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Nas regras da arte -- O Direito e as letras de samba

Eugênia Rodrigues

Trabalho acadêmico que relaciona o samba e o Direito através das letras de música,
mostrando a visão do universo do samba do mundo jurídico. Foi apresentado para a
disciplina "Sociologia da Estética", da pós-graduação lato sensu em Jornalismo Cultural da
UERJ.

Agradecimentos
Agradecemos as sugestões e informações dadas por Eduardo Martins, J.C. Cardoso, Luís
Filipe Lima, Daniella Thompson, Pedro Paulo Malta, Pedro Amorim, Fernando Szegeri,
Rogério Nascimento e Paulo Eduardo Neves.

Introdução
O presente trabalho nasceu da formação jurídica da autora, Bacharel em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e do amor, esse bem mais antigo, ao
samba. Nesta pesquisa, visamos a investigar as representações dos órgãos e personagens
da Justiça em letras de samba, bem como averigüar as metáforas forenses neles
encontradas. Nossa idéia é expor e analisar algumas letras encontradas dentro deste
estilo musical, procurando dar um viés jurídico-sociológico desses verdadeiros retratos
sociais.
Seria impossível, dentro dos limites despretensiosos deste trabalho, uma pesquisa em
letras de todos os numerosos – e riquíssimos – ritmos brasileiros (mesmo dentro do
universo do samba seria difícil exaurir o tema). Assim, fica de fora “Pare o Casamento”,
clássico da Jovem Guarda em que Wanderléa pede: “Senhor Juiz... Pare, agora...”. Da
mesma forma, optamos por músicas em que os órgãos da Justiça aparecem com relativo
destaque, deixando de fora as que fazem referências en passant ao assunto e em outro
contexto. Assim, não analisaremos, por exemplo, a belíssima “Lágrima sem Júri”, que
Nelson Cavaquinho finalizou com os versos “Não critico a ninguém/Sempre me achei
feliz/Pois se eu erro também/Nunca posso ser juiz”. Ou “O Velório do Heitor”, de
Paulinho da Viola, em que o delegado aparece apenas no final: E aí, chamaram até o
Osório/Que é delegado, porque o velório/Virou a maior confusão...”. As músicas que
fazem referência a crimes entraram quando, de alguma forma, abordam a relação do
homem com a Justiça. Então, os homicídios elegantemente narrados por Noel Rosa em
“Triste Cuíca” (parceria com Hervê Cordovil), “Século do Progresso”, “Quando o
Samba Acabou” e outros não comparecerão aqui, pois se referem, tão-somente, ao crime
em si.
Surpreendentemente, a música brasileira tem em seus quadros um bom número de
profissionais que, de uma forma abrangente, podem ser chamados de profissionais do
Direito. Por quê? Não sabemos. Talvez pela necessidade de uma verve mais ou menos
elaborada para se convencer o público – ou o Juiz. Certo é que estudaram Direito Ary
Barroso, Mário Reis, Mário Lago, Vinícius de Moraes, Nei Lopes, Alceu Valença,
Taiguara, Edu Lobo. Ary e Mário Reis foram colegas de faculdade e não chegariam a
advogar: abandonariam o Direito tão logo se formassem. Mário Lago advogaria por
pouquíssimo tempo; logo começaria a escrever e atuar no florescente teatro de revista da
época. Vinícius de Morais se formaria, nos anos 30, e seria diplomata até ser
defenestrado pelo Itamaraty, em meio a acusações de ociosidade. Vitória da música
brasileira... Nei Lopes se formou pela Faculdade de Direito da UFRJ, antiga Faculdade
Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no início dos anos 70. Advogou durante
pouco tempo; logo decidiu-se pela dedicação à música brasileira, combinada com a
carreira de escritor e pesquisador. Alceu Valença passaria o curso entre livros, música e
atividades político-estudantis e também não levaria adiante a carreira jurídica. Taiguara,
o compositor de “Hoje” e “Universo no Teu Corpo”, estudou Direito até o terceiro ano
na Universidade Mackenzie. A movimentada vida cultural-estudantil da época o tiraram
da faculdade e logo ele estaria compondo e cantando no Sambalanço Trio. Edu Lobo é
outro que estudou Direito e não terminou.
O caminho inverso desses artistas foi tomado por Bellini Tavares. O músico hoje apenas
advoga. José Borges Netto, um dos responsáveis pela permanência das serestas de
Conservatória, acumulou a vida de seresteiro com a de advogado até falecer
recentemente, em 2002. Luverci Ernesto, parceiro de Almir Guineto em sambas como
“Papel Principal” e “Pedi ao Céu”, também acumularia duas carreiras: a de compositor
e de policial. Policial também seriam o compositor portelense Antônio Candeia e o
mangueirense Nelson Cavaquinho – este, dizem, nunca prendeu ninguém. Wilson
Moreira, o parceiro mais constante de Nei Lopes, aposentou-se como carcereiro. O
chorão Jacob do Bandolim foi escrivão de polícia até falecer e foi quem aconselhou o
violonista César Faria a fazer concurso para a Justiça do Estado.
E há os que ganham “fama jurídica” sem razão, como Delegado, o lendário mestre-sala
da Mangueira, que nunca exerceu tal profissão...
Até Ismael Silva, ícone da Lapa e da malandragem dos anos 30, que se orgulhava de
nunca ter tido um emprego fixo, teve uma rápida passagem pelo Judiciário:
“ (...) sabe-se que trabalhou na Central, como chefe de turma da segurança interna, e foi
auxiliar em um escritório de advocacia. Serviços leves e temporários, pois foi dura sua
permanência neles.”1
Em nossa metodologia, utilizamos uma bibliografia jurídico-musical. As músicas
analisadas nasceram da memória da autora e da sugestão de amigos, devidamente
creditados nos “agradecimentos”. As letras foram conferidas no acervo discográfico da
autora ou em sítios confiáveis, também creditados na Bibliografia.
Tendo em vista o viés repressivo que, em diferentes momentos, permeou o Poder
Público brasileiro, verificamos que grande número de sambas abordam a repressão
policial e/ou de Estado. Assim, a fim de equilibrar a abordagem, estas músicas constarão
de um item próprio, o 1. Na parte 2, incidirão temas variados do Direito.
A fim de agilizar o trabalho, colocamos as letras por inteiro apenas quando fosse
indispensável para a compreensão da idéia. Caso contrário, pinçamos trechos e deixamos
a letra inteira para o Anexo da pesquisa.
Finalmente, informamos que o título deste trabalho foi inspirado na letra da música
“Quem dá mais?”, de Noel Rosa, que contém os versos “Quem dá mais?/Por um samba
feito nas regras da arte (...)”.
1. – Batuques e bordoadas: o Judiciário, o samba e a
repressão
É controverso qual teria sido o primeiro samba gravado. O ineditismo de “Pelo
Telefone”2 sempre foi questionado. Certo é que a composição registrada em 27 de
novembro de 1916 pelo compositor Ernesto dos Santos, o Donga, foi o grande sucesso
do Carnaval de 1917.3 Pois essa pioneira música já faz referência, e pouco elogiosa, a
uma carreira jurídica – a de delegado. Aliás, o chefe de polícia citado na música "Pelo
Telefone" existiu, chamava se Aurelino Leal e hoje é nome de uma rua na Ilha do
Governador. “ (...) o refrão (...) aludia à enérgica perseguição ao jogo que então se
anunciava na gestão de Aurelino Leal na chefatura de polícia (...)”.4 Podemos ver nos
versos tanto uma alusão à enérgica ação de Aurelino quanto a uma eventual propina.
Sim, porque era comum que um policial ou delegado, por dinheiro ou amizade ao dono
de um estabelecimento, telefonasse avisando sobre iminentes operações policiais no
local.

•“Pelo Telefone” (Donga etc.)

“O Chefe da Polícia pelo telefone mandou me avisar

Que na Carioca tem uma roleta para se jogar (...)”

Essa é uma das várias letras que “Pelo Telefone” ganhou. A gravada pelo cantor Baiano,
sucesso no Carnaval de 1917, ganharia um início diferente – segundo Brasil Gérson,
feito pelo repórter Mauro do Carmo:

•“Pelo Telefone” (outra versão)

“O chefe da folia pelo telefone mandou me avisar

que com alegria não se questione para se brincar (...)”

Aqui, nesta segunda letra, a autoridade é vista sob um outro prisma, tão negativo quanto
o da corrupção: o da repressão à música de rua. É certo que, o samba e o carnaval
carioca, obras inicialmente de pobres - negros e mulatos em sua maioria, malandros ou
trabalhadores - seriam duramente perseguidos pelo Judiciário. O próprio Donga diria, em
depoimento gravado ao Museu da Imagem e do Som:

“(...) essa situação [a perseguição da polícia] era uma coisa horrível e eles insistiam
para que eu criasse a música. Bem, motivo não faltava (...) Fiz o negócio pelo instinto e
pelo grupo, porque o Hilário era um sujeito muito sensato e dizia que nós tínhamos que
mostrar àquela gente que o samba não era aquilo que eles pensavam. Nós dávamos um
samba e de repente éramos intimados para ir à Delegacia. Você já pensou? Eu tinha
minha revolta (...)” 5
Também em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, o compositor João da Baiana
travaria o seguinte diálogo com os pesquisadores da entidade:

“MIS – Você já foi preso alguma vez por fazer samba?

- Então não fui? Sim, fui preso várias vezes por tocar pandeiro. Tenho algumas
fotografias em casa, inclusive uma quando eu estava dentro do xadrez com um pandeiro.
Eles não prendiam para corrigir. Como o caso das calças bombachas, proibidas pelo
falecida Meira Lima – o pai – quando titular da 2ª Delegacia. Ele não queria que nós
andássemos de calças bombachas. Cortava todas elas.” 6

João da Baiana abordaria a polícia carioca em pelo menos três composições. Uma é
“Batuque na Cozinha”: (“seu delegado foi dizendo com altivez/é da casa de cômodos da
tal Inês? Revista os dois, bota no xadrez/Malandro comigo não tem vez”). Outra, a
pouco conhecida “Malandro Pasteleiro”, que tem um diálogo entre o dono de um
estabelecimento, o faminto que almoçou sem ter dinheiro para pagar e um guarda (“Oh,
seu guarda, não me prende/Pois eu estou com a razão/Se eu pedisse antes fiado/Não me
davam a refeição...”) Uma terceira é “Quando a Polícia Chegar”, cantada por
Clementina de Jesus e regravada por Cristina Buarque. Esta composição,
surpreendentemente, traz o ponto de vista da mulher, que teme que a Polícia leve como
vagabundo o homem que “hoje está desempregado, não me dá porque não tem (...)”. As
três músicas podem ser ouvidas no disco “O Samba é Minha Nobreza”, com vários
intérpretes, lançado em 2002 .

É certo, afinal, que estudar o samba e as escolas de samba é conhecer a perseguição


oficial a essas manifestações. Em “São Ismael do Estácio”, biografia do compositor
Ismael Silva, lemos sobre a criação da primeira escola de samba do Rio – a “Deixa
Falar”, futura Estácio de Sá. Então ficamos sabendo que

“À medida que os blocos foram se estruturando, ficou decidido que deveriam ser
registrados na polícia, necessitando de autorização para desfilar. Aproveitando a
oportunidade, as autoridades passaram a interferir em sua organização e uma das
primeiras imposições foi a de introduzir alterações na linguagem dos sambas: era
proibido falar em malandragem e fazer apologia da vadiagem.”

O próprio Ismael – fundador da pioneira escola, ao lado de Alcebíades Barcelos (Bide),


Nílton Bastos e Edgar Marcelino dos Santos (Edgarzinho) diria um de seus motivos ao
fundar a escola era a de criar um espaço onde o povo pudesse cantar, dançar e brincar à
vontade, sem apanhar da polícia.

A pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz, em seu artigo “Escolas de samba do


Rio de Janeiro ou a domesticação da massa urbana”, noticia, ao falar do início do
carnaval de rua carioca, em 1856:

“(...) durante um século, somente as pessoas mais ou menos abastadas tinham o direito
pleno de se exibir nas ruas durante o reinado de Momo (...) Grupos de vizinhanças
pouco abastados que habitavam os morros ou a periferia não podiam nem mesmo se
reunir numa esquina no período carnavalesco sem desenvolver imediatamente a
perseguição da polícia (...)”7

Mesmo os organizados e comportados ranchos não passaram incólume à repressão


policial. O Senador Alfredo Ellis tudo fez, no ano de 1926, para encerrar as atividades do
lendário rancho Ameno Resedá.

Uma visão sociológica desse momento nos é dada pelo pesquisador José Ramos
Tinhorão. Ao comentar o nascimento do Carnaval de rua carioca e seus entreveros com a
Polícia, afirma que

“A desorganização dos grupos e cordões – tão perseguidos por indesejáveis e


turbulentos – representava, porém, o sinal mais evidente de um momento sociológico
que os contemporâneos ainda não eram capazes de distinguir. No seu individualismo
feroz – a despeito do ajuntamento em ‘blocos’ – esses grupamentos anárquicos de
fantasiados traduziam, de maneira mais perfeita, a verdadeira sacudidela urbana
sofrida pelas populações humildes do centro da cidade, quando das ‘grandes obras’” 8

A figura do delegado, denominado em “Pelo Telefone” como o Chefe da Polícia, é figura


recorrente nos sambas - na mesma medida em que era comum a repressão policial sobre
os sambistas. O compositor Antônio Candeia nos conta que os compositores da Escola
de Samba Portela procuravam andar bem-arrumados, “de pés e pescoços ocupados”,
como exortava o líder Paulo da Portela. Paulo queria, assim, disseminar o uso diário de
sapatos e gravatas pelos músicos, além de terno, chapéu e anel de prata com as iniciais
de seus nomes. O objetivo era

“(...) moralizar o que faziam, ou seja, mostrar à polícia – que considerava os elementos
ligados ao samba como malandros – que eles apesar de sambistas eram homens de bem,
que apenas gostavam de cantar e compor seus sambas (...) O fato pode ser considerado
altamente significativo em uma época difícil de se conquistar e superar os preconceitos
enraizados.”9

Candeia é um dos maiores compositores do Brasil. Mas o autor de obras-primas como


“Preciso me Encontrar”, “Pintura sem Arte” e “Dia de Graça” foi, segundo muitos, um
policial truculento. Este comportamento foi diretamente responsável por uma tragédia:
numa batida de carros, Candeia saiu do veículo atirando nos pneus do caminhão
envolvido. O revide do motorista o deixaria numa cadeira de rodas até o fim da vida.

Fato conhecido, bem mais leve, se deu numa sinuca do Catete: Candeia, fazendo a ronda
rotineira, exigiu os documentos de dois jovens, Paulo César e Moisés. Após examinar os
papéis, liberou-os e continuou a ronda. “Um dia [na quadra da Portela] Paulo César
lembraria o episódio a Candeia, deixando-o lívido, sem fala”, nos conta João
Máximo10. Para vergonha ainda maior do policial, o compositor Casquinha saiu
gritando pela quadra da Escola: “Pessoal, pessoal, o Careca arrochou o Paulinho na
sinuca!”.
O fato, de qualquer forma, não teria maiores conseqüências. Candeia e o futuro Paulinho
da Viola seriam grandes amigos.

O samba que listamos abaixo foi gravado pelo contemporâneo Zeca Pagodinho. Muita
gente ficou curiosa para saber se o Delegado Chico Palha da letra realmente existiu. É
certo que, sendo a composição de 1938, pertence ainda a uma época em que a
perseguição ao samba, inseparável da repressão aos cultos afro-brasileiros:

“Delegado Chico Palha” (Nilton Campolino/Tio Hélio) “Delegado Chico Palha, sem alma
sem coração Não quer samba nem curimba na sua jurisdição Ele não prendia, só batia, ele
não prendia, só batia (refrão) Era um homem muito forte, com um gênio violento Acabava
a festa a pau e ainda quebrava os instrumentos Os malandros da Portela da Serrinha e da
Congonha Pra ele eram vagabundos e as mulheres sem-vergonhas A curimba ganhou
terreiro, o samba ganhou escola Ele expulso da Políca vivia pedindo esmola”

Curimba é candomblé. O pesquisador Edigar de Alencar, quando conta que o compositor


Sinhô era adepto do candomblé e freqüentador assíduo dessas reuniões, admite que

“essas reuniões, embora freqüentes, não contavam com as simpatias das autoridades, dada a
confusão que, de quando em quando, geravam [?]. Por vezes se realizavam na moita,
clandestinamente (...)”11

Se não é de nosso conhecimento que Chico Palha tenha existido, é verdade que “Olha o
Padilha!” foi inspirada num delegado de carne e osso: o truculento Deraldo Padilha. Veja o
que conta o jornalista Antônio Augusto em “O Último dos Malandros", biografia de
Moreira da Silva:

“Cruel perseguidor de malandros, o delegado já tinha entrado para o anedotário da época e


vivia nas páginas dos jornais. Violento e moralizador, não podia encontrar um malandro de
cabelo grande. Parava o sujeito e o mandava raspar a cabeça. Não gostava também de ver
homem vestindo calça de boquinha estreira. Quando encontrava um, pegava um limão,
jogava dentro da calça do sujeito e aguardava. Se a fruta ficasse presa na bainha, ele
rapidamente pegava uma tesoura e cortava a barra da calça. Picotava a bainha até o limão
passar.” 12

“Olha o Padilha!” (Ferreira Gomes/Bruno Gomes/Moreira da Silva)

“Pra se topar uma encrenca


basta andar distraído
que ela um dia aparece
(breque) não adianta fazer prece
eu vinha anteontem lá da gafieira
com minha nega Cecília
(breque) quando gritaram: "Olha o Padilha!"
Antes que eu me desguiasse
um tira forte aborrecido me abotoou
e disse: "Tu és o Nonô, hein?"
Mas eu me chamo Francisco
trabalho como mouro, sou estivador
(breque) posso provar ao senhor.
Nisso o moço de óculos raibã
me deu um pescoção,
(breque) bati com a cara no chão
e foi dizendo:
"Eu só queria saber
quem disse que és trabalhador
tu és salafra, achacador
Essa macaca ao teu lado
é uma mina mais forte que o Banco do Brasil
(breque) eu manjo ao longe esse tiziu"
E jogou uma melancia pela minha calça adentro
que engasgou no funil
(breque) eu bambeei, ele sorriu
Apanhou uma tesoura e o resultado
dessa operação
(breque) é que a calça virou calção
na chefatura um barbeiro sorridente
estava à minha espera.
(breque) ele ordenou: "Raspa o cabelo desta fera!"
“Não está direito, seu Padilha
me deixar com o coco raspado
(breque) eu já apanhei um resfriado...”
Isso não é brincadeira
pois meu apelido era Chico Cabeleira
(breque) não volto mais à gafieira
ele quer ver minha caveira.
(breque) Eu, hein? Se eu não me desguio a tempo ele me raspa até as axilas. O homem é de
morte!”

É certo que Moreira ainda reencontraria em sua frente um delegado tão cruel quanto o
Padilha. Mas não sofreu diretamente as conseqüências. A história é a seguinte: Moreira da
Silva e Jards Macalé excursionavam pelo país através do “Projeto Pixinguinha”, promovido
pela Funarte. Em Vitória, Espírito Santo, um delegado do temido Departamento de Ordem
Pública e Social – DOPS implicou com duas músicas do show: as marchinhas “Casca de
Ovo” e “Sim ou não?”.13 Resultado: Jards acordaria na manhã seguinte à apresentação
com policiais em seu quarto. Moreira, em solidariedade ao amigo, também seguiria no
camburão, e cantando, pois um dos policiais era seu fã. Porém, o delegado não ouviria seus
argumentos. Mal-humorado, ordenaria a um auxiliar apontando o míope Macalé: "Tira o
óculos e recolhe o homem!".

O cantor ficaria preso nove horas e, tempos depois, comporia com Moreira o samba
homônimo, cheio de breques (pausas faladas), bem ao estilo “Kid Morengueira”:
“Tira os óculos e recolhe o homem” (Jards Macalé/Moreira da Silva).

“Estava deitado no meu apartamento


Dormindo tranqüilamente
Entregue aos braços de Morfeu
Quando chegou um fariseu...
Um só não, eram uns dez ou vinte, espadaúdos
Homens que davam a impressão
De terreno de dez de frente
Por vinte e quatro de fundos
Que foi dizendo: “levanta que está na hora
A hora é esta, vamo logo, sem demora”
Fiquei atônito e liguei pra Morengueira
Que estava hospedado naquele mesmo hotel
E fui dizendo: “ó Kid, venha cá!
O homem quer me conversar!”
Eu vou cumprir com meu papel
É seu destino, está escrito lá no céu...
A esta altura, pobre do meu coração:
Lá embaixo me esperava, de porta aberta, um camburão
E lá fui eu, com meu irmão Moreira
Fomos cantando, levando na brincadeira...
Em lá chegando, já na delegacia
Fomos adentrando, pensando estar tudo bem
Mas o delegado estava de mau-humor
Senti na sua fala logo aquele horror
Não entendendo, não era bem isso que eu queria
Ao invés de uma quente, fui entrando numa fria
Quis apelar para o bom-senso do delegado
Ele não atendeu: “- Você vai ser é enquadrado:
Retira os óculos, recolhe o homem
Fecha o cadeado, incomunicabilidade com ele!
Ficha e tira o retratinho, dezoito por vinte e quatro
Data e bota o número embaixo...”
Me recolheram e era um cadafalso
Meu quartinho parecia um protótipo
De um conjugado water-closed: quelque chose!
Apelei pelo Moreira, minhas mães, meus orixás
De frente veio Ogum, com ele Oxóssi e Oxalá
Vieram os três pra nos salvar
Não sou vidente, mas senti algo bem normal
Eram meus protetores que já estavam junto a mim
Lá pelas tantas abriram o cadeado
Fui levado para baixo, já lá estava o advogado que diz:
“Vamos embora que este ar está empesteado
Vamos pegar a ecologia lá fora...
Tudo verdinho, tudo bem!”
Saí do carceragem, fui direto pro trabalho
Sustentar minha família e comprar meu agasalho
Encontrei Moreira, toda turma me abraçou
E cantamos tudo aquilo que a história não contou
E tá contada a minha história
Que a maioria não viu
Fiz um minuto de silêncio
Todo o povo me aplaudiu
Modéstia à parte, sou um homem inocente!
Quero que este delegado...”

Tempos sombrios, os anos 70. Que se iniciam com Geraldo Vandré em Paris e Caetano
Veloso e Gilberto Gil em Londres, após sérios problemas com o governo militar.

“O músico popular era tido como um marginal, um elemento de alta periculosidade cuja
produção passava obrigatoriamente pelo crivo da Polícia Federal, que determinava se podia
ou não ser divulgada.” 14

Chegaremos agora a um segundo momento da repressão, ocasionado pelo golpe militar de


1964. No qual Chico Buarque foi, talvez, o compositor mais censurado, em número de
letras. Não espanta que tenha usado pseudônimo para registrar “Acorda Amor”, em 1974.
Foi graças a “Julinho de Adelaide” que o compositor lançaria não só essa canção como
“Milagre Brasileiro” e “Jorge Maravilha”, a da estrofe “Você não gosta de mim/Mas sua
filha gosta”15. Quatro anos antes, num descuido da censura, o samba “Apesar de Você”
passaria no crivo dos militares. Mal começara a fazer sucesso e o disco foi apreendido.
“Proibiram uma coisa que já tinha sido liberada. O censor que deixou passar foi
punido”16.

O personagem da música “Acorda Amor” sonha que está sendo preso mas o sonho é a triste
realidade: são mesmo “os homens” em sua casa. A prisão política é evidenciada pelo fato
de a esposa não ser formalmente avisada da prisão do marido, nem de sua eventual morte. E
pela recomendação na última estrofe: “Dia desses chega a sua hora/Não discuta à toa, não
reclame.”

Acorda Amor (Leonel Paiva - Julinho da Adelaide/1974)

“Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição

Era a dura, numa muito escura viatura


Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição

São os homens e eu aqui parado de pijama


Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame

Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer


Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer

Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
Não esqueça a escova, o sabonete e o violão”

Por volta do dia 20 de dezembro de 1968, poucos dias depois do famigerado AI-5, Chico,
como Jards Macalé anos depois, acordaria com a polícia no quarto. Era o início de um dos
piores dias de sua vida: ele passaria esse dia sendo interrogado, passando pelas salas de
diversos generais. Saiu de lá com a ordem de não sair do Rio. Correu a avisar o amigo
Gilberto Gil que os militares perguntariam por ele.

Por falar em Gil, o baiano, em disco com o sambista paulista Germano Mathias, gravaria
“Senhor Delegado”. É a defesa do (aparentemente) ex-malandro diante das autoridades da
lei.

“Senhor Delegado” (Antoninho Lopez, Jaú)

“Senhor delegado
seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro doutor
hoje estou regenerado
Os meus documentos
eu esqueci mas foi por distração
comigo não
Sou rapaz honesto trabalhador
Veja só minha mão
Sou tecelão
Se vivo alinhado
é porque gosto de andar na moda
Pois é
Se piso macio
é porque tenho calo que me incomoda
na ponta do pé
Se o senhor me prender
vai cometer uma grande injustiça
Amanhã é domingo
Preciso levar minha patroa à missa
Na Lapa
Amanhã é domingo
Preciso levar minha patroa à missa
Na Penha“

Quem pensa que a Censura é algo morto e enterrado se engana. Recentemente, o


compositor e cantor Bezerra da Silva teve uma música censurada pelas rádios. Elas se
recusaram a tocar, em plena CPI do Narcotráfico, o samba “Se Leonardo dá vinte...” Por
que só agora censurar conhecido por abordar, quase sempre com humor, a questão das
drogas e da criminalidade? Afinal, sua obra, além do sucesso "Malandragem Dá um
Tempo", tem títulos como “Defunto Cagüete", "Overdose de Cocada", "Pai Véio 171",
"Candidato Caô Caô" e “Tem Coca Aí na Geladeira?”... Talvez a resposta esteja no clima, à
época, da CPI do Narcotráfico. Talvez no fato de que “Se Leonardo dá 20 ...” faz referência
ao fato de que o cidadão menos favorecido pego com drogas, quase sempre, é indiciado
como traficante. Enquanto isso, o jovem de classe média ou alta, na maior parte das vezes,
consegue a desclassificação do crime para uso.

“Se Leonardo dá Vinte...” (Bezerra da Silva/Walter Coragem/G. Martins)

“Se Leonardo dá vinte


Por que é que eu não posso dar dois?
Mesmo apertando na encolha, malandro
Pinta sujeira depois

Levei um bote perfeito


Com um baseado aceso na mão
Tomei um sacode regado a tapa
Pontapé e pescoção
Eu fui levado direto à presença do doutor delegado
Ele foi logo gritando: "Vai se abrindo, malandro
E me conta tudo como foi."
Eu respondi: "Se Leonardo dá vinte, doutor
Por que é que eu não posso dar dois?"

"Leonardo é Leonardo", me disse o doutor.


“Ele faz o que bem quer, está tudo bem
Infelizmente é que, na lei dos homens
A gente vale o que é e somente o que tem
Ele tem imunidade para dar quantos quiser
Porque é rico, poderoso e não perde a pose
E você que é pobre, favelado
Só deu dois, vai ficar grampeado no doze!”17

Bezerra da Silva canta outro samba que serve de lição ao tratamento diferenciado entre
pobres e ricos no mundo do Direito. É “Se Liga, Doutor”, que ao final faz referência a um
esquecido político brasileiro:

“Se Liga, Doutor” (Batatinha/Marquinho Capricho)

“Eu assino embaixo, dotô


Por minha rapaziada
Somos crioulos do morro
Mas ninguém roubou nada
Isso é preconceito de cor
Por que é que o dotô não prende aquele careta
Que só faz mutreta e só anda de terno
Porém o seu nome não vai pro caderno
Ele anda na rua de pomba rolou
A lei só é implacável pra nós, favelados
E protege o golpista
Ele tinha que ser o primeiro da lista
Se liga nessa, dotô
Vê se dá um refresco
Isto não é pretexto para mostrar serviço
Eu assumo o compromisso
Pago até a fiança da rapaziada
Por que é que ninguém mete o grampo
No pulso daquele colarinho branco?
Roubou jóias no morro de Serra Pelada
Somente o dotô que não sabe de nada!”

Engana-se quem pensa que retratar drogas em letras de música é privilégio dos dias atuais.
A cocaína, por exemplo há mais de cem anos habita o país. Sintetizada no final do século
XIX, integrou a composição de anestésicos, analgésicos, refrigerantes e diversos outros
produtos. Nos primeiros vinte anos do século XX seu uso era visto com liberalidade, tanto
que Chiquinha Gonzaga comporia a marchinha “A Cocaína”. “A Cocaína” também era o
nome de um tango do compositor Sinhô, o “Rei do Samba”. Os versos de Sinhô, cantados
por Celeste Reis em 1923, diziam no refrão: “Ai, ai, és a gota orvalina/Só tu és minha
vida/Só tu, ó cocaína”. Este tango, aliás, foi regravado em 2001 pela cantora portuguesa
Eugênia Mello e Castro.

Fato é que, embora o Código de 1890 vagamente proibisse a venda de “substâncias


venenosas”,

“Tal dispositivo, porém, isolado, foi insuficiente para combater a onda de toxicomania que
invadiu nosso país após 1914, sendo que em São Paulo chegou a formar-se, à semelhança
de Paris, um século antes, um clube de toxicômanos”18

Curiosamente, o grupo de rock “Barão Vermelho” regravou recentemente o sucesso


“Malandragem Dá um Tempo”, de Bezerra da Silva. Sem problemas com a lei.

“Malandragem dá um tempo” (Adelzonilton/Popular P./Moacyr Bombeiro)

“Vou apertar
Mas não vou acender agora
Vou apertar
Mas não vou acender agora

Se segura malandro
Pra fazer a cabeça tem hora (refrão)
É, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles a fim de entregar os irmãos

Ô malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
E é por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora

(refrão)

É que o dois oito um foi afastado


O dezesseis e o doze no lugar ficou19
E uma muvuca de espertos demais
Deu mole e o bicho pegou

Quando os homens da lei grampeiam


O coro come a toda hora
E é por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora

(refrão)”

A diferença de tratamento entre ricos e pobres já havia sido retratada há tempos, e também
com humor, por Geraldo Pereira. Repare no final da letra que se segue:

“Cabritada Mal-sucedida” (Geraldo Pereira/José Gebara/Jorge Gebara)

“Bento fez anos e para almoçar me convidou


Me disse que ia matar um cabrito, onde tem cabrito eu tô
E quando comes-e-bebes começou
No melhor da cabritada a polícia e o dono do bicho chegou
Puseram a gente sem culpa no carro da rádio-patrulha e levaram
Levaram também o cabrito e toda a bebida que tinha quebraram
Seu Comissário, zangado, não estava querendo ninguém dispensar
O patrão da Sebastiana é que foi ao distrito e mandou me soltar...”

Bento aproveitou o couro desse cabrito para fazer tambor. Ou então reincidiu no crime, pois
Geraldo Pereira citaria o indivíduo novamente em “Polícia no Morro”. Esta música traça
um perfil nada lisonjeiro da figura do delegado. Em represália ao furto do cabrito, o (então
denominado) “comissário” comete um abuso de autoridade: ameaça o desfile da escola de
samba:

“Polícia no Morro” (Geraldo Pereira, 1951)

“Polícia tá no morro
Atrás do cabrito do doutor
Que o Bento matou e fez tambor
O comissário mandou dizer
Que a escola só sai
Se o cabrito aparecer
Fez ver à diretoria
Que toma a bateria
Encana o pessoal
Termina com a sujeira
Toma o apito e a bandeira
Acaba com o carnaval”

Nem sempre o delegado aparece em letras de samba como uma figura truculenta. O
delegado de “Juca” talvez tenha razão em prender o personagem-título; talvez a serenata
estivesse sendo cantada em voz alta demais...

“Juca” (Chico Buarque/1965)


“Juca foi autuado em flagrante
Como meliante
Pois sambava bem diante
Da janela de Maria
Bem no meio da alegria
A noite virou dia
O seu luar de prata
Virou chuva fria
A sua serenata
Não acordou Maria

Juca ficou desapontado


Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa
O delegado é bamba na delegacia

Mas nunca fez samba, nunca viu Maria...”

A Polícia – então montada, hoje raridade – também parece correta ao prender a Nega Luzia.
Se bem que, caso confirmados seus problemas mentais, ela poderia ser classificada como
inimputável:

“Nega Luzia” (Wilson Batista/Jorge de Castro)

“Lá vem a Nega Luzia no meio da cavalaria,


Lá vem a Nega Luzia no meio da cavalaria
Vai correr lista lá na vizinhança
Pra pagar mais uma fiança
Foi cangebrina demais
Lá no xadrez ninguém vai dormir em paz
Vou contar pra vocês
O que a nega fez
Era de madrugada, todos dormiam
O silêncio foi quebrado por um grito de socorro
A nega recebeu o Nero e queria botar fogo no morro
A nega recebeu o Nero e queria botar fogo no morro...”

Aqui, na música “Conflito”, do jovem sambista paulistano Tadeu Kaçula, o delegado


assume as vezes de confidente, recebendo as reclamações do marido. As frases entre
parêntesis indicam um breque:
“Conflito” (T. Kaçula/André Pantera)

“Seu delegado, por favor, me ouça


tenho uma queixa e quero apresentar
(essa mulher é de amargar!)
me deixa atribulado
de cabelo arrepiado de tanto aprontar
(um ti-ti-ti, um bafafá)
é sempre a mesma cena
ciúme da morena do cafofo ao lado
três dias que eu não durmo com o bololô formado
por favor, seu delegado, eu quero separar...(...)”

Um delegado pró-músicos é mencionado pelo compositor Juvenal Lopes numa entrevista


dada ao Jornal do Brasil, em 1980. O trecho é citado pelo escritor e compositor Nei Lopes:

“(...) Mas nós éramos muito perseguidos pela polícia. Chegavam no Estácio, a gente corria
para a Mangueira, porque lá havia o Nascimento, delegado que dava cobertura e a gente
sambava mais à vontade.” 20

Alguns dos laços estreitos entre sambistas e a polícia são descritos por Monique Augras no
primeiro capítulo de “O Brasil do Samba-Enredo”. Por exemplo, a lendária Tia Ciata, em
cuja casa o samba carioca deu seus primeiros passos,

“(...) era esposa de João Batista da Silva, negro baiano que conseguira ‘posto privilegiado
de baixo escalão no gabinete do chefe de polícia’ (Moura, 1983:64), isso no governo de
Venceslau Brás. Essa posição de destaque haveria por certo de facilitar a proteção aos
sambistas, de início muito malvistos pelos poderes públicos.”21

Na música brasileira há espaço até para o delegado sensível. O da belíssima “Comprimido”,


recentemente regravada por Teresa Cristina, inicialmente se mostra neutro diante das brigas
de certo casal, mas, ao final, fica intrigado com um detalhe:

“Comprimido” (Paulinho da Viola)

“Deixou a marca dos dentes dela no braço


Pra depois mostrar pro delegado
Se acaso ela for se queixar da surra que levou
Por causa de um ciúme incontrolado
Ele andava tristonho, guardando um segredo
Chegava e saía, comer não comia
E só bebia, cadê a paz?
Tanto que deu pra pensar
Que poderia haver outro amor na vida do nego
Pra desassossego e nada mais
Seu delegado ouviu e dispensou
Ninguém pode julgar coisas de amor
O povo ficou intrigado com o acontecido
Cada qual tendo a sua opinião
Ela acendeu muita vela, pediu proteção, o tempo passou
E ninguém descobriu como foi que ele se transformou
Uma noite, noite de samba, noite comum de novela
Ele chegou pedindo um copo d´água pra tomar um comprimido
Depois cambaleando foi pro quarto e se deitou
Era tarde demais quando ela percebeu que ele se envenenou
Seu delegado ouviu e mandou anotar
Sabendo que há coisas que ele não pode julgar
Só ficou intrigado quando ela falou
Que ele tinha a mania de ouvir sem parar
Um samba do Chico falando das coisas do dia-a-dia”22 (bis)

2. Miscelânea – de Rousseau a Adoniran

Chico Brito” (Wilson Batista/Afonso Teixeira)

“Lá vem o Chico Brito


Descendo o morro nas mãos do Peçanha23
É mais um processo
Mais uma façanha
O Chico Brito fez do baralho
Seu melhor esporte
É o valente do morro
Dizem que fuma uma erva do Norte

Quando menino foi à escola


Era aplicado, tinha religião
Quando jogava bola era sempre escolhido para capitão
Mas a vida tem os seus revezes
Dizia o Chico defendendo teses

Se o homem nasceu bom


E bom não se conservou
A culpa é da sociedade
Que o transformou”

Qual mistério de “Chico Brito”? Não o personagem, mas a música? Sucesso na voz de
Dircinha Batista em outubro de 1950, seria regravada por Paulinho da Viola e,
surpreendentemente, pelo roqueiro Lulu Santos. É um clássico, amado por qualquer
conhecedor de samba. O fato de ter sido uma das primeiras músicas a falar de maconha – a
“erva do Norte” – não nos parece suficiente. Afinal, segundo apurou Ruy Castro,
“comprava-se maconha quase abertamente na Lapa em 1951”24. Ousamos afirmar que o
que fascina na letra de “Chico Brito” são suas claras implicações rousseaunianas. Wilson
Batista, um “fotógrafo” da realidade da época, opõe-se ao lombrosianismo até então vigente
no Direito Brasileiro. Que contou com ecos pátrios, vide a obra do médico maranhense
Nina Rodrigues, que afirmava ser impossível, a um ex-escravo, um convívio normal
perante a sociedade.

Essa visão da sociedade como a responsável pela transformação do caráter também está
presente num samba contemporâneo (1983) de Elton Medeiros, regravado recentemente por
Eduardo Gallotti:

“Unha de Gato” (Elton Medeiros)

“Benedito Pereira era um homem comum


Era pobre, dinheiro não tinha nenhum
Era um pobre coitado, apenas mais um
Morador lá do morro
Se amarrava num samba, e sem nenhum favor
Era forte nas rimas sofridas do amor
Não fazia arruaça, era até boa-praça e trabalhador
Todo dia descia num trem da Central carregando marmita
Embrulhada em jornal
No domingo era visto em pé, na geral, lá do Maracanã
Mas num papo de esquina ele foi apanhado sem os documentos
Passou muito tempo entre maus elementos
E o que ele aprendeu não preciso contar...
Hoje ele mudou
Já não é aquele sujeito pacato
É mais conhecido por Unha de Gato
Pro morro voltou, é mais um marginal...”

A violência contra a mulher também foi retratada em letras de samba. O excelente CD


duplo “O Samba é Minha Nobreza” tem um set dedicado a esse odioso crime. Destacamos
duas músicas; a primeira é “Marido da Orgia”. Nela vemos irromper a figura do advogado,
a orientar a esposa maltratada. A fala do advogado repete o machismo da sociedade: ele
reconhece o direito da esposa porque ela é “uma mulher que se dá ao respeito”. Ou seja, se
não fosse, estariam validadas as lesões corporais dolosas... O Direito Brasileiro referenda
essa crença: até hoje nossa legislação usa a expressão “mulher honesta”, por exemplo. E,
até bem pouco tempo, nossos juristas discutiam se a prostituta poderia ser vítima do crime
de estupro (!).

“Marido da Orgia” (Ciro de Souza)

“Você não deve me tratar assim


Porque eu não tô acostumada e posso até achar ruim
Você só chega em casa alta madrugada
E se por acaso e não tô acordada
Você fica enfezado e quer me dar pancada (bis)
Eu já procurei e consultei o meu advogado
E ele me falou: “O caso é encrencado,
marido da orgia não tem o direito
de bater numa mulher que se dá ao respeito...”
Você abusou da sua autoridade
E eu não tô disposta a tanta maldade...”

Esta segunda música é uma composição menos conhecida do mangueirense Cartola. A


mulher, inconformada com a violência do marido, afirma que recorrerá à Polícia.

“Vou contar tintim por tintim” (Cartola)

“Fui tão maltratada


Foi tanta pancada
Que ele me deu...
Estou toda doída, estou toda ferida
Ninguém me socorreu
Ninguém lá em casa apareceu
Eu vou ao distrito, está mais do que dito
Isto não fica assim (...)”

A seguir, veremos as letras de “Habeas Corpus” e “Senhora Liberdade”. Juntamente com


“Errei, Erramos”, que estudaremos mais adiante, compõem o trio de ouro das metáforas
forenses para as dores de amores:

“Habeas Corpus” (Orestes Barbosa/Noel Rosa)

“No tribunal da minha consciência,


O teu crime não tem apelação.
Debalde tu alegas inocência,
Mas não mereces absolvição.
Os autos do processo da agonia
Que me causaste, em troca ao bem que eu fiz,
Correram lá naquela Pretoria
Na qual o coração foi o juiz.
Tu tens as agravantes da surpresa,
E também as da premeditação.
Mas na minh'alma tu não ficas presa,
Porque o teu caso é de expulsão.
No exílio vais pagar a crueldade
Com que desabafaste o teu furor.
Talvez o habeas-corpus da saudade
Consinta o teu regresso ao meu amor.”

Orestes Barbosa e Noel Rosa prevêem como única forma de retorno à amada o “habeas
corpus da saudade”. Que recurso seria esse? Bem, juridicamente o habeas corpus não é um
recurso, embora pareça. É uma medida prevista na Constituição que visa a assegurar a
liberdade de locomoção de uma pessoa, por ilegalidade ou abuso de poder. Geralmente é
usado por quem teve prisão decretada ou já está preso por tempo maior que o previsto em
lei.
Vale observar que o procedimento de expulsão citado na música, hoje, só se aplica a
estrangeiros que tenham entrado ilegalmente no país. E a pena de banimento – que faria
com que a amada “no exílio pagasse a crueldade” não mais existe. Reza a Constituição
Federal:

“Art. 5º, XLVII – não haverá penas:

(...)

d) de banimento

(...)” 25

A dupla Orestes Barbosa/Noel Rosa fala das agravantes de surpresa e premeditação.


Estariam elas abarcadas pelo Direito? Na verdade, embora tais termos não constem do rol
do artigo 61, podem ser englobadas na alínea “c” do inciso II:

“Artigo 61: são circunstâncias que sempre agravam a pena (...)

II – ter o agente cometido o crime:

c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou


tornou impossível a defesa do ofendido”

Embora os compositores não tenham listado, é possível que sobre o crime praticado pela
moça incidisse a agravante da alínea e:

“(...)

e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; (...)”

Senhora Liberdade” (Nei Lopes/Wilson Moreira)

“Abre as asas sobre mim


Ó, senhora liberdade
Eu fui condenado
Sem merecimento
Por um sentimento
Por uma paixão
Violenta emoção, pois
Amar foi meu delito
Mas foi um sonho tão bonito
Hoje estou no fim, senhora liberdade,
Abre as asas sobre mim...
Hoje estou no fim, senhora liberdade,
Abre as asas sobre mim.
Não vou passar por inocente,
Mas já sofri terrivelmente
Por caridade, ó liberdade
Abre as asas sobre mim
Por caridade, ó liberdade
Abre as asas sobre mim...”

“Senhora Liberdade” é uma das mais conhecidas parcerias entre Nei Lopes e Wilson
Moreira. Que, como já vimos, foram, respectivamente, carcereiro e advogado. O leigo
certamente entenderá a belíssima letra em que o eu lírico pede a libertação das grades de
um grande amor que o faz sofrer. O que nem sempre o não-profissional do Direito sabe é
que a “violenta emoção” que o “réu” alega em seu benefício é mesmo uma circunstância
atenuante no Direito Brasileiro. Diz o Código Penal Brasileiro, no artigo 65:

“São circunstâncias atenuantes:

(...)

III – ter o agente:

(...)

c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de


autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da
vítima; (... )”

Assim, embora a emoção e a paixão no ato do crime não excluam a culpabilidade, têm o
poder de diminuir a pena.

A canção abaixo também é de autoria Nei Lopes, em conjunto com Luís Filipe Lima. O
divertido é assistir à performance que os autores fazem ao cantá-la. A letra, inédita, brinca
com expressões em latim usadas no Direito – ou não... A música também relembra um
célebre jurista baiano. Confira:

Águia de Haia" (Luís Filipe Lima e Nei Lopes)

“Saí do bar no rumo de Copacabana


E em pleno Campo de Santana recebi um santo
Quem viu me disse que foi um espanto
Que eu falei coisas meio um tanto ou quanto, sei lá
Dizem que eu falava discursando,
Com sotaque de baiano intelectual
E de repente, sem ter dó nem piedade
Eu entrei na Faculdade de Direito Nacional (bis)
(Data venia, homo sapiens! In vino veritas, libertas quae sera tamen! Dura lex sed lex! Ad
libtum per capita, habeas corpus pro labore! Etcetera...)

(2ª vez: Ad referendum, et pluribus unum! Extra! Extra! Gratis! Rosa, rosa, rosam, rose,
rose, rosa! A priori, ipsis litteris, alea jacta est! Vice-versa...)

Na Faculdade escrevi regras e tratados


Dei lições pro doutorado com muita ciência
Só me chamaram de Vossa Excelência
Me convidaram pra livre docência, pois é
Discursei três horas sem dar pausa
Fui doutor honoris causa e quase fui reitor
Porém no meio dessa história gloriosa
O caboclo Rui Barbosa de mim desincorporou

(Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra! Revertere ad locum tuum! Vade
retro, alter ego!)

(2ª vez: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris! Curriculum vitae?
Delirium tremens! Consumatum est, persona non grata!)

Eu que já era um mestre consagrado


Fui então chamado de Doutor Bebum
De catedrático, eu passei a ser lunático
Um caso psiquiátrico, um alcoólatra comum
Tudo isso culpa de um traçado
Também fui misturar conhaque com rum
Agora, quando eu passo, levo vaia
Águia de Haia, Rui Barbosa Um-Sete-Um!

(2ª vez: Post scriptum: toma cuidado, meu camarada, que é como dizia o grande filósofo
afro-latino Neilópius: “Cullus bebedorum dominus non habet!” ... Data venia!)”

O defensor público presta serviços de assistência judiciária aos sem posses. Afinal, “O
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência
de recursos”, prevê nossa Constituição Federal26. Logo, é ao defensor que o marido
narrador “Justiça Gratuita” recorre ao se decidir pelo divórcio. Vejamos seus motivos:

“Justiça Gratuita” (Nei Lopes)

“Felicidade passou no vestibular,


E agora, tá ruim de aturar
Mudou-se prá Faculdade de Direito
E só fala com a gente de um jeito
Cheio de preliminar
(É de amargar)
Casal abriu, ela diz que é divórcio,
Parceria é litisconsórcio
Sacanagem é libidinagem e atentado ao pudor
Só fala cheia de subterfúgios,
Nego morreu ela diz que é de cujus,
Não agüento mais essa Felicidade, doutor Defensor
(só mesmo um desembargador)
Amigação pra ela é concubinato
Vigarice é estelionato
Caduquice de esclerosado é demência senil
Sumiu na poeira, ela chama de ausente
Não pagou a conta é inadimplente
Ela diz, consultando o Código Civil
Me pediu uma grana dizendo que era um contrato de mútuo,
Comeu e bebeu, disse que era usufruto
E levou pra casa o meu violão,
Meses depois que fez esse agravo ao meu instrumento27
ela então me disse, cheia de argumento
Que o adquiriu por usucapião.
(seu defensor, não é mole não!)
Taí minha procuração
E o documento que atesta minha humilde condição
Requeira prontamente meu divórcio e uma pensão,
E se ela não pagar
vai cantar samba na prisão.”

“Todos os deveres pertencem já à Ética, embora nem por isso a legislação relativa a todos
eles se ache compreendida na Ética, e embora até a de muitos se ache fora dela”28. Com
essa frase, Kant explica a diferença entre Ética e o Direito strictu senso, o que consta de
nossos códigos, legislações... Se há costumes que de tão arraigados se nos parecem leis,
como as filas, também os há não sacramentados pelo Direito. Como os que Billy Blanco,
elegantemente, enumera em “Estatutos da Gafieira”, que contou com a interpretação eterna
de Jorge Veiga:

"Estatutos da gafieira" (Billy Blanco)

“Seu moço, olha o vexame


O ambiente exige respeito
Pelos estatutos da nossa gafieira
Dance a noite inteira, mas dance direito
Aliás, pelo artigo 120
O distinto que fizer o seguinte:
subir pela parede, dançar de pé pro ar
morar na bebida sem querer pagar
abusar da umbigada de maneira folgazã
prejudicando hoje o bom crioulo de amanhã
Será devidamente censurado
Se vacilar de novo vai pra mão do delegado”

Billy Blanco também enumeraria as regras de outro local de diversão:

“Estatuto de Boite” (Billy Blanco)

“Gafieira de gente bem


É boite
Onde a noite esconde a bobagem
Que acontece
Onde o uísque lava qualquer
Disparate
Amanhã um sal de fruta e a gente esquece
Vamos com calma
Olha o respeito
Trate do corpo
Que a alma
Não tem mais jeito
O estatuto não prevê
Mas eu lhe digo
Traga a sua mulher de casa e deixe em paz a do amigo
Gafieira de gente bem
É boite”

“Errei, Erramos” (Ataulfo Alves)

“Eu na verdade
Indiretamente sou culpado da tua infelicidade
Mas se eu for condenado
A tua consciência será meu advogado
Mas evidentemente
Eu devia ser encarcerado
Nas grades do teu coração
Porque se sou um criminoso
És também
Nota bem
Que estás na mesma infração
Venho ao tribunal
Da minha consciência
Como réu confesso
Pedir clemência
O meu erro é bem humano
É um crime que não evitamos
Este princípio alguém jamais destrói
Errei, erramos...”
“Errei, Erramos” é um clássico do compositor mineiro Ataulfo Alves29 e seria gravada
com grande sucesso por Orlando Silva. Nela vemos o “culpado” pedir clemência alegando
a culpa concorrente da parceira. Na verdade, o Direito Brasileiro não consagra a “anulação
de culpas”. Exemplo clássico é uma batida de carro em que ambos os motoristas ficam
feridos. Um delito não anula outro: cada um dos motoristas responderá pelo seu ato.

Outro trecho interessante é “Venho ao tribunal da minha consciência/como réu


confesso/pedir clemência”. O artigo 65 do Código Penal Brasileiro afirma que atenua a
pena ter o agente “d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do
crime”. Para o jurista Damásio de Jesus, não basta a simples confissão, devendo o agente
demonstrar sincero arrependimento.

Pede clemência também o réu apaixonado de “Julgamento”:

“Julgamento” (Pedro Amorim, Maurício Carrilho e Paulo César Pinheiro)

“Em caso de amor não há juiz pra uma paixão


porque entre o homem e a mulher anda o pecado
Se sou réu do amor que acaba de nascer
Deste amor que morre, pode alguém ser acusado?
Não conheço lei pra condenar um coração
Nem sei de alguém que nunca esteve apaixonado
Sentimento algum consegue interceder
Pois jamais escapa de um amor quem já foi jurado
Só quero ver quem vai sentenciar
E se é um crime a gente amar
Levado por forte emoção
Depois de me entregar
Fiz questão de confessar,
Que o réu confesso tem o benefício do perdão...”

A pouco lembrada profissão de Oficial de Justiça tem uma passagem rápida em “Despejo
na Favela”, do paulista Adoniran Barbosa. A música retrata também o conformismo do
povo com as ações da Justiça:

“Despejo na favela” (Adoniran Barbosa)

“Quando o Oficial de Justiça chegou lá na favela


E contra seu desejo entregou pra Seu Narciso
Um aviso para uma Ordem de Despejo
Assinada “Seu Doutor”
Assim dizia a petição:
“Dentro de dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão,
é uma ordem superior”
Ô, ô ô ô ô, meu senhor
É uma ordem superior
Não tem nada não, seu doutor
Não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema
Em qualquer canto me arrumo, de qualquer jeito me ajeito
Depois, o que tenho é tão pouco,
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Ô ô ô ô ô, meu senhor...”

Esse conformismo se repete em outro clássico do compositor paulista, que listamos abaixo
preservando a fala típica de Adoniran:

“Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa)

“Se o senhor não tá lembrado


Dá licença, eu vou contar
Aqui onde agora está
este edifício alto
era uma casa velha, um palacete assobradado
foi aí, seu moço, que eu Mato Grosso e o Joca
construímos nossa maloca
Mais um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home com as ferramenta e o dono mandô derrubá
Peguemo toda as nossas coisas
E fumo pro meio da rua, preciá a demolição
Que tristeza que nós sentia, cada tauba que caía doía no coração
Mato Grosso quis gritar, mas em cima eu falei
Os home tão com a razão, nóis arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou
“Deus dá o frio conforme o cobertor”
E hoje nóis pega paia nas grama do jardim
E pra esquecer nós cantemos assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nós passemo os dias feliz de nossas vidas (bis)”

Conclusão
Concluímos que as letras de samba deste século viram o Direito, em sua maior parte, sob
o prisma da repressão. De qualquer forma, praticamente todos os aspectos do espectro
jurídico estão cobertos, tanto é que há compositores que usaram de figuras jurídicas para
retratar com lirismo ímpar a relação a dois.

Bibliografia
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• AUGRAS, Monique. “O Brasil do Samba-Enredo”. Rio de Janeiro: Editora
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Editora Lumiar, 1996
• CANDEIA, Antônio, e ARAÚJO, Isnard: “Escola de Samba – Árvore que
esqueceu a raiz”. Rio de Janeiro: Editora Lidador/SEEC-RJ, 1978, 1ª ed.
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• CLIQUEMUSIC – Sítio - <www.cliquemusic.com.br>
• CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2002
• CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Brasília:
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• EFEGÊ, Jota. “Ameno Resedá – o rancho que foi escola – Documentário do
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• GOMES, Bruno. “Wilson Batista e Sua Época'. Rio de Janeiro: Editora Funarte,
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• GÉRSON, Brasil. “História das Ruas do Rio”. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana
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• GRECO FILHO, Vicente. “Tóxicos: Prevenção – Repressão”. São Paulo: Editora
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• JESUS, Damásio E.: Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2000
• LOPES, Nei. “Guimbaustrilho e outros mistérios suburbanos”. Rio de Janeiro:
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• LOPES, Nei. “O Negro e sua Tradição Musical – Partido Alto, Calango, Chula e
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• MÁXIMO, João: “Paulinho da Viola – sambista e chorão”. Coleção Perfis do
Rio. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará/Prefeitura do Rio, 2002
• SOARES, Maria Thereza Mello. “São Ismael do Estácio – o sambista que foi
rei”. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1985
• TINHORÃO, José Ramos. “Pequena História da Música Popular: da modinha à
lambada”. São Paulo: Art Editora, 1991
• TINHORÃO, José Ramos. “Música Popular – um tema em debate”. Rio de
Janeiro: JCM Editores, 2ª ed., 1966.
• VASCONCELOS, Ary. “A Nova Música da República Velha”. Rio de Janeiro:
Edição independente, 1985
• VIEIRA, Jonas, e NORBERTO, Natalício. “Herivelto Martins: uma escola de
samba”. Rio de Janeiro: Editora Ensaio, 1992
• ZAPPA, Regina. “Chico Buarque – para todos”. Coleção “Perfis do Rio”. Rio de
Janeiro: Editora Relume-Dumará/Secretaria Municipal de Cultura, 1999, 2ª ed.

ANEXO
Íntegra de letras que, no decorrer do trabalho, tiveram trechos selecionados:

Batuque na Cozinha (João da Baiana)

“Num moro em casa de cômodo


num é por ter medo não
Na cozinha muita gente
Sempre dá em alteração
Mas o batuque na cozinha a sinhá num qué
Por causa do batuque eu queimei meu pé (refrão)
Então não bula na cumbuca
não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato...
Eu fui na cozinha pra ver uma cebola
E o branco com ciúme de uma tal crioula
Deixei a cebola peguei na batata
E o branco com ciúme de uma tal mulata
Peguei no balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha
Então não bula na cumbuca,
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato...
Batuque na cozinha...
Eu fui na cozinha pra tomar um café
E o malandro tá com o olho na minha mulher
Mas comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia
Seu Comissário foi dizendo com altivez:
“É da casa de cômodo da tal Inês?
Revista os dois, bota no xadrez
Malandro comigo não tem vez!”
Mas, seu Comissário, eu tô com a razão
Eu não moro na casa de arrumação
Eu fui apanhar meu violão
Que estava empenhado com seu Salomão
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez com esse malandrão
Que faltou com o respeito ao cidadão
Que é paraíba do norte, Maranhão
Mas o batuque na cozinha a sinhá num quer...”

“Conflito” (T. Kaçula/André Pantera)

“Seu delegado, por favor, me ouça


tenho uma queixa e quero apresentar
(essa mulher é de amargar!)
me deixa atribulado
de cabelo arrepiado de tanto aprontar
(um ti-ti-ti, um bafafá)
é sempre a mesma cena
ciúme da morena do cafofo ao lado
três dias que eu não durmo com o bololô formado
por favor, seu delegado, eu quero separar...
Pois desse jeito já não dá
Já ando escalafobético, raquítico e com disritmia, hipertensão, taquicardia
tive febre amarela
com a greve que ela me fez amargar
(meu coração já quer parar)
agora veja só, doutor,
além de tudo a megera não tem pena
teve ciúme da linda morena
e em seu discurso ainda me falou:
[aqui entra uma mulher, geralmente amiga do intérprete, e grita com ele reclamando de sua
conduta; é indispensável que a ajudante acabe a bronca dizendo que agora o marido vai
comer na rua, pois ela não vai mais esquentar a comida quando ele chegar da boemia]
Agora estou de Mc Lanche, hot dog, milk shake e outras coisas mais
e além disso pegou a minha sogra e pôs no meu lugar (a velha agora mora lá)
para acabar com isso, seu delegado, eu vim para o distrito
me prende agora e acaba o conflito
depois manda a Rosinha pra morar comigo
(em nome de São Benedito....)”
“Lágrima sem júri” (Nelson Cavaquinho)
“Quem sou eu
Pra pensar só em mim
Choro até
Porque está chegando ao fim
Se viveu ou se sofreu
Isso não pertence a mim
Todos têm seu próprio eu
E o eu seu próprio fim
Não critico a ninguém
Sempre me achei feliz
Pois se eu erro também
Nunca posso ser juiz”
“Malandro Pasteleiro” (João da Bahiana)

“(Refrão) - Prende o homem, ele não quer me pagar


Comeu bife com batatas, ovos com petit pois, seu guarda (bis)
Oh, seu guarda, não me prende
Porque estou com a razão
Se eu pedisse antes fiado
Não me davam a refeição
Eu vivo desempregado
Sem um níquel pro café
Por isso comi primeiro
Pagarei quando puder, se Deus quiser
(refrão)
Respeitando a Lei Seca
Eu comi, mas não bebi
Quando tenho que dar o devo
Não tomo nem parati
Não acho grande motivo
Pra me botar no xadrez
Porque não tenho dinheiro
Pra pagar o português, por essa vez...”
“Pare o Casamento” (Arthur Resnick/Kenny Young, versão Luís Keller)

“ (fala masculina): “Se alguém souber de algo que impeça este casamento
que fale agora ou para sempre cale-se”
Por favor, pare agora
Senhor Juiz, pare agora
Senhor Juiz esse casamento
será pra mim todo meu tormento
Não faça isso, peço por favor
pois minha alegria vive desse amor
Por favor, pare agora
Senhor Juiz, pare agora
(fala feminina:) Senhor juiz, eu sei que o senhor é bonzinho
Ele é tudo que eu amo
É tudo que eu quero”

“Pelo Telefone” (Donga e outros)

“O Chefe da Polícia pelo telefone mandou me avisar


Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
Ai, ai, ai, deixa as mágoas para trás, ó rapaz
Ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás
Tomara que tu apanhes, pra nunca mais fazer isso
Tomar amores dos outros pra depois fazer feitiço
É que a rolinha, (sinhô, sinhô...)
se embaraçou (sinhô, sinhô...)
Caiu no laço (sinhô, sinhô...)
Do nosso amor (bis)”

“Quanto a Polícia vier” (João da Baiana)

“Se é de mim, podem falar


Se é de mim, podem falar
Meu amor não tem dinheiro, não vai roubar pra me dar (bis)
Quando a policia vier e souber, quem paga casa pra homem é mulher (bis)
No tempo que ele podia
Me tratava muito bem
Hoje está desempregado
Não me dá porque não tem
Quando a polícia vier e souber (...)
Quando eu estava mal de vida
Ele foi meu camarada
Hoje dou casa e comida, dinheiro e roupa lavada”

“Velório do Heitor” (Paulinho da Viola)

“Havia um certo respeito


No velório do Heitor
Muita gente concordava
Que apesar de catimbeiro
Era bom trabalhador
Houve choro e ladainha
Na sala e no corredor
E por ser considerado
O seu desaparecimento muita tristeza causou
Quem mais sentiu foi Nair
Que só falava das virtudes do Heitor
E pelos cantos da memória procurava
Todo o tempo em que ao seu lado caminhou
os amigos mais chegados comentavam
Que não houvera outro cara tão legal
E muita gente concordou em ajudar
Uma família que ficara num desamparo total
Pode-se dizer que aquele velório
Transcorreu na maior tranqüilidade
Até o momento em que surgiu
aquela dama de preto
Trazendo flores e chorando de saudades
Como ninguém conhecia a personagem
Nair foi tomar satisfação
E aí, chamaram até o Osório
Que é delegado, porque o velório
Virou a maior confusão
Porque simplesmente o velório virou a maior confusão ..

“Vou contar tintim por tintim” (Cartola)

“Fui tão maltratada


Foi tanta pancada
Que ele me deu...
Estou toda doída, estou toda ferida
Ninguém me socorreu
Ninguém lá em casa apareceu
Eu vou ao distrito, está mais do que dito
Isto não fica assim
Vou contar tintim por tintim
Tudo nele eu aturo
Menos tapas e murros
Isto não é pra mim
Ele vai pra orgia, passa três quatro dias sem me aparecer
Quando volta está zangado, está contrariado
E eu não sei por quê
Mas eu agora vou saber
Sou tão camarada, a ele não falta nada
Ganha um terno por mês
´inda agora pancada
Pior foi a maçada
Eu parei desta vez:
vou arranjar um português...”

1 Cf. Maria Thereza Mello Soares, in “São Ismael do Estácio – o sambista que foi rei”,
p. 20. Ismael Silva, aliás, foi amigo do promotor público Prudente de Morais Neto, o
“Prudentinho”, e do escritor e jurista Aníbal Machado. Infelizmente, sua ligação com o
Judiciário não se limitou às amizades – foi ele preso por tentativa de homicídio em 1935.
Lá comporia, entre outras, “Clínica da Vida”, não gravada e de letra não localizada.

2 Hoje já conhecemos várias músicas registradas anteriormente com a denominação de


“samba”. Ocorre que boa parte delas, segundo alguns, se enquadrariam em outros
estilos, como maxixe e choro. Há quem veja no próprio “Pelo Telefone” um maxixe.
Fica a polêmica...

3 A autoria de “Pelo Telefone” é controversa. Segundo boa parte dos pesquisadores, a


música, registrada por Donga como somente sua, é criação coletiva do grupo formado
por Sinhô, João da Mata, Mestre Germano, Tia Ciata, Hilário Jovino e o jornalista
Mauro de Almeida, criação essa realizada durante as rodas de samba na casa da própria
Tia Ciata, na Praça Onze. Os versos sobre a “rolinha” (v. Anexo) seriam parte de cantiga
popular.
4 Cf. Edigar de Alencar, in “Nosso Sinhô do Samba”. Rio de Janeiro: Ed. MEC, Funarte,
1981 p. 24

5 Esse depoimento foi recolhido por pesquisadores do Museu e publicado, juntamente


com os de Pixinguinha e João da Baiana, no livro “As Vozes Desassombradas do
Museu”. Rio de Janeiro: Editora do MIS, 1970, p. 80.

6 Idem, p. 62.

7 Artigo publicado na Revista da S.B.P.C., cit. por Maria Thereza Mello Soares, op. cit.

8 In “Música Popular – um tema em debate”. Rio de Janeiro: JCM Editores, 2ª ed., sem
ano, p. 80/81.

9 In “Escola de Samba – Árvore que esqueceu a raiz”, de CANDEIA, Antônio, e


ARAÚJO, Isnard. Rio de Janeiro: Editora Lidador/SEEC-RJ, 1978, 1ª ed.

10 In “Paulinho da Viola – sambista e chorão” – Coleção Perfis do Rio. Rio de Janeiro:


Relume Dumará Editora e Prefeitura do Rio de Janeiro, 2002, p. 51. Esta obra traz um
fato curioso: quando menino, ao correr da polícia na rua, Paulinho foi levado à presença
da mãe por um policial. Um vexame pequeno, mas inexplicável para quem cometia
naquele momento o crime de... jogar bola na rua (p. 26/27)

11 In “Nosso Sinhô do Samba”. Rio de Janeiro: Edição MEC/Funarte, 1981, p. 20

12 Cf. Augusto, Antônio em “O Último dos Malandros” . Rio de Janeiro: Editora


Record, 1996, p. 153

13 Casca de Ovo" satirizava o então candidato a candidato à Presidência da República,


Magalhães Pinto: "Será que esse Pinto sobe?/Será que esse Pinto desce?/Será que esse
Pinto murcha?/Ou será que esse Pinto cresce?/Dizem que esse Pinto é belo/Dizem que
esse Pinto é feio/Dizem que é pouco careca/E dizem que joga no meio/Que será?”. “Sim
ou Não" tinha o seguinte e dúbio trecho “(...)O poder não existe para machucar
ninguém/E sim para o verdadeiro prazer nosso/Tem gente que pode com dificuldade/E
tem gente que já nasce podendo/Vocês preferem o poder no escuro ou na claridade?”

14 Cf. Margarida Autran in “Anos 70 – 1 – Música Popular”, p. 91.

15 Houve quem dissesse que esta música era dirigida ao Presidente Costa e Silva, cuja
filha era fã de Chico. Mas o compositor conta que a música foi inspirada num policial
que, ao intimá-lo para depor, pediu um autógrafo para a filha.

16 Cf. narra o compositor em “Chico Buarque – para todos” , de Regina Zappa. Rio de
Janeiro, Editora Relume Dumará/Secretaria Municipal de Cultura, 1999, p. 122.
17 Ou seja, o indivíduo de posses é incurso no artigo 16 da Lei de Tóxicos (Lei
6368/76),- crime de uso de drogas. Enquanto isso, os das classes menos abastadas são
apenados pelo temido artigo 12 – tráfico de drogas. As conseqüências desta
diferenciação vão desde a pena até a possibilidade de concessão de fiança.

18 Cf. o Professor Vicente Greco Filho in “Tóxicos: Prevenção – Repressão”. São


Paulo: Editora Saraiva, 1992, p. 41.

19 O artigo 281 do antigo Código Penal Brasileiro previa o crime de tráfico de


entorpecentes, mas não o de uso. Quando do advento da Lei de Tóxicos (Lei 6368/76) os
artigos 12 e 16 desta lei passaram a cominar, respectivamente, as penas para tráfico e uso
de entorpecentes.

20 Cit. por LOPES, Nei, in “O Negro no Rio de Janeiro e sua Tradição Musical:
partido alto, calango, chula e outras cantorias”. Rio de Janeiro: Pallas, 1992, p. 16

21 Cf. AUGRAS, Monique, in “O Brasil do Samba-Enredo”. Rio de Janeiro: Editora


Fundação Getúlio Vargas, 1998

22 Ao que tudo indica, este “samba do Chico” é “Cotidiano”.

23 O termo original era “meganha”, gíria da malandragem – ambiente de Wilson – para


denominar um policial. Mas a Censura exigiu a mudança do termo, e a letra é cantada até
hoje com um “Peçanha” no lugar. A biografia '”Wilson Batista e Sua Época”, do
advogado e compositor Bruno Ferreira Gomes explica (p. 109): “A censura andou
cortando palavras, pois logo de início ele diz : ´Lá vem o Chico Brito descendo o morro
nas mãos do Peçanha’. Não era assim a letra original que dizia: ‘Lá vem o Chico
Brito/descendo o morro nas mãos do meganha’, apelido dado pelos cariocas aos
soldados da Polícia Militar. Os que hoje lêem esta letra imaginam que o Peçanha é um
policial.”

24 In “Chega de Saudade”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 76. O retrato que
Ruy Castro faz do uso da maconha na época engloba até o mito João Gilberto.

25 “Constituição da República Federativa do Brasil”. Distrito Federal: Secretaria


Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal, 2002, p. 18

26 Op. cit., art. 5º, LXXIV (p. 19)

27 A expressão “agravo ao meu instrumento” faz referência não só ao violão levado pela
esposa, mas a um dos recursos do Direito Brasileiro. Dá nome também a um grupo
musical de Ribeirão Preto formado por advogados.

28 Cit. p. Radbruch, Gustav, in “Filosofia do Direito”. Coimbra, Arménio Amado,


Editor, Sucessor, 1997, p. 110
29 Muitos imaginam ser “Errei, Erramos” uma das várias composições que retrataram o
inferno conjugal do compositor Herivelto Martins e a cantora Dalva de Oliveira. Mas ela
é de 1938, anos antes da crise que inspiraria tantas canções. Ataulfo comporia – essa
sim, em apoio a Dalva, “Errei, Sim”, em 1950. Nela, a cantora entoaria os célebres
versos: “Errei, sim/Manchei o teu nome/Mas foste tu mesmo o culpado (...)”

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