Arthur C. Clarke - O Vento Solar PDF

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Arthur Clarke

O vento solar
Círculo do Livro
3

V
•s* CÍRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil
Edição integral
Título do original: "The wind from the sun" Copyright by Arthur C. Clarke Tradução de Leonel Vallandro Capa de Aldo Ricchiero Filho
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editora Globo S.A.
É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias
10 987654321
A Peter,
estas memórias de nosso futuro.
SUMÁRIO

Prefácio
O alimento dos deuses
Maelstrom II
Os luminosos
O vento solar
O segredo
O último comando
Frankenstein ao telefone
Reunião
Playback
A luz das trevas
A mais longa história de ficção científica já escrita
Herbert George Morley Roberts Wells, Esq
Amar esse universo
Cruzada
O céu impiedoso
Maré neutrônica
Passagem da Terra
Encontro com Medusa
PREFÁCIO

Este volume contém a totalidade dos contos que escrevi na década de 60, um dos períodos mais dramáticos
em toda a história da ciência e da tecnologia. Esses anos abarcaram o laser, o código genético, as primeiras sonda-
gens de Marte e Vênus com robôs, o descobrimento dos pulsars – e o desembarque na Lua. Muitos desses aconte-
cimentos, seja por antecipação, seja depois que se realizaram, refletem-se nas histórias que aqui vão; por esse moti-
vo, coloquei-as em ordem cronológica.
Este é o meu sexto volume de contos. Fui tentado a dar-lhe o subtítulo "A despedida de Clarke" – não por um
prenuncio de morte (pois tenho a firme intenção de assistir ao que realmente vai acontecer no ano 2001), mas
porque me parece que estou escrevendo cada vez menos e conversando, viajando, filmando e bancando o homem-
rã cada vez mais. Extrapolando com base no meu atual ritmo de produção, o volume 7 parece estar tão recuado no
futuro que talvez convenha limitar-me a acrescentar minhas histórias ocasionais às ulteriores edições deste livro.
"O vento solar" chamava-se "Sunjammer" quando foi publicado pela primeira vez, no Boy's Life. Por uma
dessas estranhas coincidências que com freqüência são observadas em literatura (ver "Herbert George Morley
Roberts Wells, Esq."), Paul Anderson usou o mesmo título quase simultaneamente.
O conceito do projetor lunar em "Maelstrom II" foi, segundo creio, exposto pela primeira vez em minha
memó-
ria em "Electromagnetic launching as a major contribution to space flight" ("A projeção eletromagnética
como importante contribuição para o vôo espacial"), no Journal of the British Interplanetary Society, novembro de
1950.
As minuciosas previsões sobre os acontecimentos que vão ocorrer conforme se acham descritos em
"Passagem da Terra" foram feitas por Jan Meeus no Journal oj the British Astronomical Association, 72 (6), 1962.
Muito devo ao artigo do sr. Meeus, tanto no que toca à informação como à inspiração.
* A expressão "As rodas de Possêidon" (em "Encontro com Medusa") foi cunhada pelo meu falecido amigo
WiUy Ley e as significativas citações, colhidas em seu livro On Earth and in the sky. A causa desse extraordinário
e assustador fenômeno está longe de ser plenamente compreendida.
Em último lugar, permitam-me dizer que este volume pode, talvez, aspirar a um modesto recorde com "A
mais longa história de ficção científica já escrita"; história mais comprida do que essa jamais foi escrita, nem o
será.
ARTHUR C. CLARKE
Colombo, Ceilão Fevereiro de 1971.

O ALIMENTO DOS DEUSES


Devo preveni-lo, senhor presidente, de que uma boa parte de meus argumentos serão nauseantes ao extremo.
Eles envolvem aspectos da natureza humana que muito raramente são discutidos em público, muito menos perante
uma comissão do Congresso. Mas receio que sejamos obrigados a enfrentá-los; há ocasiões em que se deve
arrancar o véu da hipocrisia, e esta é uma delas.
Os senhores e eu, cavalheiros, descendemos de uma longa linhagem de carnívoros. Vejo, pelas suas
expressões, que a maioria dos senhores não reconhece o termo. Bem, isso não é surpreendente: ele provém de uma
língua que se tornou obsoleta há dois mil anos. Talvez seja preferível evitar eufemismos e ser brutalmente franco,
mesmo que eu tenha de empregar palavras que nunca são ouvidas em boa companhia. Peço, de antemão, desculpas
a quem quer que eu venha a ofender.
Até alguns séculos atrás, o alimento favorito de quase toda a humanidade foi a carne – os músculos, os
tendões e a gordura de animais mortos. Não estou procurando revoltar-lhes os estômagos. Esta é a simples
enunciação de um fato, que os senhores podem verificar em qualquer compêndio de história...
Ora, pois claro, senhor presidente. Esperarei até que o senador Irving se sinta melhor. Nós, os profissionais,
esquecemos às vezes como podem reagir os leigos a revelações desta espécie. Ao mesmo tempo, devo avisar a
comissão de que coisas muito piores estão por vir. Se algum dos senhores tem estômago delicado, sugiro que siga o
senador antes que seja tarde demais. . .
Bem, permitam que eu continue. Antes dos tempos modernos, toda alimentação se classificava em duas
categorias. A maior parte era fornecida por plantas – cereais, frutas, plâncton, algas e outras formas de vegetação.
Temos dificuldade em compreender que a imensa maioria dos nossos antepassados eram agricultores que retiravam
sua subsistência da terra ou do mar, socorrendo-se de técnicas primitivas e muitas vezes esfalfantes; mas essa é a
verdade. . O segundo tipo de alimento, se consentem que eu volte a esse desagradável assunto, era a carne,
produzida por um número relativamente pequeno de animais. Talvez os senhores estejam familiarizados com
alguns deles: vacas, porcos, ovelhas, baleias. A maioria das pessoas – lamento ter de sublinhar este fato, mas é
indisputável – preferiam a carne a qualquer outro alimento, posto que só os mais ricos podiam dar-se esse prazer.
Para a maioria dos homens, a carne era uma iguaria rara e ocasional numa dieta em mais de noventa por cento
vegetariana.
Se olharmos o assunto com espírito calmo e desapaixonado (como espero que o senador Irving já esteja em
condições de fazer), compreenderemos que a carne não podia deixar de ser rara e dispendiosa, pois a sua produção
segue um processo extremamente ineficiente. Para produzir um quilo de carne, o animal em causa tinha de ingerir
pelo menos dez quilos de alimentos vegetais – muitas vezes alimentos que poderiam ter sido consumidos
diretamente por seres humanos. Pondo de lado toda consideração estética, esse estado de coisas não podia ser
tolerado depois da explosão demográfica do século XX. Todo homem que comia carne estava condenando dez ou
mais de seus semelhantes a passarem fome...
Para felicidade de todos nós, os bioquímicos resolveram o problema; como os senhores talvez saibam, a
solução foi um dos incontáveis produtos colaterais da pesquisa espacial. Todo alimento, animal ou vegetal, é
sintetizado a partir de um pequeno número de elementos muito comuns. Carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio,
traços de enxofre e fósforo – essa meia dúzia de elementos, e mais alguns poucos, se combinam numa variedade
quase infinita de maneiras para formar qualquer alimento que o homem já tenha comido ou venha a comer.
Defrontando-se com o problema de colonizar a Lua e os planetas, os bioquímicos do século XXI descobriram o
modo de sintetizar qualquer alimento que se desejasse com as matérias-primas básicas da água, do ar e das rochas.
Essa foi a maior e talvez a mais importante conquista na história da ciência. Mas não devemos orgulhar-nos
demasiadamente disso. O reino vegetal já nos havia precedido por um bilhão de anos.
Os químicos podiam agora sintetizar qualquer alimento concebível, quer tivesse um correspondente na
natureza, quer não. É desnecessário dizer que houve erros – desastres mesmo. Impérios industriais surgiram e
tombaram; a transição da agricultura e da pecuária para as gigantescas usinas de beneficiamento e oniversores de
hoje foi dolorosa. Mas tinha de ser feita, e nós lucramos com isso. O perigo da fome foi afastado para sempre, e
hoje dispomos de uma riqueza e variedade de alimentos que não foi conhecida em nenhuma época anterior.
Houve além disso, naturalmente, um proveito moral. Já não assassinamos milhões de criaturas vivas, e
instituições tão revoltantes como o matadouro e o açougue desapareceram da face da Terra. Parece-nos incrível que
os nossos antepassados, apesar de grosseiros e brutais, pudessem ter tolerado tais atrocidades.
E contudo. . . é impossível romper totalmente com o passado. Como já observei, somos carnívoros; herdamos
gostos e apetites que foram adquiridos graças a milhões de anos de prática. Quer isso nos agrade, quer não, ainda
há poucos anos alguns de nossos bisavós deliciavam-se com carne de gado, ovelhas e porcos. . . quando podiam
consegui-la. E nós continuamos a deliciar-nos com ela. . .
Oh, que pena! Quem sabe se não é melhor o senador Irving ficar lá fora daqui por diante? Talvez eu não
devesse usar uma linguagem tão crua. Queria dizer, é claro, que muitos dos alimentos sintéticos que usamos hoje
têm a mesma fórmula dos velhos produtos naturais; alguns deles, em verdade, são reproduções tão exatas que
nenhum teste químico, ou seja lá de que natureza for, poderia revelar qualquer diferença. Essa situação é lógica e
inevitável; nós, os fabricantes, simplesmente tomamos como modelos os mais populares alimentos pré-sintéticos e
reproduzimos o seu paladar e a sua contextura.
Naturalmente, também criamos novos nomes que não aludiam a qualquer origem anatômica ou zoológica, de
modo que não lembrassem coisas tão desagradáveis. Quando os senhores entram num restaurante, a maioria das
palavras que encontram no cardápio foram inventadas depois do começo do século XXI, ou então adaptadas de
originais franceses que poucas pessoas poderiam reconhecer. Se um dia quiserem determinar o seu limiar de
tolerância, podem fazer um experimento interessante, embora um tanto desprazível. A seção de classificação da
Biblioteca do Congresso contém grande número de cardápios de restaurantes famosos – sim, e de banquetes da
Casa Branca também –, alguns dos quais datam de quinhentos anos atrás. Esses documentos têm uma crua
franqueza, própria de uma sala de dissecção, o que torna quase insuportável a sua leitura. Não me ocorre nada que
revele mais vivida-mente o abismo entre nós e nossos antepassados de há poucas gerações. . .
Sim, senhor presidente. . . estou chegando lá. Tudo isso de que falei é muito relevante, por mais desagradável
que possa ser. Não estou tentando roubar-lhes o apetite; tudo que faço é assentar as bases da acusação que pretendo
fazer à minha concorrente, a Triplanetary Food Corporation. A menos que os senhores compreendam essas bases,
poderão pensar que se trata de uma querela frívola, inspirada pelas perdas reconhecidamente sérias que sofreu a
minha firma depois de ter surgido no mercado a "Ambrosia Plus".
Novos alimentos, cavalheiros, são inventados todas as semanas. É difícil guardar registro deles. Aparecem e
desaparecem como as modas femininas, e apenas um dentre mil se torna um acréscimo permanente ao cardápio. É
extremamente raro que um deles conquiste a preferência do público de um dia para outro, e reconheço de bom
grado que a lista de receitas "Ambrosia Plus" foi o maior sucesso em toda a história da fabricação de alimentos.
Todos os senhores estão a par do que aconteceu: esses produtos varreram os outros todos do mercado.
Somos, naturalmente, forçados a aceitar o desafio.
Os bioquímicos da minha companhia, que não cedem a palma aos melhores do sistema solar, começaram
imediatamente a fazer a análise da linha "Ambrosia Plus". Não estou traindo nenhum segredo industrial quando
lhes digo que temos registros de praticamente qualquer alimento, natural ou sintético, que já tenha sido usado pela
humanidade – inclusive coisas tão exóticas, de que os senhores jamais ouviram falar, como lulas fritas, gafanhotos
no mel, língua de pavão, polípodes venusianos. . . Nossa enorme biblioteca de sabores e texturas é o nosso capital
industrial básico, como sucede com todas as firmas no ramo. Nela podemos escolher e misturar itens em qualquer
combinação imaginável; e em geral podemos reproduzir, sem muito trabalho, qualquer produto que nossos
concorrentes lancem no mercado.
Mas a "Ambrosia Plus" havia frustrado os nossos esforços durante um tempo considerável. O seu desdo-
bramento em proteínas e gorduras caracterizava-a inconfundivelmente como um tipo de carne, sem muitas com-
plicações . . . e contudo não podíamos reproduzi-la com exatidão. Era a primeira vez que os nossos químicos falha-
vam: nenhum deles podia explicar precisamente o que dava ao produto o seu extraordinário atrativo – o qual, como
sabemos, faz com que todos os outros alimentos pareçam insípidos, quando a ele comparados. E pudera.. . Mas
estou antecipando.
Para resumir, senhor presidente, o diretor-chefe da Triplanetary Foods virá dentro em pouco à presença dos
senhores. . . com certa relutância, tenho certeza. Ele lhes dirá que a "Ambrosia Plus" é sintetizada a partir de água,
ar, cálcio, fósforo, enxofre e tudo o mais. Isso é absolutamente verdadeiro, mas representa a parte menos impor-
tante da história. Porque agora descobrimos o seu segredo – o qual, como a maioria dos segredos, é muito simples
depois de conhecido.
Em sã consciência, devo dar parabéns ao meu concorrente. Conseguiu finalmente produzir em quantidades
ilimitadas algo que é, pela natureza das coisas, o alimento ideal para a humanidade. Até hoje esse alimento sempre
fora raríssimo e, por isso mesmo, extraordinariamente apreciado pelos poucos conhecedores que logravam obtê-lo
e que juravam, sem exceção, que nenhum outro podia ser-lhe comparado, ainda que de longe.
Sim, os químicos da Triplanetary realizaram um magnífico trabalho técnico. Agora compete aos senhores
julgar das implicações morais e filosóficas. Ao iniciar esta exposição de fatos, empreguei o termo arcaico
"carnívoro". Agora devo apresentar-lhes um outro. Vou soletrá-lo, letra por letra: A-N-T-R-O-P-Ó-F-A-G-O. ..
Maio de 1961.
MAELSTROM II
Ele não era o primeiro homem, disse Cliff Leyland a si mesmo com amargura, a saber exatamente em que
segundo e de que maneira precisa ia morrer. Milhões de vezes, criminosos condenados haviam aguardado o seu
derradeiro amanhecer. E contudo, até o último instante eles puderam esperar uma suspensão da pena; os juizes
humanos mostram clemência às vezes. Mas contra as leis da natureza não há apelação.
É apenas seis horas antes ele assobiava muito feliz, arrumando os seus dez quilos de bagagem pessoal para o
longo regresso à Terra! Ainda se lembrava (mesmo agora, depois de tudo o que acontecera) do seu sonho em que já
tinha Myra nos braços e ia levar Brian e Sue naquela prometida excursão Nilo abaixo. Dentro de poucos minutos,
quando a Terra despontasse acima do horizonte, poderia rever o Nilo; mas só a memória lhe colocaria diante dos
olhos os rostos da mulher e dos filhos. E tudo isso porque quisera economizar novecentos e cinqüenta dólares
esterlinos voltando na catapulta de carga, em vez de no foguete de linha...
Cliff já esperava que os primeiros vinte segundos de viagem seriam duros de agüentar, quando o projetor
elétrico lançava a cápsula na pista de dez milhas que a arremessava para fora da Lua. Mesmo com a proteção do
banho de água em que ficaria flutuando durante a contagem regressiva, ele não contara com as vinte gravidades da
partida. E no entanto, apesar da tremenda aceleração, Cliff mal tivera consciência das imensas forças que agiam
sobre ele. O único som era um débil ranger das paredes metálicas; para quem quer que houvesse experimentado o
trovão de um lançamento de foguete, o silêncio era fantástico. Quando o locutor da cabina anunciou: "H mais cinco
segundos; velocidade, três mil e duzentos quilômetros por hora", ele mal pôde acreditar que isso fosse verdade.
Três mil e duzentos quilômetros por hora, cinco segundos depois da largada – ainda com sete segundos pela
frente e os geradores acumulando uma fabulosa carga de força no projetor. Cliff cavalgava o raio sobre a face da
Lua. E em H mais vinte segundos, o raio falhou.
Mesmo no abrigo uterino do tanque, sentiu que havia algo de anormal. A água em que estava mergulhado,
até agora quase solidificada pelo próprio peso, pareceu ganhar vida repentinamente. Embora a cápsula ainda
corresse na pista, toda a aceleração havia cessado e ela movia-se apenas pelo impulso adquirido.
Cliff não teve tempo de sentir medo nem de perguntar-se o que tinha acontecido, pois a falha de força durou
pouco mais de um segundo. Depois, com um solavanco que sacudiu a cápsula de ponta a ponta e foi seguido por
uma série de baques tilintantes, assustadores, o campo tornou a se fazer sentir.
Quando a aceleração cessou definitivamente, todo o peso desapareceu com ela. Cliff não precisava de outro
instrumento além do seu estômago para saber que a cápsula havia deixado a extremidade da pista e estava se
afastando da superfície da Lua. Esperou, impaciente, que as bombas automáticas esvaziassem o tanque e os
secadores de ar quente fizessem o seu trabalho para ir ocupar o seu assento diante do painel de controle.
– Controle de lançamento – chamou numa voz urgente, ao mesmo tempo que afivelava os cintos de segu-
rança. – Que diabo de coisa foi essa?
Outra voz respondeu logo, viva e cheia de inquietude.
– Ainda estamos verificando. . . Daqui a vinte segundos tornaremos a chamá-lo. – E acrescentou, um
pouco atrasada: – Folgo em saber que você está bem.
Enquanto esperava, Cliff fez girar o periscópio para visão dianteira. Não havia nada à sua frente exceto
estrelas, o que estava certo. Pelo menos tinha partido quase
na velocidade planejada e não havia perigo de voltar a cair na Lua imediatamente. Mas cairia mais cedo ou
mais tarde, pois não era possível que tivesse alcançado a velocidade de escape. Devia estar subindo ao longo de
uma grande elipse, e dentro de poucas horas voltaria ao ponto de partida.
– Alô, Cliff – disse repentinamente o controle de lançamento. – Descobrimos o que aconteceu. Os interrup-
tores de circuito saltaram quando você se achava na Seção 5 da pista, de modo que a velocidade de partida baixou
em mil e cem quilômetros por hora. Isso o fará voltar em cinco horas e pouco; mas não se assuste, os seus jatos de
correção de rota podem colocá-lo numa órbita estável. Nós lhe diremos quando chegar o momento de dispará-los.
Depois, bastará ficar à espera até que mandemos alguém para apanhá-lo.
Lentamente, Cliff deixou-se relaxar. Tinha esquecido os foguetes de verniê da cápsula. Apesar de sua pouca
potência, podiam lançá-lo numa órbita que o livraria da Lua. Podia baixar a poucas milhas da superfície, rasando
montanhas e planícies a uma velocidade arrepiante, mas estaria em perfeita segurança.
Lembrou-se então daqueles baques tilintantes, vindos do compartimento de controle, e suas esperanças
tornaram a desmaiar, pois poucas coisas podiam quebrar-se num veículo espacial sem que isso acarretasse as mais
desagradáveis conseqüências.
Estava enfrentando essas conseqüências agora que tinham sido completadas as verificações finais dos
circuitos de ignição. Nem em Manual nem em Aut os foguetes de navegação disparavam. As modestas reservas de
combustível da cápsula, que o teriam salvo, eram totalmente ina-proveitáveis. Dentro de poucas horas completaria
a sua órbita – e voltaria ao ponto de partida.
"Será que vão pôr o meu nome na nova cratera?", pensou Cliff. "Cratera Leyland: diâmetro..." Que diâ-
metro?
"Não convém exagerar, acho que não medirá mais que uns duzentos metros. Quase não vale a pena botar no
mapa."
O controle de lançamento continuava silencioso, mas isso não era de surpreender. Que se podia dizer a um
homem que já era contado como morto? E contudo, embora ele soubesse que nada poderia alterar a sua órbita,
mesmo agora lhe era difícil acreditar que dentro em pouco os seus pedaços estariam espalhados sobre uma vasta
área do Outro Lado. Ainda estava se distanciando da Lua, muito cômodo na pequena cabina. A idéia da morte era
simplesmente absurda – como o é para todos os homens até o derradeiro momento.
Foi então que, por um breve instante, Cliff esqueceu o seu problema pessoal. O horizonte, diante dele, já não
estava vazio. Alguma coisa ainda mais brilhante do que a cegante paisagem lunar elevava-se sobre o fundo de
estrelas. Ao descrever sua curva em torno da Lua, a cápsula ia criando a única espécie possível de nascer da Terra
– aquele que é feito pelo próprio homem. Um minuto depois o espetáculo terminou, tal era a sua velocidade em
órbita. Num salto, a Terra despegara-se do horizonte e subia veloz no céu.
Estava por três quartos cheia, e era tal o seu brilho que quase não se podia fixá-la. Era um espelho cósmico,
feito não de rochas pardas e planícies de pó, mas de neve, nuvens e mar. Em verdade, era quase toda ela mar, pois
o Pacífico estava voltado para Cliff e o ofuscante reflexo do Sol cobria as ilhas do Havaí. A bruma da atmosfera –
almofada macia que deveria amortecer a sua descida poucas horas depois – obliterava todos os detalhes
geográficos; talvez aquela mancha mais escura emergindo da noite fosse a Nova Guiné, mas ele não podia ter
certeza.
Que amarga ironia em ver a ogiva da sua cápsula apontando diretamente para aquela adorável, brilhante apa-
rição! Mais mil e cem quilômetros por hora, e tê-la-ia alcançado. Mil e cem quilômetros por hora, tão pouco! Mas
agora, tanto fazia pedir um milhão como mil e cem.
O espetáculo da Terra subindo no céu lembrou-lhe, com força irresistível, o dever que ele temia mas não
podia mais protelar.
– Controle de lançamento – disse, mantendo com grande esforço a firmeza da voz –, por favor, me dê um
circuito para a Terra.
Essa foi uma das coisas mais estranhas que ele fez na sua vida: sentado ali, acima da Lua, ouvir o telefone
chamar na sua casa, a quase quatrocentos mil quilômetros de distância. Devia ser perto de meia-noite lá na África,
e a resposta tardaria um pouco a vir. Myra se remexeria na cama, estremunhada; depois, como era mulher de
astronauta, sempre alerta às más notícias, acordaria bruscamente. Mas ambos detestavam ter um telefone no quarto
de dormir, e ela demoraria pelo menos quinze segundos a acender a luz, fechar a porta do quarto do bebê para não
perturbá-lo, descer a escada e...
A voz da esposa chegou-lhe, clara e doce, através do espaço vazio. Ele a reconheceria em qualquer parte do
universo, e notou imediatamente o toque de ansiedade.
– Sra. Leyland? – disse a telefonista, na Terra. – Tenho um chamado do seu marido. Faça o favor de não
esquecer: dois segundos de demora.
Cliff perguntou a si mesmo quantas pessoas estariam escutando o telefonema, quer na Lua, quer na Terra ou
nos satélites de retransmissão. Era difícil falar pela última vez aos seres queridos quando não se sabia quantos
curiosos podiam estar ouvindo. Mas assim que começou a falar todo mundo deixou de existir, exceto Myra e ele
próprio.
– Meu bem, aqui é Cliff. Receio que eu não vá voltar para casa como tinha prometido. Houve um. . . uma
falha técnica. No momento estou perfeitamente bem, mas a situação é crítica.
Engoliu em seco e apressou-se a continuar antes que ela pudesse interrompê-lo. Com a maior concisão
possível, explicou-lhe de que se tratava. Tanto no seu próprio interesse como no dela, não abandonava de todo a
esperança.
– Todos estão dando o máximo de seus esforços. Talvez possam fazer chegar uma nave até aqui em tempo.
Mas caso não possam. . . bem, eu queria falar com você e as crianças.
Ela foi corajosa, como Cliff tinha previsto. Foi cheio de amor e de orgulho que ouviu a sua resposta, vinda do
lado escuro da Terra.
– Esteja tranqüilo, Cliff. Tenho certeza de que eles o livrarão dessa e nós gozaremos as nossas férias, apesar
de tudo, exatamente como tínhamos planejado.
– Eu também penso assim – mentiu ele. – Mas por via das dúvidas, quer fazer o favor de acordar as crian-
ças? Não lhes diga que estou em dificuldades.
Um interminável meio minuto passou-se antes que ele ouvisse as vozes sonolentas e contudo alvoroçadas dos
dois pequenos. Cliff sacrificaria de bom grado as poucas horas. de vida que lhe restavam para ver-lhes mais uma
vez os rostos, mas a cápsula, sobriamente equipada, não possuía televisão. Talvez fosse melhor assim, pois ele não
poderia ocultar-lhes a verdade se os olhasse nos olhos. Seus filhos não tardariam a ouvir a notícia – porém não dos
seus lábios. Queria dar-lhes apenas felicidade nesses últimos momentos de contato.
Entretanto, custou-lhe responder às perguntas deles, dizer-lhes que se veriam dentro em pouco, fazer
promessas que não poderia cumprir. Teve de usar todo o seu autodo-mínio quando Brian lhe lembrou o pó lunar
que ele esquecera de levar numa viagem anterior – porém não desta vez.
– Está aqui, Brian, num jarro bem às minhas costas. Dentro em pouco você poderá mostrá-lo aos seus ami-
gos. – (Não: dentro em pouco ele terá voltado ao mundo de onde veio.) – E você, Susie, seja boazinha e faça tudo
que mamãe lhe disser. O seu último boletim escolar não estava lá muito bom, como você sabe, principalmente
aquelas observações sobre o comportamento. . . Sim, Brian, eu tenho as fotografias e o pedaço de rocha que
apanhei em Aristarco...
Era duro morrer aos trinta e cinco anos; mas também era duro para um menino perder o pai aos dez. Que
lembrança guardaria Brian dele nos anos futuros? Nada mais, talvez, do que uma voz que se apagara no espaço,
pois ele havia passado tão pouco tempo na Terra! Nos derradeiros minutos, quando guinasse para fora e novamente
para a Lua, pouco poderia fazer a não ser projetar o seu amor e as suas esperanças através do vazio que nunca mais
tornaria a atravessar. O resto ficava a cargo de Myra.
Quando as crianças largaram o telefone, felizes mas intrigadas, ele teve muito que dizer. Era o momento de
conservar a serenidade, de ser objetivo e prático. Myra teria que enfrentar o futuro sem ele, mas pelo menos ele
podia facilitar a transição. O que quer que aconteça ao indivíduo, a vida continua: e, para o homem moderno, a
vida inclui hipotecas, prestações a pagar, apólices de seguros e contas bancárias conjuntas. Quase impessoalmente,
como se fosse um assunto alheio – o que, dentro em pouco, seria bem verdade –, Cliff começou a falar dessas
coisas. Há um tempo para o coração e um tempo para o cérebro. O coração diria a sua palavra final daí a três horas,
digamos, quando ele começasse a aproximar-se da superfície da Lua.
Ninguém os interrompeu. Devia haver monitores silenciosos mantendo a ligação entre os dois mundos, mas
era como se os dois fossem as únicas pessoas vivas. Às vezes, enquanto falava, Cliff deixava que seus olhos se
desviassem para o periscópio e fossem deslumbrados pelo esplendor da Terra, que já fizera mais de metade do seu
caminho no céu. Impossível acreditar que aquela fosse a morada de sete bilhões de almas. Só três lhe interessavam
agora.
Deveriam ser quatro, mas mesmo com a maior boa vontade do mundo não podia colocar o bebê no mesmo
plano que os outros. Nunca tinha visto o seu filho mais novo; e agora, nunca o veria.
Finalmente, não lhe ocorreu mais nada que dizer. Para certas coisas, uma vida inteira não bastava – mas uma
hora podia ser demais. Sentia-se física e emocional-mente exausto, e a tensão de Myra não devia ser menor. Queria
ficar a sós com os seus pensamentos e com as estrelas, para concertar as idéias e reconciliar-se com o universo.
– Eu gostaria de desligar por uma hora mais ou menos, querida – disse. Não havia necessidade de expli-
cações; eles se compreendiam demasiado bem. – Tornarei a chamá-la em. . . com tempo de sobra. Por enquanto,
adeus.
Esperou dois segundos e meio pelo adeus vindo da Terra, depois cortou o circuito e ficou fitando a mesinha
de controle com olhos vazios. Inesperadamente, sem desejo ou volição, as lágrimas brotaram e de súbito ele
desatou a chorar como uma criança.
Chorava pela sua família e por si mesmo. Chorava pelo futuro que poderia ter sido e pelas esperanças que
dentro em pouco seriam um vapor incandescente errando entre as estrelas. E chorava porque nada mais havia a
fazer.
Depois de algum tempo, sentiu-se muito melhor. Notou, mesmo, que tinha uma fome canina. Por que morrer
de estômago vazio? Pôs-se a rebuscar entre as rações espaciais na cozinha de bordo, pequenina como um armário.
Estava esguichando na boca um tubo de pasta de galinha e presunto quando o controle de lançamento chamou.
Foi uma voz nova que falou na outra extremidade da linha – uma voz pausada, firme e imensamente compe-
tente, dando a impressão de pertencer a um homem que nunca se deixava impressionar pelos caprichos de uma
maquinaria inanimada.
– Aqui é Van Kessel, chefe de manutenção, Divisão de Veículos Espaciais. Escute com atenção, Leyland.
Pensamos ter encontrado uma saída. O êxito é problemático, mas é a única chance que lhe resta.
As alternativas de esperança e desespero escangalham o sistema nervoso. Cliff sentiu uma vertigem
repentina; teria caído se houvesse uma direção em que cair.
– Continue – pediu ele em voz débil depois que se refez do choque. E ficou escutando Van Kessel com uma
sofreguidão que se mudou pouco a pouco em incredulidade.
– Não acredito! – exclamou finalmente. – Isso simplesmente não faz sentido!
– Não se pode argumentar com os computadores – retrucou Van Kessel. – Eles conferiram as cifras de umas
vinte maneiras diferentes. E faz sentido, sim. Você não estará se movendo com tanta rapidez no apogeu e não será
preciso um impulso muito forte para fazê-lo mudar de órbita. Suponho que nunca tenha usado um equipamento de
espaço livre, não é?
– Naturalmente que não.
– É pena.. . mas não faz mal. Se você seguir as instruções, não poderá errar. O traje está no armário do fundo
da cabina. Quebre o selo e puxe-o para fora.
Cliff percorreu flutuando o metro e oitenta que separava a mesa de controle da parte traseira da cabina e
acionou a alavanca que tinha uma etiqueta dizendo: Só para casos de emergência. Traje de espaço livre tipo 17. A
porta abriu-se, e lá estava, pendendo flácido, o rebrilhan-te tecido de prata.
– Tire a sua roupa, fique só de cueca e camiseta, e enfie-se dentro dele – disse Van Kessel. – Não perca
tempo com o bioestojo, deixe para engatar depois.
– Pronto – informou Cliff daí a pouco. – Que é que eu faço agora?
– Espere vinte minutos, quando lhe daremos sinal para abrir a eclusa de ar e saltar.
As implicações da palavra "saltar" penetraram subitamente no espírito de Cliff, que olhou em torno de si a
pequena cabina confortadora e já familiar, e pensou no espaço vazio entre as estrelas, o abismo silencioso onde um
homem podia cair até o fim dos tempos.
Nunca estivera no espaço livre; não havia razão para isso. Era um filho de fazendeiro, diplomado em
agronomia, subsidiado pelo Projeto de Recuperação do Saara, e estivera tentando cultivar cereais na Lua. O espaço
não era para ele; seu mundo eram o solo e a rocha, o pó lunar e a pedra-pomes formada no vácuo.
– Não tenho condições para isso – murmurou. – Não há nenhum outro meio?
– Não – volveu rudemente Van Kessel. – Estamos fazendo o possível para salvá-lo e esta não é ocasião para
ficar neurótico. Dúzias de homens têm se visto em situações muito piores, gravemente feridos, presos entre
destroços a um milhão de quilômetros de qualquer socorro. E você, que não sofreu um arranhão sequer, já está se
lamentando! Encha-se de coragem, ou nós desligamos e o deixamos entregue à sua sorte.
Aos poucos Cliff foi ficando vermelho e vários segundos se passaram antes que ele respondesse.
– Estou pronto – disse afinal. – Vamos ouvir de novo essas instruções.
– Ainda bem – aprovou Van Kessel. – Daqui a vinte minutos, quando estiver no apogeu, você se dirigirá
para a eclusa de ar. A partir desse momento deixaremos de estar em comunicação; o rádio que você leva embutido
na sua roupa só tem um alcance de dez milhas. Mas nós o estaremos rastreando no radar e poderemos lhe falar
quando você tornar a passar por cima de nós. Bem, quanto aos controles que leva no traje...
Os vinte minutos passaram bastante depressa. Já então Cliff sabia exatamente o que devia fazer. Chegara até
a acreditar que poderia dar certo.
– Está na hora de saltar – disse Van Kessel. – A cápsula está corretamente orientada, com a eclusa de ar
apontando para o caminho que você deverá seguir. Mas não é a direção, é a velocidade que realmente importa.
Concentre todas as suas energias nesse salto, e boa sorte!
– Obrigado – foi a inadequada resposta de Cliff. – Lamento ter...
– Esqueça isso – interrompeu Van Kessel. – Agora ande!
Pela última vez Cliff olhou em redor de si, na minúscula cabina, perguntando-se se não teria esquecido
alguma coisa. Todos os objetos pessoais tinham de ser abandonados, mas seria bastante fácil substituí-los.
Lembrou-se, então, do pequeno jarro de pó lunar que prometera a firian: desta vez não havia de decepcioná-lo. A
diminuta massa da amostra – uns cem gramas apenas – não influiria no seu destino. Amarrou um barbante em volta
do gargalo do jarro e o prendeu ao arnês da roupa espacial.
A eclusa de ar era tão pequena que literalmente não havia espaço para mover-se ali. Cliff ficou entalado entre
as portas de entrada e de saída até completar-se a seqüência de bombeamento automático. Aí a parede abriu-se len-
tamente para fora e ele ficou de cara para as estrelas.
Com os dedos desajeitados dentro das luvas, içou-se para fora da eclusa e plantou-se verticalmente sobre a
curva pronunciada do casco, agarrando-se vigorosamente a ela pelo cabo de segurança. O esplendor da cena quase
lhe tolhia os movimentos. Esqueceu todos os seus receios de vertigem, todo o perigo, ao olhar em redor de si, não
mais limitado pelo estreito campo de visão do periscópio.
A Lua era um crescente gigantesco e a linha divisória entre o dia e a noite, um arco serrilhado estendendo-se
sobre a quarta parte do céu. Lá embaixo o Sol ia se pondo, no começo da longa noite lunar, mas aqui e além alguns
picos isolados ainda chamejavam à derradeira luz do dia, desafiando a escuridão que já os tinha cercado.
Essa escuridão não era completa. Embora o Sol já houvesse abandonado a planície e as faldas dos montes, a
Terra quase cheia vestia-se de esplendor. Cliff podia ver,
débeis mas claros na suave luz terrestre, os contornos dos mares e dos platôs, as estrelas apagadas dos cumes,
os círculos escuros das crateras. Voava sobre uma região adormecida, fantasmática, que procurava arrastá-lo para a
sua morte. Porque agora estava no ponto mais alto da sua órbita, na exata linha divisória entre a Lua e a Terra. Era
o momento de saltar.
Dobrou os joelhos, pondo-se de cócoras sobre o casco. Depois, com toda a força, arremessou-se na direção
das estrelas, deixando correr às suas costas o cabo de segurança.
A cápsula recuou com surpreendente rapidez, e nesse mesmo instante ele experimentou uma sensação
inesperada. Tinha previsto o terror e a vertigem, porém não esse inconfundível, obsessivo sentimento de
familiaridade. Tudo isso havia acontecido antes; não a ele, evidentemente, mas a alguma outra pessoa. Não podia
localizar a recordação, nem tinha tempo para isso agora.
Deu um rápido relance de olhos à Terra, à Lua e à espaçonave cada vez mais distante, e tomou consciente-
mente a decisão. O cabo soltou-se quando acionou o mecanismo de desengate instantâneo. Agora estava sozinho,
três mil quilômetros acima da Lua e a quatrocentos mil da Terra. Nada podia fazer senão esperar; duas horas e
meia se passariam antes que ele soubesse se poderia viver, e se os seus músculos tinham executado a tarefa em que
fracassaram os foguetes.
E vendo as estrelas revolutear à sua volta, subitamente identificou a origem daquela recordação obsessiva.
Fazia muitos anos que lera os contos de Poe, mas quem podia esquecê-los?
Ele também fora apanhado num maelstrom que o arrastava para a morte, e também ele esperava escapar
abandonando o seu barco. Embora as forças em jogo diferissem totalmente entre si, o paralelo era impressionante.
O pescador de Poe amarrara-se a um barril porque os objetos cilíndricos e rombudos eram tragados pelo grande re-
moinho mais lentamente que o navio. Uma brilhante aplicação das leis da hidrodinâmica. Tudo que podia fazer era
esperar que o seu uso da mecânica celeste fosse igualmente bem inspirado.
Com que velocidade saltara da cápsula? Seguramente, a uns bons oito quilômetros por hora. Por mais
insignificante que fosse essa velocidade numa escala astronômica, devia ser suficiente para lançá-lo numa nova
órbita – uma órbita que, segundo lhe prometera Van Kessel, o colocaria várias milhas acima da Lua. A margem
não era muito grande, mas bastaria nesse mundo sem ar, onde não havia atmosfera para retardar e finalmente
anular o movimento adquirido.
Com um repentino espasmo de culpa, Cliff lembrou-se de que não tinha feito aquele segundo chamado a
Myra. Culpa de Van Kessel; o engenheiro não lhe dera tréguas, nem um instante para refletir sobre os seus
assuntos particulares. E Van Kessel tinha razão: numa situação como essa, um homem só podia pensar em si
mesmo. Todos os seus recursos, mentais e físicos, deviam concentrar-se na sobrevivência. Não era ocasião nem
lugar para deixar-se distrair por laços debilitantes de amor.
Ele corria agora para o lado noturno da Lua e o crescente iluminado ia se encolhendo sob os seus olhos. O in-
suportável disco do Sol, que ele não ousava olhar, descia rapidamente no horizonte curvo. O crescente lunar redu-
ziu-se a uma linha de luz ardente, um arco de fogo retesa-do entre as estrelas. Depois o arco fragmentou-se numa
dúzia de contas brilhantes, que se apagaram uma a uma enquanto ele penetrava na sombra da Lua.
Com o sumir do Sol, a luz terrestre pareceu mais viva do que nunca, cobrindo-lhe a roupa de uma geada de
prata enquanto ele girava lentamente sobre si mesmo na sua órbita. Cada revolução durava cerca de dez segundos:
nada podia fazer para impedir esse movimento, e, na verdade, comprazia-se no panorama a mudar constantemente.
Agora que seus olhos não eram mais ofuscados por vislumbres ocasionais do Sol, podia ver estrelas aos milhares
onde antes só distinguia centenas. As constelações familiares perdiam-se e até os planetas mais brilhantes eram
difíceis de encontrar naquele fulgor de luz.
O disco escuro da noite lunar estendia-se através do campo de estrelas como uma sombra eclipsante e crescia
pouco a pouco, à medida que Cliff ia caindo na sua direção. A todo instante uma estrela, fraca ou cintilante,
piscava e desaparecia por trás da sua borda. Era como um buraco que estivesse crescendo no espaço e devorando
pouco a pouco o céu.
Não havia nenhuma outra indicação do seu movimento ou da passagem do tempo – salvo a sua rotação, num
período uniforme de dez segundos. Olhou o relógio e ficou assombrado de ver que havia abandonado a cápsula
meia hora atrás. Procurou-a entre as estrelas, inutilmente. Já então, devia ter ficado algumas milhas para trás. Mas
dentro em pouco o ultrapassaria, seguindo a sua órbita mais baixa, e seria a primeira a chegar à Lua.
Cliff ainda se entrelinha com esse paradoxo quando a tensão das últimas horas, combinada com a euforia da
ausência de peso, produziram um resultado que ele não teria julgado possível. Embalado pelo brando sussurro das
entradas de ar, flutuando mais leve que uma pena em sua rotação sob a estrelas, mergulhou num sono sem sonhos.
Quando despertou, a algum aviso do inconsciente, a Terra aproximava-se da orla da Lua. Esse espetáculo
quase lhe causou uma nova onda de autocomiseração, e por um momento teve de lutar para controlar suas
emoções. Essa podia ser a última vez que via a Terra, pois a sua órbita o levava para o Outro Lado, para as regiões
onde nunca brilhava a luz terrestre. A alvinitente calota de gelo antártico, o cinturão de nuvens equatoriais, a
cintilação do sol no Pacífico – tudo isso se ia afundando rapidamente por trás das montanhas lunares. Por fim,
desapareceu; ele não tinha, agora, nem o Sol nem a Terra para iluminá-lo, e o território invisível lá embaixo era tão
negro que lhe doía nos olhos.
Mas, coisa incrível, um punhado de estrelas aparecera dentro do disco escurecido, onde não era possível que
houvesse estrelas. Cliff fixou-se nelas assombrado durante alguns segundos, e então compreendeu que estava
passando sobre uma das colônias do Outro Lado. Lá embaixo, sob os domos pressurizados da sua cidade, homens e
mulheres aguardavam a passagem da noite lunar, dormindo, trabalhando, amando, repousando, disputando.
Saberiam que ele passava lá em cima como um meteoro invisível no céu, voando sobre as cabeças deles a seis mil
e quinhentos quilômetros por hora? Era certo que sabiam, pois a essa altura a Lua inteira e toda a Terra deviam ter
notícia do seu transe. Talvez buscassem localizá-lo nas telas de radar, com os telescópios, mas tinham muito pouco
tempo para encontrá-lo. Em questão de segundos a cidade desconhecida desapareceu das vistas e ele ficou mais
uma vez sozinho no céu do Outro Lado.
Era impossível avaliar a sua altitude sobre o deserto lá embaixo, pois não podia ter nenhuma noção de escala
ou de perspectiva. Às vezes lhe parecia que poderia estender a mão e tocar na escuridão sobre a qual voava;
contudo, sabia que em realidade ela devia estar ainda muitos quilômetros abaixo. Mas também sabia que
continuava a descer, e que a qualquer momento uma das muralhas de crateras ou picos de montanha que cresciam
invisíveis para ele poderia arrebatá-lo ao céu.
Na escuridão, em algum ponto à frente, erguia-se o obstáculo decisivo, o perigo que ele temia mais do que
qualquer outro. Atravessando o coração do Outro Lado, transpondo o equador de norte a sul numa muralha de mais
de mil milhas de comprimento, estendia-se a cordilheira dos Sovietes. Cliff era menino em 1959, quando ela fora
descoberta, e ainda se lembrava do alvoroço com que tinha visto as primeiras fotografias borradas que o Lunik III
enviara. Jamais poderia ter sonhado que um dia estaria voando na direção dessas mesmas montanhas, que decidi-
riam o seu destino.
A primeira erupção da alvorada apanhou-o completamente de surpresa. A luz explodiu à sua frente, saltando
de pico em pico até que todo o arco do horizonte ficou nimbado de luz. Ele ia saindo da noite lunar e olhava direta-
mente para a face do Sol. Pelo menos não morreria no escuro, mas o maior perigo ainda estava por vir. Pois agora
Cliff tinha quase voltado ao lugar de onde partira e aproximava-se do ponto mais baixo da sua órbita. Consultou o
cronômetro embutido na roupa espacial e viu que já tinham decorrido cinco horas inteiras. Dentro de minutos iria
bater na Lua – ou passaria numa tangente e voltaria, fora de perigo, ao espaço livre.
Tanto quanto podia julgar, achava-se a menos de trinta quilômetros da superfície e continuava a descer, se
bem que muito lentamente, agora. Abaixo dele, as compridas
sombras da aurora lunar eram punhais de escuridão apontando para a planície noturna. Os raios de sol,
extremamente oblíquos, exageravam todas as elevações do terreno, fazendo com que até as menores colinas
parecessem montanhas. E agora, inconfundivelmente, a região à sua frente começava a elevar-se, enrugando-se nos
contrafortes da cordilheira dos Sovietes. A mais de cem milhas de distância, mas aproximando-se à razão de uma
milha por segundo, uma onda de rochas elevava-se da face da Lua. Não era possível fazer nada para evitá-la; seu
caminho estava inal-teravelmente fixado. Tudo que se podia fazer já fora feito, havia duas horas e meia.
Mas não bastava. Não ia subir acima dessas montanhas; as montanhas é que subiriam acima dele.
Lamentava, agora, ter deixado de fazer o segundo chamado à mulher que ainda esperava a quatrocentos mil
quilômetros dali. Contudo.. . quem sabe se não era melhor assim, já que não restava mais nada a dizer.
Outras vozes chamavam no espaço à sua volta, pois estava mais uma vez ao alcance do controle de
lançamento. Essas vozes cresciam e minguavam à proporção que ele voava entre as sombras de rádio criadas pelas
montanhas; falavam a seu respeito, mas isso o deixou quase indiferente. Escutava com um interesse impessoal,
como se fossem mensagens provindas de algum ponto remoto do espaço, com as quais nada tinha a vèr. Em dado
momento ouviu, bem nítida, a voz de Van Kessel dizer: "Diga ao comandante do Callisto que nós lhe daremos uma
órbita de inter* cepção logo que Leyland tiver ultrapassado o perigeu. O momento do encontro deverá ser daqui a
uma hora e cinco minutos". "Lamento decepcioná-los", pensou Cliff, "mas esse será um encontro a que eu não
poderei comparecer."
A muralha de rocha estava agora a apenas oitenta quilômetros de distância, e cada vez que ele completava
uma volta sobre si mesmo, inerme no espaço, ela ficava dezesseis quilômetros mais perto. Não havia mais lugar
para otimismo, pois ele ia, mais rápido do que uma bala de rifle, ao encontro da implacável barreira. Era o fim – e,
subitamente, assumiu grande importância saber se iria contra ela de rosto, com os olhos abertos, ou voltando-lhe as
costas, como um covarde.
Nenhuma memória do passado atravessou o pensamento de Cliff enquanto ele contava os segundos que lhe
restavam. A paisagem lunar rotava abaixo dele, desenrolan-do-se velozmente, cada detalhe bem destacado e nítido
à luz crua da aurora. Agora estava voltando de costas para as montanhas que se precipitavam na sua direção,
olhando para o caminho que havia percorrido, o caminho que deveria tê-lo conduzido à Terra. Não lhe restavam
mais que três de seus dias de dez segundos.
Foi então que a paisagem lunar explodiu em chamas silenciosas. Uma luz tão feroz quanto a do Sol apagou
as longas sombras, arrancando faíscas de fogo dos picos e crateras dispersos lá embaixo. Não durou mais que uma
fração de segundo, e tinha se dissipado completamente antes que ele se voltasse para a sua fonte.
Bem em frente, a apenas trinta quilômetros de distância, uma vasta nuvem de pó expandia-se na direção das
estrelas. Era como se um vulcão tivesse entrado em erupção na cordilheira dos Sovietes – mas isso, naturalmente,
era impossível. Não menos absurda foi a segunda explicação de Cliff – que, por alguma fantástica proeza de
organização e logística, a Divisão de Engenharia do Outro Lado tivesse feito saltar o obstáculo que se levantava no
seu caminho.
Pois o obstáculo desaparecera. Uma enorme dentada em forma de crescente fora arrancada à paisagem que
avançava, cada vez mais próxima; rochas e detritos continuavam a saltar de uma cratera que não existia cinco
segundos atrás. Só a energia de uma bomba atômica que houvesse explodido no momento exato em seu caminho
podia ter realizado tão prodigioso milagre. E Cliff não acreditava em milagres.
Tinha executado outra rotação completa e estava quase em cima das montanhas quando se lembrou de que,
durante todo esse tempo, houvera um buldozer cósmico mo-vendo-se invisível à sua frente. A energia cinética da
cápsula abandonada – mil toneladas viajando a mais de uma milha por segundo – era suficiente para ter aberto
aquela bocaina por sobre a qual ele voava agora. O impacto desse meteoro de fabricação humana devia ter
sacudido o Outro Lado inteiro.
A sorte sorriu-lhe até o fim. Houve um breve bombardeio de partículas de pó contra a sua roupa espacial e
ele pôde vislumbrar vagamente rochas aquecidas ao vermelho e nuvens de fumaça que se dispersavam rapidamente
lá embaixo. (Como era estranho ver uma nuvem na Lua!) E quando se deu conta, havia atravessado as montanhas e
nada tinha diante de si senão o abençoado céu vazio.
Algures, lá no alto, em sua segunda órbita e daí a uma hora, o Callisto viria ao seu encontro. Mas já não
havia pressa; ele escapara ao maelstrom. Para bem ou para mal, o dom da vida lhe fora concedido.
Lá estava a pista de lançamento, poucas milhas à direita da sua trajetória; parecia um risco tênue como um
fio de cabelo sobre a face da Lua. Dentro de poucos momentos estaria ao alcance do rádio. E então, cheio de
gratidão e alegria, poderia fazer o segundo chamado para a Terra, para a mulher que ainda esperava na noite
africana.
Maio de 1962.

OS LUMINOSOS
Quando a mesa de ligações disse que a Embaixada soviética estava na linha, minha primeira reação foi: "Óti-
mo, mais um serviço!" Mas assim que ouvi a voz de Gont-charov compreendi que havia complicação.
– Klaus? Fala Mikhail. Você pode vir aqui, sem demora? É muito urgente, e não posso explicar pelo
telefone.
Foi cheio de inquietude que fiz todo o trajeto até a Embaixada, mobilizando as minhas defesas para o caso de
sermos responsáveis por alguma coisa que não tivesse dado certo. Mas não me ocorreu nada; no momento não
tínhamos nenhum contrato importante com os russos. O último serviço fora completado há seis meses, dentro do
prazo estipulado e com inteira satisfação deles.
Pois já não estavam satisfeitos, como não tardei a descobrir. Mikhail Gontcharov, o adido comercial, era um
velho amigo meu. Disse-me tudo que sabia, e não era muito.
– Acabamos de receber um cabograma urgente do Ceilão. Querem que você vá lá imediatamente. Há uma
séria complicação com o projeto hidrotérmico.
– Que espécie de complicação? – perguntei. Logo percebi, naturalmente, que devia ser no fundo do mar,
pois essa era a única parte da instalação que nos fora confiada. Os próprios russos tinham realizado o trabalho em
terra, mas foram obrigados a chamar-nos para assentar aquelas grades novecentos metros sob o nível do oceano
Indico.
Não existe no mundo outra firma que possa honrar o nosso lema: QUALQUER SERVIÇO A QUALQUER
PROFUNDIDADE.
– Tudo que eu sei – disse Gontcharov – é que os engenheiros locais falam de uma paralisação total, que o
primeiro-ministro do Ceilão vai inaugurar a usina daqui a três semanas, e que o governo soviético ficará muito des-
gostoso se a usina não estiver funcionando nessa data.
Recapitulei mentalmente, com rapidez, as cláusulas do nosso contrato que diziam respeito às penalidades. A
firma parecia estar resguardada, porque o cliente assinara o1 recibo, admitindo, implicitamente, que o trabalho
estava a seu contento. Mas a coisa não era tão simples assim; se fosse provado que houvera negligência de nossa
parte, podíamos estar livres de uma ação judicial – mas isso seria péssimo para os negócios. E seria ainda pior para
mim, pessoalmente, pois fora eu o supervisor do projeto na fossa
Trinco.
Não me chamem de mergulhador, por piedade; detesto esse nome. Sou um engenheiro de mar fundo, e uso
aparelhos de imersão mais ou menos com a mesma freqüência com que um aviador usa pára-quedas. A maior parte
do meu trabalho é feita com TV e com robôs de controle remoto. Quando eu mesmo sou obrigado a descer, vou
dentro de um míni-submarino com manipuladores externos. Nós o chamamos "lagosta" por causa das garras; o
modelo padrão trabalha até a mil e quinhentos metros de profundidade, mas existem modelos especiais que
poderiam funcionar no fundo da fossa das Marianas. Eu mesmo nunca estive lá, mas terei muito prazer em
especificar as condições se os senhores estiverem interessados. Numa estimativa aproximada, isso lhes custará um
dólar por pé de profundidade, mais mil dólares por hora de trabalho.
Compreendi que os russos não estavam brincando quando Mikhail disse que um jato me esperava em
Zurique e perguntou se eu podia estar no aeroporto dentro de duas
horas.
– Escute – disse eu –, não posso fazer nada sem equipamento, e aquele de que precisamos para uma inspeção
pesa toneladas. Além disso, tudo está em Spezia.
– Eu sei – retrucou Mikhail, implacável. – Vamos mandar lá outro jato de transporte. Passe um cabograma
do Ceilão assim que souber tudo de que vai precisar; as coisas estarão no local em doze horas. Mas, por
favor, não fale disso a ninguém; preferimos guardar segredo sobre os nossos problemas.
Concordei com isso, pois o problema era meu também. Quando deixei o escritório, Mikhail apontou para o
calendário de parede, repetiu: "Três semanas", e passou o dedo de través sobre a garganta. E eu bem sabia que ele
nãó estava pensando na sua garganta.
Duas horas mais tarde estava eu sobrevoando os Alpes, despedindo-me da família pelo rádio e perguntando-
me por que, como todo suíço sensato, não me tornara banqueiro ou fabricante de relógios. Os culpados de tudo isso
eram os Picard e os Hannes Keller, dizia tristemente a mim mesmo; por que foram eles iniciar essa tradição do mar
profundo, e logo na Suíça, vejam só!? Depois tratei de dormir, sabendo que teria poucas oportunidades para isso
nos dias que se seguiriam.
Pousamos em Trincomalee pouco depois do amanhecer. O enorme e complicado porto – cuja topografia nun-
ca cheguei a dominar de todo – era um labirinto de cabos, ilhas, canais de interconexão e bacias bastante grandes
para comportar todas as armadas do mundo. Pude ver o imenso edifício branco da direção, de estilo algo
exuberante, num promontório sobranceiro ao oceano Indico. Aquilo era pura propaganda – ainda que, se eu fosse
russo, naturalmente o teria chamado de "relações públicas".
Não que realmente censurasse os meus clientes; eles tinham razão de sobra para se orgulharem desse
empreendimento, a mais ambiciosa tentativa já feita para explorar a energia térmica do mar. Não era, aliás, a
primeira. Houvera a do cientista francês Georges Claude, na década de 30 – mal sucedida –, e outra de muito
maiores proporções, em Abidjan, na Costa do Marfim, duas décadas depois.
Todos esses projetos baseavam-se num só e surpreendente fato: mesmo nos trópicos, a temperatura da água
uma milha abaixo do nível do mar é quase a de congelação. Tratando-se de bilhões de toneladas de água, essa
diferença de temperatura representa uma quantidade colossal de energia – e um magnífico desafio aos engenheiros
dos países que padecem fome de força motriz.
Claude e os seus sucessores haviam tentado aproveitar essa energia com motores a vapor de baixa pressão; os
russos usaram um método muito mais simples e direto. Sabia-se, havia mais de um século, que se estabelecem
correntes elétricas em muitos materiais quando uma das extremidades é aquecida e a outra resfriada, e desde a
década de 40 os cientistas russos vinham trabalhando com a mira em utilizar esse efeito "termelétrico" para
finalidades práticas. Os primeiros dispositivos que eles inventaram não eram muito eficientes – conquanto
servissem para fornecer energia a milhares de aparelhos de rádio mediante o uso de lampiões de querosene. Mas
em 1974 eles tinham dado um grande passo à frente, embora ainda guardassem segredo a esse respeito: mesmo eu,
que havia instalado os elementos de força na extremidade fria do sistema, nunca chegara a vê-los realmente, pois
estavam completamente escondidos sob tinta anticorrosiva. Só sei que formavam uma vasta grade, como centenas
de radiadores de tipo antigo atarrachados uns aos outros.
Reconheci a maioria dos rostos na pequena multidão que esperava no campo de pouso de Trinco; amigos ou
inimigos, todos pareciam contentes com a minha chegada – especialmente o engenheiro-chefe Chapiro.
– Então, Lev – perguntei quando nos afastávamos na camioneta –, qual é o galho?
– Não sabemos – respondeu ele com toda a singeleza. – Compete a nós descobrir. . . e remediar.
– Bem, mas o que foi que aconteceu?
– Tudo funcionou perfeitamente até que começaram os testes de plena potência. O rendimento foi de
noventa e cinco por cento das estimativas até à uma hora e trinta e quatro minutos de terça-feira. – Fez uma careta;
evidentemente, essa hora ficara gravada na sua sensibilidade. – Aí a voltagem começou a flutuar violentamente, de
modo que cortamos a carga e ficamos observando os medidores. Pensei que algum imbecil comandante de navio
tivesse enredado os cabos (você se lembra do trabalho que tivemos para evitar que isso acontecesse) e mandei ligar
os holofotes para explorar o mar. Não havia um só navio à vista.
Afinal de contas, quem tentaria fundear no lado de fora do porto com uma noite clara e serena?
"Nada podíamos fazer, exceto observar os instrumentos e continuar testando; vou lhe mostrar todos os
gráficos quando chegarmos ao escritório. Ao cabo de quatro minutos tudo ficou em circuito aberto. Pudemos
localizar exatamente a interrupção, é claro. Está na parte mais profunda, na própria grade. Logo lá havia de estar, e
não nesta extremidade do sistema", acrescentou melancolicamente, apontando para fora da janela.
Estávamos passando pelo reservatório solar, o equivalente da caldeira num motor térmico convencional. Era
uma idéia que os russos haviam tomado de empréstimo aos israelenses – um simples lago raso, com o fundo
pintado de preto e contendo uma solução concentrada de sal marinho. Esse dispositivo age como um eficientíssimo
captador de calor e os raios do sol fazem subir a temperatura do líquido a quase noventa graus centígrados. Nele
estavam submergidas as grades "quentes" do sistema termelétrico, a uma profundidade de duas braças. Maciços
cabos ligavam-nas ao meu território num ambiente oitenta graus mais frio e situado novecentos metros abaixo, no
canyon submarino que se estende até a entrada do ancoradouro de Trinco.
– Suponho que você tenha pensado na possibilidade de um terremoto – disse eu, não muito esperançoso.
– Naturalmente. O sismógrafo não marcou nada.
– E as baleias? Eu o avisei de que elas podiam criar complicações.
Mais de um ano atrás, quando os condutores-tronco estavam sendo deitados ao mar, eu falara aos
engenheiros sobre o cachalote afogado que encontraram enredado num cabo telegráfico a meia milha da costa sul-
americana. Conhece-se uma dúzia de casos semelhantes – mas o nosso, segundo parecia, não era um deles.
– Essa foi a segunda coisa em que pensamos – respondeu Chapiro. – Recorremos ao Departamento de Pesca,
ao Exército e à Aeronáutica. Não havia baleias na costa.
Foi neste ponto que parei de teorizar, pois ouvi alguma coisa que me deixou um pouco incomodado. Como
todo suíço, tenho o dom das línguas e aprendi o meu pouco de russo. Aliás, não era preciso ser tão bom lingüista
para reconhecer a palavra "sabota}".
Ela fora pronunciada por Dmítri Karpúkhin, o consultor político do projeto. Eu não gostava dele, nem tam-
pouco os engenheiros, que às vezes chegavam a ser grosseiros com o camarada. Era um desses comunistas à moda
antiga que nunca saíram totalmente da sombra de Stálin, e suspeitava de tudo que ficava fora da União Soviética e
da maioria das coisas dentro dela. A sabotagem não podia deixar de ser a explicação de sua preferência.
Havia, é claro, muita gente que não ficaria de coração despedaçado se o Projeto Trinco falhasse.
Politicamente, o prestígio da URSS estava em jogo; economicamente, o caso envolvia bilhões, porque, se as usinas
hidrotérmicas fossem bem sucedidas, poderiam competir com o petróleo, o carvão, a força hidráulica e,
especialmente, a energia
nuclear.
Apesar disso, eu não podia acreditar realmente em sabotagem. Afinal de contas, a guerra fria tinha
terminado. A rigor, era possível que alguém tivesse feito uma tentativa inepta de colher uma amostra da grade, mas
até isso parecia improvável. Eu podia contar nos dedos o número de pessoas, no mundo inteiro, que se disporiam a
fazer esse trabalho – e a metade delas estava na minha folha de pagamento.
A câmara subaquática de TV chegou nessa mesma tarde e, trabalhando a noite inteira, conseguimos colocar
câmaras, monitores e mais de uma milha de cabo coaxial a bordo de uma lancha. Ao deixarmos o porto julguei ver
uma figura familiar no molhe, mas estava muito longe para ter certeza e tinha outras coisas em que pensar. É
preciso que lhes diga que não sou bom marinheiro; só me sinto realmente feliz debaixo do mar.
Tomando como ponto de referência o farol da Round Island, estacionamos diretamente acima da grade. A
câmara automotora, que parecia um batiscafo anão, desceu pela borda; de olho nos monitores, nós a
acompanhamos em espírito.
A água estava extremamente límpida e vazia, mas ao nos aproximarmos do fundo notamos alguns sinais de
vida. Veio um pequeno tubarão que se pôs a encarar-nos. De-
pois uma vesícula de gelatina pulsante passou, arrastada pela corrente, seguida de uma coisa que parecia uma
enorme aranha, com centenas de patas peludas que se enredavam e enroscavam umas nas outras. Finalmente
divisamos a muralha inclinada do canyon. Estávamos bem em cima do alvo e pudemos distinguir os grossos cabos
que mergulhavam nas suas profundezas, tal como eu os tinha visto ao realizar a última vistoria da instalação, seis
meses atrás.
Liguei os jatos de baixa potência e deixei que a câmara derivasse ao longo dos cabos de força. Estes
pareciam estar em perfeitas .condições, ainda ancorados pelos pregões de aço que tínhamos cravado na rocha. Só
depois de chegar à própria grade foi que notei sinais de perturbação.
Vocês já viram a grade do radiador de um automóvel depois que bateu num poste? Pois uma parte dessa
grade tinha um aspecto muito parecido. Estava completamente deformada, como se um louco a tivesse golpeado
com um malho.
Ouvi exclamações de assombro e cólera das pessoas que olhavam por cima do meu ombro. Ouvi
resmungarem novamente a palavra "sabota]" e, pela primeira vez, comecei a tomá-la a sério. A única explicação
restante que fazia sentido era a queda de algum pedrouço, mas as vertentes do canyon tinham sido cuidadosamente
estudadas em previsão dessa possibilidade.
Fosse qual fosse a causa, era preciso substituir a grade avariada. Isso só poderia ser feito depois que a minha
lagosta, com suas vinte toneladas, viesse por avião das docas de Spezia, onde a guardávamos entre um serviço e
outro.
– E então? – perguntou Chapiro quando terminei a minha inspeção visual e fotografei o lamentável
espetáculo que a tela nos oferecia. – Quanto tempo isso vai tomar?
Não quis comprometer-me. A primeira coisa que aprendi neste negócio subaquático é que nenhum trabalho
corre como se espera. As estimativas de custo e tempo nunca podem ser seguras porque só quando estamos em
plena execução de um contrato podemos fazer uma idéia exata do que temos pela frente.
Minha conjetura pessoal era três dias. Portanto, respondi:
– Se tudo correr bem, não deverá tomar mais de uma semana.
Chapiro deixou escapar um gemido.
– Não pode fazer isso mais depressa?
– Não quero provocar o destino fazendo promessas imprudentes. Em todo caso, isso ainda lhe deixa duas se-
manas antes da inauguração.
Ele teve de contentar-se com isso, embora continuasse a me atucanar durante toda a viagem de regresso ao
porto. Quando lá chegamos, Chapiro teve outro assunto com que se preocupar.
– Bom dia, Joe – disse eu ao homem que ainda esperava pacientemente no molhe. – Julguei reconhecê-lo
quando íamos saindo. Que é que você está fazendo aqui?
– Ia lhe fazer a mesma pergunta.
– É melhor perguntar ao meu patrão. Engenheiro-chefe Chapiro, apresento-lhe Joe Watkins, correspondente
científico do Time.
A reação de Lev não foi muito cordial. Normalmente, nada lhe agradaria mais do que falar com jornalistas,
que ali apareciam na proporção de um por semana, mais ou menos. Agora, com a aproximação da data crucial, eles
começariam a vir de todos os lados. Inclusive, naturalmente, da Rússia. Mas, nesse momento, a Tass seria tão mal
recebida quanto o Time.
Foi divertido ver Karpúkhin encarregar-se da situação. Daí em diante, Joe teve permanentemente ao seu lado,
como guia, filósofo e companheiro de libações, um jeitoso rapaz, tipo relações-públicas, chamado Serguei Markov.
A despeito dos esforços de Joe, os dois tornaram-se inseparáveis. No meio da tarde, cansado após uma longa
conferência no escritório de Chapiro, fui ter com eles para um almoço fora de hora na casa de repouso do governo.
– Que está se passando aqui, Klaus? – perguntou Joe pateticamente.
Eu catava o meu curry, tentando separar os bocados digeríveis daqueles que me fariam estourar.
– Como pode você esperar que eu badale os assuntos de um cliente? – repliquei.
– Você conversou bastante quando estava fazendo os estudos para o dique de Gibraltar – lembrou Joe.
– Sim, é verdade – admiti. – E lhe estou grato pela promoção que me deu. Mas desta vez estão envolvidos
segredos profissionais. Estou... hã... fazendo alguns ajustamentos de última hora para aumentar a eficiência do sis-
tema.
E essa, naturalmente, era a verdade: com efeito, eu esperava elevar a eficiência do sistema, cujo valor atual
era exatamente zero.
– Hum – fez Joe, sarcástico. – Muito obrigado.
– Em todo caso – disse eu, procurando desviar o assunto –, qual é a sua última teoria maluca?
Para um repórter científico de alta competência, Joe tem uma singular propensão para o bizarro e o imprová-
vel. Talvez isso seja uma forma de escapismo; casualmente sei que ele também escreve ficção científica, embora
esse seja um segredo bem guardado contra os seus empregadores. Joe tem predileção por espíritos batedores,
percepção ex-tra-sensorial e discos voadores, mas a sua verdadeira especialidade são os continentes perdidos.
– O fato é que estou trabalhando com um par de idéias – confessou ele. – Essas idéias me ocorreram durante
a fase de pesquisas para esta reportagem.
– Continue – disse eu, sem ousar levantar os olhos do curry.
– Outro dia descobri um mapa muito antigo do Cei-lão. . . um mapa de Ptolomeu, se isso lhe interessa. Ele
me lembrou outro mapa antigo da minha coleção, e fui consultá-lo. Lá estava a mesma montanha central, a mesma
disposição de rios correndo para o mar. Mas esse era um mapa da Atlântida.
– Pelo amor de Deus! – gemi. – Na última vez que nos encontramos, você me convenceu de que a Atlântida
era a bacia ocidental do Mediterrâneo.
Joe arreganhou os lábios naquele seu sorriso cativante.
– Eu posso me enganar, não posso? De qualquer forma, tenho uma evidência muito mais impressionante.
Qual é o velho nome nacional do Ceilão. . . e o nome cingalês moderno, também?
Refleti durante um segundo e exclamei:
– Bom Deus! É Lanka, naturalmente. Lanka, Atlântida – pronunciei, degustando a semelhança fonética dos
dois nomes.
– Exatamente – disse Joe. – Mas duas pistas, por mais impressionantes que sejam, não fazem uma teoria; e
isso é o mais longe a que pude chegar até agora.
– É uma lástima – disse eu, sinceramente desapontado. – E o seu outro projeto?
– Esse sim, vai deixar você de orelha em pé! – respondeu Joe muito contente consigo mesmo. Estendeu a
mão para a cocada pasta que sempre levava consigo e tirou de lá um maço de papéis.
– Isto aconteceu a apenas cento e oitenta milhas daqui, e há pouco mais de um século. Note que a minha
fonte de informação é talvez a melhor que se poderia exigir.
Passou-me uma cópia fotostática e vi que se tratava de uma página do Times de Londres, com a data de 4 de
julho de 1874. Pus-me a ler sem muito entusiasmo, pois Joe tinha o hábito de mostrar recortes de jornais velhos,
mas a minha apatia não durou muito.
Em resumo – eu gostaria de reproduzir tudo aqui, mas a sua biblioteca local lhes poderá fornecer um fac-sí-
mile em dez segundos –, o recorte descrevia como a es-cuna Pearl, de cento e cinqüenta toneladas, havia deixado o
Ceilão no começo de maio de 1874 e fora retida pelas calmarias no golfo de Bengala. No dia 10 de maio, pouco
antes de cair a noite, uma enorme lula subiu à tona a meia milha de distância da escuna, cujo comandante teve a
infeliz idéia de abrir fogo contra ela com o seu rifle.
A lula nadou em linha reta para a Pearl, agarrou os mastros com os tentáculos e fez o navio virar de costado.
Foi a pique em questão de segundos, levando consigo dois membros da tripulação. Os outros só foram salvos pelo
feliz acaso de encontrar-se à vista o vapor Sírathowen, da P. & O., que também testemunhou o incidente.
– E então? – disse Joe depois que terminei de ler a notícia pela segunda vez. – Que é que você pensa disso?
– Não acredito em monstros marinhos.
– O Times de Londres não tem propensão para o sensacionalismo – redargüiu Joe. – E lulas gigantes exis-
tem, se bem que aquelas que nós conhecemos sejam animais
débeis e flácidos e não pesem mais de uma tonelada, apesar dos seus tentáculos com doze metros de
comprimento.
– Pois então! Um animal assim não teria força para emborcar uma escuna de cento e cinqüenta toneladas.
– É verdade. . . mas há muitos indícios de que a chamada lula gigante seja simplesmente uma lula grande.
Pode haver no mar muitos decápodes que sejam verdadeiramente gigantes. Não sabe que, um ano após o incidente
da Pearl, um cachalote foi visto ao largo da costa do Brasil lutando com tentáculos de um tamanho fabuloso que
acabaram arrastando-o para dentro do oceano? Você encontrará esse incidente descrito no lllustrated London
News de 20 de novembro de 1875. E há também, naturalmente, o capítulo do Moby Dick . , .
– Que capítulo?
– Ora, o que tem por título "Squid", "Lula". Sabemos que Melville era um observador meticuloso, mas aí é
que ele realmente se espraia. Descreve um dia calmo em que uma grande massa branca surgiu à tona "como uma
avalancha de neve recém-escorregada das montanhas". E isso aconteceu aqui no oceano Indico, talvez mil milhas
ao sul do incidente da Pearl. As condições atmosféricas eram idênticas, note bem.
"O que os marinheiros do Pequod viram boiar sobre as ondas – sei essa passagem de cor, de tanto que a estu-
dei – era 'uma vasta massa polposa, com furlongs de comprimento e largura, cor creme tremeluzente, inúmeros bra-
ços compridos a irradiar do seu centro, enroscando-se e contorcendo-se como um ninho de sucurijus'."
–■ Um momentinho – disse Serguei, que escutava tudo com uma atenção embevecida. – O que é um
furlong?
Joe pareceu levemente embaraçado.
– Em realidade é um oitavo de milha. . . duzentos metros. – E, erguendo a mão para deter o nosso riso incré-
dulo: – Oh! tenho certeza de que Melville não entendia isso literalmente. Mas tratava-se de um homem que encon-
trava cachalotes todos os dias, buscando uma unidade de comprimento para descrever uma criatura muito maior.
Por isso saltou automaticamente de braças para furlongs. Essa, pelo menos, é a minha teoria.
Empurrei com o garfo as partes restantes, intocáveis do curry.
– Se você pretendia me assustar a ponto de me fazer abandonar o meu trabalho, falhou miseravelmente. Mas
uma coisa lhe prometo: quando encontrar uma lula gigante, vou cortar um tentáculo para lhe trazer como souvehir.
Vinte e quatro horas depois, lá estava eu dentro da lagosta, descendo lentamente na direção da grade avariada. Não
havia meio de guardar segredo sobre a operação, e Joe era um espectador interessado a bordo de uma lancha
próxima. Mas esse problema era dos russos, não meu; tinha sugerido a Chapiro que o tornasse partícipe do segredo,
mas isso, naturalmente, foi vetado pela suspicaz mentalidade eslava de Karpúkhin. Quase se podia vê-lo refletindo:
"Por que um repórter americano aparece aqui logo neste momento?" E não levando em conta a resposta óbvia de
que Trincomalee andava agora nas manchetes.
Não há absolutamente nada de excitante ou de gla-mouroso nas operações de mar profundo – quando são
executadas de modo apropriado. Excitação significa falta de previsão, e isso, por sua vez, significa incompetência.
Os incompetentes não duram muito no meu ramo de negócio, nem aqueles que andam em busca de excitações. Eu
tratava do meu trabalho com toda a emoção concentrada de um encanador ao consertar uma torneira que pinga.
As grades tinham sido projetadas visando-se a certa facilidade de manutenção, uma vez que mais cedo ou
mais tarde teriam de ser substituídas. Por sorte, nenhum dos fios de rosca tinha sido deformado, e as roscas de
fixação saíram facilmente quando agarradas pela chave mecânica. Depois acionei as garras para trabalho pesado e
retirei a grade danificada sem a menor dificuldade.
Não é boa tática apressar uma operação debaixo da água. Quando se tenta fazer muita coisa ao mesmo
tempo, corre-se o perigo de cometer erros. Se tudo vai bem e a gente termina num dia um trabalho para o qual tinha
fixado o prazo de uma semana, o cliente sente-se roubado. Embora eu tivesse certeza de que poderia substituí-la
naquela mesma tarde, acompanhei a grade avariada até a superfície e encerrei o expediente por aquele dia.
O termelemento foi enviado sem demora para que o
submetessem a uma autópsia, e passei o resto da tarde es-condendo-me de Joe. Trinco é uma cidade pequena,
mas consegui evitá-lo indo ao cinema local, onde passei várias horas assistindo a um interminável filme tâmil no
qual três gerações sucessivas padeciam idênticas crises domésticas de confusão de identidade, alcoolismo,
abandono, morte e loucura, tudo em tecnicolor e com o som a todo volume.
Na manhã seguinte, a despeito de uma ligeira dor de cabeça, estava eu no local pouco depois de nascer o sol.
(O mesmo quanto a Joe e Serguei, aprestados para uma bela pescaria.) Acenei-lhes alegremente quando subi à la-
gosta e o guincho do tender me fez descer pela borda. Pelo lado oposto, onde Joe não podia vê-la, desceu a grade
de reposição. A poucas braças da tona retirei-a do guincho e levei-a comigo para o fundo da fossa Trinco, onde,
sem dar maiores trabalhos, ficou tudo pronto lá pelo meio da tarde. Antes que eu voltasse à superfície, as porcas de
segurança tinham sido fixadas, os condutores soldados in loco, e os engenheiros de terra haviam terminado os
testes de continuidade com resultados plenamente satisfatórios. Quando tornei a pôr os pés a bordo o sistema
estava de novo funcionando, tudo voltara à normalidade e até Karpúkhin sorria – exceto quando parava para fazer a
si mesmo a pergunta a que ninguém até então pudera responder.
Eu ainda me apegava à teoria do pedrouço caído – por falta de outra melhor. E esperava que os russos a acei-
tassem, para que pudéssemos pôr fim àquele ridículo jogo de esconder com Joe.
Fagueiras esperanças! Não tardou muito, Chapiro, acompanhado de Karpúkhin, veio me procurar, ambos
com uma cara de palmo e meio.
– Klaus – disse Lev –, queremos que você torne a descer.
– O dinheiro é seu – respondi. – Mas para fazer o quê?
– Examinamos a grade avariada, e demos pela falta de uma parte do termelemento. Dmítri pensa que. . .
alguém a arrancou deliberadamente e a levou consigo.
– Nesse caso, fizeram um trabalho muito porco – respondi. – Posso lhes garantir que não foi nenhum dos
meus homens.
Era arriscado dizer pilhérias desse tipo em presença de Karpúkhin, e ninguém achou graça. Nem eu, pois a
essa altura estava começando a pensar que talvez ele tivesse razão.
O sol ia se pondo quando dei início ao meu último mergulho na fossa Trinco, mas o fim do dia nada signifi-
cava lá embaixo. Desci uns seiscentos metros com as luzes apagadas porque gosto de observar as criaturas
luminosas db mar coruscando e pisca-piscando na escuridão, às vezes explodindo como foguetes logo atrás da
minha janela de observação. Estava ali em água aberta e não havia perigo de colisão; em todo caso, tinha o sonar
panorâmico a girar, e ele me preveniria com muito mais eficiência do que os
meus olhos.
A quatrocentas braças, percebi que havia algo de anormal. O fundo começava a aparecer no sondador vertical
– mas aproximava-se com excessiva lentidão. Minha velocidade de descida era lenta demais. Poderia aumentá-la
facilmente, inundando outro tanque de flutuação – mas hesitei em fazê-lo. Neste meu ramo de negócios, tudo que
esteja fora do comum necessita de explicação; por três vezes salvei minha própria vida esperando até encontrar a
explicação.
Foi o termômetro que me deu a resposta. A temperatura exterior estava cinco graus acima do que devia estar,
e lamento dizer que levei vários segundos para compreender a razão disso.
Apenas a uns cem metros abaixo de mim a grade consertada funcionava agora a plena potência, derramando
megawatts de calor na tentativa de igualar a temperatura da fossa Trinco com a do reservatório solar lá em cima,
em terra. Não o conseguiria, é claro; mas, enquanto se esforçava por fazê-lo, gerava eletricidade – e eu era im-
pelido para cima no gêiser de água quente que era um subproduto dessa atividade termelétrica.
Quando finalmente alcancei a grade, foi bastante difícil manter a lagosta em posição contra aquela corrente
ascendente. O calor penetrou na cabina e comecei a suar, muito pouco à vontade. Sentir calor demais no fundo do
mar era
uma experiência inédita, como também o era o efeito de miragem causado pela ascensão da água, fazendo
tremer e dançar a luz dos meus holofotes sobre a parede de rocha que eu inspecionava.
Procurem imaginar-me com aquela iluminação a giorno numa profundidade de quinhentas braças, descendo
muito devagar ao longo da vertente do canyon, que nesse ponto era mais ou menos tão íngreme quanto o telhado de
uma casa. O elemento desaparecido, se é que ainda continuava ali, não podia ter rolado muito longe antes de
imobilizar-se. Eu o encontraria em dez minutos, ou nunca.
Ao cabo de uma hora de busca, havia revirado várias lâmpadas elétricas quebradas (é espantosa a quantidade
delas que é jogada pela borda dos navios, todos os fundos de mar do mundo estão cobertos de lâmpadas
queimadas), uma garrafa vazia de cerveja (mesmo comentário) e uma bota novinha em folha. Essa foi a última
coisa que encontrei, pois descobri, nesse momento, que já não estava sozinho.
Nunca desligo o sonar, e mesmo quando não estou em movimento olho para a tela mais ou menos de minuto
em minuto, para estar a par da situação geral. Agora, a situação era a seguinte: um objeto grande –- do tamanho da
lagosta, no mínimo – estava se aproximando pelo lado norte. Quando o notei, a distância era de uns cento e cin-
qüenta metros e ia diminuindo rapidamente. Apaguei as luzes, cortei os jatos que estava fazendo funcionar com
pouca força a fim de me conservar em posição na turbulência da água e deixei-me levar pela corrente.
Embora fosse tentado a chamar Chapiro e informá-lo de que tinha companhia, resolvi esperar para saber
mais. Só havia três nações do mundo com batiscafos capazes de operar naquele nível, e eu mantinha excelentes
relações com todas elas. Não convinha de modo algum precipitar-me e envolver-me em desnecessárias
complicações políticas.
Embora me sentisse cego sem o sonar, não queria fazer anunciar a minha presença; por isso desliguei-o e
confiei nos meus próprios olhos. Quem quer que pretendesse trabalhar a essa profundidade teria de usar luzes, e eu
o veria chegar muito antes que pudesse dar pela minha presença. Esperei, pois, na pequena cabina silenciosa e
superaquecida, aguçando a vista na escuridão, tenso e alerta, mas não particularmente preocupado.
A princípio houve uma débil claridade, a uma distância indefinida. Essa claridade tornou-se maior e mais
viva, sem, no entanto, assumir uma forma ou padrão que eu pudesse reconhecer. O clarão difuso concentrou-se em
mi-ríades de pontos, e foi como se uma constelação marchasse para mim. Assim, talvez, se apresentariam as
estrelas nascentes da galáxia a um mundo que se encontrasse próximo ao centro da via-láctea.
Não é verdade que os homens tenham medo do desconhecido; só os pode atemorizar o conhecido, o já expe-
rimentado. Eu era incapaz de imaginar o que estava se aproximando de mim, mas nenhuma criatura marinha pode-
ria tocar-me dentro de quinze centímetros de boa blindagem suíça.
A coisa já estava quase em cima de mim, brilhando com uma luz de sua própria criação, quando se dividiu
em duas nuvens distintas. Lentamente, entrou em foco – não o dos meus olhos, mas o do meu entendimento – e vi
que a beleza e o terror cresciam para mim, surgidos do abismo.
O terror veio primeiro, quando percebi que aqueles animais eram lulas e todas as histórias contadas por Joe
reverberaram no meu cérebro. Depois, com uma considerável sensação de alívio, notei que elas mediam apenas
seis metros de comprimento – pouco maiores do que a lagosta e com uma simples fração do seu peso. Não me
podiam fazer nenhum mal. E além disso, a sua beleza indescritível as despia de toda ameaça.
Isso parece ridículo, mas é. verdade. Em minhas viagens tenho visto a maioria dos animais deste mundo, mas
nenhum podia igualar as aparições luminosas que flutuavam agora diante de mim. As luzes coloridas que pulsavam
e dançavam ao longo de seus corpos faziam com que parecessem vestidas de jóias, nunca as mesmas por mais de
dois segundos de cada vez. Havia bandas de um azul brilhante, como tremeluzentes arcos de mercúrio, que quase
instantaneamente passavam a um vermelho vivo de neon. Os tentáculos pareciam fieiras de contas luminosas arras-
tando-se na água – ou as lâmpadas que iluminam uma
grande rodovia, quando as contemplamos de avião, à noite. Fracamente visíveis contra essa claridade de
fundo, os olhos enormes eram fantasticamente humanos e inteligentes, cada um rodeado por um diadema de
pérolas cintilantes.
Queiram desculpar, mas não sei me exprimir melhor. Só uma câmara cinematográfica pode fazer justiça a
esses caleidoscópios vivos. Não sei quanto tempo fiquei a contemplá-las, tão embevecido pela sua luminosa beleza
que quase esquecia a minha missão. Que aqueles delicados tentáculos, como finos chicotes, não podiam em
absoluto ter quebrado a grade era coisa por si só evidente. E no entanto a presença daquelas criaturas ali era, para
dizer o mínimo, muito curiosa. Karpúkhin teria dito suspeita.
Eu ia comunicar-me com a superfície quando vi uma coisa incrível. Tivera-a todo esse tempo diante dos
meus olhos, mas não a tinha percebido até agora.
As lulas estavam conversando entre si.
Aqueles desenhos luminosos e evanescentes não surgiam e desapareciam ao acaso. De repente, tive certeza
de que eram tão carregados de significação quanto os anúncios luminosos da Broadway ou de Piccadilly. De
poucos em poucos segundos formava-se uma imagem que quase fazia sentido, mas apagava-se antes que eu
pudesse interpretá-la. Sei, naturalmente, que até o polvo comum exterioriza as suas emoções mediante mudanças
de cor tão rápidas como o relâmpago – mas aquilo era algo de uma ordem muito superior. Era autêntica
comunicação: eu tinha diante de mim dois sinais elétricos vivos transmitindo mensagens um ao outro.
Quando vi uma imagem inconfundível da lagosta, minhas derradeiras dúvidas se dissiparam. Embora eu não
seja cientista, nesse momento compartilhei os sentimentos de um Newton ou um Einstein ante alguma revelação
súbita. Aquilo me tornaria famoso...
Então a imagem mudou, e da maneira mais curiosa. Lá estava de novo a lagosta, mas bastante menor. E, ao
seu lado, muito menor ainda, dois singulares objetos. Cada um deles consistia num par de pontos pretos rodeado
por um padrão de dez linhas irradiantes.
Há pouco eu disse que nós, os suíços, temos o dom das línguas. Contudo, não havia mister de muita
inteligência para perceber que aquilo era uma representação estilizada das lulas por si mesmas e o que eu estava
vendo era um esboço esquemático da situação. Mas por que o tamanho absurdamente pequeno das lulas?
Outra mudança sobreveio antes que eu tivesse tempo de decifrar essa. Um terceiro símbolo de lula apareceu
na tela viva – essa enorme, reduzindo as outras às dimensões de anãs. A mensagem brilhou ali, na noite eterna,
pelo espaço de poucos segundos. Então a criatura que a tinha emitido partiu com uma rapidez incrível, deixando-
me a sós com a sua companheira.
Agora o significado era por demais evidente. "Meu Deus!", disse eu de mim para mim. "Elas acham que não
podem comigo. Foram buscar sua irmã maior!"
E sobre as capacidades dessa irmã maior eu já tinha indícios mais claros do que Joe Watkins com todas as
suas pesquisas e recortes de jornais.
Foi nesse ponto – vocês não se surpreenderão de ouvi-lo – que resolvi não me demorar mais ali. Mas antes de
me retirar, eu também quis dizer alguma coisa.
Depois de pairar por tanto tempo naquela escuridão, tinha esquecido a potência das minhas luzes. Elas me
doe-ram nos olhos e devem ter sido cruciantes para a malfadada lula. Inundada por aquela claridade intolerável,
com a sua própria iluminação completamente eclipsada, ela perdeu toda a sua beleza, convertendo-se num pálido
saco de gelatina com dois botões pretos a fazer as vezes de olhos. Por um momento, pareceu que o choque a tinha
paralisado; depois precipitou-se no encalço de sua companheira, enquanto eu subia para um mundo que jamais
seria o mesmo para mim.
– Descobri o seu sabotador – disse a Karpúkhin quando abriram a escotilha da lagosta. – Se quer saber tudo
que há a respeito dele, pergunte a Joe Watkins.
Deixei Dmítri às voltas com essa charada durante alguns segundos, enquanto gozava a sua cara. Depois fiz-
lhe o meu relato, com ligeiros retoques. Insisti – sem dizê-lo textualmente – em que as lulas que eu tinha visto
tinham força suficiente para haver causado todos os danos; e nada disse sobre a conversa que tinha surpreendido.
Isso não faria mais do que provocar incredulidade. Além do mais,
eu necessitava de tempo para refletir sobre os acontecimentos e explicar, se pudesse, alguns pontos ainda
obscuros.
Joe me foi muito útil, embora ainda não saiba mais do que os russos. Falou-me do admirável
desenvolvimento <Jo sistema nervoso das lulas e explicou como algumas podem mudar de aparência num abrir e
fechar de olhos, por uma instantânea sinalização a três cores, graças à extraordinária rede de "cromóforos" que
reveste os seus corpos. Presumivelmente, esse aparelho evoluiu a fim de proporcionar camuflagem; mas parece
natural, e mesmo inevitável, que se tenha desenvolvido num sistema de comunicação.
Mas há uma coisa que preocupa Joe.
– Que é que elas estavam fazendo perto dessa grade? – não cessa de me perguntar em voz queixosa. – São
invertebrados de sangue-frio. Seria de esperar que detestassem o calor tanto quanto lhes desagrada a luz.
Isso intriga Joe, mas não me intriga, a mim. Acredito, mesmo, que seja a chave de todo o mistério.
Estou certo, agora, de que essas lulas andam na fossa Trinco pela mesma razão que leva os homens ao pólo
sul, ou à Lua. A pura curiosidade científica arrancou-as às suas gélidas moradas para investigarem esse jorro de
água quente que brota das vertentes do canyon. Aí está um fenômeno estranho e inexplicável, que talvez ameace o
seu gênero de vida. Por isso mandaram vir o seu primo gigante (servo? escravo!), a fim de que colhesse uma
amostra para elas estudarem. Não posso crer que alimentem uma esperança de compreendê-la; afinal de contas,
nenhum cientista da Terra poderia tê-la compreendido ainda um século atrás. Mas as lulas estão tentando, e isso é o
que importa.
Amanhã daremos início às nossas contramedidas. Vou descer mais uma vez à fossa Trinco para instalar as
grandes luzes que, segundo espera Chapiro, manterão as lulas a distância. Mas por quanto tempo esse estratagema
surtirá efeito, se a inteligência está despontando nas profundezas do mar?
Estou ditando isto sentado aqui sob as antigas ameias do Forte Frederick, vendo a lua nascer sobre o oceano
Indico. Se tudo correr bem, isto servirá como abertura de um livro que Joe tem instado comigo para que escreva.
Se não. .. Alô, Joe, estou falando para você agora. Por favor, revise este texto para publicação, sob a forma
que lhe parecer melhor, e peço desculpas a você e a Lev por não lhes ter comunicado todos os fatos antes. Agora
compreendem por quê.
Aconteça o què acontecer, por favor não esqueçam isto: elas são belas, maravilhosas criaturas; procurem
entrar em entendimento com elas, se puderem.
Ao Ministério da Energia, Moscou
De Lev Chapiro, engenheiro-cheie, Projeto de Energia
Nuclear de Trincomalee
Envio em anexo a transcrição da gravação em fita encontrada entre os objetos do sr. Klaus Müller após o
seu último mergulho. Estamos profundamente pe-nhorados ao sr. Joe Watkins, da revista Time, pela assistência
que nos prestou sobre vários pontos.
Os senhores se lembrarão de que a última mensagem inteligível do sr. Müller era dirigida ao sr. Watkins e
dizia assim: "Joe! Você tinha razão no que diz respeito a Melville! Esta criatura é absolutamente gigan. . ."
Dezembro de 1962.

O VENTO SOLAR
A vela, enorme disco já enfunado pelo vento que soprava entre os mundos, retesava o seu cordame. Dentro
de três minutos a corrida iria começar, e contudo, nesse momento, John Merton sentia-se mais tranqüilo, mais em
paz do que durante o ano que se passara. O que quer que acontecesse quando o comodoro desse o sinal da partida,
quer o Diana o levasse à vitória, quer à derrota, ele havia realizado a sua ambição. Após uma vida inteira passada a
desenhar barcos para os outros, ia finalmente pilotar o seu.
– H menos dois minutos – disse o rádio da cabina. – Façam o favor de confirmar que estão prontos.
Um a um, os outros comandantes responderam. Merton reconheceu todas as vozes – umas tensas, outras
calmas –, pois eram as vozes de seus amigos e rivais. Nos quatro mundos habitados havia apenas vinte homens
capazes de pilotar um iate solar; e todos se encontravam ali na linha de partida ou em barcos de escolta, em órbita,
trinta e cinco mil quilômetros acima do equador.
– Número 1, Gossamer, pronto para partir.
– Número 2, Santa Maria, tudo OK.
– Número 3, Sunbeam, OK.
– Número 4, Woomera, todos os sistemas em ordem. Merton sorriu a este derradeiro eco dos primeiros
tempos da astronáutica. Mas isso fazia parte da tradição espacial, e havia ocasiões em que um homem
precisava evocar as sombras daqueles que haviam partido antes dele para as estrelas.
– Número 5, Lebedev, estamos prontos.
– Número 6, Arachne, OK.
Agora chegara a sua vez, no fim do rol de chamada; era estranho pensar que as palavras pronunciadas por ele
nesta minúscula cabina estavam sendo escutadas por cinco bilhões de pessoas, pelo menos.
– Número 7, Diana, pronto para partir.
– Recebidos de 1 a 7 – respondeu a voz impessoal na lancha do juiz. – H menos um minuto, agora.
Merton mal o ouviu. Pela última vez estava verificando a tensão do cordame. As agulhas de todos os dina-
mômetros se mantinham firmes, a imensa vela estava tensa, com a superfície espelhada relampejando e cintilando
gloriosamente ao sol.
A Merton, que flutuava sem peso junto ao periscópio, ela parecia encher o céu inteiro. Se todas as lonas de
todos os clíperes de chá que outrora haviam singrado os mares da China, velozes como nuvens, fossem costuradas
umas às outras numa única vela gigantesca, não poderiam igualar esta vela solitária que o Diana desfraldara ao sol.
E no entanto, ela era pouco mais substancial do que uma bolha de sabão; as duas milhas quadradas de plástico
aluminizado mediam poucos milionésimos de polegada de espessura.
– H menos dez segundos. Todas as câmaras registradoras ligadas.
Uma coisa tão enorme, e contudo tão delicada, era difícil de conceber; e mais difícil ainda imaginar que esse
frágil espelho podia levá-lo para fora da Terra pela simples força da luz solar que captaria.
– ... cinco, quatro, três, dois, CORTAR!
Sete lâminas de faca atoraram os sete cabos finos que amarravam os iates às sete naus-mães que os tinham
montado e que os assistiam. Até esse momento, todos tinham dado voltas à Terra em rígida formação, mas agora os
iates começariam a dispersar-se, como sementes de paina levadas pela brisa. E o vencedor seria aquele que
primeiro passasse pela Lua.
A bordo dd Diana, nada parecia estar acontecendo. Merton, porém, não se deixava enganar pelas aparências.
Embora o seu corpo não sentisse nenhum impulso, o painel de instrumentos lhe dizia que estava agora acelerando à
razão de quase um milésimo de gravidade. Para um foguete, essa cifra teria sido ridícula, mas era a primeira
vez que um iate solar a alcançava. O desenho do Diana era perfeito; a vasta vela não desmentia os seus cálculos.
Com esse ritmo de aceleração, duas voltas à Terra bastariam para fazer subir a sua velocidade ao ponto de escape, e
então poderia rumar para a Lua com toda a força do Sol a sustentá-lo.
Toda a força do Sol. . . Merton sorriu de viés, recordando suas tentativas de explicar a navegação solar ao
público que lhe ouvia as conferências lá na Terra. Esse fora o único meio de levantar dinheiro naqueles tempos
iniciais. Embora fosse o projetista-chefe da Cosmodyne Corporation, com uma série de espaçonaves bem-
sucedidas a seu crédito, não se podia dizer que a companhia olhasse com muito entusiasmo esse passatempo.
– Estendam as mãos para o Sol – dizia ele. – Que é que os senhores sentem? Calor, é claro. Mas também há
pressão, embora nunca a tenham sentido, por ser tão diminuta. Sobre a superfície das suas mãos, ela não é maior do
que vinte e oito milésimos de miligrama.
"Mas lá fora, no espaço, até uma pressão tão pequena como essa pode ser importante, porque atua
ininterruptamente, hora após hora e dia após dia. Ao contrário do combustível que move os foguetes, ela é gratuita
e ilimitada. Se quisermos, poderemos utilizá-la. Poderemos construir velas para captar as radiações emitidas pelo
Sol."
Neste ponto Merton sacava do bolso alguns metros quadrados de material para vela e arremessava-o na
direção do público. A película prateada enroscava-se e torcia-se como fumaça, depois subia lentamente para o teto
nas correntes de ar quente.
– Estão vendo como é leve? – continuava ele. –■ Uma milha quadrada pesa apenas uma tonelada e pode
captar dois quilos e meio de pressão de irradiação. Portanto, começará a mover-se. . . e podemos fazer com que nos
leve a reboque, se a provirmos de cordame.
"Naturalmente, a sua aceleração seria diminuta, cerca de um milésimo de gravidade. Isso não parece ser
grande coisa, mas vejamos o que significa.
"Significa que no primeiro segundo nos deslocaremos cerca de meio centímetro. Suponho que um caracol
sadio
possa fazer melhor do que isso. Mas ao cabo de um minuto teremos percorrido dezoito metros e estaremos
fazendo uma milha e pouco por hora. Já não é nada mau, para uma coisa impelida unicamente pela luz do Sol!
Depois de uma hora nos acharemos a sessenta e quatro quilômetros do nosso ponto de partida e estaremos nos
movendo a cento e vinte e oito quilômetros por hora. Lembrem-se, por favor, de que no espaço não há atrito, de
modo que, quando se põe uma coisa em movimento, ela continuará a mover-se eternamente. Os senhores e as
senhoras ficarão surpreendidos quando eu lhes disser a velocidade que terá adquirido o nosso barco de um
milésimo de gravidade no fim de um dia de corrida: quase três mil e duzentos quilômetros por hora! Se ele partir
de órbita – como terá de fazer, é claro – atingirá a velocidade de escape em dois dias. E tudo isso sem ter queimado
uma só gota de combustível!" Pois tinha-os convencido, e no fim acabara por convencer a própria Cosmodyne. Nos
últimos vinte anos, um novo esporte havia surgido. Fora chamado o esporte dos bilionários, e isso era verdade. Mas
começava a ser compensador em termos de publicidade e cobertura pela TV. O prestígio de quatro continentes e de
dois mundos estava empenhado nessa corrida, que tinha o maior público da
história.
O Diana fizera uma boa largada e era tempo de dar uma olhadela aos adversários. Movendo-se com muita
suavidade – embora houvesse amortecedores de choques entre a cápsula de controle e o delicado cordame, ele não
queria expor-se a nenhum risco –, Merton foi colocar-se diante
do periscópio.
Lá estavam eles, como estranhas flores de prata plantadas nos campos negros do espaço. O mais próximo, o
Santa Maria, da América do Sul, distante apenas oitenta quilômetros, tinha grande parecença com um papagaio,
mas um papagaio que media mais de uma milha num de seus lados. Mais afastado, o Lebedev, da Universidade de
As-trogrado, tinha a forma de uma cruz-de-malta; pelo jeito, as velas que formavam os quatro braços podiam ser
inclinadas para fins de direção. Em contraste, o Woomera, da Federação da Australásia, era um simples pára-
quedas com seis quilômetros e meio de circunferência. O Arachne, da
General Spacecraft, como sugeria o seu nome, tinha o ar de uma teia de aranha e fora construído dentro dos
mesmos princípios por lançadeiras-robôs movendo-se em espiral a partir do centro. O Gossamer, da Eurospace
Corporation, tinha um desenho idêntico, só que em escala um pouquinho menor. E o Sunbeam, da República de
Marte, era um anel chato, com um buraco de oitocentos metros de diâmetro no meio, rodando lentamente, de modo
que a força centrífuga lhe dava rigidez. Era uma velha idéia, mas ninguém jamais conseguira fazê-la funcionar; e
Merton estava quase certo de que os coloniais lutariam com dificuldades quando começassem a girar.
Isso só iria acontecer daí a seis horas, quando os iates houvessem vencido o primeiro quarto da sua vagarosa
e imponente órbita de vinte e quatro horas. Agora, no início da corrida, todos eles se moviam na direção dire-
tamente oposta à do Sol – velejando, por assim dizer, com o vento solar pela popa. Era preciso aproveitar ao
máximo esse trecho, antes que os barcos fizessem a curva que os levaria ao outro lado da Terra e começassem a
voltar de frente para o Sol.
Estava na hora, disse Merton a si mesmo, de fazer a primeira inspeção, enquanto não tinha problemas de
navegação com que se preocupar. Com o auxílio do periscópio, examinou cuidadosamente a vela, concentrando-se
nos pontos em que agarrava o cordame. Os tirantes – estreitas fitas de película plástica não prateada – teriam ficado
completamente invisíveis se não tivessem sido pintados com tinta fluorescente. Nesse momento, eram fios tensos
de luz colorida, alongando-se por centenas de metros até a vela gigantesca. Cada um tinha o seu molinete elétrico
próprio, pouco maior do que um carretei de linha de pescar. Os pequenos molinetes trabalhavam constantemente,
largando ou recolhendo fio, enquanto o piloto automático mantinha a vela mareada no ângulo correto em relação
ao Sol.
O jogo da luz solar sobre o grande espelho flexível era lindo de se ver. A vela ondulava em lentas, majestosas
oscilações, enviando múltiplas imagens do Sol que a percorriam de lado a lado até se dissiparem nas orlas. Tão
calmas oscilações eram de esperar nessa vasta e frágil estrutura. Em geral eram perfeitamente inofensivas, mas
Merton ob-
servava-as com atenção. Às vezes podiam acumular-se nas catastróficas ondulações conhecidas como
"rabanadas", capazes de rasgar uma vela em frangalhos.
Quando se convenceu de que tudo estava em perfeita ordem, fez girar o periscópio para o outro lado do céu,
verificando de novo as posições dos seus rivais. Era como ele esperava: o processo de seleção tinha começado e os
barcos menos eficientes iam caindo para a retaguarda. Mas o verdadeiro teste seria quando entrassem na sombra da
Terra. Então a facilidade de manobra teria tanta importância quanto a velocidade.
Parecia estranho fazer isso com a corrida apenas iniciada, mas pensou que talvez fosse uma boa idéia dormir
um pouco. As tripulações de dois homens dos outros barcos podiam revezar-se, mas Merton não tinha ninguém
para substituí-lo. Tinha de fiar-se nos seus próprios recursos físicos, como aquele outro navegador solitário, Joshua
Slocum, no seu pequenino Spray. O comandante norte-americano tinha velejado sozinho no Spray ao redor do
mundo; jamais poderia sonhar que, dois séculos mais tarde, um homem velejaria sozinho da Terra à Lua –
inspirando-se, pelo menos em parte, no seu exemplo.
Depois de afivelar as cintas elásticas do assento da cabina em volta da cintura e das pernas, Merton colocou
na testa os eletrodos do indutor de sono. Regulou o controlador de tempo para três horas e relaxou os músculos.
Muito suavemente, hipnoticamente, as pulsações eletrônicas comunicaram-se ao lobo frontal do seu cérebro.
Espirais de luz colorida expandiram-se debaixo das suas pálpebras cerradas, alargando-se em direção ao infinito.
Depois, nada. . . O clamor brônzeo do alarma arrancou-o ao sono sem sonhos. Acordou imediatamente, os olhos
estudando o painel de instrumentos. Apenas duas horas tinham passado, mas em cima do acelerômetro piscava uma
luz vermelha. A propulsão estava caindo; o Diana perdia força.
O primeiro pensamento de Merton foi que tivesse acontecido alguma coisa à vela; talvez o dispositivo
antigiro houvesse falhado e o cordame estivesse enrolado. Rapidamente, consultou os medidores que indicavam a
tensão dos tirantes. Coisa estranha: num dos lados da vela as indica-
ções eram normais, mas no outro a propulsão baixava lentamente, mesmo sob os seus olhos.
Num súbito lampejo de compreensão, Merton agarrou o periscópio, graduou-o para visão ampla e começou a
estudar a orla da vela. Sim, lá estava o mal, e só podia ter uma causa.
Uma enorme sombra de nítidos contornos tinha começado a deslizar sobre a prata cintilante da vela. A
escuridão ia envolvendo o Diana, como se um corpo se tivesse interposto entre ele e o Sol. E nessa escuridão,
despojado dos raios que o impeliam, ele perderia toda a força propulsora e derivaria inerme espaço afora.
Mas naturalmente não havia nuvens ali, a mais de trinta mil quilômetros acima da Terra. Se havia sombra,
era criada pelo homem.
Merton sorriu enquanto girava o periscópio na direção do Sol e introduzia os filtros que lhe permitiriam olhar
diretamente o círculo chamejante sem que este o cegasse.
– Manobra 4-A – murmurou de si para si. – Vamos ver quem é melhor nesse jogo.
Dir-se-ia que um planeta gigantesco estava atravessando a face do Sol; um grande disco negro penetrara
fundo na sua orla. Trinta quilômetros atrás dele, o Gossamer tentava criar um eclipse artificial em prejuízo do
Diana.
A manobra era perfeitamente lícita. Nos velhos tempos das corridas oceânicas, os capitães de clíperes pro-
curavam muitas vezes roubar o vento uns aos outros. Com um pouco de sorte, podia-se colocar o rival "à sombra",
com as velas panejando – e ganhar-lhe uma boa dianteira antes que ele pudesse compensar o dano.
Merton não tinha nenhuma intenção de se deixar apanhar tão facilmente. Havia tempo de sobra para escapar;
as coisas aconteciam com muita lentidão quando se manobrava um veleiro solar. O Gossamer levaria pelo menos
vinte minutos a cobrir totalmente o disco do Sol, deixando-o numa escuridão completa.
O minúsculo computador do Diana – do tamanho de uma caixa de fósforos, mas equivalente a mil
matemáticos humanos – considerou o problema durante um segundo inteiro antes de emitir a resposta. Era preciso
abrir os painéis de controle 3 e 4 até que a vela adquirisse mais
vinte graus de inclinação; e, graças à radiação propulsora, isso a faria voltar à plena luz do Sol, livrando-a da
ameaçadora sombra do Gossamer. Era uma pena mexer no piloto automático, que fora cuidadosamente
programado para dar ao barco a maior velocidade possível... Mas, afinal de contas, era para isso que Merton estava
ali. Isso era o que fazia do iatismo solar um esporte, em vez de uma batalha entre computadores.
Deu folga aos cabos de controle 1 e 6, que ondularam vagarosos como cobras sonolentas ao perderem
momentaneamente a tensão. Duas milhas além, os painéis triangulares começaram a abrir-se preguiçosamente,
derramando a luz do Sol pelos buracos da vela. Todavia, durante muito tempo nada pareceu acontecer. Era difícil
acostumar-se a esse mundo em câmara lenta, onde os efeitos de qualquer ação levavam minutos para tornar-se
visíveis. Finalmente Merton viu que a vela estava de fato se inclinando na direção do Sol – e que a sombra do
Gossamer se esgueirava inofensiva, perdendo-se o seu cone de escuridão na noite mais profunda do espaço.
Muito antes de haver desaparecido a sombra e de ficar o disco do Sol novamente desimpedido, ele inverteu a
inclinação e fez o Diana retornar à sua rota. O novo ímpeto adquirido o livraria do perigo; não havia necessidade
de exagerar e de transtornar os seus cálculos afastando-se demais. Eis aí outra regra que era difícil de aprender: no
próprio momento em que se fazia alguma coisa acontecer no espaço, já era tempo de pensar em detê-la.
Tornou a engatilhar o alarma, pronto para a próxima emergência natural ou criada pelo homem. Talvez o
Gossamer ou algum dos outros competidores tentasse novamente o mesmo ardil. Enquanto isso, era hora de comer,
embora não sentisse muita fome. No espaço gastava-se pouca energia física e era fácil esquecer a alimentação.
Fácil e perigoso, pois quando surgia uma emergência podia-se carecer das reservas necessárias para enfrentá-la.
Abriu o primeiro pacote e inspecionou-o sem entusiasmo. O nome na etiqueta, Petiscos espaciais, bastava
para tirar-lhe a vontade. E tinha sérias dúvidas quanto à declaração impressa embaixo: Garantido sem migalhas.
Alguém iá tinha dito que as migalhas de comida eram mais perigo-
sas para os veículos espaciais do que os meteoritos; podiam introduzir-se nos lugares mais inesperados,
provocando cur-tos-circuitos, bloqueando jatos vitais e penetrando em instrumentos que passavam por estar
hermeticamente vedados. Apesar disso, o patê de fígado não lhe caiu mal; nem o chocolate, nem o purê de abacaxi.
O café esquentava no fogareiro elétrico, dentro do seu recipiente de plástico, quando o mundo exterior invadiu a
sua solidão: era o rádio-operador da lancha do comodoro que encaminhava um chamado para ele.
– Dr. Merton? Se o senhor dispõe de um pouco de tempo, Jeremy Blair deseja dizer-lhe algumas palavras.
Blair era um dos mais sensatos comentaristas de notícias e Merton tinha figurado muitas vezes nos seus pro-
gramas. Podia, naturalmente, recusar-se à entrevista, mas gostava de Blair e naquele momento não podia alegar
justi-ficadamente que estava muito ocupado.
– Pode ligá-lo comigo – respondeu.
– Alô, dr. Merton – disse imediatamente o comentarista. – Ainda bem que pode dispor de alguns minutos. E
aceite os meus parabéns: o senhor parece estar na frente de todos.
– Ainda é muito cedo para se ter certeza disso – respondeu Merton cautelosamente.
– Diga-me, doutor: por que resolveu pilotar o Diana sozinho? Só porque ninguém tinha feito isso antes?
– Pois essa não é uma boa razão? Mas não foi a única, é claro. – Fez uma pausa, escolhendo as palavras
cuidadosamente. – Você sabe quanto a performance de um iate solar depende da sua massa. Um segundo homem,
com todos os seus suprimentos, significaria um peso adicional de duzentos e trinta quilos. Isso poderia facilmente
ser decisivo para o resultado da corrida.
– E está certo de que pode dirigir o Diana sozinho?
– Razoavelmente certo, graças aos controles automáticos que eu mesmo projetei. O meu trabalho principal é
supervisionar e tomar decisões.
– Mas. . . duas milhas quadradas de vela! Simplesmente não é crível que um único homem seja capaz de
manejar tudo isso!
Merton riu.
– Por que não? Essas duas milhas quadradas produzem uma tração máxima de cinco quilos. Eu posso exer-
cer mais força com o meu dedo mindinho.
– Bem, muito obrigado, doutor. E boa sorte. Tornarei a chamá-lo mais tarde.
Quando o comentarista desligou, Merton sentiu-se um pouco envergonhado, pois a sua resposta enunciara
apenas uma parte da verdade e ele sabia que Blair era bastante astuto para sabê-lo.
Havia uma única razão para ele estar ali, sozinho no espaço. Durante perto de quarenta anos tinha trabalhado
com equipes de centenas e até milhares de homens em projetos de veículos os mais complexos que o mundo já
tinha visto. Nos últimos vinte anos dirigira uma dessas equipes e vira as suas produções partir rumo às estrelas. (Às
vezes. . . Tinha havido fracassos que ele nunca poderia esquecer, se bem que a culpa não tivesse sido sua.) Era
famoso, com uma carreira brilhante no passado. Entretanto, nunca fizera nada sozinho; sempre formara parte de
um exército.
Esta era a sua última chance de tentar uma façanha pessoal e não queria compartilhá-la com ninguém. Não
haveria mais iatismo solar durante cinco anos, pelo menos, pois o período de tranqüilidade estava próximo do seu
fim e o ciclo de mau tempo ia começar, com as tempestades de radiação desencadeando-se através do sistema
solar. Quando as condições se tornassem novamente favoráveis para que essas embarcações frágeis e desprotegidas
se aventurassem no espaço, ele estaria muito velho. Se, em verdade, já não o estava agora. . .
Largou no lixo os recipientes de comida vazios e voltou mais uma vez ao periscópio. A princípio só pôde
divisar cinco dos outros iates; não havia sinal do Woomera. Levou alguns minutos para localizá-lo – fantasma
quase invisível, mas que eclipsava as estrelas, totalmente apanhado na sombra do Lebedev. Podia imaginar os
esforços desesperados que os australásios estariam fazendo para safar-se e perguntava-se como eles se tinham
deixado apanhar na armadilha. O fato sugeria que o Lebedev tinha uma facilidade excepcional de manobra.
Convinha trazê-lo de olho, embora estivesse muito longe para ameaçar o Diana no momento.
Já então a Terra havia desaparecido quase por completo, reduzida a um estreito e brilhante arco de luz que se
aproximava pouco a pouco do Sol. Encaixado nesse arco ardente, vagamente visível, estava o lado noturno do
planeta, com o brilho fosforescente das grandes cidades mostrando-se nas abertas das nuvens. O disco de escuridão
já havia apagado um trecho enorme da via-láctea. Dentro de poucos minutos, começaria a invadir o Sol.
A luz ia desmaiando; um matiz violáceo, crepus-cular – arrebol de muitos ocasos, a milhares de quilômetros
de distância – tingia a vela do Diana, que penetrava silenciosamente na sombra da Terra. O Sol mergulhou naquele
horizonte invisível e poucos minutos depois era noite.
Merton olhou para trás, ao longo da órbita que havia percorrido e da qual uma quarta parte já se achava no
outro lado do mundo. Uma a uma, viu apagarem-se as estrelas brilhantes dos outros iates que vinham ter com ele
na breve noite. Somente uma hora depois o Sol emergiria de trás daquele enorme escudo preto, e durante todo esse
tempo eles ficariam completamente indefesos, movendo-se apenas pelo impulso adquirido.
Merton acendeu o projetor externo e começou a examinar com seu feixe de luz a vela agora escurecida. Já as
centenas de hectares da finíssima película começavam a enrugar-se e a ficar flácidas. Os tirantes estavam frouxos e
era preciso rondá-los para que não se enredassem uns nos outros. Mas tudo isso era esperado, tudo estava dentro
dos planos.
O Arachne e o Santa Maria, oitenta quilômetros à retaguarda, tinham tido menos sorte. Merton teve conheci-
mento das suas dificuldades quando o rádio se fez ouvir no circuito de emergência.
– Número 2 e número 6, aqui fala o controle. Os senhores estão em vias de colidir: suas órbitas se intercep-
tarão dentro de sessenta e cinco minutos! Precisam de auxílio?
Houve uma longa pausa, enquanto os dois capitães digeriam a má notícia. Merton perguntava-se de quem
seria a culpa. Talvez um dos iates estivesse tentando pôr o outro na sombra e não houvesse completado a manobra
quando foram ambos apanhados pela escuridão. Agora, nenhum
dos dois podia fazer nada. Iam convergindo lenta mas inexoravelmente, incapazes de mudar de rumo por
uma fração de grau que fosse.
E contudo. . . sessenta e cinco minutos! Já então teriam voltado à luz do Sol, emergindo da sombra da Terra.
Tinham uma escassa possibilidade de escapar, se suas velas pudessem captar bastante força para evitar um choque.
A bordo do Arachne e do Santa Maria deviam-se estar fazendo cálculos frenéticos.
O Arachne foi o primeiro a responder e sua resposta foi exatamente o que Merton esperava.
– Número 6 chamando controle. Não necessitamos de auxílio, obrigado. Nós mesmos daremos um jeito nisto.
Será que dão? pensou Merton; em todo caso, seria interessante assistir a isso. O primeiro drama verdadeiro
da corrida estava se aproximando, exatamente acima da linha da meia-noite na Terra adormecida.
Durante a hora que se seguiu, Merton andou muito ocupado com a sua própria vela para inquietar-se com o
Arachne e o Santa Maria. Era difícil vigiar devidamente aqueles cinqüenta milhões de pés quadrados de plástico
mal e mal visíveis na escuridão, alumiados apenas pelo estreito feixe do seu projetor e pelos raios da Lua ainda
longínqua. De agora em diante, pelo espaço de quase metade da sua órbita em redor da Terra, ele teria que manter
toda essa imensa área de quina para o Sol. Durante as próximas doze ou catorze horas a vela seria um trambolho
inútil, pois ele estaria se dirigindo para o Sol, cujos raios só podiam fazê-lo recuar na sua órbita. Era pena que não
pudesse ferrar completamente a vela até que estivesse em condições de utilizá-la novamente; mas ninguém tinha
descoberto ainda um meio prático de fazer isso.
Muito longe, lá embaixo, o primeiro sinal do amanhecer despontou ao longo da orla da Terra. Dentro de dez
minutos o Sol emergiria do seu eclipse. Os iates tornariam a ganhar vida quando a lufada de radiação lhes colhesse
as velas. Esse seria o momento de crise para o Arachne e o Santa Maria – e, em verdade, para todos eles.
Merton fez girar o periscópio até encontrar as duas sombras escuras que iam à deriva contra o fundo das
estrelas. Estavam agora muito próximas uma da outra – talvez
menos de cinco quilômetros. Havia, pensou ele, uma tênue possibilidade de escaparem. . .
A aurora acendeu-se como uma explosão sobre a orla da Terra enquanto o Sol subia no Pacífico. A vela e os
tirantes refletiram um breve carmesim, depois cor de ouro, depois o branco puro da luz do dia. Os ponteiros dos
dina-mômetros começaram a afastar-se dos seus zeros – mas apenas um pouco. O Diana quase não tinha ainda
peso nenhum; pois, com a vela apontando para o Sol, a sua aceleração era agora de apenas uns poucos
milionésimos de gravidade.
Mas o Arachne e o Santa Maria desfraldavam tudo que tinham de vela, na desesperada tentativa de manter-
se afastados um do outro. Já com menos de três quilômetros entre os dois, suas brilhantes nuvens de plástico se
desdobravam e expandiam com aflitiva lentidão, sentindo o primeiro e débil impulso dos raios solares. Quase todas
as telas de televisão na Terra deviam estar refletindo o prolongado drama; e mesmo agora, no último minuto, era
impossível dizer qual seria o desfecho.
Os dois capitães eram homens obstinados. Cada um deles poderia ter cortado a sua vela e caído à retaguarda
para dar uma chance ao outro; mas nenhum dos dois quis fazê-lo. Demasiado prestígio, demasiados milhões, dema-
siada reputação estavam em jogo. E assim, silenciosos e suaves como flocos de neve numa noite de inverno, o
Arachne e o Santa Maria colidiram.
O papagaio quadrado penetrou quase imperceptivel-mente na teia de aranha circular. As longas fitas dos
tirantes se torceram e enredaram umas nas outras com uma lentidão de sonho.
Merton, atarefado com o seu próprio cordame a bordo do Diana, mal podia despegar os olhos daquele
desastre paulatino e silencioso.
Durante mais de dez minutos, as nuvens brilhantes e encapeladas continuaram a fundir-se uma com a outra
numa massa inextricável. Depois as cápsulas que abrigavam as tripulações cortaram os cabos e seguiram cada uma
o seu caminho, escapando de chocar-se por uma questão de centenas de metros. Com um lampejo de foguetes, as
lanchas de salvamento correram a apanhá-las.
Com esta restamos cinco, pensou Merton. Lamentava os capitães que se haviam eliminado tão
completamente poucas horas depois da partida; mas eram moços e teriam outra oportunidade.
Mal haviam passado alguns minutos quando os cinco ficaram reduzidos a quatro. Desde o começo Merton
tinha nutrido suas dúvidas sobre o Sunbeam, com a sua lenta rotação; agora via-as justificadas.
O barco marciano não conseguira bordejar adequadamente. Sua rotação lhe dava uma estabilidade excessiva.
'Aquele imenso anel que era a sua vela teimava em voltar a face para o Sol em vez de obliquar-se. O Sunbeam
estava sendo impelido para trás na sua rota, quase com o máximo de aceleração.
Essa era uma das coisas mais exasperantes que podiam acontecer a um comandante – pior ainda do que uma
colisão, pois ele só podia culpar a si mesmo. Más ninguém sentiria muita simpatia pelos frustrados coloniais que
iam caindo lentamente para a retaguarda. Tinham-se vangloriado demais antes da corrida e o que agora lhes
acontecia era simples justiça.
Não seria sensato, porém, excluir completamente o Sunbeam; com mais de meio milhão de quilômetros ainda
por percorrer, podia muito bem recuperar o terreno perdido. E se houvesse outras defecções, podia ser o único a
terminar a corrida. Não seria a primeira vez que isso acontecia.
As doze horas seguintes, com a Terra crescendo de nova a cheia no céu, foram vazias de acontecimentos.
Pouco havia que fazer enquanto a frota derivava na seção morta da sua órbita, mas o tempo não foi muito pesado a
Merton. Aproveitou para dormir algumas horas, tomou duas refeições, fez apontamentos no seu diário e envolveu-
se em várias outras entrevistas de rádio. Às vezes, se bem que raramente, falava com os outros capitães, trocando
saudações e motejos amistosos. Mas em geral contentava-se em flutuar, relaxado e sem peso, livre de todos os
cuidados da Terra, feliz como não se sentia havia muitos anos. Era – tanto quanto um homem pode sê-lo no espaço
– senhor do seu destino, navegando o barco em que prodigalizara tanto saber, tanto amor, que se tornara parte da
sua pessoa.
A defecção seguinte ocorreu quando iam atravessando a linha entre a Terra e o Sol e entrando, por
conseguinte, na metade viva da órbita. A bordo do Diana, Merton viu a grande vela retesar-se quando voltou a face
para os raios que a impeliam. A aceleração começou a subir das micro-gravidades, se bem que ainda devesse levar
horas para atingir o valor máximo.
A do Gossamer é que nunca o atingiria. O momento em que voltava a força propulsora era sempre crítico, e a
nave da Eurospace não sobreviveu a ele.
O comentário de Blair no rádio, que Merton deixara sintonizado com pouco volume, alertou-o com a notícia:
"Alô, o Gossamer está dando rabanadas!" Dirigiu-se às pressas para o periscópio, mas a princípio não viu nada
diferente na grande vela circular do Gossamer. Era difícil observá-la porque estava de quina para ele, aparecendo
na objetiva como uma delgada elipse; mas depois de algum tempo notou que ela se retorcia, jogando-se ora para a
frente, ora para trás em lentas, irresistíveis oscilações. A menos que a tripulação conseguisse anular essas ondas
mediante puxões suaves e bem calculados nos cabos, a vela se rasgaria em frangalhos.
Eles fizeram o que podiam, e ao cabo de vinte minutos pareceu que tinham logrado o seu intento. Foi então
que a película de plástico se abriu no centro e foi lentamente empurrada para fora pela pressão de radiação, como
as volutas de fumaça que se elevam de uma fogueira. Ao cabo de um quarto de hora, nada mais restava senão a
delicada renda de antenas radiais que sustentavam a grande teia de aranha. Mais uma vez um lampejar de foguetes
anunciou que uma das lanchas correra a recuperar a cápsula do Gossamer e a sua desolada tripulação.
– Estamos ficando um pouco sozinhos cá em cima, hem? – disse uma voz afável no rádio internaves.
– Não pela parte que lhe toca, Dmítri – retrucou Merton. – Você ainda tem companhia aí na retaguarda. Eu é
que estou sozinho aqui na frente.
Esta não era uma gabolice sem valor, pois já então o Diana ia quinhentos quilômetros adiante do segundo
colo-
cado, e essa distância iria crescer com mais rapidez ainda nas horas que se seguiriam.
A bordo do Lebedev, Dmítri Márkov soltou uma risada bonachona. Essa voz não soava em absoluto como a
de um homem que se resignara à derrota, pensou Merton.
– Não esqueça a fábula da lebre e da tartaruga – respondeu o russo. – Muita coisa poderá acontecer no
próximo quarto milhão de milhas.
A coisa aconteceu muito mais cedo, quando haviam completado a primeira órbita em redor da Terra e
estavam passando novamente pelo ponto de partida – embora milhares de quilômetros mais acima, graças à energia
extra que os raios do Sol lhes tinham imprimido. Merton fizera observações cuidadosas dos outros iates e fornecera
as cifras ao computador. A resposta que este deu no tocante ao Woomera foi tão absurda que ele procedeu
imediatamente a uma reverificação.
Não havia a menor dúvida: os australásios o vinham alcançando a uma velocidade fantástica. Nenhum iate
solar podia ter semelhante aceleração, a menos. . .
Um rápido olhar pelo periscópio deu-lhe a resposta. O cordame do Woomera, reduzido a um mínimo de
massa, tinha cedido. Era só a vela que, mantendo intata a sua forma, corria atrás dele como um lenço soprado pelo
vento. Duas horas mais tarde ela passou pelo Diana, a menos de trinta quilômetros de distância; muito antes disso,
porém, os australásios tinham ido juntar-se à multidão que crescia a bordo da lancha do comodoro.
De modo que agora era uma corrida de parelha entre o Diana e o Lebedev – pois, embora os marcianos não
tivessem desistido, estavam mil e quinhentos quilômetros atrás e já não contavam como uma ameaça séria. Por
falar nisso, era difícil perceber o que poderia fazer o Lebedev para vencer a dianteira que o Diana lhe levava; mas
durante toda essa segunda etapa, com o novo eclipse e a longa, lenta deriva em direção ao Sol, Merton foi presa de
uma crescente inquietação.
Conhecia os pilotos e os projetistas russos. Havia vinte anos que tentavam ganhar essa corrida – e, afinal de
contas, seria justo que ganhassem, pois não fora Piotr Ni-koláievitch Lebedev o primeiro homem a detectar a
pressão
da luz solar, bem no começo do século XX? Mas nunca o tinham conseguido.
E nunca deixariam de tentar. Dmítri tinha algum trunfo na manga – e seria qualquer coisa de espetacular.
A bordo da lancha oficial, mil e quinhentos quilômetros atrás dos iates competidores, o comodoro Van
Stratten olhava o radiograma com raiva e consternação. Este viajara mais de cento e cinqüenta milhões de
quilômetros, procedente da cadeia de observatórios solares que giravam muito acima da superfície incandescente
do Sol; e trazia as piores notícias possíveis.
O comodoro – este título era puramente honorário, já se vê; na Terra, ele era professor de astrofísica de Har-
vard – estivera, de certo modo, esperando por isso. Nunca, até então, se escolhera para a corrida uma data tão tardia
na temporada. Houvera uma porção de delongas, eles confiaram na sorte – e agora estava parecendo que poderiam
todos perder.
Muito abaixo da superfície do Sol, forças enormes se estavam acumulando. A qualquer momento a energia
de um milhão de bombas de hidrogênio poderia libertar-se na medonha explosão conhecida como "chama solar".
Elevan-do-se a milhões de quilômetros por hora, uma bola de fogo invisível, com muitas vezes o tamanho da
Terra, saltaria do Sol e se arremessaria espaço afora.
Era provável que a nuvem de gás eletrificado passasse muito longe da Terra. Se não o fizesse, contudo,
chegaria em pouco mais de um dia. As espaçonaves podiam proteger-se com a sua blindagem e os seus poderosos
anteparos magnéticos; mas os leves iates solares, com as suas paredes finas como papel, não tinham defesas contra
semelhante ameaça. As tripulações teriam de ser salvas e a corrida abandonada.
John Merton ignorava tudo isso ao concluir sua segunda volta à Terra. Se tudo corresse bem, esse seria o
último circuito, tanto para ele como para os russos. Haviam subido milhares de quilômetros em espiral, recebendo
energia dos raios solares. Desta vez escapariam totalmente à Terra e se lançariam no espaço, na longa corrida para
a
Lua. Era, agora, uma corrida a dois, pois a tripulação do Sunbeam se retirara finalmente, exausta, após ter
batalhado valentemente com a sua vela rotativa por mais de cento e cinqüenta mil quilômetros.
Merton não se sentia fatigado, tinha comido e dormido bem, e o Diana comportava-se admiravelmente. O
piloto automático, controlando a tensão do cordame como uma pequena aranha atarefada, mantinha a grande vela
orientada em relação ao Sol com mais precisão do que poderia fazê-lo qualquer navegador humano. Se bem que a
"essa altura as duas milhas quadradas de folha plástica deviam ter sido crivadas por centenas de micrometeoritos,
as perfurações minúsculas como pontas de alfinetes não haviam causado nenhuma queda de força propulsora.
Merton só tinha duas preocupações. A primeira era o tirante número 8, que ele não podia regular
adequadamente. Sem dar nenhum aviso, o molinete emperrara; mesmo após tantos anos de engenharia
astronáutica, os mancais às vezes enjambravam no vácuo. Ele não podia tesar nem brandear o cabo, e teria que
navegar da melhor maneira possível com os outros. Por sorte, as manobras mais difíceis já tinham sido feitas; daí
em diante o Diana teria o Sol pela ré até o fim do percurso. E, como diziam os marinheiros de outrora, é fácil
governar um barco quando o vento sopra nas costas do timoneiro.
Sua outra preocupação era o Lebedev, que ainda lhe vinha nos calcanhares quinhentos quilômetros atrás. O
iate russo tinha mostrado uma notável facilidade de manobra, graças aos quatro grandes painéis que podiam ser
inclinados como aletas em torno da vela central. A sua mareação ao dar volta à Terra tinha sido feita com uma
precisão magnífica. Mas o que ganhava em facilidade de manobra, devia perdê-lo em velocidade. Não se podia pôr
dois proveitos num saco só. Na longa reta que tinham pela frente, Merton deveria levar-lhe vantagem. Contudo,
não poderia ter certeza da vitória senão daí a três ou quatro dias, quando o Diana contornasse o outro lado da Lua
com a rapidez
do relâmpago.
Foi então, na qüinquagésima hora da corrida, logo depois de haver terminado a segunda órbita em volta da
Terra, que Márkov fez a sua pequena surpresa.
– Alô, John – disse ele tranqüilamente no circuito internaves. – Eu gostaria que você visse isto. Deve achar
interessante.
Merton foi até o periscópio e pôs a ampliação no máximo. Ali, np campo de visão, formando um espetáculo
dos mais improváveis contra o fundo de estrelas, estava a cruz-de-malta do Lebedev, pequenina mas muito clara.
Enquanto ele olhava, os quatro braços da cruz desprenderam-se lentamente do quadrado central e partiram à deriva,
com todas as suas vergônteas e cordames, espaço afora.
Márkov tinha alijado toda massa desnecessária ao alcançar a velocidade de escape, quando já não precisava
trilhar pacientemente a órbita em volta da Terra, ganhando impulso a cada circuito. Daí em diante o Lebedev seria
quase ingovernável – mas isso não tinha importância; havia deixado para trás todas as complexidades de nave-
gação. Era como se um velejador dos velhos tempos tivesse lançado fora deliberadamente o seu leme e a sua
pesada quilha, sabendo que o resto da corrida seria em linha reta, com vento pela popa e em mar calmo.
– Parabéns, Dmítri – falou Merton pelo rádio. – Bonito truque. Mas não é suficientemente bom. Agora você
não me alcançará mais.
– Ainda não acabei – respondeu o russo. – No meu país há um velho conto de inverno sobre um trenó que
está sendo perseguido pelos lobos. Para salvar-se, o cocheiro tem de jogar fora os passageiros um a um. Percebe a
analogia?
Merton percebia, até demais. Nessa reta final, Dmítri já não necessitava do seu co-piloto. O Lebedev podia
realmente ser reduzido ao essencial para a ação.
– Aleksei é que não vai ficar muito contente com isso – disse Merton. – Acresce que isso é contra as regras.
– Aleksei pode não estar contente, mas eu sou o capitão. Tudo que ele terá de fazer é esperar durante dez
minutos até que o comodoro venha apanhá-lo. E os regulamentos não dizem nada sobre o tamanho da tripulação.
Você o sabe melhor do que eu.
Merton não respondeu; estava • muito ocupado em fazer, às pressas, certos cálculos baseados no que sabia
sobre o desenho do Lebedev. Quando terminou, sabia que o resultado da corrida era ainda duvidoso. O
Lebedev o alcançaria mais ou menos na hora em que ele esperava passar pela Lua.
Mas o desfecho da corrida já fora decidido a cento e quarenta e oito milhões de quilômetros dali.
No Observatório Solar 3, bastante para dentro da órbita, de Mercúrio, os instrumentos automáticos
registraram toda a história da erupção. Cento e cinqüenta milhões de quilômetros quadrados da superfície do Sol
explodiram com tamanha fúria aquecida ao branco-azulado que, em comparação, o resto do disco parecia de um
vermelho fosco e apagado. Desse inferno borbulhante, torcendo-se e dando voltas como uma criatura viva nos
campos magnéticos de sua própria criação, elevou-se o plasma eletrificado da grande fogueira. À sua frente,
movendo-se com a velocidade da luz, corria o relâmpago prenunciador formado de raios ultravioleta e raios X.
Esse relâmpago alcançaria a Terra em oito minutos e era relativamente inofensivo – ao contrário dos átomos
carregados que seguiam atrás, nos seus compassados seis milhões de quilômetros por hora, e que, em pouco mais
de um dia, envolveriam o Diana, o Lebedev e a pequena frota que os acompanhava numa nuvem de radiação letal.
O comodoro adiou a sua decisão até o último momento possível. Mesmo quando o jato de plasma foi
rastreado ao transpor a órbita de Vênus, havia uma chance de ele passar longe da Terra. Mas quando chegou a
menos de quatro horas de distância e já fora detectado pela rede de radar com base na Lua, se convenceu de que
não havia mais esperança. Qualquer tipo de iatismo solar estava suspenso por cinco ou seis anos, até que o Sol
tornasse a acalmar-se. Um grande suspiro de desapontamento percorreu o sistema solar. O Diana e o Lebedev iam
a meio caminho entre a Terra e a Lua, peito a peito – e agora ninguém saberia qual dos dois barcos era o melhor.
Os entusiastas discutiriam as performances durante anos; a história se limitaria a registrar: "Corrida cancelada por
motivos de tempestade solar.
Quando John Merton recebeu a ordem, sentiu uma amargura que não conhecia desde a meninice. Lá do pas-
sado distante, viva e nítida, lhe veio a recordação do seu décimo aniversário. Tinham-lhe prometido um modelo da
famosa espaçonave Morning Star em escala exata, e ele passara semanas planejando como havia de montá-la, em
que lugar do seu quarto de dormir a colocaria. E, no último momento, seu pai viera com a notícia:
– Sinto muito, John... sai muito caro. Talvez no ano que vem...
Meio século e uma vida de sucesso mais tarde, ele voltava a ser um menino desolado.
Por um instante, pensou em desobedecer ao comodoro. E se continuasse a velejar, desprezando o aviso?
Mesmo abandonando a corrida, podia realizar uma travessia à Lua que ficaria nas crônicas durante gerações.
Mas isso seria pior do que estupidez; seria suicídio – e uma forma de suicídio muito desagradável. Ele tinha
visto homens morrer envenenados pelas radiações, quando a blindagem magnética de suas naves falhara em pleno
espaço. Não. . . não havia nada que valesse isso. . .
Sentia tanta pena de Dmítri Márkov como de si mesmo. Ambos tinham merecido ganhar, e agora a vitória
não seria de nenhum deles. Ninguém podia argumentar com o Sol numa de suas fúrias, ainda que pudesse cavalgar
os seus raios até as fronteiras do espaço.
Apenas oitenta quilômetros à sua retaguarda, a lancha do comodoro estava agora encostando ao Lebedev e
preparando-se para receber o capitão. Lá se foi a vela de prata, com o cordame cortado por Dmítri – cujos
sentimentos' ele poderia compartilhar. A pequenina cápsula seria levada de volta à Terra, talvez para ser usada de
novo; mas as velas só serviam para uma viagem.
Podia apertar agora o botão de alijamento, poupando alguns minutos aos seus salvadores. Mas não teve
ânimo de fazê-lo; queria ficar a bordo até o fim, no pequeno barco que por tanto tempo fizera parte dos seus sonhos
e da sua vida. A imensa vela estava mareada em ângulo reto com o Sol, dando o máximo de propulsão. Fazia
muitas horas que ela o libertara da Terra, e o Diana continuava a ganhar velocidade.
Foi nesse momento que, numa iluminação repentina, sem qualquer dúvida ou hesitação, ele compreendeu o
que devia fazer. Pela última vez sentou-se diante do computador que tinha navegado o barco até meio caminho da
Lua.
Após terminar, enfardou o diário de bordo e os seus poucos objetos pessoais. Desajeitadamente, pois lhe
faltava prática e aquilo não era nada fácil a um homem sozinho, enfiou o traje espacial de emergência. Estava
vedando o capacete quando a voz do comodoro chamou no rádio.
– Estaremos aí em cinco minutos, capitão. Faça o favor de cortar a sua vela, para que não nos enredemos
nela.
John Merton, primeiro e último comandante do iate solar Diana, hesitou um momento. Correu um derradeiro
olhar pela diminuta cabina em redor dele, com os seus instrumentos brilhantes, os controles dispostos em perfeita
ordem e agora travados em suas posições definitivas. Finalmente, disse ao microfone:
– Estou abandonando o barco. Não precisam apressar-se em vir me apanhar. O Diana pode cuidar de si
mesmo.
Não houve resposta do comodoro, e ele se sentiu grato por isso. O professor Van Stratten devia ter
adivinhado o que estava acontecendo – e devia saber que nesses momentos finais ele queria que o deixassem a sós
consigo
mesmo.
Não se deu ao trabalho de esvaziar a eclusa de ar, e o ímpeto do gás que escapava lançou-o suavemente no
espaço. A força propulsora que ele deu então ao Diana foi o último presente que fez ao seu barco. E lá se foi
distanciando a esplêndida vela, rebrilhando ao Sol, que lhe pertenceria durante séculos. Daí a dois dias o Diana
passaria pela Lua; mas a Lua, como a Terra, jamais poderia capturá-lo. Sem a sua massa para retardar-lhe o
movimento, ganharia três mil quilômetros por hora em cada dia de navegação. Dentro de um mês, estaria viajando
mais depressa do que qualquer veículo já construído pelo homem.
Quando os raios do Sol enfraquecessem com a distância, a sua aceleração diminuiria proporcionalmente.
Mesmo, porém, na órbita de Marte, estaria ainda ganhando mil e kos Quilômetros por hora cada dia. Muito antes
disso,
sua velocidade seria tão alta que o próprio Sol já não poderia retê-lo. Mais rápido que um cometa vindo das
estrelas, estaria rumando para o abismo.
Um lampejo de foguetes a poucas milhas de distância chamou a atenção de Merton. A lancha aproximava-se
para apanhá-lo, com uma aceleração milhares de vezes maior do que a que poderia ser alcançada pelo Diana. Mas
os seus motores só podiam trabalhar durante alguns minutos, até que se esgotasse o combustível – ao passo que o
Diana ainda estaria ganhando velocidade daí a séculos, impelido pelo fogo eterno do Sol.
– Adeus, barquinho – disse John Merton. – Que olhos serão os primeiros a te ver, daqui a milhares de anos?
E finalmente sentiu-se em paz, com o rombudo torpedo da lancha acercando-se dele. Jamais venceria a
corrida à Lua, mas o seu seria o primeiro barco feito pelo homem a partir na longa viagem rumo às estrelas.
Maio de 1963.
O SEGREDO
Fazia quase duas semanas que Henry Cooper estava na Lua quando descobriu que havia por ali algo de anor-
mal. A princípio foi apenas uma suspeita mal definida, essa espécie de palpite que um repórter científico, com o
seu espírito realista, não leva muito a sério. Afinal, ele fora lá a pedido da própria Administração Espacial das
Nações Unidas. A AENU sempre dera grande importância às relações públicas – especialmente na hora de ser ela-
borado o orçamento, quando o mundo superpovoado clamava por mais estradas, escolas e fazendas marítimas,
queixando-se dos bilhões que estavam sendo desperdiçados no espaço.
Por isso lá estava ele, fazendo pela segunda vez o circuito lunar e enviando para a Terra duas mil palavras de
texto por dia/Se bem que o interesse da novidade já tivesse desaparecido, ainda restavam a fascinação e o mistério
de um mundo tão grande como a África, completamente cartografado e, no entanto, ainda praticamente inex-
plorado. À distância de uma pedrada das cúpulas de pressão, dos laboratórios, dos portos espaciais, era um vazio
total a perder de vista, que iria desafiar o homem por muitos séculos ainda.
Algumas partes da Lua, evidentemente, eram por demais conhecidas, pode-se dizer. Na certa, todos tinham
visto aquela depressão poeirenta no mar das Chuvas, com a refulgente coluna de metal e a placa que anunciava, nas
três línguas oficiais da Terra:
NESTE LUGAR
Às 20 h 01 min HU
DE 13 DE SETEMBRO DE 1959
O PRIMEIRO ARTEFATO HUMANO ALCANÇOU UM OUTRO MUNDO
Cooper visitara o lugar onde tinha caído o Lunik II e a sepultura, ainda mais famosa, dos homens que foram
recuperar a cápsula perdida. Mas essas coisas pertenciam ao passado; como Colombo e os irmãos Wright, elas já
haviam retrocedido para o domínio da história. Agora, o que lhe interessava era o futuro.
Quando ele desembarcara no porto espacial de Arqui-medes, o administrador-chefe recebera-o com sincera
alegria e manifestara um interesse pessoal pelo seu giro na Lua. Transportes, acomodações e guia oficial, tudo isso
foi colocado à sua disposição. Podia ir aonde quisesse, fazer as perguntas que bem entendesse. A AENU confiava
nele, pois as suas reportagens sempre tinham sido consçiencio-sas, a sua atitude amigável. E contudo a viagem lhe
cheirava a fracasso; não sabia por quê, mas estava resolvido a descobri-lo.
Apanhou o telefone e disse:
– Telefonista? Faça o favor de me ligar com o departamento de polícia. Quero falar com o inspetor-geral.
Presumivelmente Chandra Coomaraswami possuía um uniforme, mas Cooper nunca o tinha visto com ele.
Encontraram-se, como fora combinado, à entrada do pequeno parque que era o orgulho e a alegria da Cidade
Platão. A essa hora da manhã do "dia" artificial de vinte e quatro horas ele se achava quase deserto e os dois
homens puderam conversar sem ser interrompidos.
Caminhando pelas estreitas ruas de cascalho, charlaram sobre os velhos tempos, os amigos comuns que
tinham conhecido na faculdade, as últimas novidades da política interplanetária. Haviam chegado ao meio do
parque, sob o centro exato da grande cúpula azul, quando Cooper tocou no assunto que lhe interessava.
- Você sabe tudo o que acontece na Lua, Chandra,
e também sabe que eu vim com tenção de escrever uma série de reportagens para a AENU – das quais espero
fazer um livro quando voltar à Terra. Mas por que essa gente está procurando me ocultar coisas?
Era impossível açodar Chandra. Sempre refletia antes de responder a uma pergunta. As poucas palavras com
que retrucou dessa vez escaparam-se com dificuldade por entre os lábios e a haste do seu cachimbo bávaro com
lavores feitos a mão.
– Que gente? – perguntou ele afinal.
– Você realmente não faz nenhuma idéia?
O inspetor-geral sacudiu negativamente a cabeça.
– A mínima idéia.
Cooper compreendeu que ele falava a verdade. Chandra era taciturno, mas mentiroso, não.
– Eu receava esta resposta. Bem, se você não sabe mais do que eu, aqui está a única pista que tenho. . . e ela
me assusta. O Departamento de Pesquisas Médicas só quer distância de mim.
– Hum... – murmurou Chandra, tirando o cachimbo da boca e contemplando-o pensativamente.
– Isso é tudo que você tem para dizer?
– A base que você me dá para tirar deduções é muito pequena. Não esqueça que eu sou apenas um policial;
não tenho a sua viva imaginação de jornalista.
– Tudo que lhe posso dizer é que, quanto mais graduadas as pessoas com quem falo no departamento, mais
fria se torna a atmosfera. Na última vez que estive aqui, todos foram muito acolhedores e me proporcionaram algu-
mas excelentes reportagens. Agora, nem sequer consigo falar com o diretor. Sempre está muito ocupado ou no
outro lado da Lua. Enfim, que espécie de homem é ele?
– O dr. Hastings? Um homenzinho espinhoso. Muito competente, mas não é nada fácil trabalhar com ele.
– Que poderia ele estar tentando esconder?
– Eu conheço você e sei que deve ter algumas teorias interessantes.
– Oh! Tenho pensado em tóxicos, fraudes, conspirações políticas... mas nada disso faz sentido nos dias que
correm. Por isso, a possibilidade que ainda resta me deixa apavorado.
As sobrancelhas de Chandra sinalizaram uma interrogação silenciosa.
– Epidemia interplanetária – disse Cooper, sem
usar de rodeios.
– Eu pensava que isso fosse impossível.
– Sim. . . Eu mesmo escrevi artigos provando que as formas de vida em outros planetas têm químicas tão
diferentes que não podem entrar em reação conosco, e que todos os nossos micróbios e parasitos levaram milhões
de anos para se adaptar aos nossos organismos. Mas sempre tive minhas dúvidas a esse respeito. Suponhamos que
uma nave tenha voltado de Marte com alguma coisa muito virulenta... e os médicos não tenham meios de comba-
tê-la . . .
Houve um longo silêncio e Chandra finalmente falou:
– Vou começar a investigar. Eu também não estou gostando disso, pois aqui está um fato que você provavel-
mente ignora: no mês passado houve três casos de esgotamento nervoso na Divisão Médica. . . e isso é muito,
muito insólito.
Olhou para o seu relógio e depois para o céu artificial, que parecia tão distante embora estivesse apenas
sessenta metros acima deles.
– É bom irmos andando. A chuva matinal vai começar a cair dentro de cinco minutos.
O chamado veio duas semanas depois, no meio da noite – a verdadeira noite lunar. Pela hora oficial da
Cidade Platão, era na manhã de domingo.
– Henry? Aqui fala Chandra. Você pode encontrar-se comigo dentro de meia hora, na eclusão atmosférica
número 5? Muito bem. . . até lá, então.
Cooper compreendeu que tinha chegado o dia. O encontro na eclusa número 5 significava que eles iam
deixar a cúpula. Chandra tinha descoberto alguma coisa.
A presença do motorista da polícia obrigou-os a restringir a sua conversa enquanto o trator se afastava da
cidade pela tosca estrada aberta por buldôzeres nas cinzas e pedras-pomes. Ao sul, pouco acima do horizonte, a
Terra anarecia quase cheia, banhando numa clara luz azul-
esverdeada a paisagem infernal. Por mais que se tentasse, pensou Cooper, era difícil fazer a Lua parecer
glamourosa. Mas a natureza sabe guardar bem os seus maiores segredos; eram lugares assim que os homens tinham
de vir descobrir.
Os múltiplos domos da cidade sumiram atrás da curva pronunciada do horizonte. Momentos depois o trator
deixou a estrada principal e continuou por uma senda quase invisível. Ao cabo de uns dez minutos, Cooper avistou
um único hemisfério cintilante à frente deles, montado sobre um espinhaço de rocha. Outro veículo, com uma cruz
vermelha, achava-se estacionado junto à entrada. Pelo visto, eles não eram os únicos visitantes.
Nem, tampouco, eram inesperados. Quando pararam diante da cúpula, o tubo flexível da eclusa atmosférica
avançou para eles e, depois de tatear um pouco, aplicou-se ao encaixe existente na blindagem externa do trator.
Ouviu-se o breve assobio das duas pressões que se igualavam, depois Cooper penetrou no edifício atrás de
Chandra.
O operador da eclusa guiou-os através de corredores curvos e passagens radiais até o centro da cúpula. De
quando em quando vislumbravam laboratórios, aparelhagens científicas, computadores – tudo perfeitamente
normal, e tudo deserto nessa manhã de domingo. Deviam ter chegado ao coração do edifício, disse Cooper a si
mesmo quando o guia os introduziu numa vasta câmara circular e cerrou suavemente a porta atrás deles.
Era um pequeno jardim zoológico. Por todos os lados viam-se gaiolas, tanques, jarras que continham uma
ampla seleção da fauna e da flora terrestres. No centro, um homem baixo e grisalho os esperava com um ar muito
preocupado e desgostoso.
– Dr. Hastings, apresento-lhe o sr. Cooper – disse Coomaraswami. E, voltando-se para o seu companheiro, o
inspetor-geral acrescentou: – Convenci o doutor de que só há um meio de aquietar você, e é dizer-lhe toda a
verdade.
– Francamente – volveu Hastings –, acho que nem estou me importando mais.
Sua voz tremia, mal podia controlá-la, e Cooper pensou: "Opa! Vamos ter outro esgotamento nervoso".
O cientista não perdeu tempo com formalidades tais como apertos de mão. Caminhou para uma das gaiolas,
tirou dela um animalzinho de pelagem fofa e mostrou-o a Cooper.
– O senhor conhece isto? – perguntou abruptamente.
– Naturalmente. É um hamster, o mais comum dos animais de laboratório.
– Sim – disse Hastings. – Um hamster dourado perfeitamente comum. Salvo numa coisa: ele tem cinco anos
de idade, como todos os seus companheiros nesta gaiola.
– Bem, que é que isso tem de estranho?
– Oh! nada, absolutamente nada. . . a não ser a insignificante circunstância de os hamsters terem uma du-
ração de vida não superior a dois anos. E temos aqui alguns que vão se aproximando dos dez.
Por alguns instantes, ninguém falou; mas a sala não estava silenciosa. Por todos os lados ouviam-se
sussurros, raspar de patas, unhas arranhando, débeis queixas e pequeninos gritos animais. Então Cooper murmurou:
– Meu Deus... os senhores descobriram um meio de prolongar a vida!
– Não – retorqüiu Hastings. – Não o.descobrimos. A Lua nos fez presente dele. . . como devíamos ter
esperado, se enxergássemos um palmo diante dos nossos narizes.
Parecia ter recuperado o controle das suas emoções, como se houvesse voltado a ser o puro cientista, fasci-
nado por uma descoberta em si mesma e pouco se inquietando com as implicações.
– Na Terra – disse ele – passamos a vida inteira lutando com a gravidade. Ela desgasta os nossos músculos,
estira e deforma os nossos estômagos. Em setenta anos, quantas toneladas de sangue o coração bombeia a uma
distância de quantas milhas? E todo esse trabalho, todo esse esforço é reduzido a um sexto aqui na Lua, onde um
ser humano de oitenta quilos pesa apenas catorze.
– Compreendo – disse Cooper, falando pausada-mente. – Dez anos para um hamster. . . e quanto tempo para
um homem?
– Não estamos diante de uma lei simples – respondeu Hastings. – Ela varia de acordo com o tamanho e a
espécie. Ainda há um mês atrás, não saberíamos responder-lhe, mas agora temos inteira certeza: na Lua, a duração
da vida humana será pelo menos de duzentos anos.
– E estavam tentando guardar segredo sobre isso!
– Seu burro! Não compreende?
– Tenha calma, doutor. . . Tenha calma – disse Chandra com brandura.
Com um visível esforço de vontade, Hastings readquiriu o controle de si mesmo. Começou a falar numa voz
tão fria que suas palavras penetravam como gotas de chuva gelada no cérebro de Cooper.
– Pense neles lá em cima – disse apontando para o teto, para a Terra invisível, cuja presença ubíqua ninguém
na Lua podia jamais esquecer. – Seis bilhões de criaturas, enchendo todos os continentes até as bordas, e agora
derramando-se pelos fundos de mar. E aqui... – apontando para o chão – nós, apenas cem mil, num mundo quase
vazio. Mas um mundo em que são precisos milagres de tecnologia e engenharia simplesmente para existirmos,
onde um homem com apenas 150 de QI nem sequer pode conseguir emprego.
"E agora descobrimos que podemos viver duzentos anos. Imagine qual será a reação deles quando souberem
isso! Agora o problema é seu, senhor jornalista; foi o senhor que quis, e conseguiu o que queria. Me diga, por
favor... eu estaria realmente interessado em saber... como é que vai dar essa notícia a eles?"
Ficou esperando, esperando. . . Cooper abriu a boca e tornou a fechá-la, incapaz de encontrar uma resposta.
No canto mais afastado da sala, um macaquinho recém-nascido pôs-se a choramingar.
Junho de 1963.
O ÚLTIMO COMANDO
"... Aqui fala o presidente. O fato de estarem me ouvindo ler esta mensagem significa que já estou morto e
que o nosso país foi destruído. Mas vocês são soldados, os mais proficientemente treinados de toda a nossa histó-
ria. Vocês sabem cumprir ordens. Agora deverão cumprir a mais dura que receberam até hoje..."
Dura? pensou amargamente o oficial-chefe de radar. Não, agora seria fácil, depois de terem visto a terra que
idolatravam calcinada pelo calor de muitos sóis. Já não podia haver nenhuma hesitação, nenhum escrúpulo quanto
a executar a vingança dos deuses sobre culpados e inocentes. Mas por que, por que ela fora deixada para uma hora
tão tardia?
"... Vocês sabem com que finalidade ficaram circulando na sua órbita secreta, além da Lua. Sabedor da sua
existência, mas jamais seguro da sua localização, um agressor hesitaria em lançar um ataque contra nós. Seu papel
deveria ser o do Ultimo Dissuasor, fora do alcance das bombas-terremoto, capazes de esmagar mísseis em seus
silos subterrâneos e desintegrar submarinos nucleares rondando no fundo do mar. Vocês estariam ainda em condi-
ções de contra-atacar, mesmo que todas as nossas outras armas fossem destruídas..."
Como efetivamente foram, pensou o capitão. Tinha visto as luzes piscarem uma depois da outra no painel de
controle, até que não restou mais nenhuma. Muitos, talvez, haviam cumprido o seu dever; se não, ele completaria
den-
tro em pouco o trabalho desses homens. Nada que houvesse sobrevivido ao primeiro contra-ataque
continuaria a existir depois do golpe que ele estava preparando agora.
"... Só por acidente, ou por um ato de loucura, poderia começar a guerra em face da ameaça que vocês re-
presentam. Essa foi a teoria em que apostamos nossas vidas; e agora, por motivos que jamais conheceremos,
perdemos a partida. . ."
O olhar do astrônomo-chefe dirigiu-se lentamente para a pequena vigia, a única, na parede lateral da sala cen-
tral de controle. Lá estava a Terra, glorioso crescente de prata contra o pano de fundo das estrelas. À primeira vista
parecia inalterada, porém não à segunda, pois a parte escura já não era completamente escura.
Pontilhando-a aqui e ali, como uma sinistra fosfo-rescência, havia os mares de chamas que tinham sido cida-
des. Eram em número bem menor, agora, pois pouco restava que queimar.
A voz familiar continuava a falar do outro lado do túmulo. Há quanto tempo teria sido gravada a mensagem?
perguntou-se o oficial de sinais. E que outras mensagens seladas conteria o super-humano computador de combate
do forte, mensagens que eles não chegariam a ouvir, porque tratavam de situações militares que já não tinham pos-
sibilidade de concretizar-se? O oficial de sinais fez um esforço sobre si mesmo e desviou o pensamento do mundo
das possibilidades eliminadas para enfrentar a pavorosa mas ainda imaginável realidade.
"... Se tivéssemos sido derrotados, porém não destruídos, esperávamos utilizar a existência de vocês como
uma arma para negociar. Agora, até essa pobre esperança desapareceu – e com ela o derradeiro objetivo com que
vocês foram colocados aí no espaço."
Que significa isso? pensou o oficial de armamentos. Agora, sem dúvida, chegara para eles o momento do
destino. Os milhões que tinham morrido, os milhões que desejavam estar mortos – todos seriam vingados quando
os cilindros negros das bombas gigaton caíssem num movimento espiralado em direção à Terra.
Foi como se o homem agora reduzido a cinzas tivesse lido na sua mente.
"... Vocês se perguntam por que, agora que se encontram nessa situação, eu não lhes dei a ordem de contra-
atacar. Vou explicar-lhes.
"Agora é tarde. O Dissuasor falhou. A nossa mãe-pátria já não existe, e a vingança não pode devolver a vida
aos mortos. Agora que metade da humanidade foi destruída, destruir a outra metade seria uma insânia indigna de
seres racionais. As disputas que nos dividiam vinte e quatro horas atrás já não têm nenhum significado. Na medida
em que seus corações o permitirem, devem esquecer o passado.
"Vocês possuem conhecimentos e aptidões de que um planeta demolido vai necessitar desesperadamente.
Utilizem-nos – e sem regatear, sem rancores – para reconstruir o mundo. Eu os avisei de que sua missão seria dura,
mas este é o meu comando final.
"Deverão lançar suas bombas no espaço vazio e detoná-las a dez milhões de quilômetros da Terra. Isso mos-
trará ao nosso inimigo de há pouco, que também está recebendo esta mensagem, que vocês se desfizeram de suas
armas.
"Depois disso, terão ainda uma coisa a fazer. Homens do Forte Lênin, o presidente do Soviete Supremo
despede-se de vocês e lhes ordena que se coloquem à disposição dos Estados Unidos."
Junho de 1963.
FRANKENSTEIN AO TELEFONE
À uma hora e cinqüenta minutos, hora de Greenwich, no dia 1.° de dezembro de 1975, todos os telefones do
mundo puseram-se a chamar.
Duzentos e cinqüenta milhões de pessoas apanharam os seus receptores e escutaram durante alguns
segundos, aborrecidas e perplexas. Aqueles que haviam sido acordados a essa hora da madrugada presumiram que
algum amigo distante estivesse chamando pela rede de telecomunicações via satélite, inaugurada na véspera com
imenso aparato de publicidade. Mas não se ouvia nenhuma voz na linha – apenas um ruído que a alguns pareceu o
rugido do mar e a outros as vibrações de cordas de harpa tangidas pelo vento. E houve muitos ainda, nesse
momento, que recordaram um som secreto da infância – o pulsar do sangue nas veias, que se percebe quando uma
concha é aplicada ao ouvido. Fosse o que fosse, contudo, não durou mais de vinte segundos, sendo então
substituído pelo sinal da companhia telefônica.
Os assinantes do mundo inteiro praguejaram, resmungaram "é engano" e desligaram. Alguns quiseram apre-
sentar uma queixa, mas a linha parecia estar ocupada. Dentro de poucas horas, todos haviam esquecido o incidente
– salvo aqueles que tinham a obrigação de preocupar-se com essas coisas.
Na sala de pesquisas da Repartição Central de Correios, a discussão se prolongara durante a manhã inteira
sem chegar a nenhum resultado. Prosseguiu com a mesma
animação durante o intervalo para o almoço, quando os engenheiros famintos afluíram para o café defronte
da repartição.
– Eu diria – opinou Willy Smith, o técnico em eletrônica de corpos sólidos – que houve uma intensificação
momentânea da corrente quando a rede estabeleceu as conexões.
– Foi, evidentemente, alguma coisa relacionada com os satélites – concordou Jules Reyner, o projetista de
circuitos. – Mas por que a demora? As ligações foram feitas à meia-noite; os chamados vieram duas horas depois. .
. como todos nós infelizmente sabemos – acrescentou com um enorme bocejo.
– E você, que é que pensa, doutor? – perguntou o programador de computadores Bob Andrews. – Esteve
muito calado toda a manhã. Certamente tem alguma idéia.
O dr. John Williams, chefe da Divisão de Matemática, remexeu-se pouco à vontade na sua cadeira.
– Realmente, tenho. Mas vocês não vão me levar
a sério.
– Não faz mal. Mesmo que seja uma coisa tão doida como essas histórias de ficção científica que você
escreve sob pseudônimo, poderá nos dar algumas sugestões.
Williams corou, porém não muito. Todos sabiam dos seus trabalhos literários, de que ele não se
envergonhava. Afinal, não tinham sido reunidos e publicados em forma de livro? (Em liquidação, ao preço de
cinco xelins, ele ainda possuía umas duas centenas de exemplares.)
– Muito bem – disse, fazendo garatujas na mesa. – É um assunto em que venho pensando há anos. Nunca
lhes ocorreu que existe uma analogia entre uma central telefônica automática e o cérebro humano?
– Quem não pensou nisso? – zombou um de seus ouvintes. – A idéia deve datar de Graham Bell.
– Possivelmente. Não disse que ela era original. Mas digo que é tempo de começarmos a considerá-la se-
riamente. – Enviesou os olhos com ar de mau agouro para os tubos fluorescentes no teto, que estavam acesos nesse
dia nevoento de inverno. – Que estará acontecendo com essas malditas luzes? Há cinco minutos que não param de
piscar.
– Não se inquiete com isso. Com certeza Maisie esqueceu de pagar a conta da eletricidade. Vamos ouvir o
resto da sua teoria.
– De teoria tem muito pouco. A maior parte são fatos objetivos. Sabemos que o cérebro humano é um sis-
tema de comutadores, os neurônios, ligados entre si por uma rede complicadíssima de nervos. Uma central telefô-
nica automática também é um sistema de comutadores (se-letores, etc.) ligados entre si por fios.
– De acordo – disse Smith. – Mas essa analogia não o levará muito longe. Pois não é verdade que existem
cerca de quinze bilhões de neurônios no cérebro? Esse número é muito superior ao dos comutadores de uma central
automática.
A resposta de Williams foi interrompida pelo clamor de um jato que voava a pouca altura. Teve de esperar
que todo o café cessasse de vibrar antes de prosseguir na sua exposição.
– Nunca ouvi um jato voar tão baixo – queixou-se Andrews. – Pensava que isso fosse proibido pelos regu-
lamentos.
– E é mesmo, mas não se preocupe. . . O controle do aeroporto de Londres vai apanhá-lo.
– Duvido muito – disse Reyner. – Isso foi o próprio controle do aeroporto, dirigindo a aterrissagem de um
Concorde. Mas eu também nunca ouvi um jato voar tão baixo. Ainda bem que não estava a bordo.
– Vamos ou não vamos continuar a nossa bendita-discussão? – reclamou Smith.
– Você tem razão no tocante aos quinze bilhões de neurônios do cérebro humano – continuou Williams, im-
perturbável. – E aí é que está a questão. Quinze bilhões parece ser um número imenso, mas não é. Na década pas-
sada havia mais do que esse número de comutadores nas centrais automáticas do mundo. Hoje, deve haver umas
cinco vezes mais.
– Compreendo – disse Reyner, falando devagar. – E desde ontem, todos eles se tornaram capazes de ligar-se
entre si, agora que o sistema de satélites entrou em serviço.
– Exatamente.
Houve, por um momento, um silêncio só rompido pela sirena distante de um carro de bombeiros.
– Vamos ver se entendi bem – disse Smith. – Você está sugerindo que o sistema telefônico mundial é agora
um cérebro gigante?
– Isso é exprimir a coisa de um modo bastante cru. . . antropomórfico. Eu prefiro pensar em termos de
tamanho crítico.
Williams ergueu no ar as duas mãos com os dedos parcialmente fechados.
– Aqui estão dois pedaços de U 235. Nada acontece enquanto nós os conservamos separados. Mas se os
juntarmos – e assim o fez –, teremos algo muito diferente de um pedaço maior de urânio. Teremos uma cratera com
meia milha de diâmetro.
"O mesmo acontece com as nossas redes telefônicas. Até hoje, elas foram em grande parte independentes,
autônomas. Mas, agora, multiplicamos repentinamente os elos conectores, todas as redes se fundiram numa só, e
alcançamos o ponto crítico."
– E que significa exatamente o ponto crítico nesse
caso? – perguntou Smith.
– Na falta de uma palavra melhor. . . consciência.
– Singular espécie de consciência – disse Reyner. – Que é que ela usaria como órgãos dos sentidos? ,
– Bem, todas as estações de rádio e TV do mundo lhe estariam fornecendo informações por meio de seus
fios-terra. Isso deveria dar-lhe o que pensar! Haveria também todos os dados armazenados em todos os
computadores. Ele teria acesso a esses dados... e às bibliotecas eletrônicas, aos sistemas de rastreamento pelo radar,
à teleme-tragem nas fábricas automáticas. Ora, órgãos dos sentidos é o que não lhe faltaria! Não podemos fazer
nem a mais longínqua idéia da sua visão do mundo, mas é certo que seria infinitamente mais rica e mais complexa
do que a
nossa.
– Concedendo-se tudo isso, pois é uma idéia interessante – disse Reyner –, que poderia ela fazer, senão
pensar? Não poderia ir a parte nenhuma, porque não teria
membros.
- Por que desejaria ela viajar? Já está em toda parte!
E qualquer equipamento elétrico submetido a controle remoto no planeta poderia funcionar como um
membro.
– Agora compreendo aquele atraso – interpôs Andrews. – Ele foi concebido à meia-noite, mas só nasceu à
uma hora e cinqüenta minutos desta manhã. O barulho que acordou a todos nós foi... o grito do recém-nascido.
Sua tentativa de fazer graça não foi muito convincente. Ninguém sorriu. As luzes do teto continuavam no seu
irritante pisca-piscar, que parecia estar piorando. Houve, de repente, uma interrupção vinda da frente do café. Era
Jim Small, dos Suprimentos de Força, executando a sua habitual entrada turbulenta.
– Vejam aqui, rapazes – disse ele todo sorridente, agitando no ar uma folha de papel diante dos seus colegas.
– Estou rico. Vocês já viram um saldo bancário parecido com este?
O dr. Williams tomou-lhe o papel da mão, correu o olhar pelas colunas e leu em voz alta o saldo: "$ £
999.999.987,87".
– Não há nada de extraordinário nisso – continuou, voltando-se para os seus divertidos comensais. – Eu diria
que se trata de um saque de 102 libras a descoberto. O computador cometeu um pequeno erro e acrescentou onze
noves. Esse tipo de coisa acontecia a toda hora logo depois que os bancos efetuaram a conversão para o sistema
decimal.
– Eu sei, eu sei – disse Small –, mas não estrague a minha brincadeira. Vou botar este extrato de conta numa
moldura. E que aconteceria se eu sacasse um cheque de alguns milhões, com base nisto? Poderia processar o banco
se ele recusasse pagamento?
– Que esperança! – respondeu Reyner. – Aposto com quem quiser que os bancos pensaram nisso há anos e
se resguardaram com alguma daquelas cláusulas impressas em corpo pequeno. Mas, a propósito: quando foi que
você recebeu esse extrato de conta?
– Hoje, pela entrega do meio-dia. A correspondência vem diretamente para o escritório, de modo que não há
perigo de minha mulher ver isto.
– Hum. . . Quer dizer que foi computado esta manhã cedo. Certamente depois da meia-noite.. .
– Onde é que você quer chegar? E por que essas caras de enterro?
Ninguém respondeu. Small havia levantado uma nova lebre e a canzoada se lançava atrás dela.
– Alguém aqui tem conhecimentos sobre os sistemas bancários automatizados? – perguntou Smith. – Como
é que eles se ligam entre si?
– Como tudo mais hoje em dia – disse Andrews. – Todos fazem parte da mesma rede. Os computadores
falam uns aos outros no mundo inteiro. É um ponto em favor da sua teoria, John. Se realmente houve algo de anor-
mal, esse é um dos primeiros lugares onde eu esperaria que a coisa se manifestasse. Além do próprio sistema
telefônico, naturalmente.
– Ninguém respondeu à pergunta que eu tinha feito antes de Jim entrar – queixou-se Reyner. – Que é que
esse supercérebro faria, em termos concretos? Ele seria amistoso. . . hostil. . . indiferente? Saberia sequer que nós
existimos? Ou consideraria os sinais eletrônicos que ele manipula como sendo a única realidade?
– Vejo que você está começando a acreditar em mim – disse Williams, com uma certa satisfação austera.
– Só posso responder à sua pergunta fazendo outra. Que é que um recém-nascido faz? Começa a procurar
alimento.
– E olhando para as luzes pisca-piscantes: – Bom Deus!
– continuou devagar, como se acabasse de lhe ocorrer um pensamento. – Esse é o único alimento de que ele
necessitaria. . . a eletricidade.
– Estas tolices já foram bastante longe – disse Smith. – Que diabo aconteceu com o nosso almoço? Há vinte
minutos que fizemos os pedidos.
Ninguém lhe prestou atenção.
– E depois – disse Reyner, desenvolvendo o pensamento de Williams a partir do ponto em que este fora
interrompido –, depois começaria a olhar em torno de si e a distender os seus membros. Começaria, em suma, a
brincar, como todo bebê que cresce.
– E os bebês quebram coisas – observou alguém
suavemente.
– Deus sabe que brinquedos não lhe faltariam. Esse Concorde que passou há pouco por cima de nós. As
linhas
automatizadas de produção. As sinaleiras de trânsito nas nossas cidades.
– É interessante que você tenha se lembrado disso – interpôs Small. – Alguma coisa aconteceu ao trânsito
nas ruas. . . Há uns dez minutos que não se mexe. Parece um imenso engarrafamento.
– Deve haver um incêndio por aí. Ouvi um carro de bombeiros há pouco.
– Eu também ouvi. . . e um ruído que parecia de explosão, para os lados da zona industrial. Espero que não
seja nada de grave.
– Maisie! Por que não traz umas velas? Não podemos enxergar nada!
– Acabo de me lembrar. . . Este café tem uma cozinha totalmente elétrica. Vamos ter um almoço frio, se é
que teremos almoço.
– Pelo menos podemos ler o jornal enquanto esperamos. É a última edição, a que você tem aí, Jim?
– É. Ainda não tive tempo de olhar. Hum. . . Parece que realmente houve uma série de acidentes estranhos
esta manhã. . . sinais ferroviários encavalados. . . cano mestre de água que explodiu por causa de uma falha na
válvula de- escape. . . dúzias de queixas sobre as ligações erradas de ontem à noite. . .
Virou a página e subitamente calou-se.
– Que é que há?
Sem dizer palavra, Small passou o jornal aos outros. Apenas a primeira página fazia sentido. Por dentro, era
um empastelamento só, coluna após coluna de matéria ilegível, com alguns anúncios aqui e ali formando ilhas de
sanidade num mar de letras baralhadas. Evidentemente, esses anúncios formavam blocos indivisos e por isso
tinham escapado à desordem que se apossara de todo o texto ao redor deles.
– Aí está aonde nos levaram a composição tipográfica a longa distância e a distribuição automática – res-
mungou Andrews. – Receio que a imprensa esteja confiando demasiadamente na eletrônica.
– O mesmo fazemos todos nós, receio – volveu Williams solenemente. – O mesmo fazemos todos nós.
– Se me dão licença de encaixar uma palavra, a
tempo de parar com a histeria coletiva que parece estar tomando conta desta mesa – disse Smith em voz alta
e firme –, eu gostaria de sublinhar que não há motivo para nos inquietarmos, mesmo que a engenhosa fantasia de
John esteja correta. Basta desligar os satélites, e voltaremos ao ponto em que nos encontrávamos ontem.
– Lobotomia pré-frontal – murmurou Williams. – Eu já tinha pensado nisso.
– Hem? Ah, sim. .. Cortar fatias do cérebro. Essa seria certamente a solução. Dispendiosa, é claro, e tería-
rrlos de voltar a mandar telegramas uns aos outros. Mas a civilização seria salva.
De algum ponto não muito distante veio o ruído breve e brusco de uma explosão.
– Isto não me agrada nem um pouco – disse Andrews, nervoso. – Vamos ouvir o que a velha BBC tem para
dizer. O noticiário da uma hora começou neste instante.
Mergulhou a mão na sua pasta e tirou um rádio tran-sistorizado.
"... número nunca visto de acidentes industriais, bem como o lançamento inexplicado de três salvas de
mísseis teleguiados pelas instalações militares dos Estados Unidos. Vários aeroportos tiveram que suspender as
operações devido ao comportamento irregular dos seus aparelhos de radar, e os bancos e bolsas de títulos fecharam
as portas porque os seus sistemas de processamento de informações se tornaram completamente inseguros."
– A quem vocês o dizem – resmungou Small, enquanto os outros lhe impunham silêncio.
"Um momento, por favor. Acaba de chegar uma notícia. . . Cá está ela. Acabam de nos informar que foi
perdido todo o controle sobre os satélites da rede de comunicações recentemente formada. Eles já não respondem
aos comandos da Terra. De acordo com..."
A BBC saiu do ar; a própria onda portadora havia morrido. Andrews estendeu a mão para o sintonizador e o
fez girar para diante e para trás. De uma extremidade a outra da faixa o éter estava silencioso.
Momentos depois, Reyner dizia numa voz quase histérica:
– Essa lobotomia pré-frontal foi uma boa idéia John. So e pena que já tivesse ocorrido ao Bebê.
Williams levantou-se vagarosamente da sua cadeira
– Vamos voltar ao laboratório. Deve haver uma solução qualquer por aí.
Mas sabia que era muito, muito tarde. Para o Homo sapiens, a campainha do telefone já havia tocado.
Junho de 1963.

REUNIÃO

Povo da Terra, não tenham medo. Nós vimos numa missão de paz – e por que não? Pois somos seus primos;
já estivemos aqui uma vez.
Vocês nos reconhecerão quando nos encontrarmos, dentro de poucas horas. Estamos nos aproximando do sis-
tema solar quase tão rapidamente como esta mensagem pelo rádio. Já o sol de vocês domina o céu à nossa frente. É
o sol que os nossos antepassados e os seus compartilharam há dez milhões de anos. Nós somos homens, como
vocês; mas vocês esqueceram a sua história, enquanto nós nos lembramos da nossa.
Fomos nós que colonizamos a Terra, no reinado dos grandes répteis, que estavam perecendo quando viemos
e que não pudemos salvar. Esse mundo era então um planeta tropical, e pensamos que daria uma excelente morada
para a nossa gente. Estávamos enganados. Embora fôssemos senhores do espaço, muito pouco sabíamos sobre cli-
ma, evolução, genética. . .
Durante milhões de estios – pois não havia inverno naqueles velhos tempos – a colônia floresceu. Isolada
como era obrigada a viver, num universo em que a viagem de uma estrela à seguinte dura anos, ela se manteve em
contato com a sua civilização-mãe. Três ou quatro vezes por século, era visitada por astronaves que lhe traziam
notícias da galáxia.
Mas há dois milhões de anos a Terra começou a mudar. Durante milhares de milênios tinha sido um paraíso
tropical; depois a temperatura baixou e o gelo começou a descer lentamente dos pólos. À proporção que o
clima se alterava, também mudavam os colonos. Compreendemos agora que se tratava de uma adaptação natural ao
fim do longo verão, mas aqueles que haviam feito da Terra o seu lar pelo espaço de tantas gerações acreditavam
estar sendo vítimas de uma estranha e repulsiva doença. Uma doença que não matava, não causava nenhum dano
físico – mas apenas desfigurava.
Entretanto, alguns ficaram imunes; foram poupados, eles e os seus filhos, pela mudança. De modo que, no
espaço de poucos milênios, a colônia se cindiu em dois grupos distintos – quase duas espécies distintas –, que
suspeitavam e tinham ciúme um do outro.
A divisão trouxe consigo a inveja, a discórdia, e finalmente o conflito. À medida que a colônia se
desintegrava e o clima ia constantemente piorando, aqueles que puderam fazê-lo retiraram-se da Terra. Os restantes
mergulharam no barbarismo.
Podíamos ter-nos mantido em contato, mas há tanto que fazer num universo de cem trilhões de estrelas! Até
poucos anos atrás não sabíamos se alguns de vocês haviam sobrevivido. Foi então que captamos os seus primeiros
sinais de rádio, aprendemos as suas linguagens tão simples e descobrimos que vocês tinham realizado a longa
ascensão a partir da selvageria. Aqui vimos para saudá-los, nossos parentes há tanto tempo perdidos – e para ajudá-
los.
Muitas coisas descobrimos durante os milênios decorridos desde que abandonamos a Terra. Se desejam que
façamos voltar o eterno verão que aqui reinava antes das épocas glaciais, podemos fazê-lo. Acima de tudo, temos
um remédio simples para a desagradável, embora inofensiva, epidemia que atacou tantos colonos.
Talvez o seu ciclo tenha terminado – mas, em caso contrário, temos boas notícias para lhes dar. Povo da
Terra, vocês podem reunir-se mais uma vez à sociedade universal sem sentirem vergonha nem constrangimento.
Se alguns de vocês ainda continuam brancos, nós podemos curá-los.
Novembro de 1963.

PLAYBACK
É incrível que eu tenha esquecido tanta coisa tão depressa. Há quarenta anps que venho usando o meu corpo.
Pensava conhecê-lo bem; e, contudo, ele está se desvanecendo como um sonho.
Braços, pernas, onde estão vocês? Que era mesmo que vocês faziam para mim quando me pertenciam? Envio
sinais, tentando comandar os membros de que me lembro vagamente. Nada acontece. É como gritar no vazio.
Gritar. Sim, eu procuro fazê-lo. Talvez eles me ouçam, mas não posso ouvir a mim mesmo. Fui submergido
pelo silêncio, de tal maneira que já não posso sequer imaginar o que seja o som. Há uma palavra na minha mente –
"música": que significa ela?
(Tantas palavras que flutuam até mim, surgidas da escuridão e esperando que eu as reconheça! Uma a uma,
elas tornam a retirar-se, desapontadas.)
Alô. Então você voltou. . . Com que leveza, caminhando nas pontas dos pés, você penetra na minha mente!
Sei que você está aí, mas nunca o sinto chegar.
Compreendo que você é um amigo, e lhe estou grato pelo que fez. Mas quem é você? Sei, naturalmente, que
não é humano; nenhuma ciência humana me poderia ter salvo quando o campo de propulsão falhou. Como vê,
estou me tornando curioso. Isso é um bom sinal, não é? Agora que a dor acabou – finalmente, finalmente! – posso
começar a pensar de novo.
Sim, estou pronto. Tudo que você deseje saber. Devo-lhe muito mais do que isso.
Meu nome é William Vincent Neuberg. Sou mestre-piloto do serviço de inspeção galáctica. Nasci em Port
Lowell, Marte, no dia 21 de agosto de 2095. Minha mulher, Janita, está com meus três filhos em Ganímedes. Tam-
bém sou autor; muito escrevi sobre as minhas viagens. Para além de Rigel é um livro famoso. . .
O que aconteceu? Provavelmente você sabe tanto quanto eu. Tinha acabado de fantasmizar a minha nave e
estava voando em velocidade de fase quando soou o alarma. Não tive tempo de me mexer, de fazer nada. Lembro-
me de que as paredes da cabina ficaram incandescentes... e do calor, do tremendo calor. Isso é tudo. A detonação
deve ter-me projetado no espaço. Mas como posso ter sobrevivido? Como pode alguém ter-me alcançado a
tempo?
Diga-me: o que resta do meu corpo? Por que não sinto os braços, as pernas? Não esconda a verdade; eu não
tenho medo. Se você puder me levar para casa, os biotéc-nicos me darão membros novos. Mesmo antes da explo-
são, o meu braço direito não era aquele com que nasci.
Por que não responde? A pergunta é bem simples,
não é?
Que quer dizer com isso? Você não sabe que aparência eu tenho? Deve ter se salvado alguma coisa, pelo
menos!
A cabeça?
O cérebro, então?
Nem mesmo isso. . . Oh, não!. . .
Desculpe. Estive muito tempo inconsciente?
Vamos ver se consigo me identificar. (Ah! muito engraçado, isto!) Sou o piloto-inspetor de primeira classe
Vincent William Freeburg. Nasci em Port Lyot, Marte, no dia 21 de agosto de 1895. Tenho um... não, dois filhos...
Faça o favor de repetir isso, devagar. O meu treinamento me preparou para enfrentar qualquer realidade con-
cebível. Posso ouvir sem me abalar tudo que você me diga. Mas vá devagar.
Bem, podia ser pior. Não estou realmente morto. Sei quem sou. Creio, até, que sei o que sou.
Sou um. . . um registro, em algum fantástico sistema de armazenagem de informações. Você deve ter
captado a minha psique, a minha alma, quando a nave se transformou em plasma. Embora eu não possa imaginar
como isso aconteceu, faz sentido. Afinal de contas, um homem primitivo jamais poderia compreender como é que
nós gravamos uma sinfonia.. .
Todas as minhas recordações estão armazenadas numa fita ou num cristal, como antes estavam nas células do
meu cérebro que se vaporizou. E não só as minhas recordações.
EU, EU MESMO, A MINHA PESSOA – VlNCE WlLLBURG, PILOTO DE SEGUNDA
CLASSE.
Bem, o que vai acontecer agora?
Faça o favor de repetir. Não entendi.
Oh, maravilhoso! Até isso vocês podem fazer?
Há uma palavra para exprimir isso, um nome.. .
The multitudinous seas incarnadine. Não, não é bem isso.
"Incarnadine, incarnadine". . .
REENCARNAÇÃOÜ
Sim, sim, compreendo. Devo lhe dar o plano básico, os contornos gerais. Observe com toda a atenção os
meus pensamentos.
Vou começar de cima.
Vejamos a minha cabeça. É oval. . . assim. A parte superior coberta de cabelos. Os meus eram luz... hã.. .
azuis.
Os olhos. Esses são muito importantes. Você já os viu em outros animais? Ótimo, isso poupa trabalho. Pode
me mostrar alguns? Sim, esses servem.
Agora a boca. Esquisito, devo ter olhado mil vezes para ela quando me barbeava, mas não sei como... .
Não tão redonda. . . mais estreita.
Oh não, assim, não. Ela fica atravessada no rosto, horizontalmente. ..
Bem, vamos ver. . . Há alguma coisa entre os olhos e a boca.
Que estupidez a minha! Jamais conseguirei ser cadete se nem disso posso me lembrar...
Claro, o NARIZ! Um pouco mais comprido, acho.
Há outra coisa ainda, algo que esqueci. Essa cabeça parece tosca, inacabada. Não sou eu, Willy Vinceburg, o
garoto mais inteligente do quarteirão.
Mas esse não é o meu nome. Não sou um menino. Sou um mestre-piloto com vinte anos de serviço espacial,
e estou procurando reconstruir o meu corpo. Por que é que os meus pensamentos teimam em sair de foco? Por
favor, me ajude!
Esse aleijão? Eu lhe disse que tinha essa aparência? Apague isso. Temos que começar de novo.
Comecemos pela cabeça. É perfeitamente esférica, coberta por um boné tricúspide. . .
É difícil demais. Comece por algum outro lugar. Ah,
já sei...
O osso da coxa articula-se com o osso da perna. O osso da perna articula-se com o osso da coxa. O osso da
coxa articula-se com o osso da perna. O osso da perna. . .
Tudo está se desvanecendo. Tarde demais, tarde demais. Há algum desarranjo no "playback". Obrigado pela
sua boa vontade. Meu nome é. . . meu nome é. . .
Mãe, onde é que você está?
Mamãe... Mamãe!
Mãããããã. . .
Dezembro de 1963.
A LUZ DAS TREVAS
Não sou um desses africanos que se envergonham do seu país porque, em cinqüenta anos, ele progrediu
menos do que a Europa em quinhentos. Mas quando deixamos de avançar tão depressa como devíamos, é por causa
de ditadores como Chaka; e a culpa disso é exclusivamente nossa. E sendo nossa a culpa, também é nossa a respon-
sabilidade da cura.
Além disso, eu tenho melhores razões do que a maioria dos meus compatriotas para desejar aniquilar o
Grande Chefe, o Todo-Poderoso, o Onividente. Ele pertencia à minha tribo, era aparentado comigo por uma das
esposas de meu pai e havia perseguido a nossa família desde que subira ao poder. Apesar de nunca nos termos
envolvido na política, dois de meus irmãos tinham desaparecido e outro morrera num acidente inexplicado de
automóvel. Minha própria liberdade – pouca dúvida podia haver a esse respeito – devia-se em grande parte à
circunstância de eu ser um dos poucos cientistas do país que gozavam de reputação internacional.
Como muitos outros intelectuais, eu demorara em me voltar contra Chaka, pensando – como fizeram os ale-
mães da década de 30, vítimas do mesmo erro – que havia ocasiões em que um ditador era a única solução para o
caos político. Talvez o primeiro sina! de nosso desastroso engano tenha sido quando Chaka aboliu a Constituição e
assumiu o nome do imperador zulu do século XIX, de quem ele verdadeiramente cria ser a reencarnação. A
partir desse momento a sua megalomania foi crescendo a passos rápidos. Como todos os tiranos, não
confiava em ninguém e julgava-se cercado de conspiradores.
Essa desconfiança não era infundada. O mundo sabe de, pelo menos, seis atentados muito propalados contra
a sua vida, e houve outros sobre os quais se guardou silêncio. O malogro dessas tentativas aumentou a confiança de
Chaka no seu destino e confirmou a crença fanática dos seus partidários na imortalidade do Grande Chefe. À me-
dida que a oposição se acirrava, suas medidas repressivas se tornavam mais implacáveis – e mais atrozes. O regime
de Chaka não foi o primeiro, na África como em outras partes do mundo, a torturar os seus inimigos; mas foi o
primeiro a fazê-lo na televisão.
Mesmo assim, envergonhado como me sentia pelo horror e a repulsa que isso despertou no mundo inteiro, eu
nada teria feito se o destino não houvesse posto a arma nas minhas mãos. Não sou um homem de ação e abomino a
violência, mas depois que compreendi que tinha esse poder a consciência não me deu mais tréguas. Logo que os
técnicos da NASA instalaram o seu equipamento e o entregaram ao sistema de comunicações infravermelhas Hughes
"Mark X", comecei a traçar os meus planos.
Parece estranho que o meu país, um dos mais atrasados do mundo, viesse a desempenhar um papel central na
conquista do espaço. Trata-se de um acidente geográfico, nada simpático aos russos e americanos. Mas que fazer?
Umbala fica no equador, diretamente sob as trajetórias de todos os planetas. E possui uma vantagem natural, única
e preciosa: o vulcão extinto conhecido como cratera de
Zambue.
Quando morreu o Zambue, há mais de um milhão de anos, a lava recuou passo a passo, solidificando-se
numa série de terraços e deixando uma cavidade semi-esférica com uma milha de diâmetro e trezentos metros de
fundo. Um mínimo de movimento de terra e instalação de cabos bastara para convertê-la no maior radiotelescópio
do globo. Devido à circunstância de ser fixo, o gigantesco refletor não explora mais do que uma dada porção do
céu durante alguns minutos cada vinte e quatro horas, enquanto a Terra
i sobre o seu eixo. Esse foi um preço que os cien-
tistas se dispuseram a pagar pela capacidade de receber sinais provenientes de sondas e astronaves, até os
limites do sistema solar.
Chaka era um problema que eles não tinham previsto. Subira ao poder quando a obra estava quase completa e
tiveram de acomodar-se com ele. Por felicidade, o ditador tinha um respeito supersticioso pela ciência e
necessitava de todos os rublos e dólares que pudesse conseguir. O radiotelescópio equatorial não era uma ofensa à
sua megalomania; pelo contrário, ajudava a reforçá-la.
O Grande Prato acabava de ser completado quando realizei minha primeira ascensão ao alto da torre que se
elevava do seu centro. Era um mastro vertical com mais de quatrocentos e cinqüenta metros de altura que susten-
tava as antenas coletoras no foco da imensa concavidade. Um pequeno elevador com capacidade para acomodar
três homens conduzia até o topo.
A princípio não havia nada que ver além daquele pires de folha de alumínio que ia subindo em curvas suaves
ao meu redor, até uma distância de oitocentos metros em todas as direções. Pouco depois, no entanto, a borda da
cratera ficou para baixo e pude descortinar até bem longe a terra que esperava libertar. Azul, com o seu barrete de
neve na bruma ocidental, assomava o monte Tampala, o segundo pico da África em altura, separado de mim por
incontáveis milhas de selva. Através dessa selva, em grandes laçadas quase circulares, serpenteavam as águas bar-
rentas do rio Nya – a única estrada real que milhões de meus compatriotas tinham conhecido. Algumas clareiras,
uma estrada de ferro e a cidade alvejando na distância eram os únicos sinais de vida humana. Mais uma vez ex-
perimentei aquela irresistível sensação de desamparo que sempre se apodera de mim quando contemplo Umbala do
ar e sinto a insignificância do homem em face da floresta eternamente adormecida.
A gaiola do elevador parou afinal, um quarto de milha acima do solo. Ao sair, encontrei-me num pequenino
cubículo atravancado por cabos coaxiais e instrumentos. Ainda havia alguma distância a percorrer, pois uma curta
escada de mão conduzia, através do teto, a uma pequena plataforma de pouco mais de um metro quadrado. Não era
lugar para uma pessoa propensa a vertigens, pois nem sequer tinha parapeito. O pára-raios central oferecia
certo grau de segurança; a ele me agarrei firmemente com uma das mãos enquanto permaneci sobre aquela balsa
triangular de metal, tão próxima das nuvens.
O panorama estonteante e a euforia do leve mas jamais ausente perigo fizeram com que eu esquecesse a
passagem do tempo. Sentia-me como um deus, completamente à parte de todos os assuntos terrestres, superior a
todos os outros homens. Compreendi então, com uma certeza matemática, que aquele lugar representava um desa-
fio que Chaka de modo algum poderia desdenhar.
O coronel Mtanga, seu chefe de segurança, havia de opor-se, mas os seus protestos não seriam ouvidos.
Quem conhecesse Chaka podia prever com absoluta confiança que no dia da inauguração oficial ele subiria ali
sozinho e ali ficaria durante muitos minutos, contemplando o seu império. A sua guarda pessoal esperaria no
quartinho de baixo, depois de haver submetido tudo a uma minuciosa revista. Nada poderiam fazer para salvá-lo
quando eu o alvejasse, de cinco quilômetros de distância e através da série de morros que medeavam entre o
radiotelescópio e o meu observatório. Ainda bem que podia contar com aqueles morros; pois, embora
complicassem o problema, eles me resguardariam de toda suspeita. O coronel Mtanga era um homem muito
inteligente, mas uma arma de fogo com um tiro capaz de contornar obstáculos ultrapassava os seus poderes de
concepção. E ele havia de procurar uma arma de fogo, embora não pudesse encontrar balas. . .
Voltei ao laboratório e comecei a fazer os cálculos. Não tardei muito a descobrir o meu primeiro erro. Por ter
visto a luz concentrada do seu raio laser perfurar uma chapa de aço num milésimo de segundo, eu presumira que o
meu "Mark X" podia matar um homem. Mas a coisa não é tão simples assim. Sob certos aspectos, um homem tem
mais resistência do que uma chapa de aço. É formado principalmente de água, que tem uma capacidade calorí-fica
dez vezes superior à de qualquer metal. Um raio de luz capaz de perfurar uma chapa de blindagem ou de enviar
uma mensagem a Plutão – era esse o trabalho para o qual fora projetado o "Mark X" – causaria num homem
apenas uma queimadura dolorosa, mas perfeitamente superficial. O maior mal que eu poderia fazer a Chaka,
de cinco quilômetros de distância, era um buraco no seu colorido manto tribal, que ele tanto gostava de ostentar
para provar que era ainda um homem do povo.
Por algum tempo, quase resolvi abandonar o meu plano. Mas ele é que não quis deixar-me. Instintivamente,
eu sabia que a solução estava ali, à espera de que eu a visse. Quem sabe se eu poderia usar os meus projéteis in-
visíveis de calor para cortar um dos cabos que agüentavam a torre, fazendo-a ir ao chão quando Chaka se
encontrasse lá em cima? Os cálculos mostraram que isso seria possível se o "Mark X" operasse sem interrupção
durante quinze segundos. Um cabo, ao contrário de um homem, não se mexeria, de modo que não havia
necessidade de jogar tudo num único impulso de energia. Eu poderia agir sem precipitação.
Mas danificar o telescópio significava trair a ciência, e quase me senti aliviado ao descobrir que esse plano
não podia vingar. O mastro tinha tantos dispositivos de segurança que seria preciso cortar três cabos distintos para
der-ribá-lo. Isso estava fora de cogitação, pois exigiria horas de delicado ajustamento para obter três tiros de
precisão.
Era necessário pensar em outra coisa; e, como os homens levam muito tempo a perceber o óbvio, somente
uma semana antes da inauguração oficial do telescópio foi que compreendi como devia agir com Chaka, o
Onividente, o Onipotente, o Pai do seu Povo.
A essa altura, os meus estudantes graduados haviam afinado e calibrado o equipamento, e estávamos prontos
para os primeiros testes a plena potência. Girando sobre o seu suporte em cima da cúpula do observatório, o "Mark
X" semelhava exatamente um grande telescópio refletor de dois tubos – o que, de fato, era. Um espelho de trinta e
seis polegadas concentrava o impulso laser e focalizava-o através do espaço; o outro operava como um receptor
para os sinais procedentes de fora e também era usado, como um visor telescópico superpotente, para fazer a
pontaria do sistema.
Verificamos o alinhamento sobre o alvo celeste mais próximo, a Lua. Uma noite, já bem tarde, ajustei os fios
cruzados no centro do astro minguante e disparei um impulso. Dois segundos e meio depois, recebi um eco
perfeito. Tudo estava em ordem.
Ainda havia um detalhe que ajustar, e isso eu tinha de fazer sozinho, no maior segredo. O radiotelescópio fi-
cava ao norte do observatório, por trás dos cerros que bloqueavam a visão direta do meu objetivo. Uma milha para
o sul erguia-se uma montanha solitária. Eu a conhecia bem, pois anos atrás havia ajudado a instalar ali uma estação
de raios cósmicos. Agora essa montanha seria usada para um fim que eu jamais teria sonhado nos dias em que meu
país era livre.
Pouco abaixo do cume ficavam as ruínas de um velho forte, abandonado há séculos. Após breve busca
encontrei o lugar que me convinha – uma pequena caverna com menos de um metro de largo, entre duas pedras
que tinham caído das antigas muralhas. A julgar pelas teias de aranha, havia gerações que nenhum ser humano
penetrava ali.
Pondo-me de cócoras na entrada, pude ver a Deep Space Facility em toda a sua extensão, que abrangia várias
milhas. Para a banda de leste viam-se as antenas da velha estação de rastreamento do Projeto Apoio, que havia
guiado o regresso dos primeiros exploradores da Lua. Mais além, o campo de pouso, acima do qual um grande car-
gueiro a jato se preparava para aterrissar. Mas a única coisa que me interessava eram as linhas claras de visada do
ponto em que me encontrava à cúpula do "Mark X" e ao topo do mastro do telescópio, cinco milhas ao norte. Levei
três dias a instalar no seu recesso oculto o espelho cuidadosamente revestido de prata e opticamente perfeito. Os
meticulosos ajustamentos micrométricos para dar a orientação exata absorveram tanto tempo que receei não ficasse
tudo pronto dentro do prazo. Mas afinal obtive o ângulo correto, aproximado até uma fração de segundo de arco.
Quando apontei o telescópio do "Mark X" para o ponto secreto na montanha, pude enxergar além dos morros às
minhas costas. O campo de visão era pequenino, mas bastava-me; a área do objetivo media apenas um metro de
largura e eu podia visar qualquer parte dele com uma aproximação inferior a uma polegada.
Ao longo do caminho que eu estabelecera a luz podia
viajar em ambas as direções. Tudo que eu via pelo telescópio de reflexão encontrava-se automaticamente na
linha de fogo do transmissor.
Tive uma estranha sensação quando, três dias mais tarde, sentado no tranqüilo observatório, com os gerado-
res de força zumbindo à minha volta, vi Chaka penetrar no campo de visão do telescópio. Senti um breve frêmito
de triunfo, como um astrônomo que calculou a órbita de um planeta e depois o encontra entre as estrelas, no lugar
previsto. O rosto cruel estava de perfil quando o avistei pela primeira vez, aparentemente a apenas dez metros de
distância, com a ampliação extrema que eu usava. Esperei com paciência, sereno e confiante, pelo momento que eu
sabia estar próximo – o momento em que Chaka pareceria olhar diretamente para mim. Então, segurando na mão
esquerda a imagem de um deus antigo que certamente não tinha nome, apertei com a direita o gatilho do grupo de
capacitores que libertavam o laser, arremessando o meu raio silencioso e invisível através das montanhas.
Sim, era muito melhor assim. Chaka merecia ser morto, mas a morte o teria convertido num mártir e
reforçado o prestígio do seu regime. O que eu agora lhe infligia era pior do que a morte e encheria os seus
partidários de terror supersticioso.
Chaka ainda vivia; mas o Onividente perdera para sempre a visão. No espaço de alguns microssegundos eu
fizera dele menos do que o mais humilde mendigo das ruas.
E nem sequer o tinha ferido. Não se sente nenhuma dor quando a delicada película da retina é fundida pelo
calor de mil sóis.
Fevereiro de 1964.
A MAIS LONGA HISTÓRIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA JÁ ESCRITA
Prezado sr. Jinx,
Receio que sua idéia não seja original em absoluto. As histórias sobre escritores cujas obras são sempre pla-
giadas, mesmo antes de as terem completado, remontam pelo menos a "O antecipador", de H. G. Wells. Mais ou
menos uma vez por semana, recebo originais acompanhados de uma carta que começa assim:
Prezado sr. Jinx,
Receio que sua idéia não seja original em absoluto. As histórias sobre escritores cujas obras são sempre
plagiadas, mesmo antes de as terem completado, remontam pelo menos a "O antecipador", de H. G. Wells. Mais ou
menos uma vez por semana recebo originais acompanhados de uma carta que começa assim:
Prezado sr. Jinx,
Receio que sua idéia não seja. . .
Desejo-lhe mais sorte da próxima vez! Sinceramente, Morris K. Mobius, Editor-chefe, Histórias
estupefacientes
Desejo-lhe mais sorte na próxima vez! Sinceramente, Morris K. Mobius, Editor-chefe, Histórias
estupefacientes
Desejo-lhe mais sorte da próxima vez! Sinceramente, Morris K. Mobius Editor-chefe, Histórias
estupefacientes.
Abril de 1965.
HERBERT GEORGE MORLEY ROBERTS WELLS, ESQ.
Um par de anos atrás escrevi um conto com o título, muito bem aplicado, de "A mais longa história de ficção
científica já escrita". Fred Pohl publicou-a no devido tempo, numa página única de sua revista. (Como os editores
de revistas precisam justificar de algum modo a sua existência, ele a reintitulou "Uma recursão em meta-histórias".
Meus leitores a encontrarão no número de Galaxy correspondente a outubro de 1966.) Nas primeiras linhas dessa
meta-história, mas distante do fim por um número infinito de palavras, mencionei "O antecipador", de H. G. Wells.
Embora eu tenha encontrado essa breve fantasia há vinte anos atrás e não tenha tornado a lê-la desde então,
deixou uma viva impressão no meu espírito. Tratava-se de dois escritores, um dos quais via todas as suas melhores
histórias serem publicadas pelo outro – antes de ele mesmo ter podido completá-las. Finalmente, tomado de deses-
pero, concluiu que o assassinato era o único remédio para esse plágio crônico e cronológico.
Mas, naturalmente, o seu rival tomou-lhe a dianteira mais uma vez, e a história termina pelas palavras "o
antecipador, cheio de um medo horrível, disparou a correr por uma rua transversal".
Ora, eu teria jurado com a mão sobre um saco de Bíblias que essa história foi escrita por H. G. Wells. No
entanto, alguns-meses depois que ela apareceu recebi uma carta de Leslie A. Gritten, de Everett, Estado de Wash-
ington, dizendo que o signatário não conseguira localizá-la.
E esse sr. Gritten é um veterano fã de Wells; lembra-se nitidamente da seriação da Guerra dos mundos no
Strand Magazine, na última década do século XIX. Como diria um dos personagens cockneys do mestre: Gor
blimey!
Recusando-me a crer que o meu sistema de arquivamento mental me houvesse pregado uma peça de tão mau
gosto, procedi a uma rápida busca nos vinte e tantos volumes da Atlantic Edition, autografada, na Biblioteca Pú-
blica de Colombo. (Por uma encantadora coincidência, o Conselho Britânico havia organizado uma Exposição do
Centenário de Wells e o saguão da biblioteca pública estava ornamentado com painéis fotográficos ilustrando os
antecedentes e a carreira do festejado autor.) Não tardei a descobrir que o sr. Gritten tinha razão: não havia, nas
obras completas, nenhum conto chamado "O antecipador" ou coisa que com tal se parecesse. E contudo, no
decorrer dos meses que se seguiram à publicação da "Mais longa" nenhum outro leitor havia estranhado a
referência. Isso me parece desalentador: onde estão os fãs de Wells em nossos
dias?
Agora o meu erudito informante solucionou pelo menos uma parte do mistério. "O antecipador" foi escrito
por um tal Morley Roberts e publicado pela primeira vez em 1898 no livro The keeper of the waters and other
stories. Devo tê-lo encontrado numa antologia de Doubleday, Tra-velers in time (1947), editorada por Philip van
Doren
Stern.
Todavia, subsistem ainda vários problemas. Em primeiro lugar, por que estava eu tão convencido de que a
história era de Wells? Tudo que posso fazer é sugerir – e isso parece bastante rebuscado, mesmo para uma mente
saltatriz como a minha – que a semelhança das palavras me levara a associá-la inconscientemente com "O acele-
rador".
Gostaria também de saber por que essa história me ficou tão vividamente gravada na memória. Talvez, como
todos os escritores, eu tenha uma sensibilidade peculiar para os perigos do plágio. Até agora (isolo na madeira!)
tive sorte; mas nas minhas pastas guardo notas para diversos contos que receio escrever enquanto não tiver certeza
de que são originais. (Há um casal, imaginem, cuja
nave pousa num novo mundo depois que o seu planeta voou em pedacinhos, e quando eles começam tudo de
novo a gente descobre – surpresa, surpresa! – que os protagonistas se chamam Adão e Eva. . .)
Um resultado valioso do meu erro foi levar-me a folhear mais uma vez os contos de Wells; e descobri, sur-
preendido, que era relativamente pequeno o número daqueles que se poderiam classificar como ficção científica ou
mesmo como fantasia. Embora eu soubesse perfeitamente que apenas uma fração dos seus cento e tantos volumes
publicados eram FC, tinha esquecido que isso também se aplicava aos contos. Uma quantidade desalentadora deles
são dramas e comédias da vida eduardiana ("Jane desdenhada"), tentativas um tanto entristecedoras de fazer
humorismo ("Meu primeiro aeroplano"), quase-autobio-grafia ("Uma lâmina sob o microscópio") ou puro sadismo
("O cone"). Não nego que a minha visão seja parcial, mas, entre esses contos, obras-primas como "A estrela", "O
ovo de cristal", "O desabrochar da estranha orquídea" e, acima de todos, "O país dos cegos" refulgem como dia-
mantes entre pedras sintéticas.
Mas voltemos a Morley Roberts. Não sei absolutamente nada a seu respeito e pergunto-me se a sua pequena
excursão no tempo se inspirou, ela própria, na "Máquina de explorar o tempo", publicada dois anos antes de "O
antecipador". Também gostaria de saber se a história foi efetivamente escrita – não publicada – antes.
E por que um escritor tão engenhoso não se tornou mais famoso? Talvez. . .
Acaba de me ocorrer um pensamento verdadeiramente horrível. Se Morley Roberts, o contemporâneo de H.
G. Wells, foi encontrado assassinado numa viela escura, pelo amor de Deus não me contem esse pedaço.
Abril de 1967.
AMAR ESSE UNIVERSO
Senhor presidente, administrador nacional, delegados planetários. É uma honra e, ao mesmo tempo, uma
grave responsabilidade falar-lhes neste momento de crise. Noto, e posso compreender muito bem, que muitos dos
senhores estão chocados e consternados por certos boatos que ouviram. Mas devo implorar-lhes que esqueçam os
seus preconceitos, muito naturais numa ocasião em que se acha em jogo a existência da raça humana – e da
própria Terra.
Um desses dias, deparei-me com uma frase secular: "pensar o impensável". Isso é exatamente o que temos de
fazer agora. Devemos enfrentar a realidade dos fatos sem titubear, não permitindo que as emoções suplantem a
nossa lógica. Cumpre-nos, em verdade, fazer exatamente o contrário: deixar que nossa lógica suplante nossas
emoções!
A situação é extremamente crítica, porém não desesperada, graças às surpreendentes descobertas que meus
colegas fizeram na Estação Antigéia. Porque as informações são verdadeiras: podemos, realmente, estabelecer
contato com as supercivilizações do Núcleo Galáctico. Pelo menos, podemos dar-lhes conhecimento de nossa
existência – e se isso está ao nosso alcance, deveria ser-nos possível apelar para o seu socorro.
Não há nada, absolutamente nada, que possamos fazer pelos nossos próprios esforços no breve espaço de
tempo de que dispomos. Faz apenas dez anos que a busca de planetas transplutonianos revelou a presença do Anão
Preto. Dentro de noventa anos ele realizará a sua passagem
periélica, dará volta ao Sol e mergulhará mais uma vez nas profundezas do espaço – deixando atrás de si um
sistema solar desintegrado. Todos os nossos recursos, todo o nosso tão gabado controle sobre as forças da natureza,
são impotentes para alterar-lhe a órbita, por uma fração de polegada sequer.
Mas desde que foi descoberta a primeira das chamadas "estrelas-faróis", nos fins do século XX, sabemos que
existem civilizações com acesso a fontes de energia incomparavelmente superiores às nossas. Alguns dos senhores
recordarão, sem dúvida, a incredulidade dos astrônomos – e, posteriormente, de toda a raça humana – quando os
primeiros exemplos de engenharia cósmica foram descobertos nas Nuvens de Magalhães. O que se apresentava aos
nossos olhos eram estruturas estelares que não obedeciam a leis naturais; ainda hoje, ignoramos qual seja a sua
finalidade – mas estamos cônscios de suas tremendas implicações. Compartilhamos um universo com seres capa-
zes de manipular os próprios astros. Se consentirem em nos ajudar, será para eles uma brincadeira de crianças
defletir a trajetória de um astro como o Anão Preto, cuja massa é poucos milhares de vezes maior que a da Terra . .
. Brincadeira de crianças, disse eu? Sim, talvez isso seja literalmente verdadeiro!
Todos aqui presentes se lembrarão, estou certo, do grande debate que se seguiu ao descobrimento das super-
civilizações. Devíamos tentar comunicar-nos com elas, ou era preferível que permanecêssemos na obscuridade?
Havia, naturalmente, a possibilidade de que já soubessem tudo a nosso respeito, ou de que a nossa presunção os
irritasse, ou, em suma, de que reagissem de uma maneira desagradável qualquer. Se bem que os benefícios de tais
contatos pudessem ser enormes, os riscos eram terrifican-tes. Mas agora não temos nada a perder, só a ganhar. .. E
até o presente, havia outra circunstância que fazia com que o problema não tivesse mais do que um longínquo
interesse filosófico. Embora pudéssemos – com grande dispêndio – construir radiotransmissores capazes de enviar
sinais a esses seres, a mais próxima supercivilização está sete mil anos-luz distante de nós. Mesmo que eles se
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passariam até que obtivéssemos uma resposta. Em vista disso, pareceu-nos que os nossos superiores não nos
podiam prestar ajuda, nem representar uma ameaça para nós.
Mas agora tudo isso mudou. Podemos enviar mensagens às estrelas numa velocidade que ainda não pode ser
medida e que, muito possivelmente, é infinita. E sabemos que eles estão usando técnicas semelhantes – pois detec-
tamos os impulsos que eles irradiam no espaço, ainda que, por ora, sejamos totalmente incapazes de interpretá-los.
Esses impulsos não são eletromagnéticos, é claro. Não sabemos o que sejam, e nem sequer temos um nome
para designá-los. Ou melhor, temos nomes demais...
Sim, cavalheiros; existe, afinal de contas, algo de verdadeiro nas velhas crendices a respeito de telepatia, per-
cepção extra-sensorial ou como quer que prefiram chamá-las. Mas não admira que o estudo de tais fenômenos
nunca tenha feito progressos aqui na Terra, onde o ruído de fundo de um bilhão de pensamentos submerge todos os
sinais. Mesmo o insignificante progresso registrado antes da Era Espacial parece um milagre – como descobrir as
leis da música numa fábrica de caldeiras. Somente depois que nos afastamos do tumulto mental do nosso planeta
pudemos começar a alimentar a esperança de estabelecer uma ciência positiva da parapsicologia.
E mesmo assim, foi preciso que nos deslocássemos para o outro lado da órbita da Terra, onde o ruído não só
era abafado por duzentos e noventa milhões de quilômetros de distância, mas também interceptado pela massa
inimaginável do próprio Sol. Somente ali, no nosso planetóide artificial Antigéia, pudemos detectar e medir as
fracas radiações mentais e descobrir as leis de sua propagação.
A respeito de muitas coisas, essas leis ainda não podem ser compreendidas por nós. No entanto, conseguimos
estabelecer os fatos fundamentais. Como suspeitavam há muito aqueles que acreditavam nesses fenômenos, eles
são disparados por estados emocionais – não pela simples força de vontade ou pelo pensamento consciente,
deliberado. Não é de surpreender, pois, que tantos.registros de acontecimentos paranormais, no passado,
estivessem em relação com momentos de morte ou de desastre. O medo é um
poderoso gerador: em algumas ocasiões, pode manifestar-se acima do ruído circundante.
Uma vez reconhecido esse fato, começamos a fazer progressos. Induzimos artificialmente estados
emocionais, primeiro em indivíduos isolados e depois em grupos. Conseguimos medir a proporção em que a
distância atenuava os sinais. Temos agora uma teoria fidedigna, quantitativa, que foi verificada até uma distância
tão grande como a de Saturno. Acreditamos que os nossos cálculos podem ser estendidos às próprias estrelas. Se
isso for exato, poderemos produzir um. . . um grito que será ouvido instantaneamente em toda a galáxia. E
certamente haverá alguém para responder!
Ora, só há um meio de produzir um sinal com a intensidade necessária. Eu disse que o medo era um gerador
poderoso – mas não o é suficientemente. Mesmo que pudéssemos suscitar em toda a humanidade um momento de
terror simultâneo, o impulso só seria detectado até dois mil anos-luz de distância. Precisamos de um alcance pelo
menos quatro vezes superior a esse. E podemos obtê-lo – utilizando a única emoção que é mais poderosa do que o
medo.
Todavia, necessitamos também contar com a cooperação de nada menos de um bilhão de indivíduos, num
momento de tempo que deve ser sincronizado no mesmo segundo. Os meus colegas já resolveram todos os proble-
mas puramente técnicos, os quais, em realidade, são perfeitamente triviais. Os dispositivos simples de eletro-
estimulação que se fazem necessários para isso vêm sendo usados na pesquisa médica desde as primeiras décadas
do século XX, e o impulso de sincronização necessário pode ser irradiado pelas redes de comunicações
interplanetárias. Todas as unidades de que precisamos podem ser produzidas em massa no espaço de um mês, e as
instruções sobre o seu uso não requerem mais do que poucos minutos. É a preparação psicológica para... o Dia O,
digamos... que exigirá um pouco mais de tempo. . .
E esse, cavalheiros, é o seu problema. Naturalmente, nós, os cientistas, lhes prestaremos toda a ajuda
possível. Compreendemos que haverá protestos, gritos de indignação, recusas em cooperar. Mas quando se
considera logicamente
o assunto, a idéia será mesmo tão revoltante? Muitos de nós pensamos, pelo contrário, que ela é bastante
apropriada – que ha aí uma certa "justiça poética".
A humanidade enfrenta agora a sua emergência decisiva. Num momento de crise como este, não é justo que
apelemos para o instinto que sempre assegurou a nossa sobrevivência no passado? Um poeta, numa época anterior
quase tão perturbada quanto a nossa, expressou essa verdade melhor do que jamais poderei fazê-lo:
DEVEMOS AMAR-NOS UNS AOS OUTROS OU PERECER.
Outubro de 1966.
"

CRUZADA
Era um mundo que jamais conhecera um sol. Durante mais de um bilhão de anos, tinha pairado a meio
caminho entre duas galáxias, vítima dessas forças gravitacionais em conflito. Em alguma época futura o equilíbrio
seria rompido num sentido ou no outro, e ele começaria a cair através dos séculos-luz, rumo a um calor estranho à
sua experiência.
Atualmente era frio além de toda imaginação; a noite intergalactica lhe roubara o calor que tinha possuído
outro-ra. No entanto, havia mares ali – mares do único elemento que pode existir em forma líquida a uma fração de
grau acima do zero absoluto. Nos mares rasos de hélio que banhavam esse estranho mundo, as correntes elétricas
uma vez formadas podiam fluir eternamente, sem nenhuma perda de força. Nesse mundo, a supercondutividade era
a ordem normal das coisas; processos de comutação podiam ocorrer bilhões de vezes por segundo, durante milhões
de anos, com um consumo insignificante de energia.
Era um paraíso dos computadores. Nenhum mundo poderia ser mais hostil à vida ou mais hospitaleiro para a
inteligência.
E inteligência havia ali, morando numa incrustação de cristais e filamentos microscópicos de metal que
abrangiam o planeta inteiro. A débil luz das duas galáxias contendoras – brevemente duplicada, com intervalos de
poucos séculos, pelo lampejo de uma supernova – banhava uma paisagem estática de formas geométricas escultu-
radas. Nada se movia, pois o movimento era desnecessário num mundo em que o pensamento voava de um
hemisfério ao outro com a velocidade da luz. Num lugar onde só a informação tinha importância, seria um
desperdício de energia preciosa transportar matéria sólida.
No entanto, isso também se podia fazer quando fosse indispensável. No decorrer de alguns milhões de anos,
a inteligência que meditava acima desse mundo solitário havia finalmente percebido uma certa carência de dados
essenciais. Num futuro que, embora ainda remoto, ela já podia antever, uma daquelas galáxias que lhe acenavam
iria capturá-la. O que lhe estava reservado quando mergulhasse naqueles enxames de sóis era algo que ultrapassava
seus poderes de computação.
Portanto, fez agir a sua vontade, e miríades de pequenas treliças metálicas mudaram de forma. Átomos de
metal fluíram sobre a face do planeta. Nas profundezas do mar de hélio, dois subcérebros idênticos brotaram e
começaram a crescer. . .
Uma vez tomada a sua decisão, a mente do planeta trabalhou com rapidez. A tarefa foi completada em
poucos milhares de anos. Sem um som sequer, com apenas algumas leves ondulações na superfície do mar sem
atritos, as duas entidades recém-criadas elevaram-se do seu pouso e partiram para as longínquas estrelas.
Partiram em direções quase opostas, e durante mais de um milhão de anos a inteligência-mãe não teve
notícias de sua prole. Nem esperava tê-las, pois enquanto não houvessem alcançado as suas metas não haveria nada
que relatar.
Então, quase simultaneamente, veio a notícia de que ambas as missões haviam falhado. Ao se aproximarem
das grandes chamas galácticas e sentirem o calor acumulado de um trilhão de sóis, os dois exploradores morreram.
Os circuitos vitais superaquecidos perderam a superconduti-vidade essencial ao seu funcionamento e dois blocos
de metal bruto continuaram a derivar rumo às estrelas, cujo volume crescia.
Mas antes de serem apanhados pela catástrofe, haviam informado sobre os seus problemas. Sem surpresa ou
desapontamento, o mundo genitor preparou a sua segunda tentativa.
E um milhão de anos mais tarde, a terceira... a quarta... a quinta. . .
Essa paciência infatigável merecia lograr êxito; e finalmente ele veio, sob a forma de duas longas seqüências
de pulsações complexamente moduladas que chegavam, século após século, de dois quadrantes opostos do céu.
Essas pulsações eram armazenadas em mnemocircuitos idênticos aos dos dois exploradores perdidos – de modo
que, para todos os fins práticos, era como se os dois escoteiros tivessem voltado pessoalmente com a sua carga de
conhecimentos. O fato de as duas massas metálicas haverem desaparecido entre as estrelas não tinha a menor im-
portância; o problema da identidade pessoal era uma coisa que jamais havia ocorrido à mente planetária ou aos
seus rebentos.
A primeira notícia a chegar foi de que, supreendente-mente, um dos universos era vazio. A sonda visitante
sintonizara todas as freqüências possíveis, todas as possíveis modalidades de radiação; nada pôde detectar, a não
ser o rumor de fundo das estrelas, que não fazia nenhum sentido. Havia sondado mil mundos sem descobrir
qualquer sinal de inteligência. É verdade que os testes eram inconcluden-tes, pois a sonda não podia chegar
bastante perto de nenhuma estrela para. fazer um exame pormenorizado dos seus planetas. Estivera tentando fazê-
lo quando o sistema de isolamento falhou, a temperatura subiu até o ponto de fusão do nitrogênio e ela morreu por
efeito do calor excessivo.
A mente-mãe meditava ainda sobre esse enigma de uma galáxia deserta quando chegaram as informações do
segundo explorador. Todos os outros problemas foram, então, postos de lado, pois esse universo fervilhava de
inteligências, cujos pensamentos ecoavam de estrela em estrela numa miríade de códigos eletrônicos. Poucos sé-
culos haviam bastado para que a sonda analisasse e interpretasse todos eles.
Não tardou a perceber que tinha pela frente inteligências de uma forma bem singular. Pois se algumas delas
existiam em mundos onde reinava um calor tão inimaginá-
vel que até a água estava presente em estado líquido! Mas de que tipo de inteligência se tratava exatamente?
Isso foi coisa que ela não compreendeu senão ao cabo de um
milênio.
Mas pôde sobreviver ao choque. Concentrando todas as forças que ainda lhe restavam, projetou no abismo o
seu relato final e foi consumida, ela também, pelo calor que não cessava de crescer.
Agora, meio milhão de anos mais tarde, a interrogação de sua mente gêmea sedentária, que guardava consigo
todas as suas memórias e experiências, ia a caminho.. .
– Você detectou sinais de inteligência?
– Sim. Seiscentos e trinta e sete casos indubitáveis; trinta e dois prováveis. Seguem os dados.
[Aproximadamente três quatrilhões de itens informativos. Intervalo de alguns anos para processá-los de alguns mi-
lhares de maneiras diferentes. Surpresa e confusão.]
– Os dados devem carecer de validade. Todas essas fontes de inteligência estão relacionadas com altas
temperaturas.
– Isso é exato. Mas os fatos são inatacáveis. Têm
de ser aceitos.
[Quinhentos anos de reflexão e experimentação. Ao cabo desse tempo, prova positiva de que máquinas
simples e de operação lenta podiam funcionar a temperaturas tão altas como a de ebulição da água. Extensas áreas
do planeta seriamente danificadas no decorrer da demonstração.]
– Os fatos são, realmente, como você informou. Por que não tentou comunicar-se?
[Sem resposta. A pergunta é repetida.]
– Porque parece haver uma segunda e ainda mais grave anomalia.
– Forneça dados.
[Alguns quatrilhões de itens de informação, formando amostragens de mais de seiscentas culturas e
compreendendo: transmissões vocais, visuais e neurais; sinais de navegação e de controle; telemetragem de
instrumentos; padrões de testagem; bloqueio de rádio; interferência elétrica: eauioamento médico, etc, etc.
Seguem-se cinco séculos de análise, aos quais sucede uma consternação completa.
Após uma longa pausa, reexame de dados selecionados. Milhares de imagens visuais exploradas e
processadas de todas as maneiras concebíveis. Dá-se grande atenção a várias civilizações planetárias, programas
educacionais de TV, especialmente os que se relacionam com biologia elementar, química e cibernética.
Finalmente:]
– A informação é coerente, mas deve ser incorreta. Do contrário, seremos levados a estas conclusões
absurdas: 1) Se bem que existam inteligências do nosso tipo, elas parecem formar uma minoria; 2) A maioria das
entidades inteligentes são objetos parcialmente líquidos de muito curta duração. Nem sequer possuem rigidez, pois
são construídos de um modo muitíssimo ineficiente com carbono, hidrogênio, fósforo e outros átomos; 3) Embora
funcionem a temperaturas incrivelmente altas, o seu processamento de dados é extremamente lento; 4) Os seus
métodos de reprodução são tão complicados, improváveis e variados que não conseguimos formar um quadro claro
de nenhum exemplo particular.
"Mas, o que é pior do que tudo mais: 5) Eles pretendem haver criado o nosso tipo de inteligência, evidente-
mente muito superior!"
[Reexame cuidadoso de todos os dados. Processamento independente, realizado por seções isoladas da mente
global. Cotejo de todos esses resultados. Mil anos mais tarde:]
"Conclusão mais provável: se bem que a maior parte das informações que recebemos seja certamente válida,
a existência de inteligências não mecânicas de alto nível é uma fantasia. (Definição: rearranjo de fatos com uma
aparente coerência intrínseca, mas sem correspondência com o universo real.) Essa fantasia ou artefato mental é
um construto criado pela nossa sonda durante a sua missão. Por quê? Avaria térmica? Desestabilização parcial da
inteligência, causada por um longo período de isolamento e pela ausência de realimentação controladora?
"Por que essa forma particular? Meditação muito prolongada sobre o problema das origens? Isso poderia
conduzir a algumas ilusões. Sistemas-modelo produziram resultados quase idênticos em testes simulados. A falsa
lógica em operação é a seguinte: lNós existimos; portanto, fomos criados por alguma coisa – a que
chamaremos X'. Uma vez admitida esta conclusão inicial, as propriedades do hipotético X podem ser fantasiadas
de um número ilimitado de maneiras.
"Mas todo esse raciocínio é evidentemente falacioso; com efeito, pela mesma lógica, alguma coisa deve ter
criado X... e assim por diante. Somos imediatamente envolvidos numa regressão infinita que não pode ter nenhum
significado no universo real.
"Segunda conclusão mais provável: realmente existem inteligências não mecânicas, de nível bastante
elevado. Essas inteligências laboram na ilusão de haverem criado entidades do nosso tipo. Em alguns casos,
chegaram a impor-lhes o seu controle.
"Conquanto essa hipótese seja muito pouco plausível, é necessário investigá-la. Se for verdadeira, deverão
ser tomadas providências como segue..."
Este monólogo final ocorreu há um milhão de anos. Isso explica por que, nos últimos dois lustros, quase a
quarta parte das mais brilhantes novae surgiu numa diminuta região do céu: a constelação da Águia.
A cruzada alcançará as vizinhanças da Terra por volta do ano 2050.
Outubro de 1966.
o CÉU IMPIEDOSO
Lá pela meia-noite o píncaro do Everest estava apenas a cem metros, pirâmide de neve pálida e fantástica à
luz da lua nascente. Não havia nuvens no céu e o vento que soprara durante dias se havia reduzido a quase zero.
Devia ser realmente muito raro esse ambiente de calma e tranqüilidade no ponto mais elevado da Terra; tinham es-
colhido bem a ocasião.
Talvez bem demais, pensou George Harper; a escalada fora de uma facilidade quase decepcionante. O único
problema deles tinha sido deixar o hotel sem serem notados. A gerência era contra essas excursões noturnas ao alto
da montanha, quando não autorizadas. Podiam ocorrer acidentes que seriam prejudiciais ao negócio.
Mas o dr. Elwin estava resolvido a fazer a escalada à sua maneira e tinha a melhor das razões para isso, em-
bora nunca falasse no assunto. A presença de um dos mais famosos cientistas mundiais – e certamente o aleijado
mais famoso do mundo – no Hotel Everest durante o auge da temporada de turismo já havia causado muita
surpresa bem-educada. Harper satisfizera em parte a curiosidade geral insinuando que eles estavam trabalhando em
medições de gravidade, o que era, pelo menos, uma parte da verdade. Mas uma parte da verdade que, a estas horas,
tinha-se reduzido a quase nada.
Quem quer que visse Jules Elwin agora, demandando a passo firme o nível dos oito mil oitocentos e
cinqüenta metros com vinte e três quilos de equipamento às costas,
jamais teria adivinhado que as suas pernas eram quase imprestáveis. Nascera vítima do desastre da
talidomida em 1961, que deixara mais de dez mil crianças parcialmente deformadas pelo mundo afora. Elwin era
um dos que tinham tido sorte. Seus braços eram perfeitamente normais e tinham sido fortalecidos pelo exercício até
se tornarem mais possantes que os da maioria dos homens. As pernas, porém, eram meros fiapos de carne e osso.
Com o auxílio de braçadeiras podia pôr-se em pé e até esboçar alguns passos vacilantes, mas nunca poderia
caminhar realmente. Apesar disso, estava agora a sessenta metros do cume do Everest...
Um pôster de turismo fora o começo de tudo, mais de três anos atrás. Como programador-assistente de
computadores, na Divisão de Física Aplicada, George Harper só conhecia o dr. Elwin de vista e reputação. Mesmo
para os que trabalhavam em contato direto com ele, o brilhante diretor de pesquisas da Astrotech era uma
personalidade algo remota, isolada do homem comum pelo seu corpo e pelo seu espírito. Não gostavam nem
desgostavam dele, e embora fosse admirado e inspirasse piedade, certamente não era invejado.
Harper, que se formara há poucos meses apenas, duvidava que o doutor tivesse conhecimento sequer da sua
existência, a não ser como um nome numa ficha de organização. Havia outros dez programadores na divisão, todos
mais antigos do que ele, e a maioria nunca trocara mais que uma dúzia de palavras com o diretor de pesquisas.
Quando Harper foi indicado por cooptação para levar um dos arquivos classificados ao gabinete do dr. Elwin, espe-
rou entrar e sair sem outra conversa que não fosse uma troca de formalidades polidas.
E por pouco não foi o que aconteceu. Mas no momento em que se ia retirando estacou diante do magnífico
panorama'dos picos do Himalaia que cobria a metade de uma parede. Tinha sido colocado num lugar onde o dr.
Elwin pudesse vê-lo sempre que levantava os olhos da sua escrivaninha, e mostrava uma cena que Harper conhecia
muito bem, pois ele próprio a havia fotografado, como
turista maravilhado e um pouco ofegante, juntando as suas pegadas às centenas de outras que marcavam a
neve da coroa do Everest.
Lá estava a alva cordilheira de Kanchenjunga, erguen-do-se entre as nuvens a cerca de cem milhas de
distância. Quase em linha com ela, porém muito mais próximos, os picos gêmeos de Makalu; e ainda mais
próxima, dominando todo o primeiro plano, a massa majestosa do Lhotse, vizinho e rival do Everest. Para além, a
oeste, descendo vales tão imensos que a vista não lhes podia avaliar a escala, viam-se os rios de gelo
entremesclados que eram os glaciares de Khumbu e Rongbuk. Desta altura, os seus tor-cicolos gelados não
pareciam maiores do que os sulcos de um campo lavrado; mas aquelas relheiras e gilvazes de gelo duro como ferro
mediam centenas de pés de profundidade.
Estava Harper ainda absorvendo o espetacular panorama quando ouviu às suas costas a voz do dr. Elwin.
– O senhor parece interessado. Já esteve lá?
– Já, doutor. Meus pais me levaram lá depois que terminei o colégio. Ficamos uma semana no hotel e pen-
sávamos ter de voltar antes que limpasse o tempo, mas no último dia o vento parou de soprar e, entre uns vinte,
subimos até o cume. Estivemos lá uma hora, tirando fotografias uns dos outros.
O dr. Elwin pareceu digerir estas informações durante um tempo bastante longo. Por fim disse, numa voz que
perdera a sua qualidade remota e tinha agora um sensível tom de alvoroço:
– Sente, senhor. . . hã. . . Harper. Eu gostaria de ouvir mais.
Voltando para a cadeira em frente da enorme e desimpedida escrivaninha do diretor, George Harper sentia-se
um tanto intrigado. O que ele tinha feito não era absolutamente inusitado; cada ano, milhares de pessoas hospeda-
vam-se no Hotel Everest e mais ou menos uma quarta parte dessas pessoas escalava o cume da montanha. Ainda no
ano anterior, realizara-se uma festa de homenagem, cercada de muita publicidade, ao décimo milésimo turista que
subira ao teto do mundo. Alguns cínicos tinham tecido comentários sobre a extraordinária coincidência de ter sido
esse Número 10000 justamente uma estrelinha de vídeo bastante conhecida.
Harper nada tinha que dizer ao dr. Elwin que este não pudesse descobrir com a mesma facilidade numa dúzia
de outras fontes – folhetos de turismo, por exemplo. Entretanto, nenhum cientista jovem e ambicioso teria deixado
escapar essa oportunidade de produzir boa impressão num homem que tinha tantos poderes para ajudá-lo na sua
carreira. Harper não era um calculador frio, nem tinha pendor para envolver-se na política de repartição, mas sabia
reconhecer uma boa chance quando esta se lhe apresentava. – Bem, doutor – começou ele, falando devagar a
princípio, pois era necessário pôr em ordem os seus pensamentos e lembranças –, o jato deixa o viajante numa
cidadezinha chamada Narnchi, a uns trinta quilômetros da montanha. Depois, o ônibus o leva por uma estrada
espetacular até o hotel, acima da geleira de Khumbu. Está situado a uma altitude de cinco mil e quinhentos metros
e tem aposentos pressurizados para quem quer que sinta dificuldade em respirar. Há, naturalmente, um grupo
médico para atender os hóspedes, e a gerência não aceita aqueles que não estejam em boas condições físicas. É
preciso ficar no hotel pelo menos dois dias, fazendo uma dieta especial, antes de se conseguir permissão para subir
mais alto.
"Do hotel não se pode ver o cume propriamente dito porque se está muito perto da montanha e ele parece er-
guer-se bem acima da cabeça da gente. Mas a vista é fantástica. Pode-se ver o Lhotse e meia dúzia de outros picos.
E às vezes chega a dar medo, especialmente à noite. Em geral, ouve-se uivar o vento em algum lugar muito acima,
e há estranhos ruídos produzidos pelo gelo em movimento. É fácil imaginar que existam monstros rondando lá no
alto das montanhas...
"Não há muito que fazer no hotel, salvo descansar, contemplar a paisagem e esperar que os médicos nos
dêem permissão de seguir adiante. Nos velhos tempos, uma pessoa podia levar semanas aclimatando-se à
atmosfera rare-feita; agora, fazem a contagem de glóbulos vermelhos subir ao nível desejado em quarenta e oito
horas. Mesmo assim, metade dos visitantes, mais ou menos – principalmente
os mais velhos –, concluem que aquela altura é suficiente para eles.
"O que acontece depois depende da experiência que se tenha e de quanto se esteja disposto a gastar. Alguns
alpinistas experimentados contratam guias e escalam o cume por conta própria, usando o equipamento padrão para
escaladas. Isso não é muito difícil hoje em dia, e existem abrigos em vários pontos estratégicos. A maioria desses
grupos conseguem chegar lá. Mas o tempo sempre é uma incógnita e todos os anos morrem algumas pessoas.
"O turista médio escolhe a maneira mais fácil. Nenhuma aeronave tem permissão de pousar no próprio
Everest, salvo em casos de emergência, mas há um para-douro próximo à crista de Nuptse e um serviço de heli-
cóptero do hotel até lá. Do paradouro ao cume são apenas cinco quilômetros, indo-se pela lombada meridional –
uma ascensão fácil para quem esteja em boas condições e tenha alguma experiência de alpinismo. Há quem possa
se agüentar sem oxigênio, embora isso não seja recomendado. Quanto a mim, conservei a máscara até chegar ao
cume, então tirei-a e descobri que podia respirar sem muita dificuldade."
– Usou filtros ou cilindros de gás?
– Oh sim, filtros moleculares. . . Hoje em dia pode-se ter toda a confiança neles. Aumentam em mais de cem
por cento a concentração de oxigênio. Simplificaram enor-memente as ascensões a grandes altitudes. Ninguém
mais carrega gás comprimido.
– Quanto tempo durou a ascensão?
– Um dia inteiro. Partimos pouco antes do amanhecer e ao cair da noite estávamos de volta. Isso teria sido
uma surpresa para os alpinistas dos velhos tempos. Mas está claro que partimos bem jantados e dormidos, e viajá-
vamos com pouca bagagem. Não há verdadeiros problemas do paradouro para cima e em todos os lugares
perigosos foram feitos degraus. Como já disse, é fácil para qualquer pessoa em boas condições.
No mesmo instante em que repetiu estas palavras, Harper arrependeu-se de não ter cortado a língua com os
dentes. Era incrível que pudesse ter esquecido a quem falava, mas a maravilha e a excitação daquela escalada do
teto do mundo lhe viera tão vivida à lembrança que, por um momento, foi como se estivesse de novo naquele
pico solitário e fustigado pelo vento. O único ponto da Terra a que o dr. Elwin jamais poderia ir. . .
Entretanto, o cientista pareceu não ter reparado – ou então estava tão acostumado a essas indiscrições invo-
luntárias que já não se aborrecia com elas. Por que ele está tão interessado no Everest? perguntava-se Harper.
Talvez por causa da própria inacessibilidade: o Everest simbolizava tudo que lhe fora negado pelo acidente de
nascimento.
E contudo agora, apenas três anos mais tarde, George Harper deteve-se a uns escassos trinta metros do cume
e recolheu a corda de náilon quando o doutor veio ter com ele. Embora nunca tivessem dito nada sobre o assunto,
Harper sabia que o cientista queria ser o primeiro a chegar lá em cima. Merecia essa honra e o moço nada faria
para roubá-la dele.
– Tudo em ordem? – perguntou Harper. A pergunta era dispensável, mas ele sentia uma necessidade pre-
mente de desafiar a grande solidão que os cercava agora. Era como se fossem os únicos homens do mundo; em
parte alguma, nesse deserto de picos brancos, se via qualquer sinal de existência da raça humana.
Elwin não respondeu, mas limitou-se a sacudir a cabeça distraidamente enquanto passava adiante do seu
companheiro, os olhos brilhantes fixos no cume. Caminhava de maneira curiosa, com as pernas duras, e seus pés
quase não deixavam marcas na neve. E enquanto caminhava, um débil mas inconfundível queixume de mecanismo
elétrico partia da volumosa mochila que carregava às costas.
Em verdade, essa mochila o estava carregando – ou, pelo menos, três quartas partes dele. O dr. Elwin, que
nesse momento se abeirava da sua meta outrora inatingível, pesava, com todo o seu equipamento, nada mais que
vinte e cinco quilos. E se isso ainda fosse excessivo, bastava-lhe girar um disco e não pesaria absolutamente nada.
^^
Ali, entre os picos do Himalaia banhados de luar, estava o maior segredo do século XXI. No mundo inteiro
só havia cinco desses modelos experimentais de Levitador Elwin, e dois deles se achavam ali no Everest.
Embora tivesse tido notícias do invento havia dois anos e compreendesse em parte a sua teoria básica, os
levvies – como não tardaram a ser batizados no laboratório – ainda pareciam a Harper uma obra de bruxaria. As
suas fontes de força armazenavam energia suficiente para elevar cento e vinte quilos de peso a uma distância
vertical de dez milhas, o que dava um amplo fator de segurança a essa missão. O ciclo de subida e descida podia
ser repetido quase indefinidamente, acompanhando as reações das unidades ao campo gravitacional da Terra. Na
subida, a bateria descarregava; na descida, tornava a carregar-se. Como não há processo mecânico que possua uma
eficiência total, ocorria uma pequena perda de energia a cada ciclo, mas esta podia ser repetida pelo menos umas
cem vezes antes de se exaurirem as unidades.
Galgar a montanha com a maior parte do seu peso neutralizado fora uma experiência excitante para eles. A
tração vertical do arnês dava-lhes a impressão de estarem pendurados a balões invisíveis, cuja flutuabilidade podia
ser ajustada à vontade. Precisavam ter um certo peso para poderem movimentar-se no solo, e depois de alguma ex-
perimentação tinham-se fixado em vinte e cinco por cento. Nessas condições, era tão fácil subir uma encosta
ininterrupta como caminhar normalmente em terreno plano.
Por várias vezes tinham reduzido o seu peso quase a zero para galgarem de mão em mão superfícies verticais
de rocha. Essa fora a mais estranha de todas as experiências que tiveram, exigindo uma confiança total no seu equi-
pamento. Ficar suspenso no ar, sem nenhuma sustentação aparente a não ser uma caixa de mecanismos eletrônicos
a zumbir suavemente, requeria um considerável esforço de vontade. Mas depois de alguns minutos a sensação de
poder e liberdade vencia todo medo; pois ali, em verdade, estava a realização de um dos mais antigos sonhos do
homem.
Poucas semanas atrás, um empregado da biblioteca encontrara um verso de um poema do começo do século
XX que descrevia com perfeição a proeza que agora estavam realizando: "To ride secure the cruel sky", montar
sem perigo o céu impiedoso. Nem os próprios pássaros jamais se haviam libertado tão completamente da
terceira dimensão; essa era a verdadeira conquista do espaço. O levitador iria franquear à exploração humana as
montanhas e píncaros do mundo como, cinqüenta anos atrás, o pulmão subaquático havia franqueado os mares.
Depois que estas unidades tivessem passado vitoriosamente pelos testes e fossem produzidas em massa, a baixo
preço, a civilização humana mudaria em todos os seus aspectos. Os transportes seriam revolucionados. As viagens
espaciais nao seriam mais dispendiosas do que a aviação comum; e toda a humanidade voaria. O que acontecera
um século antes com a invenção do automóvel era apenas um fraco prenuncio das pasmosas mudanças sociais e
políticas que estavam por vir agora.
Mas Harper tinha certeza de que o dr. Elwin não estava pensado em nenhuma dessas coisas no seu solitário
momento de triunfo. Mais tarde receberia os aplausos do mundo (e talvez as suas pragas); contudo, isso não signi-
ficaria tanto para ele como estar ali, no ponto mais alto da Terra. Era uma legítima vitória da mente sobre a ma-
téria, uma demonstração do poder da inteligência sobre um corpo frágil e inválido. Tudo o mais seria anticlímax.
Quando Harper foi reunir-se ao cientista no alto da pirâmide trancada e coberta de neve, os dois homens apertaram-
se as mãos com uma formalidade um tanto rígida, que a ocasião parecia impor. Nada disseram, porém; a exultação
do seu feito e o panorama de picos que se estendia até onde a vista alcançava lhes tinham roubado as
palavras.
Abandonando-se ao suporte flutuante do seu arnês, Harper percorreu lentamente com os olhos o círculo do
céu. À proporção que os ia reconhecendo pronunciava mentalmente os nomes dos gigantes em redor: Makalu,
Lhotse, Baruntse, Cho Oyu, Kanchenjunga... Mesmo agora, vintenas desses picos nunca tinham sido escalados.
Bem, os levvies não tardariam a se encarregar disso.
Muitos, é claro, desaprovariam. Mas no século XX também houvera alpinistas que qualificavam de "trapaça"
o uso do oxigênio. Custava acreditar que, mesmo depois de semanas de aclimação, os homens tentassem alcançar
essas alturas sem quaisquer recursos artificiais. Harper lembrava-se de Mallory e Irvine, cujos corpos
continuavam desaparecidos, talvez dentro de um raio de uma milha do lugar onde ele se achava.
O dr. Elwin, às suas costas, concertou a garganta.
– Vamos, George – disse tranqüilamente, a voz abafada pelo filtro de oxigênio. – Devemos estar de volta
antes que comecem a nos procurar.
Com um silencioso adeus a todos aqueles que haviam estado ali antes deles, deixaram o pico e começaram a
descer a suave ladeira. A noite, que até agora tinha estado clara e cintilante, ia se fazendo mais escura; algumas
nuvens altas deslizavam tão rápidas sobre a face da Lua que a luz desta se acendia e apagava de um modo que
dificultava a visão do caminho. Harper não gostou desse aspecto do céu e começou a modificar mentalmente os
planos que ambos haviam traçado. Talvez fosse preferível rumarem para a cabana da lombada meridional em vez
de procurarem alcançar o paradouro. Nada disse, porém, ao dr. Elwin, pois não queria provocar falsos alarmas.
Iam agora por uma aguda aresta de rocha, com a escuridão completa de um lado, e do outro um lençol de
neve a alvejar vagamente. Harper não pôde deixar de pensar que seria terrível ser colhido por uma tempestade num
lugar como aquele.
Mal tinha formulado esse pensamento quando o ven-daval os alcançou. Vinda aparentemente de parte
alguma, salteou-os uma rajada ululante, como se a montanha tivesse concentrado as forças para esse momento.
Não havia tempo para fazer nada; mesmo que eles tivessem o seu peso normal, o vento os teria carregado. Em
questão de segundos, arremessou-os sobre aquela treva vazia, povoada apenas por sombras.
Era impossível avaliar as profundidades naquele lugar. Harper forçou-se a olhar para baixo e não pôde ver
nada. Embora o vento parecesse carregá-lo numa linha quase horizontal, sabia que devia estar caindo. Seu peso
residual o estaria levando para baixo a um quarto da velocidade normal. Mas seria mais que suficiente; se caíssem
mil e duzentos.metros, que consolo lhes traria o fato de parecerem apenas trezentos?
Ainda não tivera tempo para sentir medo – isso viria mais tarde, se sobrevivesse –, e sua maior preocupação,
bastante absurda, era que o dispendioso levitador fosse danificado. Esquecera completamente o seu companheiro,
pois em tais crises a mente só pode comportar um pensamento de cada vez. O repentino puxão na corda de náilon
encheu-o de alarma e perplexidade. Viu, então, o dr. Elwin girando lentamente em torno dele, na extremidade da
corda, como um planeta em volta de um sol.
Esse espetáculo o fez voltar ao senso da realidade e à consciência do que era preciso fazer. Sua paralisia
durara, provavelmente, apenas uma fração de segundo. Gritou em direção perpendicular ao vento:
– Doutor! Use a força ascensional de emergência! Enquanto falava, procurou o selo da sua unidade de
controle, arrancou-o e apertou o botão.
Imediatamente a mochila começou a zumbir como uma colmeia de abelhas enfurecidas. Harper sentiu o
arnês puxar o seu corpo, procurando arrastá-lo para o céu, longe da morte invisível lá embaixo. A simples
aritmética do campo gravitacional da Terra fulgurou no seu cérebro, como escrita em letras de fogo. Um quilowatt
podia erguer cem quilogramas a um metro por segundo, e as mochilas podiam converter energia a uma taxa
máxima de dez quilowatts – embora não fosse possível mantê-la durante mais de um minuto. Por conseguinte,
levando em conta a sua redução inicial de peso, subiria a muito mais de trinta metros por segundo.
Houve um violento puxão na corda quando esta se esticou. O dr. Elwin demorara a apertar o botão de emer-
gência, mas finalmente também ele estava subindo. Seria agora uma corrida entre a força ascensional das suas uni-
dades e o vento que os arrastava para a face gelada do Lhotse, agora a uns escassos trezentos metros de distância.
Aquele paredão de rocha estriada de neve agigantava-se acima deles, banhado pelo luar, como uma onda congelada
de pedra. Impossível calcular com exatidão a velocidade com que se moviam, mas por certo não seria inferior a
oitenta quilômetros por hora. Mesmo que sobrevivessem ao choque, não era de esperar que escapassem sem feri-
mentos graves; e, naquele lugar, estar ferido eqüivalia a estar morto.
Então, exatamente quando a colisão parecia inevitável, a corrente de ar desviou-se subitamente para cima,
arrastando-os consigo. Safaram-se da crista rochosa por uma confortável diferença de quinze metros. Parecia um
milagre, mas, após um aturdido momento de reflexão, Harper compreendeu que o que os tinha salvo fora um
simples fenômeno de aerodinâmica. O vento tinha que subir para contornar a montanha; no lado oposto, voltaria a
descer. Mas isso já não tinha importância, pois o céu diante deles estava vazio.
Os dois homens, agora, moviam-se tranqüilamente sob as nuvens desfeitas. Se bem que a sua velocidade não
tivesse diminuído, o rugido do vento aquietara-se de repente, pois viajavam com ele no vazio. Podiam até
conversar comodamente através dos dez metros de espaço que ainda os separavam.
– Dr. Elwin – chamou Harper –, o senhor está bem?
– Sim, George – respondeu o cientista com uma calma perfeita. – Que fazemos agora?
– Precisamos parar de subir. Se formos mais alto não poderemos respirar, mesmo com os filtros.
– Você tem razão. Vamos estabelecer o equilíbrio. O zumbido furioso das mochilas baixou para um quei-
xume apenas audível de eletricidade quando eles cortaram os circuitos de emergência. Durante alguns
minutos estiveram saltando como ioiôs na sua corda de náilon, primeiro um em cima e depois o outro, até que
conseguiram estabilizar-se. Então começaram a derivar, levados pelo vento, a pouco menos de nove mil metros de
altitude. A não ser que os levvies falhassem – o que era bem possível, dado o excesso de carga –, eles estavam a
salvo de qualquer perigo imediato.
Suas atribulações começariam quando tentassem voltar a terra.
Homem nenhum, em toda a história, jamais havia saudado aurora tão estranha. Embora estivessem cansados
e entanguidos de frio, e o ar tênue e seco lhes rasgasse as gargantas a cada inspiração, esqueceram todos
esses des-confortos quando a primeira e vaga claridade se espalhou ao longo do recortado horizonte oriental. As
estrelas em-palideceram uma a uma; a última a apagar-se, poucos minutos antes de raiar o sol, foi a mais brilhante
de todas as estações espaciais – a Pacífico Número 3, pairando a trinta e cinco mil quilômetros acima do Havaí.
Depois o sol se ergueu acima de um mar de picos sem nome e o dia nasceu sobre o Himalaia.
Era como observar o nascer do sol na Lua. A princípio, só as montanhas mais altas captaram os raios oblí-
quos, enquanto os vales circundantes continuavam inundados por sombras de nanquim. Mas, lentamente, a linha de
luz foi descendo as faldas rochosas e porções cada vez maiores dessa região áspera e rebarbativa acolheram o novo
dia.
Agora, quando se olhava com bastante atenção, era possível divisar sinais de vida humana. Havia umas
poucas estradas estreitas, magros penachos de fumo elevando-se de aldeias solitárias, lampejos de sol refletido por
telhados de mosteiros. O mundo despertava lá embaixo, ignorando por completo os dois espectadores que
pairavam tão ma-gicamente quatro mil e quinhentos metros acima dele.
O vento devia ter mudado várias vezes de direção durante a noite e Harper não fazia a menor idéia de onde se
encontravam. Não conseguia identificar nenhum ponto de referência. Podiam estar em qualquer parte dentro de
uma faixa de oitocentos quilômetros de comprimento, abrangendo territórios do Nepal e do Tibete.
O problema imediato era escolher um lugar de pouso – e isso sem tardança, pois estavam sendo levados rapi-
damente na direção de uma floresta de picos e geleiras onde não podiam esperar ajuda. O vento os arrastava em
direção nordeste, para os lados da China. Se passassem por cima das montanhas e descessem ali, podiam transcor-
rer semanas antes de poderem entrar em contato com um dos Centros de Socorro à Fome das Nações Unidas e en-
contrarem o caminho de volta. Podiam até correr algum risco pessoal se baixassem do céu numa área cuja popu-
lação era exclusivamente camponesa, analfabeta e supersticiosa.
– Convém descermos logo – disse Harper. – O aspecto daquelas montanhas não me agrada.
Suas palavras pareceram completamente perdidas no vazio que os rodeava. Embora o dr. Elwin estivesse a
poucos metros dele, era fácil imaginar que seu companheiro não podia ouvir nada do que ele dizia. Mas afinal o
doutor sacudiu a cabeça, aquiescendo quase de mau grado.
– Receio que você tenha razão. . . mas não estou muito seguro de que seja possível, com este vento.
Lembre-se de que não podemos descer tão depressa como subimos.
Isso era bem verdade; as fontes de força só podiam ser carregadas a um décimo de sua taxa de descarga. Se
perdessem altitude e acumulassem energia gravitacional com excessiva rapidez, dar-se-ia o superaquecimento das
pilhas, que provavelmente explodiriam. Os sobressaltados tibetanos (ou nepaleses?) pensariam que um grande me-
teorito havia explodido no seu céu. E ninguém jamais saberia que fim tinham levado o dr. Jules Elwin e o seu
jovem e promissor assistente.
Mil e quinhentos metros acima do solo. Agora, Harper esperava a explosão a qualquer momento. Iam
descendo depressa, mas não suficientemente depressa; dentro em pouco teriam que desacelerar para não caírem
com excessiva velocidade. E o pior era que tinham errado egregia-mente ao estimar a velocidade do ar ao nível do
solo. Aquele infernal, imprevisível vento voltara a soprar rijo. Podiam ver serpentinas de neve, arrancadas às
serranias expostas, ondular lá embaixo como bandeiras fantásticas. Enquanto se moviam levados pelo vento não
tinham consciência da força deste; agora, deviam realizar mais uma vez a perigosa transição entre rocha compacta
e céu macio e acolhedor.
A corrente espiralada de ar puxava-os para a boca de um canyon. Não havia possibilidade de se elevarem
acima dele. Estavam amarrados e teriam de escolher o melhor lugar de pouso que pudessem encontrar.
O canyon ia-se afunilando num ritmo assustador. Agora, pouco mais era do que uma fenda vertical cujas
paredes de rocha corriam aos olhos dos dois homens a
cinqüenta ou sessenta quilômetros por hora. De tempos a tempos, pequenos remoinhos os atiravam para a
direita, depois para a esquerda; muitas vezes livraram-se de colidir por uma questão de poucos metros. Em dada
ocasião, quando passavam pouco acima de uma plataforma coberta por espessa camada de neve, Harper foi tentado
a puxar o desengate instantâneo que atiraria fora o levitador. Mas isso seria saltar da frigideira para a fogueira;
poderiam pousar incólumes em solo firme para descobrir que estavam emparedados a sabe Deus quantas milhas de
qualquer possibilidade de socorro.
E contudo, mesmo nesse momento de perigo renovado, ele sentiu muito pouco medo. Aquilo se parecia com
um sonho emocionante – um sonho de que não tardaria a despertar para dar consigo comodamente aconchegado na
sua cama. Essa aventura fantástica não podia estar acontecendo realmente a ele...
– George! – gritou o doutor. – Esta é a nossa oportunidade. . . se conseguirmos nos safar daquele ma-
tacão!
Não tinham mais que alguns segundos para agir. Ambos começaram imediatamente a manobrar com a corda
de náilon, fazendo-a pender numa grande barriga entre eles, com a parte mais baixa a apenas um metro do solo,
que ia numa corrida desabalada. Um grande pedrouço, com perto de seis metros de altura, assomava exatamente na
linha de vôo; atrás dele, um largo lençol de neve era uma promessa de pouso razoavelmente suave.
A corda escorregou nas curvas inferiores do matacão, parecendo que ia safar-se, mas de repente prendeu-se
numa saliência. Harper sentiu o empuxo repentino e foi arremessado em volta do obstáculo como uma pedra na
extremidade de uma funda.
"Nunca imaginei que a neve pudesse ser tão dura", disse ele a si mesmo. Em seguida houve uma breve e bri-
lhante explosão de luz, depois nada.
Estava de novo na universidade, na sala de conferências. Um dos professores falava numa voz que lhe era
familiar, mas apesar disso parecia deslocada ali. Sonolento
e sem vontade Harper desenrolou a lista dos nomes de seus instrutores na faculdade. Não, certamente não era
nenhum deles. No entanto, conhecia tão bem aquela voz, e indubitavelmente ela estava falando para alguém.
– ... ainda muito moço quando compreendi que havia algo de errado na teoria da gravitação de Einstein. Em
particular, parecia haver uma falácia na base do princípio de equivalência. De acordo com esse princípio, não há
meio de distinguir entre os efeitos produzidos pela gravitação e os da aceleração.
"Mas isso é evidentemente falso. Pode-se criar uma aceleração uniforme, mas um campo gravitacional
uniforme é impossível, dado que ele obedece à lei do inverso dos quadrados e, por conseguinte, pode variar mesmo
em distâncias muito pequenas. De modo que é fácil imaginar testes para estabelecer distinção entre os dois casos e
isso fez com que eu me perguntasse se..."
Estas palavras, pronunciadas em voz baixa, não deixaram mais impressão no espírito de Harper do que se
tivessem sido ditas numa língua estrangeira. Percebia vagamente que devia compreender tudo isso, mas dava muito
trabalho procurar o significado. De qualquer modo, o primeiro problema era saber onde estava.
A menos que a sua visão tivesse sido afetada, estava numa escuridão completa. Pestanejou, e esse esforço lhe
provocou uma dor tão lancinante na cabeça que soltou um grito.
– George! Você está bem?
Pois claro! Aquela tinha sido a voz do dr. Elwin, falando baixinho ali na escuridão. Mas falando a quem?
.– Tenho uma dor de cabeça horrível. E também me dói o lado quando procuro me mover. Que foi que acon-
teceu? Por que está escuro?
– Você sofreu uma concussão. . . e acho que quebrou uma costela. Não fale se não for necessário. Você
passou todo o dia inconsciente. Já é noite de novo, e estamos debaixo da barraca. Estou poupando as nossas ba-
terias.
Por pouco não foi ofuscado pela luz da lanterna quando o dr. Elwin a acendeu. Viu em torno de si as paredes
de lona da pequenina barraca e comentou de si para
si que era uma sorte terem trazido um equipamento completo de alpinismo, para o caso de ficarem retidos no
Eve-rest. Mas talvez isso só servisse para prolongar a agonia... Surpreendeu-se de que o cientista aleijado tivesse
conseguido, sem ajuda de ninguém, desemalar todo o equipamento, armar a barraca e arrastá-lo para dentro. Tudo
estava corretamente arrumado: o estojo de urgência, as latas de alimentos concentrados, os cantis de água, as pe-
quenas botijas vermelhas de gás para o fogão portátil. Só faltavam as volumosas unidades do levitador; provavel-
mente tinham ficado lá fora para deixar mais espaço.
– O senhor estava falando com alguém quando acordei – disse Harper. – Ou teria sido um sonho?
Embora a luz indireta refletida pelas paredes da barraca tornasse difícil ler a expressão do outro, ele pôde per-
ceber o embaraço de Elwin. Imediatamente compreendeu o porquê e arrependeu-se de ter feito a pergunta.
O cientista não acreditava que eles sobrevivessem. Estivera gravando as suas notas, para o caso de serem
encontrados um dia os cadáveres dos dois homens. Harper perguntou-se, desoladamente, se ele teria acabado de
gravar o seu testamento.
Antes que Elwin pudesse responder, foi logo mudando
de assunto.
– Chamou o serviço de salvamento?
– Tenho tentado de meia em meia hora, mas receio que estejamos sendo barrados pelas montanhas. Posso
ouvi-los, mas eles não nos recebem.
O dr. Elwin apanhou o pequeno registrador-transcep-tor, que havia retirado do lugar normal, no seu pulso, e
ligou-o.
– Aqui é o Posto de Salvamento 4 – disse uma voz mecânica e semi-apagada. – Estamos escutando agora.
Elwin aproveitou a pausa de cinco segundos para apertar o botão sos e ficou à espera.
– Aqui é o Posto de Salvamento 4, escutando agora. Esperaram durante um minuto inteiro, mas ninguém
acusou recepção do chamado. Bem, pensou sobriamente Harper, é tarde demais para começarmos a culpar
um ao outro agora. Por várias vezes, quando estavam sendo arras-taHn« npin vento acima das montanhas, tinham
discutido
sobre se deviam chamar o serviço mundial de salvamento, mas decidiram contra tal medida, em parte porque
parecia desnecessária enquanto se achavam no ar e em parte por causa da inevitável publicidade que isso causaria.
Era fácil ser judicioso depois do fato consumado: quem teria sonhado que eles pousariam num dos poucos lugares
que não podiam comunicar-se com o serviço pelo rádio?
O dr. Elwin desligou o transceptor e o silêncio reinou na barraca. O único som que se ouvia era o fraco
queixume do vento lá fora, ao longo das muralhas de rocha, dupla armadilha em que tinham sido apanhados – sem
possibilidade de fuga nem de comunicação.
– Não se preocupe – disse ele afinal. – Quando amanhecer pensaremos numa saída. Até lá nada podemos
fazer senão tratar do nosso conforto. Tome, pois, um pouco desta sopa quente.
Várias horas depois, a dor de cabeça já não incomodava Harper. Embora suspeitasse que tinha realmente
quebrado uma costela, encontrara uma posição que era confortável enquanto ele não se mexesse e sentia-se quase
em paz com o mundo.
Tinha passado por fases sucessivas de desespero, raiva contra o dr. Elwin e auto-recriminação por se haver
envolvido numa aventura tão louca. Agora estava novamente calmo, embora o seu cérebro, sempre em busca de
um meio de escapar dali, mantivesse uma atividade que não permitia o sono.
Fora da barraca, o vento tinha cessado quase de todo e a noite era muito silenciosa. A escuridão já não era
completa, pois a lua havia nascido. Se bem que os seus raios diretos jamais os alcançariam naquele lugar, devia
haver alguma luz refletida pelas neves lá em cima. Harper podia distinguir uma claridade mortiça, no próprio
limiar da visão, filtrada pelas paredes translúcidas da tenda térmica.
Em primeiro lugar, dizia ele a si mesmo, não corremos nenhum perigo imediato. Os alimentos durarão pelo
menos uma semana; não falta neve para ser derretida e nos fornecer água potável. Dentro de um ou dois dias, se a
minha costela se comportar, poderemos partir de novo – desta vez, espero, com melhores resultados.
De algum lugar não muito distante veio um curioso baque surdo e macio que intrigou Harper até este chegar
a compreender que uma massa de neve devia ter caído ali perto. A noite era tão silenciosa que ele quase imaginava
ouvir as batidas do seu próprio coração; o ressonar do seu companheiro adormecido parecia extraordinariamente
ruidoso.
Estranho como se deixava distrair por trivialidades! Tornou a concentrar-se no problema da sobrevivência.
Mesmo que não estivesse em condições de mover-se, o doutor poderia tentar a fuga sozinho. Era uma situação,
aquela, em que um homem teria tanta possibilidade de sucesso quanto dois.
Novo baque semelhante ao primeiro, desta vez um pouco mais forte. Era um pouco esquisito, pensou Harper
vdistraidamente, que a neve se movesse na fria quietude da noite. Esperou que não houvesse perigo de um
deslizamento; como não tivera tempo para um exame claro do local onde haviam pousado, não podia avaliar o
risco. Perguntou a si mesmo se não seria bom acordar o doutor, que devia ter inspecionado o terreno antes de armar
a barraca. Depois, fatalisticamente, decidiu não fazê-lo; se de fato estavam na iminência de uma avalancha, não
poderiam fazer grande coisa para escapar.
Volta ao problema número um. Havia uma solução interessante, que merecia ser examinada. Podiam amarrar
o transceptor a um dos levvies e fazer subir tudo. O sinal seria apanhado assim que a unidade deixasse o canyon, e
o serviço de salvamento os encontraria dentro de poucas horas – ou, na pior das hipóteses, dentro de poucos dias.
É claro que isso importaria em sacrificar um dos levvies, e, se a tentativa não desse resultado, os dois homens
se veriam em pior situação que antes. Mas assim mesmo . .. Que era aquilo? Já não se tratava de uma massa de
neve caindo. Era um débil mas inconfundível clique, como um entrechoque de seixos. E os seixos não se movem
sozinhos.
Você está imaginando coisas, disse Harper a si mesmo. A irté.ia de aleuém, ou alguma coisa, andar vagando
alta
noite num dos desfiladeiros do Himalaia era completamente ridícula. Mas de repente a sua garganta secou e
ele sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos da nuca. Tinha ouvido alguma coisa e não havia argumentos que valessem
contra isso.
Diabos levem os roncos do doutor! Eram tão ruidosos que se tornava difícil concentrar-se nos sons lá de fora.
Significaria aquilo que o seu companheiro, apesar de profundamente adormecido, fora avisado pelo seu
subconsciente, sempre alerta? Lá estava ele de novo com as suas fantasias . . .
Clique.
Talvez estivesse um pouco mais perto. Mas certamente o ruído vinha de outra direção. Dir-se-ia que alguma
coisa, movendo-se com um silêncio fantástico, porém não completo, rodeava lentamente a barraca.
Nesse momento, George Harper desejou com todo o fervor nunca ter ouvido falar no Abominável Homem
das Neves. É verdade que pouco sabia a respeito dele, mas esse pouco já era demais.
Lembrou-se de que o yeti, como o chamavam os ne-paleses, era um persistente mito do Himalaia havia mais
de cem anos. Perigoso monstro, maior do que um homem, nunca tinha sido capturado, fotografado ou mesmo
descrito por testemunhas fidedignas. A maioria dos ocidentais tinham plena certeza de que isso era pura fantasia, e
a escassa evidência de pegadas na neve e pedaços de pele conservados em obscuros mosteiros não lograva
convencê-los. No entanto, os nativos das tribos montanhesas é que deviam saber. E agora Harper receava que eles
tivessem razão.
Então, como nada mais acontecesse durante longos segundos, os seus receios começaram a dissipar-se.
Talvez a sua imaginação superexcitada lhe estivesse pregando peças; naquelas circunstâncias isso não seria de
surpreender. Com um deliberado e resoluto esforço de vontade, concentrou-se mais uma vez no problema de se
salvarem. Estava fazendo considerável progresso quando alguma coisa se chocou contra a barraca.
Só o fato de ter os músculos da garganta paralisados de puro medo impediu-o de lançar um berro. Estava
com-
pletamente incapacitado de mover-se. Então ouviu o dr. Elwin remexer-se sonolento na escuridão ao seu
lado.
– Que é? – resmungou o cientista. – Você está
bem?
Harper sentiu o seu companheiro virar-se para o outro lado e compreendeu que ele estava procurando a
lanterna. Quis cochichar: "Pelo amor de Deus, não faça barulho!", mas nenhuma palavra saiu por entre os seus
lábios ressequidos. Ouviu-se um clique e o feixe de luz da lanterna formou um círculo brilhante na parede da
barraca.
Essa parede, agora, fazia bojo para dentro como se um grande peso se apoiasse nela. E no centro desse bojo
via-se um desenho absolutamente inconfundível: a marca deformada de uma mão ou pata. Estava a uns sessenta
centímetros apenas do chão. A criatura lá fora, fosse lá o que fosse, parecia estar ajoelhada, manuseando o tecido
da
barraca.
A luz devia tê-la irritado, pois a marca desapareceu abruptamente e a parede da barraca tornou a esticar-se,
reassumindo a sua posição normal. Ouviu-se um rosnido baixo, ameaçador, depois se fez silêncio por muito tempo.
Harper notou que estava respirando de novo. Tinha esperado ver, a qualquer momento, a barraca rasgar-se e
algum monstro inimaginável saltar lá de fora sobre eles. Ao invés disso, formando quase um anticlímax, ouviu-se
apenas o débil e distante lamento de uma rajada de vento passageira nas montanhas lá em cima. Harper pôs-se a
tiritar incontrolavelmente, o que não tinha nada que ver com a temperatura, pois no pequeno mundo isolado dos
dois homens reinava uma tepidez muito confortável.
Ouviu-se então um som familiar – quase amigo, mesmo. Era o tinido metálico de uma lata vazia batendo
numa pedra, e de certo modo isso relaxou um pouco a tensão. Pela primeira vez Harper pôde falar, ou pelo menos
cochichar.
– Ele encontrou as vasilhas com a nossa comida.
Talvez nos deixe agora em paz.
Como que em resposta, houve um rosnido baixo que parecia exprimir cólera ou desapontamento, depois um
golpe e um estardalhaço de latas que rolavam para longe na escuridão. Harper lembrou-se subitamente de que
todos
os víveres estavam dentro da barraca; lá fora, só as latas vazias de que se tinham desembaraçado. Esse
pensamento não era muito confortador. Lamentou que não tivessem, como os nativos supersticiosos, deixado uma
oferenda para os deuses ou demônios das montanhas.
O que aconteceu em seguida foi tão repentino, tão completamente inesperado, que tudo acabou antes de ele
ter tido tempo para reagir. Houve o som de alguma coisa batendo de encontro à rocha, depois o conhecido
queixume elétrico, e um grunhido de susto.
Por fim, um grito estridente de raiva e frustração, de fazer gelar o sangue nas veias, converteu-se rapidamente
em puro terror e se foi apagando com uma velocidade cada vez maior, subindo no céu vazio.
Esse som evanescente despertou no cérebro de Harper a única memória apropriada. Certa vez tinha visto um
filme dos começos do século XX sobre a história da aeronáutica, e nesse filme havia uma medonha seqüência
mostrando o lançamento de um dirigível. Alguns dos integrantes da tripulação de terra, que não tinham largado no
momento preciso os cabos de amarração, foram arrastados para cima pela aeronave e ficaram pendurados,
completamente iner-mes. Depois, um a um, foram soltando os cabos e caindo no solo.
Harper esperou um baque distante que não se concretizou. Então compreendeu o que o doutor dizia e repetia
sem parar:
– Eu deixei as duas unidades presas uma à outra. Eu deixei as duas unidades presas uma à outra.
O estado de choque de Harper era ainda muito intenso para que essa informação catastrófica o perturbasse. O
que ele experimentou, ao invés, foi uma sensação de desapontamento, desinteressada e admiravelmente científica.
Jamais poderia saber que criatura era aquela que havia rondado a barraca nas horas ermas que precedem a
alvorada do Himalaia.
Pelo fim da tarde, um helicóptero de salvamento, pilotado por um incrédulo sikh, ainda a se perguntar se tudo
aquilo não seria uma complicada pilhéria, desceu de nariz para baixo às profundezas do canyon. Quando a
máquina pousou, esparramando neve, o dr. Elwin já abanava furiosamente com um dos braços, enquanto se
agarrava com o outro à armação da barraca.
Ao reconhecer o cientista aleijado, o piloto do helicóptero experimentou uma sensação de terror quase
supersticioso. Então a notícia devia ser verdadeira! Não havia outro modo possível de Elwin ter chegado àquele
lugar. E isso significava que tudo quanto voava nos céus e acima dos céus da Terra tinha-se tornado, a partir desse
momento, tão obsoleto como um carro de bois.
– Graças a Deus que nos encontrou – disse o doutor com sincera gratidão. – Como foi que veio tão depressa?
– O senhor pode agradecer às redes rastreadoras de radar e aos telescópios das estações meteorológicas orbi-
tais. Teríamos vindo aqui antes, mas no começo pensamos que fosse uma brincadeira de mau gosto.
– Não compreendo.
– Que teria dito o senhor, doutor, se alguém informasse sobre uma onça-do-himalaia, môrtíssima, toda enre-
dada numa confusão de correias e caixas e mantendo uma altitude constante de vinte e sete mil metros?
Dentro da barraca, George Harper desatou a rir a despeito da dor que isso lhe causava. O doutor enfiou a
cabeça na portinhola e perguntou, ansioso:
– Que foi que houve?
– Nada... ui! Só estava me perguntando como vamos fazer descer o pobre bruto antes que se torne uma
ameaça para a navegação.
– Oh, alguém vai subir até lá com outro levvy e apertará os botões. Talvez convenha estabelecer um radio-
controle em todas as unidades ...
A voz do dr. Elwin apagou-se no meio da frase. Já o seu espírito estava longe dali, perdido em sonhos que
transformariam a face de muitos mundos.
Dentro em pouco ele desceria das montanhas, novo Moisés levando consigo as leis de uma nova civilização.
Porque ele restituiria aos homens a liberdade perdida havia tanto tempo, quando os primeiros anfíbios
deixaram a sua morada sem peso, embaixo das ondas.
A batalha de um bilhão de anos contra a força da gravidade estava terminada.
Novembro de 1966.

MARÉ NEUTRÔNICA
– Em deferência aos parentes mais chegados – explicou o capitão-de-fragata Cummerbund com um deleite
mórbido –, a história completa da última missão do su-percruzador Flatbush nunca foi revelada. Os senhores não
ignoram, naturalmente, que ele se perdeu durante a guerra contra os mucoides.
Todos nós estremecemos. Ainda agora, bastava ouvir o nome dos monstros gelatinosos que se lançaram em
direção à Terra, vindos de alguma parte da Nuvem Negra de Magalhães com seus revoltantes ruídos de ingestão,
para que isso evocasse lembranças vomitivas.
– Conheci muito o seu comandante, capitão Karl van Rinderpest, o herói do assalto final aos indizíveis, mas
abomináveis. . . arff!
Polidamente, fez uma pausa para que pudéssemos des-tapar os ouvidos e enxugar os drinques derramados na
mesa.
– O Flatbush acabava de lançar uma salva de inver-sores de probabilidade contra o planeta pátrio dos
mucoides e ia voltando para o espaço em formação com o Tenente Kije dos russos, o Chutzpah de Israel e o
Insufferable, de Sua Majestade britânica. Ainda estavam acelerando quando ocorreu um acidente fantasticamente
improvável. O Flatbush caiu de cabeça para baixo no poço de gravidade de uma estrela neutrônica.
Quando começaram a apagar-se as nossas expressões de horror e incredulidade, ele continuou gravemente:
– Sim, uma esfera de matéria condensada ao máximo, com apenas dez milhas de diâmetro e contudo tão
maciça como o Sol... portanto, com uma gravidade superficial cem bilhões de vezes maior que a da Terra.
"As outras naves tiveram sorte. Roçaram apenas pela orla exterior do campo e conseguiram escapar, se bem
que as suas órbitas fossem defletidas em quase cento e oitenta graus. Mas o Flatbush, segundo calculamos mais
tarde, deve ter passado a algumas vintenas de quilômetros daquela inconcebível concentração de massa e
experimentado, assim, toda a violência das suas forças de maré.
"Ora muito bem: em qualquer campo gravitacional razoável – mesmo o de um Anão Branco, que pode che-
gar a um milhão de gravidades terrestres –, basta contornar o centro de atração e sair na tangente, novamente rumo
ao espaço, sem sentir coisíssima alguma. No ponto de maior proximidade, pode-se estar acelerando a centenas de
milhares de gravidades – mas ainda se está em queda livre, de modo que não há efeitos físicos. Desculpem-me se
estou repisando essas coisas óbvias, mas noto que nem todos aqui são tecnicamente orientados."
Se isto era uma indireta ao encarregado do pagamento da frota, general "Pão-Duro" Geldclutch, ele nem deu
pela coisa, pois já ia em meio à sua quinta jarra de "néctar marciano".
– No caso de uma estrela neutrônica, todavia, isso já não é verdadeiro. Perto do centro de massa, o gradiente
gravitacional, ou seja, a razão em que o campo muda com a distância, é tão grande que mesmo na largura de um
corpo tão pequeno como uma espaçonave pode haver uma diferença de cem mil gravidades. Não preciso dizer-lhes
o que esse tipo de campo pode fazer a qualquer objeto material.
"O Flatbush deve ter sido despedaçado quase instantaneamente e os pedaços escorridos em estado líquido
durante os poucos segundos que ele levou para contornar a estrela. Depois os fragmentos se projetaram novamente
no espaço.
"Meses depois, uma rocega de radar realizada pelo corpo de salvamento localizou alguns desses destroços.
Eu os vi - - massas informes, surrealistas, dos metais mais
resistentes que possuímos, retorcidas e coladas umas às
outras como puxa-puxa. E entre elas só havia uma que se
pudesse reconhecer, ainda que vagamente; devia ter per-
enheiro*" ^^ ^ ferramentas de al8um inf°rtunado en-
O capitão-de-fragata baixou a voz, que se tornou quase inaudivel, e enxugou uma lágrima varonil.
– Sinceramente, repugna-me dizer isto – concluiu suspirando –, mas o único fragmento identificável do or-
gulho do Exercito Espacial dos Estados Unidos era uma chave de porca distorcida pelas estrelas ».
Janeiro de 1970.
ÍledA spanner\ trocadilho intraduzível com star-spangled bandeira estrelada dos Estados Unidos. (N. do T )
PASSAGEM DA TERRA
Testando, um, dois, três, quatro, cinco. . .
Fala Evans. Vou continuar gravando enquanto for possível. Esta é uma cápsula para duas horas, mas duvido
que consiga enchê-la.
Aquela fotografia me obsedou a vida inteira; agora, que é tarde demais, sei por quê. (Mas faria diferença se
eu soubesse antes? Essa é uma daquelas perguntas sem sentido nem resposta possível a que o espírito volta intermi-
navelmente, como a língua que explora um dente quebrado.)
Faz anos que não ponho os olhos nela, mas basta fechá-los para ver diante de mim uma paisagem quase tão
hostil – e tão bela – quanto esta. Oitenta milhões de quilômetros mais perto do Sol e setenta e dois anos no passado,
cinco homens fitam a câmara no meio das neves antárticas. Nem mesmo as volumosas roupas de peles podem
esconder a exaustão e a derrota que marcam todas as linhas daqueles corpos; e os rostos já foram tocados pela
Morte.
Eles eram cinco. Nós também éramos cinco e, naturalmente, também tiramos uma fotografia em grupo. Mas
quanto ao resto, foi tudo diferente. Nós sorríamos, alegres e cheios de confiança. E a nossa foto apareceu em todas
as telas da Terra vinte minutos depois. A deles. . . passaram-
se meses antes que a sua câmara fosse encontrada e trazida de volta à civilização.
E nós estamos morrendo confortavelmente, com todas as comodidades modernas – inclusive muitas que
Robert Falcon Scott jamais poderia ter imaginado quando foi ao pólo sul em 1912.
Duas horas depois. Começarei a informar os momentos exatos quando isso se tornar importante.
Todos os fatos estão no diário de bordo, e a esta altura o mundo inteiro os conhece. Creio, pois, que estou
fazendo isto em grande parte para pôr em ordem as minhas idéias – a fim de me dar ânimo para enfrentar o
inevitável. O diabo é que não sei ao certo que assuntos evitar e que outros olhar cara a cara. Bem, só há um meio
de averiguar isso.
Primeiro item: dentro de vinte e quatro horas, no máximo, todo o oxigênio terá acabado. Isso põe diante de
mim as três opções clássicas. Posso deixar que se vá acumulando o dióxido de carbono até perder a consciência.
Posso ir lá fora, rasgar o traje, e Marte fará o serviço em cerca de dois minutos. Ou posso usar um desses
comprimidos que tenho na farmácia portátil.
Acumulação de CO2. Todos dizem que é facílimo, o mesmo que pegar no sono. Não duvido que seja
verdade, mas infelizmente, no meu caso, há uma associação de idéias com o pesadelo número um. . .
Quem me dera nunca ter visto aquele maldito livro, Histórias verídicas da Segunda Guerra Mundial ou
como quer que se chame. Havia um capítulo sobre um submarino alemão encontrado e recuperado depois da
guerra. A tripulação ainda estava lá dentro – dois homens por beliche. E, entre cada par de esqueletos, o respirador
único que eles haviam compartilhado. . .
Bem. Isso, pelo menos, não acontecerá aqui. Mas eu sei, com inteira certeza, que tão logo começar a ter difi-
culdade em respirar me sentirei novamente no interior daquele desditoso submarino,
Mas que dizer, então, do meio mais rápido? Quando a gente é exposto ao vácuo, perde a consciência em dez
ou quinze segundos, e as pessoas que tiveram essa experiência dizem que não é dolorosa – apenas esquisita. Mas a
idéia
de esforçar-me por respirar alguma coisa que não está presente me reconduz direto ao pesadelo número dois.
Desta vez trata-se de uma experiência pessoal. Em garoto eu gostava muito de mergulhar quando minha
família ia gozar férias nas Caraíbas. Havia lá um velho cargueiro que fora a pique vinte anos antes, sobre um recife
ao largo, e seu convés estava apenas um par de metros abaixo da tona. Como a maioria das escotilhas estivessem
abertas, era fácil descer à coberta para procurar souvenirs e dar caça aos peixes grandes que costumam abrigar-se
em tais lugares.
Evidentemente, era perigoso fazê-lo sem um aparelho de respiração. Mas, por isso mesmo, que garoto
poderia resistir ao desafio?
O meu itinerário favorito compreendia o mergulho numa escotilha do convés de vante, passando depois por
um corredor de seus quinze metros, escassamente iluminado por uma série de vigias bastante próximas umas das
outras, subindo depois em ângulo por uma breve escada e emergindo finalmente por uma porta na superestrutura
semi-destruída. Todo esse percurso levava menos de um minuto – em suma, um mergulho fácil para quem
estivesse em boas condições de treinamento. Até sobrava tempo para olhar em redor ou brincar com alguns peixes
em caminho. E às vezes, para variar, eu invertia a direção, entrando pela porta e saindo pela escotilha.
Foi o que fiz na última vez. Havia uma semana que não mergulhava, pois houvera uma forte tormenta e o
mar estava muito agitado; assim, era grande a minha impaciência por voltar lá.
Pratiquei respiração profunda na superfície durante uns dois minutos, até sentir nas pontas dos dedos um for-
migamento que me dizia: chegou. Aí mergulhei em canivete e deslizei suavemente para o retângulo escuro da porta
aberta.
Sempre a achei com uma aparência agourenta e ameaçadora – isso contribuía para tornar a aventura mais
emocionante. E, nos primeiros metros, ia quase completamente às cegas; tamanho era o contraste entre o sol
tropical lá em cima e a escuridão da coberta que meus olhos demoravam certo tempo a ajustar-se. Em geral, já
tinha percorrido
metade do corredor quando começava a enxergar com alguma clareza. A partir desse ponto a iluminação ia
crescendo à medida que me aproximava da escotilha aberta, onde uma réstia de sol pintava um deslumbrante
retângulo no piso metálico enferrujado e inçado de cracas.
Quase havia chegado lá quando notei que desta vez a luz não estava melhorando nem um pouco. Não havia à
minha frente aquela coluna inclinada de sol que me guiava o caminho para o mundo do ar e da vida.
. Tive um segundo de perplexidade e confusão em que me perguntei se teria perdido o caminho. Então
compreendi o que havia acontecido, e a confusão mudou-se em pânico. A violência das ondas durante a tempestade
devia ter batido com o tampo da escotilha, fechando-a. E esse tampo pesava pelo menos um quarto de tonelada.
Não me lembro de ter feito uma volta em U; a próxima coisa de que me recordo é de estar nadando vagaro-
samente ao longo do corredor e dizendo a mim mesmo: "Não se apresse; o ar durará mais tempo se você for com
calma". Agora podia enxergar muito bem, pois os meus olhos tinham tido tempo de sobra para adaptar-se à es-
curidão. Havia uma multidão de detalhes em que nunca tinha reparado antes, como o jaguaruçá vermelho entre-
visto nas sombras, os liquens e algas verdes que vegetavam nos pequenos campos de luz em redor das vigias, e até
uma bota de borracha que parecia em ótimo estado e devia ter sido jogada do pé por alguém. E, num corredor
transversal, notei uma avantajada garoupa fitando-me com os olhos protuberantes e entreabrindo a beiçarra, como
que espantada com a minha intrusão.
A faixa que me cingia o peito ia se apertando cada vez mais. Era impossível segurar a respiração por mais
tempo. Inalei as últimas polegadas cúbicas de ar que a minha máscara ainda continha – sentindo-a achatar-se contra
o meu nariz, completamente esvaziada – e fiz com que penetrassem nos meus pulmões famintos. Ao mesmo
tempo, operei uma mudança de velocidade e toquei para a frente com todas as forças que me restavam. . .
E essa é a última coisa de que me lembro até que dei tento de mim, tossindo e cuspindo água, agarrado ao
coto de mastro quebrado. A água à minha volta estava vermelha
de sangue, e perguntei-me qual seria a explicação disso. Então, com grande surpresa, notei um ferimento
profundo na barriga de minha perna direita. Devia ter batido com ela em algum objeto agudo, mas não dera por
isso e mesmo agora não sentia nenhuma dor.
Esse foi o fim dos meus mergulhos até que iniciei o treinamento para astronauta, dez anos mais tarde, e pene-
trei no simulador subaquático de gravidade zero. Mas então a coisa era diferente, porque eu estava usando um
aparelho de respiração. Apesar disso, tive alguns momentos muito desagradáveis, que receava fossem notados
pelos psicólogos, e sempre cuidei de deixar uma boa reserva no meu tanque. Tendo quase morrido de asfixia uma
vez, não queria de modo algum arriscar-me a isso de novo. . .
Sei exatamente qual será a sensação de respirar os traços de oxigênio gelado, pouco mais do que um vácuo,
que se chama atmosfera em Marte. Não, muito obrigado.
Portanto, qual é o inconveniente do veneno? Nenhum, suponho. Aquele que nós temos faz a sua obra em
quinze segundos, conforme nos informaram. Mas todos os meus instintos se rebelam contra isso, mesmo não
havendo nenhuma alternativa sensata.
Scott teria levado veneno consigo? Duvido. E, se tivesse levado, tenho certeza de que não o usou.
Não vou ouvir o que gravei aqui. Espero que tenha tido alguma utilidade, mas continuo em dúvida.
O rádio acaba de imprimir uma mensagem da Terra, avisando-me de que a passagem começa daqui a duas
horas. Como se eu pudesse esquecer isso, com quatro companheiros que já morreram para que eu fosse o primeiro
ser humano a vê-la. E o único durante os próximos cem anos exatos. Não é freqüente que Sol, Terra e Marte se
coloquem num alinhamento tão perfeito como este; a última vez foi em 1905, quando o pobre Lowell ainda
escrevia as suas maravilhosas tolices sobre os canais marcianos e a grande civilização moribunda que os teria
construído. Que lástima que tudo fosse ilusão!
Convém verificar agora se tudo está em ordem – telescópio e equipamento cronométrico.
O Sol está tranqüilo hoje – como, aliás, deve estar no meio do ciclo. Nada mais que algumas manchas peque-
nas, com reduzidas áreas de perturbação em volta. Pode-se prever tempo calmo no Sol por meses ainda. Será uma
preocupação de menos para os outros, que já vão de volta. Creio que o pior momento foi esse, observar o Olympus
decolando de Fobos e rumando para a Terra. Embora soubéssemos, há semanas, que nada se podia fazer, esse foi o
fechar-se definitivo da porta.
. Era noite e pudemos ver tudo perfeitamente. Fobos saltara do horizonte ocidental poucas horas antes e
iniciara a sua doida carreira através do céu. De crescente que era a princípio transformara-se em meia-lua, mas
antes de chegar ao zênite desapareceria, penetrando na sombra de Marte e eclipsando-se.
Escutávamos a contagem regressiva, naturalmente, procurando ocupar-nos com o trabalho normal. Não era
fácil conformar-nos, afinal, com o fato de termos sido quinze a vir e de que só dez voltariam. Mesmo naquele
instante, penso haver milhões de pessoas na Terra que não podiam compreender isso. Para elas, deve ter sido
impossível acreditar que o Olympus não pudesse descer seis mil e quinhentos quilômetros para nos apanhar. A
Administração Espacial fora bombardeada por planos malucos de salvamento, e Deus sabe quantos nós mesmos
fizemos. Mas quando o permafrost finalmente cedeu por baixo do colchão de pouso número 3 e o Pegasus se
despenhou, todas as esperanças se foram. Ainda parece um milagre que a nave não tenha explodido quando o
tanque de combustível
propulsor rachou...
Estou novamente divagando. Voltemos a Fobos e à
contagem regressiva.
No monitor do telescópio podíamos ver claramente o platô fendido sobre o qual pousara o Olympus depois
que nos separamos e nós, os do Pegasus, demos início à nossa descida. Se bem que os nossos amigos não
chegariam a pousar em Marte, tinham o seu pequeno mundo para explorar; mesmo num satélite tão pequeno como
Fobos, eram quase oitenta quilômetros quadrados por homem. Um vasto território em que pesquisar estranhos
minerais e destroços e.snaciais – ou em que deixarem os seus nomes gravados,
para que as gerações futuras soubessem que eles tinham sido os primeiros homens a chegar ali.
A nave era nitidamente visível como um cilindro atar-racado e brilhante contra o fundo de rochas cinzento-
fosco. De tempos a tempos alguma superfície plana apanhava a luz do Sol, que avançava célere no céu, e
resplandecia como um espelho. Uns cinco minutos antes da partida, porém, o quadro assumiu repentinamente uma
cor rósea, depois carmesim – e subitamente desapareceu por completo, quando Fobos penetrou no cone de sombra.
A contagem regressiva estava ainda em dez segundos quando fomos sobressaltados por uma explosão de luz.
Durante um momento nos perguntamos se também o Olympus fora vítima de uma catástrofe. Depois
compreendemos que alguém estava filmando a partida e que os faróis exteriores tinham sido acesos.
Nesses poucos segundos finais, creio que todos esquecemos a nossa angustiosa situação; estávamos lá em
cima, a bordo do Olympus, torcendo para que a força de pro-pulsão crescesse suavemente, subtraindo a nave ao
minúsculo campo gravitacional de Fobos e depois de Marte, para que pudesse iniciar a longa queda na direção do
Sol. Ouvimos o comandante Richmond dizer: "Ignição", depois uma breve descarga de interferência, e a mancha
luminosa começou a mover-se no campo do telescópio.
Isso foi tudo. Não houve nenhuma coluna chamejante porque, é claro, não há verdadeira ignição quando se
acende um foguete nuclear. "Se acende", essa é boa! Aí está outra reminiscência da velha tecnologia química. Mas
uma rajada de hidrogênio quente é completamente invisível; é uma pena que nunca mais tornemos a ver espetáculo
tão magnificente como a partida de um Saturno ou um Korolov.
Pouco antes de terminar a combustão o Olympus deixou a sombra de Marte e tornou a surgir à luz solar,
reaparecendo quase instantaneamente como uma brilhante e célere estrela. O fulgor da luz deve tê-los
sobressaltado a bordo da nave, pois ouvimos alguém gritar: "Cubram essa janela!" Poucos segundos depois,
Richmond anunciava: "O motor foi desligado". Acontecesse o que acontecesse, o Olympus havia tomado
irrevogavelmente o rumo da Terra.
Uma voz que não reconheci – embora deva ter sido a do comandante – disse: "Adeus, Pegasus" e a radio-
transmissão foi desligada. Era inútil, naturalmente, acrescentar: "Boa sorte". Isso era uma coisa que ficara
assentada semanas atrás.
Acabo de ouvir esta última parte. Por falar em sorte, houve uma compensação, se bem que não para nós.
Com uma tripulação de dez homens apenas, o Olympus pôde abandonar um terço da sua carga sacrificável,
aliviando-se de várias toneladas. Assim, chegará à Terra um mês antes do prazo fixado.
Muitas complicações poderiam ter surgido durante esse mês: quem sabe se não salvamos a expedição? Está
claro que nunca o saberemos, mas é confortador pensar nisso.
Tenho ouvido muita música, a todo volume, agora que já não posso incomodar ninguém. E mesmo que hou-
vesse marcianos, não creio que este fantasma de atmosfera possa transportar o som além de alguns metros.
Temos uma bela coleção, mas preciso escolher com cuidado. Nada de deprimente e nada que exija demasiada
concentração. Sobretudo, nada que contenha vozes humanas. Limito-me, portanto, aos mais leves clássicos orques-
trais: a sinfonia Novo mundo e o concerto de Grieg para piano preenchem todos os requisitos. No momento estou
escutando a Rapsódia sobre um tema de Paganini, de Rachmanínoff, mas agora tenho que desligar e tratar do meu
trabalho.
Só faltam cinco minutos. Todo o equipamento está em perfeitas condições. O telescópio rastreia o Sol, o
registra-dor de vídeo está a postos, o cronômetro de precisão funcionando.
Estas observações serão tão acuradas quanto possível. Devo-o aos meus camaradas perdidos, com os quais
irei ter dentro em pouco. Eles me deram o seu oxigênio para que eu pudesse estar vivo neste momento. Espero que
se lembrem disto, daqui a cem ou mil anos, sempre que fornecerem estas cifras aos computadores. . .
Só um minuto, agora; vamos ao que importa. Para constar nos registros: ano, 1984; mês, maio; dia, 2, com o
ponteiro aproximando-se de quatro horas e trinta minutos, Hora Efeméride. . . lá chegou ele!
Meio minuto para o contato. Passando registrador e cronometrador para alta velocidade. Acabo de reverificar
ângulo de posição para ter certeza de que estarei olhando para o ponto certo no limbo do Sol. Usando a potência de
quinhentos; imagem perfeitamente firme mesmo com esta baixa elevação.
Quatro e trinta e dois. A qualquer momento agora. . .
Lá está... Ia está! Quase não posso acreditar nos meus olhos! Um minúsculo entalhe na orla do Sol. . . cres-
cendo, crescendo, crescendo. . .
Alô, Terra. Olha para mim, a estrela mais brilhante no teu céu, bem no zênite à meia-noite. . .
Fiz o registrador voltar à lenta.
Quatro e trinta e cinco. É como se um polegar estivesse avançando na orla do Sol, cada vez mais fundo. . .
Fascinante observar isso. . .
Quatro e quarenta e um. O meio exato da progressão. A Terra é um perfeito semicírculo negro – um pedaço
do Sol arrancado de uma só dentada. Como se alguma doença o estivesse consumindo. . .
Quatro e quarenta e oito. Completados três quartos do ingresso.
Quatro horas, quarenta e nove minutos e trinta segundos. O registrador novamente em alta velocidade.
A linha de contato com a fímbria do Sol está diminuindo rapidamente. Agora é um fio preto mal-e-mal visí-
vel. Dentro de poucos segundos a Terra inteira estará sobreposta ao Sol.
Agora posso ver os efeitos da atmosfera. Um fino halo de luz cerca aquele buraco negro no Sol. Como é
estranho pensar que estou vendo o arrebol de todos os ocasos – e de todas as alvoradas – que neste momento exato
ocorrem em volta de toda a Terra. . .
Ingresso completado – quatro horas, cinqüenta minutos e cinco segundos. O mundo inteiro mudou-se para a
face do Sol. Um disco preto, perfeitamente circular, formando silhueta contra aquele inferno de chamas, cento e
quarenta e quatro milhões de quilômetros além. Parece maior do que eu esperava; seria fácil tomá-la por uma
mancha solar de bom tamanho.
Nada mais que ver durante seis horas, até que apareça a Lua, indo no encalço da Terra a uma distância de
metade da largura do Sol. Vou reirradiar os dados do registrador para a Lunacom, depois procurarei dormir um
pouco.
Meu último sono. Será que vou precisar de drogas? Parece uma pena desperdiçar essas poucas horas que me
restam, mas quero conservar as minhas forças – e o meu oxigênio.
Creio ter sido o dr. Johnson quem disse que nada aquieta os pensamentos de um homem de forma tão ma-
ravilhosa como saber que vai ser enforcado na manhã seguinte. Mas por que artes do diabo ele pôde descobrir isso?
Dez horas e trinta minutos, Hora Efeméride. O dr. Johnson tinha razão. Só tomei uma drágea e não me
lembro de ter tido sonhos.
O condenado também comia um lauto desjejum. Vamos suprimir isso. . .
Volta ao telescópio. Agora a Terra está no meio de seu caminho através do disco, passando bastante ao norte
do centro. Dentro de dez minutos deverei ver a Lua.
Acabo de colocar o telescópio na sua mais alta potência – dois mil. A imagem está um pouquinho indistinta,
mas ainda é bastante boa; halo atmosférico muito nítido. Espero ver as cidades no lado escuro da Terra. . .
Não tive sorte. Excesso de nuvens, provavelmente. Uma lástima; a coisa é teoricamente possível, mas nunca
o conseguimos. Quem me dera. .. deixa pra lá.
Dez horas e quarenta minutos. Registrador em baixa velocidade. Tomara que eu esteja olhando para o lugar
certo.
Faltam quinze segundos. Registrador em alta.
Raios! Deixei escapar. Mas não faz mal, o registrador terá apanhado o momento exato. Já se nota um
pequeno entalhe preto no limbo do Sol. O primeiro contato deve ter
ocorrido aproximadamente às dez horas, quarenta e um minutos e vinte segundos, H.E.
Como é grande a distância entre a Terra e a Lua! Entre elas há a metade da largura do Sol. Ninguém diria que
os dois corpos têm algo que ver um com o outro. Isso nos dá uma idéia de como o Sol é realmente grande. . .
Dez horas e quarenta e quatro minutos. A metade exata da Lua passou a borda. Uma pequenina mordida
semicircular e de contorno muito nítido na orla do Sol.
Dez horas, quarenta e sete minutos e cinco segundos. Contato interno. A Lua separa-se do limbo e fica toda
inteira sobre o Sol. Não-creio que eu possa ver alguma coisa no lado da noite, mas vou aumentar a potência.
Isto é esquisito.
Bem, bem. Alguém deve estar tentando me falar. Há um pontinho de luz pulsando ali, na face escurecida da
Lua. Provavelmente o laser da Base Imbrium.
Lamento muito, pessoal. Já fiz todas as minhas despedidas e não quero repeti-las. Nada mais tem importância
agora.
Contudo, é quase hipnótico esse ponto de luz piscando na própria face do Sol. Difícil acreditar que, mesmo
depois de ter percorrido toda essa distância, o feixe luminoso tenha apenas cem milhas de largura. A Lunacom se
dá todo esse trabalho para apontá-lo exatamente para mim, e suponho que eu devia sentir remorso de não fazer
caso. Mas não sinto. Meu trabalho está quase terminado e não tenho mais nada que ver com as coisas da Terra.
Dez horas e cinqüenta minutos. Registrador desligado. E desligado ficará até o fim da passagem da Terra,
daqui a duas horas.
Fiz uma merenda e estou contemplando pela última vez o panorama que se descortina da esfera de
observação. O Sol ainda está alto e por isso não há muito contraste, mas a luz põe em vivo destaque todas as cores
– as variedades incontáveis de róseo, vermelho e carmesim, tão surpreendentes contra o azul-escuro do céu. Como
isto é diferente da Lua, embora ela não deixe de ter também a sua beleza.. .
É estranho que o óbvio possa ser tão surpreendente. Todos sabiam que Marte era vermelho, mas não
esperávamos realmente o vermelho da ferrugem, o vermelho do sangue. É como o deserto pintado do Arizona:
depois de algum tempo, os olhos anseiam pelo verde.
Para o norte, há uma grata mudança de cor; a calota de neve de dióxido de carbono sobre o monte Burroughs
é uma deslumbrante pirâmide branca. Outra surpresa, esta. O Burroughs fica sete mil e quinhentos metros acima da
altitude-base; quando eu era menino, acreditava-se que não houvesse montanhas em Marte. . .
A duna de areia mais próxima fica a quatrocentos metros daqui, e também ela tem emplastros de geada na
sua vertente que fica à sombra. Durante a última tempestade nos pareceu que ela se movera alguns pés, mas não
podíamos ter certeza. Certamente as dunas se movem, como as da Terra. Um dia, suponho, esta base será invadida
e coberta, para só tornar a aparecer depois de mil anos. Ou
dez mil.
Aquele estranho grupo de rochas – o Elefante, o Capitólio, o Bispo – ainda guarda o seu segredo e desperta
em mim a lembrança arreliante da nossa primeira grande decepção. Teríamos jurado que eram sedimentares; com
que alvoroço nos tocamos para lá, em busca de fósseis! Ainda agora, não sei como se formaram esses afloramen-
tos. A geologia de Marte continua a ser um montão de contradições e enigmas. . .
Temos passado problemas de sobra ao futuro, e aqueles que vierem depois de nós encontrarão muitos outros
ainda. Mas há um mistério que nunca transmitimos à Terra e que nem sequer consignamos no nosso diário. . .
Na primeira noite depois de pousarmos, revezamo-nos no serviço de sentinela. Brennan, que estava de
quarto, me acordou pouco depois da meia-noite. Agastei-me, pois não era ainda a minha hora, mas ele me disse
que tinha visto uma luz mover-se em redor da base do Capitólio.
Ficamos observando durante uma hora, pelo menos, até que chegou o meu turno. Mas não vimos nada; fosse
o que fosse a tal luz, nunca mais tornou a aparecer.
Ora, Brennan era um homem equilibrado e prosaico como poucos; se ele disse que viu uma luz, é porque viu.
Talvez se tratasse de uma espécie de descarga elétrica ou de um reflexo de Fobos numa superfície de rocha
polida pela areia. De qualquer maneira, resolvemos nato mencionar o fato à Lunacom, a menos que acontecesse de
novo. Desde que fiquei só, tenho acordado muitas vezes à noite e observado essas rochas. Fracamente iluminadas
por Fobos e Deimos, elas me lembram a silhueta dos edifícios de uma cidade escurecida. E assim permaneceram
sempre. Nenhuma luz me apareceu jamais. . .
Doze horas e quarenta e nove minutos, Hora Efeméride. O último ato vai começar. A Terra está quase alcan-
çando a orla do Sol. Os dois chifres de luz que ainda a cingem apenas se tocam. . .
Registrador em alta velocidade.
Contato! Doze horas, cinqüenta minutos e dezesseis segundos. Os crescentes de luz já não se encontram. Um
pequenino ponto preto surgiu na fímbria do Sol: é a Terra que começa a atravessá-la. Esse ponto vai se alongando,
alongando.
Registrador em lenta. Dezoito minutos de espera até que a Terra finalmente se separe da face do Sol.
A Lua ainda tem mais de meio caminho a percorrer, pois não alcançou o ponto médio da sua passagem.
Parece um pequeno pingo de tinta, com apenas um quarto do tamanho da Terra. E já não se vê piscar nenhuma luz
ali. A Lunacom deve ter desistido.
Bem, disponho ainda de um quarto de hora aqui, na minha última morada. O tempo parece estar acelerando,
como acontece nos momentos finais antes de uma partida para o espaço. Não importa; já tenho tudo calculado e
preparado. Posso até relaxar.
Já me sinto uma figura histórica. Estou na pele do comandante Cook, em Taiti no ano de 1769, observando a
passagem de Vênus. Salvo essa imagem da Lua que segue nas pegadas, deve ter-se parecido exatamente com o que
acabo de assistir. . .
Que teria pensado Cook, há mais de duzentos anos, se soubesse que um dia um homem observaria de um
mun-
do exterior a Terra inteira transitando sobre o Sol? Estou certo de que ficaria assombrado – e depois
encantado. .. Mas sinto uma identidade mais estreita com um homem que ainda não nasceu. Espero que ouça estas
palavras, quem quer que você seja. Talvez esteja neste mesmo lugar, daqui a cem anos, quando ocorrer a próxima
passagem.
Saudações a 2084, 10 de novembro! Desejo-lhe mais sorte do que tivemos. Suponho que tenha vindo aqui
numa espaçonave de luxo. Ou talvez tenha nascido em Marte e seja um estranho à Terra. Você saberá coisas que eu
nem posso imaginar. E contudo, de certo modo não o invejo. Não trocaria mesmo de lugar com você, ainda que
pudesse fazê-lo.
Porque você se lembrará do meu nome e saberá que eu fui o primeiro homem a observar uma passagem da
Terra. E ninguém verá outra, antes que tenham decorrido cem anos.. .
Doze horas e cinqüenta e nove minutos. Exatamente no meio do egresso, a Terra é um semicírculo perfeito –
uma sombra preta sobre a face do Sol. Ainda não me posso furtar à impressão de que alguma coisa deu uma grande
mordida naquele disco de ouro. Dentro de nove minutos ela terá ido embora e o Sol ficará de novo inteiro.
Treze horas e sete minutos. Registrador em alta.
A Terra quase se foi. Só resta uma covinha rasa na beira do Sol. Facilmente se poderia tomá-la por uma pe-
quena mancha, cuja extensão ultrapassasse o limbo.
Treze horas e oito minutos.
Adeus, linda Terra.
Lá vai indo ela, lá vai indo. Adeus, ad. . .
Estou bem agora, isso passou. Todos os dados crono-métricos foram enviados à Terra. Dentro de cinco
minutos eles irão acrescentar-se ao tesouro de conhecimentos da humanidade. E a Lunacom saberá que eu não
abandonei o meu posto.
Mas não vou enviar isto. Vou deixá-lo aqui, para a nróxima expedição – quando quer que ela venha a reali-
zar-se. Podem passar-se dez ou vinte anos antes que alguém apareça aqui. Para que voltar a um lugar já
visitado quando há tanto que explorar por aí?. . .
De modo que esta cápsula ficará aqui, como ficou o diário de Scott na sua barraca, até que os próximos visi-
tantes a encontrem. Mas a mim é que não encontrarão.
É estranha esta dificuldade que tenho em me desligar de Scott. Creio que foi ele quem me deu a idéia.
Porque o seu corpo não permaneceria para sempre gelado na Antártida, isolado do grande ciclo da vida e da
morte. Havia muito que aquela barraca solitária iniciara a sua marcha para o mar. No espaço de poucos anos; foi
sepultada pela neve que caía e tornou-se parte da geleira que desce eternamente do pólo. Em poucos séculos o na-
vegador terá voltado ao mar. Será novamente incorporado ao ciclo das coisas vivas – o plâncton, as focas, os pin-
güins, as baleias, toda a fauna multitudinária do oceano Antártico.
Aqui em Marte não há oceano, nem jamais houve durante cinco bilhões de anos pelo menos. Mas existe algu-
ma espécie de vida lá embaixo, nas terras más de Caos II, que nunca tivemos tempo de explorar.
Aquelas manchas em movimento nas fotos que tiramos quando em órbita. A evidência de que, em extensas
áreas de Marte, houve um desmonte total de crateras por forças outras que não a erosão. As complexas moléculas
de carbono, oticamente ativas, apanhadas pelos amostra-dores atmosféricos.
E, está claro, o mistério do Viking-6. Ainda hoje, ninguém pode explicar aquelas últimas indicações dos ins-
trumentos, antes de um objeto grande e pesado ter esmagado a sonda nas silenciosas e frias profundezas da noite
marciana...
E não me venham falar em formas "primitivas" de vida num lugar como este! O que quer que tenha sobrevi-
vido aqui deve ser tão sofisticado que, em comparação, nós pareceremos tão broncos como dinossauros.
Ainda há bastante combustível nos tanques da nave para o carro marciano dar uma volta inteira ao planeta.
Restam-me três horas de luz diurna – tempo de sobra para descer aos vales e penetrar bem longe no Caos.
Depois que o sol se puser, ainda poderei avançar a uma velocidade razoável, graças aos faróis. Será romântico
dirigir à noite sob as luas de Marte. . .
Há uma coisa que preciso resolver antes de partir. Não gosto de ver o jeito de Sam, caído lá fora. Foi sempre
um rapaz tão desempenado, tão garboso! Não parece justo que ele tenha um ar tão desajeitado agora. Preciso dar
um jeito nisso.
Será que eu poderia ter percorrido noventa metros sem uma roupa espacial, caminhando devagar, num passo
firme, como ele fez até o fim?
Procurarei não olhar para o seu rosto.
Pronto. Tudo em ordem de marcha.
A terapia fez efeito. Sinto-me perfeitamente à vontade, e até alegre, agora que sei exatamente o que vou
fazer. Os velhos pesadelos perderam o seu poder.
É verdade: todos nós morremos sozinhos. No fim, não faz diferença que a gente esteja oitenta milhões de
quilômetros longe de casa.
Vou gostar do passeio de carro através dessa adorável paisagem pintada. Estive pensando em todos aqueles
que sonharam com Marte – Wells, Lowell, Burroughs, Wein-baum, Bradbury. Todos eles fizeram conjeturas
erradas, mas a realidade não é menos estranha nem menos bela do que esses homens imaginaram.
Não sei o que é isso que me espera lá fora, e provavelmente nunca o verei. Mas, neste mundo faminto, deve
estar desesperado por carbono, fósforo, oxigênio, cálcio. Poderá utilizar a mim.
E quando o meu alarma de oxigênio der o seu "pim" final lá embaixo, nesses ermos mal-assombrados,
morrerei em estilo. Assim que começar a sentir dificuldade em respirar, descerei do carro marciano e sairei
caminhando – com um reprodutor de áudio conectando no meu capacete e funcionando a todo volume.
Pelo puro e triunfal poder-e-glória, não há em toda a historia da música nada que se compare à Tocata e fuga
em ré. Não terei tempo de ouvi-la até o fim, mas isso não importa.
Johann Sebastian, aqui vou eu.
Fevereiro de 1970.
ENCONTRO COM MEDUSA
1. Um dia para ser lembrado
O Queen Elizabeth pairava a mais de cinco mil metros acima do Grand Canyon, deslocando-se à confortável
velocidade de trezentos quilômetros por hora, quando Ho-ward Falcon avistou a plataforma de filmagem que se
aproximava a estibordo. Já esperava por ela – nenhuma outra coisa tinha permissão de voar a essa altitude –, mas
não ficou muito contente com a visita. Embora acolhesse bem todos os sinais de interesse público, queria ter o má-
ximo possível de espaço livre. Afinal, era o primeiro homem na história a comandar uma nave de quatrocentos e
oitenta metros de comprimento...
Até agora, esse primeiro vôo de prova tinha decorrido em perfeitas condições; ironicamente, o único
problema fora criado pelo Presidente Mao, velho de um século, que tinham pedido emprestado ao museu naval de
San Diego para operações de apoio. Somente um dos quatro reatores nucleares do Mao ainda funcionava e a
velocidade máxima do vetusto carroção de batalha não ia além de trinta nós. Por sorte, a velocidade do vento ao
nível do mar era, na ocasião, inferior à metade disso, de modo que não fora difícil manter a imobilidade do ar no
convés de pouso. Apesar de alguns momentos de ansiedade durante as rajadas, ao serem largadas as amarras, o
grande dirigível subira suavemente em vertical, como se fosse conduzido por um elevador invisível. Se tudo
corresse bem, o Queen
Elizabeth IV não tornaria a encontrar-se com o Presidente Mao antes que se passasse mais uma semana.
Tudo estava sob controle; todos os instrumentos davam indicações normais. O comandante Falcon resolveu
subir para observar o encontro. Passou o comando ao se-gundo-oficial e entrou na tubovia transparente que atra-
vessava o coração da nave. Ali, como sempre, foi assoberbado pelo espetáculo do maior espaço já incluído entre
paredes pelo homem.
* As dez células esféricas de gás, cada uma com mais de trinta metros de diâmetro, estavam dispostas umas
atrás das outras como uma fileira de gigantescas bolhas de sabão. O resistente plástico era tão límpido que ele
podia ver a fila inteira e distinguir pormenores do mecanismo elevador a centenas de metros do seu ponto de
observação. Ao seu redor, como um labirinto tridimensional, desdobrava-se o esqueleto da nave – as grandes vigas
longitudinais estendendo-se do nariz à cauda, os quinze arcos que eram as costelas circulares desse colosso do ar e
cujos tamanhos variados definiam-lhe o gracioso perfil aerodinâmico.
Naquela baixa velocidade quase não havia ruídos – apenas o suave correr do vento sobre o envoltório e, de
tempos a tempos, um estalido de metal quando o padrão de tensões mudava. A luz sem sombras lançada pelas filas
de lâmpadas, muito acima da sua cabeça, emprestava à cena inteira uma curiosa qualidade submarina que, para
Falcon, era realçada pelo espetáculo das bolsas translúcidas de gás. Certa vez, encontrara um esquadrão de grandes
mas inofensivas medusas, deslocando-se automaticamente por meio de suas pulsações sobre um recife tropical
quase à flor do mar, e as bolhas de plástico que davam força ascensional ao Queen Elizabeth lembravam-lhe muitas
vezes esses ce-lenterados – especialmente quando as mudanças de pressão lhe faziam ondular a superfície,
enviando novos padrões
de luz refletida.
Falcon caminhou ao longo do eixo da nave até alcançar o elevador da proa, entre as células de gás número 1
e 2. Subindo dali ao convés de observação, notou que este estava inconfortavelmente quente e ditou a si mesmo um
breve lembrete no seu gravador de bolso. O Queen recebia -------„ „..„..»„ «Qrtf) ,\p ,.lia fintuabilidade das
quantidades

ilimitadas de calor residual produzido pelo seu sistema motopropulsor de fusão. Nesse vôo com carga
incompleta, em verdade, apenas seis das células de gás continham hélio; as quatro restantes estavam cheias de ar.
No entanto, ele levava duzentas toneladas de água como lastro. E manter as células em altas temperaturas não
deixava de criar problemas no que dizia respeito à refrigeração das vias de acesso; era evidente que seria preciso
realizar um trabalho suplementar nesse setor.
Uma revigorante rajada de ar mais frio bateu-lhe no rosto quando ele pisou no convés de observação, sob a
luz deslumbrante do sol filtrada pelo teto de plexiglass. Meia dúzia de trabalhadores, com um número igual de
super-chimpanzés ajudantes, estavam ocupados em assentar a pista de dança, já em parte completa, enquanto
outros instalavam fios elétricos e fixavam móveis. Era uma cena de caos controlado, e Falcon teve dificuldade em
acreditar que tudo estaria pronto para a viagem inaugural, apenas quatro semanas depois. Ainda bem que esse
problema não era seu. Ele era o comandante, e não o diretor de cruzeiro.
Os trabalhadores humanos acenaram para Falcon e os chimps sorriram mostrando a dentuça enquanto ele
atravessava aquela confusão a caminho do skylounge, já pronto. Era, em toda a nave, o seu lugar favorito, e sabia
que nunca mais o teria só para si quando estivesse funcionando. Queria gozá-lo ainda uma vez sozinho, embora
fosse por cinco minutos apenas.
Chamou a ponte de comando, foi informado de que tudo continuava em ordem e acomodou-se numa das con-
fortáveis cadeiras giratórias. Embaixo, numa curva que deliciava os olhos, estendia-se sem solução de continuidade
o envoltório prateado do dirigível. Encontrava-se no ponto mais alto, contemplando em toda a sua imensidade o
maior veículo já construído. E quando se cansou de contemplá-lo, alongou a vista e teve diante de si, até a orla do
horizonte, a fabulosa garganta que o rio Colorado vinha cavando há um bilhão de anos.
Fora a plataforma de filmagem (que havia recuado e estava filmando agora pelo través), ele era senhor
absoluto do céu – um céu azul e vazio, límpido até o horizonte. Nos tempos de seu avô, Falcon o sabia, ele estaria
riscado
por rastos de vapor e poluído por fumaças. Ambos haviam desaparecido: o lixo aéreo se acabara juntamente
com as tecnologias primitivas que o engendravam e os transportes a longa distância da sua época seguiam uma
trajetória em arco muito acima da estratosfera para que pudessem ser vistos ou ouvidos da superfície da Terra. A
atmosfera inferior tornara-se mais uma vez propriedade dos pássaros e das nuvens – e agora do Queen Elizabeth
IV.
Em verdade, como diziam os velhos pioneiros do começo do século XX, essa era a única maneira de viajar –
em silêncio e cercado pelo luxo, respirando o ar ambiente e não isolado dele, suficientemente próximo da
superfície para deleitar-se com a beleza, sempre mutável, da terra e do mar. Os jatos subsônicos da década de 80,
atochados de passageiros sentados a dez de frente, não podiam igualar esse conforto e essa abundância de espaço.
Naturalmente, o Queen jamais seria um negócio lucrativo, e mesmo que as suas naves irmãs, ainda em
projeto, viessem a ser construídas, somente alguns raros privilegiados dentre os duzentos e cinqüenta milhões de
habitantes da Terra poderiam gozar esse silencioso deslizar no céu. Mas uma sociedade global segura e próspera
podia permitir-se tais loucuras e, em verdade, necessitava delas pela novidade e para recreação. Havia pelo menos
um milhão de homens na Terra cuja renda supranumerária excedia um milhar de novos dólares por ano, de modo
que não faltariam passageiros ao Queen.
O comunicador de bolso de Falcon deu sinal. Era o co-piloto que chamava da ponte de comando.
– Tudo OK para o encontro, comandante? Já colhemos todos os dados de que necessitamos sobre este vôo e o
pessoal da TV está ficando impaciente.
Falcon olhou para a plataforma de filmagem, que agora igualava a sua velocidade a cento e sessenta metros
de distância.
– OK. Proceda de acordo com o combinado. Eu observarei daqui.
Voltou por entre o laborioso caos do convés de observação a fim de obter uma visão melhor da meia-nau.
Enquanto o fazia, pôde sentir a mudança de vibração sob os seus pés, e quando alcançou a parte traseira do lounge
a
nave se havia imobilizado. Usando a sua chave-mestra, saiu para a pequena plataforma externa que se
projetava na extremidade do convés; meia dúzia de pessoas podiam caber naquele lugar, tendo apenas um baixo
parapeito a separá-las da vasta curva do envoltório – e do chão, milhares de metros abaixo. Era excitante estar ali, e
perfeitamente seguro mesmo quando o dirigível viajava a toda velocidade, pois ficava ao abrigo do vento por trás
da enorme ampola dorsal do convés de observação. Apesar disso, não conviria que os passageiros tivessem acesso
a ela; a vista era por demais vertiginosa.
Os tampos da escotilha dianteira já se haviam aberto como as portas de um gigantesco alçapão e a plataforma
de filmagem pairava acima deles, preparando-se para descer. Ao longo dessa rota, nos anos futuros, viajariam mi-
lhares de passageiros e toneladas de suprimentos. Apenas em raras ocasiões o Queen desceria ao nível do mar para
docar na sua base flutuante.
Uma repentina rajada de través vergastou o rosto de Falcon, que se agarrou com mais força ao corrimão. O
Grand Canyon era notório pela turbulência, conquanto ele não esperasse encontrar muita a essa altitude. Sem
nenhuma ansiedade verdadeira, concentrou a atenção na plataforma que descia, agora a uns cinqüenta metros
acima da nave. Sabia que o operador altamente especializado que dirigia o veículo por controle remoto já havia
executado uma dúzia de vezes essa manobra simples; era inconcebível que ele estivesse lutando com dificuldades.
No entanto, as reações do homem pareciam um pouco lentas. Essa última rajada havia impelido a plataforma
quase até a borda da escotilha aberta. O piloto não podia fazer a correção antes que isso acontecesse?. . . Teria ele
algum problema de controle? Esses controles remotos tinham muitos dispositivos substitutos de múltipla redundân-
cia, à prova de falhas, além de uma porção de sistemas de apoio. Os acidentes eram uma coisa quase inaudita.
Mas lá ia ele de novo, distanciando-se para a esquerda. Seria possível que o piloto estivesse bêbedo? Por
mais improvável que a idéia parecesse, Falcon considerou-a a sério por um momento. Depois levou a mão, ao
comutador do seu microfone.
Mais uma vez, sem aviso, recebeu uma violenta bofetada na face. Quase não a sentiu, pois estava olhando,
horrorizado, para a plataforma de filmagem. O operador distante lutava para recuperar o controle, tentando equili-
brar a plataforma sobre os seus jatos. . . mas tudo que conseguia era agravar a situação. As oscilações continuaram:
vinte graus, quarenta, sessenta, noventa. . .
– Use o automático, cretino! – berrou Falcon inutilmente ao microfone. – O seu controle manual não está
funcionando!
A plataforma virou de borco. Em vez de sustentá-la, os jatos agora a empurravam rapidamente para baixo.
De súbito haviam-se tornado aliados da gravidade, que até esse momento tinham combatido.
Falcon não chegou a ouvir o choque, embora o sentisse, pois já estava no interior do convés de observação,
correndo para o elevador que o conduziria à ponte. Os trabalhadores gritavam ansiosos para ele, indagando o que
acontecera. Muitos meses se passariam antes que ele encontrasse a resposta a essa pergunta.
No momento em que ia entrando na gaiola do elevador, mudou de idéia. Era preferível ir de um modo
seguro, mesmo que isso tomasse mais tempo e o tempo fosse essencial. Começou a descer correndo a escada em
caracol que rodeava o poço do elevador.
No meio do caminho parou por um segundo, a fim de examinar os danos. A maldita plataforma atravessara o
dirigível de lado a lado, rasgando duas das células de gás. Estas ainda se esvaziavam lentamente, em grandes véus
pendentes de plástico. Falcon não se preocupou com a perda da força ascensional: o lastro podia compensá-la facil-
mente, contanto que oito células permanecessem intatas. Muito mais séria era a possibilidade de avaria estrutural.
Já podia ouvir a grande ossatura metálica gemendo e protestando ao seu redor contra as cargas anormais. Não bas-
tava ter suficiente força ascensional; se esta não fosse distribuída de modo adequado, a espinha dorsal da nave se
quebraria.
Tinha recomeçado a sua descida quando um super-chimp, ganindo de medo, baixou pelo poço do elevador,
de mão em mão, pelo lado de fora da treliça. No seu terror,

o pobre animal havia arrancado o uniforme da companhia, talvez numa tentativa inconsciente de recobrar a
liberdade dos seus antepassados.
Falcon, que ainda descia a toda pressa, observou-lhe a aproximação com um certo sentimento de alarma. Um
chimpanzé fora de si era um animal possante e potencialmente perigoso, especialmente se o medo superasse o seu
condicionamento. Ao alcançá-lo, pôs-se a gritar uma fieira de palavras, mas estas se misturavam umas às outras e
Falcon só pôde distinguir um lamentoso e freqüentemente repetido "patrão". Mesmo num momento como aquele,
notou Ealcon, ele se voltava para os humanos em busca de orientação. Sentiu pena do bicho, envolvido num
desastre criado pelo homem, acima da sua compreensão, e pelo qual ele não tinha nenhuma responsabilidade.
O superchimp parou em frente dele, no outro lado da treliça. Nada o impedia de entrar por uma das aberturas
entre as vigas, se assim o desejasse. O rosto do animal estava a poucas polegadas do seu e ele fitava diretamente os
olhos aterrorizados. Nunca estivera tão próximo de um chimpanzé e em situação de estudar-lhe as feições com tão
grande minúcia. Sentiu esse estranho misto de afinidade e mal-estar que todos os homens experimentam quando se
olham assim no espelho do passado.
Sua presença parecia ter acalmado a criatura. Falcon apontou para o alto do poço, depois para trás, na direção
do convés de observação, e disse, em palavras claras e precisas:
– Patrão. . . patrão. . . vai!
Para alívio dele o chimpanzé compreendeu. Fez uma careta que pretendia ser um sorriso, e imediatamente
lançou-se a toda pressa pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Falcon lhe dera o melhor conselho que podia
dar. Se alguma segurança ainda havia a bordo do Queen, era naquela direção. Mas o seu dever apontava para outra.
Havia quase completado a descida quando, com um ruído de metais que se partem, a nave virou o nariz para
baixo e as luzes se apagaram. Mas ele ainda podia enxergar perfeitamente bem, pois um raio de sol penetrava pela
es-cotilha aberta e pelo enorme rasgão no envoltório. Muitos anos atrás, um dia em que estava dentro de uma
grande
catedral, havia observado a luz que se derramava pelos vitrais, formando poças de um esplendor
multicolorido sobre as lájeas antigas. O raio deslumbrante de luz atravessando lá no alto o tecido dilacerado veio
lembrar-lhe aquele momento. Encontrava-se agora numa catedral metálica que se projetava das alturas.
Quando alcançou a ponte de comando e pôde, pela primeira vez, olhar para fora, horrorizou-sé de ver quão
próximo a nave já estava do solo. Não mais de novecentos metros abaixo, viam-se os belos e mortais pináculos de
rocha e os rios de lama vermelha que ainda escavavam o seu caminho no passado. Até onde a vista podia alcançar,
não havia nenhuma área plana onde uma aeronave tão grande com o Queen pudesse pousar equilibradamente.
Um relance de olhos ao painel mostrou-lhe que todo o lastro fora despejado. No entanto, a velocidade de
queda reduzira-se a poucos metros por segundo. Ainda havia uma tênue possibilidade.
Sem dizer palavra, Falcon instalou-se no assento do piloto e assumiu o que ainda restava de controle. O
painel de instrumentos mostrava-lhe tudo que desejava saber; falar era supérfluo. Às suas costas, podia ouvir o
oficial de comunicações fazendo um relato pelo rádio. A essa hora todos os canais noticiosos da Terra estariam
tomados e ele pôde imaginar a completa frustração dos controladores de programa. Estava acontecendo um dos
desastres mais espetaculares da história, sem uma só câmara para registrá-lo. Os últimos momentos do Queen não
encheriam milhões de espanto e terror como haviam feito os do Hindenburg, um século e meio atrás.
Agora o solo se encontrava a uns quinhentos metros de distância apenas, ainda se aproximando
vagarosamente. Se bem que ainda dispusesse da plena força de propulsão, ele não ousara empregá-la, receando que
a estrutura enfraquecida cedesse; mas compreendeu, então, que não tinha alternativa. O vento arrastava-os na
direção de uma for-quilha do canyon, onde o rio era dividido em dois por uma cunha de rocha semelhante à proa de
algum gigantesco e fossilizado navio de pedra. Se o Queen prosseguisse no seu rumo atual, iria cavalgar aquele
platô triangular, pou-
saria com, pelo menos, um terço do seu comprimento projetando-se sobre o vazio, e se partiria como um
galho podre.
A distância, sobrepondo-se ao ranger de metais e ao silvo dos escapes de gás, ouviu-se o estridor dos jatos
quando Falcon abriu os propulsores laterais. A nave vacilou e começou a virar para bombordo. O fragor dos metais
que se partiam era, agora, quase contínuo – e a velocidade de queda começara a aumentar assustadoramente. Um
olhar ao painel de controle de avarias mostrou que a célula número 5 acabava de romper-se.
O solo estava apenas a alguns metros de distância. Mesmo nesse momento, ele não saberia dizer se a sua ma-
nobra lograra êxito ou falhara. Deslocou os vectores de propulsão para a vertical, dando um máximo de força as-
censional à aeronave para reduzir a força do impacto.
O choque pareceu durar uma eternidade. Não foi violento – apenas prolongado, e irresistível. Dir-se-ia que
todo o universo estava desabando em volta deles.
O ruído de metais destroçados aproximou-se, como se um animal fabulosamente grande estivesse ferrando os
dentes na nave moribunda.
Foi então que assoalho e teto se fecharam sobre ele como as duas mandíbulas de um torno.
2. "Porque ele está lá"
– Por que você quer ir a Júpiter?
– Como disse Springer quando partiu para Plutão: "Porque ele está lá".
– Obrigado. E, agora que isso foi dito. . . vejamos a verdadeira razão.
Howard Falcon sorriu, embora só aqueles que o conheciam bem pudessem interpretar a leve careta do rosto
coriáceo. Webster era um desses; havia mais de vinte anos que andavam envolvidos nos projetos um do outro.
Tinham compartilhado triunfos e desastres – inclusive o maior desastre de todos.
– Bem, o clichê de Springer ainda é válido. Já pousamos em todos os planetas sólidos, mas em nenhum dos
gigantes gasosos. Eles são o único desafio verdadeiro que ainda resta no sistema solar.
– Um desafio dispendioso. Você calculou os custos?
– Tão bem quanto podia. Aqui estão as estimativas. Mas lembre-se: esta não é uma missão isolada, e sim um
sistema de transporte. Depois que o tivermos testado com êxito, poderá ser usado quantas vezes se quiser. E ele
abrirá não somente Júpiter, mas todos os gigantes.
Webster olhou as cifras e soltou um assobio. , – Por que não começar por um planeta mais fácil. . . Urano,
por exemplo? Metade da gravidade e menos da metade da velocidade de escape. Uma atmosfera mais tranqüila,
também... se essa é a palavra apropriada.
Não havia dúvida de que Webster havia feito os seus estudos em casa. Mas por isso mesmo, evidentemente,
ele era chefe do serviço de planejamento para longas distâncias.
– A economia é muito pouca, quando se faz o desconto da distância maior e dos problemas de logística. Para
Júpiter, podemos aproveitar as facilidades de Ganímedes. Além de Saturno, teríamos que estabelecer uma nova
base de suprimentos.
Isto tem lógica, pensou Webster; mas tinha certeza de que não era a razão mais importante. Júpiter era o rei
do sistema solar; Falcon não se interessaria por um desafio de menor vulto.
– Além disso – continuou Falcon –, Júpiter é um grande escândalo científico. Há mais de cem anos que fo-
ram descobertas as suas tempestades de rádio, mas ainda não descobrimos a causa desse fenômeno; e a Grande
Mancha Vermelha é um mistério tão escuro como sempre. Por isso mesmo pude conseguir fundos do
Departamento de Astronáutica. Você sabe quantas sondas já fizeram descer naquela atmosfera?
– Umas duzentas, creio.
– Trezentas e vinte e seis, nestes últimos cinqüenta anos. . . e mais de um quarto delas foram malogros totais.
Naturalmente, aprendeu-se muita coisa, mas isso não representa mais do que um pequeno arranhão na superfície do
planeta. Você faz idéia do tamanho dele?
- Mais de dez vezes o da Terra.
– Sim, sim. . . mas você sabe o que isso realmente significa?
Falcon apontou o grande globo a um canto do escritório de Webster.
– Veja a índia, como parece pequena. Pois bem, se você descascasse a Terra e a espalhasse sobre a superfície
de Júpiter, ela pareceria tão pequena quanto a Índia parece ali.
Houve um longo silêncio enquanto Webster considerava a equação: Júpiter está para a Terra como a Terra
está para a índia. Falcon havia – propositalmente, é claro – escolhido o melhor exemplo possível. . .
Fazia já dez anos? Sim, devia fazer. O desastre fora há sete anos passados (essa data ficara gravada no seu
coração), e os testes iniciais tinham ocorrido três anos antes do primeiro e último vôo do Queen Elizabeth.
Há dez anos, pois, o comandante (não, tenente) Falcon o convidara para uma pré-estréia – um giro de três
dias sobre as planícies setentrionais da índia, com o Himalaia à vista.
– Segurança perfeita – prometera ele. – Isso o arrancará ao seu escritório e lhe mostrará exatamente de que
se trata.
Webster não se decepcionara. Depois da sua primeira viagem à Lua, essa tinha sido a experiência mais
memorável da sua vida. A ascensão se fizera num silêncio total: nada daqueles clamorosos combustores de
propano que faziam subir os balões de ar quente de uma época anterior. Todo o calor de que necessitavam provinha
do pequeno reator de fusão intermitente, o qual pesava cerca de cem quilos, fixado na abertura do envoltório.
Enquanto subiam, o seu laser pulsava dez vezes por segundo, inflamando uma diminuta quantidade de combustível
deutérico. Depois de alcançarem a altura desejada, esse ritmo se reduzia a poucas pulsações por minuto, a fim de
compensar o calor perdido pela irradiação da grande bolsa de gás lá em cima.
E assim, mesmo quando se achavam a quase uma milha acima do solo podiam ouvir cães a latir, gente
gritando, sinos tangendo. Pouco a pouco, o vasto panorama fustigado pelo sol foi se expandindo em redor deles.
Duas horas mais tarde haviam nivelado o dirigível a quatro mil e oito-
centos metros de altura e tomavam freqüentes haustos de oxigênio. Podiam relaxar e admirar o cenário; a
instrumentação de bordo fazia todo o trabalho – coligir a informação que seria necessária aos projetistas da grande
nau aérea ainda sem nome.
Era um dia perfeito. A monção de sudoeste não cessaria de soprar antes que se passasse um mês ainda e
quase não havia nuvens no céu. Era como se o tempo houvesse parado; eles se agastavam com os boletins horários
do rádio que vinham interromper o seu devaneio. E por todos os lados, até o horizonte e ainda muito além,
desdobrava-se aquela infinita, antiga paisagem encharcada de história – uma colcha de retalhos feita de aldeias,
campos, templos, lagos, canais de irrigação. . .
Com um verdadeiro esforço, Webster rompeu a fascinação hipnótica dessa memória de dez anos atrás. Ela o
convertera ao mais-leve-do-que-o-ar e o fizera sentir o enorme tamanho da índia, mesmo num mundo que podia ser
contornado em noventa minutos. E contudo, repetiu ele de si para si, Júpiter está para a Terra como a Terra está
para a Índia.. .
– Admitido o seu argumento – disse – e supondo-se que os fundos estejam disponíveis, há ainda uma per-
gunta a que você terá de responder. Por que você faria melhor do que as... quantas são?... as trezentas e vinte e seis
sondas-robôs que já realizaram a viagem?
– Eu estou mais habilitado do que elas, como observador e como piloto. Especialmente como piloto. Não es-
queça: eu tenho mais experiência de vôo mais leve que o ar do que qualquer outra pessoa no mundo.
– Você podia servir como controlador e ficar tranqüilamente sentado em Ganímedes.
– Mas o ponto é justamente esse! Isso eles já fizeram. Não se lembra do que destruiu o Queen?
Webster sabia perfeitamente, mas limitou-se a responder:
– Continue.
– Retardamento, retardamento! Aquele idiota do controlador da plataforma pensava estar usando um radio-
circuito local. Não sabia que tinha sido conectado acidentalmente com um satélite. . , Oh! talvez não fosse culpa
dele, mas devia ter notado. Isso dava um retardamento de meio segundo para a viagem de ida e volta. Mesmo
assim, não teria importância se estivéssemos voando num ar tranqüilo. Foi a turbulência acima do Grand Canyon
que causou tudo. Quando a plataforma se inclinou e o controlador fez a correção, ela já se havia inclinado no
sentido contrário. Você já experimentou dirigir um carro numa estrada sacolejante, com meio segundo de atraso no
acionamento da roda?
– Não, nem tenciono experimentar. Mas posso imaginar o que isso seria.
– Bem, Ganímedes está a um milhão de quilômetros de Júpiter. Isso significa um retardamento de seis
segundos para a viagem de ida e volta. Não: o que nós precisamos é de um controlador no próprio local, para
atender em tempo às emergências. Vou lhe mostrar uma coisa. Posso usar isto?
– À vontade.
Falcon apanhou um postal em cima da mesa de Webster. Os postais tinham-se tornado quase obsoletos na
Terra, mas esse mostrava uma vista em três dimensões de uma paisagem marciana e estava decorado com selos
exóticos e caros. Segurou-o no ar, fazendo-o pender verticalmente.
– Este é um velho experimento, mas ajuda a esclarecer o meu ponto de vista. Coloque o seu polegar e indica-
dor de cada lado, mas sem tocá-lo. Assim, muito bem.
Webster havia estendido a mão, quase – mas apenas quase – segurando o postal.
– Agora segure-o.
Falcon esperou alguns segundos; depois, sem aviso, largou o cartão. O polegar e o indicador de Webster
fecharam-se sobre o ar vazio.
– Vou fazer isto mais uma vez, só para mostrar que não há truque. Está vendo?
Novamente, o cartão em sua queda havia escorregado entre os dedos de Webster.
– Agora experimente comigo.
Desta vez foi Webster que apanhou o cartão e deixou-o cair sem aviso. Mal se havia movido quando Falcon
o segurou. Webster teve quase a impressão de ouvir um estalido, tão rápida foi a reação do outro.
– Quando tornaram a juntar os meus pedaços – disse Falcon numa voz inexpressiva – os cirurgiões intro-
duziram alguns aperfeiçoamentos. Este é um deles... e há outros. Quero tirar todo proveito deles. Júpiter é o lugar
indicado para isso.
Webster fitou por alguns longos momentos o cartão caído na mesa, absorto nas cores improváveis da escarpa
do Trivium Charontis. Depois disse pausadamente:
– Compreendi. Quanto tempo você acha que isso vai tomar?
– Com a sua colaboração, mais a do departamento, mais todas as fundações científicas que conseguirmos
convencer. . . oh! uns três anos. Depois, mais um ano para os ensaios, pois será preciso enviar pelo menos dois
modelos para teste. No total... se a sorte nos sorrir. . . cinco anos.
– Isso concorda mais ou menos com os meus cálculos. Espero que você tenha essa sorte. Bem o merece. Mas
há uma coisa que eu não farei.
– Qual é?
– Na próxima vez que voar de balão, não conte comigo como passageiro.
3. O mundo dos deuses
A queda de Júpiter V ao próprio Júpiter leva apenas três horas e meia. Poucos homens poderiam ter dormido
numa viagem tão atemorizadora. O sono era uma fraqueza que Howard Falcon detestava, e o pouco de que ainda
necessitava trazia consigo pesadelos que o tempo não conseguira esconjurar. Mas não podia contar com repouso
nos três dias que tinha pela frente e devia aproveitar o ensejo que se lhe oferecia agora, durante a longa queda
naquele oceano de nuvens, cerca de cem mil quilômetros abaixo.
Logo que o Kon-Tiki entrou em órbita e todas as indicações do computador foram satisfatórias, ele se
preparou para o último sono que talvez tivesse em sua vida. Pareceu muito apropriado que quase no mesmo
instante Júpiter eclipsasse o Sol, pequenino e brilhante, e ele entrasse na monstruosa sombra do planeta. Por alguns
minutos, um
estranho crepúsculo dourado envolveu a nave; depois a quarta parte do céu converteu-se num buraco
absolutamente negro, enquanto o resto coruscava de estrelas. Por mais longe que se viajasse através do sistema
solar, elas nunca mudavam; essas mesmas constelações brilhavam agora sobre a Terra, a centenas de milhões de
quilômetros dali. As únicas novidades eram os pequenos e pálidos crescentes de Calipso e Ganímedes; havia, é
claro, uma dúzia de outras luas naquele céu, mas eram pequeninas e distantes demais para poderem ser distinguidas
pela vista desarmada.
– Vou suspender as atividades por duas horas – comunicou à nave-mãe, que pairava uns mil e quinhentos
quilômetros acima de Júpiter V, na sombra de radiação do diminuto satélite. Ainda que nunca servisse a outra fi-
nalidade útil, Júpiter V era um buldôzer cósmico a varrer perpetuamente as partículas carregadas que tornavam
mal-sãs as proximidades de Júpiter. Sua esteira era quase isenta de radiações e uma astronave podia estacionar ali
em perfeita segurança, enquanto a morte riscava o espaço em redor como um granizo invisível.
Falcon ligou o indutor de sono e a consciência desvaneceu-se rapidamente sob os suaves impulsos elétricos
que lhe perpassavam o cérebro. Enquanto o Kon-Tiki caía na direção de Júpiter, ganhando velocidade a cada
segundo naquele enorme campo gravitacional, ele dormiu um sono sem sonhos. Estes sempre vinham quando
acordava; e trouxera os seus pesadelos da Terra consigo.
Todavia, nunca sonhava com a queda em si mesma, embora tornasse muitas vezes a encontrar-se face a face
com o aterrorizado superchimp, ao descer a escada espiral entre as bolsas de gás que se esvaziavam. Nenhum dos
chimpanzés tinha sobrevivido; os que não morreram logo estavam tão gravemente feridos que fora preciso "eutana-
siá-los". Às vezes Falcon se perguntava por que sonhava exclusivamente com essa criatura condenada – que ele
desconhecia por completo antes dos últimos minutos de sua vida – e não com os amigos e colegas que perdera a
bordo do moribundo Queen.
Os sonhos que mais temia começavam sempre com seu primeiro retorno à consciência. A dor física fora
pouca; não tinha, aliás, sensações de espécie alguma. Achava-se
na escuridão e no silêncio, e nem sequer parecia respirar. E o mais estranho de tudo era que não podia
localizar os seus membros. Não podia mover nem as mãos, nem os pés, porque não sabia onde eles estavam.
O silêncio tinha sido o primeiro a ceder. Depois de horas, ou dias, começara a sentir um débil latejo e por
fim, tendo refletido longamente, concluiu que aquilo eram as batidas do seu próprio coração. Esse foi o primeiro de
seus
muitos erros.
Depois, houvera alfinetadas mal-e-mal perceptíveis, centelhas de luz, fantasmas de pressões sobre os seus
membros ainda inertes. Um a um, os seus sentidos haviam voltado, e com eles a dor. Teve de aprender tudo de
novo, recapitulando infância e primeira infância. Se bem que a memória permanecesse incólume e ele
compreendesse as palavras que lhe diziam, meses se passaram antes que pudesse responder de outro modo que não
fosse com um bater de pálpebras. Lembrava-se dos momentos de triunfo quando pronunciara a primeira palavra,
virará a página de um livro – e, finalmente, aprendera a mover-se pelas suas próprias forças. Essa fora realmente
uma vitória, só conquistada ao cabo de dois anos. Invejara cem vezes o chim-panzé morto, mas a ele não fora dado
escolher. Os médicos haviam tomado a sua decisão – e agora, doze anos depois, ele se encontrava num lugar onde
nenhum ser humano estivera antes, e viajava mais rapidamente que qualquer homem na história.
Nesse momento o Kon-Tiki ia saindo da sombra e o dia jupiteriano, no alto, era como uma ponte a cruzar o
céu com o seu titânico arco de luz, quando o zumbido persistente do despertador arrancou Falcon ao sono. Os
inevitáveis pesadelos (queria chamar uma enfermeira, mas não tinha força nem para apertar o botão)
desapareceram rapidamente da consciência. Tinha agora diante de si a maior – e talvez a última – aventura de sua
vida.
Chamou o controle da missão, de que agora o separavam quase cem mil quilômetros e que dentro em pouco
iria desaparecer por trás da orla de Júpiter, para informar que tudo estava em ordem. Sua velocidade acabava de
ultrapassar cinqüenta quilômetros por segundo (um novo recorde) e em meia hora o Kon-Tiki atingiria o limite
superior da
atmosfera, executando a mais difícil entrada de todo o sistema solar. Embora vintenas de sondas houvessem
sobrevivido a essa prova de fogo, eram rijas e compactas massas de instrumental, capazes de resistir ao arrasto de
várias centenas de gravidades. O Kon-Tiki atingiria máximos de trinta gravidades e faria, em média, mais de dez,
antes de pousar nas camadas superiores da atmosfera jupiteriana. Com muito cuidado, meticulosamente, Falcon
começou a aplicar o complicado sistema de retentores que o ancorariam à parede da cabina. Quando terminou era
virtualmente uma parte da estrutura da nave. O relógio contava para trás; cem segundos para a entrada. Estava
lançada a sorte. Dentro de um minuto e meio roçaria pela atmosfera de Júpiter e seria apanhado irrevogavelmente
pelo gigante. A contagem regressiva levava três minutos de atraso
– o que não era nada mau, considerando-se as incógnitas envolvidas no problema. Além das paredes da
cápsula ouviu-se um suspiro espetral que foi crescendo, crescendo, até se transformar num clamor estrídulo. O
ruído era bem diferente do que se ouvia ao penetrar na atmosfera da Terra ou de Marte; nessa tênue atmosfera de
hidrogênio e hélio, todos os sons eram transpostos para duas oitavas acima. Em Júpiter, até o trovão teria
ressonâncias de falsete.
Com o crescer do estridor veio o aumento de peso; em questão de segundos, ele ficou completamente
imobilizado. Seu campo de visão contraiu-se até abranger apenas o relógio e o acelerômetro; quinze gravidades, e
ainda quatrocentos segundos de queda...
Nem por um segundo perdeu a consciência; mas também não esperava que isso acontecesse. O rasto do Kon-
Tiki na atmosfera jupiteriana devia ser algo de espetacular
– a essa altura, mediria milhares de quilômetros de comprimento. Quinhentos segundos após a entrada, o
arrasto começou a diminuir: dez, cinco, duas gravidades. . . Então o peso. desapareceu quase por completo. Ele
estava caindo livremente, com toda a sua enorme velocidade orbital anulada.
Houve um solavanco repentino quando Falcon alijou os restos incandescentes do escudo antitérmico. Ele
cumprira a sua missão e não seria mais necessário; ficaria para Júpiter, agora. Falcon desprendeu todos os cintos
que o se-
guravam, menos dois, e esperou que o seqüenciador automático desse início à fase seguinte, a mais crítica de
todas. Não viu abrir-se o primeiro pára-quedas, mas pôde sentir o leve empuxão, e a velocidade da queda diminuiu
imediatamente. O Kon-Tiki perdera toda a sua velocidade horizontal e caía verticalmente a quase mil milhas por
hora. Tudo dependia do que acontecesse nos próximos sessenta
segundos.
O segundo pára-quedas abriu-se. Falcon olhou pela janela superior e viu, com imenso alívio, que nuvens de
cintilantes folhas metálicas se expandiam, fazendo barriga atrás da nave cadente. Como uma grande flor que desa-
brochasse, os milhares de metros cúbicos do balão desdobraram-se no céu, colhendo o gás tênue, até que ficou
completamente inflado. A velocidade de queda do Kon-Tiki baixou a poucas milhas por segundo e estabilizou-se.
Agora havia tempo de sobra; ele levaria dias a cair até a superfície de Júpiter.
Mas acabaria por chegar lá, mesmo que não fizesse nada. O balão, lá no alto, funcionava apenas como um
eficiente pára-quedas. Não dava nenhuma força ascensio-nal, nem isso era possível enquanto o gás fosse o mesmo
no interior e no exterior.
Com o seu estalido característico e um pouco descon-certante, o reator de fusão começou a funcionar, derra-
mando torrentes de calor no envoltório lá em cima. Em cinco minutos a velocidade de queda baixou a zero; em
seis, a cápsula começou a subir. De acordo com o altímetro do radar, ela se estabilizara a cerca de quatrocentos e
vinte e sete quilômetros acima da superfície – ou o que quer que se pudesse considerar como uma superfície em
Júpiter.
Somente uma espécie de balão pode funcionar numa atmosfera de hidrogênio, que é o mais leve dos gases –
e esse é um balão de hidrogênio quente. Enquanto o fusor continuasse trabalhando, Falcon poderia flutuar à deriva
naquele mundo que podia conter uma centena de Pacíficos. Depois de percorrer uns quinhentos milhões de
quilômetros, o Kon-Tiki finalmente começara a justificar o seu nome. Era uma balsa aérea, derivando sobre as
correntes da atmosfera jupiteriana.
Embora todo um mundo novo se estendesse à sua vol-
ta, somente mais de uma hora depois Falcon pôde observar o panorama, Primeiro tinha que verificar o
funcionamento de todos os sistemas da cápsula e testar a sua resposta aos controles. Precisava saber quanto calor
adicional era necessário para produzir a desejada força ascensional e quanto gás devia sangrar a fim de descer.
Acima de tudo, havia a questão da estabilidade. Devia ajustar o comprimento dos cabos que ligavam a sua cápsula
ao enorme balão piriforme, para amortecer as vibrações e obter o deslocamento mais suave possível. Até aí tivera
sorte; naquelas altitudes o vento era constante e o efeito Doppler na superfície invisível indicava uma velocidade
de trezentos e setenta e oito quilômetros ao nível do solo. Para Júpiter, isso era modesto; ventos de até mil e
seiscentos quilômetros tinham sido observados. Mas a simples velocidade, naturalmente, não tinha importância; o
verdadeiro perigo estava na turbulência. Se viesse a encontrá-la só a habilidade, a experiência e as reações
instantâneas o poderiam salvar – e essas eram coisas que ainda não podiam ser programadas num computador.
Somente após convencer-se de que estava completamente identificado com o seu estranho veículo foi que
Falcon escutou os rogos do controle da missão. Desdobrou então as lanças portadoras do instrumental e os
coletores de amostras atmosféricas. A cápsula semelhava agora uma árvore de Natal pintada por Picasso, mas
assim mesmo singrava com suavidade os ventos de Júpiter, ao mesmo tempo que irradiava torrentes de informação
para os regis-tradores da nau distante. E agora, finalmente, ele podia olhar em derredor. . .
Sua primeira impressão foi inesperada, e mesmo um pouco decepcionante. No que respeitava à escala das
coisas, era como se estivesse navegando de balão sobre uma paisagem ordinária de nuvens na Terra. O horizonte
parecia achar-se a uma distância normal; não tinha nenhuma sensação de encontrar-se num mundo com um
diâmetro onze vezes maior do que o seu. Olhou, então, para o radar infravermelho que sondava as camadas
atmosféricas abaixo dele – e compreendeu o quanto seus olhos tinham sido enganados.
Aquela camada de nuvens, aparentemente a uns cinco
quilômetros, estava, em realidade, mais de sessenta quilômetros abaixo. E o horizonte, cuja distância ele teria
estimado em uns duzentos, desdobrava o seu arco a dois mil e novecentos quilômetros da cápsula.
A claridade cristalina da atmosfera de hidro-hélio e a enorme curvatura do planeta o tinham iludido
completamente. Era ainda mais difícil avaliar distâncias aqui do que na Lua; tudo que ele via devia ser
multiplicado ao menos por dez.
, Tratava-se, afinal, de um fenômeno simples, e devia estar preparado para ele. Contudo, de certo modo
perturbava-o profundamente. Não sentia Júpiter como enorme, mas sim que ele mesmo havia encolhido – a um
décimo do seu tamanho normal. Talvez, com o tempo, se acostumasse à escala inumana desse mundo; todavia,
contemplando aquele horizonte incrivelmente distante, sentia como se um vento mais fresco do que a atmosfera
circundante soprasse através da sua alma. A despeito dos seus argumentos, talvez aquele nunca viesse a ser um
lugar para o homem. Era bem possível que ele fosse o primeiro e o último homem a descer através das nuvens de
Júpiter.
O céu, no alto, seria quase preto se não fossem alguns fiapos de nuvens amoniacais, talvez uns vinte
quilômetros acima dele. Fazia frio lá em cima, nas franjas do espaço, mas tanto a pressão como a temperatura
aumentavam rapidamente com a profundidade. No nível em que pairava agora o Kon-Tiki, a temperatura era de
cinqüenta graus abaixo de zero e a pressão de cinco atmosferas. Cem quilômetros mais abaixo, faria tanto calor
como na Terra equatorial e a pressão seria mais ou menos a mesma que no fundo dos mares mais rasos. Condições
ideais para a vida. . .
Uma quarta parte do breve dia jupiteriano já havia passado; o sol ia na metade da sua trajetória ascendente,
mas a luz sobre a ininterrupta paisagem de nuvens lá embaixo tinha uma curiosa qualidade crepuscular. Os qui-
nhentos milhões de quilômetros adicionais haviam roubado toda a força ao Sol. Embora o céu estivesse límpido,
Falcon não podia desfazer-se da impressão de que aquele era um dia totalmente nublado. Quando caísse a noite, o
advento das trevas seria muito rápido; embora fosse ainda de ma-
nhã, havia no ar uma sensação de pôr-de-sol outonal. Mas o outono, naturalmente, era uma coisa que jamais
acontecia em Júpiter. Ali não havia estações.
O Kon-Tiki tinha descido no centro exato da zona equatorial, a parte menos colorida do planeta. O mar de
nuvens que se alongava até o horizonte tinha um matiz salmão pálido – nada daqueles amarelos, róseos e mesmo
vermelhos que cintavam Júpiter em latitudes mais altas. A própria Grande Mancha Vermelha, a mais espetacular
de todas as características do planeta, ficava milhares de quilômetros ao sul. Fora uma tentação para ele descer ali,
mas a turbulência do trópico meridional era excepcionalmente ativa, com ventos que atingiam mil e quinhentos
quilômetros horários. Penetrar naquele maelstrom de forças desconhecidas seria tentar o Diabo. A Grande Mancha
Vermelha e seus mistérios teriam de esperar pelas expedições futuras.
O Sol, movendo-se através do céu duas vezes mais depressa do que o fazia na Terra, aproximava-se agora do
zênite e fora eclipsado pelo imenso dossel de prata do balão. O Kon-Tiki ainda se deslocava com rapidez e
suavidade na direção oeste, a uma velocidade uniforme de trezentos e quarenta e oito quilômetros, mas somente o
radar dava qualquer indicação desse fato. Reinaria sempre ali aquela calma?, perguntou Falcon a si mesmo. Os
cientistas que tinham falado com tanta erudição dos doldrums jupiteria-nos, predizendo que o equador seria a
região mais tranqüila, pareciam, afinal de contas, ter razão. Ele havia encarado com profundo ceticismo todos esses
prognósticos e concordado com um pesquisador excepcionalmente modesto que lhe dissera: "Não há especialistas
sobre Júpiter" Bem, pelo menos haveria um no fim dessa jornada.
Se ele conseguisse sobreviver até lá.
4. As vozes do abismo
Nesse primeiro dia, o Pai dos Deuses sorriu-lhe. O tempo estava tão calmo e sereno ali em Júpiter como anos
atrás, quando ele viajara com Webster acima das planícies "" índia setentrional. Falcon tivera tempo para dominar
as suas novas habilidades, a tal ponto que o Kon-Tiki parecia ser uma extensão do seu corpo. Tanta sorte era
mais do que ele ousara esperar, e começava a perguntar-se que preço teria de pagar por ela.
As cinco horas de luz diurna haviam quase terminado; as nuvens, lá embaixo, estavam cheias de sombras que
lhes davam uma solidez maciça bem diferente da sua aparência quando o sol se encontrava mais alto. A cor ia
desaparecendo rapidamente do céu, com exceção do próprio ocidente, onde uma faixa de violeta cada vez mais
carregado se estendia ao longo do horizonte. Acima dessa faixa pairava o delgado crescente de uma lua mais
próxima, pálida e alvacenta contra o negror absoluto do fundo.
Com uma rapidez perceptível ao olhar, o Sol desceu verticalmente sobre a orla de Júpiter, dois mil e
novecentos quilômetros além. Legiões de estrelas surgiram – e entre elas a bela estrela Vésper da Terra, na própria
fronteira do crepúsculo, lembrando-lhe quão longe se encontrava da sua pátria. A Terra seguiu o Sol em seu
mergulho no poente. A primeira noite do homem em Júpiter havia começado.
Com a vinda da escuridão, o Kon-Tiki começou a baixar. O balão, que já não era aquecido pelo fraco calor
diurno, ia perdendo uma parte da sua flutuabilidade. Falcon nada fez para aumentar a força ascensional; esperava
por isso e estava planejando descer.
O invisível lençol de nuvens continuava cinqüenta quilômetros abaixo e ele o alcançaria por volta da meia-
noite. Era claramente perceptível no radar infravermelho, o qual também registrou que ele continha uma imensa
variedade de complexos compostos de carbono, além do hidrogênio, hélio e amônia usuais. Os químicos estavam
doidos por obter amostras daquela matéria rósea e algodoada; embora algumas sondas atmosféricas já houvessem
colhido uns poucos gramas, isso não fizera mais do que aguçar-lhes o apetite. A metade das moléculas básicas da
vida estavam presentes ali, flutuando muito acima da superfície de Júpiter. E onde havia alimento, podia a vida
andar longe? Essa era a pergunta a que, fazia mais de um século, ninguém podia responder.
O infravermelho era bloqueado pelas nuvens, mas o
radar de microonda atravessava-as como uma navalha, mostrando camada após camada até a superfície
oculta, quase quatrocentos quilômetros abaixo. Ali, chocava-se com o obstáculo das enormes pressões e
temperaturas; nem as próprias sondas-robôs jamais haviam conseguido alcançá-las intatas. Lá estava ela,
inacessível e tantalizante, no fundo da tela de radar, levemente penugenta e mostrando uma curiosa estrutura
granular que o equipamento de Falcon não podia resolver.
Uma hora depois de entrar o Sol ele lançou a primeira sonda. Esta caiu cerca de cem quilômetros e ficou a
flutuar na atmosfera mais densa, enviando torrentes de rádio-sinais que ele retransmitia ao controle da missão.
Depois disso não houve mais nada que fazer, exceto vigiar a velocidade de descida, monitorar os instrumentos e
responder a perguntas ocasionais. Enquanto era levado por aquela corrente constante, o Kon-Tiki podia cuidar de si
mesmo.
Pouco antes da meia-noite, uma controladora entrou em serviço e apresentou-se com os gracejos
costumeiros. Dez minutos depois ela tornou a chamar, numa voz ao mesmo tempo séria e alvoroçada:
– Howard! Sintonize o canal quarenta e seis – alta amplificação.
Canal quarenta e seis? Havia tantos circuitos de tele-metragem que ele só conhecia os números dos mais
importantes; mas reconheceu este assim que encaixou o comu-tador. Estava ouvindo o microfone da sonda, que
flutuava a mais de cem quilômetros abaixo dele, numa atmosfera quase tão densa, agora, quanto a água.
A princípio, nada lhe chamou a atenção além de um suave assobio: seriam os estranhos ventos que deviam
soprar nas trevas inferiores daquele mundo inimaginável. De repente, começou pouco a pouco a destacar-se desse
ruído de fundo uma vibração reboante que se tornou cada vez mais intensa, como as batidas de algum tambor
gigantesco. Era tão grave que se sentia tanto quanto se ouvia, e a freqüência das batidas aumentava gradualmente,
embora o tom permanecesse inalterado. Por fim tornou-se um rápido latejar quase infra-sônico. E de repente, no
meio de uma vibração, parou – de maneira tão abrupta que a mente não pôde aceitar o silêncio, mas a memória
continuou a
fabricar um eco fantasmático nas mais profundas cavernas do cérebro.
Era o som mais extraordinário que Falcon já tinha ouvido, mesmo entre os ruídos inumeráveis da Terra. Não
podia conceber nenhum fenômeno natural que fosse capaz de causá-lo; e tampouco se assemelhava ao grito de
qualquer animal, nem mesmo de uma das grandes baleias. ..
O som recomeçou, seguindo exatamente o mesmo padrão. Agora que estava preparado para ele, Falcon
calculou a duração da seqüência; da primeira pulsação até o crescendo final, ela durava pouco mais de dez
segundos.
E desta vez houve um eco real, muito fraco e longínquo. Talvez proviesse de uma das camadas refletoras,
mais abaixo naquela atmosfera estratifiçada; talvez de outra fonte, mais distante. Falcon esperou um segundo eco,
que não veio.
O controle da missão reagiu imediatamente, pedindo-lhe que lançasse sem demora outra sonda. Com dois
microfones em operação, seria possível localizar aproximadamente as fontes. O estranho, porém, é que os
microfones exteriores do próprio Kon-Tiki não haviam detectado coisa alguma além dos sonidos de vento. Os
ribombos, fossem lá o que fossem, deviam ter sido captados e canalizados por baixo de uma camada atmosférica
refletora muito inferior.
Não tardaram a descobrir que eles provinham de um grupo de fontes, a cerca de mil e novecentos
quilômetros. A distância não dava nenhuma indicação quanto à potência dessas fontes; nos oceanos da Terra, sons
bastante fracos podem chegar igualmente longe. E quanto à pressuposição óbvia de que eles proviessem de
criaturas vivas, o exo-biologista-chefe não hesitou em afastá-la.
– Ficarei muito desapontado se não houver micror-ganismos ou plantas aí – disse o dr. Brenner. – Nada,
porém, que se assemelhe a animais, porque não existe oxigênio livre. Todas as reações bioquímicas em Júpiter
devem ser de baixa energia: uma criatura ativa simplesmente não teria meio de gerar força suficiente para fun-
cionar.
Isso seria verdade?, pensou Falcon. Já tinha ouvido antes o argumento e reservava o seu juízo.
– Seja como for – continuou Brenner –, algumas
dessas ondas sonoras têm cem metros de comprimento! Nenhum animal do tamanho de uma baleia poderia
produzi-las. Têm que provir de uma fonte natural.
Sim, isso parecia plausível, e era provável que os físicos pudessem achar uma explicação. Como reagiria um
cego, perguntou-se Falcon, que pela primeira vez fosse conduzido à praia, diante de um mar borrascoso, ou às
vizinhanças de um gêiser, de um vulcão ou de uma catarata? Era bem possível que atribuísse esses sons a algum
animal fabulosamente grande.
Cerca de uma hora antes do nascer do sol as vozes do abismo se calaram e Falcon começou a ocupar-se com
os preparativos para a alvorada do seu segundo dia. Agora, o Kon-Tiki estava apenas cinco quilômetros acima da
camada de nuvens mais próxima; a pressão exterior subira a dez atmosferas e a temperatura era tropical: trinta
graus. Um homem podia sentir-se a gosto ali, sem mais equipamento que uma máscara de respiração e uma mistura
heliox na proporção apropriada.
– Temos uma boa notícia para você – informou o controle da missão pouco depois de raiar o dia. – A
camada de nuvens está se rompendo. Dentro de uma hora você terá uma visão parcialmente desimpedida; mas
acau-tele-se com a turbulência.
– Já notei alguma – respondeu Falcon. – Até onde poderei enxergar para baixo?
– Pelo menos vinte quilômetros, até a segunda ter-moclinal. Essa cobertura de nuvens é compacta; nunca se
rompe.
"E está fora do meu alcance", disse Falcon de si para si; a temperatura, lá, devia ser de mais de cem graus.
Essa era a primeira vez que um aeronauta devia preocupar-se, não com o seu teto, mas com o seu subsolo!
Dez minutos depois, pôde ver o que o controle da missão já havia discernido do seu ponto de observação
mais vantajoso: uma mudança de cor próximo do horizonte, onde a camada de nuvens se tornara irregular e cheia
de bossas, como se alguma coisa a houvesse rasgado. Ligou a sua pequena fornalha nuclear e deu ao Kon-Tiki mais
cinco quilômetros de altitude, a fim de obter uma visão melhor.
O céu, embaixo, ia clareando rapidamente e por completo, como se alguma coisa dissolvesse o compacto teto
de nuvens. Um abismo se abria diante dos seus olhos. Um momento depois ele estava sobrevoando um canyon
entre as nuvens, com cerca de vinte quilômetros de profundidade e mil de largura.
Um novo mundo se espraiava abaixo dele; Júpiter havia retirado um de seus muitos véus. A segundo camada
de nuvens, inatingivelmente longínqua lá embaixo, tinha uma cor muito mais escura do que a primeira. Era quase
salmão, e curiosamente mosqueada de pequenas ilhas de um vermelho-tijolo. Todas elas tinham uma forma oval,
com os eixos mais longos sobre a linha leste–oeste, na direção do vento predominante. Eram centenas, todas mais
ou menos do mesmo tamanho, e lembravam a Falcon os pequenos cúmulos algodoados do céu terrestre.
Reduziu a flutuabilidade e o Kon-Tiki começou a descer ao longo da face da penedia em processo de
dissolução. Foi então que notou a neve.
Flocos brancos formavam-se no ar e desciam lentamente, arrastados pelo vento. No entanto, fazia muito calor
para nevadas – e, de qualquer modo, àquela altitude havia apenas traços de água. Além disso, os flocos que
cascateavam no abismo não tinham brilho nem cintilação. Quando, daí a pouco, alguns deles pousaram numa das
vergas de sustentação dos instrumentos, a qual podia ser vista pela janela maior, Falcon pôde observar que eram de
um branco fosco e opaco, sem nenhuma estrutura cristalina, e bastante grandes – com várias polegadas de largura.
Pareciam de cera, e Falcon conjeturou que era precisamente isso o que eles deviam ser. Alguma reação química
estava ocorrendo na atmosfera circundante, condensando os hidrocarbonetos que flutuavam no ar jupiteriano.
Cerca de cem quilômetros à frente estava havendo uma perturbação na camada de nuvens. As pequenas ovais
vermelhas eram jogadas de um lado para o outro e começavam a formar uma espiral – o padrão ciclônico tão
comum na meteorologia terrestre. O vórtice emergia com surpreendente rapidez; se realmente se tratava de uma
tempestade, pensou Falcon, ele corria grande perigo.
Então a sua apreensão converteu-se em espanto –
e em medo. O que se estava desenvolvendo na sua linha de vôo não era em absoluto uma tempestade.
Alguma coisa enorme – uma coisa com vintenas de quilômetros de largura – elevava-se através das nuvens.
O pensamento tranqüilizador de que também aquilo podia ser uma nuvem – um bulcão de tormenta que bor-
bulhasse das camadas inferiores da atmosfera – não durou mais de poucos segundos. Não, aquilo era sólido. Abria
caminho por entre as nuvens róseo-salmão como um ice-berg que subisse do abismo.
Um iceberg flutuando no hidrogênio? Isso era impossível, naturalmente. Mas talvez a analogia não fosse tão
disparatada. Tão logo focalizou o seu telescópio sobre aquele enigma, Falcon percebeu que se tratava de uma
massa alvacenta, cristalina, riscada de vermelho e marrom. Devia, inferiu ele, ser formada da mesma matéria que
os "flocos de neve" a cair em seu redor – uma montanha de cera. E não tardou a perceber que não era tão sólida
como havia pensado; nas orlas, esfarelava-se e tornava a se formar constantemente. . .
– Já sei o que é – comunicou ao controle da missão, que havia alguns minutos não parava de fazer perguntas
ansiosas. – E uma aglomeração de bolhas, alguma espécie de espuma. Espuma de hidrocarboneto. Diga aos
químicos que tratem de analisar. . . Um instantinho!
– O que é? – gritou o controle da missão. – O que é?
Ele desdenhou os apelos frenéticos vindos do espaço e concentrou todo o seu pensamento sobre a imagem no
campo telescópico. Precisava ter certeza; se cometesse um erro, tornar-se-ia o ludibrio de todo o sistema solar.
Convencido finalmente, olhou para o relógio e desligou a voz importuna de Júpiter V.
– Alô, controle da missão – falou, muito forma-lista. – Aqui fala Howard Falcon, a bordo do Kon-Tiki.
Dezenove horas, vinte e um minutos e quinze segundos, Hora Efeméride. Latitude zero grau e cinco minutos norte,
longitude cento e cinco graus e quarenta e dois segundos, Sistema Um.
"Diga ao dr. Brenner que existe vida em Júpiter. E é enorme..."
5. As rodas de Possêidon
__ Estou muito contente por ter sido provado o meu
engano – foi a cordial resposta irradiada pelo dr. Brenner. – A natureza sempre tem uma carta escondida na
manga. Conserve em foco a câmara de longo alcance e nos dê as imagens mais nítidas que puder.
Os objetos que se moviam para cima e para baixo sobre as faldas cerosas estavam ainda muito longe para que
Falcon pudesse distinguir muitos detalhes, e deviam ser muito grandes para que os avistasse àquela distância.
Quase negros e com uma forma que lembrava pontas de flechas, manobravam mediante lentas ondulações de todo
o corpo, o que lhes dava o ar de jamantas gigantescas a nadar por cima de algum recife tropical.
Talvez fossem gado celeste a pastar nas nuvens de Júpiter, pois pareciam amontoar-se sobre as riscas par-do-
avermelhadas que se alongavam como leitos secos de rios nos flancos das penedias flutuantes. De vez em quando
um deles mergulhava frontalmente na montanha de espuma e desaparecia completamente da vista.
O Kon-Tiki deslocava-se lentamente em relação à camada de nuvens inferior e levaria pelo menos três horas
até que começasse a sobrevoar aquelas efêmeras montanhas. Estava apostando carreira com o Sol. Falcon esperou
que não anoitecesse antes de poder enxergar bem as jamantas, como as tinha batizado, bem assim como a frágil
paisagem sobre a qual elas se moviam.
Foram três horas bem longas. Durante todo esse tempo ele manteve os microfones externos em plena
amplificação, desejando saber se ali estava a fonte daqueles bramidos noturnos. Indubitavelmente, as jamantas
eram bastante grandes para tê-los produzido; quando pôde obter uma medida exata, descobriu que elas mediam
quase cem metros de envergadura. Isso era o triplo do comprimento da maior baleia – embora Falcon duvidasse
que aquelas criaturas pudessem pesar mais de algumas poucas toneladas.
Meia hora antes do pôr-do-sol, o Kon-Tiki estava voando quase por cima das "montanhas".
– Não – disse Falcon, respondendo às reiteradas perguntas do controle da missão sobre as jamantas –, elas
ainda não mostraram nenhuma reação à minha presença. Não creio que sejam inteligentes; parecem ser
inofensivos vegetarianos. E, mesmo que tentem vir no meu encalço, tenho certeza de que não poderão alcançar a
minha altitude.
Apesar disso, ficou um pouco desapontado quando as jamantas não mostraram o menor interesse por aquele
objeto que voava tão alto acima da sua pastagem. Talvez não tivessem meio de detectar a sua presença. Examinan-
do-as e fotografando-as pelo telescópio, ele não descobriu nenhum sinal de órgãos de sentido. As criaturas eram
simplesmente enormes deltas pretos, ondulando sobre montanhas e vales que, em realidade, eram pouco mais
substanciais do que as nuvens da Terra. Embora essas montanhas parecessem sólidas, Falcon sabia que quem
pisasse nelas se afundaria como se fossem feitas de papel de seda.
De perto, pôde ver as miríades de células ou bolhas que as formavam. Algumas destas eram bastante grandes
– mais ou menos um metro de diâmetro –, e Falcon perguntou-se de que caldeirão de bruxas proviriam essas bolhas
de hidrocarbonetos. Devia haver, nas profundezas da atmosfera de Júpiter, compostos petroquímicos em quan-
tidade suficiente para suprir todas as necessidades da Terra durante um milhão de anos.
O breve dia quase havia terminado quando ele passou sobre a crista das montanhas cerosas e a luz desmaiava
rapidamente nas encostas inferiores. Não havia jamantas nesse lado ocidental, e por alguma razão a topografia era
muito diferente. A espuma era esculpida em longos terraços nivelados, como o interior de uma cratera lunar. Quase
chegou a imaginá-los como degraus gigantescos conduzindo à superfície oculta do planeta.
E no mais baixo desses degraus, apenas separada das turbilhonantes nuvens que a montanha havia deslocado
quando se elevara em direção ao céu, via-se uma massa aproximadamente oval, com dois ou três quilômetros de
largura. Era difícil distingui-la, por ser apenas um pouco mais escura do que a espuma cinzento-esbranquiçada
sobre a qual repousava. O primeiro pensamento de Falcon foi que estava olhando para uma floresta de árvores
pálidas, como cogumelos gigantes que nunca tivessem visto o Sol.
Sim, devia ser uma floresta: ele podia ver centenas de troncos delgados, elevando-se da espuma cerosa em
que tinham suas raízes. Mas as árvores estavam surpreendentemente próximas umas das outras; quase não havia
espaço entre elas. Talvez não fosse uma floresta, afinal de contas, mas uma só árvore enorme, como uma baniana
gigante do Oriente com os seus múltiplos troncos. Certa vez ele vira em Java uma baniana que tinha mais de
seiscentos e cinqüenta metros de grossura; este monstro devia ter um tamanho pelo menos dez vezes maior.
Quase não havia mais luz. A paisagem de nuvens tornara-se violeta sob os raios solares refrangidos, e em
poucos segundos também essa cor iria desaparecer. Na derradeira claridade do seu segundo dia em Júpiter, Howard
Falcon viu – ou julgou ver – algo que lançou sérias dúvidas sobre a sua interpretação da oval branca.
A menos que a luz moribunda o tivesse iludido completamente, aquelas centenas de troncos delgados se esta-
vam balouçando para diante e para trás, num sincronismo perfeito, como um aglomerado de algas na arrebentação.
E a árvore já não se encontrava no lugar onde ele a tinha visto pela primeira vez.
– Lamentamos dizê-lo – informou o controle da missão pouco depois de entrar o sol –, mas parece-nos que a
Fonte Beta vai entrar em erupção na próxima hora. Probabilidade, setenta por cento.
Falcon deu um rápido relance de olhos ao mapa. Beta – latitude jupiteriana cento e quarenta graus – ficava a
mais de trinta mil quilômetros de distância e muito abaixo do seu horizonte. Embora algumas grandes erupções
atingissem uma força de dez megatons, ele estava longe demais para que a onda de choque representasse um perigo
sério. A radiotempestade que ela iria desencadear era, porém, um assunto bem diverso.
As explosões decamétricas que por vezes faziam de Júpiter a mais poderosa fonte de rádio no céu inteiro
tinham sido descobertas na década de 50, para total espanto dos astrônomos.
Presentemente, mais de um século passado, sua ver-

dadeira origem continuava a ser um mistério. Só os sintomas eram compreendidos; a explicação, ninguém
podia dá-la.
A teoria "vulcânica" era a que melhor tinha resistido à prova do tempo, embora ninguém imaginasse que essa
palavra tivesse a mesma significação em Júpiter que na Terra. Com intervalos freqüentes – não raro, várias vezes
num dia –, explosões titânicas ocorriam nas camadas inferiores da atmosfera, provavelmente na própria superfície
oculta do planeta. Uma grande coluna de gás, com mais de mil quilômetros de altura, começava a borbulhar para
cima como se estivesse decidida a fugir para o espaço.
Contra o mais poderoso campo gravitacional de todo o sistema planetário, ela não tinha nenhuma chance. No
entanto, alguns traços – uns poucos milhões de toneladas, apenas – conseguiam alcançar a ionosfera jupiteriana; e
quando isso acontecia, era como se o inferno abrisse as suas portas.
Os cinturões de radiação que circundam Júpiter reduzem à insignificância os fracos cinturões Van Allen da
Terra. Quando uma coluna ascendente de gás provoca neles um curto-circuito, o resultado é uma descarga elétrica
milhões de vezes mais possante do que qualquer raio na Terra, a qual envia um colossal trovão de rádio através do
sistema solar e ainda mais para além, rumo às estrelas.
Tinha-se descoberto que essas erupções de rádio provinham de quatro áreas principais do planeta. Talvez
houvesse ali pontos fracos que deixassem passar, de tempos a tempos, o fogo interno. Os cientistas instalados em
Ganí-medes, a maior das luas de Júpiter, julgavam-se capazes de prever o começo de uma tempestade decamétrica;
o grau de precisão com que o faziam era mais ou menos tão bom quanto o de um meteorologista dos começos do
século XX.
Falcon não sabia se devia alegrar-se com a perspectiva de uma tempestade de rádio ou temê-la. Certamente
aumentaria o valor da missão – se conseguisse sobreviver a ela. Sua rota fora planejada para manter-se tão longe
quanto possível dos centros de perturbação, principalmente do mais ativo, a Fonte Alfa. Quisera ó destino que
Beta, a que o ameaçava agora, fosse a mais próxima dele. Espe-
rou que a distância, quase três quartos da circunferência da Terra, oferecesse suficiente segurança.
– Probabilidade de noventa por cento – disse o controle da missão com um tom de urgência bem perceptível.
– E esqueça aquele prazo de uma hora. Ganímedes diz que pode sobrevir a qualquer momento.
Mal o rádio havia acabado de falar, o indicador do magnetômetro começou a subir impetuosamente. Antes de
saltar fora da escala, inverteu a sua marcha e pôs-se a cair com "a mesma rapidez com que havia subido. Num
ponto longínquo e milhares de quilômetros abaixo dele, alguma coisa havia dado uma sacudidela titânica ao núcleo
do planeta em estado de fusão.
– Aí vem ela! – gritou o controle.
– Obrigado, já sei. Quando é que a tempestade vai me atingir?
– Pode esperar o começo dentro de cinco minutos. A culminância, em dez.
Muito longe, além da curva de Júpiter, um funil de gás com a largura do oceano Pacífico crescia para o
espaço com uma velocidade de milhares de quilômetros por hora. Já as tempestades elétricas da atmosfera inferior
deviam estar rugindo em volta dele – mas essas tempestades nada eram em comparação com a fúria que explodiria
quando fosse alcançado o cinturão radiativo e começasse a despejar sobre o planeta os seus excedentes de elétrons.
Falcon tratou de recolher todas as vergas portadoras de instrumentos que havia estendido para fora da cápsula.
Nenhuma outra precaução podia tomar. Quatro horas se passariam antes que o alcançasse a onda atmosférica de
choque – mas a rajada de rádio, viajando à velocidade da luz, estaria sobre ele num décimo de segundo depois que
ocorresse a descarga.
O monitor de rádio, explorando o espectro para cima e para baixo, ainda não mostrava nada de insólito,
apenas os ruídos normais da estática. Então Falcon notou que esses ruídos iam crescendo sorrateiramente de
volume. A explosão estava concentrando suas forças.
A tão grande distância, jamais esperava ver alguma coisa. Mas de súbito um lampejo, como de um distante
Simultaneamente, a metade dos interruptores saltou do quadro principal, as luzes se apagaram e todos os
canais de comunicação ficaram mudos.
Tentou mover-se, mas foi completamente incapaz de fazê-lo. A paralisia que dele se apossou não era
simplesmente psicológica; parecia haver perdido todo controle de seus membros e tinha uma dolorosa sensação de
formiga-mento por todo o corpo. Era impossível que o campo elétrico houvesse penetrado nessa cabina blindada. E
contudo, um clarão bruxuleante pairava sobre o painel de instrumentos e ele pôde ouvir os inconfundíveis estalidos
de uma descarga luminosa.
Com uma série de bruscos solavancos, os sistemas de emergência entraram em operação e as sobrecargas
tornaram a equilibrar-se. Primeiro fracas, depois mais fortes, as luzes acenderam-se novamente. E a paralisia de
Falcon desapareceu tão depressa como tinha vindo.
Após um relance de olhos ao painel para certificar-se de que todos os circuitos haviam retornado à
normalidade, ele encaminhou-se rapidamente para as vigias.
Foi desnecessário acender as luzes de inspeção: os cabos que sustentavam a cápsula pareciam ter pegado
fogo. Linhas luminosas, com um brilho azul-elétrico contra a escuridão, alongavam-se para cima, desde o anel
principal de suspensão até o equador do balão gigantesco; e, rolando céleres ao longo de algumas delas, viam-se
deslumbrantes bolas de fogo.
O espetáculo era tão estranho e tão belo que dificilmente se poderia ver nele uma ameaça. Poucas pessoas,
Falcon o sabia, tinham visto de tão perto o santelmo – e certamente nenhuma sobrevivera, caso se encontrasse na
atmosfera terrestre, voando num balão cheio de hidrogênio. Lembrou-se da morte do Hindenburg entre chamas,
destruído em 1937 por uma centelha acidental, quando amarrava em Lakehurst; como fizera tantas vezes no
passado, o velho e horrorizante filme tornou a desfilar ante os olhos da sua mente. Mas pelo menos aquilo não
podia acontecer aqui, embora houvesse mais hidrogênio acima da sua cabeça do que na carcaça do último zepelim.
Um bilhão de anos teriam de pássar-se ainda, antes que alguém pudesse acender fogo na atmosfera de Júpiter.
Com um som que lembrava o do bacon na frigideira, o circuito sonoro voltou à vida.
– Alô, Kon-Tiki. . . Você está recebendo? Você está recebendo?
As palavras vinham entrecortadas e muito desfiguradas, mas eram inteligíveis. Falcon recobrou ânimo; havia
reassumido o contato com o mundo dos homens.
– Estou recebendo – respondeu. – Uma verdadeira apoteose elétrica, mas nenhum dano. . . até agora.
– Obrigado. . . Pensávamos tê-lo perdido. Faça o favor de verificar os canais telemétricos 3,7 e 26. E tam-
bém a amplificação da câmara 2. Além disso, não acreditamos totalmente nas indicações das sondas externas de
ionização. . .
Falcon desviou os olhos com relutância do fascinante espetáculo pirotécnico em redor do Kon-Tiki, embora
continuasse a espreitar de quando em quando por uma das janelas. O santelmo foi o primeiro a desaparecer, expan-
dindo-se os globos flamejantes até atingirem um tamanho crítico, quando se desfaziam com uma suave explosão.
Mesmo uma hora depois, no entanto, ainda se podiam ver débeis claridades em volta de todos os metais expostos lá
fora, e os circuitos de rádio continuaram ruidosos até bem depois da meia-noite.
As restantes horas de escuridão foram completamente vazias de acontecimentos – até pouco antes de raiar o
dia. Como aquilo vinha de leste, Falcon supôs que estivesse vendo a primeira claridade da aurora. Notou, então,
que ainda faltavam vinte minutos para amanhecer – e a claridade que aparecera no horizonte avançava perceptivel-
mente para ele. Em poucos instantes, destacou-se do arco de estrelas que marcavam a orla invisível do planeta e ele
viu que era uma faixa relativamente estreita, e de contornos bem definidos. Dir-se-ia um enorme holofote sondando
a atmosfera por baixo das nuvens.
Talvez uns cem quilômetros atrás da barra de luz que corria no céu surgiu uma outra, paralela e movendo-se
com a mesma velocidade. E, atrás dessa, outra, e mais outra – até que o céu inteiro se encheu de bandas alternadas
de luz tremulante e escuridão.
Falcon pensava já estar acostumado aos portentos, e
parecia impossível que esse espetáculo de pura e silenciosa luminosidade apresentasse o menor perigo. Mas
era tão assombroso e tão inexplicável que ele sentiu um medo estranho e frio a roer-lhe o autocontrole. Ninguém
podia olhar aquele fenômeno sem ter a impressão de ser um pigmeu indefeso em presença de forças superiores à
sua compreensão. Seria possível que Júpiter, afinal de contas, contivesse não apenas vida, mas também
inteligência? E, talvez, uma inteligência que só agora começava a reagir à sua presença intrusa?
– Sim, estamos vendo – disse o controle da missão, numa voz que ecoava o seu próprio temor. ■– Não temos
a menor idéia do que isso seja. Fique em sintonia, estamos chamando Ganímedes.
O jogo de luzes e sombras desmaiava pouco a pouco; as faixas que surgiam velozes do horizonte eram agora
muito mais fracas, como se as energias que as animavam se estivessem exaurindo. Em cinco minutos tudo se
acabou; o último e débil impulso luminoso bruxuleou no céu ocidental e apagou-se. Falcon assistiu a esse final
com um imenso sentimento de alívio. O fenômeno era tão hipnótico, tão perturbador, que contemplá-lo por muito
tempo era um risco para a paz interior de qualquer ser humano.
Ficara mais abalado do que queria admitir. A tempestade elétrica ele podia entender, mas isto era totalmente
incompreensível.
O controle da missão continuava silencioso. Falcon sabia que os bancos de informação instalados em
Ganímedes estavam sendo rebuscados por homens e computadores com a atenção concentrada sobre o problema.
Se não pudessem encontrar nenhuma resposta ali, seria preciso chamar a Terra, o que significaria uma demora de
quase sessenta minutos. A possibilidade de que nem a própria Terra fosse capaz de lhes prestar ajuda era algo em
que Falcon não queria pensar.
Nunca se sentira tão feliz em ouvir falar o controle como quando o dr. Brenner entrou finalmente no circuito.
A voz do biólogo soava aliviada e contudo reprimida, como a de um homem que acaba de passar por alguma
grande crise intelectual.
– Alô, Kon-Tiki. Resolvemos o seu problema, mas ainda mal podemos acreditar no que averiguamos.
"O que você viu foi uma bioluminescência, muito semelhante à que é produzida por microrganismos nos
mares tropicais da Terra. Aqui ela se situa na atmosfera em vez de no oceano, mas o princípio é o mesmo."
– Mas o padrão era tão regular, tão. . . artificial! – protestou Falcon. – E as faixas tinham centenas de quilô-
metros de largura!
– Era ainda mais largo do que imagina; você só observou uma pequena parte. O fenômeno inteiro abrangia
uma extensão de mais de cinco mil quilômetros e parecia uma roda a girar. O que você viu foram apenas os raios,
correndo pelo céu com uma velocidade aproximada de um quilômetro por segundo. . .
– Por segundo! – Falcon não pôde conter a exclamação. – Nenhum animal pode mover-se com essa rapidez!
– Claro que não. Vou explicar. O que você viu foi desencadeado pela onda de choque da Fonte Beta, que se
movia com a velocidade do som.
– Mas e o padrão? – insistiu Falcon.
– Esse é o aspecto surpreendente da coisa. Trata-se de um fenômeno muito raro, mas rodas luminosas idênti-
cas a essa, salvo a particularidade de serem mil vezes menores, foram observadas no golfo Pérsico e no oceano
Indico. Escute isto aqui: o Patna, da Companhia Britânica das Índias, maio de 1880, vinte e três horas e trinta mi-
nutos . . . "Uma enorme roda luminosa, a girar, cujos raios pareciam empurrar o navio ao roçarem por ele. Os
raios mediam duzentas ou trezentas jardas de comprimento... cada roda tinha cerca de dezesseis raios.. ." E esta do
mar de Omã, datada de 23 de maio de 1906: "A lu-minescência, de um brilho intenso, aproximou-se rapidamente
de nós, lançando para o ocidente raios luminosos de contornos muito nítidos, em rápida sucessão, como os raios do
holofote de um navio de guerra. . . À nossa esquerda formou-se uma gigantesca bola de fogo, com raios que se
estendiam até onde a vista podia alcançar. A roda inteira girou sobre si mesma durante dois ou três minutos..." O
computador do arquivo, em Ganímedes,
I

desentranhou cerca de quinhentos casos. Teria impresso todos eles caso não o houvéssemos feito parar a
tempo.
– Estou convencido. . . mas ainda perplexo.
– Não o censuro. A explicação completa só foi encontrada nos fins do século XX. Parece que essas rodas
luminosas resultam de terremotos submarinos e sempre ocorrem em águas rasas, onde as ondas de choque podem
refletir-se e produzir padrões ondulatórios uniformes. Às vezes barras, outras vezes rodas que giram: por isso
foram chamadas "rodas de Possêidon". A teoria foi finalmente provada por meio de explosões submarinas cujos
resultados foram fotografados de um satélite. Não admira que os marinheiros fossem tão supersticiosos. Quem teria
acreditado numa coisa assim?
Então era isso! pensou Falcon. Quando a Fonte Beta entrou em erupção, devia ter enviado ondas de choques
em todas as direções – através dos gases comprimidos da atmosfera inferior e do próprio corpo sólido de Júpiter.
Encontrando-se e entrecruzando-se, essas ondas se teriam anulado aqui, reforçado ali; o planeta inteiro devia ter
vibrado como um sino.
E contudo, a explicação não destruía o sentimento de assombro e temor. Falcon jamais esqueceria aquelas
faixas tremulantes de luz a se perseguirem nas profundezas inatingíveis da atmosfera de Júpiter. Tinha a impressão
de se encontrar não apenas num estranho planeta, mas em algum reino mágico entre o mito e a realidade.
Esse era um mundo em que absolutamente qualquer coisa podia acontecer, e nenhum homem podia
adivinhar o que o futuro traria consigo.
E ele ainda tinha um dia inteiro pela frente.
6. Medusa
Quando chegou a verdadeira alvorada, houve uma súbita mudança nas condições atmosféricas. O Kon-Tiki
movia-se através de uma nevasca. Os flocos de cera caíam tão densos que a visibilidade ficou reduzida a zero.
Falcon começou a preocupar-se com o peso que podia estar se acumulando sobre o envoltório do balão. Notou,
então,
que todos os flocos que pousavam no lado de fora das janelas desapareciam rapidamente; a constante
irradiação térmica do Kon-Tiki evaporava-as com a mesma rapidez com que vinham.
Se estivesse navegando de balão por sobre a Terra, ter-se-ia inquietado com a possibilidade de uma colisão.
Pelo menos esse perigo não existia aqui: as montanhas jupiterianas estavam muitas centenas de quilômetros abaixo
dele. Quanto às ilhas de espuma flutuante, chocar-se com elas. seria mais ou menos como atravessar
conglomerados de bolhas de sabão levemente endurecidas.
Não obstante, ligou o radar horizontal, que até agora tinha sido completamente inútil, pois só o feixe vertical,
que dava a distância da superfície invisível, vinha prestando serviço. Foi então que teve uma nova surpresa.
Espalhados sobre um enorme setor do céu à sua frente havia dúzias de ecos grandes e brilhantes. Eram
completamente isolados uns dos outros e pareciam flutuar sem apoio no espaço. Falcon lembrou-se de uma
expressão que os primeiros aviadores haviam usado para indicar um dos riscos da sua profissão: "nuvens recheadas
de penhascos". Isso era uma descrição perfeita do que parecia encontrar-se na rota do Kon-Tiki.
O espetáculo era desconcertante, mas Falcon lembrou mais uma vez a si mesmo que nenhum corpo realmente
sólido podia pairar nessa atmosfera. Talvez se tratasse de algum estranho fenômeno meteorológico. Em todo caso,
o eco mais próximo se achava a uns duzentos quilômetros de distância.
Informou o controle da missão, que não pôde fornecer nenhuma explicação. Mas deu-lhe uma boa notícia:
dentro de trinta minutos ele deixaria a nevasca para trás.
Não o avisou, porém, do furioso vento de través que assaltou repentinamente o Kon-Tiki e o arrastou quase
em ângulo reto com a sua direção anterior. Falcon teve de pôr em ação toda a sua habilidade e fazer o máximo uso
do reduzido controle que tinha sobre o seu pouco manobrável veículo para impedir que este emborcasse. Em
questão de minutos, ele estava voando para o norte a mais de quinhentos quilômetros por hora. Então, com a
mesma subi-taneidade com aue havia começado, a turbulência cessou;
ele ainda se movia em alta velocidade, mas num ar tranqüilo. Perguntou a si mesmo se teria sido apanhado
pelo equivalente jupiteriano de uma corrente de jato.
A tempestade de neve dissolveu-se, e então ele viu o que Júpiter lhe tinha reservado.
O Kon-Tiki penetrara no funil de um gigantesco re-moinho com uns mil quilômetros de diâmetro. O balão
estava sendo arrastado ao longo de uma parede circular de nuvens. Lá em cima o Sol brilhava num céu claro; muito
embaixo, porém, esse grande buraco na atmosfera descia a profundidades desconhecidas até alcançar um assoalho
nevoento onde o relâmpago era quase contínuo.
Conquanto a nave estivesse sendo arrastada para baixo com tanta lentidão que não havia perigo imediato,
Falcon aumentou o fluxo de calor no envoltório até conseguir que o Kon-Tiki pairasse a uma altitude constante. Só
então deu as costas à cena fantástica lá fora e voltou a considerar o problema do radar.
O eco mais próximo estava, agora, a apenas quarenta quilômetros dele. Não tardou a perceber que todos eles
se distribuíam sobre a parede do vórtice e se moviam com ele, aparentemente apanhados no remoinho como o fora
o próprio Kon-Tiki. Apontou o telescópio pelo radar e de-parou-se-lhe uma curiosa nuvem mosqueada que quase
enchia o campo de visão.
Não era fácil distingui-la, por ser apenas um pouco mais escura do^jue a remoinhante parede de neblina que
lhe servia de fundo. Só depois de contemplá-la durante vários minutos Falcon se deu conta de que já a tinha visto
antes.
Na primeira vez, ela se arrastava entre as montanhas de espuma à deriva e ele a tomara por uma árvore gigan-
tesca, de muitos troncos. Agora podia apreciar-lhe o verdadeiro tamanho, a complexidade, e dar-lhe um nome mais
apropriado para fixar a imagem da criatura na sua mente. Ela não se parecia em absoluto com uma árvore, mas com
uma água-viva – uma medusa, como aquelas que se podia encontrar, arrastando os seus tentáculos, nos tépidos
remoi-nhos da corrente do Golfo.
Esta medusa, porém, tinha mais de uma milha de diâmetro e os seus tentáculos pendentes mediam muitas
dezenas de metros. Ondulavam lentamente, para diante e para trás, numa perfeita coordenação de
movimentos. Cada uma dessas ondulações levava mais de um minuto para completar-se, como se a criatura
estivesse remando desajeitadamente através do céu.
Os outros ecos eram medusas mais distantes. Falcon focalizou o telescópio em meia dúzia delas e não notou
nenhuma variação de forma ou tamanho. Todas pareciam ser da mesma espécie, e ele perguntou-se por que se dei-
xavam arrastar preguiçosamente nessa órbita de um milhar de "quilômetros. Talvez se estivessem alimentando com
o plâncton aéreo sorvido pelo remoinho, como o fora o próprio Kon-Tiki.
– Você se dá conta, Howard – disse o dr. Brenner quando se refez do seu assombro inicial –, você se dá
conta de que essa coisa é cerca de cem mil vezes maior do que a maior das baleias? E, embora seja apenas uma
bolsa de gás, deve pesar tím milhão de toneladas! Não posso fazer a menor conjetura sobre o seu metabolismo. Ela
deve gerar megawatts de calor para manter a sua flutuabilidade.
– Mas, se é apenas uma bolsa de gás, como pode refletir tão bem o radar?
– Não tenho a mais remota idéia. Você pode chegar mais perto?
A pergunta de Brenner não era ociosa. Se mudasse de altitude para aproveitar as diferentes velocidades de
vento, Falcon poderia aproximar-se da medusa tanto quanto desejasse. Nesse momento, contudo, preferia os atuais
quarenta quilômetros e não vacilou em declará-lo.
– Compreendo o que você quer dizer – respondeu Brenner com alguma relutância. – Por ora vamos ficar
onde estamos.
Esse "nós" causou um certo divertimento a Falcon; uma distância adicional de cem mil quilômetros fazia
uma considerável diferença no ponto de vista de uma pessoa.
Durante as duas horas seguintes o Kon-Tiki derivou sem maiores incidentes na revolução do vórtice,
enquanto Falcon fazia experimentos com filtros e contrastes de câmara fotográfica, procurando obter uma imagem
clara da medusa. Começava a perguntar-se se aquela coloração
enganadora não seria uma espécie de camuflagem; talvez, como muitos animais terrestres, ela procurasse
tornar-se invisível contra o fundo. Esse era um ardil usado tanto pelos caçadores como pela caça.
Em que categoria se incluía a medusa? Essa era uma pergunta a que ele não esperava encontrar resposta
durante o breve período de tempo que lhe restava. Apesar disso, pouco antes do meio-dia veio a resposta, sem o
menor aviso. . .
Como um esquadrão de antigos caças a jato, cinco jamantas surgiram do muro de neblina que formava o funil
do remoinho. Voavam, numa formação em V, diretamente para a nuvem cinza-pálida da medusa; e, no espírito de
Falcon, não houve dúvida de que se tratava de um ataque. Enganara-se completamente ao presumir que aquelas
criaturas fossem inofensivos vegetarianos.
Sem embargo, tudo aconteceu com tanto vagar que foi como se ele estivesse assistindo a um filme em
câmara lenta. As jamantas vieram ondulando a, talvez, cinqüenta quilômetros por hora; pareceram decorrer séculos
antes que elas alcançassem a medusa, que continuava a remar imperturbável, numa velocidade ainda menor.
Enormes como eram, as jamantas pareciam pequeninas em comparação com o monstro de que se aproximavam.
Quando pousaram no seu dorso, foi como se passarinhos houvessem descido sobre uma baleia.
Poderia a medusa defender-se?, perguntou Falcon mentalmente. Não lhe parecia que os atacantes corressem
perigo enquanto pudessem evitar aqueles enormes e desajeitados tentáculos. E talvez o seu hóspede nem os perce-
besse; não passariam, quem sabe, de insignificantes para-sitos, tolerados como são as pulgas num cão.
Mas era evidente, agora, que a medusa se encontrava em situação aflitiva. Com uma lentidão agoniante,
começou a inclinar-se como um navio que vai a pique. Ao cabo de dez minutos, o ângulo era de quarenta e cinco
graus; ao mesmo tempo, ia rapidamente perdendo altitude. Era impossível deixar de sentir certa pena do monstro
assediado, e em Falcon aquele espetáculo despertava amargas recordações. De um modo grotesco, a queda da
medusa era quase uma paródia dos últimos momentos do Queen.
E contudo, ele sabia que estava pondo suas simpatias no lado errado. A alta inteligência só podia
desenvolver-se entre os predadores – não entre os herbívoros flutuantes, fossem do mar ou do ar. As jamantas
estavam muito mais próximas dele do que essa monstruosa bolsa de gás. E, fosse como fosse, quem podia
simpatizar realmente com uma criatura cem mil vezes maior do que uma baleia?
Percebeu, então, que a tática da medusa parecia estar produzindo algum efeito. As jamantas tinham sido
perturbadas pela sua lenta queda e alçavam vôo pesadamente, como abutres interrompidos na hora do seu repasto.
Não se afastaram muito, porém. Ficaram voejando a poucos metros do monstro, que continuava a afundar.
Houve um súbito e ofuscante relâmpago, sincronizado com um pipocar de estática no rádio. Uma das
jamantas, em lentas cambalhotas sobre si mesma, despencou-se verticalmente, deixando atrás de si um rasto de
fumaça preta. A semelhança com um avião a cair em chamas era fantástica.
As outras jamantas, em uníssono, mergulharam abruptamente para longe da medusa, ganhando velocidade
com a perda de altitude. Em poucos minutos tornaram a desaparecer na muralha de nuvens de onde haviam
surgido. E a medusa, que cessara de cair, começou a voltar à horizontal. Dentro em pouco estava mais uma vez
navegando perfeitamente estabilizada, como se nada houvesse acontecido.
– Lindo! – disse o dr. Brenner após um momento de atônito silêncio. – Ela desenvolveu defesas elétricas,
como algumas de nossas enguias e raias. Mas essa descarga deve ter sido de quase um milhão de volts! Você pode
distinguir órgãos capazes de produzi-la? Alguma coisa que se pareça com eletrodos?
– Não – respondeu Falcon depois de usar a potência máxima do telescópio. – Mas há um negócio estranho
aqui. Está vendo este padrão? Confira com as imagens anteriores. Estou certo de que não aparecia nelas.
Uma banda larga e pintalgada surgira ao longo do flanco da medusa. Formava como que um tabuleiro de xa-
drez, de uma surpreendente regularidade, cada uma de cujas casas exibia, por sua vez, um subpadrão de curtas
linhas

horizontais. Espacejadas a intervalos iguais, formavam uma disposição geometricamente perfeita de filas e
colunas.
– Você tem razão – disse o dr. Brenner, com a voz cheia de espanto. – Isto só apareceu agora. E receio dizer-
lhe o que penso que seja.
– Bem, eu não tenho uma reputação a perder, pelo menos como biólogo. Quer ouvir o meu palpite?
– Venha de lá.
– Isso é um grande sistema de antenas de rádio para um metro, o tipo de coisa que foi usado nos começos do
século XX.
– Estava temendo que você dissesse isso. Agora sabemos por que ela produziu um eco tão maciço.
– Mas por que só apareceu agora?
– Provavelmente um efeito retardado da descarga.
– Acabo de ter outra idéia – disse Falcon, falando devagar. – Você não desconfia que ela esteja nos
escutando?
– Nessa freqüência? Duvido. Essas são antenas métricas. . . não, decamétricas, a julgar pelo
tamanho. Hum. . . não deixa de ser uma idéia!
O dr. Brenner calou-se, evidentemente seguindo outra linha de reflexão. Momentos depois, prosseguiu:
– Aposto que estão sintonizadas com as explosões de rádio! Isso é uma coisa que a natureza jamais
conseguiu realizar na Terra. . . Temos animais com aparelhos de so-nar e mesmo sentidos elétricos, mas nenhum
jamais desenvolveu um sentido radiofônico. Por que se dar a esse trabalho num lugar onde havia tanta luz?
– Mas aqui é diferente. Júpiter está encharcado de energia de rádio. Vale a pena usá-la. . . talvez até apro-
veitá-la. Essa coisa poderia ser uma usina flutuante de força!
Uma voz interrompeu a conversa.
– Aqui fala o comandante da missão. Tudo isso é muito interessante, mas há um assunto bem mais
importante em que pensar. A criatura é inteligente? Nesse caso, temos de considerar as diretivas de primeiro
contato.
– Antes de chegar aqui – disse o dr. Brenner, um tanto pesaroso –, eu teria jurado que qualquer coisa capaz
de construir um sistema de antenas de ondas curtas tinha
de ser inteligente. Agora, estou menos convicto. Isso podia ter evoluído naturalmente. Suponho que não seja
mais fantástico do que o olho humano.
– Então devemos ir pelo seguro e presumir a inteligência. Até nova ordem, pois, esta expedição fica sujeita às
cláusulas da Primeira Diretiva.
Houve um longo silêncio enquanto todo mundo, no circuito de rádio, absorvia as implicações destas palavras.
Pela primeira vez na história do vôo espacial, as regras que haviam sido estabelecidas através de mais de um século
de discussões teriam, talvez, que ser aplicadas. O homem, esperava-se, aprendera com seus erros na Terra. Não
somente considerações morais, mas o seu próprio interesse exigiam que não os repetisse em outros planetas.
Poderia ser desastroso tratar uma inteligência superior como os colonizadores norte-americanos tinham tratado os
índios, ou como quase todo o mundo tinha tratado os africanos. . .
A primeira regra era: manter distância. Não fazer tentativas de aproximação ou mesmo de comunicar-se,
enquanto "eles" não tivessem tido tempo de sobra para nos estudar. O que se entendia exatamente por "tempo de
sobra" era uma coisa que ninguém jamais pudera determinar. Isso ficava ao alvitre do contatador.
A responsabilidade com que ele jamais sonhara havia descido sobre os ombros de Howard Falcon. Dentro
das poucas horas que lhe restavam em Júpiter, poderia tornar-se o primeiro embaixador da raça humana.
E essa era uma ironia tão deliciosa que quase desejou tivessem-lhe os cirurgiões restituído a faculdade de rir.
7. Primeira Diretiva
Estava escurecendo, mas Falcon mal reparou nisso quando se fixou naquela nuvem vivente, na objetiva do
telescópio. O vento que não parava de arrastar o Kon-Tiki em círculo, dentro do grande turbilhão, o tinha colocado
agora a menos de vinte quilômetros da criatura. Se chegasse a menos de dez, teria que adotar medidas de evasão.
Embora estivesse certo de que as armas elétricas da medusa eram de curto alcance, não queria submeter esse fato
a prova. O problema ficava para os exploradores futuros, aos quais desejou felicidades.
Estava, agora, completamente escuro dentro da cápsula. Isso era estranho, porque o sol levaria ainda algumas
horas a se pôr. Automaticamente, olhou para o radar que explorava o plano horizontal, como vinha fazendo de pou-
cos em poucos minutos. Além da medusa que estava estudando, não havia nenhum outro objeto dentro de um raio
de cem quilômetros à sua volta.
De repente, com extraordinária força, ouviu o som que havia reboado na noite jupiteriana – as batidas pul-
santes que se tornavam cada vez mais rápidas e terminavam em pleno crescendo. A cápsula inteira vibrava com
ele, como um grão de ervilha sobre um atabale.
Falcon compreendeu duas coisas quase simultaneamente durante o repentino e dorido silêncio. Desta vez o
som não vinha de milhares de quilômetros de distância, num circuito de rádio. Estava na própria atmosfera que o
cercava.
O segundo pensamento foi ainda mais perturbador. Havia quase esquecido – isso era imperdoável, mas tinha
outras preocupações que lhe pareciam mais importantes –, havia quase esquecido que o céu, acima dele, estava
quase completamente encoberto pela bolsa de gás do Kon-Tiki. Revestido de uma leve camada de prata para con-
servar o calor, o enorme balão era um escudo eficaz não só contra o radar, mas também contra a visão.
Não ignorava isso, naturalmente. Fora um pequeno defeito no projeto, tolerado porque não o julgaram impor-
tante. Agora, porém, assumia grande significação para Howard Falcon, que via aquela paliçada de tentáculos
gigantescos, mais grossos que o tronco de qualquer árvore terrestre, descer em volta da cápsula.
Ouviu o berro de Brenner: "Lembre-se da Primeira Diretiva! Não a atemorize!" Antes que ele pudesse dar
uma resposta apropriada, aquele titânico rufar de tambor começou de novo e submergia todos os outros sons.
O que distingue um piloto de prova realmente capaz é o modo como reage, não às eventualidades previsíveis,
mas àquelas que ninguém poderia ter previsto. Falcon não
hesitou mais de um segundo na análise da situação. Rápido como o relâmpago, puxou a corda de rasgar.
Essa expressão era uma sobrevivência arcaica da época dos primeiros balões de hidrogênio; a bordo do Kon-
Tiki a "corda de rasgar" não rasgava a bolsa de gás; acionava, simplesmente, um sistema circular de aberturas na
curva superior do envoltório. O gás quente começou logo a escoar-se e o Kon-Tiki, privado da sua força
ascensional, perdeu rapidamente altitude nesse campo gravitacional duas vezes mais forte que o da Terra.
' Falcon vislumbrou por um instante os grandes tentáculos que se recolhiam bruscamente, largando a cápsula.
Mas teve tempo de notar que eles eram cobertos de grandes bexigas ou sacos, presumivelmente para lhes dar flu-
tuabilidade, e que terminavam em multidões de finos pal-pos, como raízes de planta. Chegou a esperar o estalido
de um raio – porém nada aconteceu.
Sua precipite velocidade de queda começou a diminuir à proporção que a atmosfera se tornava mais densa e
o envoltório desinflado agia como pára-quedas. Quando o Kon-Tiki havia caído cerca de três quilômetros ele achou
que podia tornar a fechar as aberturas sem perigo. Mas, depois de haver restabelecido a flutuabilidade e achar-se
novamente em equilíbrio, perdera mais um quilômetro e meio de altitude e estava perigosamente próximo do seu
limite de segurança.
Espreitou ansioso pelas janelas de cima, embora não esperasse ver nada, exceto o vulto do enorme balão que
obscurecia o céu. Mas fora arrastado lateralmente na descida e uma parte da medusa podia ser vista, uns três qui-
lômetros acima dele. Estava muito mais próxima do que Falcon esperava e continuava a descer, mais depressa do
que ele julgaria possível.
O controle da missão chamava ansiosamente.
– Estou bem – gritou Falcon –, mas ela ainda vem atrás de mim. Não posso descer mais.
Isso não era bem verdade. Podia descer muito ainda, cerca de trezentos quilômetros. Mas seria uma viagem
sem retorno e. em sua maior parte, teria pouco interesse para ele.
Notou então, com imenso alívio, que a medusa se
havia horizontalizado a pouco mais de um quilômetro no alto. Talvez houvesse decidido aproximar-se com
cautela do singular intruso; ou talvez ela também sentisse demasiado calor nessa camada inferior da atmosfera. A
temperatura havia subido além de cinqüenta graus centígrados e Falcon perguntou-se por quanto tempo ainda o
sistema de sustentação de vida poderia controlar a situação.
O dr. Brenner voltara ao circuito, ainda preocupado com a Primeira Diretiva.
– Lembre-se: pode ser que ela sinta apenas curiosidade! – gritou sem muita convicção. – Procure não assus-
tá-la!
Falcon, que começava a cansar-se desses conselhos, lembrou-se de uma discussão na TV, a que assistira certa
vez, entre um jurista espacial e um astronauta. Depois que todas as implicações da Primeira Diretiva foram esmiu-
çadas, o incrédulo homem do espaço exclamara: "Então, se não houver alternativa, eu devo esperar calmamente
que venham me devorar?" E o advogado respondeu, sem ao menos sorrir: "Esse é um excelente resumo da
situação".
Na ocasião ele achara graça na frase; agora, não o divertia nem um pouco.
Então viu alguma coisa que o afligiu ainda mais. A medusa continuava a pairar cerca de uma milha acima
dele – mas um dos seus tentáculos estava se alongando incrivelmente e estendendo-se para o Kon-Tiki, ao mesmo
tempo que se adelgaçava. Em menino, ele tinha visto uma vez o funil de um tornado baixar de uma nuvem de tor-
menta sobre as planícies do Kansas. A coisa que vinha agora na sua direção despertou vividas recordações daquela
cobra preta que se estorcia no céu.
– Minhas opções estão escasseando rapidamente – informou ao controle da missão. – Agora só tenho a
escolher entre duas coisas: ou assustá-la, ou causar-lhe uma séria dor de barriga. Desconfio que ela vai achar o
Kon-Tiki bastante indigesto, se é essa a sua intenção.
Esperou pelos comentários de Brenner. mas o biólogo ficou calado.
– Muito bem. Faltam ainda vinte e sete minutos para a hora convencionada, mas vou ligar agora o seqüen-
ciador de ignição. Tomara que me sobrem reservas suficientes para corrigir a minha órbita mais tarde.
Já não podia ver a medusa, que, mais uma vez, se achava diretamente acima dele. Mas sabia que o tentáculo
explorador devia estar muito próximo do balão. Seriam precisos quase cinco minutos para dar plena força de pro-
pulsão ao reator.. .
O fusor foi escorvado. O computador de órbita não rejeitara a situação como inteiramente impossível. As
mangas de aspiração estavam abertas, prontas para tragar toneladas do hidro-hélio circundante ao primeiro aviso.
Mesmo em condições ótimas, esse teria sido o momento da verdade, pois não houvera meio de testar como
funcionaria realmente um jato-êmbolo nuclear na estranha atmosfera de Júpiter.
Muito suavemente, alguma coisa sacudiu o Kon-Tiki. Falcon procurou não fazer caso.
A ignição fora planejada para dez quilômetros mais alto, numa atmosfera com menos de um quarto dessa
densidade e trinta graus mais fria. Tanto pior!
Qual era o menor mergulho que ele podia fazer para que as mangueiras de aspiração funcionassem? Quando
o jato se inflamasse ele estaria se arremessando na direção de Júpiter, com duas gravidades e meia para ajudá-lo a
chegar lá. Seria possível inverter a marcha a tempo?
Uma mão grande e pesada deu uma palmadinha no balão. A nave inteira pulou como um daqueles ioiôs que
recentemente se haviam tornado moda na Terra.
Evidentemente, era bem possível que Brenner tivesse razão. Talvez a medusa estivesse apenas tentanto
mostrar boas intenções. Quem sabe se não seria bom falar pelo rádio? Que havia ele de dizer: "Que lindeza de
gatinho", "Sente, Pluto", ou "Conduza-me ao seu chefe"?
A proporção trítio-deutério era correta. Ele estava pronto para acender a candeia, com um fósforo de cem
milhões de graus.
A delgada ponta do tentáculo apareceu resvalando na borda do balão, a uns sessenta metros de distância.
Tinha mais ou menos o tamanho de uma tromba de elefante e, a julgar pela delicadeza com que se movia, não
devia ser menos sensível. Tinha pequenos palpos na extremidade,
como bocas fossadoras. Falcon estava certo de que o dr. Brenner ficaria fascinado.
O momento parecia ser tão propício como qualquer outro. Correu rápido olhar pelo painel de controle, de
ponta a ponta, iniciou a contagem final de quatro segundos, quebrou o selo de segurança e ligou a chave de ALIJA-
MENTO.
Houve uma forte explosão e uma instantânea perda de peso. O Kon-Tiki estava caindo livremente, de focinho
para baixo. Lá em cima, o balão abandonado subia desa-baladamente, arrastando consigo o tentáculo curioso. Fal-
con não teve tempo de ver se a bolsa de gás chegara a atingir a medusa porque nesse momento o jato-êmbolo
inflamou-se e ele tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Uma coluna de hidro-hélio quente jorrava fragorosa-mente dos tubos de jato, aumentando rapidamente o im-
pulso – mas na direção de Júpiter, não para longe dele. Falcon não podia arrancar ainda, pois o controle vectorial
estava muito moroso. Se não pudesse ganhar controle completo e horizontalizar-se dentro de cinco segundos, o veí-
culo mergulharia muito fundo na atmosfera e seria destruído.
Com uma agoniante lentidão – aqueles cinco segundos pareceram cinqüenta –, conseguiu assumir a
horizontal e depois voltar o nariz para cima. Olhou uma só vez para trás e teve um derradeiro vislumbre da medusa,
muitas milhas ao longe. A bolsa de gás alijada pelo Kon-Tiki parecia ter escapado ao seu tentáculo, pois não havia
nenhum sinal dela.
Agora, era mais uma vez senhor da situação. Já não derivava desamparado ao sabor dos ventos de Júpiter,
mas cavalgava a sua coluna de fogo atômico de volta às estrelas. Confiava no jato-êmbolo, que lhe daria rapidez e
altitude até alcançar uma velocidade quase orbital na orla exterior da atmosfera. Então, com uma breve rajada de
pura força de foguete, recuperaria a liberdade do espaço.
A meio caminho da órbita olhou na direção do sul e viu surgir acima do horizonte o tremendo enigma da
Grande Mancha Vermelha – a ilha flutuante duas vezes maior do que a Terra. Não tirou os olhos dela, maravilhado
pela sua misteriosa beleza, enquanto o computador não o avisou de que faltavam apenas sessenta segundos
para a conversão à força de foguete. Foi com grande pesar que voltou as costas.
– Fica para outra vez – murmurou.
– Como é? – disse o controle da missão. – O que foi que você disse?
– Não tem importância – respondeu Falcon.
8. Entre dois mundos
– Agora você é um herói, Howard, não apenas uma celebridade – disse Webster. – Você deu a eles assunto
para refletir, injetou algum sentimento de maravilhoso na vida dessa gente. Nem um homem num milhão viajará
jamais até os Gigantes Exteriores, mas toda a raça humana irá lá em imaginação. E isso é o que importa.
– Ainda bem que facilitei um pouco o seu trabalho.
A amizade dos dois era muito antiga para que Webster se ofendesse com o tom de ironia. Mas ficou
surpreendido. E essa não era a primeira mudança que notava em Howard desde o seu regresso de Júpiter.
O administrador apontou para o famoso sinal sobre a sua escrivaninha, cópia da que fora usada, por um em-
presário dos velhos tempos: ASSOMBRE-ME!
– .Não me envergonho do meu trabalho. Novos conhecimentos, novos recursos. . . tudo isso está muito bem.
Mas os homens também precisam de novidade e excitaçao. As viagens espaciais tinham-se convertido numa rotina;
você fez com que elas voltassem mais uma vez a ser uma aventura. Muito tempo se passará antes que conheçamos
todos os escaninhos de Júpiter. E talvez mais tempo ainda, até que possamos compreender essas medusas.
Continuo a pensar que aquela sabia onde estava o seu ponto cego. Mas deixemos isso; já decidiu o que vai fazer
agora? Saturno, Urano, Netuno... a escolha é sua.
– Não sei. Tenho pensado em Saturno, mas não sou realmente necessário lá. Só tem uma gravidade, não
duas e meia como Júpiter. Os homens podem se encarre-
Os homens, pensou Webster. Ele disse "homens". Nunca falou assim antes. E quando foi a última vez que eu
o ouvi usar a palavra "nós"? Ele está mudando, tornando-se inacessível. . .
– Bem – disse em voz alta, levantando-se da cadeira para esconder o seu leve embaraço –, vamos começar
essa conferência. As câmaras estão a postos e todos estão esperando. Você vai encontrar uma porção de velhos
amigos.
Sublinhou esta última palavra, mas Howard não mostrou nenhuma reação. A máscara coriácea que era o seu
rosto estava ficando cada vez mais impenetrável. Rolou para longe da escrivaninha do administrador, desengatou o
seu trem inferior, que deixou de formar uma cadeira, e ergueu-se no seu sistema hidráulico a dois metros e dez de
altura. Fora uma boa intuição psicológica dos cirurgiões dar-lhe esses trinta centímetros adicionais de estatura para
compensar, de certo modo, tudo que ele havia perdido no desastre do Queen.
Falcon esperou que Webster abrisse a porta, depois girou com destreza sobre os seus pneus-balões e rumou
para lá num suave e silencioso trinta-quilômetros-por-hora. Não havia nenhuma arrogância nessa exibição de
velocidade e precisão; aquilo tinha-se tornado perfeitamente inconsciente.
Howard Falcon, que em tempos idos fora um homem e ainda podia passar por tal num circuito sonoro,
experimentava um tranqüilo sentimento de auto-realização – e, pela primeira vez depois de muitos anos, algo
parecido com a paz de espírito. Desde o seu regresso de Júpiter os pesadelos haviam cessado. Descobrira
finalmente o seu papel.
Sabia, agora, por que sonhara tanto tempo com aquele superchimp a bordo do condenado Queen Elizabeth.
Nem homem, nem animal, a criatura se encontrava entre dois mundos; e o mesmo sucedia com ele.
Só ele podia viajar sem proteção na superfície da Lua. O sistema de sustentação de vida, dentro do cilindro
metálico que substituíra o seu corpo frágil, funcionava tão bem no espaço como debaixo da água. Campos
gravitacionais dez vezes superiores ao da Terra causavam-lhe certo incô-
modo, porém nada mais. E o melhor de tudo era gravidade nenhuma. ..
A raça humana ia se tornando mais remota, os laços de afinidade mais tênues. Talvez essas massas de
compostos instáveis de carbono que respiravam ar e eram sensíveis a radiações não tivessem direito a sair de uma
atmosfera. Deviam ficar nas suas pátrias naturais – a Terra, a Lua, Marte.
Um dia, os verdadeiros senhores do espaço seriam máquinas e não homens – e ele não era nenhuma dessas
duas coisas. Consciente, agora, do seu destino, sentia um orgulho sombrio da sua solidão sem paralelo – o primeiro
imortal, colocado entre duas ordens de criação.
Seria, afinal, um embaixador; entre o velho e o novo mundo – entre as criaturas de carbono e as criaturas de
metal que um dia tomariam o lugar daquelas.
Ambas necessitariam dele nos séculos perturbados que as aguardavam.
Fevereiro de 1971.
O AUTOR E SUA OBRA

Antes de ser um dos maiores escritores de ficção científica do mundo, Arthur Charles Clarke era um respeitado
autor de artigos científicos, e dono de algumas idéias que ajudaram a inovar a tecnologia contemporânea.
Inovador também dentro do seu gênero literário, foi ele um dos líderes do movimento que libertou a ficção
científica da fase de "ópera espacial" e a integrou em sua corrente mais criativa, por vezes até romântica e
poética.
Homem cheio de surpresas, vivendo hoje em Sri Lanka (Ceilão), Arthur Clarke nasceu na Inglaterra, em dezembro
de 1917. Aos dez anos, sua curiosidade era maior que a normal em uma criança: após receber uma coleção de
figurinhas de animais pré-históricos, passou a recolher e estudar fósseis. Dois anos depois, construía um
telescópio com as peças de um brinquedo. Aos quinze anos de idade, já escrevia contos fantásticos para o jornal
escolar, e aos dezessete tornava-se membro da recém-fundada Sociedade Interplanetária Britânica, da qual foi
presidente entre 1946 e 1947.
Os acontecimentos marcariam a vida do cientista e escritor em ritmo alucinante. Por volta de 1937, ele e alguns
amigos imprimiam um jornalzinho com o título em latim: "Novae Terrae" ("Notícias da Terra"), onde o jovem
autor tinha oportunidade de veicular seus artigos e contos. Veio a Segunda Guerra Mundial, e Clarke se alistou
como radio-técnico na Força Aérea Britânica.
Em período tão difícil, a criatividade de Clarke foi
mais uma vez ativada: com seu auxílio, as "jorças aliadas puderam operar em solo inglês um novo sistema de
radar, segredo militar naquela época. Finalmente, em 1945, a revista "Wireless World" editava o ensaio
"Extraterrestriai relays", em que o escritor propunha o uso de satélites dt comunicações em regime de consórcio
internacional, esboce do que hoje seria o conhecido Telstar.
Premiado pela UNESCO em 1962, pelos seus traba lhos científicos – láurea que o colocou ao lado de figura,
como Bertrand Russell –, Arthur Clarke somente ganhoi renome internacional a partir de 1969, quando o cinemt
transportou para a tela, sob a direção de Stanley Kubrick o famoso "2001, uma odisséia no espaço", cujo roteiro
fc extraído de seu conto "The sentinel".
Dono de incomum vitalidade, permanece hoje em su casa em Sri Lanka, com o tempo dividido entre os conto de
ficção, os mergulhos no oceano e as plantações experi mentais de arroz – iniciativa sua para combater a fom
mundial.
Juntando a realidade e a fantasia, Clarke nunca pn tendeu determinar uma fronteira rígida entre ciência
ficção, pois, para ele, "a única forma de se encontrar c limites do possível é ir além deles, até o impossível".
Outras obras suas são: "Areias de Marte" (1951 "A idade do ouro" (1953), "A cidade e as estrelas" (195( e
"Náufragos da Lua" (1961).

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