Dossiê Cavalo Marinho
Dossiê Cavalo Marinho
Dossiê Cavalo Marinho
Dossiê
Volume 1
Relatório Analítico
Volume 2
Dossiê
Volume 3
Ficha de Sítio (F10)
Bibliografia (Anexo 1)
Registros Audiovisuais (Anexo 2)
Fichas de Identificação (F60)
Volume 4
Extremo Norte e Limítrofes
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)
Volume 5
Norte-Centro e Paulista
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)
Volume 6
Sul-Oeste
Ficha de Localidade (F11), Bens Culturais Inventariados (Anexo 3),
Contatos (Anexo 4), Fichas de Identificação (F60)
Ministra da Cultura
Marta Suplicy
Presidenta do Iphan
Jurema de Souza Machado
Chefe de Gabinete
Rony Oliveira
Superintendente do Iphan em PE
Frederico Faria Neves Almeida
Coordenação de Identificação
Mônia Silvestrin
Coordenação de Registro
Cláudia Vasques
Coordenador Técnico
Fábio Cavalcanti
Coordenador Administrativo
Santino Cavalcanti
Vice-governador
João Lyra Neto
Secretário Executivo
Beto Silva
Diretores Executivos
Vinícius Carvalho e Beto Rezende
Diretor de Formação
Félix Aureliano
Diretor de Gestão
José Mário Duarte Coelho
Diretora de Planejamento
Amara Cunha
Assessora de Dança
Marília Rameh
Assessor de Fotografia
Jarbas Araújo
Coordenadora de Audiovisual
Carla Francine
Assessor de Artesanato
Breno Nascimento
Coordenador de Literatura
Wellington de Melo
Coordenador de Música
Andreza Portella
Gestoras de Comunicação
Michelle Assumpção e Olívia Mindêlo
Assessores de Comunicação
Tiago Montenegro, Gilberto Tenório, Giselly Andrade, Chico Ludermir, Dora Amorim,
Raquel Holanda e Julya Vasconcelos
FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO -
FUNDARPE
Presidente
Severino Pessoa
Diretora de Gestão
Sandra Simone dos Santos Bruno
Diretor de Produção
Fernando Augusto
FICHA TÉCNICA
Coordenadora Geral
Célia Campos
Coordenador Técnico
Eduardo Sarmento
Supervisores Técnicos:
José Brito, Leilane Nascimento e Luiz Henrique dos Santos
Coordenador de Pesquisa
Beatriz de Miranda Brusantin
Supervisão Técnica
João Paulo de França
Produção
Cláudio Rabeca
Equipe de Pesquisa
Pesquisadores
Helena Tenderini
Lineu Guaraldo
Maria Cristina Barbosa
Rosely Tavares
Assistentes de Pesquisa
Fábio Soares
Paulo Henrique L. Alcântara
Sanae Shibata
Logomarca
Murilo Silva
Edição de Texto
Beatriz de Miranda Brusantin
Carlos Sandroni
Revisão de Texto
Elisabeth Lissovsky
Fotografias
Glauco Machado
Transcrição de Partituras
Carlos Sandroni
Ficha Técnica do Vídeo
Edição
Arthur Pontes
Cláudio Rabeca
Roteiro
Beatriz Brusantin
Cláudio Rabeca
Glauco Machado
Imagens
Glauco Machado
Texto da Narrativa
Beatriz Brusantin
Narração
Jr. Black
Músicas
Paisagem da Mata Norte - Cláudio Rabeca
Álbum: Cláudio Rabeca - Luz do Baião (2009)
Corto Cana, Amarro Cana / Eu Pisei na Cana Verde - Tradicional / Biu Roque
Álbum: Biu Roque - A Noite Hoje é a Maior
Fontes Documentais
Documento textual
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (PE)
Fundo da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco
Documento áudio-visual
Imagens do Acervo Pessoal de John Murphy
Agradecimentos
FIGURAS
QUADROS
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 14
INTRODUÇÃO
“A BRINCADEIRA TEM QUE CONTINUAR....”
O processo de registro
De forma sucinta, a brincadeira do Cavalo-Marinho é uma forma de expressão
tradicionalmente realizada pelos trabalhadores rurais da região da Zona da Mata Norte de
Pernambuco e sul da Paraíba durante o ciclo natalino. Trata-se de uma espécie de teatro
popular que representa o cotidiano (presente e passado), real e imaginário, deste grupo social
brasileiro por meio da poesia, da música, dos rituais e de seus movimentos corporais. Contém
personagens com máscaras (figuras), variados tipos de danças, um rico repertório musical, a
louvação ao Divino Santo Rei do Oriente, momentos de culto à Jurema Sagrada e a presença
de animais ou bichos, como o Cavalo e o Boi. A brincadeira, que é comandada pelo Capitão,
se realiza num terreiro em formato de semicírculo, em lugares planos e, normalmente, ao ar
livre. Antigamente, era praticado nos engenhos e usinas de açúcar. O brinquedo tem suas
raízes consolidadas nas senzalas como cultura produzida pelos negros escravizados oriundos
da África.
O processo de identificação deste bem cultural teve como base o Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), que foi aplicado pela Associação Respeita Januário (ARJ),
com sede em Recife (PE), e abrangeu o estado de Pernambuco e cidades limítrofes da Paraíba,
em específico, os municípios de Pedra de Fogo (PB), Itambé (PE), Camutanga (PE), Ferreiros
(PE), São Vicente Ferrier (PE), Condado (PE), Goiana (PE), Aliança (PE), Paulista (PE),
Araçoiaba (PE), Lagoa de Itaenga (PE), Passira (PE), Feira Nova (PE) e Glória do Goitá (PE).
A pesquisa foi coordenada pela doutora em História Social Beatriz de Miranda
Brusantin, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e a equipe
constituída pelo supervisor técnico João Paulo de França, sociólogo; os pesquisadores Helena
Tenderini, mestra em Antropologia, pesquisadora e antropóloga do Instituto Papiro - Pesquisa
Antropológica e Social; Rosely Tavares, mestranda em História Cultural, professora da rede
particular de ensino; Lineu Guaraldo, mestre em Artes pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp);Maria Cristina Barbosa, educadora musical e etnomusicóloga formada
na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE);e os assistentes de pesquisa Paulo Henrique
L. Alcântara, licenciado em música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
mestrando em etnomusicologia pela Universidade Federal da Paraíba(UFPB); Sanae Som,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 15
pesquisadora e produtora cultural; e Fábio Soares, neto do mestre Biu Alexandre, bailarino e
componente do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro e do Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro
de Condado (PE); e, por fim, na função de produtor, Cláudio Rabeca, rabequista do Cavalo-
Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE).
O trabalho foi facilitado pela equipe, que, em seu histórico profissional, já havia
realizado pesquisas com a manifestação do Cavalo-Marinho e possuía uma experiência de
vida junto com os atores sociais envolvidos com o bem. A presença de Fábio Soares,
brincador, figureiro e pertencente à família do Mestre Biu Alexandre do Cavalo-Marinho
Estrela de Ouro (PE), trouxe contribuições de vivências, dentro do universo do Cavalo-
Marinho, de grande importância para o trabalho de identificação e elaboração das diretrizes
para o Plano de Salvaguarda. A participação de Fábio Soares também foi decisiva para a
articulação com os grupos de Cavalo-Marinho, seus mestres e brincadores, principalmente
para a realização do Encontro de Mestres (encontro histórico com todos os mestres) ocorrido
no dia 4 de junho de 2012 na cidade de Condado (PE), organizado pela equipe do INRC do
Cavalo-Marinho e da Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
(Fundarpe).
Em linhas gerais, a proposta metodológica de trabalho1 consistiu primeiramente em
definir o bem cultural como forma de expressão. O Cavalo-Marinho, tratando-se de um bem
que mescla dramaturgia, dança e música, possui formas não linguísticas de comunicação
associadas a determinado grupo social ou região, desenvolvidas por atores sociais (individuais
ou grupos) reconhecidos pela comunidade, e em relação às quais o costume define normas,
expectativas, padrões de qualidade e outros.2 O foco, portanto, do inventário foi o modo como
as linguagens associadas ao universo do Cavalo-Marinho foram postas em prática por
determinados sujeitos sociais. Estas conclusões foram sendo delineadas com pesquisas
prévias e pelo processo de Levantamento Preliminar. Nesta fase, realizamos um levantamento
dos Cavalos-Marinhos em atividade e/ou memória, dos contatos dos atores sociais, além do
levantamento dos bens culturais presentes na forma de expressão. Também iniciamos os
primeiros recortes de sítio e localidades para a identificação.
Num segundo momento, iniciamos a identificação do bem, estabelecendo campos
espaciais de pesquisa e aprofundando as categorias pré estabelecidas. Realizamos parte das
entrevistas com os atores sociais, observamos a apresentação das brincadeiras e registramos as
1
Detalhes sobre a aplicação do INRC no Relatório Analítico.
2
Definição do Manual de Aplicação INRC 2000 – Inventário Nacional de Referências Culturais. Departamento
de Identificação e Documentação. Iphan/Minc.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 16
informações nas fichas de celebrações, edificações, lugares, ofícios e modos de fazer e formas
de expressão. Ao término destas atividades, foram elaborados o Dossiê, o relatório analítico e
o plano de diretrizes para salvaguarda. A redação do dossiê e do relatório analítico foi feita
pela coordenadora de pesquisa Beatriz Brusantin. No Dossiê, especificamente, o subtópico
dedicado à música e os anexos das partituras musicais foram elaborados pelo etnomusicólogo
Carlos Sandroni, com auxílio dos pesquisadores Maria Cristina Barbosa e Paulo Henrique
Alcântara. Quanto ao plano de diretrizes para salvaguarda, as informações para a sua
composição foram reunidas durante todo o processo de aplicação deste INRC através dos
trabalhos de campo e dos contatos com os atores sociais. O encontro de mestres realizado em
junho de 2012 na cidade de Condado (PE) também contou como um importante momento
coletivo, com a presença de representantes do Iphan e da Fundarpe.
Por fim, o registro audiovisual e fotográfico de todo o INRC –respeitando a lógica do
calendário tradicional dos Cavalos-Marinhos e conforme disponibilidade e abertura dos atores
sociais envolvidos –foi realizado pelo antropólogo Glauco Machado. Os vídeos foram
editados e montados pelo Ateliê Produções (Artur Pontes) e por Cláudio Rabeca (Cavalo-
Marinho Estrela de Ouro de Condado [PE]).
Neste Dossiê traremos um pouco do universo do Cavalo-Marinho. Trata-se de detalhes,
apreciações, conversas, histórias, registros, identificações, narrativas, musicalidade,
dificuldades e reivindicações de um Patrimônio Cultural que já se legitima no grupo social
que está inserido. Mantendo-se em atividade, de onde se tem registro, desde o século XIX,
quando era praticado pelos escravos, o Cavalo-Marinho configura-se como um brinquedo que
sobreviveu ao contexto violento, injusto e de muita peleja da sociedade escravista, depois
resistiu às mudanças socioeconômicas da agricultura canavieira, adaptou-se à urbanização e
entrou pela era digital, influenciando e atuando no mundo artístico contemporâneo. Estas
informações estão aqui sucintamente sistematizadas num longo processo dialógico com a
produção científica sobre o bem e, fundamentalmente, com os atores sociais envolvidos com o
Cavalo-Marinho.
O caminho percorrido na aplicação do INRC, sintetizado neste Dossiê, teve como base
metodológica o próprio inventário, na sua finalidade de “identificar e documentar bens
culturais de qualquer natureza, para atender à demanda pelo reconhecimento de bens
representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade”3, e
como fundamento de princípios a Constituição da República Federativa do Brasil, que
3
INRC 2000 – Manual de Aplicação. Brasília: Iphan, 2000, p. 8.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 17
4
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 18
Brincadeira é uma coisa que nasceu em mim de criança, é a coisa que eu mais amo,
Maracatu, Cavalo Marinho e Forró Pé de Serra, de sanfona. A brincadeira é uma
coisa que nasceu dentro da minha alma, é a coisa que eu mais adoro na minha vida.
Tirou essas três coisas de mim, acabou comigo. (Mestre Grimário em entrevista
para o evento Conexão Cavalo-Marinho, produzido por Laura Tamiana e Hélder
Vasconcellos.)
definindo seu desenvolvimento e sua execução. Esta narrativa não é homogênea nem fixa para
todos os grupos de Cavalos-Marinhos. Cada um traz sua peculiaridade e suas variações dentro
de uma estrutura narrativa semelhante a todos os brinquedos. O que vai propor a
especificidade de cada grupo é a composição das figuras– performance, loa, toada, momento
da participação, roupas e indumentárias, artefatos – e/ou a presença de alguns elementos
cênicos e/ou ritualísticos.
O trabalho de campo e a troca com outros pesquisadores sobre o bem cultural
confirmam-nos que é equivocado respondermos o que é o Cavalo-Marinho sem
contextualizar, especificar o grupo e relativizar sua composição. Nesta pesquisa de
identificação, registramos em 3(três) localidades definidas5, 3 (três) grandes linhagens de
formação histórica dos Cavalos-Marinhos. Dentro destas 3(três), consideramos 2 (duas)
grandes variantes do brinquedo. Com vários aspectos comuns, entre figuras, narrativas,
instrumentos musicais, danças, loas, toadas, rituais e louvações, em todos estes grupos, seus
brincadores nomeiam o Cavalo-Marinho como sendo uma brincadeira.
A história que grande parte dos grupos de Cavalo-Marinho conta (cada um com seu
sotaque) é de uma festa que o Capitão vai dar em homenagem ao Santo Rei do Oriente. Para
tanto, contrata dois negros, Mateus e Bastião (em outra versão, o Capitão contrata o Caroca),
e a negra Catirina para, na sua ausência, tomarem conta da festa. Os negros não tomam conta,
bagunçam o terreiro (em outra versão, o Caroca empaca o samba), apenas se comportando
com a chegada do Soldado, que os reprime (em outra versão, aparece a figura do Liberá, que
solta o samba). O “teatro” começa então a se desenrolar, com entradas de figuras
(personagens) com máscaras, e tem seu ápice na Estrela, uma parte da dança dos Arcos ou
Aico que louva ao Divino Santo Rei do Oriente (em outra versão, a Estrela ocorre no Baile
das Baianas, dançado em um ritmo semelhante à Marchinha). Em todas as brincadeiras, a
cena do Cavalo também é um momento importante durante as apresentações e faz parte do
enredo fixo dos grupos. Existem cerca de 70 (setenta) figuras que compõem o folguedo, além
dos bichos. O brinquedo sempre termina com a aparição do Boi.
Todas as brincadeiras têm como principal base musical o canto e o Baião, com
andamento mais rápido6, tocado com rabeca, pandeiro, bage e ganzá (ou mineiro); ou, em
5
Descrição pormenorizada sobre o sitio e as localidades mais adiante neste dossiê.
6
Alguns brincadores afirmam que o ritmo da brincadeira é o ritmo do Cavalo-Marinho, porém, grande parte dos
entrevistados, tocadores e brincadores afirmam ser o baião.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 22
outra formação, bombo, ganzá (ou mineiro) e rabeca.7 Dependendo do grupo de Cavalo-
Marinho, também podemos observar a execução do coco e/ou da marcha (ou marchinha).
A narrativa da história desta Forma de Expressão, que possui duas grandes variantes, a
dos Cavalos-Marinhos musicados por bombo e a dos Cavalos-Marinhos sem bombo, sempre
traz, nos primeiros atos, uma cena de negociação de trabalho. Esta representação retrata, de
forma interpretativa, a realidade do mundo do trabalho rural específico da região
pernambucana que, há séculos, tem como base econômica principal a plantação de cana e a
produção dos derivados desta planta. A cena no Cavalo-Marinho acontece entre o Capitão e as
figuras dos negros Mateus ou Caroca, e os diálogos variam conforme o grupo que se
apresenta, porém, a base de todos traz a negociação do preço do trabalho de cuidar do terreno,
ou do trecho, e de tudo que ali acontecer enquanto o dono – o Capitão– estiver fora.
As falas contidas na cena trazem referências típicas do mundo do trabalho rural e, em
especial, de uma negociação de contrato de trabalho específica do processo histórico de
implementação das usinas de açúcar. Trata-se da empreitada, ou como os brincadores falam
na brincadeira, “empeleitada” (cena entre Mateus e Capitão). O processo de quebra das
relações tradicionais de morada no universo social dos engenhos levou a uma expropriação
sobre a reprodução da força de trabalho. Não obstante, a reprodução desta mão de obra estava
sendo assegurada pela venda continuada dessa força aos mesmos proprietários aos quais os
trabalhadores estavam ligados anteriormente, como moradores. A relação, no entanto, entre
este trabalhador morador da cidade e o proprietário era intermediada por um empreiteiro (ou
empeleteiro), por meio de um esquema: aquele só conseguia trabalho através deste (SIGAUD,
1979: 14). Esta relação de trabalho é reinterpretada na brincadeira do Cavalo-Marinho como
parte fixa da narrativa contada. Registrar o Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural
Imaterial é reconhecer justamente estes processos históricos como parte da memória do grupo
social produtor do bem cultural em questão.
Diálogo entre Mateus e Capitão:
7
No caso dos Cavalos-Marinhos da localidade Sul-Oeste, que utilizam bombo (engloba os municípios de Lagoa
de Itaenga, Feira Nova Gloria do Goitá), o ritmo é diferente. Na verdade, podemos considerá-lo uma variante do
baião.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 23
- Ô, Capitão, quanto o senhor quer pra tomar conta desse negócio aqui?
- Se eu tomasse conta eu não lhe chamava aqui, Mateus.
- Então eu vou fazer a minha empeleitada.
- Tá certo. Quanto você cobra?
-Eu cobro doze, redoze, dezesseis com quatorze, uma buxada e uma beirinha de
samba. Tá valido?
- Tá valido.
- Então, pode dizer o que é que eu tenho que fazer, Capitão.
- Ô, Mateus, mas eu to achando que esse serviço é muito pra você. Você trabalha
sozinho, ou tem um outro parente, uma família, um irmão, um amigo, um pareia?
-Eu tenho meu pareia.
-Como é que ele vem?
-Do mesmo jeito que eu vim.
-Do mesmo jeito?
- Tem música aí?
- Tem.
- Mande tocar que é capaz dele vir do mesmo jeito que eu vim. 8
8
Diálogo entre Mateus e Capitão, Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado (PE), 2002, registrado por Érico
Oliveira (2006).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 24
Figura 1 - Cena do Capitão com o Mateus (Cavalo-Marinho do Mestre Batista – Aliança – 2012)
participam.” Ao fazer uma análise relacional, a autora conclui que a brincadeira é, também,
sem dúvida alguma, a realidade dos brincadores (TENDERINI, 2003: 21).
A definição deste brinquedo não se resume apenas às suas características estéticas, mas,
sim, a toda história que se reproduz nele e que se coloca na realidade vivida para a existência
do Cavalo-Marinho. Este INRC pretende propor uma imersão no universo do Cavalo-Marinho
como uma forma de expressão complexa que possui, na sua composição, elementos da própria
história de vida de cada participante. Neste dossiê traremos a história que este brinquedo
conta, representa, dramatiza, música, dança, poetiza, brinca e reproduz enquanto um bem
cultural significativo para a vida de seus atores sociais e para o processo histórico cultural do
Brasil.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 26
TERRITORIAL
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras
pastos e cercados.
(João Cabral de Melo Neto)
Muitos engenhos centrais tiveram curta duração ou se transformaram em usinas (DE CARLI,
1942).
Com a chegada das usinas, a paisagem da Zona da Mata pernambucana mudou muito. O
processo de instalação de usinas em Pernambuco durante os anos 90 do século XIX modificou
a paisagem econômica social e física do estado. Segundo considerações de Andrade, a usina
foi uma síntese moderna das duas etapas precedentes da revolução açucareira e identificada
com outros aspectos desse processo geral de modernização, como supremacia das cidades
sobre as áreas rurais, a mudança do trabalho escravo para o assalariado e a concentração de
capital (ANDRADE, 1975:54). Neste momento histórico, a presença deste novo sistema de
produção irá transformar a vida social e cultural das pessoas que ali moravam e trabalhavam.
Há, todavia, uma informação importante com relação à Zona da Mata Norte, foco deste
processo de registro.
Entre os engenhos centrais e usinas fundados até 1910 em Pernambuco, dos 71 (setenta
e um) listados pelo estudioso Peter Eisenberg (1977:126-129), apenas 7 (sete) estavam
localizados na Zona da Mata Norte, sendo que na mata úmida sul, com concentração em
Escada e Ipojuca, existiam 42 (quarenta e duas) fábricas desse porte. Diante disso, a autora
sugere que a Zona da Mata Norte possuía um perfil de engenhos banguês que, apesar da
concorrência dos engenhos centrais e usinas, se manteve em funcionamento, provavelmente
com dificuldades, durante a segunda metade do século XIX e até as primeiras décadas do XX
(BRUSANTIN, 2011: 45).
Com menores capitais, técnicas mais atrasadas, baixa produtividade e pondo no
comércio um produto de qualidade inferior, o banguê resistiu como pôde ao surto usineiro,
voltado que estava para o mercado consumidor regional. A reação do banguê fez-se com tal
energia que, apesar de sua fraqueza econômica e das vantagens conseguidas pelos usineiros
perante as instituições governamentais, só no fim da década de 1951-60 veio praticamente a
extinguir-se. Assim, o banguê reagiu por mais de setenta anos à investida das usinas
(ANDRADE, 1980: 98). Este cenário histórico vai influenciar diretamente nas dinâmicas
sociais e culturais da região em foco. Estamos registrando um bem cultural, o Cavalo-
Marinho, que tem suas raízes fincadas no universo histórico acima descrito. Todos os
processos de transformações acontecidos, bem como os não procedidos, vão influenciar na
sobrevivência do brinquedo, na forma da sua realização e no perfil de seus participantes. No
mais, considerar historicamente o perfil dos participantes do Cavalo-Marinho é buscar
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 30
zona da mata) concentrou a maior quantidade de engenhos banguês e que estes, com uma
estrutura mais rústica, eram de propriedade de senhores de engenho não tão ricos, que
mesclavam sua mão de obra entre livres e escravos e abriam a possibilidade para os
moradores por condição, significa, para a compreensão histórica deste registro, que o sítio
deste INRC historicamente abarcou condições para que o Cavalo-Marinho existisse por
diversas gerações desde a época da escravidão. A realização deste brinquedo, como as
narrativas de seus brincadores contam, acontecia dentro dos engenhos, em horários noturnos,
e, sobretudo, reunia os moradores dos mesmos ou das terras vizinhas. Relacionando geografia
e a realização do Cavalo-Marinho, este demanda espaços “fixos” e planos para seu
desenvolvimento. Não se trata de um cortejo, mas de uma forma de expressão mais próxima a
um “teatro”, que encontra suas raízes na vida cotidiana dos engenhos. Conta-nos Mestre
Inácio Lucindo que antigamente as brincadeiras aconteciam, na maioria das vezes, em locais
com chão de terra, ou “pera” (corruptela de poeira) na pronúncia dos brincadores. Com o
processo de urbanização das cidades, algumas das ruas onde aconteciam as brincadeiras foram
“calçadas”, sendo que, atualmente, a maioria das brincadeiras acontece em locais com chão de
cimento ou de paralelepípedos. Segundo os relatos de brincadores, este fato desencadeou
inúmeras mudanças na execução da dança do Cavalo-Marinho, assim como na apresentação
de determinadas partes em que os brincadores têm de rolar ou cair no chão.
Quanto aos atores sociais da brincadeira, é importante destacar que a população de
trabalhadores destes engenhos era composta por escravos, africanos ou descendentes, índios e
livres. As referências culturais, portanto, de etnias variadas, trazem-nos subsídios para
identificarmos historicamente as “origens” dos bens culturais do Cavalo-Marinho.
Registramos, por exemplo, o Caboclo de Arubá com influência da Jurema, religião indígena;
as figuras dos negros Mateus, Catirina, Bastião e Caroca com trejeitos e falas, bem como o
uso da cara pintada de preto, próximas à cultura africana e/ou escrava (isso sem contar o uso
das máscaras, que pode ser de influência portuguesa ou africana). Todos estes elementos
culturais estão, certamente, ligados aos atores sociais, de ontem e de hoje, que foram
constituindo o Cavalo-Marinho ao longo dos anos. Estes atores eram os trabalhadores rurais
da estrutura socioeconômica acima historicizada.
dava-se início à moagem, cabendo a cada autoridade presente jogar uma cana na moenda. No
fim da moagem celebrava-se a pejada, festa mais popular, porque se destinava mais aos
trabalhadores9 (PEDROSA, 1977: 47).
Terminada a moagem, limpava-se o engenho, retirando-se todo olho de cana que
ficasse, varrendo-se e às vezes aguando-se, para diminuir a poeira. Durante toda a noite os
trabalhadores se divertiam, brincando de Cavalo-Marinho, coco e Bumba meu Boi. Havia a
distribuição de bolacha e aguardente. O feitor e o vigia estavam presentes para evitar excesso
de bebida e brigas. O senhor de engenho comparecia com a família por algumas horas,
prestigiando a festa (PEDROSA, 1977: 76).
Nesses relatos percebemos não só a existência do Cavalo-Marinho acontecendo desde o
século XIX, passando pelo XX e chegando no XXI, mas também a realização deste dentro do
processo produtivo e de fabrico da cana-de-açúcar, em outras palavras, como parte também
das posturas de proprietários e trabalhadores diante do processo de produção de açúcar e suas
relações sociais. O Cavalo-Marinho como cultura viva e ponto de ramificação para entender o
mundo do trabalho e suas conexões com os significados criados e recriados pelos
trabalhadores da cana da Mata Norte (BRUSANTIN, 2011: 64).
Além do critério histórico e cultural utilizado para a divisão do sítio e das localidades,
existem características próprias de cada grupo que trazem especificações dignas de
valorização e ênfase. Vale ressaltar que cada grupo traz sua especificidade; os brincadores
costumam dizer que nenhum Cavalo-Marinho é igual ao outro: nem melhor, nem pior.
Existem, todavia, determinadas linhagens, não muito bem definidas por seus atores, que
proporcionaram características culturais para os grupos de Cavalo-Marinho e que podemos
dividir em 3 (três) localidades. Identificamos os seguintes Cavalos-Marinhos ativos nas
respectivas localidades:
9
Realizava-se durante a noite, na moita do engenho, edifício de grande proporção que consistia numa área
coberta, onde ficava depositada a cana vinda do campo enquanto aguardava a hora de ser levada à moenda para
ser esmagada.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 34
Entre estas localidades podemos considerar dois grandes conjuntos: o dos Cavalos-
Marinhos sem bombo (Localidade 1 – Extremo Norte e limítrofes; e Localidade 2– Norte-
Centro e Paulista) e o dos com bombo (Localidade 3– Sul-Oeste).
A narrativa contada também difere, e, consequentemente, suas figuras também. Nas
pesquisas de campo realizadas neste INRC observamos que os brincadores e mestres dos
Cavalos-Marinhos das localidade 1 e 2, em muitos casos, não conheciam as brincadeiras da
Localidade 3. Em cada localidade verificamos que os mestres e brincadores seguiam
linhagens diferentes, ainda que ocorressem cruzamentos entre as diversas correntes. Por
exemplo, na Localidade 1– Extremo Norte e limítrofes, um grande mestre de referência era
Mestre Duda Bilau (última residência, Itambé [PE]), este, todavia, também influenciou alguns
grupos da Localidade 2– Norte-Centro e Paulista, mas mantinha muito mais contato e trazia
sua experiência e conhecimento para os Cavalos-Marinhos da Localidade 1. Para estes
Cavalos-Marinhos fixados nos municípios de Pedra de Fogo (PE) e Camutanga (PE),
observamos um perfil de brincar semelhante, com reminiscências tradicionais, “um jeito
antigo de se brincar”, causado pela presença significativa de pessoas idosas. A música das
brincadeiras desta localidade também é mais cadenciada, um pouco mais lenta do que as
brincadeiras da Localidade 2, que traz a mesma formação instrumental. Segundo relatos do
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 37
tiveram sua divulgação e transformação pelas mãos e mente de Batista. Seu Cavalo-Marinho
com sede em Chã de Camará, em Aliança (PE), foi assistido e brincado por vários mestres e
brincadores da região, e é justamente nesta vivência que se aprendeu muito sobre o Cavalo-
Marinho. Segundo relatos de Mestre Mariano Telles, atual mestre do Cavalo-Marinho de
Mestre Batista, Batista herdou de sua mãe, Joana Batista Dias, o apelido que o acompanhou
por toda vida. Seu nome de registro era Severino Lourenço da Silva, nasceu em Chã de
Camará, município de Aliança (PE), em 06 de junho de 1932. Faleceu em 28 de agosto de
1991, aos 59 anos.
No depoimento obtido de José Lourenço Batista (filho do Mestre Batista e atual dono
do Cavalo-Marinho), este relata que, da relação intensa com a brincadeira já existente no sítio
Chã de Camará, o menino Batista, em 1945, aos 13 anos de idade, já era mestre do Cavalo-
Marinho da comunidade. Apesar das pesquisas já realizadas, não há, até o momento, um
registro preciso quanto à data em que Batista fundou o brinquedo. Existem, porém, duas
indicações sobre o assunto, o Mestre Mariano Teles aponta que Batista fundou o brinquedo
em 1956. Por outro lado, José Lourenço Batista analisa a trajetória de vida de seu pai e indica
que o brinquedo foi criado em 1950. Contudo, independente destas controvérsias, o que se
sabe é que o brinquedo formado por Batista tornou-se uma referência para outros mestres e/ou
brincadores da região. Os brincadores que tiveram a oportunidade de conviver com ele
contam que possuía um valioso conhecimento sobre a tradição cultural do Cavalo-Marinho.
Mestre Mariano Teles, em seu depoimento, relata que começou a brincar no Cavalo-Marinho
do Mestre Batista em 1969, aos 27 anos, e dele recebeu muitos conhecimentos sobre a
brincadeira. Outro depoimento importante é o de José Lourenço Batista, que vem se
dedicando a preservar a memória de seu pai, bem como assumindo a coordenação do Cavalo-
Marinho e buscando prover recursos para a manutenção da sede.
A casa onde residiu o mestre Batista e sua família é um marco importante para a
identidade cultural do sítio Chã de Camará. Segundo a história narrada por José Lourenço, a
edificação já existia quando a família do Mestre Batista chegou ao povoado, em 1930, e foi
nesta casa em que ele nasceu, cresceu e, posteriormente, constituiu sua própria família e a
manteve, assim como abrigou os seus brinquedos, o Cavalo-Marinho e o Maracatu de Baque
Solto. Hoje, no mesmo local, existe o Ponto de Cultura Estrela de Ouro, que promove, com
visibilidade nacional, diversos eventos culturais e de valorização da cultura popular.
O terreiro da casa sempre foi um espaço aberto para a realização das atividades do
Cavalo-Marinho e as sambadas do Maracatu. Considerado um verdadeiro celeiro cultural de
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 39
como um ou dois elementos artístico-culturais, mas, sim, vários, que dialogam e criam laços de
dependência constitutiva. No vocabulário antropológico, poderíamos colocar esta compreensão
como ethos, porém, optamos neste INRC pela palavra que eles mesmos utilizam:
“fundamento”. Existe, assim, um “fundamento” comum em todos estes grupos e na sua ação
enquanto sujeitos produtores, reprodutores de bens culturais, significados e história e, por
conseguinte, enquanto legitimadores do brinquedo do Cavalo-Marinho.
Para além das caracterizações folclóricas ou acadêmicas que buscam definir o que é
Bumba meu Boi e o que é Cavalo-Marinho, a legitimação dada pelos atores sociais envolvidos
com o bem cultural do brinquedo em questão é o mais importante. A legitimação se faz em
diversos níveis e esferas. O fato de todos os grupos possuírem estruturas artístico-culturais e
históricas comuns é definidor para a busca da identidade do brinquedo e seus brincadores, bem
como para a justificativa do registro do Cavalo-Marinho como Patrimônio Cultural Imaterial.
Caracterizando os elementos fundamentais verificados em todos os grupos de Cavalos-
Marinho, destacamo-nos em 2 (duas) esferas: cultural-artística e sócio-histórica.
a) Elementos culturais-artísticos:
1) Estrutura espacial:
A brincadeira se realiza em estrutura circular (semicírculo), com as “cenas”
acontecendo de frente para o banco dos músicos. As figuras entram na “roda do samba”
pelo lado oposto do banco dos músicos. Salvo na “perfomance” de alguns Mateus e/ou
Bastiões que entram por de trás do banco dos músicos ou por baixo deste.
dinâmica ocorre quando chega a figura do Cavalo junto com o Capitão Marinho ou
Mestre Cavaleiro (Cavalo-Marinho).
Figura 3 - Cordões – Dança dos Aicos - Cavalo-Marinho Boi Brasileiro de Condado (em Condado, Conexão
Cavalo-Marinho, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 44
trazem versos semelhantes aos que são cantados nos Cavalos-Marinhos na atualidade
(PEREIRA DA COSTA, 1974).
Figura 5 - Figura do Cavalo – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (em Itambé, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 46
Figura 6 -Boi e Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (em Cidade
Tabajara, Casa da Rabeca, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 47
Figura 7 -Figura do Empareado – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente de Camutanga (em Cidade Tabajara, Casa
da Rabeca, 2011)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 48
Figura 8 -Figura do Liberá – Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima de Glória de Goitá (no Sítio Malícia, Glória do
Goitá, 2012)
Figura 9 -Mestre Antônio Teles – Cavalo-Marinho Figura 10 -Mestre Biu Alexandre- Cavalo-Marinho
Estrela Brilhante de Condado (PE) Estrela de Ouro de Condado (PE)
Figura 11 -Mestre Zé de Bibi – Cavalo-Marinho Boi Figura 12 -Mestre Inácio Lucindo – Cavalo-Marinho
Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) Estrela do Oriente de Camutanga (PE)
b) Elementos sócio-históricos
guarda este material. Esta função social é interessante porque gera certa hierarquia de
decisões com relação ao brinquedo. Por exemplo, para se fechar um contrato de
apresentação, quem decide é o Dono do Brinquedo, não o Mestre, a não ser que ambos
atores sociais sejam a mesma pessoa. Contudo, com relação à dinâmica da apresentação
em si, quem decide os rumos a tomar é o Mestre, e não o Dono do Brinquedo. É
importante notar que esta função social está presente em todos os Cavalos-Marinhos
pernambucanos, e, em alguns casos, o Mestre e o Dono do brinquedo são a mesma
pessoa, em outros, não. Em todos, é clara a distinção funcional entre Dono e Mestre,
deixando-nos a evidência de que se trata de uma função social específica e
historicamente compreendida pelas comunidades e atores sociais que envolvem os
brinquedos.
senzalas ou em terreiros em frente das casas nos sítios, fazendas e chãs, o brinquedo do
Cavalo-Marinho sempre dispôs de um espaço externo tranquilo, silencioso e que
permitia sua realização, que possui uma dinâmica “teatral” e não de cortejo e com a
existência de diálogos, toadas e loas que contam uma história. Historicamente, a
brincadeira se estruturou levando em conta esta geografia. Esta estrutura externa,
portanto, também se coloca como pré-requisito para que a brincadeira se desenvolva e
tenha sentido para seus brincadores e para o público. Todavia, a realidade atual
geográfica mudou. Hoje em dia são poucos os brincadores que vivem e realizam seu
brinquedo em espaços rurais. A cidade é a nova casa de grande parte destes sujeitos e é
no espaço urbano que a brincadeira se realiza. Estas transformações geográficas, em
muitos casos, estão prejudicando a dinâmica interna da brincadeira. Em dias festivos,
por exemplo, a brincadeira tem que concorrer com os altos sons das bandas de músicas
dotadas de grandes estruturas para seus shows. Em outros casos, com os altos sons dos
próprios carros que passam na rua ao lado do público e dos brincadores que estão
atuando na brincadeira. Este novo cenário não chega a ser fatal para a sobrevivência da
brincadeira, contudo, se coloca como um grande desafio para seus realizadores que,
consciente ou inconscientemente, estão alterando a dinâmica do brinquedo sob
influência destes fatores. Em todo este processo de transformação, podemos observar
uma realidade da brincadeira mesclada de antigos e novos elementos. É importante
neste percurso compreender a antiga e a nova realidade geográfica do brinquedo para
que tenhamos uma compreensão total da sua lógica enquanto arte, cultura e história.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 59
10
Mais detalhes sobre a música do Cavalo-Marinho no tópico “O Cavalo-Marinho como performance musical”.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 60
11
Em alguns casos, como ocorre com o Cavalo-Marinho Boi de Ouro em Pedras de Fogo (PB), a bage pode
coexistir com o reco de arame durante a performance musical.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 61
Meu pai fazia bombo para terno de maracatu (...), mai ele não quis não me ensinar
não, não queria que eu olhasse não. Mas eu ficava observando, enxergando. Ele não
queria eu brincar não.
Na verdade, eu aprendi com ninguém. Aprendi sozinho. Ficava olhando, olhando,
botando no juízo, aí peguei todinho.
Gosto de fazer bombo. Gosto de fazer boneco (de mamulengo). É como filho meu, é
minha família. (Entrevista de Biu de Dóia concedida a este INRC.)
comecei ver no livro, o livrozinho que ele tinha, que esse livro ensinava como é que
era que fazia as peças. Através daquele livro, eu não largava aquele livro, o livro
ficou até com as pagininha estragada de tanto eu tá com ele olhando, vendo. A partir
da quarta rabeca por aí afora, aí ela começou a ficar mais bonitinha, né? (Entrevista
de Zé de Nininha concedida a este INRC.)
Mané Pitunga, reconhecido artesão e tocador, foi grande referência para os rabequeiros
da Zona da Mata pernambucana, principalmente os tocadores de Cavalo-Marinho. Até hoje,
entre os rabequistas da região, incluindo também os profissionais residentes pelo Brasil e fora
do país, ter uma rabeca de Pitunga é possuir uma preciosidade. Quando Pitunga faleceu, ficou
um grande vazio entre os artesãos do instrumento e seus tocadores. Desse modo, a iniciativa
de Zé de Nininha é de suma importância para a sobrevivência da arte de tocar rabeca e a
presença desta no brinquedo do Cavalo-Marinho. Do mesmo modo, a valorização do Cavalo-
Marinho, manifestação de referência para o uso da rabeca, configura como essencial para a
preservação destes luthiers e de seus saberes.
O ofício de rabequista em Pernambuco também está intimamente ligado com o Cavalo-
Marinho. Grandes rabequeiros (com repercussão regional, nacional e internacional) como
Mané Pitunga, Luiz Paixão, João Salustiano, Mestre Salustiano, Maciel Salú, Dinda Salú,
Mestre Antônio Telles, Mestre Araújo, Mestre Zé de Bibi, Biu de Dóia, Manoel Pereira,
Pedro Côra, Cláudio Rabeca, Nylber da Silva, Totó da Rabeca, Ulisses Cangaia e outros são
tocadores do banco de Cavalo-Marinho de variados grupos pernambucanos. Outros artistas
praticantes do ofício também tiveram como grande fonte de inspiração e de aprendizagem a
rebeca tocada no brinquedo do Cavalo-Marinho. Destacam-se Siba Veloso, Antônio Nóbrega,
Renata Rosa, Rafa da Rabeca, Murilo Silva, Salatiel da Rabeca, Gustavo Azevedo, Adriano
Salhab, Thiago Martins, entre outros. Lançado em 2011, o CD duplo Rabequeiros de
Pernambuco, (patrocínio Funcultura/Fundarpe) produzido por Cláudio Rabeca, trouxe uma
relação de 24(vinte e quatro), sendo que 18 (dezoito) destes (todos citados acima), em sua
trajetória, estiveram de variadas formas ligados ao brinquedo do Cavalo-Marinho. Nota-se,
sem dúvida, que o Cavalo-Marinho historicamente se apresenta como uma sementeira e um
reprodutor dos saberes relativos ao tocar e ao fazer a rabeca, instrumento de origens de além-
mar com profundas raízes no Brasil e, principalmente, em Pernambuco.
Ainda no campo da música, existe um curioso elemento percussivo que, no estado de
Pernambuco, é utilizado exclusivamente no Cavalo-Marinho. Trata-se da bexiga (ou ovo). A
bexiga de boi passa por um minucioso processo de secagem e depois é cheia com ar para, na
brincadeira, servir como elemento percussivo do ritmo. As figuras do Mateus e do Bastião
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 63
ficam com a bexiga durante toda a brincadeira e utilizam-na para bater nas figuras ou para
acompanhar a música do Cavalo-Marinho, batendo-a na perna. Também traz uma significação
de algo fétido, nojento e que serve para afastar as pessoas ou provocar risos quando Mateus
ou Bastião batem com a bexiga nas pessoas. A batida provoca barulho alto, mas não provoca
dores, a não ser que seja esfregada na areia e batida diretamente sobre a pele. Este tipo de
“agressão” ocorre com algumas figuras do brinquedo, como o Mané Chorão.
Sebastião Pereira de Lima (Seu Martelo) é um dos mais antigos Mateus da região,
brinca até hoje no Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) e é o grande preparador
da bexiga para a brincadeira (em cada grupo existe um responsável). A bexiga é retirada do
boi logo depois do abate, no matadouro. Depois de limpa (retirados gorduras e sebos), a
bexiga é tratada com sal (em alguns casos, também temperos), passa por um processo de
secagem ao sol e de umidificação (com óleo de cozinha), até estar pronta para o uso.
Dependendo do tempo em que precisa ficar guardada, ela é armazenada em geladeira para
evitar moscas e para retardar o apodrecimento. As bexigas são tratadas sempre que há uma
brincadeira. Uma das primeiras providências que o responsável por um grupo de Cavalo-
Marinho toma, quando tem a confirmação de que haverá uma brincadeira, é avisar o Mateus
(ou outro brincador responsável pela bexiga) da necessidade de providenciar e tratar bexigas
de boi suficientes para a brincadeira. Depois de retirada do boi, a durabilidade da bexiga é
curta. Sempre que há uma brincadeira, o responsável pelas bexigas faz o pedido ao
funcionário do matadouro com uma antecedência de, pelo menos, 3 dias.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 64
A Dama e a Pastorinha usam vestidos geralmente de cetim e chapéu enfeitado com fitas
coloridas. O Mateus e o Bastião usam roupas multicoloridas, chapéu em forma de cone
coberto de fitas coloridas feitas de diversos materiais, como cetim (chapéu elaborado por
Martelo, o Mateus mais velho de Cavalo-Marinho, ainda vivo). Este chapéu pode ser de cetim
(sai pelo dobro do custo para confeccionar) ou de papel laminado (o mais utilizado), o
matulão amarrado na parte de trás dos quadris é confeccionado com folha de bananeira. Uma
característica bem marcante das roupas do Mestre, dos galantes e de Mateus e Bastião são as
fitas coloridas e/ou cintilantes, de cetim, de plástico, de papel celofane etc. presentes nas
bordas de calças, vestidos e chapéus, além dos arcos que os galantes movimentam. Diversos
atores sociais são responsáveis pela confecção destas roupas e indumentárias: Mestre Aicão,
Aguinaldo Silva (contra-mestre, filho de Biu Alexandre) Ivanice (esposa de Aguinaldo),
Mestre Mariano Telles, Nicinha (filha de Mestre Mariano Telles), Mestre Grimário, Judite
Antão, entre outros.
É interessante notar que, na produção destas vestimentas e indumentárias, as mulheres
aparecem como principais sujeitos da ação e são indispensáveis. Se, na brincadeira, seu
espaço de participação foi conquistado pouco a pouco e, até hoje, esta participação ainda é
restrita a algumas funções, revelando o caráter masculino do brinquedo, a pré-brincadeira,
sua estruturação, conta fortemente com a presença feminina. São esposas, filhas, vizinhas,
amigas e costureiras da comunidade que se apresentam para produzir o brinquedo. Judite
Antão é um grande exemplo desta presença feminina. Atuante na Localidade 3- Sul-Oeste,
ela é peça fundamental para o brinquedo Boi Teimoso de Lagoa de Itaenga (PE). Em sua
residência, utilizando sua máquina de costura, ela assume a função de costurar, fazer
consertos e reparos; cuidar de todo o acervo de roupas e indumentárias do grupo; após as
apresentações, ela recolhe todo o material e leva para sua casa para lavar, passar a ferro e
embalar, depois encaminha o acervo para a “sede” do Cavalo-Marinho Boi Teimoso, que fica
no Mercado de Artesanato. A vivência de Judite junto ao brinquedo aconteceu durante a sua
infância e adolescência, quando sua avó lhe levava para assistir a brincadeira que,
geralmente, durava até o amanhecer. Todo final de semana tinha um Cavalo-Marinho
brincando nos sítios da localidade:
Já adulta, quando eu tava já com quinze anos, aí eu fui trabalhar fora, depois,
quando eu voltei para morar em Lagoa de Itaenga, aos vinte e cinco anos, aos vinte e
cinco anos que eu voltei a ter contato com Cavalo-Marinho de novo, aí voltei para a
mesma vida de antigamente. (...) Vivia assistindo, ia pra o de Zé de Bibi quando
tinha. Aí ia pra Feira Nova, pra festa de Feira Nova ia, quando chegava tinha um
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 66
Judite e Mestre Borges Lucas, que é seu grande amigo, buscaram ter como meta
produzir as roupas e as indumentárias do Cavalo-Marinho Boi Teimoso de acordo como
eram nos grupos que viram no passado. Decidiram evitar muitas inovações para poder se
manter fiel à tradição.
A produção dos bichos que compõem a brincadeira também demanda um saber passado
de geração para geração. Na brincadeira do Cavalo-Marinho, existem algumas figuras que são
representadas por animais, denominados “bichos”, “bicharada” ou “bicharia”: o Boi, a Ema, o
Cavalo, a Onça, a Burrinha, o Urubu, o Urso, o Babau etc. Muitos mestres são os próprios
responsáveis em fazer estes bichos. Mestre Araújo (Cavalo-Marinho Boi de Ouro), Biu
Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro), Mestre Mariano Telles (Cavalo-Marinho
Mestre Batista) são alguns deles. A aprendizagem se fez majoritariamente pela observação e,
em outros casos, pela utilização da estrutura de algum antigo brincador. Biu Alexandre, por
exemplo, começou a construir os bichos do seu brinquedo a partir da observação da estrutura
dos bichos de Mestre Batista. Observa-se que os bichos mais antigos são mais pesados do que
os encontrados atualmente. Mestre Inácio Lucindo (Camuntanga [PE]), por exemplo, compra
seus bichos de um artesão da Paraíba, que os faz sem a utilização de madeira (faz a estrutura
apenas com arame e espuma, por vezes utilizando também resina e fibra de vidro). A maior
mudança que pode ser notada em relação ao modo de construir os bichos se dá por conta da
disponibilidade de materiais. Com o processo de urbanização, os brincadores têm acesso a
uma maior variedade de tecidos, ferramentas, materiais etc. O crescente diálogo com artistas
de outras regiões que se aproximam dos brincadores curiosos em conhecer um pouco do
Cavalo-Marinho também é considerável fator de mudança no processo de fabrico dos bichos.
Por meio da observação, os brincadores agregam à sua arte outros modos de fazer, adequando
os bichos às necessidades atuais. Um boi de madeira pesado, por exemplo, torna-se
inadequado para um grupo de Cavalo-Marinho que começa a excursionar de avião.
Dentre os produtores destes bens culturais, vale destacar o artesão Biu de Dóia (Lagoa
de Itaenga [PE]) que, além de produzir rebeca e bombo, fabrica bichos e também é um grande
artesão dos bonecos de mamulengo. Para o artesão Biu de Dóia, construir os bichos do
Cavalo-Marinho é algo muito importante, porque lhe dá alegria e é também um meio de vida.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 67
Ele é o proprietário dos meios de produção e realiza todas as etapas do processo de produção
dos bichos (o Boi, o Cavalo-Marinho e a Burrinha).
Por fim, um grande saber difundido também pelo Cavalo-Marinho é a produção de
máscaras. “Não se brinca um Cavalo-Marinho sem máscara, tem que ter a máscara” (Mestre
Araújo). O sentido da graça da figura se dá também a partir das máscaras; não é recomendável
ver o rosto da pessoa que está por trás da máscara no momento da apresentação ou da
brincadeira. “O cabra não entra de cara limpa, não, tem que ter a máscara” (Mestre Araújo).
As máscaras utilizadas na brincadeira do Cavalo-Marinho podem ser de diversos materiais,
entre eles, sola (câmara de pneu), couro de bode, couro de boi, couro sintético, papel machê,
podem ser feitas de sapatos velhos, sendo que alguns grupos utilizam máscaras adquiridas em
lojas de fantasia. As máscaras de couro podem ser com pelos, sem pelos e até pintadas. Uma
mesma máscara pode ter alguns detalhes pintados, porções com e sem couro. Todas as
máscaras de Cavalo-Marinho observadas cobrem o rosto todo do figureiro, sendo sempre
utilizadas com um lenço amarrado à cabeça, para esconder o cabelo (a maioria das figuras de
máscaras utiliza chapéu de palha).
De modo geral, as máscaras de couro são confeccionadas da seguinte maneira:
primeiramente, o couro é riscado, determinando o lugar dos olhos, a abertura da boca e a
posição do nariz. Depois de marcado, o couro é recortado, sendo que pequenos retalhos
podem ser costurados à máscara para fazer detalhes como nariz, barba, orelhas, entre outros.
Os pedaços não utilizados são guardados para confeccionar outras máscaras. Pedaços de
outros materiais também podem ser costurados ou colados ao couro para se inserir elementos
como barba, sobrancelha,
língua e dentes. As máscaras
de papel machê são
geralmente feitas a partir de
uma forma de barro onde o
papel de saco de cimento ou
jornal molhado com goma
(mingau de mandioca ou
amido de milho) é aplicado.
Depois da goma secar, o
artesão pinta a máscara com Figura 16 -Mestre Borges Lucas confeccionando Máscara de Couro –
Lagoa de Itaenga (PE)
tinta óleo, formando a face
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 68
com olho, nariz e boca. As máscaras de forma são feitas à base de papel e grude (cola feita
com goma de mandioca e água), e são modeladas em uma forma de barro com feitio de uma
face humana. É um tipo de atividade manual que é realizada a partir de técnicas como:
colagem, modelagem, engessamento, secagem e pintura. A matéria-prima principal é o papel,
e o artesão Zé de Bibi, por exemplo, tem preferência pelos papéis de saco de cimento, de
revista, de jornal e o papelão utilizado para fazer caixas. Tanto na máscara de couro quanto na
de forma buscam-se reproduzir o tamanho e o formato de um rosto, com exceção da figura do
Cabeção (presente nos Cavalos-Marinhos da Localidade 3- Sul-Oeste), como o nome indica, a
máscara possui o formato de uma grande cabeça que é sobreposta à cabeça do figureiro que
irá representá-la.
Figura 17 - Totó, neto do Mestre Antônio Teles, produzindo chapéu de Mateus, ou Bastião - Condado (PE)
De primeiro a gente pintava a máscara sabe com quê? Com açafrão e carvão,
entendeu? Que o negócio era tão bom que tinta era barato, mas ninguém tinha o
dinheiro pra comprar. Eu pintava as máscaras fazia as tintas em casa, eu pegava
açafrão, botava dentro d’água, soltava aquela tinta vermelha, pisava o carvão, botava
dentro, fazia aquele angu pra pintar as máscaras, um mais forte outro mais fraco.
Tinha um tal de gengibre, o gengibre a tinta dele é amarela, eu botava o gengibre
dentro d’água, pisava no quengo, soltava aquela tinta amarela, eu misturava com
carvão, já dava uma cor mais diferente. E misturava com açafrão, já dava uma cor
diferente, aí fazia as cores assim, o caba fazia um vivo, a intensidade que a cor
chamava (...) Roxo rei e tem o roxo terra. (...) Aí eu pegava aquele roxo terra, fazia a
marca do olho, a marca da boca, dava uma aparência lá, uma reforma com aquele
roxo terra. De primeiro era assim, hoje não, tem tinta a óleo, tem tinta de toda
qualidade. (...)Quando eu passei a usar tinta, foi quando apareceu os contrato de
prefeitura, que a prefeitura chamava pra brincar nas festas, o dinheiro era
maiorzinho, aí a gente comprava as roupas adequadas pra cobrir os bichos e
comprava tinta pra pintar. Pra pintar o cavalo, a gente pintava com roxo rei e roxo
terra, a tinta. A tinta do pano era branca, que a gente comprava saco e a tinta era
branca, e aqueles desenhos a gente fazia com roxo terra e roxo rei. (Entrevista de
Mestre Zé de Bibi concedida a este INRC.)
Quando o banco começou a tocar, uma atmosfera diferente tomou o lugar. Tive a
impressão de ser transportado para outro tempo, outro espaço. É claro que eu estava
ansioso para ver a brincadeira acontecendo numa cidade do interior, numa festa
tradicional, mas essa sensação me acompanha até hoje. Quando o banco toca, parece
que o ar muda, e logo você fica contagiado pelo ritmo e pela quentura do brinquedo.
(Relato de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança [SP].)
chamados de “tombo”. Entre as toadas tocadas ouvem-se os refrãos “Olha o tombo do magui,
Nazaré Pedregui” ou “Caixa d’água, torneira. Caixa d’água, torneira.” A dança é composta
por um “jogo” que se dá em pares (cada participante tira o outro para a dança, desafiando-o) e
é repleta de passos, movimentos, “chutes” e rasteiras que lembram alguns passos da capoeira.
Cada toada finaliza quando o Capitão (que também pode estar dançando no magui) utiliza seu
apito e acena para o banco. Mestres da região afirmam que o magui começou há cerca de 40
anos, e que antes disso não era feito em formato de jogo, mas sim como uma dança circular.12
Podemos observar ainda este formato nas brincadeiras de Mestre Inácio Lucindo (Cavalo-
Marinho Estrela do Oriente [PE] – Localidade 1) e nos brinquedos da Localidade 3.
No magui da Localidade 3, praticado pelos Cavalos-Marinhos Boi Teimoso, Boi
Ventania e Boi Tira-Teima, a dança varia um pouco das normalmente encontradas nas
localidades 1 e 2. Ela é realizada em círculo, e com menos participantes (4 a 6).
Figura 18 -Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi Figura 19 -Roda do Magui no Cavalo-Marinho Boi
Tira-Teima de Glória de Goitá (PE) Matuto da Cidade Tabajara (PE)
Dentro do magui (ou mergulhão, como nesta localidade costuma-se dizer) existem
diversas partes com variações de movimentos específicos. Identificam-se os seguintes, em
ordem de acontecimento:
1) Pisa Pilão
2) Pisa no pé da neguinha
3) Bota a faca nele
4) Põe a cabeçada
5) Borbuleta dona Fulô
12
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 72
13
Texto “Figuras” de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança (SP).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 73
“Ambrósio - Capitão!
Capitão - Às ordes.
Ambrósio - Bom dia!
Capitão - Bom dia.
Ambrósio - Boa tarde!
Capitão - Boa tarde.
Ambrósio - Boa noite!
Capitão - Boa noite.
Ambrósio - Capitão como..
Capitão -...vai.
Ambrósio - Ô Capitão, pra que mandô chupá o Ambrósio véio?
Capitão - Eu não mandei lhe chupá, mandei lhe chamá!
Ambrósio - Ai Capitão, então pra que mandô me chamá?
Capitão - Mandei lhe chamá, porque eu sôbe que aqui o senhor tinha umas figura pra
vendê e aqui é uma festa do Divino Santo Rei do Oriente. E eu quero que você
apresente aqui umas figura e se eu tivé cundição eu compro, se num tivé...
Ambrósio - ...Capitão eu tenho!
Capitão - Tem?
Ambrósio – Boa!
Capitão - Boa?
Ambrósio - Capitão qué?
Capitão - Eu quero comprá.
Ambrósio - Capitão compra?
Capitão - Compro.
Ambrósio - Apôi me pague.
Capitão – Oxênte, eu vô comprá assim sem vê?
Ambrósio - Capitão num compra?
Capitão – Compro quando vê! Você tem que vim, mostrá, representá, sabê como é
que chega, aí eu compro e pago cum dinhêro.
Ambrósio - Apôi Capitão, então vâmo fazê um negócio ligêro. Se eu mexê, botá o
dedo no fundo...
Capitão -...do saco...
Ambrósio -... remexê, e encontrá duas dentro, serve?
Capitão - Do samba serve.
Ambrósio - Ô Capitão, eu vô em casa, que eu aqui num tenho nenhuma. Quando eu
chegá aqui agente fecha o resto do negócio, tá certo?
Capitão - Tá certo.
Ambrósio – Banana! (Faz um gesto com a mão para o banco tocar)”
(Trecho de transcrição realizada em 2003 por Juliana Pardo e Alício Amaral, in
texto “Figuras”.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 74
Figura 20 -Figura do Ambrósio em diálogo com o Capitão (figureiro Fábio Soares- assistente de pesquisa deste
INRC) – Cavalo-Marinho Estrela do Oriente (em Ferreiros, 2011)
Figuras mais comum nos Cavalos-Marinhos Figuras mais comum nos Cavalos-Marinhos
Versão: Mestre Zé de Bibi Versão: Mestre Biu Alexandre
(o que foi recordado) (o que foi recordado)
Boi Ventania (Feira Nova [PE]) Boi de Ouro (Pedra de Fogo [PB])
Boi Tira-Teima (Glória do Goitá [PE]) Estrela do Oriente (Camutanga [PE])
Boi Teimoso (Lagoa de Itaenga [PE]) Estrela de Ouro (Condado [PE])
Estrela Brilhante (Condado [PE])
Boi Brasileiro (Condado [PE])
Boi Pintado (Aliança [PE])
Mestre Batista (Aliança [PE])
Boi Matuto (Paulista [PE])
Boi Coroado (Araçoiaba [PE])
1. Mergulhão1 1. Ambróso
2. Caroca (Mateus) e Catita (Catirina)1 2. Mateus
3. Ora Viva1 3. Bastião
4. Liberão1 4. Catirina/Catita
5. Cara Branca1 5. Soldado da Gurita
6. Véio de Vale 6. Impata Samba
7. Mororó e Machado1 7. Mané do Bale
8. Cabeção 8. Mestre e Galantaria2
9. Valentão 9. Bode (1)
10. Rosa 10. Bode (2)
11. Fiscal1 11. Barbaça ou Valentão ou Tintique
12. Pisa Pilão 12. Cavalero2
13. Motorneiro (Mané do Motor) 13. Cavalo2
14. Caboclo de Pena1 14. Pataquero
15. Quebra Pedra 15. Babau
16. Foimusina 16. Gigante
17. Vau de Vinho 17. Ema2
18. Maria Cambotá 18. Véia do Bambu
19. Inácia Campina 19. Mané Ju’aquim
20. Mané Guiada e Mané de Bata 20. Pade Capelão
21. Ambrósio1 21. Cão /Diabo
22. Vila Nova 22. Cabôco d’ Aruba
14
A escrita tentou ser o mais fiel possível à pronúncia.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 76
Cada figura traz uma narrativa (o que ela vem contar e fazer na brincadeira), uma toada,
um diálogo com o Capitão (às vezes, o personagem faz apenas um “grunhido”, como a Ema,
por exemplo, mas o Capitão tem o diálogo pronto da respectiva figura), as loas (quando tiver),
o manejo (dramaturgia), a cena própria e o momento de entrar e sair da roda da brincadeira.
Existem figuras ou bichos que têm um momento certo para poder entrar. O principal exemplo
é o Boi. Este só aparece no fim (depois dele apenas pode entrar o Pacaia, o Fiscal e o Urubu –
hoje em dia é muito raro esta sequência após o Boi). Há figuras sem ordem fixa, como o
Mané Chorão ou o Mané Batata, porém, estes personagens só podem entrar depois que
ocorrer a principal sequência fixa.
A maioria dos brincadores e mestres costuma afirmar que não existe a figura mais
importante no Cavalo-Marinho. Tudo no brinquedo é importante. Assim, aos olhos dos
estranhos, o Cavalo junto com seu Cavaleiro (os quais não são considerados figuras pelos
grupos) não são “personagens” centrais da narrativa e dramaturgia do brinquedo. Eles são
indispensáveis, mas não os mais importantes. O Capitão, que não é considerado uma figura, é
essencial, porém, às vezes, não importa quem ocupe esta função, basta estar com o apito (que
comanda o brinquedo) e realizar alguns diálogos, que o samba continua. Observamos que,
durante a brincadeira, que tem um longo tempo de duração, esta função é substituída diversas
vezes. O mesmo vale para o Mateus. Sem ele, não há brincadeira, porém, caso este precise se
ausentar, o samba não para, entra outra pessoa com a bexiga na mão (ou uma garrafa de
plástico), e a brincadeira continua. Podemos arriscar que a lógica é: precisa-se de vários
personagens e brincadores ocupando determinadas funções para se começar o brinquedo.
Após o seu início, com o terreiro quente, os brincadores se revezam, e a brincadeira só
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 78
termina se o Mestre deixar. Este querendo, o Boi pode entrar. Mas sem o Boi, brinquedo
nenhum pode acabar.
Não existe um número fixo de brincadores necessários para a realização do brinquedo,
mas pela quantidade de figuras, danças, variações musicais, bichos e pela duração da
brincadeira, quanto mais integrantes conhecedores do folguedo, melhor será o
desenvolvimento do Cavalo-Marinho e mais tempo ele durará. Com participantes suficientes,
a brincadeira consegue transmitir conhecimento para os próprios atores, que, através da
observação e da repetição, vão aprendendo a brincar. É necessário pontuar que existe uma
sequência lógica de se narrar a brincadeira, assim, não dá para fazer o que se sabe. Tem que
ter pessoas que saibam botar as figuras, fazer o trejeito certo (dramaturgia), falar as loas
corretas e saber dialogar com o Capitão de acordo com a tradição. Não se trata, portanto, de
uma brincadeira fácil, de simples aprendizagem. Precisa de muita observação e de muitas
horas de samba para ir aprendendo aos poucos. Apresentações de 30 minutos ou 1 hora não
alcançam nem o princípio da história que o Cavalo-Marinho tem para contar.
Assim, para os Cavalos-Marinhos das localidades 1 e 2, um grupo completo possui em
média 20 integrantes: um Mestre, um Mateus, um Bastião, uma Catirina, três figureiros, oito
galantes, uma Dama, uma Pastorinha, um Arreliquim e cinco músicos. Estes números podem
variar de acordo com cada grupo. Já para os grupos da Localidade 3, conforme mestre Pissica,
a formação ideal de um Cavalo-Marinho também é de cerca de 20 membros: Capitão, Caroca,
Caroquinha, Catita, três galantes, três baianas, Cavaleiro (Cavalo), Boi, três batedores
(músicos do banco: rabeca, bombo, ganzá), três figureiros (que saibam bater o mergulhão),
um carregueiro (carrega os bichos antes da apresentação; durante a apresentação, funciona
como uma espécie de guia do Boi; não se confunde com o figureiro do Boi).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 79
com toda a galantaria15 e os arcos com fitas, “puxados” pelo mestre), toadas e loas: Queimá
Carvão, Maê, Girimum, Assuni a Ladeira, Dança do São Gonçalo (um dos momentos mais
fortes), Marieta, Zabelim, Maria do Rosário, Carangueijo. Nos Cavalos-Marinhos da
Localidade 3, o momento de ápice é o Baile das Baianas, onde também aparece a Estrela,
tem-se a presença dos galantes e das baianas e dançam-se vários ritmos diferentes, como a
marchinha.
Os grupos de Cavalo-Marinho realizam suas brincadeiras em locais planos,
normalmente na rua. As brincadeiras de Cavalo-Marinho costumam ser realizadas em festas,
compondo a programação juntamente com outras expressões culturais, como ciranda,
mamulengo, entre outras. Nessas ocasiões, é comum que o local da brincadeira seja definido
conjuntamente entre algum responsável do grupo e o contratante. O terreiro é o lugar onde a
brincadeira acontece de forma espontânea. O banco (onde sentam os músicos) delimita o
espaço para a formação do terreiro, que se configura pelo formato circular através da
aglutinação do público em torno dos brincadores. Com o banco ao fundo, as figuras vão
chegando e, dançando, entram no meio do terreiro, se colocam perante o banco para
realizarem suas encenações por meio dos diálogos, das loas e das danças. O público
aglutinado ao redor assiste a brincadeira que ocorre no centro deste grande círculo que se
forma preferencialmente ao ar livre. Historicamente, a brincadeira do Cavalo-Marinho sempre
aconteceu em qualquer espaço ao ar livre. Quando um brincador morava em um engenho ou
nas terras de uma usina, procurava-se um terreno plano para ali formar o terreiro.
Antigamente, as brincadeiras aconteciam, na maioria das vezes, em locais com chão de
terra, ou “pera” (corruptela de poeira), na pronúncia dos brincadores. Com o processo de
urbanização das cidades, algumas das ruas onde aconteciam as brincadeiras foram “calçadas”,
sendo que, atualmente, a maioria das brincadeiras acontece em locais com chão de cimento ou
de paralelepípedos. Segundo os relatos de brincadores, este fato desencadeou inúmeras
mudanças na execução da dança do Cavalo-Marinho, assim como na apresentação de
determinadas partes em que os brincadores têm de rolar ou cair no chão. Em tempos remotos,
era comum que a brincadeira fosse contratada por donos de bares (bodegas) para brincar. O
dono do estabelecimento, na expectativa de lucrar com a venda de comidas e bebidas, pagava
para a brincadeira acontecer.
15
A galantaria na brincadeira de Cavalo-Marinho é composta geralmente por cinco galantes, uma Dama, uma
Pastorinha e um Arrelequim, os quais chegam portando arcos enfeitados com fitas coloridas. A galantaria brinca
no baile do Capitão Marinho e responde pela parte “nobre” da festa, quando se faz a dança dos arcos e se canta
em louvor aos Santos Reis do Oriente.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 81
BRINCADOR
assemelha à qualidade das ações realizadas durante o trabalho com a cana-de-açúcar”. Para
Alício Amaral, o brincador se posiciona com a base baixa, os joelhos flexionados, o
agrupamento de energia no centro do corpo, a “mola” do corpo estendido como contra
impulso e impulso, a precisão das ações no corte da cana e nos trupés, o corpo aterrado e ao
mesmo tempo leve e ágil, o trabalho de vetores de direção que organizam os corpos, e a
disponibilidade para a ação. “Familiarizado com a estrutura corporal de cada figura, o
figureiro possui um trilho seguro para percorrer durante sua representação, podendo
improvisar e brincar dentro desta estrutura sem descaracterizar a figura ou a própria cena.”17
Mestre Inácio Lucindo (Cavalo-Marinho Estrela do Oriente [PE]) traz o verbo sambar
para designar movimento e suas qualidades. Para a bailarina Carolina Laranjeira, samba do
Cavalo-Marinho se trata de categoria pertencente à cultura local da brincadeira,
correspondente a um conjunto de padrões de movimento, movimentações específicas. Pontua
que o samba é realizado em quase toda a brincadeira, sempre acompanhado de toadas e, como
bem observa Érico Oliveira, seu aprendizado é a porta de entrada para a brincadeira, sendo a
partir dele que se “desdobram as posturas, movimentações, gestualidades e características de
todas as figuras” (OLIVEIRA E., 2006: 592). Para Laranjeira, “ele é encontrado no ‘tombo’
do magui, na corporalidade das figuras, nos intervalos entre a aparição de uma figura e outra,
nas danças dos arcos, nas danças dos galantes e nos cocos de despedida”. O samba pode ser
dançado pelos galantes, figureiros ou pelo público, entretanto, na maior parte do tempo é
dançado apenas pelos brincadores. Para Laranjeira, isto indica que se trata de “um
conhecimento especializado que não é facilmente compartilhado pelo seu grau de apuramento
técnico, distanciando totalmente a brincadeira dos estereótipos criados em torno das
manifestações populares, como algo de fácil acesso”.18
Este repertório rico e complexo tem como processo de aprendizagem o próprio observar
da brincadeira, ou o brincar ao lado de quem sabe mais, com as correções de seus mestres ali
mesmo durante a brincadeira. Como coloca Carolina Laranjeira, é um processo tão poroso
quanto a própria brincadeira, a qual absorve o treinamento e o torna cênico. Para a autora, no
Cavalo-Marinho, a vida e a performance se aproximam, se confundem, se invertem. “A
brincadeira, por mais codificada que seja, é aberta, propicia a absorção, a aglutinação de
17
Texto “Figuras”, de Alício Amaral, Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança (SP), mimeo.
18
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 83
19
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
20
Classificação dada por Fábio Soares e transcrita por LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados
corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho: corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas - Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
21
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 84
dizendo que é uma palavra forte, é um negócio que já ta pisando com força no chão”.22 Este
pode ser realizado ao som das toadas soltas e também é uma das dinâmicas corporais de base
do tombo do magui. Por fim, o tombo, para Laranjeira, é uma postura corporal na dança dos
brincadores que se caracteriza pela flexão da articulação coxofemoral que provoca a
inclinação do tronco, padrão postural característico de muitas dinâmicas corporais da
brincadeira.23
As pesquisas sobre a corporeidade dos brincadores do Cavalo-Marinho trazem
interessantes aspectos gerais da dança e dos movimentos dos brincadores. Carolina Laranjeira
descreve que os movimentos da brincadeira têm por característica geral a ênfase nas pernas e
pés. Os braços normalmente se encontram pendidos junto ao tronco, com leve flexão dos
cotovelos, e o tronco quase sempre inclinado para frente, havendo uma independência quase
que total entre tronco e membros inferiores. Os movimentos da parte inferior quase não
produzem ressonância no tronco pela sustentação da bacia, liberando a ágil movimentação das
pernas e dos pés. Há uma predominância de movimentos diretos, secos acompanhando
sempre o ritmo acelerado do baião.24 Os brincadores estão sempre mais conectados com o
chão do que transmitindo leveza para o alto. É uma dança que se conecta com a terra e traz a
relação do homem com a terra. As mãos sempre ficam liberadas, com mais soltura, livres, por
exemplo, para se pegar algo que está no chão.
O pesquisador Lineu Gabriel Guaraldo organiza os movimentos de dança do Cavalo-
Marinho em quatro princípios formais (padrões encontrados no samba) que são recorrentes
em diferentes brincadores (o movimento sempre deixa aberturas e ganha seu sotaque
individual). De forma sintética, são eles: 1. Inclinação do tronco, flexão da coxofemoral e
reposicionamento do centro de gravidade. Essa inclinação provoca o deslocamento de uma
maior porção do peso para o metatarso, suavizando o apoio do calcanhar, e mantém a
concentração de energia no abdômen; 2. Base baixa, permanência sob flexão do tornozelo e
joelhos e não oscilação da altura do tronco; 3. Escapada, afastamento das pernas com a
manutenção da altura do tronco e da bacia e uma leve suspensão dos pés que estão servindo
22
Entrevista de Aguinaldo Silva concedida à Carolina Laranjeira. IN: LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança
de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho: corporalidades e dramaturgias da brincadeira.
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em
andamento.
23
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
24
LARANJEIRA, Carolina Dias. Uma dança de estados corporais a partir do samba do Cavalo-Marinho:
corporalidades e dramaturgias da brincadeira. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tese de Doutorado em andamento.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 85
de base; 4. Lançamento da crista ilíaca, alinhamento dos ossos ilíacos em relação ao tronco e
as pernas, tendo os joelhos aproximados (GUARALDO, 2009: 85).
Carreira
Corrida dançada pelos galantes no momento da Dança dos Arcos. Eles percorrem o espaço
da roda com arcos de cipó enrolado com fitas coloridas que balançam no ar, com passos
ligeiros marcando o tempo forte da música. O Mestre, quem coordena a dança, fica entre as
duas filas de brincadores posicionados em frente ao banco, e segura uma das pontas dos
arcos de cada um dos brincadores que estão localizados no início da fila, ou cordão, como é
chamada esta disposição espacial. Ele dá os comandos para que os galantes andem sempre
enfileirados, para fora ou para dentro do primeiro arco. Cada cordão desenha o espaço
espiralado em diferentes direções. O ritmo da música é marcado pelos passos rápidos dos
galantes e do Mestre, que não percorre outro caminho que não seja o do corredor
imaginário entre os cordões. Enquanto os pés estão pontuando o ritmo, o corpo reverbera a
movimentação com um balanço sutil.
Tesoura
Padrão de movimento em que predomina a movimentação da parte inferior das duas
pernas que, alternadamente, cruzam-se à frente em deslocamento frontal. A
movimentação cruzada das pernas remete à imagem do movimento de uma tesoura
cortando.
Rasteira
Encontrada no magui, é uma movimentação característica das figuras que vão cobrar algo
do Capitão. Pataqueiro, Cavaleiro, Sardanha e Seu Ambrósio são figuras que cobram dos
galantes, de Mateus e de Bastião. Circundam a roda, dando rasteiras e pernadas com o
intuito de derrubá-los. Para realizar o golpe, uma perna é lançada estirada, iniciando o
desenho de um círculo, ao mesmo tempo em que se dobra a perna de base, descendo a
bacia até ficar próxima ao chão; com o apoio de uma das mãos no chão, a perna de base sai
do chão e a perna esticada passa por baixo desta, terminando de descrever um círculo.
brincar se estabelece muito entre os seus, com puias (piadas) que se dirigem à figura como
também ao figureiro. Os brincadores (músicos, figureiros, mestre brincadores) se divertem
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 87
entre si, rindo da cena e da realidade vivenciada por eles no momento da brincadeira. Vida e
arte novamente se misturam.
Diante deste universo complexo, o processo de transmissão destes saberes torna-se algo
muito delicado e de intensa dinâmica de observação, prática e repetição. Aprende-se
brincando. Realizar a brincadeira torna-se, portanto, o próprio veículo de transmissão, de
comunicação e de continuidade da tradição. Como aponta Maria Acselrad, o corpo do Cavalo-
Marinho, múltiplo, “safado” e insipiente denuncia contornos bastante característicos da
brincadeira. A vadiação e a provocação são elementos que fazem dele um complexo de
necessidade e vontade. E a crença na eterna ignorância, diante da infinita riqueza da
brincadeira, o coloca na situação de que é preciso estar sempre em movimento para que se
consiga alcançar algum conhecimento (ACSELRAD, 2002). Coloca Acselrad que “ninguém
começa brincando bem”. O aprendizado é um longo processo de observação, no qual, no
início, o que prevalece é a vontade de brincar. É importante passar por diversos papéis antes
de começar a ser considerado bom brincador. “Este saber é construído e reconstruído no corpo
de cada brincador, a cada noite. A brincadeira, esta sim, é a própria preparação para a
brincadeira” (ACSELRAD, 2002).
Uma interessante definição dada pela autora é de que “as figuras são outros dentro de
um só eu. A multiplicidade é constitutiva da integridade dos sujeitos que as colocam. A figura
não está na máscara, nem está no traje”. De fato, muitas figuras e utilizam da mesma máscara
ou do mesmo traje, assim, “a figura está no figureiro. Na sua história, na sua forma de se
movimentar, de cantar, de pensar, na sua capacidade e habilidade particular para assumir
vários papéis”. Ainda que repleto de improvisos, “a figura é de fato uma elaboração
individual e coletiva com base no prazer estético que a música, a dança e a poesia
proporcionam” (ACSELRAD, 2002). E acrescenta-se aí a história de vida de cada brincador,
que na brincadeira deixa transparecer, ressignificando o corpo, as falas, o movimento, o
sorriso e as durezas da vida. Assim, cada figura tem sua própria característica: sua poesia e
seu movimento próprio.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 88
Figura 28 -Mateus e Bastião de frente para o Banco – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB)
Figura 29 - Dança dos Aicos de frente para o Banco – Figura 30 -Figuras Bodes Véios – Cavalo-Marinho
Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE) Estrela de Ouro de Condado (PE)
As loas (versos, poesias) e as toadas (músicas) são formas de expressão poéticas que
trazem mais uma qualidade cultural à brincadeira do Cavalo-Marinho. São praticadas durante
todo o desenvolvimento do brinquedo. As toadas são realizadas pelo banco, especialmente,
pelo toadeiro (que puxa as toadas) com o auxílio dos outros músicos que tocam e compõem o
coro. As loas são reproduzidas pelos brincadores nas posições de: Mestre, Figura e Galante. O
Capitão, curiosamente, não faz loas, mas é o grande sujeito dos diálogos (conversas) da
brincadeira, sempre realizados entre as figuras e o Capitão. Estas narrativas orais trazem
poesias e falas que contam a história das figuras. Cada figura traz a seu conjunto de diálogos,
loas (se tiver) e toadas. Este é tomado por improvisações e, muitas vezes, interage com o
público. Ao mesmo tempo, diálogos, loas e toadas (estas possuem um grau de variação
pequeno que se faz em longos intervalos de tempo. Carrega mais continuidade do que
transformação) mantêm uma estrutura tradicional.
Porque cada uma que bota, aí ele tinha aquela loa, aí ele ensinava. O chefe, o mestre
ele chamava assim: - Você vai botar tal figura. Essa figura aqui a loa que vai se
apresentar lá é assim, assim e assim. Aí a gente aprendia a loa pra dizer na
apresentação. E é isso que a gente deve passar pra rapaziada de hoje em dia que
vai/o grupo da gente, a gente tem que formar essa mesma lição que eles passaram
pra mim. (...) O mestre Zé Mané, era o dono do Cavalo-Marinho e o mestre. (...) E a
gente tinha que seguir o mesmo caminho dele. Ele era o mestre, né? Desse mesmo
jeito a gente tá seguindo aqui também. Eu tô botando uns menino novo dentro do
brinquedo da gente, que a gente vai passar pra todo final de mês dá um ensaio umas
aula a eles, lá no Artesanato. Pra não deixar a cultura se acabar. (...) Das figuras de
Cavalo-Marinho eu boto tudinho. Boto ‘Quebra-Pedra’, boto ‘Ponte Melindrosa’,
boto ‘Guerreiro’. Tudo isso eu sei fazer, sei botar dentro do Cavalo-Marinho.
(Entrevista de Mestre Borges Lucas concedida a este INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 90
Segue abaixo uma versão de uma parte das loas do Valentão (ou Barbaça) transcrita por
Érico Oliveira ao observar o Cavalo-Marinho Estrela de Ouro (PE):
Quanto aos diálogos, estes também são abertos para os improvisos, inclusive faz parte
do repertório a interação com o público, aproveitando as intervenções inusitadas das pessoas
ao redor, mas possuem uma estrutura pronta de perguntas e respostas para que a cena se
realize dentro da lógica da brincadeira. Os improvisos, normalmente, se dão com os
brincadores mais velhos e experientes. É durante os diálogos que as puias (piadas de duplo
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 91
sentido) aparecem com frequência e, muitas vezes, testam o figureiro, que deve estar atento à
conversa, ou ter experiência, para dar a resposta certa à puia feita. Caso contrário, se isso não
acontecer, está dado o motivo para o riso. O diálogo representa assim a ponte entre as figuras
e o público que acompanha o desenvolvimento do brinquedo. Muitos diálogos trazem
referências da própria realidade da região, isso cria um laço de identidade entre público e
brincadores e dos próprios brincadores com seus “personagens” – figuras. Abaixo um trecho
da Figura Ora Viva, típica dos Cavalos-Marinhos Boi Teimoso, Tira-Teima e Boi Ventania,
pertencentes à Localidade 3: Sul-Oeste.
(A figura chega ao terreiro e é recebida pelo Capitão que o chama para trabalhar.)
Ora-Viva: Capitão, boa noite! Gostou da minha chegada?
Capitão: Ora-Viva, boa noite!
Ora-Viva: Capitão, eu lhe dei boa noite.
Capitão: Boa noite!
Ora-Viva: Boa Noite, capitão! Pra quê mandou me chamar? Tá com medo?
Capitão: Pra trabalhar. Que que ocê tem pra vender? Vamos mostrar. Vamos
trabalhar.
Ora-Viva: Positivo
Capitão: Vamos trabalhar.
Ora-Viva: Tá nervoso, tá?
Capitão: Tô nada!
(Ora-Viva corre para cima dos tocadores ameaçando-os.)
Ora-Viva: (grita) Tá com medo, hein?
(Se dirige ao capitão e pergunta):
Ora-Viva: Capitão, pra quê mandou me chamar?
Capitão: Pra trabalhar. Pra ver o que’cê tem pra vender.
Ora-Viva: Tem gente pra trabalhar mais eu?
Capitão: Tem. Tem um nêgo, um Caroca. Tudo aqui pra trabalhar
Ora-Viva: Cadê ele?
Ora-Viva: É pra trabalhar bem ligeiro.
(Se aproxima o Caroca e Catita, a mulher do Caroca)
Caroca: ôpa!!!
Catita: (falando com voz fina, meio dengosa, se insinua para o Ora-Viva) Aaaaaaii!
Ora-Viva: Capitão! É pra trabalhar com chuva ou com sol?
Capitão: (ordena) É com chuva!
(O capitão faz sinal para o banco que começa a tocar e as três figuras – a Catita, o
Ora-Viva e o Caroca – recuam e se reaproximam dançando em direção ao banco.)
(Trecho transcrito do Cavalo-Marinho do Mestre Borges Lucas – Boi Teimoso –
para este INRC.)
Com relação às toadas, estas trazem variações que se dão de forma mais lenta, num
longo período de tempo. São mais fixas e possuem momentos exatos para serem realizadas.
Algumas têm nomes, como Toada de Alevante, Toada de Boa Noite, Toadas Soltas, e outras
são chamadas pelo próprio nome da figura de que ela faz parte, ou de algum momento da
dança, por exemplo: Toada do Soldado, Toada da Véia do Bambu, Toada do Mané Chorão,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 92
Toada do Cabeção, ou, no caso das danças, Mariêta, Estrela, Queima Carvão, Assubi da
Ladeira, entre outros.
Identifica-se que as toadas são sempre intercaladas com as loas e os diálogos. Existem
alguns padrões estruturais de toadas que se repetem, ocorrendo pequenas modificações,
conforme a figura. Verifica-se isso nas Toadas de Despedidas das figuras, por exemplo:
(Ocorre o acerto do trabalho entre Capitão e Pisa Pilão. Após tudo acertado, o Pisa
Pilão vira para o rebequista e diz:
- Pegai no pé da prima!
(O rebequista sola a melodia uma vez e, depois disto, o Pisa Pilão “pega” e começa a
cantar.)
Pisa Pilão: Não não não seu capitão issassim não pode ser
Banco: Não não não seu capitão issassim não pode ser
Diferente do Pisa Pilão que chega ao terreiro, negocia com o Capitão e depois canta sua
toada, a figura do Véi (velho) Friento entra na roda do samba, se aproxima do banco faz um
gesto com a mão, o banco então para de tocar, e a figura diz sua loa, Segue a descrição de um
trecho da cena (transcrição de Fábio Soares):
Por fim, como último exemplo, um terceiro tipo de variação verificada (existem mais
do que três variações) é a cena do Caboclo de Arubá. Este, quando chega dentro da roda, se
põe de frente para o banco, que está tocando toada solta, e apita. A música para, e ele começa
(transcrição de Fábio Soares):
Por fim, vale colocar que a poesia melódica ganhou os palcos da música popular
brasileira. Vinícius de Moraes e Baden Powell (gravação por Baden Powell em 1977)
compuseram a canção “Cavalo-Marinho”, inspirada no folguedo e nos versos transcritos por
Pereira da Costa em 1906: Cavalo-Marinho/Dança no terreiro/Que o dono da casa/Tem muito
dinheiro/Cavalo-Marinho/Dança na calçada/Que o dono da casa/Tem galinha assada/Cavalo
Marinho/Dança no tijolo/Que o dono da casa/Tem cordão de ouro (PEREIRA DA COSTA,
1974: 268). Até hoje alguns versos desta poesia são cantados pelos brincadores.
O Banco
O banco é o grupo instrumental e vocal responsável pela música no Cavalo-Marinho.
Seu nome deriva do banco longo de madeira, sem encosto, onde os músicos se posicionam ao
iniciar a brincadeira, ficando ali sentados enquanto ela dura, com eventuais substituições para
repouso, e com exceção de raros momentos em que tocam de pé. (Em alguns casos, em vez de
banco longo, os músicos usam cadeiras comuns individuais. Isso não altera a designação
usada.) Além de nomear um objeto utilitário e um conjunto de músicos que ali se posiciona, o
banco, no Cavalo-Marinho, designa também um ponto de convergência espacial e simbólico.
Ele é o vértice cênico e ritual da brincadeira, pois quase todas as ações do Cavalo-Marinho
(musicais, dramáticas, poéticas e coreográficas) se situam à sua frente, e para ele são voltadas.
25 John Murphy cronometrou as alternâncias entre música e cenas dialogadas num trecho de cerca de 8 minutos,
num Cavalo-Marinho realizado em 1990. Obteve 15 alternâncias (Murphy, 2008: 106). Uma gravação realizada
pelo Núcleo de Etnomusicologia da UFPE em 2010 registra cinco alternâncias em pouco mais de um minuto (03
Biu Alexandre, Condado, 2010).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 95
Não há face a face entre músicos e público, ou entre brincadores e público, como no palco
italiano. A posição face a face acontece entre o banco e os brincadores, com a figura do
Capitão oscilando entre os dois polos, ora ao lado do banco, voltado para os brincadores, ora
entre os brincadores, voltado para o banco. (Embora tal coisa não seja verbalizada pelos
participantes, é tentador pensar que o Capitão “pertence” também ao banco, na medida em
que exerce uma função musical através do apito, como veremos adiante.)
O banco conta com apenas um instrumento melódico: a rabeca, ou “rebeca”,
instrumento de cordas friccionadas com arco, semelhante ao violino. (Em Recife e Olinda
vale a pronúncia “rabeca”. Mas participantes e apreciadores que residem nas cidades e
vilarejos da Zona da Mata Norte e do Agreste onde se brinca o Cavalo-Marinho dizem quase
sempre “rebeca”). O acompanhamento rítmico varia um pouco entre as diferentes localidades.
Na Localidade Norte-Centro e Paulista, que abriga a versão hoje mais difundida, ele é feito
por um ou mais chocalhos de metal cilíndricos de contas internas, chamados de “mineiro” ou
ganzá, e um ou mais reco-recos de taboca (um tipo de bambu), chamados de bage (substantivo
feminino). Estes dois instrumentos são da família dos idiofones, em que o som é produzido
pela vibração direta do corpo do instrumento: um idiofone balançado, o mineiro, e um
idiofone raspado, a bage. Na Localidade Sul-Oeste não se usa a bage, e na Localidade
Extremo Norte e limítrofes ela é substituída por um “reco de arame”. Outro instrumento é
acrescentado em Cavalos-Marinhos da Paraíba: o triângulo, idiofone de metal, percutido com
baqueta também metálica (como nos grupos de forró).
Além disso, há dois instrumentos da família dos membranofones, em que o som é
produzido por uma membrana esticada. São eles, o pandeiro, de uso geral, e o bombo, usado
apenas na Localidade Sul-Oeste. No caso do pandeiro, a membrana é sintética, pois são
usados pandeiros industrializados adquiridos no comércio. No caso do bombo, usa-se couro
de bode.
O mineiro, a bage e o reco de arame são instrumentos considerados mais simples dentro
do Cavalo-Marinho. Alguém que se inicia no universo musical do Cavalo-Marinho
geralmente começa por tocar um deles. O pandeiro e o bombo são considerados instrumentos
mais complexos que os outros três, tanto em termos da sua variedade rítmica, quanto da
responsabilidade do tocador em relação ao desenrolar da brincadeira. O músico que toca
pandeiro ou bombo – sempre um único músico num momento dado, embora geralmente haja
alternância ao longo da performance – é o toadeiro principal do Cavalo-Marinho, como
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 96
Figura 31 -Banco do Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB) - Formação com reco e rebeca
Figura 32 -Banco do Cavalo-Marinho Boi Ventania de Feira Nova (PE) – Formação com Bombo
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 98
Baile das Baianas, como veremos a seguir). Neste contexto, os cocos são acompanhados pelos
mesmos instrumentos do banco – e não pelos instrumentos musicais que lhes estão associados
por ocasião das festas juninas ou outras situações apropriadas (em alguns casos, só pandeiro;
em outros, bombo, tarol e ganzá, entre outras possibilidades). Em coerência com isso, o ritmo
de acompanhamento dos cocos no Cavalo-Marinho é o mesmo ritmo de base usado no resto
da brincadeira, e não os padrões usuais de acompanhamento de cocos em outros contextos.
Outro gênero que comparece em momento específico do Cavalo-Marinho é a incelença,
um canto fúnebre cantado tradicionalmente por ocasião de velórios em certas comunidades
rurais. No Cavalo-Marinho, são cantadas incelênças de cunho cômico na cena da Véia do
Bambu, quando ocorre a morte do Véio Joaquim. Como a incelença possui cunho religioso,
sua sonoridade no contexto do Cavalo-Marinho se assemelha, coerentemente com o que ficou
dito acima, às toadas “lentas” das cenas dos galantes e do Caboco de Arubá.
Na Localidade Sul-Oeste, outros gêneros não específicos do Cavalo-Marinho são
trazidos para a brincadeira, em função do contexto de determinadas cenas em que eles se
encaixam bem. Na cena do Baile das Baianas (cena específica desta localidade), são cantadas
marchinhas, cirandas e cocos.
Ritmo
A música do Cavalo-Marinho se caracteriza, na maior parte do tempo, por um padrão
rítmico repetido no acompanhamento. Este padrão é produzido pela interação entre os padrões
rítmicos, também repetidos, de cada um dos diversos instrumentos do banco.
Os sons de bage, reco de arame e mineiro podem ser descritos por uma sequência
ininterrupta de semicolcheias num compasso dois por quatro em tempo rápido. Na bage e no
reco, o movimento da baqueta para baixo (um pouco mais acentuado) acontece nos pulsos
ímpares, e o movimento para cima, nos pulsos pares. No mineiro, o movimento das mãos se
afastando do peito do tocador (um pouco mais acentuado) acontece nos pulsos ímpares, e se
aproximando do peito, nos pulsos pares.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 101
Este padrão assimétrico é o mesmo tocado pela bexiga e é uma característica marcante
da sonoridade do Cavalo-Marinho. No entanto, o padrão rítmico em si, tal como aparece na
transcrição musical proposta, nada tem de específico do Cavalo-Marinho, podendo ser
encontrado em inúmeras expressões musicais brasileiras, como o baião, o coco, o samba de
roda e muitas outras. O que o torna específico do Cavalo-Marinho, a nosso ver, são duas
coisas. Primeiro, o andamento comparativamente rápido com que é executado nesta
brincadeira. Nunca nos gêneros citados, nem mesmo nos forrós mais ligeiros, alcançamos
andamentos tão rápidos como os 126 BPM que o ritmo de Cavalo-Marinho alcança
frequentemente. Segundo, a sonoridade total no contexto em que o ritmo é ouvido. O timbre
do mineiro combinado à bage e/ou ao reco de arame, em andamento rápido, num fluxo de
semicolcheias ininterruptas, fornece um pano de fundo sonoro inconfundível para o padrão
transcrito. Além disso, tanto o pandeiro como o bombo acentuam os toques no padrão
transcrito, mas os articulam, de maneira muito rica e nuançada, a todo um conjunto de toques
(no caso do pandeiro, feitos diretamente com as mãos; no caso do bombo, com duas baquetas
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 102
de tamanho diferente, como veremos). O que os ouvintes finalmente ouvem é todo este
conjunto, que não nos arriscamos a transcrever aqui, remetendo os leitores para os
correspondentes registros em áudio e vídeo que compõem este dossiê. Nossa transcrição dada
acima capta apenas um dos aspectos importantes do ritmo do Cavalo-Marinho, sem qualquer
pretensão à exaustividade.
Como foi dito acima, a dança do mergulhão, no início do Cavalo-Marinho, apresenta
um padrão rítmico peculiar, trazido pelas pisadas dos brincantes no chão. Este padrão
confirma as acentuações na primeira e na quarta semicolcheias, mas acrescenta outras
articulações na parte final do ciclo, como indicado na transcrição a seguir:
Escala e modos
Durante a presente pesquisa não submetemos gravações de melodias de Cavalo-
Marinho a análises tonais com recursos eletrônicos, procedimento ainda pouco difundido na
etnomusicologia brasileira. Nossa apreciação será feita, portanto, com base exclusiva na
audição de músicos com treinamento acadêmico, que fazem parte da equipe de pesquisa.
As melodias de Cavalo-Marinho empregam basicamente uma escala diatônica que não
parece sensivelmente distante do temperamento igual. Um dos maiores rabequeiros de cavalo-
marinho, Seu Luiz Paixão, do Cavalo-Marinho Boi Brasileiro, Condado [PE] (Localidade
Norte-Centro e Paulista), já usa, faz alguns anos, um afinador eletrônico para afinar sua
rabeca. (Este procedimento indica que ele afina as cordas soltas – em quintas – usando
temperamento igual. Mas não garante que os outros intervalos, produzidos pelo
posicionamento dos dedos da mão esquerda sobre as cordas, usem também o temperamento
igual.)
A principal diferença que pudemos perceber, em alguns casos, na afinação das melodias
de Cavalo-Marinho em relação ao temperamento igual é o uso esporádico de terça neutra. (A
terça neutra representa um intervalo de terça, ou Dó/Mi, intermediário entre a terça maior –
Dó/Mi natural – e a terça menor – Dó/Mi bemol.) Tal uso é notório, embora ainda não
devidamente estudado, na música tradicional da Zona da Mata Norte de Pernambuco,
particularmente na ciranda e no maracatu rural. Como os brincantes e músicos de Cavalo-
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 103
Marinho participam geralmente também destas outras brincadeiras, não é surpreendente que
terças neutras apareçam ali também.26
O modo predominante no Cavalo-Marinho é o maior. O modalismo não é frequente,
mas encontramos exemplos de uso do modo mixolídio (ou algo próximo disso, na medida em
que não fica totalmente claro se a sétima da escala é cantada como sétima menor ou numa
altura intermediária entre a sétima maior e a menor27). Muitas melodias de Cavalo-Marinho
mostram predileção por um âmbito de tipo plagal, ou seja, um âmbito de uma oitava
aproximadamente, mas indo da quinta inferior à quinta superior (e não da tônica grave à
tônica aguda). A polifonia vocal não é frequente, embora eventualmente possa haver duas
vozes abrindo terças. No toque da rabeca, no entanto, o uso de duas vozes é a regra. É
muitíssimo comum entre os rabequeiros de Cavalo-Marinho o uso de uma corda solta como
pedal enquanto a melodia é tocada em corda contígua, entre outras possibilidades, de
polifonia a duas vozes.
Rebeca
A rebeca ou rabeca é o instrumento mais valorizado no Cavalo-Marinho. Em alguns
casos, é fabricada localmente, mas nos últimos anos, com o acesso a violinos baratos
importados, tornou-se comum o uso de modelos industrializados. Assim, para os músicos de
Cavalo-Marinho, não importa que em outros contextos o instrumento usado seja chamado de
“violino”. No contexto da brincadeira, será sempre uma rebeca, quer fabricada
industrialmente, quer artesanalmente.
A literatura especializada (Gramani, 2002; Fiamminghi, 2009) já sublinhou que, entre
as rabecas brasileiras, não existe padronização de medidas, formas ou afinação (ao contrário
do violino, que obedece a uma padronização rígida e praticamente imutável desde o século
XVII). As rebecas do Cavalo-Marinho, no entanto, apresentam, em linhas gerais,
características físicas similares às dos violinos, embora de tamanho um pouco maior. Todos
26Um exemplo bem nítido pode ser ouvido na faixa “Toada solta” do CD Pimenta com Pitu, do rabequeiro Luiz
Paixão. A terça neutra aparece na penúltima nota da melodia, que é repetida várias vezes. A transcrição está nos
Anexos.
27Há um exemplo na mesma “Toada solta” citada na nota anterior, cuja transcrição encontra-se em nossos
anexos. A melodia está em Mi Maior, mas a nota Ré é sempre cantada como Ré natural, caracterizando o modo
mixolídio.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 104
os rabequeiros encontrados pela pesquisa usam afinação em quintas num diapasão situado
entre, do grave para o agudo, Ré-Lá-Mi-Si e Fá-Dó-Sol-Ré aproximadamente.
Em Pernambuco, destacou-se como habilidoso construtor de rabecas o Sr. Manoel
Severino Martins, que ficou conhecido como “Mané Pitunga”. Nascido em 29 de maio de
1930, no engenho Boa Vista, município de Itambé, passou a residir em Ferreiros (PE) a partir
de 1936, onde fixou moradia. Desenvolveu-se como autodidata no ofício de tocar e
confeccionar o instrumento, e ainda hoje é lembrado por ter feito as melhores rabecas da Zona
da Mata Norte. Mané Pitunga faleceu em Ferreiros, em 2002. Hoje, os mais conhecidos
construtores de rabecas da região são Mário de Prancha, Zé de Nininha e Mongó, de
Ferreiros; Biu de Dóia, de Glória de Goitá; e Fred, de Goiana.
A rabeca vem passando por um ressurgimento em Pernambuco desde os anos 1990,
com o aparecimento de novos rabequeiros, tanto em Recife e Olinda, como nas cidades da
Zona da Mata Norte. Este ressurgimento sem dúvida beneficia a prática do Cavalo-Marinho,
ainda que nem todos estes novos rabequeiros dediquem-se ao repertório da brincadeira (em
alguns casos, preferem dedicar-se ao forró de rabeca ou a repertórios mais autorais).28
Pandeiro
O pandeiro é um dos instrumentos mais difundidos na música brasileira de norte a sul,
seja em versões artesanais de diferentes tamanhos com ou sem platinelas, seja nos modelos
industrializados amplamente consumidos por grupos de samba e de choro. Os pandeiros
usados no Cavalo-Marinho são industrializados, com pele sintética, e platinelas e tarraxas de
metal para afinar. Mas as maneiras de tocá-los são específicas do gênero.
O pandeiro é seguro pela mão esquerda do tocador com o plano da pele na posição
vertical, e não horizontal, como acontece no choro e no samba. Uma das vantagens desta
posição é facilitar a movimentação da mão esquerda (ajudando a fazer o pandeiro percutir a
mão direita, e não apenas a mão direita percutir o pandeiro). As técnicas de toque da mão
direita são muito variadas e muito diferentes das técnicas bem mais conhecidas, usadas por
pandeiristas de samba e choro. Muitos toadeiros e mestres de Cavalo-Marinho desenvolveram
técnicas pessoais de tocar pandeiro, e os brincadores reconhecem estas diferenças, atribuindo-
as a seus respectivos “autores”. Em alguns casos, sabem reproduzi-las.
28Um excelente panorama da prática da rabeca no estado pode ser obtido no CD duplo Rabequeiros de
Pernambuco, produzido por Cláudio Rabeca em 2011, com apoio do Funcultura/Fundarpe.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 105
Bombo
O bombo é um tambor de formato cilíndrico curto, membranofone, com peles dos dois
lados, tocado com baquetas de madeira. O bojo é de compensado, e as peles (couros curtidos
de cabra ou de bode) são esticadas por um sistema de parafusos e porcas metálicas.
O bojo do bombo é apoiado na perna esquerda do tocador, com as peles no sentido
vertical. O toque principal é feito com uma baqueta de madeira segura pela mão direita. O
braço esquerdo repousa sobre o bojo, e a mão esquerda segura uma vareta fina chamada de
“bacalhau”, que complementa o toque com um som mais leve e mais agudo. O padrão rítmico
empregado no Cavalo-Marinho “preenche” todas as semicolcheias de um compasso dois por
quatro, alternando de maneira assimétrica os toques da mão direita (acentuados) e os da mão
esquerda (mais fracos). Na imagem sonora resultante, prevalece um ritmo de tipo “332”, dos
que vêm sendo apontados frequentemente em estudos sobre música popular brasileira.
Em Pernambuco, os únicos grupos que utilizam bombos no Cavalo-Marinho são os da
Localidade Sul-Oeste. Estudos prévios (especialmente Murphy, 2008:121) haviam
mencionado o bombo como sendo típico de Bumba meu Boi e não de Cavalo-Marinho, e
mesmo como sendo um critério de distinção entre as duas brincadeiras. Os grupos com quem
trabalhamos nesta localidade, no entanto, como vimos acima, demonstraram firmeza ao
classificar o que fazem como “Cavalo-Marinho”, e não “Bumba meu Boi”.
Bage
A bage é um tipo de reco-reco, instrumento musical classificado como idiofone
raspador. É feita com um tipo de bambu fino (menos de 10cm de circunferência), chamado
localmente de “taboca”, obtido nas matas da região, do qual se corta um pedaço medindo de
45 a 50 cm de comprimento. Ranhuras transversais são feitas com uma faca, a intervalos
iguais, ao longo da taboca, e o som é obtido raspando a superfície serrilhada com um bastão.
Dois cortes finos nas laterais ajudam a amplificar o som. Antes de ser usada, a bage é
envernizada para efeito de embelezamento e de proteção contra cupins. As bages são feitas
pelos próprios brincadores de Cavalo-Marinho.
Alguns brincadores de Cavalo-Marinho afirmaram ver a bage como o instrumento mais
característico e representativo do folguedo (posição ocupada pela rabeca em outros relatos).
Isso se deve a serem o pandeiro, o mineiro e a própria rabeca utilizados em outros gêneros de
música tradicional pernambucana, como forró, ciranda, coco etc. A bage, ao contrário, marca
a sonoridade do Cavalo-Marinho pela exclusividade com que aparece nesta brincadeira. (Esta
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 106
visão não procede, é claro, de brincadores das localidades Extremo Norte e limítrofes e Sul-
Oeste, onde a bage não se faz sempre presente.)
No Cavalo-Marinho Boi de Ouro em Itambé/Pedras de Fogo (Localidade Extremo
Norte e limítrofes), a bage pode coexistir durante a performance musical com o reco de
arame, outro tipo de idiofone raspador, ou ser por ele substituída.
Mineiro
O mineiro é um chocalho metálico de contas internas, de formato cilíndrico longo,
seguro pelas extremidades com as duas mãos, transversalmente, na altura do peito do tocador.
Ocasionalmente pode ser chamado também de “ganzá”. Como foi dito acima, o padrão
rítmico do mineiro pode ser transcrito como uma sequência ininterrupta de semicolcheias
sobre um compasso dois por quatro, mas os bons tocadores obtêm resultados sonoros muito
mais ricos e nuançados do que tal transcrição sumária dá a entender. Fazem isso explorando
as possibilidades de acentuar alguns movimentos, e de fazê-los quase imperceptivelmente
mais curtos ou longos, dependendo do traçado das mãos no espaço, ora explorando o plano
horizontal, ora o plano vertical à frente do tocador. Não há simetria total entre as mãos direita
e esquerda: é a primeira que conduz a diversificação do toque, enquanto a segunda permanece
um pouco mais fixa, como um ponto de apoio.
Bexiga
Uma bexiga de boi inflada é usada como instrumento percussivo no Cavalo-Marinho
pelos personagens do Mateus e do Bastião. Na brincadeira, a bexiga possui duas utilidades
principais: ela é utilizada como instrumento musical, auxiliando a manter o pulso da música,
uma vez que sua sonoridade é mais grave que a dos demais instrumentos presentes; e também
pode ser utilizada por Mateus e Bastião para golpear outras figuras ou até mesmo o público.
Estes golpes são mais barulhentos que doloridos, de modo que é comum as bexigadas
desferidas por Mateus e Bastião arrancarem gargalhadas do público.
As bexigas não são duráveis, e por isso precisam ser renovadas sempre que há uma
brincadeira. Brincadores que fazem Mateus e Bastião são geralmente responsáveis por
garantir o suprimento de bexigas. Uma das primeiras providências que o responsável por um
grupo de Cavalo-Marinho toma, quando tem confirmação de que haverá brincadeira, é avisar
o Mateus (ou outro encarregado) da necessidade de providenciar e tratar bexigas de boi em
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 107
número suficiente. Alguns brincadores também podem dar ou vender bexigas prontas para
outros.
A bexiga é retirada do boi logo após o abate, no matadouro. O responsável pelas
bexigas faz o pedido com antecedência diretamente ao funcionário do matadouro. Depois de
limpa (retirados as gorduras e os sebos), a bexiga é tratada com sal (em alguns casos também
temperos, como cominho e colorau), e passa por um processo de secagem ao sol e
umidificação (com óleo de cozinha). Finalmente, a bexiga é inflada com ar. Para isso, o
“pescoço” da bexiga (sua parte mais grossa) é amolecido com água e por ali é passado um
pequeno canudo (normalmente usando uma caneta esferográfica sem carga) por onde o
brincador sopra. Atualmente é possível ver bexigas sendo enchidas com bombas de encher
bolas de futebol ou pneus de bicicleta. Como a durabilidade da bexiga é curta, dependendo do
tempo em que precisar ficar guardada, ela pode ser armazenada em geladeira para evitar
moscas e retardar seu apodrecimento. (Isso, claro, desde o momento relativamente recente em
que brincadores de Cavalo-Marinho passaram a ter geladeiras em casa.)
“Mestre dos Arcos”, ou simplesmente “Mestre”. Nesta parte da brincadeira são formados dois
cordões (filas) de galantes, sendo que o Mestre se posiciona à frente e entre os dois cordões.
Cada cordão é formado por, no máximo, seis integrantes. Cada Galante possui um arco de
cipó japecanga enfeitado com fitas coloridas (de material plástico ou TNT). Em cada
brinquedo ocorre suas especificidades, no Cavalo-Marinho Estrela do Oriente, de Mestre
Inácio Lucindo (Localidade 1), o Baile dos Arcos inicia-se com o Baile do Mestre (neste, o
Mestre dança de par com cada um dos galantes, um por um). Porém, o mais comum é que o
Baile dos Arcos se inicie com a Galantaria chegando junto com a figura do “Mané do Baile”.
Nesta formação, a Estrela é o início do Baile. Este é o único momento em que o os músicos (o
banco) se levantam e se dirigem para o centro da roda, mantendo suas posições e alinhados,
cantando de pé. Neste momento, Mateus e Bastião seguram a Estrela, na maioria das vezes
confeccionada de cipó japecanga, bambu e papel celofane, com seu interior iluminado por
uma vela acesa. Os versos da música da estrela são fixos e “puxados” pelo Mestre e
respondidos pelo banco. O momento não é de dança e apenas se louva à Estrela, neste
momento, simbolizando Jesus Cristo.
Ainda na Dança dos Aico ocorre a Dança de São Gonçalo do Amarante (o santo
casamenteiro). Novamente se observa a referência religiosa “católica” do Cavalo-Marinho,
que, após louvar o Santo Rei do Oriente, incorpora versos e toadas referenciando a São
Gonçalo do Amarante que, em muitos estados do Brasil, incluindo Pernambuco, é (ou era)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 109
Figura 33 -Dança dos Aico – Cavalo-Marinho Boi de Ouro de Pedras de Fogo (PB)
Diz uma das toadas cantadas pelo Caboclo de Arubá: “Sou um caboclo de pena e vou
me juremar”, fazendo alusão a suas raízes indígenas e ao culto da Jurema. As toadas cantadas
pelo banco e pelo brincador evocam a entidade do caboclo de Arubá, e configura-se ali um
momento de transe. Um dos pontos marcantes da figura se dá quando ela anda, deita e rola
por cima de cacos de vidro: geralmente, garrafas são cuidadosamente quebradas pelos negros
Mateus e Bastião, e seus pedaços são espalhados por cima de um saco grande – ou algo do
tipo – e acontece uma ‘performance’ por cima deste vidro, e a pessoa que está com o Caboclo
de Arubá não se corta, não se machuca, não sofre nenhum ferimento. Segue parte da Toada do
Caboclo de Arubá:
A cena desde o início é cômica, misturando religião e sátira. Após a morte do Véio
Joaquim, aparece o Padre Capelão, que entra em cena para confessar o corpo do morto. A
Véia do Bambu tenta agarrá-lo a qualquer custo (Véia do Bambu é uma personagem com
características grotescas – um homem vestido de mulher – que reproduz gestos de apelo
sexual). Depois de muita confusão, o Padre decide chamar o Diabo. A figura do Diabo entra
na roda com dois pedaços de madeiras com chamas de fogo na ponta, dá uma volta no terreiro
e sai levando a Véia do Bambu nas costas. A comicidade prevalece na cena, invertendo o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 113
Figura 36 -Cena da morte do Véio Joaquim – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 114
que, desde a Idade Média, são dadas por ocasião da festa da Igreja, mas as festas de Bois
sempre existiram em vários outros países desde tempos remotos. Segundo pesquisas de
Cascudo, podemos citar: quer de origem religiosa, quer de origem pastoril, desde o boi Ápis,
a vaca Ísis, o touro Mnésio, o boi Geroa, o boi de São Marcos ao touro Guape ou Huaco. “É
um nunca acabar de ligações, reminiscências, influências, afinidades” (BORBA FILHO,
1966: 13) Como o próprio Borba Filho coloca, vale ressaltar os ecos longínquos da commedia
dell´arte. Neste caso, além de vários personagens que se assemelham aos da antiga comédia
popular italiana (o Arlequim, por exemplo), o folguedo do Boi também possui um soggeto,
em torno do qual são improvisados os diálogos, os lazzi (BRUSANTIN, 2011).
Quanto à brincadeira do Boi, Hermínio Borba Filho, por outro lado, não acredita na
hipótese de que o Boi pernambucano seja mais antigo que os outros do Brasil (Amazonas,
Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul). Além disso, defende a ideia de que, nos versos, sempre são acrescentadas
referências locais.
Já para Pereira da Costa, os versos “Meu boi morreu, que será de mim? Manda buscar
outro Lá no Piauí” (PEREIRA, 1974: 264-265) indicam que vem depois das descobertas e
colonização das terras do Piauí, e da exportação do gado ali, cujo comércio começou entre
fins do século XVII e princípio do seguinte, uma vez que as primeiras doações de terras em
sesmarias para a situação de fazendas de criação, naquele Estado, foram feitas pelo
governador de Pernambuco em 1681, a cuja capitania pertencia então o território piauiense.
Essa circunstância unida às relações de vida administrativa e de comércio do Piauí com
Pernambuco parecem também indicar que o poema é de origem pernambucana, dramatizado
depois para representações públicas. Ainda em apoio dessas nossas conjecturas vêm estes
versos do coro do Cavalo-Marinho:
Cavalo-Marinho
Dança bem baiano,
Bem parece ser
Um pernambucano (PEREIRA, 1974: 264-265).
Quanto aos aspectos formais do Bumba meu Boi, Edison Carneiro afirma que o
folguedo é, em si mesmo, uma reivindicação – a da importância daqueles que lidam com o boi
em relação com seus beneficiários. Para o autor, se reduzirmos as pessoas do “drama ao
estritamente essencial – isto é, o Boi, o Cavalo-Marinho ou Capitão, o Mateus e o Doutor –
veremos que o Mateus e o Boi, de que ele cuida, são os personagens verdadeiramente
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 116
atuantes, sem os quais o auto não poderia subsistir” (CARNEIRO, 2008: 30).Ascenso
Ferreira, em suas observações datadas de meados do século XX, supõe que o Cavalo-Marinho
simbolize os antigos capitães-generais de Pernambuco, mas parece mais provável que se trate
de um proprietário rural, do senhor de escravos, pois na versão pernambucana mais moderna
aparece um engenheiro para lhe medir as terras e, tanto na antiga como na moderna versão,
Bastião e Catirina são escravos do Cavalo-Marinho (CARNEIRO, 2008: 30).
A maioria, todavia, faz parte de um repertório do século XX, com exceção de um relato
do padre Lopes da Gama, de 1840. Vale ressaltar que a manifestação do Cavalo-Marinho
nunca foi vista por seus relatores folcloristas como um brinquedo diferente do Bumba meu
Boi. Estes, na maioria dos relatos, trabalharam o Cavalo-Marinho como um personagem
dentro do auto do Boi, nunca como um brinquedo específico. Atualmente, as narrativas
contadas por seus participantes revelam que o Boi e o Cavalo-Marinho são dois folguedos
diferentes. Contudo, os relatos do Boi coletados pelos folcloristas trazem os mesmos
personagens, bem como falas semelhantes até hoje faladas e cantadas no Cavalo-Marinho.
Sabemos que, historicamente, existiu o Boi pernambucano e também, historicamente, se
brinca o Cavalo-Marinho. A problemática central é que Câmara Cascudo, Sílvio Romero
(1972: 150) e Mário de Andrade (1982) tratam o Cavalo-Marinho apenas como um
personagem dentro do auto do Bumba meu Boi pernambucano. Isto por muitos anos gerou na
produção intelectual folclórica um vazio para a identidade do Cavalo-Marinho como
brinquedo autônomo, com características próprias e singulares.
Érico Oliveira, em sua análise sobre as considerações dos folcloristas a respeito das
narrativas sobre o Bumba meu Boi pernambucano e o Cavalo-Marinho, destacou que apenas
em Hermilo Borba Filho podemos encontrar uma alusão ao Cavalo-Marinho enquanto
nomenclatura da brincadeira e não apenas como uma figura do Bumba meu Boi. Escreveu
que:
citar que o Bumba meu Boi também era conhecido como Cavalo-Marinho e que “os galantes
só apareceriam nas variantes chamadas Cavalo-Marinho” (CAMAROTTI, 2001: 79).
A pesquisadora deste INRC, Helena Tenderini, em sua dissertação de Mestrado, escrita
em 2003, trouxe contribuições importantes para analisarmos as diferenças e/ou aproximações.
Segundo a autora, “há versões que colocam o Cavalo- Marinho como uma variante do Bumba
meu Boi, outras que explicam exatamente o contrário: o Bumba meu Boi teria surgido do
Cavalo-Marinho”. Na opinião de Tenderini, não existe uma versão mais “verdadeira” que
outra, “uma vez que todas são usadas com o intuito de auto fortalecimento dos próprios grupos
que fazem as brincadeiras”. Na visão da pesquisadora, a dinâmica destas tradições permite que
“cada lugar e situação imprima nelas suas próprias características, as quais, por sua vez,
também são questionáveis na medida em que são usadas para legitimar interesses ideológicos
pessoais ou acadêmicos” (TENDERINI, 2003: 62-63).
Na opinião de Helena Tenderini, “estes folguedos compartilham de uma essência
comum, estruturada de uma forma também comum, em que muitas figuras com suas loas,
toadas e movimentos são extremamente semelhantes”. Segundo a autora, e opinião também
apontada pelo pesquisador Roberto Benjamin, a diferença se desenvolve sobre o mote da trama
teatral: no Cavalo-Marinho a história gira em torno da figurado Capitão-Marinho (que
atualmente é chamada de Cavalo e Mestre Cavaleiro), enquanto no Bumba meu Boi o foco é a
figura do Boi, que morre e ressuscita (cena que acontece no Cavalo-Marinho de forma
simplificada). Nos dois, no entanto, as figuras que nomeiam as brincadeiras – Boi e Cavalo –
“estão em relação direta e constante com os negros Mateus e Bastião e com a negra Catirina,
figuras presentes do início ao fim da história, que são responsáveis pela dinamização da
brincadeira”(TENDERINI, 2003: 63).
A partir da pesquisa deste INRC, corroboramos as afirmações de Tenderini e Bejamin
destacando que, no caso dos Cavalos-Marinhos da Localidade Sul-Oeste, que englobam os
municípios de Lagoa de Itaenga (PE), Feira Nova (PE) e Glória do Goitá (PE), a figura do
Cavalo (com o Cavaleiro) e a figura do Boi interagem com a figura do Caroca (no lugar do
Mateus e Bastião), que também representa um negro.
Outra perspectiva analítica destacada por folcloristas e pesquisadores é quanto à
formação instrumental do Cavalo-Marinho e do Bumba meu Boi. Érico Oliveira e Gustavo
Vilar apontam as variações dadas pelos folcloristas no que se refere à formação dos
instrumentos musicais (VILAR, 2001: 16; OLIVEIRA, 2003: 239-240). Hermilo Borba Filho,
descrevendo o Boi, registrou a zabumba, o ganzá e o pandeiro; Roberto Benjamin destaca
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 118
também a presença da rabeca e violas; Mário de Andrade cita a viola, a zabumba, o pandeiro e
o ganzá (OLIVEIRA, 2003: 240). Nas produções mais recentes, John Murphy e Edval
Marinho de Araújo descrevem como principais instrumentos do Cavalo-Marinho a rabeca, um
pandeiro, uma ou duas bages, um mineiro e vozes (VILAR, 2001: 18). Érico Oliveira, no ano
de 2002, ao entrevistar Mestre Grimário do Cavalo-Marinho Boi Pintado, região de Aliança
(PE), registrou que no brinquedo do Bumba meu Boi usa-se o bombo e que no Cavalo-
Marinho este instrumento foi substituído pela rabeca (OLIVEIRA, 2006:228). Esta mesma
afirmação é corroborada pelo etnomusicólogo John Murphy que, em entrevistas com Mestre
Salustiano e seu pai, João Salustiano, afirmaram que, no Cavalo-Marinho, usa-se pandeiro, e
no Bumba meu Boi, o bombo (MURPHY, 2008: 121). Já nas pesquisas de Helena Tenderini, a
autora cita em nota que, segundo informações dadas, no ano de 2003, por Aguinaldo, filho de
Seu Biu Alexandre, a rabeca só entrou depois de certo tempo no Cavalo-Marinho, pois antes se
tocava bombo ou mesmo viola, de acordo com Seu Antônio Teles, rabequista do grupo de
Condado [PE] (TENDERINI, 2003: 57). A partir da realização deste inventário, estas
considerações foram reconstruídas e alargou-se o percurso de construção de novas definições e
identidades sobre o que é o Cavalo-Marinho.
Para finalizar, destacamos que, atualmente, é importante a legitimação de que a forma de
expressão em questão trata-se de um brinquedo autônomo, denominado Cavalo-Marinho e que
assim é considerado por parte de seus sujeitos sociais. Evidentemente, toda manifestação
cultural sofre influências das outras formas de expressão existentes na região e/ou localidade
em que seus atores sociais vivem e/ou viveram. Existe sim uma série de características que
geram um “fundamento” e/ou uma identidade comum a todos os Cavalos-Marinhos. Sua
legitimação, contudo, se concretiza no seu autorreconhecimento. Este, por conseguinte, não se
constrói de um dia para o outro, mas tem raízes em processos históricos. Diante disso, nos
reportamos às pesquisas da historiadora Beatriz Brusantin nas quais foram analisados
documentos datados do século XIX que nos trazem referências cronologicamente inéditas do
uso da nomenclatura Cavalo-Marinho (e não Bumba meu Boi) como uma brincadeira praticada
por escravos na região da Zona da Mata pernambucana, atual município de Upatininga (PE) na
área de Nazaré da Mata (PE).
Em março de 1871, o subdelegado do 3º Distrito de Alagoa Seca enviou ofício ao
Delegado de Nazareth, constando que
(...) entre os engenhos Alagoa Seca e Urubu há hum pequeno arraial e alli nos dias
santificados há reuniões de vadios e folgazões e com intervenções de escravos dos
differentes pontos onde se tem tratados de negócios perigosos, correndo o boato que
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 119
Segundo a historiadora, essa ocorrência levou a um inquérito policial que intimou cerca
de 30 escravos. Dentre as denúncias constava que, em meio ao divertimento, os escravos
começaram a dar “vivas à liberdade”, afirmando que estariam livres. No mais, segundo o
delegado, os escravos brincadores dos folguedos estavam prometendo se reunir para em
seguida matarem seus senhores e saquearem as vilas da comarca de Nazareth. No inquérito,
os 30 escravos participantes do samba negaram as acusações. No entanto, dois escravos, José
e Luís, afirmaram que realmente existia um escravo de nome Constâncio, escravo do capitão
Ignácio Xavier de Albuquerque, senhor do engenho Bonito, que estaria pela região a dizer que
os senhores já tinham em seu poder a “própria” liberdade dos escravos. A notícia mereceria,
portanto, uma ação coletiva dos negros os quais, segundo os relatos, programaram uma
reunião no engenho Alagoa Seca, durante a festa, para em seguida, juntos, cobrarem suas
cartas de liberdade dos seus senhores (BRUSANTIN, 2011: 452).
O acontecimento acima relatado pela polícia evidencia o universo social e, por que não,
político, vivido pelos escravos brincadores do folguedo. Vale ressaltar que o acontecido
demonstra justamente a possibilidade da convergência entre festividade e reivindicação pela
liberdade (BRUSANTIN, 2011: 453). Para Brusantin, as festas ou “as reuniões” ocorriam
normalmente nos dias santificados, porém, havia algum tempo, nos anos 70 do século XIX, os
escravos estavam tratando de “negócios perigosos”. A autora então questiona: seriam as festas
um instrumento de disfarce? Ou um veículo de mediação? (BRUSANTIN, 2011: 453).
Independente da resposta, o fato é que, atualmente, os brincadores continuam brincando no
Cavalo-Marinho a cena do Soldado que, a mando do Capitão, prende nego Mateus e nego
Bastião porque estão fazendo bagunça no terreiro.
29
Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do subdelegado. Subdelegacia de Polícia do 3º
Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 120
3.7.3 “Chegou o patrão dele e disse: Nego inventa uma brincadeira” : sobre as
origens e influências do Cavalo-Marinho e seus bens culturais
Uma brincadeira de cativos (...) brincadeira do povo da África que vieram aqui para
o Brasil, trouxeram o coco de zabumba, Cavalo-Marinho, Babau... é cultura velha,
né? O povo saía das fazendas, digamos uma fazenda aqui em Paulista, fugia muito
nego (...) antigamente as coisas não eram assim, era muito distante. Quando
amanhecia o dia, o senhor ia ver, estava faltando cinco, seis, dez, doze negos (...)
antigamente não se chamava patrão, né! Era Senhor.
Aí o que é que o patrão fazia, eles fugiam de sábado pro domingo quando eles
tinham fuga boa, né? O patrão o que é que fazia, enchia um tambor assim... de
cachaça, nesse tempo, os engenhos, que nesse tempo tudo moía, e enchia um
tamborzão de aguardente, enchia, botava um canjirão assim, para eles beber, né?
Toma e faz a festa aí hoje! Faz a festa aí...os negos iam fazer a festa, né, com coco
de zabumba, quando não era coco de zabumba era Cavalo-Marinho, aí foi que
inventaram o Cavalo-Marinho, né? Sambavam a noite todinha. Vinha aquela
negrada e sambava a noite todinha. Amanheciam o dia tudo bebo, cada pé inchado,
aí não fugia ninguém, aí o patrão metia cachaça e brincadeira para eles brincarem.
(Entrevista de Seu Araújo concedida para o INRC do Cavalo-Marinho.)
Pernambuco.30 Com outra narrativa, Mestre Antonio Teles (Cavalo-Marinho Estrela Brilhante
de Condado [PE]) conta que o Cavalo-Marinho surgiu em Portugal, criado pelos negros da
senzala, não os que trabalhavam no corte da cana, e sim os negros que trabalhavam nos
cafezais, no tempo de rei e rainha, sinhô e sinhá. Segundo ele, os escravos brincavam
escondidos e eram prejudicados pelos capitães de campo que iam atrás deles. Para Antônio
Telles, os cativos que ousassem praticar o Cavalo-Marinho, apanhavam e eram amarrados
pelos troncos. Para ele, até mesmo a rabeca, instrumento que toca em seu brinquedo, veio de
Portugal para o Brasil e depois chegou na zona da mata pernambucana.31
A narrativa dos atores sociais, em sua maioria, traz como seus ancestrais os escravos da
senzala. É importante destacar que não é irrelevante o fato de eles destacarem a palavra
senzala em suas narrativas. Não estão se identificando com o negro africano, nem com o
liberto (escravo que alcança a liberdade), mas sim com o escravo cativo morador da senzala,
onde, possivelmente, ocorria a brincadeira. Ao construir estas referências, nem sempre estão
se identificando com a cultura africana, mas sim com a cultura escrava, sua herança africana e
também sua condição social. A brincadeira do Cavalo-Marinho, como exposto em outras
partes deste Dossiê, tem profundas conexões com o universo social rural canavieiro
pernambucano e de zonas limítrofes. Deste contexto histórico se fazem e se refazem os
sentidos da brincadeira, seus símbolos, suas histórias, suas figuras, suas loas e toadas.
Rememorar estas heranças escravistas significa justamente consolidar uma identidade
sociocultural para o Cavalo-Marinho, mantendo seus atores sociais conectados, de forma
dinâmica, com os aspectos culturais tradicionais e costumeiramente praticados por seu grupo.
Os documentos históricos vêm corroborar as narrativas de nossos atores. De fato, nos
documentos policiais da cidade de Nazaré da Mata, datados de 1871, tem-se o registro de que
a brincadeira era costumeiramente praticada por escravos dentro da senzala e, outras vezes,
fora dos olhos de seus senhores.32 Remeter a este passado certamente constrói identidades
para seus sujeitos que, apesar de se colocarem como agentes culturais dinâmicos, trazem
diversas conexões com a tradição, seja ela cultural ou social.
30
Mais informações ver F 40 – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Biu
Alexandre. F40- Cavalo-Marinho Boi Pintado e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Grimário.
31
Mais informações F40 – Cavalo-Marinho Estrela Brilhante e arquivo de áudio da entrevista de Mestre Antônio
Telles.
32
Informações referentes ao documento Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do
subdelegado. Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca,8 de março de 1871. SSP Nazaré 247, vol
652 APEJE/Recife. Apud BRUSANTIN, 2011.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 125
33
Ver artigo de FLORENTINO, M.; VIEIRA RIBEIRO, A.; DOMINGUES DA SILVA, D. “Aspectos
comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”. IN: Afro-Ásia, n. 31, 2004, p. 83.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 126
A presença de “personagens” como a Velha e o Velho nas festas do Natal, Ano Novo e Reis,
ou do mascarado Chocalheiro, que em Portugal possui aspectos demoníacos e carrega uma
bexiga cheia de ar, assemelha-se muito com as figuras do Cavalo-Marinho, entre elas o
Mateus e sua bexiga de boi. Quanto à matéria-prima das máscaras: as portuguesas são feitas
de cortiça, madeira, lata e couro e as brasileiras do Cavalo-Marinho são feitas de couro, sola e
papel machê (BRUSANTIN, 2011: 429).
Outras ligações podem ser feitas com os povos de além-mar. Para a historiadora
Brusantin, a ausência de máscara pode trazer reminiscências africanas. Atualmente, no
Cavalo-Marinho, os únicos personagens que não usam a máscara, além dos galantes e do
Capitão, são os negros: Mateus, Bastião, ou o Caroca, e a negra Catirina. Estes, por sua vez,
pintam a cara de preto (atualmente com água e carvão). A pintura é também uma tradição
presente em algumas culturas africanas. Nos estudos, por exemplo, de Reid de Mitchell sobre
o carnaval afro-creole em Nova Orleans, no século XIX e início do XX, podemos encontrar
representações da cultura afro-creole e, entre as manifestações, o Rei do Velório (festividade
que ocorria no século XIX), no qual o autor salientou referências estéticas africanas através de
“contorções” e “caretas”, estéticas também presentes no Cavalo-Marinho, principalmente no
personagem do negro Mateus. Este mesmo personagem também se encaixa com os zulus de
Nova Orleans:
34
A autora Beatriz Brusantin destaca que, quanto à presença africana em Pernambuco, Carvalho aponta as
evidências de navios negreiros em 1836, 1837 e 1840, que vinham de negociações ilícitas com Angola
(CARVALHO, M. Estimativas do tráfico ilegal de escravos para Pernambuco na primeira metade do século
XIX. In: Revista de Pesquisa Histórica. UFPE, Série História do Nordeste, n. 12. Recife, 1989). E, segundo os
dados do The Trans-Atlantic Slave Trade database, entre 1800 e 1866, em Pernambuco, desembarcaram 19.584
africanos vindos do Golfo de Bênin e, numa diferença imensa, 216.278 da África Centro-Ocidental. Entre 1831 e
1866, desembarcaram de Bênin 350 africanos, e da África Centro-Ocidental, 51.665. Isso sem contar os
africanos vindos de outros portos, e na possibilidade de africanos que iam para Bahia passarem pelo porto de
Recife. Neste caso, isto é, desembarcados na Bahia, tem-se, entre 1831 e 1866, cerca de 67.000 africanos de
Bênin (BRUSANTIN, 2011: 433).
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 128
gramíneas e os arbustos comestíveis para os gados. Entre os povos do sul da Angola também
podemos encontrar este tipo de conhecimento e especialidade. Também atribuía-se aos
“pastores profissionais” a arte de saber curar uma ou outra moléstia que causavam estragos
nos rebanhos. No mais, como todos os pastores do sudoeste de Angola, os Hereros enalteciam
os seus bois com cantos de apreço. Muitas vezes, estas “ladainhas” melodiadas são um puro
enfiar de nomes de animais, das suas cores, ou da sua genealogia. Existiam até cantos mais
inspirados, dignos de serem classificados como “poemetos” (ESTERMANN, 1961: 131-135).
Identificar as origens do Cavalo-Marinho é um desafio inacabado. Para não cair na
caracterização usual que os estudiosos costumam atribuir às manifestações culturais
tradicionais brasileiras de uma mistura de elementos indígenas, africanos e portugueses,
preferimos caracterizar o Cavalo-Marinho como uma forma de expressão que tem seu berço
em terras brasileiras, nas senzalas pelas mãos dos escravos. Materiais culturais de várias
fontes –indígenas, africanas e portuguesas – foram reelaborados e inseridos no brinquedo de
uma forma singular. Não podemos negar suas influências ancestrais de além-mar e, muito
menos, do solo brasileiro. Sua identidade, contudo, se dá justamente neste diálogo entre essas
reminiscências culturais e o grupo social historicamente envolvido. Dizem os brincadores:
Cavalo-Marinho nasceu nas senzalas. É assim que devemos começar a desfiar esta trama
originária.
Naquele tempo, era assim: - vai ter um Cavalo-Marinho no engenho Oiteiro Alto! Aí
o budegueiro botava o jogo, botava o bozó, pra o banqueiro do jogo ajudar a pagar o
Cavalo-Marinho, aí a gente brincava por aquele meio de mundo todo.(Entrevista
concedida a Antonio Telles para este INRC.)
35
Ler considerações sobre tradição e costume em HOBSBAWM, E. A invenção das tradições. Trad. Celina
Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 9-23.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 130
sentido dinâmico O próprio conceito de cultura, em si, estrutura-se sobre bases de movimento
e não da estática. Em outras palavras, neste INRC não se estabeleceu um modelo de aplicação
conceitual, mas um diálogo teórico-metodológico com os processos históricos e com as
vivências dos próprios sujeitos da brincadeira. Dando voz a eles, constatataram-se diversos
pontos de transformações como a frequência da brincadeira, o tempo de duração, os motivos
de suas realizações, os “financiamentos”, os locais de realização do folguedo, algumas figuras
que não se apresentam mais etc.
Segundo depoimento dos brincadores e mestres, a duração das brincadeiras sofreu
alterações drásticas. Antigamente, as brincadeiras duravam a noite toda, sendo que hoje em
dia é comum que o Cavalo-Marinho seja contratado para fazer apresentações com o tempo
reduzido (segundo Biu Alexandre, o Cavalo-Marinho Estrela de Ouro já fez apresentações até
de meia hora ou menos). Mestre Antonio Teles (Cavalo-Marinho Estrela Brilhante [PE])
relembra, por exemplo, como o Natal era um ponto alto para a brincadeira:
Seu Araújo, do Cavalo-Marinho Boi de Ouro (Pedras de Fogo [PB]), diz que a
brincadeira se transformou muito. Nas atuais apresentações, não existe mais a cena do Doutor
ou da Véia com o Patichulin:
Mestre Biu Alexandre (Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado [PE]) afirma que, na
época em que começou a brincar, o ritmo do Cavalo-Marinho era mais lento, mais
compassado, sendo que, após as mudanças inseridas pelo banco do Cavalo-Marinho de
Mestre Batista, o Cavalo-Marinho ficou mais rápido, mais “quente”. Segundo Biu Alexandre,
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 131
Naquele tempo, era assim: - vai ter um Cavalo-Marinho no engenho Oiteiro Alto! Aí
o budegueiro botava o jogo, botava o bozó, pra o banqueiro do jogo ajudar a pagar o
Cavalo-Marinho, aí a gente brincava por aquele meio de mundo todo. (Entrevista de
Antonio Telles concedida a este INRC.)
Eu participava desde a infância, tinha um cabra que morava aqui na Malícia, um tal
de Zé Mané, ele vendia miudezas aí, ele tinha um Cavalo-Marinho. Todo verão ele
brincava lá pertinho lá de casa e a gente ia assistir, e eu iatambém, eu já tava com 15
anos de idade. Eu ia porque eu tinha era vontade de entrar pra brincar, mas pai num
deixava. Mas um dia quando eu crescer eu vou levar a vida do Cavalo-Marinho. Aí
quando foi no outro ano que eles vieram brincar, meu sonho era brincar de Catita no
Cavalo-Marinho, aí a Catita num veio, adoeceu, eu tava batendo o mergulhão,
começamos lá, aí Zé Mané disse assim:
- Mas seu Zé (o nome do meu pai era Zé) num vai dá bom porque a Catita num vem
hoje, a Catita adoeceu.
Aí eu disse pra pai:
- Pai, deixa eu brincar! Deixa eu brincar! Deixa eu brincar!
Aí pai disse:
- Tu brinca?
Aí eu disse:
- Eu brinco.
Aí eu fui.
Aí ele disse (Zé Mané): - Menino brinca aqui!
Eu disse: eu vou brincar!
Aí o vestido era muito grande, arrastava no chão, aí a gente morava pertinho, aí eu
corri lá peguei um vestido da minha irmã e brinquei a noite todinha. Aí de lá eu
segurei, agora pai num me empata mais não, deixou uma vez. E eu segurei a pisada
até hoje. (Entrevista de Borges Lucas concedida a este INRC.)
Segundo Biu Alexandre, foram os conselhos dados por Inácio Lucindo que fizeram com
que ele fundasse seu próprio Cavalo-Marinho, no ano de 1979. Seu brinquedo está ativo até
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 133
hoje (2012), e alcança até a terceira geração com seu bisneto, filho de Fábio Soares, que já
entra na brincadeira botando a figura do Ambrósio ao lado do pai. A família Salustiano
também carrega a continuidade da brincadeira até os tataranetos de João Salustiano,
rabequeiro, pai de Mestre Salustiano. Começar a brincadeira desde a infância é uma marca
das tradicionais maneiras que os grupos se valem para manter a brincadeira viva, dando
continuidade ao costume e, ao mesmo tempo, sendo agentes de transformações próprias do
universo cultural.
Exemplificando com outras narrativas biográficas, Seu Araújo começou as suas
atividades de produtor da cultura muito jovem, adolescente. Brincou e mestrou diversos
grupos de Cavalo-Marinho, antes de formar o seu próprio brinquedo, o Cavalo-Marinho Boi
de Ouro, que data de 1988. Inácio Lucindo nasceu no engenho de Paraná, no município de
Aliança, e foi criado por seus avós, sendo que, quando tinha 8 anos de idade sua avó veio a
falecer. Desde esta data, passou a acompanhar o avô em seu ofício de “pastorar boi”. Dentro
do engenho, desempenhou diferentes funções. Viu seu primeiro Cavalo-Marinho quando tinha
9 anos de idade, o Cavalo-Marinho de João Pedro. Inácio assistiu a primeira vez, ficou tão
encantado que, na mesma noite, disse aos brincadores que o chamassem para brincar. João
Pedro, junto com João Nedino, que brincava de Mateus neste Cavalo-Marinho, gostaram do
enxerimento do pequeno e convocaram-no para brincar de dama na próxima semana. Porém,
Inácio tinha de providenciar o vestido, o arco, sapato e o chapéu para se juntar ao brinquedo.
Inácio pediu ajuda para a senhora de engenho, que lhe deu todo o material. Na primeira
brincadeira, Inácio já demonstrou sua grande facilidade em decorar os versos, respondendo ao
Mestre Cavaleiro e acompanhando as falas do “Baibaça”.
A história de vida de Mariano Telles também se entrecruza com a existência e
sobrevivência do Cavalo-Marinho. Batizado por seu padrinho como Antonio Manuel
Rodrigues, desde cedo passou a ser chamado por Antonio Teles, o mesmo sobrenome pelo
qual seu pai era conhecido na comunidade. Começou a trabalhar com seu pai, quando criança,
aos 10 anos, na roça e tangendo o gado. Com uma rotina de trabalho tão intensa, Antonio
Teles não tinha oportunidade para brincar livremente em sua infância, também não teve
oportunidade de estudar, então, quando conheceu o Cavalo-Marinho, esse passou a ser um
espaço de vivência lúdica, de descoberta de novas possibilidades de expressão e de
desenvolvimento pessoal, o que ressalta também a importância do brinquedo popular no
sentido de atender às necessidades de ludicidade e de auto expressão, pois, no seio das
comunidades rurais, normalmente as pessoas são submetidas desde cedo a uma vida de muito
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 134
seu próprio Cavalo-Marinho, o que se concretizou mediante o apoio primordial de sua filha
Nice Teles. Em novembro de 2011 foi inaugurado o Espaço Tradições Culturais, com
recursos do prêmio do Ministério da Cultura. Atualmente, o espaço serve para ser a sede do
Cavalo-Marinho, onde guardam o acervo de peças, indumentárias, bicharia e instrumentos
musicais do Cavalo-Marinho.
A história do Cavalo-Marinho é de continuidades e transformações e se mistura com a
vida de seus atores sociais num processo contínuo desde a infância. Quando se ouve o alarde
dos mestres dizendo que muita coisa mudou, ao mesmo tempo, enxerga-se o contato forte
com as raízes do brinquedo, com um passado vivido e apreendido como parte da identidade
destes brincadores. Ouve-se também um grito de reivindicação para que as autoridades
contratantes lhe deem o que a tradição e/ou o costume solicita: mais tempo para sua
apresentação, com valores justos. A brincadeira se mantém viva, transformando-se na sua
dinâmica própria, contudo, sempre conectada com a história de vida e de muita sabedoria de
seus mestres e brincadores. Prova disso é que o folguedo continua ampliando suas linhagens,
com filhos, netos, bisnetos e tataranetos que olham, escutam e praticam o Cavalo-Marinho ao
lado de seus ancestrais.
O Cavalo-Marinho enquanto forma de expressão praticada por trabalhadores ligados ao
universo rural, da cana, já comemora mais de 142 anos (desde o registro encontrado de 1871).
As transformações são inerentes a todo bem cultural, no entanto, a estrutura significativa, a
musicalidade, a poesia, a dramaturgia se mantêm. Há de salientar que às vezes ocorrem as
substituições de um instrumento por outro, de uma figura por outra, de um artefato ou roupa
por outros etc. Não obstante, o bem cultural enquanto costume repleto de aspectos tradicionais
tem seus processos de continuidades representativas desde a época da escravidão e,
sugestivamente, desde as possíveis raízes de além-mar, em terras africanas.
Como exemplo disso, abaixo se tem um quadro com a descrição feita por Pereira da
Costa, em Goiana, em 1902, de um Cavalo-Marinho (que ele também chamou de Boi) e outra
descrição feita recentemente (publicação de 2005) pelo pesquisador Érico de Oliveira.
Entra o Capitão de Campo, perseguindo Soldado da Gurita: - Capitão, pra que mandou me
Fidélis para prender e amarrar como negro chamar?
fugido. Canta o coro:
Capitão: - Mandei chamar porque aqui tem uns
Capitão Colombo nêgo que tão muito rebelde e não querem deixar o
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 136
Figura 37 - Cena do Soldado pegando o Nego Mateus – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE)
Esta comparação dos registros de 1902 e do outro, depois de quase 103 anos, nos traz
uma referência de que as transformações são inerentes aos processos culturais que estão
inseridos em processos históricos e de dinamismo humano. O interessante é que alguns
aspectos estéticos (obviamente, estes são importantes também) podem mudar com o passar do
tempo, mas a essência, o sentido, o significado e, na linguagem do Cavalo-Marinho, o
“fundamento” da brincadeira permanece de forma ressignificada. Nas duas narrativas, as
semelhanças são óbvias. Constam como pontos estruturantes comuns as figuras presentes na
cena, a existência da negociação/empeleitada, o objetivo do trabalho do Soldado/Capitão, os
alvos da “violência”, o modo de sair da cena da figura opressora dos negros. Salvo as
inversões, profundamente curiosas e certamente bem contextualizadas, a temática geral da
dramatização é igual. Nos dois casos se contou uma história, e as duas histórias levam os
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 138
36
E aqui vale destacar o primeiro trabalho acadêmico sobre Cavalo-Marinho que trouxe esta conclusão:
MARINHO, Edval. O folguedo popular como veículo de comunicação rural: estudo de um grupo de cavalo-
marinho, Dissertação de Mestrado em Administração Rural na UFRPE, Recife, 1984.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 139
37
Informações no documento Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do subdelegado.
Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Alagoa Seca. 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247, vol 652
APEJE/Recife. Apud BRUSANTIN, 2011 e na tese BRUSANTIN, B. M. Viva o boi: uma análise comparada
das manifestações culturais dos catarinenses e pernambucanos no século XIX e início do XX. Anais do III
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (SC), 2007.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 140
diversas, são artistas que querem se inspirar em seus corpos, sua música e em sua
dramaturgia. O Cavalo-Marinho pernambucano, nascido nas senzalas, significa muito para a
sua comunidade e, atualmente, é fonte de inspiração para a cultura nacional, com repercussões
internacionais, se colocando com legitimidade para receber o título de Patrimônio Cultural
Imaterial do Brasil.
século XX, presenciamos a abrangência nacional do trabalho do artista Antônio Nóbrega que
trouxe, para designar o sujeito da cultura popular, ou o artista popular, e o próprio ato de
brincar, a palavra brincante (não sabemos se foi o primeiro a usar este termo, mas podemos
considerar como seu grande expoente de divulgação no meio artístico e popular). Antônio
Nóbrega, neste período, mais precisamente em 1992, fundou na cidade de São Paulo o
Instituto Brincante, que nasceu da ideia semeada no espetáculo de teatro de mesmo nome.
Segundo Nóbrega, “brincante é a maneira mais comum com que são conhecidas e chamadas,
em muitas regiões do Brasil, notadamente no Nordeste, aquelas pessoas por nós denominadas
de artistas populares”.38 Nóbrega intenta trazer para a denominação a ampliação do sentido de
brincar como designação de atuar e representar fora do contexto moderno de fazer um
espetáculo, mas no sentido amplo de divertir-se brincando com os demais. De fato, o sentido
atribuído por Nóbrega tem ressonância no mundo real da cultura popular. Em contrapartida, a
pesquisa deste INRC verificou que a grande parte dos atores socais envolvidos com o Cavalo-
Marinho designam os sujeitos que brincam, no sentido acima colocado, como brincadores.
Estes aspectos não se tratam exclusivamente de uma discussão de sintaxe das palavras
brincante e brincador. Há também uma discussão semântica por trás destes usos e desusos.
Antônio Nóbrega trouxe esta palavra para nomear seu espetáculo, e, como ele mesmo coloca,
“a que nós denominamos espetáculo, os brincantes preferem chamar de brincadeira ou
brinquedo”.39 Assim, apesar de Nóbrega almejar trazer para sua obra artística espetacular o
“espírito brincante”, desenvolvido desde a década de 70 do XX, quando ele começou a
mergulhar no universo da cultura popular através da sua participação no Quinteto Armorial, a
convite de Ariano Suassuna, ele, na verdade, como muitos artistas, produziu uma
interpretação daquilo que se pratica na realidade cultural popular. A partir da transposição de
um brincar no chão batido, entre os engenhos, com cheiro do bagaço da cana, em semicírculo,
nas madrugadas adentro etc., para um produto espetacular, transformaram-se os sentidos
produzidos pelos sujeitos da brincadeira. Nóbrega não mais diferenciou o que ele chama de
“brincante” do contexto popular para o seu “brincante” no contexto espetacular. Todavia,
sabemos que o sentido de ambos são diferentes, bem como, considera Nóbrega em suas
reflexões. Em síntese, obtemos duas constatações com relação a estas nomenclaturas.
Primeiramente, a verificação factual de que grande parte dos sujeitos do Cavalo-Marinho
utiliza a expressão brincador, ao invés de “brincante” (salvo exceções, como observa-se na
família Salustiano e Mestres próximos a esta, como Mestre Grimário do Cavalo-Marinho Boi
38
Informação escrita pelo autor no site http:/ www.antonionobrega.com.br. Acessado em 5/02/2013.
39
Informação escrita pelo autor no site http:/ www.antonionobrega.com.br. Acessado em 5/02/2013.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 143
40
Afirmação de mestres e brincadores do Cavalo-Marinho pernambucano. Registrado por Beatriz Brusantin
entre 2004 e 2010.
41
Versão de Mestre Martelo, Mateus do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro, Condado (PE). Mestre Antônio
Telles, Estrela Brilhante de Condado (PE), também faz referências ao animal cavalo-marinho. Registrado por
Beatriz Brusantin entre 2005 e 2010.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 144
Neste INRC, o pesquisador Fábio Soares afirmou, com comprovações nas falas de vários
brincadores e mestres, que a pronúncia (e a escrita) usual é Cavalo-Marim, conectando o seu
sentido a algo relativo ao mar ou ao profissional do mar, o marinheiro.
Outra palavra curiosa na linguagem do Cavalo-Marinho é pareia. As figuras dos negros
Mateus e Bastião se comunicam e se apresentam ao Capitão como “pareias”, isto é, parentes.
Os estudos de Marina de Mello e Souza sobre as eleições dos reis negros traz que o termo
“parente” possui significados étnicos de solidariedade interessantes. Souza afirma que, com o
estilhaçamento das relações familiares provocado pelo tráfico, os africanos escravizados
buscaram reconstruir em novas bases os laços fundamentais que uniam as pessoas. Segundo a
autora, a reunião em grupos oriundos da mesma etnia ou de regiões próximas, pertencentes a
um mesmo complexo sociocultural, foi uma forma encontrada para recriar as afinidades
fundadas nas relações de parentesco (SOUZA, 2002: 181). Souza destaca que existe a
utilização do termo “parente” para pessoas do mesmo grupo étnico, havendo entre elas
vínculos essenciais no processo de redefinição de solidariedades, antes fundadas em relações
de linhagens. Os africanos redefiniram a abrangência semântica da palavra “parente” para
incluir todos da mesma etnia, inventando o conceito de “parente de nação” (SOUZA, 2002
:182).Para Brusantin, é coerente considerar ligações entre os “pareias” de Pernambuco e os
“parentes” de outros lugares do Brasil. No folguedo praticado pelos escravos da Zona da Mata
Norte de Pernambuco, as figuras que representavam eles próprios (negros que representam
negros) também trazem sinais de laços de solidariedade baseados em traços étnicos
(BRUSANTIN, 2011: 450).
Vislumbrando essas discussões, é importante destacar alguns termos da linguagem do
Cavalo-Marinho que aqui foram utilizados. A valorização do bem cultural como um todo,
incluindo sua linguagem, ratifica a cultura dos brincadores em sua originalidade e corrobora
com ideias de Octávio Ianni de que muito da diversidade social brasileira se dá no âmbito da
cultura através dos nomes das coisas, significados das palavras, símbolos, signos etc. “Mesmo
em um país no qual parece que não há dialetos, a língua falada pelas classes dominantes não é
exatamente a das classes subalternas; a escrita dos eruditos pouco tem a ver com a escrita de
operários e camponeses” (IANNI, 1992:144). A língua nacional é múltipla, e este é o sentido
da construção de uma nação e sua identidade. Nessa direção, identificar, pelo menos em parte,
a linguagem do Cavalo-Marinho dentro do processo dinâmico da cultura, dialoga
perfeitamente com o princípio constitucional que assenta a política pública de registro do
Patrimônio Cultural Imaterial.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 145
Trava-se a discussão entre ele, “Matheus” e “Catharina”, que são o casal de palhaços
do toda a função e se esforçam sempre em falar como os antigos pretos d’Angola,
uma arrevesada algaravia, muita vez graciosa e original (BELLO, 1935).
Tóda Camarim
Tombo Dança do mergulhão/passo de dança
Trupé Passo de dança do Cavalo-Marinho
Marinho são realizados com freqüência, em reconhecimento ao valor que o bem traz para as
culturas tradicionais brasileiras. Destacamos: o Encontro de Cavalos-Marinhos da Casa da
Rabeca, Nação Cultural Pernambuco (Fundarpe), Conexão Cavalo-Marinho (produzido por
Laura Tamiana e Helder Vasconcellos), I Colóquio sobre Encenação e Cultura – Tradição e
Contemporaneidade na cena do Cavalo-Marinho, realizado na Fundaj.
Na contemporaneidade, o Cavalo-Marinho reverbera em sua identidade, do que hoje,
nacionalmente, se considera cultura popular tradicional. Grupos artísticos de vários estados
pesquisam e recriam a arte de brincar Cavalo-Marinho, inserindo-o no contexto
contemporâneo da cultura. Como afirma Bhabha:
Nesse processo, o brincador começa a criar novos sentidos para a brincadeira, alterando
significantemente a maneira de brincar (GUARALDO, 2010: 57). Contudo, não se perdeu o
caráter da continuidade de seus aspectos tradicionais. Aqui os ensinamentos de Luigi
Pareyson cabem-nos perfeitamente:
Brincadeira é uma coisa muito simples. Pra mim, o melhor é o Cavalo-Marinho, que
traz muita coisa pro corpo. A gente fica bem feito, com o corpo todo feito de mola.
Pra mim, é uma satisfação muito grande. Meu desejo é que meus filhos, netos e
bisnetos continuem acompanhando a história de Cavalo-Marinho. Porque eles
estando ali, eu sei que eles têm saúde (Mestre Biu Alexandre em entrevista para o
evento Conexão Cavalo-Marinho, produzido por Laura Tamiana e Helder
Vasconcellos.)
Figura 38 - Bisneto de Mestre Biu Alexandre Figura 39 - Neto de Mestre Salustiano brincando
treinando a Figura do Ambrósio junto com seu pai, como Arreliquim– Cavalo-Marinho Boi Matuto da
Fábio Soares – Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Cidade Tabajara (PE)
Condado (PE)
42
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 154
Mestre Pisica: - Logo quando trouxe o Cavalo-Marinho pra cá (para cidade de Feira
Nova), botei (fazia ensaios) lá onde mora Dionísio, na rua de São João. E Dionísio
era meu sócio e era cavaleiro (personagem que entra com o Cavalo). Mas, tô
tentando trazer a apresentação para cá (na atual residência do Mestre Pisica), porque
Dionísio não vê nada (por causa da operação que fez nos olhos).
Rosa: - Mas, por exemplo, quando levou o Boi (e os demais bichos, como Cavalo,
Burro etc.), ele (Dionísio) ficava chorando querendo vir.
Mestre Pisica: - Ficou chorando.
Rosa: - Ficou chorando porque ficou com vontade de vir. Mas não pode vir porque
ele não pode ver. Sempre no dia da apresentação ele fica chorando pela saudade de
brincar, agarra no Boi e fica chorando. Aí a gente deixa lá o bicho, porque se tirar o
Boi de lá, ele morre.
Mestre: - Se tirar o Boi de lá, ele morre. (Mestre Pisica e Rosa em entrevista
concedida a este INRC.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 155
Neste INRC, em todos os contatos realizados com os atores sociais, nas diversas
reuniões da equipe de pesquisa com a presença de dois integrantes dos Cavalos-Marinhos
(Fábio Soares e Cláudio Rabeca) e, principalmente, no encontro de mestres em Condado (PE),
em junho de 2012, organizado pela equipe do INRC e pela Fundarpe, conseguimos perceber
quatro frentes de problemas que precisam ser solucionados para que se fortaleça a
continuidade do Cavalo-Marinho, preservando seus aspectos originários e identitários e, ao
mesmo tempo, respeitando o processo dinâmico inerente à cultura. Vale ressaltar que algumas
iniciativas em parceria e/ou fomento do Ministério da Cultura, IPHAN e Fundarpe, auxiliam
(e auxiliaram) muito no processo de proteção e valorização da cultura do Cavalo-Marinho.
Entre elas: Ponto de Cultura Maracatu Estrela de Ouro de Aliança (PE) (beneficiado Cavalo-
Marinho do Mestre Batista); Prêmio Mestres da Cultura Popular pelo Ministério da Cultura
em 2007 (beneficiado Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima cujos recursos deu início ao primeiro
e único Museu de Cavalo-Marinho no sítio Malícia em Glória do Goitá); Prêmio Rodrigo
Melo Franco de Andrade (IPHAN), na categoria Salvaguarda de Bens de Natureza Imaterial
em 2009 (beneficiado Cavalo-Marinho Boi Tira-Teima); Ponto de Cultura Viva Parêia
(beneficiados Cavalo-Marinho Estrela Brilhante e Estrela de Ouro de Condado), entre outros.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 156
Figura 40 -Encontro de Mestres realizado pelo INRC Cavalo-Marinho (Associação Respeita Januário e
Fundarpe) em Condado (PE)
Como exemplo, vale destacar um acontecimento presenciado pela equipe deste INRC.
Na cidade de Ferreiros, no mês de dezembro de 2011, no início deste processo de
INRC, a equipe de pesquisa presenciou em Ferreiros um fato de descaso e de
desrespeito ao Mestre Inácio Lucindo, e a outros brincadores de Cavalo-Marinho e a
artistas de Recife. Antes de relatá-lo, chamamos atenção para o fato de que esta cidade é
intitulada terra da rabeca, um dos instrumentos principais do brinquedo do Cavalo-
Marinho, com um processo de salvaguarda imensamente atrelado a esta manifestação
popular. Resumidamente, um artista de Recife, conhecido nacional e
internacionalmente, estava na cidade apresentando um espetáculo em praça pública.
Previamente, havia se combinado com as autoridades públicas locais que, após a
realização do espetáculo, ocorreria a apresentação do Cavalo-Marinho de Inácio
Lucindo, com participação de brincadores e mestres de outras localidades. O combinado
era que Mestre Inácio brincaria com seu Cavalo-Marinho até as 2 horas da manhã, no
mínimo. A brincadeira do Cavalo-Marinho trata-se de uma brincadeira munida de
enredo que precisa de um tempo longo de duração para que se conte a narrativa dentro
da lógica do brinquedo. Em suma, seu Inácio Lucindo começou a brincar por volta das
22h00. Cerca de 40 minutos depois, chega um aviso de algumas autoridades locais que
o brinquedo teria que acabar às 23h00 por conta de uma apresentação de Ciranda que
estava na programação da Prefeitura de Ferreiros. A brincadeira de Seu Inácio estava
vinculada ao projeto do artista que possuía um financiamento do Ministério da Cultura
para os gastos e cachês. A Prefeitura entrara como parceira, apenas autorizando o uso da
praça-rua como terreiro para a realização das apresentações. A produção do artista
entrou em negociação com a Prefeitura, juntamente com o Mestre, a partir da qual foi
firmada a realização da brincadeira até as 2h00 da manhã. Contrariando essa
negociação, as autoridades da Prefeitura desrespeitaram o acordo firmado anteriormente
e exigiram o término do brinquedo, que não teve tempo para se desenvolver. Por fim, a
Ciranda iniciou sua apresentação e, cerca de 30 minutos depois, encerrou a
apresentação; todo o movimento da rua acabou. Esta foi uma pequena e ínfima parte de
um longo e denso processo histórico que persiste nas muitas cidades da Zona da Mata
Norte de Pernambuco. Mestre Inácio Lucindo não teve como reagir diante de tanto
desrespeito do prefeito e do secretário da Prefeitura. Sua posição é de refém de um
sistema que depende de algum apoio para poder continuar sua brincadeira, para que se
alcancem contratos de apresentação. Assim, qualquer tipo de resistência, em voz
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 158
1) Encontros e união:
Apesar de pertencerem a uma mesma região e de possuírem uma tradição cultural
comum, alguns grupos não se conheciam. Mestre Salustiano criou o Encontro dos
Cavalos-Marinhos, que ocorria todo ano na noite de Natal na cidade Tabajara, em
Paulista (PE),primeiro no Espaço Lumiara Zumbi e depois na Casa da Rabeca. Após seu
falecimento, seus filhos mantiveram o evento, mas com um número reduzido de grupos.
Este encontro, além de promover a divulgação (localizado mais próximo da capital, a
presença de turistas, pesquisadores e outros é maior) do Cavalo-Marinho em seus
variados sotaques, prestigiando todos os grupos, também abre a possibilidade de um
momento comum a todos. Recentemente, a Fundarpe, muitas vezes em parceria com a
Associação dos Maracatus de Baque Solto, tem investido, dentro da programação do
Festival Nação Cultural de Pernambuco ou das Festas Natalinas, em uma troca de
terreiros entre os grupos e também em uma roda de conversas entre os mestres. Todas
estas atividades são realizadas na Zona da Mata Norte de Pernambuco e têm despertado
maior união e troca entre os grupos. A realização do Encontro de Mestres realizado por
este INRC e pela Fundarpe serviu também como um exemplo de troca de ideias e
propostas para a união dos Cavalos-Marinhos. Todos os mestres aprovaram este
caminho. Entre as propostas, surgiu a de abrir uma associação comum. Ainda está em
discussão este projeto, a maioria dos mestres o considera importante.
3) Elaboração de projetos:
Muitos brincadores e mestres têm idade avançada e são formados com uma escolaridade
básica, ou nenhuma. Os editais promovidos em âmbito estadual e nacional pelos órgãos
públicos que promovem a cultura (Fundarpe, Minc, Funcultura, SIC- Prefeitura do
Recife, entre outros) requerem certo conhecimento específico em elaboração de
projetos, o que estes atores sociais, em sua grande maioria, não possuem. Mesmo que
tais órgãos públicos, ou outras entidades, realizem treinamentos para a elaboração de
projetos, o acesso ao treinamento e depois a aplicação do conhecimento como uso de
computador, de internet, o domínio da escrita e da leitura, a compreensão das exigências
do edital etc. demandam uma capacidade intelectual e uma prática que muitos não têm,
ou apenas os mais jovens têm condições de adquirir. Alguns vencem estes obstáculos e
estão conseguindo acessar este “processo democrático” de política pública. Porém,
muitos outros ficam na dependência dos projetos elaborados por pessoas alheias, ou
organizados e promovidos pelos órgãos públicos. Sem nenhuma destas opções, o grupo
está excluído das políticas públicas de acesso aos recursos destinados à cultura nacional
viabilizados pelos governos estadual e nacional.
Temos que pensar juntos, unidos. Não adianta depender da Fundarpe, às vezes quer
ajudar, mas não dá, porque somos desorganizados. Temos que nos organizar. (...) O
que a gente quer é brincar, é se divertir. O Cavalo-Marinho é uma brincadeira, então
a gente quer brincar. Os mestres ficam chateados de brincar meia hora, eles querem
espaço para brincar, 3, 4 horas até o amanhecer o dia. É como se estivessem se
alimentando da brincadeira. Queremos espaço onde podemos brincar, brincar. Não é
só oficina, e as noitadas que se perdeu. Falta isso. A ideia da associação é pra ter um
órgão que represente todos. (Pedro Salustiano no Encontro dos Mestres realizado
pelo INRC e pela Fundarpe.)
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 163
Figura 41 -Sede do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro Figura 42 -Casa de Mestre Pisica e Sede do Cavalo-
de Condado (PE) Marinho Boi Ventania de Feira Nova (PE)
das sedes para os grupos que ainda não as possuem. Outra sugestão, estabelecer
parcerias entre prefeituras e Ministério da Cultura para a criação destes espaços.
3) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan, conjuntamente com os grupos de Cavalo-
Marinho, reivindicar junto ao Ministério da Cultura e Ministério do Trabalho e do
Emprego o reconhecimento profissional dos mestres e brincadores do bem cultural
e, consequentemente, sua aposentadoria.
4) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan e/ou prefeituras locais, conjuntamente com os
grupos de Cavalo-Marinho, em parceria com as Secretarias de Educação Estadual e
Municipal, sugerir a incorporação do ensino da arte de brincar Cavalo-Marinho
(dançar, tocar, produzir artefatos e instrumentos musicais etc.) com cursos, ou
oficinas, ministrados por seus brincadores e mestres, dentro das escolas públicas
nos municípios sedes dos grupos.
5) Por iniciativa da Fundarpe e/ou Iphan e/ou prefeituras locais, conjuntamente com os
grupos de Cavalo-Marinho, criar e manter um acervo documental (fotos, vídeos,
documentos) sobre os atores sociais e seus grupos de Cavalo-Marinho em cada
município sede do brinquedo. Caso o brinquedo já possua sede própria, auxiliar na
construção, organização e manutenção deste acervo documental para a preservação
da memória do grupo.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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_____. Viva o boi: uma análise comparada das manifestações culturais dos catarinenses e
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Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (SC), 2007.
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3.No 30. Lisboa, Memórias da Junta de investigações do ultramar, 1961, p. 131-135.
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cultura & sociabilidade na América portuguesa. Vol. II, São Paulo: FAPESP/ Imprensa
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HOBSBAWM, E. “A invenção das tradições”. Trad. Celina Cardim Cavalcante. São Paulo,
Paz e Terra, 2008, p. 10.
IANNI, Octávio. A idéia de Brasil moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social‖. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
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QUEIROZ, Luis Ricardo Silva et al. Transmissão Musical no Cavalo Marinho Infantil. XVI
Encontro Anual de ABEM e Congresso Regional da ISME na América Latina, 2007.
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 169
SOUZA, Marina de Mello e Souza. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de
coroação de rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
ANEXO A- PARTITURAS
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 171
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 172
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 173
Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho 174
Timbaúba (PE)
Severino José da Silva (Seu Biu do Amâncio)
Condado (PE)
Aguinaldo Roberto da Silva (filho de Mestre Biu Alexnadre)
Antônio Manoel Rodrigues (Mestre Antônio Teles)
Fábio Soares da Silva (neto de Mestre Biu Alexandre)
José Borba da Silva (Zé Borba)
José Sebastião de Freitas (Zé de Freitas)
Luiz Alves Ferreira (Luiz Paixão)
Maria de Fátima Rodrigues (Nicinha)
Maria Soares da Silva (Maíca)
Risoaldo Roberto da Silva
Sebastião Pereira da Silva (Seu Martelo)
Severino Alexandre da Silva (Mestre Biu Alexandre)
Aliança (PE)
José Grimário da Silva (Mestre Grimário)
José Lourenço Batista (Zé Lourenço, irmão Mestre Batista)
Mariano Teles Rodrigues (Mestre Mariano Teles)
Sebastião Miliano dos Santos (Miliano)
Araçoiaba (PE)
Antônio Felinto da Silva ( Mestre Aicão)
Condado (PE)
Cavalo-Marinho Estrela de Ouro
Mestre Biu Alexandre
(81) 9980 0174
Fábio Soares da Silva
(81) 9666 3663
Risoaldo Roberto da Silva
(81) 9606 3429
Araçoiaba (PE)
Cavalo-Marinho Boi Coroado
Mestre Antônio Aicão
(81) 9192 6552
(81) 9606 3016
Aliança (PE)
Cavalo-Marinho Boi Pintado
Mestre Grimário
(81) 9919 3108
(81) 8640 5847