Semiologia Da Percepção (Fichamento) - O Que Retorna No Real
Semiologia Da Percepção (Fichamento) - O Que Retorna No Real
Semiologia Da Percepção (Fichamento) - O Que Retorna No Real
RETORNA NO REAL
“o abandono do sujeito à vertigem da verdade que o causa” (Bass, 1998, pp. 3-4, tradução
nossa).
[Buscar a essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em idéia, uma vez que o
tenhamos reduzido a tema de discurso, é buscar aquilo que de fato ele é para nós antes de
qualquer tematização. O sensualismo “reduz” o mundo, observando que, no final das
contas, nós só temos estados de nós mesmos. O idealismo transcendental também “reduz”
o mundo, já que, se ele o torna certo, é a título de pensamento ou consciência do mundo
e como simples correlativo de nosso conhecimento, de forma que ele se torna imanente à
consciência e através disso a aseidade das coisas está suprimida. A redução eidética, ao
contrário, é a resolução de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno
sobre nós mesmos, é a ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência
(Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 13).]
[O mundo e a razão não representam problemas; digamos, se se quiser, que eles são
misteriosos, mas este mistério os define, não poderia tratar-se de dissipá-lo por alguma
“solução”, ele está para aquém das soluções. A verdadeira filosofia é reaprender a ver o
mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta
“profundidade” quanto um tratado de filosofia. Nós tomamos em nossas mãos o nosso
destino, tornamo-nos responsáveis, pela reflexão, por nossa história, mas também graças
a uma decisão em que empenhamos nossa vida, e nos dois casos trata-se de um ato
violento que se verifica exercendo-se (Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 19).]
*****
Nt. cit. extração do objeto – engajamento corporal –
Nosso vocabulário promoveu, para esse objeto [objeto a], o termo “objetalidade”, na
medida em que este se opõe a “objetividade”. Para reunir essa oposição em formulações
rápidas, diremos que a objetividade é o termo supremo do pensamento cientifico
ocidental, o correlato de uma razão pura que, no final das contas, traduz-se – resume-se,
articula-se – num formalismo lógico. Se vocês têm-me acompanhado em meu ensino dos
últimos cinco ou seis anos, sabem que a objetalidade é outra coisa. Para lhes dar relevo
dela em seu ponto crucial e forjar uma formulação equilibrada em relação a anterior, direi
que a objetalidade é o correlato de um pathos de corte (Lacan, 2005/1962-63, pp. 236-
37).
o homem que fala, o sujeito, a partir do momento em que fala, já está implicado por essa
fala em seu corpo. A raiz do conhecimento é esse engajamento no corpo (Lacan,
2005/1962-63, p. 241).
“Há um mundo”, ou, antes, “há o mundo”; dessa tese constante de minha vida não posso
nunca inteiramente dar razão (Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 14).
toda unidade perceptiva necessita, para se constituir, da ligação dos elementos sensoriais
numa cadeia de linguagem que lhe confere sentido (Teixeira & Santiago, 2017, p. 94).
de que modo o fenômeno alucinatório pode ser pensado como retorno no real do elemento
pulsional que não se deixa representar na realidade, em razão justamente da falência do
seu enquadre discursivo (ibid, 2017, p. 95).
Essa mancha vermelha que vejo no tapete, ela só é vermelha levando em conta uma
sombra que a perpassa, sua qualidade só aparece em relação com os jogos da luz e,
portanto, como elemento de uma configuração espacial – este vermelho não seria o
mesmo se não fosse o “vermelho lanoso” de um tapete (ibid., 2011/1945, p. 25). –
[acrescentar nota. Trata-se de uma imagem extraída da obra de Sartre, L’imaginaire].
o puro sentir redundaria em nada sentir e, portanto, em não sentir de forma alguma. A
pretensa evidência do sentir não está fundada em um testemunho da consciência, mas no
prejuízo do mundo (ibid., 2011/1945, p. 25).
Existem duas maneiras de se enganar sobre a qualidade: uma é fazer dela um elemento
da consciência, quando ela é objeto para a consciência, trata-la como uma impressão
muda quando ela tem sempre um sentido; a outra é acreditar que este sentido e esse objeto,
no plano da qualidade, sejam plenos e determinados. E o segundo erro, assim como o
primeiro, provém do prejuízo do mundo (Ibid., 2011/1945, p. 26).
nunca compreenderemos, a partir do mundo, o que é um campo visual – Há ali uma visão
indeterminada, uma visão de não sei o quê, e, se passamos ao limite, aquilo que está atrás
de nós não deixa de ter presença visual – a noção de atenção não tem a seu favor nenhum
testemunho da consciência. Ela é apenas uma hipótese auxiliar que se forja para salvar o
prejuízo do mundo objetivo. Precisamos reconhecer o indeterminado como um fenômeno
positivo (Ibid., 2011/1945, p. 27) – [acrescentar nota sobre a conotação do particípio
latino positus aludida à p. 97 de Psicopatologia Lacaniana].
É nessa atmosfera que se apresenta a qualidade. O sentido que ela contém é um sentido
equívoco, trata-se antes de um valor expressivo que de uma significação lógica. A
qualidade determinada, pela qual o empirismo queria definir a sensação, é um objeto, não
um elemento da consciência, e é o objeto tardio de uma consciência científica. Por esses
dois motivos, ela mais mascara a subjetividade do que a revela (Ibid., 2011/1945, pp. 27-
28).
Tem-se antes uma unidade imperceptível que se coloca como condição transcendental ds
associações, fundada sobre o pressentimento indeterminado de uma ordem iminente que
faz com que liguemos num texto os estímulos que nos chegam (ibid., 2017, p. 95).
a atenção não existe in abstrato, como uma atividade puramente formal do espírito. Ela
requer a fixação corporal de um ponto invariante através do qual possa tomar distância
em relação as mudanças da aparência (ibid., 2017, p. 98).
O que faltava ao empirismo era a conexão interna entre o objeto e o ato que ele
desencadeia. O que falta ao intelectualismo é a contingência das ocasiões de pensar. – O
empirismo não vê que precisamos saber o que procuramos, sem o que não o
procuraríamos, e o intelectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos, sem
o que, novamente, não o procuraríamos. – as duas doutrinas têm portanto em comum essa
idéia de que a atenção não cria nada, já que um mundo de impressões em si ou um
universo de pensamento determinante estão igualmente subtraídos à ação do espírito
(Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 56).
Para não ficar preso a um estado de arrebatamento sensorial, o sujeito deve tomar
distância e responder somente aos estímulos exteriores que dizem respeito a seu
engajamento na percepção. Do ponto de vista prático, ele passa a dispor, com a repetição
da ação engajada, de um automatismo corporal que transfere a elaboração de suas
respostas para a periferia, permitindo que cada situação momentânea deixe de afetar a
totalidade de sua experiência (Teixeira & Santiago, 2017, p. 98).
A bengala do cego deixou de ser para ele um objeto, ela não mais é percebida por si
mesma, sua extremidade transformou-se em zona sensível, ela aumenta a amplitude e o
raio de ação do tocar, tornou-se análogo de um olhar (Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 198).
Não se trata aqui de uma estimativa rápida e de uma comparação entre o comprimento
objetivo da bengala e a distância objetiva do alvo a alcançar. Os lugares do espaço não se
definem como posições objetivas em relação à posição objetiva de nosso corpo, mas eles
inscrevem em torno de nós o alcance variável de nossos objetivos ou de nossos gestos
(ibid., 2011/1945, p. 199).
O exemplo dos instrumentistas mostra melhor ainda como o hábito não reside nem no
pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo como mediador de um mundo. Sabe-
se que um organista experiente é capaz de servir-se de um órgão que não conhece e cujos
teclados são mais ou menos numerosos, as teclas dispostas diferentemente do que aquelas
de seu instrumento costumeiro. Basta-lhe uma hora de trabalho para estar em condições
de executar seu programa – Durante o ensaio, assim como durante a execução, as teclas,
os pedais e os teclados só lhe são dados como as potências de tal valor emocional ou
musical, e suas posições só lhe são dadas como os lugares onde esse valor aparece no
mundo. – Não há aqui lugar para uma “recordação” da localização das teclas e não é no
espaço objetivo que o organista toca; seus gestos, durante o ensaio, são gestos de
consagração: eles estendem vetores afetivos , descobrem fontes emocionais, criam um
espaço expressivo (ibid., 2011/1945, p. 202).
Muito embora esse “fazer sentido” dependa da localização que o ato de perceber
corporalmente organiza, a percepção, ela própria, não se encontra determinada em
nenhuma localidade. Ela só pode constituir transcendentalmente as localizações se não se
deixar localizar, caso contrário se tornaria, ela própria, objeto do campo perceptivo
(Teixeira & Santiago, 2017, p. 99).
A coisa está em um lugar, mas a percepção não está em parte alguma porque, se estivesse
situada, ela não poderia fazer as outras coisas existirem para ela mesma, já que repousaria
em si à maneira das coisas (Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 67).
A percepção é um juízo que ignora suas razões, o que significa dizer que o objeto
percebido se dá como todo e como unidade antes que nós tenhamos apreendido sua lei
inteligível (Ibid., 2011/1945, p. 73).
Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse gênero
exprimem uma fé comum ao homem natural e ao filósofo desde que abre os olhos,
remetem para uma camada profunda de “opiniões” mudas, implícitas em nossa vida
(Merleau-Ponty, 2014/1964, p. 15) – [in Reflexão e Interrogação – a fé perceptiva e sua
obscuridade).
Essa certeza injustificável de um mundo sensível comum a todos nós é, em nós, o ponto
de apoio da verdade (ibid., 2014/1964, p. 23).
a função discursiva do semblante referida por Lacan no final da década de 1960. Assim
como, para Merleau-Ponty, toda percepção necessita se apoiar sobre a ideia irrefletida de
que há um mundo, para Lacan não existe fato senão relativo ao discurso condicionado
pelo semblante, que opera somente se não for questionado (Teixeira & Santiago, 2017, p.
100).
o semblante ao qual o discurso se vincula é o ponto de vista que não se deixa ver (ibid.,
2017, p. 100).
O grande Outro que agencia o discurso não pode ser objeto de uma apreensão cognitiva:
ele necessita do suporte de uma crença compartilhada que o faça existir para cada sujeito
(ibid., 2017, p. 100).
toda construção perceptiva da realidade se encontra ameaçada pela descrença (cf.
Merleau-Ponty, 1964, p. 48): ela traz consigo o risco de sua dispersão, já que nada impede
que num dado período de crise sua crença não mais se sustente, e o semblante deixe de
operar (ibid., 2017, p. 100).
A crença e a incredulidade estão aqui tão estreitamente ligadas que uma se encontra
sempre na outra, e, em particular, um germe de não-verdade dentro da verdade (ibid.,
2014/1964, p. 37).
ele [o psicótico] é incapaz de realizar uma composição dialética por não dispor do
preconceito do mundo, que seria o espaço de mediação onde a comparação perceptiva
poderia se realizar (ibid., 2017, pp. 109-110).
Na montanha, um esquizofrênico detém-se diante de uma paisagem. Depois de um
momento, ele se sente como que ameaçado. Nasce nele um interesse especial por tudo
que o circunda, como se do exterior lhe fosse posta uma questão para a qual ele não pôde
encontrar resposta. Repentinamente, a paisagem lhe é arrebatada por uma força estranha.
É como se um segundo céu negro, sem limites, penetrasse no céu azul da tarde. Esse novo
céu é vazio, ‘fino, invisível, horrível’. Ora ele se move na paisagem de outono, ora ela
também se move. E durante esse período, diz o doente, ‘uma questão permanente se põe
a mim; é como uma ordem de descansar ou de morrer, ou de ir mais adiante – o distúrbio
do esquizofrênico consiste apenas no fato de que este projeto perpétuo se dissocia do
mundo objetivo tal como ele ainda é apresentado pela percepção e, por assim dizer, reflui
para si mesmo. O esquizofrênico não vive mais no mundo comum, mas em um mundo
privado, ele não vai mais até o espaço geográfico: ele permanece no ‘espaço de
paisagem’ e esta própria paisagem , uma vez cortada do mundo comum, está
consideravelmente empobrecida (Merleau-Ponty, 1945/2011, pp. 385-386). – [a noção
de estreitamento do espaço vivido].
Semiologia da alucinação
a definição positivista clássica da alucinação proposta por Ball, em 1890, como percepção
sem objeto, é manifestamente equivocada e contraditória. Ela não somente omite o fato
de que a própria ideia de percepção supõe de imediato a presença do objeto percebido,
como também negligencia a observação clínica facilmente verificável de que alucinação
e percepção são experiências qualitativamente distintas: o paciente psicótico é
perfeitamente capaz de distinguir a experiência alucinatória da percepção normal da
realidade, embora não negue o caráter real do que lhe chega pela alucinação (Teixeira &
Santiago, 2017, p. 110).
A análise clássica da percepção distingue nela os dados sensíveis e a significação que eles
recebem de um ato de entendimento. Deste ponto de vista, os distúrbios da percepção só
poderiam ser deficiências sensoriais ou distúrbios gnósicos [do pensamento] (Merleau-
Ponty, 1945/2011, p. 183).
O fato capital é que a maior parte do tempo os doentes distinguem suas alucinações e suas
percepções (ibid., 1945/2011, p. 448).
Se os doentes dizem tão frequentemente que lhes falam por telefone ou pelo rádio, é
justamente para exprimir que o mundo mórbido é factício, e que lhe falta algo para ser
uma “realidade” (ibid., 1945/2011, pp. 448-449).
A alucinação não é um juízo ou uma crença temerária pelas mesmas razões que a
impedem de ser um conteúdo sensorial: o juízo ou a crença só poderiam consistir em pôr
a alucinação como verdadeira, e é justamente isso que os doentes não fazem (ibid.,
1945/2011, p. 449).
O empirismo tenta explicar a alucinação como a percepção: pelo efeito de certas causas
fisiológicas, por exemplo a irritação dos centros nervosos, dados sensíveis apareceriam
do mesmo modo que aparecem na percepção (ibid., 1945/2011, p. 449).
A primeira vista, não há nada de comum entre essas hipóteses fisiológicas e a concepção
intelectualista. Na realidade, como se vai ver, ambas têm em comum o fato de que as duas
doutrinas supõe a prioridade do pensamento objetivo, dispõe apenas de um único modo
de ser, o ser objetivo, e nele procuram introduzir à força o fenômeno alucinatório – através
disso elas o falseiam, perdem seu modo próprio de certeza; já que, segundo o próprio
doente, a alucinação não tem lugar no ser objetivo (ibid., 1945/2011, p. 450).
Se o filósofo causa alucinações a si mesmo por meio de uma injeção de mescalina, ou ele
cede ao impulso alucinatório, e então ele viverá a alucinação, não a conhecerá, ou
conserva algo de seu poder reflexivo e sempre se poderá recusar seu testemunho, que não
é o mesmo de um alucinado ‘envolvido’ na alucinação (Merleau-Ponty, 1945/2011, p.
452).
O mundo percebido não é somente meu mundo: os outros expectadores estão nele
implicados como a frente o fundo dos objetos. Minha percepção faz coexistir um número
indefinido de cadeias perceptivas que a confirmam, na medida em que se realiza num
meio estruturado pelo significante (Santiago & Teixeira, 2017, p. 111).
O alucinado não crê tanto: o fenômeno alucinatório não faz parte do mundo, quer dizer,
ele não é acessível, não existe caminho definido que conduza dele a todas as outras
experiencias do sujeito alucinado ou à experiência dos sujeitos sãos (idem, p. 454).
Diante da coisa verdadeira, nosso comportamento sente-se motivado por ‘estímulos’ que
preechem e justificam sua intenção (idem, p. 454).
Diferentemente da certeza privada do alucinado, a percepção é sempre incerta, já que se
encontra aberta à mediação dialética e pode sempre ceder lugar a outra percepção mais
exata que a corrige (Santiago & Teixeira, 2017, p. 111).
É engano, portanto, supor que a alucinação se deva a uma falha na operação do percipiens
em relação à natureza do perceptum, como se houvesse um sujeito ativo da percepção
diante do objeto passivo a ser percebido (ibid., 2017, p. 111).
A alucinação não está no mundo, mas “diante” dele, porque o corpo do alucinado perdeu
sua inserção no sistema das aparências. Toda alucinação é em primeiro lugar alucinação
do corpo próprio (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 455).
a anestesia não suprime o membro fantasma, como normalmente faria crer uma teoria
sensorialista – o membro frequentemente guarda a posição que ocupava o braço real no
momento do ferimento - uma emoção ou circunstância que relembrem o acidente
intensificam o membro fantasma e que esse mesmo membro, enorme após a operação,
retrai-se até a forma do coto, com o consentimento do paciente em aceitar a mutilação
(ibid., 2017, p. 113).
no caso da anosognosia – quadro neurológico em que o paciente trata um membro
paralisado como se não fizesse parte de seu corpo – Merleau-Ponty salienta que ele não
ignora simplesmente o membro percebido como ausente (ibid., 2017, p. 113).
É preciso então substituir a “teoria periférica” por uma “teoria central”? – um conjunto
de traços cerebrais não poderia representar as relações de consciência que intervêm no
fenômeno – com efeito, ele depende de determinantes “psíquicos” – uma emoção, uma
circunstância que relembre as do ferimento fazem aparecer um membro fantasma em
pacientes que não o tinham. – ocorre que o membro fantasma, enorme depois da operação,
se encolha em seguida para enfim se absorver no coto “com o consentimento do doente
em aceitar sua mutilação” (ibid., 2011/1945, p. 115).
Seria preciso dizer então que o membro fantasma é uma recordação, uma vontade ou uma
crença e, na falta de uma explicação fisiológica, dar uma explicação psicológica? –
Todavia, nenhuma explicação psicológica pode ignorar que a secção dos condutos
sensitivos que vão para o encéfalo suprime o membro fantasma (ibid., 2011/1945, p. 116).
A anosognose e o membro fantasma não admitem nem uma explicação fisiológica, nem
uma explicação psicológica, nem uma explicação mista, embora possam ser relacionados
às duas séries de condições (ibid., 2011/1945, p. 119).
no caso do membro fantasma, o paciente parece ignorar a mutilação e contar com seu
fantasma como um membro real, já que ele tenta caminhar com sua perna fantasma e não
se deixa desencorajar nem mesmo por uma queda; se ele a trata praticamente como um
membro real, é porque, assim como o sujeito normal, ele não precisa, para pôr-se a
caminho, de uma percepção clara e articulada de seu corpo: basta-lhe tê-lo “à sua
disposição” como um potência indivisa, e adivinhar a perna fantasma vagamente
implicada nele; ele não a perdeu porque continua a contar com ela, assim como Proust
pode constatar a morte de sua avó sem perde-la ainda, já que ele a conserva no horizonte
de sua vida (ibid., 2011/1945, p. 121).
A questão é saber como o corpo atual do amputado responde ao corpo habitual, como ele
percebe objetos manejáveis no mundo que não pode mais manejar – essa parte de seu
corpo ausente só o deixará em paz quando o objeto do mundo, que a convocava, cessar
de ser um manejável para ele e se tornar um manejável em si, como é o caso da visão de
um instrumento para quem nunca dele se serviu (Ibid., 2017, p. 114).
Estar emocionado é achar-se engajado em uma situação que não se consegue enfrentar e
que, todavia, não se quer abandonar (Merleau-Ponty, 2011/1945, p. 127).
ter um braço fantasma é permanecer aberto a todas as ações das quais apenas o braço é
capaz, é conservar o campo prático que se tinha antes da mutilação. O corpo é o veículo
do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido,
confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles (ibid., 2011/1945,
p. 122).
se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro
do mundo, o termo não percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade
pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo (ibid., 2011/1945, p. 122).
No momento mesmo em que meu mundo costumeiro suscita em mim intenções habituais,
não posso mais, se sou amputado, juntar-me efetivamente a ele, os objetos manejáveis,
justamente enquanto se apresentam como manejáveis, interrogam uma mão que não tenho
mais. Assim, no conjunto de meu corpo se delimitam regiões de silêncio (ibid.,
2011/1945, p. 122).
o doente sabe de sua perda justamente enquanto a ignora, e ele a ignora justamente
enquanto a conhece (ibid., 2011/1945, p. 122).
nosso corpo comporta como que duas camadas distintas, a do corpo habitual e a do corpo
atual; a questão de saber como posso senti-me provido de um membro que de fato não
tenho mais redunda em saber como o corpo habitual pode aparecer como fiador do corpo
atual. Como posso perceber objetos enquanto manejáveis, embora não possa mais
manejá-los? É preciso que o manejável tenha deixado de ser aquilo que manejo
atualmente para tornar-se aquilo que se pode manejar, tenha deixado de ser um manejável
para mim e tenha-se tornado como que um manejável em si. (ibid., 2011/1945, pp. 122-
123).