantém
em
comunicação com a sua deusa. Fecha os olhos e sonha. Fecha
os
olhos como sempre os teve fechados por cima do corpo de
Sabina
em quinze hotéis da Europa e num hotel da América.
QUARTA PARTE
O CORPO E A ALMA
Tereza entrou em casa por volta da uma e meia da manhã,
foi à
casa de banho, enfiou um pijama e deitouse ao lado de
Tomas.
Este já dormia. No momento em que, inclinada sobre o seu
rosto,
lhe ia dar um beijo, percebeu que os cabelos deles tinham um
cheiro esquisito. Manteve as narinas lá mergulhadas durante
um bom
bocado. Farejouo como um cão, até que acabou finalmente por
perceber: aquilo era um cheiro de mulher, um cheiro a sexo.
Às seis, ouviuse o toque do despertador. Era a hora de
Karenine. O cão acordava sempre muito antes deles, mas não
se atrevia a
incomodálos. Esperava impacientemente pela campainha do
despertador, porque sabia que só nessa altura é que tinha o
direito de
saltar para a cama dos donos, de pisar os seus corpos e de
arranjar
um lugar para meter o focinho. Ao princípio, tinham tentado
contrariálo e expulsálo da cama, mas o cão era mais
teimoso do
que os donos e acabara por impor os seus direitos. Aliás,
Tereza já
há algum tempo que achava que não era desagradável começar o
dia ao toque de Karenine. Para ele, o momento de acordar era
de
uma felicidade sem mácula: estupidamente, ingenuamente,
espantavase por ainda ser deste mundo e regozijavase
sinceramente com isso. Tereza, em contrapartida, sentiase
contrariada por
acordar e com vontade de que a noite não acabasse. Não lhe
apetecia nada ter de voltar a abrir os olhos.
Agora, Karenine já estava à esperá na entrada, com os
olhos
pregados no cabide onde a coleira e a trela estavam
penduradas.
Tereza pôslhe a coleira e foram às compras. Comprou leite,
pão,
manteiga e, como sempre, um croissant para o cão. À volta,
Karenine vinha ao seu lado, com o croissant na boca: todo
inchado, olhava em torno de si, encantado por ser alvo das
atenções gerais e por
saber que as pessoas passavam o tempo a apontar para ele.
Depois de chegar a casa, o cão ficava a espreitar à porta
do
quarto com o croissant na boca, à espera que Tomas se
apercebesse
da sua presença, se pusesse de gatas, começasse a rosnar e a
fingir
que queria tirarlho. Dia após dia, repetiase a mesma cena.
Passavam uns cinco bons minutos a correr atrás um do outro
pela casa
toda, até que Karenine ia refugiarse debaixo da mesa para
devorar
o seu croissant a toda a velocidade.
Desta vez, porém, foi em vão que esperou pela cerimónia
matinal. Havia um transístor em cima da mesa e Tomas estava
todo
concentrado a ouvir.
A rádio estava a dar um programa sobre a emigração checa.
Era
uma montagem de gravações clandestinas de conversas privadas
feitas por um espião checo que se infiltrara entre os
emigrantes e depois regressara em triunfo ao país. Eram
conversas anódinas e entrecortadas, de quando em vez, por
insultos contra o regime de
ocupação e por frases em que os emigrantes se qualificavam
uns aos
outros como cretinos e impostores.
A emissão insistia sobretudo nestas últimas passagens: com
efeito, era preciso provar que aquela gente não só dizia mal
da União
Soviética (o que já não punha ninguém indignado) como também
que não hesitava em mimosearse com os piores insultos. O
que é
curioso é que dizemos palavrões de manhã à noite, mas basta
ouvirmos na rádio um tipo conhecido e respeitado pontuar o
seu discurso
com uns estoume bem a cagar para eles para,
inconscientemente, nos
sentirmos algo desapontados.
A primeira vítima de uma coisa destas foi Prochazka!nn,
disse
Tomas, sem deixar de prestar atenção àquilo que estava a
ouvir.
Jan Prochazka era um romancista checo de cerca de quarenta
anos, forte como um touro, que, ainda muito antes de 1968,
começou a criticar em voz alta a situação do país. Era um
dos homens
mais populares da Primavera de Praga, essa vertiginosa
liberalização
do comunismo que terminou com a invasão russa. Pouco depois
da
invasão, todos os meios de comunicação social lhe davam o
toque
de rendição, mas quanto mais encurralado se encontrava maior
era a
sua popularidade. Por isso, em 1970, a rádio começara a
transmitir à maneira de um folhetim as conversas privadas
que, dois anos
antes (portanto, na Primavera de 1968). Prochazka tivera com
um certo professor universitário. Nenhum dos dois suspeitava
que havia
um sistema de escuta montado em casa do professor e que, há
muito tempo já, todos os gestos que faziam eram espiados até
ao mais
ínfimo pormenor! Prochazka punha sempre os amigos bem
dispostos
com as suas hipérboles e as suas ousadias. E, agora, essas
suas inconveniências eram regularmente transmitidas pela
rádio! A polícia
secreta, que montara o programa, tivera o cuidado de dar um
relevo
especial a uma passagem em que o romancista fazia troça dos
amigos, entre os quais se contava, por exemplo, Alexandre
Dubcek. As
pessoas não perdem uma ocasião de dizer mal dos amigos, mas,
coisa
curiosa, ficaram mais indignadas contra o seu bemamado
Prochazka
do que contra a polícia secreta unanimemente detestada!
Tomas desligou o aparelho e disse: Todos os países do
mundo
têm uma polícia secreta. Mas só cá é que ela transmite as
gravações
que faz pela rádio! É uma coisa inaudita!
Não tanto como isso!, disse Tereza. Aos catorze anos, eu
tinha
um diário. Tinha medo que alguém o lesse. Escondiao no
sótão. A
minha mãe acabou por descobrilo. Um dia, ao almoço,
enquanto
estávamos a comer a sopa, tirouo da algibeira e disse: "Ora
oiçam
todos com muita atenção!", e pôsse a lêlo em voz alta,
desmanchandose a rir a cada frase. Toda a família se
desmanchou também
a rir e se esqueceu de comer.
Nno desistia de tentar convencêla a deixálo tomar o
pequenoalmoço sozinho e a ficar deitada. Mas ela não lhe
dava ouvidos.
Tomas trabalhava das sete da manhã às quatro da tarde, e ela
das
quatro à meianoite. Se não tomasse o pequenoalmoço com
ele, só
aos domingos é que poderiam falar um com o outro. Portanto,
levantavase ao mesmo tempo do que Tomas e, depois de ele se
ir
embora, deitavase outra vez e passava pelas brasas.
Nesse dia, porém, tinha medo de tornar a adormecer porque
queria ir às dez horas ao sauna da ilha de Sofia. Havia
muitos interessados, poucos lugares e só com uma boa cunha é
que se conseguia frequentálo. Felizmente que a caixa era
mulher de um professor que tinha sido expulso da
universidade. O professor era amigo
de um antigo doente de Tomas. Tomas falara ao doente, o
doente
falara ao professor, o professor à mulher e Tereza agora
tinha lugar
marcado uma vez por semana.
Foi a pé. Detestava os eléctricos sempre a abarrotar, onde
as
pessoas se apertavam rancorosamente umas de encontro às
outras,
se pisavam, arrancavam os botões dos respectivos casacos e
se injuriavam.
Caía uma chuva fininha. As pessoas andavam com um passo
apressado, com os chapéusdechuva abertos por cima da
cabeça e,
de repente, davase a grande confusão. Os chapéusdechuva
chocavam uns com os outros. Os homens eram delicados e, ao
passar por
Tereza, levantavam os chapéusdechuva. Mas as mulheres não
se
desviavam um milímetro. Olhavam a direito, com um ar de
nande
dureza, sempre à espera que a outra se reconhecesse como
mais
fraca e capitulasse. O choque dos chapéusdechuva era uma
prova de força. Ao princípio, Tereza desviavase, mas,
quando percebeu
que ninguém lhe retribuía a delicadeza, passou a segurar o
chapéudechuva com toda a força como as outras faziam. Por
diversas
vezes, o seu chapéudechuva chocou violentamente com
outros, mas
nunca ninguém pediu desculpa. A maior parte das mulheres
continuava de dentes cerrados; só ouviu por duas ou três
vezes: nnPuta!nn
ou Merda!nn
Armadas com os seus guardachuvas, havia mulheres de todas
as
idades, mas as novas contavamse entre as combatentes mais
intrépidas. Tereza lembravase dos dias da invasão.
Raparigas de minissaia
passavam e voltavam a passar com a bandeira nacional
hasteada
num pau. Era um atentado ao pudor dos soldados russos
forçados
há vários anos à ascese sexual. Em Praga, deviam julgar que
estavam num planeta inventado por um romancista de ficção
científica,
um planeta povoado de mulheres incrivelmente elegantes a
exibirem
o seu desprezo do alto de pernas tão longas e esculturais
como há
cinco ou seis séculos a Rússia inteira não vira.
Durante aqueles dias, Tereza fotografara essas mulheres
com os
carros de assalto a servirem de pano de fundo. Admiravaas
tanto
nessa altura! E eram exactamente as mesmas mulheres que hoje
via
avançar ao seu encontro, quezilentas e vulgares. À laia de
bandeira,
erguiam um chapéudechuva, mas continuavam a segurálo com
o
mesmo orgulho. Afrontavam um exército estrangeiro tão
encarniçadamente como o chapéudechuva que lhes impedia a
passagem.
Agora está a chegar à praça da Cidade Velha, onde se ergue
a
catedral de Tyn e as rasas barrocas se dispõem num
quadrilátero
irregular. A antiga Câmara Municipal do século xIv, que
antes ocupava um lado inteiro da praça, há vinte e sete anos
que se encontrava em ruínas. A Segunda Guerra Mundial
mutilou horrorosamente
Varsóvia, Dresden, Colónia, Budapeste, Berlim, mas os seus
habitantes reconstruíramnas e, de uma forma geral,
capricharam em
restaurar escrupulosamente os bairros históricos. Os
habitantes de
Praga sentiamse inferiorizados com essas cidades. O único
monumento que a guerra lhes destruiu foi a antiga Câmara
Municipal.
Decidiram portanto conservála assim, com medo que o
primeiro
polaco ou o primeiro alemão que passassem os censurassem por
não
terem sofrido o suficiente. Diante desse ilustre entulho,
encarregado
de representar para toda a eternidade a condenação da
guerra,
erguese uma tribuna de barras metálicas que se destina à
manifestação a que o Partido Comunista conduziu ontem ou
tornará a
conduzir amanhã o povo de Praga.
Tereza olhava para os escombros da Câmara Municipal e, de
súbito, aquele espectáculo fêla pensar na mãe: era a mesma
necessidade perversa de expor as ruínas, de se gabar da
fealdade, de exibir
a miséria, de pôr o coto à mostra e obrigar toda a gente a
ver.
Nestes últimos tempos, tudo lhe fazia lembrar a mãe, como se
o
universo materno a que escapara uma dezena de anos antes
tivesse
vindo outra vez ao seu encontro e a cercasse por todos os
lados.
Era por isso que contara ao pequenoalmoço que a mãe lhe lia
o
diário íntimo no meio da galhofa geral. O facto de uma
conversa de
dois amigos diante de um copo ser transmitida pela rádio só
pode significar uma coisa: é que o mundo se encontra
transformado num
campo de concentração.
Tereza usava estas palavras quase desde a infância para
exprimir
a ideia que lhe dava a vida da família. O campo de
concentração é
um mundo em que as pessoas estão condenadas a viver
perpetuamente, de dia e de noite, umas em cima das outras.
As crueldades e
as violências não são senão um aspecto secundário e
perfeitamente
dispensável. O campo de concentração é a liquidação total da
vida
privada. Prochazka, que nem a discutir diante de um copo com
um
amigo na sua própria casa se encontrava abrigado, vivia (sem
suspeitar disso, o que foi precisamente o seu erro fatal!)
num campo de
concentração. Quando Tereza vivia em casa da mãe, vivia num
campo de concentração. Sabia desde esse tempo que o campo de
concentração não é nada de excepcional, nada que nos deva
surpreender, mas qualquer coisa de dado, de fundamental,
qualquer
coisa onde se chega quando se vem ao mundo e de onde não nos
podemos evadir senão através de uma extrema tensão de todas
as
nossas forças.
Sentadas em três bancos dispostos em socalcos, as mulheres
apertavamse umas de encontro às outras. Uma rapariga de
cerca de
trinta anos, de feições delicadas e .bonitas, transpirava ao
lado de
Tereza. Um pouco abaixo dos ombros tinha dois seios
incrivelmente
volumosos pendurados, que ao menor movimento se punham logo
a
balançar. Quando se levantou, Tereza viu que atrás também
parecia
ter dois sacos enormes que não tinham nada a ver com o seu
rosto.
Quem sabe se aquela mulher também não passava longos
momentos diante do espelho a olhar para o corpo e a tentar
ver a alma
à sua transparência, como Tereza fazia desde criança? Com
certeza
que também ela devia ter estupidamente julgado que o seu
corpo
havia de ser o brasão da sua alma. Mas se fosse parecida com
aquele cabide com dois pares de sacolas penduradas, devia
ser bem monstruosa, essa sua alma!
Tereza levantouse para ir para o duche. Depois foi tomar
ar.
Continuava a chuviscar. Encontravase num pontão lançado
sobre
uns poucos de metros quadrados do Vltava entre painéis de
madeira
muito altos que abrigavam as senhoras dos olhares da cidade.
Ao
baixar a cabeça, apercebeu à tona da água a cara da mulher
em
quem tinha estado a pensar.
Ela sorrialhe. Tinha um nariz fino, grandes olhos
castanhos e
um olhar infantil.
Subia a escada e, por debaixo daquele rosto delicado,
voltaram a
aparecer as duas sacolas a baloiçar e a projectar em redor
minúsculas gotas de água fria.
Foise vestir. Tinha um grande espelho diante de si.
Não, o seu corpo não tinha nada de monstruoso. Não tinha
dois
sacos pendurados abaixo dos ombros, mas uns seios
relativamente
pequenos. A mãe fazia pouco dela por eles não serem
suficientemente grandes, por não serem tão grandes como os
seios devem ser,
o que fizera com que ganhasse complexos de que só Tomas
acabara
por livrála. Agora, já aceitava perfeitamente as suas
dimensões. Só
não gostava daquelas auréolas grandes de mais e escuras de
mais à volta
dos mamilos. Se tivesse podido desenhar o seu próprio corpo,
teria mas
era uns mamilos discretos, delicados, pouco salientes em
relação à curva
do seio e de uma cor que mal se distinguisse da cor do resto
da pele.
Aqueles grandes alvos vermelhoescuros pareciamlhe obra de
um
pintor de aldeia especializado em imagens obscenas para
necessitados.
Examinavase a si própria e ia imaginando o que
aconteceria se
o nariz lhe crescesse um milímetro por dia. Quanto tempo
demoraria o seu rosto a ficar irreconhecível?
E se todas as partes do corpo lhe começassem a crescer e a
diminuir até deixar de ter qualquer semelhança com Tereza,
ainda
continuaria a ser a mesma, ainda haveria uma Tereza?
Com certeza que sim. Mesmo supondo que Tereza passasse a
ser
completamente diferente de Tereza, lá dentro, a sua alma
continuaria sempre a mesma e não poderia fazer nada senão
assistir horrorizada ao que lhe estava a acontecer ao corpo.
Mas, então, que relação haveria entre Tereza e o seu
corpo?
O seu corpo teria algum direito de se chamar Tereza? E se
não tivesse, o que designaria então esse nome? Nada a não
ser uma coisa
incorpórea, intangível?
146
(Desde a infância que as mesmas perguntas bailam na cabeça
de
Tereza. Porque as perguntas verdadeiramente importantes são
as
que uma criança pode formular e apenas essas. Só as
perguntas
mais ingénuas são realmente perguntas importantes. São as
interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta
para a qual
não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode
passar.
Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para
as
quais não há resposta que marcam os limites das
possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa
existência.)
Tereza encontrase imóvel, como que enfeitiçada, em frente
do
espelho, e olha para o seu corpo como se este lhe fosse
estranho;
estranho, embora no cadastro dos corpos este seja o seu. Dá
lhe
vómitos. Não teve força suficiente para tornarse o único
corpo da
vida de Tomas. Foi enganada por aquele corpo. Durante uma
noite
inteira, tinha aspirado o cheiro íntimo de outra com que o
cabelo do
marido estava completamente impregnado!
Apetecelhe, de repente, despedir aquele corpo como se
despede
uma criada. Apetecelhe não ser para Tomas senão uma alma e
expulsar aquele corpo para bem longe, para ele passar a
comportarse
como os outros corpos femininos se comportam com os corpos
masculinos! Já que o seu corpo não soube substituir todos os
outros
corpos para Tomas e perdeu a maior batalha da vida de
Tereza,
muito bem!, agora pode irse embora!
Voltou para casa e almoçou sem apetite, de pé, na cozinha.
Às
três e meia, pôs a trela a Karenirìe e (sempre a pé) foi com
ele para
o hotel onde trabalhava e que ficava num bairro suburbano.
Quando
fora despedida da revista, arranjara um lugar de criada de
bar.
A coisa passarase alguns meses depois de vir de Zurique;
afinal,
sempre tinham acabado por não lhe perdoar que tivesse
fotografado
ininterruptamente durante sete dias os tanques russos.
Obtivera
aquele emprego graças a uns amigos: outras pessoas que
tinham
perdido o emprego mais ou menos na mesma altura do que ela
também lá encontraram refúgio. Na contabilidade, havia um
antigo
professor de teologia, na recepção, um antigo embaixador.
Andava outra vez preocupada com as pernas. Dantes, quando
era criada na província, ficava assustada quando via como as
pernas
das colegas estavam cobertas de varizes. Todas as raparigas
que trabalhavam de pé, que passavam a vida a andar e a
correr carregadas
com pesos ficavam assim. De qualquer forma, aquele trabalho
era
menos duro que o outro. Embora antes de começar o serviço
tivesse
de transportar as caixas de cerveja e de água mineral, o
resto do
tempo passavao atrás do balcão, a servir bebidas aos
clientes e, nos
intervalos, a lavar os copos num pequeno lavaloiça
instalado na outra extremidade do bar.
Já passava da meianoite quando acabou as contas e foi dar
o
dinheiro ao director do hotel. Depois, foi despedirse do
embaixador
que estava de serviço à noite. Atrás do longo balcão da
recepção
havia uma porta que dava para uma alcova onde se podia
passar
pelas brasas numa cama muito estreita. Por cima do divã, a
parede
estava coberta de fotografias emolduradas onde o embaixador
se encontrava sempre acompanhado por pessoas que sorriam
para a objectiva, lhe apertavam a mão, ou estavam sentadas a
seu lado numa
enorme secretária a assinar papéis. Em lugar de destaque,
havia
uma fotografia onde se reconhecia ao lado da cabeça do
embaixador
o rosto sorridente de John F. Kennedy.
Não era com o Presidente dos Estados Unidos que ele estava
a
discutir nessa noite, mas com um sexagenário desconhecido
que se
calou quando Tereza entrou.
É uma amiga, disse o embaixador. Podes falar à
vontade.nn
Depois, voltandose para Tereza, explicou: 0 filho dele
foi hoje
mesmo condenado a cinco anos de cadeia.nn
Contaramlhe que, nos primeiros dias da invasão, o filho
daquele
senhor de idade e mais alguns amigos estavam de vigia à
entrada de
um prédio onde se encontrava instalada uma secção especial
do
exército russo. Qualquer checo que lá aparecesse era
seguramente
informador dos russos. Ele e os amigos seguiamnos, tiravam
a
matrícula dos automóveis e denunciavamnos aos jornalistas
de uma
emissora checa clandestina, que punham a população de
sobreaviso.
Uma vez com a ajuda dos amigos dera uma tareia num deles.
O senhor de idade dizia: A única prova material é esta
fotografia. O meu filho negou sempre tudo até que lha
mostraram.nn
Tirou um recorte de jornal do bolso de cima: Veio
publicada
no Times, no Outono de 1968.nn
Na fotografia, viase um rapaz a agarrar um homem pelo
pescoço. Havia gente à volta a ver. A legenda era: o castigo
de um colaborador.
Tereza ficou aliviada. Não, não fora ela que tirara aquela
fotografia.
Acompanhada por Karenine, voltou para casa pelo escuro das
ruas de Praga. Pensava nos dias que passara a tirar
fotografias a
tanques. Como tinham sido ingénuos, todos eles! Convencidos
que
arriscavam a vida pela pátria, estavam mas era a facilitar a
vida à
polícia russa!
Chegou a casa à uma e meia. Tomas já dormia. Dos seus
cabelos, desprendiase um cheiro a mulher, um cheiro a sexo.
aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante,
assim tão
grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada,
expressamente convocada, excessiva. Rompeuse o equilíbrio
entre a promessa e a falta de garantias (no qual reside
precisamente o autêntico virtuosismo da coqueterie!).
Promete, mas sem a clareza suficiente, para fazer ver que a
sua promessa não a compromete a nada.
Ou, dito de outra maneira, todos julgam que é uma mulher
extraordinariamente fácil. E depois, quando os homens
reclamam o pagamento daquilo que pensam que lhes foi
prometido, deparam com
una resistência inesperada que só pode encontrar explicação
na refinada crueldade de Tereza.
O que é a coquetterie? Pode talvez dizerse que é um
comportamento que deve sugerir que a aproximação sexual é
possível, sem
que essa eventualidade possa ser tida como certa. Ou, por
outras
palavras, a coquetterie é uma promessa de coito, mas uma
promessa
sem garantias.
Tereza encontrase de pé atrás do balcão do bar e os
clientes a
quem serve bebidas passam o tempo a meterse com ela. Ser
lheá
desagradável essa onda contínua de cumprimentos, de
subentendidos, de anedotas pesadas, de convites, de sorrisos
e de olhares? De
forma nenhuma. Sente um desejo incontrolável de oferecer o
corpo
(aquele corpo estranho que gostaria de expulsar para longe),
de
oferecêlo a essa ressaca.
Tomas não se cansa de insistir que, entre o amor e o acto
de
amor, há todo um universo. Tereza recusavase a admitilo.
Agora,
está permanentemente rodeada de homens que não lhe inspiram
a
mínima simpatia. O que sentiria se fosse para a cama com um
deles? Tem vontade de experimentar, pelo menos sob essa
forma de
promessa sem compromisso que é a coquerterie.
Mas, não nos enganemos! Não procura vingarse de Tomas. Só
procura uma saída para o labirinto onde se encontra perdida.
Sabe
que lhe é pesada: leva as coisas demasiado a sério, leva
tudo para o
trágico, não consegue compreender a leveza e a alegre
futilidade do
amor físico. Gostava tanto de aprender a leveza! Gostava
tanto que
lhe ensinassem a deixar de ser anacrónica!
Se, para outras mulheres, a cnoquetterie é uma segunda
natureza,
uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela
será o
campo de uma importante investigação que deve fazerlhe
descobrir
Um adolescente veio sentarse num tamborete vago. Não
teria
mais de dezasseis anos. Proferiu alguns ditos provocantes
que se incrustávam na conversa como, num desenho, se
incrusta um traço em
falso tão impossível de prolongar como de apagar.
Você tem umas lindas pernasnn, disse.
Tereza empertigouse: Como se elas se pudessem ver
através
do balcão!n
Já a conhecia. Costumo vêla na ruann, explicou o
rapaz.
Mas Tereza tinhase afastado e estava a atender outros
clientes.
O adolescente pediu uma aguardente. Ela disse que não lha
servia.
Já fiz dezoito anos, protestou o adolescente.
Então deixeme ver o seu bilhete de identidade!
Nem pensar nisso, replicou o adolescente.
Como queira! Voulhe servir uma limonada!nn
Sem acrescentar palavra, o adolescente levantouse do
tamborete
e saiu. Mais ou menos meia hora depois, voltou a entrar e a
sentarse no bar. Fazia gestos muito exagerados e tresandava
a álcool a
três metros de distância.
Uma limonada!
Você está bêbado!nn, disse ela.
O adolescente apontou para um aviso pendurado na parede
que
ficava atrás de Tereza: É expressamente proibido servir
bebidas alcoólicas a menores de dezoito anos.
Está proibida de me servir bebidas alcoólicas, disse,
apontando
para Tereza com um gesto muito pronunciado. Mas não está
escrito
em sítio nenhum que eu não tenho o direito de estar bêbado
neste
bar.
Onde, é que se foi pôr nesse lindo estado?
Na tasca do outro lado!nn, disse. Deu uma grande
gargalhada e
voltou a exigir uma limonada.
Então porque é que não ficou lá?
Porque quero olhar para si, disse o adolescente. Amo
a.nn
E, ao dizêlo, tinha o rosto estranhamente crispado.
Tereza não
estava a entender: o rapaz estaria a gozar com ela? Aquilo
seria
uma proposta? Ou uma brincadeira? Ou ele estava simplesmente
bêbado e não sabia o que dizia?
Poisoulhe uma limonada à frente e foi atender outros
clientes.
A declaração de amor parecia ter esgotado todas as forças do
adolescente. Não disse mais nada, pôs silenciosamente o
dinheiro em
cima do balcão e retirouse sem Tereza dar por isso.
Mas, mal acabara de sair, um homenzinho careca, que já ia
no
terceiro vodka, tomou a palavra: Minha senhora, não sabe
que não
pode servir bebidas alcoólicas a adolescentes?
Más eu não lhe servi bebida alcoólica nenhuma! Ele só
bebeu
uma limonada!
Vi muito bem o que é que lhe estava a deitar para dentro
da
limonada!
O que é que está para aí a dizer?, exclamou Tereza.
Outro vodka, ordenou o careca e acrescentou: n"Já a
trago debaixo de olho há muito tempo.
Pois dêse por muito feliz por poder olhar para uma
muther
bonita e cale mas é o bico!nn, interveio um homem alto que,
entretanto, se tinha aproximado do balcão e assistira à cena
toda.
Não tem nada que se meter onde não é chamado! Isto não é
da sua conta!, berrou o careca.
E você, podeme explicar o que é que tem a ver com isto?
nn,
perguntou o homem alto.
Tereza serviu ao careca o vodka que o careca tinha pedido.
Ele
bebeuo de um trago, pagou e saiu.
Agradeçolhe muito, disse Tereza ao homem alto.
Não tem de quênn, disse o homem alto, que, por sua vez,
também se foi embora.
10
Alguns dias mais tarde, voltou a aparecer no bar. Ao vê
lo, ela
sorriulhe como a um amigo: nnTenho que voltar a agradecer
lhe.
Aquele careca está cá sempre caído e é tremendamente
desagradável.
Não pense mais nisso!
Porque é que no outro dia ele estaria a embirrar comigo?
Não passa de um bêbado! Peçolhe mais uma vez: não pense
mais nisso!
Já que é você que mo pede, vou mesmo deixar de
pensar.nn
O homem alto olhavaa nos olhos: nnTem que me prometer.
Prometolhe.
Gosto de a ouvir prometerme alguma coisann, disse o
homem
alto sem deixar de olhála nos olhos.
Estavam em plena coquetterie: aquele comportamento que
deve
sugerir que a aproximação sexual é possível, mesmo que se
trate
apenas de uma eventualidade sem garantias e absolutamente
teórica.
"o que é que uma mulher como você faz no bairro mais feio
de
Praga?, perguntou ele.
E você? O que é que o traz aqui, ao bairro mais feio de
Praga? nn
Ele disselhe que morava perto, que era engenheiro e que
da
outra vez tinha entrado perfeitamente por acaso ao voltar do
emprego.
11
Ela olhava para Tomas. O seu olhar não se dirigia para os
olhos
dele, mas uns dez centímetros mais para cima, para os
cabelos dele
que cheiravam ao sexo de outra.
Disse: <<Não posso mais, Tomas. Bem sei que não tenho o
direito de me queixar. Desde que voltaste para Praga por
minha causa
proibime a mim própria de ter ciúmes. Não quero ter ciúmes,
mas
não consigo dominarme, não tenho força suficiente. Ajuda
me, por
favor! nn
Ele deulhe o braço e levoua a um largo onde, uns anos
antes,
costumavam ir passear. O largo tinha bancos: azuis,
amarelos, vermelhos. Sentaramse e Tomas disselhe:
n"Eu compreendote. Sei o que é que tu queres. Já tratei
de tudo. Agora, tens de ir ao MontedePedra.nn
Sentiuse imediatamente invadida pela angústia. nnAo
MontedePedra? O que é que eu vou fazer ao MontedePedra?
Sobes lá acima e logo vês.nn
Ela não tinha vontade nenhuma de irse embora; o seu corpo
estava tão fraco que não conseguia despregarse do banco.
Mas não
podia desobedecer a Tomas. Eez um esforço para se levantar.
Voltouse para trás. Ele continuava sentado no banco e
sorrialhe quase com alegria. Acenoulhe com a mão,
certamente para lhe
dar coragem.
12
Ao chegar ao MontedePedra, uma colina verdejante que se
ergue no centro de Praga, percebeu com espanto que não
estava lá
ninguém. Era estranho porque habitualmente, e seja a que
horas
for, as suas áleas estão sempre cheias de gente que lá vai
apanhar
ar. Sentiase extremamente angustiada, mas o monte estava
tão silencioso e o silêncio era tão tranquilizante que se
entregava confiadamente a ele. Subiu, parando de vez em
quando para olhar para trás.
A seus pés, descobriase uma infinidade de torres e de
pontes. Os
santos, com os seus olhos petrificados e postos nas nuvens,
erguiam
ameaçadoramente os punhos. Era a cidade mais bonita do
mundo.
Chegou ao cimo. Por trás dos pavilhões onde habitualmente
se
vendiam gelados, postais e bolos (naquele dia não havia
vendedores), estendiase a perder de vista um enorme relvado
pontuado,
aqui e além, por algumas árvores. Viu lã alguns homens.
Quanto
mais perto estava deles, mais devagar andava. Eram seis. Ou
estavam parados ou caminhavam lentamente de trás para a
frente e da
frente para trás, um pouco como se fossem jogadores de golfe
a
examinar o relevo do terreno, a tomar o peso ao taco e a
concentrarse para o início do torneio.
Por fim, sempre acabou por chegar ao pé deles. Tinha a
certeza
que três estavam ali exactamente para o mesmo que ela.
Intimidados, davam a impressão de querer fazer uma data de
perguntas, mas
também de ter medo de incomodar, de forma que preferiam
estar
calados a olhar em torno de si com um ar perplexo.
Dos outros três irradiava uma indulgente bonomia. Um
destes
três tinha uma espingarda na mão. Ao ver Tereza, fezlhe
sinal e
sorriu: nSim, é aqui.nn
Cumprimentouo com a cabeça e sentiuse terrivelmente mal.
O homem acrescentou: "Para que não haja enganos, é mesmo
de
sua vontade?nn
Era fácil dizer: cnNão, não venho de livre vontadenn; mas
trair a
confiança de Tomas era uma coisa impensável. Que desculpa
iria
invocar quando chegasse a casa? De modo que disse:
cnClaro. Evidentemente. É de minha livre vontade.nn
O homem da espingarda prosseguia: nnQuero que compreendam
porque é que eu lhes faço esta pergunta. Só fazemos isto
quando
temos a certeza de que os que vêm ter connosco estão
expressa mente decididos a morrer. É um serviço que lhes
prestamos.nn
O seu olhar interrogativo continuava poisado em Tereza e
esta
sentiu que tinha de voltar a confirmarlhes a sua
resolução: nnNão,
não tenham receio! Vim de livre vontade.
Quer ir em primeiro lugar?nn, perguntou ele.
Ela queria retardar a execução, nem que fosse só por
alguns instantes.
i Não, por favor, não quero. Se fosse possível, gostava de
ir em
último lugar.
Como queirann, disse o homem, e aproximouse dos
outros. Os
I seus dois assistentes não tinham arma nenhuma e só ali
estavam
para se ocupar das pessoas que iam morrer. Agarravamnas
pelo
braço e acompanhavamnas na sua caminhada pelo relvado.
Era
; uma imensa superfície coberta de relva que se estendia a
perder de
' vista. Os candidatos à execução podiam escolher a árvore
que que; riam para si. Paravam, olhavam demoradamente e não
conseguiam
tomar uma decisão. Por fim, dois escolheram plátanos, mas
o terceiro, não encontrando árvore que fosse digna da sua
morte, foise
afastando cada vez mais para longe. O assistente, que lhe
agarrava
displicentemente no braço, acompanhavao sem dar qualquer
sinal
; de impaciência, mas em breve ele perdeu a coragem de
avançar e
; parou perto de um bordo frondoso.
I, Os assistentes vendaram os olhos dos três homens.
No imenso relvado havia portanto três homens encostados a
três
i
troncos de árvores, cada um deles com uma venda nos olhos
e a
cabeça voltada para cima.
O homem da espingarda fez pontaria e disparou. A parte o
canto dos pássaros, não 'se ouviu mais barulho nenhum. A
espingarda estava munida com um silenciador. Só se via que o
homem encostado ao bordo já não se aguentava em pé.
Sem se afastar do local onde se encontrava, o homem da
espingarda voltouse noutra direcção e, por seu turno, a
personagem encostada ao plátano começou a dobrarse sobre si
própria no meio de
um silêncio absoluto, e alguns instantes mais tarde (o homem
da
espingarda girava sobre si próprio) o terceiro candidato à
tortura
também caiu sobre a relva.
13
Sem dizer palavra, um dos assistentes aproximouse de
Tereza.
Trazia uma venda azul escura na mão.
Ela percebeu que ele lhe queria vendar os olhos. Abanou a
cabeça e disse: n"Não, eu quero ver tudo.nn
Mas na verdade não era por isso que não queria que lhe
vendassem os olhos. Não tinha nada daqueles heróis que olham
decididamente para o pelotão de fuzilamento de olhos nos
olhos. Tentava
era retardar um pouco o momento da morte. Estava convencida
de
que, a partir do instante em que tivesse os olhos vendados,
se encontraria já na antecâmara da morte, donde já não
haveria esperança de regresso.
O homem não tentou forçála e agarroua pelo braço.
Caminhavam pelo imenso relvado e Tereza nunca mais se
decidia a escolher
a árvore junto da qual morreria. Ninguém a obrigava a ter
pressa,
mas ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, não podia
escapar. Vendo à sua frente um castanheiro em flor,
aproximouse dele.
Encostouse ao tronco e levantou a cabeça: viu a folhagem
atravessada pelos raios de sol e, muito ao longe, ouviu a
cidade a murmurar debilmente, docemente, como se o seu
murmúrio fosse o rumor
de mil e um violinos a tocar:
O homem ergueu a espingarda.
Ela já tinha perdido a coragem toda. Sentiase desesperada
com
a sua fraqueza, mas não conseguiu dominála. Disse: nnNão!
Não é
de minha livre vontade!nn
O homem baixou imediatamente o cano da espingarda e disse,
com toda a calma: cnSe não é de sua livre vontade, não
podemos
fazêlo. Não temos esse direito.nn
Com o corpo sacudido pelos soluços, abraçavase à árvore,
como
se aquilo não fosse uma árvore mas o pai que perdera, o avô
que
nunca conhecera, o bisavô, o trisavô, cm homem infinitamente
'velho, vindo das mais longínquas profundezas do tempo para
lhe oferecer o seu rosto sob a máscara da casca rugosa de
uma árvore.
Voltouse. Os três homens já estavam longe, caminhavam
para
diante e para trás sobre o relvado como jogadores de golfe,
e era
isso mesmo, era exactamente um taco de golfe que fazia
lembrar a
espingarda na mão daquele que estava armado.
Descia as áleas do MontedePedra e levava no fundo da
alma a
recordação nostálgica do homem que devia têla fuzilado e
não o
fizera. Tinha necessidade dele. Tinha necessidade de alguém
que pudesse ajudála no fim! Tomas não a ajudaria. Tomas
queria que ela
morresse. Só outro homem podia ajudála!
Quanto mais perto estava da cidade, mais forte era essa
sua espécie de nostalgia por aquele homem e mais forte era o
medo que
sentia de Tomas. Ele não lhe perdoaria não ter cumprido a
sua promessa. Não lhe perdoaria ter perdido a coragem e tê
lo traído. Já se
encontrava na rua onde moravam e sabia que, de um momento
para
o outro, ele iria aparecer. Foi uma ideia que a pôs em
pânico; deulhe dores de estômago, deulhe vontade de
vomitar.
15
O engenheiro convidaraa para ir a casa dele. Já dissera
que não
duas vezes. Desta vez, aceitara.
Almoçou, como de costume, em pé, na cozinha e saiu. Tinham
acabado de dar duas horas.
Aproximavase do sítio onde ele morava e sentia que as
suas
pernas, privadas do impulso da vontade, se punham por si sós
a
afrouxar a passada.
Depois pensou que, na realidade, era Tomas que a fazia ir
a
casa desse tipo. Pois não era ele que passava o tempo a
explicarlhe
que o amor e a sexualidade não têm nada em comum? Só ia à
procura da confirmação das suas palavras. Parecialhe ouvir
a voz
dele a dizerlhe: n<Eu compreendote. Sei o que é que tu
queres. Já
tratei de tudo. Sobes lá acima e logo vês.nn
Sim, na verdade não fazia senão executar as ordens de
Tomas.
Não queria ficar senão um momento em casa do engenheiro,
senão o tempo de tomar um café, senão o tempo de descobrir o
que é
que acontece quando se avança até à fronteira da
infidelidade. Queria empurrar o corpo até essa fronteira,
deixálo lá, como num pelourinho, apenas por um instante e
depois, no momento em que o
engenheiro tentasse tomála nos braços, diria, como dissera
ao homem da espingarda no monte de pedra: nnNão, não! não é
de minha
livre vontade!nn
E o homem baixaria o cano da espingarda e diria com uma
voz
doce: <"Se não é de sua livre vontade, não podemos fazêlo.
Não
temos esse direito.nn
Virarseia para o tronco da árvore e desataria a soluçar.
16
Era um prédio do começo do século que ficava num bairro
operário dos subúrbios de Praga. Penetrou num corredor de
paredes
caiadas e muito sujas. Subiu até ao primeiro andar pelos
degraus
usados de uma escada de pedra com corrimão de metal. Virou à
esquerda. Era a segunda porta. Não tinha nem cartãode
visita nem
campainha. Bateu.
Ele veio abrir.
A casa compunhase de uma única divisão cortada por um
cortinado a dois metros da porta para dar a ilusão de que
havia outra
sala à entrada; aí estavam uma mesa com um fogareiro e um
pequeno frigorífico. Avançando para dentro, apareceulhe o
rectângulo
vertical da janela na extremidade de uma divisão estreita e
comprida; de um lado, havia estantes, do outro, um divã e um
único sofá.
nnÉ tudo muito simples cá em casa, disse o engenheiro.
Espero
que não se importe.
Claro que não>n, disse Tereza com os olhos pregados na
parede inteiramente coberta de estantes cheias de livros. O
tipo não tinha sequer uma mesa digna desse nome, mas tinha
centenas de
livros. Foi uma coisa que acalmou Tereza; a angústia que a
acompanhara até aqui começava a desvanecerse. Desde criança
que via no
livro o santoesenha de uma irmandade secreta. Quem tinha
uma
biblioteca assim não podia fazerlhe mal.
Ele perguntoulhe o que é que lhe podia oferecer. Vinho?
Não, não; não queria vinho. Se tomasse alguma coisa,
seria café.
Ele desapareceu por trás do cortinado e ela aproximouse
das
estantes. Estava lá um livro que a fascinava. Era uma
tradução do
Rei Édipo de Sófocles. Era tão estranho encontrar esse livro
em casa daquele desconhecido! Uns anos antes, Tomas
oferecerao a Tereza
pedindolhe para o ler com toda a atenção, e falaralhe
demoradamente dele. Publicara em seguida as suas reflexões
num jornal e
fora precisamente esse artigo que alterara radicalmente a
vida de
ambos. Olhava para a lombada do livro e iase acalmando. Era
como se Tomas ali tivesse deixado deliberadamente o rasto ou
uma
mensagem que significava que tinha sido tudo arranjado por
ele. Pegou no livro e abriuo. Quando o homem alto voltasse,
havia de
perguntarlhe porque é que tinha esse livro, se já o tinha
lido e o
que é que pensava dele. Assim, através dessa artimanha,
passaria do
perigoso território da casa do desconhecido para o universo
familiar
das ideias de Tomas.
Sentiu uma mão no ombro. O homem tiroulhe o livro da mão,
arrumouo em silêncio na biblioteca e conduziua até ao
divã.
Voltou a pensar na frase que dissera ao homem do Montede
Pedra. Desta vez, pronuncioua em voz alta: nnNão, não! Não
é de
minha livre vontade!nn
Estava convencida de que aquilo era uma fórmula encantada
que
ia resolver imediatamente a situação, mas naquele quarto as
palavras
perderam o seu poder mágico. Por mim, penso mesmo que
incitaram o homem a mostrarse ainda mais firme: apertoua
contra ele e
pôslhe a mão sobre um seio.
Coisa estranha: esse contacto libertoua imediatamente da
angústia que sentia. Como se, com esse contacto, o
engenheiro lhe tivesse
mostrado o seu próprio corpo e ela tivesse compreendido que
o que
estava em jogo não era ela (ou seja, a sua alma), mas única
e exclusivamente o seu corpo. Esse corpo que a traíra e que
ela expulsara
para longe de si, para junto dos outros corpos.
17
O homem desabotooulhe um botão da blusa e, com um gesto,
mandoua continuar. Não obedeceu. Expulsara o seu corpo para
longe de si, mas não queria assumir nenhuma responsabilidade
por
ele. Não se defendia, mas também não o ajudava. Era a sua
alma
que estava a mostrar .que, embora reprovando o que se estava
a
passar, decidira manterse neutra.
Ele despiaa e, enquanto isso, Tereza encontravase quase
inerte.
Quando a beijou, os seus lábios não lhe responderam. Depois,
apercebeuse subitamente e com consternação de que tinha o
sexo molhado.
Sentiase excitada e tanto mais excitada quanto era contra
sua
vontade. A alma dava já secretamente o seu aval a tudo o que
estava a passarse, mas, ao mesmo tempo, também sabia que,
para prolongar essa grande excitação, o seu assentimento
deveria manterse
tácito. Se tivesse dito sim em voz alta, se tivesse aceitado
expressamente participar na cena de amor, a excitação teria
desaparecido.
Porque o que excitava a alma era precisamente ser traída
pelo corpo
que agia contra sua vontade, e, ao mesmo tempo, assistir a
tal traição.
Depois, o homem tiroulhe as cuecas; agora, estava
completamente nua. A alma via o corpo desnudado nos braços
do desconhecido e o espectáculo parecialhe tão incrível
como contemplar de
perto o planeta Marte. Iluminado pelo inverosímil, o corpo
perdia
pela primeira vez a sua banalidade; pela primeira vez,
olhavao com
uma espécie de encantamento mágico, pois tudo o que
constituía a
sua singularidade e o tomava único e inimitável se
encontrava projectado para primeiro plano. Deixara de ser o
corpo mais vulgar de todos (era assim que o via até agora),
para tornarse o mais extraordinário dos corpos. A alma não
conseguia desprender os olhos da
pinta acastanhada do sinal de nascença que tinha logo acima
dos
pêlos; via nesse sinal o selo com que ela própria (a alma)
marcara o
corpo, e o movimento do membro estranho tão perto desse
estinna
parecialhe um sacrilégio.
E quando levantou os olhos e viu a cara dele, lembrouse
de que
nunca aceitara que o corpo, onde a alma gravára a sua
assinatura,
pudesse encontrarse nos braços de alguém que não conhecesse
e
não quisesse vir a conhecer. Ficou aturdida de ódio. Puxou a
saliva
aos lábios para lhe cuspir na cara. Observavamse ambos com
a
mesma avidez; ele apercebeuse da cólera dela e precipitou
os movimentos. Tereza, sentindo ao longe a volúpia a começar
a invadila,
pôsse a gritar: n<Não, não, nãonn, resistia ao prazer que
se aproximava e, ao resistirlhe, a volúpia reprimida
irradiava longamente por
todo o seu corpo, que não lhe deixava qualquer saída por
onde se
escapar; o prazer propagavase nela como morfina injectada
numa
veia. Debatiase nos braços do homem, batia às cegas no ar e
cuspialhe na cara.
18
As retretes das casas de banho modernas erguemse do chão
co; mo uma flor branca de nenúfar. Os arquitectos fazem os
impossíveis
para que o corpo esqueça a sua miséria e para que o homem
não
saiba o que acontece às dejecções das suas vísceras quando
a água
do autoclismo, a gorgolejar, as expulsa da vista. Embora
os seus
tentáculos se prolonguem até nossas casas, os canos de
esgoto estão
sempre cuidadosamente disfarçados e por isso não sabemos
absolutamente nada a respeito das invisíveis Venezas de
merda sobre as
quais se encontram construídas as nossas casas de banho,
os nossos
j quartos, os nossos salões de baile e os nossos
parlamentos.
As casas de banho daquele velho prédio de um bairro
operário
dos subúrbios de 'Praga eram menos hipócritas; do chão, de
ladrilhos
cinzentos, erguiase, órfã e miserável, a retrete. Não
fazia lembrar
uma flor de nenúfar, mas, pelo contrário, evocava o que,
na realidade,
era: o sítio onde um cano terminava e o seu diâmetro se
alargava. Nem sequer tinha um tampo de madeira e Tereza teve
de sentarse directamente na loiça esmaltada. Sentiu um
arrepio de frio.
Estava sentada na retrete e a vontade de esvaziar os
intestinos que lhe
, tinha dado de repente era o desejo de ir até ao extremo da
humilhação, de
ser o mais possível e tão totalmente quanto possível um
corpo, esse corpo
de que a mãe dizia sempre que só servia para digerir e
evacuar. Tereza
; esvaziava os intestinos e sentia uma tristeza e uma
solidão infinitas.
Nada há de mais miserável que o seu corpo nu sentado na
embocadura de um cano de esgoto. A alma perdeu já a sua
curiosidade
I de espectador, a sua malevolência e o seu orgulho; voltou
a retirar se para o mais recôndito do corpo. Espera
desesperadamente que
voltem a chamar por ela.
19
Levantouse da retrete, puxou o autoclismo e voltou para a
entrada da casa. A alma tremia dentro do corpo nu e
rejeitado. Ainda
sentia no ânus o contacto do papel com que se limpara.
Aconteceu então qualquer coisa de inesquecível: teve
vontade de
ir ter com ele ao quarto e de ouvir a sua voz, o seu apelo.
Se ele
lhe falasse com uma voz doce e grave, a alma teria a ousadia
de
voltar à superfície do corpo, e ela desataria a chorar.
Abraçarseia
a ele como se abraçara em sonhos ao tronco do castanheiro.
Encontravase na entrada e esforçavase por dominar aquele
imenso desejo de se desfazer em lágrimas à frente dele. Se
não o dominasse,
sabia que aconteceria precisamente o que não queria.
Apaixonarseia.
Nesse momento, uma voz vinda do fundo do estúdio chegou
até
ela. Ao ouvir essa voz desencarnada (nem ver ao mesmo tempo
o
corpo alto do engenheiro), teve um sobressalto: era uma voz
fininha
e aguda. Como é que nunca tinha reparado nisso?
Foi graças à impressão desconcertante e desagradável que a
sua
voz lhe causou que pôde vencer a tentação. Voltou para o
quarto,
apanhou o fato, vestiuse e saiu.
168
20
Voltava das compras com Karenine, que trazia um croissant
na boca. Estava uma manhã fria, com um bocado de geada.
Caminhava ao longo de um bairro onde, entre as casas, havia
enormes
parcelas divididas em minúsculos campos cultivados e
pequenos
jardinzinhos. Karenine estacou; olhava fixamente numa certa
direcção. Tereza olhou para esse lado mas não reparou em
nada de
especial. Karenine puxoua e ela deixouse levar. Por fim,
acima do
barro gelado de um canteiro vazio, viu emergir a cabecita
preta de
uma gralha de bico comprido. A cabecita sem corpo agitavase
debilmente e, de tempos a tempos, o bico emitia um som
triste é roufenho.
Karenine estava tão excitado que deixou cair o croissant.
Para
ele não fazer mal à gralha, Tereza prendeuo a uma árvore.
Depois,
ajoelhouse e tentou cavar a terra calcada à volta do corpo
do
pássaro enterrado vivo. Não era uma operação fácil. Partiu
uma
unha; ficou a sangrar.
Nesse momento, caiu uma pedra ao seu lado. Levantou os
olhos
e viu dois garotos de pouco mais de dez anos na esquina de
uma
casa. Levantouse. Quando viram a sua reacção e o cão atado
à
árvore, os miúdos fugiram.
Voltou a ajoelharse no chão para cavar o barro e sempre
acabou
por conseguir libertar a gralha da sua sepultura. Mas a ave
estava paralisada e não conseguia andar nem voar. Envolveua
com
o cachecol vermelho que trazia ao pescoço, pegoulhe com a
mão
esquerda e apertoua contra o corpo. Com a mão direita,
desprendeu Karenine da árvore e teve de apelar para todas as
suas
forças para conseguir acalmálo e mantêlo encostado às
pernas.
Como não tinha mão para tirar a chave do bolso, tocou à
porta.
Tomas veio abrir. Estendeulhe a trela de Karenine.
nnSegurao!nn,
ordenoulhe, e levou a gralha para a casa de banho. Poisoua
no
chão por baixo do lavatório. A gralha debatiase mas não se
podia
mexer. Escorrialhe do corpo um líquido espesso e amarelado.
Para
ela não sentir o frio dos mosaicos, Tereza fezlhe uma
caminha com
trapos velhos debaixo do lavatório. O pássaro agitava
desesperadamente a asa paralisada; o seu bico erguiase como
uma acusação.
21
Estava sentada na borda da banheira e não conseguia
despregar
os olhos da gralha agonizante. A sua pobre solidão
parecialhe a
imagem do seu próprio destino e só pensava: nnNão tenho
ninguém
no mundo, ninguém a não ser o Tomas.nn
Teria aprendido com o caso do engenheiro que as aventuras
amorosas não têm nada a ver com o amor? Que são leves e
não
pesam nada? Sentiaseia mais calma?
Longe disso.
Havia uma cena que a obcecava: acaba de sair da casa de
banho
e o seu corpo está pregado ao chão da entrada, nu e
abandonado.
A alma, apavorada, tremelhe nas entranhas. Se, naquele
instante,
do fundo do quarto, o homem se tivesse dirigido à sua
alma, teria
desatado a soluçar, terlheia caído nos braços.
Pôsse a imaginar que, em vez dela, era uma amiga de Tomas
n que estava na entrada ao pé da casa de banho e que, em
vez do
engenheiro, era Tomas que estava no quarto. A uma palavra
sua, a
uma simples palavra sua, a mulher lançarseia a chorar
nos seus
braços.
E com isso que se parece, Tereza sabeo bem, o instante em
que
o amor nasce; a mulher não resiste à voz que chama pela
sua alma
apavorada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna
atenta
à sua voz. Tomas nunca estará livre de cair na armadilha
do amor e
hora a hora, minuto a minuto, Tereza não pode senão tremer
por
ele.
Qual a sua única arma? A fidelidade. A sua fidelidade que
lhe
ofereceu desde o início, desde o primeiro dia, como se
tivense percebido imediatamente que não tinha mais nada
para lhe dar. O amor deles é uma arquitectura estranhamente
assimétrica: repousa sobre a
certeza absoluta da fidelidade de Tereza como um palácio
gigantesco
sobre um único pilar.
Agora, a gralha deixara praticamente de agitar as asas;
apenas
agitava debilmente a sua pata martirizada e partida. Tereza
não
queria deixála, era como estar a velar à cabeceira de uma
irmã
moribunda. Mas acabou por decidirse e foi almoçar à pressa
à cozinha.
Quando voltou, a gralha já tinha morrido.
22
No primeiro ano da sua ligação com Tomas, enquanto fazia
amor, Tereza gritava e, como já disse uma vez, esse grito
era uma
tentativa para cegar e ensurdecer os sentidos. Depois,
passou a gritar menos, mas a sua alma continuava cega pelo
amor e não via
nada. Quando fora pára a cama com o engenheiro, como o amor
não estava presente, a sua alma pudera finalmente ver claro.
Voltara ao sauna e encontravase de novo em frente do
espelho.
Olhava para si própria e revia mentalmente a cena de amor em
casa
do engenheiro. Lembravase da cena, mas não do amante. Para
dizer a verdade, não seria sequer capaz de descrevêlo,
talvez nem
tivesse reparado em como é que ele era todo nu. A única
coisa de
que se lembrava (e para a qual olhava agora com excitação em
frente ao espelho) era do seu próprio corpo; dos pêlos do
púbis e do
sinal redondo logo acima deles. Esse sinal, que até agora
nunca fora
para ela senão um simples defeito cutâneo, tinhalhe ficado
para sempre gravado na memória. Queria vêlo e tornar a vê
lo na incrível
proximidade do membro do estranho.
Mas volto a sublinhálo: não sentia qualquer vontade de
ver o
sexo do desconhecido. Queria era ver o seu púbis ao pé do
membro
estranho. Não desejava o corpo do amante. Desejava era o seu
próprio corpo, subitamente revelado, tanto mais excitante
quanto mais
próximo e estranho.
Olha para o corpo coberto das minúsculas gotas da água do
duche, pensa que, mais dia menos dia, o engenheiro háde
voltar a
passar pelo bar. Apetecelhe que ele venha, apetecelhe que
a convide para ir a casa dele! Ah! Como isso lhe apetece!
O homem tentou prender o colar entre os dedos: Lembrese
que, cá, a prostituição é proibida!nn
Karenine pôsse de pé. apoiou as patas da frente na mesa e
rosnou.
Dia após dia, tinha medo de ver o engenheiro aparecer ao
balcão e de não ter força suficiente para dizer nãonn. À
medida que os
dias iam passando, o receio de que ele aparecesse ia sendo
substituído pelo receio de que afinal já não viesse.
Já passara um mês e o engenheiro continuava a não dar
sinal de
vida. Tereza não sabia como explicar tal coisa. De súbito,
deixou de
ter qualquer espécie de desejo. Ficou inquieta: porque é que
ele não
viria?
Encontravase a servir uns clientes. O careca que, na
outra noite,
a tinha acusado de servir bebidas alcoólicas a menores,
estava lá
outra vez. Contava alto e bom som uma história porca, uma
história
que ela já ouvira centenas de vezes na província na boca dos
bêbados a quem servia cervejas. Sentindose de novo
assaltada pelo universo da mãe, interrompeuo brutalmente.
O homem ficou humilhado: Você não tem nada que me dar
ordens! Deve darse é por muito feliz por nós a deixarmos
trabalhar
neste bar.
Nós:' Mas nós, quem?
Nós, disse o homem, e mandou vir outro vodka. E lembre
se
nnnP nnn lhP nPrmitn nnP mP incinltP n
24
O embaixador disse: cnEra um chui.
Se é um chui, tinha obrigação de ser mais discreto, fez
notar
Tereza. Para que é que serve uma polícia secreta que já não
se
esconde?nn
O embaixador sentouse no divã com os pés debaixo do
traseiro
como aprendera no ioga. Na parede, Kennedy sorria da sua
moldura e conferia às suas palavras uma espécie de
consagração.
cnSenhora D. Teresa, disse num tom paternal, os chuis têm
diversas funções. A primeira é clássica. Ouvem o que as
pessoas dizem e
relatamno aos seus superiores.
cnA segunda é uma função de intimidação. Mostramnos que
nos
têm à sua mercê e querem que nós tenhamos medo. Era o que o
seu careca pretendia.
cnA terceira função consiste em encenar situações que nos
podem
comprometer. Acusarnos de conspirar contra o Estado já não
interessa a ninguém porque só conseguiriam tornarnos mais
populares.
Preferem encontrar haxixe nas nossas algibeiras ou provar
nos que
violámos uma rapariguinha de doze anos. Hãode arranjar
sempre
uma miúda que lhes sirva de testemunha.nn
Tereza lembrouse do engenheiro. Como explicar que nunca
mais tivesse voltado?
O embaixador continuava: nnFazem uma pessoa cair numa
armadilha
para ficarem com ela na mão e poderem utilizála para montar
uma
armadilha a outra, e sempre assim por diante, até
transformarem a pouco
e pouco um povo inteiro numa imensa organização de
denunciantes.nn
Tereza estava obcecada pela ideia de que o engenheiro
tinha sido
mandado pela polícia. E quem seria aquele estranho rapaz que
tinha
ido embebedarse para a tasca do outro lado da rua e voltara
para
lhe fazer declarações de amor? Por sua causa é que o chui se
tinha
posto a embirrar com ela e que o engenheiro a tinha
defendido.
Todos os três tinham desempenhado um papel numa peça
preparada
com antecedência para a fazer simpatizar com o homem que
estava
encarregado de a seduzir.
Como é que ainda não tinha pensado nisso? Aquela casa
tinha
algo de equívoco e destoava completamente do dono. Porque é
que
um engenheiro tão bem vestido havia de morar numa casa tão
miserável? Mas ele seria mesmo engenheiro? Se fosse, como é
que podia
não estar no emprego às duas horas da tarde? E como é que um
engenheiro pode ler Sófocles? Não, aquilo não era uma
biblioteca
de engenheiro! Aquele quarto parecia mas era uma casa
confiscada
a um intelectual pobre que tivesse sido preso. Quando tinha
dez
anos, o seu pai fora preso e também lhe confiscaram o
apartamento
e a biblioteca. Váse lá saber para que é que a casa tinha
servido
depois!
Agora, percebia claramente porque é que ele nunca mais
voltara.
Já tinha cumprido a sua missão. E que missão era essa? Fora
o que,
sem querer, o chui careca revelara quando dissera: cnCá,
agora, a
prostituição é proibida, lembrese bem disso!nn O suposto
engenheiro
testemunharia que tinha ido para a cama com ela e que ela
lhe
pedira dinheiro! Ameaçálaia com um escândalo e obrigála
ia a
denunciar as pessoas que vinham embebedarse ao bar.
O embaixador tentava tranquilizála: nnCá por mim, não
acho a
sua aventura nada perigosa.
Talvez nãonn, disse Tereza, com a voz estrangulada, e,
na
companhia de Karenine, saiu para o escuro das ruas de Praga.
25
A maior parte das vezes, para escapar ao sofrimento
refugiamonos no futuro. Julgamos que a pista do tempo tem
uma linha marcada para lá da qual o sofrimento presente há
de cessar. Mas Tereza
não conseguia ver essa linha à sua frente. Só olhando para
trás
descobria alguma consolação. Era mais uma vez domingo;
meteramse no automóvel para sair de Praga.
Tomas ia ao volante ao lado de Tereza e Karenine no banco
de
trás, sentado; de vez em quando, chegavase para a frente
para lhes
lamber as orelhas. Ao fim de duas horas, chegaram a umas
termas
onde tinham passado alguns dias juntos há cinco ou seis
anos.
Tencionavam dormir lá.
Estacionaram o carro na praça e saíram. Estava tudo na
mesma. Em
frente, com a sua velha ti ia à entrada, ficava o hotel onde
se tinham
hospedado nesse ano. Para a esquerda do hotel estendiamse
velhas
arcadas em madeira e uma fonte com uma bacia de mármore. Tal
como
dantes, havia pessoas lá debruçadas, cada uma com o seu copo
na mão.
Tomas apontava para o hotel. Afinal, sempre tinha mudado
qualquer coisa. Dantes, aquilo era o Grande Hotel e agora,
conforme indicava o letreiro, era o Hotel Baikal. Olharam
para a placa da
esquina: aquela era a Praça de Moscovo. Em seguida (com
Karenine
sozinho atrás, sem trela) percorreram todas as ruas que
conheciam
para saber como é que se chamavam agora: havia a Rua de
Estalinegrado, a Rua de Leninegrado, a Rua de Rostov, a Rua
de Novossibirsk, a Rua de Kiev, a Rua de Odessa, e havia a
casa de repouso
Piotr Tchaïkovski, a casa de repouso Tolstoï, a casa de
repouso
RimskiKorsakov, havia o Hotel Suvarov, o Cinema Gorki e o
Café
Puchkine. Eram só nomes russos ou alusivos à história da
Rússia.
Tereza lembravase dos primeiros dias da invasão. As
pessoas
tinham roubado as placas de todas as ruas e os sinais de
todas as
estradas. O país tornarase anónimo numa só noite. Durante
sete
dias, o exército russo errara por todo o país sem saber onde
estava.
Os oficiais queriam ocupar as sedes dos jornais, da
televisão, da rádio, mas não conseguiam localizálas.
Perguntavam às pessoas, mas as
pessoas encolhiam os ombros ou indicavam moradas falsas e
apontavam numa direcção errada.
Com o passar dos anos, parecia que esse anonimato se
tomara
perigoso para o país. Mas nem as ruas nem as casas voltaram
a
recuperar os seus nomes originais. Assim, uma estação termal
da
Boémia tomarase, da noite para o dia, numa pequena Rússia
imaginária, e Tereza viase forçada a constatar que o
passado que ali
tinham ido procurar lhes fora confiscado. Impossível dormir
em tal Sítio.
26
Voltavam em silêncio para o carro. Tereza ia a pensar que
agora
tudo lhes aparecia debaixo de um disfarce: a velha
cidadezinha da
Boémia cobrirase de nomes russos; os checos que tinham
corajosamente fotografado a invasão estavam de facto a
prestar um serviço à
polícia secreta russa; o homem que queria que ela morresse
apareceralhe disfarçado com a máscara de Tomas; o polícia
fizerase passar
por engenheiro, e o engenheiro queria desempenhar o mesmo
papel
que o homem do MontedePedra. O livro que lá estava no
apartamento era um sinal mentiroso; era só para despistar.
Agora, ao pensar no livro que tivera na mão em casa
daquele
tipo, lembrouse subitamente de uma coisa que a fez corar. O
engenheiro tinhalhe dito que ia fazer café. Ela aproximara
se da estante
e tirara o Rei Édipo de Sófocles. A seguir, o engenheiro
voltara. Mas
sem café nenhum!
Examinava e tornava a examinar o que se tinha passado:
quanto
tempo se demorara ele fora do quarto quando desaparecera com
o
pretexto de ir fazer café? Um minuto, pelo menos, talvez
dois,
talvez mesmo três. O que poderia ele ter estado a fazer
durante
tanto tempo naquela minúscula entrada? Teria ido à casa de
banho?
Tereza tentava lembrarse se tinha ouvido a porta a fechar
se ou o
autoclismo a funcionar. Não, não tinha ouvido o autoclismo
porque,
se tivesse, de certeza que se lembrava. E também tinha quase
a
certeza de não ter ouvido o barulho da porta. Então o que é
que
ele estaria a fazer na entrada?
Tudo se tornava de súbito muito claro. Claro de mais, até.
Para a
apanharem na armadilha, o depoimento do engenheiro não era
suficiente. Precisavam de uma prova irrefutável. Durante
aquela longa
ausência, longa de mais para não levantar suspeitas, ele
instalara uma
câmara na entrada. Ou então, o que era mais plausível,
abrira a
porta a um tipo munido de uma máquina fotográfica que
depois,
escondido atrás do cortinado, os tinha fotografado.
Ainda há tão poucas semanas fizera pouco de Prochaska por
ele
não saber que vivia num campo de concentração onde a vida
privada não é possível. Mas ela? Depois de deixar a casa da
mãe, julgara, como uma pobre idiota, que passaria a ser de
uma vez por todas
dona e senhora da sua vida privada. Mas a casa da mãe
estendiase
pelo mundo inteiro e apanhavaa em todo o lado. Tereza não
poderia nunca escaparlhe em parte nenhuma.
Desceram uma escadaria que havia no meio dos jardins, para
voltarem à praça onde o carro estava estacionado.
nnO que tens tu?nn, perguntou Tomas.
Antes de ter tempo de lhe responder, houve um homem que se
aproximou deles e cumprimentou Tomas.
27
Era um homem de cerca de cinquenta anos com a cara
burilada
pelo vento, um camponês que Tomas tinha operado em tempos. A
partir dessa operação, os médicos mandavamno todos os anos
fazer
uma cura de águas àquelas termas. Convidou Tomas e Tereza
para
irem beber um copo. Como os cães não podiam entrar em
recintos
públicos, Tereza foi pôr Karenine ao carro e os dois homens
ficaram
à sua espera sentados a uma mesa do café. Quando Tereza
voltou, o
homenzinho estava a dizer: nnLá na minha terra, esteve
sempre tudo
muito calmo. Imagine que há dois anos eu até fui eleito
presidente
da cooperativa!
Os meus parabéns!, disse Tomas.
Como sabem, vivo numa zona rural. As pessoas querem
todas
sair de lá. Os que estão no poleiro têm de se dar por muito
contentes quando ainda há gente que quer ficar. Não podem
darse ao
luxo de nos expulsarem dos empregos!
Era o sítio ideal para nós, disse Tereza.
Minha querida senhora, havia de se aborrecer muito por
lá.
Não há nada para fazer, nada com que uma pessoa se
entretenha.
Absolutamente nada.nn
Tereza examinava atentamente aquela cara burilada pelo
vento.
Sentia uma viva simpatia pelo camponês. Até que enfim que
encontrava alguém simpático! Começou a desenharselhe
perante os
olhos uma cena campestre: uma aldeia com o seu campanário,
campos lavrados, florestas, uma lebre a escaparse por um
rego, um
guardaflorestal de chapéu verde na cabeça. Nunca tinha
vivido no
campo. Construíra aquela imagem a partir do que as pessoas
lhe
tinham contado. Ou a partir dos livros que lera. Ou a partir
daquilo
que antepassados longínquos lhe tinham inscrito no
subconsciente.
E, no entanto, tinha essa imagem dentro de si, nítida e
eloquente
como a fotografia de uma bisavó num álbum de família, ou
como
uma velha gravura.
nnAinda tem dores?nn, perguntou Tomas.
O camponês apontou para o sítio onde o crânio se liga à
coluna
vertebral na parte de trás do pescoço: nnÀs vezes dóime
aqui.nn
Sem se levantar da cadeira, Tomas apalpou o sítio que ele
lhe
acabara de mostrar e fez mais algumas perguntas. Depois
disse: nnEu
já não posso passar receitas. Mas, quando voltar para casa,
diga a
um médico que falou comigo e que eu lhe recomendo que tome
isto.nn Tirou um bloco do bolso e arrancou uma folha onde
escreveu
o nome do remédio em maiúsculas.
Virou a cabeça. Mas Tomas continuava calado, com os olhos
pregados na estrada. Ela sentiase incapaz de vencer o muro
de silêncio que se erguia entre ambos. Estava exactamente no
mesmo
estado do dia em que voltara do MontedePedra. Tinha dores
de
estômago e vontade de vomitar. Tinha medo dele. Tomas era
forte
de mais para ela, e ela era fraca de mais. Só lhe dava
ordens que ela
não percebia. Bem se esforçava por executálas, mas não era
capaz.
Queria voltar ao MontedePedra e pedir ao homem da
espingarda para a deixar pôr a venda nos olhos e encostarse
ao tronco
do castanheiro. Tinha vontade de morrer.
28
Iam de regresso a Praga.
i
Tereza pensava na fotografia onde o sen corpo estava nu
entre '
os braços do engenheiro. Tentava acalmarse: mesmo admitindo
que I
tal fotografia existisse, Tomas nunca a veria. Só tinha
utilidade para
eles se tencionassem pôr Tereza a denunciar pessoas. Se a
mandassem a Tomas, perderia todo e qualquer valor.
Mas o que se passaria se os chuis decidissem que não tinham
tempo a perder com Tereza? Nesse caso, a fotografia não
seria para
eles senão um motivo de risota e, se a um lhe apetecesse
gozar,
ninguém podia impedilo de a meter num envelope e de a
mandar
para a morada de Tomas.
0 que se passaria se Tomas recebesse uma fotografia como
aquela?
Pôlaia na rua? Talvez não. Com certeza que não. Mas o
frágil
edifício do amor deles desmoronarseia imediatamente porque
esse
edifício repousava sobre o pilar único da sua fidelidade e
os amores
são como os impérios: desaparecendo a ideia sobre a qual
estão
construídos, também eles desaparecem.
Tinha uma imagem a bailarlhe diante dos olhos: uma lebre a
escaparse por um rego, um guardaflorestal de chapéu verde
na
cabeça e o campanário de uma igreja a despontar por cima da
floresta.
Queria dizer a Tomas que deviam irse embora de Praga. Ir
para
longe das crianças que enterram gralhas vivas, para longe
dos polícias, para longe das raparigas armadas de chapéus
dechuva. Queria
dizerlhe que deviam ir viver para o campo. Que era a única
salvação possível.
continuavam a passar porque não lhes interessava nada que
houvesse um rio a correr de século para século pelo meio da
sua cidade
efémera.
voltou a contemplar a água. Sentiase infinitamente
triste. Percebia que aquilo que estava a ver era um adeus. O
adeus à vida que
se despedia com o seu cortejo de cores.
Os bancos tinham desaparecido do seu campo de visão. Ainda
viu mais alguns, os últimos retardatários, depois ainda
houve um
banco amarelo, depois ainda outro, azul, o último.
29
Acordou e viu que estava sozinha em casa.
Saiu e dirigiuse para os cais. Queria ver o Vltava.
Queria ir
para a beira do rio olhar para a água porque ver água a
correr
acalma e cura. O rio corre de século para século e as
histórias dos
homens desenrolamse nas suas margens. Amanhã ninguém se
lembrará delas e, por sua causa, o rio não deixará nunca de
correr.
Apoiada na balaustrada, olhava para baixo. Encontravase
nos
subúrbios de Praga, o Vltava já atravessara a cidade,
deixando para
trás de si o esplendor do palácio e das igrejas, como uma
actriz
depois da representação, lassa e pensativa. Corria entre
margens sujas, entaipado por palissadas e muros; atrás havia
fábricas e campos
de jogos abandonados.
Olhou durante muito tempo para a água que aqui ainda
parecia
mais triste, ainda mais sombria; depois, de repente, no meio
do rio,
viu aparecer um objecto estranho, um objecto vermelho, sim,
era
isso, era mesmo um banco. Um banco de madeira com pés de
metal, como há tantos nos jardins de Praga. Vinha a flutuar
lentamente
pelo meio do Vltava. E atrás vinha outro banco. Depois
outro, depois mais outro e Tereza acabou por perceber que
estava a ver os
bancos dos jardins públicos de Praga a sair da cidade ao
sabor da
corrente. Eram muitos, eram cada vez mais, flutuavam nas
águas
como as folhas no Outono quando as águas as levam para longe
das
florestas, e havia bancos vermelhos, havia bancos amarelos,
havia
bancos azuis.
Voltouse para trás para perguntar às pessoas o que seria
aquilo.
Porque é que os bancos dos jardins públicos de Praga se
iriam embora ao sabor da corrente? Mas as pessoas, com um ar
indiferente,
QUINTA PARTE
O PESO E A LEVEZA
Como já referi na primeira parte, quando Tereza veio a
casa de
Tomas sem prevenir, mal tinha acabado de chegar, já ele
estava a
fazer amor com ela. Depois, a rapariga ficou de cama com
febre e
Tomas postarase à sua cabeceira, convencido que ela era uma
criança que alguém pusera numa cesta para lhe ser enviada ao
sabor das
águas.
A partir de então, afeiçoarase à imagem da criança
abandonada
e pensava frequentemente nos mitos antigos onde ela aparece.
Foi
com certeza por esse motivo que, um dia, pegou numa tradução
do
Rei Édipo de Sófocles.
A história de Édipo é sobejamente conhecida: tendo
encontrado
um recémnascido abandonado, um certo pastor levouo ao rei
Políbio que o criou. Já adulto, Édipo cruzouse um dia numa
estrada de
montanha com um carro de cavalos onde viajava um príncipe
desconhecido. Gerouse uma discussão e Édipo matou o
príncipe. Mais
tarde, desposou a rainha Jocasta e tornouse rei de Tebas.
Não fazia
a mínima ideia que o homem que um dia matara nas montanhas
era
seu pai e a mulher com quem dormia, sua mãe. E, no entanto,
o
destino encarniçavase contra os seus súbditos, cobrindoos
de pragas. Quando Édipo percebeu que o culpado dos seus
males era ele,
vazou os olhos com alfinetes e, cego para todo o sempre,
deixou
Tebas.
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são
exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma
verdade
fundamental: é que os regimes comunistas não foram
edificados por
criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham
descoberto a única via possível para o paraíso. E defendiam
essa via com
unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito
boa
gente por causa disso. Mais tarde, tomouse claro como a luz
do dia
que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas
eram assassinos.
Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que eram
responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre
earruinado), pela perda da independência nacional (o país
tinha caído sob
a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!
O debate resumiase, portanto, a uma questão: os
comunistas não
saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de
nada?
Tomas ia seguindo o debate (como outros dez milhões de
checos), convencido que tinha forçosamente de haver
comunistas ao
corrente de alguma coisa (apesar de tudo, sempre deviam ter
ouvido
falar dos honores que se tinham produzido e continuavam a
produzirse na Rússia pósrevolucionária). Mas também achava
provável
que a grande maioria não estivesse realmente ao corrente de
nada.
E pensava que a pergunta que devia ser feita não era:
afinal, os
comunistas sabiam ou não? Mas: alguém pode estar inocente só
por
não saber? Um imbecil sentado num trono pode ser desculpado
de
tudo só pelo facto de ser imbecil?
Admitamos que o procurador checo, que no início dos anos
cinquenta pedia a pena de morte para um inocente, tenha sido
de facto
enganado pela polícia secreta russa e pelo Governo do seu
país.
Mas agora que toda a gente sabia que as acusações eram
absurdas
e que os supliciados estavam inocentes, como é que
exactamente
o mesmo procurador podia defender a brancura da sua alma e
bater
com a mão no peito, protestando: eu tenho a consciência
limpa,
eu não sabia, eu não acreditava! Não era exactamente no seu
Eu
não sabia! Eu não acreditava!nn que residia a sua culpa
irreparável?
Então, Tomas lembrouse da história de Édipo. Édipo não
sabia
que dormia com a própria mãe, mas, no entanto, quando
compreendeu o que lhe tinha acontecido, não se sentiu
inocente. Não pôde
suportar o espectáculo da desgraça que causara com a sua
ignorância, vazou os olhos e, cego para todo o sempre,
deixou Tebas.
Tomas ouvia os comunistas a defender aos berros a brancura
das
suas almas e pensava: por causa da vossa inconsciência,
talvez este
país tenha ficado privado de liberdade por vários séculos e
ainda se
põem a berrar que estão inocentes? Como é que ainda podem
olhar
para aquilo que vos rodeia? Como é que não ficam apavorados?
Ainda são capazes de ver? Se ainda tivessem olhos, deviam
mas era
vazálos e sair de Tebas!
A comparação agradavalhe tanto que recorria
frequentemente a
ela quando discutia com os amigos, exprimindoa através de
fórmulas cada vez mais elegantes e aceradas.
Como todos os intelectuais da época, costumava ler um
semanário da União dos Escritores Checos com qualquer coisa
como trezentos mil exemplares de tiragem. A publicação tinha
ganho uma
autonomia considerável no interior do regime e falava de
assuntos
que os outros jornais não se atreviam sequer a abordar.
Chegava
mesmo a trazer artigos onde se perguntava quem eram os
culpados,
e em que medida, dos homicídios judiciais cometidos aquando
dos
processos políticos dos primeiros anos do regime comunista.
Em todas as discussões, acabava sempre por vir ao de cima
aquela velha questão! Eles sabiam ou não sabiam? Julgandoa
uma
questão secundária, Tomas um dia passou para o papel as suas
reflexões sobre Édipo e mandouas para o semanário. Um mês
depois, recebeu uma resposta. Pediamlhe para passar pela
redacção.
Quando lá chegou, foi recebido por um jornalista baixinho,
hirto
como uma tábua, que lhe propôs uma alteração na sintaxe de
uma
frase. O texto apareceu pouco depois, na antepenúltima
página, entre outras cartas do leitornn.
Tomas ficou muito pouco satisfeito com ele. Para lhe
pedirem
para modificar um pequeno pormenor de sintaxe, tinhamse
dado ao
trabalho de chamálo ao jornal, mas depois, sem pedirem
sequer a
sua opinião, tinhamlhe cortado tanto o texto que as suas
reflexões
ficavam reduzidas a uma tese fundamental (demasiado
esquemática
e demasiado agressiva) e já não lhe davam satisfação
nenhuma.
Tudo isto se passava na Primavera de 1968. Alexandre
Dubcek
subira ao poder e rodearase de comunistas que tinham
algumas
culpas na consciência e estavam dispostos a fazer qualquer
coisa para reparar os erros cometidos. Mas os outros
comunistas, os que se
punham a berrar que estavam inocentes, temiam que a ira
popular
os viesse a obrigar a responder perante a justiça. Iam todos
os dias
queixarse ao embaixador da Rússia e implorar o seu auxílio.
Quando a carta de Tomas apareceu no jornal, as suas vozes
ergueramse
em uníssono: vejam bem ao que já chegámos! Já têm o
descaramento de escrever num jornal que deviam furarnos os
olhos!
Dois ou três meses mais tarde, os russos decidiram que
discutir
em liberdade era uma coisa inadmissível numa província sua e
mandaram o seu exército ocupar no espaço de uma noite o país
de
Tomas.
192
Depois de vir de Zurique, Tomas fora ocupar o lugar que
tinha
anteriormente no mesmo hospital de Praga. Pouco tempo mais
tarde, foi convocado pelo chefe do serviço, que lhe disse:
cnAfinal de contas, meu caro colega, você não é nem
escritor,
nem jornalista e, muito menos, o messias do povo. O que você
é, é
um médico e um homem de ciência! Não gostava mesmo nada de
perdêlo e estou disposto a tudo para conserválo cá. Mas
você tem
de se retratar daquele seu artigo sobre Édipo. É assim uma
coisa
tão preciosa para si?nn
Lembrandose que lhe tinham cortado um terço do texto,
Tomas
respondeu:
cnPelo contrário, chefe, é a coisa que me interessa menos
neste
mundo!
Você tem bem consciência daquilo que está em jogo?nn,
perguntou o chefe do serviço.
Tomas sabia que estavam duas coisas, uma em cada prato da
balança. Uma era a sua honra (que lhe exigia que não
desmentisse
o que escrevera) e a outra, aquilo que se habituara a
considerar
como o sentido da sua vida (o seu trabalho como homem de
ciência
e como médico).
O chefe do serviço prosseguiu: n"É perfeitamente medieval
exigir
a um homem que se retracte daquilo que escreveu. O que
significa
uma pessoa "retractarse"? Nos tempos de hoje, ninguém pode
retractarse de uma ideia, uma ideia só pode ser refutada.
E, meu
caro colega, como retractarse de uma ideia é uma coisa
impossível,
uma coisa puramente verbal, formal, mágica, não vejo porque
é que
não háde fazer o que lhe pedem. Numa sociedade regida pelo
terror, as declarações não comprometem ninguém porque são
extorquidas pela violência e todo o homem honesto tem o
dever de
não lhes prestar atenção, de nem sequer as ouvir. Meu caro
colega,
no meu e no interesse dos seus doentes volto a repetirlhe:
você
tem de conservar o seu lugar!
Com certeza que sim, chefe, disse Tomas, com um ar
infeliz.
Mas...?, adiantou o chefe do serviço, esforçandose por
adivinhar o que o outro estava a pensar.
Tenho medo de ter vergonha.
De quem? Tem assim em tão alta consideração os que o
rodeiam para se incomodar com aquilo que eles pensam?
Não, disse Tomas.
Aliás, prosseguiu o chefe do serviço, já me garantiram
que
não se trata de uma declaração pública. São mèros
burocratas. Precisam de ter nos dossiers qualquer coisa que
prove que você não é
contra o regime, para poderem defenderse se alguém vier
acusálos
de o terem deixado ficar no mesmo lugar. Prometeramme que a
sua declaração ficaria só entre si e as autoridades e não
encaram a
possibilidade de ela poder ser publicada.
Concedame uma semana de reflexãonn, disse Tomas,
rematando a conversa.
Era considerado o melhor cirurgião do hospital. Já se
dizia que o
chefe do serviço, que estava à beira da reforma, lhe cederia
dentro
em pouco o lugar. Quando se espalhou o boato de que as altas
autoridades lhe exigiam uma declaração de autocrítica,
ninguém duvidou que cederia.
Foi a primeira coisa que o apanhou de surpresa: embora não
tivesse feito nada para justificar tal suposição, os outros
apostavam
muito mais na sua desonestidade do que na sua verticalidade.
Outra coisa surpreendente eram as reacções das pessoas
perante
o seu presumível comportamento. De um modo grosseiro,
poderia
repartilas por duas categorias:
O primeiro tipo de reacção era o daqueles que (ou eles ou
os
seus próximos) tinham renegado qualquer coisa, tinham sido
obrigados a declarar publicamente que estavam de acordo com
o regime
de ocupação ou iam fazêlo em breve (a contragosto, é claro,
porque
ninguém faz uma coisa dessas com alegria).
Esses faziamlhe um estranho sorriso, que nunca tinha
visto em
dias da sua vida: era o tímido sorriso de uma cumplicidade
secreta.
Era o sorriso que dois homens passam a trocar depois de se
encontrarem por acaso num bordel; sentem uma certa vergonha,
mas, ao
mesmo tempo, dálhes prazer que a vergonha seja recíproca.
Ficam
ligados por uma espécie de laço de fraternidade.
O sorriso ainda era mais significativo na medida em que
Tomas
nunca tivera fama de conformista. A sua presumível anuência
à proposta do chefe do serviço era, portanto, a prova de que
a cobardia se
ia tornando lenta mas seguramente uma regra de conduta e
deixaria
em breve de ser considerada como aquilo que de facto era.
Esses nunca tinham sido seus amigos. Tomas sentiase
arrepiado ao pensar
que, se de facto confeccionasse a declaração que lhe
exigiam, eles o
convidariam para tomar um copo em suas casas e procurariam
ter
relações mais chegadas com ele.
O segundo tipo de reacção era a daqueles que (ou eles ou
os
seus próximos) eram perseguidos, se recusavam a aceitar um
compromisso qualquer com as forças de ocupação, ou então
aqueles a
quem ninguém exigia compromisso ou declaração de espécie
nenhuma (talvez por serem novos de mais e nunca terem estado
metidos
em nada), mas que estavam convencidos que jamais cederiam.
Um deles, S., um médico ainda jovem mas bastante
competente,
perguntou um dia a Tomas: "Então, lá escreveste aquilo?
Queres fazer o favor de me explicar a que é que te estás
a
referir?
À tua autocríticann, disse S. Não o disse com maldade.
Até estava a sorrir. No rico herbário dos sorrisos, aquele
era um
sorriso completamente novo. O sorriso da superioridade morar
satisfeita.
"Ouve lá, perguntou Tomas, o que é que tu sabes sobre a
minha
autocrítica? Lestea?
Não, respondeu S.
Então o que é que estás para aí a dizer?nn
S. continuava a exibir o mesmo sorriso de satisfação:
nnOra essa!
Toda a gente sabe como é que essas coisas se passam. A
pessoa faz
a sua autocrítica numa carta dirigida ao senhor director
geral, ao
senhor ministro ou a outra excelência qualquer, que promete
que a
carta não será publicada para o autor não se sentir
humilhado. É
assim ou não é?nn
Tomas encolheu os ombros e esperou pelo resto. nnA
seguir, arquivam cuidadosamente a autocrítica, mas o autor
sabe que, a qualquer momento, a podem publicar. Nessas
condições, nunca mais poderá criticar nada, nunca mais
poderá protestar contra nada porque
a sua autocrítica será imediatamente publicada e ele sentir
seá desonrado aos olhos de toda a gente. No fim de contas,
acaba por ser
um método simpático. Podia ser pior.
Tens razão, é um método muito simpático, disse Tomas.
Mas
o que eu gostava de saber era quem é que te disse que comigo
deu
bons resultados.nn
O colega encolheu os ombros, mas o sorriso não lhe
desapareceu
da cara.
Tomas compreendeu uma coisa estranha. Todos lhe sorriam,
rodos
desejavam que se retractasse por escrito, se se retractasse
faria o
gosto a todos. Uns regozijavamse porque a inflação de
cobardia banalizava a sua própria conduta e lhes devolvia a
honra perdida. Os
outros tinhamse acostumado a ver na sua honra um privilégio
especial a que não queriam renunciar por nada deste mundo.
Por isso
nutriam um secreto amor pelos cobardes. Sem eles, a sua
coragem
seria apenas um esforço banal pela qual ninguém sentiria
qualquer
admiração especial.
Tomas não podia com aqueles sorrisos e já os via em todo o
lado, mesmo na própria cara de certos desconhecidos com quem
se
cruzava na rua. Não conseguia dormir. Mas como? Ligava assim
tanto a essas pessoas? De forma nenhuma. Não pensava bem de
nenhuma delas e censuravase a si próprio por se deixar
perturbar
pelos seus olhares. Era uma coisa completamente incoerente.
Como
né que alguém que tinha tão pouca consideração pelos outros
podia
depender tanto da sua opinião?
Talvez a profunda desconfiança que o género humano lhe
inspirava (a forma como duvidava do seu hipotético direito
de decidir do
seu destino e de o julgar) já tenha pesado bastante na sua
opção
por uma profissão abrigada aos olhos do público. Quem
escolhe, por
exemplo, uma carreira política, escolhe deliberadamente o
público
para seu juiz, com a ingénua e confessa certeza de poder
ganhar os
seus favores. A eventual hostilidade das massas incitao
depois a
fazer representações cada vez mais exigentes, da mesma forma
que
Tomas se sentia estimulado pela dificuldade de um
diagnóstico.
O médico (ao contrário do político ou do actor) não é
julgado
senão pelos seus doentes e pelos confrades mais próximos, ou
seja,
entre quatro paredes e de homem para homem. Confrontado com
os
olhares daqueles que o julgam, pode responder logo na
altura,
explicarse ou defenderse. Agora (e pela primeira vez na
sua vida),
Tomas tinha tantos olhares postos em cima de si que era
impossível
distinguilos uns dos outros. Não podia responderlhes nem
com o
seu próprio olhar nem com palavras. Estava à sua mercê.
Falavase
dele no hospital e fora do hospital (Praga tinha os nervos à
flor da
pele e as notícias dos que fraquejavam, denunciavam,
colaboravam,
circulavam pela cidade com a extraordinária velocidade do
tantã
africano), ele tinha consciência disso e não podia impedi
lo. Ele próprio se sentia admirado por perceber a que ponto
isso lhe era insuportável e em que estado de pânico o
mergulhava. O interesse que
todos demonstravam por ele faziao sentir tão mal como os
empurrões de uma multidão ou, como num pesadelo, o contacto
físico com
pessoas que estivessem a arrancarlhe o fato.
Foi ter com o chefe do serviço e disselhe que não
assinava coisa
nenhuma.
O chefe do serviço apertoulhe a mão muito mais
energicamente
do que o costume e disse que não esperava outra coisa dele.
Tomas
respondeulhe:
Chefe, mas mesmo sem autocrítica, talvez me pudesse
deixar cá
ficar!nn, querendo darlhe a entender que bastava que todos
os seus
colegas ameaçassem demitirse se o obrigassem a irse
embora.
Mas ninguém se lembrou de apresentar a demissão e, pouco
depois, Tomas (o chefe do serviço apertoulhe a mão ainda
mais energicamente do que da última vez até ficou com
nódoas negras)
teve de deixar o lugar que tinha no hospital.
Primeiro, arranjou emprego numa clínica a oitenta
quilómetros
de Praga. Ia e vinha todos os dias de comboio e chegava
sempre
mortalmente cansado a casa. Um ano depois, conseguiu
arranjar um
lugar mais cómodo, embora absolutamente subalterno, num
posto
clínico suburbano. Aí, já não podia operar e só fazia
clínica geral.
A sala de espera estava sempre a abarrotar, tinha pouco mais
de
cinco minutos para cada doente, receitavalhes aspirinas,
passavalhes atestados médicos para os empregos e mandavaos
para consultas de serviços especializados. Sentia que
deixara de ser médico
para passar a empregado de escritório.
Um dia, no fim da consulta, teve uma visita; era um senhor
de
cercá de cinquenta anos, suficientemente bem nutrido para
ter um
ar sério. O senhor apresentouse dizendo que era chefe de um
serviço no Ministério do Interior, e convidou Tomas a ir com
ele até ao
café que havia do outro lado da rua.
Mandou vir uma garrafa de vinho. Tomas disse que não podia
beber e explicoulhe: cnÉ que ainda tenho que guiar. Se a
polícia me
apanha, fico sem carta." O homem do Ministério do Interior
disse,
com um sorriso: cnSe lhe acontecer alguma coisa, diga que é
meu
conhecidon, e estendeulhe um cartãodevisita onde, além
do nome
(falso, com toda a certeza), havia o número de telefone do
Ministério.
Depois, expôs demoradamente a Tomas a consideração que
tinha
por ele. No Ministério, toda a gente lamentava que um
cirurgião da
sua craveira 'estivesse reduzido a receitar aspirinas num
posto clínico
dos subúrbios. Chegou mesmo a insinuar que, sem poder dizê
lo em
voz alta, a polícia não concordava que os especialistas
fossem afastados de uma maneira tão sumária dos seus
empregos.
Como já há muito tempo não ouvia ninguém elogiálo, Tomas
prestava uma atenção extraordinária ao que aquele homenzinho
barrigudo dizia e constatava com surpresa que estava
extremamente bem informado sobre a sua carreira, que
conhecia em todos os seus
pormenores. Como a lisonja nos apanha desprevenidos! Tomas
não
conseguia deixar de levar a sério o que o homem do
Ministério lhe
dizia.
Mas não era só por vaidade. Era sobretudo por
inexperiência.
Quando nos encontramos perante uma pessoa que se mostra
amável,
deferente e cortês para connosco, é muito difícil estar
sempre a
pensar que nada do que está a dizer é verdadeiro, que nada é
sincero. Para duvidar dela (contínua e sistematicamente, sem
a menor
hesitação), é preciso fazer um esforço gigantesco, e também
ter algum treino, ou seja, estarse habituado a
interrogatórios da polícia.
Era esse treino que faltava a Tomas.
O homem do Ministério prosseguia, dizendo: nnSenhor
doutor,
sabemos que tinha uma excelente situação em Zurique.
Apreciamos muito que tenha voltado. Foi uma coisa que lhe
ficou bem.
O senhor bem sabia que o seu lugar era aqui.nn Depois
acrescentou,
como se Tomas é que tivesse a culpa: nnMas o seu verdadeiro
lugar
é na sala de operações!
Concordo consigonn, disse Tomas.
Depois de uma curta pausa, o homem do Ministério retomou a
conversa, com uma voz um pouco enervada: nnMas ora digame:
o
senhor doutor acha mesmo que é preciso vazar os olhos aos
comunistas? Não acha estranho ser precisamente o senhor que
o diz, o
senhor que já devolveu a saúde a tanta gente?
Mas as suas palavras não têm sentido nenhum, protestou
Tomas. Leu o meu artigo?
Li, disse o homem do Ministério num tom que pretendia
exprimir a sua desolação.
E então acha que eu disse que era preciso vazar os olhos
aos
comunistas?
Foi o que toda a gente percebeu, disse o homem do
Ministério, num tom cada vez mais desolado.
Se tivesse lido o meu texto na íntegra, tal como eu o
escrevi,
nunca poderia pensar uma coisa dessas. O meu texto foi
cortado.
Como?, disse o homem do Ministério, apurando o ouvido.
Aquilo que foi publicado não era o seu texto?
Encurtaramno.
Muito?
Tiraramlhe mais ou menos um terço.
O homem do Ministério parecia sinceramente indignado.
<nNão
foi nada leal da parte deles.nn
Tomas encolheu os ombros.
<<Mas devia terse defendido! Devia ter exigido
imediatamente
uma rectificação!
O que é que quer?! Os russos vieram logo a seguir!
Tínhamos
todos mais que fazer..., disse Tomas.
Mas então porque é que continua a deixar que as pessoas
pensem que um médico como o senhor quer que outros homens
percam a vista?
É preciso ver as coisas como elas são! O meu artigo
apareceu
misturado com outras cartas. Ninguém deve ter reparado nele.
Excepto, é claro, na Embaixada da Rússia: davalhes jeito...
Não diga uma coisa dessas, senhor doutor! Olhe que até
eu o
discuti com muita gente que o tinha lido e nunca tinha
pensado que
o senhor pudesse escrever uma coisa daquelas. Mas agora já
percebo
tudo melhor, sobretudo desde que me explicou que o artigo
que foi
publicado não era exactamente aquele que tinha escrito.
Alguém lhe
sugeriu que o escrevesse?
Não, disse Tomas. Fui eu que o mandei sem ninguém mo
pedir.
Conhece essa gente?
Quem?
Os que lhe publicaram o artigo?
Não.
Então nunca falou com eles?
Só os vi uma vez. Pediramme para passar pelo jornal.
Porquê?
Por causa desse artigo.
E com quem é que falou?
Com um jornalista.
Como é que ele se chamava?nn
Tomas compreendeu finalmente que aquilo era um
interrogatório. Apercebeuse que cada uma das suas palavras
podia pôr uma
pessoa em perigo. Claro que sabia o nome do jornalista, mas
disse:
nnNão sei.
Oh senhor doutor!, disse o homem, altamente indignado
com
tanta falta de sinceridade. Então ele não se apresentou?nn
É quase tragicómico que o melhor aliado da polícia seja
precisamente a nossa boa educação. O imperativo "É preciso
dizer
sempre a verdade!nn que nos foi inculcado pelos pais faz
com que
tenhamos automaticamente vergonha de mentir, mesmo ao
polícia
que nos está a interrogar. É mais fácil discutir com ele,
insultálo (o que não serve absolutamente para nada), do que
mentirlhe descaradamente (que é a única coisa que se deve
fazer).
Ao ouvir o homem do Ministério censurálo pela sua falta
de
sinceridade, Tomas sentiuse quase culpado; teve de superar
uma
espécie de bloqueio moral para poder continuar a insistir na
sua
mentira: cnClaro que deve terse apresentado, disse, mas,
como o
nome dele não me dizia nada, esquecime imediatamente.
Como é que ele era?nn
O jornalista em causa era baixo e tinha cabelo loiro
cortado à
escovinha. Tomas tentou escolher características
diametralmente
opostas: Era alto. Tinha cabelos compridos, pretos.
Ah! Ah!, exclamou o homem do Ministério. E queixo de
rabeca?
Isso mesmo, disse Tomas.
Um tipo um bocado curvado.
Isso mesmonn, voltou a repetir Tomas, e percebeu que o
homem do Ministério tinha acabado de identificar alguém.
Tomas não
só denunciara um desgraçado jornalista, como ainda por cima
o fizera com uma mentira.
n"Mas porque é que ele lhe pediu para passar por lá? De
que é que
falaram?
Queriam modificar a sintaxe de uma frase.nn
Esta frase soou como um subterfúgio ridículo. O homem do
Ministério voltou a revoltarse por Tomas se recusar a
contar a verdade: nnÓ senhor doutor! Depois de me dizer que
lhe cortaram um
terço do texto, querme convencer que só falaram de sintaxe!
Olhe
que isso não tem lógica nenhuma!nn
Desta vez, Tomas pôde responder com toda a facilidade
porque
aquilo era pura e simplesmente a verdade: nnNão é nada
lógico, mas
é mesmo assim, disse, a rir. Pediramme autorização para
mudar a
sintaxe de uma frase e depois cortaramme um terço do
artigo.nn
O homem do Ministério voltou a abanar a cabeça como se um
comportamento tão imoral fosse inadmissível, dizendo:
nnEssa gente
não foi nada correcta consigo.nn
Esvaziou o copo e concluiu: "Senhor doutor, o senhor foi
vítima
de uma manipulação. Era pena que, no fim de contas, fosse o
senhor e os seus doentes que acabassem por pagar. Apreciamos
muito as suas qualidades, senhor doutor. Veremos o que se
pode
fazer. nn
Estendeu a mão a Tomas e despediuse cordialmente. Saíram
ambos do café e dirigiramse para os respectivos automóveis.
6
O encontro pôs Tomas de muito mau humor. Censuravase
intimamente por se ter deixado levar pelo tom jovial da
conversa. Já
que não se tinha recusado a falar com o polícia (não estava
preparado para uma situação como aquela e não sabia o que a
lei lhe
permitia ou não), pelo menos devia terse recusado a
acompanhálo
ao café e a beber um copo como se ele fosse seu amigo! E se
alguém, alguém que conhecesse o 'polícia, os tivesse visto
juntos? Tinha pensado, com certeza, que Tomas trabalhava
para a polícia!
E que necessidade tivera de contar àquele chui que lhe
tinham cortado
o artigo? Porque é que, sem ter razão nenhuma para isso, lhe
tinha
dado essa informação? Sentiase extremamente descontente
consigo
próprio.
Uns quinze dias mais tarde, o homem do Ministério voltou.
Propôs que fossem ao café como da última vez, mas Tomas
preferiu
ficar no consultório.
n"Compreendo a sua atitude, senhor doutornn, disse o
outro, com
um sorriso.
Tomas ficou a matutar nesta frase. O homem do Ministério
acabara de exprimirse como o jogador de xadrez que confirma
ao adversário o erro que cometeu na jogada precedente.
Estavam sentados um em frente do outro, apenas separados
pela
secretária de Tomas. Ao fim de dez minutos, em que o tema da
conversa foi a epidemia de gripe que grassava na altura, o
homem
disse: nnSenhor doutor, reflectimos sobre o seu caso. Se
fosse só o
senhor que estivesse em causa, era tudo muito mais fácil.
Mas temos
que ter em conta a opinião pública. Quer queira quer não, o
seu
artigo contribuiu para aumentar a histeria anticomunista.
Não lhe quero ocultar que nos chegaram mesmo a sugerir que
devíamo,
fazêlo prestar contas à justiça por causa do seu artigo. Há
uma
disposição do código penal para isso. Incitação pública à
violência.nn
O homem do Ministério do Interior fez uma pausa e olhou
Tomas de olhos nos olhos. Tomas encolheu os ombros. O homem
disse
então, com o ar de quem queria sossegálo: nnMas afastámos
tal
ideia. Seja qual for a sua responsabilidade, a sociedade
exige que
exerça funções onde as suas capacidades possam render o
máximo.
O seu antigo chefe de serviço tem muita estima por si. E
também
tirámos informações junto dos seus doentes. O senhor é
realmente
um grande especialista, senhor doutor! Ninguém pode exigir
que um
médico perceba de política. Deixou que o ridicularizassem,
senhor
doutor. Temos de remediar isso. É por isso que lhe queríamos
propor o texto de uma declaração que, na nossa opinião, o
senhor devia pôr à disposição da imprensa. Depois, cá nos
arranjávamos para
a fazer publicar na devida alturann, e estendeu um papel a
Tomas.
Tomas leuo e teve um choque. Era bem pior do que o que o
seu antigo chefe de serviço lhe exigira dois anos antes. Já
não se
tratava apenas de uma simples autocrítica por causa do
artigo sobre
Édipo. Havia várias referências ao seu amor pela União
Soviética e
à sua fidelidade ao Partido Comunista, era uma condenação
dos intelectuais que, como lá se dizia, queriam pôr o país à
beira da guerra civil, mas, o que era pior, era uma denúncia
da redacção do semanário dos escritores e do jornalista alto
e curvado (Tomas nunca
o vira, mas conheciao de nome e já vira fotografias suas)
que abusara deliberadamente dele ao deformarlhe o sentido
do artigo de
forma a convertêlo num autêntico apelo contra
revolucionário; eram
demasiado cobardes (estava lá escrito) para fazer um artigo
daqueles e
tinham querido esconderse por trás de um médico ingénuo.
O homem do Ministério apercebeuse do assombro que
perpassava pelos olhos de Tomas. Debruçandose para a
frente, deulhe
uma palmadinha amigável no joelho, por baixo da secretária:
<<Senhor doutor, isto é só um borrão! O senhor agora vai
reflectir e
se quiser alterar uma fórmula ou outra, com certeza que
havemos
de nos entender. No fim de contas, o texto é seu.n.n
Tomas devolveu o papel ao polícia como se receasse
continuar
com ele na mão nem que fosse por mais um segundo. Pouco
faltou
para imaginar que haviam de lá ir tirarlhe as impressões
digitais.
Fingindose surpreendido, em vez de pegar no papel, o
homem
do Ministério abriu os braços (só parecia o papa a abençoar
os fiéis
do alto da sua varanda): Mas, oh senhor doutor, porque é
que mo
quer dar? O senhor é que deve ficar com ele. Em casa vai ter
mais
sossego para reflectir.nn
Continuando pacientemente com o papel na mão estendida,
Tomas abanava a cabeça. O homem do Ministério parou de
imitar o
Santo Padre a abençoar os fiéis e teve de resignarse a
pegar no
papel.
Tomas tencionava deixar bem vincado que nunca escreveria
nem
assinaria nada: Mas, no último momento, mudou de tom.
Aparentando uma grande calma, disse: n"Eu não sou
analfabeto. Porque é
que heide assinar uma coisa que não fui eu que escrevi?
Mas, senhor doutor, é claro que podemos fazer ao
contrário.
O senhor escreve primeiro qualquer coisa e em seguida vemo
la os
dois. O que lhe mostrei pode pelo menos servirlhe de
modelo.nn
Porque é que Tomas não recusou categoricamente a proposta
do
polícia logo naquela altura?
Porque fez rapidamente o seguinte raciocínio: para além de
que
declarações do género daquela desmoralizavam a nação inteira
(e
toda a estratégia dos russos ia nesse sentido), com certeza
que, no
seu caso, a polícia tinha um objectivo mais preciso: talvez
estivesse
em preparação um processo contra os jornalistas do semanário
para
onde Tomas mandara o artigo. Se assim fosse, a sua
declaração seria
não só uma prova mas também uma peça importante da campanha
de imprensa que desencadeariam contra os jornalistas.
Recusando
logo, firme e categoricamente, arriscavase a que a polícia
publicasse
o texto previamente preparado apondolhe fraudulentamente a
sua
assinatura. Nenhum jornal publicaria depois o seu
desmentido! Ninguém acreditaria que não fora ele que
escrevera e assinara o artigo!
Já tivera tempo para perceber que as pessoas se regozijam de
mais
com a humilhação moral de outrem para deixar que lhes
estraguem
esse gosto com explicações.
Alimentando na polícia a esperança de que ele próprio
acabaria
por escrever um texto, estava a ganhar tempo. No dia
seguinte,
demitiuse. Supunha (e com razão) que, uma vez que tivesse
descido
voluntariamente para o degrau mais baixo da escala social
(como
milhares de outros intelectuais de outras disciplinas já
tinham feito),
a polícia deixaria de ter qualquer poder sobre a sua pessoa
e desistiria de se interessar por ele. Nessas condições, já
não podiam publicar a declaração com a sua assinatura porque
ninguém acreditaria
que fosse verdadeira. As ignóbeis declarações públicas do
género
daquela são sempre acompanhadas pela promoção do signatário,
não
pela sua queda.
Mas, como na Boémia os médicos são funcionários públicos,
o
Estado pode dispensálos, mas é sempre livre de não o fazer.
O funcionário com quem Tomas discutiu a sua demissão já
tinha
ouvido falar dele e tinhao em elevada estima. Tentou
convencêlo a
não deixar o lugar. Tomas percebeu que não tinha a certeza
de que
aquela fosse a melhor decisão, mas, sentindose já ligado à
sua resolução por uma espécie de juramento de fidelidade,
obstinouse nela
e tornouse lavador de janelas.
Alguns anos antes, ao volante do automóvel que o trazia de
volta de Zurique para Praga, Tomas ia repetindo baixinho:
nnes muss
sein!nn, a propósito do seu amor por Tereza. Depois da
fronteira,
começou a duvidar que tivesse mesmo de ser: percebeu que
tudo o
que o tinha feito chegar a Tereza não fora mais do que uma
série
de acasos ridículos que se tinham produzido sete anos antes
(tinham
começado com a crise de ciática do chefe do serviço) e que
agora o
empurravam para uma prisão de onde nunca mais conseguiria
sair.
Deverseá então concluir que não havia qualquer nnes
muss
sein!nn, qualquer grande necessidade na sua vida? Penso que
não; na
minha opinião, havia uma. Não era o amor, mas a profissão. O
que
o levara a ser médico não fora nem o acaso nem um cálculo
racional, mas um profundo desejo interior.
Se há algo que nos permite classificar os homens em
categorias,
é com certeza o desejo profundo que os guia para um dado
tipo de
actividade que exercerão toda a vida. Os Franceses são todos
diferentes uns dos outros. Mas todos os actores do mundo se
parecem
os de Paris, os de Praga e mesmo os que trabalham no mais
modesto dos teatros de província. Actor é aquele que, desde
a infância, aceita expor toda a sua vida ao público anónimo.
Sem este
assentimento fundamental, que não tem nada a ver com o
talento e
que é algo de muito mais profundo do que o talento, ninguém
pode
tornarse actor. Do mesmo modo, o médico é aquele que aceita
ocuparse durante toda a vida, com todas as consequências
que isso
implica, de corpos humanos. É este sim fundamental (e não o
talento e a habilidade) que lhe permite entrar no primeiro
ano numa sala
de anatomia e, seis anos mais tarde, sair médico da
Faculdade.
A cirurgia eleva o imperativo fundamental da profissão de
médico àquele extremo limite onde o humano se confunde quase
com
o divino. Quando se dá nma pancada com toda a força na
cabeça
de uma pessoa, ela fica estendida por terra e pode deixar de
respirar de uma vez por todas. Mas, mais dia menos dia,
sempre acabaria por deixar de respirar. O crime só antecipa
aquilo de que o
próprio Deus em pessoa se encarregaria um pouco mais tarde.
E Deus, podemos supôlo, previu o homicídio, mas não a
cirurgia.
Nunca lhe passou pela cabeça que, um belo dia, o homem se
atrevesse a meter as mãos no mecanismo que ele inventara e
cuidadosamente embalara, selara e fechara com pele para
melhor o furtar
aos seus olhos. Quando Tomas poisou pela primeira vez o
bisturi
na pele de um homem anestesiado, e depois a rasgou com um
golpe enérgico e a descoseu com uma incisão regular e
precisa (como um bocado inanimado de pano, um sobretudo, uma
saia, um
cortinado), foi acometido por uma curta mas intensa sensação
de
sacrilégio. Mas com certeza que era precisamente isso que o
atraía!
Era uma necessidade, um nnes muss sein!nn profundamente
enraizatio
nele, ao qual não chegara nem por acaso, nem devido à
ciática do
chefe do serviço, nem a outra coisa qualquer que lhe fosse
exterior.
Como explicar então que se tenha desligado tão depressa,
tão
resolutamente e com tanta facilidade de qualquer coisa de
tão profundo?
Ele respondernosia que o seu acto se destinava a impedir
que
a polícia abusasse dele. Mas, francamente, embora, em
teoria, isso
fosse sempre possível (porque houve de facto casos do
género), na
verdade, não corria praticamente risco nenhum que a polícia
fizesse
publicar uma declaração falsa com a sua assinatura.
Claro que temos sempre o direito de precavernos contra
todos
os perigos, mesmo os mais improváveis. Admitamos também que
estava irritado consigo próprio, com a falta de habilidade
que revelara
e queria evitar novos contactos com a polícia, contactos que
não
fariam senão exacerbar a sua sensação de impotência.
Admitamos
ainda que já renunciara de facto à sua profissão, porque o
trabalho
mecânico que tinha no posto clínico, a receitar aspirinas,
não tinha
nada a ver com aquilo que a profissão de médico era para
ele.
Mesmo assim, uma decisão tão brusca ainda continua a
parecerme
estranha. Não esconderá algo de mais profundo, algo que
escapava à
sua reflexão racional?
Tomas começara a gostar de Beethoven por causa de Tereza,
mas
não era um fanático da música e duvido mesmo que conhecesse
a
história que está na origem do ilustre tema beethoveniano do
muss
es sein? es muss sein!nn
A coisa passouse assim: um certo senhor Dembscher devia
cinquenta florins a Beethoven, e o compositor, sempre
falido, foi
pedirlhos. n"Es muss sein?, tem de ser?nn, suspirou o
pobre Dembscher, ao que Beethoven replicou num tom jocoso:
n"Es muss sein!,
tem de ser!nn, imediatamente anotou as palavras no seu
caderninho e
compôs a partir desse tema realista uma pequena peça a
quatro vozes: três cantam <nes muss sein, ja, ja, ja, tem
de ser, tem, tem, temnn
e a quarta acrescenta: aheraus mit dem Beutel! puxa da
bolsa!nn.
Esse mesmo tema tomarseia mais tarde o núcleo central do
quarto andamento do último quarteto opus 135. As palavras
n"es
muss sein!" adquiriam para ele uma tonalidade cada vez mais
solene, como se tivessem sido proferidas pelo Destino. Na
língua de
Kant, mesmo um simples bom dia!n, quando convenientemente
articulado, pode parecer uma tese metafísica. O alemão é uma
língua
de palavras pesadas. Es muss sein!n deixara de ser uma
brincadeira
para tornarse der schwer gefasste Entschlussn; atem de
ser
tornarase a decisão gravemente pesada.
Beethoven transformara, portanto, uma inspiração cómica
num
quarteto sério, uma brincadeira numa verdade metafísica. É
um
exemplo interessante de passagem do leve ao pesado
(portanto, segundo Parménides, de transformação do positivo
em negativo). E,
coisa curiosa, essa mutação não nos surpreende. Pelo
contrário, ficaríamos era indignados se Beethoven tivesse
passado da seriedade do seu quarteto para a leveza do cânone
a três vozes sobre a bolsa de
Dembscher. E, no entanto, teria agido em perfeita
consonância com
o espírito de Parménides: teria mudado do pesado para o
leve, ou
seja, do negativo para o positivo! No começo, teria havido
(sob a
forma de um esboço imperfeito) uma grande verdade metafísica
e,
no fim (como obra acabada), a mais leve das brincadeiras. Só
que já
não sabemos pensar como Parménides.
Estou convencido de que, no fundo, Tomas já há rouito que
não
podia ouvir aquele agressivo, solene e austero es muss
sein!nn e que
tinha um secreto desejo de fazer o pesado tornarse leve,
segundo a
via de Parménides. Lembremonos que, noutros tempos, lhe
bastou
pouco mais de um minuto para decidir que nunca mais veria a
primeira mulher e o filho e que recebera com alívio a
notícia de que
os pais tinham cortado relações com ele. Seria algo mais do
que um
gesto repentino e não muito racional, com o qual se
desembaraçava
daquilo que queria imporselhe como uma pesada obrigação,
como
um es muss sein!nn?
Claro que então se tratava de um es muss sein!nn
exterior, imposto pelas convenções sociais, enquanto que o
es muss sein!nn do
seu amor pela medicina era uma necessidade interior. Mas,
precisamente por isso, ainda era pior. p imperativo interior
ainda é mais
forte e, portanto, ainda incita mais fortemente à revolta.
Ser cirurgião é abrir a superfície das coisas e espreitar
para o
que lá está escondido. Talvez tenha sido esse desejo que fez
com
que Tomas ficasse com vontade de ir ver o que havia do outro
lado,
para lá do es muss sein!nn; ou, por outras palavras, de
ir ver o que
resta da vida quando um homem deixa tudo aquilo que, até
então,
pensara que era a sua missão.
No entanto, quando foi apresentarse à afável directora
das empresas de lavagem de vidros e vitrinas de Praga, o
resultado da sua
decisão apareceulhe bruscamente diante de si em toda a sua
irrevogável realidade, e quase teve medo. Viveu nesse susto
os primeiros
dias que passou no seu novo emprego. Mas uma vez habituado
(o
que demorou mais ou menos uma semana) à espantosa estranheza
da sua nova vida, percebeu de repente que estava a começar
umas
longas férias.
Fazia coisas a que não ligava importância nenhuma, ' e
isso era
bom. Compreendia finalmente a felicidade daqueles (que. até
agora,
nunca lhe tinham inspirado senão piedade) que exercem uma
profissão que não escolheram áuxiados por um es muss sein!
nn interior e
da qual se esquecem malnlargam o local de trabalho. Nunca
sentira
essa bemaventurada indiferença. Dantes, quando uma operação
não
tinha corrido bem, tinha uma crise de desespero e não
conseguia
dormir. Chegava mesmo a perder o gosto pelas mulheres. O
es
muss sein!nn da sua profissão era como um vampiro que lhe
sugava o
sangue.
Agora, percorria as ruas de Praga com a sua grande vara de
lavar montras e constatava com surpresa que se sentia dez
anos mais
novo. As empregadas de balcão dos grandes armazéns tratavam
no
por senhor doutornn (o tantã de Praga funcionava na
perfeição) e
consultavamno sobre as suas constipações, as suas dores
lombares
ou o atraso das suas menstruações. Tinham quase vergonha
quando
o viam molhar o vidro das montras, montar a escova na ponta
da
vara e começar a lavar a fachada. Se pudessem plantar os
clientes
ao chão da loja, de certeza que lhe tirariam a vara das mãos
e iriam
lavar as montras em vez dele.
Tomas trabalhava sobretudo nos grandes armazéns, mas, por
vezes, a empresa também o mandava a casas particulares.
Nessa época, as pessoas ainda viviam as perseguições em
massa contra os intelectuais checos numa espécie de euforia
da solidariedade. Quando os
doentes de Tomas souberam que ele agora era lavador de
janelas,
puseramse a telefonar para a empresa a reclamar os seus
serviços.
Recebiamno com uma garrafa de champanhe ou de aguardente,
escreviam na folha que Tomas lhes tinha lavado treze janelas
e depois
passavam duas horas a conversar e a beber com ele. Quando
saía
em direcção a outras casas particulares ou a outra loja,
sentiase
numa forma esplêndida. As famílias dos oficiais russos
estavam instaladas no país, a rádio transmitia os discursos
intimidatórios dos
funcionários do Ministério do Interior que tinham ido ocupar
os lugares dos jornalistas despedidos, e ele, ele titubeava
entre dois copos pelas ruas de Praga, com o estado de
espírito de alguém que
anda de festa em festa. Eram as suas férias grandes.
Voltara à época da sua vida de celibatário. Porque, de
repente,
viase sem Tereza. Só a encontrava à noite, quando ela
voltava do
bar e ele, já no primeiro sono, entreabria um olho, e depois
de
manhã, quando era ela que estava ensonada e ele tinha de se
despachar para chegar a horas. Tinha dezasseis horas só para
ele e isso
era um espaço de liberdade que inopinadamente lhe era
oferecido.
Para ele, desde a mais remota juventude, um espaço de
liberdade
queria dizer: mulheres.
Quando os amigos lhe perguntavam quantas mulheres tinha
tido,
respondia de forma evasiva e, se insistiam em saber, dizia:
cnMais ou
menos duzentas.nn Os invejosos afirmavam que estava a
exagerar
com certeza. Defendiase, dizendo: nnNem tanto como isso.
Tenho
relações com mulheres mais ou menos há vinte e cinco anos.
Ora
experimentem a dividir duzentos por vinte e cinco. Hãode
ver que
dá mais ou menos oito mulheres novas por ano. Não são assim
tantas. nn
Mas, desde que vivia com Tereza, a sua actividade erótica
esbarrava com várias dificuldades de organização; não lhe
podia reservar
senão uma estreita faixa de tempo (entre a sala de operações
e a
chegada a casa) que, embora explorada intensivamente (como o
montanhês faz com a sua estreita parcela), estava longe de
poder
compararse com o espaço de dezasseis horas com que
subitamente
se via presenteado. (E digo dezasseis porque mesmo as oito
horas
que passava a lavar vidros lhe ofereciam mil e uma
oportunidades
de fazer novos conhecimentos com empregadas de balcão,
caixeiras
ou donas de casa e de marcar encontros com elas.)
O que procurava em todas essas mulheres? O que é que o
atraía? O amor físicu não é sempre a eterna repetição do
mesmo?
De forma nenhuma. Há sempre uma pequena percentagem de
inimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora,
evidentemente, pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como
seria depois
de despida (aqui a sua experiência de médico completava a do
amante), restava sempre um pequeno intervalo de inimaginável
entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e
era precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego. E,
depois, a busca do
inimaginável não termina com a descoberta da nudez; vai para
além
dela: que caras fará enquanto se despe? o que dirá enquanto
faz
amor? em que tom suspirará? que ricto se imprimirá no seu
rosto
no momento da volúpia?
O que o eu tem de único encontrase precisamente naquilo
que
o ser humano tem de inimaginável. Só consegue imaginarse o
que é
idêntico em todos, o que é comum a todos. O nneunn
individual é
aquilo que se distingue do geral, e é, portanto, aquilo que
não pode
ser adivinhado nem calculado antecipadamente, aquilo que
primeiro
é preciso desvendar, descobrir, conquistar no outro.
Tomas, que nos últimos dez anos da sua actividade
profissional
se ocupara exclusivamente do cérebro, sabia que nada é mais
difícil
de distinguir× do que o eu. Entre Hitler e Einstein ou entre
Brejnev
e Soljenitsyne há muito mais semelhanças do que diferenças.
Dizendoo por números, entre eles há um milionésimo de
diferente
e novecentos e noventa e nove mil novecentos e noventa e
nove
milionésimos de semelhante.
Tomas vivia obcecado pelo desejo de descobrir esse
milionésimo
e de apoderarse dele, e esse era o sentido que dava à sua
obsessão
por mulheres. Não vivia obcecado pelas mulheres, vivia era
obcecado pelo que cada uma delas tem de inimaginável ou, por
outras
palavras, vivia obcecado por esse milionésimo de diferente
que faz
com que uma mulher se distinga das outras.
(Talvez fosse aí quea sua paixão de cirurgião se
encontrava com
a sua paixão de sedutor. Nunca largava o seu bisturi
imaginário,
mesmo quando estava com as amantes. Desejava apoderarse de
qualquer coisa que estava profundamente enterrado nelas e
por causa da qual tinha de rasgar os seus envólucros
superficiais.)
Claro que temos o direito de perguntar por que é que era
na
sexualidade que ia procurar esse milionésimo de diferente.
Não poderia antes encontrálo, por exemplo, na maneira de
andar, nos
gostos culinários ou nas preferências estéticas de cada uma?
O milionésimo de diferente está presente em todos os
aspectos
da vida humana, mas é publicamente desvendado em todo o
lado,
não precisa de ser descoberto, não é preciso nenhum bisturi
para
chegar a ele. O facto de uma mulher gostar mais de queijo do
que
de doces e de outra detestar couveflor é com certeza um
sintoma
de originalidade, mas também se torna imediatamente evidente
que
essa originalidade é insignificante e vã e que não seria
senão uma
perda de tempo alguém interessarse por ela e conferirlhe
algum valor.
Só na sexualidade é que o milionésimo de diferente aparece
como uma coisa preciosa, porque não é publicamente acessível
e tem
de ser conquistado. Ainda há meio século, este tipo de
conquista
exigia que se lhe dedicasse muito tempo (várias semanas e,
às vezes,
alguns meses) e o valor do objecto conquistado era
proporcional ao
tempo consagrado à sua conquista. Mesmo nos dias que correm,
embora o tempo da conquista tenha diminuído
consideravelmente, a
sexualidade é para nós como que o cofrezinho das jóias onde
se
encontra guardado o mistério do eu feminino.
Não era, portanto, de forma nenhuma, o desejo da volúpia
(a
volúpia aparecia por assim dizer como brinde), mas o desejo
de
apoderarse do mundo (de abrir com o bisturi o corpo jazente
do
mundo) que o fazia andar atrás das mulheres.
10
Os homens que têm a mania das mulheres dividemse
facilmente
em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a
ideia que
eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em
sonhos,
o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move
os
o deseja de se apoderarem da infinita diversidade do mundo
feminino
objectivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lirica; o que
procuram
nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu
próprio
ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande
desilusão, porque, como sabemos, o ideal é precisamente o
que nunca se
encontra. Como a desilusão que os faz andar de mulher em
mulher
dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à
sua
inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente
a sua
perseverante poligamia.
A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não
vêem
nela nada de comovente: como o homem não projecta nas
mulheres
um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode
desiludilo.
E esta impossibilidade de desilusão encerra em si algo de
escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro
épico não tem
remissão (porque não é resgatada pela desilusão).
Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de
mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os
amigos
causamlhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua
companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre
pelo
mesmo nome.
Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é
evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam
se cada vez
mais da beleza feminina convencional (de que depressa se
cansam) e
acabam infalivelmente como coleccionadores de curiosidades.
Têm
consciência de tal coisa, envergonhamse um pouco dela e,
para não
incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as
amantes.
Já andava a lavar janelas mais ou menos há dois anos
quando foi
chamado a casa de uma cliente nova. Assim que a viu à porta
do
apartamento, achoua estranha. Era uma estranheza discreta,
reservada, contida nos limites de uma agradável banalidade
(o gosto de
Tomas pelas curiosidades não era de modo nenhum um gosto por
monstros à Fellini): a mulher era extraordinariamente alta,
ainda
mais alta do que ele, tinha um nariz afilado e muito
comprido, e o
seu rosto era a tal ponto insólito que, embora fosse
impossível dizer
que era bonita (esta afirmação seria acolhida por um coro de
protestos), não era totalmente desprovida de beleza (pelo
menos aos
olhos de Tomas). Estava de calças e tinha uma blusa branca
dirseia que era o estranho produto do cruzamento entre um
grácil
rapazinho, uma girafa e uma cegonha.
Olhouo demoradamente com um olhar atento e perscrutador
onde não faltava sequer um lampejo de ironia inteligente.
nnEntre, senhor doutornn, disse ela.
Percebeu que a mulher sabia quem ele era. Para não o dar a
entender, perguntou: nnOnde é que posso ir buscar água?nn
Ela abriulhe a porta da casa de banho. À sua frente
estavam o
lavatório, a banheira, a retrete; aos pés da banheira, aos
pés do
lavatório e aos pés da retrete encontravamse dispostos
pequenos
tapetes corderosa.
A mulher metade girafa metade cegonha sorrialhe franzindo
os
olhos e tudo o que dizia parecia impregnado de uma ironia ou
de
um sentido ocultos.
<cA casa de banho está à sua inteira disposição, senhor
doutor,
disse. Sirvase dela para o que bem entender.
Mesmo para tomar banho?
Gosta de tomar banho?nn, perguntou ela.
Encheu o balde de água quente e voltou para a sala. nnPor
onde
é que quer que eu comece?
O senhor é que sabe. disse ela, encolhendo os ombros.
Posso ver as janelas das outras divisões?
Quer que lhe mostre a casa toda?nn Sorria, como se a
lavagem
das janelas fosse apenas um capricho de Tomas, um capricho a
que
não dava importância nenhuma.
Tomas entrou no quarto que ficava ao lado. Tinha uma
grande
janela, duas camas encostadas uma à outra e um quadro com
uma
paisagem outonal de bétulas ao solpoente.
Quando voltou à sala, havia uma garrafa de vinho aberta em
cima da mesa e dois copos. n"Não quer retemperar as forças
antes de
prosseguir os seus rudes trabalhos?, perguntou ela.
Com muito gosto, disse Tomas, sentandose.
Deve ser interessante para si andar assim por casa das
pessoasn, disse ela.
Não posso dizer que seja mau, respondeu Tomas.
Está sempre a apanhar mulheres sozinhas em casa, com os
maridos nos empregos...
Nem por isso. O que eu apanho sobretudo são avós e
sogras,
disse Tomas.
E a sua antiga profissão não lhe faz falta?
Digame mas é como é que soube disso.
O seu patrão tem muito orgulho em si, disse a mulher
cegonha.
Ainda?, disse Tomas, espantado.
Quando telefonei a pedir uma pessoa para me lavar as
janelas, perguntaramme logo se não era você que eu
pretendia. Parece
que dantes você era um grande cirurgião e que o expulsaram
do
hospital. Pode crer que fiquei interessada!
Você é, de facto, muito curiosa, disse Tomas.
Notase assim tanto?
Pela sua maneira de olhar.
E o que é que a minha maneira de olhar tem de especial?
Está sempre a franzir os olhos e fezme uma data de
perguntas.
E você não gosta de me responder?nn
Graças a ela, a conversa caíra logo num tom de grande
intimidade. Nada do que ela dizia tinha a ver com o mundo
exterior. As
palavras que se pronunciavam eram só a respeito deles e de
mais
nada. Com uma conversa assim, uma conversa que os elegera a
ambos para tema principal, nada mais fácil do que completar
as palavras com um contacto físico, e Tomas assim fez,
acariciandolhe os
olhos enquanto lhe dizia que ela os franzia. E a mulher
respondia a
cada carícia com uma carícia. Não agia espontaneamente, mas
como
se obedecesse a uma lógica consciente, como se estivessem a
brincar
ao tudo o que tu me fazes, também eu to faço. Estavam
sentados um em frente do outro, ambos com as mãos no corpo
do
outro.
Quando Tomas tentou meterlhe a mão entre as coxas, a
mulher
começou finalmente a defenderse. Tomas não percebeu se era
mesmo a sério, mas já tinha passado bastante tempo e o seu
próximo cliente esperavao daí a dez minutos.
Levantouse e explicou que tinha de irse embora. A mulher
tinha a cara a arder.
Tenho que lhe assinar o papel, disse ela.
Mas eu não fiz nada, protestou Tomas.
Por minha causann, disse ela, acrescentando depois com
uma
voz doce, arrastada, inocente: Vou ter que mandálo cá vir
outra
vez para você poder acabar aquilo que nem sequer chegou a
começar por minha causa.nn
Como Tomas se recusasse a darlhe o papel para assinar, a
mulher disse ternamente, num tom de quem está a pedir que
lhe
façam alguma coisa: Faça o favor de me dar issonn e,
franzindo os
olhos, acrescentou: Não sou eu que pago, é o meu marido e
não é
a você que se paga, é ao Estado. Essa transacção não diz
respeito a
nenhum de nós.nn
11
Só de pensar na curiosa dissimetria da mulher metade
girafa
metade cegonha, ficava excitado: a coquetrerie aliada aos
seus modos
desajeitados; um desejo sexual inequívoco acompanhado por um
sorriso irónico, a vulgar banalidade do apartamento e a
singularidade da sua proprietária. Como ficaria ela a fazer
amor? Tentava
imaginálo, mas não era fácil. Foi a sua única preocupação
durante
vários dias.
Quando ela o convidou pela segunda vez, a garrafa de vinho
e
os dois copos já estavam à 'sua espera em cima da mesa. Mas,
desta
vez, correu tudo muito depressa. Em breve estavam à frente
um do
outro no quarto (com o Sol a pôrse sobre uma paisagem de
bétulas
brancas) e se beijavam. Tomas pronunciou o seu habitual
Dispase! nn, mas, em vez de obedecer, ela retorquiulhe:
Não, primeiro,
despese você!nn
Não estava habituado a isso e ficou um pouco perturbado.
A mulher começou a desabotoarlhe as calças. "Dispase!nn,
voltou a
ordenarlhe várias vezes (sempre com o mesmo cómico
insucesso),
mas não lhe restava senão aceitar um compromisso; segundo as
regras do jogo que ela já lhe impusera da outra vez ( tudo
o que tu
me fazes, também eu to façonn), enquanto ela lhe tirava as
calças,
ele despialhe as calças, enquanto ela lhe tirava a camisa,
ele despialhe a blusa, até que ficaram ambos nus um em
frente do outro.
Tomas tinha a mão poisada no sexo húmido da mulher e fez
deslizar os dedos para o orifício anal, o sítio que preferia
em 'todas as
mulheres. O desta era extremamente protuberante, sugerindo
distintamente a ideia de que um longo tubo digestivo aí
terminava numa
ligeira saliência. Apalpava aquele anel firme e saudável,
aquele que era o mais belo dos anéis e ao qual a medicina
chamava esfíncter,
quando sentiu de repente os dedos da mulhergirafa no mesmo
sítio
do seu traseiro. Ela repetia todos os seus gestos com a
precisão de
um espelho.
Embora, como já referi, Tomas tivesse tido cerca de
duzentas
mulheres (número que aumentara consideravelmente desde que
lavava janelas) nunca lhe acontecera que uma mulher mais
alta do
que ele se postasse à sua frente a franzir os olhos e a
apalparlhe o
ânus. Para vencer a perturbação, empurroua com toda a força
para
cima da cama.
A brusquidão do gesto apanhoua desprevenida. O seu enorme
corpo caiu para trás com o rosto coberto de manchas
vermelhas e o
ar assustado de quem perdeu o equilíbrio. Como estava de pé
à
frente dela, agarroua por debaixo dos joelhos e levantou
lhe muito
alto as pernas, mantendoas ligeiramente afastadas. Assim,
de repente, pareciam os braços de um soldado perdido de medo
a renderse
perante uma arma apontada.
Os modos desajeitados aliados ao fervor, o fervor aliado
aos modos desajeitados, provocavam uma excitação magnífica
em Tomas.
Fizeram amor durante muito tempo. Ia observando o seu rosto
coberto de manchas vermelhas, sempre à procura da expressão
de
susto que uma mulher faz quando lhe pregam uma rasteira e
cai, a
inimitável expressão que acabara de fazer subirlhe à cabeça
o fluxo
da excitação.
Depois de acabarem, foi lavarse à casa de banho. A mulher
foi
ter com ele e explicoulhe demoradamente onde é que o sabão
estava, onde é que a luva do banho estava e como é que se
punha a
água quente a correr. Achava curioso que ela lhe explicasse
coisas
tão simples com tantos pormenores. Disselhe que já
percebera e
que queria ficar sozinho na casa de banho.
:nNão me vai deixar assistir à sua toilette?nn, suplicou
ela.
Conseguiu, por fim, pôla fora da casa de banho. Lavouse,
urinou para o lavatório (prática corrente dos médicos
checos), sempre
com a impressão de que ela andava de trás para a frente e da
frente
para trás ao pé da porta da casa de banho, à procura de um
pretexto para entrar. Quando fechou as torneiras, reparou
que reinava
um silêncio absoluto em todo o apartamento e pensou que ela
o
estava a espreitar. Tinha quase a certeza de que a porta
tinha um
buraco contra o qual a mulher tinha o seu belo olho franzido
encostado.
Ao deixála, sentiase extremamente bemdisposto. Tentava
rememorar o essencial, condensar a recordação numa fórmula
química
que permitisse definir o que ela tinha de único (o seu
milionésimo
de diferente). Acabou por chegar a uma fórmula composta por
três
elementos:
l. Os modos desajeitados aliados ao fervor;
2. O rosto assustado de quem perde o equilíbrio e cai;
3. As pernas levantadas como os braços de um soldado a
renderse perante uma arma apontada.
À medida que repetia para si próprio esta fórmula, ia
sendo invadido pela agradável impressão de que uma vez mais
se apoderara
de um fragmento do mundo; uma vez mais cortara com o seu
bisturi
imaginário uma estreita tira no tecido infinito do universo.
221
12
Eis o que lhe aconteceu mais ou menos na mesma época.
Tinha
tido vários encontros com uma rapariga num apartamento que
um
velho amigo lhe emprestava todos os dias até à meianoite.
Ao fim
de um mês ou dois, a rapariga recordoulhe um dos encontros:
tinham feito amor na carpete debaixo da janela enquanto lá
fora os
relâmpagos e os trovões estalavam. Tinham feito amor durante
todo
o tempo que a tempestade durara e isso fora, segundo a
rapariga,
de uma beleza inesquecível.
Tomas ficou surpreendido com as palavras dela. Lembravase
de
que tinham feito amor na carpete (no estúdio do amigo só
havia um
divã muito estreito onde não se sentia nada à vontade), mas
tinhase
esquecido completamente da tempestade! Era estranho:
conseguia
lembrarse de todas as vezes que estivera com ela, lembrava
se até da
maneira como tinham feito amor (ela recusavase a fazer amor
por
trás), lembravase das palavras que ela pronunciara enquanto
faziam
amor (pedialhe sempre para a estreitar de encontro a ele e
protestava
se ele se punha a olhar para ela) e até se lembrava do corte
da sua roupa
interior mas tinhase esquecido completamente da
tempestade.
Das duas aventuras amorosas, a sua memória só registava o
estreito e escarpado caminho da conquista sexual: a primeira
agressão
verbal, o primeiro contacto físico, a primeira obscenidade
que lhe
dissera a ela e que ela lhe dissera a ele, todas as pequenas
perversões a que a fora obrigando e as que ela recusara.
Tudo o resto
(com um cuidado quase pedante) estava excluído da sua
memória.
Esqueciase mesmo do sítio onde encontrara pela primeira vez
esta
mulher ou aquela, porque esse momento se situava antes da
conquista sexual propriamente dita.
A rapariga falava da tempestade com o rosto banhado por um
sorriso sonhador, e ele olhava para ela com espanto, quase
com
vergonha: ela vivera algo de belo e ele não o vivera com
ela.
A reacção dicotómica das suas memórias à tempestade nocturna
exprimia toda a diferença que pode haver entre o amor e o
nãoamor.
Ao falar de nãoamor, não quero dizer que Tomas se tenha
comportado como um cínico com a rapariga, que, como costuma
dizerse, não tenha visto nela senão um objecto sexual: pelo
contrário, gostava dela como amiga, apreciavalhe o carácter
e a inteligência, estava pronto a ajudála sempre que
precisasse. Não era ele que
se portava mal com ela: era a sua memória que, sem que ele
pudesse dizer palavra, a excluíra da esfera do amor.
Parece que existe no cérebro uma zona perfeitamente
específica
que poderia chamarse memória poética e que regista aquilo
que nos
encantou, aquilo que nos comoveu, aquilo que dá à nossa vida
a sua
beleza própria. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma
mulher tinha o direito de deixar qualquer marca, por mais
efémera
que fosse, nessa zona do seu cérebro.
Tereza ocupava despoticamente a sua memória poética e
varrera
de lá as marcas de todas as outras mulheres. Isso era
injusto porque,
por exemplo, a rapariga com quem fizera amor na carpete
durante a
tempestade não era menos digna de poesia do que Tereza.
Gritavalhe: Fecha os olhos, agarrame pelas ancas,
apertame com força!nn
Não suportava que Tomas ficasse com os olhos abertos,
atentos e
perscrutadores enquanto faziam amor, e que o seu corpo,
ligeiramente soerguido sobre o dela, não aderisse à sua
pele. Não queria
que ele a estudasse com os olhos. Queria arrastálo com ela
para a
torrente de encantamento onde só se entra de olhos fechados.
Recusavase a pôrse de gatas porque, nessa posição, os seus
corpos
mal se tocavam e Tomas podia observála a uma distância de
quase
meio metro. Detestava esse afastamento. Queria confundirse
com
ele. Por isso lhe afirmava obstinadamente de olhos nos olhos
que
não tinha prazer nenhum, embora a carpete estivesse toda
molhada
com o seu orgasmo: n"Não ando à procura de volúpia, ando é
à
procura da felicidade e a volúpia sem felicidade não é
volúpia.nn Ou,
por outras palavras, batia ao portão da sua memória poética.
Mas o
portão estava fechado. Não havia lugar para ela na memória
poética
de Tomas. Só havia lugar para ela na carpete.
A aventura de Tomas com Tereza começara exactamente onde
as suas aventuras com as outras mulheres acabavam.
Desenrolavase
do outro lado do imperativo que o levava à conquista das
mulheres.
Não queria desvendar nada em Tereza. Já a encontrara
desvEndada.
Fizera amor com ela sem conceder a si próprio o tempo
necessário
para pegar no bisturi imaginário com que abria o corpo
jazente do
mundo. Sem conceder a si próprio o tempo necessário para
pensar
em como seria ela a fazer amor, já a amava.
A história de amor só começara depois: Tereza ficara com
febre
e ele não a pudera levar a casa como fazia com as outras
mulheres.
Ajoelharase à sua cabeceira e vieralhe à cabeça a ideia de
que ela
lhe fora enviada numa cesta ao sabor das águas. Fiz já notar
como
as metáforas são perigosas. O amor correra com uma metáfora.
Ou,
por outras palavras, o amor começa no preciso instante em
que,
com uma das suas palavras, uma mulher se inscreve na nossa
memória poética.
13
Tereza não tardou a reimprimir a sua marca: como todas as
manhãs, fora buscar leite e, quando ele lhe abriu a porta,
trazia apertada ao peito uma gralha enrolada no seu cachecol
encarnado. É assim que as ciganas trazem os filhos. Nunca
mais esquecerá o imenso
bico acusador da gralha junto ao rosto dela.
Encontraraa meio enterrada. Era assim que, outrora, os
cossacos tratavam os inimigos que faziam prisioneiros. nn
imagina tu que
foram uns miúdos>>, disse ela. Era mais do que uma simples
constataÇão, era a expressão de um repentino nojo pelo
género humano.
Lembravase que ela lhe dissera recentemente: nnComeço a
estarte
agradecida por nunca teres querido filhos.nn
Na véspera, queixarase de ter sido insultada por um homem
no
bar onde trabalhava. O homem tinhase agarrado ao seu colar
de
pérolas falsas afirmando que ela o devia ter ganho
prostituindose.
Estava completamente transtornada com aquilo. Mais do que o
caso
merecia, pensava Tomas. De repente, sentiuse extremamente
mal
por pensar que há dois anos que a via tão pouco que até
deixara de
ter tempo para lhe agarrar nas mãos e as impedir de tremer.
Era o que ia pensando a caminho do escritório, onde uma
empregada lhes dava quotidianamente o trabalho, a ele e aos
colegas. Um cliente
particular exigira expressamente que lhe mandassem Tomas
para lhe
lavar as janelas. De mau humor, dirigiuse à morada
indicada, receando
que, mais uma vez. se tratasse de uma mulher. Estava todo
entregue às
suas reflexões sobre Tereza e não se sentia tentado por
aventuras.
Quando a porta se abriu, ficou aliviado. à sua frente
encontravase um homem alto e um pouco encurvado. O homem
tinha queixo de rabeca e fazialhe lembrar alguém.
Sorrialhe: Entre, doutornn, disse e guiouo até à
sala.
Tinha lá um rapaz à espera. De pé, com o rosto escarlate.
Olhava para Tomas e esforçavase por sorrir.
A vocês dois, pareceme que não vale a pena apresentá
los,
disse o homem.
Claro que nãonn, disse Tomas sem sorrir, e estendeu a
mão ao
rapaz. Era o seu filho.
O homem de queixo de rabeca acabou finalmente por se
apresentar.
Eu bem sabia que você me fazia lembrar alguém!, disse
Tomas.
Como é que não havia de o conhecer? De nome, claro.nn
Distribuíramse os três pelos sofás que havia na sala e
entre os
quais se encontrava uma mesa baixa. Tomas pensou que aqueles
dois homens que estavam à sua frente eram criações suas,
embora
involuntárias. Tinha tido um filho porque a mulher o
obrigara, e
fora também obrigado que traçara o retrato daquele rapaz
alto e
encurvado ao polícia que o interrogava.
Para afastar tais pensamentos, disse: Ora muito bem! Por
que
janela é que querem que eu comece?nn
Os dois homens que tinha sentados à sua frente desataram a
rir.
Sim, era evidente que não era de janelas que se tratava.
Não o
tinham mandado vir por causa das janelas, tinhamno apanhado
numa armadilha. Nunca tinha falado com o filho. Era a
primeira vez
que lhe apertava a mão. Só o conhecia de vista e não queria
conhecêlo de outra maneira. Não queria saber nada dele e só
esperava
que o filho pensasse o mesmo em relação ao pai.
Belo cartaz, não é verdade?nn, perguntou o jornalista,
apontando
para um grande desenho emoldurado que estava pendurado na
parede oposta a Tomas.
Pela primeira vez desde que entrara, Tomas levantou os
olhos.
As paredes estava cobertas de quadros bem interessantes, de
fotografias e de cartazes. O desenho que o jornalista
mostrara tinha
aparecido em 1969 num dos últimos números do semanário,
antes
de este ter sido proibido pelos russos. Era a imitação de um
célebre
cartaz da guerra civil russa de 1918, apelando à população
para se
alistar no Exército Vermelho: um soldado com um boné
enfeitado
com uma estrela vermelha e com um olhar extraordinariamente
severo olhavanos de olhos nos olhos com o indicador
apontado na
nossa direcção. O texto russo original dizia: Cidadão,
ainda não te
alistaste no Exército Vermelho?nn Tinha sido substituído
pelo seguinte texto, em checo: Cidadão, tu também
assinaste o manifesto das
duas mil palavras?nn
Era um excelente achado! O manifesto das duas mil palavras
fora o primeiro manifesto da Primavera de 1968 e exigia uma
democratização radical do regime comunista. Tinha sido
primeiro assinado
por um não acabar de intelectuais e depois tanta gente o
assinara
que se tinha tornado impossível contar as assinaturas.
Quando o
Exército Vermelho invadiu a Boémia e as purgas políticas
começaram, uma das perguntas que se faziam ao cidadão era:
Também tu
assinaste o manifesto das duas mil palavras?nn Os que
confessavam
que sim, eram imediatamente despedidos.
Belo desenho. Lembrome bem delenn, disse Tomas.
O jornalista sorriu. Esperemos que o soldado do Exército
Vermelho não esteja a ouvirnos.nn
E acrescentou com um ar sério: Para que tudo fique bem
claro,
doutor, devo dizerlhe que esta casa não é minha. É de um
amigo
meu. Portanto, não podemos ter a certeza de estar a ser
ouvidos
neste momento pela polícia. Talvez sim, talvez não. Se fosse
em
minha casa, era mais do que certo.nn
Depois, acrescentou num tom mais leve: Mas eu parto do
princípio que não temos nada a esconder a ninguém. Aliás,
imagine só a
sorte que os historiadores checos do futuro terão!
Encontrarão nos
arquivos da polícia a vida de todos os intelectuais gravada
em fita
magnética! Já pensou bem no esforço que deve representar
para um
historiador da literatura a reconstituição da vida sexual de
um
Voltaire, de um Balzac ou de um Tolstoi? No caso dos
escritores
checos, não haverá lugar para dúvidas. Está tudo gravado.
Até ao
mais ínfimo suspiro.nn
Depois, voltandose para os imaginários microfones
escondidos
na parede, levantando a voz, disse: Meus senhores, hoje
como
sempre quero darvos uma palavra de encorajamento e
expressarvos tanto os meus agradecimentos como os dos
historiadores do
futuro.nn
Riramse os três, e depois o jornalista falou
demoradamente das
circunstâncias que tinham rodeado o encerramento do seu
semanário, daquilo que fazia actualmente o desenhador que
tivera a ideia
da caricatura e daquilo que faziam actualmente os outros
pintores,
filósofos e escritores checos. A seguir à invasão russa
tinham sido
afastados do seu trabalho normal e eram lavadores de
janelas, guardas de parques de automóveis, porteiros de
hotel à noite, guardas
das caldeiras dos edifícios públicos ou ainda, na melhor das
hipóteses, porque isso já implicava alguns apoios,
motoristas de táxi.
O que o jornalista dizia não era desinteressante, mas
Tomas não
conseguia concentrarse nas suas palavras. Pensava no filho.
Lembravase que, desde há uns meses, tinha passado a
encontrálo na
rua. Não era evidentemente por mero acaso. Sentiase
espantado era
de vêlo agora na companhia do jornalista perseguido. A
primeira
mulher de Tomas era uma comunista ortodoxa, e Tomas deduzira
automaticamente que o filho vivia sob a sua influência. Não
sabia
nada dele. Claro que podia perfeitamente perguntarlhe como
é que
eram as suas relações com a mãe, mas a pergunta parecialhe
descabida ali, à frente de um estranho.
O jornalista chegou finalmente ao cerne da questão. Disse
que
havia cada vez mais gente na cadeia, só por ter defendido as
suas
opiniões, e terminou com as seguintes palavras: n"Pensámos,
portanto, que tinha chegado a altura de fazer qualquer
coisa.
O que é que querem fazer?nn, perguntou Tomas.
Nesse momento, o filho interveio. Era a primeira vez que
lhe
ouvia a voz. Constatou com surpresa que ele gaguejava.
nnPelo que sabemos, disse, os presos políticos são
maltratados. Há
alguns em estado crítico. Sendo assim, pensámos que seria
bom fazer uma petição que fosse assinada pelos intelectuais
checos mais
conhecidos, cujo nome ainda tem algum peso.nn
Não, aquilo não era gaguez. Era uma espécie de soluço que
lhe
fazia arrastar a fala, de modo que cada palavra que
pronunciava saía
involuntariamente martelada e sublinhada. Era claro que
tinha
consciência disso porque, depois de ter voltado ao normal,
corara de
novo.
nnQuerem que vos indique pessoas da minha especialidade
com
quem possam ir ter?, perguntou Tomas.
Não, disse o jornalista com um sorriso. Não queremos
conselhos seus. Queremos é a sua assinatura!nn
Uma vez mais, sentiase lisonjeado. Uma vez mais, sentia
se feliz
por alguém não se ter esquecido que ele era cirurgião! Só
por modéstia é que se defendeu: nnMas ora oiçam! Não foi
por me terem
posto na rua que me tomei um grande médico!
Não nos esquecemos do que escreveu no nosso jornal,
disselhe o jornalista.
Pois não!, sussurou o filho com um entusiasmo que talvez
tenha escapado a Tomas.
Mas o que não percebo é a que título é que o meu nome
pode ajudar os presos políticos, disse Tomas: Quem devia
assinar
são aqueles que ainda não caíram em desgraça e que ainda
gozam
de alguma influência junto do poder!
Claro que deviam!nn, disse o jornalista, rindo para
dentro.
Também o filho de Tomas riu, com o riso de alguém que já
sabe
uma data de coisas: nnSó que esses não vão assinar nada!nn
O jornalista prosseguiu: nnO que não quer dizer que não
tentemos! Não somos suficientemente bondosos para poupálos
a essa ginástica, disse. Só gostava que ouvisse as desculpas
que inventam
para nos dar. São magníficas!nn
O filho de Tomas deu uma gargalhada de aprovação.
O jornalista continuou, dizendo: cnClaro que todos
afirmam que
estão de acordo connosco em tudo, só que acham que
deveríamos
agir de outra maneira, com mais táctica, com mais subtileza,
com
mais inteligência, com mais discrição. Têm medo de assinar,
mas, ao
mesmo tempo, também têm medo do mal que ficamos a pensar
deles por não assinarem. nn
O filho de Tomas e o jornalista riram em uníssono.
O jornalista estendeu a Tomas uma folha de papel na qual
havia
um pequeno texto onde, num tom relativamente cortês, se
pedia ao
presidente da República para amnistiar os presos políticos.
Tomas tentou reflectir rapidamente. Tratavase então de
amnistiar os presos políticos? Concordava com isso. Mas
seriam os presos
políticos amnistiados porque algumas pessoas expurgadas pelo
regime (portanto, presos políticos em potência) o pediam ao
presidente
da República? O único resultado que uma petição daquele
género
podia ter era os presos políticos não serem amnistiados,
mesmo se,
por acaso, estivessem para sêlo!
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo filho, que
disse:
0 que é importante é que se fique a saber que neste país
ainda há
um punhado de homens e de mulheres sem medo. Mostrar quem
está com quem. Separar o trigo do joio.nn
Tomas pensava: Sim, tens razão, mas o que é que os presos
políticos têm a ver com isso tudo? Das duas, uma: ou se
trata de obter
uma amnistia, ou se trata de separar o trigo do joio. São
coisas
diferentes.
cnEstá hesitante, doutor?nn, perguntou o jornalista.
Sim, estava hesitante. Mas tinha medo de o dizer. À sua
frente,
na parede, estava a imagem ameaçadora do soldado com o dedo
apontado, que ora perguntava: nnAinda hesitas em alistares
te no
Exército Vermelho?nn, ora perguntava: nnTu ainda não
assinaste o
manifesto das duas mil palavras?>n, ora perguntava:
nnTambém tu assinaste o manifesto das duas mil palavras?nn,
ora perguntava: cnTu
não queres assinar a petição da amnistia?nn. Fosse o que
fosse, era
sempre uma ameaça.
O jornalista já expressara a opinião que tinha daqueles
que, embora pensando que os presos políticos deviam ser
amnistiados, invocavam mil e uma razões para não assinar a
petição. Segundo ele,
não eram senão pretextos para disfarçar a sua cobardia. Que
poderia então dizer Tomas?
O silêncio iase prolongando, mas, desta vez, foi Tomas
que o
interrompeu com uma risada. Apontando para o desenho, disse:
"<Olhemme bem para aquele tipo que só sabe ameaçarme e
perguntar se vou assinar ou não. É difícil pensar com alguém
a
olhar assim para nós!nn
Riramse os três.
A seguir, Tomas disse: n"Mas muito bem. Vou reflectir.
Podemos
voltar a encontrarnos nos próximos dias?
Tenho sempre muito gosto em vêlo, disse o jornalista,
mas já
não nos resta muito tempo para a petição. Queríamos entregá
la
amanhã ao presidente.
Amanhã?nn
Tomas lembrouse do chui gordo que lhe estendera um papel
com o qual devia precisamente denunciar o jornalista de
queixo de
rabeca. Toda a gente queria obrigálo a assinar textos que
não fora
ela que escrevera.
"<Num caso como este, nem sequer é preciso reflectir!nn,
disse o
seu filho.
Eram palavras agressivas, mas foram ditas quase como uma
súplica. Desta vez olharamse directamente nos olhos e Tomas
viu
que, quando concentrava o olhar em qualquer coisa, o filho
ficava
com a parte esquerda do lábio superior ligeiramente
levantada. Era
um ricto que conhecia bem porque costumava vêlo no seu
próprio
rosto quando verificava ao espelho se estava bem barbeado.
Não
pôde reprimir a sensação de malestar que lhe dava vêlo
agora no
rosto de outra pessoa.
Quando se viveu sempre com os filhos, habituamonos a
essas
parecenças, achamolas normais e, se alguém repara nelas,
até nos
divertimos com isso. Mas Tomas estava a falar com o filho
pela
primeira vez em toda a sua vida! Não tinha ganho o hábito de
se
ver confrontado com o seu próprio rosto!
Ora suponham que vos amputaram uma mão para a enxertarem
noutra pessoa. Um belo dia, está alguém sentado à vossa
frente a
gesticular com essa mão mesmo por baixo do vosso nariz. De
certeza que ficam a pensar que é um fantasma. E embora a
conheçam
intimamente, embora seja a vossa rica mão, ficam cheios de
medo
que ela vos toque.
O filho de Tomas prosseguia, dizendo: nnMas tu também
foste
perseguido! nn
Durante todo o tempo que a conversa durara, Tomas
perguntara
a si próprio se o filho o iria tratar por tu ou por senhor.
Até agora,
dirigiraselhe sempre de maneira a tornear a questão. Mas,
desta
vez, escolhera. Tratavao por tu e Tomas percebeu de repente
com
toda a nitidez que, na realidade, aquela cena não tinha
absolutamente nada a ver com a amnistia dos presos
políticos, porque o que
estava em jogo eram as suas relações com o filho: se
assinasse a
petição, os seus destinos cruzarseiam e Tomas seria mais
ou menos
forçado a aproximarse do filho. Se não assinasse, voltaria
a não
haver qualquer espécie de relação entre ambos, mas agora já
não
por sua vontade, mas por vontade do filho, que, por causa da
cobardia do pai, o regenaria.
Estava na situação do jogador de xadrez que já não pode
fazer
nada para evitar a derrota e se vê forçado a desistir da
partida. No
fim de contas, assinar ou não assinar vinha a dar
exactamente no
mesmo. Nem o seu destino nem o destino dos presos políticos
sofreriam qualquer alteração.
nnDêemme issonn, disse, e agarrou no papel.
14
Como se quisesse recompensálo pela decisão que tomara, o
jornalista exclamou: nnAquele seu artigo sobre Édipo era
realmente
muito bom!nn
O filho estendeulhe a caneta e acrescentou: ncHá ideias
que são
autênticos atentados!nn
Sentiuse lisonjeado com as palavras do jornalista, mas
achou a
metáfora do filho enfática e despropositada. Disse:
nnInfelizmente, a
única vítima desse atentado fui eu. Por causa desse artigo,
fiquei
impossibilitado de operar os meus doentes.nn
As suas palavras produziram uma certa impressão de frieza,
quase até de hostilidade.
Para apagar essa pequena dissonância, o jornalista
observou
(com o ar de quem está a apresentar as suas desculpas):
n"Mas olhe
que o seu artigo ajudou muito boa gente!nn
Para Tomas, a expressão n"ajudar alguémnn identificava
se, desde
a infância, com uma única actividade: a medicina. Alguma vez
algum artigo de jornal ajudara alguém'? O que é que aqueles
dois lhe
queriam impingir, aqueles dois que reduziam o conjunto da
sua vida
a uma miserável reflexão sobre Édipo ou, ainda a menos do
que
isso, ao único não que pronunciara abertamente contra o
regime?
Disse (sempre com a mesma frieza, embora involuntária):
nnNão
sei se o meu artigo ajudou alguém ou não. O que sei é que
enquanto fui médico salvei a vida a muita gente.nn
Seguiuse outra pausa. O filho acabou por interrompêla.
dizendo: nnAs ideias também podem salvar a vida.nn
Tomas via a sua própria boca na cara do filho e pensava:
que
coisa mais esquisita, ver a nossa própria boca a gaguejar!
"<O teu artigo tinha uma coisa realmente formidável: era a
recusa
de todo e qualquer compromisso. Aquela faculdade, que nós
temos
vindo a perder aos poucos, de distinguir claramente o bem e
o mal.
Deixámos de saber o que é sentirmonos culpados. Os
comunistas
arranjaram uma boa desculpa: foram enganados por Estaline. O
assassino desculpase dizendo que a mãe não gostava dele e
que era
um frustrado. E, de repente, vieste tu e disseste: Não há
justificação nenhuma. Ninguém pode estar mais inocente no
seu íntimo do
que Édipo estava. E, no entanto, Édipo castigouse a si
próprio
quando percebeu o que tinha feito.nn
Tomas fez um esforço para desviar o olhar do seu próprio
lábio
estampado na cara do filho e tentou concentrar toda a sua
atenção
no jornalista. Estava irritado e com vontade de os
contradizer.
Disse: nnSabem, tudo isso não passa de um simples mal
entendido. A
fronteira entre o bem e o mal é muito pouco nítida. Eu não
pedi o
castigo de ninguém, longe de mim ter essa intenção! Castigar
alguém que não sabia o que estava a fazer é uma pura
barbaridade.
O mito de Édito é um belo mito. Mas utilizálo dessa
maneira...nn
Ia acrescentar mais qualquer coisas mas lembrouse que a
conversa talvez estivesse a ser gravada. Não sentia a menor
ambição
de ser citado pelos historiadores do futuro. Tinha era medo
de ser
citado pela polícia. Porque o que ela lhe exigira fora
precisamente
que condenasse o artigo nos termos em que o estava a fazer
agora.
Não lhe agradava nada que, ao fim e ao cabo, a estivesse
agora a
ouvir da sua própria boca. Sabia que cada frase que se
pronunciava
naquele país podia um dia ser transmitida pela rádio. Calou
se.
<"O que é que o levou a mudar de opinião?nn, perguntou o
jornalista.
Eu gostava era de saber o que me levou a escrever o
artigonn,
disse Tomas, mas, nesse preciso instante, lembrouse: ela
viera encalhar na margem da sua cama como uma criança
abandonada numa
cesta ao sabor das águas. Sim, por causa disso é que tinha
ido
buscar aquele livro com as lendas de Rómulo, de Moisés, de
Édipo.
E, de repente, ela estava ali, à sua frente, com a gralha
enrolada no
cachecol vermelho apertada contra o peito. A imagem
reconfortavao. Era como se tivesse vindo dizerlhe que
Tereza estava viva, que
nesse instante se encontrava na mesma cidade que ele e que
nada
mais tinha importância.
O jornalista quebrou o silêncio: nnCompreendo as suas
palavras,
doutor. Também eu não gosto que se castiguem pessoas. Mas
nós
não estamos a reclamar por castigo. Só vamos pedir a
remissão do
castigo.
Eu seinn. disse Tomas. Aceitava a ideia de que, dentro
de alguns segundos, iria fazer uma coisa talvez generosa,
mas, de certeza
absoluta, perfeitamente inútil (porque não ajudaria em nada
os presos políticos) e que lhe era pessoalmente desagradável
(porque agira
em circunstâncias que lhe eram impostas).
O filho de Tomas ainda disse (quase em tom de súplica):
nnO teu
dever é assinar!nn
O teu dever? O filho atreviase então a chamálo ao seu
dever?
Era a pior coisa que lhe podiam ter dito! A imagem de Tereza
com
a gralha apertada entre os braços voltou a aparecerlhe
diante dos
olhos. Lembravase agora que ela lhe tinha dito que na
véspera tinha ido um chui ao bar provocála. As suas mãos
tinham recomeçado a tremer. Envelhecera. A não ser ela, já
nada tinha importância
para ele. Ela, que nascera de seis acasos, ela, a flor que
desabrochara da ciática do chefe do serviço, ela, que estava
para lá de todos os
cnes muss sein!", ela, a única coisa que realmente contava.
Mas então porque é que hesitava? Não havia senão um
critério
para todas as suas decisões: não fazer nada que pudesse
prejudicar
Tereza. Não podia salvar os presos políticos, mas podia
fazer Tereza
feliz. Não, nem mesmo disso era capaz. Mas, se assinasse a
petição,
tinha quase a certeza de que os chuis viriam importunála
ainda
mais vezes e que as suas mãos ainda ficariam a tremer mais.
Disse: <<É muito mais importante desenterrar uma gralha
enterrada viva do que mandar uma petição ao presidente.nn
Sabia que a frase era incompreensível, mas isso só lhe
dava satisfação. Sentiase invadir por uma embriaguez súbita
e inesperada. A
mesma negra embriaguez do dia em que dissera à mulher que
nunca
mais queria vêlos, a ela e ao filho. A mesma negra
embriaguez do
dia em que deitara na caixa do correio a carta com a qual
renunciara para sempre à sua profissão de médico. Não tinha
a certeza de
estar a proceder bem, mas tinha a certeza de estar a
proceder segundo a sua vontade.
nnPeço desculpa, disse, mas não vou assinar.nn
15
Alguns dias mais tarde, todos os jornais falavam da
petição.
Naturalmente, nenhum dizia que era um humilde requerimento
a
favor dos presos políticos e que o que se pedia era a suá
libertação.
Nenhum jornal citava a mais pequena frase daquele texto, já
de si
tão sucinto. Aquilo de que se falava, em termos vagos e
ameaçadores, era de um apelo subversivo que devia funcionar
como trampolim para um novo combate contra o socialismo. Os
signatários eram
todos nomeados, e os seus nomes cobertos de injúrias e
calúnias
arrepiantes.
Evidentemente que era previsível. Naquela época, qualquer
acção pública (uma reunião, uma petição, uma manifestação)
que não
fosse organizada pelo Partido Comunista era considerada como
ilegal e punha em perigo todos os que tivessem participado
nela.
Todos tinham consciência disso. Tomas ainda estava com
certeza
mais arrependido por não ter assinado a petição precisamente
por
causa disso. Mas, ao certo, porque é que não assinara? Já
nem sequer percebia muito bem quais tinham sido os motivos
da sua decisão.
E, ainda uma vez mais, vejoo tal como me apareceu no
começo
deste romance. À janela, a olhar para o prédio em frente do
outro
lado do pátio.
Foi dessa imagem que Tomas nasceu. Como já disse, as
personagens não nascem de um corpo matemo como os seres
vivos nascem,
mas de uma situação, de uma frase, de uma metáfora que
contém
em germe uma possibilidade humana fundamental, que o autor
pensa que nunca ninguém descobrira antes dele ou então que
nunca
ninguém tratara de modo a dizer algo de essencial sobre ela.
Mas não se costuma dizer que um autor não pode falar senão
de
si próprio?
Olhar com angústia para um pátio sem conseguir tomar uma
decisão; ouvir o gorgolejar obstinado da nossa própria
barriga num
minuto de exaltação amorosa; trair e não saber parar na
estrada tão
bela das traições; erguer o punho na manifestação da Grande
Marcha; exibir o nosso bom humor perante os microfones
invisíveis da
pnlícia: eu mesmo vivi e conheci todas estas situações;
porém, de
nenhuma delas saiu a personagem que eu próprio sou no meu
curriculum vitae. As personagens do meu romance são as
minhas próprias
possibilidades não realizadas.. É o que faz com que goste
igualmente
de todas elas e também com que todas elas me assustem
igualmente
um pouco. Todas, sem excepção, atravessaram uma fronteira
que eu
só contornei. O que me atrai precisamente é essa fronteira
que elas
atravessaram (a fronteira para lá da qual acaba o meu eu).
Do outro lado, começa o mistério que o romance interroga. O
romance
não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que a
vida
humana é nesta armadilha em que o mundo se converteu. Mas
chega por agora. Voltemos a Tomas.
Está à janela a olhar para a parede suja do prédio em
frente, do
outro lado do pátio. Pensa com uma espécie de nostalgia
naquele
tipo alto com queixo de rabeca e nos seus amigos que não
conhece,
e no número dos quais ele próprio não se inclui. É como se
se
tivesse cruzado com uma mulher muito bela no cais de
embarque de
uma estação e que, antes mesmo de poder abordála, ela
tivesse
subido para o comboio de Lisboa ou de Istambul.
Pôsse de novo a reflectir: o que é que devia ter feito?
Mesmo
abstraindo de tudo quanto tinha a ver com sentimentos (como
a
admiração que sentia pelo jornalista e a irritação que o
filho lhe
causava), ainda não estava completamente convencido de que
devia
ter assinado o texto que lhe fora apresentado.
Levantarmos a voz quando alguém tenta reduzir um homem ao
silêncio será uma atitude correcta? Com certeza que sim.
Mas, por outro lado, porque é que os jornais consagravam
tanto
espaço à petição? A imprensa (inteiramente manipulada pelo
Estado) podia muito bem não ter deixado passar uma única
palavra e
nunca ninguém saberia de nada. Se falava dela, era porque
dava
jeito aos senhores do país! Para eles, a petição era uma
autêntica
dádiva dos céus, e, como tal, serviamse dela para
justificar e desencadear uma nova vaga de perseguições.
Então, o que é que devia ter feito? Devia ter assinado ou
não?
A questão também pode ser formulada noutros termos: Será
preferível dar um grito que apresse o nosso próprio fim ou
ficar
calado e comprar uma agonia mais lenta?
Estas perguntas só terão uma resposta?
E veiolhe de novo à cabeça uma ideia já nossa conhecida:
a
vida humana só acontece uma vez e nunca podemos verificar
qual
era a boa e qual era a má decisão porque, em toda e qualquer
situação, só podemos decidir uma vez. Não nos é concedida
nem
uma segunda, nem uma terceira, nem uma quarta vida para
podermos comparar as diversas decisões.
A história é como a vida do indivíduo. Os Checos não têm
senão uma história. Tal como a vida de Tomas, um dia acaba,
sem
que seja possível repetila uma segunda vez.
Em 1618, tomandose de brios, a nobreza da Boémia decidiu
defender a sua liberdade religiosa e, furiosa com o
imperador sentado no trono de Viena, precipitou de uma
janela do palácio abaixo
dois dos seus mais eminentes representantes. Foi assim que a
Guerra dos Trinta Anos começou, guerra essa que quase levou
à destruição total do povo checo. Os Checos deviam nessa
altura ter
sido mais prudentes e menos corajosos? A resposta parece
fácil, mas
não é.
Trezentos e vinte anos mais tarde, em 1938, a seguir à
Conferência de Munique, o mundo resolveu sacrificar o país
dos Checos a
Hitler. Deveriam nessa altura ter tentado lutar sozinhos
contra um
inimigo oito vezes mais numeroso? Ao contrário do que
fizeram em
1618, foram mais prudentes do que corajosos. A sua
capitulação
marcou o início da Segunda Guerra Mundial, que se saldou
pela
perda definitiva da sua liberdade enquanto nação por vários
decénios ou por vários séculos. Deveriam nessa altura ter
sido mais corajosos do que prudentes? Que deveriam ter
feito'?
Se a história checa se pudesse repetir, seria interessante
experimentar caso a caso a outra eventualidade e depois
comparar os resultados. Como tal experiência não é possível,
todos os raciocínios
se reduzem a um mero jogo de hipóteses.
Einmal ist keinmal. Uma vez não conta. Uma vez é nunca.
A história da Boémia não háde repetirse segunda vez, a
história da
Europa também não. A história da Boémia e a história da
Europa
são dois esquissos que a inexperiência da humanidade traçou.
A história é tão leve como a vida do indivíduo,
insustentavelmente
leve, leve como uma pena, como poeira 'ao vento, como uma
coisa
que háde desaparecer amanhã.
Tomas voltou a pensar uma vez mais com uma espécie de
nostalgia, quase com amor, no jornalista alto e curvado. Era
alguém
que se comportava ncomo se a história não fosse um
esquisso, mas
um quadro acabado. Comportavase como se tudo o que fazia
tivesse de repetirse um número incalculável de vezes no
eterno retorno,
com a certeza de nunca se enganar nos seus actos. Estava
convencido que tinha razão, o que para ele não era um
sintoma de estreiteza
de espírito, mas uma marca de virtude. Era um homem que
vivia
numa história completamente diferente da de Tomas: numa
história
que não era (ou que não tinha consciência de ser) um
esquisso.
16
Pouco depois, ainda fez a reflexão que menciono a seguir
para
melhor esclarecer o capítulo precedente: suponhamos que
havia no
universo um planeta onde pudéssemos vir ao mundo pela
segunda
vez. Ao mesmo tempo, lembrarnosíamos perfeitamente da vida
passada na Terra, de toda a experiência já adquirida.
E talvez houvesse outro planeta onde viéssemos à luz pela
terceira vez com a experiência das duas vidas anteriores.
E talvez fosse havendo sempre mais planetas onde a espécie
humana fosse renascendo sempre um grau mais acima na escala
da
maturidade.
Era assim que Tomas via o eterno retorno.
"Vós, cá na Terra (no planeta número um, no planeta da
inexperiência), não podemos ter senão uma ideia muito vaga
do que aconteceria ao homem nos outros planetas. Tornarse
ia mais sábio? Poderá alguma vez ter a maturidade ao seu
alcance? Poderá ele chegar
a ela através da repetição?
Só na perspectiva desta utopia é que as noções de
pessimismo e
de optimismo têm sentido. Optimista é quem pensa que a
história
humana será menos sangrenta no planeta número cinco.
Pessimista,
quem não acredita nisso.
Tomas esforçavase por lembrarse de onde é que a
conhecia.
Seria uma das suas antigas doentes? Ela comportavase como
se já
tivessem sido amigos íntimos. 'Tentou responderlhe sem dar
a entender que não se lembrava dela. Já pensava em como é
que havia
de convencêla a ir com ela ao estúdio do amigo, cuja chave
tinha
no bolso, quando uma observação inesperada lhe revelou quem
era
essa mulher: era a estudante de arte dramática com um corpo
magnificamente bronzeado a quem passara o dia inteiro a
telefonar!
Esta triste aventura divertiao mas ao mesmo tempo
assustavao.
Estava cansado, não só fisicamente mas também mentalmente;
os
dois anos de férias não podiam prolongarse indefinidamente.
17
Um célebre romance de Júlìo Verne, de que Tomas gostava
muito em criança, intitulase Dois Anos de Férias. e é, de
facto, bem
certo que a duração máxima das férias são dois anos. Ia
fazer daí a
pouco três anos que Tomas lavava janelas.
Durante essas semanas compreendeu (com tristeza, e também
com um sorriso sereno) que começava a cansarse fisicamente
(todos
os dias travava um e às vezes dois combates amorosos) e que,
embora o seu desejo não tivesse diminuído, só conseguia
possuir as
mulheres à custa de uma última tensão n das suas forças.
(Eu
acrescento: não das suas forças sexuais, mas das suas forças
físicas;
não tinha dificuldades com o sexo, mas com a respiração, e
era precisamente isso que lhe parecia um bocado cómico.)
Tentava, um belo dia, marcar um encontro para a tarde,
mas,
como às vezes acontece, nenhuma das suas amigas atendia o
telefone e a tarde arriscavase a ficar em branco. Sentiase
desamparado.
Telefonou uma boa dezena de vezes para casa de uma rapariga
encantadora, estudante de teatro, cujo corpo, dourado ao sol
de alguma praia de nudistas da Jugoslávia, se encontrava
coberto de um
halo perfeitamente uniforme, como se tivesse estado a girar
lentamente num espeto regulado por um mecanismo
espantosamente preciso.
Telefonoulhe de todos os armazéns onde trabalhava. Sempre
em
vão. Por volta das quatro horas, tendo acabado o serviço,
dirigiase
para o escritório para entregar as folhas preenchidas
quando, numa
rua do centro de Praga, uma desconhecida pôsse a chamar por
ele.
Com um sorriso, a rapariga perguntou: nnDoutor, então por
onde é
que tem andado escondido? Nunca mais lhe pus a vista em
cima!nn
18
As férias longe da sala de operações também eram férias
sem
Tereza: passavam dias inteiros sem se ver, e ao domingo,
finalmente
reunidos, repletos de desejo, mas afastados um do outro como
na
noite em que Tomas voltara de Zurique, tinham um longo
caminho
a percorrer antes de poderem tocarse, antes de poderem
beijarse.
O amor físico davalhes prazer mas não lhes trazia
consolação
nenhuma. Ela não gritava como gritava dantes e, quando da
volúpia,
a sua máscara parecia exprimir dor e uma estranha ausência.
Ternamente unidos, só de noite, a dormir. Continuavam a
dormir de mãos
dadas, e ela esquecia o abismo (o abismo da luz do dia) que
havia
entre eles. Mas, para Tomas, só as noites não chegavam para
poder
continuar a protegêla e a tomar conta dela. De manhã,
quando
olhava para Tereza, sentia o coração apertarselhe e ficava
a tremer
por ela: a mulher andava com um ar triste e doente.
Um domingo, ela propôslhe que fossem de automóvel ao
campo. Foram a umas termas onde constataram que todas as
ruas
tinham sido baptizadas de novo com nomes russos e onde
encontraram um antigo doente de Tomas. Esse encontro deixou
o bastante
perturbado. De um momento para o outro, voltavam a falarlhe
como se fala a um médico e, durante alguns minutos, pensou
que tinha reencontrado a sua vida de outrora, com a sua
reconfortante
regularidade, com as horas das consultas, com o olhar
confiante dos
doentes ao qual ele parecia não ligar importância nenhuma
mas que
lhe dava uma satisfação bem real e que lhe era extremamente
necessário.
No caminho de regresso, Tomas, ao volante, repetia de si
para si
que deixar Zurique tinha sido um erro catastrófico. Mantinha
os
olhos convulsivamente fixos na estrada para não ver Tereza.
Achavaa culpada. A sua presença ali ao lado aparecialhe em
toda
a sua insustentável contingência. Porque é que ela estava
ali ao seu
lado'? Quem é que a pusera na cesta e a abandonara ao sabor
das
águas? E que necessidade tivera de ir acostar precisamente à
margem da cama de Tomas?' Porquê ela e não outra qualquer'?
Continuavam o seu caminho; durante todo o trajecto nem um
nem outro descerraram os dentes.
Uma vez em casa, jantaram em silêncio.
O silêncio erguiase entre eles como a infelicidade. De
minuto a
minuto, tornavase cada vez mais pesado. Para se verem
livres dele,
foram deitarse muito cedo. Durante a noite, acordoua para
ela
deixar de chorar.
Tereza contoulhe: n"Eu estava enterrada. Desde há muito
tempo. Tu vinhas verme uma vez por semana. Batias na cova e
eu
saía. Tinha os olhos cheios de terra.
nnTu dizias: 'Assim não vês nada,, e tiravasme a terra
dos olhos.
<nE eu respondiate: 'Seja como for, não vejo nada. Tenho
buracos em vez de olhos.,
nnDepois, estiveste muito tempo sem aparecer e eu sabia
que tu
estavas com outra. As semanas passavam e tu sempre sem
apareceres. Já não conseguia dormir porque tinha medo que tu
viesses e eu
não desse por isso. Um dia, acabaste por voltar e bateste na
cova,
mas eu estava tão cansada por ter estado um mês inteiro sem
dormir que mal tinha forças para me levantar e sair lá para
fora.
Quando acabei finalmente por conseguir, tu ficaste com um ar
desiludido. Dissesteme que eu estava com má cara. Sentia
que te desagradava, que tinha a cara cavada, que fazia
gestos incoerentes.
cnPara me desculpar, dissete: nPerdoame: é que não
preguei
olho durante este tempo todo.'
n"E tu disseste, com uma voz que era para me tranquilizar
mas
que soava a falso: nVês? Tens que descansar. Devias tirar
um mês
de férias.'
nnE eu sabia perfeitamente o que querias dizer quando me
falavas em férias! Sabia que tu querias ficar um mês inteiro
sem me ver
porque estavas com outras. Fostete embora e eu voltei para
o
fundo da cova. e sabia que ia estar outra vez um mês inteiro
sem
dormir para não faltar ao nosso encontro, e que, quando
voltasses,
ao fim de um mês, ainda estaria mais feia e tu ainda
ficarias mais
desiludido.nn
Tomas nunca ouvira nada tão pungente. Apertava Tereza de
encontro a si, sentialhe o corpo a tremer e pensava que já
não tinha
forças para carregar o amor que sentia por ela.
Que o planeta vacilasse sob as deflagrações das bombas,
que a
pátria fosse cada novo dia pilhada por um novo intruso, que
todos
os habitantes do bairro fossem obrigados a comparecer
perante o
pelotão de execução, tudo isso suportaria mais facilmente do
que se
atrevia a confessar. Mas a tristeza de um só sonho de Tereza
eralhe
perfeitamente insuportável.
Voltava para dentro do sonho que ela lhe acabara de
contar.
Acariciavalhe a face e, muito discretamente, para ela não
perceber,
tiravalhe a terra das órbitas. Depois ouviua pronunciar
esta frase,
a mais pungente de todas: nnSeja como for, não vejo nada.
Tenho
buracos em vez de olhos.nn
Sentiuse à beira do enfarte.
Tereza voltara a adormecer; agora era ele que não
conseguia
dormir. Imaginavaa morta. Ela estava morta e tinha sonhos
horríveis; mas, como estava morta, ele não podia acordála.
Sim, a morte
era isso: Tereza a dormir e a ter sonhos atrozes e ele sem
poder
acordála.
19
Cinco anos depois de o exército russo ter invadido o país
de
Tomas, Praga estava muito diferente: as pessoas com quem
Tomas
se cruzava na rua já não eram as mesmas de dantes. Metade
dos
seus amigos tinha emigrado e metade dos que ficaram tinha
morrido. É um facto que não será assinalado por historiador
nenhum: os
anos que se seguiram à invasão russa foram um período de
enterros;
nunca houve tantos óbitos. E não falo só dos casos (afinal
de contas
bastante raros) em que as pessoas foram encurraladas e
empurradas
pára a morte como Jan Prochazka. Quinze dias depois de a
rádio
ter começado a transmitir quotidianamente a gravação das
suas
conversas privadas, deu entrada no hospital. De súbito, o
cancro
que, por certo, já dormitava discretamente há algum tempo no
seu
corpo, floriu como uma rosa. A operação teve lugar na
presença da
polícia e esta, quando constatou que o escritor estava
condenado,
deixou de interessarse por ele e permitiulhe morrer nos
braços da
mulher. Mas a morte também atingia aqueles que não eram
directamente perseguidos. Infiltrandose através da alma, o
desespero que
tomara conta do país apoderavase dos corpos e faziaos cair
por
terra. Alguns fugiam desesperadamente para evitar os favores
do regime que queria cumulálos de honrarias e obrigálos a
aparecer em
público com os novos dirigentes. Foi assim que o poeta
Frantisek
Hrubine morreu: a fugir do amor do Partido. O ministro da
Cultura,
ao qual tentara com todas as suas últimas forças escapar,
acabou por
apanhálo no caixão. Fezlhe um discurso sobre a campa, um
discurso que versava sobre o amor do poeta à União
Soviética. Talvez
tenha proferido tal ignomínia para acordar o poeta. Mas o
mundo
estava tão feio que ninguém se queria levantar de entre os
mortos.
Tomas foi à câmara crematória assistir às exéquias de um
célebre
biólogo expulso da Universidade e da Academia das Ciências.
Para
evitar que a cerimónia se transformasse em manifestação,
tinham
proibido que a hora viesse indicada nas participações e os
parentes
só à última da hora é que souberam que o defunto seria
incinerado
às seis e meia da manhã.
Ao penetrar na câmara crematória, Tomas não conseguiu logo
perceber o que estava a passarse: a sala estava iluminada
como um
estúdio de cinema. Surpreendido, olhou em torno de si e
constatou
que havia câmaras de filmar instaladas nos três ângulos da
sala.
Não, não era a televisão, mas a polícia que filmava o
enterro para
poder identificar quem lá estava. Um antigo colega do sábio
falecido, que ainda era membro da Academia das Ciências,
teve a coragem de pronunciar algumas palavras ao pé do
caixão. Nunca pensara vir assim a tornarse uma estrela de
cinema.
Depois da cerimónia, enquanto os presentes cumprimentavam
a
família do defunto, Tomas viu, num canto a sala, um pequeno
grupo, onde reconheceu o jornalista alto e curvado.
Continuava a
pensar com uma espécie de nostalgia naquelas pessoas que não
têm
medo de nada e se ligam com uma forte amizade umas às
outras.
Aproximouse dele, sorriulhe, quis cumprimentálo, mas o
homem
alto e curvado disse: <nAtenção, doutor, é melhor não se
aproximar. nn
Era uma frase ambígua. Podia tomála como um aviso sincero
e
amigável (nnTenha cuidado, estamos a ser filmados, se nos
dirige a
palavra é meio caminho andado para novo interrogatórionn),
mas
também não era de excluir que encerrasse uma certa ironia
(nnJá que
não teve a coragem de assinar uma petição, seja coerente e
não
tenha mais contactos connosco!nn). Fosse qual fosse a
interpretação,
Tomas obedeceu e eclipsouse. Tinha a impressão de que a
bela
desconhecida com quem se cruzara no cais de embarque da
estação
subia para a carruagemcama de um rápido e que, no momento
em
que estava quase a dizerlhe que a admirava, ela punha um
dedo
nos lábios para impedilo de falar.
20
À tarde, teve um encontro interessante. Estava a lavar a
montra
de uma loja quando um homem ainda novo parou a dois passos
dele. O homem debruçouse para examinar as etiquetas.
cnEstá tudo cada vez mais caro!nn, disse Tomas, sem parar
de esfregar a esponja no vidro molhado.
O homem virou a cabeça. Era um colega do hospital, aquele
a
que chamei S., e que sorria com indignação à ideia de que
Tomas
pudesse fazer a sua autocrítica. Tomas sentiase feliz com o
encontro (não era senão o prazer ingénuo que o inesperado
nos traz), mas
percebeu no olhar do colega (logo no primeiro segundo,
enquanto
S. ainda não tinha tido tempo de controlar a sua reacção)
uma expressão de desagradável surpresa.
n"Como estás?nn, perguntou S.
Antes mesmo de dar uma resposta, Tomas compreendeu que
S. tinha ficado com vergonha da pergunta. Um médico que
continuava a exercer a sua profissão perguntar a um médico
que lavava
janelas nncomo estás?nn era evidentemente uma gaffe
terrível.
n"Melhor do que nuncann, respondeu Tomas com o ar mais
contente do mundo, para lhe aliviar o malestar, mas sentiu
imediatamente
que esse nnmelhor do que nuncann podia, contra sua vontade,
ser interpretado (por causa do tom enfático com que o
dissera) como uma
amarga ironia.
n"Que novidades me contas do hospital?, apressouse a
acrescentar.
Nenhumas, corre tudo normalmentenn, respondeu S.
Mesmo esta resposta, que ele pretendia que fosse
perfeitamente
neutra, não podia ser mais despropositada; ambos o sabiam e
pressentiam que o outro também sabia: como é que tudo podia
correr
normalmente quando um dos médicos lavava montras?
nnE o chefe do serviço?, perguntou Tomas.
Deixaste de o ver'?, interrogou S.
Deixeinn, disse Torn'ias.
Era verdade. Desde que saíra do hospital nunca mais vira o
chefe do serviço, embora outrora fossem excelentes
colaboradores e
quase tivessem tendência para se considerar amigos. Embora
não
fosse de propósito, o nndeixeinn que acabara de pronunciar
tinha qualquer coisa de triste e Tomas sentia que S. estava
arrependido de lhe
ter feito a pergunta, já que ele próprio, S., tal como o
chefe do
serviço, nunca viera saber notícias de Tomas e perguntarlhe
se precisava de alguma coisa.
A conversa entre os dois antigos colegas estava a tornar
se impossível, embora ambos, sobretudo Tomas, o lamentassem.
Não queria mal aos colegas por se terem esquecido dele.
Têloia explicado de boa vontade, e logo de seguida
àquele jovem médico. Tinha vontade de lhe dizer: nnNão
fiques com esse ar
incomodado. É normal e está perfeitamente na ordem natural
das
coisas que vocês não me procurem! Não tenhas complexos por
causa
disso! Para mim, foi um verdadeiro prazer encontrarte!nn,
mas,
mesmo isso, tinha medo de lho dizer porque até agora nenhuma
das
suas palavras soara com o sentido que lhes queria dar e o
seu antigo
colega podia suspeitar que, por detrás dessas frases e por
muito
sinceras que elas fossem, podia esconderse um sarcasmo.
nnDesculpa, disse por fim S., estou com pressann, e
estendeulhe a
mão. "<Depois telefono.nn
Dantes, quando os colegas o desprezavam por causa da sua
suposta cobardia, todos lhe sorriam. Agora, que já não
podiam desprezálo, que eram mesmo forçados a respeitálo,
evitavamno.
Aliás, os seus antigos doentes também já não lhe faziam
convites
para beberricar champanhe. A situação dos intelectuais
despromovidos já não tinha nada de excepcional; era um
estado permanente
cujo espectáculo incomodava.
21
Entrou em casa, deitouse e adormeceu mais depressa do que
o
costume. Mais ou menos uma hora depois, acordou com dores de
estômago. Era uma maleita antiga que voltava sempre que
estava
deprimido. Abriu o armário dos remédios e pôsse a
praguejar. Não
havia medicamentos. Tinhase esquecido de os arranjar.
Tentou debelar a crise pela força de vontade, e quase
conseguiu, mas não
tornou a adormecer. Quando Tereza chegou a casa, por volta
da
uma e meia da manhã, apeteceulhe conversar com ela. Contou
lhe
o enterro, o que acontecera com o jornalista que se tinha
recusado a
falarlhe e o seu encontro com o colega.
a Praga está a tornarse uma cidade muito feia, disse
Tereza.
É verdadenn, respondeu Tomas.
Alguns segundos depois, Tereza disse em voz baixa: nnO
melhor
era irmonos embora.
Também acho, disse Tomas. Mas não temos para onde ir.nn
Estava sentado em cima da cama, de pijama; ela veio
sentarse a
seu lado e passoulhe o braço por baixo da cintura.
nn Vamos para o campo, disse Tereza.
Para o campo?, perguntou ele, surpreendido.
Lá, podíamos estar sozinhos. Não tinhas de ver nem o
jornalista nem os teus colegas. Lá, há outras pessoas, e há
a natureza que
ainda está como dantes.nn
Nesse momento, Tomas ainda teve uma dor indefinida no
estômago; sentiase velho e tinha a impressão de não querer
mais nada
senão um bocadinho de paz e tranquilidade.
"<Talvez tenhas razãonn, disse com dificuldade, porque
lhe custava
respirar quando tinha dores.
Tereza voltou a insistir: nnPodíamos ter um casibeque com
um
jardinzito. Karenine havia de sentirse nas suas sete
quintas.
Pois haviann, concordou Tomas.
Depois, tentou imaginar como seria se realmente fossem
viver
para o campo. Numa aldeia, era com certeza muito difícil ter
uma
mulher nova todas as semanas. Era o fim das suas aventuras
eróticas.
<<Só que, no campo, te chateavas de morte por só me teres
a
mim... >>. disse Tereza, adivinhandolhe os pensamentos.
A dor de estômago aumentava. Já não conseguia falar.
Pensou
que andar atrás das mulheres também era um nnes muss sein!
nn para
ele, um imperativo que o reduzia à escravatura. Apetecialhe
ter
férias. Mas férias absolutas, férias em que dissesse adeus a
todos os
imperativos, a todos os nnes muss sein!nn. Se tinha
conseguido livrarse da sala de operações do hospital,
porque é que não havia de
conseguir livrarse da sala de operações do mundo onde o seu
bisturi imaginário passava o tempo a abrir a misteriosa
caixinha das jóias
do eu feminino para pôr à mostra a sua ilusória milionésima
parte
de diferença?
cnDóite o estômago?nn, percebeu finalmente Tereza.
Disselhe que sim.
n"Já tomaste a injecção?nn
Abanou a cabeça. nnEsquecime de comprar remédios.nn
Tereza censurouo pela sua negligência e acaricioulhe a
testa
perlada de suor.
cnJá me sinto melhor, disse.
Deitatenn, disse ela, pondolhe o cobertor por cima.
Foi à casa de banho e, passados instantes, veio deitarse ao
seu lado.
Voltou a cabeça sobre a almofada para o lado dela e foi
assaltado pelo pânico: a tristeza que emanava dos olhos de
Tereza era
insuportável.
Disselhe: nnOuve, Tereza! O que é que tu tens? Há já
algum
tempo que te acho estranha. Sintoo. Seio.nn
Ela abanou a cabeça: nnNão, não tenho nada.
Não digas que não!
É a mesma coisa de semprenn, disse Tereza.
<<A mesma coisa de semprenn queria dizer que ela tinha
ciúmes e
que ele continuava a traíla.
Mas Tomas voltou a insistir: cnNão, Tereza. Agora é
diferente.
Nunca te vi em tal estado. nn
Tereza rnplicoulhe: n<Ora muito bem! Já que mo pedes,
vou
mesmo dizerte: vai lavar a cabeça!nn
Tomas não percebia.
Ela disselhe tristemente, sem agressividade e quase com
ternura:
<<É que já há alguns meses que trazes um cheiro insuportável
nos
cabelos. Tresandam a sexo. Não to queria dizer. Mas já perdi
a
conta às noites em que me tens obrigado a respirar o cheiro
do sexo
das tuas amantes!nn
Ao som destas palavras, voltaram a darlhe as cãibras no
estômago. Era desesperante! Esfregava escrupulosamente o
corpo todo,
as mãos, a cara, para tirar toda e qualquer réstea de
cheiros desconhecidos. Nas casas de banho alheias, evitava
sempre os sabonetes.
Andava munido com um sabão de seda. Mas tinhase esquecido
do
cabelo. Não, nos cabelos nunca tinha pensado!
E lembrouse daquela mulher que se punha a cavalo na sua
cara
e que lhe exigia que fizesse amor com a cara e com o alto da
cabeça. Como a detestava agora! Que ideias tão parvas as
suas! Via que
não podia desmentir nada e que só podia pôrse estupidamente
a rir
e depois ir à casa de banho lavar a cabeça.
Tereza voltou a acariciarlhe a testa. nnDeixate estar
deitado. Já
não vale a pena. Estou habituada.nn
Doíalhe o estômago e não queria senão calma e
tranquilidade.
Disselhe: cnVou escrever àquele meu doente que
encontrámos
nas termas. Tu conheces a região onde a aldeia dele fica?
Nãonn, disse Tereza.
Tomas já só falava com grande dificuldade. Apenas
conseguiu
articular: nnFloresta... colinas...
Sim, é isso mesmo. Vamonos embora. Mas agora cala
tern, e
continuava a acariciarlhe a testa. Estavam deitados um ao
lado do
outro em silêncio. Lentamente, a dor ia recuando. Em breve,
ambos
adormeceram.
22
Acordou a meio da noite e constatou com surpresa que tinha
tido
sonhos extremamente eróticos. Só se lembrava com nitidez do
último:
havia uma mulher gigante a nadar toda nua numa piscina, uma
mulher
umas boas cinco vezes maior do que ele, com a barriga
totalmente
coberta por uma espessa crina, que lhe ia das pernas ao
umbigo.
Observavaa da borda e estava extraordinariamente excitado.
Como é que podia excitarse com o corpo tão debilitado
pelas
dores de estômago'? E como é que podia excitarse com uma
mulher
que, se estivesse acordado, não lhe inspiraria senão nojo?
Pôsse a pensar: Há duas rodas dentadas a girar em sentido
contrário no relógio do nosso cérebro. Numa, há as visões,
na outra, as
reacções do corpo. O dente que tem a visão de uma mulher nua
gravada engrena no dente oposto, onde está inscrito o
imperativo da
erecção. Quando, por qualquer razão, o mecanismo se avaria e
o
dente da excitação entra em contacto com o dente no qual
está
pintada a imagem de uma andorinha a voar, o nosso sexo
levantase
só por ver a andorinha.
Tinha, aliás, conhecimento de um estudo no qual um dos
seus
colegas, especialista do sono, afirmava que um homem a
sonhar está
sempre em erecção, seja qual for o seu sonho. A associação
da erecção com uma mulher nua não era senão a maneira que
Deus escolhera de entre as mil e uma possíveis de regular o
mecanismo do
relógio da cabeça do homem.
E que tem o amor a ver com isso? Nada. Basta que uma roda
da engrenagem se desvie de uma fracção de milímetro na
cabeça de
Tomas para ele ficar excitado por ver uma andorinha, mas
isso não
altera em nada o seu amor por Tereza.
Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho
do
Criador, o amor é, pelo contrário, aquilo que só nos
pertence a nós
e através do qual escapamos ao Criador. O amor é a nossa
liberdade. O amor está para lá da necessidade, para lá do
nnes muss sein!nn.
Mas a verdade também não é ainda bem essa. Mesmo que o
amor seja algo de muito diferente do mecanismo de relógio da
sexualidade que o Criador imaginou para sua alta recreação,
ele
encontrase sempre ligado a ela, como uma delicada figura de
mulher nua ao pêndulo de um enorme relógio de sala.
Tomas disse de si para si: Ligar o amor à sexualidade foi
realmente uma das ideias mais bizarras do Criador.
E ainda pensou o seguinte: A única maneira de salvar o
amor da
estupidez da sexualidade era regular de outra maneira o
relógio
da nossa cabeça e fixar excitado por ver uma andorinha.
Com este doce pensamento, sentiuse mais relaxado. E, à
beira
do sono, no espaço encantado das visões confusas, convenceu
se que
acabara de descobrir a solução de todos os enigmas, a chave
do
mistério, uma nova utopia, o Paraíso: um mundo em que se
fica em
erecção por ver uma andorinha e onde é possível amar Tereza
sem
ser importunado pela estupidez agressiva da sexualidade.
Voltou a adormecer.
23
À sua volta rodopiavam mulheres meio despidas, e sentiase
cansado. Para lhes escapar, abriu a porta que dava para o
quarto ao
lado. Viu uma rapariga deitada num divã. Também se
encontrava
quase nua, pois só tinha umas cuecas vestidas; estava
deitada de
lado. apoiada num cotovelo. Olhava para ele e sorria, como
se já
estivesse à sua espera.
Aproximouse. Sentiase inundado por uma imensa
felicidade,
porque finalmente a encontrara e podia estar com ela.
Sentouse a
seu lado, disselhe algumas palavras, e, por sua vez, também
ela lhe
disse algumas palavras. Irradiava dela uma calma enorme. Os
gestos
que fazia com a mão eram lentos e suaves. Toda a vida
desejara a
paz daqueles gestos. Era aquela calma feminina que lhe
faltara toda
a vida.
Mas em breve passou do sono para o estado de
semiconsciência.
Encontravase naquele no man's land onde já se não está a
dormir e
ainda se não está acordado. Tinha medo de perder aquela
rapariga
de vista e pensava: Meu Deus! Agora não a posso perder!
Tentava
lembrarse com todas as suas forças de onde é que a
conhecia, daquilo que tinha vivido com ela. Como é que podia
não se lembrar
se a conhecia tão bem? Prometeu a si próprio que, mal
pudesse,
havia de telefonarlhe. Mas logo se pôs a tremer: como é que
podia
telefonarlhe se não se lembrava do nome dela? Como é que
tinha
podido esquecerse do nome de alguém que conhecia tão bem?
A seguir, quase completamente acordado, com os olhos
abertos,
pensou: Onde é que eu estou? Em Praga, claro, mas aquela
rapariga
será de Praga? Não a terei encontrado noutro lado? Não a
terei
conhecido na Suíça? Foi preciso um bom minuto para
compreender
que não conhecia a rapariga, que ela não era nem de Zurique
nem
de Praga, que fora o seu sonho que a criara e que ela não
era de
parte nenhuma.
Ficou tão perturbado que se sentou à beira da cama. Tereza
dormia com uma respiração muito funda ao seu lado. Dizia
para si
próprio que a rapariga do sonho não era parecida com nenhuma
das
mulheres que encontrara na sua vida. Aquela rapariga que lhe
parecera tão familiar era, de facto, uma desconhecida. Mas
era ela que
sempre desejara. Se um dia encontrasse o seu paraíso
pessoal. se é
que tal coisa existe, era com essa rapariga que lá havia de
viver.
A rapariga do sonho era o nnes muss sein!nn do seu amor.
Lembrouse do célebre mito do Banquete de Platão: dantes,
em
tempos muito recuados, os humanos eram hermafroditas e Deus
separouos em duas metades, que, desde então, erram pelo
mundo à procura
uma da outra. Amar é desejar essa metade perdida de nós
próprios.
Admitamos que assim seja; que cada um de nós tenha algures
no
mundo um par com o qual constituía em tempos um único corpo.
A
outra metade de Tomas é a rapariga com quem ele sonhou. Mas
nunca ninguém háde encontrar a outra metade de si próprio.
Em
vez dela, mandamlhe uma Tereza dentro de uma cesta ao sabor
das
águas. Mas o que acontecerá depois, se encontrar realmente a
mulher que lhe estava destinada, a outra metade de si
próprio?
Qual é que deve preferir? A mulher que encontrou numa cesta
ou a
mulher do mito de Platão?
Põese a imaginar que vive num mundo ideal com a mulher
que
lhe apareceu em sonhos. E Tereza, um dia, passa por baixo
das
janelas da casa onde eles vivem. Está sozinha, pára no
passeio e
olhao de longe com um olhar infinitamente triste. E ele,
ele não
consegue suportar esse olhar. Uma vez mais, sente a dor de
Tereza
no âmago do seu próprio coração! Uma vez mais, é presa da
compaixão e encontrase profundamente mergulhado na alma de
Tereza.
Salta pela janela. Mas ela dizlhe com amargura que a única
coisa
que tem a fazer é ficar onde se sente feliz, e dilo com
aqueles
gestos incoerentes que sempre o irritaram e sempre achou
feios.
Agarralhe nas mãos, naquelas suas mãos tão nervosas, e
apertaas
nas suas para as acalmar. E sabe que está pronto a deixar a
qualquer momento a casa da sua felicidade, que está pronto a
deixar a
qualquer momento o paraíso onde vive com a rapariga dos seus
sonhos, que vai trair o nnes muss sein!nn do seu amor para
se ir embora
com Tereza, essa mulher nascida de seis acasos grotescos.
Sentado na cama, olhava para a mulher deitada a seu lado,
que lhe apertava a mão a dormir. Sentia por ela um amor
inexprimível.
Nesse momento, ela devia estar com um sono muito leve porque
abriu as pálpebras e olhou para ele com um ar assustado.
nnPara onde é que estás a olhar?nn, perguntou ela.
Sabia que não devia acordála e que devia voltar a
conduzila
para o sono; tentou responderlhe com palavras que lhe
acendessem
na cabeça a faúlha de um novo sonho.
nnEstou a olhar para as estrelas, disse. ele.
Não me mintas, tu não estás a olhar para as estrelas, tu
estás
a olhar para baixo.
Mas, como vamos num avião, as estrelas estão por baixo
de
nós.
Ah!nn, disse Tereza. Apertou ainda com mais força a mão
de
Tomas e voltou a adormecer. Tomas sabia que, agora, Tereza
estava
a olhar pela janela de um avião que voava tão alto que ia
por cima
das estrelas.
SEXTA PARTE
A GRANDE MARCHA
Só em 1980, através de um artigo publicado no Sunday
Times, se
ficou a saber em que circunstâncias morreu Iakov, o filho de
Estaline. Prisioneiro de guerra durante a Segunda Guerra
Mundial,
encontravase detido num campo onde também havia oficiais
ingleses. As latrinas eram comuns. O filho de Estaline
deixavaas sempre
sujas. Os ingleses não gostavam de ver as suas latrinas
cheias de
merda, mesmo que a merda fosse do filho daquele que era
então o
homem mais poderoso do universo. Ralharam com ele. O filho
de
Estaline ficou ofendido. Os oficiais ingleses voltaram a
repreendêlo
e obrigaramno a limpar as latrinas. Zangouse, discutiu com
eles e
agrediuos. Por fim, pediu para ser recebido pelo comandante
do
campo. Queria que ele arbitrasse o diferendo. Mas o alemão
estava
demasiado imbuído da sua importância para deixarse envolver
numa discussão sobre merda. O filho de Estaline não pôde
suportar tal
humilhação. Lançando aos céus as pragas russas mais
tremendas,
correu em direcção ao arame farpado e electrificado que
cercava o
campo. Atirouse contra os fios. Aí ficou suspenso o corpo
que
nunca mais havia de sujar as latrinas britânicas.
O filho de Estaline não teve uma vida fácil. O pai
engendrouo
cnm uma mulher que, conforme tudo indica, acabou por mandar
fuzilar. O jovem Estaline era, portanto, ao mesmo tempo,
filho de
Deus (porque o seu pai era venerado como Deus) e maldito por
ele.
As pessoas temiamno duplamente: podia prejudicálos tanto
pelo
poder que ainda tinha (sempre era o filho de Estaline) como
pela sua
amizade (o pai podia mandar castigar os amigos em vez do
filho).
Maldição e privilégio, felicidade e infelicidade nunca
ninguém
sentiu tanto na própria pele o ponto a que essas oposições
são intermutáveis e como é estreita a margem entre os dois
pólos da existência humana.
Logo no princípio da guerra foi capturado pelos alemães e
eis
que outros prisioneiros, membros de uma nação pela qual
sempre
sentira uma antipatia visceral, porque lhe parecia
incompreensivelmente fechada, o acusavam de ser porco. Ele,
que carregava às
costas o drama mais sublime que possa ser concebido (ser ao
mesmo
tempo filho de Deus e anjo caído em desgraça), tinha agora
que
suportar ser julgado, e não por coisas nobres (a respeito de
Deus ou
dos anjos), mas por causa da merda? O drama mais nobre e o
incidente mais trivial estarão assim tão vertiginosamente
próximos um
do outro?
Vertiginosamente próximos? Então a proximidade também pode
causar vertigens?
Claro que pode. Quando o pólo norte se aproximar do pólo
sul
quase a ponto de o tocar, o nosso planeta desaparecerá e o
homem
terá à sua volta um tal vazio que ficará aturdido e cederá à
sedução
da queda.
Se a maldição e o privilégio são uma e a mesma coisa, se
não há
diferenças entre o nobre e o vil, se o filho de Deus pode
ser julgado
por causa da merda, a existência humana perde as suas
dimensões e
tornase de uma leveza insustentável. Então, o filho de
Estaline
corre em direcção ao arame farpado para lançar contra ele o
corpo,
como se estivesse a lançálo para o prato de uma balança que
miseravelmente subisse soerguido pela infinita leveza de um
mundo sem
dimensões.
O filho de Estaline deu a vida pela merda. Mas morrer pela
merda não é uma morte absurda. Os alemães que sacrificaram a
vida para aumentar o território do império para leste, os
russos que
morreram para que o poder do seu país se estendesse mais
para
ocidente, esses sim, morreram por um disparate e a sua morte
não
tem nem qualquer espécie de sentido nem de valor geral. Em
contrapartida, a morte do filho de Estaline foi a única
morte metafísica
no meio da estupidez universal da guerra.
Quando eu era pequeno, punhame a olhar para uma imagem de
Deus Nosso Senhor de pé, em cima de uma nuvem que havia no
Antigo Testamento, contado às crianças e ilustrado com
gravuras de
Gustavo Doré, que costumava folhear. Era um senhor bastante
velho, com olhos, nariz, uma grande barba, e eu achava que,
como
tinha boca, também devia comer. E, se comia, também devia
ter
intestinos. Mas ficava logo assustado com a ideia porque,
embora a
minha família fosse quase ateia, percebia bem a blasfémia
que era
pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos.
Sem a mínima preparação teológica, com toda a
espontaneidade,
a criança que eu era então já compreendia, portanto, a
fragilidade
da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas,
uma: ou
o homem foi criado à imagem de Deus e Deus tem intestinos,
ou
Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele.
Os gnósticos antigos sentiamno tão claramente como eu,
aos
cinco anos. Para acabar de uma vez por todas com este
maldito
problema, Valentino, grãomestre da Gnose do século ni,
afirmava
que Jesus ncomia, bebia, mas não defecavann.
A merda é um problema teológico mais difícil do que o mal.
Deus ofereceu a liberdade ao homem e, Portanto, pode
admitirse
que ele não é responsável pelos crimes da humanidade. Mas a
responsabilidade pela existência da merda incumbe
inteiramente
àquele que criou o homem, e só a ele.
São Jerónimo rejeitava categoricamente, no século nv, a
possibilidade de que Adão e Eva alguma vez tivessem dormido
um com o
outro no Paraíso. João Escoto Erígena, ilustre teólogo do
século ix,
defendia precisamente o contrário. Mas, na sua opinião, Adão
podia
levantar o seu membro mais ou menos como nós levantamos um
braço ou uma perna, ou seja, quando queria e como queria.
Não
tentemos descortinar por detrás desta ideia o eterno sonho
do homem obcecado com o pesadelo da impotência. A ideia de
Escoto
Erígena tem um significado completamente diferente. Se o
membro viril se levanta a uma simples ordem do cérebro, é
porque a
excitação é dispensável. O membro não se levanta por estar
excitado, mas porque obedece a uma ordem. O que o grande
teólogo
julgava incompatível com o Paraíso não era o coito e a
volúpia que
lhe está associada. O que era incompatível com o Paraíso era
a excitação. Fixemolo bem: no Paraíso, havia volúpia, mas
excitação,
não.
O raciocínio de Escoto Erígena pode constituir a chave de
uma
justificação teológica (ou, por outras palavras, de uma
teodiceia) da
merda. Enquanto foi permitido ao homem viver no Paraíso, ou
ele
não defecava (tal como Jesus Cristo, segundo Valentino) ou,
o que
parece mais plausível, a merda não era tida como algo de
repugnante. Ao expulsar o homem do Paraíso, Deus reveloulhe
tanto a
sua natureza imunda como o nojo. O homem começou a esconder
aquilo de que se envergonhava e quando afastava o véu quase
ficava
cego com o brilho de uma grande luz. Assim, logo a seguir a
ter
descoberto o imundo, também descobriu a excitação. Sem a
merda
(no sentido literal e no sentido figurado da palavra), o
amor sexual não seria nunca tal como nós o conhecemos: com o
coração a
martelar e uma grande cegueira dos sentidos.
Na terceira parte deste romance, evoquei Sabina seminua,
com o
chapéu de coco na cabeça, de pé, ao lado de Tomas, todo
vestido.
Mas há uma coisa que ocultei. Enquanto se viam ao espelho e
ela
se sentia excitada com o ridículo da situação, imaginava
que, tal
como estava, com o chapéu de coco na cabeça, Tomas a
obrigava a
sentar na retrete e a esvaziar os intestinos à sua frente. O
coração
começou a baterlhe mais depressa, as ideias a turvaremse
lhe; empurrou Tomas para cima da carpete; no minuto
seguinte, estava a
gritar de prazer.
O debate entre aqueles que afirmam que o universo foi
criado
por Deus e aqueles que pensam que ninguém o criou tem como
objecto algo que ultrapassa o nosso entendimento e a nossa
experiência. Bem mais real é a diferença entre aqueles que
contestam o
ser tal como foi dado ao homem (pouca importa como e por
quem)
e aqueles que a ele aderem sem reservas de espécie nenhuma.
Todas as crenças europeias, sejam elas religiosas ou
políticas,
têm por detrás de si o primeiro capítulo do Génesis, do qual
se
infere que o mundo foi criado tal como devia ser, que o ser
é bom
e, por consequência, que procriar é uma coisa boa. Chamemos
a
esta crença fundamental acordo categórico com o ser.
Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída
nos
livros por três pontinhos, não era seguramente por uma
questão de
moral. Apesar de tudo, ninguém pode pretender que a merda
seja
imoral! O desacordo com a merda é metafísico. O instante da
defecção é a prova quotidiana do carácter inaceitável da
criação. Pas
duas, uma: ou a merda é aceitável (então porque é que se
fecham
na casa de banho?) ou a maneira como nos criaram é que é
inadmissível.
Daqui se infere que o acordo categórico com o ser tem como
ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde todos
se
comportam como se ela não existisse. Esse ideal estético
chamase
kitsch.
É uma palavra alemã que apareceu em meados do século xnx
sentimental e que depois se vulgarizou em todas as línguas.
Mas a
sua utilização frequente fêla perder todo o valor
metafísico original:
o kitsch é, por essência, a negação absoluta da merda; tanto
no sentido literal como no sentido figurado, o kitsch exclui
do seu
campo de visão tudo o que a existência humana tem de
essencialmente inaceitável.
6
264
A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo
não
teve uma conotação ética, mas estética. Mais do que a
fealdade do
mundo comunista (os palácios convertidos em estábulos, por
exemplo), o que lhe causava repugnância era a máscara de
beleza com
que ele se cobria, ou, por outras palavras, o kirsch
comunista.
O modelo mais acabado desse kitsch é a chamada festa do 1.o
de
Maio.
Ainda assistira aos desfiles do 1.o de Maio numa época em
que
as pessoas se entusiasmavam com eles ou, pelo menos, se
esforçavam por mostrálo. As mulheres iam vestidas com
camisas vermelhas, brancas ou azuis e desfilavam em
conjuntos que, vistos das
janelas e das varandas, formavam estrelas de cinco pontas,
corações
e letras. Entre as diversas secções, intercalavamse
pequenas orquestras que ritmavam a marcha. Quando o cortejo
já estava perto da
tribuna, mesmo os rostos mais sombrios se iluminavam com um
sorriso, como se as pessoas quisessem provar que, como não
podia
deixar de ser, se regozijavam ou, melhor, que, como não
podia deixar de ser, estavam de acordo. E não se tratava de
um simples acordo político com o comunismo, mas de um acordo
com o ser enquanto tal. A festa do 1.o de Maio ia beber
directamente na fonte profunda do acordo categórico com o
ser. A palavra de ordem tácita e
invisível do desfile não era nnViva o comunismo!nn, mas
nnViva a vida!nn. A força e a astúcia da política comunista
consistiu em apoderarse dessa palavra de ordem. Era
precisamente essa estúpida tautologia (nnViva a vida!nn)
que empurrava para o desfile comunista
muita gente que era perfeitamente indiferente ao comunismo.
Uma dezena de anos mais tarde (já vivia na América),
encontravase no enorme automóvel de um senador americano,
amigo de
uns amigos seus, que a tinha levado a dar uma volta. No
banco de
trás, iam quatro crianças apertadas umas contra as outras. O
senador parou o carro; as crianças saíram, atravessaram a
correr um
enorme relvado e entraram num estádio onde havia um rinque
de
patinagem no gelo. O senador continuava ao volante e olhava
com
ar sonhador para as quatro figurinhas que corriam; voltouse
para
Sabina e disse, enquanto descrevia com a mão um círculo que
englobava o estádio, o relvado e as crianças: nnOlhe bem
para eles!
Para mim, a felicidade é isto!nn.
As suas palavras não eram só uma expressão da alegria por
ver
as crianças a correr e a relva a crescer; eram também uma
manifestação de compreensão para com uma mulher vinda de um
país comunista onde, estava ele convencido, a relva não
cresce e as crianças não correm.
Mas, nesse momento, Sabina imaginou o mesmo senador posto
numa tribuna de uma praça de Praga. Tinha no rosto
exactamente o
mesmo sorriso que os homens de Estado comunistas faziam, do
alto
da sua tribuna, aos cidadãos igualmente sorridentes que
desfilavam
em cortejo a seus pés.
266
8
Como é que o senador podia dizer que as crianças eram a
felicidade? Lialhes na alma? E se, mal acabassem de sair do
seu campo
de visão, três de entre elas se atirassem à quarta para lhe
dar uma
tareia?
O senador não tinha senão um argumento a favor da
afirmação
que fizera: a sua sensibilidade. Quando o coração falou, não
convém
que a razão levante objecções. No reino do kirsch, exercese
a ditadura do coração.
Claro que é necessário que os sentimentos suscitados pelo
kitsch
possam ser partilhados pelo maior número possível de
pessoas. Assim, o kitsch não apela para o insólito; apela,
isso sim, para algumas
imagenschaves profundamente enraizadas na memória dos
homens:
a filha ingrata, o pai abandonado, as crianças a correr num
relvado,
a pátria traída, a recordação do primeiro amor.
O kitsch faznos vir duas lágrimas de emoção aos olhos,
uma
logo a seguir à outra. A primeira diz: Que coisa bonita,
crianças
a correr num relvado!
A segunda diz: Que coisa bonita, comovermonos como toda
a humanidade se comove quando há crianças a correr num
relvado!
Só esta segunda lágrima é que faz com que o kitsch seja
o kitsch.
A fraternidade de todos os homens nunca poderá repousar em
nada senão no kitsch.
Os políticos sabemno melhor do que ninguém. Mal vêem uma
máquina fotográfica nas proximidades, precipitamse para a
primeira
criança que esteja ao pé, põemna ao colo e pespegamlhe um
beijo
na bochecha. O kitsch é o ideal estético de todos os
políticos, de
todos os partidos e de todos os movimentos políticos.
Numa sociedade onde coexistem várias correntes políticas
cuja
influência se anula ou se limita reciprocamente, sempre se
vai conseguindo escapar à inquisição do kitsch; o indivíduo
ainda pode salvaguardar a sua individualidade e o artista
criar obras inesperadas.
Mas, nos países onde um único partido detém todo o poder,
não há
escapatória possível ao império do kitsch totalitário.
Se digo totalitário, é porque tudo quanto pode fazer
perigar o
kitsch é banido da vida: não só toda e qualquer manifestação
de
individualismo (a mais pequena discordância é um escarro
cuspido
em plena cara da risonha fraternidade), toda e qualquer
manifestação de cepticismo (quem começa por pôr um pequeno
detalhe em
dúvida, acaba por pôr em dúvida a própria vida), toda e
qualquer
manifestação de ironia (porque no reino do kitsch é tudo
para levar
a sério), mas também a mãe que deixou a família ou o homem
que
gosta mais de homens do que de mulheres e constitui uma
ameaça
para o sacrossanto <<ameivos e multiplicaivosnn.
Deste ponto de vista, aquilo a que costuma chamarse gulog
pode ser considerado como a fossa séptica para onde o kitsch
totalitário despeja a porcaria.
10
Os dez anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram
a
época em que o tnrror estalinista se mostrou mais feroz.
Foi nessa
época que o pai de Tereza foi preso por uma coisa de nada e
a
miúda de dez anos que ela era se viu posta fora de casa.
Sabina
tinha, na altura, vinte anos e estudava em BelasArtes. O
professor
de marxismo explicavalhes, a ela e aos colegas, o seguinte
postulado da arte socialista: a sociedade soviética era uma
sociedade tão
avançada que a sua contradição fundamental tinha deixado de
ser
entre o bem e o mal para passar a ser entre o bom e o
melhor. A
merda (ou seja, o que é essencialmente inaceitável) não
podia existir
senão nndo outro ladonn (por exemplo, na América) e era só
a partir
daí, a partir do exterior, e só como um corpo estranho (por
exemplo, sob a forma de um espião) que podia penetrar no
mundo nndos
bons e dos melhoresnn.
Com efeito, nesse tempo cruel como nunca, os filmes
soviéticos
que inundavam as salas de cinema dos países comunistas
estavam
impregnados de uma inocência incrível. O conflito mais grave
que
podia haver entre dois russos era o malentendido amoroso:
ele
pensa que ela já não o ama e ela pensa o mesmo dele. No fim,
caem nos braços um do outro com o rosto banhado em lágrimas
de
felicidade.
É convenção aceite, hoje em dia, que esses filmes estavam
encarregados de pintar o ideal comunista quando a realidade
era bem
mais sombria.
Sabina revoltavase com esta interpretação. Só de pensar
que o
universo comunista algum dia pudesse tomarse uma realidade
concreta, onde fosse obrigada a viver, ficava toda
arrepiada. Preferia de longe o regime comunista real, com
todas as suas perseguições e
bichas à porta dos talhos. No mundo comunista real, ainda é
possível viver. No mundo do ideal comunista feito realidade,
nesse
mundo de risonhos cretinos com os quais não poderia trocar
uma
palavra, tinha a certeza que, ao fim de uma semana, já tinha
rebentado de horror.
Na minha opinião, o sentimento que o kitsch soviético
despertava
em Sabina é semelhante ao terror que Tereza teve daquela vez
que
sonhou estar a desfilar à volta de uma piscina com outras
mulheres
nuas e era obrigada a cantar alegres canções. Havia
cadáveres a flutuar dentro de água. Não havia uma única
mulher a quem Tereza
pudesse dirigir uma simples palavra, fazer uma simples
pergunta. A
única resposta que ouviria seria a estrofe seguinte. Não
havia
nenhuma a quem pudesse piscar discretamente o olho. Seria
imediatamente apontada ao homem que estava por cima da
piscina, de pé,
dentro de um cesto, para que ele abrisse fogo.
O sonho de Tereza diznos qual é a verdadeira função do
kitsch:
o kitsch é um biombo atrás do qual se esconde a morte.
11
No reino do kitsch totalitário, as respostas já estão
sempre preparadas e excluem toda a pergunta que seja
realmente nova. Donde se
infere que o verdadeiro adversário do kirsch totalitário é o
homem
que pergunta. A interrogação é como uma faca que rasga a
tela do
cenário para permitir que se veja o que está atrás. Foi
precisamente
esse o sentido que Sabina deu aos seus quadros numa conversa
com
Tereza: à frente, a mentira inteligível, e, por detrás, a
incompreensível verdade.
Só que aqueles que combatem contra os chamados regimes
totalitários não podem combater com interrogações e com
dúvidas. Também eles precisam da sua certeza e da sua
verdade simplista, que também têm de ser acessíveis ao maior
número possível
de pessoas e capazes de provocar uma boa secreção lacrimal
colectiva.
Um dia, um certo movimento político organizou uma
exposição
de pinturas de Sabina na Alemanha. Ao pegar no catálogo,
Sabina
viu uma fotografia sua na capa com fios de arame farpado
pintados
por cima. Nas páginas de dentro, a sua biografia parecia a
hagiografia de um mártir ou de um santo. Tinha sofrido
muito, tinha combatido a injustiça, tinha sido forçada a
abandonar o seu país martirizado, mas continuava a lutar.
"Com os quadros que pinta, luta pela
felicidadenn, dizia a última frase do texto.
Protestou, mas não havia ninguém que a compreendesse.
Mas, afinal, não era verdade que o comunismo perseguia a
arte
moderna?
Respondeu, cheia de raiva: ao meu inimigo não é o
comunismo!
É o kitsch!nn
A partir de então, passou a rodear a sua biografia de
mistificações e mais tarde, na América, conseguiu mesmo
ocultar que era
checa. Era um esforço desesperado para escapar ao kitsch que
as
pessoas queriam fabricar com a sua vida.
12
Está de pé diante de um cavalete com um quadro inacabado.
Atrás dela, sentado num sofá, encontrase um velho que segue
atentamente com os olhos cada uma das suas pinceladas.
Depois, o homem olha para o relógio e diz: nnPareceme
que são
boas horas de irmos jantar.nn
Poisa a paleta e vai lavarse à casa de banho. O velho
levantase
do sofá e baixase para pegar na bengala que estava
encostada a
uma mesa. O atelier dá directamente para um relvado. A noite
cai.
Do outro lado, mais ou menos a vinte metros, há uma casa
branca
de madeira com as janelas do résdochão iluminadas. Sabina
comovese ao ver aquelas duas janelas a brilhar no
crepúsculo.
Toda a vida afirmou que o seu maior inimigo é o kitsch.
Mas
não o trará ela no fundo de seu ser? O seu kitsch é a imagem
de
uma casa calma, doce, harmoniosa, onde reina uma mãe
carinhosa e
um pai repleto de sabedoria. É uma imagem que se formou
dentro
dela depois da morte dos pais. A vida que teve, bem
diferente desse
belo sonho, só lhe serviu para se tornar ainda mais sensível
ao seu
encanto e já chegou mesmo a sentir, por mais de uma vez, os
olhos
molhados enquanto, num filme sentimental da televisão, uma
filha
ingrata estreitava nos braços um pai abandonado, e, no
crepúsculo,
brilhava a luz das janelas da casa habitada por uma família
feliz.
Conhecera o velhote em Nova Iorque. Era rico e gostava de
pintura. Vivia numa casa isolada no campo com a mulher, tão
idosa
como ele. Em frente da casa, no mesmo terreno, erguiase o
edifício
de um antigo estábulo. O velho transformarao em atelier,
oferecerao a Sabina e, desde então, passava os dias a
seguir os movimentos do seu pincel.
Agora, estão os três a jantar. A velha trata Sabina por
nnminha
filhinhann, mas tudo indica o contrário: Sabina é que
parece uma
mãe com dois filhos sempre agarrados às suas saias, dois
filhos que
sentem uma grande admiração por ela e que, por muito que não
lhe
apeteça dar ordens, estão sempre prontos a obedecerlhe.
Terá ela encontrado à beira da velhice os pais a quem se
arrancara quando era nova? Terá ela por fim encontrado os
filhos que
nunca teve?
Sabina bem sabe que aquilo. é uma ilusão. A estada em casa
daquele velhotes encantadores não é mais do que uma
suspensão
temporária na sua caminhada. O velho está gravemente doente
e
quando a mulher se vir sem ele irá viver para o Canadá para
casa
do filho. Sabina retomará o caminho das traições e, de
tempos a
tempos, no mais fundo de si próparia, sintilará na
insustentável leveza
do ser uma ridícula canção sentimental que fala de duas
janelas iluminadas atrás das quais vive uma família feliz.
A canção comovea, mas Sabina não leva a sua emoção a
sério.
Sabe perfeitamente que essa canção não passa de uma linda
mentira. No momento em que é reconhecido como mentira, o
kitsch passa
a situarse no contexto do nãokitsch. Perde o seu poder
autoritário
e tornase comovente como qualquer outra fraqueza humana.
Porque nenhum de nós é o superhomem e escapa totalmente ao
kitsch. Por muito que o desprezemos, o kirsch não deixa de
ser parte
integrante da condição humana.
13
A fonte do kirsch é o acordo categórico com o ser.
Mas qual é o fundamento do ser? Deus? A humanidade? A
luta? O amor? O homem? A mulher?
Como, para esta pergunta, há as mais variadas respostas,
assim
também há as mais variadas espécies de kitsch: o kitsch
católico, o
protestante, o judaico, o comunista, o fascista, o
democrático, o feminista, o europeu, o americano, o
nacional, o internacional, etc., etc.
Desde a época da Revolução Francesa que metade da Europa
diz
que é a esquerda. enquanto a outra metade recebeu a
denominação
de direita. Tanto uma noção como a outra são praticamente
impossíveis de definir a partir dos princípios teóricos
sobre os quais se apoiariam. Não é de admirar: os movimentos
políticos não repousam sobre
atitudes racionais, mas sobre representações, imagens,
palavras, arquétipos, que, no seu conjunto, constituem um
dado kitsch polirico.
A ideia da Grande Marcha, com a qual Franz gosta de se
inebriar, é o kitsch político que une todas as pessoas de
esquerda de
todos os tempos e de todas as tendências. A Grande Marcha é
aquela soberba caminhada sempre em frente, a caminhada em
direcção à fraternidade, à igualdade, à justiça, e ainda
mais para lá, apesar de todos os obstáculos, porque para a
marcha ser a Grande
Marcha é preciso que haja obstáculos.
Ditadura do proletariado ou democracia? Rejeição da
sociedade
de consumo ou aumento da produção? Guilhotina ou abolição da
pena de morte? Não. faz diferença. Aquilo que faz de um
homem de
esquerda um homem de esquerda não é uma dada teoria, mas a
sua
capacidade de fazer com que toda e qualquer teoria se tome
parte
integrante do kitsch chamado a Grande Marcha sempre em
frente.
14
Claro que Franz não é o homem do kitsch. A ideia da Grande
Marcha desempenha na sua vida mais ou menos o mesmo papel
que
a canção sentimental das duas janelas iluminadas desempenha
na vida de Sabina. Em que partido político votaria Franz?
Receio bem
que não votasse em nenhum e que, no dia das eleições,
preferisse
fazer uma excursão aos Alpes. O que não quer dizer que a
Grande
Marcha tenha deixado de comovêlo. É belo sonhar que se faz
parte
de uma multidão em marcha, que avança através dos séculos, e
Franz nunca esqueceu esse belo sonho.
Um dia, uns amigos seus de Paris telefonaramlhe. Estavam
a
organizar uma marcha até ao Camboja e convidaramno a
juntarselhes.
Nessa época, o Camboja tinha atrás de si uma guerra civil,
os
bombardeamentos americanos, as atrocidades perpetradas pelos
comunistas locais, que tinham dizimado um quinto da
população
desse pequeno país, e finalmente a ocupação levada a cabo
pelos
seus vizinhos vietnamitas, cujo governo não passava então de
um
mero vassalo da Rússia. No Camboja havia fome e as pessoas
morriam sem assistência médica. As organizações
internacionais de
médicos já tinham pedido diversas autorizações para entrar
no país,
mas os vietnamitas tinhamse sempre recusado a isso. Assim,
alguns
dos intelectuais mais conhecidos do mundo ocidental
decidiram organizar uma marcha até à fronteira do Camboja
para, com esse
grande espectáculo a que todo o mundo assistiria, forçarem a
admissão dos médicos no país ocupado.
O amigo que telefonara a Franz era um daqueles ao lado de
quem desfilava outrora pelas ruas de Paris. Ficou
imediatamente entusiasmado com o convite, mas logo os seus
olhos foram poisar na
universitariazinha de óculos. A rapariga estava sentada à
sua frente
num sofá e os seus olhos ainda pareciam maiores por trás das
lentes
redondas. Teve a sensação que eles lhe imploravam que não
fosse.
Mas, mal desligou, começou a ficar arrependido. Atendera
os votos da sua. amante terrena, mas negligenciara o seu
amor celeste.
O Camboja não era afinal uma variante da pátria de Sabina?
Não
era um país ocupado pelo exército comunista de um país
vizinho?
Um país sobre o qual se tinha abatido o punho da Rússia? De
repente, pensou que aquele seu amigo de quem quase estava já
esquecido lhe tinha telefonado a um secreto sinal de Sabina.
As criaturas celestes sabem tudo e vêem tudo. Se
participasse na
marcha, Sabina vêloia e ficaria contente. Compreenderia
que lhe
continuava a ser fiel.
Ficavas muito zangada comigo se eu sempre fosse?nn,
perguntou
à sua amiga de óculos, para quem cada dia sem ele era um
tormento, mas que também não sabia dizerlhe que não a nada.
Alguns dias mais tarde, encontravase dentro de um grande
avião no aeroporto de Paris. Entre os passageiros, contava
se uma
vintena de médicos escoltados por meia centena de
intelectuais (professores, escritores, deputados, cantores,
actores e presidentes de câmaras) e quatro centenas de
jornalistas e fotógrafos que os acompanhavam.
15
O avião aterrou em Banguecoque. Os quatrocentos e setenta
médicos, intelectuais e jornalistas encaminharamse para o
salão de
um hotel internacional, onde já eram esperados por outros
médicos,
actores, cantores e filólogos, acompanhados por outras
tantas centenas de jornalistas munidos dos seus blocos,
gravadores, máquinas fotográficas e câmaras de filmar. No
fundo da sala, havia um estrado
e, em cima do estrado, uma mesa muito comprida por detrás da
qual estava sentada uma vintena de americanos que já
começava a
dirigir a reunião.
Os intelectuais franceses aos quais Franz se juntara
sentiamse
marginalizados e humilhados. A marcha até ao Camboja era uma
ideia deles e eis que os americanos, com uma admirável
naturalidade, estavam a tomar conta das operações e, para
cúmulo dos cúmulos, se punham a falar em inglês sem sequer
lhes ter passado pela
cabeça que podia haver um francês ou um dinamarquês que não
os
entendesse. É claro que os dinamarqueses se tinham já
esquecido há
muito que foram outrora uma nação, de forma que, de todos os
europeus presentes, só os franceses é que pensaram em
protestar.
Gente com princípios como eram, recusavamse a protestar em
inglês e dirigiamse na sua língua materna aos americanos
sentados na
tribuna. Não entendendo uma única palavra, os americanos
respondiamlhes afavelmente com sorrisos de aprovação. Por
fim, os franceses não tiveram outro remédio senão formular
as suas objecções
em inglês. nnPorque é que se fala em inglês nesta sala?
Também
estão cá franceses!nn
Os americanos mostraramse bastante espantados com esta
objecção, mas não deixavam de sorrir e concordaram com que
todos
278
os discursos fossem traduzidos. Passouse um bom bocado à
procura
de um intérprete para a reunião poder continuar. Depois
disso, como era preciso ouvir cada frase primeiro em inglês
e depois em
francês, a reunião durou o dobro do tempo previsto ou, a bem
dizer, mais do dobro, porque todos os franceses sabiam
inglês, interrompiam o intérprete, corrigiamno e discutiam
com ele palavra por
palavra.
Com a aparição de uma estrela americana no estrado a
reunião
atingiu o apogeu. Por sua causa, irromperam pela. sala
dentro mais
fotógrafos e camaramen e cada sílaba que a actriz
pronunciava era
saudada por uma salva de disparos. A actriz falava sobre as
crianças
martirizadas, sobre a barbárie da ditadura comunista, sobre
o direito
do homem à segurança, sobre as ameaças que pesam sobre os
valores tradicionais das sociedades civilizadas, e referia
como o presidente Carter se sentia incomodado com o que
estava a passarse no
Camboja. Disse as últimas palavras a chorar.
Nesse momento, um jovem médico francês de bigodes ruivos
levantouse e pôsse a vociferar: nnSe aqui estamos é para
salvar moribundos! Não estamos aqui para maior glória do
presidente Carter!
Esta manifestação não pode degenerar num circo de propaganda
americana! Não viemos aqui para protestar contra o
comunismo,
mas para tratar doentes!
Outros franceses se juntaram ao médico de bigodes. O
intérprete
estava com medo e não se atrevia a traduzir o que eles
diziam.
Como há pouco, os vinte americanos do estrado olhavam para
eles
com um sorriso cheio de simpatia e alguns deles faziam um
sinal de
aprovação com a cabeça. Um chegou mesmo a levantar o punho
porque sabia que os europeus têm a mania de fazer esse gesto
nos
momentos de euforia colectiva.
16
Como é que intelectuais de esquerda (porque o médico do
bigode era um intelectual de esquerda) se dispõem a integrar
uma manifestação contra um país comunista quando o comunismo
sempre fez
parte integrante da esquerda?
Na altura em que os crimes perpetrados pelo país baptizado
com
o nome de União Soviética se tornaram escandalosos de mais,
o
homem de esquerda ficou perante uma alternativa: ou renegar
a sua
vida anterior e renunciar a desfilar, ou (com maior ou menor
dificuldade) arrumar a União Soviética entre os outros
obstáculos à
Grande Marcha e continuar a desfilar.
Já disse uma vez que o que faz com que a esquerda seja a
esquerda é o kitsch da Grande Marcha. A identidade do kitsch
não é
determinada por uma estratégia política, mas por imagens,
por metáforas, por certo vocabulário. Portanto, é possível
transgredir o hábito e desfilar contra os interesses de um
país comunista. Mas não é
possível substituir as palavras por outras palavras. Pode
erguerse o
punho contra o exército vietnamita. Mas não gritarlhe:
nnAbaixo o
comunismo!>n Porque cnAbaixo o comunismo!n> é a palavra de
ordem
dos inimigos da Grande Marcha, e quem não quer perder a
vergonha tem de continuar fiel à pureza do seu próprio
kirsch.
Não digo isto senão para explicar o malentendido entre o
médico francês e a estrela americana que, no seu
egocentrismo, julgava
estar a ser vítima de invejosos ou misógenos. Na realidade,
o médico francês dava provas de uma grande sensibilidade
estética: as palavras nno presidente Carternn, nnos nossos
valores tradicionaisnn, nna
barbárie do comunismonn faziam parte do kitsch americano e
não
tinham nada a ver com o kitsch da Grande Marcha.
280
17
No dia seguinte, pela manhã, subiram todos para as
camionetas
nas quais teriam de atravessar a Tailândia antes de chegar à
fronteira do Camboja. À noite, pararam numa pequena aldeia,
onde lhes
estavam reservadas umas casas construídas sobre pilares. O
rio, que
tinha cheias muito perigosas, obrigava a população a morar
lá em
cima, enquanto em baixo, ao pé das estacas, ficavam os
porcos.
Franz dormiu com mais quatro professores universitários.
Vindos de
baixo, chegavamlhe aos ouvidos oS grunhidos dos porcos,
enquanto,
a seu lado, resssonava um ilustre matemático.
De manhã, toda a gente voltou .para os autocarros. O
trânsito
estava proibido a dois quilómetros da fronteira. Só havia
uma estrada muito estreita que ia até ao posto fronteiriço
defendido pelo
exército. Ao descer, os franceses constataram que tinham
sido mais
uma vez ultrapassados pelos americanos, que já os esperavam
à cabeça do cortejo. Foi o momento mais delicado. O
intérprete teve
que intervir outra vez e a discussão lá prosseguiu ao ritmo
do costume. Chegaram finalmente a um compromisso: um
americano, um
francês e o intérprete iam à frente. Logo a seguir, vinham
os médicos e, na cauda, os outros; era também aí que devia
incorporarse a
estrela americana.
A estrada era muito estreita e ladeada de campos de minas.
De dois
em dois minutos, deparavaselhes uma chicana: dois blocos
de betão coroados de arame farpado apenas deixavam no meio
uma
passagem muito acanhada. Tiveram de seguir em fila indiana.
Mais ou menos cinco metros à frente de Franz, marchava um
célebre poeta e cantor pop alemão que tinha no activo
novecentas e
trinta canções a favor da paz e contra a guerra. Na ponta de
uma comprida haste, levava uma bandeira branca, que lhe
ficava a matar
com a enorme barba preta' e, ao mesmo tempo, servia para
distinguilo dos demais.
Fotógrafos e camaramen corriam para trás e para diante ao
longo
do cortejo. Com os aparelhos a disparar e a ronronar,
lançavamse
para a frente, paravam, recuavam, punhamse de cócoras, e
logo
voltavam a correr para a frente. De tempos a tempos,
pronunciavam
aos gritos o nome de uma celebridade; 'o interpelado
voltavase maquinalmente na sua direcção e nesse preciso
instante carregavam no
botão.
18
Cheirava a acontecimento. As pessoas diminuíam o ritmo da
passada e voltavamse para trás.
A estrela americana, que fora colocada na cauda do
cortejo, recusavase a suportar por mais tempo tão grande
humilhação e decidiu passar ao ataque. Era como nos cinco
mil metros, quando um
corredor, que veio a poupar forças na cauda do pelotão,
avança para a frente e ultrapassa todos os adversários.
Os homens sorriam com um ar incomodado e afastavamse para
permitir a vitória da ilustre sprinter, mas houve mulheres
que se puseram aos gritos: Volte imediatamente para o seu
lugar! Isto não é
um manifestação para estrelas de cinema!nn
A actriz não se deixou intimidar e continuou a correr para
a frente,
seguida por cinco fotógrafos e dois camaramen. Uma francesa,
professora de linguística, agarrou a actriz pelos pulsos e
disselhe (num péssimo
inglês): Quem vem aqui a desfilar são médicos que querem
salvar a
vida aos cambojanos! Isto não é um show de estrelas de
cinema!nn
A actriz tinha o pulso preso numa espécie de torniquete e
não
tinha força suficiente para se libertar.
Disse (num excelente inglês): Váse foder! Já participei
em
milhares de desfiles! As estrelas de cinema são sempre bem
acolhidas! É o nosso trabalho! É o nosso dever moral!nn
Merdan>, disse a professora de linguística (num
excelente francês).
A estrela americana percebeu e desfezse em lágrimas.
Deincese estar assim mesmonn, gritou um camaraman
ajoelhado à
frente dela.
A estrela fixou longamente a objectiva; as lágrimas
corriamlhe
pela cara abaixo.
19
A professora de linguística sempre acabou por largar o
pulso da
estrela americana. O cantor alemão da barba preta e da
bandeira
branca desatou aos gritos a chamar por ela.
A estrela nunca tinha ouvido falar dele, mas, nesse
momento de
humilhação, mostrouse mais sensível do que p costume às
manifestações de simpatia e lançouse na sua direcção. O
poetacantor pôs
o pau de bandeira na mão esquerda para poder passar o braço
direito pelos ombros da actriz.
Fotógrafos e camaramen saltitavam em torno da actriz e do
cantor. Um célebre fotógrafo americano queria apanhar as
duas caras e a bandeira ao mesmo tempo, o que não era fácil
por causa da
altura do pau. Pôsse a recuar a toda a velocidade no
arrozal.
Calcou uma mina. Ouviuse uma explosão e o seu corpo
desfeito em
pedaços voou pelos ares, aspergindo com uma chuvada de
sangue a
intelligentsia internacional.
O cantor e a actriz ficaram apavorados e pregados ao mesmo
lugar.
Ambos ergueram os olhos para a bandeira. Estava toda
salpicada de sangue. Primeiro, o espectáculo não serviu
senão para ficarem
ainda mais aterrorizados. Depois, a pouco e pouco, começaram
timidamente a levantar os olhos e a sorrir. Sentiam um
estranho orgulho, um orgulho que até então desconheciam, por
levarem uma
bandeira santificada pelo sangue. Voltaram a pôrse em
marcha.
20
A fronteira era constituída por um ribeiro que não se via,
porque
estava tapado a todo o comprimento com um muro de metro e
meio
de altura, em cima do qual havia sacos de areia para os
atiradores
tailandeses se protegerem. Só não havia muro no sítio em que
uma
ponte em arco atravessava o rio. Mas ninguém devia
aproximarse
dela. Embora se não vissem, havia tropas vietnamitas de
ocupação
perfeitamente camufladas do outro lado do rio. Ninguém
duvidava
que os invisíveis vietnamitas começariam imediatamente a
disparar
assim que qualquer pessoa tentasse atravessar a ponte.
Alguns membros do cortejo chegaram ao pé do muro e,
apoiandose nele, içaramse no bico dos pés. Franz apoiouse
num intervalo aberto entre dois sacos e tentou ver alguma
coisa. Mas não
conseguiu ver nada porque foi imediatamente empurrado por um
fotógrafo que achava que tinha o direito de lhe tirar o
lugar.
Voltouse para trás. Como gralhas gigantes com os olhos
fixos na
outra margem, havia sete fotógrafos poisados nos ramos de
uma árvore solitária.
Nesse momento, o intérprete que ia à cabeça do desfile
aplicou
os lábios a um megafone e pôsse a gritar para a outra
margem, em
kmer: há aqui médicos que exigem que lhes dêem autorização
para
entrar em território cambojano para prestar assistência
médica. Isto
não é uma ingerência política. Só vêm guiados pelo amor à
vida
humana!
A resposta da outra margem foi um silêncio incrível. Um
silêncio
tão absoluto que todos se sentiram presa da angústia. Só os
disparos
das máquinas fotográficas continuavam a soar no meio daquele
silêncio como o canto de um insecto exótico.
Franz teve bruscamente a impressão de que a Grande Marcha
estava a chegar ao fim. As fronteiras do silêncio voltavam a
fecharse sobre a Europa, e a Grande Marcha já não desfilava
senão em
cima de um pequeno estrado no centro do planeta. As
multidões
que outrora se acotovelavam ao pé do estrado tinham partido
há
muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem
espectadores.
Sim, pensava Franz, a Grande Marcha continua, apesar da
indiferença do mundo, mas está a tornarse nervosa, febril,
ontem contra a
ocupação do Vietname pelos americanos, hoje contra a
ocupação do
Camboja pelos vietnamitas, ontem para apoiar Israel, hoje
pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã contra
Cuba, e sempre
contra a América, sempre contra os massacres e sempre em
apoio a
outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e
para poder
acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único
acelera cada vez mais o passo, de modo que a Grande Marcha
já só é um
cortejo de gente apressada a desfilar a galope, e a cena
cada vez se
encolhe mais, até ao dia em que finalmente háde tornarse
apenas
um ponto sem dimensões.
286
21
O intérprete voltou a fazer o apelo com o megafone. Como
da
primeira vez, a única resposta que obteve foi um enorme
silêncio,
um silêncio infinitamente indiferente.
Franz olhava em torno de si. Toda a gente sentia aquele
silêncio
como uma bofetada na cara. O próprio cantor da bandeira
branca e
a própria actriz americana se mostravam incomodados e
hesitantes.
Franz teve subitamente consciência do ridículo daquela
gente toda,
mas isso não o distanciava deles, não lhe inspirava ironia
nenhuma; muito
pelo contrário, sentia por eles um imenso amor, como o amor
que se tem
por condenados. Sim, a Grande Marcha chegou ao fim, mas isso
é uma
razão suficiente para Franz a trair? A própria vida dele
também não está a
chegar ao fim? Deverá achar apenas irrisório o exibicionismo
daqueles que
acompanharam até à fronteira alguns médicos corajosos?
Poderão todos
eles fazer outra coisa senão dar espectáculo? Restalhes
algo de melhor?
Franz tem razão. Fazme pensar naquele jornalista que
andava a organizar em Praga uma campanha de assinaturas para
conseguir a amnistia
dos presos políticos. Tinha perfeita consciência de que a
campanha não
ajudaria os presos. O seu verdadeiro objectivo não era
libertar presos,
mas mostrar que ainda havia gente sem medo. Dava
espectáculo, mas não
podia fazer outra coisa. Não podia escolher entre a acção e
o espectáculo.
Só tinha uma escolha: dar espectáculo ou não fazer nada. Há
situações em
que o homem está condenado a dar espectáculo. A sua luta
contra o poder
silencioso (contra o poder silencioso do outro lado do
ribeiro, contra a
polícia metamorfoseada em microfones mudos escondidos na
parede) é
como um grupo de teatro a fazer frente a um exército.
Franz viu o seu amigo da Sorbonne erguer o punho e ameaçar
com
ele o silêncio da outra margem.
22
Pela terceira vez, o intérprete lançou o apelo com o seu
megafone.
E de novo apenas o silêncio lhe respondeu, transformando
subitamente a angústia de Franz numa raiva frenética.
Encontravase a
uma dúzia de passos da ponte que separava a Tailândia do
Camboja
e tinha uma vontade enorme de precipitarse para ela, de
lançar aos
céus injúrias tremendas e de morrer sob a barulheira
infernal das
rajadas de metralhadora.
Este repentino desejo de Franz faznos lembrar qualquer
coisa;
sim, faznos lembrar o olho de Estaline a lançarse de
encontro ao
arame farpado e electrificado porque não podia suportar que
os pólos da existência humana estivessem próximos a ponto de
se tocar, a
ponto de já não haver diferença entre o nobre o o abjecto,
entre o
anjo e a mosca, entre Deus e a merda.
Franz não podia admitir que a glória da Grande Marcha se
reduzisse afinal à cómica pretensão de pessoas a desfilar e
que a grandiosa barulheira da história europeia
desaparecesse num silêncio infinito, num silêncio tão grande
que já não há diferença nenhuma
entre a história e o silêncio. Poria a sua própria vida na
balança
para provar que a Grande Marcha pesa mais do que a merda.
Mas uma coisa dessas não se pode provar. Quando num dos
pratos da balança havia a merda, o filho de Estaline atirou
se com todo
o peso do seu corpo para cima do outro prato e a balança nem
sequer se mexeu.
Em vez de correr para a morte, Franz baixou a cabeça e
voltou
em fila indiana com os outros para o autocarro.
23
Todos nós temos necessidade de ser olhados. Podíamos ser
divididos em quatro categorias consoante o tipo de olhar sob
o qual
desejamos viver.
A primeira procura o olhar de um número infinito de olhos
anónimos ou, por outras palavras, o olhar do público. É o
caso do
cantor alemão e da estrela americana, como é também o caso
do
jornalista de queixo de rabeca. Estava habituado aos seus
leitores, e
quando o semanário foi proibido pelos russos teve a
impressão de
ficar com a atmosfera cem vezes mais rarefeita. Para ele,
ninguém
podia substituir os olhos anónimos. Sentiase quase a
sufocar, até
que um dia percebeu que a polícia lhe seguia todos os
passos, que o
seu telefone estava sob escuta e que chegava a ser
discretamente
fotografado na rua. De repente, tinha outra vez olhos
anónimos a
acompanharemno: já podia voltar a respirar! Interpelava num
tom
teatral os microfones escondidos na parede. Voltava a
encontrar na
polícia o público que julgava ter perdido para sempre.
Na segunda categoria, incluemse aqueles que não podem
viver
sem o olhar de uma multidão de olhos familiares. São os
incansáveis
organizadores de jantares e de cocktails. São mais felizes
que os da
primeira categoria porque, quando estes perdem o público,
imaginam que as luzes se apagaram para sempre na sala da sua
vida.
É o que, mais dia menos dia, lhes acontece a todos. Os desta
segunda categoria, estes sim, acabam sempre por conseguir
arranjar os
olhares de que precisam. MarieClaude e a filha são deste
género.
Vem em seguida a terceira categoria, a categoria daqueles
que
precisam de estar sempre sob o olhar do ser amado. A sua
condição
é tão perigosa como a das pessoas do primeiro grupo. Se os
olhos do ser amado se fecham, a sala fica mergulhada na
escuridão.
É neste tipo de pessoas que devemos incluir Tereza e Tomas.
Finalmente, há uma quarta categoria, bem mais rara, que
são
aqueles que vivem sob os olhares imaginários de seres
ausentes. São
os sonhadores. Por exemplo, Franz. Foi até à fronteira
cambojana
unicamente por causa de Sabina. Dentro do autocarro, que a
estrada
tailandesa faz baloiçar violentamente, só sente o seu longo
olhar
poisado em si.
O filho de Tomas pertence à mesma categoria. Chamarlheei
Simão. (Vai com certeza gostar de ter um nome bíblico como o
pai.) O olhar a que aspira, é o olhar dos olhos de Tomas.
Por terse
comprometido com a campanha de assinaturas, foi expulso da
faculdade. Namorava a sobrinha de um páraco de aldeia.
Casouse com
ela, tornouse motorista de tractor numa cooperativa,
católico praticante e pai de família. Soube que Tomas também
vivia no campo e
ficou feliz com isso. Afinal o destino tomara as suas vidas
simétricas! Foi o que o incitou a escreverlhe uma carta.
Não pedia resposta. Não queria senão uma coisa: que Tomas
pousasse o olhar dele
sobre a sua vida.
24
Franz e Simão são os sonhadores deste romance. Ao
contrário
de Franz, Simão não gostava da mãe. Desde a infância que
andava
à procura do pai. Sempre esteve pronto a acreditar que a
injustiça
que o pai lhe fizera fora forçosamente provocada por uma
ofensa
qualquer. Nunca lhe quisera mal por causa disso, recusando
se sempre a aliarse à mãe, que passava o tempo a dizer mal
de Tomas.
Viveu com ela até aos dezoito anos e, depois de acabar o
liceu,
foi estudar para Praga. Nessa altura, já Tomas andava a
lavar janelas. Simão tentou variadíssimas vezes provocar um
encontro fortuito
na rua com ele. Mas o pai nunca parava.
Se se ligara ao jornalista de queixo de rabeca fora
unicamente
porque este lhe lembrava o destino do pai. O jornalista nem
sequer
sabia o nome de Tomas. O artigo sobre Édipo tinha caído no
esquecimento e só se lembrou da sua existência quando Simão
lhe pediu para
ir com ele propor ao pai que assinasse a petição. O
jornalista aceitou
apenas para ser agradável ao rapaz, de quem gostava
bastante.
Quando pensava nesse encontro, Simão tinha vergonha do seu
nervosismo. Com certeza que o pai não gostara dele. Em
contrapartida, o pai tinhalhe agradado bastante. Lembrava
se de tudo quanto
ele dissera, palavra por palavra, e cada vez lhe dava mais
razão.
Tinha sobretudo uma fase gravada na memória: nnCastigar os
que
não sabiam o que estavam a fazer, é pura barbaridade."
Quando o
tio da namorada lhe pôs uma Bíblia entre as mãos, saltoulhe
logo
aos olhos o pedido de Jesus: nnPerdoailhes, que eles não
sabem o
que fazem.nn Bem sabia que o pai era ateu, mas a semelhança
das
duas frases funcionou para ele como um sinal secreto: o pai
aprovava a via que ele escolhera.
Até ao fim dos seus dias, Sabina nunca mais deixará de
receber
cartas desse triste epistológrafo aldeão. Muitas não serão
sequer
abertas, porque o país de onde é originária lhe interessa
cada vez
menos.
O velhote morreu e Sabina foi viver para a Califórnia.
Sempre
mais para ocidente, sempre cada vez mais longe da Boémia.
Os seus quadros têm boa aceitação e ela gosta bastante da
América. Mas só à superfície. Por baixo, há todo um mundo
que lhe é
estranho. Sob aquela terra, não tem nem antepassados, nem
tios.
Tem medo que a encerrem dentro de um caixão e a enterrem
debaixo dela.
Fez, portanto, um testamento onde estipula que o seu corpo
deverá ser queimado e as suas cinzas deitadas ao vento.
Tereza e Tomas morreram sob o signo do peso. Ela quer morrer
sob o signo da
leveza. Será mais leve do que o ar. Segundo Parménides, é a
transformação do negativo em positivo.
26
A camioneta parou finalmente diante de um hotel de
Banguecoque. Já ninguém tinha vontade de fazer reuniões. As
pessoas
espalharamse em pequenos grupos pela cidade, uns para
visitar
templos, outros para irem aos bordéis. O amigo da Sorbonne
propôs
a Franz que passassem a noite juntos, mas Franz preferia
ficar
sozinho.
Caía a noite quando saiu. Pensava continuamente em Sabina
e
sentia poisado em si o seu longo olhar, sob o qual começava
sempre
a duvidar de si próprio, porque nunca sabia o que Sabina de
facto
pensava. Mais uma vez esse olhar começava a confundilo. Não
estaria ela a fazer troça dele? Não acharia estúpido aquele
culto que
lhe votava? Não quereria dizerlhe que já era tempo de
comportarse com adulto e consagrarse por inteiro à
namorada que ela própria lhe enviara?
Tentou imaginarlhe o rosto com os seus enormes óculos
redondos. Agora, sim, avaliava bem quanto era feliz com a
sua universitariazinha. A viagem ao Camboja parecialhe de
súbito ridícula e
insignificante; No fundo, porque é que ali estava? Agora já
sabia.
Tinha sido preciso aquela longa viagem para compreender
finalmente que a sua vida verdadeira, a sua única vida real,
não eram
nem os desfiles, nem Sabina, mas a sua universitariazinha de
óculos!
Tinha sido preciso aquela longa viagem para entender que a
realidade é mais do que o sonho, mesmo bem mais do que o
sonho.
Depois, emergiu da sombra uma figura que lhe dirigiu
algumas
palavras numa língua desconhecida. Observavaa com uma
mescla
de espanto e compaixão. O desconhecido curvavase, sorria e
não se
cansava de algaraviar. O que estaria ele a dizerlhe?
Pareceulhe
294
que estava a pedirlhe que o seguisse. O homem pegoulhe na
mão
e arrastouo atrás de si. Franz pensou que alguém devia
precisar da
sua ajuda. Afinal, talvez aquela viagem não tivesse sido de
todo inútil. Afinal, talvez ali estivesse para responder ao
apelo de alguém.
De súbito, surgiram outros dois tipos ao lado do homem que
continuava a algaraviar e um deles ordenou em inglês, a
Franz, que
lhe desse dinheiro.
Nesse momento, a rapariga dos óculos desvaneceuse do
campo
da sua consciência. Era de novo Sabina que olhava para ele,
aquela
irreal Sabina com o seu destino grandioso, aquela Sabina
diante da
qual se sentia sempre pequenino. Tinha os olhos postos nele,
coléricos e descontentes: mais uma vez se tinha deixado
enganar? Mais
uma vez abusavam da sua estúpida bondade?
Com um gesto brusco, desembaraçouse do homem que o
agarrava pela manga. Sabia que Sabina sempre gostara da sua
força.
Agarrou no braço com que o segundo homem o ameaçara. Apenou
o com força e, executando um golpe de judo perfeito, fêlo
revoltear sobre a cabeça.
Agora, sim, sentiase contente consigo próprio. Os olhos
de Sabina não o largavam. Nunca mais o veriam ser humilhado!
Nunca
mais o veriam recuar! Franz nunca mais havia de ser fraco e
piegas.
Sentia um ódio quase alegre por aqueles homens que tinham
querido aproveitarse da sua ingenuidade. Mantinhase
ligeiramente
dobrado e não os largava de vista. Mas, de repente, bateram
lhe
com uma coisa pesada na cabeça e ele caiu ao chão. Percebeu
vagamente que o levavam para um sítio qualquer. Depois,
atiraram com
ele para o vazio. Sentiu um choque violento e perdeu os
sentidos.
Acordou muito mais tarde num hospital de Genebra. Marie
Claude estava debruçada sobre a cama. Quis dizerlhe que não
queria vêla ao pé de si. Queria que alguém fosse prevenir
imediatamente a universitariazinha de óculos. Só pensava
nela e em mais
ninguém. Queria gritar que não podia ver mais ninguém à sua
cabeceira. Mas constatou com pavor que não conseguia falar.
Olhava
para MarieClaude com um olhar transbordante de ódio e
queria
virarse para a parede para não ser obrigado a vêla. Mas
não
conseguia mexerse. Tentou voltar a cabeça. Mas nem com a
cabeça
podia fazer o menor movimento. Fechou os olhos para não ver
a
mulher.
27
Finalmente, depois de morto, Franz pertence à sua esposa
legítima como nunca lhe pertenceu em vida. De tudo Marie
Claude se
encarrega: organiza as obséquias, põe participações no
correio, encomenda coroas de flores e manda fazer um vestido
preto que, na
realidade, não é senão um vestido de casamento. Sim, para a
esposa, o enterro do marido é finalmente o seu verdadeiro
casamento
com ele! O apogeu da sua vida! A recompensa de todos os seus
sofrimentos!
Aliás, o próprio pastor o compreende e, sobre a campa de
Franz, fala do indefectível amor conjugal que, embora
sujeito a duras provas, permaneceu sempre para o defunto,
até ao fim dos seus
dias, um porto seguro onde encontrou abrigo no último
momento.
Mesmo o colega de Franz, a quem MarieClaude pediu para
pronunciar umas breves palavras, presta sobretudo homenagem
à corajosa esposa do defunto.
Muito mais atrás, toda encolhida, amparada por uma amiga,
encontrase a rapariga dos enormes óculos redondos. Engoliu
tantas
lágrimas e tomou tantos comprimidos que, antes do fim da
cerimónia, é acometida de convulsões. Agarrada à barriga,
toda curvada,
tem de sair do cemitério ajudada pela amiga.
28
Assim que recebeu o telegrama do presidente da
cooperativa,
saltou para a motorizada e fezse ao caminho. Foi ele que se
encarregou do enterro. Mandou gravar no jazigo a seguinte
inscrição,
mesmo por baixo do nome do pai: Ele queria o reino de Deus
sobre
a Terra.
Sabia perfeitamente que o pai nunca empregaria tais
palavras para exprimir aquela ideia. Mas tinha a certeza que
elas exprimiam
exactamente o que o seu pai queria. O reino de Deus
significa justiça. Tomas tinha sede de um mundo onde
reinasse a justiça. Simão
tinha ou não o direito de exprimir a vida do pai no seu
próprio
vocabulário? Desde tempos imemoriais, não é precisamente
esse o
direito dos herdeiros?
Após um longo desvario, o regresso, lêse no jazigo de
Franz.
Esta inscrição pode ser lida como um símbolo religioso: o
desvario na
vida terrestre, o regresso aos braços de Deus. Mas os
iniciados sabem que a frase também tem um sentido totalmente
profano. Aliás,
MarieClaude todos os dias se refere a ele.
Franz, o seu querido Franz, o seu bom Franz, não suportou
a
crise dos cinquenta anos. Caiu nas garras de uma pobre
rapariga.
Ela nem sequer era bonita (repararam bem naqueles enormes
óculos
por detrás dos quais ela mal se vê?). Mas um homem de
cinquenta
anos (como todos nós sabemos) chega a ser capaz de vender a
alma
por um pedaço de carne tenra. Só a sua própria mulher sabe o
que
isso o fez sofrer! Aquilo era uma autêntica tortura moral
para ele!
Porque, bem lá no fundo, Franz era um homem bom e honesto.
Que mais pode explicar essa viagem absurda e desesperada
àquele
canto perdido da Ásia? Foi lá à procura da morte. Sim, Marie
O que restou dos moribundos do Camboja?
Uma grande fotografia da estrela americana com um bebé
amarelo nos braços.
O que restou de Tomas?
Uma inscrição: Ele queria o reino de Deus sobre a Terra.
O que restou de Beethoven?
Um homem carrancudo com uma cabeleira inverosímil a
pronunciar solenemente um: nnEs muss sein!nn
O que restou de Franz?
Uma inscrição: Após um longo desvario, o regresso.
E sempre assim por diante. E sempre assim por diante.
Antes de
nos esquecerem, hãode transformarnos em kitsch. O kitsch é
a estação de correspondência entre o ser e o esquecimento.
SÉTIMA PARTE
U SORRISO DE KARENINE
A janela dava para uma encosta onde aqui e além
despontavam
os corpos retorcidos das macieiras. Por cima da encosta, a
floresta
adensava o horizonte e, mais ao longe, perdiamse na
distância as
curvas das colinas. Ao fim da tarde, aparecia no pálido céu
uma
Lua branca e esse era o momento que Tereza escolhia para vir
à
porta. A Lua, assim suspensa no céu ainda claro, era como um
candeeiro que se tivessem esquecido de apagar de manhã e que
continuasse aceso durante todo ó dia no quarto dos mortos.
As macieiras, com os seus corpos retorcidos, tinham cada
uma o
seu lugar na encosta e nenhuma delas poderia deixar nunca o
sítio
onde criara raízes, tal como Tereza e Tomas nunca mais
poderiam
deixar a aldeia. Tinham vendido o automóvel, o aparelho de
televisão, o rádio, para poderem comprar uma casita com
jardim a um
camponês que fora instalarse na cidade.
Ir viver para o campo era a única possibilidade de evasão
que
lhes restava porque, embora lá se fizesse sentir
permanentemente
uma grande falta de braços, as casas nunca faltavam. Ninguém
se
interessava pelo passado político de quem se sujeitava a ir
trabalhar
para o campo ou para as zonas florestais e também ninguém os
invejava.
Tereza sentiase feliz por ter deixado a cidade e por se
encontrar
longe não só do bar e dos bêbados como também das
desconhecidas
que impregnavam com o cheiro dos seus sexos o cabelo de
Tomas.
A polícia desistira de se interessar por eles e como a
história do
engenheiro se confundia na sua memória com o episódio do
MontedePedra, mal distinguia já o sonho da realidade.
(Aliás, o engenheiro estaria realmente ao serviço da polícia
secreta? Talvez sim, talvez não. O que não faltam são homens
para pedir apartamentos
emprestados para as suas entrevistas íntimas e que não
gostam de ir
para a cama mais de uma vez com a mesma mulher.)
Portanto, Tereza era feliz e sentia que as coisas quase se
passavam tal e qual como sempre tinha querido: Tomas e ela
estavam os
dois juntos e sozinhos. Sozinhos? Sou forçado a ser um pouco
mais
exacto: aquilo a que chamo solidão é ao facto de terem
cortado todas
as relações com amigos e conhecidos. Tinham cortado a vida
deles
como se corta um bocado de fita. Mas sentiamse bem na
companhia
dos camponeses com quem trabalhavam, a casa de quem iam de
tempos a tempos e que também convidavam para vir a sua
casa.
No dia em que travara conhecimento com o presidente da
cooperativa, nas termas cujas ruas tinham sido todas
baptizadas com
nomes russos, Tereza descobrira de repente dentro de si
própria a
imagem do campo que as leituras e os antepassados lá tinham
deixado gravada. Um universo harmonioso, cujos membros são
uma grande família com os mesmos interesses e os mesmos
hábitos: a missa
ao domingo, a estalagem onde os homens vão sozinhos, e o
salão
dessa mesma estalagem onde, ao sábado, há um grupo musical e
toda
a gente da aldeia vai dançar.
Com o comunismo, a aldeia passou a ser completamente
diferente desta imagem secular. A igreja era na outra
freguesia e ninguém
lá ia, a estalagem fora aproveitada para os serviços
administrativos,
os homens deixaram de ter um 'sítio para se encontrar e
beber uma
cerveja, a gente nova deixara de ter um sítio para dançar.
As festas
religiosas foram proibidas e as festas oficiais não
interessavam a
ninguém. O cinema mais próximo era na cidade, a vinte
quilómetros
de distância. Depois de acabado o dia de trabalho, durante o
qual
as pessoas se interpelavam alegremente e aproveitavam os
intervalos
para conversar, os camponeses fechavamse dentro das quatro
paredes das suas casitas decoradas com mobiliário moderno,
de onde o
mau gosto soprava como uma corrente de ar, e por lá se
deixavam
ficar parados, de olhos postos no écran da televisão. Não
iam a casa
uns dos outros e só de tempos a tempos saíam para dar um
dedo de
conversa ao vizinho antes da ceia. Todos sonhavam em ir para
a
cidade. O campo não oferecia nada daquilo que poderia dar um
bocadinho de interesse à vida.
Talvez por ninguém querer fixarse no campo é que o Estado
perdeu toda e qualquer autoridade sobre ele. Tendo passado
de proprietário de um naco de terra a simples operário do
campo, o agricultor deixou de sentir qualquer espécie de
ligação com a paisagem
e com o trabalho, deixou de ter qualquer coisa a perder,
deixou de
ter qualquer coisa que possa ter medo de perder. Graças a
essa
indiferença, o campo manteve uma margem considerável de
autonomia e de liberdade. O presidente da cooperativa não é
alguém imposto de fora (como todos os responsáveis o são na
cidade), mas é
eleito pelos camponeses e é sempre um deles.
Como toda a gente queria irse embora, Tereza e Tomas
estavam numa posição excepcional porque tinham vindo de
livre vontade. Enquanto os outros aproveitavam sempre a mais
pequena oportunidade para passar um dia nas terras das
redondezas, Tereza e
Tomas não queriam senão ficar onde estavam e não tardaram a
conhecer melhor os habitantes da aldeia do que eles próprios
se
conheciam entre si.
O presidente da cooperativa tornouse mesmo um amigo
íntimo.
Tinha mulher, quatro filhos e um porco amestrado como um
cão.
O porco chamavase Mefistófeles e era a glória e a principal
atracção da aldeia. Obedecia ao que lhe diziam, era corde
rosa, andava
sempre todo bem asseado e lá se ia equilibrando em cima dos
seus
cascozitos como uma mulher de pernas gordas em cima dos
saltos
altos. A primeira vez que Karenine viu Mefistófeles ficou
todo
desconcertado e passou um bom bocado a farejálo. Mas em
breve
se tomou de amizades pelo porquito e passou a darse melhor
com
ele do que com os cães da aldeia, pelos quais sentia um
desprezo
soberano por estarem sempre presos às suas casotas, a ladrar
estupidamente sem razão para isso. Karenine sabia apreciar
as raridades
pelo seu justo valor e quase me sinto tentado a dizer que
tinha um
certo orgulho naquela sua amizade com o porco.
O presidente da cooperativa sentiase ao mesmo tempo feliz
por
poder ajudar o médico que o operara e infeliz por não poder
fazêlo
melhor. Tomas era motorista de camião, levava os
agricultores para
o campo ou transportavalhes o material.
A cooperativa tinha quatro grandes edifícios destinados ao
gado
e ainda um pequeno estábulo com quarenta vitelas. Estas
tinham
sido confiadas a Tereza, que as levava a pastar duas vezes
por dia.
Como os prados mais próximos e acessíveis se destinavam à
produção de feno, Tereza tinha de levar o rebanho para os
montes. As
vitelas iam pastando a erva de prados cada vez mais
afastados e,
assim, Tereza ia percorrendo com elas ao longo de todo o ano
os
campos que rodeavam a aldeia. Como dantes costumava fazer na
sua cidadezinha, andava sempre com um livro na mão; uma vez
nas
pastagens, abriao e punhase a ler.
Karenine ia sempre com ela. Tinha aprendido a ladrar às
vitelas
mais tontas que queriam afastarse das outras; era bem
evidente o
prazer que isso lhe dava. Dos três, o cão era o mais
feliz. Nunca a
'sua função de nnchanceler do relógionn fora tão
respeitada como aqui,
onde não havia lugar para qualquer improvisação. Aqui, o
tempo
em que Tomas e Tereza viviam aproximavase da regularidade
do
tempo de Karenine.
Um dia, a seguir ao almoço (era nessa altura que ambos
tinham
uma hora livre), foram dar um passeio com Karenine pela
encosta
que ficava atrás da casa.
cnNão estou a gostar nada da maneira como ele está a
corrernn,
disse Tereza.
Karenine coxeava da pata esquerda. Tomas baixouse e
apalpoulhe a pata. Descobriu um pequeno caroço na coxa.
No dia seguinte, sentouo ao seu lado no camião e levouo
a um
veterinário de uma aldeia vizinha. Tornou a passar por lá
uma semana mais tarde e, quando voltou, anunciou que
Karenine tinha um
cancro.
Três dias depois, ele e o veterinário operaramno. Quando
o
trouxe para casa, Karenine ainda não tinha acordado depois
da
anestesia. O cão estava deitado com os olhos abertos e
gemia. Tinha
os pêlos da coxa rapados e uma cicatriz com seis pontos.
Pouco tempo depois, tentou levantarse. Mas em vão.
Tereza teve medo: e se ele nunca mais pudesse andar?
n<Não tenhas medo, ele ainda está sob o efeito da
anestesiann,
disse Tomas.
Ela tentou levantálo, mas Karenine cerrou os maxilares.
Era a
primeira vez que tentava mordêla!
nnNão sabe quem tu és. Não te reconhecenn, disse Tomas.
Estenderamno ao pé da cama e, em breve, ele ficou
sossegado.
Por seu turno, também Tomas e Tereza adormeceram.
Acordouos de repente, por volta das três da manhã. Estava
em
cima deles, com o rabo a abanar. Esfregavase neles
selvaticamente,
incansavelmente.
Também era a primeira vez que os acordava! Esperava sempre
que um dos dois acordasse antes de saltar para a cama.
Mas, desta vez, não se contivera quando, de repente, a
meio da
noite, ficara finalmente acordado de todo. De que longínquas
paragens voltaria? Que esnectros teria enfrentado? E agora,
ao perceber
que estava em casa, ao reconhecer os seres que lhe eram mais
familiares, não conseguiu conterse e teve de comunicarlhe
a sua terrível alegria, a alegria que lhe dava estar de
regresso e ter nascido
outra vez.
2
Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o
homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o
gado.
É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo.
Ninguém
pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o
homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais
provável é que
o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder
sobre
a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque,
na
verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única
coisa
que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo
durante as guerras mais sangrentas.
É um direito que só nos parece natural porque quem está no
topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais
outro
parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro
planeta
cujo Deus tivesse dito nnTu reinarás sobre as criaturas de
todas as
outras estrelasnn, para que todas a evidência do Génesis
ficasse logo
posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter
atrelado a
uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um
habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas
de vitela
que costumava comer e apresentasse (tarde de mais) as suas
desculpas à vaca.
Tereza lá vai caminhando com o seu rebanho, lá vai
obrigando
as vitelas a seguirem à sua frente, lá vai ralhando ora com
uma, ora
com outra, porque as vaquinhas estão todas bemdispostas e
passam
o tempo a fugir do caminho para irem correr para os campos.
Karenine também lá vai caminhando. Há mais de dois anos que
vai todos os dias atrás dela para as pastagens. Costuma
divertirse imenso
a disciplinar as vitelas, a ladrarlhes e a injuriálas (o
seu deus
encarregouo de reinar sobre as vacas e ele tem muito
orgulho
nisso). Mas hoje, como tem uma ferida a sangrar numa pata,
lá vai
saltitando com grande dificuldade nas outras três. De dois
em dois
minutos, Tereza baixase para lhe fazer festas nas costas.
Quinze
dias depois da operação, é cada vez mais evidente que o
cancro não
foi irradiado e que Karenine não tem cura.
A meio do caminho, encontram uma vizinha que vai para o
estábulo, calçada com as suas botas de borracha. A vizinha
pára para
perguntar a Tereza: n"O que é que o seu cão tem? Parece que
vai a
coxear!nn Tereza responde: nnTem um cancro. Só lhe resta
muito
pouco tempo de vidann, e sente a garganta tão apertada que
mal
consegue falar. A vizinha apercebesé das lágrimas de Tereza
e põese quase a ralhar com ela: nnSanto Deus! Não me diga
que se vai
pôr a chorar só por causa de um cão!nn É uma boa mulher.
Não o
disse por maldade, mas para tentar consolar Tereza. Tereza
tem
consciência disso e já vive há tempo suficiente na aldeia
para saber
que, se os camponeses gostassem tanto dos seus coelhos como
ela
gosta de Karenine, não matariam nenhum e não tardariam
também
a morrer de fome rodeados de bichos por todos os lados. No
entanto, sente o que a vizinha lhe disse como uma
hostilidade. nnEu seinn,
responde ela sem protestar, mas despedese rapidamente e
prossegue o seu caminho. Sentese sozinha com o seu amor
pelo seu cão.
Pensa, com um sorriso melancólico, que tem de disfarçálo
melhor
do que se tivesse de esconder uma infidelidade. Ter amor por
um
cão é uma coisa escandalosa. Se, em vez disso, a vizinha
tivesse
sabido que andava a enganar Tomas, só teria recebido uma
palmada
cúmplice nas costas!
Prossegue; portanto, caminho com as suas vitelas, que lá
vão
com os flancos a roçar, e mais uma vez pensa com os seus
botões
que aqueles bichos são realmente muito simpáticos. Mansos,
sem
malícia, às vezes de uma alegria pueril: só parecem
cinquentonas
gordas a armaremse às meninas de quatorze anos. Nada mais
tocante do que vacas a brincar. Tereza olha para elas com
ternura e
pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de há
dois anos
para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a
ténia
é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma
sanguessuga. O homem é um parasita da vaca seria
certamente a
definição que a zoologia de um nãohomem daria do homem.
Pode não verse nesta definição mais do que uma simples
brincadeira, merecedora apenas de um sorriso de indulgência.
Mas se Tereza a levar a sério, arriscase a encetar uma
queda vertiginosa: é um pensamento perigoso que pode afastá
la da humanidade. Já no
Génesis, Deus encarregou os homens de reinar sobre os
animais,
mas isso pode explicarse dizendo que esse poder apenas foi
emprestado. O homem não era o proprietário, mas um simples
gerente
do planeta; mais dia menos dia, teria de prestar contas pela
sua
gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem nndono
e
senhor da naturezann. O que não deixa de ser uma
coincidência interessante é o facto de ser precisamente esse
mesmo Descartes que
nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é
proprietário, e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal
não passa
de um autómato, de uma nnmachina animatann, ou seja, de
uma má quina animada. Quando o animal geme, não quer dizer
que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger.
Quando a roda de um
carro de cavalos chia, isso não quer dizer que a charrete
tenha uma
dor: é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser
interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido
lamentar a
sorte de um cão dissecado em vida num laboratório.
Enquanto as vitelas pastam, Tereza sentase num tronco e
Karenine deitase ao pé dela, com a cabeça poisada no seu
colo. Tereza
lembrase de uma notícia de duas linhas que vinha há uma
dúzia de
anos no jornal e que dizia que, numa certa cidade da Rússia,
todos
os cães tinham sido abatidos. Tal notícia, discreta e
aparentemente
insignificante, fizeralhe sentir pela primeira vez todo o
horror que
emanava desse vizinho desmesurado.
Era uma simples antecipação de tudo quanto veio a
acontecer
depois, porque nos dois anos a seguir à invasão ainda não
podia
falarse propriamente de terror. Como quase toda a nação
estava
contra o regime de ocupação, os russos tinham de arranjar
primeiro
homens novos a quem pudessem confiar o poder. Mas onde
encontrálos, já que a fé no comunismo e o amor pela Rússia
eram letra
morta? Entre aqueles que nutriam dentro de si o desejo de
vingarse da vida. O que era preciso era consolidar essa
agressividade,
alimentála, mantêla em estado de alerta. Era preciso
primeiro
treinála contra um alvo provisório. Esse alvo, foram os
animais.
Os jornais começaram a publicar artigos em série e a
organizar
campanhas concertadas sob a forma de .avalanches de cartas
dos leitores. O que se exigia era, por exemplo, o extermínio
dos pombos
nas cidades. E os pombos foram mesmo exterminados. Mas a
campanha visava sobretudo os cães. O país ainda estava
traumatizado
com a catástrofe da ocupação, mas nos jornais, na rádio, na
televisão, só se falava na falta de higiene dos passeios e
dos jardins públicos por causa dos cães, da ameaça que eles
constituíam para a saúde
das crianças, só se dizia que eram animais sem utilidade
nenhuma e
que, para cúmulo, as pessoas ainda tinham de lhes dar de
comer.
Fabricouse uma autêntica psicose, e Tereza chegou mesmo a
temer
que a populaça, excitada, se virasse um dia contra Karenine.
Um
ano depois, o ódio acumulado (e que tinha sido primeiro
experimentado nos animais) foi apontado para o seu
verdadeiro alvo: o homem. Começaram os despedimentos, as
prisões e os processos. E,
finalmente, os animais puderam respirar, aliviados.
Tereza acaricia a cabeça de Karenine mansamente deitada no
seu colo. Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há
mérito
nenhum em portarmonos bem com os nossos semelhantes. Tereza
é
forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia,
porque
senão deixaria de poder lá viver, e, até com o próprio
Tomas, é
obrigada a portarse como uma esposa desvelada porque ela
precisa
dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de
segurança em que medida é que as nossas relações com outrem
resultam
dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da
nossa
benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão
previamente condicionadas pelas relações de forças
existentes entre os
indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestarse em
toda
a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não
representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da
humanidade (o
teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão
profundo
nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se
encontra à
sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o
maior
fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem
de
todos os outros.
Uma vitela aproximase de Tereza, estaca ao pé dela e fica
a
observála demoradamente com os seus grandes olhos
castanhos. Tereza conhecea bem. Chamalhe Margarida.
Gostava de ter baptizado todas as vitelas, mas não
conseguiu. Não havia nomes que chegassem. Há trinta anos,
pelo menos, com certeza que ainda era
assim, com certeza que todas as vacas da aldeia tinham nome.
(E se
o nome é sinal da alma, pode bem dizerse, custe o que
custar a
Descartes, que as vacas tinham alma.) Mas, depois, a aldeia
tornouse uma fábrica cooperativa e as vacas nunca mais
saíram, durante
toda a vida, dos seus dois metros quadrados de estábulo.
Deixaram
de ter alma e passaram a não ser mais do que nnmachinae
animataenn. O mundo deu razão a Descartes.
Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num
tronco,
a afagar a cabeça de Karenine e a meditar no fracasso da
humanidade. Ao mesmo tempo, apareceme outra imagem: a de
Nietzsche a
sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a vergastar um
cavalo.
Chegase ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça
se à sua
cabeça e desata a chorar.
A cena passavase em 1889 e Nietzsche, também ele, já se
encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras,
foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se
declarou. Mas, na
minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de
um
profundo significado. Nietzsche foi pedir perdão por
Descartes ao
cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da
humanidade)
começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao
cavalo.
E é desse Nietzsche que eu gosto, tal como gosto da Tereza
que
tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente e que a
afaga.
Ponhoos um ao lado do outro: tanto um como o outro se
afastam da
estrada em que a humanidade, nndona e senhora da
naturezann, prossegue a sua marcha sempre em frente.
Karenine dera à luz dois croissants e uma abelha. Olhava
espantado para a sua estranha progenitura. Os croissants
estavam quietos,
mas a abelha, toda tonta, titubeava; em breve levantou voo e
desapareceu.
Era um sonho que Tereza acabara de ter. Quando acordou,
contouo a Tomas e ambos o viram como uma consolação: o
sonho
transformara a doença de Karenine em gravidez e o drama do
parto
acabara de uma forma ao mesmo tempo cómica e enternecedora:
com dois croissants e uma abelha.
Tereza voltou a sentir uma esperança absurda. Também na
aldeia começava o dia por ir às compras: ia à mercearia
comprar leite,
pão e croissants. Mas, nesse dia, quando chamou Karenine
para ele
ir com ela, o cão mal levantou a cabeça. Era a primeira vez
que se
recusava a participar na cerimónia que sempre reclamara
tiranicamente.
Portanto, foise embora sozinha. nnOnde está Karenine?nn,
pernuntou a vendedora que já tinha um croissant preparado
para ele.
I desta vez, foi Tereza que trouxe o croissant no cabaz. Mal
entrou
em casa, tirouo para Karenine o ver. Queria que ele fosse
buscálo.
Mas Karenine ficou deitado sem se mexer.
Tomas via como Tereza estava triste. Agarrou o croissant
com a
boca e pôsse de gatas à frente de Karenine. Depois foise
aproximando lentamente dele.
Karenine olhava para ele, parecia acenderselhe nos olhos
um
brilho de interesse, mas não se levantava. Tomas pôs a cara
ao pé
do focinho dele. Sem mexer o corpo, o cão apoderouse com a
boca
de um bocado de croissant que saía para fora da boca de
Tomas.
Depois, Tomas largou o resto do croissant para Karenine
ficar com
ele todo inteiro.
Sempre de gatas, Tomas recua, encolhese sobre si próprio
e
põese a rosnar. Finge que está a disputar o croissant. O
cão responde ao dono a rosnar. Até que enfim! Era isso mesmo
que eles esperavam! Karenine estava com vontade de brincar!
Karenine ainda tinha gosto pela vida.
Esse rosnar era o sorriso de Karenine e eles queriam fazer
durar
esse sorriso tanto tempo quanto possível. Tomas, sempre de
gatas,
voltou a aproximarse do cão e agarrou com os dentes a
extremidade do croissant que lhe saía para fora da boca.
Como estavam muito
perto um do outro, Tomas aspirava o hálito do cão e os pêlos
muito
compridos que Karenine tinha à volta do focinho faziamlhe
cócegas
no rosto. O cão voltou a rosnar e sacudiu o focinho. Ficou
cada um
com metade do croissant presa nos dentes. Karenine voltou a
cometer o mesmo erro de sempre. Largou a sua metade e quis
apoderarse do pedaço que o dono tinha na boca. Como sempre,
esqueceuse
que Tomas não era um cão e tinha mãos. Tomas não largou o
pedaço de croissant que tinha na boca e apanhou a metade que
estava
no chão.
nnTomas, não lhe tires o croissant.n×., gritou Tereza.
Tomas deixou cair as duas metades à frente de Karenine,
que
engoliu uma rapidamente, mas conservou ostensivamente a
outra
durante muito tempo na boca para mostrar aos dois donos,
todo
vaidoso, que tinha ganho.
Estes olhavam para ele e pensavam que Karenine estava a
sorrir
e que, enquanto sorrisse, ainda tinha uma razão para viver.
No dia seguinte, parecia melhor. Foram almoçar. Era a
altura
em que ambos tinham uma hora livre e costumavam levar o cão
a
dar um passeio. Karenine sabia disso e, alguns minutos
antes,
punhase a saltar à roda deles com um ar inquieto, mas,
desta vez,
quando Tereza foi buscar a coleira e a trela, o cão olhou
demoradamente para eles e não se mexeu. Estavam especados à
frente dele e
esforçavamse por parecer alegres (por causa dele e de
propósito
para ele) a fim de lhe comunicarem um pouco da sua boa
disposição. Passado um momento, como se tivesse tido pena
deles, o cão
aproximouse a coxear nas três patas e deixou que lhe
pusessem a
coleira.
cnTereza, embora saiba que estás zangada com a máquina
fotográfica, por favor, trála hoje!nn, pediu Tomas.
Tereza obedeceu. Abriu um armário onde a máquina devia
estar
arrumada a um canto. Tomas voltou à carga: Um dia, ainda
havemos de sentirnos muito contentes por ter estas
fotografias. Karenine era uma parte da nossa vida.
Era'' ××, perguntou Tereza como se tivesse sido picada
por uma
cobra. Tinha a máquina mesmo diante dos olhos, no fundo do
armário, mas não fazia um gesto para tirála. Não quero
pensar que
Karenine alguma vez possa deixar de estar aqui. Tu já falas
dele no
passado!
Não te zangues!, disse Tomas.
Eu não estou zangada, disse Tereza baixinho. Quantas
vezes é
que eu também já dei por mim a pensar nele no passado!
Quantas
vezes já me censurei a mim própria por causa disso! Por isso
é que
não vou levar a máquina.nn
Iam a caminhar pela estrada, sem falar. Não falar era a
única
maneira de não pensar em Karenine no passado. Não tiravam os
olhos de cima dele e estavam constantemente com ele. Só
estavam à
espera do momento em que ele começasse a sorrir. Mas ele não
sorria; não fazia senão caminhar, sempre só com três patas.
<<Só o faz por nossa causa. Não tinha vontade nenhuma de
sair.
Só veio porque sabia que nós gostávamosnn, disse Tereza.
O que ela dizia era triste, mas, apesar disso e sem se
darem
conta, eles eram felizes. Se eram felizes, não era apesar da
tristeza,
mas graças à tristeza. Iam de mãos dadas e ambos tinham a
mesma
imagem diante dos olhos: um cão que encarnava dez anos da
sua
vida em comum.
Ainda andaram mais um bocado. Depois, para sua grande
desilusão, Karenine parou e deu meia volta. Tiveram de
voltar para casa.
Talvez ainda nesse dia, ou então no dia seguinte, ao
entrar sem
avisar no quarto de Tomas, Tereza reparou que ele estava a
ler uma
carta. Quando ouviu bater a porta, meteu a carta no meio de
outros
papéis. Tereza percebeu. E também viu que ele, quando saiu
do
quarto, escondeu uma carta na algibeira. Mas esqueceuse do
envelope. Quando se viu sozinha em casa, foi inspeccionálo.
A direcção
estava escrita com uma caligrafia desconhecida, muito clara,
e que
lhe pareceu tipicamente feminina.
Mais tarde, quando voltou a vêlo, perguntoulhe, como
quem
não quer a coisa, se tinha havido correio.
nnNãonn, disse Tomas, e Tereza sentiuse invadir pelo
desespero,
um desespero tanto mais cruel quanto já se tinha desabituado
dele.
Não, Tomas não podia encontrarse às escondidas com uma
mulher.
Era praticamente impossível. Mas devia ter deixado em Praga
uma
mulher em quem continuava a pensar, que era importante para
ele e
que lamentava que agora já não pudesse deixarlhe o cheiro
do sexo
no cabelo. Não receava que Tomas a deixasse por causa dessa
mulher, mas tinha a sensação que, corno dantes, a felicidade
daqueles dois últimos anos passados no campo estava aviltada
pela mentira.
Veiolhe de novo à cabeça uma ideia: a casa dela não era
Tomas, mas Karenine. Quens daria corda ao relógio dos seus
dias
quando ele já não estivesse presente?
Tereza já se encontrava em pensamento no futuro, num
futuro
sem Karenine, num futuro onde se sentia abandonada.
Karenine encontrase deitado, a gemer, a um canto. Tereza
vai
ao jardim. Observa o estado da erva entre duas macieiras e
decide
que Karenine háde ser enterrado nesse sítio. Traça um
rectângulo
na erva com o salto do sapato. É o desenho da campa.
n"O que estás a fazer?nn, perguntoulhe Tomas, que a
apanhou
tão inopinadamente como ela o apanhara a ele umas horas
antes a
ler uma carta.
Não lhe respondeu. Tomas viu que ela tinha as mãos a
tremer;
já há muito tempo que isso não lhe acontecia. Agarroulhas.
Ela
libertouse.
cnÉ a campa de Karenine?nn
Não lhe respondeu.
Tomas começou a ficar irritado com o silêncio dela.
Explodiu:
Censurasteme por eu já estar a pensar nele no passado. E
tu, o
que é que estás a fazer? Já o queres enterrar!nn
Ela viroulhe as costas e voltou para casa.
Tomas foi para o quarto e bateu com a porta.
Tereza abriua e disse: cnEra bem melhor que em vez de só
pensares em ti, também pensasses nele agora. Estava a dormir
e tu
acordasteo. Vai pôrse a gemer outra vez.nn
Tereza sabia que estava a ser injusta (o cão não estava a
dormir), sabia que estava a comportarse como uma
mulherzinha
vulgar que quer magoar alguém e sabe qual é a melhor maneira
de
o fazer.
Tomas entrou em bicos de pés no quarto onde Karenine
estava
deitado. Mas ela não queria deixálo sozinho com ele.
Estavam ambos debruçados sobre o cão, cada um por seu lado.
Esse movimento
comum não era um gesto de reconciliação. Bem pelo contrário.
Ambos estavam sozinhos. Tereza com o seu cão. 'Inomas com o
seu cão.
Tenho medo é que fiquem assim com ele até ao último
momento. os dois separados. os dois sozinhos.
Por que é a palavra idílio uma palavra tão importante para
Tereza?
Nós, que fomos educados na mitologia do Antigo Testamento,
podíamos talvez dizer que o idílio é a imagem que nos ficou
gravada
na lembrança como representação do Paraíso. A vida no
Paraíso
não era uma caminhada sempre em linha recta para o
desconhecido,
não era uma aventura. Moviase em círculo, entre as coisas
conhecidas. A sua monotonia não era tédio, mas felicidade.
Enquanto viveu no campo, no meio da natureza, rodeado de
animais domésticos, embalado pelas estações e pela sua
repetição, o
homem ainda tinha pelo menos um reflexo desse idílio
paradisíaco.
Assim, Tereza, no dia em que encontrou o presidente da
cooperativa nas termas, viu desenharse à sua frente uma
imagem do campo
(do campo onde nunca tinha vivido, que não conhecia) e ficou
maravilhada com ela. Era como olhar para trás, era como
olhar para o
Paraíso.
No Paraíso, quando Adão se debruçava nas fontes, ainda não
sabia que estava a ver a sua própria imagem. Não teria
compreendido Tereza que, quando era pequena, se plantava
diante do espelho
e se esforçava por ver a alma através do corpo. Adão era
como
Karenine. Às vezes, para se divertir, Tereza punhao à
frente do
espelho. O cão não reconhecia a imagem do espelho e olhava
para
ela com um ar distraído, com uma indiferença incrível.
A comparação de Karenine com Adão levame a pensar que, no
Paraíso, o homem ainda não era bem o homem. Para ser mais
exacto: o homem ainda não se tinha lançado na trajectória do
homem.
Pela nossa parte, há muito que estamos lançados nessa
trajectória e
voamos no vazio de um tempo que corre sempre a direito. Mas
ainda existe em nós um fino cordão a ligarnos ao longínquo
Paraíso
enevoado onde Adão se debruçava sobre a fonte e, ao
contrário de
Narciso, não fazia a menor ideia de que a pálida mancha
amarela
que lá via era a sua imagem. A nostalgia do Paraíso é o
desejo que
o homem tem de não ser homem.
Quando Tereza era pequena e via os pensos higiénicos da
mãe
sujos de sangue menstrual, ficava cheia de nojo e detestava
a mãe por
não ter sequer o pudor de escondêlos. Mas Karenine, que era
uma
cadela, também tinha menstruações. Tinha uma de seis em seis
meses,
durante quinze dias. Para ele não sujar a casa, Tereza
punhalhe um
grande bocado de algodão entre as pernas e vestialhe umas
cuecas
velhas que lhe atava engenhosamente ao corpo com uma fita
muito
comprida. Passava quinze dias divertida a vêlo com essa
fatiota.
Como explicar que as menstruações de uma cadela
despertassem
em si uma tal ternura, quando até pela sua próparia
menstruação tinha
repugnância? A resposta pareceme fácil: é que o cão nunca
foi expulso do Paraíso. Karenine desconhece totalmente a
dualidade do
corpo e da alma e não sabe o que é ter repugnância. Por isso
Tereza se sente tão bem e tão calma ao pé dele. (E por isso
é que é tão
perigoso transformar o animal em máquina animada e tornar a
vaca
um autómato de produzir leite: ao fazêlo, o homem está a
cortar o
cordão que o ligava ao Paraíso e a privarse da única coisa
que
pode obrigálo a parar e dar algum conforto ao seu voo
através do
vazio do tempo. j
Do caos confuso destas ideias, nasce no espírito de Tereza
um
pensamento blasfemo de que não consegue livrarse: o amor
que a
une a Karenine é melhor do que o amor que existe entre ela e
Tomas. Melhor, e não maior. Tereza não quer culpar nenhum
dos
dois, nem Tomas nem ela, não quer dizer que eles poderiam
amarse mais. Parecelhe é que o casal humano foi criado de
tal forma
que o amor do homem e da mulher é a priori de uma natureza
inferior àquela que pode ter (pelo menos na melhor das suas
variantes) o amor entre o homem e o cão, essa estranha coisa
dá história
do homem que o Criador certamente não previu.
É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de
Karenine.
Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as
perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele
de
mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amarme
á mais do que eu o amo? Todas essas interrogações que
questionam o amor, que o medem, o perscrutam, o
inspeccionam, não se arriscarão a matálo na casca? Se somos
incapazes de amar, talvez
seja por desejarmos ser amados, ou seja, por querermos
alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos
junto dele sem
reivindicações e não querermos senão a sua simples
presença.
E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal e
qual
como ele é, não tentou modificálo, deu a sua anuência
prévia ao
seu universo de cão, não quer confiscarlho, não tem ciúmes
das
suas tendências secretas. Se o educou, não foi com a
intenção de
modificálo (como um homem quer sempre modificar a sua
mulher
e uma mulher o seu homem), mas simplesmente para lhe ensinar
a
língua elementar que havia de permitirlhes compreenderemse
e viverem os dois juntos.
E também: o seu amor pelo cão é um amor voluntário,
ninguém
a obrigou a isso. (Tereza pensa uma vez mais na mãe, e tem
muita
pena dela: se a mãe fosse uma daquelas desconhecidas da
aldeia,
talvez a sua jovial grosseria lhe parecesse simpática! Ah!
se ao menos a mãe fosse uma estranha! Tereza sempre teve
desde criança
uma grande vergonha por a mãe ter ocupado os traços do seu
rosto
e confiscado o seu eu. E o pior é que o imperativo milenar
que nos
manda amar pai e mãe a forçava a aceitar essa ocupação, a
chamar
amor a essa agressão! A mãe não é culpada de Tereza ter
rompido
com ela. Não rompeu com a mãe por ela ser como era, mas por
ser
sua mãe. )
Mas sobretudo: nenhum ser humano pode presentear outro com
um idílio. Só o animal pode fazêlo porque não foi expulso
do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um
amor sem
conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução. Karenine ia
traçando em torno de Tereza e de Tomas o círculo da sua vida
fundada
na repetição e também esperava o mesmo deles.
Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano,
certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo:
nnOuve lá, já estou farto de vir todos os dias com um
croissant na boca. Não és
capaz de me arranjar outra coisa?nn Nesta frase, encontra
se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não
anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem
não pode ser
feliz: a felicidade é desejo de repetição.
Sim, é verdade, a felicidade é desejo de repetição, pensa
Tereza.
Quando o presidente da cooperativa levava Mefistófeles a
dar
uma volta depois do trabalho e encontrava Tereza, nunca se
esquecia de dizer: nnSenhora Dona Tereza! Se eu ao menos o
tivesse
conhecido há mais tempo! Tínhamos andado os dois atrás das
mulheres! Não há mulher que resista a dois porcos juntos!nn
Ao ouvir estas palavras, o porquito soltava um grunhido,
porque tinha sido
amestrado para isso. Tereza riase, embora já soubesse há
mais de
um minuto aquilo que o presidente da cooperativa lhe ia
dizer. A
repetição não tirava encanto nenhum à brincadeira. Pelo
contrário.
No contexto do idílio, o próprio humor obedece à doce lei da
repetição.
O cão, que quando comparado com o homem não tem
privilégios nenhuns, tem, no entanto, um que não é para
desprezar: no seu
caso, a eutanásia não é proibida por lei e o animal tem
direito a
uma morte misericordiosa. Karenine só podia andar com três
patas e
passava cada vez mais tempo deitado a um canto. Gemia muito.
Tereza e Tomas estavam perfeitamente de acordo sobre uma
coisa:
não tinham qualquer direito de deixálo sofrer inutilmente.
Mas este
acordo de princípio não poupava nenhum deles a uma incerteza
angustiante. Como saber em que momento é que o sofrimento se
torna inútil? Como determinar o momento em que estar vivo
deixa
de valer a pena?
Se ao menos Tomas não fosse médico, ainda poderiam
protegerse com uma terceira pessoa. Ainda poderiam ir ter
com o veterinário e pedirlhe para dar uma injecção ao cão.
É tão difícil assumirmos nós próprios o papel da morte!
Tomas
rejeitara energicamente durante muino tempo a ideia de ser
ele a
darlhe a injecção, dizendo que chamariam um veterinário.
Mas acabou por perceber×que, pelo menos, lhe poderia
conceder um privilégio que nenhum ser humano pode ter: a
morte disfarçarseia sob a
máscara daqueles que amava.
Karenine passara a noite inteira a gemer. De manhã, depois
de
auscultálo, Tomas disse a Tereza: <nNão se deve esperar
mais tempo.nn
Estavam ambos para ir trabalhar. Tereza foi buscar
Karenine ao
quarto. Até aí, ele mantiverase deitado na mais perfeita
indiferença
(há pouco, nem sequer dera por Tomas enquanto este estava
a examinálo), mas agora, ao ouvir o barulho da porta,
levantou
a cabeça e olhou para Tereza.
i Esta não pôde suportar aquele olhar e quase teve medo
dele.
; Nunca olhava para ninguém dessa maneira, nem mesmo para
Thomas. Só para ela é que olhava assim. Mas nunca com a
intensidade
' com que o fazia hoje. Não, não era um olhar desesperado ou
triste.
Era um olhar de uma arrepiante, de uma insustentável
credulidade.
Aquele olhar era uma pergunta ávida. Durante toda a vida,
Karenine esperara que Tereza lhe respondesse e o que lhe
dava agora a
conhecer (ainda muito mais insistentemente do que dantes)
era que
continuava à espera de saber a verdade por seu intermédio
(porque,
para ele, o que lhe chega por intermédio de Tereza é
sempre a
verdade: os seus nnsentado!nn ou nndeitado!nn são
verdades a que adere
por inteiro e que dão sentido à sua vida).
Aquele olhar de uma arrepiante credulidade foi
extremamente
breve. O cão voltou logo a poisar a cabeça em cima das
patas. Tereza
tinha consciência de que nunca mais ninguém olharia para
ela assim.
Nunca lhe davam guloseimas, mas Tereza, há alguns dias,
tinha
j ido comprar tablettes de chocolate. Tiroulhes a prata,
partiuas em
j bocadinhos muito pequenos e pôlos à volta dele. Pôs
também uma
tijela com água para que, durante as horas em que ia ficar
sozinho
em casa, não lhe faltasse nada. Mas ele parecia ter ficado
extenuado
com o olhar que poisara nela. Embora estivesse rodeado de
bocados
de chocolate, não voltou a levantar a cabeça.
Deitouse no chão ao pé dele e abraçouo. O cão farejoua
mui to devagar e lambeua uma ou duas vezes com um grande
cansaço.
Recebeu a carícia de olhos fechados, .nmo se quisesse
ficar com ela
gravada para sempre na memória. Virou a cara para ele lha
lamber
do outro lado.
Depois. teve de ir tratar das vitelas. Só voltou a casa a
seguir ao
almoço. Tomas ainda não tinha chegado. Karenine continuava
deitado,
todo rodeado de pedacinhos de chocolate, e já nem sequer
levantou
a cabeça ao ouvir os passos de Tereza. Tinha a perna
doente inchada
e o tumor rebentara noutro sítio. No meio dos pêlos, havia
uma gota
de um vermelho claro, que não parecia uma gota de sangue.
Como ainda há pouco, deitouse no chão encostada a ele.
Passoulhe um braço em torno do corpo e fechou os olhos.
Depois,
alguém bateu com os dedos na porta. nnSenhor doutor,
senhor doutor! Aqui tem o porco e o seu presidente!nn
Sentiase incapaz de
falar fosse com quem fosse. Não se mexeu e continuou de
olhos
fechados. Ainda se ouviu outra vez: nnSenhor doutor, os
porcos vieram fazerlhe uma visita!nn, e depois tudo voltou
a ficar silencioso.
Tomas chegou meia hora mais tarde. Sem dizer palavra, foi
à cozinha preparar a injecção. Quando voltou ao quarto,
Tereza já
estava de pé e Karenine fez um esforço para se levantar.
Quando
viu Tomas, abanou levemente o rabo.
nnOlha!, disse Tereza, ele ainda sorri!nn
Disseo num tom de voz suplicante, como se estivesse a
pedir
um pequeno adiamento, mas não voltou a insistir nisso.
Muito devagar, estendeu um lençol em cima da cama. Era um
lençol banco, semeado de florzinhas cor de violeta. Aliás,
ela já
tinha tudo preparado, já tinha pensado em tudo, como se
tivesse
andado a imaginar com vários dias de antecedência a morte
de Karenine. (Ah! Que horror! Imaginamos com antecedência a
morte daqueles que amamos!)
O cão já não tinha forças para saltar para cima da cama.
Pegaramno ambos ao colo e levantaramno. Tereza deitouo
de la do e Tomas examinoulhe a pata. Procurava um sítio em
que a veia
fosse saliente e se visse com nitidez. Cortou os pêlos
desse sítio com
a tesoura.
Tereza estava ajoelhada aos pés da cama e segurava com as
mãos a cabeça de Karenine, à qual tinha a cara encostada.
Tomas pediulhe para apertar com toda a força a pata de
trás
logo acima da veia, porque esta era fininha e a agulha
custava a
entrar. Segurou na pata de Karenine, mas não afastou a
cara da
cabeça dele. Não parava de lhe falar com uma voz muito
doce e ele
não pensava em mais nada senão nela. O cão não estava com
medo.
Lambeulhe mais duas ou três vezes a cara. E Tereza
segredavalhe:
nnNão tenhas medo, não tenhas medo, lá já não te dói nada,
lá vais
sonhar com esquilos e com lebres, e Mefistófeles também há
de lá
estar, não tenhas medo...nn
Tomas enfiou a agulha na veia e pressionou o êmbolo. A
pata
de Karenine foi percorrida por um leve estremecimento, a
respiração acelerouselhe e depois parou de repente. Tereza
continuava
ajoelhada no chão aos pés da cama, com o rosto apertado de
encontro à sua cabeça.
Tiveram ambos de voltar para o trabalho e o cão ficou
deitado
em cima da cama, em cima do lençol branco com flores cor de
violeta.
Voltaram ao fim da tarde. Tomas foi ao jardim. Encontrou,
entre duas macieiras, os quatro riscos do rectângulo que
Tereza tinha
desenhado com o salto alguns dias antes. Pôsse a cavar.
Observou
rigorosamente as dimensões indicadas. Queria que tudo se
passasse
como Tereza desejava.
322
Esta ficara em casa com Karenine. Tinha medo que o cão
ainda
estivesse vivo quando fossem enterrálo. Encostoulhe o
ouvido ao
focinho e teve a impressão de sentir um leve sopro.
Afastouse dele
e constatou que o peito ainda se mexia um bocadinho.
(Não, ela não ouviu senão a sua própria respiração. Esta
imprime um movimento imperceptível ao seu próprio corpo, mas
a ela
parecelhe que é o peito do cão que está a mexerse!)
Achou um espelho na carteira e encostouo ao nariz do cão.
O espelho estava tão sujo que lhe pareceu que tinha lá
ficado uma marca.
nnTomas, ele ainda está vivo!nn, gritou, quando Tomas
voltou do
jardim com os sapatos cheios de lama.
O marido baixouse e fez que não com a cabeça.
Um de cada lado, agarraram no lençol sobre o qual
repousava
Karenine. Tereza, do lado das patas, Tomas, do lado da
cabeça.
Levantaramno e levaramno para o jardim.
Tereza sentiu o lençol molhado nas mãos. Quando veio,
trouxenos um laguinho, agora que se vai, deixanos outro,
pensou ela.
Estava contente por sentir debaixo dos dedos aquela
humidade, o
último adeus do seu cão.
Levaramno para o pé das macieiras e depuseramno no fundo
da cova. Tereza debruçouse para arranjar o lençol de forma
a tapálo todo. Não podia pensar que a terra que lhe iam
deitar por cima
lhe caísse em cima do corpo nu.
Depois, foi a casa buscar a coleira, a trela e uma mão
cheia de
bocadinhos de chocolate, que desde a manhã tinham ficado no
chão,
intactos. Deitou tudo para dentro da cova.
Ao lado, estava um monte de terra fresca. Tereza pegou na
pá.
Tereza lembravase do sonho que tivera e no qual Karenine
dava à luz dois croissants e uma abelha. Sutütamente, estas
palavras
pareciamlhe um epitáfio. Pôsse a imaginar um jazigo entre
as macieiras, com a seguinte inscrição: nnAqui jaz
Karenine. Deu à luz
dois croissants e uma abelha.nn
No jardim, a penumbra iase adensando, de forma que já não
era dia e ainda não era noite; havia uma luz pálida no céu,
como
um candeeiro que tivesse ficado esquecido no quarto dos
mortos.
Tinham ambos os sapatos cheios de terra e tornaram a pôr a
pá
e a enxada no alpendre, ao pé dos restantes utensílios:
ancinhos,
picaretas e sachos.
Estava sentado à mesa do quarto, que era onde costumava
instalarse para ler. Quando Tereza vinha ter com ele,
aproximavase por detrás, debruçavase e apertava os seus
dois rostos um contra o outro. Ao fazêlo, nesse dia, viu
que Tomas não estava a ler
um livro. Tinha uma carta diante de si. Embora só lá
houvesse umas
cinco linhas dactilografadas, se tanto, Tomas olhava
fixamente para
ela e nem desviou o olhar quando se apercebeu da presença de
Tereza.
nnO que é?nn, perguntou ela, angustiada.
Sem se voltar, Tomas pegou na carta e deulha. Dizia que,
nesse
mesmo dia, tinha de ir ter ao aeródromo da cidade mais
próxima.
Quando acabou finalmente por voltarse para Tereza, esta
leulhe nos olhos o mesmo pavor que também ela acabara de
sentir.
nn Vou contigonn, disse ela.
Tomas fez que não com a cabeça: nnSó me mandam ir a
mim.nn
Tereza voltou a repetir: nnNão, eu também vou contigo.nn
Subiram para o camião e, alguns momentos depois, chegavam ao
campo
de aviação. Havia nevoeiro. As silhuetas dos aviões mal se
divisavam. Percorreramnos todos, mas as portas de todos
aqueles aviões
estavam fechadas, não havia maneira de lá entrar. Acabaram
por
encontrar um com a porta da frente aberta e uma escada
encostada.
Subiram dois ou três degraus e, à porta, apareceu um steward
que
lhes fez sinal para continuarem. Era um avião pequeno, de
uns trinta lugares, completamente vazio. Sempre agarrados um
ao outro,
avançaram pelo corredor, sem prestarem grande atenção ao que
se
passava à sua volta. Sentaramse um ao lado do outro e
Tereza
encostou a cabeça ao ombro de Tomas. O horror inicial
dissipavase
e transformavase em tristeza.
O horror é um choque, um instante de absoluta cegueira.
O horror é totalmente desprovido de beleza. Não se vê senão
a luz
violenta do acontecimento desconhecido que se espera. A
tristeza,
pelo contrário, implica que se saiba. Tomas e Tereza sabiam
o que
os esperava. O clarão do horror tinhase encoberto e o mundo
agora aparecia a uma luz azulada e suave, que tornava as
coisas mais
belas do que antes.
No momento em que lera a carta, Tereza não sentira amor
por
Tomas. Só pensara que não devia deixálo, um só segundo que
fosse: o horror abafa todos os outros sentimentos, todas as
outras
sensações. Agora, abraçada a ele (o avião voava por entre as
nuvens), o pavor passara e já podia sentir o amor que lhe
tinha e
sabia que aquele era um amor sem limites e sem medida.
O avião acabou finalmente por aterrar. Levantaramse e
dirigiramse para a porta que o steward abrira. Sempre
enlaçados pela
cintura, encontravamse no alto da escada. Em baixo, estavam
três
homens com carapuços na cabeça e espingardas na mão. Era
perfeitamente inútil hesitar porque não havia escapatória
possível. Desceram muito devagar e, quando puseram o pé na
pista, um dos homens levantou a espingarda e fez pontaria.
Não se ouviu nenhuma
detonação, mas Tereza sentiu que Tomas, que um segundo antes
se
encostava a ela e lhe enlaçava a cintura, já não se
aguentava nas
pernas.
Quis mantêlo encostado a si, mas não conseguiu. Tomas
caiu
em plena pista de cimento. Baixouse. Queria deitarse por
cima
dele, cobrilo com o seu próprio corpo, mas algo de muito
estranho
aconteceu então: o corpo de Tomas começou a encolher a toda
a
velocidade debaixo dos seus olhos. Era um espectáculo tão
incrível
que ficou como que petrificada no mesmo sítio. O corpo de
Tomas
cada vez encolhia mais, não se parecia já nada com Tomas, só
restava uma coisinha minúscula, e essa coisinha ínfima
começou a mexerse e depois a correr e a fugir pelo campo de
aviação fora.
O homem que tinha disparado tirou a máscara e sorriu para
Tereza com um ar afável. Depois, virouse e lançouse em
perseguição
daquela coisinha minúscula que corria para ali e para acolá
como se
quisesse evitar alguém e procurasse desesperadamente um
abrigo.
Andaram assim atrás um do outro durante alguns instantes,
depois o
homem atirouse bruscamente ao chão e a perseguição acabou.
O homem levantouse e veio ter com Tereza. Trazialhe a
coisinha nas mãos. A coisinha tremia de medo. Era uma lebre.
Deua a
Tereza. Então, o pavor e a tristeza desapareceram e ela
ficou
contente por ter aquele animalzinho ao colo, aquele
animalzinho
que era dela e que ela pedia apertar contra o corpo. Desfez
se em
lágrimas de felicidade. Chorava, não conseguia parar de
chorar, as
lágrimas não a deixavam ver nada, e levava a lebre para casa
pensando que já estava quase mesmo no fim, que estava onde
queria estar, no sítio de onde já não se pode escapar.
Seguiu caminho pelas ruas de Praga e deu facilmente com a
sua
casa. Vivera lá com os pais quando era pequena. Nem o pai
nem a
mãe já lá viviam. Foi recebida por dois velhotes que nunca
tinha
visto, mas ela sabia que eram o seu bisavô e a sua bisavó.
Ambos
tinham a cara enrugada como a casca de uma árvore e Tereza
sentiase contente por viver com eles. Mas, por agora,
queria estar
sozinha com o seu animalzinho. Achou sem dificuldade o
quarto onde dormira a partir dos cinco anos de idade, quando
os pais tinham
decidido que ela merecia ter um quarto só para ela.
O quarto estava mobilado com um divã, uma mesinha e uma
cadeira. Havia um candeeiro aceso em cima da mesa, à sua
espera
há todo aquele tempo. E em cima do candeeiro estava poisada
uma
borboleta de asas abertas e enfeitadas com dois grandes
olhos pintados. Tereza sabia que estava a chegar ao fim.
Deitouse no divã e
apertou a lebre contra o rosto.
Estava sentado à mesa onde se instalava sempre para ler.
Tinha
diante de si um sobrescrito aberto e uma carta. Disse para
Tereza:
nnDe tempos a tempos, tenha recebido umas cartas de que não
tencionava falarte. São do meu filho. Sempre fiz tudo para
evitar qualquer contacto entre a vida dele e a minha. E olha
como o destino
se vingou de mim. Há uns anos, expulsaramno da faculdade.
Agora
é motorista de tractor numa aldeia. A verdade é que, embora
não
haja qualquer contacto entre as nossas vidas, elas vão as
duas lado a
lado na mesma direcção como rectas paralelas.
n"E por que é que não tencionavas falarme dessas cartas?
perguntou Tereza, profundamente aliviada.
Não sei. Não me apetecia.
Ele escrevete muitas vezes?
De tempos a tempos.
E para te falar de quê?
Dele.
E diz coisas interessantes?
Diz. Como tu sabes, a mãe era uma comunista feroz.
Deixou
de darse com ela há muito tempo. Ligouse a pessoas que
tinham
uma situação igual à nossa e que tentavam exercer uma
actividade
política. Alguns foram presos. Mas também se pegou com eles.
Distanciouse. Trataos de `eternos revolucionários.
Espero bem que não se tenha reconciliado com o regime...
Não, nem pensar nisso. Agora acredita em Deus e pensa
que
isso é a solução para todos os problemas. Segundo ele,
devemos é ir
vivendo a vida de todos os dias conforme manda a religião e
não
ligar ao regime. Devemos ignorálo. Segundo ele, se
acreditarmos em Deus, somos capazes de instaurar através da
nossa conduta,
e seja lá bem onde for, aquilo a que ele chama o `reino de
Deus
sobre a Terra'. Dizme que a Igreja é a única associação
voluntária que há no nosso país, e também a única que escapa
ao controlo do Estado. O que eu gostava de saber é se ele é
religioso
só para resistir ao regime ou se, de facto, acredita mesmo
em
Deus.
Então porque é que não lhe perguntas?nn
Tomas prosseguiu: nnSempre admirei as pessoas que
acreditam
em Deus. Achava que tinham o dom estranho de uma percepção
parasensorial que a mim me é negada. Um pouco como os
videntes. Mas agora, com o exemplo do meu filho, percebo que
não é
difícil acreditar. Quando se viu em dificuldades, os
católicos tomaram conta dele e assim, de um momento para o
outro, descobriu a
fé em Deus. Talvez tenha sido a gratidão que o levou a
decidirse.
As decisões humanas são assustadoramente fáceis de tomar.
Nunca lhe respondeste?
Não tenho a direcção dele. Ele não ma mandou.nn
Depois acrescentou: nnClaro que o carimbo do correio tem
o nome da terra. Bastava mandar a carta para a
cooperativa.nn
Tereza sentiase envergonhada das suspeitas que tivera e
queria
reparar o erro com uma súbita demonstração de generosidade
para
com o filho dele. nnEntão porque é que tu não lhe escreves?
Porque
é que não lhe dizes para vir visitarnos?
É que ele é muito parecido comigo. A falar, faz
exactamente
o mesmo que eu com o lábio de cima. Acho um bocado esquisito
ver a minha própria boca a falar do reino de Deus...nn
Tereza desatou a rir.
Tomas também..
Tereza exclamou: n"Tomas, não sejas criança! É uma
história tão
antiga! Essa tua história com a tua primeira mulher... O que
é que
ele tem a ver com isso? Lá por teres mau gosto quando eras
novo,
ainda é preciso que haja alguém a sofrer com isso?
Para dizer a verdade, só de pensar no encontro, fico
logo
nervoso. É sobretudo por causa disso que não me apetece vê
lo.
Não consigo perceber porque é que fui tão teimoso. Um belo
dia,
sem saber muito bem como, tomase uma decisão, e depois essa
decisão ganha a sua inércia própria. Cada ano que passa é um
bocadinho mais difícil mudála.
Dizlhe para vir fazernos uma visita!nn, disse ela.
À tarde, ao voltar do estábulo, ainda vinha na estrada e
já ouvia
vozes. Quando chegou ao pé de casa. viu o camião. Tomas
estava a
mudar uma roda, todo debruçado para a frente. À sua
vnlta,
formarase um pequeno grupo de gente a ver, à espera que
Tomas
acabasse a reparação.
Tereza ficou parada, sem conseguir tirar os olhos dele.
Parecia lhe velho. Tinha os cabelos grisalhos e a
dificuldade com que se
desembaraçava do caso não era aquela falta de jeito
desculpável
num médico convertido em motorista de camião, mas a que é
pró paria de alguém que já não é novo.
Lembravase de uma conversa que tivera há pouco tempo com
o
presidente. Este disseralhe que o camião de Tomas estava
num estado miserável. Não estava de forma nenhuma a queixar
se. Dissera o em jeito de brincadeira, mas, mesmo assim,
andava preocupado
com aquilo. nnTomas conhece melhor o corpo humano do que
as
peças do motornn, disse ele. Depois, contoulhe em
segredo que já
tentara várias vezes convencer a administração a deixálo
exercer
medicina na região. Tinhamlhe respondido que a polícia
nunca autorizaria tal coisa.
Escondeuse atrás de uma árvore para os outros homens não
darem por ela, mas não tirava os olhos dele. Estava cheia de
remorsos. Por sua causa é que ele deixara Zurique e voltara
para Praga.
Por sua causa é que ele deixara Praga. E, mesmo ali, ainda
continuava a atormentálo, mesmo com Karenine a morrer,
ainda fora
capaz de torturálo com as suas suspeitas inconfessáveis.
Sempre censurara Tomas em pensamento por não gostar
suficientemente dela. O seu amor, esse sim, estava acima de
toda e
qualquer suspeita, mas o dele nunca passara de uma simples
condescendência.
Apercebiase agora de como tinha sido injusta: se
realmente lhe
tivesse um grande amor, teria ficado com ele no
estrangeiro! Lá, ele
era feliz e tinha uma vida nova diante de si! Mas ela, ela
deixarao,
ela vierase embora! É claro que se convencera que estava
a praticar um acto de generosidade, que só se vinha embora
por não querer ser um peso para ele! Mas seria essa sua
generosidade mais do
' que um subterfúgio? Na realidade, ela bem sabia que ele
havia de
voltar, que havia de vir ter com ela! Chamara por ele,
arrastarao
consigo cada vez mais para baixo, como as fadas atraem os
camponeses para as turfeiras e lá os deixam morrer afogados.
Aproveitara
um momento em que o apanhara com dores de estômago para
arrancarlhe a promessa de que iriam viver para o campo!
Como
fora manhosa! Forao sempre atraindo atrás de si, sempre
para pôlo à prova, sempre para se assegurar do seu amor, e
forao atraindo sempre até ali, até ao estado em que o vê
agora: grisalho e
cansado, com os dedos meio mutilados, dedos que nunca mais
poderão pegar num bisturi.
Tinham os dois chegado ao fim. Para onde poderiam agora
irse
embora? Para o estrangeiro? Nunca lhes dariam autorização.
Para
Praga? Ninguém lhes daria emprego. Para outra aldeia
qualquer?
Mas a que propósito?
Santo Deus! Tinha sido mesmo necessário chegarem ali para
ter
a certeza de que ele a amava!
Tomas acabou finalmente por conseguir montar a roda. Os
homens saltaram para a parte de trás do camião e o motor
começou a
roncar.
Entrou em casa e foi tomar banho. Estava deitada na água a
escaldar e pensava que toda a vida se servira da sua própria
fraqueza contra Tomas. Todos temos tendência para culpar a
força e ver
na fraqueza uma vítima inocente. Mas, Tereza davase agora
bem
conta disso, no caso deles era precisamente o contrário! Até
os seus
próprios sonhos, como se adivinhassem qual era a única
fraqueza
daquele homem forte, lhe ofereciam o espectáculo do
sofrimento de
Tereza para forçálo a recuar! A fraqueza de Tereza era uma
fraqueza agressiva perante a qual ele fora sempre obrigado a
capitular,
sempre até ao momento em que deixara de ser forte e se
metamorfoseara ao seu colo uma lebre. Passava o tempo a
pensar nesse
sonho.
Saiu da banheira e foi buscar um vestido de toilette.
Queria
vestir o seu fato mais bonito para lhe agradar, para lhe dar
prazer.
Acabara de abotoar o último botão quando Tomas irrompeu
ruidosamente pela casa dentro, seguido pelo presidente da
cooperativa
e por um camponês novo, visivelmente pálido.
nnDepressa!, gritou Tomas. Traz aguardente, traz qualquer
coisa
bem forte!nn
A correr, Tereza foi buscar uma garrafa de aguardente de
ameixa. Encheu um copo e o rapaz esvaziouo de um trago.
Entretanto, explicaramlhe o que tinha acontecido: o rapaz
estava a trabalhar e deslocara o ombro. Uivava de dor.
Ninguém sabia
o que fazer. Tinham chamado Tomas que, com um simples gesto,
lhe tinha voltado a pôr o braço no sítio certo.
O rapaz engoliu o segundo copo e disse para Tomas:
nnA tua mulher está bestialmente bonita hoje!
I Ó meu grande idiota, exclamou o presidente, a D. Tereza
é
sempre bonita!
Eu bem sei que ela é bonita, disse o rapaz, mas hoje
ainda
está mais bonita do que o costume. Pôs, um vestido todo
elegante.
A gente nunca a tinha visto com ele. Vão fazer alguma
visita?
Não. Vestime assim só por causa do Tomas.
Tu és mesmo um homem de sorte, ó doutor!, exclamou o
presidente. Havia de ser a minha patroa que havia de se pôr
toda fina
só para me agradar!...
Por isso é que quem tu trazes à rua é o porco e não a
tua
mulher, disse o rapaz, que riu durante um bom bocado.
Por onde é que andará o Mefistófeles?, perguntou Tomas.
Já
não lhe ponho a vista em cima pelo menos há... (e fingiu
que estava
a pensar) uma boa hora!
Está farto de me aturar, respondeu o presidente.
Com esse vestido tão bonito, só me está a dar vontade de
ir
dançar contigo, disse o rapaz para Tereza. Ó doutor, tu
deixala
dançar comigo?
Vamos todos dançar, disse Tereza.
Também vem?, perguntoulhe o rapaz.
Mas onde é que havemos de ir?n>, perguntou Tomas.
O rapaz disse que numa terra das redondezas havia um bar e
uma pista de baile num hotel.
nnTu também vens connosconn, disse o rapaz para o
presidente,
num tom que não admitia qualquer réplica, e como já ia no
terceiro
copo de aguardente, acrescentou: nnE se o Mefistófeles
ficar chateado, também vem connosco! É a maneira de levarmos
dois porcos!
I As miúdas vão todas cair para o lado quando virem chegar
dois
porcos! nn E voltou a rir às gargalhadas.
<<Se o Mefistófeles não vos incomodar, eu também vou com
vo cêsnn, disse o presidente, e subiram todos para o
camião de Tomas.
Tomas sentouse ao volante, Tereza a seu lado e os outros
dois
' homens saltaram para a parte de trás, com meia garrafa de
aguar dente. Já estavam fora da aldeia quando o presidente
reparou que
tinham esquecido Mefistófeles em casa. Deu um berro a
Tomas para
este dar meia volta.
nnNão vale a pena, um porco bastann, disse o rapaz, e o
presidente acalmouse.
O dia declinava. A estrada subia em ziguezague.
Chegaram à cidade e estacionaram à frente do hotel. Tereza
e
Tomas nunca lá tinham ido. Desciase por uma escada para a
cave, onde havia um balcão, uma pista e algumas mesas. Um
sexagenário
tocava num piano vertical e uma senhora da mesma idade
tocava
violino. Tocavam músicas de há quarenta anos. Havia quatro
ou
cinco pares a dançar.
O rapaz percorreu a sala toda com o olhar. cnNão há uma
única
boa para mim!nn, exclamou, e convidou imediatamente Tereza
para
dançar.
O presidente sentouse com Tomas numa das mesas livres e
mandou vir uma garrafa de vinho.
n"Eu não posso beber. Vou a guiar!, protestou Tomas.
E depois?, perguntou o presidente. Vamos passar cá a
noite.
Vou mandar guardar dois quartos.nn
Quando Tereza voltou mais o rapaz, foi a vez do presidente
ir
dançar com ela; só depois é que, finalmente, foi dançar com
Tomas.
Enquanto dançavam, disselhe: nnEu é que fui culpada de
todo o
mal que te aconteceu na vida, Tomas. Foi por minha causa que
vieste para aqui. Fui eu que te fiz descer tão baixo que já
não há
sítio para onde irmos.
Deixate de disparates, replicou Tomas. Em primeiro
lugar, o
que é que isso quer dizer, tão baixo?
Se tivéssemos ficado em Zurique, podias continuar a
operar
os teus doentes.
E tu, tu podias continuar a fazer fotografia.
Não há comparação possível!, exclamou Tereza. Para ti, o
teu
trabalho era a coisa mais importante do mundo. A mim, a mim
tanto se me dá fazer isto como aquilo. Eu não perdi nada. Tu
é que
perdeste tudo.
Tereza, disse Tomas, mas tu ainda não reparaste que eu
sou
feliz aqui`."
Mas operar era a tua verdadeira missão!
Missão, qual minsão? Missão é uma palavra parva. Eu não
tenho missão nenhuma. Ninguém tem missão nenhuma. E é um
alívio enorme uma pessoa perceber que é livre, que não tem
missão
nenhuma.nn
A maneira como o dizia não deixava pairar qualquer dúvida
sobre a sua sinceridade. Tereza voltou a rever a cena de
ainda há
pouco: ele a arranjar o camião e ela a achálo velho. Tinha
chegado
onde queria chegar. Sempre desejara que ele fosse velho.
Pensou
mais uma vez na lebre que estreitava contra a cara no seu
quarto de
criança.
O que significa alguém transformarse em lebre? Significa
que se
esquece a força que se tem. Significa que, daí em diante,
teriam tão
pouca força um como o outro.
De cá para lá, iam desenhando os passos da dança ao som do
violino e do piano; Tereza tinha a cabeça poisada no seu
ombro.
Como no avião que os levava aos dois através da bruma.
Sentia a
mesma estranha felicidade, a mesma estranha tristeza. A
tristeza
queria dizer: estamos na última paragem. A felicidade queria
dizer:
estamos os dois juntos. A tristeza era a forma, e a
felicidade era o
conteúdo. A felicidade preenchia o espaço da tristeza.
Voltaram para a mesa. Ela ainda dançou duas ou três vezes
com
o presidente e uma vez com o rapaz, já tão bêbado que
tropeçou e
caiu por cima dela.
Depois subiram os quatro para os quartos.
Tomas fez girar a chave na fechadura e acendeu o lustre.
Tereza
viu duas camas encostadas uma à outra e, ao lado de uma
delas,
uma mesinhadecabeceira com um candeeiro. Assustada com a
luz,
uma enorme borboleta nocturna levantou voo do abar jour e
começou a rodopiar pelo quarto. De baixo, vinha o som
abafado do violino e do piano.
Milan Kundera nasceu em 1929, em Brno. na Checoslováquia.
A sua
juventude é, pois, atravessada pela guerra e pelo corolário
histórico
imediato que, para o seu pais. constituiu a instalação do
regime comunista. Enquanto jovem estudante é expulso da
Universidade e tornase. sucessivamente, operário e pianista
de um grupo musical. Começa
entretanto a escrever e, em 1962, conclui o seu primeiro
romance intitulado La Plaisanterie, que. editado em 1967.
conhece um imediato
sucesso na Checoslováquia, onde terá ainda a oportunidade de
dar à
estampa outro livro, Risibles Amours. A invasão militar do
seu pais
em 1968 virá, contudo. alterar radicalmente o seu destino
pessoal: demitido do Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos de Praga, impedido de continuar a publicar,
vê ainda os seus livros retirados das
bibliotecas e o seu próprio nome eliminado da lista
telefónica. Tendo,
entretanto, começado a ser traduzido, é publicado em França
La Vie
est Ailleurs, pais onde, em 1973. vem receber o Prémio
Medicis e
onde se instalará definitivamente em 1975. A partir 'de
então, a primeira versão publicada dos seus livros será
sempre em língua francesa. Em 1978, a Itália atribuilhe o
Prémio Modelo para o livro
La Valse aux Adieux. Aquando da publicação de Le Livre du
Rire et de l'Oubli, ao qual será concedido, em 1981, o
prémio
norteamericano Common Weolth Award. élhe retirada a
nacionalidade checa. Em 1981, juntamente com o escritor
Julio Cortazar, élhe
concedida pelo Presidente François Mitterrand a
nacionalidade francesa. Em 1982, recebe, pelo conjunto da
sua obra, o Prémio EuropaLiteratura e, no ano seguinte, a
Universidade de Michigan fálo
doutor honoris causa. Em 1984 publica L'Insoutenable
Légèreté de
l'Être.
Como todas as biografias. esta corre o risco do kitsch. Em
primeiro
lugar, e se estas forem as palavras que restarem sobre
Kundera, estamos
melancolicamente a subscrever o final da sexta parte desta
Insustentável
Leveza do Ser, a obrigar o Autor à paragem imprescindível na
n estação
de correspondência entre o ser e o esquecimento. Mas, graças
a Deus,
como os nomes das restantes estações ou apeadeiros aqui
semeados são
títulos de outros livros, sempre podemos confiar na
possibilidade de não
nos limitarmos a escrever aqui um epitáfio e convidarmos o
leitor a embarcar noutros comboios...
De qualquer forma, sob este ponto de vista, o kitsch
kunderiano é
perfeitamente semelhante a todo aquele que pode ser
fabricado em torno
de qualquer outro escritor. O que, porém, nem todos
partilham é o risco
de um segundo tipo de kitsch: o da desgraça politica, o da
perca da
pátria. o do exílio em terra alheia e todos sabemos
perfeitamente que
a mola para o sucesso de muita obra mediocre reside, de
facto, no prazer que catadupas de multidões vão saboreando
ao verterem aquela segunda lágrima que diz que coisa
bonita, comovermonos como toda a
humanidade se deveria comover com o talento deste exilado
politico (ou
pretinho, ou ceguinho, ou estropiado da guerra)!H. Como se o
condimento do exílio (ou da desgraça, ou da moda, ou da
nossa própria ignorância), como se o que é intrinsecamente
alheio e distinto da literatura
tornassem o talento mais saboroso.n Kundera corre, aliás,
este risco num
momento particularmente propicio. Ou não fosse a França o
pais onde
mais se tem desenvolvido e, portanto, de onde irradia com
mais força o
discurso antitotalitário de esquerda, com todo o seu
impressionante cortejo
de incertezas e verdades simplistas, acessíveis ao maior
número de pessoas
possível e capazes de provocar uma boa secreção lacrimal
colectiva"...
UtiliZando, como utilizei até aqui. conceitos e definições
extraídas do
livro que o leitor tem entre as mãos, gostaria de chamar a
sua atenção
para um aspecto peculiar da obra de Kundera: é que
analisando, equacionando, compreendendo os mecanismos que
fazem funcionar a vida politica tanto no Leste como no
Ocidente, o Autor rria, romo se a melhor
defesa fosse o ataque e o segredo estivesse no poder de
antecipação, um
espaço de liberdade para si e para o leitor enquanto
indivíduos. É assim
que, num estado já bem adiantado do romance, o leitor pode
perceber
que as armadilhas em que julgou ter visto Kundera cair se
revelaram
realmente as armadilhas que este armou e em que, finalmente.
o próprio
leitor caiu. Esta não é, com toda a certeza, a única ocasião
em que o
presente livro nos faz lembrar um diálogo platónico só que
o interlocutor de Sócrates é, neste caso, qaem !ê.
Assim, a tentativa de Kundera será a de nos dizer que. para
lá das
aparências, para lá de todo o kitsch politico que o leitor
pode pela
milésima vez ler nos jornais de hoje mesmo, o seu verdadeiro
terreno é o
da literatura, o seu pais é o romance, o seu continente
literário é toda a
Europa. E, talvez isso sim, o estatuto europeu deste romance
seja uma
das chaves do seu enorme sucesso exílio, se o há, é o de
um europeu
dentro do coração da própria Europa.
Um dos encantos maiores deste romance é, com toda a
certeza, a
facilidade e a amabilidade com que, abundantemente, o
próprio texto nos
fornece as chaves para a sua leitura, como se, à primeira
vista, a atitude do narrador fosse a de nos dizer: nCartas
na mesa, o jogo está todo
à mostra, estas são as regras. u Se o leitor, porém,
subitamente iluminado pela posse de uma dessas pistas,
começar a seguila, tentando rebater
a espessura do conjunto na linearidade de um caminho, cedo
deparará
com a impossibilidade da sua tarefa pela resistência que o
todo lhe oferece: ou seja, há sempre qualquer coisa que
sobra, qualquer coisa que
não encaixa no nosso belo edifício monocromático. Desta
forma, é como
se o fio de Ariana não servisse senão para desdobrar outra
vez o labirinto, como se a porta abrisse invariavelmente
sobre outra porta, como se,
em frente do espelho, houvesse sempre outro espelho, como se
para jogar este jogo fosse necessário saber intuitivamente
um número infinito de
regras. Só nos resta, pois, ter sempre presente que, ao
contrário do que
é possível em geometria, ao contrário daquilo que se faz em
lógica ou
em ciência, este volume não se deixa rebater numa
superfície, este
pensamento não é redutível ao desenvolvimento duma
axiomática ou às
equações de uma teoria. Jogando com a imaginação, a
afectividade, o
sentido de humor, a percepção da beleza. a memória e, claro
está, a
inteligência, este livro diznos que só uma atenção global e
uma atitude
de expectativa ao mesmo tempo múltipla e progressivamente
integrante
(ou seja, o sentido quer do instante, quer do destino
humano) serão
adequadas à forma de conhecimento de que aqui se trata.
Assim, em
finais do século XX, numa Europa que há vários decénios
tenta auscultar
no sangue novo das Américas do Norte e do Sul a esperança na
continuidade de um género literário com o qual se vem
debatendo em vão no
enredo das complicações formais e filosóficas, eis um livro
que, descaradamente, se vem reclamar de uma forma de
conhecimento especifica.
Mas esta descoberta que aqui se dá da irredutibilidade do,
se podemos assim chamarlhe, conhecimento romanesco ao
conhecimento cientifico ou filosófico não é sentida como um
defeito, como imperfeição ou
como falta. Ao afirmarse, como que se constitui num gesto
que simultaneamente institui e proclama uma tradição e um
futuro. A demarcação, por dentro, dos limites do romanesco
aparece assim como condição de
ultrapassagem da crise de contaminação do romance pela
disciplina, seja
ela cientifica, filosófica, linguística ou moral.
Como falar então deste romance senão tentando, ao fazêlo.
ser capaZ de um exercício de multiplicidade que só traia a
sua multiplicidade
intrínseca na medida em que é uma multiplicação?
Tentando talvez desfolharlhe as histórias. Eis a
primeira, a da sua
~aventuran: por volta de 1962, Tomas, um neurocirurgião
checo no casa dos trinta, divorciado, com um filho de cerca
de dez anos que renunciou a ver, encontra Tereza, muito
próxima dos vinte, e apaixonase por
ela. A descoberta e o compromisso do amor perturbamlhe o
sistema de
vida: homem só, com múltiplas ligações eróticas (entre as
quais se conta
Sabina, uma pintora ligeiramente mais nova do que ele),
sente pela primeira veZ. não obstante ser pai, o que é ser
se companhia de alguém.
Percebendo como igualmente essenciais para a manutenção do
seu equilíbrio vital a sua poligamia e a monogamia de
Tereza, casase com ela,
mas conserva o seu antigo sistema de vida. Para Tereza,
filha não querida... etc., etc., etc. O resto sabe o leitor.
Gostaria apenas de convidálo
a que tentasse apurar a que ponto foi incitado, quase como
que provocado a reconstruir intelectualmente um ,fo
cronológico, a imaginar rostos,
corpos, cidades, quadros, sonhos e noites, a sentir o amor e
o ódio, a
guerra e a paZ, a vida e a morte. Ou seja, quase sozinho,
com uma
pequena ajuda de Kundera, a construir um
romance .×tradicional". É
que. de facto, com uma extrema economia de meios pictóricos
e descritivos, o autor deposita uma enorme confiança na
inteligência, na afectividade, na imaginação e, sobretudo,
no sentido de humor de quem o lê.
De qualquer forma, fomos lendo, fomos vibrando como
adolescentes
(e depois? e depois?) e só chegados ao fim demos uma ordem
ao destino
de cada uma das personagens. Pasollinni dizia que a montagem
estava
para um filme como a morte estava para uma vida. A
possibilidade do
romanesco: apaixonarmonos por ele, por essas criaturas
imaginárias
com a mesma paixão com que vivemos o fio do tempo (ao
contrário do
que acontece no mundo físico, aqui a paixão não é a do
previsível mas a
do imprevisível). E, ao mesmo tempo. partilhamos a sorte de
Deus
(conhecemos os variadissimos sentidos de um destino e amamo
lo em cada instante) e o azar dos homens (damos um única
sentido a um destino
e caímos na tentação de escrever epitáfios).
Mas é tempo de passar a outra história, cruzada com a
primeira.
Tomas e Tereza, Sabina e Franz são os nomes de dois pares
amorosos,
nomes de dois enganos emblemáticos para uma questão: o que
são um
para o outro? O que é a sua relação? Uma sucessão de mal
entendidos
que se pode desfolhar sucintamente como um dicionário ou,
mais vagarosamente, como um desencontro de diários intimos?
A este nível, a ambiguidade cresce e podemos até pensar que.
da primeira à última página,
se trata de um trocar de posições: Tereza descobre, no fim,
o que Tomas
já sabe desde o principio, ou seja, que o amor só ganha o
aspecto da
necessidade e da evidência na estrita medida da sua
contingência. gratuitidade e futilidade. Mas será que Tomas
o sabe? Assim, talvez não haja
na sucessão das páginas, capítulos, partes deste livro outro
progresso
que não seja o de uma busca do complexo, do múltiplo, do
diverso.
E quem são as verdadeiras personagens do romance? Sabina,
Franz,
Tereza, Tomas, ou o encontro de Teresa com Tomas (umas vezes
necessidade, outras acaso), o mito de Édipo (umas vezes
criança na cesta e
amor, outras vezes homem na cidade, outras vezes o filho que
conhece o
pai mas que este não reconhece como filho), o chapéu de coco
do avó
de Sabina, Beethoven e outros que tais? Umas vezes uns, umas
vezes
outros: também aqui a descoberta é a da complexificação de
sentido. Ta!
como um cesto, tal como um pano, este livro é entretecido em
diversas
direcções e, por isso, pode funcionar como uma daquelas
figuras igualmente pregnantes, ora perjì! de pessoo, ora
taça. E, em última análise,
os fios da malha não serão ora de Kundera. ora do leitor? E,
em última
análise, o perf l que se recorta não será ora o nosso, ora o
de Kundera?
Uma outra história: a História. Todo o enredo pode ser
visto em
torno (sete anos antes, sete anos depois) de um
acontecimento: a invasão
da Checoslováquia em I %8. Os seus protagonistas chamamse
S., T. ou
K., podem ser checos, portugueses, franceses ou russos,
podem viver em
Praga, em Lisboa, em Paris ou em Moscovo. A condição
indispensáve! é
viverem no século Xx numa Europa ameaçada por dentro naquilo
que ela
sempre teve de melhor: precisamente S., T. ou K., o nome
próprio, o
individuo, o diverso. Não que a história da Europa não seja
uma sucessão de horrores e de regimes politicos criminosos,
não que cada um de
nós não traga em si a vontade de uniformizar os outros com a
máscara
do nosso próprio rosto. Só que nunca como hoje essa vontade
póde ser
erguida tão efirazmente a principio regulador de um pais, de
um continente, de um mundo, esse monstruoso campo de
concentração de que
aqui se fala. Por isso, a história deste livro é
precisamente a história de
um exilio, tão neressário aqui como no Leste mesmo yue o
albergue
seja um tempo que nunca existiu mas que se foi constituindo
e cuja imensa capacidade de abrigo e resistëncia resida na
forma como cada um
cumpre a sua diversidade. Deste ponto de vista, Kundera
exilase tanto
como Tomas ou como cada um de nós na resisténcia à
massificação.
Outra história ainda: um belo dia, o narrador descobre que
a melhor
forma de não abofar em mesmidade é dar asas à sua caparidade
de
multiplicação. Desdobrase, duplicase, triplirase,
multiplicase por sete
e a cada úm destes heterónimos dá um nome: Tomas. Tereza.
Sabino,
Franz, Simão, MarieClaude e MorieAnne. Cada um deles é uma
espécie de emblema para o evoluir das diversas configurações
possiveis de
uma consteloção de problemas: necessidade e contingéncia,
fidelidade e
traição, realidade e sonho, corpo e alma, peso e leveza, uno
e múltiplo,
força e fraqueza. Cada um deles viverá o tempo da tensão
entre vários
pólos: Tomas, o tempo de chegar a essa necessidade de
contingëncia que
se chama liberdade, Tereza à força da sua fraqueza, à
suprema fidelidade infiel a si própria que se rhama amor ou
demência. Sabina ao peso
insuportáve! da leveza do nada, Franz à grandeza da pequenez
da sua
Grande Marcha.
Mas este narrador também é um jogador: por exemplo, quando
diz:
~O amor pode nascer de uma única metáforau, sabe que, se a
partir
desse momento, Tereza seduziu Tomas, ele, por sua vez,
seduziu o seu
leitor. É um brinralhão: Sabina não será Tomas e Tereza não
será
Franz? O filho de Tomas não será Tereza e não Simão que
também
Sabina não pode amar como fìlho, ta! como não pôde amar
Franz? Ou
seja. SimãoFranzTerezo não desempenharão fundamentalmente
o terceiro papel perante um par de pais, Sabina e Tomas?
Depois, é matreiro romo Tereza: por um lado descobre que,
afinal, o
que parecia é sempre outra coisa (então o livro ecoaria
indefinidamente),
foznos ao mesmo tempo acreditar que as suas personagens são
meros
artificios para, páginas adiante, se pôr a adivinhálas, a
sondálas. a
duvidar se as percebe inteiramente.
Finalmente, também é ele que vai fornecendo as pistas para
uma
teoria: a deste romance. Por ele ficamos a saber que a vida
é composta
como uma partitura musical; este livro é, de facto, escrito
como uma
partitura musical, com as suas melodias, os seus ritmos, as
suas harmonias, temas, desenvolvimentos de temas,
recuperação de temas /o próprio
indice é uma forma ABCBACB; tem sete partes como as sete
notas de
música; os temas são interpretados por diversos
instrumentos, sujeitos a
diversas transposições). Só que se tivéssemos de a filiar
nalguma época
da história da música, esta sinfonia seria decididamente
contemporânea,
obederendo aos principios de uma espécie de estética da
assimetria (Tomas e a mulhercegonha): os números primos das
panes, os seus diversos estilos, entre os quais se contam
não poucas reminiscências doutros
estilos (desde o conto de fadas da vida da mãe de Tereza à
metamorfose
de Kafka e ao melancólico último capitulo de Tereza em
grande plano),
a inquietação. Porque aquela felicidade da repetição de
Tereza, hoje,
tem forçosamente como tendência e pano de fundo uma estética
do
kitsch; é preciso não esquecer que, hoje, a música não pode
já recortarse sobre o silêncio, porque o ruido se infiltrou
mesmo em toda a parte.
Ou seja, é uma sinfonia às vezes bela por engano.
Se, minuciosamente, fôssemos recolhendo os diversos
indicios. penso
que, da aplicação de principios estéticos bebidos na poesia
(como se, ta!
como na música ou na matemática, a harmonia dos astros
começasse na
estrutura dos átomos), no teatro, na pintura. no técnica
cinematográfica,
e. aliás, na própria história do romance, poderiamos dizer
que este
narrador, de facto, nos propõe o romance como Grande Arte,
como Arte
Total ou, fazendolhe assim o gosto ao dedo, Sétima Ane.
Daqui podemos, ponanto. voltar ao principio: a essa tal
forma de
conhecimento que nos mobiliza na totalidade.
E evidente que este meu texto faz ainda parte deste
romance. É evidente que o romance que cada um faz deste
romance é ainda parte dele,
ou antes, é evidente que este romance se multiplicará tantas
vezes quantos os leitores que tiver, tantas vezes quantos os
~rios semânticosH a que
se juntar. Mas não no sentido autobiográfico (para isso, há
outros enredos mais propicios, há outras tradições
igualmente odmissiveis e honradasJ, porque este livro parece
radicarse muito longe na história literária, precisamente
ai onde um diálogo fisosófico se podia ainda ler como
um romance. Ta! como os diálogos platónicos, este livro é
autognóstico:
de um leitor, de um autor, de um sujeito constituido de
certa forma,
inclusivamente em certa intersubjectividade.
Comecei por falar de Platão e a ele volto agora: não com
rigor, não
com técnicas de interpretação, mas porque me lembro da sua
teoria do
homem como misto, nem pura forma nem puro caos, nem puro Um
nem
puro Múltiplo. Diverso. Mas com saudades de ambos (e dai a
vertigem
do kitsch e também a insuportabilidade da condição do filho
de Estaline). E, mais para trás, Empédocles e os seus quatro
elementos misturados. Mas, a propósito de Tereza, não nos
diz precisamente o narrador
que nsó as perguntas mais ingénuas são realmente perguntas
importantesn.? A pergunta de Empédocles, ~o que é um Um? o
que é o Múltiplo?u, não será uma delas, não será uma
daquelas ×para as quois não
há resposta, que marcam os limites das possibilidades
humanas e traçam
as fronteiras da nossa existênciay?
É, pois, neste nmeioy, entre o Um e o Múltiplo, que se
trato de
pensar o compfexo, de o dizer sob a fonna de uma humana
criatura.
Uma das nostalgias deste livro, uma das nostalgias de Tereza
é a do ser
não perturbado pela complexidade: a não duafidade entre
corpo e alma,
a não dualidade entre si e o mundo, a eterna repetição do
Mesmo (os
animais, Adão antes do pecado origina!). Só que esse é
também o reino
do silêncio : inarticulado. A instauração da palavra é, à
partida, e desde
logo, a da possibilidade do simples e do complexo, do um e
do múltiplo,
do mesmo e do diverso, numa espécie de movimento perpétuo
entre o
silêncio informe e a pura forma de um siléncio absoluto,
como se, surgida de um continuo indivisivel, a palavra se
recortasse efemeramente em
unidades disrretas em direcção a um ponto sem dimensões.
O que ai se joga né a condição humana, nessa insustentável
leveza
do ser, nesse terreno propicio entre todos para dizer de um
Adão que,
tendo acordado entre o Paraiso e a Terra Prometida. fala,
fala e sempre
se interroga. Com uma assimetria terrivel em relação à
Grécia présocrática. Se nesta a indefinição de estilos
correspondia à pujança de um
ser nascente, a grandiosa sinfonia de estilos que é este
livro talvez não.
FIM DO LIVRO.