Dossiê Cavalo Marinho

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Volume 2

Dossiê
Volume 1
Relatório Analítico

Volume 2
Dossiê

Volume 3
Ficha de Sítio (F10)
Bibliografia (Anexo 1)
Registros Audiovisuais (Anexo 2)
Fichas de Identificação (F60)

Volume 4
Extremo Norte e Limítrofes
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)

Volume 5
Norte-Centro e Paulista
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)

Volume 6
Sul-Oeste
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)
Ministra da Cultura
Marta Suplicy

Presidenta do Iphan
Jurema de Souza Machado

Chefe de Gabinete
Rony Oliveira

Procurador-Chefe Federal junto ao Iphan


Geraldo de Azevedo Maia Neto

Diretora do Patrimônio Imaterial


Célia Maria Corsino

Diretor de Patrimônio Material e Fiscalização


Andrey Rosenthal Schlee

Diretor de Articulação e Fomento


Estevan Pardi Corrêa

Diretor de Planejamento e Administração


Marcelo Vidal

Superintendente do Iphan em PE
Frederico Faria Neves Almeida

DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL

Coordenadora Geral de Identificação e Registro


Ana Gita de Oliveira

Coordenação de Identificação
Mônia Silvestrin

Coordenação de Registro
Cláudia Vasques

Coordenadora Geral de Salvaguarda


Teresa Maria Paiva Chaves

Coordenação de Apoio à Sustentabilidade


Rívia Bandeira

SUPERINTENDÊNCIA DO IPHAN EM PERNAMBUCO

Coordenador Técnico
Fábio Cavalcanti
Coordenador Administrativo
Santino Cavalcanti

Procuradora Federal junto ao Iphan-PE


Fabiana Dantas

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Governador do Estado de Pernambuco


Eduardo Campos

Vice-governador
João Lyra Neto

Secretário da Casa Civil


Tadeu Alencar

SECRETARIA ESTADUAL DE CULTURA

Secretário Estadual de Cultura


Fernando Duarte

Secretário Executivo
Beto Silva

Diretores Executivos
Vinícius Carvalho e Beto Rezende

Coordenador de Articulação Institucional


Claudemir Souza

Coordenador de Economia Criativa


Luciano Gonçalo

Diretor de Formação
Félix Aureliano

Diretor de Gestão
José Mário Duarte Coelho

Diretora de Planejamento
Amara Cunha

Diretor de Políticas Culturais


Carlos Carvalho
Coordenadora de Artes Cênicas
Tereza Amaral

Assessora de Artes Circenses


Aronildes Gomes

Assessora de Dança
Marília Rameh

Coordenador de Artes Visuais


Félix Farfan

Assessora de Design e Moda


Cecília Pessoa

Assessor de Fotografia
Jarbas Araújo

Coordenadora de Audiovisual
Carla Francine

Coordenadora de Cultura Popular


Alexandra Lima

Assessor de Artesanato
Breno Nascimento

Coordenador de Literatura
Wellington de Melo

Coordenador de Música
Andreza Portella

Coordenadora para Populações Rurais e Povos Tradicionais


Erika Nascimento

Coordenador do Festival Pernambuco Nação Cultural


Leo Antunes

Gestoras de Comunicação
Michelle Assumpção e Olívia Mindêlo

Assessores de Comunicação
Tiago Montenegro, Gilberto Tenório, Giselly Andrade, Chico Ludermir, Dora Amorim,
Raquel Holanda e Julya Vasconcelos
FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO -
FUNDARPE

Presidente
Severino Pessoa

Diretora de Gestão
Sandra Simone dos Santos Bruno

Diretor de Gestão do Funcultura


Emanuel Soares de Lima

Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais


Célio Pontes

Diretora de Preservação Cultural


Célia Campos

Coordenadora de Patrimônio Histórico


Fátima Tigre

Coordenador de Patrimônio Imaterial


Eduardo Sarmento

Diretor de Produção
Fernando Augusto

FICHA TÉCNICA

Coordenadora Geral
Célia Campos

Coordenador Técnico
Eduardo Sarmento

Supervisores Técnicos:
José Brito, Leilane Nascimento e Luiz Henrique dos Santos

Acompanhamento - Equipe Técnica na Superintendência do Iphan em PE – Núcleo de


Patrimônio Imaterial
Giorge Bessoni (Antropologia)
Júlia Morim (Antropologia)
Romero de Oliveira e Silva Filho (História)
EQUIPE DO INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS DO
CAVALO-MARINHO DE PERNAMBUCO

Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)


Associação Respeita Januário (ARJ)

Coordenador de Pesquisa
Beatriz de Miranda Brusantin

Supervisão Técnica
João Paulo de França

Produção
Cláudio Rabeca

Equipe de Pesquisa

Pesquisadores
Helena Tenderini
Lineu Guaraldo
Maria Cristina Barbosa
Rosely Tavares

Assistentes de Pesquisa
Fábio Soares
Paulo Henrique L. Alcântara
Sanae Shibata

Logomarca
Murilo Silva

Ficha Técnica do Dossiê

Edição de Texto
Beatriz de Miranda Brusantin
Carlos Sandroni

Revisão de Texto
Elisabeth Lissovsky

Diagramação e Projeto Gráfico


João Paulo de França

Fotografias
Glauco Machado

Transcrição de Partituras
Carlos Sandroni
Ficha Técnica do Vídeo

Edição
Arthur Pontes
Cláudio Rabeca

Roteiro
Beatriz Brusantin
Cláudio Rabeca
Glauco Machado

Imagens
Glauco Machado

Texto da Narrativa
Beatriz Brusantin

Narração
Jr. Black

Músicas
Paisagem da Mata Norte - Cláudio Rabeca
Álbum: Cláudio Rabeca - Luz do Baião (2009)

Maria Trubana - Domínio Público (Adpt. Mestre Araújo)


Álbum: Coletânea Rabequeiros de Pernambuco (2011)

Novas Águas - Alberone


Álbum: Coletânea Rabequeiros de Pernambuco (2011)

A Roda do Vento – Renata Rosa


Álbum: Coletânea Rabequeiros de Pernambuco (2011)

Corto Cana, Amarro Cana / Eu Pisei na Cana Verde - Tradicional / Biu Roque
Álbum: Biu Roque - A Noite Hoje é a Maior

Fontes Documentais

Documento textual
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (PE)
Fundo da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco

Documento áudio-visual
Imagens do Acervo Pessoal de John Murphy

Agradecimentos

A todos os participantes e familiares dos Cavalos-Marinhos de Pernambuco e cidades


limítrofes.
A todos os pesquisadores e profissionais envolvidos na realização deste INRC.

Em homenagem aos Mestres de Cavalo-Marinho

Mestre Biu Roque


Mestre Batista
Mestre Duda Bilau
Mestre Preá
Mestre Salustiano
Mestre Zé Honório
LISTA DE FIGURAS, MAPAS E QUADROS

FIGURAS

Figura 1 - Cena do Capitão com o Mateus (Cavalo-Marinho do Mestre Batista – Aliança –


2012) ......................................................................................................................................... 24
Figura 2 - Estrutura em semicírculo e posicionamento do Banco - Cavalo-Marinho Estrela
Brilhante de Condado (em Cidade Tabajara, Casa da Rabeca, 2011) ...................................... 43
Figura 3 - Cordões – Dança dos Aicos - Cavalo-Marinho Boi Brasileiro de Condado (em
Condado, Conexão Cavalo-Marinho, 2011) ............................................................................. 43
Figura 4 - Capitão e Caroca – Cavalo-Marinho Boi Ventania (Feira Nova, 2012)................. 45
Figura 5 - Figura do Cavalo – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (em Itambé,
2011) ......................................................................................................................................... 45
Figura 6 - Boi e Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga
(em Cidade Tabajara, Casa da Rabeca, 2011) .......................................................................... 46
Figura 7 - Figura do Empareado – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (em
Cidade Tabajara, Casa da Rabeca, 2011) ................................................................................. 47
Figura 8 - Figura do Liberá – Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima de Glória de Goitá (no Sítio
Malícia, Glória do Goitá, 2012)................................................................................................ 48
Figura 9 - Mestre Antônio Telles – Cavalo-Marinho Estrela Brilhante de Condado (PE) ..... 52
Figura 10 - Mestre Biu Alexandre- Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ....... 52
Figura 11 - Mestre Zé de Bibi – Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) .. 52
Figura 12 - Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (PE)
.................................................................................................................................................. 52
Figura 13 - Mestre Mariano Teles – Cavalo-Marinho de Mestre Batista de Aliança (PE) ..... 64
Figura 14 - Seu Martelo tratando da Bexiga – Condado (PE) ................................................. 64
Figura 15 - Artesão de Rabeca Zé de Nininha – Ferreiros (PE) .............................................. 64
Figura 16 - Mestre Borges Lucas confeccionando Máscara de Couro – Lagoa de Itaenga (PE)
.................................................................................................................................................. 67
Figura 17 - Totó, neto do Mestre Antônio Teles - Condado (PE) ........................................... 68
Figura 18 - Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) .... 71
Figura 19 - Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi Matuto da Cidade Tabajara (PE) ......... 71
Figura 20 - Figura do Ambrósio em diálogo com o Capitão (figureiro Fábio Soares-
assistente de pesquisa deste INRC) – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (em
Conexão Cavalo-Marinho, Condado, 2011) ............................................................................. 74
Figura 21 - Figura da Catirina – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ............ 79
Figura 22 - Figura do Mateus – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ............. 79
Figura 23 - Figura do Soldado – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (PE) .... 79
Figura 24 - Figura do Bode Véio – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ....... 79
Figura 25 - Trupé- Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ................................. 86
Figura 26 - Dança dos Aicos – Cavalo-Marinho Boi Matuto da Cidade Tabajara (PE) ......... 86
Figura 27 - Dança dos Aicos – Cavalo-Marinho Boi Brasileiro de Condado (PE)................. 86
Figura 28 - Mateus e Bastião de frente para o Banco – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de
Pedras de Fogo (PB) ................................................................................................................. 88
Figura 29 - Dança dos Aicos de frente para o Banco – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de
Condado (PE) ........................................................................................................................... 88
Figura 30 - Figuras Bodes Véios – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ........ 88
Figura 31 - Banco do Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB) - Formação com
reco e Rebeca ............................................................................................................................ 97
Figura 32 - Banco do Cavalo-Marinho Boi Ventania de Feira Nova (PE) – Formação com
Bombo ...................................................................................................................................... 97
Figura 33 - Dança dos Aico – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB) ........ 110
Figura 34 - Caboclo de Arubá – Mestre Biu Alexandre – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de
Condado (PE) ......................................................................................................................... 110
Figura 35 - Cablocos de Pena – Mestre Borges Lucas e seu filho- Cavalo-Marinho Boi
Teimoso de Lagoa de Itaenga (PE)......................................................................................... 110
Figura 36 - Cena da morte do Véio Joaquim – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado
(PE) ......................................................................................................................................... 113
Figura 37 - Cena do Soldado pegando o Nego Mateus – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de
Condado (PE) ......................................................................................................................... 137
Figura 38 - Bisneto de Biu Alexandre treinando a Figura do Ambrósio junto com seu pai,
Fábio Soares – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ...................................... 153
Figura 39 - Neto de Mestre Salustiano brincando como Galante – Cavalo-Marinho Boi
Matuto da Cidade Tabajara (PE) ............................................................................................ 153
Figura 40 - Encontro de Mestres realizado pelo INRC Cavalo-Marinho (Associação Respeita
Januário e Fundarpe) em Condado (PE) ................................................................................. 156
Figura 41 - Sede do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) ............................. 164
Figura 42 - Casa de Mestre Pisica e Sede do Cavalo-Marinho Boi Ventania de Feira Nova
(PE) ......................................................................................................................................... 164
MAPAS

Mapa 1 – Sítio – Mata Norte e Paulista ................................................................................... 27


Mapa 2 - Localidade 1 - Extremo Norte e Limítrofes ............................................................. 35
Mapa 3 - Localidade 2 - Norte-Centro e Paulista .................................................................... 35
Mapa 4 - Localidade 3 - Sul-Oeste .......................................................................................... 36

QUADROS

Quadro 1 - Cavalo-Marinho ativo por localidade ................................................................... 34


Quadro 2 - Figuras da bricadeira do Cavalo-Marinho ............................................................ 77
Quadro 3 - Outros movimentos de dança do Cavalo-Marinho ............................................... 85
Quadro 4 - Transformações no Cavalo-Marinho .................................................................. 137
Quadro 5 – Linguagem do Cavalo-Marinho ......................................................................... 147
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 14

1 IDENTIFICAÇÃO: CAVALO-MARINHO: UM BRINQUEDO COM SUA PRÓPRIA HISTÓRIA ....... 20


1.1 Qual a história que o Cavalo-Marinho conta? ................................................................ 20

2 CAVALO-MARINHO: UMA BRINCADEIRA DO MUNDO DA CANA-DE-AÇÚCAR ....................... 26


2.1 Geografia, linhagens históricas e culturais: o recorte territorial ..................................... 26
2.1.2 Os Cavalos-Marinhos e as localidades .................................................................... 33
2.2 Identidades entre os Cavalos-Marinhos de Pernambuco e cidades limítrofes ............... 41
2.2.1 Descrição pormenorizada dos aspectos constitutivos do Bem ................................ 42

3 UM UNIVERSO CULTURAL E ARTÍSTICO CHAMADO CAVALO-MARINHO: COMO SE FAZ A


BRINCADEIRA DO CAVALO-MARINHO ..................................................................................... 59

3.1 Saberes e fazeres ............................................................................................................. 59


3.1.1 Saberes e fazeres da música .................................................................................... 59
3.1.2 Outros saberes e fazeres: roupas, indumentárias, bichos e máscaras ...................... 64
3.2 Bora pro samba! A brincadeira do Cavalo-Marinho ...................................................... 70
3.3 Figuras, trupés, tombos e pisadas: corpo e movimento do brincador............................. 81
3.4 Toadas, loas e diálogos: a oralidade poética do Cavalo-Marinho .................................. 88
3.5 O Cavalo-Marinho enquanto performance musical........................................................ 94
3.5.1 Gêneros musicais ..................................................................................................... 98
3.5.2 Elementos musicais do Cavalo-Marinho ............................................................... 100
3.5.3 Instrumentos do Cavalo-Marinho .......................................................................... 103
3.6 Celebração e Religiosidade .......................................................................................... 107
3.7 As narrativas sobre o Cavalo-Marinho: origens, continuidades e transformação ao longo
do tempo ............................................................................................................................. 114
3.7.1 Cavalo-Marinho e seu diálogo com o Bumba meu Boi......................................... 114
3.7.2 A narrativa dos folcloristas .................................................................................... 120
3.7.3 “Chegou o patrão dele e disse: Nego inventa uma brincadeira”: sobre as origens e
influências do Cavalo-Marinho e seus bens culturais .................................................... 123
3.7.4 Transformações e significados .............................................................................. 128
3.7.5 A linguagem do Cavalo-Marinho pernambucano ................................................. 140

4 ENTRE O ANTIGO E O CONTEMPORÂNEO: O CAVALO-MARINHO COMO OBJETO DE


REGISTRO ............................................................................................................................... 148

5 A BRINCADEIRA TEM QUE CONTINUAR.... RECOMENDAÇÕES DE SALVAGUARDA DO


CAVALO-MARINHO ................................................................................................................ 155
5.1 Diagnóstico atual .......................................................................................................... 155
5.2 Indicação das primeiras medidas a serem adotadas...................................................... 164
5.2.1 Linhas de ação de médio e longo prazo ................................................................. 165

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 167

ANEXO A - PARTITURAS ...................................................................................................... 170

ANEXO B - GRUPOS E PESSOAS CONTACTADAS ................................................................. 174


Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 14

INTRODUÇÃO
“A BRINCADEIRA TEM QUE CONTINUAR....”

O processo de registro
De forma sucinta, a brincadeira do Cavalo-Marinho é uma forma de expressão
tradicionalmente realizada pelos trabalhadores rurais da região da Zona da Mata Norte de
Pernambuco e sul da Paraíba durante o ciclo natalino. Trata-se de uma espécie de teatro
popular que representa o cotidiano (presente e passado), real e imaginário, deste grupo social
brasileiro por meio da poesia, da música, dos rituais e de seus movimentos corporais. Contém
personagens com máscaras (figuras), variados tipos de danças, um rico repertório musical, a
louvação ao Divino Santo Rei do Oriente, momentos de culto à Jurema Sagrada e a presença
de animais ou bichos, como o Cavalo e o Boi. A brincadeira, que é comandada pelo Capitão,
se realiza num terreiro em formato de semicírculo, em lugares planos e, normalmente, ao ar
livre. Antigamente, era praticado nos engenhos e usinas de açúcar. O brinquedo tem suas
raízes consolidadas nas senzalas como cultura produzida pelos negros escravizados oriundos
da África.
O processo de identificação deste bem cultural teve como base o Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), que foi aplicado pela Associação Respeita Januário (ARJ),
com sede em Recife (PE), e abrangeu o estado de Pernambuco e cidades limítrofes da Paraíba,
em específico, os municípios de Pedra de Fogo (PB), Itambé (PE), Camutanga (PE), Ferreiros
(PE), São Vicente Ferrier (PE), Condado (PE), Goiana (PE), Aliança (PE), Paulista (PE),
Araçoiaba (PE), Lagoa de Itaenga (PE), Passira (PE), Feira Nova (PE) e Glória do Goitá (PE).
A pesquisa foi coordenada pela doutora em História Social Beatriz de Miranda
Brusantin, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e a equipe
constituída pelo supervisor técnico João Paulo de França, sociólogo; os pesquisadores Helena
Tenderini, mestra em Antropologia, pesquisadora e antropóloga do Instituto Papiro - Pesquisa
Antropológica e Social; Rosely Tavares, mestranda em História Cultural, professora da rede
particular de ensino; Lineu Guaraldo, mestre em Artes pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp);Maria Cristina Barbosa, educadora musical e etnomusicóloga formada
na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE);e os assistentes de pesquisa Paulo Henrique
L. Alcântara, licenciado em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
mestrando em etnomusicologia pela Universidade Federal da Paraíba(UFPB); Sanae Som,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 15

pesquisadora e produtora cultural; e Fábio Soares, neto do mestre Biu Alexandre, bailarino e
componente do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro e do Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro
de Condado (PE); e, por fim, na função de produtor, Cláudio Rabeca, rabequista do Cavalo-
Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE).
O trabalho foi facilitado pela equipe, que, em seu histórico profissional, já havia
realizado pesquisas com a manifestação do Cavalo-Marinho e possuía uma experiência de
vida junto com os atores sociais envolvidos com o bem. A presença de Fábio Soares,
brincador, figureiro e pertencente à família do Mestre Biu Alexandre do Cavalo-Marinho
Estrela de Ouro (PE), trouxe contribuições de vivências, dentro do universo do Cavalo-
Marinho, de grande importância para o trabalho de identificação e elaboração das diretrizes
para o Plano de Salvaguarda. A participação de Fábio Soares também foi decisiva para a
articulação com os grupos de Cavalo-Marinho, seus mestres e brincadores, principalmente
para a realização do Encontro de Mestres (encontro histórico com todos os mestres) ocorrido
no dia 4 de junho de 2012 na cidade de Condado (PE), organizado pela equipe do INRC do
Cavalo-Marinho e da Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(Fundarpe).
Em linhas gerais, a proposta metodológica de trabalho1 consistiu primeiramente em
definir o bem cultural como forma de expressão. O Cavalo-Marinho, tratando-se de um bem
que mescla dramaturgia, dança e música, possui formas não linguísticas de comunicação
associadas a determinado grupo social ou região, desenvolvidas por atores sociais (individuais
ou grupos) reconhecidos pela comunidade, e em relação às quais o costume define normas,
expectativas, padrões de qualidade e outros.2 O foco, portanto, do inventário foi o modo como
as linguagens associadas ao universo do Cavalo-Marinho foram postas em prática por
determinados sujeitos sociais. Estas conclusões foram sendo delineadas com pesquisas
prévias e pelo processo de Levantamento Preliminar. Nesta fase, realizamos um levantamento
dos Cavalos-Marinhos em atividade e/ou memória, dos contatos dos atores sociais, além do
levantamento dos bens culturais presentes na forma de expressão. Também iniciamos os
primeiros recortes de sítio e localidades para a identificação.
Num segundo momento, iniciamos a identificação do bem, estabelecendo campos
espaciais de pesquisa e aprofundando as categorias pré estabelecidas. Realizamos parte das
entrevistas com os atores sociais, observamos a apresentação das brincadeiras e registramos as

1
Detalhes sobre a aplicação do INRC no Relatório Analítico.
2
Definição do Manual de Aplicação INRC 2000 – Inventário Nacional de Referências Culturais. Departamento
de Identificação e Documentação. Iphan/Minc.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 16

informações nas fichas de celebrações, edificações, lugares, ofícios e modos de fazer e formas
de expressão. Ao término destas atividades, foram elaborados o Dossiê, o relatório analítico e
o plano de diretrizes para salvaguarda. A redação do dossiê e do relatório analítico foi feita
pela coordenadora de pesquisa Beatriz Brusantin. No Dossiê, especificamente, o subtópico
dedicado à música e os anexos das partituras musicais foram elaborados pelo etnomusicólogo
Carlos Sandroni, com auxílio dos pesquisadores Maria Cristina Barbosa e Paulo Henrique
Alcântara. Quanto ao plano de diretrizes para salvaguarda, as informações para a sua
composição foram reunidas durante todo o processo de aplicação deste INRC através dos
trabalhos de campo e dos contatos com os atores sociais. O encontro de mestres realizado em
junho de 2012 na cidade de Condado (PE) também contou como um importante momento
coletivo, com a presença de representantes do Iphan e da Fundarpe.
Por fim, o registro audiovisual e fotográfico de todo o INRC –respeitando a lógica do
calendário tradicional dos Cavalos-Marinhos e conforme disponibilidade e abertura dos atores
sociais envolvidos –foi realizado pelo antropólogo Glauco Machado. Os vídeos foram
editados e montados pelo Ateliê Produções (Artur Pontes) e por Cláudio Rabeca (Cavalo-
Marinho Estrela de Ouro de Condado [PE]).
Neste Dossiê traremos um pouco do universo do Cavalo-Marinho. Trata-se de detalhes,
apreciações, conversas, histórias, registros, identificações, narrativas, musicalidade,
dificuldades e reivindicações de um Patrimônio Cultural que já se legitima no grupo social
que está inserido. Mantendo-se em atividade, de onde se tem registro, desde o século XIX,
quando era praticado pelos escravos, o Cavalo-Marinho configura-se como um brinquedo que
sobreviveu ao contexto violento, injusto e de muita peleja da sociedade escravista, depois
resistiu às mudanças socioeconômicas da agricultura canavieira, adaptou-se à urbanização e
entrou pela era digital, influenciando e atuando no mundo artístico contemporâneo. Estas
informações estão aqui sucintamente sistematizadas num longo processo dialógico com a
produção científica sobre o bem e, fundamentalmente, com os atores sociais envolvidos com o
Cavalo-Marinho.
O caminho percorrido na aplicação do INRC, sintetizado neste Dossiê, teve como base
metodológica o próprio inventário, na sua finalidade de “identificar e documentar bens
culturais de qualquer natureza, para atender à demanda pelo reconhecimento de bens
representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade”3, e
como fundamento de princípios a Constituição da República Federativa do Brasil, que

3
INRC 2000 – Manual de Aplicação. Brasília: Iphan, 2000, p. 8.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 17

entende “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,


portadores de referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos (...)”.4
Entendemos que a cultura brasileira é formada por sua diversidade. A busca por uma
nação representativa, que respeite este múltiplo, se faz justamente no reconhecimento desta
pluralidade e na busca de um sistema democrático que dissolva a hegemonia cultural
intrínseca a um sistema social dividido por classes e repleto de antagonismos (IANNI, 1992).
Nesse sentido, identificar o Cavalo-Marinho como bem cultural e registrá-lo como Patrimônio
Cultural Imaterial é caminhar justamente para a construção de uma nação de fato, sem forjar
uma identidade nacional sob o mando da cultura hegemônica de um país. O Cavalo-Marinho
representa a identidade, a ação (e reação) e memória de uma classe social (ou grupo social)
que foi estrutura fundamental na história do Brasil durante seu período colonial, imperial e
republicano. Trabalhadores rurais, ex-trabalhadores e seus descendentes, foram, por séculos,
excluídos do projeto de construção de uma nação brasileira. Projeto este forjado pela
sociedade patriarcal, agrária e escravista que impôs sua cultura e seus anseios na formação do
Estado nacional.
A cultura do Cavalo-Marinho, com raízes históricas comprovadas da época imperial
brasileira, em si, como campo de significações e representações, revive o passado escravista.
Une passado e presente através da memória de seus atores sociais que encontram, no seio da
brincadeira, a liberdade para narrar (a seu modo) suas histórias (e a de seus antepassados) de
vivências e sofrenças, criando e recriando identidades como sujeitos brasileiros. Um Estado
nacional democrático, portanto, que respeita e representa sua coletividade heterogênea,
precisa reconhecer seus bens culturais enquanto patrimônio nacional, escapando da lógica de
representatividade de uma cultura homogênea. Cultura esta que foi imposta pelas classes
dominantes, nas quais os trabalhadores rurais e seu grupo social pernambucano não foram
incluídos. Assim, patrimonializar o Cavalo-Marinho pernambucano – cultura que
historicamente possibilitou que grupos sociais subalternos criassem identidades próprias, de
forma orgânica, ressignificando suas histórias e, assim, conseguissem manter laços com sua
tradição – é possibilitar que continuemos avançando politicamente em direção a uma cultura
patrimonial democrática que dê novos sentidos para a identidade nacional. Um sentido no
qual as culturas dos trabalhadores rurais brasileiros tenham sua representatividade legitimada
pelo Estado. Nas palavras da historiadora Martha Abreu:

4
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 18

A eleição dos patrimônios de uma nação, materiais ou imateriais, é uma das


operações políticas mais importantes para a consolidação de uma determinada
história, memória e cultura comuns. Registra e consolida o valor de certas
manifestações, conferindo-lhes significados atuais e novas possíveis leituras, do
passado e da própria nação. A definição de uma cultura nacional, historicamente
construída, depende sempre dessas escolhas políticas (ABREU, 2007).

Neste dossiê, esboçaremos o Cavalo-Marinho e sua principal característica de narrar, de


forma ressignificada e representada, as histórias vividas por seus brincadores. Um “teatro-
memória” que proporciona, por meio de personagens, movimentos corporais e religiosidade, a
construção de elos identitários entre os seus, uma vez que dá sentido às vivências comuns ao
grupo social. As identidades, que são diferenciações em curso (SANTOS, 1994), emergem
dos processos interativos que os indivíduos experimentam na sua realidade quotidiana, feita
de trocas reais e simbólicas. Assim, a memória pode ser entendida como processos sociais e
históricos, de expressões, de narrativas de acontecimentos marcantes, de coisas vividas, que
legitimam, reforçam e reproduzem a identidade do grupo (CRUZ, 1993). Identidade esta que
pode ser tão profunda e enraizada que atribui sentido inato para seus atores sociais:

Brincadeira é uma coisa que nasceu em mim de criança, é a coisa que eu mais amo,
Maracatu, Cavalo Marinho e Forró Pé de Serra, de sanfona. A brincadeira é uma
coisa que nasceu dentro da minha alma, é a coisa que eu mais adoro na minha vida.
Tirou essas três coisas de mim, acabou comigo. (Mestre Grimário em entrevista
para o evento Conexão Cavalo-Marinho, produzido por Laura Tamiana e Hélder
Vasconcellos.)

A tradição do Cavalo-Marinho corrobora o primordial conceito de patrimônio, na


perspectiva que faz recordar o passado; “é uma manifestação, um testemunho, uma invocação,
ou melhor, uma convocação do passado”. Tem, portanto, o objetivo de (re)memorar
acontecimentos mais importantes, numa estrita relação com o conceito de memória social que,
por sua vez, legitima a identidade de um grupo. “Como atributo coletivo, o patrimônio é um
elemento fundamental na construção da identidade social/cultural e, simultaneamente, é a
própria materialização da identidade de um grupo/sociedade” (CHOAY, 2001).
O brincar Cavalo-Marinho, assim como a memória e a identidade que estão em
constante movimento, não parou no tempo. Dialoga com o passado, rememora-o
constantemente e, ao mesmo tempo, se insere na contemporaneidade, espalhando seus saberes
e sua arte pelo território nacional brasileiro. Pessoas de vários cantos do país e do mundo se
dirigem aos seus atores sociais para compreender e se inspirar. Suas histórias e suas relações
sociais encantam acadêmicos. Seus corpos, sua dança e sua música surpreendem artistas
nacionais e lhe trazem subsídios para a criação. Nascido na senzala, o Cavalo-Marinho hoje se
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 19

insere nas universidades e nos palcos de reconhecidos espetáculos. Uma sabença


genuinamente brasileira de indiscutível valor patrimonial para o Brasil.
A aplicação do INRC em 12 grupos de Cavalos-Marinhos presentes na Zona da Mata
Norte de Pernambuco, cidades limítrofes da Paraíba e cidade de Paulista, trouxe-nos
informações detalhadas sobre as dinâmicas da brincadeira, as transformações e continuidades
do bem e as necessidades para a sua preservação enquanto cultura tradicional. O contato e o
diálogo constante com os atores sociais, inserindo-os como parte da equipe para a aplicação
do INRC, proporcionaram a realização deste inventário em conformidade com os princípios
desta política pública no que concerne, principalmente, a elaboração de diretrizes para a
salvaguarda do bem.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 20

1 IDENTIFICAÇÃO: CAVALO-MARINHO: UM BRINQUEDO


COM SUA PRÓPRIA HISTÓRIA

1.1 QUAL A HISTÓRIA QUE O CAVALO-MARINHO CONTA?

Corto cana, amarro cana,


Dou três nós de amarradia
Foi você quem em ensinou
a namorar que eu não sabia.
Corto cana, amarro cana
Dou três nós de amarrá
Foi você que me ensinou
Meu benzinho a namorar.
Toada pra cortar cana - Despedida Cavalo-Marinho

Quando vamos falar sobre o Cavalo-Marinho, a definição é de que se trata de uma


brincadeira. Classificado como tal pelos próprios agentes dessa forma de expressão, o Cavalo-
Marinho, aos olhos de pesquisadores, técnicos e público em geral, apresenta-se como uma
manifestação cultural que desenvolve a dança, o teatro de máscaras, a música, a poesia, a
louvação, o ritual e o canto. Apesar da realização da brincadeira trazer elementos sofisticados
destas frentes artísticas e culturais, esses vocabulários são externos ao universo histórico dos
brincadores e sujeitos desta cultura. O interessante é que, se perguntado aos seus sujeitos, eles
não definem o Cavalo-Marinho como uma composição cultural-artística segmentada – um
teatro de variedades –, mas classificam a expressão em sua totalidade: uma composição
significativa de vários elementos interligados. Um todo chamado brincadeira que contém a
dança do magui (ou mergulhão), a dança dos aico ou o baile das baianas, as figuras
(personagens que usam máscara), os bichos, Mateus, ou Caroca, Bastião e Catirina, o Banco,
o Caboclo de Arubá, ou o Caboclo de Pena, as baianas, o Cavalo, o Boi, as loas (poesias
faladas), as toadas (músicas cantadas), os diálogos (falas dos personagens contracenando com
o Capitão Marinho) e, por fim, mas não menos importante, a história que a brincadeira conta.
Diante disso, seria reduzido demais definirmos o Cavalo-Marinho apenas aos elementos
artístico-culturais que seus sujeitos tradicionalmente desenvolvem, sendo necessário
acrescentar outra pergunta: qual é a história que o Cavalo-Marinho conta?
A brincadeira do Cavalo-Marinho traz consigo uma narrativa, algo semelhante a um
enredo em uma linguagem teatral. Um significado que atribui o sentido para a realização do
brinquedo. Podemos considerar que a narrativa, ou enredo, constitui a lógica da brincadeira,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 21

definindo seu desenvolvimento e sua execução. Esta narrativa não é homogênea nem fixa para
todos os grupos de Cavalos-Marinhos. Cada um traz sua peculiaridade e suas variações dentro
de uma estrutura narrativa semelhante a todos os brinquedos. O que vai propor a
especificidade de cada grupo é a composição das figuras– performance, loa, toada, momento
da participação, roupas e indumentárias, artefatos – e/ou a presença de alguns elementos
cênicos e/ou ritualísticos.
O trabalho de campo e a troca com outros pesquisadores sobre o bem cultural
confirmam-nos que é equivocado respondermos o que é o Cavalo-Marinho sem
contextualizar, especificar o grupo e relativizar sua composição. Nesta pesquisa de
identificação, registramos em 3(três) localidades definidas5, 3 (três) grandes linhagens de
formação histórica dos Cavalos-Marinhos. Dentro destas 3(três), consideramos 2 (duas)
grandes variantes do brinquedo. Com vários aspectos comuns, entre figuras, narrativas,
instrumentos musicais, danças, loas, toadas, rituais e louvações, em todos estes grupos, seus
brincadores nomeiam o Cavalo-Marinho como sendo uma brincadeira.
A história que grande parte dos grupos de Cavalo-Marinho conta (cada um com seu
sotaque) é de uma festa que o Capitão vai dar em homenagem ao Santo Rei do Oriente. Para
tanto, contrata dois negros, Mateus e Bastião (em outra versão, o Capitão contrata o Caroca),
e a negra Catirina para, na sua ausência, tomarem conta da festa. Os negros não tomam conta,
bagunçam o terreiro (em outra versão, o Caroca empaca o samba), apenas se comportando
com a chegada do Soldado, que os reprime (em outra versão, aparece a figura do Liberá, que
solta o samba). O “teatro” começa então a se desenrolar, com entradas de figuras
(personagens) com máscaras, e tem seu ápice na Estrela, uma parte da dança dos Arcos ou
Aico que louva ao Divino Santo Rei do Oriente (em outra versão, a Estrela ocorre no Baile
das Baianas, dançado em um ritmo semelhante à Marchinha). Em todas as brincadeiras, a
cena do Cavalo também é um momento importante durante as apresentações e faz parte do
enredo fixo dos grupos. Existem cerca de 70 (setenta) figuras que compõem o folguedo, além
dos bichos. O brinquedo sempre termina com a aparição do Boi.
Todas as brincadeiras têm como principal base musical o canto e o Baião, com
andamento mais rápido6, tocado com rabeca, pandeiro, bage e ganzá (ou mineiro); ou, em

5
Descrição pormenorizada sobre o sitio e as localidades mais adiante neste dossiê.
6
Alguns brincadores afirmam que o ritmo da brincadeira é o ritmo do Cavalo-Marinho, porém, grande parte dos
entrevistados, tocadores e brincadores afirmam ser o baião.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 22

outra formação, bombo, ganzá (ou mineiro) e rabeca.7 Dependendo do grupo de Cavalo-
Marinho, também podemos observar a execução do coco e/ou da marcha (ou marchinha).
A narrativa da história desta Forma de Expressão, que possui duas grandes variantes, a
dos Cavalos-Marinhos musicados por bombo e a dos Cavalos-Marinhos sem bombo, sempre
traz, nos primeiros atos, uma cena de negociação de trabalho. Esta representação retrata, de
forma interpretativa, a realidade do mundo do trabalho rural específico da região
pernambucana que, há séculos, tem como base econômica principal a plantação de cana e a
produção dos derivados desta planta. A cena no Cavalo-Marinho acontece entre o Capitão e as
figuras dos negros Mateus ou Caroca, e os diálogos variam conforme o grupo que se
apresenta, porém, a base de todos traz a negociação do preço do trabalho de cuidar do terreno,
ou do trecho, e de tudo que ali acontecer enquanto o dono – o Capitão– estiver fora.
As falas contidas na cena trazem referências típicas do mundo do trabalho rural e, em
especial, de uma negociação de contrato de trabalho específica do processo histórico de
implementação das usinas de açúcar. Trata-se da empreitada, ou como os brincadores falam
na brincadeira, “empeleitada” (cena entre Mateus e Capitão). O processo de quebra das
relações tradicionais de morada no universo social dos engenhos levou a uma expropriação
sobre a reprodução da força de trabalho. Não obstante, a reprodução desta mão de obra estava
sendo assegurada pela venda continuada dessa força aos mesmos proprietários aos quais os
trabalhadores estavam ligados anteriormente, como moradores. A relação, no entanto, entre
este trabalhador morador da cidade e o proprietário era intermediada por um empreiteiro (ou
empeleteiro), por meio de um esquema: aquele só conseguia trabalho através deste (SIGAUD,
1979: 14). Esta relação de trabalho é reinterpretada na brincadeira do Cavalo-Marinho como
parte fixa da narrativa contada. Registrar o Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural
Imaterial é reconhecer justamente estes processos históricos como parte da memória do grupo
social produtor do bem cultural em questão.
Diálogo entre Mateus e Capitão:

- Capitão, pronto. O senhor me chamou pra quê?


- Não, porque aqui tem um serviço pra o senhor tomar conta desse sítio aqui, dessa
população aqui e dessa festa. Pra tomar conta e dar conta.
- Disso tudinho, é?
- É, Mateus.
- Capitão, eu tomo conta e não dou conta.
-Mas tem que tomar conta e dar conta.

7
No caso dos Cavalos-Marinhos da localidade Sul-Oeste, que utilizam bombo (engloba os municípios de Lagoa
de Itaenga, Feira Nova Gloria do Goitá), o ritmo é diferente. Na verdade, podemos considerá-lo uma variante do
baião.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 23

- Ô, Capitão, quanto o senhor quer pra tomar conta desse negócio aqui?
- Se eu tomasse conta eu não lhe chamava aqui, Mateus.
- Então eu vou fazer a minha empeleitada.
- Tá certo. Quanto você cobra?
-Eu cobro doze, redoze, dezesseis com quatorze, uma buxada e uma beirinha de
samba. Tá valido?
- Tá valido.
- Então, pode dizer o que é que eu tenho que fazer, Capitão.
- Ô, Mateus, mas eu to achando que esse serviço é muito pra você. Você trabalha
sozinho, ou tem um outro parente, uma família, um irmão, um amigo, um pareia?
-Eu tenho meu pareia.
-Como é que ele vem?
-Do mesmo jeito que eu vim.
-Do mesmo jeito?
- Tem música aí?
- Tem.
- Mande tocar que é capaz dele vir do mesmo jeito que eu vim. 8

A compreensão do que é o Cavalo-Marinho passa necessariamente pelo entendimento


do universo histórico e sociocultural no qual a brincadeira está inserida. A lógica constituinte
do “fundamento” da brincadeira se faz e (re)faz sustentada na narrativa do mundo do trabalho,
com suas relações hierarquizadas e suas formas diversas de agências. As figuras são
representações das pessoas reais que tradicionalmente marcam a vida de seus participantes
nos engenhos e usinas, nas feiras, vilas e cidades. O próprio corpo da dança e das várias
performances traz gestos, pesos e levezas, movimentos e envergaduras do trabalho árduo no
meio dos canaviais. Portanto, para a definição do brinquedo do Cavalo-Marinho é essencial a
compreensão dos processos históricos, sociais e culturais que são constituintes da lógica do
bem.
A religiosidade não é característica principal do brinquedo do Cavalo-Marinho,
contudo, este traz momentos de louvação ao(s) Santo(s) Rei(s) do Oriente e momentos
ritualísticos, com referências ao culto da Jurema, através do Caboclo de Arubá ou Caboclo de
Pena.
Nas entrevistas realizadas durante este processo de registro, nenhum brincador ou
mestre caracteriza esta manifestação como totalmente profana, mas afirma-se que a
brincadeira faz referência a Jesus Cristo. Com relação ao culto da Jurema, visivelmente
presenciamos, em alguns brinquedos, a “incorporação” no momento da realização dos
Caboclos, porém, nem sempre isto é claramente colocado nas entrevistas.

8
Diálogo entre Mateus e Capitão, Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado (PE), 2002, registrado por Érico
Oliveira (2006).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 24

Figura 1 - Cena do Capitão com o Mateus (Cavalo-Marinho do Mestre Batista – Aliança – 2012)

O Cavalo-Marinho ganha sua importância enquanto Patrimônio Cultural Imaterial por


sua complexidade, riqueza e totalidade. A própria definição dada por seus sujeitos como
brincadeira carrega um imenso universo, algumas vezes, despercebido pelo outro. Ao nos
voltarmos para os estudos acadêmicos, o psicoterapeuta Donald Winnicott (1975:75) trabalha
com a noção de brincadeira em seu aspecto terapêutico, situando-a como uma “atitude social
positiva” (apud GUARALDO, 2010). Nas palavras de Winnicott (1975: 93), “é com base no
brincar, que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem” (apud
GUARALDO, 2010). E como coloca Lineu Guaraldo (2010), o brincador, ao lançar-se no ato
da brincadeira, propõe “o encontro intensivo de elementos de sua subjetividade com aspectos
da realidade. Coloca à prova as noções de limite entre o palpável e o imaginado, borrando
fronteiras e gerando reformulações”.
Para a pesquisadora Helena Tenderini, as brincadeiras carregam “significados de
seriedade e de divertimento”. Para a autora, “são expressões complexas, que, comumente,
trazem em si uma dialogia entre seriedade e comicidade, entre o presente e o que passou,
contando histórias situadas num tempo remoto dialogando” com situações vividas no
cotidiano naquela região. “Desta forma elas constroem também uma ponte estreita entre o
lado do imaginário onde ela está situada e o lado do real, onde se situam os que dela
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 25

participam.” Ao fazer uma análise relacional, a autora conclui que a brincadeira é, também,
sem dúvida alguma, a realidade dos brincadores (TENDERINI, 2003: 21).
A definição deste brinquedo não se resume apenas às suas características estéticas, mas,
sim, a toda história que se reproduz nele e que se coloca na realidade vivida para a existência
do Cavalo-Marinho. Este INRC pretende propor uma imersão no universo do Cavalo-Marinho
como uma forma de expressão complexa que possui, na sua composição, elementos da própria
história de vida de cada participante. Neste dossiê traremos a história que este brinquedo
conta, representa, dramatiza, música, dança, poetiza, brinca e reproduz enquanto um bem
cultural significativo para a vida de seus atores sociais e para o processo histórico cultural do
Brasil.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 26

2 CAVALO-MARINHO: UMA BRINCADEIRA DO MUNDO DA


CANA-DE-AÇÚCAR

2.1 GEOGRAFIA, LINHAGENS HISTÓRICAS E CULTURAIS: O RECORTE

TERRITORIAL

As casas não são muitas


Que por aqui tenho encontrado
(os povoados são raros
Que a cana não tenha expulsado)

O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras
pastos e cercados.
(João Cabral de Melo Neto)

2.1.1 O sítio e o passado histórico-cultural

Para este INRC, realizamos um recorte geográfico baseando-nos em aspectos históricos e


culturais referentes ao bem cultural do Cavalo-Marinho de Pernambuco. A escolha, portanto,
foi territorial, mas levou em consideração características culturais que se revelaram na
determinação geográfica para além dos limites político-administrativos. As escolhas
pautaram-se, sobretudo, na lógica de linhagens culturais de referência dos Cavalos-Marinhos
e seus atores sociais. Concentramo-nos em um único sítio, o qual denominamos de Zona da
Mata Norte e Paulista, e dividimos esta área em três localidades, incluindo os seguintes
municípios e distritos:
 Localidade 1: Extremo Norte e limítrofes – Camutanga (PE), Ferreiros (PE), São
Vicente Ferrier (PE), Itambé (PE) e Pedras de Fogo (PB).
 Localidade 2: Norte-Centro e Paulista – Condado (PE), Goiana (PE), Aliança
(PE), Chã de Camará (PE), Chã de Esconsio (PE),Cidade Tabajara (PE), Araçoiaba
(PE).
 Localidade 3:Sul-Oeste –Lagoa de Itaenga (PE), Passir (PE), Feira Nova (PE),
Glória de Goitá (PE).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 27

Mapa 1– Sítio – Mata Norte e Paulista

A Zona da Mata Norte de Pernambuco está localizada a cerca de 50 quilômetros de


Recife, entre o litoral e o agreste, e é composta por 17 (dezessete) municípios. Até bem pouco
tempo, a maior parte desta área era referida como "região canavieira". É uma das regiões de
maior potencial econômico do Nordeste, pelos recursos naturais disponíveis (água, solo etc.),
pelas vantagens locacionais (em torno da Região Metropolitana do Recife), com razoável
infraestrutura econômica (estradas estaduais e federais) e abundante contingente de
mãodeobra. De área total, a zona canavieira, ou Zona da Mata (originalmente assim
denominada em função das grandes florestas que a recobriam), compreende toda a extensão
dos 170 quilômetros da linha costeira da província, penetrando 60 quilômetros para interior,
ao norte, e 130 quilômetros ao sul (DE CARLI, 1940.)
Toda a área que cobre o Sítio Zona da Mata Norte e Paulista possui um histórico
socioeconômico cultural voltado para a plantação de cana-de-açúcar e a fabricação de seus
derivados. Nesta região, o grande boom da produção de açúcar ocorreu entre o começo e o
fim do século XIX, quando o número de plantations de cana cresceu de 500 para mais de 2
mil. Entre a década de 1850 e o fim do decênio de 1880, o número de engenhos cresceu de
1.300 para 1.650, um aumento de 27% que contribuiu indiscutivelmente – junto com
modificações tecnológicas que melhoraram a produtividade – para mais que dobrar a
produção de açúcar entre tais datas.
Segundo Brusantin, foi, principalmente, a partir da década de 1870, momento de grande
transformação social e econômica no parque açucareiro nacional como um todo, que
Pernambuco, então principal produtor de açúcar do país, e mais especificamente a Zona da
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 28

Mata, recebeu grande parte dos investimentos do governo imperial, avançando


tecnologicamente. O objetivo do governo era que a indústria açucareira nacional se
mantivesse no mercado internacional do açúcar, o qual, naquele momento, contava com o
crescimento da produção europeia de açúcar de beterraba (BRUSANTIN, 2011:42). Como
coloca Eisenberg, foi nessa década, por exemplo, que surgiram as primeiras ferrovias
privadas, instaladas entre canaviais e engenhos para transportar a cana com mais agilidade e
em maiores quantidades (EISENBERG, 1977: 60). Já Pedro Ramos ressalta que a principal
inovação introduzida antes de 1870 foi a moenda de cilindros de ferro, já conhecida nas
Antilhas. Outras modificações de menor importância ocorreram nas fornalhas. O processo de
difusão, alternativo à moenda, chegou a ser introduzido em dois engenhos, tendo sido
posteriormente abandonado. A maior inovação, contudo, consistiu na adoção do vapor como
força motriz, cujas primeiras experiências ocorreram já na primeira metade do século XIX
(RAMOS, 1991: 43). No entanto, até 1870 não houve modificações significativas no setor
canavieiro pernambucano, fato que se deve, segundo Eisenberg, à combinação de terra barata
com trabalho barato e não educado, que produziu uma atitude conservadora, rotineira em
relação à inovação tecnológica. No mais, isso caberia também aos altos custos do capital e à
instabilidade do mercado: os riscos e dificuldades da modernização eram tais que os engenhos
mais modernos do século XIX eram subsidiados pelo governo (EISENBERG, 1977: 70).
A posse e o uso da terra também eram fatores que caracterizavam o perfil da produção
açucareira na região da Mata. Segundo Eisenberg, embora os plantadores de cana possuíssem
a maioria da Zona da Mata, bem pouco a utilizavam produtivamente. Na década de 1850,
provavelmente, eles não empregavam mais de 1/5 das terras disponíveis. Calcula-se que os
agricultores de meados do século XIX utilizavam entre 33, 4% e 45, 2% das terras cultiváveis
da Zona da Mata (EISENBERG, 1977: 151).
Na década de 80 do século XIX, a indústria açucareira pernambucana participou do
programa de implantação de engenhos centrais subsidiados pelo governo. Ao mesmo tempo
em que o governo financiava as companhias para a implantação dos engenhos centrais, alguns
senhores de engenho e comerciantes, que possuíam várias propriedades e capitais, passaram a
implantar fábricas idênticas do ponto de vista técnico, mas nas quais havia o controle, por
uma pessoa física ou por uma empresa, de toda a atividade econômica, desde o plantio da
cana até a produção do açúcar ou do álcool e da aguardente. Essas unidades eram chamadas
de usinas e deram início a uma disputa de áreas de influências com os engenhos centrais.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 29

Muitos engenhos centrais tiveram curta duração ou se transformaram em usinas (DE CARLI,
1942).
Com a chegada das usinas, a paisagem da Zona da Mata pernambucana mudou muito. O
processo de instalação de usinas em Pernambuco durante os anos 90 do século XIX modificou
a paisagem econômica social e física do estado. Segundo considerações de Andrade, a usina
foi uma síntese moderna das duas etapas precedentes da revolução açucareira e identificada
com outros aspectos desse processo geral de modernização, como supremacia das cidades
sobre as áreas rurais, a mudança do trabalho escravo para o assalariado e a concentração de
capital (ANDRADE, 1975:54). Neste momento histórico, a presença deste novo sistema de
produção irá transformar a vida social e cultural das pessoas que ali moravam e trabalhavam.
Há, todavia, uma informação importante com relação à Zona da Mata Norte, foco deste
processo de registro.
Entre os engenhos centrais e usinas fundados até 1910 em Pernambuco, dos 71 (setenta
e um) listados pelo estudioso Peter Eisenberg (1977:126-129), apenas 7 (sete) estavam
localizados na Zona da Mata Norte, sendo que na mata úmida sul, com concentração em
Escada e Ipojuca, existiam 42 (quarenta e duas) fábricas desse porte. Diante disso, a autora
sugere que a Zona da Mata Norte possuía um perfil de engenhos banguês que, apesar da
concorrência dos engenhos centrais e usinas, se manteve em funcionamento, provavelmente
com dificuldades, durante a segunda metade do século XIX e até as primeiras décadas do XX
(BRUSANTIN, 2011: 45).
Com menores capitais, técnicas mais atrasadas, baixa produtividade e pondo no
comércio um produto de qualidade inferior, o banguê resistiu como pôde ao surto usineiro,
voltado que estava para o mercado consumidor regional. A reação do banguê fez-se com tal
energia que, apesar de sua fraqueza econômica e das vantagens conseguidas pelos usineiros
perante as instituições governamentais, só no fim da década de 1951-60 veio praticamente a
extinguir-se. Assim, o banguê reagiu por mais de setenta anos à investida das usinas
(ANDRADE, 1980: 98). Este cenário histórico vai influenciar diretamente nas dinâmicas
sociais e culturais da região em foco. Estamos registrando um bem cultural, o Cavalo-
Marinho, que tem suas raízes fincadas no universo histórico acima descrito. Todos os
processos de transformações acontecidos, bem como os não procedidos, vão influenciar na
sobrevivência do brinquedo, na forma da sua realização e no perfil de seus participantes. No
mais, considerar historicamente o perfil dos participantes do Cavalo-Marinho é buscar
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 30

compreender processos de construções de identidades, significados e representações do bem


cultural em questão.
Esse processo de transformação social possivelmente se deu de forma diversificada na
zona canavieira, justamente porque o tipo de mão de obra utilizada na produção do açúcar nas
regiões da mata pernambucana variava conforme a época e o espaço geográfico. Segundo
Correia de Andrade, na primeira metade do século XIX, quando ainda dominava o trabalho
escravo e o tráfico com a costa africana, as regiões como o sul de Pernambuco e o recôncavo
da Bahia, apesar da existência de muitas terras improdutivas, comportavam os engenhos mais
ricos e as áreas com grande potencial à cultura canavieira, nas quais, em sua maioria,
acomodavam entre 100 a 200 escravos. (BRUSANTIN, 2011: 48). Já ao norte do Recife, sítio
em foco neste INRC, eram raros os senhores de engenho ricos que possuíam numerosa
escravaria e sólidos sobrados. Por este motivo, ao lado de algumas dezenas de escravos, estes
senhores costumavam contratar trabalhadores assalariados – índios, mulatos e negros livres. O
próprio Henry Koster, como senhor de engenho em Jaguaribe, na época de maior trabalho,
geralmente de plantio ou de colheita da cana, fez longas viagens a Goiana e Paraíba com o
fito de assalariar indígenas para as suas plantações (ANDRADE, 1980: 87- 90).
Entre os motivos, o autor destaca que, nesta região, frequentemente, os senhores de
engenho, por não poderem adquirir escravos devido a seu alto custo, supriam a necessidade de
braços facilitando o estabelecimento de moradores em suas terras, com a obrigação de
trabalharem para a fazenda. Esses trabalhadores tinham permissão para derrubar trechos de
matas, levantar choupanas de barro ou de palha, fazer pequeno roçado e dar dois ou três dias
de trabalho semanal por baixo preço, ou gratuito, ao senhor de engenho. Surgiu, assim, aquilo
que se chamou moradores de condição, constituindo grande parcela dos trabalhadores do
campo na segunda metade do século XIX e até o século XX (ANDRADE, 1980: 88).
Neste período, em Pernambuco, sobretudo, ao norte, na mata seca, o trabalho
assalariado era de uso generalizado. Henri Milet salientou ainda que as lavouras de algodão
eram feitas quase inteiramente por assalariados, assim como mais da metade da lavoura da
cana-de-açúcar, pela proporção cada vez mais importante que representava, na safra dos
engenhos, o quinhão devido aos plantadores livres, isto é, ao sistema de parceria. Só certos
trabalhos mais pesados, como corte, transporte e manipulação das canas, continuavam a ser
feitos quase unicamente por escravos (ANDRADE, 1980: 92).
A evidência de que a Zona da Mata Norte de Pernambuco e Paulista (é importante
ressaltar que, no século XIX, o território até Olinda era considerado como uma extensão desta
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 31

zona da mata) concentrou a maior quantidade de engenhos banguês e que estes, com uma
estrutura mais rústica, eram de propriedade de senhores de engenho não tão ricos, que
mesclavam sua mão de obra entre livres e escravos e abriam a possibilidade para os
moradores por condição, significa, para a compreensão histórica deste registro, que o sítio
deste INRC historicamente abarcou condições para que o Cavalo-Marinho existisse por
diversas gerações desde a época da escravidão. A realização deste brinquedo, como as
narrativas de seus brincadores contam, acontecia dentro dos engenhos, em horários noturnos,
e, sobretudo, reunia os moradores dos mesmos ou das terras vizinhas. Relacionando geografia
e a realização do Cavalo-Marinho, este demanda espaços “fixos” e planos para seu
desenvolvimento. Não se trata de um cortejo, mas de uma forma de expressão mais próxima a
um “teatro”, que encontra suas raízes na vida cotidiana dos engenhos. Conta-nos Mestre
Inácio Lucindo que antigamente as brincadeiras aconteciam, na maioria das vezes, em locais
com chão de terra, ou “pera” (corruptela de poeira) na pronúncia dos brincadores. Com o
processo de urbanização das cidades, algumas das ruas onde aconteciam as brincadeiras foram
“calçadas”, sendo que, atualmente, a maioria das brincadeiras acontece em locais com chão de
cimento ou de paralelepípedos. Segundo os relatos de brincadores, este fato desencadeou
inúmeras mudanças na execução da dança do Cavalo-Marinho, assim como na apresentação
de determinadas partes em que os brincadores têm de rolar ou cair no chão.
Quanto aos atores sociais da brincadeira, é importante destacar que a população de
trabalhadores destes engenhos era composta por escravos, africanos ou descendentes, índios e
livres. As referências culturais, portanto, de etnias variadas, trazem-nos subsídios para
identificarmos historicamente as “origens” dos bens culturais do Cavalo-Marinho.
Registramos, por exemplo, o Caboclo de Arubá com influência da Jurema, religião indígena;
as figuras dos negros Mateus, Catirina, Bastião e Caroca com trejeitos e falas, bem como o
uso da cara pintada de preto, próximas à cultura africana e/ou escrava (isso sem contar o uso
das máscaras, que pode ser de influência portuguesa ou africana). Todos estes elementos
culturais estão, certamente, ligados aos atores sociais, de ontem e de hoje, que foram
constituindo o Cavalo-Marinho ao longo dos anos. Estes atores eram os trabalhadores rurais
da estrutura socioeconômica acima historicizada.

Me criei na vida do canavial, na palha de cana, engenho bangüê, na minha cultura,


dos trabalhadores do bananal, dos canavial, onde tinha carreiro, onde tinha
pastorador de boi (...) passei a minha vida vivida, ela sendo vivida na vida de
alguém. Eu fui portador de senhor de engenho, de portador de patroa, de ama de
cozinha, outro colega que trabalhava comigo, pastorava boi comigo. Eu com 8 anos
de idade pastorava. Eu quando tinha 9 anos de idade, passei a semana pastorando o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 32

Boi e chegou no sábado eu perguntei: Pai, posso ir no Cavalo-Marinho? Pode. Ele


gostava de Cavalo-Marinho. No engenho São Bento. Daí eu saí e cheguei lá já tava
brincando o Cavalo-Marinho. Já tocando a rebeca. Era o Cavalo-Marinho de Mestre
João Pedro. Daí eu cheguei perto do banco e achei muito bonito aquelas coisas. Aí
eu olhando e arreparando e daí eu ficava arrepiado, dava uma frieza no coipo. Daí eu
ficava arrepiado, como agonia por dentro do coipo, e com uma vontade de que se
alguém dizer pra brincar, eu brincava. (Mestre Inácio Lucindo em entrevista
concedida a este INRC.)

Existiam diferenças entre as zonas e dentro de uma mesma zona da mata em


Pernambuco. Iam desde a postura econômica dos dirigentes e proprietários, quanto à
produção de algodão e açúcar, à quantidade de livres e escravos, ao clima, à maquinaria, ao
transporte e à produção dos gêneros de consumo. Muitas possibilidades de análise podem ser
exploradas a partir destas diferenças; uma delas é refletir como, diante do processo histórico
de desenvolvimento e decadência da produção açucareira e de fim da escravidão, as relações
de trabalho e as ações dos trabalhadores, escravos e livres, se construíram de forma
peculiarmente local (BRUSANTIN, 2011: 54). Desta perspectiva, definimos as localidades
dentro deste grande sítio.
A reflexão sobre os aspectos culturais, registros orais, relatos e memórias de filhos de
senhores de engenho, relatos de viajantes e estudos de folcloristas descrevem a existência de
folguedos ligados a rituais festivos que eram brincados pelos trabalhadores da cana, tanto na
Mata Sul como na Norte. No entanto, as narrativas, inclusive atuais, revelam que na Zona da
Mata Norte, do século XIX até hoje, os trabalhadores da cana mantiveram manifestações
culturais ligadas ao Boi, mais especificamente o Cavalo-Marinho, e ao culto da Jurema, como
o Maracatu de Baque Solto ou Rural. Ainda que em algumas localidades, como Ipojuca e
Cabo, no passado, ouvia-se falar na brincadeira do Boi pernambucano, é na Zona da Mata
Norte que se registrou o costume de se realizar os folguedos do Cavalo-Marinho e do
Maracatu Rural, entre outros, típicos também dessa região.
Através dos relatos de alguns ex-moradores de engenhos de Nazareth, dos relatos orais
colhidos em pesquisas de campo, da bibliografia sobre o tema e dos registros documentais da
década de 70 do século XIX, podemos constatar que, durante os séculos XIX e XX, os
escravos e libertos cotidianamente se reuniam e realizavam festas e rituais ressignificando a
realidade. Em suas memórias, Petronilo Pedrosa relatou que, em alguns engenhos, se
celebrava festivamente o início da moagem. Este momento denominava-se a botada, festa
mais aristocrática para a qual eram convidados o vigário da freguesia que oficiava a missa e a
bênção do engenho; o juiz de direito; o delegado de polícia e outras pessoas de destaque da
cidade próxima, além de parentes e correligionários políticos. Depois da cerimônia religiosa,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 33

dava-se início à moagem, cabendo a cada autoridade presente jogar uma cana na moenda. No
fim da moagem celebrava-se a pejada, festa mais popular, porque se destinava mais aos
trabalhadores9 (PEDROSA, 1977: 47).
Terminada a moagem, limpava-se o engenho, retirando-se todo olho de cana que
ficasse, varrendo-se e às vezes aguando-se, para diminuir a poeira. Durante toda a noite os
trabalhadores se divertiam, brincando de Cavalo-Marinho, coco e Bumba meu Boi. Havia a
distribuição de bolacha e aguardente. O feitor e o vigia estavam presentes para evitar excesso
de bebida e brigas. O senhor de engenho comparecia com a família por algumas horas,
prestigiando a festa (PEDROSA, 1977: 76).
Nesses relatos percebemos não só a existência do Cavalo-Marinho acontecendo desde o
século XIX, passando pelo XX e chegando no XXI, mas também a realização deste dentro do
processo produtivo e de fabrico da cana-de-açúcar, em outras palavras, como parte também
das posturas de proprietários e trabalhadores diante do processo de produção de açúcar e suas
relações sociais. O Cavalo-Marinho como cultura viva e ponto de ramificação para entender o
mundo do trabalho e suas conexões com os significados criados e recriados pelos
trabalhadores da cana da Mata Norte (BRUSANTIN, 2011: 64).

2.1.2 Os Cavalos-Marinhos e as localidades

Além do critério histórico e cultural utilizado para a divisão do sítio e das localidades,
existem características próprias de cada grupo que trazem especificações dignas de
valorização e ênfase. Vale ressaltar que cada grupo traz sua especificidade; os brincadores
costumam dizer que nenhum Cavalo-Marinho é igual ao outro: nem melhor, nem pior.
Existem, todavia, determinadas linhagens, não muito bem definidas por seus atores, que
proporcionaram características culturais para os grupos de Cavalo-Marinho e que podemos
dividir em 3 (três) localidades. Identificamos os seguintes Cavalos-Marinhos ativos nas
respectivas localidades:

9
Realizava-se durante a noite, na moita do engenho, edifício de grande proporção que consistia numa área
coberta, onde ficava depositada a cana vinda do campo enquanto aguardava a hora de ser levada à moenda para
ser esmagada.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 34

Localidade Município/Distrito Cavalo-Marinho Mestre/Responsável


Cavalo-Marinho
LOCALIDADE 1 Camutanga (PE) Mestre Inácio Lucindo
Estrela do Oriente
Extremo Norte e
limítrofes Cavalo-Marinho Boi
Pedra de Fogo (PB) Mestre Araújo
de Ouro
Cavalo-Marinho
Condado (PE) Mestre Biu Alexandre
Estrela de Ouro
Cavalo-Marinho
Condado (PE) Mestre Antônio Telles
Estrela Brilhante
Cavalo-Marinho Boi
Condado (PE) Luiz Paixão
Brasileiro
LOCALIDADE 2
Aliança (PE) – Chã de Cavalo-Marinho Boi
Norte-Centro e Mestre Grimário
Esconsio Pintado
Paulista
Aliança (PE) – Chã de Cavalo-Marinho do
Mestre Mariano Telles
Camará Mestre Batista
Paulista (PE) - Cidade Cavalo-Marinho Boi Mestre Salustiano
Tabajara Matuto Pedro Salustiano
Cavalo-Marinho Boi
Araçoiaba (PE) Mestre Aicão
Coroado
Cavalo-Marinho Tira-
Glória do Goitá (PE) Mestre Zé de Bibi
Teima
LOCALIDADE 3 Cavalo-Marinho Boi
Lagoa de Itaenga (PE) Mestre Borges Lucas
Sul-Oeste Teimoso
Cavalo-Marinho Boi
Feira Nova (PE) Mestre Pisica
Ventania

Quadro 1 - Cavalo-Marinho ativo por localidade


Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 35

Mapa 2 - Localidade 1 - Extremo Norte e Limítrofes

Mapa 3 - Localidade 2 - Norte-Centro e Paulista


Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 36

Mapa 4 - Localidade 3 - Sul-Oeste

Entre estas localidades podemos considerar dois grandes conjuntos: o dos Cavalos-
Marinhos sem bombo (Localidade 1 – Extremo Norte e limítrofes; e Localidade 2– Norte-
Centro e Paulista) e o dos com bombo (Localidade 3– Sul-Oeste).
A narrativa contada também difere, e, consequentemente, suas figuras também. Nas
pesquisas de campo realizadas neste INRC observamos que os brincadores e mestres dos
Cavalos-Marinhos das localidade 1 e 2, em muitos casos, não conheciam as brincadeiras da
Localidade 3. Em cada localidade verificamos que os mestres e brincadores seguiam
linhagens diferentes, ainda que ocorressem cruzamentos entre as diversas correntes. Por
exemplo, na Localidade 1– Extremo Norte e limítrofes, um grande mestre de referência era
Mestre Duda Bilau (última residência, Itambé [PE]), este, todavia, também influenciou alguns
grupos da Localidade 2– Norte-Centro e Paulista, mas mantinha muito mais contato e trazia
sua experiência e conhecimento para os Cavalos-Marinhos da Localidade 1. Para estes
Cavalos-Marinhos fixados nos municípios de Pedra de Fogo (PE) e Camutanga (PE),
observamos um perfil de brincar semelhante, com reminiscências tradicionais, “um jeito
antigo de se brincar”, causado pela presença significativa de pessoas idosas. A música das
brincadeiras desta localidade também é mais cadenciada, um pouco mais lenta do que as
brincadeiras da Localidade 2, que traz a mesma formação instrumental. Segundo relatos do
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 37

Mestre Inácio Lucindo, do Cavalo-Marinho Estrela do Oriente (Camutanga [PE]), seu


brinquedo segue um estilo antigo, um modo de brincar Cavalo-Marinho que existia antes das
mudanças implementadas pelo Mestre Batista (mestre referência da Localidade 2). O
andamento da música era mais lento, as figuras mais versadas e menos violentas. Até o ano
2000, o Estrela do Oriente não praticava o “magui” em sua brincadeira. Algumas figuras,
como a “Véia do Bambu”, também não existiam em sua brincadeira. Nos últimos anos, em
consequência do falecimento de seus brincadores mais antigos (Zé Pimenta, que, além de
botar figuras, atuava como toadeiro) e pelo fato de não haver novos brincadores com intenção
de levar adiante este modo de brincar, Inácio começou a implementar mudanças em seu
brinquedo. Atualmente, o brinquedo de seu Inácio traz em seu banco tocadores e brincadores
do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro (Condado [PE]) da Localidade 2, assim, muitas
características antigas estão se modificando e/ou perdendo.
Os brinquedos da Localidade 2: Norte-Centro e Paulista seguem, principalmente, as
influências vindas de três grandes mestres referenciais para o jeito de brincar, tocar e botar
figuras: Mestre Salustiano, Mestre Preá e Mestre Batista. Mestre Salustiano foi um mestre
conhecido por muitos. Manteve contato com quase todos os grupos de Cavalos-Marinhos
atualmente existentes. Alguns menos, outros mais, mas a grande maioria, em algum
momento, teve contato com o mestre e/ou brincou em seu terreiro Casa da Rabeca, na Cidade
Tabajara (PE). Muitos brincadores dos brinquedos da Localidade 2, trazem no seu jeito de
brincar ensinamentos de Mestre Salustiano. Muitas características de passos dentro do magui
são traços marcantes do brinquedo Boi Matuto da família Salustiano. A conhecida “rasteira”
ou os “chutes” são bem típicos deste brinquedo. Mestre Salustiano e sua família tornaram-se
centro de referência para a divulgação do brinquedo do Cavalo-Marinho, construindo uma
“ponte” entre a Zona da Mata e a capital, Recife. Com residência fixa na Cidade Tabajara, em
Paulista (PE), a família Salustiano, hoje herdeiros de Mestre Salustiano, proporciona uma
janela com maior visibilidade para os brinquedos do Cavalo-Marinho. Tradicionalmente,
realiza-se o Encontro dos Cavalos-Marinhos na Casa da Rabeca, e esta celebração faz parte da
vida dos brincadores da Zona da Mata, influenciando-os em seu processo de existência. Desde
os tempos remotos, Salustiano promovia transformações na vida dos brincadores, além de
ditar caminhos e rumos para a sobrevida dos brinquedos.
Salustiano, antes de morar na cidade de Paulista (PE), viveu muitos anos na Zona da
Mata Norte de Pernambuco e, nesta região, a grande referência no modo de brincar Cavalo-
Marinho foi a do Mestre Batista. Muitas performances, jeito de tocar, músicas, toadas e loas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 38

tiveram sua divulgação e transformação pelas mãos e mente de Batista. Seu Cavalo-Marinho
com sede em Chã de Camará, em Aliança (PE), foi assistido e brincado por vários mestres e
brincadores da região, e é justamente nesta vivência que se aprendeu muito sobre o Cavalo-
Marinho. Segundo relatos de Mestre Mariano Telles, atual mestre do Cavalo-Marinho de
Mestre Batista, Batista herdou de sua mãe, Joana Batista Dias, o apelido que o acompanhou
por toda vida. Seu nome de registro era Severino Lourenço da Silva, nasceu em Chã de
Camará, município de Aliança (PE), em 06 de junho de 1932. Faleceu em 28 de agosto de
1991, aos 59 anos.
No depoimento obtido de José Lourenço Batista (filho do Mestre Batista e atual dono
do Cavalo-Marinho), este relata que, da relação intensa com a brincadeira já existente no sítio
Chã de Camará, o menino Batista, em 1945, aos 13 anos de idade, já era mestre do Cavalo-
Marinho da comunidade. Apesar das pesquisas já realizadas, não há, até o momento, um
registro preciso quanto à data em que Batista fundou o brinquedo. Existem, porém, duas
indicações sobre o assunto, o Mestre Mariano Teles aponta que Batista fundou o brinquedo
em 1956. Por outro lado, José Lourenço Batista analisa a trajetória de vida de seu pai e indica
que o brinquedo foi criado em 1950. Contudo, independente destas controvérsias, o que se
sabe é que o brinquedo formado por Batista tornou-se uma referência para outros mestres e/ou
brincadores da região. Os brincadores que tiveram a oportunidade de conviver com ele
contam que possuía um valioso conhecimento sobre a tradição cultural do Cavalo-Marinho.
Mestre Mariano Teles, em seu depoimento, relata que começou a brincar no Cavalo-Marinho
do Mestre Batista em 1969, aos 27 anos, e dele recebeu muitos conhecimentos sobre a
brincadeira. Outro depoimento importante é o de José Lourenço Batista, que vem se
dedicando a preservar a memória de seu pai, bem como assumindo a coordenação do Cavalo-
Marinho e buscando prover recursos para a manutenção da sede.
A casa onde residiu o mestre Batista e sua família é um marco importante para a
identidade cultural do sítio Chã de Camará. Segundo a história narrada por José Lourenço, a
edificação já existia quando a família do Mestre Batista chegou ao povoado, em 1930, e foi
nesta casa em que ele nasceu, cresceu e, posteriormente, constituiu sua própria família e a
manteve, assim como abrigou os seus brinquedos, o Cavalo-Marinho e o Maracatu de Baque
Solto. Hoje, no mesmo local, existe o Ponto de Cultura Estrela de Ouro, que promove, com
visibilidade nacional, diversos eventos culturais e de valorização da cultura popular.
O terreiro da casa sempre foi um espaço aberto para a realização das atividades do
Cavalo-Marinho e as sambadas do Maracatu. Considerado um verdadeiro celeiro cultural de
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 39

tradição, de onde se formaram importantes brincadores de Cavalo-Marinho, como o lendário


rabequeiro Zé Aive (José Alves da Silva), cuja história foi registrada pelo músico Siba Veloso
em seu trabalho de conclusão da graduação em música (CAC/Ufpe). Na monografia registra-
se que Zé Aive foi um rabequeiro importante para a história deste Cavalo-Marinho, muito
admirado por sua destreza ao tocar o instrumento. Foi Zé Aive quem trouxe o seu primo Luís
Paixão, também um exímio rabequeiro, para participar do Cavalo-Marinho do Mestre Batista
(OLIVEIRA, 1993: 13-14). As influências, portanto, de Mestre Batista, de seus tocadores e
brincadores foram determinantes para a herança cultural e aprendizagem dos brincadores de
Cavalo-Marinho da Localidade 2.
Mestre Preá, da cidade de Goiana (PE), também foi uma referência para os brincadores
da Localidade 2. Muitos brincadores e mestres contam que brincavam em seu brinquedo,
costumeiramente realizado na rua Timbaúba, em Goiana(PE). Mestre Preá se coloca como um
dos brincadores antigos da Zona da Mata e que manteve seu Cavalo-Marinho vivo por vários
anos. É um sujeito interessante porque sua história proporciona um cruzamento com os
mestres das localidades 1 e 2. Alguns mestres, como seu Araújo (Boi de Ouro, de Pedras de
Fogo [PB]) e Inácio Lucindo (Estrela do Oriente, de Camutanga [PE]) fazem referência ao
grande conhecimento da brincadeira que Mestre Preá possuía, inclusive, a cadência da música
de seu brinquedo também era mais lenta do que a maioria dos brinquedos da Localidade 2. Ao
mesmo tempo, mestres como Biu Alexandre e o contra-mestre Aguinaldo do Cavalo-Marinho
Estrela de Ouro de Condado (PE) – Localidade 2, conviveram com Preá e seu brinquedo.
Mestre Biu Alexandre conta que brincou muito com ele na rua Timbaúba.
Muitos cruzamentos existiram, e existem, entre os brinquedos da Localidade 1: Extremo
Norte e limítrofes e Localidade 2: Norte-Centro e Paulista. Contudo, a sua geografia histórica
e suas referências culturais, bem como as especificidades dos seus brinquedos, trazem-nos
subsídios pertinentes para a separação das duas localidades. Quanto à Localidade 3: Sul-
Oeste, as referências históricas e culturais diferem das outras localidades. Por conseguinte,
notamos que os brinquedos desta localidade possuem diferenças mais específicas (notaremos
estas diferenças nos itens a seguir). Nesta localidade, Mestre Pisica (João Laurentino da Silva)
e Zé de Bibi (José Evangelista de Carvalho) citam Mestre José Honório como um grande
mestre de referência (década de 60 do século XX). Este tinha um Cavalo-Marinho e era bem
reconhecido nos municípios de Glória de Goitá, Lagoa de Itaenga e Feira Nova (Localidade
3). Todos os grupos identificados nesta localidade, Cavalo-Marinho Tira-Teima (Mestre Zé de
Bibi), Cavalo-Marinho Boi Ventania (Mestre Pisica) e Cavalo-Marinho Boi Teimoso (Mestre
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 40

Borges Lucas) trazem dentro da brincadeira a mesma narrativa, formação instrumental e


linhagens tradicionais. Geograficamente, suas referências históricas também foram diferentes
das localidade 1 e 2. O sítio Malícia, no município de Glória de Goitá (PE) e de propriedade
do Mestre Zé de Bibi, é tradicionalmente um ponto de referência para o Cavalo-Marinho e
outras manifestações da localidade. Muitos brincadores vivenciaram neste espaço o ato de
brincar e aprenderam sobre a brincadeira. O próprio Mestre Zé de Bibi narra que a construção
da sua vida no sítio Maliça sempre foi ligada ao brinquedo. Segundo ele, assim que construiu
sua casa, já construiu a sede do brinquedo. Podemos considerar Mestre Zé de Bibi e seu
terreiro como o grande centro propulsor de continuidade do Cavalo-Marinho na região. Com
mais de 50 anos de dedicação à difusão e à continuidade do brinquedo, Mestre Zé de Bibi
ganhou o Prêmio Mestres da Cultura Popular, do Ministério da Cultura, em 2007, com cujos
recursos iniciou o primeiro e único Museu de Cavalo-Marinho. Em 2009, recebeu o Prêmio
Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Iphan), na categoria Salvaguarda de Bens de Natureza
Imaterial, e o sítio, terra em herança do seu pai, foi reconhecido como Sítio Histórico de
Cavalo-Marinho. Os prêmios contribuíram para dar visibilidade ao grupo, e o Boi Tira-Teima
constantemente está ganhando espaço e apoio do governo do Estado e da prefeitura para
realizar apresentações em vários festivais (Festival Nação Cultural, Festival de Inverno de
Garanhuns, entre outros). Consideramos, desse modo, este círculo de atores sociais como
compositor de uma linhagem específica – passada, presente e futura –, territorializada na
Localidade 3: Sul-Oeste.
Por fim, com base em todas estas considerações históricas, sociais e culturais que
conectam os Cavalos-Marinhos do estado de Pernambuco e cidade limítrofe Pedras de Fogo
(PB), optamos por não identificar neste INRC os possíveis outros grupos de Cavalos-
Marinhos do estado da Paraíba. Além do argumento de que optamos pela identificação de
uma área com fortes traços históricos e sociais comuns, verificamos, através de vídeos,
pesquisas acadêmicas e conversas com brincadores e pesquisadores, que a brincadeira do
Cavalo-Marinho da Paraíba trata-se de uma manifestação cultural que carrega outros aspectos
culturais e outras linhagens de referência, ainda que esteja inserida numa cultura tradicional
nordestina comum (Bumba meu Boi, Reisado, Boi de Reis).
Analisando os estudos de Luís Ricardo da Silva Queiroz (2007) e Gustavo Vilar (2001),
os registros fotográficos e audiovisuais e as considerações informais de pesquisadores que
conhecem as duas brincadeiras, conclui-se que o Cavalo-Marinho paraibano, em concentração
na mata sul do estado, principalmente na cidade de Bayeux, se trata de uma manifestação
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 41

cultural com feições e musicalidade distintas da forma de expressão realizada em


Pernambuco. A composição das roupas, das narrativas, do enredo, dos personagens, da dança
e dos instrumentos musicais é diferente da encontrada nos Cavalos-Marinhos pernambucanos
e cidades limítrofes. Os brinquedos paraibanos não possuem, portanto, características
estruturais comuns nem processos histórico-culturais semelhantes, ou entrecruzados, com os
brinquedos pernambucanos. Não desconsideramos a possibilidade de uma variação dentro do
mesmo universo, todavia, por questões práticas (de tempo e recursos financeiros), não seria
possível realizar sua identificação com semelhante qualidade. Existem, portanto, diferenças
formais e intrínsecas ao brinquedo do estado da Paraíba que o configura como uma Forma de
Expressão diferente do bem cultural identificado neste INRC. Pontuamos, todavia, a demanda
para uma pesquisa mais detalhada que o tenha como foco.
Como cidade representante da Paraíba, identificamos neste INRC Pedras de Fogo (PB),
que faz limite com Itambé (PE) e onde reside o Mestre Araújo, rabequeiro e dono do Cavalo-
Marinho Boi de Ouro (apesar de residir na Paraíba, seu Araújo brinca mais na cidade
pernambucana de Itambé). Conquanto, vale pontuar a existência e a importância de se incluir
na política pública de valorização patrimonial os outros grupos de Cavalo-Marinho paraibanos
aqui não inventariados.

2.2 IDENTIDADES ENTRE OS CAVALOS-MARINHOS DE PERNAMBUCO E CIDADES


LIMÍTROFES

Neste processo de inventário ampliamos a perspectiva do perfil dos Cavalos-Marinhos


de Pernambuco. Realizamos, juntamente com iniciativas da Fundarpe, encontros com
brincadores e mestres de duas regiões pernambucanas que antes não se conheciam. Os grupos
de Cavalos-Marinho dos mestres Zé de Bibi (Glória de Goitá [PE]), Borges Lucas (Lagoa de
Itaenga [PE]) e Pisica (Feira Nova [PE]) – Localidade Sul-Oeste – utilizam em seu banco o
bombo, o mineiro (ou ganzá) e a rabeca. De forma diferente, os Cavalos-Marinhos das
localidades Norte-Centro e Paulista e Extremo Norte e limítrofes, trazem, em sua formação, a
rabeca, o pandeiro, a bage (às vezes duas) e o ganzá (ou mineiro). Além da formação
instrumental, a música é reproduzida diferentemente, dependendo da localidade. Não só nos
aspectos estritamente musicais, mas também outros aspectos são diferentes: loas, toadas,
figuras, narrativas (enredo), outros. Há, contudo, muitas semelhanças estruturais da brincadeira
que criam identidades culturais e artísticas entre todos os grupos. O brinquedo não se constitui
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 42

como um ou dois elementos artístico-culturais, mas, sim, vários, que dialogam e criam laços de
dependência constitutiva. No vocabulário antropológico, poderíamos colocar esta compreensão
como ethos, porém, optamos neste INRC pela palavra que eles mesmos utilizam:
“fundamento”. Existe, assim, um “fundamento” comum em todos estes grupos e na sua ação
enquanto sujeitos produtores, reprodutores de bens culturais, significados e história e, por
conseguinte, enquanto legitimadores do brinquedo do Cavalo-Marinho.
Para além das caracterizações folclóricas ou acadêmicas que buscam definir o que é
Bumba meu Boi e o que é Cavalo-Marinho, a legitimação dada pelos atores sociais envolvidos
com o bem cultural do brinquedo em questão é o mais importante. A legitimação se faz em
diversos níveis e esferas. O fato de todos os grupos possuírem estruturas artístico-culturais e
históricas comuns é definidor para a busca da identidade do brinquedo e seus brincadores, bem
como para a justificativa do registro do Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural Imaterial.
Caracterizando os elementos fundamentais verificados em todos os grupos de Cavalos-
Marinho, destacamo-nos em 2 (duas) esferas: cultural-artística e sócio-histórica.

2.2.1Descrição pormenorizada dos aspectos constitutivos do Bem

a) Elementos culturais-artísticos:

1) Estrutura espacial:
A brincadeira se realiza em estrutura circular (semicírculo), com as “cenas”
acontecendo de frente para o banco dos músicos. As figuras entram na “roda do samba”
pelo lado oposto do banco dos músicos. Salvo na “perfomance” de alguns Mateus e/ou
Bastiões que entram por de trás do banco dos músicos ou por baixo deste.

2) Estrutura espacial dos músicos:


Estes sempre ficam sentados em um banco (ou conjunto enfileirado de cadeiras) durante
toda a realização da brincadeira. Apenas em dois momentos os músicos se levantam,
sendo uma no final da brincadeira. O outro momento varia conforme as localidades.
Nos brinquedos das localidades Extremo Norte e limítrofes e Norte-Centro e Paulista o
banco dos músicos se levantam na denominada “Estrela”, início do “Baile dos Aico”
(Arcos) ou Galantaria. Na brincadeira dos grupos da Localidade Sul-Oeste esta
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 43

dinâmica ocorre quando chega a figura do Cavalo junto com o Capitão Marinho ou
Mestre Cavaleiro (Cavalo-Marinho).

Figura 2 - Estrutura em semicírculo e posicionamento do Banco - Cavalo-Marinho Estrela Brilhante de Condado


(em Cidade Tabajara, Casa da Rabeca, 2011)

Figura 3 - Cordões – Dança dos Aicos - Cavalo-Marinho Boi Brasileiro de Condado (em Condado, Conexão
Cavalo-Marinho, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 44

3) Presença de cordões de galantes e/ou baianas:


É parte integrante da estrutura do brinquedo a presença de dois cordões compostos por
galantes, pastorinha, dama e arlequim nas localidades Extremo Norte e limítrofes e
Norte-Centro e Paulista, na Localidade Sul-Oeste, por sua vez, os cordões são formados
com menos participantes, mas com galantes e baianas. Nas 2 (duas) variações ocorre o
momento do Baile.

4) Presença da figura do negro em negociação com a figura do Capitão:


Dentro da brincadeira do Cavalo-Marinho, em todas as localidades, ocorre no início da
apresentação a chegada das figuras dos negros Mateus e Bastião ou Caroca e da negra
Catirina. Estes possuem uma estrutura de representação cênica semelhante, tendo como
conteúdo narrativo a negociação de trabalho com a figura do Capitão. Esta “cena”
inicial da chegada das figuras dos negros em todos os Cavalos-Marinhos trata-se de uma
(re)significação da realidade vivida pelos seus atores sociais.

5) Presença da figura do Capitão:


Uma das figuras principais da brincadeira do Cavalo-Marinho está presente em todos os
grupos e é sempre portador do Apito, artefato que comanda a brincadeira, sinalizando o
começo ou o término “das partes” (partes significariam cenas e cortes ou paradas dentro
das cenas/danças/músicas) da realização do folguedo.

6) Presença da figura do Cavalo e do Capitão Marinho (denominação dada pelos


folcloristas como Cavalo-Marinho):
Em todos os brinquedos de Cavalo-Marinho a figura do Cavalo com seu mestre
Cavaleiro e/ou Capitão Marinho está presente e é parte constituinte do enredo fixo da
brincadeira. Traz variações “cênicas” conforme o grupo, em alguns casos, a figura entra
e sai da “cena”, em outros, especialmente os Cavalos-Marinhos da Localidade Oeste-
Sul, após sua entrada e performance, o Cavalo e seu Capitão se mantêm em “cena” até o
fim da brincadeira. É importante destacar que os brincadores e mestres, geralmente, não
se referem a esta figura como Cavalo-Marinho, mas sim como “figura do Cavalo” e,
com relação ao homem que o acompanha, a denominação é Mestre Cavaleiro e/ou
Capitão Marinho. Esta figura, no entanto, é a mesma que os folcloristas fazem
referência desde o início do século XX. Os relatos de Pereira da Costa, por exemplo,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 45

trazem versos semelhantes aos que são cantados nos Cavalos-Marinhos na atualidade
(PEREIRA DA COSTA, 1974).

Figura 4 -Capitão e Caroca – Cavalo-Marinho Boi Ventania (Feira Nova, 2012)

Figura 5 - Figura do Cavalo – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (em Itambé, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 46

7) Presença do Boi no final da brincadeira:


Em todas as brincadeiras do Cavalo-Marinho existe a perfomance do Boi, com versos
próprios e com encenações que perpassam a morte e sua ressurreição. Tradicionalmente,
os brincadores mais antigos dizem que o Boi apenas saía com o amanhecer, mas hoje
em dia, com a duração da brincadeira reduzida, isso raramente ocorre. O Boi interage
com Mateus e Bastião, ou Caroca, bem como com as pessoas que estão assistindo,
realizando certa “bagunça” e provocando risos de todos. Em algumas brincadeiras,
como, por exemplo, no Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) – Localidade
Norte-Centro e Paulista – o Boi termina sua performance derrubando o Banco dos
Músicos, isso representaria o fechamento da brincadeira. Esta, no entanto, continua com
os músicos em pé e se dirigindo para a Tóda (camarim improvisado) ao som de uma
série de músicas próximas ao gênero do coco. Neste momento também se inicia uma
série de Vivas comandados pelo Mestre com a resposta, em repetição, de todos os
brincadores e público em geral. Por exemplo:
Mestre: - Viva o dono da casa, senhor!
Todos: - Viva!!

Figura 6 -Boi e Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (em Cidade
Tabajara, Casa da Rabeca, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 47

8) Presença de figuras e a ocorrência de uma ordem inicial fixa de acontecimentos:


Em todas as localidades, as brincadeiras do Cavalo-Marinho trazem uma narrativa e,
nesta, uma sequência de figuras que inicialmente se dá de forma fixa. Esta sequência de
entrada das figuras varia conforme o brinquedo, marcando as especificidades dos
grupos, porém, cada grupo busca, quase sempre, em apresentações normais do
brinquedo, quando não se tem o controle da duração da brincadeira (em alguns contratos
de apresentações, o tempo de duração da brincadeira é estipulado em cerca de 60
minutos, nestes casos, os brincadores e mestres têm que reduzir a apresentação e retirar
ou encurtar as sequências fixas), manter o repertório de acontecimentos que traz a lógica
da brincadeira. Por exemplo, o Boi é sempre a última figura. O magui (mergulhão)
sempre inicia os brinquedos (que fazem esta parte) após as toadas de alevante e de boa
noite e as toadas soltas. Em grande parte dos Cavalos-Marinhos das localidades Norte-
Centro e Paulista e do Extremo Norte e limítrofes a primeira figura que se apresenta é o
Ambrósio. Em alguns brinquedos, a primeira figura é o Mateus ou o Caroca. Existem,
portanto, sequências fixas em cada brinquedo, cada um possui sua ordem, que é
rigorosamente respeitada, uma vez que, para seus brincadores e mestres, não se constrói
sentido se não seguir a ordem tradicionalmente estabelecida nos variados brinquedos.
Vale destacar que, dentro do “enredo” principal, existem pequenas sequências dentro do
brinquedo que também são respeitadas. Trata-se de “cenas” que incluem várias figuras
fixas.

Figura 7 -Figura do Empareado – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (em Cidade Tabajara, Casa
da Rabeca, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 48

Figura 8 -Figura do Liberá – Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima de Glória de Goitá (no Sítio Malícia, Glória do
Goitá, 2012)

9) Existência de uma narrativa que envolve temas como o trabalho, a festa e a


louvação ao(s) Santo(s) Rei(s) do Oriente:
É comum, em todos os brinquedos do Cavalo-Marinho, uma narrativa que o brinquedo
conta que tem como tema principal a homenagem para o(s) Santo(s) Rei(s) do Oriente e
como subtemas a negociação do trabalho entre o Capitão e os negros Mateus, Bastião,
Catirina ou Caroca e o acontecimento de uma festa ou festival, como se fala nos grupos
da Localidade Sul-Oeste. É interessante notar que cada grupo traz esta narrativa de
forma peculiar, brinca com estes temas trazendo suas especificidades cênicas e
performáticas, no entanto, as loas e toadas utilizadas nas brincadeiras das localidades do
Extremo Norte e limítrofes e Norte-Centro e Paulista são semelhantes (o conteúdo é
praticamente igual, as diferenças ocorrem justamente nas perfomances e nos
improvisos). Na localidade Sul-Oeste, as brincadeiras trazem uma narrativa diferente
das outras localidades, mas com representações semelhantes (podemos observar figuras
diferentes, mas com conteúdos representativos semelhantes e/ou equivalentes). Entre os
Cavalos-Marinhos desta localidade, as loas e toadas são semelhantes, variando as
performances.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 49

10) Utilização de puias (piadas de duplo sentido):


É parte constituinte da brincadeira do Cavalo-Marinho, e está presente em todos os
grupos, a utilização pelas figuras de piadas com conotações sexuais e do universo
masculino. Chamadas de puias pelos atores sociais do universo do brinquedo, estas
piadas dão o tom dos inúmeros diálogos das figuras que brincam em “cena”. Nessas não
são utilizadas palavras claras e de conhecimento das pessoas de fora deste universo. Em
sua maioria trata-se de “piadas” de duplo sentido, com metáforas e/ou vocabulário
incognoscível para pessoas de fora da comunidade. Existem puias de improvisos e
outras que já fazem parte das falas das figuras. O divertimento é garantido quando se
desfruta da puia para arrancar risos da plateia, principalmente local, que entende a
piada, e dos próprios brincadores (mestre, tocadores, figureiros), que se divertem muito
durante a realização do brinquedo. Estas piadas apelativas divertem, principalmente, o
público e brincadores do sexo masculino, bem como são aplicadas por brincadores do
mesmo sexo. É quase impossível encontrar mulheres figureiras utilizando as puias em
suas falas (isso também acontece nas apresentações realizadas por crianças. Nestas, as
puias mais apelativas não ocorrem). A presença da puia é uma das principais
características que configuram a brincadeira do Cavalo-Marinho como um divertimento
historicamente exclusivo dos homens, apesar de, na atualidade, observarmos a presença
de várias mulheres.

11) Definição do Cavalo-Marinho como brincadeira:


Em todos os grupos de Cavalo-Marinho observamos que seus atores sociais denominam
o bem cultural como uma brincadeira. Apesar de afirmarem que existem momentos
diversos como a louvação ao(s) Santo(s) Rei(s) e, em alguns grupos, o ritual que
envolve o Caboclo de Arubá (Orubá) e o Caboclo de Pena, o folguedo ocorre,
tradicionalmente, no ciclo natalino até o dia de Reis e é classificado por seus sujeitos
como brincadeira. Assim sendo, o ato de atuar, dançar, dramatizar, cantar, dizer loas e
outros são abreviados pelo uso do verbo brincar. Em alguns casos, até por influência do
Maracatu de Baque Solto, seus brincadores são considerados sambadores, e seus atos
derivam do verbo sambar. Assim, apesar de menos usual, a brincadeira também pode
ser chamada de samba ou sambada. Estes termos, no entanto, são mais usados
atualmente com relação aos Maracatus de Baque-Solto. Esta nomenclatura também
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 50

pode ser encontrada em documentos históricos datados do século XIX (BRUSANTIN,


2011).

12) Existência de 5 frentes de figuras: os negros, o capitão, a galantaria e as baianas,


os bichos e as figuras com máscaras:
Em todos os Cavalos-Marinhos observamos estas frentes de atuação (é importante notar
que os brincadores e mestres não costumam fazer divisões em frentes ou categorias, nós
as utilizamos em caráter explicativo). Cada um com sua especificidade, a brincadeira,
para acontecer, precisa sempre de um Capitão como apito que promova os diálogos com
as figuras e capitaneie o Banco. É necessária também a presença das figuras dos negros,
estes podem aparecer representados por Mateus, Bastião, Catirina, ou Caroca. As
figuras com máscaras são partes que respaldam o acontecer da brincadeira, são os
“protagonistas do teatro”, e, como dizem os brincadores, todas são importantes. A
galantaria e as baianas (no caso dos brinquedos da Localidade Sul-Oeste) dão sentido ao
baile que ocorre em todas as brincadeiras. Este momento seria o ápice do “enredo”
inicial fixo. Por fim, os bichos sempre estão presentes, em alguns brinquedos mais, em
outros menos, mas em todos eles aparecem. O maior exemplo é o Boi, que está dentro
desta categoria e é fundamental para o término da apresentação. Por último, vale
destacar, mas não como sempre presente em todos os brinquedos, os bonecos
(brincadores com pernas de pau e vestimentas) que tradicionalmente representam a
história do Cavalo-Marinho.

13) Existência na brincadeira do momento da sorte


A sorte (pedir dinheiro para as pessoas) sempre está presente na brincadeira do Cavalo-
Marinho. Algumas figuras como o Mateus, o Bastião, a Catirina, o Caboclo de Arubá, o
Cavalo, as Baianas e outros, são figuras que pedem a sorte ao público com loas e toadas.
Esta prática também se verifica em outros folguedos, como o Bumba meu Boi. Nas
narrativas dos brincadores mais antigos, encontramos a informação de que, em tempos
remotos, quando não se brincava por contratos como atualmente, os brincadores
ganhavam uma soma de dinheiro significativa no momento da sorte. Era mais uma fonte
rentável para eles durante a brincadeira. Atualmente, nas apresentações curtas sob
contrato, a sorte não ocorre. Esta prática acontece nas brincadeiras realizadas em
contextos tradicionais (no terreiro, ou na rua, com longo tempo de duração). Este tipo de
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 51

ocorrência é extremamente costumeira entre as pessoas da comunidade. Podemos


observar que, algumas vezes, certas pessoas do público, logo que se aproximam da roda
do brinquedo, chamam uma das figuras acima citadas e lhe entregam a sorte.

14) Existência do Mestre:


Para compreendermos o Mestre é importante pensar na sua dupla função dentro do
universo da brincadeira do Cavalo-Marinho. Uma se encontra dentro dos brinquedos
das localidades Extremo Norte e limítrofes e Localidade Norte-Centro e Paulista. Nesta,
existe uma função de Mestre dos Aico (Arcos), que é uma figura responsável por cantar
as toadas, dizer loas e “puxar” a galantaria que segura os arcos. Esta é a parte do Dança
dos Aico (Arcos), momento em que ocorre a Estrela, a louvação ao(s) Santo(s) Rei(s) do
Oriente e a Dança do São Gonçalo. Nos Cavalos-Marinhos da Localidade Sul-Oeste, o
Mestre tem a função de Capitão (de modo semelhante ao das outras localidades), de
puxador das toadas e/ou mestre cavaleiro (que vem com o cavalo). Existe, portanto, uma
figura do Mestre na brincadeira e do Mestre que desempenha uma função social,
cultural e histórica legitimada pela comunidade em volta e pertencente ao brinquedo.
Normalmente, cada Cavalo-Marinho tem seu Mestre dentro e fora da brincadeira
(podem ser a mesma pessoa ou não). Dependendo do Cavalo-Marinho, este Mestre
(legitimado socialmente) exerce funções dentro da brincadeira como Mestre (a figura
explicada acima), Capitão, figureiro, toadeiro, rabequeiro (ou rebequista). Observamos,
portanto, que existem duas representatividades de Mestre. Uma dentro do brinquedo,
sendo a figura do Mestre, que pode ser feita pelo Mestre, ou por um contra-mestre, ou
por um brincador (que tenha bom conhecimento da brincadeira) indicado pelo Mestre.
Outra do Mestre enquanto ator social, legitimado pela comunidade. Este, por
conseguinte, é o grande “maestro” da brincadeira, desse modo, um grande conhecedor
que normalmente exerce funções de capitanear e de maestria, como a figura do Capitão
ou a figura do Mestre. Em alguns brinquedos, como o Cavalo-Marinho Boi de Ouro de
Pedra de Fogo (PB) ou o Cavalo-Marinho Estrela Brilhante de Condado (PE), em que o
Mestre é o rabequeiro do brinquedo, ele não exerce a figura de Mestre – puxador dos
Aico. Na maioria dos casos, todavia, o Mestre se mantém com o apito no pescoço,
artefato que é símbolo de controle da brincadeira.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 52

Figura 9 -Mestre Antônio Teles – Cavalo-Marinho Figura 10 -Mestre Biu Alexandre- Cavalo-Marinho
Estrela Brilhante de Condado (PE) Estrela de Ouro de Condado (PE)

Figura 11 -Mestre Zé de Bibi – Cavalo-Marinho Boi Figura 12 -Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho
Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) Estrela do Oriente de Camutanga (PE)

b) Elementos sócio-históricos

1) Existência do Dono do Brinquedo


Em todos os brinquedos verificamos a função social do Dono do Brinquedo. Este não
necessariamente é o Mestre, mas uma pessoa (em sua maioria homem) que é
proprietário dos bens culturais (artefatos, roupas e indumentárias, bichos, alguns
instrumentos musicais) do Cavalo-Marinho e também, geralmente, é em sua casa que se
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 53

guarda este material. Esta função social é interessante porque gera certa hierarquia de
decisões com relação ao brinquedo. Por exemplo, para se fechar um contrato de
apresentação, quem decide é o Dono do Brinquedo, não o Mestre, a não ser que ambos
atores sociais sejam a mesma pessoa. Contudo, com relação à dinâmica da apresentação
em si, quem decide os rumos a tomar é o Mestre, e não o Dono do Brinquedo. É
importante notar que esta função social está presente em todos os Cavalos-Marinhos
pernambucanos, e, em alguns casos, o Mestre e o Dono do brinquedo são a mesma
pessoa, em outros, não. Em todos, é clara a distinção funcional entre Dono e Mestre,
deixando-nos a evidência de que se trata de uma função social específica e
historicamente compreendida pelas comunidades e atores sociais que envolvem os
brinquedos.

2) Momento calendário/anual principal de realização da brincadeira


A brincadeira do Cavalo-Marinho tradicionalmente ocorre no ciclo natalino (dezembro)
que vai até o dia de Reis (dia 6 de janeiro). Todos os brinquedos historicamente
carregam esta data como período costumeiramente de realização da brincadeira. É,
portanto, mais um dos costumes comuns a todos os brinquedos. A realização do
brinquedo, porém, não ocorre exclusivamente nesta época do ano. Em todos os
brinquedos observamos a realização de apresentações em datas festivas, como o dia do
padroeiro da localidade de residência do brinquedo, ou de cidades vizinhas, bem como
em datas comemorativas locais e de familiares dos grupos de Cavalos-Marinhos.
Também se verifica a realização dos brinquedos em eventos organizados pelos órgãos
públicos estaduais. Todos, portanto, possuem semelhanças e identidades em seu
calendário anual de realização da brincadeira.

3) Vivência histórica com o mundo do trabalho rural e/ou da cana-de-açúcar


A economia da cana-de-açúcar marca a história do Brasil, principalmente, o Nordeste.
O Cavalo-Marinho historicamente interagiu diretamente com este universo de trabalho
rural. Seus sujeitos atuais, e passados, são trabalhadores rurais e vivem, ou viveram, do
trabalho advindo das plantações da cana, dos engenhos e das usinas. Podemos
considerar que a história do Cavalo-Marinho está ligada à história social, econômica e
cultural da economia açucareira. Todos os brinquedos e seus atores sociais trazem este
cruzamento histórico. Nas narrativas pessoais, verificamos trajetórias de vidas ligadas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 54

ao mundo rural da cana-de-açúcar, e a própria história de realização dos Cavalos-


Marinhos traz os engenhos como espaços primordiais de acontecimentos. Durante a
brincadeira, as representadas fazem referências às pessoas reais, ou imaginárias,
significativas do cotidiano rural. Temas como a negociação do trabalho e a demarcação
de terras são claramente narrados numa apresentação de Cavalo-Marinho. Por
conseguinte, Cavalo-Marinho e mundo canavieiro fazem parte de um mesmo universo
de significações, transformações e identidades.

4) Referência direta ou indireta ao passado escravista


Além das conexões históricas entre Cavalo-Marinho e a cultura da cana-de-açúcar, é
importante destacar as relações com a escravidão. As narrativas dos brincadores e
mestres mais antigos trazem o nascimento do brinquedo como obra dos escravos, uma
brincadeira do tempo das senzalas. Esta versão não é comum a todos, no entanto, ela
está presente nas narrativas sobre seu surgimento ou nas representações feitas durante a
brincadeira. Como exposto acima, a figura do negro é presença indispensável para que o
brinquedo se realize. Não há a afirmação generalizada de que são negros escravos,
todavia, o importante é destacar que, escravos ou não, ao menos são descendentes.
Como apontado, a documentação histórica comprova que os escravos brincavam o
Cavalo-Marinho no século XIX, ou seja, era uma brincadeira de escravos. Seus
descendentes socioculturais herdaram suas sabedorias culturais. As narrativas de alguns
atores contam esta história, outras não dão ênfase a este passado, contudo, no enredo da
brincadeira, não podemos negar, reproduzem-se, através de diálogos, loas e toadas, as
históricas relações escravistas e toda sua estrutura social racista e preconceituosa. Como
diz a toada da figura do Soldado: - Amarra nego, soldado. Por ordem do delegado! E na
fala do mesmo encontramos expressões enraizadas no tempo escravista como “nego
safado”.

5) Composição social estável


Evidentemente, não devemos respaldar nenhum quadro generalizante sobre o perfil
social dos atores sociais envolvidos com o universo cultural do Cavalo-Marinho, não
obstante, constatamos que, historicamente, existe um perfil social pouco variável no
quadro dos brincadores e mestres do brinquedo em todas as localidades. Diferentemente
de expressões culturais metropolitanas ou outras no interior pernambucano, nos
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 55

brinquedos do Cavalo-Marinho dificilmente encontraremos pessoas de fora do histórico


social das atividades de trabalho da cana ou rural, nascidos, ou residentes, na região da
Zona da Mata ou Agreste pernambucano. Podemos elencar algumas causas para este
perfil social, geralmente, homogêneo. Sem embargo, não alcançaremos seu processo
totalmente, uma vez que existem muitas nuances para reconstruirmos e então chegarmos
a alguma conclusão mais concreta sobre este quadro social. Por outro lado, dois
aspectos são interessantes para destaque. Um condiz com o histórico social rural dos
brincadores, como apontamos acima, e todo o processo de aprendizagem e herança
cultural que proporciona subsídio de conhecimento para a prática da brincadeira.
Ressaltamos que grande parte dos grupos é formada por famílias, portanto, o processo
de transmissão dos saberes é praticamente uma herança familiar de gerações. Levando
em conta que, historicamente, esta região rural não trouxe transformações que
resultassem em ganhos sociais para a classe dos trabalhadores, ou que proporcionassem
quebras significativas nas hierarquias vigentes (BRUSANTIN, 2011), é notável que o
quadro social, bem como seus atores sociais, se mantivesse nas comunidades envolvidas
com o brinquedo. Outro aspecto pertinente é o fator da complexidade da brincadeira.
Como estamos explicando, não é simples definirmos o Cavalo-Marinho, uma vez que se
trata de uma forma de expressão que envolve muitos elementos culturais e artísticos,
entre eles, loas, toadas, diálogos, figuras, danças, bailes, bichos, rituais, louvações etc.
Em alguns grupos, para uma pessoa conseguir ingressar em um brinquedo, é importante
seguir uma hierarquia: começa-se como Arlequim, depois brinca-se como Dama e
depois vira-se Galante. O indivíduo, ao assumir a posição de Galante, depois de alguns
anos de experiência, alcança a posição de primeiro Galante. Depois desta posição é que
se abre para este brincador a possibilidade de se tornar Figureiro ou Mestre dos “Aico”,
ou Capitão (na prática, essas etapas não são severamente seguidas, mas são reafirmadas
nas narrativas dos antigos brincadores). Na parte musical, depende do conhecimento da
pessoa, mas também se inicia com os instrumentos de aprendizagem mais simples,
como a bage e/ou ganzá (mineiro). Não necessariamente ocorre uma hierarquia entre os
tocadores, contudo, o toadeiro é uma pessoa de muito conhecimento sobre a brincadeira
e de experiência junto dela. O Cavalo-Marinho não é uma brincadeira totalmente
fechada, porém, tratando-se, em sua maioria, de grupos familiares, normalmente entra-
se como brincador se a pessoa for da família ou convidada do grupo. Além deste
aspecto social e cultural de participação concebido pela linhagem familiar e/ou convite,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 56

para se brincar no Cavalo-Marinho é necessário um mínimo de aprendizagem que se


conquista com determinado tempo de observação e/ou experiência de prática. Estes
fatores tornam o brinquedo algo, de certa forma, fechado e de difícil transmissão. Por
um lado, este aspecto demonstra a força da sobrevida de um universo cultural rico e
complexo que por gerações se mantém, sobretudo, pela coesão destes grupos sociais
que, entre si, trocaram, por décadas, diversos saberes sobre a arte de brincar Cavalo-
Marinho. Estas considerações, de forma alguma, propõem desconsiderar que o Cavalo-
Marinho sofra influências externas e que tenha sido cenário de transformações sociais
ao longo do processo histórico. A partir destas notas, é importante destacar que este
bem cultural em registro compõe-se como uma brincadeira complexa que tem seu
berço, seu crescimento e maturidade em uma área social, cultural e histórica específica e
que, pelos motivos acima citados, entre outros, se mantém, de modo geral, num padrão
social de prática e transmissão homogêneo, ou, ao menos, que segue por décadas um
determinado padrão sociocultural. Isto nos revela o quão raro é este bem cultural e o
quão delicado, e urgente, é a sua salvaguarda.

6) Relações de negociação com os poderes privados e públicos


Historicamente, os Cavalos-Marinhos carregam processos de negociação com as
autoridades locais. Desde o século XIX, no tempo da escravidão pernambucana, a
historiadora Beatriz Brusantin constatou que os escravos praticavam a brincadeira do
Cavalo-Marinho e que, para a sua realização, os escravos negociavam com seus
senhores e autoridades policiais (BRUSANTIN, 2011). Os antigos brincadores, como
Mestre Biu Alexandre, por exemplo, também contam que, na época dos seus pais, os
mestres, donos dos brinquedos ou brincadores precisavam pedir permissão da polícia
para realizar o Cavalo-Marinho. Atualmente, esta negociação não ocorre pelo motivo da
permissão (como podemos constatar que ocorreu da escravidão até a década de 40 do
século XX), mas sob o amparo dos contratos de apresentação, principalmente, com os
órgãos públicos. Há, portanto, toda uma negociação, geralmente, entre o dono do
brinquedo e/ou mestre, que inclui aspectos sobre valores, tempo e local da apresentação
e transporte dos brincadores. Este processo, contudo, não se dá de forma automática,
constante, respeitando as datas celebrativas e/ou em convergência com a valorização do
brinquedo, bem como, com os interesses dos mestres e brincadores. Na prática, para que
se realize uma apresentação sob contrato é necessário que os atores sociais envolvidos
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 57

com o brinquedo mantenham uma relação de “negociação” com as autoridades públicas


(isso no caso de contratos sem editais). Normalmente, os mestres e/ou donos do
brinquedo que têm boas relações com o prefeito local e/ou secretário da cultura e/ou
turismo conseguem realizar seu brinquedo através de contratos remunerados nas datas
celebrativas da cidade e região. Caso o mestre e/ou dono do brinquedo tenha alguma
rivalidade com o prefeito ou outros da prefeitura, às vezes por uma questão partidária, o
Cavalo-Marinho do respectivo mestre e/ou dono não é atendidos pela prefeitura e acaba
não realizando apresentações na sua localidade. Em alguns casos, como na cidade de
Araçoiaba (PE), onde reside o Mestre Aicão, o Cavalo-Marinho do mesmo ficou sem
brincar durante anos por uma questão político-partidária. Na festa do padroeiro da
cidade, o prefeito de Araçoiaba (PE) contratava o Cavalo-Marinho de outra localidade e
excluía o brinquedo do mestre local. A negociação e a agência entre brincadores de
Cavalo-Marinho e autoridades variam em tipo e proporções, mas sempre estiveram
presente na história do Cavalo-Marinho. Aqui vale destacar que as autoridades alvos da
negociação nem sempre são dos poderes públicos. Outros setores sociais entram nesses
processos relacionais banhados de muita agência. É bom colocar que, nos tempos
remotos, depois da época dos engenhos e usinas, quando senhores e usineiros
distribuíam aguardente e biscoitos para os brincadores, o grande contratante das
brincadeiras era os donos das bancas de bozó. Eles garantiam um “trocado” para o
brinquedo, e este, ao brincar, atraía público para seu jogo. Nesta época do jogo de bozó,
que durou até o início do século XXI (como os brincadores costumam se referir), a outra
fonte de renda para os participantes do brinquedo era a retirada da sorte durante a
brincadeira. Os mestres costumam contar que, nessa época, não se ganhava muito (o
dinheiro se destinava ao mestre e/ou dono do brinquedo, algum músico, geralmente o
rabequeiro, e para Mateus comprar sabão para limpar o rosto), mas se brincava até o sol
raiar. Hoje em dia, continuam, comparativamente e proporcionalmente, ganhando
pouco, porém, brincando pouco, uma vez que nos contratos assinados o tempo
estipulado para se brincar, geralmente, varia de 30 a 60 minutos. Com esse tempo curto,
a brincadeira precisa ser condensada e, por conseguinte, muito se perde da sua narrativa.

7) Realização do brinquedo em uma geografia historicamente rural


Todas as brincadeiras, bem como seus atores sociais, aduzem um processo histórico
rural. Com origem em terras de engenhos e/ou usinas, praticado nas várzeas, nas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 58

senzalas ou em terreiros em frente das casas nos sítios, fazendas e chãs, o brinquedo do
Cavalo-Marinho sempre dispôs de um espaço externo tranquilo, silencioso e que
permitia sua realização, que possui uma dinâmica “teatral” e não de cortejo e com a
existência de diálogos, toadas e loas que contam uma história. Historicamente, a
brincadeira se estruturou levando em conta esta geografia. Esta estrutura externa,
portanto, também se coloca como pré-requisito para que a brincadeira se desenvolva e
tenha sentido para seus brincadores e para o público. Todavia, a realidade atual
geográfica mudou. Hoje em dia são poucos os brincadores que vivem e realizam seu
brinquedo em espaços rurais. A cidade é a nova casa de grande parte destes sujeitos e é
no espaço urbano que a brincadeira se realiza. Estas transformações geográficas, em
muitos casos, estão prejudicando a dinâmica interna da brincadeira. Em dias festivos,
por exemplo, a brincadeira tem que concorrer com os altos sons das bandas de músicas
dotadas de grandes estruturas para seus shows. Em outros casos, com os altos sons dos
próprios carros que passam na rua ao lado do público e dos brincadores que estão
atuando na brincadeira. Este novo cenário não chega a ser fatal para a sobrevivência da
brincadeira, contudo, se coloca como um grande desafio para seus realizadores que,
consciente ou inconscientemente, estão alterando a dinâmica do brinquedo sob
influência destes fatores. Em todo este processo de transformação, podemos observar
uma realidade da brincadeira mesclada de antigos e novos elementos. É importante
neste percurso compreender a antiga e a nova realidade geográfica do brinquedo para
que tenhamos uma compreensão total da sua lógica enquanto arte, cultura e história.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 59

3 UM UNIVERSO CULTURAL E ARTÍSTICO CHAMADO


CAVALO-MARINHO: COMO SE FAZ A BRINCADEIRA DO
CAVALO-MARINHO

3.1 SABERES E FAZERES

O banco é colocado no meio do semicírculo que ainda não se formou. O público se


aproxima ao redor do terreiro, delimitando o espaço para o samba que começará. A rabeca, ou
o bombo, dá os primeiros toques e declara o início. Os outros músicos ingressam no conjunto.
A toada de “Alevante” inicia a brincadeira. Isso é só o começo de um brinquedo que precisa
ao menos de 1 hora e 30 minutos para conseguir compartilhar com o público um pouco do
significado da sua narrativa. Depois, tem assunto pra mais umas 4 horas, sem cessar. Para os
desavisados, a brincadeira só começa assim. Conquanto, ela já começou muito antes, pelos
fazeres e saberes dos brincadores e dos mestres e por atores sociais da comunidade ligados ao
Cavalo-Marinho, que produzem tudo o que ali se presencia.
Chápeu, peitoral, bexiga, rebeca, espada, máscara, os “aico”, as roupas, a bage, o bombo
etc. Tudo feito para o Cavalo-Marinho acontecer. Modos de fazer, ofícios e saberes que
envolvem o brinquedo e que são transmitidos de geração para geração. Outros materiais
também são produzidos pela comunidade: vizinhos, esposas, tios, sobrinhos, costureiras e
luthiers da região. Trata-se de uma verdadeira rede de pessoas, com seus fazeres e saberes
envolvidos com o brinquedo, gerando tradição, transmissão de conhecimento e produzindo
diversos bens culturais. Neste Inventário de Referências Culturais, identificamos os seguintes
bens culturais e seus modos de fazer e ofícios: rebeca, bombo, bage, bexiga, artefatos,
máscaras, roupas e indumentárias.

3.1.1 Saberes e fazeres da música 10

Nem todos os instrumentos do banco de Cavalo-Marinho são produzidos pelos


brincadores, mestre ou pessoas da região do brinquedo. Destacam-se a rebeca, a bage, o
bombo e a bexiga (como elemento percussivo), que trazem processos culturais de saberes
intimamente ligados com o universo da forma de expressão e seus atores sociais.

10
Mais detalhes sobre a música do Cavalo-Marinho no tópico “O Cavalo-Marinho como performance musical”.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 60

Um dos mais antigos fazedores de bage é Mestre Mariano Teles (Cavalo-Marinho do


Mestre Batista, Aliança [PE]) – há outros, como Seu Martelo do Cavalo-Marinho Estrela de
Ouro (PE) e o neto de Antônio Telles, Totó, do Cavalo-Marinho Estrela Brilhante (PE).
Mariano aprendeu a confeccionar bages por meio da observação. Durante alguns anos, ele
observou como Mestre Batista confeccionava esse instrumento na casa que é atualmente a
sede do Cavalo-Marinho em Chã de Camará. Com a morte de mestre Batista, fundador do
grupo, Mariano Teles assumiu não só a posição de mestre, mas algumas de suas atividades,
como a confecção das bages, fazer que ele realiza há dezesseis anos. Atualmente, não há em
Chã de Camará nenhum aprendiz nessa atividade, embora mestre Mariano Teles acredite que,
após a sua morte, outros brincadores poderão dar continuidade a esse saber na localidade. A
confecção da bages ocorre ao longo de todo ano. Segundo mestre Mariano Teles, a única
restrição é referente à extração da madeira de taboca, que não pode ser realizada em períodos
de “noites de lua clara”, ou seja, em noites de maior luminosidade, pois, nestas circunstâncias,
a madeira fica mais sujeita à ação dos cupins. Mestre Mariano Teles confecciona as bages em
sua própria residência. Esta atividade é realizada em uma pequena oficina, apropriada para
esta atividade e localizada nos fundos de sua casa, onde se encontram suas ferramentas e onde
ficam as madeiras coletadas. Segundo brincadores de Cavalo-Marinho, a bage é considerada o
instrumento mais característico e representativo do folguedo (apesar de haver um senso
comum entre os pesquisadores de que essa posição é ocupada pela rabeca), uma vez que o
pandeiro, o mineiro e a rebeca são utilizados em muitos outros gêneros de música tradicional
pernambucana. A bage é um instrumento que marca a sonoridade do Cavalo-Marinho pela
exclusividade com que ela aparece neste folguedo.11
A aprendizagem para a construção dos instrumentos sempre traz a observação e a
ascendência de alguém da comunidade ou da família que possuía o conhecimento e transmitiu
seu saber no ato de fazer. O bombo utilizado nos grupos de Cavalo-Marinho da Localidade 3
– Sul-Oeste foi construído por Severino Joventino dos Santos (60 anos), mais conhecido por
Biu de Dóia. Conta Biu de Dóia que, desde criança, saía escondido para ver Cavalo-Marinho,
porque seu pai não o deixava brincar. O pai José de Dóia, que era um folgazão, rabequeiro e
brincador de maracatu, proibia seu filho de olhar o processo de confecção, porém, Biu de
Dóia, quando ainda era menino, discretamente observava o pai fazendo o bombo.

11
Em alguns casos, como ocorre com o Cavalo-Marinho Boi de Ouro em Pedras de Fogo (PB), a bage pode
coexistir com o reco de arame durante a performance musical.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 61

Meu pai fazia bombo para terno de maracatu (...), mai ele não quis não me ensinar
não, não queria que eu olhasse não. Mas eu ficava observando, enxergando. Ele não
queria eu brincar não.
Na verdade, eu aprendi com ninguém. Aprendi sozinho. Ficava olhando, olhando,
botando no juízo, aí peguei todinho.
Gosto de fazer bombo. Gosto de fazer boneco (de mamulengo). É como filho meu, é
minha família. (Entrevista de Biu de Dóia concedida a este INRC.)

É interessante observar como o brincar mistura-se com o fazer. Os grandes mestres


portadores de saberes e modos de fazer têm ligações com a forma de expressão em questão.
Ou porque os pais brincavam, ou porque presenciavam a brincadeira e admiravam-na quando
era criança, ou porque era (ou é) um brincador. Destaca-se o quanto se forma uma verdadeira
rede de saberes interligada. O quanto o brincar se relaciona com o fazer e vice-versa.
O Cavalo-Marinho é um bem que também envolve duas categorias de saberes em torno
da rebeca: o ofício de fazer rebeca (luthier ou artesão) e o ofício de rebequista. José
Alexandre da Silva, mais conhecido como Zé de Nininha, exerce há doze anos o ofício de
fazer rabeca. Desenvolveu um jeito bem pessoal, decidiu batizar suas rabecas e as chama de
“som da terra”, porque, para ele, “uma rabeca tem que ter o som da cana-de-açúcar da Zona
da Mata Norte. Como será o som da cana-de-açúcar? O som da cana quando o vento balança a
folha da cana faz aquele som estranho (...) é o som da rebeca”. Para o artesão a rebeca sempre
esteve presente em sua vida, desde pequeno:

Quando eu me entendi de gente, veja só, quando eu me entendi de gente, eu com


seis anos, em 1964, eu comecei a conhecer os primeiros sons de rabeca, porque
minha mãe me levava pra o Cavalo-Marinho. Era uma festa! Era uma festa. 1964,
65, 66, 67 até chegar em 70, era o auge de Ferreiros de Cavalo-Marinho. (...) Parecia
até competição de Cavalo-Marinho, a gente ia pra onde tinha mais gente. (...) E a
rabeca estava em todas as partes. (Entrevista de Zé de Nininha concedida a este
INRC.)

Assim, para o luthier, conviver com o instrumento na brincadeira do Cavalo-Marinho


foi decisivo para ele se tornar um construtor de rebecas. Atualmente, ele é um dos mais
conhecidos da Zona da Mata e mantém viva esta tradição.

Essa ideia de aprender a construir rabeca foi através do próprio Cavalo-Marinho, eu


via a rabeca no banco do Cavalo-Marinho, mas, meu desejo mesmo era fazer uma
rabeca pra mim. Então, a primeira rabeca que eu fiz ficou péssima, não prestava pra
nada. Mas alguém viu essa rabeca. [pausa] Alguém viu essa rabeca. E essa mesma
pessoa que me incentivava muito na rabeca (...) Aí comecei pegar gosto pela coisa.
Eu procurei Pitunga, e Pitunga disse que não ensinava, porque não levava jeito pra
ensinar. Mas ele tinha um livretozinho (...) e a gente tinha ele aqui. Pensei, fui em
Mongol umas vezes, depois fui lá em Mario de Prancha também, mas eu achava que
a rabeca de Pitunga era muito mais bem acabada, muito mais bem feita e fiquei na
mente, com a mente gravada com a rabeca de Mané Pitunga na minha cabeça, aí
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 62

comecei ver no livro, o livrozinho que ele tinha, que esse livro ensinava como é que
era que fazia as peças. Através daquele livro, eu não largava aquele livro, o livro
ficou até com as pagininha estragada de tanto eu tá com ele olhando, vendo. A partir
da quarta rabeca por aí afora, aí ela começou a ficar mais bonitinha, né? (Entrevista
de Zé de Nininha concedida a este INRC.)

Mané Pitunga, reconhecido artesão e tocador, foi grande referência para os rabequeiros
da Zona da Mata pernambucana, principalmente os tocadores de Cavalo-Marinho. Até hoje,
entre os rabequistas da região, incluindo também os profissionais residentes pelo Brasil e fora
do país, ter uma rabeca de Pitunga é possuir uma preciosidade. Quando Pitunga faleceu, ficou
um grande vazio entre os artesãos do instrumento e seus tocadores. Desse modo, a iniciativa
de Zé de Nininha é de suma importância para a sobrevivência da arte de tocar rabeca e a
presença desta no brinquedo do Cavalo-Marinho. Do mesmo modo, a valorização do Cavalo-
Marinho, manifestação de referência para o uso da rabeca, configura como essencial para a
preservação destes luthiers e de seus saberes.
O ofício de rabequista em Pernambuco também está intimamente ligado com o Cavalo-
Marinho. Grandes rabequeiros (com repercussão regional, nacional e internacional) como
Mané Pitunga, Luiz Paixão, João Salustiano, Mestre Salustiano, Maciel Salú, Dinda Salú,
Mestre Antônio Telles, Mestre Araújo, Mestre Zé de Bibi, Biu de Dóia, Manoel Pereira,
Pedro Côra, Cláudio Rabeca, Nylber da Silva, Totó da Rabeca, Ulisses Cangaia e outros são
tocadores do banco de Cavalo-Marinho de variados grupos pernambucanos. Outros artistas
praticantes do ofício também tiveram como grande fonte de inspiração e de aprendizagem a
rebeca tocada no brinquedo do Cavalo-Marinho. Destacam-se Siba Veloso, Antônio Nóbrega,
Renata Rosa, Rafa da Rabeca, Murilo Silva, Salatiel da Rabeca, Gustavo Azevedo, Adriano
Salhab, Thiago Martins, entre outros. Lançado em 2011, o CD duplo Rabequeiros de
Pernambuco, (patrocínio Funcultura/Fundarpe) produzido por Cláudio Rabeca, trouxe uma
relação de 24(vinte e quatro), sendo que 18 (dezoito) destes (todos citados acima), em sua
trajetória, estiveram de variadas formas ligados ao brinquedo do Cavalo-Marinho. Nota-se,
sem dúvida, que o Cavalo-Marinho historicamente se apresenta como uma sementeira e um
reprodutor dos saberes relativos ao tocar e ao fazer a rabeca, instrumento de origens de além-
mar com profundas raízes no Brasil e, principalmente, em Pernambuco.
Ainda no campo da música, existe um curioso elemento percussivo que, no estado de
Pernambuco, é utilizado exclusivamente no Cavalo-Marinho. Trata-se da bexiga (ou ovo). A
bexiga de boi passa por um minucioso processo de secagem e depois é cheia com ar para, na
brincadeira, servir como elemento percussivo do ritmo. As figuras do Mateus e do Bastião
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 63

ficam com a bexiga durante toda a brincadeira e utilizam-na para bater nas figuras ou para
acompanhar a música do Cavalo-Marinho, batendo-a na perna. Também traz uma significação
de algo fétido, nojento e que serve para afastar as pessoas ou provocar risos quando Mateus
ou Bastião batem com a bexiga nas pessoas. A batida provoca barulho alto, mas não provoca
dores, a não ser que seja esfregada na areia e batida diretamente sobre a pele. Este tipo de
“agressão” ocorre com algumas figuras do brinquedo, como o Mané Chorão.
Sebastião Pereira de Lima (Seu Martelo) é um dos mais antigos Mateus da região,
brinca até hoje no Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) e é o grande preparador
da bexiga para a brincadeira (em cada grupo existe um responsável). A bexiga é retirada do
boi logo depois do abate, no matadouro. Depois de limpa (retirados gorduras e sebos), a
bexiga é tratada com sal (em alguns casos, também temperos), passa por um processo de
secagem ao sol e de umidificação (com óleo de cozinha), até estar pronta para o uso.
Dependendo do tempo em que precisa ficar guardada, ela é armazenada em geladeira para
evitar moscas e para retardar o apodrecimento. As bexigas são tratadas sempre que há uma
brincadeira. Uma das primeiras providências que o responsável por um grupo de Cavalo-
Marinho toma, quando tem a confirmação de que haverá uma brincadeira, é avisar o Mateus
(ou outro brincador responsável pela bexiga) da necessidade de providenciar e tratar bexigas
de boi suficientes para a brincadeira. Depois de retirada do boi, a durabilidade da bexiga é
curta. Sempre que há uma brincadeira, o responsável pelas bexigas faz o pedido ao
funcionário do matadouro com uma antecedência de, pelo menos, 3 dias.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 64

Figura 13 -Mestre Mariano Teles fazendo a Bage –


Cavalo-Marinho de Mestre Batista de Aliança (PE)

Figura 15 -Artesão de Rabeca Zé de Nininha – Figura 14 -Seu Martelo tratando da Bexiga –


Ferreiros (PE) Condado (PE)

3.1.2 Outros saberes e fazeres: roupas, indumentárias, bichos e máscaras

Diversos saberes envolvem a brincadeira no momento anterior à apresentação.


Praticamente tudo que os brincadores e mestres vestem, desde os adereços, os peitorais, os
arcos e as máscaras, é feito (bordado, costurado e elaborado) pelos próprios participantes ou
pessoas próximas. Os galantes têm uma caracterização de figurino diferenciada, pois,
normalmente, usam calça comprida e camisa de manga, feitas de tecido mais ‘fino’ e caro,
como cetim, por exemplo. Usam um peitoral (peiturá) que é uma espécie de gola vestida por
cima da camisa social e bordada com lantejoulas coloridas e espelhos (e outros materiais
cintilantes, ou conforme a criatividade de quem confecciona), formando variados desenhos
geométricos ou de outros tipos, sendo todo contornado por franjas de tecido (ou de lã)
coloridas (em alguns brinquedos, cada galante tem o seu próprio peitoral). O chapéu também
é muito colorido e brilhante, feito com papel dourado, prateado, espelhos e bordados variados.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 65

A Dama e a Pastorinha usam vestidos geralmente de cetim e chapéu enfeitado com fitas
coloridas. O Mateus e o Bastião usam roupas multicoloridas, chapéu em forma de cone
coberto de fitas coloridas feitas de diversos materiais, como cetim (chapéu elaborado por
Martelo, o Mateus mais velho de Cavalo-Marinho, ainda vivo). Este chapéu pode ser de cetim
(sai pelo dobro do custo para confeccionar) ou de papel laminado (o mais utilizado), o
matulão amarrado na parte de trás dos quadris é confeccionado com folha de bananeira. Uma
característica bem marcante das roupas do Mestre, dos galantes e de Mateus e Bastião são as
fitas coloridas e/ou cintilantes, de cetim, de plástico, de papel celofane etc. presentes nas
bordas de calças, vestidos e chapéus, além dos arcos que os galantes movimentam. Diversos
atores sociais são responsáveis pela confecção destas roupas e indumentárias: Mestre Aicão,
Aguinaldo Silva (contra-mestre, filho de Biu Alexandre) Ivanice (esposa de Aguinaldo),
Mestre Mariano Telles, Nicinha (filha de Mestre Mariano Telles), Mestre Grimário, Judite
Antão, entre outros.
É interessante notar que, na produção destas vestimentas e indumentárias, as mulheres
aparecem como principais sujeitos da ação e são indispensáveis. Se, na brincadeira, seu
espaço de participação foi conquistado pouco a pouco e, até hoje, esta participação ainda é
restrita a algumas funções, revelando o caráter masculino do brinquedo, a pré-brincadeira,
sua estruturação, conta fortemente com a presença feminina. São esposas, filhas, vizinhas,
amigas e costureiras da comunidade que se apresentam para produzir o brinquedo. Judite
Antão é um grande exemplo desta presença feminina. Atuante na Localidade 3- Sul-Oeste,
ela é peça fundamental para o brinquedo Boi Teimoso de Lagoa de Itaenga (PE). Em sua
residência, utilizando sua máquina de costura, ela assume a função de costurar, fazer
consertos e reparos; cuidar de todo o acervo de roupas e indumentárias do grupo; após as
apresentações, ela recolhe todo o material e leva para sua casa para lavar, passar a ferro e
embalar, depois encaminha o acervo para a “sede” do Cavalo-Marinho Boi Teimoso, que fica
no Mercado de Artesanato. A vivência de Judite junto ao brinquedo aconteceu durante a sua
infância e adolescência, quando sua avó lhe levava para assistir a brincadeira que,
geralmente, durava até o amanhecer. Todo final de semana tinha um Cavalo-Marinho
brincando nos sítios da localidade:

Já adulta, quando eu tava já com quinze anos, aí eu fui trabalhar fora, depois,
quando eu voltei para morar em Lagoa de Itaenga, aos vinte e cinco anos, aos vinte e
cinco anos que eu voltei a ter contato com Cavalo-Marinho de novo, aí voltei para a
mesma vida de antigamente. (...) Vivia assistindo, ia pra o de Zé de Bibi quando
tinha. Aí ia pra Feira Nova, pra festa de Feira Nova ia, quando chegava tinha um
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 66

Cavalo-Marinho eu ia assistir. (...) Aí eu disse: Borges bora montar um? – Aí foi o


tempo que a gente também, 2005, a gente inventou de montar, né? Passamos um ano
comprando pano, costurando, ajeitando, em dezembro de 2006 a gente inaugurou.

Judite e Mestre Borges Lucas, que é seu grande amigo, buscaram ter como meta
produzir as roupas e as indumentárias do Cavalo-Marinho Boi Teimoso de acordo como
eram nos grupos que viram no passado. Decidiram evitar muitas inovações para poder se
manter fiel à tradição.
A produção dos bichos que compõem a brincadeira também demanda um saber passado
de geração para geração. Na brincadeira do Cavalo-Marinho, existem algumas figuras que são
representadas por animais, denominados “bichos”, “bicharada” ou “bicharia”: o Boi, a Ema, o
Cavalo, a Onça, a Burrinha, o Urubu, o Urso, o Babau etc. Muitos mestres são os próprios
responsáveis em fazer estes bichos. Mestre Araújo (Cavalo-Marinho Boi de Ouro), Biu
Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro), Mestre Mariano Telles (Cavalo-Marinho
Mestre Batista) são alguns deles. A aprendizagem se fez majoritariamente pela observação e,
em outros casos, pela utilização da estrutura de algum antigo brincador. Biu Alexandre, por
exemplo, começou a construir os bichos do seu brinquedo a partir da observação da estrutura
dos bichos de Mestre Batista. Observa-se que os bichos mais antigos são mais pesados do que
os encontrados atualmente. Mestre Inácio Lucindo (Camuntanga [PE]), por exemplo, compra
seus bichos de um artesão da Paraíba, que os faz sem a utilização de madeira (faz a estrutura
apenas com arame e espuma, por vezes utilizando também resina e fibra de vidro). A maior
mudança que pode ser notada em relação ao modo de construir os bichos se dá por conta da
disponibilidade de materiais. Com o processo de urbanização, os brincadores têm acesso a
uma maior variedade de tecidos, ferramentas, materiais etc. O crescente diálogo com artistas
de outras regiões que se aproximam dos brincadores curiosos em conhecer um pouco do
Cavalo-Marinho também é considerável fator de mudança no processo de fabrico dos bichos.
Por meio da observação, os brincadores agregam à sua arte outros modos de fazer, adequando
os bichos às necessidades atuais. Um boi de madeira pesado, por exemplo, torna-se
inadequado para um grupo de Cavalo-Marinho que começa a excursionar de avião.
Dentre os produtores destes bens culturais, vale destacar o artesão Biu de Dóia (Lagoa
de Itaenga [PE]) que, além de produzir rebeca e bombo, fabrica bichos e também é um grande
artesão dos bonecos de mamulengo. Para o artesão Biu de Dóia, construir os bichos do
Cavalo-Marinho é algo muito importante, porque lhe dá alegria e é também um meio de vida.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 67

Ele é o proprietário dos meios de produção e realiza todas as etapas do processo de produção
dos bichos (o Boi, o Cavalo-Marinho e a Burrinha).
Por fim, um grande saber difundido também pelo Cavalo-Marinho é a produção de
máscaras. “Não se brinca um Cavalo-Marinho sem máscara, tem que ter a máscara” (Mestre
Araújo). O sentido da graça da figura se dá também a partir das máscaras; não é recomendável
ver o rosto da pessoa que está por trás da máscara no momento da apresentação ou da
brincadeira. “O cabra não entra de cara limpa, não, tem que ter a máscara” (Mestre Araújo).
As máscaras utilizadas na brincadeira do Cavalo-Marinho podem ser de diversos materiais,
entre eles, sola (câmara de pneu), couro de bode, couro de boi, couro sintético, papel machê,
podem ser feitas de sapatos velhos, sendo que alguns grupos utilizam máscaras adquiridas em
lojas de fantasia. As máscaras de couro podem ser com pelos, sem pelos e até pintadas. Uma
mesma máscara pode ter alguns detalhes pintados, porções com e sem couro. Todas as
máscaras de Cavalo-Marinho observadas cobrem o rosto todo do figureiro, sendo sempre
utilizadas com um lenço amarrado à cabeça, para esconder o cabelo (a maioria das figuras de
máscaras utiliza chapéu de palha).
De modo geral, as máscaras de couro são confeccionadas da seguinte maneira:
primeiramente, o couro é riscado, determinando o lugar dos olhos, a abertura da boca e a
posição do nariz. Depois de marcado, o couro é recortado, sendo que pequenos retalhos
podem ser costurados à máscara para fazer detalhes como nariz, barba, orelhas, entre outros.
Os pedaços não utilizados são guardados para confeccionar outras máscaras. Pedaços de
outros materiais também podem ser costurados ou colados ao couro para se inserir elementos
como barba, sobrancelha,
língua e dentes. As máscaras
de papel machê são
geralmente feitas a partir de
uma forma de barro onde o
papel de saco de cimento ou
jornal molhado com goma
(mingau de mandioca ou
amido de milho) é aplicado.
Depois da goma secar, o
artesão pinta a máscara com Figura 16 -Mestre Borges Lucas confeccionando Máscara de Couro –
Lagoa de Itaenga (PE)
tinta óleo, formando a face
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 68

com olho, nariz e boca. As máscaras de forma são feitas à base de papel e grude (cola feita
com goma de mandioca e água), e são modeladas em uma forma de barro com feitio de uma
face humana. É um tipo de atividade manual que é realizada a partir de técnicas como:
colagem, modelagem, engessamento, secagem e pintura. A matéria-prima principal é o papel,
e o artesão Zé de Bibi, por exemplo, tem preferência pelos papéis de saco de cimento, de
revista, de jornal e o papelão utilizado para fazer caixas. Tanto na máscara de couro quanto na
de forma buscam-se reproduzir o tamanho e o formato de um rosto, com exceção da figura do
Cabeção (presente nos Cavalos-Marinhos da Localidade 3- Sul-Oeste), como o nome indica, a
máscara possui o formato de uma grande cabeça que é sobreposta à cabeça do figureiro que
irá representá-la.

Figura 17 - Totó, neto do Mestre Antônio Teles, produzindo chapéu de Mateus, ou Bastião - Condado (PE)

Mestre Zé de Bibi traz um relato curioso sobre os processos de aprendizagem e de


aquisição das máscaras de Cavalo-Marinho. Lá pela década de 60 do século XX:
Eu aprendi porque eu comprei as máscaras na feira e dela eu fazia engrossar ela,
botava um papel por dentro e o outro por fora. Aí do jeito que eu fiz aí, eu fazia nas
máscaras compradas na feira no tempo de carnaval. Aí reformava ela todinha,
engrossava, ela ficava forte, dali eu penetrei a fazer a forma, fiz a forma e fiquei
fazendo. (...) Aí fazia de todo tipo, venta grande, venta pequena. Com a máscara,
com a máscara mesmo eu aprendi a fazer a forma. (...) Meditei no jeito da máscara,
fiz o bolão de barro e fiz o jeito da venta, do olho e dali fui enchendo com papel. Até
hoje eu faço todo tipo de forma. (Entrevista de Mestre Zé de Bibi concedida a este
INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 69

É surpreendente notar como os processos de transformações moldam o saber e o modo


de fazer das máscaras. A condição social precária de seus artesãos, mesclada com um saber
sem procedência fixa, uma vontade de criar e uma incrível inspiração artística compõem um
histórico desses bens culturais de indiscutível riqueza e legitimidade patrimonial. Conta Zé de
Bibi:

De primeiro a gente pintava a máscara sabe com quê? Com açafrão e carvão,
entendeu? Que o negócio era tão bom que tinta era barato, mas ninguém tinha o
dinheiro pra comprar. Eu pintava as máscaras fazia as tintas em casa, eu pegava
açafrão, botava dentro d’água, soltava aquela tinta vermelha, pisava o carvão, botava
dentro, fazia aquele angu pra pintar as máscaras, um mais forte outro mais fraco.
Tinha um tal de gengibre, o gengibre a tinta dele é amarela, eu botava o gengibre
dentro d’água, pisava no quengo, soltava aquela tinta amarela, eu misturava com
carvão, já dava uma cor mais diferente. E misturava com açafrão, já dava uma cor
diferente, aí fazia as cores assim, o caba fazia um vivo, a intensidade que a cor
chamava (...) Roxo rei e tem o roxo terra. (...) Aí eu pegava aquele roxo terra, fazia a
marca do olho, a marca da boca, dava uma aparência lá, uma reforma com aquele
roxo terra. De primeiro era assim, hoje não, tem tinta a óleo, tem tinta de toda
qualidade. (...)Quando eu passei a usar tinta, foi quando apareceu os contrato de
prefeitura, que a prefeitura chamava pra brincar nas festas, o dinheiro era
maiorzinho, aí a gente comprava as roupas adequadas pra cobrir os bichos e
comprava tinta pra pintar. Pra pintar o cavalo, a gente pintava com roxo rei e roxo
terra, a tinta. A tinta do pano era branca, que a gente comprava saco e a tinta era
branca, e aqueles desenhos a gente fazia com roxo terra e roxo rei. (Entrevista de
Mestre Zé de Bibi concedida a este INRC.)

Reconhecer que a forma de expressão do Cavalo-Marinho trata-se de um universo de


artes, saberes, práticas, costumes, história, musicalidade, dramaticidade de raros congêneres
no país e legitimá-lo institucionalmente como patrimônio significa ratificar tradições e
costumes sem precedente registrado. Saberes de várias frentes, com antecedentes que podem
chegar além-mar, valorizar este Bem Cultural e, na verdade, todos os bens culturais nele
desenvolvidos é fundamentar a cultura popular brasileira em sua profundidade, sua identidade
e sua mais preciosa história. Identificar estes saberes e fazeres é justamente dar luz a todo
material cultural que envolve o Cavalo-Marinho e que envolve também atores sociais e seus
ofícios, suas especialidades, sua arte. Processos não apreendidos na escola, na universidade,
mas na vida, e em intensa sintonia com o brinquedo. Do Cavalo-Marinho vê-se brotar uma
rede de trabalhadores artistas, produtores da cultura brasileira, donos da sua história, criadores
da sua identidade e sujeitos da sua vida.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 70

3.2 BORA PRO SAMBA! A BRINCADEIRA DO CAVALO-MARINHO

Quando o banco começou a tocar, uma atmosfera diferente tomou o lugar. Tive a
impressão de ser transportado para outro tempo, outro espaço. É claro que eu estava
ansioso para ver a brincadeira acontecendo numa cidade do interior, numa festa
tradicional, mas essa sensação me acompanha até hoje. Quando o banco toca, parece
que o ar muda, e logo você fica contagiado pelo ritmo e pela quentura do brinquedo.
(Relato de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança [SP].)

Todas as brincadeiras de Cavalo-Marinho começam com a formação do banco. São eles


que vão esquentar o samba e dar início ao brinquedo que, tradicionalmente, só acaba quando
se quebra a barra do dia (ao amanhecer) e, então, o Boi pode chegar. Todo o desenvolvimento
da brincadeira trata-se de um rico universo cultural e artístico com toadas (música), loas
(poesia), diálogos (fala entre os personagens), figuras (personagens), bichos (bonecos
animais) e muito trupé (dança), tombo (dança) e pisada (dança em ritmo forte). A brincadeira
tem como fio condutor uma história, e dentro desta, muitas outras histórias, cada figura ou
bicho conta a sua dentro de uma grande narrativa lógica e tradicional. Todas as histórias são
mediadas pela figura do Capitão, que é o dono da roda do samba e, sempre munido de um
apito, comanda os inícios e as paradas.
Nos Cavalos-Marinhos de Pernambuco existem duas grandes narrativas. Uma das
localidades 1 e 2 e a outra da Localidade 3. Além do banco dos músicos e do Capitão, nas
localidades 1 e 2, três figuras são fixas: os negros Mateus, Bastião e Catirina. Na Localidade
3, apenas o Caroca e a Catirina são fixos desde o início, contudo, as figuras vão chegando, e
diferente das outras localidades, onde estas aparecem e depois saem, nos brinquedos da
Localidade 3, as figuras não saem. Elas compõem as histórias que se seguem, participando
ativamente até o fim. O banco também diverge nestas duas grandes linhagens: nas localidades
1 e 2, apresenta-se a rabeca, o pandeiro, as bages (ou um reco-reco) e o ganzá. Na Localidade
3, o bombo, o ganzá e a rabeca.
A música dá o aquecimento, e logo que começa a tocar, os brincadores chegam para
bater o trupé (dança) ao ritmo das toadas de boa noite e toadas soltas. Na maioria dos grupos,
excluindo os grupos da Localidade 1, após os trupes, inicia-se o magui (ou mergulhão, uma
dança/jogo que se faz em meio-círculo). As toadas tocadas são específicas, e esta “cena”
chega a durar cerca de 20 minutos. Neste momento, todos os brincadores podem participar (e
também pessoas do público que entrarem no semicírculo), incluindo, principalmente, os que
irão brincar como galantes. Neste momento, todos estão vestidos com suas roupas comuns,
não há vestimentas próprias para o magui. Os passos de dança desta parte podem ser
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 71

chamados de “tombo”. Entre as toadas tocadas ouvem-se os refrãos “Olha o tombo do magui,
Nazaré Pedregui” ou “Caixa d’água, torneira. Caixa d’água, torneira.” A dança é composta
por um “jogo” que se dá em pares (cada participante tira o outro para a dança, desafiando-o) e
é repleta de passos, movimentos, “chutes” e rasteiras que lembram alguns passos da capoeira.
Cada toada finaliza quando o Capitão (que também pode estar dançando no magui) utiliza seu
apito e acena para o banco. Mestres da região afirmam que o magui começou há cerca de 40
anos, e que antes disso não era feito em formato de jogo, mas sim como uma dança circular.12
Podemos observar ainda este formato nas brincadeiras de Mestre Inácio Lucindo (Cavalo-
Marinho Estrela do Oriente [PE] – Localidade 1) e nos brinquedos da Localidade 3.
No magui da Localidade 3, praticado pelos Cavalos-Marinhos Boi Teimoso, Boi
Ventania e Boi Tira-Teima, a dança varia um pouco das normalmente encontradas nas
localidades 1 e 2. Ela é realizada em círculo, e com menos participantes (4 a 6).

Figura 18 -Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi Figura 19 -Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi
Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) Matuto da Cidade Tabajara (PE)

Dentro do magui (ou mergulhão, como nesta localidade costuma-se dizer) existem
diversas partes com variações de movimentos específicos. Identificam-se os seguintes, em
ordem de acontecimento:
1) Pisa Pilão
2) Pisa no pé da neguinha
3) Bota a faca nele
4) Põe a cabeçada
5) Borbuleta dona Fulô

12
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 72

6) Gira Antônio Catita no Pau


7) Pé na cara
8) Avuou, pegou na gaia do pau
9) Maguião eu quero vê

Depois que o magui termina – porque a sequência acabou, ou porque o Capitão


determinou – o banco chama a primeira figura (quem determina que figura o banco irá chamar
é o Mestre). Em alguns grupos, a primeira figura é o Mateus ou o Caroca, em outros é o
Ambrósio. Os grupos que apresentam o Ambrósio como primeira figura (como, por exemplo,
o Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado [PE]) defendem a lógica de que este deve
abrir a sequência, uma vez que é um vendedor de figuras de Cavalo-Marinho que está
passando ali para negociar com o Capitão. Assim, não faria sentido ele vir depois que as
figuras começarem a aparecer. Por outro lado, Ambrósio possui duas versões. No início ele
entra como Ambrósio, vendedor de figuras. Na sua negociação, o Capitão fica devendo para
ele. Ambrósio vai embora sem receber, e depois, com o avançar da brincadeira, no momento
em que o Cavalo entra em cena, Ambrósio volta como Cobrador, justamente para cobrar o
que o Capitão ficou devendo. Assim, em algumas brincadeiras, só existe o Ambrósio no
momento do Pataquero/Cobrador. Em outras ele vem no início e depois retorna. Esta narrativa
não é tão evidente aos olhos do público. Esta lógica do Ambrósio e do Pataquero/Cobrador
apenas se compreende depois de muitas conversas com seus mestres e brincadores. Faz parte
do “fundamento” do brinquedo. Nota-se, como bem destaca Alício Amaral, que as figuras que
prestam algum tipo de serviço ao Capitão, por mais diverso que seja, sempre fazem a
empeleitada antes, ou seja, uma negociação sobre o pagamento que pretendem receber pelo
serviço oferecido. O Soldado que entra para prender alguém, o Verdureiro que vende verduras
e legumes, o Mateus que é contratado para tomar conta da festa, todos negociam, mas sempre
são ludibriados pelo Capitão, que promete pagá-los e, no final, nunca paga. Narra Alício
Amaral que, frequentemente, o Capitão brinca com uma pessoa do público dizendo: “Tá
valído seu Soldado, eu faço por doze e nada, e amanhã o senhor passe na casa de seu fulano
(aponta para uma pessoa no público) que ele te paga direitinho”.13
Segue parte do diálogo entre Mestre Biu Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro
de Condado [PE]), como Ambrósio, e Mestre Duda Bilau (Itambé [PE]), falecido, como
Capitão:

13
Texto “Figuras” de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança (SP).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 73

“Ambrósio - Capitão!
Capitão - Às ordes.
Ambrósio - Bom dia!
Capitão - Bom dia.
Ambrósio - Boa tarde!
Capitão - Boa tarde.
Ambrósio - Boa noite!
Capitão - Boa noite.
Ambrósio - Capitão como..
Capitão -...vai.
Ambrósio - Ô Capitão, pra que mandô chupá o Ambrósio véio?
Capitão - Eu não mandei lhe chupá, mandei lhe chamá!
Ambrósio - Ai Capitão, então pra que mandô me chamá?
Capitão - Mandei lhe chamá, porque eu sôbe que aqui o senhor tinha umas figura pra
vendê e aqui é uma festa do Divino Santo Rei do Oriente. E eu quero que você
apresente aqui umas figura e se eu tivé cundição eu compro, se num tivé...
Ambrósio - ...Capitão eu tenho!
Capitão - Tem?
Ambrósio – Boa!
Capitão - Boa?
Ambrósio - Capitão qué?
Capitão - Eu quero comprá.
Ambrósio - Capitão compra?
Capitão - Compro.
Ambrósio - Apôi me pague.
Capitão – Oxênte, eu vô comprá assim sem vê?
Ambrósio - Capitão num compra?
Capitão – Compro quando vê! Você tem que vim, mostrá, representá, sabê como é
que chega, aí eu compro e pago cum dinhêro.
Ambrósio - Apôi Capitão, então vâmo fazê um negócio ligêro. Se eu mexê, botá o
dedo no fundo...
Capitão -...do saco...
Ambrósio -... remexê, e encontrá duas dentro, serve?
Capitão - Do samba serve.
Ambrósio - Ô Capitão, eu vô em casa, que eu aqui num tenho nenhuma. Quando eu
chegá aqui agente fecha o resto do negócio, tá certo?
Capitão - Tá certo.
Ambrósio – Banana! (Faz um gesto com a mão para o banco tocar)”
(Trecho de transcrição realizada em 2003 por Juliana Pardo e Alício Amaral, in
texto “Figuras”.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 74

Figura 20 -Figura do Ambrósio em diálogo com o Capitão (figureiro Fábio Soares- assistente de pesquisa deste
INRC) – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente (em Ferreiros, 2011)

Nesta parte do diálogo, percebe-se a presença da negociação de trabalho – aspecto


sempre presente na vida cotidiana dos brincadores que são, em sua maioria, trabalhadores
rurais –, observa-se a ressignificação desta realidade, permeada por sotaques cômicos, o uso
da “puia” (piada de duplo sentido), típica de todos os Cavalos-Marinhos, e a explicação lógica
da presença de Ambrósio para o sentido da brincadeira, uma festa para Santo Rei do Oriente.
Depois da figura do Ambrósio, entram para a roda da brincadeira (seguindo a lógica dos
grupos de Cavalo-Marinho das localidades 1 e 2), na ordem, Mateus, Bastião e Catirina. Estes
são chamados pelo Capitão para fazerem um serviço. Novo momento de negociação, o
negócio é “valido”, e os negros ficam responsáveis por guardar o terreiro enquanto o Capitão
realiza uma viagem. Os negros, no entanto, não dão conta do recado, acabam bagunçando o
terreiro e eis que surge o Soldado da Gurita, que vem prender os negros pela desordem em
questão. Este cumpre com seu serviço e se retira da roda da brincadeira. Seguem a partir daí a
narrativa, com uma sequência lógica, com entradas e saídas de figuras. A seguir colocamos
dois exemplos de sequências de figuras e, portanto, das narrativas do Cavalo-Marinho. Um
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 75

com base nos brinquedos daslocalidades1 e 2, e outro, com referência à Localidade 3. É


importante ressaltar que cada grupo tem o seu “sotaque”, assim, sempre há pequenas
variações em cada grupo em cima da estrutura tradicional fixa.

FIGURAS DA BRINCADEIRA DO CAVALO-MARINHO14


(Sequências nas versões de Mestre Zé de Bibi e Mestre Biu Alexandre)

Figuras mais comum nos Cavalos-Marinhos Figuras mais comum nos Cavalos-Marinhos
Versão: Mestre Zé de Bibi Versão: Mestre Biu Alexandre
(o que foi recordado) (o que foi recordado)
Boi Ventania (Feira Nova [PE]) Boi de Ouro (Pedra de Fogo [PB])
Boi Tira-Teima (Glória do Goitá [PE]) Estrela do Oriente (Camutanga [PE])
Boi Teimoso (Lagoa de Itaenga [PE]) Estrela de Ouro (Condado [PE])
Estrela Brilhante (Condado [PE])
Boi Brasileiro (Condado [PE])
Boi Pintado (Aliança [PE])
Mestre Batista (Aliança [PE])
Boi Matuto (Paulista [PE])
Boi Coroado (Araçoiaba [PE])
1. Mergulhão1 1. Ambróso
2. Caroca (Mateus) e Catita (Catirina)1 2. Mateus
3. Ora Viva1 3. Bastião
4. Liberão1 4. Catirina/Catita
5. Cara Branca1 5. Soldado da Gurita
6. Véio de Vale 6. Impata Samba
7. Mororó e Machado1 7. Mané do Bale
8. Cabeção 8. Mestre e Galantaria2
9. Valentão 9. Bode (1)
10. Rosa 10. Bode (2)
11. Fiscal1 11. Barbaça ou Valentão ou Tintique
12. Pisa Pilão 12. Cavalero2
13. Motorneiro (Mané do Motor) 13. Cavalo2
14. Caboclo de Pena1 14. Pataquero
15. Quebra Pedra 15. Babau
16. Foimusina 16. Gigante
17. Vau de Vinho 17. Ema2
18. Maria Cambotá 18. Véia do Bambu
19. Inácia Campina 19. Mané Ju’aquim
20. Mané Guiada e Mané de Bata 20. Pade Capelão
21. Ambrósio1 21. Cão /Diabo
22. Vila Nova 22. Cabôco d’ Aruba

14
A escrita tentou ser o mais fiel possível à pronúncia.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 76

23. Mestre Baile1 23. Mané Piquinino


24. Margarita e Goiaba (bonecos 24. Margarida
gigantes) 25. Mané do Motô
25. Cavalo1 26. Cobradô
26. Burra1 27. Pisa Pilão
27. Boi1 28. Lica
28. Ema 29. Cobradô
29. Queixada 30. Nêga da Garrafa
30. Cachorro 31. Verdurero
31. Urubu 32. Mana Nêga
32. Dragão 33. Cego
33. Bode 34. Guia
34. Sapo 35. Bêbo*
36. Budeguero2
Na seleção de Mestre Pisica faltaram as 37. Mané Palo (2)
figuras (sem a ordem de apresentação): 38. Pade
39. Cão
40. Mané Gostoso – Perna de Pau
1. Baianas
41. Mestre Dumingo
2. Galantes 42. Vila Nova /Barre Rua (varre rua)
3. Sardanha 43. Sardanha
4. Capitão 44. Mané Taião
5. Mané meu Filho 45. Mané Chorão
6. Mestre Fostino 46. Ju’na Baia
7. Padre 47. Véi Friento
48. Serrador
8. Diabo
49. Véi Cacundo
9. Brabo 50. Italiano
10. Mané Batata 51. Urso
11. Ponte Melindrosa 52. Nêgo Quitanda (1)
12. Mané Guiada 53. Nêgo Quitanda (2)
13. Véio Frio 54. Impariado (1)
14. Mestre Domingo 55. Impariado (2)
56. Bichero
15. Professor
57. Celadô
16. Framacete 58. Campelo
17. Maria Combota e Mané Carité (a Véia 59. Macaco
e o Véio) 60. Véi Bambu
18. Pelejão 61. Analha
19. Sapo Cururu 62. Morte
20. Gia 63. Pade
64. Cão
65. Ju’ão Bernado
66. Abana Fogo
67. Cunzinhero
68. Mãe Dindinha
69. Patim Chulim
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 77

70. Mariano Saltadô


71. Onça2
72. Mané da Batata
73. Burra2
74. Dotô do Piano
75. Vaquero
76. Sapo2
77. Boi2
Quadro 2 - Figuras da bricadeira do Cavalo-Marinho
78. Dotô
79. Pacaia
80. Fiscal
81. Urubu2
1
Figuras apresentadas em uma programação reduzida.
2
Personagens que Mestre Biu Alexandre não considera pertencentes à categoria figuras.

Cada figura traz uma narrativa (o que ela vem contar e fazer na brincadeira), uma toada,
um diálogo com o Capitão (às vezes, o personagem faz apenas um “grunhido”, como a Ema,
por exemplo, mas o Capitão tem o diálogo pronto da respectiva figura), as loas (quando tiver),
o manejo (dramaturgia), a cena própria e o momento de entrar e sair da roda da brincadeira.
Existem figuras ou bichos que têm um momento certo para poder entrar. O principal exemplo
é o Boi. Este só aparece no fim (depois dele apenas pode entrar o Pacaia, o Fiscal e o Urubu –
hoje em dia é muito raro esta sequência após o Boi). Há figuras sem ordem fixa, como o
Mané Chorão ou o Mané Batata, porém, estes personagens só podem entrar depois que
ocorrer a principal sequência fixa.
A maioria dos brincadores e mestres costuma afirmar que não existe a figura mais
importante no Cavalo-Marinho. Tudo no brinquedo é importante. Assim, aos olhos dos
estranhos, o Cavalo junto com seu Cavaleiro (os quais não são considerados figuras pelos
grupos) não são “personagens” centrais da narrativa e dramaturgia do brinquedo. Eles são
indispensáveis, mas não os mais importantes. O Capitão, que não é considerado uma figura, é
essencial, porém, às vezes, não importa quem ocupe esta função, basta estar com o apito (que
comanda o brinquedo) e realizar alguns diálogos, que o samba continua. Observamos que,
durante a brincadeira, que tem um longo tempo de duração, esta função é substituída diversas
vezes. O mesmo vale para o Mateus. Sem ele, não há brincadeira, porém, caso este precise se
ausentar, o samba não para, entra outra pessoa com a bexiga na mão (ou uma garrafa de
plástico), e a brincadeira continua. Podemos arriscar que a lógica é: precisa-se de vários
personagens e brincadores ocupando determinadas funções para se começar o brinquedo.
Após o seu início, com o terreiro quente, os brincadores se revezam, e a brincadeira só
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 78

termina se o Mestre deixar. Este querendo, o Boi pode entrar. Mas sem o Boi, brinquedo
nenhum pode acabar.
Não existe um número fixo de brincadores necessários para a realização do brinquedo,
mas pela quantidade de figuras, danças, variações musicais, bichos e pela duração da
brincadeira, quanto mais integrantes conhecedores do folguedo, melhor será o
desenvolvimento do Cavalo-Marinho e mais tempo ele durará. Com participantes suficientes,
a brincadeira consegue transmitir conhecimento para os próprios atores, que, através da
observação e da repetição, vão aprendendo a brincar. É necessário pontuar que existe uma
sequência lógica de se narrar a brincadeira, assim, não dá para fazer o que se sabe. Tem que
ter pessoas que saibam botar as figuras, fazer o trejeito certo (dramaturgia), falar as loas
corretas e saber dialogar com o Capitão de acordo com a tradição. Não se trata, portanto, de
uma brincadeira fácil, de simples aprendizagem. Precisa de muita observação e de muitas
horas de samba para ir aprendendo aos poucos. Apresentações de 30 minutos ou 1 hora não
alcançam nem o princípio da história que o Cavalo-Marinho tem para contar.
Assim, para os Cavalos-Marinhos das localidades 1 e 2, um grupo completo possui em
média 20 integrantes: um Mestre, um Mateus, um Bastião, uma Catirina, três figureiros, oito
galantes, uma Dama, uma Pastorinha, um Arreliquim e cinco músicos. Estes números podem
variar de acordo com cada grupo. Já para os grupos da Localidade 3, conforme mestre Pissica,
a formação ideal de um Cavalo-Marinho também é de cerca de 20 membros: Capitão, Caroca,
Caroquinha, Catita, três galantes, três baianas, Cavaleiro (Cavalo), Boi, três batedores
(músicos do banco: rabeca, bombo, ganzá), três figureiros (que saibam bater o mergulhão),
um carregueiro (carrega os bichos antes da apresentação; durante a apresentação, funciona
como uma espécie de guia do Boi; não se confunde com o figureiro do Boi).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 79

Figura 21 -Figura da Catirina – Cavalo-Marinho Figura 22 -Figura do Mateus – Cavalo-Marinho


Estrela de Ouro de Condado (PE) Estrela de Ouro de Condado (PE)

Figura 24 - Figura do Bode – Cavalo-Marinho Estrela


de Ouro de Condado (PE)

Figura 23 -Figura do Soldado – Cavalo-Marinho


Estrela do Oriente de Camutanga (PE)

Todas as brincadeiras têm um sentido comum: a de realizar uma festa em homenagem


ao(s) Santo(s) Rei(s) do Oriente. Não definem a brincadeira como religiosa nem profana, mas
louvam a Estrela, representando Jesus Cristo, e também praticam rituais inspirados na Jurema
(Caboclo de Arubá e Caboclo de Pena). Tanto nos brinquedos daslocalidades1 e 2, como na
Localidade 3, há um grande momento de ápice. Nas localidades 1 e 2 trata-se do momento da
Dança dos Aico. Este momento é recheado com várias partes, entre elas o da Estrela (símbolo
de Jesus Cristo), em que tudo começa. Depois segue a sequência de danças (com evoluções,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 80

com toda a galantaria15 e os arcos com fitas, “puxados” pelo mestre), toadas e loas: Queimá
Carvão, Maê, Girimum, Assuni a Ladeira, Dança do São Gonçalo (um dos momentos mais
fortes), Marieta, Zabelim, Maria do Rosário, Carangueijo. Nos Cavalos-Marinhos da
Localidade 3, o momento de ápice é o Baile das Baianas, onde também aparece a Estrela,
tem-se a presença dos galantes e das baianas e dançam-se vários ritmos diferentes, como a
marchinha.
Os grupos de Cavalo-Marinho realizam suas brincadeiras em locais planos,
normalmente na rua. As brincadeiras de Cavalo-Marinho costumam ser realizadas em festas,
compondo a programação juntamente com outras expressões culturais, como ciranda,
mamulengo, entre outras. Nessas ocasiões, é comum que o local da brincadeira seja definido
conjuntamente entre algum responsável do grupo e o contratante. O terreiro é o lugar onde a
brincadeira acontece de forma espontânea. O banco (onde sentam os músicos) delimita o
espaço para a formação do terreiro, que se configura pelo formato circular através da
aglutinação do público em torno dos brincadores. Com o banco ao fundo, as figuras vão
chegando e, dançando, entram no meio do terreiro, se colocam perante o banco para
realizarem suas encenações por meio dos diálogos, das loas e das danças. O público
aglutinado ao redor assiste a brincadeira que ocorre no centro deste grande círculo que se
forma preferencialmente ao ar livre. Historicamente, a brincadeira do Cavalo-Marinho sempre
aconteceu em qualquer espaço ao ar livre. Quando um brincador morava em um engenho ou
nas terras de uma usina, procurava-se um terreno plano para ali formar o terreiro.
Antigamente, as brincadeiras aconteciam, na maioria das vezes, em locais com chão de
terra, ou “pera” (corruptela de poeira), na pronúncia dos brincadores. Com o processo de
urbanização das cidades, algumas das ruas onde aconteciam as brincadeiras foram “calçadas”,
sendo que, atualmente, a maioria das brincadeiras acontece em locais com chão de cimento ou
de paralelepípedos. Segundo os relatos de brincadores, este fato desencadeou inúmeras
mudanças na execução da dança do Cavalo-Marinho, assim como na apresentação de
determinadas partes em que os brincadores têm de rolar ou cair no chão. Em tempos remotos,
era comum que a brincadeira fosse contratada por donos de bares (bodegas) para brincar. O
dono do estabelecimento, na expectativa de lucrar com a venda de comidas e bebidas, pagava
para a brincadeira acontecer.

15
A galantaria na brincadeira de Cavalo-Marinho é composta geralmente por cinco galantes, uma Dama, uma
Pastorinha e um Arrelequim, os quais chegam portando arcos enfeitados com fitas coloridas. A galantaria brinca
no baile do Capitão Marinho e responde pela parte “nobre” da festa, quando se faz a dança dos arcos e se canta
em louvor aos Santos Reis do Oriente.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 81

Nas proximidades de uma roda de brincadeira de Cavalo-Marinho é comum a presença


de ambulantes comercializando comidas e bebidas. Entre as comidas comercializadas é
comum encontrar salgados fritos e assados, pastéis, batata frita, cachorro-quente etc. Entre as
bebidas, refrigerantes, cachaça, água e cerveja.

3.3 FIGURAS, TRUPÉS, TOMBOS E PISADAS: CORPO E MOVIMENTO DO

BRINCADOR

A física do coipo do trabalhadô é a mesma física do coipo do brincadô. Óia,


a física do coipo da brincadeira é essa aqui que eu disse a vocês, o cabra que
tá cortano cana, o coipo dele vai aqui, ele corta aqui, arreia aqui, arreia ali,
num instante ele vem pá’qui, pá esse lado, ele corta pá todo lado, o coipo
dele é molinho, é um coipo doce, é um coipo mole, um coipo recaído. É a
mesma coisa quando um cabra tá brincando com o outro, a gente brinca. É a
física do coipo. A física do coipo do trabalhador é a física do brincador. O
trabalhador tem a física do coipo pá todo canto...quando ele vem com a
enxada cobrindo a cana, óia, ele já vem com o coipo no manejo, cobrindo
aqui, cobrindo ali. Óia, pro cara que brinca, esse é o tombo. É a mesma coisa
de sambá. (Relato de Mestre Inácio Lucindo concedido à Alício Amaral e Juliana
Pardo, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança [SP], 2002. In: AMARAL,
mimeo.)

Para registrar o Cavalo-Marinho como forma de expressão, é necessário englobar como


bens culturais o conhecimento, a prática de movimentos e as qualidades corporais de profunda
complexidade e sofisticação. Fonte de pesquisa e inspiração de vários artistas e acadêmicos
do país16, a sabedoria sobre o corpo e o movimento dos brincadores e mestres de Cavalo-
Marinho carrega aspectos tradicionais e registros corporais da vida de seus sujeitos. Estas
qualidades se revelam tanto no jeito (manejo) de dançar dos brincadores como no jeito de
botar a figura dos figureiros.
Como explica Alício Amaral, cada figura possui uma corporeidade, um comportamento
físico específico que está fortemente ligado à sua função, trabalho ou ação principal, durante
sua representação. Porém, para ele, todas compartilham dos mesmos princípios físicos que
estruturam a brincadeira. Tais princípios físicos podem ser observados na relação entre o
corpo do brincador e o corpo do trabalhador rural, como bem expôs Mestre Inácio Lucindo na
epígrafe acima. Para Amaral, a comparação entre o brincador e o trabalhador se dá no aspecto
físico e energético, “onde a qualidade de energia empenhada para realizar a dança se
16
Entre eles: Alício Amaral (SP), Juliana Pardo (SP), Ana Caldas Lewinsohn (SP), Carolina Laranjeira (BA),
Érico Oliveira (BA), Ivanildo Piccoli (SP), Lineu Guaraldo (SP), Maria Acselrad (RJ), Mariana Oliveira (RJ),
Helena Tenderini (PE), Beatriz Brusantin (SP), Helder Vasconcellos (PE), Lucio Enrico Vieira Attias (RJ),
André Paula Bueno (SP), Flávia Cristina da Silva (BA), Joice Aglae (MG), Marcondes Gomes Lima (PE), Tainá
Dias de Moraes Barreto (DF), Laura Tamiana (PE), Tatiana Devos Gentile (RJ) e outros.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 82

assemelha à qualidade das ações realizadas durante o trabalho com a cana-de-açúcar”. Para
Alício Amaral, o brincador se posiciona com a base baixa, os joelhos flexionados, o
agrupamento de energia no centro do corpo, a “mola” do corpo estendido como contra
impulso e impulso, a precisão das ações no corte da cana e nos trupés, o corpo aterrado e ao
mesmo tempo leve e ágil, o trabalho de vetores de direção que organizam os corpos, e a
disponibilidade para a ação. “Familiarizado com a estrutura corporal de cada figura, o
figureiro possui um trilho seguro para percorrer durante sua representação, podendo
improvisar e brincar dentro desta estrutura sem descaracterizar a figura ou a própria cena.”17
Mestre Inácio Lucindo (Cavalo-Marinho Estrela do Oriente [PE]) traz o verbo sambar
para designar movimento e suas qualidades. Para a bailarina Carolina Laranjeira, samba do
Cavalo-Marinho se trata de categoria pertencente à cultura local da brincadeira,
correspondente a um conjunto de padrões de movimento, movimentações específicas. Pontua
que o samba é realizado em quase toda a brincadeira, sempre acompanhado de toadas e, como
bem observa Érico Oliveira, seu aprendizado é a porta de entrada para a brincadeira, sendo a
partir dele que se “desdobram as posturas, movimentações, gestualidades e características de
todas as figuras” (OLIVEIRA E., 2006: 592). Para Laranjeira, “ele é encontrado no ‘tombo’
do magui, na corporalidade das figuras, nos intervalos entre a aparição de uma figura e outra,
nas danças dos arcos, nas danças dos galantes e nos cocos de despedida”. O samba pode ser
dançado pelos galantes, figureiros ou pelo público, entretanto, na maior parte do tempo é
dançado apenas pelos brincadores. Para Laranjeira, isto indica que se trata de “um
conhecimento especializado que não é facilmente compartilhado pelo seu grau de apuramento
técnico, distanciando totalmente a brincadeira dos estereótipos criados em torno das
manifestações populares, como algo de fácil acesso”.18
Este repertório rico e complexo tem como processo de aprendizagem o próprio observar
da brincadeira, ou o brincar ao lado de quem sabe mais, com as correções de seus mestres ali
mesmo durante a brincadeira. Como coloca Carolina Laranjeira, é um processo tão poroso
quanto a própria brincadeira, a qual absorve o treinamento e o torna cênico. Para a autora, no
Cavalo-Marinho, a vida e a performance se aproximam, se confundem, se invertem. “A
brincadeira, por mais codificada que seja, é aberta, propicia a absorção, a aglutinação de

17
Texto “Figuras”, de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança (SP), mimeo.
18
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 83

elementos normalmente apartados de uma situação performática convencional.”19 Aprender


Cavalo-Marinho é fazer Cavalo-Marinho. Por isso, qualquer iniciativa que mexa na estrutura
do brincar, como, por exemplo, reduzir o seu tempo de duração, é atingir diretamente a
própria sobrevida da arte enquanto forma de expressão e enquanto saber em processo de
transmissão.
Quanto às categorias de movimentos (tanto de dança como da dramaturgia das figuras)
do Cavalo-Marinho, não se verificam nomes para todos os passos. Na Localidade 3 observa-
se que o magui tem diversas partes, cada uma com seu nome e movimento específico. Nas
localidades 1 e 2 constatam-se movimentos com uma qualidade física comum e tradicional em
todos os brincadores e mestres. Obviamente, cada um com seu “manejo”, mas parece existir
um código tradicional de movimento e postura. Este pode estar atrelado ao trabalho cotidiano,
muitos deles, junto do corte da cana. A idade de cada brincador também influencia muito na
qualidade dos movimentos (que não deixam de ser piores ou melhores) e na própria cadência
da música. Os movimentos dos brincadores mais idosos trazem uma contenção misturada com
vigor e precisão que não vemos nos brincadores mais jovens, nos quais a energia e velocidade
acabam sendo os pontos fortes. A qualidade do movimento, portanto, modifica e ganha
características de maturidade e/ou instigação, sempre num diálogo com gestos, trejeitos e
posturas tradicionais.
Como representativo das localidades 1 e 2, Fábio Soares (Cavalo-Marinho Estrela de
Ouro) define em três categorias gerais os movimentos que compõem o samba da brincadeira,
classificando três tipos: “pisada”, “trupe” e “tombo”. Estes movimentos podem aparecer
juntos em algumas situações, como no magui, onde se utilizam o trupé e o tombo. Define-se
pisada como “dinâmicas corporais que não repercutem os pés no chão, mas são realizadas
pela transferência de peso e troca de pernas feitas para frente e para trás”.20 Como coloca
Laranjeira, costuma-se ouvir a exclamação “Eita pisada!” que demonstra o êxito de um bom
samba por meio da força e da energia empregadas em direção ao solo.21 Quanto ao trupé,
segundo Aguinaldo Roberto da Silva (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro), a sonoridade da
palavra já evidencia o seu significado e a movimentação corporal que a designa, “o trupé, já tá

19
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
20
Classificação dada por Fábio Soares e transcrita por LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados
corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho: corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas - Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
21
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 84

dizendo que é uma palavra forte, é um negócio que já ta pisando com força no chão”.22 Este
pode ser realizado ao som das toadas soltas e também é uma das dinâmicas corporais de base
do tombo do magui. Por fim, o tombo, para Laranjeira, é uma postura corporal na dança dos
brincadores que se caracteriza pela flexão da articulação coxofemoral que provoca a
inclinação do tronco, padrão postural característico de muitas dinâmicas corporais da
brincadeira.23
As pesquisas sobre a corporeidade dos brincadores do Cavalo-Marinho trazem
interessantes aspectos gerais da dança e dos movimentos dos brincadores. Carolina Laranjeira
descreve que os movimentos da brincadeira têm por característica geral a ênfase nas pernas e
pés. Os braços normalmente se encontram pendidos junto ao tronco, com leve flexão dos
cotovelos, e o tronco quase sempre inclinado para frente, havendo uma independência quase
que total entre tronco e membros inferiores. Os movimentos da parte inferior quase não
produzem ressonância no tronco pela sustentação da bacia, liberando a ágil movimentação das
pernas e dos pés. Há uma predominância de movimentos diretos, secos acompanhando
sempre o ritmo acelerado do baião.24 Os brincadores estão sempre mais conectados com o
chão do que transmitindo leveza para o alto. É uma dança que se conecta com a terra e traz a
relação do homem com a terra. As mãos sempre ficam liberadas, com mais soltura, livres, por
exemplo, para se pegar algo que está no chão.
O pesquisador Lineu Gabriel Guaraldo organiza os movimentos de dança do Cavalo-
Marinho em quatro princípios formais (padrões encontrados no samba) que são recorrentes
em diferentes brincadores (o movimento sempre deixa aberturas e ganha seu sotaque
individual). De forma sintética, são eles: 1. Inclinação do tronco, flexão da coxofemoral e
reposicionamento do centro de gravidade. Essa inclinação provoca o deslocamento de uma
maior porção do peso para o metatarso, suavizando o apoio do calcanhar, e mantém a
concentração de energia no abdômen; 2. Base baixa, permanência sob flexão do tornozelo e
joelhos e não oscilação da altura do tronco; 3. Escapada, afastamento das pernas com a
manutenção da altura do tronco e da bacia e uma leve suspensão dos pés que estão servindo

22
Entrevista de Aguinaldo Silva concedida à Carolina Laranjeira. IN: LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança
de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho: corporalidades e dramaturgias da brincadeira.
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em
andamento.
23
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
24
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 85

de base; 4. Lançamento da crista ilíaca, alinhamento dos ossos ilíacos em relação ao tronco e
as pernas, tendo os joelhos aproximados (GUARALDO, 2009: 85).

OUTROS MOVIMENTOS DE DANÇA DO CAVALO-MARINHO


(transcrições por Carolina Laranjeira)1

Carreira
Corrida dançada pelos galantes no momento da Dança dos Arcos. Eles percorrem o espaço
da roda com arcos de cipó enrolado com fitas coloridas que balançam no ar, com passos
ligeiros marcando o tempo forte da música. O Mestre, quem coordena a dança, fica entre as
duas filas de brincadores posicionados em frente ao banco, e segura uma das pontas dos
arcos de cada um dos brincadores que estão localizados no início da fila, ou cordão, como é
chamada esta disposição espacial. Ele dá os comandos para que os galantes andem sempre
enfileirados, para fora ou para dentro do primeiro arco. Cada cordão desenha o espaço
espiralado em diferentes direções. O ritmo da música é marcado pelos passos rápidos dos
galantes e do Mestre, que não percorre outro caminho que não seja o do corredor
imaginário entre os cordões. Enquanto os pés estão pontuando o ritmo, o corpo reverbera a
movimentação com um balanço sutil.

Tesoura
Padrão de movimento em que predomina a movimentação da parte inferior das duas
pernas que, alternadamente, cruzam-se à frente em deslocamento frontal. A
movimentação cruzada das pernas remete à imagem do movimento de uma tesoura
cortando.

Rasteira
Encontrada no magui, é uma movimentação característica das figuras que vão cobrar algo
do Capitão. Pataqueiro, Cavaleiro, Sardanha e Seu Ambrósio são figuras que cobram dos
galantes, de Mateus e de Bastião. Circundam a roda, dando rasteiras e pernadas com o
intuito de derrubá-los. Para realizar o golpe, uma perna é lançada estirada, iniciando o
desenho de um círculo, ao mesmo tempo em que se dobra a perna de base, descendo a
bacia até ficar próxima ao chão; com o apoio de uma das mãos no chão, a perna de base sai
do chão e a perna esticada passa por baixo desta, terminando de descrever um círculo.

Quadro 3 - Outros movimentos de dança do Cavalo-Marinho


Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 86

Os brincadores sempre se posicionam, dançando e encenando, de frente para o banco.


Formam uma espécie de triângulo entre figura, banco e Capitão, que fica sempre ao lado
esquerdo do banco (olhando do banco para dentro da roda do samba), ao lado do Rabequeiro
ou do bombo. Ainda que os figureiros e
brincadores se movimentem por todo o
semicírculo do terreiro, os diálogos e as loas
sempre são direcionados para o Capitão e para o
banco. A cena, portanto, se dá muitas vezes de
costas para o público que circula o terreiro.
Algumas figuras (e alguns grupos) praticam a fala
em tom mais alto, para que o público possa Figura 25 -Trupé- Cavalo-Marinho Estrela de
acompanhar o que está sendo dito. Um momento Ouro de Condado (PE)

que sempre se dá de frente para o público é o


“Boa Noite”, de Mateus, Bastião e Catirina. Nesta
dinâmica, é bastante difícil entender o que as
figuras estão falando (ainda mais as que usam
máscaras que abafam muito o som da voz).
Mesmo assim, o público habitual interage, ri e se
diverte com o brinquedo que se expressa sob
muitas outras formas – gestos, trejeitos, golpes, Figura 26 -Dança dos Aicos – Cavalo-Marinho
bexigadas, caídas, correrias, danças – além dos Boi Matuto da Cidade Tabajara (PE)

diálogos. As figuras que dizem as loas,


normalmente, ao fazerem, aumentam o volume da
voz e impostam-na um pouco mais. Isso facilita a
compreensão, no entanto, os poucos
frenquentadores da brincadeira ainda terão certa
dificuldade. Estas características cênicas e
performáticas compõem o Cavalo-Marinho como
uma brincadeira que objetiva, sobretudo, divertir Figura 27 -Dança dos Aicos – Cavalo-Marinho
com o outro e não para o outro. A diversão e o Boi Brasileiro de Condado (PE)

brincar se estabelece muito entre os seus, com puias (piadas) que se dirigem à figura como
também ao figureiro. Os brincadores (músicos, figureiros, mestre brincadores) se divertem
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 87

entre si, rindo da cena e da realidade vivenciada por eles no momento da brincadeira. Vida e
arte novamente se misturam.

Diante deste universo complexo, o processo de transmissão destes saberes torna-se algo
muito delicado e de intensa dinâmica de observação, prática e repetição. Aprende-se
brincando. Realizar a brincadeira torna-se, portanto, o próprio veículo de transmissão, de
comunicação e de continuidade da tradição. Como aponta Maria Acselrad, o corpo do Cavalo-
Marinho, múltiplo, “safado” e insipiente denuncia contornos bastante característicos da
brincadeira. A vadiação e a provocação são elementos que fazem dele um complexo de
necessidade e vontade. E a crença na eterna ignorância, diante da infinita riqueza da
brincadeira, o coloca na situação de que é preciso estar sempre em movimento para que se
consiga alcançar algum conhecimento (ACSELRAD, 2002). Coloca Acselrad que “ninguém
começa brincando bem”. O aprendizado é um longo processo de observação, no qual, no
início, o que prevalece é a vontade de brincar. É importante passar por diversos papéis antes
de começar a ser considerado bom brincador. “Este saber é construído e reconstruído no corpo
de cada brincador, a cada noite. A brincadeira, esta sim, é a própria preparação para a
brincadeira” (ACSELRAD, 2002).

Uma interessante definição dada pela autora é de que “as figuras são outros dentro de
um só eu. A multiplicidade é constitutiva da integridade dos sujeitos que as colocam. A figura
não está na máscara, nem está no traje”. De fato, muitas figuras e utilizam da mesma máscara
ou do mesmo traje, assim, “a figura está no figureiro. Na sua história, na sua forma de se
movimentar, de cantar, de pensar, na sua capacidade e habilidade particular para assumir
vários papéis”. Ainda que repleto de improvisos, “a figura é de fato uma elaboração
individual e coletiva com base no prazer estético que a música, a dança e a poesia
proporcionam” (ACSELRAD, 2002). E acrescenta-se aí a história de vida de cada brincador,
que na brincadeira deixa transparecer, ressignificando o corpo, as falas, o movimento, o
sorriso e as durezas da vida. Assim, cada figura tem sua própria característica: sua poesia e
seu movimento próprio.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 88

Figura 28 -Mateus e Bastião de frente para o Banco – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB)

Figura 29 - Dança dos Aicos de frente para o Banco – Figura 30 -Figuras Bodes Véios – Cavalo-Marinho
Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) Estrela de Ouro de Condado (PE)

3.4 TOADAS, LOAS E DIÁLOGOS: A ORALIDADE POÉTICA DO CAVALO-MARINHO

- Senhora, dona da casa


Tenho isenção de Iaiá.
Sei que seu marido merece
Patente de generá.
Quero que dê licença
Do meu cavalo vadiá.
Se der licença, ele brinca,
Se não der, patente de me retirá.
Pastorinha, venho praticá.
-Santo(s) Rei(s) do Oriente
Nós viemos festejá.
(Loa do Mestre Cavaleiro)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 89

As loas (versos, poesias) e as toadas (músicas) são formas de expressão poéticas que
trazem mais uma qualidade cultural à brincadeira do Cavalo-Marinho. São praticadas durante
todo o desenvolvimento do brinquedo. As toadas são realizadas pelo banco, especialmente,
pelo toadeiro (que puxa as toadas) com o auxílio dos outros músicos que tocam e compõem o
coro. As loas são reproduzidas pelos brincadores nas posições de: Mestre, Figura e Galante. O
Capitão, curiosamente, não faz loas, mas é o grande sujeito dos diálogos (conversas) da
brincadeira, sempre realizados entre as figuras e o Capitão. Estas narrativas orais trazem
poesias e falas que contam a história das figuras. Cada figura traz a seu conjunto de diálogos,
loas (se tiver) e toadas. Este é tomado por improvisações e, muitas vezes, interage com o
público. Ao mesmo tempo, diálogos, loas e toadas (estas possuem um grau de variação
pequeno que se faz em longos intervalos de tempo. Carrega mais continuidade do que
transformação) mantêm uma estrutura tradicional.

Há todo um processo de aprendizagem que envolve a transmissão destes


conhecimentos. Existem graus de dificuldade dentro de cada oralidade. Algumas loas são
consideradas muito difíceis, pois são compostas de muitos versos. A figura do Vaqueiro, ou
do Valentão, é um destes casos. Possui variações em cada grupo, mas mantem alguns versos
comuns. Normalmente, esta figura é encenada por Mestres ou pessoas mais velhas do grupo.
Além de saber os versos, introduzir os improvisados, trazer versos do bolso (preparados
anteriormente) e retomar antigas loas, é preciso conjugar o “dizer da loa” (expressão usada
para designar ‘recitar o verso’) com a expressão corporal e sua dramaturgia. A expressão oral
sempre tem que estar conectada com a movimentação e a qualidade corporal. O conjunto
realizado com qualidade é que configura, por exemplo, o bom figureiro. Por isso, não é
qualquer pessoa que sabe colocar toda figura. A narrativa do Mestre Borges Lucas (Cavalo-
Marinho Boi Teimoso, Lagoa de Itaenga [PE]) conta sua experiência:

Porque cada uma que bota, aí ele tinha aquela loa, aí ele ensinava. O chefe, o mestre
ele chamava assim: - Você vai botar tal figura. Essa figura aqui a loa que vai se
apresentar lá é assim, assim e assim. Aí a gente aprendia a loa pra dizer na
apresentação. E é isso que a gente deve passar pra rapaziada de hoje em dia que
vai/o grupo da gente, a gente tem que formar essa mesma lição que eles passaram
pra mim. (...) O mestre Zé Mané, era o dono do Cavalo-Marinho e o mestre. (...) E a
gente tinha que seguir o mesmo caminho dele. Ele era o mestre, né? Desse mesmo
jeito a gente tá seguindo aqui também. Eu tô botando uns menino novo dentro do
brinquedo da gente, que a gente vai passar pra todo final de mês dá um ensaio umas
aula a eles, lá no Artesanato. Pra não deixar a cultura se acabar. (...) Das figuras de
Cavalo-Marinho eu boto tudinho. Boto ‘Quebra-Pedra’, boto ‘Ponte Melindrosa’,
boto ‘Guerreiro’. Tudo isso eu sei fazer, sei botar dentro do Cavalo-Marinho.
(Entrevista de Mestre Borges Lucas concedida a este INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 90

Segue abaixo uma versão de uma parte das loas do Valentão (ou Barbaça) transcrita por
Érico Oliveira ao observar o Cavalo-Marinho Estrela de Ouro (PE):

Sou o Velho Barbaça,


Malvado de profissão.
Caso, confesso e batizo
Hoje aqui nessa pensão.
Minha irmã Sebastiana,
Minha prima Manuela,
Perna de socó,
Bunda de tanajura,
E beiço de gamela.
Menina, que fazeis por aí tão amarela,
Sentada naquela janela?
(Galantes respondem:
Não há outro canto nessa janela.
Pra que vida boa e bela?)
Siga tu e tua mãe,
Siga minha opinião:
Antes que eu vá embora,
Não boto mais que a benção.
(Galantes respondem:
Meu pai assim não vá embora.
Não deixe eu por cá ficar
Sem roupa pra vestir,
Sem dinheiro para gastar.
O que vai acontecer
Se meu pai morrer por lá?)
Não seja besta, menina,
Que por lá não hei de morrer.
Quando eu for que vier,
Um belo noivo hei de trazer.
(Galantes respondem:
Um belo noivo me trai?)
Um belo marido cabano,
Que por lá sempre hai.
(Galantes respondem:
Deus me livre, Deus me guarde,
De casar com marido cabano.
Que a sorte não me dê
O coração de um tirano)
Siga tua e tua mãe,
Se assim queiram passar.
Uma bate, uma mergulha,
Outra bate a mão de dá.
Vão coser, não fiar,
Duas filhas do Diabo. (Versão transcrita por Érico Oliveira In: OLIVEIRA, 2006.)

Quanto aos diálogos, estes também são abertos para os improvisos, inclusive faz parte
do repertório a interação com o público, aproveitando as intervenções inusitadas das pessoas
ao redor, mas possuem uma estrutura pronta de perguntas e respostas para que a cena se
realize dentro da lógica da brincadeira. Os improvisos, normalmente, se dão com os
brincadores mais velhos e experientes. É durante os diálogos que as puias (piadas de duplo
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 91

sentido) aparecem com frequência e, muitas vezes, testam o figureiro, que deve estar atento à
conversa, ou ter experiência, para dar a resposta certa à puia feita. Caso contrário, se isso não
acontecer, está dado o motivo para o riso. O diálogo representa assim a ponte entre as figuras
e o público que acompanha o desenvolvimento do brinquedo. Muitos diálogos trazem
referências da própria realidade da região, isso cria um laço de identidade entre público e
brincadores e dos próprios brincadores com seus “personagens” – figuras. Abaixo um trecho
da Figura Ora Viva, típica dos Cavalos-Marinhos Boi Teimoso, Tira-Teima e Boi Ventania,
pertencentes à Localidade 3: Sul-Oeste.

(A figura chega ao terreiro e é recebida pelo Capitão que o chama para trabalhar.)
Ora-Viva: Capitão, boa noite! Gostou da minha chegada?
Capitão: Ora-Viva, boa noite!
Ora-Viva: Capitão, eu lhe dei boa noite.
Capitão: Boa noite!
Ora-Viva: Boa Noite, capitão! Pra quê mandou me chamar? Tá com medo?
Capitão: Pra trabalhar. Que que ocê tem pra vender? Vamos mostrar. Vamos
trabalhar.
Ora-Viva: Positivo
Capitão: Vamos trabalhar.
Ora-Viva: Tá nervoso, tá?
Capitão: Tô nada!
(Ora-Viva corre para cima dos tocadores ameaçando-os.)
Ora-Viva: (grita) Tá com medo, hein?
(Se dirige ao capitão e pergunta):
Ora-Viva: Capitão, pra quê mandou me chamar?
Capitão: Pra trabalhar. Pra ver o que’cê tem pra vender.
Ora-Viva: Tem gente pra trabalhar mais eu?
Capitão: Tem. Tem um nêgo, um Caroca. Tudo aqui pra trabalhar
Ora-Viva: Cadê ele?
Ora-Viva: É pra trabalhar bem ligeiro.
(Se aproxima o Caroca e Catita, a mulher do Caroca)
Caroca: ôpa!!!
Catita: (falando com voz fina, meio dengosa, se insinua para o Ora-Viva) Aaaaaaii!
Ora-Viva: Capitão! É pra trabalhar com chuva ou com sol?
Capitão: (ordena) É com chuva!
(O capitão faz sinal para o banco que começa a tocar e as três figuras – a Catita, o
Ora-Viva e o Caroca – recuam e se reaproximam dançando em direção ao banco.)
(Trecho transcrito do Cavalo-Marinho do Mestre Borges Lucas – Boi Teimoso –
para este INRC.)

Com relação às toadas, estas trazem variações que se dão de forma mais lenta, num
longo período de tempo. São mais fixas e possuem momentos exatos para serem realizadas.
Algumas têm nomes, como Toada de Alevante, Toada de Boa Noite, Toadas Soltas, e outras
são chamadas pelo próprio nome da figura de que ela faz parte, ou de algum momento da
dança, por exemplo: Toada do Soldado, Toada da Véia do Bambu, Toada do Mané Chorão,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 92

Toada do Cabeção, ou, no caso das danças, Mariêta, Estrela, Queima Carvão, Assubi da
Ladeira, entre outros.
Identifica-se que as toadas são sempre intercaladas com as loas e os diálogos. Existem
alguns padrões estruturais de toadas que se repetem, ocorrendo pequenas modificações,
conforme a figura. Verifica-se isso nas Toadas de Despedidas das figuras, por exemplo:

 Toadeiro: Seu Ambrósio (ou o nome de qualquer figura) cai fora.


 Coro: Dê um passo e vá embora.
 Toadeiro: Seu Ambrósio (ou o nome de qualquer figura) cai fora.
 Coro: Dê um passo e vá embora.
 (Depois que a figura sai da roda do samba)
 Banco: Foi embora e me deixou, amor amor amor (2x)
 Tão cedo não venho cá, amor, amor, amor
 Tão cedo não venho cá, amor, amor, amor, aaaa

Quanto às variações e intercalações, segue o exemplo da cena da figura do Pisa Pilão,


presente em todos os grupos. A versão abaixo se refere ao Cavalo-Marinho da Localidade 2:
Norte-Centro e Paulista, Estrela de Ouro de Condado (PE), transcrição de Fábio Soares.

Banco: Lá vem o Pisa Pilão


com seu cassete na mão
lá vem o Pisa Pilão
com seu cassete na mão.

(Ocorre o acerto do trabalho entre Capitão e Pisa Pilão. Após tudo acertado, o Pisa
Pilão vira para o rebequista e diz:
- Pegai no pé da prima!
(O rebequista sola a melodia uma vez e, depois disto, o Pisa Pilão “pega” e começa a
cantar.)

Pisa Pilão: Não não não seu capitão issassim não pode ser

Banco: Não não não seu capitão issassim não pode ser

Pisa Pilão: Quero quê mim dê licença, pra minha vileuvarê

Banco: Olha cidade, olha cidade,


pra minha, vileuvarê
ô quê cidade bela
tá pu barrer cidade
ô vila nova cidade
tá pu barrer cidade
ô vila nova cidade
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 93

Diferente do Pisa Pilão que chega ao terreiro, negocia com o Capitão e depois canta sua
toada, a figura do Véi (velho) Friento entra na roda do samba, se aproxima do banco faz um
gesto com a mão, o banco então para de tocar, e a figura diz sua loa, Segue a descrição de um
trecho da cena (transcrição de Fábio Soares):

Banco: na barra tem dois riacho


no porto tem dois navio
na barra tem dois riacho
no porto tem dois navio
acocha prima rebeca
pra mim chamá velho frio
acocha prima rebeca
pra mim chamá velho frio

Véi Friento: eu saí da torda, caí no chão,


eu não sou o diabo pa brinca no iscuro oxênte oxênte

Banco: tá muito bom


oxênte oxênte
tá bom de mas
oxênte oxênte
tá muito bom
oxênte oxênte
tá bom de mas

Por fim, como último exemplo, um terceiro tipo de variação verificada (existem mais
do que três variações) é a cena do Caboclo de Arubá. Este, quando chega dentro da roda, se
põe de frente para o banco, que está tocando toada solta, e apita. A música para, e ele começa
(transcrição de Fábio Soares):

Caboclo: Boa noite povo todo


como vai como esta
boa noite povo todo
como vai como está

Banco: boa noite povo todo


como vai como está
boa noite povo todo
como vai como está

Caboclo: eu cheguei nessa ribêra


vinhe bincar com aruba

Banco: ôlê ôlê, ôlê ôlê ôla


eu vii passá
caboco de aruba
eu vii palá
caboco de aruba
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 94

Por fim, vale colocar que a poesia melódica ganhou os palcos da música popular
brasileira. Vinícius de Moraes e Baden Powell (gravação por Baden Powell em 1977)
compuseram a canção “Cavalo-Marinho”, inspirada no folguedo e nos versos transcritos por
Pereira da Costa em 1906: Cavalo-Marinho/Dança no terreiro/Que o dono da casa/Tem muito
dinheiro/Cavalo-Marinho/Dança na calçada/Que o dono da casa/Tem galinha assada/Cavalo
Marinho/Dança no tijolo/Que o dono da casa/Tem cordão de ouro (PEREIRA DA COSTA,
1974: 268). Até hoje alguns versos desta poesia são cantados pelos brincadores.

3.5O CAVALO-MARINHO ENQUANTO PERFORMANCE MUSICAL

Uma brincadeira de Cavalo-Marinho é impossível sem música. A música é


indispensável ao seu desenrolar, desde a toada de “Boa noite!”, que anuncia o início da
brincadeira, até os momentos finais com a cena do Boi, os cocos e os “vivas!”. Ela rege
entrada e saída das diferentes figuras, ajuda a coordenação dos gestos nas danças coletivas,
preenche vazios da ação dramática. Tudo que de relevante acontece em uma brincadeira de
Cavalo-Marinho está de alguma maneira relacionado à música: ou acontece ao mesmo tempo
que ela – caso das danças e dos textos cantados – ou acontece em alternância com ela, caso
dos trechos falados, onde o ritmo das cenas é regido pela maneira como os protagonistas
alternam seus diálogos com intervenções pontuais do banco.25

O Banco
O banco é o grupo instrumental e vocal responsável pela música no Cavalo-Marinho.
Seu nome deriva do banco longo de madeira, sem encosto, onde os músicos se posicionam ao
iniciar a brincadeira, ficando ali sentados enquanto ela dura, com eventuais substituições para
repouso, e com exceção de raros momentos em que tocam de pé. (Em alguns casos, em vez de
banco longo, os músicos usam cadeiras comuns individuais. Isso não altera a designação
usada.) Além de nomear um objeto utilitário e um conjunto de músicos que ali se posiciona, o
banco, no Cavalo-Marinho, designa também um ponto de convergência espacial e simbólico.
Ele é o vértice cênico e ritual da brincadeira, pois quase todas as ações do Cavalo-Marinho
(musicais, dramáticas, poéticas e coreográficas) se situam à sua frente, e para ele são voltadas.

25 John Murphy cronometrou as alternâncias entre música e cenas dialogadas num trecho de cerca de 8 minutos,
num Cavalo-Marinho realizado em 1990. Obteve 15 alternâncias (Murphy, 2008: 106). Uma gravação realizada
pelo Núcleo de Etnomusicologia da UFPE em 2010 registra cinco alternâncias em pouco mais de um minuto (03
Biu Alexandre, Condado, 2010).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 95

Não há face a face entre músicos e público, ou entre brincadores e público, como no palco
italiano. A posição face a face acontece entre o banco e os brincadores, com a figura do
Capitão oscilando entre os dois polos, ora ao lado do banco, voltado para os brincadores, ora
entre os brincadores, voltado para o banco. (Embora tal coisa não seja verbalizada pelos
participantes, é tentador pensar que o Capitão “pertence” também ao banco, na medida em
que exerce uma função musical através do apito, como veremos adiante.)
O banco conta com apenas um instrumento melódico: a rabeca, ou “rebeca”,
instrumento de cordas friccionadas com arco, semelhante ao violino. (Em Recife e Olinda
vale a pronúncia “rabeca”. Mas participantes e apreciadores que residem nas cidades e
vilarejos da Zona da Mata Norte e do Agreste onde se brinca o Cavalo-Marinho dizem quase
sempre “rebeca”). O acompanhamento rítmico varia um pouco entre as diferentes localidades.
Na Localidade Norte-Centro e Paulista, que abriga a versão hoje mais difundida, ele é feito
por um ou mais chocalhos de metal cilíndricos de contas internas, chamados de “mineiro” ou
ganzá, e um ou mais reco-recos de taboca (um tipo de bambu), chamados de bage (substantivo
feminino). Estes dois instrumentos são da família dos idiofones, em que o som é produzido
pela vibração direta do corpo do instrumento: um idiofone balançado, o mineiro, e um
idiofone raspado, a bage. Na Localidade Sul-Oeste não se usa a bage, e na Localidade
Extremo Norte e limítrofes ela é substituída por um “reco de arame”. Outro instrumento é
acrescentado em Cavalos-Marinhos da Paraíba: o triângulo, idiofone de metal, percutido com
baqueta também metálica (como nos grupos de forró).
Além disso, há dois instrumentos da família dos membranofones, em que o som é
produzido por uma membrana esticada. São eles, o pandeiro, de uso geral, e o bombo, usado
apenas na Localidade Sul-Oeste. No caso do pandeiro, a membrana é sintética, pois são
usados pandeiros industrializados adquiridos no comércio. No caso do bombo, usa-se couro
de bode.
O mineiro, a bage e o reco de arame são instrumentos considerados mais simples dentro
do Cavalo-Marinho. Alguém que se inicia no universo musical do Cavalo-Marinho
geralmente começa por tocar um deles. O pandeiro e o bombo são considerados instrumentos
mais complexos que os outros três, tanto em termos da sua variedade rítmica, quanto da
responsabilidade do tocador em relação ao desenrolar da brincadeira. O músico que toca
pandeiro ou bombo – sempre um único músico num momento dado, embora geralmente haja
alternância ao longo da performance – é o toadeiro principal do Cavalo-Marinho, como
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 96

veremos a seguir. A rabeca é o instrumento considerado mais complexo, difícil e valorizado


no Cavalo-Marinho.
Músicos que participam regularmente do banco de um Cavalo-Marinho costumam ser
“especialistas” em determinado instrumento. No entanto, os músicos do banco são capazes de
tocar os demais instrumentos, com exceção da rabeca, e podem fazê-lo em caso de
necessidade. A disposição física dos músicos no banco é normatizada e de caráter funcional
para possibilitar uma conexão musical entre os tocadores (talvez expresse também uma
hierarquia entre instrumentos). Do ponto de vista de um espectador olhando para o banco,
tomando como parâmetro a Localidade Norte-Centro e Paulista, a ordem é a seguinte: na
ponta direita, rabeca, em seguida, à esquerda, pandeiro, uma ou mais bages e, na ponta
esquerda, um ou mais mineiros.
O acompanhamento rítmico é complementado por outros elementos musicalmente
significativos. Um deles é a bexiga usada pelos personagens Mateus e Bastião (com exceção
da Localidade Sul-Oeste, onde não há estas figuras nem o instrumento). Trata-se de uma
bexiga de boi tratada e inflada de ar, formando um pequeno “balão” que, com a mão direita, é
batido na própria coxa por aqueles dois personagens, no ritmo de base do Cavalo-Marinho
(descrito a seguir na seção sobre “Ritmo”). Outro elemento rítmico importante no Cavalo-
Marinho é a batida de pés dos dançarinos. Especialmente no mergulhão, esta batida produz
uma variante do ritmo de base que caracteriza sonoramente aquele momento da performance
(mais detalhes na seção sobre “Ritmo”). Finalmente, como já foi sugerido, o apito do
Mestre/Capitão é um elemento sonoro fundamental do Cavalo-Marinho e desempenha função
rítmica num sentido mais abrangente. Como a batuta de um regente, o apito indica inícios e
paradas de cada intervenção musical do banco e também coordena os movimentos dos
brincantes durante a Dança dos Aico (Arcos). De fato, usa-se no Cavalo-Marinho o verbo
“apitar” no sentido de dirigir, liderar, coordenar: “Fulano vai apitar o início da brincadeira
hoje!”
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 97

Figura 31 -Banco do Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB) - Formação com reco e rebeca

Figura 32 -Banco do Cavalo-Marinho Boi Ventania de Feira Nova (PE) – Formação com Bombo
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 98

3.5.1 Gêneros musicais

Os dois principais gêneros musicais do Cavalo-Marinho são as toadas e os baianos. (A


tese de John Murphy, completada em 1994 e publicada em português em 2008, registra
apenas a denominação “baiano”. A presente pesquisa, no entanto, encontrou muitos
brincadores que dizem, em vez de “baiano”, “baião”.) A principal diferença é que as toadas
são cantadas (quase sempre com acompanhamento instrumental), enquanto os baianos são
apenas instrumentais, sem canto. (Aqui percebemos outra diferença em relação aos resultados
de Murphy, pois ele menciona a possibilidade de baianos serem cantados também. Murphy,
2008:77.)
Embora todos os participantes do banco também cantem, há sempre um responsável
principal por cantar as toadas, chamado de toadeiro. O toadeiro não é um cantor no sentido
usual, pois não canta sem, ao mesmo tempo, tocar um instrumento (como vimos, geralmente
pandeiro ou bombo). Em estreita cumplicidade com o rabequeiro, ele define a próxima toada
a ser cantada (sempre que o desenrolar da ação dramática, cujo regente último é o Mestre, não
torne obrigatório o recurso à toada X ou Y).
A grande maioria das toadas é de tipo “responsorial”, ou seja, há uma primeira parte,
cantada pelo toadeiro, e uma segunda parte, ou “resposta”, cantada pelos demais integrantes
do banco. A primeira parte costuma ser variada, podendo em alguns casos até ser improvisada
pelo toadeiro; a resposta é fixa. O grupo que entoa a resposta é composto em primeiro lugar
pelos demais integrantes do banco, mas outros participantes e até pessoas da assistência
podem juntar-se a eles no canto.
Entre as toadas, algumas distinções são feitas tendo relação com a letra e a função no
entrecho dramático. Algumas toadas são usadas para introduzir a presença de uma nova
figura: são toadas “de entrada”. Outras são usadas para “despachar” uma figura que já brincou
o suficiente: são toadas “de saída” (cabe a quem estiver apitando a brincadeira no momento
avaliar se o timing do brincador que está botando a figura é adequado às circunstâncias, ou se
deve interromper sua atuação solicitando ao banco a toada apropriada). Todas as figuras têm
suas toadas próprias, que são cantadas quando já estão no centro da cena e desempenham suas
danças e gestos característicos: toada “do Mateus”, toada “do Cavalo”, e assim por diante.
Finalmente, são chamadas de “toadas soltas”, aquelas que podem ser cantadas a qualquer
momento somente para preencher vazios da ação dramática, quando por qualquer razão
produz-se durante o Cavalo-Marinho uma “espera” cênica.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 99

Do ponto de vista da música, as toadas de entrada, de saída e as soltas são, em muitos


aspectos, similares. As de entrada e de saída de uma figura podem até ser musicalmente
iguais, variando apenas a letra, que num caso a “acolhe” e no outro a “despede”. Também é
comum que toadas de saída de diferentes figuras sejam iguais em música e letra, variando
apenas o nome da figura. Isso acontece, por exemplo, nas toadas de saída do Soldado (ver
Anexos) e do Pisa-Pilão:

Toada de saída do Soldado:


Seu Soldado, caia fora
Dê um passo e vá embora! (Bis)

Toada de saída do Pisa-Pilão:


Pisa-Pilão, caia fora
Dê um passo e vá embora! (Bis)

Outras toadas de Cavalo-Marinho, porém, apresentam aspecto sonoro bastante


diferenciado. São cantadas em andamento mais lento, com ritmo mais livre, e acompanhadas
apenas pela rabeca, sem a participação dos instrumentos da base rítmica. Até onde
conseguimos saber, os participantes do Cavalo-Marinho não fazem uma distinção explícita
entre estas toadas mais lentas e as outras, no sentido de considerá-las como de gênero ou
subgênero diferente. A existência destas toadas musicalmente “diferentes” não escapou a John
Murphy, que sugeriu que sua distintividade musical se relaciona de maneira consistente com
diferenças nas letras e na maneira como elas se encaixam no entrecho dramático (Murphy,
2008:106-108). De fato, tais toadas são típicas de momentos em que o aspecto religioso do
cavalo-marinho se manifesta de maneira especialmente pronunciada. A toada de Reis (em
homenagem aos Reis Magos, ou “Santo[s] Rei[s] do Oriente”, como dizem os brincadores),
cantada na cena dos galantes, é um exemplo (ver Anexos). Neste caso, tanto a letra da toada
quanto o contexto cênico remetem ao cristianismo. Mas o mesmo tipo de toada comparece
também na cena do Caboco de Arubá, na qual a conexão religiosa não se relaciona ao
cristianismo, mas ao culto da Jurema (ver Anexos).
Além dos diferentes tipos de toadas e dos baianos/baiões instrumentais, outros gêneros,
não específicos do Cavalo-Marinho, comparecem em menor medida na brincadeira. Um deles
é o coco, gênero multifacetado de música e dança, comum em várias festividades do Nordeste
e atualmente em curso de patrimonialização pelo Iphan. No Cavalo-Marinho, o coco surge
como uma diversão final, com participação do público, imediatamente antes dos “vivas!” que
fecham a brincadeira. (Na Localidade Sul-Oeste, o gênero comparece também na cena do
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 100

Baile das Baianas, como veremos a seguir). Neste contexto, os cocos são acompanhados pelos
mesmos instrumentos do banco – e não pelos instrumentos musicais que lhes estão associados
por ocasião das festas juninas ou outras situações apropriadas (em alguns casos, só pandeiro;
em outros, bombo, tarol e ganzá, entre outras possibilidades). Em coerência com isso, o ritmo
de acompanhamento dos cocos no Cavalo-Marinho é o mesmo ritmo de base usado no resto
da brincadeira, e não os padrões usuais de acompanhamento de cocos em outros contextos.
Outro gênero que comparece em momento específico do Cavalo-Marinho é a incelença,
um canto fúnebre cantado tradicionalmente por ocasião de velórios em certas comunidades
rurais. No Cavalo-Marinho, são cantadas incelênças de cunho cômico na cena da Véia do
Bambu, quando ocorre a morte do Véio Joaquim. Como a incelença possui cunho religioso,
sua sonoridade no contexto do Cavalo-Marinho se assemelha, coerentemente com o que ficou
dito acima, às toadas “lentas” das cenas dos galantes e do Caboco de Arubá.
Na Localidade Sul-Oeste, outros gêneros não específicos do Cavalo-Marinho são
trazidos para a brincadeira, em função do contexto de determinadas cenas em que eles se
encaixam bem. Na cena do Baile das Baianas (cena específica desta localidade), são cantadas
marchinhas, cirandas e cocos.

3.5.2Elementos musicais do Cavalo-Marinho

Ritmo
A música do Cavalo-Marinho se caracteriza, na maior parte do tempo, por um padrão
rítmico repetido no acompanhamento. Este padrão é produzido pela interação entre os padrões
rítmicos, também repetidos, de cada um dos diversos instrumentos do banco.
Os sons de bage, reco de arame e mineiro podem ser descritos por uma sequência
ininterrupta de semicolcheias num compasso dois por quatro em tempo rápido. Na bage e no
reco, o movimento da baqueta para baixo (um pouco mais acentuado) acontece nos pulsos
ímpares, e o movimento para cima, nos pulsos pares. No mineiro, o movimento das mãos se
afastando do peito do tocador (um pouco mais acentuado) acontece nos pulsos ímpares, e se
aproximando do peito, nos pulsos pares.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 101

Dependendo do momento, em vez de sequência ininterrupta, seria mais acurado propor,


como descrição, uma sequência anacrústica composta de duas semicolcheias+colcheia. A
colcheia corresponde ao movimento mais acentuado da mão que se afasta do peito do tocador,
ou que move a baqueta para baixo. No prolongamento da colcheia, a mão faz o trajeto
inverso, se reaproximando do peito do tocador ou trazendo a baqueta para cima, para então
reiniciar a célula rítmica.

O bombo na Localidade Sul-Oeste, e o pandeiro nas demais localidades, tocam padrões


rítmicos mais complexos, nos quais, no entanto, destacam-se auditivamente, devido às
acentuações mais fortes, as posições da primeira e da quarta semicolcheias. Estas acentuações
caracterizam um padrão rítmico assimétrico do tipo 3+5, que o etnomusicólogo francês Simha
Arom chamou de “imparidade rítmica” (padrão, aliás, muitíssimo comum na música
brasileira, e em especial na nordestina):

Este padrão assimétrico é o mesmo tocado pela bexiga e é uma característica marcante
da sonoridade do Cavalo-Marinho. No entanto, o padrão rítmico em si, tal como aparece na
transcrição musical proposta, nada tem de específico do Cavalo-Marinho, podendo ser
encontrado em inúmeras expressões musicais brasileiras, como o baião, o coco, o samba de
roda e muitas outras. O que o torna específico do Cavalo-Marinho, a nosso ver, são duas
coisas. Primeiro, o andamento comparativamente rápido com que é executado nesta
brincadeira. Nunca nos gêneros citados, nem mesmo nos forrós mais ligeiros, alcançamos
andamentos tão rápidos como os 126 BPM que o ritmo de Cavalo-Marinho alcança
frequentemente. Segundo, a sonoridade total no contexto em que o ritmo é ouvido. O timbre
do mineiro combinado à bage e/ou ao reco de arame, em andamento rápido, num fluxo de
semicolcheias ininterruptas, fornece um pano de fundo sonoro inconfundível para o padrão
transcrito. Além disso, tanto o pandeiro como o bombo acentuam os toques no padrão
transcrito, mas os articulam, de maneira muito rica e nuançada, a todo um conjunto de toques
(no caso do pandeiro, feitos diretamente com as mãos; no caso do bombo, com duas baquetas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 102

de tamanho diferente, como veremos). O que os ouvintes finalmente ouvem é todo este
conjunto, que não nos arriscamos a transcrever aqui, remetendo os leitores para os
correspondentes registros em áudio e vídeo que compõem este dossiê. Nossa transcrição dada
acima capta apenas um dos aspectos importantes do ritmo do Cavalo-Marinho, sem qualquer
pretensão à exaustividade.
Como foi dito acima, a dança do mergulhão, no início do Cavalo-Marinho, apresenta
um padrão rítmico peculiar, trazido pelas pisadas dos brincantes no chão. Este padrão
confirma as acentuações na primeira e na quarta semicolcheias, mas acrescenta outras
articulações na parte final do ciclo, como indicado na transcrição a seguir:

Escala e modos
Durante a presente pesquisa não submetemos gravações de melodias de Cavalo-
Marinho a análises tonais com recursos eletrônicos, procedimento ainda pouco difundido na
etnomusicologia brasileira. Nossa apreciação será feita, portanto, com base exclusiva na
audição de músicos com treinamento acadêmico, que fazem parte da equipe de pesquisa.
As melodias de Cavalo-Marinho empregam basicamente uma escala diatônica que não
parece sensivelmente distante do temperamento igual. Um dos maiores rabequeiros de cavalo-
marinho, Seu Luiz Paixão, do Cavalo-Marinho Boi Brasileiro, Condado [PE] (Localidade
Norte-Centro e Paulista), já usa, faz alguns anos, um afinador eletrônico para afinar sua
rabeca. (Este procedimento indica que ele afina as cordas soltas – em quintas – usando
temperamento igual. Mas não garante que os outros intervalos, produzidos pelo
posicionamento dos dedos da mão esquerda sobre as cordas, usem também o temperamento
igual.)
A principal diferença que pudemos perceber, em alguns casos, na afinação das melodias
de Cavalo-Marinho em relação ao temperamento igual é o uso esporádico de terça neutra. (A
terça neutra representa um intervalo de terça, ou Dó/Mi, intermediário entre a terça maior –
Dó/Mi natural – e a terça menor – Dó/Mi bemol.) Tal uso é notório, embora ainda não
devidamente estudado, na música tradicional da Zona da Mata Norte de Pernambuco,
particularmente na ciranda e no maracatu rural. Como os brincantes e músicos de Cavalo-
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 103

Marinho participam geralmente também destas outras brincadeiras, não é surpreendente que
terças neutras apareçam ali também.26
O modo predominante no Cavalo-Marinho é o maior. O modalismo não é frequente,
mas encontramos exemplos de uso do modo mixolídio (ou algo próximo disso, na medida em
que não fica totalmente claro se a sétima da escala é cantada como sétima menor ou numa
altura intermediária entre a sétima maior e a menor27). Muitas melodias de Cavalo-Marinho
mostram predileção por um âmbito de tipo plagal, ou seja, um âmbito de uma oitava
aproximadamente, mas indo da quinta inferior à quinta superior (e não da tônica grave à
tônica aguda). A polifonia vocal não é frequente, embora eventualmente possa haver duas
vozes abrindo terças. No toque da rabeca, no entanto, o uso de duas vozes é a regra. É
muitíssimo comum entre os rabequeiros de Cavalo-Marinho o uso de uma corda solta como
pedal enquanto a melodia é tocada em corda contígua, entre outras possibilidades, de
polifonia a duas vozes.

3.5.3 Instrumentos do Cavalo-Marinho

Rebeca
A rebeca ou rabeca é o instrumento mais valorizado no Cavalo-Marinho. Em alguns
casos, é fabricada localmente, mas nos últimos anos, com o acesso a violinos baratos
importados, tornou-se comum o uso de modelos industrializados. Assim, para os músicos de
Cavalo-Marinho, não importa que em outros contextos o instrumento usado seja chamado de
“violino”. No contexto da brincadeira, será sempre uma rebeca, quer fabricada
industrialmente, quer artesanalmente.
A literatura especializada (Gramani, 2002; Fiamminghi, 2009) já sublinhou que, entre
as rabecas brasileiras, não existe padronização de medidas, formas ou afinação (ao contrário
do violino, que obedece a uma padronização rígida e praticamente imutável desde o século
XVII). As rebecas do Cavalo-Marinho, no entanto, apresentam, em linhas gerais,
características físicas similares às dos violinos, embora de tamanho um pouco maior. Todos

26Um exemplo bem nítido pode ser ouvido na faixa “Toada solta” do CD Pimenta com Pitu, do rabequeiro Luiz
Paixão. A terça neutra aparece na penúltima nota da melodia, que é repetida várias vezes. A transcrição está nos
Anexos.
27Há um exemplo na mesma “Toada solta” citada na nota anterior, cuja transcrição encontra-se em nossos
anexos. A melodia está em Mi Maior, mas a nota Ré é sempre cantada como Ré natural, caracterizando o modo
mixolídio.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 104

os rabequeiros encontrados pela pesquisa usam afinação em quintas num diapasão situado
entre, do grave para o agudo, Ré-Lá-Mi-Si e Fá-Dó-Sol-Ré aproximadamente.
Em Pernambuco, destacou-se como habilidoso construtor de rabecas o Sr. Manoel
Severino Martins, que ficou conhecido como “Mané Pitunga”. Nascido em 29 de maio de
1930, no engenho Boa Vista, município de Itambé, passou a residir em Ferreiros (PE) a partir
de 1936, onde fixou moradia. Desenvolveu-se como autodidata no ofício de tocar e
confeccionar o instrumento, e ainda hoje é lembrado por ter feito as melhores rabecas da Zona
da Mata Norte. Mané Pitunga faleceu em Ferreiros, em 2002. Hoje, os mais conhecidos
construtores de rabecas da região são Mário de Prancha, Zé de Nininha e Mongó, de
Ferreiros; Biu de Dóia, de Glória de Goitá; e Fred, de Goiana.
A rabeca vem passando por um ressurgimento em Pernambuco desde os anos 1990,
com o aparecimento de novos rabequeiros, tanto em Recife e Olinda, como nas cidades da
Zona da Mata Norte. Este ressurgimento sem dúvida beneficia a prática do Cavalo-Marinho,
ainda que nem todos estes novos rabequeiros dediquem-se ao repertório da brincadeira (em
alguns casos, preferem dedicar-se ao forró de rabeca ou a repertórios mais autorais).28

Pandeiro
O pandeiro é um dos instrumentos mais difundidos na música brasileira de norte a sul,
seja em versões artesanais de diferentes tamanhos com ou sem platinelas, seja nos modelos
industrializados amplamente consumidos por grupos de samba e de choro. Os pandeiros
usados no Cavalo-Marinho são industrializados, com pele sintética, e platinelas e tarraxas de
metal para afinar. Mas as maneiras de tocá-los são específicas do gênero.
O pandeiro é seguro pela mão esquerda do tocador com o plano da pele na posição
vertical, e não horizontal, como acontece no choro e no samba. Uma das vantagens desta
posição é facilitar a movimentação da mão esquerda (ajudando a fazer o pandeiro percutir a
mão direita, e não apenas a mão direita percutir o pandeiro). As técnicas de toque da mão
direita são muito variadas e muito diferentes das técnicas bem mais conhecidas, usadas por
pandeiristas de samba e choro. Muitos toadeiros e mestres de Cavalo-Marinho desenvolveram
técnicas pessoais de tocar pandeiro, e os brincadores reconhecem estas diferenças, atribuindo-
as a seus respectivos “autores”. Em alguns casos, sabem reproduzi-las.

28Um excelente panorama da prática da rabeca no estado pode ser obtido no CD duplo Rabequeiros de
Pernambuco, produzido por Cláudio Rabeca em 2011, com apoio do Funcultura/Fundarpe.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 105

Bombo
O bombo é um tambor de formato cilíndrico curto, membranofone, com peles dos dois
lados, tocado com baquetas de madeira. O bojo é de compensado, e as peles (couros curtidos
de cabra ou de bode) são esticadas por um sistema de parafusos e porcas metálicas.
O bojo do bombo é apoiado na perna esquerda do tocador, com as peles no sentido
vertical. O toque principal é feito com uma baqueta de madeira segura pela mão direita. O
braço esquerdo repousa sobre o bojo, e a mão esquerda segura uma vareta fina chamada de
“bacalhau”, que complementa o toque com um som mais leve e mais agudo. O padrão rítmico
empregado no Cavalo-Marinho “preenche” todas as semicolcheias de um compasso dois por
quatro, alternando de maneira assimétrica os toques da mão direita (acentuados) e os da mão
esquerda (mais fracos). Na imagem sonora resultante, prevalece um ritmo de tipo “332”, dos
que vêm sendo apontados frequentemente em estudos sobre música popular brasileira.
Em Pernambuco, os únicos grupos que utilizam bombos no Cavalo-Marinho são os da
Localidade Sul-Oeste. Estudos prévios (especialmente Murphy, 2008:121) haviam
mencionado o bombo como sendo típico de Bumba meu Boi e não de Cavalo-Marinho, e
mesmo como sendo um critério de distinção entre as duas brincadeiras. Os grupos com quem
trabalhamos nesta localidade, no entanto, como vimos acima, demonstraram firmeza ao
classificar o que fazem como “Cavalo-Marinho”, e não “Bumba meu Boi”.

Bage
A bage é um tipo de reco-reco, instrumento musical classificado como idiofone
raspador. É feita com um tipo de bambu fino (menos de 10cm de circunferência), chamado
localmente de “taboca”, obtido nas matas da região, do qual se corta um pedaço medindo de
45 a 50 cm de comprimento. Ranhuras transversais são feitas com uma faca, a intervalos
iguais, ao longo da taboca, e o som é obtido raspando a superfície serrilhada com um bastão.
Dois cortes finos nas laterais ajudam a amplificar o som. Antes de ser usada, a bage é
envernizada para efeito de embelezamento e de proteção contra cupins. As bages são feitas
pelos próprios brincadores de Cavalo-Marinho.
Alguns brincadores de Cavalo-Marinho afirmaram ver a bage como o instrumento mais
característico e representativo do folguedo (posição ocupada pela rabeca em outros relatos).
Isso se deve a serem o pandeiro, o mineiro e a própria rabeca utilizados em outros gêneros de
música tradicional pernambucana, como forró, ciranda, coco etc. A bage, ao contrário, marca
a sonoridade do Cavalo-Marinho pela exclusividade com que aparece nesta brincadeira. (Esta
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 106

visão não procede, é claro, de brincadores das localidades Extremo Norte e limítrofes e Sul-
Oeste, onde a bage não se faz sempre presente.)
No Cavalo-Marinho Boi de Ouro em Itambé/Pedras de Fogo (Localidade Extremo
Norte e limítrofes), a bage pode coexistir durante a performance musical com o reco de
arame, outro tipo de idiofone raspador, ou ser por ele substituída.

Mineiro
O mineiro é um chocalho metálico de contas internas, de formato cilíndrico longo,
seguro pelas extremidades com as duas mãos, transversalmente, na altura do peito do tocador.
Ocasionalmente pode ser chamado também de “ganzá”. Como foi dito acima, o padrão
rítmico do mineiro pode ser transcrito como uma sequência ininterrupta de semicolcheias
sobre um compasso dois por quatro, mas os bons tocadores obtêm resultados sonoros muito
mais ricos e nuançados do que tal transcrição sumária dá a entender. Fazem isso explorando
as possibilidades de acentuar alguns movimentos, e de fazê-los quase imperceptivelmente
mais curtos ou longos, dependendo do traçado das mãos no espaço, ora explorando o plano
horizontal, ora o plano vertical à frente do tocador. Não há simetria total entre as mãos direita
e esquerda: é a primeira que conduz a diversificação do toque, enquanto a segunda permanece
um pouco mais fixa, como um ponto de apoio.

Bexiga
Uma bexiga de boi inflada é usada como instrumento percussivo no Cavalo-Marinho
pelos personagens do Mateus e do Bastião. Na brincadeira, a bexiga possui duas utilidades
principais: ela é utilizada como instrumento musical, auxiliando a manter o pulso da música,
uma vez que sua sonoridade é mais grave que a dos demais instrumentos presentes; e também
pode ser utilizada por Mateus e Bastião para golpear outras figuras ou até mesmo o público.
Estes golpes são mais barulhentos que doloridos, de modo que é comum as bexigadas
desferidas por Mateus e Bastião arrancarem gargalhadas do público.
As bexigas não são duráveis, e por isso precisam ser renovadas sempre que há uma
brincadeira. Brincadores que fazem Mateus e Bastião são geralmente responsáveis por
garantir o suprimento de bexigas. Uma das primeiras providências que o responsável por um
grupo de Cavalo-Marinho toma, quando tem confirmação de que haverá brincadeira, é avisar
o Mateus (ou outro encarregado) da necessidade de providenciar e tratar bexigas de boi em
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 107

número suficiente. Alguns brincadores também podem dar ou vender bexigas prontas para
outros.
A bexiga é retirada do boi logo após o abate, no matadouro. O responsável pelas
bexigas faz o pedido com antecedência diretamente ao funcionário do matadouro. Depois de
limpa (retirados as gorduras e os sebos), a bexiga é tratada com sal (em alguns casos também
temperos, como cominho e colorau), e passa por um processo de secagem ao sol e
umidificação (com óleo de cozinha). Finalmente, a bexiga é inflada com ar. Para isso, o
“pescoço” da bexiga (sua parte mais grossa) é amolecido com água e por ali é passado um
pequeno canudo (normalmente usando uma caneta esferográfica sem carga) por onde o
brincador sopra. Atualmente é possível ver bexigas sendo enchidas com bombas de encher
bolas de futebol ou pneus de bicicleta. Como a durabilidade da bexiga é curta, dependendo do
tempo em que precisar ficar guardada, ela pode ser armazenada em geladeira para evitar
moscas e retardar seu apodrecimento. (Isso, claro, desde o momento relativamente recente em
que brincadores de Cavalo-Marinho passaram a ter geladeiras em casa.)

3.6 CELEBRAÇÃO E RELIGIOSIDADE

O Cavalo-Marinho se caracteriza tanto pelo caráter profano como pelo religioso.


Publicamente, se revela como uma festa para Santo(s) Rei(s) do Oriente que ocorre para
festejar e louvar Jesus Cristo, e, durante a brincadeira, também se verifica, em alguns grupos,
referências ao culto da Jurema. Roberto Benjamin, em sua pesquisa na década de 80 do século
XX, pontuou que alguns pesquisadores, ao estudarem as manifestações culturais que se
realizam no ciclo natalino e fazem referências à comemoração dos Santos Reis do Oriente,
interpretaram a expressão Santos Reis do Oriente como uma distorção de Santo Rei do
Oriente – a homenagem não seria aos reis magos, mas a Jesus (BENJAMIN, 1989: 48). Neste
INRC, em entrevistas realizadas e nas observações das brincadeiras realizadas, constata-se
que a maior parte dos brincadores pronuncia Santo Rei do Oriente, no singular. Quanto a
Jurema, não se encontram referências sobre a prática desta espiritualidade no Cavalo-
Marinho, mas os brincadores e mestres trazem suas narrativas que afirmam esta religiosidade
como presente no brinquedo.
A louvação ao Divino Santo Rei do Oriente se revela num momento da brincadeira
chamado Estrela. Trata-se de uma parte da Dança dos Aico (ou Baile dos Arcos), ou o Baile
das Baianas (no caso da Localidade 3). A Dança dos Aico é conduzida/comandada pelo
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 108

“Mestre dos Arcos”, ou simplesmente “Mestre”. Nesta parte da brincadeira são formados dois
cordões (filas) de galantes, sendo que o Mestre se posiciona à frente e entre os dois cordões.
Cada cordão é formado por, no máximo, seis integrantes. Cada Galante possui um arco de
cipó japecanga enfeitado com fitas coloridas (de material plástico ou TNT). Em cada
brinquedo ocorre suas especificidades, no Cavalo-Marinho Estrela do Oriente, de Mestre
Inácio Lucindo (Localidade 1), o Baile dos Arcos inicia-se com o Baile do Mestre (neste, o
Mestre dança de par com cada um dos galantes, um por um). Porém, o mais comum é que o
Baile dos Arcos se inicie com a Galantaria chegando junto com a figura do “Mané do Baile”.
Nesta formação, a Estrela é o início do Baile. Este é o único momento em que o os músicos (o
banco) se levantam e se dirigem para o centro da roda, mantendo suas posições e alinhados,
cantando de pé. Neste momento, Mateus e Bastião seguram a Estrela, na maioria das vezes
confeccionada de cipó japecanga, bambu e papel celofane, com seu interior iluminado por
uma vela acesa. Os versos da música da estrela são fixos e “puxados” pelo Mestre e
respondidos pelo banco. O momento não é de dança e apenas se louva à Estrela, neste
momento, simbolizando Jesus Cristo.

Mestre: Que estrela é aquela que alumeia lá no mar?


Que alumeia lá no mar?
Banco: É divino santo rei que nós viemos festejar.
Que nós viemos festejar.
Todos: Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Lá lá lá lá
Mestre: Que estrela é aquela que vem lá bater do Norte?
Que vem lá bater do Norte?
Banco: É o Santo Rei do Oriente que vem dar a boa sorte.
Que vem dar a boa sorte.
Todos: Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Lá lá lá lá
(...)
Mestre: Senhora, dona da casa eu não quero o seu dinheiro.
Eu não quero o seu dinheiro.
Banco: Quero que me dê licença pra brincar no seu terreiro.
Pra brincar no seu terreiro.
Todos: Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Ei-lá. Ei-lá, Ei-lá-lá-lá-lá-lá
Lá lá lá lá
(Versão do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado [PE])

Ainda na Dança dos Aico ocorre a Dança de São Gonçalo do Amarante (o santo
casamenteiro). Novamente se observa a referência religiosa “católica” do Cavalo-Marinho,
que, após louvar o Santo Rei do Oriente, incorpora versos e toadas referenciando a São
Gonçalo do Amarante que, em muitos estados do Brasil, incluindo Pernambuco, é (ou era)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 109

homenageado com festas. Identifica-se, portanto, o caráter religioso do Cavalo-Marinho no


ápice da brincadeira, que é a Dança dos Aico (e, no caso da Localidade 3, o Baile das
Baianas, que se desenvolve de forma diferenciada).
Em alguns grupos, a religião católica não é a única representada na brincadeira do
Cavalo-Marinho. É importante colocar que existe um discurso público de que o brinquedo
louva e é feito em homenagem a Jesus Cristo, não obstante, em alguns casos, existe outro
discurso, não revelado (por alguns) e repleto de mistérios, que traz a Jurema como prática
religiosa presente no brinquedo. Nos grupos de Cavalo-Marinho em que se presencia o culto à
Jurema, a religião católica também está presente e continua sendo o sentido principal da festa.
A diferença se encontra na presença da figura do Caboclo de Arubá, ou do Caboclo de Pena,
que, em alguns Cavalos-Marinhos, faz claras referências à Jurema. Nestes brinquedos, o
figureiro, ligado a sua espiritualidade, ao encenar a Figura do Caboclo, recebe alguma
entidade.
Os relatos orais confirmam que o falecido Mestre Duda Bilau (Itambé [PE]) foi um dos
primeiros figureiros a botar o Caboclo de Arubá. Atualmente existem quatro figureiros –
Mestre Biu Alexandre, Mestre Inácio Lucindo, Pedro Salustiano e Totó (neto de Mestre
Antônio Telles) – que colocam esta figura, e quatro que colocam o Caboclo de Pena – Mestre
Borges Lucas e seu filho, Mestre Zé de Bibi e seu filho. Exceto Pedro Salustiano (Boi
Matuto), que encena a figura em cima apenas de princípios técnicos, o restante dos
brincadores traz a referência espiritual para a figura.
A Jurema é encontrada em várias regiões do Nordeste, e tem sua presença marcante na
Zona da Mata Norte de Pernambuco e litoral Sul da Paraíba. Seu nome tem relação com a
árvore/planta da jurema, com a qual se faz uma bebida ritual de mesmo nome utilizada em
cerimônias religiosas. Cita-se Mestre Antônio Telles (Cavalo-Marinho Estrela Brilhante), que
pertence à Umbanda, atuando nas casas da Jurema em Condado (PE) e fiscal da Associação
dos Juremeiros de Goiana (PE). Seu neto, Totó (Ridervan), já na sua juventude, se envereda
para a espiritualidade do Caboclo de Arubá, botando a figura no brinquedo do avô.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 110

Figura 33 -Dança dos Aico – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB)

Figura 35 -Cablocos de Pena – Mestre Borges Lucas e seu


filho- Cavalo-Marinho Boi Teimoso de Lagoa de Itaenga
(PE)

Figura 34 -Caboclo de Arubá – Mestre Biu


Alexandre – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro
de Condado (PE)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 111

Diz uma das toadas cantadas pelo Caboclo de Arubá: “Sou um caboclo de pena e vou
me juremar”, fazendo alusão a suas raízes indígenas e ao culto da Jurema. As toadas cantadas
pelo banco e pelo brincador evocam a entidade do caboclo de Arubá, e configura-se ali um
momento de transe. Um dos pontos marcantes da figura se dá quando ela anda, deita e rola
por cima de cacos de vidro: geralmente, garrafas são cuidadosamente quebradas pelos negros
Mateus e Bastião, e seus pedaços são espalhados por cima de um saco grande – ou algo do
tipo – e acontece uma ‘performance’ por cima deste vidro, e a pessoa que está com o Caboclo
de Arubá não se corta, não se machuca, não sofre nenhum ferimento. Segue parte da Toada do
Caboclo de Arubá:

Estrela amazona, fulo mangerona.


Estrela amazona, fulo mangerona.
Chuva chovia, trovão trovejava.
Chuva chovia, trovão trovejava.
No alto da serra as estrelas encruzava.
No alto da serra as estrelas encruzava.
Nos are armei meu balanço.
Nos are eu me abalançava.
Nos are armei meu balanço.
Nos are eu me abalançava.
Arreia Cabôco, pra me ajudar.
Arreia Cabôco, pra me ajudar.
Cabôco da mata, nagô, juremá.
(Versão do Caboclo de Arubá do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado
[PE])

Na Localidade 1, os Cavalos-Marinhos apresentam a figura do Caboclo de Pena.


Segundo os relatos de Mestre Zé de Bibi, a representação da figura do Caboclo de Pena no
Cavalo-Marinho é um elo com essa herança ancestral, abre o terreiro para a chegada da
entidade que está ligada ao figureiro, que, sendo um adepto do culto à Jurema, está capacitado
a dominar aquela situação e, assim, trazer a entidade para brincar, cantando e dançando, e
depois despachá-la, concluindo a manifestação espiritual. No trecho abaixo, o Mestre Zé de
Bibi apresenta sua visão sobre os sistemas de crenças que envolvem a figura do Caboclo de
Pena ou Reiamar:

É uma expressão de Jurema, a expressão de caboclo Canindé, a expressão de


caboclo africano, tem vários tipos de caboclo, porque na mata, na montanha tem
muitos tipos de caboclo. Caboclo Reiamar, Canindé, Urubá, tudo é caboclo da mata
e cada um desses tem uma toada, tem um jeito de cantar, tem uma sofa, não é uma
sofa só. Aí eu já tinha as ideias e peguei essas ideias deles tudinha. (Entrevista de
Mestre Zé de Bibi concedida a este INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 112

Conforme o relato do mestre Zé de Bibi, podem-se compreender os atributos espirituais


ligados à figura do Caboclo de Pena ou Reiamar. Pode incorporar espíritos de caboclos que
são ligados a sistemas de crenças, que o mestre denominou por Jurema, Umbanda,
Candomblé e Catimbó. Não se referiu exclusivamente a um tipo de culto religioso, mas
relacionou todas essas formas de expressões religiosas à figura do Caboclo de Pena ou
Reiamar. Nos Cavalos-Marinhos desta localidade, a performance do Caboclo de Pena não
inclui a utilização de vidros, como ocorre nos grupos das outras localidades, e as toadas são
diferentes.
Outro momento da brincadeira – verificado em alguns grupos da Localidade 2 – que
inclui características cerimoniais é a parte da incelência (ou incelença). A incelência é uma
cantiga fúnebre entoada nos velórios aos pés do morto. Diferencia-se do bendito, pois este é
cantado à cabeceira do defunto. Na brincadeira, esta parte ocorre quando o Véio Joaquim,
marido da Véia do Bambu, morre. A cena é longa, começando pela Ema, depois a Véia do
Bambu, que chama por Véio Joaquim. Este aparece, mas então entra a Morte e açoita o Véio.
Este cai no chão e, depois de muita choradeira da Véia, se dá a incelença cantada por Mateus
e Bastião. Segue parte da cantiga:

O veio da véia morreu,


A véia pegou a chorar,
Passando a mão
Em outro lugar.

Desceu dois anjo do céu


Com dois saco de feijão
Com dois saco de carne
Pra Mateus e Bastião

O véio da véia morreu


Na roda do Capitão
Enquanto o povo chorava
A véia passava a mão.
(versão do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado [PE])

A cena desde o início é cômica, misturando religião e sátira. Após a morte do Véio
Joaquim, aparece o Padre Capelão, que entra em cena para confessar o corpo do morto. A
Véia do Bambu tenta agarrá-lo a qualquer custo (Véia do Bambu é uma personagem com
características grotescas – um homem vestido de mulher – que reproduz gestos de apelo
sexual). Depois de muita confusão, o Padre decide chamar o Diabo. A figura do Diabo entra
na roda com dois pedaços de madeiras com chamas de fogo na ponta, dá uma volta no terreiro
e sai levando a Véia do Bambu nas costas. A comicidade prevalece na cena, invertendo o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 113

sentido da religiosidade e “satirizando” a figura do Padre. Nota-se que, na incelença, ao invés


da reza se dar nos pés do morto, se dá na cabeça, indicando aí que tudo será uma grande
sátira, cheia de inversão. Destaca-se o caráter profano e religioso do brinquedo do Cavalo-
Marinho. Como coloca Maria Acselrad, associações do profano com o sagrado são comuns
entre os brincadores, “para quem ‘a brincadeira é coisa de gente safada’, pelo alto teor
pornográfico, irônico, grotesco e violento das piadas, ao mesmo tempo em que ‘a brincadeira
é coisa divina’, já que ‘o diabo chega até a beirada da roda, mas não entra com medo da
rabeca e da bage que rapam em cruz’” (ACSELRAD, 2002). E para o russo Mikhail Bakhtin,
o conceito de grotesco (característica presente em algumas figuras do Cavalo-Marinho), no
contexto da Idade Média e Renascimento, está vinculado a um riso ambivalente, festivo, que,
ao mesmo tempo, que destrói, faz nascer o novo. O que se evidencia é sempre a ideia de
renascimento que surge a partir da inversão das leis, da eliminação de hierarquias, da vivência
plena da festividade (BAKHTIN, 1999). Tem-se aí o riso como patrimônio universal.

Figura 36 -Cena da morte do Véio Joaquim – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 114

3.7 AS NARRATIVAS SOBRE O CAVALO-MARINHO: ORIGENS, CONTINUIDADES E


TRANSFORMAÇÃO AO LONGO DO TEMPO

3.7.1 Cavalo-Marinho e seu diálogo com o Bumba meu Boi

A pesquisa bibliográfica sobre os estudos folclóricos a respeito do Cavalo-Marinho


trazem referências sempre dialógicas com o brinquedo do bumba meu boi. Dificilmente
encontramos sua classificação separada. Roberto Benjamin, Câmara Cascudo e Mário de
Andrade definem de modo geral o Cavalo-Marinho como vindo do Bumba meu Boi, sendo
este, como coloca Benjamin, uma variante dos reisados. Talvez aqui faltasse uma preciosa
pergunta: quem garante que a manifestação do Bumba meu Boi veio antes da manifestação do
Cavalo-Marinho? A descrição de Benjamin consegue ser mais clara e próxima do que os
brincadores e mestres afirmam. O autor separa a manifestação do Bumba meu Boi, que
ocorreria em toda a Zona da Mata e litoral de Pernambuco, da brincadeira do Cavalo-
Marinho, que teria ocorrência na Zona da Mata Norte de Pernambuco e regiões limítrofes da
Paraíba. Para Benjamin, os enredos dos dois se parecem, assim como os personagens são
semelhantes (nos dois, por exemplo, existem os personagens do Mateus, Bastião e do Cavalo-
Marinho, entre outros) tendo a exceção de que, no Cavalo-Marinho, ocorre a Dança do São
Gonçalo em homenagem ao(s) Santo(s) Rei(s) do Oriente. Ambos terminam com a morte e a
ressurreição do Boi (BENJAMIN, 1989; CASCUDO, 1972; ANDRADE, 1982). Para os
atores sociais (brincadores, mestres, folgazões), a dúvida não existe: Cavalo-Marinho é um
brinquedo, bumba meu boi é outro folguedo.
Atualmente, a manifestação denominada Cavalo-Marinho aparenta ser uma mistura do
Bumba e do Cavalo-Marinho descrito por Benjamin. O mesmo vale para a descrição feita por
Pereira da Costa (1974) no início do século XX do Bumba meu Boi ou Cavalo-Marinho, que
contém toadas até hoje cantadas. Pereira da Costa, por sua vez, descreve o Bumba meu Boi
como uma forma do teatro hierático das festas populares do Natal e de Reis. Em Pernambuco,
todavia, era exibida não somente nessas épocas, como também em várias ocasiões,
principalmente pelo carnaval e nas festividades religiosas de arraial. Considera, assim, o
bumba como um drama pastoril (PEREIRA DA COSTA, 1974).
Nenhum autor cita as datas dessas manifestações, isto é, desde quando se ouve falar em
Cavalo-Marinho ou em Bumba meu Boi. Pereira da Costa e Hermilo Borba Filho colocam
que as origens do Boi se perdem no passado. Tradicionalmente, associam-se às representações
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 115

que, desde a Idade Média, são dadas por ocasião da festa da Igreja, mas as festas de Bois
sempre existiram em vários outros países desde tempos remotos. Segundo pesquisas de
Cascudo, podemos citar: quer de origem religiosa, quer de origem pastoril, desde o boi Ápis,
a vaca Ísis, o touro Mnésio, o boi Geroa, o boi de São Marcos ao touro Guape ou Huaco. “É
um nunca acabar de ligações, reminiscências, influências, afinidades” (BORBA FILHO,
1966: 13) Como o próprio Borba Filho coloca, vale ressaltar os ecos longínquos da commedia
dell´arte. Neste caso, além de vários personagens que se assemelham aos da antiga comédia
popular italiana (o Arlequim, por exemplo), o folguedo do Boi também possui um soggeto,
em torno do qual são improvisados os diálogos, os lazzi (BRUSANTIN, 2011).
Quanto à brincadeira do Boi, Hermínio Borba Filho, por outro lado, não acredita na
hipótese de que o Boi pernambucano seja mais antigo que os outros do Brasil (Amazonas,
Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul). Além disso, defende a ideia de que, nos versos, sempre são acrescentadas
referências locais.
Já para Pereira da Costa, os versos “Meu boi morreu, que será de mim? Manda buscar
outro Lá no Piauí” (PEREIRA, 1974: 264-265) indicam que vem depois das descobertas e
colonização das terras do Piauí, e da exportação do gado ali, cujo comércio começou entre
fins do século XVII e princípio do seguinte, uma vez que as primeiras doações de terras em
sesmarias para a situação de fazendas de criação, naquele Estado, foram feitas pelo
governador de Pernambuco em 1681, a cuja capitania pertencia então o território piauiense.
Essa circunstância unida às relações de vida administrativa e de comércio do Piauí com
Pernambuco parecem também indicar que o poema é de origem pernambucana, dramatizado
depois para representações públicas. Ainda em apoio dessas nossas conjecturas vêm estes
versos do coro do Cavalo-Marinho:

Cavalo-Marinho
Dança bem baiano,
Bem parece ser
Um pernambucano (PEREIRA, 1974: 264-265).

Quanto aos aspectos formais do Bumba meu Boi, Edison Carneiro afirma que o
folguedo é, em si mesmo, uma reivindicação – a da importância daqueles que lidam com o boi
em relação com seus beneficiários. Para o autor, se reduzirmos as pessoas do “drama ao
estritamente essencial – isto é, o Boi, o Cavalo-Marinho ou Capitão, o Mateus e o Doutor –
veremos que o Mateus e o Boi, de que ele cuida, são os personagens verdadeiramente
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 116

atuantes, sem os quais o auto não poderia subsistir” (CARNEIRO, 2008: 30).Ascenso
Ferreira, em suas observações datadas de meados do século XX, supõe que o Cavalo-Marinho
simbolize os antigos capitães-generais de Pernambuco, mas parece mais provável que se trate
de um proprietário rural, do senhor de escravos, pois na versão pernambucana mais moderna
aparece um engenheiro para lhe medir as terras e, tanto na antiga como na moderna versão,
Bastião e Catirina são escravos do Cavalo-Marinho (CARNEIRO, 2008: 30).
A maioria, todavia, faz parte de um repertório do século XX, com exceção de um relato
do padre Lopes da Gama, de 1840. Vale ressaltar que a manifestação do Cavalo-Marinho
nunca foi vista por seus relatores folcloristas como um brinquedo diferente do Bumba meu
Boi. Estes, na maioria dos relatos, trabalharam o Cavalo-Marinho como um personagem
dentro do auto do Boi, nunca como um brinquedo específico. Atualmente, as narrativas
contadas por seus participantes revelam que o Boi e o Cavalo-Marinho são dois folguedos
diferentes. Contudo, os relatos do Boi coletados pelos folcloristas trazem os mesmos
personagens, bem como falas semelhantes até hoje faladas e cantadas no Cavalo-Marinho.
Sabemos que, historicamente, existiu o Boi pernambucano e também, historicamente, se
brinca o Cavalo-Marinho. A problemática central é que Câmara Cascudo, Sílvio Romero
(1972: 150) e Mário de Andrade (1982) tratam o Cavalo-Marinho apenas como um
personagem dentro do auto do Bumba meu Boi pernambucano. Isto por muitos anos gerou na
produção intelectual folclórica um vazio para a identidade do Cavalo-Marinho como
brinquedo autônomo, com características próprias e singulares.
Érico Oliveira, em sua análise sobre as considerações dos folcloristas a respeito das
narrativas sobre o Bumba meu Boi pernambucano e o Cavalo-Marinho, destacou que apenas
em Hermilo Borba Filho podemos encontrar uma alusão ao Cavalo-Marinho enquanto
nomenclatura da brincadeira e não apenas como uma figura do Bumba meu Boi. Escreveu
que:

A pobreza da região influiu no espetáculo, tanto na sua estrutura como no seu


enredo. O Cavalo-Marinho de Goiana não usa mais as figuras do Jaraguá, do Babau,
da Burrinha etc. porque a confecção custa muito dinheiro. O mais simples então é
eliminá-la (BORBA FILHO, 1982: 10,apud OLIVEIRA, 2006:219).

Para Oliveira, Borba Filho, ao mencionar nestes termos o Cavalo-Marinho em um


trabalho que investiga o Bumba meu Boi, o faz de maneira que nos leva a crer que são a
mesma coisa, apenas com nomes distintos (OLIVEIRA, 2006:219). Já o autor Marco
Camarotti não deixa claro se compreende os dois brinquedos como uma única expressão ao
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 117

citar que o Bumba meu Boi também era conhecido como Cavalo-Marinho e que “os galantes
só apareceriam nas variantes chamadas Cavalo-Marinho” (CAMAROTTI, 2001: 79).
A pesquisadora deste INRC, Helena Tenderini, em sua dissertação de Mestrado, escrita
em 2003, trouxe contribuições importantes para analisarmos as diferenças e/ou aproximações.
Segundo a autora, “há versões que colocam o Cavalo- Marinho como uma variante do Bumba
meu Boi, outras que explicam exatamente o contrário: o Bumba meu Boi teria surgido do
Cavalo-Marinho”. Na opinião de Tenderini, não existe uma versão mais “verdadeira” que
outra, “uma vez que todas são usadas com o intuito de auto fortalecimento dos próprios grupos
que fazem as brincadeiras”. Na visão da pesquisadora, a dinâmica destas tradições permite que
“cada lugar e situação imprima nelas suas próprias características, as quais, por sua vez,
também são questionáveis na medida em que são usadas para legitimar interesses ideológicos
pessoais ou acadêmicos” (TENDERINI, 2003: 62-63).
Na opinião de Helena Tenderini, “estes folguedos compartilham de uma essência
comum, estruturada de uma forma também comum, em que muitas figuras com suas loas,
toadas e movimentos são extremamente semelhantes”. Segundo a autora, e opinião também
apontada pelo pesquisador Roberto Benjamin, a diferença se desenvolve sobre o mote da trama
teatral: no Cavalo-Marinho a história gira em torno da figurado Capitão-Marinho (que
atualmente é chamada de Cavalo e Mestre Cavaleiro), enquanto no Bumba meu Boi o foco é a
figura do Boi, que morre e ressuscita (cena que acontece no Cavalo-Marinho de forma
simplificada). Nos dois, no entanto, as figuras que nomeiam as brincadeiras – Boi e Cavalo –
“estão em relação direta e constante com os negros Mateus e Bastião e com a negra Catirina,
figuras presentes do início ao fim da história, que são responsáveis pela dinamização da
brincadeira”(TENDERINI, 2003: 63).
A partir da pesquisa deste INRC, corroboramos as afirmações de Tenderini e Bejamin
destacando que, no caso dos Cavalos-Marinhos da Localidade Sul-Oeste, que englobam os
municípios de Lagoa de Itaenga (PE), Feira Nova (PE) e Glória do Goitá (PE), a figura do
Cavalo (com o Cavaleiro) e a figura do Boi interagem com a figura do Caroca (no lugar do
Mateus e Bastião), que também representa um negro.
Outra perspectiva analítica destacada por folcloristas e pesquisadores é quanto à
formação instrumental do Cavalo-Marinho e do Bumba meu Boi. Érico Oliveira e Gustavo
Vilar apontam as variações dadas pelos folcloristas no que se refere à formação dos
instrumentos musicais (VILAR, 2001: 16; OLIVEIRA, 2003: 239-240). Hermilo Borba Filho,
descrevendo o Boi, registrou a zabumba, o ganzá e o pandeiro; Roberto Benjamin destaca
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 118

também a presença da rabeca e violas; Mário de Andrade cita a viola, a zabumba, o pandeiro e
o ganzá (OLIVEIRA, 2003: 240). Nas produções mais recentes, John Murphy e Edval
Marinho de Araújo descrevem como principais instrumentos do Cavalo-Marinho a rabeca, um
pandeiro, uma ou duas bages, um mineiro e vozes (VILAR, 2001: 18). Érico Oliveira, no ano
de 2002, ao entrevistar Mestre Grimário do Cavalo-Marinho Boi Pintado, região de Aliança
(PE), registrou que no brinquedo do Bumba meu Boi usa-se o bombo e que no Cavalo-
Marinho este instrumento foi substituído pela rabeca (OLIVEIRA, 2006:228). Esta mesma
afirmação é corroborada pelo etnomusicólogo John Murphy que, em entrevistas com Mestre
Salustiano e seu pai, João Salustiano, afirmaram que, no Cavalo-Marinho, usa-se pandeiro, e
no Bumba meu Boi, o bombo (MURPHY, 2008: 121). Já nas pesquisas de Helena Tenderini, a
autora cita em nota que, segundo informações dadas, no ano de 2003, por Aguinaldo, filho de
Seu Biu Alexandre, a rabeca só entrou depois de certo tempo no Cavalo-Marinho, pois antes se
tocava bombo ou mesmo viola, de acordo com Seu Antônio Teles, rabequista do grupo de
Condado [PE] (TENDERINI, 2003: 57). A partir da realização deste inventário, estas
considerações foram reconstruídas e alargou-se o percurso de construção de novas definições e
identidades sobre o que é o Cavalo-Marinho.
Para finalizar, destacamos que, atualmente, é importante a legitimação de que a forma de
expressão em questão trata-se de um brinquedo autônomo, denominado Cavalo-Marinho e que
assim é considerado por parte de seus sujeitos sociais. Evidentemente, toda manifestação
cultural sofre influências das outras formas de expressão existentes na região e/ou localidade
em que seus atores sociais vivem e/ou viveram. Existe sim uma série de características que
geram um “fundamento” e/ou uma identidade comum a todos os Cavalos-Marinhos. Sua
legitimação, contudo, se concretiza no seu autorreconhecimento. Este, por conseguinte, não se
constrói de um dia para o outro, mas tem raízes em processos históricos. Diante disso, nos
reportamos às pesquisas da historiadora Beatriz Brusantin nas quais foram analisados
documentos datados do século XIX que nos trazem referências cronologicamente inéditas do
uso da nomenclatura Cavalo-Marinho (e não Bumba meu Boi) como uma brincadeira praticada
por escravos na região da Zona da Mata pernambucana, atual município de Upatininga (PE) na
área de Nazaré da Mata (PE).
Em março de 1871, o subdelegado do 3º Distrito de Alagoa Seca enviou ofício ao
Delegado de Nazareth, constando que

(...) entre os engenhos Alagoa Seca e Urubu há hum pequeno arraial e alli nos dias
santificados há reuniões de vadios e folgazões e com intervenções de escravos dos
differentes pontos onde se tem tratados de negócios perigosos, correndo o boato que
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 119

no último maracatu de sábado passado. Domingo proximo passado número mais de


500 escravos; de differentes engenhos, Vicência e de outros lugares. Entrando
portanto na devida apresiação disto tenha concluído que o facto é verdadeiro (...) que
a pretesto de cavallos marinhos e outros brinquedos desta ordem alli se reúnem para
fim sinistros. Hoje prestei auxilio ao Sr. do Engenho Alagoa Secca, para capturar
dous escravos seus que dizem serem influentes neste negócio, correndo a acuzação
do ditto Sr. de engenho cujo rezultado ainda ignoro, e como tudo isso seja no
próximo Districto dessa Cidade cumpre que Vsa deixar ordem corrente devendo
scientificar-lhe que também informando que de Sábado próximo vindouro a oito
dias há reunião naquele ponto; será pois conveniente que na noite do indicado dia
esteja a Polícia em atitude em todos os pontos da comarca; para se conhecer da
verdade, capturando quantos escravos transitarem sem motivo justificado (grifo da
autora).29

Segundo a historiadora, essa ocorrência levou a um inquérito policial que intimou cerca
de 30 escravos. Dentre as denúncias constava que, em meio ao divertimento, os escravos
começaram a dar “vivas à liberdade”, afirmando que estariam livres. No mais, segundo o
delegado, os escravos brincadores dos folguedos estavam prometendo se reunir para em
seguida matarem seus senhores e saquearem as vilas da comarca de Nazareth. No inquérito,
os 30 escravos participantes do samba negaram as acusações. No entanto, dois escravos, José
e Luís, afirmaram que realmente existia um escravo de nome Constâncio, escravo do capitão
Ignácio Xavier de Albuquerque, senhor do engenho Bonito, que estaria pela região a dizer que
os senhores já tinham em seu poder a “própria” liberdade dos escravos. A notícia mereceria,
portanto, uma ação coletiva dos negros os quais, segundo os relatos, programaram uma
reunião no engenho Alagoa Seca, durante a festa, para em seguida, juntos, cobrarem suas
cartas de liberdade dos seus senhores (BRUSANTIN, 2011: 452).
O acontecimento acima relatado pela polícia evidencia o universo social e, por que não,
político, vivido pelos escravos brincadores do folguedo. Vale ressaltar que o acontecido
demonstra justamente a possibilidade da convergência entre festividade e reivindicação pela
liberdade (BRUSANTIN, 2011: 453). Para Brusantin, as festas ou “as reuniões” ocorriam
normalmente nos dias santificados, porém, havia algum tempo, nos anos 70 do século XIX, os
escravos estavam tratando de “negócios perigosos”. A autora então questiona: seriam as festas
um instrumento de disfarce? Ou um veículo de mediação? (BRUSANTIN, 2011: 453).
Independente da resposta, o fato é que, atualmente, os brincadores continuam brincando no
Cavalo-Marinho a cena do Soldado que, a mando do Capitão, prende nego Mateus e nego
Bastião porque estão fazendo bagunça no terreiro.

29
Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do subdelegado. Subdelegacia de Polícia do 3º
Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 120

Desde o século XIX o brinquedo do Cavalo-Marinho existia enquanto brincadeira, e não


apenas como personagem dentro do auto do Boi. O uso da sua nomenclatura na documentação
policial do século XIX se repete diversas vezes e traz referências também da expressão
“samba” ou “brinquedo”, confirmando e/ou reafirmando o que atualmente é legitimado por
seus sujeitos. Temos aqui, portanto, o Cavalo-Marinho como bem cultural reconhecido no
passado, no presente e para o futuro.

3.7.2 A narrativa dos folcloristas

Como colocamos anteriormente, a maioria das referências folclóricas mistura as


definições de Cavalo-Marinho e Bumba meu Boi. Há uma grande lacuna quanto à coerência
dos folcloristas com relação aos folguedos observados e transcritos. Será que eles saberiam
distinguir a diferença de um Boi e de um Cavalo-Marinho? Alguns colocam que o Cavalo-
Marinho é uma figura da brincadeira do Boi, outros consideram o Cavalo-Marinho como um
brinquedo (ou auto) independente. O intenso diálogo entre estes dois folguedos, e a posição
dos folcloristas em abordar o Cavalo-Marinho e o Boi conjuntamente, traz-nos algumas
informações qualitativas sobre ambos os brinquedos.
Uma das primeiras descrições feita sobre o Boi foi a do padre Miguel do Sacramento
Lopes Gama, no jornal O Carapuceiro, em 1840. Como ressalta a historiadora Rosely
Tavares, Lopes Gama relata nos seus escritos sobre os inúmeros folguedos ou divertimentos
populares que aconteciam na província de Pernambuco, mas para ele, “o mais tolo e
destituído de graça era o Bumba meu Boi”. O padre descreve as figuras que aparecem nesse
folguedo, e o Cavalo-Marinho seria parte integrante do Bumba (TAVARES, 2012).
Os estudos de Sílvio Romero sobre o Cavalo-Marinho datam de 1888. Em Contos
populares do Brasil e estudos sobre a poesia popular do Brasil, o folclorista classifica o
Bumba meu Boi e o Cavalo-Marinho como “festas gerais”. Esta categoria também incluiria as
festas natalinas, as festas de Reis e as festas juninas. Para Romero, o Bumba seria “um magote
de indivíduos, sempre acompanhados de grande multidão, que vão dançar nas casas, trazendo
consigo a figura de um boi. Pedem, com cânticos, licença ao dono da casa para entrar, obtida
a licença, apresenta-se o boi e canta o coro” (ROMERO, 1985: 45-47). O Cavalo-Marinho
pernambucano é classificado como um auto popular, “segundo ele, era o brinquedo mais
apreciado. Enfatiza que neste folguedo é possível analisar bem a fusão dos costumes dos três
grupos cablocos, negro e branco” (TAVARES, 2012).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 121

No início do século XX, Pereira da Costa, em “Folk-lore pernambucano”, classifica o


Cavalo-Marinho (ou Bumba meu Boi)como as “Folganças de Mouros”. Os divertimentos
populares quase sempre exibidos por festividades religiosas “eram variados, e se fundavam
como manifestações poéticas, porque constituíam verdadeiras epopeias, ora religiosas, ora
pastoris, ora guerreiras ou navais, tais como: Presépios, Fandangos, Pastoris, Bumba meu Boi
ou Cavalo-Marinho, Congos, Mouros e Cabloquinhos”. Sobre o Bumba meu Boi, ele
classifica-o também como um teatro hierárquico das festas populares do Natal e de Reis, que
teve suas primeiras aparições no estado do Piauí, sendo assim puramente como uma rapsódia
do Norte. “Ainda na descrição do folclorista, o Cavalo-Marinho também seria uma figura do
folguedo do Bumba meu Boi, ou seja, parte integrante dele” (TAVARES, 2012).
Para a Tavares, “durante as duas primeiras décadas do século XX, o Cavalo-Marinho
não foi mencionado em nenhum outro estudo”. Apenas nos anos de 1928 e 1929, Mário de
Andrade elabora um estudo sobre os folguedos do Norte e Nordeste do Brasil, publicando-os
em Danças dramáticas do Brasil. Descrevendo o complexo dos folguedos que encontrou,
Rosely Tavares ressalta que não era seu interesse apenas descrever a composição melódica
dos folguedos. “Anotava tudo que assistia e depois, em nota de rodapé dos seus fichamentos,
indicava um aprofundamento nos estudos desses folguedos.” Novamente, o Cavalo-Marinho é
mencionado como uma parte integrante do Reisado, que depois teria sido incorporado ao
Bumba (TAVARES, 2012).
No terceiro tomo de Danças dramáticas no Brasil, Andrade descreve as estruturas
musicais dos folguedos, transcreve partituras e desenhos de algumas figuras. Nestas
descrições, o Cavalo-Marinho aparece como uma figura do Bumba. Ao detalhar algumas
figuras do Bumba, Rosely Tavares, pesquisadora deste INRC, percebeu a semelhança entre as
figuras descritas pelo folclorista e as que ela observou nas apresentações de Cavalo-Marinho
na atualidade. Entre elas, o Arriliquim, Pastorinha, Mateus e Bastião, Catirina, Dona Joana
(conhecida pelos brincadores mais velhos do Cavalo-Marinho como a Véia do Bambu),
Valentão, Mestre Domingos, Pinicapau, Boi, Caipora, Ema e Babau (TAVARES, 2012).
Na década de 50 do século XX, surgem as publicações de Câmara Cascudo. Em O
dicionário do folclore brasileiro o autor define o Cavalo-Marinho como parte do folguedo do
Bumba, porém, diferencia os Bois em variados tipos. Em suas descrições encontramos os
personagens: Catirina, Mateus e Caboclos, que são figuras típicas do brinquedo do Cavalo-
Marinho na atualidade.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 122

Ainda na segunda metade do século XX, Ascenso Ferreira publica O maracatu,


presépios e pastoris e O Bumba meu Boi. Para o autor, o Cavalo-Marinho é uma figura do
Bumba, que se configura dentro do auto do Boi. Para Ascenso, o Cavalo-Marinho era um
misto de Cavalo e oficial da marinha, uma figura central no folguedo, também chamada de
Capitão, e que tem como função comandar a brincadeira, além de “escutar as queixas que lhe
são feitas”. Ele entende o Bumba meu Boi em Pernambuco como um teatro popular, no qual é
feita a crítica dos tipos sociais marcantes do cotidiano, tais como o Padre, o Médico, o
Engenheiro, o Valentão, Arlequim, Mateus, Bastião e a Catirina, figuras também encontradas
no Cavalo-Marinho (FERREIRA: 1986:111). Segundo a historiadora Rosely Tavares, “o
poeta relata um Bumba meu Boi que ele presenciou em 1926 com o escritor Manuel Bandeira
e, devido a esse momento, Bandeira escreve um artigo para a imprensa do Rio de Janeiro,
onde exaltava a beleza da orquestra de violas e a coreografia dos praticantes” (TAVARES,
2012).
Em 1966, Hermilo Borba Filho na obra Apresentação do Bumba meu Boi, traz o
Cavalo-Marinho como um brinquedo semelhante ao Bumba. Para o autor, o Bumba meu Boi
trata-se de reminiscências das velhas farsas populares, que vem da Commedia dell’Arte, e
representações práticas desde a Idade Média (BORBA Filho, 1966). Borba Filho cita o ciclo
natalino como o período de ocorrência do Cavalo-Marinho, dos Reisados, dos Pastoris e do
Bumba meu Boi pernambucanos.
Por último, na década de 80 do século XX, destacamos Roberto Câmara Benjamim, que
é o único dos estudiosos citados que conceitua o Cavalo-Marinho como um brinquedo
autônomo e uma variante do Bumba meu Boi, especificando a Zona da Mata Norte e regiões
na divisa da Paraíba (exatamente o sítio delimitado neste INRC) como sendo sua área de
maior ocorrência. Segundo o folclorista, o espetáculo se desenvolve com a apresentação de
entremeios diversos, alguns deles comuns ao auto do Bumba meu Boi, terminando pela morte
e ressurreição do Boi. A representação conta com dezenas de personagens e é de longa
duração. Para ele, a denominação Cavalo-Marinho se refere ao personagem chamado Capitão
do Cavalo-Marinho. O brinquedo, de mesmo nome, se diferenciaria pelo baile dos galantes.
Os personagens cômicos Mateus e Catirina estão presentes e são negros.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 123

3.7.3 “Chegou o patrão dele e disse: Nego inventa uma brincadeira” : sobre as
origens e influências do Cavalo-Marinho e seus bens culturais

Quem inventou o Cavalo-Marinho foram os negros da senzala, do cativeiro. Chegou


o patrão dele e disse: nego inventa uma brincadeira. Os negros viviam tudo no chão,
com 30 ou 40 famílias. Daí chegou o nego e falou: bora fazer um Cavalo-Marinho.
Arrumaram uma mola de arame e fizeram um reco. A rebeca era uma garrafa e o
pandeiro era de couro, tinha que esquentar pra afinar. Os arcos eram cipós com
folhas de coco amarrada. E quando tinha ensaio geral, os capangas apareciam para
espiar. Não tinha dinheiro para comprar roupa, mas o patrão dava dinheiro. O
Cavalo-Marinho era da África, e daí foi para França, para Portugal e depois veio
para o Brasil. (Entrevista de Seu Martelo concedida a Beatriz Brusantin.)

Diversas são as narrativas sobre as origens do Cavalo-Marinho. Acredita-se que, para


além das constatações dos folcloristas, os relatos dos atores sociais trazem a construção da
identidade dos sujeitos com relação ao Bem Cultural. Retratam o que de fato rememoram,
ritualizam e ressignificam ao brincarem, ao mestrarem e ao manterem tal cultura viva.
Mestre Araújo, dono do Cavalo-Marinho Boi de Ouro, localizado na cidade de Pedras
de Fogo (PB), conta que sua brincadeira é antiga e de uma cultura que veio da África para o
Brasil.

Uma brincadeira de cativos (...) brincadeira do povo da África que vieram aqui para
o Brasil, trouxeram o coco de zabumba, Cavalo-Marinho, Babau... é cultura velha,
né? O povo saía das fazendas, digamos uma fazenda aqui em Paulista, fugia muito
nego (...) antigamente as coisas não eram assim, era muito distante. Quando
amanhecia o dia, o senhor ia ver, estava faltando cinco, seis, dez, doze negos (...)
antigamente não se chamava patrão, né! Era Senhor.
Aí o que é que o patrão fazia, eles fugiam de sábado pro domingo quando eles
tinham fuga boa, né? O patrão o que é que fazia, enchia um tambor assim... de
cachaça, nesse tempo, os engenhos, que nesse tempo tudo moía, e enchia um
tamborzão de aguardente, enchia, botava um canjirão assim, para eles beber, né?
Toma e faz a festa aí hoje! Faz a festa aí...os negos iam fazer a festa, né, com coco
de zabumba, quando não era coco de zabumba era Cavalo-Marinho, aí foi que
inventaram o Cavalo-Marinho, né? Sambavam a noite todinha. Vinha aquela
negrada e sambava a noite todinha. Amanheciam o dia tudo bebo, cada pé inchado,
aí não fugia ninguém, aí o patrão metia cachaça e brincadeira para eles brincarem.
(Entrevista de Seu Araújo concedida para o INRC do Cavalo-Marinho.)

Os atores sociais dos Cavalos-Marinhos da Localidade 2- Norte-Centro e Paulista,


também reconstroem o passado escravista ligado ao brinquedo. Mestre Biu Alexandre
(Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado) e Mestre Grimário (Cavalo-Marinho Boi
Pintado de Aliança [PE]) afirmam que a manifestação cultural é uma brincadeira que teve sua
origem nas senzalas dos engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata Norte de
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 124

Pernambuco.30 Com outra narrativa, Mestre Antonio Teles (Cavalo-Marinho Estrela Brilhante
de Condado [PE]) conta que o Cavalo-Marinho surgiu em Portugal, criado pelos negros da
senzala, não os que trabalhavam no corte da cana, e sim os negros que trabalhavam nos
cafezais, no tempo de rei e rainha, sinhô e sinhá. Segundo ele, os escravos brincavam
escondidos e eram prejudicados pelos capitães de campo que iam atrás deles. Para Antônio
Telles, os cativos que ousassem praticar o Cavalo-Marinho, apanhavam e eram amarrados
pelos troncos. Para ele, até mesmo a rabeca, instrumento que toca em seu brinquedo, veio de
Portugal para o Brasil e depois chegou na zona da mata pernambucana.31
A narrativa dos atores sociais, em sua maioria, traz como seus ancestrais os escravos da
senzala. É importante destacar que não é irrelevante o fato de eles destacarem a palavra
senzala em suas narrativas. Não estão se identificando com o negro africano, nem com o
liberto (escravo que alcança a liberdade), mas sim com o escravo cativo morador da senzala,
onde, possivelmente, ocorria a brincadeira. Ao construir estas referências, nem sempre estão
se identificando com a cultura africana, mas sim com a cultura escrava, sua herança africana e
também sua condição social. A brincadeira do Cavalo-Marinho, como exposto em outras
partes deste Dossiê, tem profundas conexões com o universo social rural canavieiro
pernambucano e de zonas limítrofes. Deste contexto histórico se fazem e se refazem os
sentidos da brincadeira, seus símbolos, suas histórias, suas figuras, suas loas e toadas.
Rememorar estas heranças escravistas significa justamente consolidar uma identidade
sociocultural para o Cavalo-Marinho, mantendo seus atores sociais conectados, de forma
dinâmica, com os aspectos culturais tradicionais e costumeiramente praticados por seu grupo.
Os documentos históricos vêm corroborar as narrativas de nossos atores. De fato, nos
documentos policiais da cidade de Nazaré da Mata, datados de 1871, tem-se o registro de que
a brincadeira era costumeiramente praticada por escravos dentro da senzala e, outras vezes,
fora dos olhos de seus senhores.32 Remeter a este passado certamente constrói identidades
para seus sujeitos que, apesar de se colocarem como agentes culturais dinâmicos, trazem
diversas conexões com a tradição, seja ela cultural ou social.

30
Mais informações ver F 40 – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Biu
Alexandre. F40- Cavalo-Marinho Boi Pintado e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Grimário.
31
Mais informações F40 – Cavalo-Marinho Estrela Brilhante e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Antônio
Telles.
32
Informações referentes ao documento Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do
subdelegado. Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca,8 de março de 1871. SSP Nazaré 247, vol
652 APEJE/Recife. Apud BRUSANTIN, 2011.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 125

Com relação aos aspectos “estéticos” culturais do Cavalo-Marinho e suas possíveis


conexões com os povos africanos que vieram para o Brasil como escravos e se instalaram na
região da Zona da Mata Norte pernambucana para trabalharem nas fazendas e engenhos de
açúcar – ou até mesmo como Antônio Telles se referiu – nas lavouras de café do sudeste
escravista, podemos constatar algumas ligações entre bens culturais produzidos pelos atores
sociais no Cavalo-Marinho e práticas culturais africanas.
A historiadora Beatriz Brusantin, ao estudar o Cavalo-Marinho pernambucano, traçou
diversas relações culturais entre Brasil e África. Com referência às influências africanas,
acredita que seja possível uma apropriação da festa do Boi (com a presença da figura do Boi)
por africanos vaqueiros, no caso da África central33, mais, especificamente povos do sudoeste
da Angola, para expressarem possíveis contestações ao sistema e/ou cultivarem materiais
culturais de seus ancestrais como, por exemplo, a música e seus instrumentos (ganzá, bage),
suas falas ou o uso de máscaras.
Quanto às máscaras, vale ressaltar uma possível influência portuguesa. A máscara é um
elemento que se encontra amplamente representado em todos os continentes – África, mundo
antigo, Ásia clássica, América pré-colombiana. No entanto, ressalta o autor que as máscaras
portuguesas, para lá de certas semelhanças meramente formais, nada têm a ver com as
máscaras de povos que se situam fora do continente europeu. Assim, para Pereira, as máscaras
portuguesas entram em uma categoria que ela classifica como complexo europeu das
máscaras (BRUSANTIN, 2011: 428-429):

De caráter ritual, cultual e profano, às máscaras europeias, além do seu sentido


lúdico mais sensível, apontam-se três finalidades específicas fundamentais:
propiciatórias, apotropaicas, profiláticas; e com elas concorrem vários elementos:
peditórios, rituais, comportamentos obscenos, aspersões com água e cinza,
combates, danças barulhentas de campainhas e chocalhos, roubos cerimoniais, etc.
Por vezes, elas integram-se em cerimônias que assumem caráter de verdadeiras
representações dramáticas e, através de trajes e atributos prefiguram seres
sobrenaturais (PEREIRA, 1973: 11).

Em Portugal, tradicionalmente, são realizadas por mascarados diversas festividades,


como as festas dos Rapazes; festas de Santo Estevão, festas do Natal, Ano Novo e Reis,
carnaval etc., que são semelhantes com as manifestações do Brasil, entre elas, o Cavalo-
Marinho. As festas portuguesas ocorrem no mesmo período do ciclo natalino brasileiro. A
Festa dos Rapazes, por exemplo, se inicia na noite de Natal e vai até dia de Reis, 6 de janeiro.

33
Ver artigo de FLORENTINO, M.; VIEIRA RIBEIRO, A.; DOMINGUES DA SILVA, D. “Aspectos
comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”. IN: Afro-Ásia, n. 31, 2004, p. 83.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 126

A presença de “personagens” como a Velha e o Velho nas festas do Natal, Ano Novo e Reis,
ou do mascarado Chocalheiro, que em Portugal possui aspectos demoníacos e carrega uma
bexiga cheia de ar, assemelha-se muito com as figuras do Cavalo-Marinho, entre elas o
Mateus e sua bexiga de boi. Quanto à matéria-prima das máscaras: as portuguesas são feitas
de cortiça, madeira, lata e couro e as brasileiras do Cavalo-Marinho são feitas de couro, sola e
papel machê (BRUSANTIN, 2011: 429).
Outras ligações podem ser feitas com os povos de além-mar. Para a historiadora
Brusantin, a ausência de máscara pode trazer reminiscências africanas. Atualmente, no
Cavalo-Marinho, os únicos personagens que não usam a máscara, além dos galantes e do
Capitão, são os negros: Mateus, Bastião, ou o Caroca, e a negra Catirina. Estes, por sua vez,
pintam a cara de preto (atualmente com água e carvão). A pintura é também uma tradição
presente em algumas culturas africanas. Nos estudos, por exemplo, de Reid de Mitchell sobre
o carnaval afro-creole em Nova Orleans, no século XIX e início do XX, podemos encontrar
representações da cultura afro-creole e, entre as manifestações, o Rei do Velório (festividade
que ocorria no século XIX), no qual o autor salientou referências estéticas africanas através de
“contorções” e “caretas”, estéticas também presentes no Cavalo-Marinho, principalmente no
personagem do negro Mateus. Este mesmo personagem também se encaixa com os zulus de
Nova Orleans:

(...) os zulus – homens negros com o rosto pintado de preto – ridicularizavam os


estereótipos brancos e devolviam aos negros de New Orleans sua própria realeza – o
rei dos zulus tradicionalmente se vangloria – ‘jamais houve e jamais haverá um rei
como eu’. O Rei do Velório reaparecia como o rei dos zulus.(MITCHELL, 2005:
62).

“O Boi ou Cavalo-Marinho pode ter seguido um percurso de repetição, revisão,


inovação de materiais culturais africanos, portugueses, indígenas e brasileiros”(BRUSANTIN,
2011: 430). E aproveitando as considerações do historiador Robert Slenes, estudioso da
temática da escravidão e da cultura do jongo no sudeste brasileiro, há a hipótese de que, assim
como os centro-africanos se moveram em direção à formação de uma cultura comum, na
travessia do Atlântico, através das descobertas de afinidades no vocabulário e na cosmologia
por meio de suas línguas intimamente relacionadas, do mesmo modo, depois que estes
africanos chegaram ao Brasil, continuaram a basear-se em elementos comuns de uma ampla
zona do Atlântico (tradição da África centro-ocidental – região de onde veio a maioria dos
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 127

escravos que se estabeleceram em Pernambuco)34, que, sugere Slenes, no contexto de uma


comunidade fechada como as plantations, podem ter facilmente fornecido os marcadores da
identidade para a senzala. Para Slenes, “ao negociarem uma nova cultura e identidade, os
escravos das plantations, à semelhança de seus pares nos Estados Unidos, provavelmente se
viravam ‘para dentro’, mas neste caso em direção a uma senzala predominantemente centro-
africana” (SLENES, 2007: 121). Propõe o autor que a manutenção de certos cultos de cura ou
de crenças religiosas (precursores da umbanda e da macumba) parece ter servido como lócus
privilegiado para a oposição dos escravos à sua condição, e esta evidência corrobora a
hipótese de Slenes de que uma identidade centro-africana ressignificada caracterizava uma
proporção substancial dos escravos de plantation (SLENES, 2007: 123-124). Estas reflexões
acadêmicas vêm reforçar os relatos dos Mestres de Cavalo-Marinho que em suas narrativas
fizeram questão de frisar a senzala como origem do Cavalo-Marinho. Com vistas às
conclusões acima, podemos ampliar esta narrativa atribuindo-lhe novos caminhos
interpretativos, bem como de compreensão daquilo que estava sendo reforçado pelos Mestres,
certamente, em narrativas repassadas de geração para geração.
Em busca de mais indícios da “cultura boieira” entre os povos da África Centro-
Ocidental e Oriental e zona atlântica (que possivelmente foram exportados para o Brasil no
comércio transatlântico do século XIX), a historiadora Brusantin (2011) localizou algumas
referências na bibliografia sobre a etnografia do sudoeste de Angola e sobre os Ovimbundu,
entre estas, o trabalho de Carlos Estermann. Sobre o sul de Angola, Estermann destaca que
diversos povos dependiam e agregavam grande valor à criação de gado como atividade
econômica. Cita, por exemplo, os Hereros que, de todas as matizes, não podiam viver sem
gado. Os Kuvales tinham como principal riqueza manadas de bovinos e ovinos. O mesmo
vale para os Chimbas de Angola, que possuíam uma grande quantidade de cabeças de gado:
em média 6 cabeças de gado por habitante. Existia até mesmo a expressão ovanahambo, que
significava, entre os Cuanhamas, “pastores profissionais”, os quais sabiam distinguir entre as

34
A autora Beatriz Brusantin destaca que, quanto à presença africana em Pernambuco, Carvalho aponta as
evidências de navios negreiros em 1836, 1837 e 1840, que vinham de negociações ilícitas com Angola
(CARVALHO, M. Estimativas do tráfico ilegal de escravos para Pernambuco na primeira metade do século
XIX. In: Revista de Pesquisa Histórica. UFPE, Série História do Nordeste, n. 12. Recife, 1989). E, segundo os
dados do The Trans-Atlantic Slave Trade database, entre 1800 e 1866, em Pernambuco, desembarcaram 19.584
africanos vindos do Golfo de Bênin e, numa diferença imensa, 216.278 da África Centro-Ocidental. Entre 1831 e
1866, desembarcaram de Bênin 350 africanos, e da África Centro-Ocidental, 51.665. Isso sem contar os
africanos vindos de outros portos, e na possibilidade de africanos que iam para Bahia passarem pelo porto de
Recife. Neste caso, isto é, desembarcados na Bahia, tem-se, entre 1831 e 1866, cerca de 67.000 africanos de
Bênin (BRUSANTIN, 2011: 433).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 128

gramíneas e os arbustos comestíveis para os gados. Entre os povos do sul da Angola também
podemos encontrar este tipo de conhecimento e especialidade. Também atribuía-se aos
“pastores profissionais” a arte de saber curar uma ou outra moléstia que causavam estragos
nos rebanhos. No mais, como todos os pastores do sudoeste de Angola, os Hereros enalteciam
os seus bois com cantos de apreço. Muitas vezes, estas “ladainhas” melodiadas são um puro
enfiar de nomes de animais, das suas cores, ou da sua genealogia. Existiam até cantos mais
inspirados, dignos de serem classificados como “poemetos” (ESTERMANN, 1961: 131-135).
Identificar as origens do Cavalo-Marinho é um desafio inacabado. Para não cair na
caracterização usual que os estudiosos costumam atribuir às manifestações culturais
tradicionais brasileiras de uma mistura de elementos indígenas, africanos e portugueses,
preferimos caracterizar o Cavalo-Marinho como uma forma de expressão que tem seu berço
em terras brasileiras, nas senzalas pelas mãos dos escravos. Materiais culturais de várias
fontes –indígenas, africanas e portuguesas – foram reelaborados e inseridos no brinquedo de
uma forma singular. Não podemos negar suas influências ancestrais de além-mar e, muito
menos, do solo brasileiro. Sua identidade, contudo, se dá justamente neste diálogo entre essas
reminiscências culturais e o grupo social historicamente envolvido. Dizem os brincadores:
Cavalo-Marinho nasceu nas senzalas. É assim que devemos começar a desfiar esta trama
originária.

3.7.4 Transformações e significados

Naquele tempo, era assim: - vai ter um Cavalo-Marinho no engenho Oiteiro Alto! Aí
o budegueiro botava o jogo, botava o bozó, pra o banqueiro do jogo ajudar a pagar o
Cavalo-Marinho, aí a gente brincava por aquele meio de mundo todo.(Entrevista
concedida a Antonio Telles para este INRC.)

Para abordar a questão das transformações no universo do Cavalo-Marinho, trazemos o


historiador E.P. Thompson e o conceito de costume, que amplia a compreensão sobre os
processos de continuidade e transformação intrínsecos às culturas populares. Para Thompson,
o significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas delas coletadas
por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento folclórico, uma "sobrevivência", e
são reinseridas no seu contexto total (THOMPSON, 2001: 238).E, na verdade, o próprio
termo "cultura", com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção
das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto
(THOMPSON,1998:17).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 129

A proposta é identificar os processos culturais dos grupos de Cavalos-Marinhos como


dinâmicos, que se distanciam da concepção de “tradição” com caráter permanente, isto é, algo
que atravessou o tempo e se manteve intacto, tomado pela invariabilidade.35 Nas palavras de
Hobsbawm, a tradição deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas
sociedades ditas “tradicionais”. O passado real ou forjado a que ela se refere impõe práticas
fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades
tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Para o autor, o “costume” não impede as
inovações e pode mudar até certo ponto, embora, evidentemente, seja tolhido pela exigência
de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. “O costume não pode se dar ao
luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais”
(HOBSBAWM, 2008:10, apud BRUSANTIN, 2011: 355).
A pesquisadora Helena Tendereni, em seus estudos sobre o Cavalo-Marinho, baseando-
se nos saberes de Mestre Maureliano (mestre de bateria e um dos fundadores do Daruê
Malungo e do bloco afro Lamento Negro) e na cultura iorubá, traz um conceito de “tradição”
enquanto algo dinâmico e não inerte. Para a autora, “deve-se escapar da ideia de que ‘tradição’
é algo parado no tempo e no espaço, intocável”. Citando o provérbio iorubá: “mesmo quando
não sabemos bem para onde vamos, sempre nos lembramos de onde viemos”, defende que este
tempo-espaço, espaço-tempo de onde viemos situa-se no passado, no entanto, “isto não
significa que a ‘tradição’ esteja apenas lá. Ela está aqui porque permanece viva, e continua
viva por ainda fazer sentido. É ‘tradição’ exatamente porque existe um motivo profundo de ter
permanecido ao longo do tempo e de ter se transformado no que é hoje” (TENDERINI, 2003:
27). Segundo suas pesquisas:

É comum encontrar folgazões antigos ou mestres que se reportem ao passado das


brincadeiras como o tempo em que as coisas aconteciam de maneira “correta”,
como o tempo ideal. Mas é comum também perceber em suas falas a consciência de
que “as coisas mudam” e “hoje não pode ser como era antes”, por que “ontem foi
ontem e hoje é hoje”. É uma visão de quem tem elementos para comparar o ‘ontem’
com o ‘hoje’. Esta comparação talvez venha carregada de nostalgia dos ‘velhos
tempos’, de tempos de juventude. Contudo, é uma posição que se diferencia bastante
da visão de muitos estudiosos do assunto que se posicionam como tutores, protetores
da tradição, por entenderem-na como algo fixo, estático, quase necessitada de ser
guardada em uma redoma (TENDERINI, 2003: 27).

A ênfase da valorização do Cavalo-Marinho, portanto, não deve vir elegendo conceitos


estanques de tradição. É interessante contemplar a noção de costume e tradição em seu

35
Ler considerações sobre tradição e costume em HOBSBAWM, E. A invenção das tradições. Trad. Celina
Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 9-23.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 130

sentido dinâmico O próprio conceito de cultura, em si, estrutura-se sobre bases de movimento
e não da estática. Em outras palavras, neste INRC não se estabeleceu um modelo de aplicação
conceitual, mas um diálogo teórico-metodológico com os processos históricos e com as
vivências dos próprios sujeitos da brincadeira. Dando voz a eles, constatataram-se diversos
pontos de transformações como a frequência da brincadeira, o tempo de duração, os motivos
de suas realizações, os “financiamentos”, os locais de realização do folguedo, algumas figuras
que não se apresentam mais etc.
Segundo depoimento dos brincadores e mestres, a duração das brincadeiras sofreu
alterações drásticas. Antigamente, as brincadeiras duravam a noite toda, sendo que hoje em
dia é comum que o Cavalo-Marinho seja contratado para fazer apresentações com o tempo
reduzido (segundo Biu Alexandre, o Cavalo-Marinho Estrela de Ouro já fez apresentações até
de meia hora ou menos). Mestre Antonio Teles (Cavalo-Marinho Estrela Brilhante [PE])
relembra, por exemplo, como o Natal era um ponto alto para a brincadeira:

O derradeiro Cavalo-Marinho que eu brinquei em Aliança, no Natal na usina foi em


81 [1981]. Brincou a noite toda, um Cavalo-Marinho bom, uma festa linda mesmo.
(...) “Começava a brincar às oito horas ia até as seis horas.(Entrevista de Antônio
Teles concedida a este INRC.)

Seu Araújo, do Cavalo-Marinho Boi de Ouro (Pedras de Fogo [PB]), diz que a
brincadeira se transformou muito. Nas atuais apresentações, não existe mais a cena do Doutor
ou da Véia com o Patichulin:

O Cavalo-Marinho mudou muito, hoje, você vê um Cavalo-Marinho, mas você não


conta um Cavalo-Marinho, não sabe o que é o Cavalo-Marinho, porque hoje você
chega numa festa e apresenta os arcos. O lugar que eu mais brinco um pouco é lá em
Salu, que agente apresenta os aicos, o Soldado, o Ambrósio, Valentão, apresenta
Cavalo, apresenta o Boi… lá no fim o povo tá tudo enfadado.
Depois do Boi ainda tem o Dotô, hoje em dia ninguém sabe mais o que é isso (...)
quando o Dotô entra, o dia já está claro, claro, claro...entra aquele Dotô com roupa
de Dotô mesmo, chama-se Dotô de Boi de Cavalo-Marinho.
No terreiro, começava oito horas da noite e ia até cinco horas da manhã, o povo
ainda estava no terreiro brincando. Ninguém sabe o que é um Cavalo-Marinho, a
senhora ver um Cavalo-Marinho, mas a senhora não sabe o que é um Cavalo-
Marinho. Hoje tem apresentação, uma apresentação e fraca!(Entrevista de Seu
Araújo concedida a este INRC.)

Mestre Biu Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado [PE]) afirma que, na
época em que começou a brincar, o ritmo do Cavalo-Marinho era mais lento, mais
compassado, sendo que, após as mudanças inseridas pelo banco do Cavalo-Marinho de
Mestre Batista, o Cavalo-Marinho ficou mais rápido, mais “quente”. Segundo Biu Alexandre,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 131

as maiores transformações no Cavalo-Marinho são relativas à duração da brincadeira e aos


modos de contratação. Segundo ele, se antigamente a brincadeira acontecia sem preocupação
com o fator financeiro, hoje ela não acontece se não houver pagamento. Mestre Grimário
(Cavalo-Marinho Boi Pintado, Aliança [PE]) corrobora esta afirmação relatando que, hoje, a
maioria das brincadeiras acontece apenas mediante a contratação por parte do governo
estadual ou municipal. Se antigamente a brincadeira acontecia sem preocupação com o fator
financeiro, hoje ela não acontece se não houver pagamento. Mestre Antônio Telles conta que:

Naquele tempo, era assim: - vai ter um Cavalo-Marinho no engenho Oiteiro Alto! Aí
o budegueiro botava o jogo, botava o bozó, pra o banqueiro do jogo ajudar a pagar o
Cavalo-Marinho, aí a gente brincava por aquele meio de mundo todo. (Entrevista de
Antonio Telles concedida a este INRC.)

Como reflexão para a Salvaguarda, é importante refletir que as mudanças mencionadas


acima têm como consequências alterações profundas na estrutura da brincadeira, sobretudo no
que diz respeito à transmissão dos conhecimentos inerentes à sua realização. Como os mais
jovens não têm a oportunidade de assistir determinadas partes ou figuras (tendo em vista o
tempo reduzido das apresentações), há uma ausência de referência no tocante ao modo de
execução dessas partes. Figuras que não são mais apresentadas, que caem em desuso, correm
o risco de não voltarem mais à brincadeira, uma vez o conhecimento fica restrito àqueles que
assistiram essas figuras no passado.
Ressignificando de outra maneira estas mudanças, Mestre Zé de Bibi (Cavalo-Marinho
Tira-Teima, Glória de Goitá [P) narra transformações detalhadas no campo da música.
Segundo ele, as toadas tradicionais do Cavalo-Marinho eram cantadas em um tom só, e com
chamadas de menos variação, comparando com o estilo atual. Porém, Mestre Zé de Bibi
acredita que alguma transformação é necessária para a cultura “sobreviver” e diz: “nossa
tradição parece que acabou, mas não acaba”. Zé de Bibi incentiva seus 11 netos e netas a
participar do Cavalo-Marinho botando as figuras dos Caboclos de Pena e das Baianas, que
atraem o público e também colhem dinheiro.
Do mesmo modo, Mestre Pisica (Cavalo-Marinho Ventania, Feira Nova [PE]) traz boas
recordações com relação às transformações. O primeiro grupo de Cavalo-Marinho que Pisica
conheceu tinha viola no lugar da rabeca. O nome do violeiro era Pedro Miguel, de Feira Nova.
Segundo Pisica, depois foram aparecendo os rabequeiros para substituir os violeiros dentro do
Cavalo-Marinho. Informa que o primeiro rabequeiro com que teve contato se chamava Jacui.
Segundo Pisica, a musicalidade da viola e da rabeca são diferentes e, na opinião dele, utilizar
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 132

a rabeca é melhor, porque a viola só toca o baiano (referindo-se ao acompanhamento


harmônico apenas) já a rabeca toca a melodia.
Na contracorrente das transformações, Borges Lucas (Cavalo-Marinho Boi Teimoso,
Lagoa de Itaenga [PE]) faz questão de fazer o brinquedo acontecer no formato que observava
e brincava quando era pequeno. O Cavalo-Marinho Boi Teimoso traz narrativas da tradicional
brincadeira do Cavalo-Marinho da região. O brinquedo na região tem grande
representatividade na cidade vizinha de Glória do Goitá (PE) por causa do sítio Maliça, de Zé
de Bibi, e seu brinquedo. No entanto, na cidade de Lagoa de Itaenga (PE), o brinquedo já foi
mais valorizado pela prefeitura, que agora mudou sua política cultural. O brinquedo de Borges
Lucas, por não ter uma sede própria em um lugar significativo para seus brincadores e a
comunidade local, acarreta a construção de uma representatividade cultural e social
dependente e frágil. Diante do contexto atual, o que traz sustentabilidade para os brincadores
e para o Mestre Borges Lucas é seu apego ao passado e às suas raízes junto do Cavalo-
Marinho.
Narra Borges Lucas como foi se apropriando da brincadeira e se formando Mestre ao
longo do tempo:

Eu participava desde a infância, tinha um cabra que morava aqui na Malícia, um tal
de Zé Mané, ele vendia miudezas aí, ele tinha um Cavalo-Marinho. Todo verão ele
brincava lá pertinho lá de casa e a gente ia assistir, e eu iatambém, eu já tava com 15
anos de idade. Eu ia porque eu tinha era vontade de entrar pra brincar, mas pai num
deixava. Mas um dia quando eu crescer eu vou levar a vida do Cavalo-Marinho. Aí
quando foi no outro ano que eles vieram brincar, meu sonho era brincar de Catita no
Cavalo-Marinho, aí a Catita num veio, adoeceu, eu tava batendo o mergulhão,
começamos lá, aí Zé Mané disse assim:
- Mas seu Zé (o nome do meu pai era Zé) num vai dá bom porque a Catita num vem
hoje, a Catita adoeceu.
Aí eu disse pra pai:
- Pai, deixa eu brincar! Deixa eu brincar! Deixa eu brincar!
Aí pai disse:
- Tu brinca?
Aí eu disse:
- Eu brinco.
Aí eu fui.
Aí ele disse (Zé Mané): - Menino brinca aqui!
Eu disse: eu vou brincar!
Aí o vestido era muito grande, arrastava no chão, aí a gente morava pertinho, aí eu
corri lá peguei um vestido da minha irmã e brinquei a noite todinha. Aí de lá eu
segurei, agora pai num me empata mais não, deixou uma vez. E eu segurei a pisada
até hoje. (Entrevista de Borges Lucas concedida a este INRC.)

Segundo Biu Alexandre, foram os conselhos dados por Inácio Lucindo que fizeram com
que ele fundasse seu próprio Cavalo-Marinho, no ano de 1979. Seu brinquedo está ativo até
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 133

hoje (2012), e alcança até a terceira geração com seu bisneto, filho de Fábio Soares, que já
entra na brincadeira botando a figura do Ambrósio ao lado do pai. A família Salustiano
também carrega a continuidade da brincadeira até os tataranetos de João Salustiano,
rabequeiro, pai de Mestre Salustiano. Começar a brincadeira desde a infância é uma marca
das tradicionais maneiras que os grupos se valem para manter a brincadeira viva, dando
continuidade ao costume e, ao mesmo tempo, sendo agentes de transformações próprias do
universo cultural.
Exemplificando com outras narrativas biográficas, Seu Araújo começou as suas
atividades de produtor da cultura muito jovem, adolescente. Brincou e mestrou diversos
grupos de Cavalo-Marinho, antes de formar o seu próprio brinquedo, o Cavalo-Marinho Boi
de Ouro, que data de 1988. Inácio Lucindo nasceu no engenho de Paraná, no município de
Aliança, e foi criado por seus avós, sendo que, quando tinha 8 anos de idade sua avó veio a
falecer. Desde esta data, passou a acompanhar o avô em seu ofício de “pastorar boi”. Dentro
do engenho, desempenhou diferentes funções. Viu seu primeiro Cavalo-Marinho quando tinha
9 anos de idade, o Cavalo-Marinho de João Pedro. Inácio assistiu a primeira vez, ficou tão
encantado que, na mesma noite, disse aos brincadores que o chamassem para brincar. João
Pedro, junto com João Nedino, que brincava de Mateus neste Cavalo-Marinho, gostaram do
enxerimento do pequeno e convocaram-no para brincar de dama na próxima semana. Porém,
Inácio tinha de providenciar o vestido, o arco, sapato e o chapéu para se juntar ao brinquedo.
Inácio pediu ajuda para a senhora de engenho, que lhe deu todo o material. Na primeira
brincadeira, Inácio já demonstrou sua grande facilidade em decorar os versos, respondendo ao
Mestre Cavaleiro e acompanhando as falas do “Baibaça”.
A história de vida de Mariano Telles também se entrecruza com a existência e
sobrevivência do Cavalo-Marinho. Batizado por seu padrinho como Antonio Manuel
Rodrigues, desde cedo passou a ser chamado por Antonio Teles, o mesmo sobrenome pelo
qual seu pai era conhecido na comunidade. Começou a trabalhar com seu pai, quando criança,
aos 10 anos, na roça e tangendo o gado. Com uma rotina de trabalho tão intensa, Antonio
Teles não tinha oportunidade para brincar livremente em sua infância, também não teve
oportunidade de estudar, então, quando conheceu o Cavalo-Marinho, esse passou a ser um
espaço de vivência lúdica, de descoberta de novas possibilidades de expressão e de
desenvolvimento pessoal, o que ressalta também a importância do brinquedo popular no
sentido de atender às necessidades de ludicidade e de auto expressão, pois, no seio das
comunidades rurais, normalmente as pessoas são submetidas desde cedo a uma vida de muito
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 134

trabalho, pouca remuneração, a ausência de condições básicas de saneamento, educação,


saúde, conforto e lazer. Em 1946, Antonio Teles, com 12 anos, foi chamado para brincar de
Mateus no Cavalo-Marinho de Demézio, e este lhe ensinou a colocar a figura. Antonio Teles
por sua vez convidou seu primo Zé Dionísio para brincar de Bastião e juntos formaram uma
“pareia” e iniciaram suas trajetórias de brincadores neste grupo do engenho Caité. O Mestre
explica que, nesse tempo, a brincadeira não tinha um nome personalizado como acontece
atualmente, o brinquedo era simplesmente chamado de Cavalo-Marinho. Neste período, a
formação do banco era João Salustiano na rabeca; na viola, Zé Antonio; Mané Prezantino no
pandeiro; e um tocador de bage. Ressalta que nesta época não havia mineiro (ou ganzá) no
Cavalo-Marinho.
Antonio Teles brincou de Mateus por três anos no Cavalo-Marinho de Demézio, aos 15
anos passou a brincar de galante, depois de certo tempo, começou a cantar no banco. A partir
desse momento fortalece sua ligação com a música do Cavalo-Marinho. A primeira rabeca foi
comprada em sociedade com seu irmão Luís, depois Antonio Teles vende sua parte na
sociedade e fica sem rabeca por um tempo, mas não sem interesse em aprender a tocá-la.
Músico de grande sensibilidade, autodidata, aprendeu a tocar a partir da observação de outros
rabequeiros e de sua participação na brincadeira do Cavalo-Marinho.
Daí em diante, ele continuou a brincar no Cavalo-Marinho de Demézio, mas também
começou a se interessou em conhecer outros grupos, se aproximou dos grupos existentes em
outros engenhos, citou o de Zé Moreira, de Chico Coqueiro, de Mané Vieira, de João Vital, o
de Marcio Galdino e João Galdino. Em 1964, passou a brincar no Cavalo-Marinho de
Domício Pedro no engenho Natal (Aliança), já atuando como rabequeiro. Neste grupo brincou
por apenas três anos, porque o próprio Domício foi chamado para brincar de Mestre no
Cavalo-Marinho de Batista, na Chã de Camará, em Aliança. Em 1975, fixou residência em
Condado. Conforme seus relatos, a partir dessa mudança ele se integra no cavalo de Memézio
(filho de Demézio). Neste grupo brincou por onze anos. Posteriormente, passou a ser o
rabequeiro do Cavalo-Marinho de Biu Alexandre e atuou neste Cavalo-Marinho por vinte e
cinco anos. Desde 1987, trabalha como fiscal da Federação Terreiro de Umbanda São Jorge.
Adepto da Jurema, desde os 21 anos, começou a desenvolver-se espiritualmente, e sua
religiosidade afro-ameríndia se estendeu também para dentro do Cavalo-Marinho e se
manifestou expressivamente através da figura do Caboclo de Arubá, uma figura especial por
sua canalização de forças espirituais que o Mestre Antonio Teles tantas vezes incorporou na
brincadeira do Cavalo-Marinho. Em 2004, finalmente conseguiu realizar o sonho de fundar o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 135

seu próprio Cavalo-Marinho, o que se concretizou mediante o apoio primordial de sua filha
Nice Teles. Em novembro de 2011 foi inaugurado o Espaço Tradições Culturais, com
recursos do prêmio do Ministério da Cultura. Atualmente, o espaço serve para ser a sede do
Cavalo-Marinho, onde guardam o acervo de peças, indumentárias, bicharia e instrumentos
musicais do Cavalo-Marinho.
A história do Cavalo-Marinho é de continuidades e transformações e se mistura com a
vida de seus atores sociais num processo contínuo desde a infância. Quando se ouve o alarde
dos mestres dizendo que muita coisa mudou, ao mesmo tempo, enxerga-se o contato forte
com as raízes do brinquedo, com um passado vivido e apreendido como parte da identidade
destes brincadores. Ouve-se também um grito de reivindicação para que as autoridades
contratantes lhe deem o que a tradição e/ou o costume solicita: mais tempo para sua
apresentação, com valores justos. A brincadeira se mantém viva, transformando-se na sua
dinâmica própria, contudo, sempre conectada com a história de vida e de muita sabedoria de
seus mestres e brincadores. Prova disso é que o folguedo continua ampliando suas linhagens,
com filhos, netos, bisnetos e tataranetos que olham, escutam e praticam o Cavalo-Marinho ao
lado de seus ancestrais.
O Cavalo-Marinho enquanto forma de expressão praticada por trabalhadores ligados ao
universo rural, da cana, já comemora mais de 142 anos (desde o registro encontrado de 1871).
As transformações são inerentes a todo bem cultural, no entanto, a estrutura significativa, a
musicalidade, a poesia, a dramaturgia se mantêm. Há de salientar que às vezes ocorrem as
substituições de um instrumento por outro, de uma figura por outra, de um artefato ou roupa
por outros etc. Não obstante, o bem cultural enquanto costume repleto de aspectos tradicionais
tem seus processos de continuidades representativas desde a época da escravidão e,
sugestivamente, desde as possíveis raízes de além-mar, em terras africanas.
Como exemplo disso, abaixo se tem um quadro com a descrição feita por Pereira da
Costa, em Goiana, em 1902, de um Cavalo-Marinho (que ele também chamou de Boi) e outra
descrição feita recentemente (publicação de 2005) pelo pesquisador Érico de Oliveira.

DESCRIÇÃO DE ÉRICO DE OLIVEIRA DE 2005.


RELATOS DE PEREIRA DA COSTA DE 1902
(REDUZIDA)

Entra o Capitão de Campo, perseguindo Soldado da Gurita: - Capitão, pra que mandou me
Fidélis para prender e amarrar como negro chamar?
fugido. Canta o coro:
Capitão: - Mandei chamar porque aqui tem uns
Capitão Colombo nêgo que tão muito rebelde e não querem deixar o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 136

Tome bem sentido, Capitão Marinho dá baile na cidade.


Leve para casa S. da Gurita: - O que é que o Capitão quer que eu
O negro fugido. faça?
Capitão: - Que prenda os nêgo.
E o Capitão, atirando-se sobre Fidélis, brada- S. da Gurita: - Capitão, quanto quer para prender os
lhe: nêgo?
Eu te amarro, cão, Capitão: - Seu soldado, se eu prendesse, eu não
Eu te atiro, negro, mandava lhe chamar.
Eu te mato, ladrão. S. da Gurita: - Capitão eu realizo! Capitão, quanto
dá?
E Fidélis responde: Capitão: - O senhor faz por quanto?
Capitão me chama negro S. da Gurita: - Capitão, a empeleitada é por dois e
Negro eu não sou não; oito, nada. Prendo por um bode e uma buchada. A
Quero que você me diga cabeça é do Capitão, os ôio e a rabada é minha.
Quantos contos deu por mim. Capitão:- Nada disso. A cabeça é sua e a rabada é
minha.
Travava-se então uma luta entre ambos, e o S. da Gurita: - Não, seu Capitão. A rabada é minha...
Fidélis, deitando por terra o Capitão, amarra- Capitão: - Então, dê a cabeça pra Mateus.
o com a própria corda que trazia, cantando S. da Gurita: - Tá valido?
então o coro a esta cena: Capitão: - Tá valido!
Capitão de campo,
Veja que o mundo virou;
Foi ao mato pegar o negro, Depois de algumas evoluções do Soldado com loas
Mas o negro o amarrou. e toadas, a figura vai realizar o negócio fechado
com o Capitão e vai pegar os nêgos safados.
Responde o Capitão:
Sou valente e afamado Toada do Soldado da Gurita:
Como eu, não pode haver;
Qualquer susto que me fazem Amarre o nêgo, Soldado.
Logo me ponho a correr. Eu quero nêgo amarrado.
Amarre o nêgo, Soldado.
Por orde do delegado.

O Soldado então derruba com um pau


primeiramente o Nêgo Mateus, depois o Nêgo
Bastião e por última a Catirina. Todas as cenas são
mediadas por loas, toadas e diálogos entre as
figuras.

Mateus: - Ai, Seu Soldado! Ai!Ai! Para! Entrou!


Entrou! Dá nele Bastião!
Soldado da Gurita: -Tá morto, Capitão! Dá a licença,
nêgo.
Mateus: - Eu dô! Eu dô!
Bastião: - Pareia! Levanta, pareia!
Mateus: - Eu vou morrer....
Soldado da Gurita: - Ô, Capitão, o Mateus, o que é?
Capitão: - É frouxo....

Por fim, após “lascar” Catirina, mulher de Mateus,


o Soldado sai correndo, sempre trazendo como
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 137

surpresa o lado da roda da brincadeira que irá fugir.


E o banco canta a toada:

Seu Soldado caia fora


Dê um passo e vá embora
Seu Soldado caia fora
Dê um passo e vá embora.
Quadro 4 - Transformações no Cavalo-Marinho

Figura 37 - Cena do Soldado pegando o Nego Mateus – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE)

Esta comparação dos registros de 1902 e do outro, depois de quase 103 anos, nos traz
uma referência de que as transformações são inerentes aos processos culturais que estão
inseridos em processos históricos e de dinamismo humano. O interessante é que alguns
aspectos estéticos (obviamente, estes são importantes também) podem mudar com o passar do
tempo, mas a essência, o sentido, o significado e, na linguagem do Cavalo-Marinho, o
“fundamento” da brincadeira permanece de forma ressignificada. Nas duas narrativas, as
semelhanças são óbvias. Constam como pontos estruturantes comuns as figuras presentes na
cena, a existência da negociação/empeleitada, o objetivo do trabalho do Soldado/Capitão, os
alvos da “violência”, o modo de sair da cena da figura opressora dos negros. Salvo as
inversões, profundamente curiosas e certamente bem contextualizadas, a temática geral da
dramatização é igual. Nos dois casos se contou uma história, e as duas histórias levam os
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 138

participantes para um mesmo sentido, para um mesmo universo social e cultural de


significados. É clara, por exemplo, a reminiscência do tempo da escravidão e, especialmente,
do negro escravo, ou descendente de um.
No período pós-abolição, as manifestações culturais mantiveram seu costume, assim
como até hoje. No entanto, o dia a dia trazia em cena o que deveria ali ser comunicado. Como
nos relatos de Pereira da Costa, as marcas da escravidão se mantiveram nas falas dos
personagens, no entanto, em forma de um teatro-memória, quem foge é o Capitão do Mato,
trazendo uma inversão social da realidade escravista. Ou como pontua Benjamin, o Mateus e
o Bastião ou Fidélis, que são os personagens negros do Cavalo-Marinho, nas versões mais
antigas eram escravos, nas mais recentes são empregados de confiança do Capitão do Cavalo-
Marinho. No entanto, em todas as versões, eles são negros – e para que não haja dúvida da
condição, mesmo quando representados por atores negros, estes usam uma pintura para
enegrecer as partes do corpo que ficam à mostra: rosto, pescoço, braços, mãos e pés
(BENJAMIN, 1985: 46).
Nas considerações de Beatriz Brusantin, trata-se de significações que interpretam e
expressam as implicações do fim do cativeiro sobre as vivências cotidianas das populações
negras que ali habitavam. É essencial perceber como as populações que emergiram da
escravidão, de variadas e criativas maneiras, buscaram modificar o rumo de suas vidas em
meio à imprevisibilidade e aos limites impostos por uma sociedade que continuou assentada
sobre profundas desigualdades sociorraciais (FRAGA FILHO, 2006 apud BRUSANTIN,
2011: 483). Marcas simbolizadas nos folguedos que permanecem, mas ao mesmo tempo se
renovam, afinal de contas, as formas de dominação também mudam. A festa é parte de um
jogo, é um espaço aberto no viver social para reiteração, produção e negociação das
identidades sociais. Coincide com a linha da identidade que produz em seu interior.
Identidade não homogênea. Identidade criada, que é uma unidade diferenciada e conflituosa;
de cooperação e de competição; uma estrutura de produção e consumo e, portanto, uma
estrutura de poder (GUARENELLO, 2000: 973).
O Cavalo-Marinho sobrevive há gerações porque traz sentido para a vida das pessoas
envolvidas no processo de produção e ação do brinquedo. Tanto por ser um canal de
comunicação36 com seus símbolos, memórias e rituais, como por envolver pessoas de várias
gerações num mesmo projeto de realização de uma forma de expressão com raízes históricas.

36
E aqui vale destacar o primeiro trabalho acadêmico sobre Cavalo-Marinho que trouxe esta conclusão:
MARINHO, Edval. O folguedo popular como veículo de comunicação rural: estudo de um grupo de cavalo-
marinho, Dissertação de Mestrado em Administração Rural na UFRPE, Recife, 1984.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 139

Exemplificando, em Glória de Goitá (PE), no sítio Malícia, de propriedade de Mestre Zé de


Bibi, quando acontece o Cavalo-Marinho, o sítio inteiro, que engloba 17 famílias, se torna a
sede para produção do evento. As máscaras e as indumentárias das figuras guardadas no
depósito dentro da casa da farinha ficarão expostas ao sol no salão (da casa da farinha) para
secar e tirar a poeira. As mulheres utilizam o forno da casa da farinha para fazer pé de
moleque e beiju, com ajuda da força dos jovens e crianças. Os brincadores carregam os
bonecos dos bichos maiores como boi, cavalo e burra (e veado, que não entra na brincadeira),
também guardados no depósito, para a rua, localizando cada um para formar círculo. Este
círculo cria o universo/espaço da encenação do Cavalo-Marinho. As casas da filha Nalva e
das sobrinhas do Mestre servem para cozinhar e convidar os visitantes para se alimentarem
nas salas. Atualmente, as instalações construídas dentro da propriedade, como o Museu do
Cavalo-Marinho, são reconhecidas e trazem uma representatividade significativa na região. O
brinquedo, portanto, atrelado à atuação social e cultural de Mestre Zé de Bibi na região,
possui uma representação importante para a comunidade local. Diversas vezes ao ano são
realizados eventos festivos no sítio Maliça, sempre organizados pelo Mestre e as pessoas que
moram no lugar. Muitas vezes trazem o apoio de entidades públicas, porém, isso não desloca
o significado que o brinquedo, o sítio e o Mestre representam para a comunidade local.
Para as comunidades envolvidas com o brinquedo, a identificação é imediata. O público
ri, comparece, a família toda participa, e entre os brincadores e mestres, o brinquedo é um
bem da família. Simbolizam os sonhos, a arte, a brincadeira, o negócio, a diversão, a
seriedade, o símbolo da união, o motivo, algumas vezes, de muita discussão. Identificar o
Cavalo-Marinho como um bem cultural, patrimônio cultural nacional, é, sobretudo, legitimar
em amplitude maior o reconhecimento de algo que, para dezenas de famílias, significa por
gerações uma grande riqueza de saber, de sonho e de respeito. Na época da escravidão, os
escravos foram presos pelas autoridades porque durante uma brincadeira deram vivas
àliberdade! O grito certamente significou, naquele contexto e para aqueles sujeitos, a força
para a luta em busca de uma vida melhor.37
Anualmente, estas famílias recebem visitantes de várias regiões do país e do mundo
para compartilhar sua brincadeira e seus saberes. São pesquisadores acadêmicos de áreas

37
Informações no documento Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do subdelegado.
Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247, vol 652
APEJE/Recife. Apud BRUSANTIN, 2011 e na tese BRUSANTIN, B. M. Viva o boi: uma análise comparada
das manifestações culturais dos catarinenses e pernambucanos no século XIX e início do XX. Anais do III
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (SC), 2007.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 140

diversas, são artistas que querem se inspirar em seus corpos, sua música e em sua
dramaturgia. O Cavalo-Marinho pernambucano, nascido nas senzalas, significa muito para a
sua comunidade e, atualmente, é fonte de inspiração para a cultura nacional, com repercussões
internacionais, se colocando com legitimidade para receber o título de Patrimônio Cultural
Imaterial do Brasil.

3.7.5 A linguagem do Cavalo-Marinho pernambucano

A identificação do Cavalo-Marinho leva-nos a necessidade de colocar em evidência


que, linguisticamente, o universo da brincadeira cria conceitos próprios para caracterizar e
nomear seus atos, suas falas e seus sujeitos. Refletir sobre a linguagem do Cavalo-Marinho
leva-nos a aprofundar os sentidos intrínsecos ao universo do bem cultural e também a sua
relação com o outro. É historicizar e compreender os processos dialógicos da cultura
tradicional com a cultura contemporânea e construir caminhos para uma divulgação cultural
sem perdas essenciais aos “fundamentos” do brinquedo. É pensar, sobretudo, sobre a
salvaguarda do bem enquanto forma de expressão – em seus múltiplos aspectos –, ponderando
a preservação dos aspectos originais e transformações.
Para este Inventário Nacional de Referências Culturais, principalmente por contar na
equipe com a presença de Fábio Soares, neto do Mestre Biu Alexandre do Cavalo-Marinho
Estrela de Ouro (PE), utilizaram-se os termos e nomes usuais (ou costumeiramente usuais)
pelos atores sociais. Em certa medida, estas nomenclaturas trazem subjetividades e dinâmicas
de transformações e trocas. Estes processos, por sua vez, podem denotar perdas de aspectos
tradicionais, ao mesmo tempo que proporcionam novas características de divulgação e
abrangência do bem em instâncias localizadas fora do seu contexto histórico. O maior
exemplo desta reflexão na realidade atual é o uso da palavra Mestre Ambrósio. Ambrósio,
sem a palavra “mestre”, é uma figura do Cavalo-Marinho que se apresenta, na maioria dos
grupos, nos primeiros momentos da brincadeira e representa um vendedor de figuras de
Cavalo-Marinho que negocia seus produtos com o Capitão. Para os brincadores, o nome
correto desta figura é Ambrósio. No entanto, em 1992, foi fundado o grupo musical
denominado Mestre Ambrósio composto por Siba (voz e rabeca), Eder "O" Rocha,
(percussão), Helder Vasconcelos (percussão, fole de oito baixos e performances), Mazinho
Lima (baixo elétrico e triângulo), Sérgio Cassiano (percussão e voz) e Mauricio Alves
(percussão). A banda pernambucana, desde seu primeiro CD independente Mestre Ambrósio
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 141

(1996), fazia referências diretas ao Cavalo-Marinho e tornou-se um veículo importante de


valorização e divulgação desta cultura. No campo musical, trouxe ao público nacional e
internacional a rabeca e músicas com ritmos inspirados no Cavalo-Marinho, incluindo, no
primeiro CD, como música incidental (0:32), a toada da figura Pisa Pilão tocada por um banco
de Cavalo-Marinho, e iniciando o seu segundo CD Fuá na Casa de Cabral (1998) com a
faixa Trupé (queima carvão)[1:25] com participação especial de Mestre Biu Alexandre (voz),
Luis Paixão (rabeca), Manoel Deodato (pandeiro), Biu Roque (bage e voz), Manoel Roque
(bage e voz), Sidrak (mineiro), Borba (Mateus, bexiga), Miço (Bastião, bexiga), grandes
músicos e toadeiros dos Cavalos-Marinhos pernambucanos. No mais, o grupo Mestre
Ambrósio também divulgou a dança e as figuras do brinquedo, trazendo na capa do seu
primeiro CD a imagem de uma máscara, artefato indispensável das figuras do Cavalo-
Marinho. Também durante os shows ocorriam performances do ator e músico Hélder
Vasconcellos, que se vestia com roupas semelhantes às figuras do brinquedo e desenvolvia
uma conversa com outros do grupo em uma representação das “cenas” entre figura e Capitão
sempre presentes no brinquedo.
Todo este processo artístico do grupo Mestre Ambrósio foi de grande importância para
a divulgação do Cavalo-Marinho que, a partir desse momento, começou a chamar a atenção
de pesquisadores e artistas sobre esta manifestação cultural, até então, com divulgação
regional ou local (aqui vale ressaltar a importância também dos trabalhos artísticos do
Quinteto Violado e Antônio Nóbrega, grandes divulgadores da cultura do Cavalo-Marinho).
O nome do grupo, “Mestre Ambrósio”, começou a interferir na denominação da figura
Ambrósio. Em outras palavras, começou-se a chamar a figura Ambrósio de Mestre Ambrósio.
Para muitos brincadores, isto é um grande erro cometido por pesquisadores, turistas e até
mesmo por alguns membros dos grupos de Cavalo-Marinho. Obviamente, a força de
visibilidade da banda musical, que teve uma circulação mundial, se sobressai sobre a cultura
tradicional do Cavalo-Marinho e interferiu nos caminhos de conhecimento e identificação do
bem cultural. Este é um exemplo típico para destacar a importância de uma revisão nos
termos e nomes referentes ao universo do Cavalo-Marinho, bem como para refletirmos sobre
os processos de continuidade e transformações pelos quais as culturas tradicionais
inevitavelmente passam.
A palavra brincante também repercutiu nos dizeres e sentidos das denominações dos
sujeitos que praticam a brincadeira do Cavalo-Marinho. Entre os atores sociais, o nome de
costume e mais adequado é brincador. Analisando o contexto também da década de 90 do
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 142

século XX, presenciamos a abrangência nacional do trabalho do artista Antônio Nóbrega que
trouxe, para designar o sujeito da cultura popular, ou o artista popular, e o próprio ato de
brincar, a palavra brincante (não sabemos se foi o primeiro a usar este termo, mas podemos
considerar como seu grande expoente de divulgação no meio artístico e popular). Antônio
Nóbrega, neste período, mais precisamente em 1992, fundou na cidade de São Paulo o
Instituto Brincante, que nasceu da ideia semeada no espetáculo de teatro de mesmo nome.
Segundo Nóbrega, “brincante é a maneira mais comum com que são conhecidas e chamadas,
em muitas regiões do Brasil, notadamente no Nordeste, aquelas pessoas por nós denominadas
de artistas populares”.38 Nóbrega intenta trazer para a denominação a ampliação do sentido de
brincar como designação de atuar e representar fora do contexto moderno de fazer um
espetáculo, mas no sentido amplo de divertir-se brincando com os demais. De fato, o sentido
atribuído por Nóbrega tem ressonância no mundo real da cultura popular. Em contrapartida, a
pesquisa deste INRC verificou que a grande parte dos atores socais envolvidos com o Cavalo-
Marinho designam os sujeitos que brincam, no sentido acima colocado, como brincadores.
Estes aspectos não se tratam exclusivamente de uma discussão de sintaxe das palavras
brincante e brincador. Há também uma discussão semântica por trás destes usos e desusos.
Antônio Nóbrega trouxe esta palavra para nomear seu espetáculo, e, como ele mesmo coloca,
“a que nós denominamos espetáculo, os brincantes preferem chamar de brincadeira ou
brinquedo”.39 Assim, apesar de Nóbrega almejar trazer para sua obra artística espetacular o
“espírito brincante”, desenvolvido desde a década de 70 do XX, quando ele começou a
mergulhar no universo da cultura popular através da sua participação no Quinteto Armorial, a
convite de Ariano Suassuna, ele, na verdade, como muitos artistas, produziu uma
interpretação daquilo que se pratica na realidade cultural popular. A partir da transposição de
um brincar no chão batido, entre os engenhos, com cheiro do bagaço da cana, em semicírculo,
nas madrugadas adentro etc., para um produto espetacular, transformaram-se os sentidos
produzidos pelos sujeitos da brincadeira. Nóbrega não mais diferenciou o que ele chama de
“brincante” do contexto popular para o seu “brincante” no contexto espetacular. Todavia,
sabemos que o sentido de ambos são diferentes, bem como, considera Nóbrega em suas
reflexões. Em síntese, obtemos duas constatações com relação a estas nomenclaturas.
Primeiramente, a verificação factual de que grande parte dos sujeitos do Cavalo-Marinho
utiliza a expressão brincador, ao invés de “brincante” (salvo exceções, como observa-se na
família Salustiano e Mestres próximos a esta, como Mestre Grimário do Cavalo-Marinho Boi
38
Informação escrita pelo autor no site http:/ www.antonionobrega.com.br. Acessado em 5/02/2013.
39
Informação escrita pelo autor no site http:/ www.antonionobrega.com.br. Acessado em 5/02/2013.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 143

Pintado). Em segundo, que a palavra “brincante” sofreu modificações semânticas no processo


histórico-cultural dialógico entre realidade artística e realidade da cultura popular. A grande
repercussão nacional do espetáculo “Brincante” de Antônio Nóbrega, bem como a criação do
Instituto Brincante (com espaço teatral) na cidade de São Paulo – desmembramento do
Movimento Armorial criado por Ariano Suassuna – adicionaram sentidos à palavra,
aproximando-a do universo artístico espetacular e distanciando-a do universo da brincadeira
do Cavalo-Marinho, que tem em seu âmago o sentido de brincar mais para divertir-se com o
outro do que para entreter ou divertir o outro através de uma linguagem esteticamente do
espetáculo. Nesse sentido, acredita-se que retomar aqui neste INRC a palavra de uso dos
próprios sujeitos da brincadeira – brincador– faz-se em sintonia com a proposta de registro do
Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural Imaterial e sua salvaguarda. Por último, vale
ressaltar que novamente aqui se presencia a influência do bem cultural do Cavalo-Marinho no
mundo artístico com repercussão nacional e internacional. Ao mesmo tempo, verifica-se como
este universo também influencia o universo do Cavalo-Marinho, de um lado para valorizar e
divulgar e, de outro, para lhe atribuir novos significados.
A propósito, é importante registrar que existem algumas versões sobre a denominação
Marinho para Capitão. Segundo análises de Brusantin (2011), Ascenso Ferreira classifica que
a figura do Capitão Marinho é um “misto de cavalo e oficial de Marinha” (FERREIRA, 1986:
111). Já os relatos orais refletem outras versões. Uma explicação, comumente afirmada pelos
mestres, é que Capitão Marinho significa “o cavalo do Capitão Marinho”40, neste caso,
Marinho seria o nome ou sobrenome do capitão que possui o cavalo. Outra classificação, esta
na verdade registrada apenas por dois mestres, curiosamente, dois negros, dizem que Cavalo-
Marinho vem do animal marinho, cavalo-marinho, e que este é tomado de uma magia e vem
do mar, então, os escravos teriam se inspirado no animal e colocado o nome no folguedo.41
Nesta versão, o nome Marinho do “capitão” seria relativo ao mar, ao animal. A relação entre a
palavra “marinho” e o mar é bem contextualizada, se estamos pensando nas possíveis relações
entre o folguedo e os povos de além-mar: africanos e portugueses. Entretanto, a afirmativa
dos mestres e brincadores de que Marinho é um sobrenome ou nome de um capitão dono do
cavalo também faz sentido com a conjuntura da Zona da Mata Norte, terra de senhores-
capitães, e com a presença de famílias com o sobrenome Marinho (BRUSANTIN, 2011: 449).

40
Afirmação de mestres e brincadores do Cavalo-Marinho pernambucano. Registrado por Beatriz Brusantin
entre 2004 e 2010.
41
Versão de Mestre Martelo, Mateus do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado (PE). Mestre Antônio
Telles, Estrela Brilhante de Condado (PE), também faz referências ao animal cavalo-marinho. Registrado por
Beatriz Brusantin entre 2005 e 2010.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 144

Neste INRC, o pesquisador Fábio Soares afirmou, com comprovações nas falas de vários
brincadores e mestres, que a pronúncia (e a escrita) usual é Cavalo-Marim, conectando o seu
sentido a algo relativo ao mar ou ao profissional do mar, o marinheiro.
Outra palavra curiosa na linguagem do Cavalo-Marinho é pareia. As figuras dos negros
Mateus e Bastião se comunicam e se apresentam ao Capitão como “pareias”, isto é, parentes.
Os estudos de Marina de Mello e Souza sobre as eleições dos reis negros traz que o termo
“parente” possui significados étnicos de solidariedade interessantes. Souza afirma que, com o
estilhaçamento das relações familiares provocado pelo tráfico, os africanos escravizados
buscaram reconstruir em novas bases os laços fundamentais que uniam as pessoas. Segundo a
autora, a reunião em grupos oriundos da mesma etnia ou de regiões próximas, pertencentes a
um mesmo complexo sociocultural, foi uma forma encontrada para recriar as afinidades
fundadas nas relações de parentesco (SOUZA, 2002: 181). Souza destaca que existe a
utilização do termo “parente” para pessoas do mesmo grupo étnico, havendo entre elas
vínculos essenciais no processo de redefinição de solidariedades, antes fundadas em relações
de linhagens. Os africanos redefiniram a abrangência semântica da palavra “parente” para
incluir todos da mesma etnia, inventando o conceito de “parente de nação” (SOUZA, 2002
:182).Para Brusantin, é coerente considerar ligações entre os “pareias” de Pernambuco e os
“parentes” de outros lugares do Brasil. No folguedo praticado pelos escravos da Zona da Mata
Norte de Pernambuco, as figuras que representavam eles próprios (negros que representam
negros) também trazem sinais de laços de solidariedade baseados em traços étnicos
(BRUSANTIN, 2011: 450).
Vislumbrando essas discussões, é importante destacar alguns termos da linguagem do
Cavalo-Marinho que aqui foram utilizados. A valorização do bem cultural como um todo,
incluindo sua linguagem, ratifica a cultura dos brincadores em sua originalidade e corrobora
com ideias de Octávio Ianni de que muito da diversidade social brasileira se dá no âmbito da
cultura através dos nomes das coisas, significados das palavras, símbolos, signos etc. “Mesmo
em um país no qual parece que não há dialetos, a língua falada pelas classes dominantes não é
exatamente a das classes subalternas; a escrita dos eruditos pouco tem a ver com a escrita de
operários e camponeses” (IANNI, 1992:144). A língua nacional é múltipla, e este é o sentido
da construção de uma nação e sua identidade. Nessa direção, identificar, pelo menos em parte,
a linguagem do Cavalo-Marinho dentro do processo dinâmico da cultura, dialoga
perfeitamente com o princípio constitucional que assenta a política pública de registro do
Patrimônio Cultural Imaterial.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 145

Julio Bello, em Memórias de um senhor de engenho, ao narrar a parte do teatro em que


ocorre a morte do Boi, explica que, ao aparecer um “fiscal” a exigir a retirada da carniça do
terreiro:

Trava-se a discussão entre ele, “Matheus” e “Catharina”, que são o casal de palhaços
do toda a função e se esforçam sempre em falar como os antigos pretos d’Angola,
uma arrevesada algaravia, muita vez graciosa e original (BELLO, 1935).

Na análise de Beatriz Brusantin, talvez Bello, ao colocar os brincadores como antigos


pretos d’Angola, não estivesse falando especificamente sobre essa nação. Todavia, certamente
estava se referindo a uma linguagem, de outra nação que não a portuguesa ou brasileira, e que
de qualquer forma era utilizada como códigos acessíveis aos brincadores e ininteligíveis para
as autoridades da plateia. Para a autora, sugere-se “uma dupla resistência: social, por criar
uma linguagem de compreensão restrita a seu grupo, e cultural, por, possivelmente, usar as
falas que faziam referência ao mundo dos seus ancestrais. De certa forma, estavam
construindo a sua identidade” (BRUSANTIN, 2007). O mesmo pode-se considerar para a
linguagem do Cavalo-Marinho que faz parte de um processo de estruturação da identidade do
grupo social envolvido, fortalecendo-o enquanto detentores e reprodutores de saberes com
raízes históricas. Observa-se o brinquedo como um rito que traz caminhos de compreensão
sobre os códigos morais de uma comunidade em seus variados contextos. A linguagem, neste
aspecto, significaria signos desta herança herdada em conflito ou conformação com a
realidade vivida.
O quadro abaixo informa algumas palavras utilizadas por grande parte dos sujeitos do
Cavalo-Marinho (linguagem Cavalo-Marinho) e, ao lado (outras linguagens), colocamos
palavras com sentidos próximos ou iguais utilizados, com mais frequência, por universos
externos ao do bem em questão.

LINGUAGEM CAVALO-MARINHO OUTRAS LINGUAGENS CORRESPONDENTES


Ambrósio Mestre Ambrósio
Baiano ou Baião Gênero musical/ música
Banana Tocar a música/ música
Banco Conjunto de Músicos/instrumental e vocal
Instrumento percussivo utilizado pelo Mateus e
Bexiga do Mateus e do Bastião
Bastião/bexiga de boi cheia de ar
Bichos ou Bicharia ou Bicharada Bonecos com formatos de animais
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 146

Botar figura Encenar


Brincadeira Teatro/ auto/ folguedo/dança
Brincador, folgazão Brincante/ ator/ dançarino
Cagamelo Revólver da figura do Soldado
Cavalo-Marim Cavalo-Marinho
Carregueiro Pessoa que carrega os bichos para a apresentação
Dança dos Aico Dança dos Arcos
Diálogos Falas dos personagens
Empeleitada Empreitada/ negociação de trabalho
Figuras Personagens
Figureiro Ator que encena os personagens (figuras)
Fundamento Ethos/ sentido/ significado/ saber
Galantaria Grupo de participantes que dançam com os arcos
Galante Participante que dança com os arcos
História Enredo, narrativa do Cavalo-Marinho
Jé Joje Revólver da figura do Soldado
Loas Poesia
Maüião ou Magui Mergulhão
Mateu Mateus
Munganga Corporalidade/movimento corporal
Ovo Bexiga do Mateus
Pantim ou Pantinho Corporalidade/movimento corporal
Pareia Parente/parceiro/companheiro
Pêra Corruptela de poeira
Passo de dança com movimentos ágeis dos
Pisada
pés/andamento da música
Puia Piada com apelo sexual/sentido duplo
Rebeca Rabeca
Rebequista ou Rabequeiro Rabequista/ rabequeiro
Roda do samba Círculo da brincadeira/ terreiro
Samba Folguedo/ brincadeira/ brinquedo/ festa
Sambador Brincador
Sapurica Insulto do Mateus para a figura do Soldado
Terreiro Espaço onde acontece a brincadeira/semicírculo/ ruas
Toadas Gênero musical/música
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 147

Tóda Camarim
Tombo Dança do mergulhão/passo de dança
Trupé Passo de dança do Cavalo-Marinho

Quadro 5– Linguagem do Cavalo-Marinho


Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 148

4 ENTRE O ANTIGO E O CONTEMPORÂNEO: O CAVALO-


MARINHO COMO OBJETO DE REGISTRO

No ano de 2013 estaremos completando 10 anos da “Convenção para a Salvaguarda do


Patrimônio Cultural Imaterial”, realizada em Paris, e serão 13 anos do Decreto 3.551, o qual
estabeleceu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem Patrimônio
Cultural brasileiro. Muito se conquistou até aqui, e ainda temos um caminho para prosseguir.
Registrar o Cavalo-Marinho no Livro de Formas de Expressão significa mais um passo
assertivo em direção à busca pela inclusão de práticas, representações, expressões,
conhecimentos e técnicas que as comunidades envolvidas com o Cavalo-Marinho reconhecem
como patrimônio cultural. Pelo próprio decreto de 2000, a primeira exigência para os bens
que pretendem alcançar o qualitativo de patrimônio nacional é a sua “continuidade histórica”.
A seguir, a relevância nacional para a memória, identidade e formação da sociedade brasileira
(par. 2º. Art. 1º.) (ABREU, 2007). A explanação de todo este dossiê pautou-se
necessariamente nestas prerrogativas legais. Para efeito de demonstração, retomemos alguns
pontos cruciais.
O Cavalo-Marinho é em si a representação do cotidiano da comunidade envolvida. Vida
e arte se misturam, se ressignificam, se entrelaçam e mutuamente dão sentido existencial e de
identidade para seus atores. Não foram poucos os mestres acima citados que narraram suas
vidas de trabalho e de crescer como sempre acompanhadas pela prática de brincar. Dentro da
brincadeira, seus símbolos criados, suas representações transmitidas, sua dramaticidade, sua
religiosidade, suas posturas corporais revelam muito mais do que incríveis técnicas de teatro,
dança e música. Revelam memórias do tempo da escravidão, da vida nos engenhos, da labuta,
das incessantes negociações pelo trabalho e pelo pagamento justo, da vida de risos, da vida
com morte, da que louva e da vida que cultua a espiritualidade dos seus ancestrais. Como
desde pequenos começaram a cortar cana, catar mato, ajudar o pai na enxada, também se
escondiam embaixo do banco, como Seu Martelo, para poder assistir a brincadeira que
entrava na madrugada. O Cavalo-Marinho acompanha e acompanhou a infância, a juventude,
a maturidade e a velhice de muitos e muitos brincadores, mestres, folgazões, filhos, mães,
pais, vizinhos, conhecidos e curiosos que vivem e viveram parte da sua vida entre canas,
canaviais, engenhos, usinas e cidades que vão do município de Paulista (ao lado de Olinda)
até o sul da Paraíba. Ao mesmo tempo, não ficou restrito a este universo. A cultura do
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 149

Cavalo-Marinho ganhou a região metropolitana do Recife e de João Pessoa, bem como


diversos estados do território nacional.
Mestre Mariano Telles (Cavalo-Marinho do Mestre Batista) rememora que Mestre
Batista lhe dizia que “o fundamento de Cavalo-Marinho tinha mais de 400 anos no Brasil”.
Nos documentos históricos pernambucanos, encontramos a brincadeira realizada entre os
escravos na data de 1871, e, curiosamente, na mesma região que Batista, Antônio Telles e
muitos outros brincadores praticaram e praticam hoje o Cavalo-Marinho. Temos, portanto,
prova empírica de que tal brincadeira não nasceu ontem, e sim, que tem suas raízes,
reconhecidas por todos os que se envolvem direta ou indiretamente com o brinquedo, em
tempos remotos. A brincadeira atravessou a história dos brasileiros em espaço e tempo. Traz
em seu bojo aspectos culturais que não nasceram aqui, como bem exemplificamos neste
dossiê com relação às diversas reminiscências africanas. Proporciona também diálogos com
outras manifestações culturais praticadas em várias regiões do Brasil, como o Bumba meu Boi
e o Reisado, e é berço de aprendizes da rabeca pernambucana que contamina o Brasil e o
mundo, proporcionando uma leitura contemporânea em cima do gênero musical presente no
brinquedo. Citemos as produções musicais de Antônio Nóbrega, do grupo Mestre Ambrósio,
Siba Veloso, Maciel Salustiano, entre outros. Ainda no campo da música, poeticamente,
muitas foram as inspirações, entre elas, a canção “Cavalo-Marinho” numa parceria entre
Vinicius de Moraes e Baden Powell, gravada por este em 1977, por Mário Telles em 1964 e
também por Olívia Byingtonem 1978.
No campo da dança e do teatro, os corpos dos figureiros e brincantes são fontes de
inspiração e de criação para diversos artistas que, em trabalhos solos ou em grupos, produzem
espetáculos de circulação nacional com claras referências ao Cavalo-Marinho. Entre eles,
Pedro Salustiano (PE), Helder Vasconcellos (PE), Grupo Peleja (PE-BA), Grupo Grial (PE),
Cia Mundu Rodá (SP), Joice Aglae (BA - Cia Buffa de Teatro), Cia Soma (SP), Lume (SP),
Grupo Zanzar (RJ), Núcleo Manjarra (SP) e outros. Há ainda grupos brasileiros de pesquisa
que buscam montar uma versão/interpretação do Cavalo-Marinho em suas cidades: Boidaqui
(RJ), Boi da Garoa (SP), Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (DF) e outros. Vale destacar o
Instituto Brincante (SP) e a Associação Cultural Cachuera (SP), que desde o fim da década de
1980 buscam valorizar e divulgar culturas tradicionais brasileiras, entre elas, a cultura do
Cavalo-Marinho. O brinquedo também já foi tema de diversos trabalhos acadêmicos
reconhecidos em grandes universidades nacionais como UNICAMP, UFPE, UFRPE, UNESP,
UFF, UFRJ, UFBA. Diversos eventos de grande divulgação tendo como centro o Cavalo-
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 150

Marinho são realizados com freqüência, em reconhecimento ao valor que o bem traz para as
culturas tradicionais brasileiras. Destacamos: o Encontro de Cavalos-Marinhos da Casa da
Rabeca, Nação Cultural Pernambuco (Fundarpe), Conexão Cavalo-Marinho (produzido por
Laura Tamiana e Helder Vasconcellos), I Colóquio sobre Encenação e Cultura – Tradição e
Contemporaneidade na cena do Cavalo-Marinho, realizado na Fundaj.
Na contemporaneidade, o Cavalo-Marinho reverbera em sua identidade, do que hoje,
nacionalmente, se considera cultura popular tradicional. Grupos artísticos de vários estados
pesquisam e recriam a arte de brincar Cavalo-Marinho, inserindo-o no contexto
contemporâneo da cultura. Como afirma Bhabha:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de se passar


além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.
(...) É na emergência de interstícios – sobreposição e deslocamento de domínios da
diferença que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationess], o
interesse comunitário ou o valor cultural são negociados (BHABHA, 2007: 20).

Constroem-se constantemente novas identidades em cima da tradição. Mudança e


continuidade não se excluem. Os próprios brincadores se inserem no processo de produção e
divulgação da brincadeira pelo Brasil e pelo mundo. Alguns dos brincadores do Estrela de
Ouro já realizaram viagens internacionais para fazer apresentações. Sebastião Pereira de
Lima (Seu Martelo), Severino Alexandre da Silva (Mestre Biu Alexandre), Aguinaldo
Roberto da Silva, Fabio Soares e Cláudio Rabeca, todos brincadores do Estrela de Ouro,
integraram em 2006 o elenco do espetáculo “Cavalo- Marinho revisitado”, apresentado na
Alemanha no evento “Brasil em Cena”. Diversos grupos possuem alguma produção em CD
ou DVD sobre seu grupo de Cavalo-Marinho. Destacam-se: DVD do Cavalo-Marinho Estrela
de Ouro (2006), CD Cavalo-Marinho Boi Pintado, CD Sonho da Rabeca – Mestre Salustiano
(entre outros da família), CD Manoel Pereira – o Som da Rabeca, CD Pimenta com Pitu –
Luiz Paixão (2010), CD Duplo Rabequeiros de Pernambuco (2011) e outros. Mestres e
brincadores, cada vez mais, são solicitados para realizar demonstrações técnicas e ministrar
oficinas para grupos de teatro e de dança brasileiros. Citemos os exemplos de Mestre Biu
Alexandre, que deu aulas para parte do elenco da minissérie “A Pedra do Reino”, produzida
pela emissora Rede Globo, no ano de 2006.Como destaca o pesquisador Lineu Guaraldo, ao
“se pensar na práxis do brincador no contexto atual, é necessário incluir que uma parcela
ainda tímida (embora crescente) de brincadores vem ressignificando sua arte, dando a ela uma
roupagem profissional”, no sentido de tentar torná-la sua principal atividade remunerada.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 151

Nesse processo, o brincador começa a criar novos sentidos para a brincadeira, alterando
significantemente a maneira de brincar (GUARALDO, 2010: 57). Contudo, não se perdeu o
caráter da continuidade de seus aspectos tradicionais. Aqui os ensinamentos de Luigi
Pareyson cabem-nos perfeitamente:

O conceito de tradição é testemunho vivo de que as funções do inovar e do


conservar só podem ser exercidas conjuntamente, já que inovar sem continuar
significa apena copiar e repetir, e inovar sem continuar significa fantasiar no vazio,
sem fundamento (PAREYSON, 2001: 137).

A continuidade histórica do brinquedo é inegável. Com datas de existência e prática


desde o século XIX, hoje, a brincadeira, além de os grupos tradicionais identificados neste
INRC, nos quais a presença de aprendizes é constante, conta também com outros grupos
avançando no aprendizado do fundamento do Cavalo-Marinho, com apoio de mestres e
brincadores: Boi Mineiro (Itambé [PE]), Estrela do Amanhã (Condado [PE]), Boi Pintandinho
(Aliança [PE]), Boi da Luz (Cidade Tabajara, Paulista [PE]), Boi Jacu (Beberibe, Recife
[PE]). São jovens, adolescentes e crianças aprendizes que trilham, na prática, realizando e
dialogando com a contemporaneidade, um caminho para a salvaguarda da tradição. A
continuidade se revela também nas próprias vontades dos mestres. Para Mestre Biu Alexandre
a:

Brincadeira é uma coisa muito simples. Pra mim, o melhor é o Cavalo-Marinho, que
traz muita coisa pro corpo. A gente fica bem feito, com o corpo todo feito de mola.
Pra mim, é uma satisfação muito grande. Meu desejo é que meus filhos, netos e
bisnetos continuem acompanhando a história de Cavalo-Marinho. Porque eles
estando ali, eu sei que eles têm saúde (Mestre Biu Alexandre em entrevista para o
evento Conexão Cavalo-Marinho, produzido por Laura Tamiana e Helder
Vasconcellos.)

O conceito de Patrimônio expressa a identidade histórica e as vivências de um povo.


Assim, o Patrimônio contribui para manter e preservar a identidade de uma nação (CHOAY,
2001). É a herança cultural do passado, vivida no presente, que será transmitida para as
gerações futuras. É o conjunto de símbolos e significados que um grupo decide preservar
como Patrimônio comum. Portanto, há uma legitimação social e política do que é (ou não)
Patrimônio. Para os mestres e brincadores do Cavalo-Marinho, este se faz enquanto
Patrimônio na medida em que lhe dá sentido no presente, lhe conecta com um passado
rememorável coletivamente e lhe encaminha para o futuro, no anseio de dar continuidade à
identidade que se constrói a cada noite de brincadeira.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 152

Podemos considerar o Cavalo-Marinho como um “teatro-memória”, um elo entre o


antigo e o contemporâneo em que a memória coletiva é a grande condutora, na sua forma
dinâmica, mutável e seletiva. Segundo Halbwachs (1992), a identidade reflete todo o
investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na construção da memória. Portanto, a
memória coletiva está na base da construção da identidade. Esta reforça o sentimento de
pertença identitária e, de certa forma, garante unidade/coesão e continuidade histórica ao
grupo.
No Cavalo-Marinho percebemos uma memória herdada, passada em sua grande maioria
de pai para filho ou herdada de um mesmo grupo social, no caso, do universo canavieiro. E
partindo do pressuposto de que a memória é um fenômeno construído social e
individualmente, quando se trata de memória herdada, podemos também dizer que há uma
ligação fenomenológica muito estreita entre memória e o sentimento de identidade
(POLLACK, 1992), e, portanto, com a legitimidade do Patrimônio Cultural por parte do
grupo social.
Com o propósito enfático, vale registrar que os relatos folclóricos e os documentos
históricos retratam que o Cavalo-Marinho manteve-se conectado com sua tradição e seus
costumes por longos anos. O dia a dia de seus atores trazia para cena o que deveria ali ser
comunicado. Nos relatos de Pereira da Costa (Goiana, em 1906), as marcas da escravidão se
mantiveram nas falas dos personagens, no entanto, em forma de um “teatro-memória” que
trouxe a inversão social onde quem foge é o Capitão do Mato. E como coloca Benjamin, o
Mateus e o Bastião ou Fidélis, que são os personagens negros do Cavalo-Marinho, nas
versões mais antigas eram escravos, nas mais recentes são empregados de confiança do
Capitão do Cavalo-Marinho. No entanto, em todas as versões eles são negros – “e para que
não haja dúvida da condição, mesmo quando representados por atores negros, estes usam uma
pintura para enegrecer, as partes do corpo que ficam à mostra: rosto, pescoço, braços, mãos e
pés” (BENJAMIN, 1985: 46).O Cavalo-Marinho se faz, portanto, num eterno retorno de
reelaboração do que se vive. Assim, como a própria dinâmica da identidade que se reconstrói
historicamente. De todo o jeito, a brincadeira proporciona elos identitários de acesso livre à
memória coletiva e a uma materialidade do Cavalo-Marinho como patrimônio de
representação legítima deste grupo social.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 153

Figura 38 - Bisneto de Mestre Biu Alexandre Figura 39 - Neto de Mestre Salustiano brincando
treinando a Figura do Ambrósio junto com seu pai, como Arreliquim– Cavalo-Marinho Boi Matuto da
Fábio Soares – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Cidade Tabajara (PE)
Condado (PE)

Estas conclusões vêm ao encontro do histórico da política pública de registro


patrimonial da cultural imaterial. Os novos patrimônios investigados e selecionados indicam a
emergência de renovadas formas de se valorizar, comemorar e guardar memórias do passado,
antes desvalorizadas ou encobertas, até mesmo preteridas por uma ideia elitista e excludente
de cultura e de história (ABREU, 2007). Em harmonia com esta corrente, é oportuno e
legítimo para a consolidação do Estado Nacional democrático, bem como para a construção
de uma nação baseada na coletividade, o reconhecimento de um bem cultural que se enraíza
na escravidão e faz parte da construção identitária dos trabalhadores rurais e de seus
descendentes, ligados ao universo canavieiro, grande símbolo econômico, cultural e social do
processo de colonização e formação nacional do Brasil.
Registrar o Cavalo-Marinho como Patrimônio Imaterial é garantir na prática os
princípios da Constituição Brasileira de que “O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional”42 (artigo 215, parágrafo 1º). É notória a representatividade do
Cavalo-Marinho no processo “civilizatório nacional” uma vez que nele se revela a identidade
de seu povo. Um indiscutível símbolo, na própria versão dos seus atores sociais, sobre
trajetórias diárias de determinados cidadãos brasileiros construtores de uma nação.
Em suma, o registro do Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural Imaterial vem
legitimar a memória e a identidade dos trabalhadores da cana, e de seus descendentes, que
ressignificam sua realidade na brincadeira. Reconhecido como um bem cultural comum a este
grupo social, vida e arte se misturam em uma infinidade de elementos dentro do brinquedo.

42
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 154

Com raízes no passado escravista, o Cavalo-Marinho demanda a preservação de suas


características originais, ao mesmo tempo que convive com as transformações trazidas pela
avalanche da cultura de massa e pelo contato com a arte espetacular.
Hoje o brinquedo avançou suas fronteiras e já ganhou o Brasil e o mundo. É de fato um
patrimônio imaterial do povo brasileiro. Um bem cultural comum que precisa cada vez mais
ser valorizado para que novas gerações possam junto dele se divertir e contemplar uma
singular forma de viver a arte e de reinventar a vida. Algo que mesmo sem poder “ver”,
produz memórias que faz seguir o seu “viver”:

Mestre Pisica: - Logo quando trouxe o Cavalo-Marinho pra cá (para cidade de Feira
Nova), botei (fazia ensaios) lá onde mora Dionísio, na rua de São João. E Dionísio
era meu sócio e era cavaleiro (personagem que entra com o Cavalo). Mas, tô
tentando trazer a apresentação para cá (na atual residência do Mestre Pisica), porque
Dionísio não vê nada (por causa da operação que fez nos olhos).
Rosa: - Mas, por exemplo, quando levou o Boi (e os demais bichos, como Cavalo,
Burro etc.), ele (Dionísio) ficava chorando querendo vir.
Mestre Pisica: - Ficou chorando.
Rosa: - Ficou chorando porque ficou com vontade de vir. Mas não pode vir porque
ele não pode ver. Sempre no dia da apresentação ele fica chorando pela saudade de
brincar, agarra no Boi e fica chorando. Aí a gente deixa lá o bicho, porque se tirar o
Boi de lá, ele morre.
Mestre: - Se tirar o Boi de lá, ele morre. (Mestre Pisica e Rosa em entrevista
concedida a este INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 155

5 A BRINCADEIRA TEM QUE CONTINUAR....


RECOMENDAÇÕES DE SALVAGUARDA DO CAVALO-
MARINHO

A gente quer o reconhecimento, não aceitamos a exploração.


(Pedro Salustiano, Cavalo-Marinho Boi Matuto)

5.1 DIAGNÓSTICO ATUAL

Neste INRC, em todos os contatos realizados com os atores sociais, nas diversas
reuniões da equipe de pesquisa com a presença de dois integrantes dos Cavalos-Marinhos
(Fábio Soares e Cláudio Rabeca) e, principalmente, no encontro de mestres em Condado (PE),
em junho de 2012, organizado pela equipe do INRC e pela Fundarpe, conseguimos perceber
quatro frentes de problemas que precisam ser solucionados para que se fortaleça a
continuidade do Cavalo-Marinho, preservando seus aspectos originários e identitários e, ao
mesmo tempo, respeitando o processo dinâmico inerente à cultura. Vale ressaltar que algumas
iniciativas em parceria e/ou fomento do Ministério da Cultura, IPHAN e Fundarpe, auxiliam
(e auxiliaram) muito no processo de proteção e valorização da cultura do Cavalo-Marinho.
Entre elas: Ponto de Cultura Maracatu Estrela de Ouro de Aliança (PE) (beneficiado Cavalo-
Marinho do Mestre Batista); Prêmio Mestres da Cultura Popular pelo Ministério da Cultura
em 2007 (beneficiado Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima cujos recursos deu início ao primeiro
e único Museu de Cavalo-Marinho no sítio Malícia em Glória do Goitá); Prêmio Rodrigo
Melo Franco de Andrade (IPHAN), na categoria Salvaguarda de Bens de Natureza Imaterial
em 2009 (beneficiado Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima); Ponto de Cultura Viva Parêia
(beneficiados Cavalo-Marinho Estrela Brilhante e Estrela de Ouro de Condado), entre outros.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 156

Figura 40 -Encontro de Mestres realizado pelo INRC Cavalo-Marinho (Associação Respeita Januário e
Fundarpe) em Condado (PE)

Quanto aos problemas diagnosticados, destacamos:

a) No que concerne à continuidade dos aspectos tradicionais da brincadeira

1) Tempo de duração da brincadeira


A redução do tempo das apresentações impede que os brincadores realizem a narrativa
do Cavalo-Marinho apresentando o repertório de figuras, bichos, danças, músicas,
toadas e loas tradicionalmente produzido por seus atores sociais. Como apontado neste
dossiê, o processo de transmissão de saberes, principalmente no que diz respeito à
realização da brincadeira, se faz durante o ato de brincar. A brincadeira é o aprendizado
em si. Reduzindo-se o tempo de sua duração, reduz-se o aprendizado. Hoje em dia, em
quase todos os contratos de apresentação estabelecidos com as prefeituras ou com o
governo do estado de Pernambuco, é estipulado um tempo curto (30 a 60 minutos) para
os Cavalos-Marinhos se apresentarem. Como se deve cumprir o que o contratante
solicita, os brincadores fazem uma “edição” da brincadeira que vai contra a lógica e o
fundamento do saber tradicional, além de afetar profundamente sua estrutura.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 157

Como exemplo, vale destacar um acontecimento presenciado pela equipe deste INRC.
Na cidade de Ferreiros, no mês de dezembro de 2011, no início deste processo de
INRC, a equipe de pesquisa presenciou em Ferreiros um fato de descaso e de
desrespeito ao Mestre Inácio Lucindo, e a outros brincadores de Cavalo-Marinho e a
artistas de Recife. Antes de relatá-lo, chamamos atenção para o fato de que esta cidade é
intitulada terra da rabeca, um dos instrumentos principais do brinquedo do Cavalo-
Marinho, com um processo de salvaguarda imensamente atrelado a esta manifestação
popular. Resumidamente, um artista de Recife, conhecido nacional e
internacionalmente, estava na cidade apresentando um espetáculo em praça pública.
Previamente, havia se combinado com as autoridades públicas locais que, após a
realização do espetáculo, ocorreria a apresentação do Cavalo-Marinho de Inácio
Lucindo, com participação de brincadores e mestres de outras localidades. O combinado
era que Mestre Inácio brincaria com seu Cavalo-Marinho até as 2 horas da manhã, no
mínimo. A brincadeira do Cavalo-Marinho trata-se de uma brincadeira munida de
enredo que precisa de um tempo longo de duração para que se conte a narrativa dentro
da lógica do brinquedo. Em suma, seu Inácio Lucindo começou a brincar por volta das
22h00. Cerca de 40 minutos depois, chega um aviso de algumas autoridades locais que
o brinquedo teria que acabar às 23h00 por conta de uma apresentação de Ciranda que
estava na programação da Prefeitura de Ferreiros. A brincadeira de Seu Inácio estava
vinculada ao projeto do artista que possuía um financiamento do Ministério da Cultura
para os gastos e cachês. A Prefeitura entrara como parceira, apenas autorizando o uso da
praça-rua como terreiro para a realização das apresentações. A produção do artista
entrou em negociação com a Prefeitura, juntamente com o Mestre, a partir da qual foi
firmada a realização da brincadeira até as 2h00 da manhã. Contrariando essa
negociação, as autoridades da Prefeitura desrespeitaram o acordo firmado anteriormente
e exigiram o término do brinquedo, que não teve tempo para se desenvolver. Por fim, a
Ciranda iniciou sua apresentação e, cerca de 30 minutos depois, encerrou a
apresentação; todo o movimento da rua acabou. Esta foi uma pequena e ínfima parte de
um longo e denso processo histórico que persiste nas muitas cidades da Zona da Mata
Norte de Pernambuco. Mestre Inácio Lucindo não teve como reagir diante de tanto
desrespeito do prefeito e do secretário da Prefeitura. Sua posição é de refém de um
sistema que depende de algum apoio para poder continuar sua brincadeira, para que se
alcancem contratos de apresentação. Assim, qualquer tipo de resistência, em voz
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 158

solitária e sem apoio institucional, torna-se ameaçadora para a própria sobrevivência do


Cavalo-Marinho e de sua arte.

Sumiram com a palavra antiga de Cavalo-Marinho, em verso de cantar. Cabou-se,


hoje é tudo remodelado. Quem remodelou o Cavalo-Marinho hoje foi o dinheiro...
palanque de meio de rua acabou com o Cavalo-Marinho. Cavalo-Marinho pega de
oito da noite e vai até seis e meia da manhã...tem vez que sete horas da manhã ainda
tava na roda grande. Hoje Cavalo-Marinho começa, é uma roda de gente que é uma
boniteza. Quando mais, chega um camarada da festa, para o Cavalo-Marinho e leva
o povo lá pro palanque pra vê as mulher se balançá e o Cavalo-Marinho não tem
introdução do brincar... aí acabou-se quem canta, acabou os banqueiro, acabou os
figureiro, galante brinca uma coisinha e já para. Fica naquele costume, e quando
chega num canto que é pra brincá duas horas, quando chega meia hora já pergunta:
já não tá bom de pará, não? Aí Cavalo-Marinho foi pra lua! (Entrevista de Mestre
Inácio Lucindo concedida a este INRC.)

2) Cachês e recursos financeiros:


A brincadeira possui diversos bens culturais como roupas, indumentárias, artefatos,
adereços, máscaras, instrumentos musicais, tudo produzido pelos próprios brincadores,
mestres, familiares e pessoas da comunidade. Há a necessidade de investimentos
financeiros para a produção destes materiais. É de conhecimento que este grupo social
possui condições financeiras restritas, consequentemente, torna-se praticamente
impossível a manutenção física destes bens culturais. Os pagamentos realizados pelos
contratantes dos brinquedos, principalmente, governo do Estado de Pernambuco e
prefeituras, são valores abaixo do mercado cultural e artístico e completamente
inferiores à necessidade estrutural do brinquedo. Cada Cavalo-Marinho precisa de cerca
de 20 integrantes para uma apresentação e demanda uma quantidade de materiais
significativa para sua realização. Além dos baixos valores pagos aos grupos, que pode
variar de R$ 500,00 a R$ 2.500,00 por apresentação, os contratos não ocorrem com
frequência (apenas algumas vezes ao ano), não contemplam todos os grupos de forma
igual, e os pagamentos são realizados posteriormente às apresentações (em muitos
casos, meses depois da apresentação).

3) Política pública municipal:


Além do governo do estado de Pernambuco, as prefeituras locais, com suas secretarias
da educação e cultura, são importantes órgãos públicos de corresponsabilidade para a
continuidade dos Cavalos-Marinhos ou para a sua destruição. Os Cavalos-Marinhos,
como outras expressões da cultura popular, tradicionalmente se apresentam nas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 159

festividades locais (festa do padroeiro, aniversário da cidade). Faz parte da cultura


destes municípios a participação dos grupos populares nas festas públicas tradicionais.
Esta prática reforça os laços identitários entre comunidade e o Cavalo-Marinho,
passando a tradição para futuras gerações e valorizando um bem cultural com raízes
locais. As prefeituras, portanto, são os grandes contratantes dos brinquedos depois que
seus atores sociais saíram dos engenhos (por conta do processo de implementação das
usinas e/ou da decadência da economia açucareira) e foram morar nos núcleos urbanos.
Nesse sentido, a sustentabilidade do Cavalo-Marinho está intimamente atrelada à
política municipal de valorização ou de desvalorização da brincadeira e seus atores
sociais. O diagnóstico geral é que grande parte das prefeituras não está incentivando os
brinquedos, reduzindo a quantidade de contratos e pagando para as apresentações
valores bem abaixo do mercado. É notória a discrepância dos cachês pagos às bandas de
outros lugares (até mesmo de fora do estado de Pernambuco) que estão ligadas à cultura
de massa brasileira e os disponibilizados para os grupos de Cavalo-Marinho. Em
algumas vezes, o grupo resiste e não quer aceitar tamanha exploração, e daí acaba
recusando o contrato. Nestas condições, o brinquedo não ganha, não divulga sua cultura
para a cidade e não promove o aprendizado de seus brincadores, pois a brincadeira não
ocorre. Por outro lado, aceitar cachês com valores baixos é se submeter a uma política
pública que privilegia a cultura de massa e despreza a cultura popular local. Muitas
vezes, quando a brincadeira ocorre, os grupos são colocados pela Prefeitura em ruas
escuras, distante do movimento da festa, onde teria mais público, e sem nenhuma
estrutura de transporte, alimentação, segurança e de som etc. Neste quadro, as garantias
de valorização pela Prefeitura se fazem pelos laços que os atores sociais criam com os
representantes políticos, resumindo toda uma política pública de valorização da cultura
tradicional, em apadrinhamentos, em troca de favores ou interesses político-partidários.
No mais, é importante ressaltar que não só os contratos são importantes, mas também se
fazem necessárias políticas públicas de preservação e de valorização do bem cultural.
Ações que podem dialogar com as secretarias da Cultura, do Turismo e da Educação de
um município.

A situação de Araçoiaba é essa.. Meu Cavalo-marinho tá parado, eu não brinco em


Araçoiaba porque em Araçoiana a situação é política. O meu Cavalo-Marinho como
de outros; eu sou do lado do governador (...) e eu digo a verdade daí...a Prefeitura é
contra... e fica misturando cultura com a política. A cultura é popular, a cultura é
amizade. Vamos deixar de ignorância, vamos conversar na amizade, mas não...[a
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 160

Prefeitura] vai lá e chama o Cavalo-Marinho de outra cidade. Meu Cavalo-Marinho


tá parado, só brinca quando eu vou dar ensaio no terreiro. Eu queria que o pessoal da
Fundarpe e da Empetur fosse lá [em Araçoiaba] pra nos ajudá, senão o Cavalo-
Marinho vai se acabá. Acaba mesmo. Porque lá em Araçoiaba já falei é assim...a
Prefeitura é 45, é 15...eu sou 40, a vida inteira fui 40...a gente tem que usar a
inteligência e não misturar as coisa. (Mestre Aicão no Encontro dos Mestres
realizado pelo INRC e pela Fundarpe.)

a) Sobre a profissionalização dos artistas populares

1) O espaço do artista popular:


Com o avanço da “espetacularização” do universo da cultura popular, e com cada vez
mais a inserção dos artistas profissionais no universo social do Cavalo-Marinho, que
trocam com os brincadores (tanto buscando conhecer seus saberes como lhes inserindo
nas produções artísticas espetaculares), podemos constatar nos últimos 10 anos uma
transformação significativa na atuação profissional dos brincadores de Cavalo-Marinho.
Muitos hoje em dia estão enveredando-se para a carreira artística, produzindo e
divulgando sua arte e sabedoria de brincar, como principal profissão para sobreviver.
Participam de espetáculos de dança e teatro, colaboram como sujeitos em produções
artísticas com narrativas, fotografias e vídeos e aceitam convites ou promovem oficinas
para ensinar suas habilidades no universo do Cavalo-Marinho (dançar, botar figura,
tocar). Este processo representa uma grande transformação social destes brincadores. A
brincadeira também vai ganhando outras características de dinâmica, posturas corporais,
duração, gestos, conteúdo das falas e piadas etc. Como parte do processo dinâmico
inerente à cultura, não observamos estas transformações como um problema para a
continuidade dos aspectos tradicionais da brincadeira, caso os atores sociais desta nova
“cultura profissional” mantenham-se conectados com a história, a memória e as
linhagens tradicionais dos brinquedos. Em outras palavras, os brincadores (artistas) não
devem se encaixar na estrutura espetacular dos outros artistas. Há de se encontrar um
caminho próprio para este novo artista popular que quer, e precisa, de espaço no mundo
artístico contemporâneo, contudo, deve, e quer, dar continuidade a sua arte aprendida
desde a infância e passada por gerações. Eles buscam espaço e reconhecimento para
brincar no mundo contemporâneo da arte, legitimando sua cultura tradicional e sendo
valorizados igualmente por isso. O problema diagnosticado reside justamente nestes
aspectos: ainda não são valorizados como artistas profissionais e não encontram espaço
para levar sua arte ao mundo, sem perder seus aspectos tradicionais.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 161

A gente tá tentando incentivar para os Cavalos-Marinhos brincá a noite toda. Senão


ele vai se acabá. Pra continuar como era antes tem de incentivar o próprio brincante
a brincar a noite toda. Daí volta como era antes. Porque se não se ficar nessa de
brincar uma hora ali, quarenta minutos ali, daí não vai pra frente, vai continuar só
brilho e boniteza, mas o interessante dos personagens, da história vai se acabá. Vai
se acabá porque você não vai brincar a noite toda. Até o próprio mestre fica fugindo
da cabeça. Porque ele fica com aquilo na mente, mas não fica dedicando. Cavalo-
Marinho não tem nada escrito. (Entrevista de Mestre Grimário concedida a este
INRC.)

c) Representação como pessoa jurídica e organização coletiva

1) Encontros e união:
Apesar de pertencerem a uma mesma região e de possuírem uma tradição cultural
comum, alguns grupos não se conheciam. Mestre Salustiano criou o Encontro dos
Cavalos-Marinhos, que ocorria todo ano na noite de Natal na cidade Tabajara, em
Paulista (PE),primeiro no Espaço Lumiara Zumbi e depois na Casa da Rabeca. Após seu
falecimento, seus filhos mantiveram o evento, mas com um número reduzido de grupos.
Este encontro, além de promover a divulgação (localizado mais próximo da capital, a
presença de turistas, pesquisadores e outros é maior) do Cavalo-Marinho em seus
variados sotaques, prestigiando todos os grupos, também abre a possibilidade de um
momento comum a todos. Recentemente, a Fundarpe, muitas vezes em parceria com a
Associação dos Maracatus de Baque Solto, tem investido, dentro da programação do
Festival Nação Cultural de Pernambuco ou das Festas Natalinas, em uma troca de
terreiros entre os grupos e também em uma roda de conversas entre os mestres. Todas
estas atividades são realizadas na Zona da Mata Norte de Pernambuco e têm despertado
maior união e troca entre os grupos. A realização do Encontro de Mestres realizado por
este INRC e pela Fundarpe serviu também como um exemplo de troca de ideias e
propostas para a união dos Cavalos-Marinhos. Todos os mestres aprovaram este
caminho. Entre as propostas, surgiu a de abrir uma associação comum. Ainda está em
discussão este projeto, a maioria dos mestres o considera importante.

2) Representação como pessoa jurídica:


Os Cavalos-Marinhos identificados neste INRC não possuem uma organização comum,
por exemplo, uma Associação dos Cavalos-Marinhos de Pernambuco. Alguns grupos
são portadores de CNPJ, mas são poucos. A falta do registro como pessoa jurídica
impede-os de participar de alguns editais públicos para apresentação, ou oficinas, ou
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 162

manutenção do grupo. No mais, grande parte dos contratos realizados com as


prefeituras, ou o governo de estado, ou Sescs solicita nota fiscal. Os grupos ficam então
a mercê de produtores artísticos, ou de grupos que possuem o registro legal. Além de
perderam financeiramente, também tornam-se dependentes de outros representantes
legais que, muitas vezes, não possuem relação alguma com o universo do Cavalo-
Marinho.

3) Elaboração de projetos:
Muitos brincadores e mestres têm idade avançada e são formados com uma escolaridade
básica, ou nenhuma. Os editais promovidos em âmbito estadual e nacional pelos órgãos
públicos que promovem a cultura (Fundarpe, Minc, Funcultura, SIC- Prefeitura do
Recife, entre outros) requerem certo conhecimento específico em elaboração de
projetos, o que estes atores sociais, em sua grande maioria, não possuem. Mesmo que
tais órgãos públicos, ou outras entidades, realizem treinamentos para a elaboração de
projetos, o acesso ao treinamento e depois a aplicação do conhecimento como uso de
computador, de internet, o domínio da escrita e da leitura, a compreensão das exigências
do edital etc. demandam uma capacidade intelectual e uma prática que muitos não têm,
ou apenas os mais jovens têm condições de adquirir. Alguns vencem estes obstáculos e
estão conseguindo acessar este “processo democrático” de política pública. Porém,
muitos outros ficam na dependência dos projetos elaborados por pessoas alheias, ou
organizados e promovidos pelos órgãos públicos. Sem nenhuma destas opções, o grupo
está excluído das políticas públicas de acesso aos recursos destinados à cultura nacional
viabilizados pelos governos estadual e nacional.

Temos que pensar juntos, unidos. Não adianta depender da Fundarpe, às vezes quer
ajudar, mas não dá, porque somos desorganizados. Temos que nos organizar. (...) O
que a gente quer é brincar, é se divertir. O Cavalo-Marinho é uma brincadeira, então
a gente quer brincar. Os mestres ficam chateados de brincar meia hora, eles querem
espaço para brincar, 3, 4 horas até o amanhecer o dia. É como se estivessem se
alimentando da brincadeira. Queremos espaço onde podemos brincar, brincar. Não é
só oficina, e as noitadas que se perdeu. Falta isso. A ideia da associação é pra ter um
órgão que represente todos. (Pedro Salustiano no Encontro dos Mestres realizado
pelo INRC e pela Fundarpe.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 163

d) Sobre as sedes e lugares produtores de significados

1) A realidade das sedes:


Poucos Cavalos-Marinhos identificados neste INRC possuem uma sede caracterizada
como um espaço independente da casa do dono do brinquedo ou do mestre. Os mesmos
consideram o local onde guardam os objetos que compõem o brinquedo como a sede do
grupo. Na maioria dos casos, este espaço é na casa do Mestre, ou do dono do brinquedo,
ou de algum brincador. Deixam em algum quartinho desocupado, ou, às vezes, dentro
dos quartos onde os moradores da casa dormem. As casas destas pessoas, muitas vezes,
não são alugadas, e se tratam de estruturas pequenas, que acomodam uma família de
tamanho médio ou grande. Em outros casos, os objetos do Cavalo-Marinho são
guardados de forma separada, em uma, duas, ou três casas pertencentes às pessoas
ligadas ao grupo. É bastante preocupante esta situação, uma vez que a sede de um
brinquedo simboliza muito mais do que apenas um depósito de coisas. É o espaço
representativo do grupo, um lugar que cria referência e produz identidade. Não possuir
sede, ou ter uma sede/casa do mestre, impossibilita ao bem cultural a criação de um
lugar referencial específico para representar o grupo e, assim, ser o ponto na cidade para
receber a comunidade, bem como turistas e pesquisadores interessados em conhecê-lo.
No mais, as “ruas” localizadas em frente às sedes ou casas dos Mestres são os próprios
“terreiros” das brincadeiras. Não é um espaço comum e carrega um imenso repertório
de símbolos e representações para o brinquedo, seus brincadores e a comunidade em
que estão inseridos. A valorização e a existência destes espaços específicos, com
condições para os propósitos que o grupo necessita, garante aos seus atores sociais o
enraizamento e o reconhecimento do grupo dentro das cidades onde eles vivem, bem
como, possibilita a continuidade dos diversos significados gerados a partir dos lugares
denominados “terreiros”. Por fim, a falta de um ponto espacial de referência influencia
diretamente a memória do grupo social envolvido, que fica sem um “lugar”
representativo e reconhecido – de proteção e realização do brinquedo – enquanto tal
para rememorar. Por fim, legalmente, se um grupo possui um CNPJ com o nome do
grupo, ele precisa de comprovação de endereço, como muitos editais do governo do
estado solicitam. Nas sedes/casas, os comprovantes de endereços válidos vêm em nome
do locatário, ou dono da casa, e não no nome do grupo. Assim, uma sede própria, com
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 164

endereço próprio, gera comprovações legais indispensáveis para determinados editais


culturais de interesse dos Cavalos-Marinhos.

Figura 41 -Sede do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro Figura 42 -Casa de Mestre Pisica e Sede do Cavalo-
de Condado (PE) Marinho Boi Ventania de Feira Nova (PE)

5.2 INDICAÇÃO DAS PRIMEIRAS MEDIDAS A SEREM ADOTADAS

Em cima dos problemas apontados anteriormente sugerimos (conforme pedidos e


sugestões dos atores sociais envolvidos com o Cavalo-Marinho) ao Iphan, à Secretaria da
Cultura do Estado e à Fundarpe:

1) Articular com as prefeituras locais (cidades sedes dos Cavalos-Marinhos aqui


identificados), elucidando a realização deste INRC que objetiva o registro do
Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural Imaterial. Alertar as prefeituras locais
para a responsabilidade de realizar políticas públicas em seu favor, de forma
dialógica com os atores sociais, com a meta de criar mecanismos reais e rápidos de
valorização, divulgação e preservação do Cavalo-Marinho localizado na cidade.
2) Estimular os grupos de Cavalo-Marinho à formação de uma associação, ou um
colaborativo, para promover a união dos atores sociais e o estímulo das novas
gerações. Oferecer uma consultoria jurídica e legal para a formação de uma
entidade associativa, ou outras.
3) Promover um seminário/treinamento para os profissionais (da Fundarpe, Empetur,
Funcultura, Prefeitura de Recife e demais municípios de Pernambuco em que exista
o Cavalo-Marinho) responsáveis pela concepção, produção, organização e
realização dos eventos culturais nos quais os Cavalos-Marinhos se inscrevem para
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 165

participar, ou são convidados; e informar, bem como exigir, que se reformule o


padrão estrutural de realização de tais apresentações, fazendo-o em harmonia com o
fundamento e a lógica do brinquedo, respeitando o tempo de realização da
apresentação, a organização espacial em semicírculo, a presença do banco e o
direcionamento do público para que fiquem ao redor do “terreiro”. No mais, que
direcionem técnicos de som e equipamentos adequados para a realização de uma
forma de expressão com uma riqueza musical incontestável, que produz sua música
em lugares abertos e traz em sua narrativa diálogos (fala dos atores) que contam sua
história.
4) Exigir dos órgãos (da Fundarpe, Empetur, Funcultura, Prefeitura de Recife e demais
municípios de Pernambuco em que exista o Cavalo-Marinho) responsáveis pela
concepção, produção, organização e realização dos eventos culturais que os
Cavalos-Marinhos se inscrevem para participar, ou são convidados, que
reformulem (reajustando) os valores dos cachês pagos aos grupos, sua forma de
repasse e a documentação exigida para que todo o trâmite burocrático se efetive.
5) Organizar uma equipe de profissionais munida de conhecimento sobre o Cavalo-
Marinho, ou cultura popular, para atuar na Fundarpe, Empetur, Funcultura,
Prefeitura de Recife e demais municípios de Pernambuco em que exista o Cavalo-
Marinho, organizando um banco de dados com informações sobre os grupos (com a
documentação exigida para se efetuar um contrato de apresentação) a fim de
facilitar e agilizar o contato entre o órgão público e os responsáveis dos grupos e
evitar que os brincadores e mestres tenham, a cada apresentação, de realizar o
mesmo procedimento burocrático. A mesma equipe poderia também auxiliar,
concretamente e de acordo com as necessidades reais, os grupos de Cavalo-
Marinho na produção de projetos em busca de fomento à proteção e valorização do
bem.

5.2.1 Linhas de ação de médio e longo prazo

1) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan, promover um seminário com as


comunidades envolvidas com o Cavalo-Marinho para debater a criação de um
Pontão da Cultura do Cavalo-Marinho de Pernambuco.
2) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan, articular com as prefeituras dos municípios
sedes do Cavalo-Marinho para firmar um compromisso em subsidiar a construção
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 166

das sedes para os grupos que ainda não as possuem. Outra sugestão, estabelecer
parcerias entre prefeituras e Ministério da Cultura para a criação destes espaços.
3) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan, conjuntamente com os grupos de Cavalo-
Marinho, reivindicar junto ao Ministério da Cultura e Ministério do Trabalho e do
Emprego o reconhecimento profissional dos mestres e brincadores do bem cultural
e, consequentemente, sua aposentadoria.
4) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan e/ou prefeituras locais, conjuntamente com os
grupos de Cavalo-Marinho, em parceria com as Secretarias de Educação Estadual e
Municipal, sugerir a incorporação do ensino da arte de brincar Cavalo-Marinho
(dançar, tocar, produzir artefatos e instrumentos musicais etc.) com cursos, ou
oficinas, ministrados por seus brincadores e mestres, dentro das escolas públicas
nos municípios sedes dos grupos.
5) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan e/ou prefeituras locais, conjuntamente com os
grupos de Cavalo-Marinho, criar e manter um acervo documental (fotos, vídeos,
documentos) sobre os atores sociais e seus grupos de Cavalo-Marinho em cada
município sede do brinquedo. Caso o brinquedo já possua sede própria, auxiliar na
construção, organização e manutenção deste acervo documental para a preservação
da memória do grupo.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 167

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Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 170

ANEXO A- PARTITURAS
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 171
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 172
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 173
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 174

ANEXO B - GRUPOS E PESSOAS CONTACTADAS

PESSOAS ENTREVISTADAS E/OU CONTACTADAS NESTE INRC

Ferreiros (PE) e Camutanga (PE)


Inácio Lucindo da Silva (Mestre Inácio)
José Alexandre da Silva (Zé de Nininha)

Itambé (PE) e Pedras de Fogo (PB)


João Cesário Venâncio (Mestre Araújo)
Luiz Miguel de Lima ( Luiz Miguel)
Maria José Cesário (Nininha)

São Vicente Ferrer (PE)


Manoel Camelo da Silva ( Manoel Camelo)
Manoel Vicente da Silva (Mané de Teté)
Severino Camelo da Silva (Biu Camelo)
Vicente Vieira de Barros (Vicente de Pedro)

Timbaúba (PE)
Severino José da Silva (Seu Biu do Amâncio)

Condado (PE)
Aguinaldo Roberto da Silva (filho de Mestre Biu Alexnadre)
Antônio Manoel Rodrigues (Mestre Antônio Teles)
Fábio Soares da Silva (neto de Mestre Biu Alexandre)
José Borba da Silva (Zé Borba)
José Sebastião de Freitas (Zé de Freitas)
Luiz Alves Ferreira (Luiz Paixão)
Maria de Fátima Rodrigues (Nicinha)
Maria Soares da Silva (Maíca)
Risoaldo Roberto da Silva
Sebastião Pereira da Silva (Seu Martelo)
Severino Alexandre da Silva (Mestre Biu Alexandre)

Aliança (PE)
José Grimário da Silva (Mestre Grimário)
José Lourenço Batista (Zé Lourenço, irmão Mestre Batista)
Mariano Teles Rodrigues (Mestre Mariano Teles)
Sebastião Miliano dos Santos (Miliano)

Araçoiaba (PE)
Antônio Felinto da Silva ( Mestre Aicão)

Cidade Tabajara (PE)


Pedro Salustiano (filho de Mestre Salustiano)
Maciel Salustiano (filho de Mestre Salustiano)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 175

Wellington dos Santos Soares (Dinda Salustiano – filho de Mestre Salustiano)

Feira Nova (PE)


Denísio Manoel do Santo (Denísio)
Generino João da Silva
João Laurentino da Silva (Mestre Pisica)
Mauro Rato (filho de Biu Rato)

Glória do Goitá (PE)


José Evangelista de Carvalho (Mestre Bibi)
Severino Joventino dos Santos (Biu Didóia)

Lagoa de Itaenga (PE)


Judite Josefa Antão (Menininha)
Roberto José do Nascimento (Mestre Borges Lucas)

CONTATO DOS GRUPOS

Pedras de Fogo (PB)


Cavalo-Marinho Boi de Ouro
Mestre Araújo
(81) 8761 5623
(81) 9326 7556

Ferreiros (PE) ou Camutanga (PE)


Cavalo-Marinho Estrela do Oriente
Mestre Inácio Lucindo
(81) 9311 0144

Condado (PE)
Cavalo-Marinho Estrela de Ouro
Mestre Biu Alexandre
(81) 9980 0174
Fábio Soares da Silva
(81) 9666 3663
Risoaldo Roberto da Silva
(81) 9606 3429

Cavalo-Marinho Estrela Brilhante


Mestre Antônio Teles
(81) 9627 6614
Nicinha
(81) 9627 6614
(81) 9825 2126

Cavalo-Marinho Boi Brasileiro


Luiz Paixão
(81) 9643 3928
(81) 9418 0535
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 176

Araçoiaba (PE)
Cavalo-Marinho Boi Coroado
Mestre Antônio Aicão
(81) 9192 6552
(81) 9606 3016

Aliança (PE)
Cavalo-Marinho Boi Pintado
Mestre Grimário
(81) 9919 3108
(81) 8640 5847

Cavalo-Marinho do Mestre Batista


Zé Lourenço
(81) 9689 2001
Mestre Mariano Teles
(81) 9969 1505

Cidade Tabajara (PE)


Cavalo-Marinho Boi Matuto
Casa da Rabeca
(81) 3371 8197
Pedro Salustiano
(81) 9606 0181
(81) 9918-1545

Feira Nova (PE)


Cavalo-Marinho Boi Ventania
Mestre Pisica
(81) 9419 8367 (Claudiana)
(81) 9386 4378 (Rosa)

Glória do Goitá (PE)


Cavalo-Marinho Tira-Teima
Mestre Bibi
(81) 9188 5608(Nalva)

Lagoa de Itaenga (PE)


Cavalo-Marinho Boi Teimoso
Mestre Borges Lucas
(81) 9475 8584
(81) 9754 9509
Judite
(81) 9466 2666
Realização
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Apoio
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