Eugeniarodrigues PDF
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Eugênia Rodrigues
Trabalho acadêmico que relaciona o samba e o Direito através das letras de música,
mostrando a visão do universo do samba do mundo jurídico. Foi apresentado para a
disciplina "Sociologia da Estética", da pós-graduação lato sensu em Jornalismo Cultural da
UERJ.
Agradecimentos
Agradecemos as sugestões e informações dadas por Eduardo Martins, J.C. Cardoso, Luís
Filipe Lima, Daniella Thompson, Pedro Paulo Malta, Pedro Amorim, Fernando Szegeri,
Rogério Nascimento e Paulo Eduardo Neves.
Introdução
O presente trabalho nasceu da formação jurídica da autora, Bacharel em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e do amor, esse bem mais antigo, ao
samba. Nesta pesquisa, visamos a investigar as representações dos órgãos e personagens
da Justiça em letras de samba, bem como averigüar as metáforas forenses neles
encontradas. Nossa idéia é expor e analisar algumas letras encontradas dentro deste
estilo musical, procurando dar um viés jurídico-sociológico desses verdadeiros retratos
sociais.
Seria impossível, dentro dos limites despretensiosos deste trabalho, uma pesquisa em
letras de todos os numerosos – e riquíssimos – ritmos brasileiros (mesmo dentro do
universo do samba seria difícil exaurir o tema). Assim, fica de fora “Pare o Casamento”,
clássico da Jovem Guarda em que Wanderléa pede: “Senhor Juiz... Pare, agora...”. Da
mesma forma, optamos por músicas em que os órgãos da Justiça aparecem com relativo
destaque, deixando de fora as que fazem referências en passant ao assunto e em outro
contexto. Assim, não analisaremos, por exemplo, a belíssima “Lágrima sem Júri”, que
Nelson Cavaquinho finalizou com os versos “Não critico a ninguém/Sempre me achei
feliz/Pois se eu erro também/Nunca posso ser juiz”. Ou “O Velório do Heitor”, de
Paulinho da Viola, em que o delegado aparece apenas no final: E aí, chamaram até o
Osório/Que é delegado, porque o velório/Virou a maior confusão...”. As músicas que
fazem referência a crimes entraram quando, de alguma forma, abordam a relação do
homem com a Justiça. Então, os homicídios elegantemente narrados por Noel Rosa em
“Triste Cuíca” (parceria com Hervê Cordovil), “Século do Progresso”, “Quando o
Samba Acabou” e outros não comparecerão aqui, pois se referem, tão-somente, ao crime
em si.
Surpreendentemente, a música brasileira tem em seus quadros um bom número de
profissionais que, de uma forma abrangente, podem ser chamados de profissionais do
Direito. Por quê? Não sabemos. Talvez pela necessidade de uma verve mais ou menos
elaborada para se convencer o público – ou o Juiz. Certo é que estudaram Direito Ary
Barroso, Mário Reis, Mário Lago, Vinícius de Moraes, Nei Lopes, Alceu Valença,
Taiguara, Edu Lobo. Ary e Mário Reis foram colegas de faculdade e não chegariam a
advogar: abandonariam o Direito tão logo se formassem. Mário Lago advogaria por
pouquíssimo tempo; logo começaria a escrever e atuar no florescente teatro de revista da
época. Vinícius de Morais se formaria, nos anos 30, e seria diplomata até ser
defenestrado pelo Itamaraty, em meio a acusações de ociosidade. Vitória da música
brasileira... Nei Lopes se formou pela Faculdade de Direito da UFRJ, antiga Faculdade
Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no início dos anos 70. Advogou durante
pouco tempo; logo decidiu-se pela dedicação à música brasileira, combinada com a
carreira de escritor e pesquisador. Alceu Valença passaria o curso entre livros, música e
atividades político-estudantis e também não levaria adiante a carreira jurídica. Taiguara,
o compositor de “Hoje” e “Universo no Teu Corpo”, estudou Direito até o terceiro ano
na Universidade Mackenzie. A movimentada vida cultural-estudantil da época o tiraram
da faculdade e logo ele estaria compondo e cantando no Sambalanço Trio. Edu Lobo é
outro que estudou Direito e não terminou.
O caminho inverso desses artistas foi tomado por Bellini Tavares. O músico hoje apenas
advoga. José Borges Netto, um dos responsáveis pela permanência das serestas de
Conservatória, acumulou a vida de seresteiro com a de advogado até falecer
recentemente, em 2002. Luverci Ernesto, parceiro de Almir Guineto em sambas como
“Papel Principal” e “Pedi ao Céu”, também acumularia duas carreiras: a de compositor
e de policial. Policial também seriam o compositor portelense Antônio Candeia e o
mangueirense Nelson Cavaquinho – este, dizem, nunca prendeu ninguém. Wilson
Moreira, o parceiro mais constante de Nei Lopes, aposentou-se como carcereiro. O
chorão Jacob do Bandolim foi escrivão de polícia até falecer e foi quem aconselhou o
violonista César Faria a fazer concurso para a Justiça do Estado.
E há os que ganham “fama jurídica” sem razão, como Delegado, o lendário mestre-sala
da Mangueira, que nunca exerceu tal profissão...
Até Ismael Silva, ícone da Lapa e da malandragem dos anos 30, que se orgulhava de
nunca ter tido um emprego fixo, teve uma rápida passagem pelo Judiciário:
“ (...) sabe-se que trabalhou na Central, como chefe de turma da segurança interna, e foi
auxiliar em um escritório de advocacia. Serviços leves e temporários, pois foi dura sua
permanência neles.”1
Em nossa metodologia, utilizamos uma bibliografia jurídico-musical. As músicas
analisadas nasceram da memória da autora e da sugestão de amigos, devidamente
creditados nos “agradecimentos”. As letras foram conferidas no acervo discográfico da
autora ou em sítios confiáveis, também creditados na Bibliografia.
Tendo em vista o viés repressivo que, em diferentes momentos, permeou o Poder
Público brasileiro, verificamos que grande número de sambas abordam a repressão
policial e/ou de Estado. Assim, a fim de equilibrar a abordagem, estas músicas constarão
de um item próprio, o 1. Na parte 2, incidirão temas variados do Direito.
A fim de agilizar o trabalho, colocamos as letras por inteiro apenas quando fosse
indispensável para a compreensão da idéia. Caso contrário, pinçamos trechos e deixamos
a letra inteira para o Anexo da pesquisa.
Finalmente, informamos que o título deste trabalho foi inspirado na letra da música
“Quem dá mais?”, de Noel Rosa, que contém os versos “Quem dá mais?/Por um samba
feito nas regras da arte (...)”.
1. – Batuques e bordoadas: o Judiciário, o samba e a
repressão
É controverso qual teria sido o primeiro samba gravado. O ineditismo de “Pelo
Telefone”2 sempre foi questionado. Certo é que a composição registrada em 27 de
novembro de 1916 pelo compositor Ernesto dos Santos, o Donga, foi o grande sucesso
do Carnaval de 1917.3 Pois essa pioneira música já faz referência, e pouco elogiosa, a
uma carreira jurídica – a de delegado. Aliás, o chefe de polícia citado na música "Pelo
Telefone" existiu, chamava se Aurelino Leal e hoje é nome de uma rua na Ilha do
Governador. “ (...) o refrão (...) aludia à enérgica perseguição ao jogo que então se
anunciava na gestão de Aurelino Leal na chefatura de polícia (...)”.4 Podemos ver nos
versos tanto uma alusão à enérgica ação de Aurelino quanto a uma eventual propina.
Sim, porque era comum que um policial ou delegado, por dinheiro ou amizade ao dono
de um estabelecimento, telefonasse avisando sobre iminentes operações policiais no
local.
Essa é uma das várias letras que “Pelo Telefone” ganhou. A gravada pelo cantor Baiano,
sucesso no Carnaval de 1917, ganharia um início diferente – segundo Brasil Gérson,
feito pelo repórter Mauro do Carmo:
Aqui, nesta segunda letra, a autoridade é vista sob um outro prisma, tão negativo quanto
o da corrupção: o da repressão à música de rua. É certo que, o samba e o carnaval
carioca, obras inicialmente de pobres - negros e mulatos em sua maioria, malandros ou
trabalhadores - seriam duramente perseguidos pelo Judiciário. O próprio Donga diria, em
depoimento gravado ao Museu da Imagem e do Som:
“(...) essa situação [a perseguição da polícia] era uma coisa horrível e eles insistiam
para que eu criasse a música. Bem, motivo não faltava (...) Fiz o negócio pelo instinto e
pelo grupo, porque o Hilário era um sujeito muito sensato e dizia que nós tínhamos que
mostrar àquela gente que o samba não era aquilo que eles pensavam. Nós dávamos um
samba e de repente éramos intimados para ir à Delegacia. Você já pensou? Eu tinha
minha revolta (...)” 5
Também em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, o compositor João da Baiana
travaria o seguinte diálogo com os pesquisadores da entidade:
- Então não fui? Sim, fui preso várias vezes por tocar pandeiro. Tenho algumas
fotografias em casa, inclusive uma quando eu estava dentro do xadrez com um pandeiro.
Eles não prendiam para corrigir. Como o caso das calças bombachas, proibidas pelo
falecida Meira Lima – o pai – quando titular da 2ª Delegacia. Ele não queria que nós
andássemos de calças bombachas. Cortava todas elas.” 6
João da Baiana abordaria a polícia carioca em pelo menos três composições. Uma é
“Batuque na Cozinha”: (“seu delegado foi dizendo com altivez/é da casa de cômodos da
tal Inês? Revista os dois, bota no xadrez/Malandro comigo não tem vez”). Outra, a
pouco conhecida “Malandro Pasteleiro”, que tem um diálogo entre o dono de um
estabelecimento, o faminto que almoçou sem ter dinheiro para pagar e um guarda (“Oh,
seu guarda, não me prende/Pois eu estou com a razão/Se eu pedisse antes fiado/Não me
davam a refeição...”) Uma terceira é “Quando a Polícia Chegar”, cantada por
Clementina de Jesus e regravada por Cristina Buarque. Esta composição,
surpreendentemente, traz o ponto de vista da mulher, que teme que a Polícia leve como
vagabundo o homem que “hoje está desempregado, não me dá porque não tem (...)”. As
três músicas podem ser ouvidas no disco “O Samba é Minha Nobreza”, com vários
intérpretes, lançado em 2002 .
“À medida que os blocos foram se estruturando, ficou decidido que deveriam ser
registrados na polícia, necessitando de autorização para desfilar. Aproveitando a
oportunidade, as autoridades passaram a interferir em sua organização e uma das
primeiras imposições foi a de introduzir alterações na linguagem dos sambas: era
proibido falar em malandragem e fazer apologia da vadiagem.”
“(...) durante um século, somente as pessoas mais ou menos abastadas tinham o direito
pleno de se exibir nas ruas durante o reinado de Momo (...) Grupos de vizinhanças
pouco abastados que habitavam os morros ou a periferia não podiam nem mesmo se
reunir numa esquina no período carnavalesco sem desenvolver imediatamente a
perseguição da polícia (...)”7
Uma visão sociológica desse momento nos é dada pelo pesquisador José Ramos
Tinhorão. Ao comentar o nascimento do Carnaval de rua carioca e seus entreveros com a
Polícia, afirma que
“(...) moralizar o que faziam, ou seja, mostrar à polícia – que considerava os elementos
ligados ao samba como malandros – que eles apesar de sambistas eram homens de bem,
que apenas gostavam de cantar e compor seus sambas (...) O fato pode ser considerado
altamente significativo em uma época difícil de se conquistar e superar os preconceitos
enraizados.”9
Fato conhecido, bem mais leve, se deu numa sinuca do Catete: Candeia, fazendo a ronda
rotineira, exigiu os documentos de dois jovens, Paulo César e Moisés. Após examinar os
papéis, liberou-os e continuou a ronda. “Um dia [na quadra da Portela] Paulo César
lembraria o episódio a Candeia, deixando-o lívido, sem fala”, nos conta João
Máximo10. Para vergonha ainda maior do policial, o compositor Casquinha saiu
gritando pela quadra da Escola: “Pessoal, pessoal, o Careca arrochou o Paulinho na
sinuca!”.
O fato, de qualquer forma, não teria maiores conseqüências. Candeia e o futuro Paulinho
da Viola seriam grandes amigos.
O samba que listamos abaixo foi gravado pelo contemporâneo Zeca Pagodinho. Muita
gente ficou curiosa para saber se o Delegado Chico Palha da letra realmente existiu. É
certo que, sendo a composição de 1938, pertence ainda a uma época em que a
perseguição ao samba, inseparável da repressão aos cultos afro-brasileiros:
“Delegado Chico Palha” (Nilton Campolino/Tio Hélio) “Delegado Chico Palha, sem alma
sem coração Não quer samba nem curimba na sua jurisdição Ele não prendia, só batia, ele
não prendia, só batia (refrão) Era um homem muito forte, com um gênio violento Acabava
a festa a pau e ainda quebrava os instrumentos Os malandros da Portela da Serrinha e da
Congonha Pra ele eram vagabundos e as mulheres sem-vergonhas A curimba ganhou
terreiro, o samba ganhou escola Ele expulso da Políca vivia pedindo esmola”
“essas reuniões, embora freqüentes, não contavam com as simpatias das autoridades, dada a
confusão que, de quando em quando, geravam [?]. Por vezes se realizavam na moita,
clandestinamente (...)”11
Se não é de nosso conhecimento que Chico Palha tenha existido, é verdade que “Olha o
Padilha!” foi inspirada num delegado de carne e osso: o truculento Deraldo Padilha. Veja o
que conta o jornalista Antônio Augusto em “O Último dos Malandros", biografia de
Moreira da Silva:
É certo que Moreira ainda reencontraria em sua frente um delegado tão cruel quanto o
Padilha. Mas não sofreu diretamente as conseqüências. A história é a seguinte: Moreira da
Silva e Jards Macalé excursionavam pelo país através do “Projeto Pixinguinha”, promovido
pela Funarte. Em Vitória, Espírito Santo, um delegado do temido Departamento de Ordem
Pública e Social – DOPS implicou com duas músicas do show: as marchinhas “Casca de
Ovo” e “Sim ou não?”.13 Resultado: Jards acordaria na manhã seguinte à apresentação
com policiais em seu quarto. Moreira, em solidariedade ao amigo, também seguiria no
camburão, e cantando, pois um dos policiais era seu fã. Porém, o delegado não ouviria seus
argumentos. Mal-humorado, ordenaria a um auxiliar apontando o míope Macalé: "Tira o
óculos e recolhe o homem!".
O cantor ficaria preso nove horas e, tempos depois, comporia com Moreira o samba
homônimo, cheio de breques (pausas faladas), bem ao estilo “Kid Morengueira”:
“Tira os óculos e recolhe o homem” (Jards Macalé/Moreira da Silva).
Tempos sombrios, os anos 70. Que se iniciam com Geraldo Vandré em Paris e Caetano
Veloso e Gilberto Gil em Londres, após sérios problemas com o governo militar.
“O músico popular era tido como um marginal, um elemento de alta periculosidade cuja
produção passava obrigatoriamente pelo crivo da Polícia Federal, que determinava se podia
ou não ser divulgada.” 14
O personagem da música “Acorda Amor” sonha que está sendo preso mas o sonho é a triste
realidade: são mesmo “os homens” em sua casa. A prisão política é evidenciada pelo fato
de a esposa não ser formalmente avisada da prisão do marido, nem de sua eventual morte. E
pela recomendação na última estrofe: “Dia desses chega a sua hora/Não discuta à toa, não
reclame.”
“Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
Não esqueça a escova, o sabonete e o violão”
Por volta do dia 20 de dezembro de 1968, poucos dias depois do famigerado AI-5, Chico,
como Jards Macalé anos depois, acordaria com a polícia no quarto. Era o início de um dos
piores dias de sua vida: ele passaria esse dia sendo interrogado, passando pelas salas de
diversos generais. Saiu de lá com a ordem de não sair do Rio. Correu a avisar o amigo
Gilberto Gil que os militares perguntariam por ele.
Por falar em Gil, o baiano, em disco com o sambista paulista Germano Mathias, gravaria
“Senhor Delegado”. É a defesa do (aparentemente) ex-malandro diante das autoridades da
lei.
“Senhor delegado
seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro doutor
hoje estou regenerado
Os meus documentos
eu esqueci mas foi por distração
comigo não
Sou rapaz honesto trabalhador
Veja só minha mão
Sou tecelão
Se vivo alinhado
é porque gosto de andar na moda
Pois é
Se piso macio
é porque tenho calo que me incomoda
na ponta do pé
Se o senhor me prender
vai cometer uma grande injustiça
Amanhã é domingo
Preciso levar minha patroa à missa
Na Lapa
Amanhã é domingo
Preciso levar minha patroa à missa
Na Penha“
Bezerra da Silva canta outro samba que serve de lição ao tratamento diferenciado entre
pobres e ricos no mundo do Direito. É “Se Liga, Doutor”, que ao final faz referência a um
esquecido político brasileiro:
Engana-se quem pensa que retratar drogas em letras de música é privilégio dos dias atuais.
A cocaína, por exemplo há mais de cem anos habita o país. Sintetizada no final do século
XIX, integrou a composição de anestésicos, analgésicos, refrigerantes e diversos outros
produtos. Nos primeiros vinte anos do século XX seu uso era visto com liberalidade, tanto
que Chiquinha Gonzaga comporia a marchinha “A Cocaína”. “A Cocaína” também era o
nome de um tango do compositor Sinhô, o “Rei do Samba”. Os versos de Sinhô, cantados
por Celeste Reis em 1923, diziam no refrão: “Ai, ai, és a gota orvalina/Só tu és minha
vida/Só tu, ó cocaína”. Este tango, aliás, foi regravado em 2001 pela cantora portuguesa
Eugênia Mello e Castro.
“Tal dispositivo, porém, isolado, foi insuficiente para combater a onda de toxicomania que
invadiu nosso país após 1914, sendo que em São Paulo chegou a formar-se, à semelhança
de Paris, um século antes, um clube de toxicômanos”18
“Vou apertar
Mas não vou acender agora
Vou apertar
Mas não vou acender agora
Se segura malandro
Pra fazer a cabeça tem hora (refrão)
É, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles a fim de entregar os irmãos
Ô malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
E é por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora
(refrão)
(refrão)”
A diferença de tratamento entre ricos e pobres já havia sido retratada há tempos, e também
com humor, por Geraldo Pereira. Repare no final da letra que se segue:
Bento aproveitou o couro desse cabrito para fazer tambor. Ou então reincidiu no crime, pois
Geraldo Pereira citaria o indivíduo novamente em “Polícia no Morro”. Esta música traça
um perfil nada lisonjeiro da figura do delegado. Em represália ao furto do cabrito, o (então
denominado) “comissário” comete um abuso de autoridade: ameaça o desfile da escola de
samba:
“Polícia tá no morro
Atrás do cabrito do doutor
Que o Bento matou e fez tambor
O comissário mandou dizer
Que a escola só sai
Se o cabrito aparecer
Fez ver à diretoria
Que toma a bateria
Encana o pessoal
Termina com a sujeira
Toma o apito e a bandeira
Acaba com o carnaval”
Nem sempre o delegado aparece em letras de samba como uma figura truculenta. O
delegado de “Juca” talvez tenha razão em prender o personagem-título; talvez a serenata
estivesse sendo cantada em voz alta demais...
A Polícia – então montada, hoje raridade – também parece correta ao prender a Nega Luzia.
Se bem que, caso confirmados seus problemas mentais, ela poderia ser classificada como
inimputável:
“(...) Mas nós éramos muito perseguidos pela polícia. Chegavam no Estácio, a gente corria
para a Mangueira, porque lá havia o Nascimento, delegado que dava cobertura e a gente
sambava mais à vontade.” 20
Alguns dos laços estreitos entre sambistas e a polícia são descritos por Monique Augras no
primeiro capítulo de “O Brasil do Samba-Enredo”. Por exemplo, a lendária Tia Ciata, em
cuja casa o samba carioca deu seus primeiros passos,
“(...) era esposa de João Batista da Silva, negro baiano que conseguira ‘posto privilegiado
de baixo escalão no gabinete do chefe de polícia’ (Moura, 1983:64), isso no governo de
Venceslau Brás. Essa posição de destaque haveria por certo de facilitar a proteção aos
sambistas, de início muito malvistos pelos poderes públicos.”21
Qual mistério de “Chico Brito”? Não o personagem, mas a música? Sucesso na voz de
Dircinha Batista em outubro de 1950, seria regravada por Paulinho da Viola e,
surpreendentemente, pelo roqueiro Lulu Santos. É um clássico, amado por qualquer
conhecedor de samba. O fato de ter sido uma das primeiras músicas a falar de maconha – a
“erva do Norte” – não nos parece suficiente. Afinal, segundo apurou Ruy Castro,
“comprava-se maconha quase abertamente na Lapa em 1951”24. Ousamos afirmar que o
que fascina na letra de “Chico Brito” são suas claras implicações rousseaunianas. Wilson
Batista, um “fotógrafo” da realidade da época, opõe-se ao lombrosianismo até então vigente
no Direito Brasileiro. Que contou com ecos pátrios, vide a obra do médico maranhense
Nina Rodrigues, que afirmava ser impossível, a um ex-escravo, um convívio normal
perante a sociedade.
Essa visão da sociedade como a responsável pela transformação do caráter também está
presente num samba contemporâneo (1983) de Elton Medeiros, regravado recentemente por
Eduardo Gallotti:
Orestes Barbosa e Noel Rosa prevêem como única forma de retorno à amada o “habeas
corpus da saudade”. Que recurso seria esse? Bem, juridicamente o habeas corpus não é um
recurso, embora pareça. É uma medida prevista na Constituição que visa a assegurar a
liberdade de locomoção de uma pessoa, por ilegalidade ou abuso de poder. Geralmente é
usado por quem teve prisão decretada ou já está preso por tempo maior que o previsto em
lei.
Vale observar que o procedimento de expulsão citado na música, hoje, só se aplica a
estrangeiros que tenham entrado ilegalmente no país. E a pena de banimento – que faria
com que a amada “no exílio pagasse a crueldade” não mais existe. Reza a Constituição
Federal:
(...)
d) de banimento
(...)” 25
Embora os compositores não tenham listado, é possível que sobre o crime praticado pela
moça incidisse a agravante da alínea e:
“(...)
“Senhora Liberdade” é uma das mais conhecidas parcerias entre Nei Lopes e Wilson
Moreira. Que, como já vimos, foram, respectivamente, carcereiro e advogado. O leigo
certamente entenderá a belíssima letra em que o eu lírico pede a libertação das grades de
um grande amor que o faz sofrer. O que nem sempre o não-profissional do Direito sabe é
que a “violenta emoção” que o “réu” alega em seu benefício é mesmo uma circunstância
atenuante no Direito Brasileiro. Diz o Código Penal Brasileiro, no artigo 65:
(...)
(...)
Assim, embora a emoção e a paixão no ato do crime não excluam a culpabilidade, têm o
poder de diminuir a pena.
A canção abaixo também é de autoria Nei Lopes, em conjunto com Luís Filipe Lima. O
divertido é assistir à performance que os autores fazem ao cantá-la. A letra, inédita, brinca
com expressões em latim usadas no Direito – ou não... A música também relembra um
célebre jurista baiano. Confira:
(2ª vez: Ad referendum, et pluribus unum! Extra! Extra! Gratis! Rosa, rosa, rosam, rose,
rose, rosa! A priori, ipsis litteris, alea jacta est! Vice-versa...)
(Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra! Revertere ad locum tuum! Vade
retro, alter ego!)
(2ª vez: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris! Curriculum vitae?
Delirium tremens! Consumatum est, persona non grata!)
(2ª vez: Post scriptum: toma cuidado, meu camarada, que é como dizia o grande filósofo
afro-latino Neilópius: “Cullus bebedorum dominus non habet!” ... Data venia!)”
O defensor público presta serviços de assistência judiciária aos sem posses. Afinal, “O
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência
de recursos”, prevê nossa Constituição Federal26. Logo, é ao defensor que o marido
narrador “Justiça Gratuita” recorre ao se decidir pelo divórcio. Vejamos seus motivos:
“Todos os deveres pertencem já à Ética, embora nem por isso a legislação relativa a todos
eles se ache compreendida na Ética, e embora até a de muitos se ache fora dela”28. Com
essa frase, Kant explica a diferença entre Ética e o Direito strictu senso, o que consta de
nossos códigos, legislações... Se há costumes que de tão arraigados se nos parecem leis,
como as filas, também os há não sacramentados pelo Direito. Como os que Billy Blanco,
elegantemente, enumera em “Estatutos da Gafieira”, que contou com a interpretação eterna
de Jorge Veiga:
“Eu na verdade
Indiretamente sou culpado da tua infelicidade
Mas se eu for condenado
A tua consciência será meu advogado
Mas evidentemente
Eu devia ser encarcerado
Nas grades do teu coração
Porque se sou um criminoso
És também
Nota bem
Que estás na mesma infração
Venho ao tribunal
Da minha consciência
Como réu confesso
Pedir clemência
O meu erro é bem humano
É um crime que não evitamos
Este princípio alguém jamais destrói
Errei, erramos...”
“Errei, Erramos” é um clássico do compositor mineiro Ataulfo Alves29 e seria gravada
com grande sucesso por Orlando Silva. Nela vemos o “culpado” pedir clemência alegando
a culpa concorrente da parceira. Na verdade, o Direito Brasileiro não consagra a “anulação
de culpas”. Exemplo clássico é uma batida de carro em que ambos os motoristas ficam
feridos. Um delito não anula outro: cada um dos motoristas responderá pelo seu ato.
A pouco lembrada profissão de Oficial de Justiça tem uma passagem rápida em “Despejo
na Favela”, do paulista Adoniran Barbosa. A música retrata também o conformismo do
povo com as ações da Justiça:
Esse conformismo se repete em outro clássico do compositor paulista, que listamos abaixo
preservando a fala típica de Adoniran:
Conclusão
Concluímos que as letras de samba deste século viram o Direito, em sua maior parte, sob
o prisma da repressão. De qualquer forma, praticamente todos os aspectos do espectro
jurídico estão cobertos, tanto é que há compositores que usaram de figuras jurídicas para
retratar com lirismo ímpar a relação a dois.
Bibliografia
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• CABRAL, Sérgio. “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro:
Editora Lumiar, 1996
• CANDEIA, Antônio, e ARAÚJO, Isnard: “Escola de Samba – Árvore que
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• GRECO FILHO, Vicente. “Tóxicos: Prevenção – Repressão”. São Paulo: Editora
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• JESUS, Damásio E.: Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2000
• LOPES, Nei. “Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos”. Rio de Janeiro:
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• LOPES, Nei. “O Negro e sua Tradição Musical – Partido Alto, Calango, Chula e
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Rio. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará/Prefeitura do Rio, 2002
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• TINHORÃO, José Ramos. “Música Popular – um tema em debate”. Rio de
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• VASCONCELOS, Ary. “A Nova Música da República Velha”. Rio de Janeiro:
Edição independente, 1985
• VIEIRA, Jonas, e NORBERTO, Natalício. “Herivelto Martins: uma escola de
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• ZAPPA, Regina. “Chico Buarque – para todos”. Coleção “Perfis do Rio”. Rio de
Janeiro: Editora Relume-Dumará/Secretaria Municipal de Cultura, 1999, 2ª ed.
ANEXO
Íntegra de letras que, no decorrer do trabalho, tiveram trechos selecionados:
“ (fala masculina): “Se alguém souber de algo que impeça este casamento
que fale agora ou para sempre cale-se”
Por favor, pare agora
Senhor Juiz, pare agora
Senhor Juiz esse casamento
será pra mim todo meu tormento
Não faça isso, peço por favor
pois minha alegria vive desse amor
Por favor, pare agora
Senhor Juiz, pare agora
(fala feminina:) Senhor juiz, eu sei que o senhor é bonzinho
Ele é tudo que eu amo
É tudo que eu quero”
1 Cf. Maria Thereza Mello Soares, in “São Ismael do Estácio – o sambista que foi rei”,
p. 20. Ismael Silva, aliás, foi amigo do promotor público Prudente de Morais Neto, o
“Prudentinho”, e do escritor e jurista Aníbal Machado. Infelizmente, sua ligação com o
Judiciário não se limitou às amizades – foi ele preso por tentativa de homicídio em 1935.
Lá comporia, entre outras, “Clínica da Vida”, não gravada e de letra não localizada.
6 Idem, p. 62.
7 Artigo publicado na Revista da S.B.P.C., cit. por Maria Thereza Mello Soares, op. cit.
8 In “Música Popular – um tema em debate”. Rio de Janeiro: JCM Editores, 2ª ed., sem
ano, p. 80/81.
15 Houve quem dissesse que esta música era dirigida ao Presidente Costa e Silva, cuja
filha era fã de Chico. Mas o compositor conta que a música foi inspirada num policial
que, ao intimá-lo para depor, pediu um autógrafo para a filha.
16 Cf. narra o compositor em “Chico Buarque – para todos” , de Regina Zappa. Rio de
Janeiro, Editora Relume Dumará/Secretaria Municipal de Cultura, 1999, p. 122.
17 Ou seja, o indivíduo de posses é incurso no artigo 16 da Lei de Tóxicos (Lei
6368/76),- crime de uso de drogas. Enquanto isso, os das classes menos abastadas são
apenados pelo temido artigo 12 – tráfico de drogas. As conseqüências desta
diferenciação vão desde a pena até a possibilidade de concessão de fiança.
20 Cit. por LOPES, Nei, in “O Negro no Rio de Janeiro e sua Tradição Musical:
partido alto, calango, chula e outras cantorias”. Rio de Janeiro: Pallas, 1992, p. 16
24 In “Chega de Saudade”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 76. O retrato que
Ruy Castro faz do uso da maconha na época engloba até o mito João Gilberto.
27 A expressão “agravo ao meu instrumento” faz referência não só ao violão levado pela
esposa, mas a um dos recursos do Direito Brasileiro. Dá nome também a um grupo
musical de Ribeirão Preto formado por advogados.