Diálogo Intercultural Na Educação Ambiental
Diálogo Intercultural Na Educação Ambiental
Diálogo Intercultural Na Educação Ambiental
Dissertação de Mestrado
Brasília-DF, Maio/2012
Dounis, Sumaya C.
Diálogo intercultural na educação ambiental: uma
pedagogia da palavra./ Sumaya Cristina Dounis.
Brasília, 2012.
134 p.:il
_________________________
Sumaya Cristina Dounis
2
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Aprovado por:
__________________________________________
Leila Chalub Martins, Doutora (Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS/UnB)
(Orientadora)
__________________________________________
Doris Aleida Villamizar Sayago, Doutora (Centro de Desenvolvimento Sustentável –
CDS/UnB)
(Examinador Interno)
__________________________________________
Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi, Doutora (Centro de Estudos Avançados
Multidisciplinares – CEAM/UnB)
(Examinador Externo)
3
Às minhas bisavós, às minhas avós, à minha mãe, às minhas irmãs
e às minhas filhas Ananda e Julia.
4
AGRADECIMENTOS
Às professoras Fátima Makiuchi e Dóris Sayago, pelas valiosas contribuições como integrantes da
banca examinadora;
Ao Frederico Barbosa, pela compreensão durante meu afastamento de nossa equipe de trabalho, e à
Valéria Labrea, pelo mesmo motivo e, ainda, pelas contribuições conceituais e filosóficas em nossas
conversas e pela espontânea doação de tempo para a revisão final do texto;
À minha irmã Liliane, por seu incentivo permanente, seus conselhos certeiros e sua disposição
amorosa para cuidar da Ananda e da Julia em minhas ausências para realização deste trabalho;
À mãe terra, por me acolher e renovar minhas energias sempre recorri à seu colo.
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[...] Um caboclo não é Serafim
Salve as folhas brasileiras
Oh salvem as folhas pra mim
Se me der a folha certa
E eu cantar como aprendi
Vou livrar a Terra inteira
De tudo que é ruim
Jota Velloso
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RESUMO
7
RESUMEN
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ABSTRACT
This present work is the result from the investigation of the traditional African and indigenous culture
educational dimension storytelling in the practice of environmental education. In its development, two
research movements dialogued: a literature review on culture, epistemological pluralism, oral tradition
and Critical Environmental Education, and research action with the teachers of the “Escola da
Natureza” (School of Nature) (collective researcher), involving the design and development of
workshops, aimed at generating ideas and proposals regarding the work with traditional stories in
environmental education practices. The intention was to build bridges, mediated by the dialogue of
knowledge, among the forms of education in the African and indigenous cultures and the practices of
environmental education, contributing to the testing of the teaching-learning methodologies that
integrate intercultural dialogue and expressions of the imagination as legitimate and valuable ways of
constructing knowledge.
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LISTA DE FOTOGRAFIAS
10
LISTA DE QUADROS
11
LISTA DE ABREVIATURAS
EA – Educação Ambiental;
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................14
CONCLUSÃO .......................................................................................................................114
ANEXO A ..............................................................................................................................126
ANEXO B ..............................................................................................................................128
ANEXO C..............................................................................................................................132
13
INTRODUÇÃO
Objetivos e pergunta
“A convivência nasce do diálogo que celebra nossas diferenças” são palavras de Sua
Santidade o Dalai Lama que expressam a essência da paisagem de reflexões e
aprendizados que inspiram esta pesquisa.
Essa paisagem foi se delineando ao longo das experiências vivenciadas em projetos
socioambientais no decorrer de minha trajetória profissional. Iniciei esse percurso durante a
1
As histórias africanas, tomadas como herança ancestral dos afrodescendentes, são raiz das manifestações
culturais afro-brasileiras. O § 1o do Art. 26-A, da lei nº 10.639/2003, define que “o conteúdo programático a que
se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos” (BRASIL, 2003).
2 Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se
obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
3
Neste trabalho, os termos histórias tradicionais e contos tradicionais são usados como sinônimos.
14
graduação em Administração, quando, buscando dar sentido interno ao aprendizado que se
processava em mim, fui trabalhar como voluntária em uma organização não-governamental
que desenvolvia projetos de meio ambiente no Cerrado e na Amazônia. Desde os meus
primeiros passos no caminho profissional, fez-se presente, de diferentes formas,
experiências e reflexões em torno da diversidade – também como diferença - e o diálogo.
Meu primeiro trabalho foi em um projeto voltado para o fortalecimento de cadeias
produtivas de produtos florestais não madeireiros na RESEX Chico Mendes. Sua realização
demandava uma alta capacidade de comunicação e gestão logística. O que ficou evidente é
que todos nós, tanto os técnicos do projeto quanto à comunidade da RESEX, estávamos
aprendendo. Esse aprendizado só podia ser possível por meio de muito diálogo. E
precisávamos aprender muito.
Nosso trabalho como ambientalistas era fortalecer formas de geração de renda que
evitassem o desmatamento e fossem baseadas em um plano de manejo sustentável. O
desejo da comunidade era conseguir seu sustento de forma digna, sem a preocupação de
estar descumprindo as leis ambientais. Ajustar nossos objetivos em uma direção comum era
um desafio que dependia de nossa capacidade de dialogar e demandava a habilidade de
saber olhar sob a perspectiva do outro, o que Buber (2007, p. 41) chama de “reciprocidade
da ação interior”. “Dois homens dialogicamente ligados devem estar voltados um-para-o-
outro” (Buber, 2007), e, possivelmente aí residia nosso desafio: nos voltarmos uns-para-os-
outros.
Superar esse desafio demandava um tempo de amadurecimento do processo que a
dinâmica de projetos não permite. A maior parte dos financiadores de projetos
socioambientais são regidos pela lógica corporativa da obtenção de resultados e impõem
essa mesma lógica aos projetos apoiados. Isso, por si só, engessa a construção
participativa e dialógica porque inicia processos sociais com definições previamente
moldadas a partir de uma perspectiva única. Essa mesma perspectiva também determina os
processos de trabalho nos projetos, que muitas vezes é dividido em “caixinhas” de
especialidades profissionais. Assim, meu trabalho foi pontual: fazer o mapeamento das
cadeias produtivas, articular seus elos e contribuir na elaboração de um planejamento para
o fortalecimento destas. Depois o projeto continuou e eu segui meu caminho levando
comigo reflexões e aprendizados. O maior deles fruto do encontro com Fabiano Banê
Kaxinawá, da etnia Huni-Kui, com quem comunguei o cipó Huni, ouvindo o mito de origem e
um canto desse povo, com a naturalidade de uma criança que desfruta do viver sem dar-se
conta da grandiosidade da experiência que está vivendo.
De volta à Brasília, algum tempo depois, fui trabalhar na gestão do projeto Verde
Esperança, de formação de Agentes Ambientais, numa comunidade de alta vulnerabilidade
socioambiental no entorno de Brasília, o Varjão do Torto. Convivendo com aquela realidade
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cada dia sob novas perspectivas, fui dissolvendo um olhar desconfiado e amedrontado e dei
lugar a um olhar de naturalidade e ao sentimento de estar entre iguais que vivem o desafio
da pobreza e a enfrentam com coragem e dignidade. A dignidade que lhes é possível.
Numa tarde, fazendo o repasse das bolsas aos jovens que eram o público do projeto,
fui surpreendida por um assaltante, que levou todo recurso destinado às bolsas, além de
minha carteira e documentos. Em pouco tempo, chegaram os policiais e me conduziram à
casa de um dos suspeitos. Lá perto, me mostraram uma foto. Estarrecida, vi que era um
menino entre seus catorze e dezesseis anos. Foi impactante para mim refletir sobre o que
exatamente eu estava fazendo naquela comunidade e qual a relação entre aquele episódio
e a atuação do projeto em que eu trabalhava. Ainda sob o impacto do ocorrido, atordoada,
tive a impressão momentânea de que aqueles policiais – inconscientemente - fingiam estar
trabalhando, porque era óbvio que todos nós naquela viatura sabíamos que aquela forma de
ação não resolveria a questão primordial com qual estávamos nos deparando, que
definitivamente não era a perda da minha carteira ou do dinheiro do projeto.
Aquela situação refletia uma questão muito mais profunda. Nesse processo de
reflexão me recordei que um dos critérios de seleção para os jovens integrarem o projeto:
era que o jovem estivesse estudando. E fiquei pensando sobre como a definição daquele
critério excluía os excluídos dentre os excluídos. Definimos critérios que exacerbavam as
diferenças construídas socialmente e inviabilizavam o diálogo. Trabalhar no Varjão
transformou meu olhar sobre o Varjão, sobre mim mesma e sobre a forma como lidamos
com a exclusão.
Aquela ONG tornou-se Ponto de Cultura, que são espaços amplificadores de
expressões culturais dentro das comunidades, apoiados pelos governos federal, estadual e
municipal. Testemunhei a convivência, o sentido de partilha e de algo a construir que os
grupos culturais daquela cidade experimentavam. Os encontros do pessoal do Rap, a Festa
Junina, a percussão com as crianças, o teatro, eram os espaços de aprendizado lúdico onde
reluzia o sentimento de estar fazendo algo de importante para a comunidade e para si
próprios, como cidadãos guardiões e disseminadores de expressões culturais do país. O
diálogo ali se fazia de múltiplas formas, as diferenças enriqueciam e fortaleciam. “Toda vida
verdadeira é encontro” (BUBER, 2004, p. 59).
As experiências com cadeias produtivas e no Ponto de Cultura me levaram a
trabalhar nos processos de diálogo das Câmaras Setoriais de Música, Teatro e Dança,
promovidos pelo Ministério da Cultura. O trabalho era diretamente relacionado ao diálogo
entre os integrantes das Câmaras e entre estes e o Estado, em reuniões para a construção
de propostas de política públicas para o fortalecimento das cadeias produtivas desses
seguimentos. Em seguida, vieram os Seminários Regionais de Cultura e a I Conferência
Nacional de Cultura. Num universo de diversidade, conseguir chegar a propostas por meio
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de um processo participativo é um grande desafio dialógico, especialmente em espaços
eminentemente políticos, onde os participantes estão mais tendenciosos a defender pontos
de vista que “sair-de-si-em-direção-ao-outro” (BUBER, 2007, p. 55), ato primordial da
experiência dialógica. O que não significa abrir mão de pontos de vista próprios, mas abrir-
se para o reconhecimento do outro.
Mais tarde, fui trabalhar no Ministério da Cultura, no Programa Cultura Viva, e pude
conhecer as várias faces dos Pontos de Cultura espalhados pelo Brasil. Um Ponto de
Cultura é antes de mais nada um lugar de aprendizagem pela convivência, já que “toda arte
é essencialmente dialógica” (BUBER, 2007, p. 60). Lugar de encontro - exercício de
“alcançar-o-outro” (BUBER, 2007, p. 55).
Enfim, por onde eu passava – presente da vida – ia surpreendendo-me pelo desafio
e a potência do diálogo e com possibilidades e limitações pessoais e coletivas para abraçar
a diversidade de opiniões, olhares, atitudes, entre outras diferenças, como um convite a
olhar sob novas perspectivas e encontrar novas respostas e principalmente novas
perguntas.
Minha trajetória foi então se fazendo entre a área ambiental e cultural, no governo e
em organizações da sociedade civil. Independente do espaço de trabalho, para mim, a
experiência de atuar no campo social e ambiental, sempre caminhou de mãos dadas com o
sentimento e o compromisso de ser educadora, ser alguém que reflete constantemente
sobre seu fazer com disposição de aproveitar todas as oportunidades para aprender, numa
experiência de partilha e reconstrução mutua. Nessa trajetória, me deparei com algumas
palavras de Daniel Munduruku4 que diziam que o educador é um confessor de sonhos e os
narra para inspirar outras pessoas a narrarem os seus, a fim de que o aprendizado ocorra
pela palavra e pelo silêncio (MESQUITA, 2003, p.29). Ao meu olhar, o educador há de ser
essencialmente um “dialogador” e o diálogo é bem isso: um encontro que envolve palavra e
silêncio, que é o espaço da escuta.
Na trilha de trabalho e estudo no campo da cultura, e em meu percurso de busca de
autoconhecimento – caminho é um só e os passos se somam -, entrei em contado com
saberes de povos tradicionais, a tradição oral e conheci a arte de contar histórias. Essa
experiência fez ressoar as memórias de muitos momentos de minha vida, quando lá em
Cachoeira Alta, interior de Goiás, onde morei com minha avó, nos reuníamos à porta no fim
da tarde, e entre amigos, vizinhos e familiares nos perdíamos – ou nos encontrávamos –
nas histórias e causos da cidade e do além. Assim, a experiência de ouvir e narrar histórias
integrou-se bem ao meu percurso, configurando-se para mim, desde o início, como uma
forma de diálogo, uma prática de construção de espaços de encontro aberto com a
4 Indígena da etnia Munduruku, graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia, doutor em
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diversidade. Para as comunidades tradicionais, sempre foi assim: contar histórias era uma
forma de convivência natural na partilha e no encontro, onde a educação acontecia no viver
cotidiano da coletividade.
Contar histórias é também confessar sonhos. O sonho de continuidade da cultura
que reúne um grupo e da legitimação da vontade de ser expressa na diversidade cultural.
Porque “aceitar a diversidade cultural não é um ato de tolerância para com o outro, distinto
de mim ou da minha comunidade, mas o reconhecimento desse outro (pessoal e
comunitário) como realidade plena, contraditória, como portador de saber, de
conhecimentos e práticas por meio dos quais ele é e tenta ser plenamente” (COLL, 2002,
p.41).
No contexto da educação nas escolas - fora das espaços dos povos tradicionais –,
esse sonho de continuidade e reconhecimentos das diferentes formas de enxergar o mundo
representado em cada cultura e expressado nas histórias tradicionais, pode desvendar
novas possibilidades, fazer nascer novas repostas gestantes de novas perguntas. No
diálogo, as diferentes perspectivas é o que enriquece e permite que se chegue a uma
solução melhor. Essa é uma visão sobre as possibilidades de ressignificação da tradição
oral. A prática de contar histórias é como uma paisagem que pode ser vista de várias
janelas (MACHADO, 2004). Neste trabalho, é pela janela do diálogo que tenho olhado essa
paisagem.
Conhecer o universo das histórias é enriquecedor porque, naturalmente, nos leva a
olhar por perspectivas diferentes e, a muitas vezes, nos surpreender com ângulos de olhar
sobre a vida até então desconhecidas. E, mesmo que não sejamos capazes de absorver um
outro olhar, temos a oportunidade de reconhecer como legítimas outras visões de mundo
estabelecendo com elas um diálogo que pode acontecer quando experimentamos “sair-de-
si-em-direção-ao-outro” (BUBER, 2007, p. 55). Pela história, em se tratando de tradições,
nos é dada a oportunidade não apenas de ouvir ou falar, mas de legitimar o outro que
fortalece sua existência por meio da história, aceitando-o em sua alteridade. Isso é diálogo.
Diálogo, resulta da fusão dos termos gregos dia e logos. Dia significa através, por
meio de. Logos significa palavra, expressão. “Cada palavra para além das suas
propriedades físicas, contém uma pluralidade de significados” (PAZ, 1994, p.16). Diálogo,
então, é uma via de partilha de significados. Implica abertura para que os sentidos e
significados fluam.
Em nosso mundo, cada vez mais, em vez de se promover o exercício da integração
de significados diversos, está sendo exigido que as outras lógicas, outros modos de ver e
agir no mundo, se adaptem ao padrão da lógica hegemônica. Isso demonstra a limitação de
nossa capacidade de diálogo e de convivência em estado de celebração da diferença. Já
dizia a música de Caetano: “é que narciso acha feio o que não é espelho”.
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Vivemos um momento em que “a humanidade enfrenta a opção entre sacrificar a
diversidade cultural no altar da globalização ou, ao contrário, fazer do diálogo intercultural
um instrumento a serviço do enriquecimento e do conhecimento mutuo entre as culturas,
passo fundamental para assegurar a possibilidade de um mundo justo, em paz e harmonia
[...]” (COLL, 2002, p. 21).
Nesse sentido, o diálogo é necessário em todos os campos, em todos os espaços
sociais. E tem se mostrado de extrema necessidade nos processos de conflito no campo
socioambiental. Nesses processos, nos deparamos com a evidência de que o diálogo é a
chave para nosso desafio mais atual, o de aprender a (com)viver.
Essa mesma ideia é expressa por Moraes (2003, p. 23) quando diz que “precisamos
aprender a viver/conviver com a mudança, com as diferenças, com a diversidade e a
pluralidade, pois, como humanidade, estamos desterritorializados e necessitamos aprender
a conviver com outras etnias, com diferentes costumes e valores”.
A partir dessa perspectiva, Moraes nos convida a refletir, a nos perguntar:
Como fazer? O que fazer? Qual é o papel da escola e do professorado
neste novo contexto de perplexidade e mudança? Como aprender a
viver/conviver com a diferença? Como desenvolver uma inteligência coletiva
e não apenas individual? Como aprender a respeitar as exigências de
sustentabilidade ecológica e os valores da dignidade humana? (MORAES,
2003, p. 23).
Motivações pessoais
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integrando saberes na busca de respostas para os desafios socioambientais com os quais
nos deparamos. Fazer emergir e partilhar outros olhares sobre as questões socioambientais,
olhando pelos olhos de outras culturas.
As histórias tradicionais são muito apropriadas para isso. Foi o que notei ao longo de
minha vivência como contadora de histórias. Além de partilhar o olhar das culturas
expressado por elas mesmas, a tradição oral tem intrínseca a ideia de alteridade de cada
um que escuta, porque a eles é dada a oportunidade de formular suas interpretações,
segundo suas experiências significativas. As histórias são um convite e não uma imposição.
Além disso, as histórias acessam espaços emocionais e cognitivos que, muitas vezes,
sentem-se ameaçados por pontos de vista novos ou divergentes e, assim, tornam-se
resistentes. Essa qualidade das histórias é bem ilustrada na história da Fábula, encontrada
em diferentes partes do mundo, sob diferentes vestes, mas mantendo a mesma estrutura.
Essa história conta que
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rainha. Ela desejava falar com o sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
– Como ela se chama?
– Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
– O quê? – disse o grão-vizir, completamente encantado – A Fábula quer
entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia!
As portas do grande palácio se abriram e por elas finalmente a andarilha foi
convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um
grande palácio e encontrar-se com o mais fabuloso sultão de todos os
tempos (MACHADO, 2004, p. 17).
Por muitas vezes, vivi essa experiência da Fábula com minha filha. Algumas
orientações que ela recebia com resistência, quando me dirigia à ela dando lições, eram
recebidas com abertura, quando transmitidas através de uma história. Depois, também vivi
essa experiência com outras crianças e até com adultos, em meus trabalhos como
contadora de histórias. Essas experiências somaram-se a outras, quando, algumas vezes,
lancei mão de histórias para estimular diálogos sobre questões socioambientais durante
oficinas de Educação Popular.
Essa prática sempre esteve imbuída de inquietações sobre como percebo as
correntes de Educação Popular e Educação Ambiental. Muitas vezes me angustiei diante de
argumentações que se debruçavam sobre questionamentos e mais questionamentos acerca
dos processos hegemônicos vigentes, discorrendo sobre a ingenuidade de práticas
educativas desprovidas de reflexão política. Essas discussões acabavam por conformar, a
meu ver, questionadores “de carteirinha” sem propostas claras e que dialogassem com a
integralidade do ser humano.
Outras vezes, me deparei com contradições internas, suspeitando das práticas de
educação que valorizavam o aspecto vivencial e amoroso da relação com o meio ambiente
e o outro, deixando de aprofundar em reflexões críticas sobre os processos políticos que
dão forma à realidade socioambiental na qual estamos imersos. Desejei encontrar o
caminho do meio: pensar e praticar educação ambiental, olhando ao redor – refletindo
politicamente – sem deixar de olhar dentro, considerando as múltiplas dimensões do ser
humano, resguardando a sensibilidade, a afetuosidade e o encantamento.
Assim, a ideia de trabalhar em uma proposta de Educação Ambiental que tomasse
as histórias tradicionais como meio para ensinar e aprender foi se consolidando, ganhando
forma. Transformou-se, então, em proposta de pesquisa ao somar-se ao propósito do grupo
de professores da Escola da Natureza, que desejavam trabalhar com histórias africanas e
indígenas, entre outras metodologias, visando integrar em suas práticas de educação
ambiental, nas rede pública de ensino, as orientações do Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB, que estabelece a obrigatoriedade de incluir no
conteúdo programático aspectos da história e da cultura afro-brasileira e indígena.
21
Percebi que esta pesquisa seria uma oportunidade de semear uma proposta de
Educação Ambiental baseada no diálogo intercultural, que explorasse nossas raízes
culturais, com foco em crianças e adolescentes estudantes da rede pública de ensino do
Distrito Federal. Enfatizo aqui a natureza experimental da pesquisa que esboçamos. Tanto a
tradição oral africana, quanto a indígena, têm uma amplitude que não há como dimensionar.
A intensão deste trabalho não foi abarcar essa amplitude, mas experimentar alguns passos
dentro desses universos, sentir o gosto de explorá-los e construir trilhas, ao mesmo tempo
avaliando as limitações e possibilidades da prática de Educação Ambiental por essa via.
A ideia foi construída inicialmente em conversa com a coordenadora pedagógica
da Escola da Natureza, Renata Lafetá, que dialogou com outros professores. Nasceu,
então, uma proposta de pesquisa baseada nos fundamentos da pesquisa-ação. A proposta
era desenvolver oficinas com os professores da Escola da Natureza, abordando o universo
da tradição oral africana (raiz afro-brasileira) e indígena, os fundamentos e técnicas da arte
de contar histórias, e a aplicabilidade desses conteúdos em práticas de educação ambiental.
Deixou-me feliz a possibilidade de contribuir com uma construção que pudesse ser
efetivamente aplicada e a oportunidade de dialogar com professores que tinham experiência
cotidiana de educação ambiental na rede pública de ensino. Para os professores, foi uma
oportunidade de conhecer - dedicando tempo - a arte de contar histórias como instrumento
pedagógico, também, uma oportunidade de se instrumentalizarem para seguir as
orientações da LDB explorando um pouco do universo da tradição oral africana e indígena.
Nos deparamos como grupo de pesquisa com alguns desafios. Pouco tempo
disponível, pois os professores tinham um calendário de atividades muito extenso. E, ainda,
a probabilidade de mudança do corpo de professores da escola da natureza, com a iminente
reestruturação da Secretaria de Educação do DF, o que reduziu nossa possibilidade de
planejar desdobramentos futuros para a pesquisa.
Nesse sentido, a pesquisa imbuiu-se principalmente da intenção de vivenciar e
registrar a experiência em si. Um processo de experimentação e avaliação da narração de
histórias tradicionais como pilar de metodologias de educação ambiental. Como
desdobramento, o desejo era inspirar educadores a explorar essas trilhas do diálogo
intercultural por meio de narrativas de histórias tradicionais em processos de educação
ambiental, adaptando e reinventando a experiência registrada, no trabalho com crianças e
adolescentes na educação escolar ou informal.
Vislumbramos também a possibilidade de colaborar para a valorização e a
disseminação de saberes das culturas afro-brasileira e indígena, contribuindo para a revisão
da deslegitimação histórica desses saberes, além de favorecer uma ecologia de saberes,
inspirada na visão de Boaventura de Sousa Santos (2006), ao propor uma produção de
conhecimentos de forma ecológica com a participação de diferentes saberes e seus sujeitos.
22
Bases metodológicas da pesquisa
23
A revisão bibliográfica correspondeu a busca de bases históricas e teóricas para a
fundamentação da pesquisa. Os principais autores pesquisados foram Martin Buber (diálogo
e relação com o outro), Boaventura de Sousa Santos (ecologia dos saberes), Edgar Morin,
Enrique Leff (epistemologia ambiental), Basarab Nicolescu (transdisciplinaridade), Maria
Candida Moraes (educação), Isabel Carvalho (educação ambiental), Vera Candau (oficinas
pedagógicas), Darcy Ribeiro (formação do povo brasileiro), Roque de Barros Laraia
(cultura), Agustí Nicolau Coll (diálogo intercultural), Câmara Cascudo (tradição oral), Regina
Machado (tradição oral) e Amadou Hampâté Bâ (tradição oral).
No primeiro capítulo, aborda-se a educação na sociedade multicultural, o conceito de
cultura, perpassando multiculturalismo, pluralismo cultural e diálogo intercultural.
Apresentam-se, ainda, alguns aspectos da face africana e indígena na formação do Brasil,
perpassando seus legados e a transmissão de conhecimentos pela tradição oral.
No segundo capítulo, aborda-se o novo paradigma proposto para dar nascimento a
processos de educação transformadores e que possam responder aos desafios atuais,
contribuindo para uma educação integral do ser humano, e a partir disso, faz uma leitura dos
desafios envolvidos na abordagem da história e da cultura afro-brasileira e indígena na
escola. Discute-se, então, uma via de educação ambiental baseada no diálogo, no encontro
e na troca que permeiam o contexto da tradição oral.
No terceiro capítulo, conta-se a trajetória da pesquisa realizada junto à Escola da
Natureza, focando o trabalho com histórias tradicionais em processos de Educação
Ambiental. São descritas as oficinas realizadas, o processo vivenciado e as reflexões
partilhadas pelo grupo de pesquisa. Nesse capítulo, são transcritas as histórias que foram
trabalhadas nas oficinas.
Por fim, apresenta-se a conclusão do processo de pesquisa, refletindo sobre as
possibilidades e limitações da proposta de abraçar o diálogo intercultural, por meio de
histórias tradicionais, nas práticas de Educação Ambiental, e ponderando em que medida a
abordagem de histórias da tradição oral africana e indígena é capaz de favorecer a
formação de valores e induzir práticas compatíveis com a transição paradigmática proposta
pela EA emancipatória. Pondera-se também a respeito do papel das instituições e políticas
que orientam a educação das relações étnico-raciais no Brasil.
Importância da pesquisa
24
de uma construção histórica que passa pela exploração da natureza e subordinação das
minorias.
Assim, à custa de transformações intensas nos modos de vida de populações em
todo o mundo, tem se dado o avanço do sistema capitalista. Em contraste a esta forma de
disseminação do modelo capitalista, “os princípios ambientais do desenvolvimento
fundamentam-se numa crítica à homogeneização dos padrões produtivos e culturais,
reivindicando os valores da pluralidade cultural e da preservação das identidades étnicas
dos povos” (LEFF, 2000, p. 112). Leff (2000), defende que tais princípios éticos tratam-se de
uma condição para concretizar projetos de gestão ambiental em nível local e, deste modo,
contribuir para a sustentabilidade global.
Morin nos lembra que o âmago do conceito de sustentabilidade é o princípio ético da
solidariedade. Esse princípio, diz Morin,
5
Hassane Kouyaté é um contador de histórias de Burkina Faso pertencente a uma família de griots.
25
como veremos nesta pesquisa, esse desafio solicita que o educador exercite a
transformação de seu próprio olhar.
Sabemos que
a existência de um mundo e de uma sociedade em rede apresenta
importantes consequências para a educação. Influencia a maneira de
trabalhar em educação, de aprender e de educar, bem como a maneira de
preparar o indivíduo para o trabalho e para a aprendizagem continuada ao
longo da vida (MORAES, p. 21).
26
presentes (SANTOS, S., 2007). Da perspectiva da ecologia dos saberes “o importante não é
ver como o conhecimento representa o real, mas conhecer o que determinado
conhecimento produz na realidade, a intervenção no real” (SANTOS, S. 2007, p. 33).
A ecologia dos saberes “trata da possibilidade de que a ciência entre não como uma
monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber
científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos
indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês”
(SANTOS, 2007, p. 32).
Na visão de Carvalho (2004, p. 38), “para apreender a problemática ambiental, é
necessário uma visão complexa de meio ambiente, em que a natureza integra uma rede de
relações não apenas naturais, mas também sociais e culturais.”
Essa mesma visão está expressa no Tratado de Educação Ambiental para
Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Nesse Tratado, o princípio de número
seis declara que “a Educação Ambiental deve estimular a solidariedade, a igualdade e o
respeito aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e interação entre as
culturas”. O princípio nove manifesta que “a educação ambiental deve recuperar,
reconhecer, respeitar, refletir e utilizar a história indígena e cultura locais, assim como
promover a diversidade cultural, linguística e ecológica”. Ainda no item III, Plano de Ação,
está declarado que é papel da Educação Ambiental “fazer circular informações sobre o
saber e a memória populares”.
Essas orientações do Tratado, a meu ver, favorecem a prática de Educação
Ambiental como “uma aprendizagem em seu sentido radical” como proposto por Carvalho
(2004, p. 69), “a qual, muito mais do que apenas prover conteúdo e informações, gera
processos de formação do sujeito humano, instituindo novos modos de ser, de
compreender, de posicionar-se ante os outros e a si mesmo, enfrentando os desafios e as
crises do tempo em que vivemos” (CARVALHO, 2004, p. 69). Isso porque está imbuído, em
nosso desafio atual, a necessidade de aprender a olhar para o outro - ser humano, animal
ou árvore - não como um recurso a nossa disposição, mas como um ser que compõe a
existência, vive e quer viver. A partir desse olhar, poderemos aprender a viver - que é
sempre viver “com”, conviver.
E as histórias tradicionais nada mais são que um compêndio sobre o saber viver no
mundo, na perspectiva de diferentes culturas. Dentro da tradição oral, as histórias somam-
se aos provérbios, ditados, versos e cantos, nos quais reúnem-se os conhecimentos de
cada povo. E “é por meio do conhecimento que compreendemos a razão por que estamos
no mundo e por que somos o que somos, pois não estamos no mundo somente para viver,
mas sim para saber viver”, como diz um provérbio Mawé.
27
1 SOCIEDADE MULTICULTURAL E O DESAFIO DA EDUCAÇÃO
28
cultural.
Uma leitura é a de que o colonialismo, negador da diversidade humana, marcado na
história do mundo ocidental, numa trajetória de dominação política na relação com
diferentes grupos – configurando narrativas de vitória e conquista, nas empreitadas de
dominação e extermínio de povos e culturas – tenha se reproduzido na escola.
Em sua reflexão, Gusmão aponta para o fato de que
29
organização e economia - mais solidárias e assim revela a face deformada do capitalismo. É
a presença do rosto que o capitalismo, mesmo infiltrado em todos espaços e relações, não
logrou extinguir. Que podemos reconhecer, mas não nos é possível conhecer.
Esse rosto se revela por meio das perspectivas interculturais, que possibilitam o
reconhecimento da existência de sistemas epistemológicos plurais, alternativos à ciência
moderna ou que com esta se articulam em novas configurações de conhecimento, em que
podemos vislumbrar uma abertura epistêmica, “no sentido de tornar visíveis os campos de
saber que o privilégio epistemológico da ciência tendeu a neutralizar, e mesmo a ocultar ao
longo de séculos” (SANTOS, S., 2008, p. 152).
No âmago desse processo de legitimação de campos de saber diversos ressoa a
pergunta “porque são todos os conhecimentos não científicos considerados locais,
tradicionais, alternativos ou periféricos?” (SANTOS, S., 2008, p. 153). Essa questão localiza
as dicotomias que sustentam a hierarquia entre o científico e o não científico como
monocultura/multicultura; global/local; desenvolvido/subdesenvolvido; avançado/atrasado;
saber moderno/saber tradicional, entre outras. Segundo Santos, S. (2008, p. 153), “cada
uma delas revela uma dimensão da dominação”.
Se refletirmos criticamente, desconfiando da posição inquestionável a que a ciência
moderna se autopromove, e reconhecendo todo conhecimento como parcial e situado,
podemos começar a considerar o valor dos conhecimentos segundo suas capacidades de
responderem às demandas do real dentro de contextos sociais. Assim, veremos que a
nenhum conhecimento é possível oferecer respostas para todas as manifestações do real.
Aqui é importante ponderar sobre o significado de real. “Em toda cultura é possível
falar em pelo menos três níveis de realidade, entendida como o modo global de vida de um
povo ou sociedade” (COLL, 2002, p. 32). Há o nível dos valores e crenças em que cada
cultura fundamenta e desenvolve sua maneira de conceber a realidade e de se situar nela.
Esse nível diz respeito principalmente à ordem do mythos – o que acreditamos sem saber
que acreditamos - como as raízes da árvore que são invisíveis, mas essenciais ao seu
desenvolvimento. Há o nível das instituições que dão concretude e estrutura aos valores e
crenças. E há também o nível das práticas cotidianas nos âmbitos político, econômico,
organizativo, educacional, religioso, dentre outras instâncias da realidade, que são os
elementos mais visíveis de qualquer cultura (COLL, 2002).
Se a nenhum conhecimento é possível oferecer respostas para todas as
manifestações do real, a homogeneização cultural engendrada pela atual reorganização
global da economia capitalista reduz nossas possibilidades de respostas e faz isso através
de “marginalizações, silenciamentos, exclusões ou liquidações de outros conhecimentos”.
(SANTOS, S., 2008, p. 153). Os silenciamentos dos conhecimentos, muitas vezes levam ao
30
silenciamento da própria realidade na qual se situam, dissolvendo formas de organização
social.
De outro lado, a perspectiva crítica de que todos os conhecimentos são contextuais e
parciais abre a visão para a diversidade epistemológica do mundo, que é potencialmente
infinita, e possibilita o reconhecimento de uma pluralidade de conhecimentos e de
concepções distintas sobre a dignidade humana e sobre o mundo. Santos, S. (2008, p. 154)
argumenta que essa perspectiva dá nascimento a uma via de emancipação.
Santos, S. (2008) propõe, então, construir, como prática constante do processo de
estudo, de pesquisa-ação, um modo verdadeiramente dialógico de engajamento
permanente, articulando as estruturas do saber moderno/científico/ocidental às formações
nativas/locais/tradicionais de conhecimento, uma ecologia de saberes, entendida
principalmente como ecologia de práticas de saberes.
31
Para Santos, S.,
Encontramos aqui sentido para a questão que Santos, S. (2008, p. 157) diz ser
crucial na perspectiva da ecologia de saberes: o que se aprende vale o que se esquece e
desaprende? “A ignorância só é uma forma desqualificada de ser e de saber quando o que
se aprende vale mais que o que se esquece” (SANTOS, S.,2008, p. 157).
Acontece que muitos povos abandonam seus saberes em busca da terra prometida
pela ciência moderna e pelo capitalismo, e então ficam desterritorializados de chão e de
7 A palavra Mapuche significa “gente da terra” e trata-se de um povo que desenvolveu sua cultura entre o sul de
Buenos Aires e o rio Maule na zona central do Chile e teve sua terra arrebatada durante a invasão européia
(NÉSTOR, 2006).
32
sentido. O Movimento dos Trabalhadores Sem-terra talvez seja uma representação material
e visível de tantos sem-terra no sentido simbólico. Indivíduos que abandonaram seus
lugares e costumes acreditando numa ideologia de progresso divulgada pela mídia e
chegam a novos lugares onde também não encontram espaço, acesso ao consumo,
inclusão. Será que o movimento sem-terra não teria esse caráter de não apenas se
configurar como um movimento em busca de terra, mas também em busca de reconstituir
um território simbólico e de saberes, visto estarem desterritorializados em todos os
sentidos? Há também aí um aspecto contraditório da ciência moderna, que se pretende
universal, sem permitir um acesso universal. E aí reside o caráter de exclusão promovido
pela crença de que a ciência moderna é universal.
“As práticas de saber dominante são as que assentam na ciência moderna. Como
esta não está distribuída equitativamente no mundo, nem como sistema de produção nem
como sistema de consumo, as desigualdades no acesso, controle e uso da ciência são o
resultado de desigualdades sociais e reforçam-na.” (SANTOS, S.,2008, p. 158).
“O privilégio concedido às práticas científicas significa o privilégio das intervenções
no real humano e natural tornadas possíveis por elas. As crises e as catástrofes que
decorrem eventualmente de tais práticas são socialmente aceitas como custos sociais
inevitáveis [...].”(SANTOS, S., 2008, p. 157). No entanto, os custos com frequência recaem
sobre aqueles que não têm acesso aos benefícios.
É fundamental que a reflexão de base dos educadores para fundar a abordagem das
culturas afro-brasileira e indígena seja a de que “a injustiça social assenta na injustiça
cognitiva” (SANTOS, S., 2008, p. 158). Nesse sentido, se um professor deixa de abordar
algum conhecimento ou elemento de outras culturas baseado em suas próprias crenças, ele
mesmo está cometendo e reproduzindo uma injustiça.
Essa é uma característica do pacto entre capitalismo e a ciência, que faz as
comunidades duvidarem das formas de saber que sempre regeram suas vidas. E a escola
se vê como um estrutura de reprodução desse paradigma. Então, outras formas de
conhecimento que regem culturas que sobrevivem à margem da sociedade moderna são
geralmente abordadas na escola como curiosidade, muitas vezes fazendo parecer que
esses povos precisam de educação, dessa educação feita nas escolas.
Por outro lado, nessas culturas vigoram outras formas de educação. Seria importante
que os educadores conhecessem essas formas de educação para repensar sua prática. No
Encontro A voz das avós8, Benki Ashaninka9 disse que: “As crianças da cidade vão para a
escola desde cedo, mas se forem deixadas na rua, nas imediações de suas casas
8 Encontro de lideranças e anciãs de culturas tradicionais do Brasil e de outros países, ocorrido entre 21 à 24 de
33
provavelmente se perderão e não saberão como se alimentar e cuidar de si mesmas. Mas
as crianças indígenas se deixadas na floresta, sabem se alimentar e encontrar o caminho de
volta para casa. Isso porque desde bem cedo na tribo as crianças participam com os adultos
das atividades cotidianas”. Não há como deixar de reconhecer nessa fala o caráter de
aplicação prática dos saberes do povo Ashaninka.
Esse caráter vai ao encontro da ecologia de saberes, que se pauta pelo princípio da
precaução, formulado a partir da concepção de que, sempre que há intervenção no real, em
igualdade de circunstâncias, deve preferir-se a forma de conhecimento que garanta a maior
participação dos grupos sociais envolvidos na concepção, execução, controle e fruição da
intervenção (SANTOS, S.,2008).
A perspectiva de ecologia de saberes inclui também a ideia de que não é possível
dissolver a injustiça cognitiva por meio da distribuição mais equitativa do saber científico,
devido a seus limites em relação à possibilidade de intervenção no real, e a ideia de que a
ecologia dos saberes deve ser produzida ecologicamente envolvendo a participação de
diferentes saberes e seus sujeitos. Considera-se, ainda, que não há conhecimentos que não
seja conhecido por alguém para alguns objetivos e que todos os conhecimentos sustentam
práticas e constituem sujeitos.
A partir dessa ideia – de que todos os conhecimentos sustentam práticas e
constituem sujeitos – consideram-se como dadas, neste trabalho, a legitimidade e a validade
dos saberes dos povos tradicionais e suas formas de transmissão. Assim, a visão da
ecologia de saberes com a qual dialogamos não pretende argumentar a favor dessa
legitimidade ou validade. O que se pretende é subsidiar a reflexão de educadores no sentido
de rever os fundamentos de sua prática de educador de modo geral, e em especial, no que
diz respeito ao atendimento das determinações da LDB - Art. 26-A - quanto à
obrigatoriedade de estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.
Não se deve supor que tal determinação possa ser atendida abordando a história e a
cultura afro-brasileira e indígena, como um tema, em uma ou outra aula, enquanto a postura
e a prática dos educadores e da escola contradizem o valor e a legitimidade desses
conhecimentos. Se uma nova perspectiva que legitime e valorize os saberes representados
na cultura afro-brasileira e indígena, e que questione a suposta universalidade do saber
científico, não se refletir em todos os momentos da prática do educador, há o risco de
reproduzir um padrão conteudista - de depósito de informações logo esquecidas - que nada
agrega ou altera em termos de valores, reflexões ou experiências transformadoras na vida
do educando.
34
Por isso, é preciso ter um olhar crítico sobre a efetividade dessa determinação legal,
que inclusive aponta as disciplinas em que, preferencialmente, serão abordadas as histórias
e as culturas afro-brasileira e indígena, reproduzindo uma visão fragmentária que acaba por
permear as políticas públicas de formação e instrumentalização dos educadores. Seguindo
essa via, a conquista do movimento das minorias afrodescendentes e indígenas poderá
fracassar, à medida em que o atendimento aparente de suas reinvindicações dará margem
à que nenhuma transformação real ocorra no campo da educação.
A abordagem fragmentária e conteudista tende a apresentar as culturas
afrodescendentes e indígenas como um quadro a ser apreciado, e talvez interpretado, sobre
a parede de um museu. Mas as culturas não são para serem apreciadas dessa forma,
porque nelas corre sangue, um fluxo vital que nutre e possibilita a manutenção de um outro
modo, em constante transformação, de ser e ver o mundo, provendo-o de infinitas
possibilidades de respostas às suas infinitas manifestações do real.
As culturas afro-brasileira e indígena não são quadros que têm por trás uma face que
representa a visão de uma época ou estilo, mas são como fractais que refletem milhões de
faces que se sucederam numa construção coletiva que veio a constituir a própria vida de
cada um ao mesmo tempo em que constituía o mundo. Não um pedaço do mundo reduzido
a um território, mas um todo maior que suas partes que podemos vislumbrar sobre o
horizonte da visão complexa de Morin (2000).
Diante disso, a perspectiva de ecologia de saberes se mostra como via para uma
reflexão aprofundada que atenda a urgência de revisão das práticas da educação diante da
diversidade cultural que tece o mundo e é ressaltada com o fenômeno da globalização,
conformando sociedades multiculturais, “que apresentam uma composição multicultural
diversa resultante de fluxos migratórios” (COLL, 2002, p.94).
Dessa complexa configuração sociocultural emergem conflitos e relações
interculturais de várias ordens, na maioria das vezes delineados pelo paradigma de validade
exclusiva da ordem da sociedade moderna em suas formas de conhecimento, organização,
economia, estética, entre outras. A revisão e o reequilíbrio dessas relações passa pela
construção de uma atitude de diálogo intercultural. Essa é uma responsabilidade
fundamental do educador em vista de seu papel na sociedade, e também por ser o espaço
da escola um dos primeiros palcos das relações interculturais entre sujeitos.
Compreender o sentido de diálogo intercultural e sua importância, demanda o
entendimento de outros termos que esse conceito abrange, como cultura, interculturalidade
e pluralismo cultural. Sugere ainda a necessidade de discutir alguns sintomas sociais
relacionados ao desequilíbrio das relações interculturais na sociedade moderna.
35
1.3 CULTURA, INTERCULTURALIDADE E PLURALISMO CULTURAL
36
significados que compreende categorias ou unidades e regras sobre relações e modos de
comportamento (visão de David Schneider) (LARAIA, 2007).
Um outra perspectiva de cultura é apresentada no relatório Investir na diversidade
cultural e no diálogo intercultural (UNESCO, 2009). Nesse documento a significação de
cultura é apresentada sobre dois ângulos diferente e ao mesmo tempo complementares: “a
cultura é simultaneamente a diversidade criativa plasmada em culturas concretas e o instinto
criador que se encontra na origem dessa diversidade de culturas” (UNESCO, 2009, p. 8).
Segundo essa visão, “esses dois significados, um que toma a si próprio como referente, e
outro que se transcende, são indissociáveis e constituem a chave da interação frutífera de
todos os povos no contexto da globalização” (UNESCO, 2009, p. 8).
Mais que conhecer as abordagens conceituais do termo cultura, é importante
compreender de que forma ela molda a vida de cada um. “A cultura é como uma lente
através da qual o homem vê o mundo” (BENEDICT, 1972, apud LARAIA, 2007, p. 67). Essa
mesma visão é expressa por Coll (2002, p. 46) quando diz que “cada cultura é um ponto de
vista quanto à realidade, condicionado e determinado pelo próprio contexto e pela história.
Cada cultura é um perspectiva sobre a realidade e a perspectiva é sempre parcial. Assim,
podemos dizer que cada cultura vê toda a realidade, parcialmente”.
Nessa perspectiva, Laraia (2007, p. 67) observa que “a nossa herança cultural,
desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir
depreciativamente em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões
aceitos pela maioria da comunidade”.
Aqui adentramos na questão dos sintomas sociais relacionados ao desequilíbrio das
relações interculturais na sociedade moderna, delineada por sociedades multiculturais – que
apresentam composição cultural diversa. Essas sociedades comumente apresentam uma
“composição cultural em que prevalece um grupo dominante, que geralmente desenvolveu
sua cultura no próprio território, e diversos grupos sociais, mais ou menos subalternos,
procedentes de outros lugares, por motivos diversos (políticos, econômicos, sociais etc.)”
(COLL, 2002, p. 94).
A partir dessa configuração, segundo Coll (2002), as relações interculturais
estabelecidas apresentam uma série de desequilíbrios, observáveis a partir de alguns
sintomas. Um deles é a exclusão social e econômica devido a uma divisão étnico-cultural do
mercado de trabalho a partir do momento em que imigrantes ocupam postos de trabalho
rejeitados pelos naturais da localidade. Essa inserção profissional precária faz como que os
imigrantes tenham dificuldade de estabelecer e manter vínculos com o resto da sociedade.
Essa situação tende a se perpetuar pelas gerações seguintes, visto que nesse contexto o
imigrante dificilmente poderá oferecer condições sociais mais dignas para seus filhos.
37
Outro sintoma de desequilíbrio que pode ser observado nas relações interculturais,
ainda segundo Coll (2002), são os fatos e atitudes de xenofobia e racismo. Esse sintoma se
manifesta tanto em atos violentos contra os imigrantes e seus bens, como em atitudes de
rejeição implícitas por parte de segmentos importantes da população. Também acontece de
comunidades de origem cultural diversa não estabelecerem, salvo em casos isolados,
relações mais próximas entre si. Outro aspecto importante a ser mencionado é o fato de que
as comunidades receptoras de imigração possuem a respeito da cultura dos imigrantes
conhecimento mínimo e quase sempre dominado por estereótipos.
Todos esses sintomas demonstram o quanto a sociedade atual está despreparada
para lidar com a questão da diversidade cultural. Na visão de Coll (2002), para enfrentar
esse desafio as sociedades multiculturais precisam tornar-se verdadeiramente interculturais
e para isso, a coesão e a harmonia sociais devem se articular, não apesar das diferenças,
mas graças a elas. No entanto, há alguns pré-requisitos para alcançar esse fim, conforme
explica Coll (2002): integrar toda a sociedade a uma realidade culturalmente pluralista;
articular a coesão social sobre uma base comunitária e lutar contra toda forma de exclusão.
A integração de toda a sociedade a uma realidade culturalmente pluralista implica a
capacidade de perceber os imigrantes ou as minorias como pessoas capazes de
acrescentar riqueza ao conjunto da sociedade. Um dos elementos básicos para que a
integração seja possível é o estabelecimento de vias de comunicação entre os grupos e no
interior deles (SALT, 1998 apud COLL, 2002).
Coll (2002) traz a visão de que o significado de pluralismo vai além da ideia
multiplicidade de verdades, mas se faz na perspectiva de que a verdade é pluralista em si
mesma, por ser a expressão do pluralismo da realidade que encarna em distintas culturas.
Assim, Coll afirma que
38
profunda, que procura construir-se e situar-se em determinado ponto do tempo e do espaço
e sem a qual ser pessoa não faz sentido” (COLL, 2002, p. 40). Isso porque diversidade
cultural refere-se “a pessoas e comunidades humanas que, por razões e por motivos muito
diferentes, desenvolveram modos especiais de viver, que são criadores de sentido não
apenas material e individual, mas também espiritual e coletivo” (COLL, 2002, p. 40).
Nesse sentido, abrigar a diversidade cultural é acolher a complexidade humana, “que
não admite visões uniformes e redutoras, a cujas restrições a vida jamais se submete”
(COLL, 2002, p. 41). Esse acolhimento é possível por meio de uma relação de intercâmbio e
diálogo entre diferentes culturas sempre com base numa visão de irredutibilidade de cada
uma delas. Aqui adentramos a noção de interculturalidade e diálogo.
Para compreender a noção de interculturalidade continuamos a recorrer às
elaborações do sociólogo Agustí Nicolau Coll no título Propostas para uma diversidade
cultural e intercultural na era da globalização. Tendo em vista a impossibilidade de existir
uma realidade neutra, segundo Coll (2002, p.49), “a interculturalidade não pode significar o
estudo de uma cultura, ou das relações entre duas culturas diferentes, com base nos
critérios e valores de apenas uma delas ou de um ponto de vista considerado neutro e
universal (acultural, transcultural ou supracultural), considerando a impossibilidade de existir
uma realidade neutra.
Assim, a interculturalidade acontece no encontro de culturas a partir de bases,
fundamentos, matrizes ou lugares únicos de cada uma das culturas, em presença de um
horizonte comum que não pertença com exclusividade a nenhuma delas (Coll, 2002). Essa
mesma ideia é concebida na ecologia de saberes. Santos, S. (2008, p. 161) defende que
uma condição para a busca de convergência de conhecimentos, sobre a qual se assenta a
ecologia de saberes, é que entre diferentes saberes, seja possível identificar algo comum
que permita falar de relações existentes ou futuras. Ou seja, a proposta de ecologia de
saberes tem como condição a criação de pontes entre saberes. Para Santos, S. (2008) pode
essa ponte ser estabelecida até mesmo por movimentos de contemplação e diálogo em
torno das questões de incomensurabilidade ou de inteligibilidade recíproca.
Essa perspectiva de interculturalidade evoca o axioma do terceiro incluído – existe
um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não-A –, tal como clarificado por Nicolescu
(1999). Assim, o que a interculturalidade sugere é que, em lugar da lógica de par binário (A,
não-A), verdade, não-verdade, se introduza a não-contradição com vários valores de
verdade. “Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão entre
os contraditórios promove uma unidade mais ampla que os inclui” (NICOLESCU, 1999,
p.14).
No que concerne aos casos complexos como o campo social ou político, Nicolescu
(1999) observa o quanto a lógica binária é nociva, agindo como uma verdadeira lógica de
39
exclusão numa perspectiva dicotômica de bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou
homens, ricos ou pobres, brancos ou negros. Em sua visão, seria revelador analisar o
racismo à luz da lógica do terceiro excluído.
Voltando a Coll (2002), a interculturalidade acontece no encontro da totalidade da
realidade existencial que cada uma das culturas, à sua maneira, constitui de forma única, e
assim, esse encontro perpassa não só as categorias lógicas (logoi) dos sistemas de signos
e das representações de cada uma das culturas, mas envolve as práticas, crenças e
matrizes, bem como os símbolos, rituais, mitos.
Revelam-se, então, numa cultura, dimensões de realidade além da dimensão
racional que busca responder aos desafios materiais: trata-se da dimensão mítico-simbólica
e da dimensão do mistério. A dimensão mítico-simbólica, explica Coll,
Essa dimensão não pode ser apreendida pela razão porque envolve aquilo “que não
pode ser pensado, nem dito, mas que é tão real quanto aquilo que percebemos valendo-se
da razão” (COLL, 2002, p. 35).
Já a dimensão do mistério envolve aquilo que não pode ser pensando nem definido,
excedendo a toda conceitualização e simbolização, o que nem por isso lhe confere a
posição de enigma a ser resolvido, mas prenuncia a liberdade total da realidade, que é
preciso viver em toda sua profundidade (COLL, 2002). Essa dimensão pode ser vislumbrada
em um trecho de As máscaras de Deus, de Campbell, quando este se refere aos jogos e
exercícios religiosos populares:
40
santuário ou participar de uma festividade é deixar-se tomar pelo estado
que na Índia é conhecido como “a outra mente”, em que se está “fora de si”,
encantado, separado de sua própria lógica de autopossessão e subjugado
por uma força de uma lógica “não dissociativa” – na qual A é B e C também
é B. (CAMPBELL,1992, p. 34).
41
então, compreender o diálogo mais como meio que como fim. E, nesse sentido, o ir-em-
direção-ao-outro – reflexo e refletor de uma cultura distinta, muitas vezes nem visto como
tal, mas apenas como outro – é a experiência que se constrói no próprio caminho de ir-em-
direção-ao-outro.
Mas sendo a experiência do diálogo autêntico algo incomum dentro de nosso
paradigma sociocultural, esse é um caminho a ser buscado, desvendado. Nos espaços de
educação, onde cruzam-se várias expressões da diversidade, o desafio de buscar esse
caminho está posto e antecede a qualquer determinação normativa e ao mesmo tempo, não
pode ser realizado tão somente a partir da vigência de uma lei. Sendo assim, a mais
evidente contribuição de uma disposição legal como a do Art. 26-A da LDB é ressaltar a
falha da instituição educacional no Brasil em assumir seu papel na formação integral do ser
humano, baseada no respeito e na ampla participação sociocultural. Por outro lado, esse
normativo nos indica por onde começar: pela abordagem da história e cultura afro-brasileira
e indígena – matrizes que confluíram para a formação do povo brasileiro – nos
estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.
Sem perder de vista o papel da escola de desenvolver um caminho integrativo em
seu processo pedagógico, acolhendo e integrando a toda diversidade que conforma a
sociedade de nosso tempo, o foco na abordagem afro-brasileira e indígena é muito
representativa, já que no espaço da escola, embora haja um campo de configurações
múltiplas em termos culturais, a face africana e indígena ainda é bem marcada – não se
dissolveu em meio às sociedades multiculturais que conformam o Brasil. Darcy Ribeiro, uns
dos estudiosos que mais se aprofundou no conhecimento e reconhecimento dessas faces,
diz que “há poucas coisas mais resistentes que uma etnia, que a identidade de um povo.
[…] Se o pai pode criar os filhos, se o filho se cria na tradição dos pais, na língua dos pais,
ele permanece sendo ele. Por que? […] Por uma identificação íntima, secreta, lá dentro”
(RIBEIRO, 2000).
Pensar sobre como e em que bases desenvolver uma abordagem das histórias e
culturas afro-brasileira e indígena demanda que se busque conhecer e reconhecer suas
faces, no que são agora e em sua origem, conhecendo seus traços fundamentais. Isso
depende de um processo sistemático de estudo e desenvolvimento de políticas para a
formação dos educadores.
É preciso desfazer-se da prática conteudista e da fé legalista, como se instituir uma
lei e disponibilizar materiais pedagógicos, fossem ações mágicas, uma espécie de “faça-se”.
Durante a pesquisa de campo - descrita no terceiro capítulo deste trabalho – os professores
da Escola da Natureza apontaram a existência de materiais sobre quilombolas em sua
biblioteca, distribuídos pelo Ministério da Educação, de que ainda não tinham feito uso, pois
ainda precisam descobrir como trabalhariam esses materiais. Isso revela os aspectos falhos
42
do paradigma que conforma as bases políticas das instituições que orientam a prática
educacional na escola.
10 “Os Kadiwéu são os remanescentes no Brasil dos índios Guaikuru.
43
que tenham o brasileiro de singular em relação aos portugueses decorre das qualidades
diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da proporção particular em
que elas se congregaram no Brasil, das condições ambientais que enfrentaram aqui e,
ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou aqui” (1995, p. 20).
Os aconteceres do processo de formação do brasileiro deram-se por meios
complexos e contraditórios. A trajetória histórica que confluiu em uma “uniformidade” cultural
e na unidade nacional do Brasil configurou-se num “processo continuado e violento de
unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade
étnica discrepante e opressão de toda tendência virtualmente separatista” (RIBEIRO, 1995,
p.23).
Nosso país, conforme relata Darcy Ribeiro, foi formalmente descoberto em 1500,
mas preexistia há muito tempo como “humanidade indígena, humanidade diferente, uma
gente que agradecia a Deus por o mundo ser tão bonito; que existia pra viver a vida, pra
gozar a vida. Para quem a finalidade da vida era viver” (RIBEIRO, 2000).
Ao discorrer sobre a chegada do europeus no Brasil, Darcy vislumbra como se deu o
enfrentamento de mundos entre os que chegaram e os que aqui estavam. Para os índios, os
que chegavam “provavelmente seriam pessoas generosas, mesmo porque, no seu mundo,
mais belo era dar que receber e ali ninguém jamais espoliara ninguém e a pessoa alguma
se negava louvor por sua bravura e criatividade” (RIBEIRO, 1995, p. 42). E continua:
Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se
viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de
sementes, que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e
colher a quanta gente aqui viesse ter. Na sua concepção sábia e singela, a
vida era dádiva de Deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, bons
de andar, de correr, de nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas
as cores, suas luzes e suas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir
vozes estridentes ou melódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de
sons que há. Narizes competentíssimos para fungar e cheirar catingas e
odores. Bocas magníficas de degustar comidas doces e amargas, salgadas
e azedas, tirando de cada qual o gozo que podia dar. E, sobretudo, sexos
opostos e complementares, feitos para as alegrias do amor.
[...] Eram [os índios], a seu modo, inocentes, confiantes, sem qualquer
concepção vicária, mas com claro sentimento de honra, glória e
generosidade, e capacitados, como gente alguma jamais o foi, para a
convivência solidária. (RIBEIRO, 1995, p. 45)
44
cutelo sobre bichos e matos e gentes, nas imensidades de terras de que
iam se apropriando em nome de Deus e da Lei. (RIBEIRO, 1995, p. 48)
Podemos questionar em que medida, nos dias de hoje, a Lei e seus representantes
mantém as mesmas formas de invasão e apropriação colonial das terras indígenas. São
muitos os processos para a demarcação de terras indígenas que estão há anos e anos sem
desfecho, enquanto povos indígenas continuam com sua sustentabilidade ameaçada. “A
antiga visão continua senhora deste mundo” (NICOLESCU, 1999, p.1).
Sehaypóri é o livro simbólico, escrito com grafismos, onde estão contidas as histórias
da literatura oral dos Mawé, histórias estas que mostram claramente o pensamento Mawé
de educar os filhos por meio de mitos, fábulas, parábolas (YAMÃ, 2007). Esse, relata Yamã
(2007, p. 12), “também é um meio usado por outros povos de sociedades tradicionais na
educação de seus membros, desde a infância até a idade adulta, quando então alcançam o
estágio considerado culto, dando origem a um sentimento brando em relação a mitologia e
um respeito inabalável à sabedoria dos ancestrais e à crença neles”.
“Para aprender o conhecimento ancestral o índio passa por cerimônias, que são
celebrações e iniciações para limpar a mente e para compreender o que nós chamamos de
tradição, que é aprender a ler os ensinamentos registrados no movimento da natureza
interna de cada ser” (JACUPÉ, 1998, p.13).
O “pensamento” de educar por meio de mitos, fábulas, lendas e parábolas é também
encontrado hoje ainda na cultura africana, e vive de diferentes formas entre os afro-
brasileiros e entre aqueles que partilham a cultura afro-brasileira, especialmente na vivência
do candomblé. Esses tipos de história e o hábito de sua transmissão oral são também
encontrados, de diferentes formas, diluídas na cultura popular brasileira erigida, no caldeirão
de encontros e trocas no tempo, principalmente por aqueles que conformaram as classes
“baixas” da sociedade, no processo de estratificação social.
45
Toda a cultura brasileira, observa Ribeiro (1995), está impregnada da herança
africana. “Sua presença fez quase tudo o que aqui se fez” (RIBEIRO, 1995, p.114), isso
porque “até mesmo no caso extremo da escravatura, produzem-se intercâmbios que, por
meio de certos processos concretos de aculturação inversa, acabam por ser assimilados
pela cultura dominante” (UNESCO, 2009, p. 13).
Os negros do Brasil, conforme relata Darcy Ribeiro (1995) mencionando os estudos
de Arthur Ramos (1940, 1942, 1946), foram trazidos principalmente da costa ocidental
africana e distinguem-se em três grandes grupos quanto aos tipos culturais: culturas
sudanesas, representadas pelos Yorubá – chamados nagô -, pelos Dahomey –
denominados gegê – e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como minas, além de grupos
menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa Malagueta e Costa do Marfim; culturas islamizadas,
entre as quais os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria; e, tribos Bantu, do
grupo congo-angolês provenientes da área hoje compreendida pela Angola e Moçambique.
É importante considerar que, diante dessa diversidade de grupos culturais, as
influências dos africanos no Brasil têm múltiplas faces. Hampaté Bâ diz que
No Brasil, a cultura do negro africano, como não podia expressar-se em seus modos
de prover a subsistência nem em seus modos de associação, em vista das condições que
lhe foram impostas, sobreviveria principalmente no plano ideológico, nas crenças religiosas
e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço desmedido por consolar-se do
seu destino (RIBEIRO, 1995). “O negro escravo, enculturado numa comunidade africana,
permanece, ele mesmo, na sua identidade original até a morte. Posto no Brasil, esteve
sempre em busca de um irmão da comunidade longínqua com quem confraternizar”
(RIBEIRO, 1995, p. 131).
Abordando o acontecimento do intercâmbio, Munanga afirma que
46
formação de identidades abertas, produzidas pela comunicação incessante
com o outro, e não de identidades fechadas, geradas por barricadas
culturais que excluem o outro […]. (MUNANGA,1996, p. 62).
47
1.4.1 A transmissão oral de conhecimentos nas culturas africana e indígena
É uma história nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem
nenhuma cousa de novo.
Padre Antônio Vieira (2005, p.69)
Em A criança divina e o herói, Naranjo (2001, p.6) relata que certa vez um amigo lhe
disse “o que não pode ser dito sob a forma de uma história, não vale a pena ser dito”. Talvez
o filósofo Martin Buber compartilhasse dessa visão. Em seu livro, do Diálogo e do Dialógico,
Buber (2007) assume a impossibilidade do assunto em questão poder ser explicado
conceitualmente. Opta então por tecer suas reflexões por meio de histórias ilustrativas,
narrando acontecimentos, às vezes reais, às vezes hipotéticos, mas que clareiam com
precisão suas ideias.
Uma das narrativas hipotéticas de Buber (2007) conta a história de dois homens que
nada sabiam um sobre o outro, mas que num dado momento, dissolvem suas barreiras e
numa atitude de reciprocidade, abrem-se ao diálogo, sem pronunciar uma só palavra. Assim
Buber apresenta sua concepção sobre o significado de diálogo e como ele acontece. Essa
história não é real, pois foi criada por Buber para ilustrar uma concepção. No entanto, se
essa concepção é verdadeira para Buber, para alguém que o lê, ou ainda, para um coletivo
de adeptos de sua filosofia, qual seria a importância de se comprovar se a história de fato
aconteceu ou não? Não seria essa história um acontecimento real – manifesto ou não –
dentro de cada um e do coletivo que tem tal concepção como verdadeira?
Essa reflexão põe em questão o ponto de vista de historiadores quando afirmam que
“somente as tradições baseadas em narrativas de testemunhos oculares são realmente
válidas [...]” (VANSINA, 1982, p.158). Uma história tradicional de fato pode não ser
apropriável pelo historiador em sua tarefa de dispor acontecimentos num continuo linear.
Seu desígnio pode ser retratar acontecimentos que se repetem – ou pelo menos poderiam
ou deveriam se repetir – na vida, manifesta ou não manifesta, de um coletivo e dentro de
cada um que o compõe.
48
Relembremos que a concepção de Coll (2002, p. 32) quando afirma que em toda
cultura é possível falar em três níveis de realidade (entendida como o modo global de vida
de um povo ou sociedade): nível dos valores e crenças – da ordem do mythos – que
fundamentam a concepção de realidade de uma cultura; nível das instituições que
materializam os valores e as crenças; e o nível das práticas cotidianas nos âmbitos político,
econômico, organizativo, educacional, religioso, dentre outros. As histórias da tradição oral
podem perpassar todos esses níveis, atravessando os limites do mundo histórico –
verificável –, comumente aprisionado aos níveis das instituições e das práticas cotidianas
em seus diversos âmbitos. Esse aspecto nos é revelado em uma fórmula de abertura e
finalização de contos da tradição oral: “eu vos passo a história tal como um velho me
contou. Eu não posso garantir que seja verdade, mas vocês sabem tanto quanto eu que
nada se parece tanto com a mentira quanto a verdade” (MATOS, 2005, p. XVII).
49
Para uma sociedade oral, palavras criam coisas – e isso se verifica por toda parte na
África –, relata Vansina (1982), apontando os Dogon que expressam esse normalismo em
seus rituais onde constata-se em toda parte que o nome é a coisa, e que “dizer” é “fazer”. A
oralidade, portanto, “é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade”
(VANSINA, 1982, p.157).
A tradição oral, ainda segundo Vansina (1982),
Nas sociedades orais, conforme esclarece Vansina (1982), todas as obras literárias
são tradições e todas as tradições, elocuções – estilos, expressões – orais, cujo conteúdo é
influenciado pela forma e critério literário (considerando essas expressões como literatura
oral). Nesse sentido, didaticamente, essas tradições são dispostas no quadro geral de um
estudo de estruturas literárias, algo como uma classificação.
- Poema: todo material decorado (fixo) e dotado de uma estrutura específica, incluindo
canções;
- Fórmula: refere-se a tudo o que é decorado (fixo), mas que não está sujeito a regras de
composição, a não ser às da gramática corrente, como provérbios, charadas, orações,
genealogias;
- Epopeia: refere-se às obras em que o artista pode escolher suas próprias palavras dentro
de um conjunto estabelecido de regras formais, como as rimas, os padrões tonais, o
número de sílabas, etc. Encontra-se casos em que versos característicos permeiam essa
forma de elocução;
- Narrativa: refere-se à elocução em que o artista tem a liberdade para realizar
combinações, remodelações, reajustes dos episódios, ampliação das descrições,
desenvolvimentos.
Conteúdo
fixo livre (escolha de palavras)
Forma estabelecida Poema Epopéia
livre Fórmula Narrativa
Quadro 1 - Formas fundamentais das tradições orais
Fonte: VANSINA, 1982.
50
De acordo Vansina (1982), no poema e na fórmula, a tradição está impressa também
nas palavras que lhe servem de veículo e, portanto, por meio dessas formas um arquétipo
original pode ser reconstruído tal como nas fontes escritas. Essas formas raramente
pretendem transmitir informações históricas.
Muitas vezes essas formas fixas apresentam arcaísmos inexplicados, difíceis de
compreender sem um comentário explicativo, que geralmente vem carregado de alusões
poéticas, imagens ocultas, jogos de palavras com múltiplos significados (VANSINA, 1982).
Quanto a forma narrativa, Vansina (1982) esclarece que a liberdade do artista se
relaciona principalmente aos aspectos literários, visto que muitas vezes lhe é imposta uma
fidelidade rígida às fontes.
Em todas essas formas podem ser encontrados “termos-chave, intimamente ligados
a estrutura social, à concepção do mundo, e praticamente intraduzíveis” (VANSINA, 1982, p.
161). Também é comum encontrar, entre diferentes povos, histórias com a mesma estrutura,
mesma mensagem, apesar das variações de estilo (VANSINA, 1982). Os historiadores
denominam tais estruturas repetitivas como temas-clichês. Vansina (1982) afirma, citando
Balmann (1936), que é comum a repetição de estruturas em narrativas sobre as origens de
diversos povos. A rotulação dessas estruturas repetitivas como tema-clichê pode limitar
nossa visão com relação a universalidade das histórias, que em realidade trata-se de uma
misteriosa qualidade. Afinal, como explicar o fato de uma mesma história ser encontrada em
tempos e lugares distantes?
A estética é parte integrante das práticas de transmissão oral. Forma-se uma
atmosfera de jogo, que muitas vezes, envolve a participação do público em repetições ou
pela emissão de sons, que podem dar um ritmo à performance. “Nas narrativas, uma série
de episódios que levam a um clímax formam a trama principal, enquanto outros constituem
repetições paralelas sofisticadas e outros, ainda, representam apenas transições de uma
etapa da narrativa para outra” (VANSINA, 1982, p.162).
Para ampliar a compreensão quanto ao contexto social da tradição oral, é importante
observar que
tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito
funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos
vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e
obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa
sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que
adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à
tradição.
[...] Toda instituição social, e também todo o grupo social, tem uma
identidade própria que traz consigo um passado inscrito nas representações
coletivas de uma tradição que o explica e justifica (VANSINA, 1982, p.163).
51
Falando sobre a literatura oral dos Mawé, Yamã (2007, p. 12) discorre sobre os
mitos, lendas e fábulas, gêneros literários que compõe a tradição oral desse povo. Essa
divisão, segundo ele, é feita de acordo com o perfil de cada história dentro da literatura, de
acordo com um padrão comum a qualquer outra escola literária. Assim, essa classificação
pode ser considerada também em relação a tradição oral de outros povos. Mas aqui, será
apresentado cada gênero conforme descreve Yamã falando de sua tradição, entendendo
que sua voz confere a esses gêneros significados além de uma simples conceitualização.
O significado profundo dessas formas narrativas pode nos ser revelado pelas
palavras de um dos mestres da tradição oral africana, Hampâté Bâ:
52
apropriado e iluminados por um novo sentido [...].(HAMPÂTÉ BÂ, 1994,
apud MATOS, 2005, p.XVII).
53
2 SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO PRESENTE
54
cada um, lucidez e compreensão ao mesmo tempo, e, mais amplamente a
mobilização de todas as aptidões humanas.(MORIN, 2003, p.54).
55
El diálogo, como encuentro de los hombres para la tarea común de saber y
actuar, se rompe si sus polos (o uno de ellos) pierde la humildad.
¿Cómo puedo dialogar, si alieno la ignorancia, esto es, si la veo siempre en
el otro, nunca en mí?
¿Cómo puedo dialogar, si me admito como un hombre diferente, virtuoso
por herencia, frente a los otros, meros objetos en quienes no reconozco
otros “yo”?
¿Cómo puedo dialogar, si me siento participante de un gueto de hombres
puros, dueños de la verdad y del saber, para quienes todos los que están
fuera son “esa gente” o son “nativos inferiores”?
¿Cómo puedo dialogar, si parto de que la pronunciación del mundo es tarea
de hombres se electos y que la presencia de las masas en la historia es
síntoma de su deterioro, el cual debo evitar?
¿Cómo puedo dialogar, si me cierro a la contribución de los otros, la cual
jamás reconozco y hasta me siento ofendido por ella?
¿Cómo puedo dialogar, si temo la superación y si, solo con pensar en ella,
sufro y desfallezco?
La autosuficiencia es incompatible con el diálogo. Los hombres que carecen
de humildad, o aquellos que la pierden, no pueden aproximarse al pueblo.
No pueden ser sus compañeros de pronunciación del mundo. Si alguien no
es capaz de sentirse y de saberse tan hombre como los otros, significa que
le falta mucho que caminar para llegar al lugar de encuentro con ellos. En
este lugar de encuentro, no hay ignorantes absolutos ni sabios absolutos:
hay hombres que, en comunicación, buscan saber más. (FREIRE, 2004, p.
256).
Deste modo, se entre os dois caminhos possíveis – a educação para tornar comum o
que é comum ou a educação para reforçar as desigualdades –, escolhemos o primeiro,
admitimos que a educação, entre outras coisas, deve se destinar “a abrir um espaço de
interações recorrentes com o outro, no qual sua presença é legítima” (MATURANA, 1998, p.
67), ou seja, precisa se desenvolver no domínio de ações do amor, que torna possível o
olhar para o outro como legítimo, sujeito, igual mesmo em sua diferença.
Mas, antes de mais nada, devemos considerar que apenas é possível aprender a
aceitar e respeitar o outro – legitimá-lo – quando se vive um educar de modo que se
aprenda a aceitar-se e respeitar-se, ao ser aceito e respeitado (MATURANA, 1998, 2004).
Isso porque
56
a pedagogia dominante ainda é instrucionista. Insiste na linguagem da
“transmissão” e “aquisição” do conhecimento e descreve o sistema
educacional como de ensino, muito mais que de aprendizagem. Aparece
isso com clareza na nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), por exemplo, ao
usar indiscriminadamente ensino e educação, tendo como uma das
consequências demarcar 200 dias de aula durante o ano. Assume-se que
aprender é, substancialmente, assistir a aulas e que a tarefa essencial do
professor é dar aula. (DEMO, 2000, p. 81).
Obviamente essa pedagogia não pode dar conta dos desafios sociais que vivemos e,
se esperamos que a educação prepare o educando para atuar no mundo, “urge uma
pedagogia voltada para a formação integral do aprendiz, para o desenvolvimento de sua
inteligência, seu pensamento, de sua consciência e de seu espírito” (MORAES, 2003, p. 17).
Para seguir em direção a pedagogia que vise a formação integral, encontramos
algumas indicações importantes em Morin (2000), que afirma a necessidade de ensinar a
condição humana. Segundo Morin (2000) é preciso que os seres humanos reconheçam-se
em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconheçam a diversidade cultural que
permeia tudo o que é humano.
Para isso, é imprescindível considerar e desenvolver o conhecimento como um todo
complexo, que existe e faz sentido dentro de um contexto. Assim, “todo conhecimento deve
contextualizar seu objeto, para ser pertinente. “Quem somos?” é inseparável de “Onde
estamos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?”, diz Morin (2000, p.47).
Religar o conhecimento é passo fundamental na educação para possibilitar a visão
da multidimensionalidade e da complexidade do ser humano, constituído de matéria e
também de espírito. Nesse sentido, é também fundamental integrar na educação a
contribuição das humanidades, englobando não somente a filosofia e a história, mas a
literatura, a poesia, as artes (MORIN, 2000).
Morin afirma ainda que
cabe à educação [...] cuidar para que a ideia de unidade da espécie humana
não apague a ideia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a
da unidade. Há uma unidade humana. Há uma diversidade humana. A
unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A
diversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais, sociais do
ser humano. Existe também diversidade propriamente biológica no seio da
unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental,
psíquica, afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e
sociedades têm princípios geradores ou organizacionais comuns. É a
unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas
diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na
diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do
múltiplo, a multiplicidade do uno. A educação deverá ilustrar este princípio
de unidade/diversidade em todas as esferas. (MORIN, 2000, p.55).
57
enfatizam a aquisição de conhecimentos como único fator necessário para que ocorram nos
indivíduos mudanças de atitude e comportamentos (LOUREIRO & SANTOS, 2006).
Essa pedagogia instrucionista é marcada pela falta de contextualização dos
conteúdos transmitidos e de ausência de vinculação prática educativa ao posicionar-se
politicamente, diz Loureiro & Santos (2006). Recordando a visão de Maturana (1998), sobre
a necessidade de aceitar-se e respeitar-se para aceitar e respeitar o outro, encontramos
alguns elementos que podem ser relacionados a esses aspectos de contextualização e
vinculação prática. Maturana (1998, p. 31) apresenta a seguinte questão: “Como posso
aceitar-me e respeitar-me se o que sei, quer dizer, se meu fazer não é adequado ao meu
viver e, portanto, não é um saber no viver cotidiano, mas sim no viver ficcional de um mundo
distante?”.
Maturana (1998) defende, então, que a educação deve levar o educando a fazeres
(saberes) relacionados com seu viver cotidiano, de modo que possa refletir sobre seus
afazeres e mudar de mundo [quando muda seu viver cotidiano] sem deixar de respeitar a si
mesmo e ao outro. Inspirados por essa perspectiva, podemos nos questionar em que
medida uma educação instrucionista não vinculada à prática cotidiana, conduz à ausência
de vinculação prática à posição política, já que a dimensão política só pode ser entrelaçada
ao cotidiano. Não existe política que não seja parte da vida.
É também comum na pedagogia instrucionista a negação da afetividade e da
percepção sensível do mundo. Esses aspectos somados à falta de contextualização do
conhecimento e de vinculação prática conforma e “reproduz o padrão cultural e as relações
hierarquizadas de poder que definem a modernidade capitalista e a “sensação” de ruptura
humanidade-natureza” (LOUREIRO & SANTOS, 2006, p. 36).
Desse modo, é papel inerente à Educação Ambiental questionar e buscar transpor
os limites das abordagens pedagógicas tradicionais, integrando a dimensão afetiva, mas
com o devido cuidado de não desconsiderar a razão ou a inserção dos indivíduos em seus
contextos culturais e históricos, evitando recair no mesmo reducionismo que procura negar
(LOUREIRO & SANTOS, 2006).
Para contribuir com a reflexão sobre a relevância da afetividade em Educação
Ambiental, Loureiro & Santos apresentam conceitos de Henri Wallon, partindo do
pressuposto de que a “subjetividade não é algo estático, atemporal e imanente ao indivíduo,
mas se constitui nas relações sociais, em uma determinada cultura e organização social,
resultante do intercruzamento complexo de dimensões de dentro e de fora de cada pessoa”
(SILVEIRA, 2002, apud, LOUREIRO & SANTOS, 2006, p. 37). Loureiro & Santos trazem,
então, a perspectiva de que
58
dá da seguinte forma: por meio da sensibilidade corporal, manifesta-se a
etapa da afetividade emocional ou tônica, caracterizada por pura emoção
atrelada à necessidade de presença física do outro, que se expressa pelo
olhar, pelo toque, pela entonação de voz, pelo cheiro. A partir da linguagem
oral e escrita, desenvolve-se a afetividade simbólica, na qual as
manifestações culturais como a música, a poesia e a arte, de um modo
geral, são capazes de sensibilizar, de emocionar. Ao utilizar
questionamentos (o que é? por quê? como? onde? dentre outros) que
buscam explicar a realidade e a correlação dos fatos que a compõem, o ser
humano chega a afetividade categorial, na qual as situações que envolvem
aspectos abstratos das relações sociais, como respeito mútuo, justiça,
igualdade de direitos, nos emocionam. (LOUREIRO & SANTOS, 2006, p.
38).
Em vista dessa perspectiva, propõe Loureiro & Santos que a Educação Ambiental
trabalhe com a dimensão afetiva alcançando a afetividade categorial, de modo a estimular a
consciência crítica necessária à transformação social e integrar os laços afetivos na
mobilização de uma ação pedagógica que “contribua no processo de emancipação
(individual e coletiva) dos sujeitos na mesma medida em que estes se percebem como
agentes sociais inter-relacionados e interdependentes, que intervém na realidade social em
que se encontram e, por isso, são capazes e responsáveis por transformá-la” (LOUREIRO &
SANTOS, 2006, p. 38).
Todas essas visões e propostas apresentadas até aqui são elementos constitutivos
de uma paisagem em que podemos ver no horizonte a educação como um caminho para
tornar comum o que é comum, num processo de aprendizado e vivência do respeito mútuo,
abraçando as dimensões humanas para que se aprenda a estar aqui, reconhecendo a
unidade e a diversidade, aprendendo de forma contextualizada e vinculada à pratica.
Visualizando essa paisagem, podemos, então, refletir sobre as diretrizes que
orientam o fazer pedagógico atual, e configurar uma proposta de Educação Ambiental, que
abrace sob um novo desenho as determinações da LDB quanto ao tratamento das relações
étnico-raciais, numa perspectiva não apenas de resgate de uma dívida histórica, mas de
uma oportunidade de aprendizado, enriquecimento, a partir da vivência da potencialidade da
diversidade cultural, numa prática de diálogo intercultural.
Esse não é um trabalho para o futuro, é uma construção que precisa ser parte do
fazer pedagógico presente, visto que “o contexto cultural não paira sobre ou circunda a
escola: ele está nela, na medida em que se considerem a vivência e os valores, as
condições econômicas e sociais, os saberes de todos aqueles que dela participam.”
(BRANDÃO, 1996, p. 14).
59
2.2 UM OLHAR SOBRE AS DIRETRIZES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DAS
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E SUA INTEGRAÇÃO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
60
Segundo Hall,
quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, [...] pelas imagens da mídia e pelos sistemas de
comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições
específicas e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma
gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor,
fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível
fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja
como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”. No
interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções
culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma
espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das
quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades pode
ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “homogeneização
cultural”. (HALL, 2006, p. 75).
61
que serve aos opressores, o que faz com que oprimidos exerçam algum tipo
de violência para agredir seus semelhantes, ou seja, pessoas que se
encontrem na mesma situação de oprimidos. (FREIRE,1987, p.30).
Essa lógica que oprime o outro é reproduzida quando o meio ambiente assume o
lugar desse outro, a partir da visão de que não somos parte da natureza e de que o meio
ambiente é outro lugar que não o ambiente onde vivemos. A problemática ambiental é
também fruto da racionalidade de dominação, a mesma que oprime as minorias. Ou seja, a
questão da educação das relações étnico-raciais e a crise ambiental têm raízes comuns.
Diante disso, os processos de Educação Ambiental, ao empreenderem esforços para
a construção de valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências
voltadas para a conservação do meio ambiente, não têm como se furtar ao esforço de
desenvolver um olhar crítico sobre a ordem social vigente – ordem de desigualdades. Mais
ainda, cabe à Educação Ambiental o trabalho de apresentar outros modos de compreensão
e relação com o mundo. Não como modelos, mas como parâmetros legítimos para auxiliar
na construção das respostas alternativas para a crise civilizacional que enfrentamos.
No entanto, há obstáculos a serem considerados: a ordem vigente em nossa
sociedade permeia seu tecido social e é difundida pelos equipamentos civilizacionais, entre
os quais a escola (SANTOS. F., 2005). Além disso, é natural a dificuldade de reconhecer o
que se quer negar. É com esses desafios que nos deparamos quando pretendemos
desenvolver Educação Ambiental nas escolas e, também, quando pretendemos transmitir
conhecimentos acerca da história e dos conhecimentos de outras culturas. São essas as
reflexões que precisam permear os projetos políticos pedagógicos que assumem a
problemática ambiental e étnico-racial.
O universo não é uma ideia minha. A minha ideia do universo é que é uma
ideia minha.
Fernando Pessoa
A leitura que se faz sobre a crise ambiental, determina o caminho a ser trilhado no
plano prático de sua superação e, neste sentido, uma educação ambiental que se propõe
contribuir para a construção coletiva de uma nova ordem social, deve constituir-se como
prática pedagógica crítica, transformadora e emancipatória (QUINTAS, 2009).
As questões que se colocam são: em que medida é possível promover uma prática
pedagógica crítica, transformadora e emancipatória sem desenvolver a capacidade de
enxergar o mundo de outras perspectivas? O monopólio de uma visão de mundo que não
legitima saberes e valores de si diversos é capaz de elaborar novas respostas e construir
62
novas alternativas para responder a necessidade de um modo de vida sustentável do ponto
de vista social e ambiental?
Para Carvalho “o projeto político-pedagógico de uma Educação Ambiental crítica
poderia ser descrito como a formação de um sujeito capaz de “ler” seu ambiente e
interpretar suas relações, os conflitos e os problemas aí presentes. Diagnóstico crítico das
questões ambientais e autocompreensão do lugar ocupado pelo sujeito nessas relações são
o ponto de partida para o exercício de uma cidadania ambiental” (CARVALHO, 2004, p.75).
É na construção dessa capacidade de “ler” o ambiente e as relações nas quais
estamos inseridos que o conhecimento de outras culturas tem força e sentido,
especialmente tratando-se de culturas que constituem as raízes de nossa formação. Como
uma forma de rever o passado e o presente de outra perspectiva e, assim, agregarmos em
nós novos elementos para pensar e construir o futuro. “Não podemos pensar a
transformação social e a emancipação sem reiventarmos o passado”, afirma Santos, S.
(2008, p.53). Reinventar o passado no sentido de reinventar nossa concepção do passado,
já que a trajetória dos acontecimentos pretéritos são imutáveis.
Aí reside o valor educativo de se acessar cosmovisões de culturas ancestrais: à
medida que podem subsidiar a conscientização a respeito de nosso modo de compreensão
do mundo e favorecer uma leitura crítica acerca de nossos modos básicos de organizar e
viver a vida em sociedade no momento histórico presente, onde reside a possibilidade e a
potência de ação transformadora.
Devemos considerar que a ação transformadora da realidade externa não se
sustenta sem a transformação interna do sujeito. É preciso que a ação seja concebida pelo
sujeito que, capaz de olhar e refletir sobre o lugar que ocupa e a realidade que o cerca,
encontra suas soluções. Para tanto, fazem-se necessários espaços propícios à construção
coletiva do saber, numa perspectiva não fragmentada, que considere a complexidade da
sociedade e do indivíduo – tanto do presente como do passado.
Assim, outros aspectos precisam ser considerados na construção de um espaço de
reflexão. O que se visualiza é a necessidade de uma abordagem pedagógica que se
contraponha ao que Morin (2004) nomeia como “inteligência parcelada”, buscando tornar
evidentes o contexto, o global, o multidimensional e o complexo, para que o conhecimento
seja pertinente.
Nesta perspectiva, segundo o mesmo autor (2004), para que dados e informações
adquiram sentido, é preciso situá-los em seu contexto e considerar a multidimensionalidade
das unidades complexas, observando que o ser humano é ao mesmo tempo biológico,
psíquico, social, afetivo e racional. Também é preciso enfrentar a complexidade, tratando
como inseparáveis os diferentes elementos constitutivos do todo, e observar quanto ao
aspecto global, que existe a presença do todo no interior das partes e, sendo assim, a
63
sociedade como um todo está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu
saber, em suas obrigações e em suas normas.
Podemos dizer que as histórias tradicionais carregam em sua essência o contexto, o
global, o multidimensional e o complexo das sociedades que as transmitiram e transmitem.
Carregam, portanto, a possibilidade de abordar a cultura dessas sociedades a partir de suas
próprias perspectivas e revelar faces de sua totalidade. Na verdade, nas histórias
tradicionais encontramos a cosmovisão e o saber das culturas contados por elas mesmas.
Por isso, narrar histórias das matrizes africana e indígena é possibilitar que estas culturas
falem, por meio do Educador Ambiental, sobre sua relação com a natureza e com seus
pares. É trazer a voz dessas matrizes para dialogar conosco, acessando dentro de nós as
teias de nossas relações com a natureza e nossos pares.
Incluir as histórias no pensar-e-fazer-educação envolve refletir sobre a condição
insustentável de continuar a desconsiderar-se a legitimidade de outras racionalidades frente
às racionalidades respaldadas pela ciência. Sempre houve e sempre haverá outros saberes
incorporados pelo povo para dar conta das realidades que lhe são apresentadas. Devemos
saber, diz Morin (2004, p.24), “que em qualquer sociedade, mesmo arcaica, há
racionalidade na elaboração de ferramentas, na estratégia da caça, no conhecimento das
plantas, dos animais, do solo, ao mesmo tempo em que há mitos, magia, religião”.
Promover o equilíbrio da influência desses saberes envolve o reconhecimento da
diversidade epistemológica no mundo e a compreensão de que “a diversidade é também
cultural e, em última instância, ontológica, traduzindo-se em múltiplas concepções de estar
no mundo” (SANTOS, S.,2008, p.142).
Entretanto, quando tratamos de diversidade cultural é necessária a ampliação do
olhar: não podemos considerar a cultura como uma perspectiva entre outras dimensões da
realidade social. Precisamos compreender que para
64
Sabemos que existe um impulso de transformação que vem materializando-se em
diversas ações nos campos social e ambiental, ao qual Boaventura de Sousa Santos referiu-
se designando “emergências” (2008). As questões que nos inquietam são: em que medida a
transformação pode ocorrer enquanto, ainda, busca-se sustentação nos mesmos
paradigmas que constituem a base do sistema que está em crise? Por outro lado, como a
transformação pode sustentar-se, sem, de algum modo, buscar apoio no paradigma atual?
Sobre isso, Santos. S. nos explica que
65
que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significado e
valor à existência” (ELIADE, 1986, p. 8).
Precisamos misturar as heranças culturais mediterrâneas com as heranças culturais
africanas e sul-americanas, diz Morin, pois
por mais diferentes que sejam, todas elas comportam modos míticos ou
religiosos de integração no cosmo e na natureza, dos quais devemos extrair
a verdade profunda e ligá-la à nossa nova consciência ecológica, que
reconhece nossa integração na biosfera, algo que o devir da mundialização
continua a degradar, impulsionado pelo Norte. (MORIN, 2011, p.23)
66
relações sociedade-natureza e intervir sobre os problemas e conflitos ambientais
(CARVALHO, 2004).
Neste sentido,
67
Consideramos aqui o entendimento segundo o qual “um valor é uma crença
duradoura de que um modo específico de conduta ou estado final de existência é pessoal ou
socialmente preferível a um modo oposto ou alternativo de conduta ou estado final de
existência” (ROKEACH, 1973, p.5).
Reconhecendo a educação como um acontecimento da convivência, para que os
valores constituintes de um sujeito ecológico, fundados numa ética de cuidado com o
ambiente, consigo e com o outro, sejam transmitidos no ambiente escolar, eles precisam ser
vividos nesse ambiente e revelados no ser e agir do educador. “Quem pensa certo está
cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase
nada valem. Pensar certo é fazer certo” (FREIRE, 1996, p.19).
Nesse sentido, é importante que qualquer ação educativa esteja pautada em atitudes
coerentes. Se sabemos ser fundamental para os dias de hoje o respeito e a valorização das
culturas, o reconhecimento e o fortalecimento da unidade e da diversidade, a compreensão
humana, o respeito mútuo, o diálogo, o pluralismo cultural e epistemológico, então, esses
devem ser os pilares de todo pensar e fazer pedagógico. Isso quer dizer que quando
propomos contar histórias tradicionais, propomos essa prática não como uma ação
descontextualizada, mas como um modo de se situar no pensar e no fazer pedagógico
numa perspectiva de ecologia de saberes e de diálogo intercultural, e também através e
além dessa perspectiva, transitando pelas realidades e instâncias que não são acessíveis
pelo pensamento conceitual. Não é também papel da educação encorajar viagens pelo
incompreensível?
Idries Shah, um dos maiores representantes da tradição sufi, tratando da experiência
humana de transmissão de conhecimentos através das histórias, diferencia nos contos
sucessivas camadas que permitem, cada um em seu nível, experiências de natureza
distintas. Assim, segundo essa visão, além das abordagens antropológicas, filosóficas,
psicológicas, uma história pode conter outros níveis de funcionamento que só serão
percebidos e examinados quando uma certa informação fundamental se tenha operado no
sujeito que busca apreender o seu conteúdo mais profundo (MACHADO, 1993). Nesse
sentido, Machado (1993, p. 19) diz que “é preciso desenvolver uma qualidade interior para
compreender que a significação não está lá, no conto, mas na forma como este atua sobre a
nossa percepção”.
Sobre esse caráter do conto, Machado (1993, p.19) afirma ainda que
68
imaginativo, deste modo, não é uma fuga ou um consolo para a
contingência do mundo, mas um degrau que admite o desconhecido, um
passo na direção de uma esfera que entendimento comum não alcança,
mas que a faculdade imaginativa pressente e antevê. (MACHADO, 2004,
p.20).
69
histórias. Os alunos precisam ser desafiados a explorar e contar histórias. Diferente da
educação que deposita conhecimentos, podemos praticar um “contar histórias com”, mais
do que um “contar histórias para”.
Independente da forma de trabalho, não podemos deixar de considerar o ato de
contar histórias como uma arte, cuja matéria prima é a palavra, e afirmar como válida sua
prática na educação uma vez que a
arte nos permite, como o mito, tocar o mistério do mundo, sua ludicidade,
prazer, alegria. Permite-nos penetrar no desconhecido em busca de
respostas parciais, sempre parciais, que mantém o élan do viver. E isso
ligado, também, a uma busca de soluções para os problemas que nos
atropelam e ameaçam a nossa própria sobrevivência. Sobrevivência que
para ser válida, tem que ser digna. Vale dizer, tem que ser compartilhada,
em um mundo que valha a pena ser vivido.
Às vezes, nos esquecemos que, além da carência de bens materiais, que
causa a miséria e a morte de milhares de pessoas, temos carência de bens
simbólicos e espirituais. Na confluência dos bens simbólicos e espirituais,
temos a arte, que impulsiona relações entre pessoas e grupos, renovando
vivências, laços de solidariedade, criando imaginários e poéticas
imprescindíveis para o conhecimento do outro e de si mesmo. (FARIA &
GARCIA, 2009, p. 31).
70
3 TEMPO-ESPAÇO PARA A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
71
os princípios e objetivos previstos na Política Nacional de Educação Ambiental, na
perspectiva da educação integral. É também intenção da Escola propor uma prática voltada
para a construção e participação do saber e do fazer, dentro de uma perspectiva multi, inter
e transdisciplinar.
Desde sua criação, a Escola da Natureza vem trilhando caminhos que levam à
efetivação da Educação Ambiental nas escolas e suas comunidades, contribuindo para a
constante reinterrogação de sua identidade diante do processo histórico e em exercício de
diálogo permanente com as instâncias da Secretaria de Educação, os parceiros e as
instituições comprometidas com a EA no Distrito Federal.
Um dos principais programas da Escola da Natureza é o Parque-escola. Trata-se de
uma releitura da proposta das escolas-parque apresentada por Anísio Teixeira para a
educação no Distrito Federal. O programa acontece pela implantação de Centros de
Educação Ambiental nas escolas-parque das diversas regiões administrativas do Distrito
Federal. As atividades desenvolvidas por esse programa são: oficinas ecopedagógicas;
projeção de vídeos; trilhas ecológicas; trilha perceptiva; produção de mudas de espécies
nativas do Cerrado; construção e manutenção de agroflorestas; planejamento e realização
de campanhas educativas na comunidade circunvizinha; roda de conversa com
representantes da história local ou detentores de conhecimentos e habilidades significativas;
pesquisas orientadas acerca do Bioma Cerrado; orientações e práticas acerca das tarefas
propostas pelos professores regentes.
Além desse Programa, as linhas de atuação da Escola da Natureza envolvem ações
como as seguintes:
- Oferecer cursos de Educação Ambiental, em parceria com a EAPE, para os diversos
segmentos da comunidade escolar da SEDF que facilitem a inserção da transversalidade
ambiental nas atividades cotidianas;
- Contribuir com a implementação do Projeto Político-Pedagógico de instituições de ensino
participantes dos cursos, vinculadas à DRE Plano Piloto/Cruzeiro, na perspectiva do
trabalho coletivo; e,
- Organizar espaços pedagógicos na Escola da Natureza que sirvam como referência para
ações de educação ambiental nas dimensões da arte, da cultura, da ciência e dos princípios
agroecológicos.
O eixo orientador das ações da Escola da Natureza é a Política Nacional de
Educação Ambiental – PNEA (BRASIL, 1999), seus conceitos e determinações. Sendo
assim, suas ações são baseadas no entendimento de que a “Educação Ambiental
compreende os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem
valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a
72
conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade
de vida e sua sustentabilidade” (BRASIL, 1999).
É importante destacar alguns dos princípios básicos da Educação Ambiental,
definidos pela PNEA, que possuem estreita relação com o tema desta pesquisa, quais
sejam: I – o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo; II – a concepção do
meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o
socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade; e, III – o reconhecimento e
o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural.
Entre os objetivos definidos por essa Política, para os quais esta pesquisa pode
contribuir com mais ênfase, no que ser refere às ações da Escola da Natureza, citamos os
seguintes: I – o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em
suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais,
políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos; e, VII – o fortalecimento da
cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos para o futuro da
humanidade.
73
outras palavras, não basta o conhecimento das outras culturas, é preciso buscar a
capacidade básica de ouvir, a flexibilidade cognitiva, a empatia, a humildade e a
hospitalidade, delineadores de uma atitude de diálogo intercultural (UNESCO, 2009).
Sendo a pesquisa delimitada à Educação Ambiental e dirigida à um processo de
produção de conhecimentos de forma participativa, visando a resposta a uma situação
vivenciada pelo coletivo envolvido na pesquisa, a abordagem metodológica da Pesquisa-
ação mostrou-se como orientação mais adequada. Isso porque a Pesquisa-ação é um tipo
de pesquisa social que se volta justamente aos processos de ação coletiva orientados em
função da resolução de problemas ou de objetivos de transformação de forma cooperativa e
participativa (THIOLLENT, 1994).
É próprio da Pesquisa-ação a valorização da busca de compreensão e de interação
entre pesquisadores e membros da situação investigada, privilegiando aspectos
sociopolíticos, sem deixar de, a mesmo tempo, considerar a realidade psicológica e
existencial (THIOLLENT, 1994).
De acordo com Thiollent (1994, p. 8)
74
questão; e, reflexões e propostas sobre o processo coletivo de pesquisa.
Durante as oficinas experimentamos e avaliamos as possibilidades, potencialidades
e limitações de práticas de EA com base em narrativas de histórias tradicionais. O
planejamento das atividades de cada oficina, suas etapas, reflexões, diálogos e resultados
foram organizados e sistematizados.
As oficinas eram iniciadas com uma dinâmica de acolhida, visando a promover uma
transição dos participantes de suas atividades cotidianas para a experiência da oficina,
buscando construir uma atmosfera de atenção e relaxamento, um estado de presença que
enriquecesse a partilha.
Em seguida, partíamos para as atividades propostas para desenvolvimento do tema
da pesquisa, sempre envolvendo histórias e práticas de narrativas orais, abordando temas
socioambientais. Para finalizar, sempre fazíamos uma rodada de partilha de reflexões sobre
a experiência da oficina. Algumas vezes, dialogando em torno de uma questão pré-definida.
Outras vezes, dialogando sobre questões que emergiam do grupo.
Participaram da pesquisa os professores Adolpho Luiz Bezerra Kessering, Ana
Carolina P. de Souza Seixas, Clarice Valadares Durães, Elza Cristinade A. Ribeiro, Estevão
Ribeiro Monti, Janice Maria G. Affonso, Leda Marcia Bevilacqua (Bhadra), Lucrécia Bezerra
da Silva, Luiz Edvar Cavalcante Filho, Marcia Diniz Alves, Maria Isabela V. Albuquerque,
Maristela G.N. Angra, Renata Potolski Lafetá, Rosa Maria Correa Pinho e Thais Marra.
O principal objetivo das oficinas, por definição, era desenvolver a aprendizagem
participativa, num processo de vivência, reflexão e conceitualização, no sentido de investigar
a dimensão educativa das narrativas de histórias tradicionais das culturas afro-brasileira e
indígena na prática de Educação Ambiental.
O maior obstáculo enfrentado pelo grupo foi a escassez de tempo para dedicar-se à
pesquisa. Outro obstáculo que teve impacto sobre os desdobramentos futuros do trabalho
foi o iminente processo de reestruturação da Secretaria de Educação, que confluiu em
incertezas sobre a permanência dos professores envolvidos na pesquisa na Escola da
Natureza.
No decorrer da pesquisa, dialogamos sobre esses obstáculos. Os professores
manifestaram interesse em dar continuidade à formação no ano seguinte. No entanto, diante
da incerteza da permanência na Escola, não foi possível pactuar a continuidade do processo
de formação. Buscamos, então, soluções práticas que possibilitassem o bom
aproveitamento do tempo disponível: por exemplo, organizar as atividades de modo a
oportunizar encontros de estudo e preparação fora dos horários das oficinas.
Quanto à incerteza de permanência dos professores na Escola da Natureza, onde
quer que fossem, continuariam na Secretaria de Educação, e poderiam ser multiplicadores
dos frutos da pesquisa. “É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em
75
meio a arquipélagos de certeza” (MORIN, 2000, p.16).
O planejamento das oficinas pedagógicas foi guiado por alguns propósitos e
necessidades: possibilitar o conhecimento de histórias tradicionais por parte dos
professores, pela leitura, estudo e prática de narração; abordar fundamentos teóricos da
tradição oral e da arte de contar histórias; promover reflexões em torno da dimensão
educativa das narrativas de histórias tradicionais das culturas afro-brasileira e indígena na
prática de Educação Ambiental; discutir questões socioculturais e político-pedagógicas
relacionadas à abordagem da história e cultura afrodescendente e indígena na escola, numa
perspectiva de diálogo intercultural; e, acolher as necessidades e questões que emergissem
durante o processo de pesquisa.
A seguir estão descritas as vivências, atividades e reflexões de cada oficina. As
citações, explicações e conceitos que perpassam a descrição formam o arcabouço de
conteúdos abordados nas oficinas.
Essa primeira oficina11 teve como objetivo conversar com o grupo de professores
envolvidos na pesquisa: apresentar o projeto de pesquisa com todos reunidos e discuti-lo.
Optei por, inicialmente, desenvolver uma atividade para que o grupo pudesse vivenciar na
prática o que o projeto de pesquisa propunha. A ideia foi promover uma experiência que
possibilitasse que nossa conversa sobre a pesquisa saísse da abstração.
Quando todos estavam presentes, me apresentei brevemente e iniciei a narração da
história do baobá12, árvore símbolo da África:
Vou contar para vocês uma história que aconteceu num lugar tão distante
13
que poderia ser aqui, e há tanto tempo, que poderia ser agora.
Nos primórdios da vida, o Criador fez surgir todo o mundo. Ele criou
primeiro o baobá, e só depois continuou a fazer tudo existir.
Mas ao lado do Baobá havia um charco. O Criador havia plantado o
primogênito bem perto de uma região alagadiça. Sem vento, a superfície
daquelas águas ficava lisa como um espelho. O baobá se olhava, então,
naquele espelho d’água. Ele se olhava, se olhava e dizia insatisfeito:
- Por que não sou como aquela outra árvore?
Ora achava que poderia ter cabelos mais floridos, as folhas, talvez, um
pouco maiores.
11 Essa oficina aconteceu em 28 de setembro de 2011, na Escola da Natureza, com 12 participantes.
12 História A árvore de cabeça para baixo, recolhida na Costa do Marfim, país localizado no norte da África.
13
Fórmula encantatória para iniciar histórias.
76
O baobá resolveu, então, se queixar ao Criador, que escutou por uma,
duas horas as suas reclamações. Entre uma queixa e outra, o Criador
comentava:
- Você é uma árvore bonita. Eu gosto muito de você. Me deixe ir, pois
preciso continuar meu trabalho.
Mas o baobá mostrava outra planta e perguntava porque suas flores não
eram assim tão cheirosas. E sua casca? Parecia mais a pele enrugada de
uma tartaruga. E o Criador insistia:
- Me deixe ir, você para mim é perfeito. Foi o primeiro a ser criado e, por
isso, tem o que há de melhor em toda a criação.
Mas o baobá implorava:
- Me melhore aqui, e um pouco mais ali...
O Criador, que precisava fazer os homens e os outros seres da África,
saía andando. E baobá o seguia onde quer que ele fosse. Andava pra lá e
pra cá. E é por isso que essa árvore existe por toda a África.
O baobá não deixava o Criador dormir. Continuava e continuava, e
continuava sempre a implorar melhorias.
Justo a árvore que o Criador achava maravilhosa, pois não era parecida
com nenhuma outra, nunca ficava satisfeita. Até que, um dia, o Criador foi
ficando irritado, irritado, mas muito irritado, pois não tinha mais tempo pra
nada. Ficou irado mesmo. E aí então se virou para o baobá e disse:
- Não me amole mais! Não encha mais a minha paciência. Pare de dizer
que na sua vida falta isso e aquilo. E cale-se agora.
Foi então que o Criador agarrou o baobá, arrancou-o do chão e plantou
novamente. Só que... dessa vez, foi de ponta-cabeça, para que ele ficasse
de boca calada.
Isso explica sua aparência estranha; é como se as raízes ficassem em
cima, na copa. Parece uma árvore virada de ponta-cabeça.
Até hoje dizem que os galhos do baobá, voltados para o alto, parecem
braços que continuam a se queixar e a implorar melhorias para o Criador.
E o Criador, ao olhar para o baobá, enxerga a África. (LIMA, 2005, p. 14)
77
É comum que no cotidiano de convivência no trabalho, na escola, na comunidade,
nos dessensibilizemos diante da presença do outro para nós “conhecido”, nos esquecendo
de que não nos é possível capturar o outro integralmente. Essa mesma condição é replicada
na relação com o mundo ao nosso redor: vamos perdendo nossa capacidade de nos
surpreender, de nos espantar. Certamente, esse é um dos fatores que contribuem para o
adormecimento de nossa motivação para questionar, rever, encontrar o outro, dialogar. Por
isso, promover atividades que abram a possibilidade de nos surpreender com aspectos do
outro, até então desconhecidos, é enriquecedor. É uma forma de estimular reflexões,
autoquestionamento e dar nascimento a uma atmosfera de diálogo. “A compreensão mútua
entre os seres humanos, quer próximos, quer estranhos, é daqui para a frente vital para que
as relações humanas saiam de seu estado bárbaro de incompreensão”. (MORIN, 2000,
p.17).
Essa visão foi expressa no depoimento da professora Lucrécia Bezerra da Silva, na
roda de conversa, ao final da oficina: “Falar e contar histórias é reviver seus sentimentos e
se abrir para os outros. Ouvir os colegas é entrar em sua história. Compartilhar é sempre
bom e significativo para a questão humana”.
Depois de convidados a se apresentar, Renata Lafetá foi a primeira a contar sua
história, que nomeou A árvore da Rua Três Rios:
Em nosso diálogo, nos últimos momentos da oficina, quando todos foram convidados
a partilhar suas reflexões sobre a metodologia trabalhada como meio de sensibilização em
Educação Ambiental, Renata Lafetá disse: “Acredito que esta é uma ótima metodologia para
ser usada no Parque Escola14 com as crianças”.
Todos os participantes da oficina contaram suas histórias e demonstraram bastante
envolvimento com a atividade. A história contada por Lêda Bhadra, intitulada Figueira, foi
assim:
14
O Programa Parque Escola da Escola da Natureza tem o objetivo de fortalecer os Projetos Político
Pedagógicos de escolas do Plano Piloto/Cruzeiro, com vistas a implementação da Agenda 21 Escolar e da
criação de Com-Vidas (Comissões de Meio Ambiente e Qualidade de Vida).
78
Quando eu morava com minha avó, em Uberlândia, Minas Gerais, tinha um
quintal bem grande, de terra, onde havia várias frutíferas, uma horta e um
canteiro de ervas. Eu e meus irmãos brincávamos de Tarzan e eu era a
Jane. Nessa brincadeira, escolhíamos uma árvore (a figueira) para
amarrarmos cordas e nos pendurarmos como se fossem cipós. É claro que
os galhos acabavam quebrando com nosso peso e balanço constante. Mas,
a figueira ficava lá firme e forte. Tinha laranjeira, limoeiro e parreira de uva.
O que me chama a atenção hoje para a figueira era o fato do solo ser de
cerrado e ela ter se adaptado tão bem lá. O figo era meu fruto preferido,
bem como o doce dele que minha avó preparava em tachos grandes de
cobre. Como era bom o cheiro do doce ao ser levado ao fogo! Eu chamava
de “doce de cabinho”. Eu comia os figos maduros e os verdes viravam
“doce de cabinho”.
15
“Nome por que se conhece assim o iorubano como todo negro da Costa dos Escravos que falava ou entendia
o ioruba. [...] Abundantemente exportados para o Brasil, os nagôs tiveram prestigiosa influência social e religiosa
entre o povo mestiço, conservando, com os processos de aculturação, seus mitos e tradições
sacras.”(CASCUDO, 1979, p. 519).
16
“Negros do Daomé, vindos para o Brasil como escravos e que tiveram influencia folclórica e etnográfica”.
(CASCUDO, 1979, p. 401).
79
A proposta de contar histórias sobre árvore que sejam relacionadas a uma cultura,
mais que produzir conhecimento sobre árvores e culturas, e possibilitar a revisão da inter-
relação com as árvores que conhecemos - nos espaços em que vivemos, ressignificando-os
-, pode ser uma forma de trabalhar a importância do cuidado com o meio ambiente. Cuidar
não porque tudo está acabando, mas porque vamos reconhecendo nossa integração com
natureza e retomamos a relação com o meio ambiente todo ao nosso redor.
Como desdobramento da atividade relatada, em conversa com os professores da
Escola da Natureza, chegamos à seguinte reflexão: se as previsões catastróficas fossem
suficientes para despertar uma transformação de comportamento em relação ao meio
ambiente, a este momento não viveríamos mais os desafios que estamos enfrentando. E por
que, mesmo sabendo das consequências da exploração ambiental desmedida, continuamos
a agir como se não soubéssemos? Refletimos: quando falamos em meio ambiente, dentro
da visão do sistema econômico hegemônico, ouve-se recursos naturais. Estamos, então,
falando de interesses. Podemos colocar essa questão em pauta, refletindo acerca do fato de
que enquanto alguns povos cultuam as árvores que lhes servem como principal fonte de
alimento, nós agimos utilitariamente em relação ao que a natureza nos dispõe. A partir da
árvore, podemos ampliar a reflexão para o quintal, a floresta, ou a rua, observando as
relações de interdependência de tudo o que nos cerca.
A intervenção de atores locais, que se conectam em rede, está se mostrando,
atualmente, a saída mais eficaz para enfrentar os problemas socioambientais. No dia a dia,
a não ser para quem é profissional da área, não é possível cuidar de outra árvore, de outro
curso d`água, de outra rua, que não sejam aqueles que estão a meu redor. Para estimular
tal comportamento, uma boa forma é trabalhar, em Educação Ambiental, para estreitar a
relação do aluno com o meio ambiente ao seu redor.
Atividades como essas podem reestabelecer a compreensão da inter-relação
socioambiental e o sentimento de “ser parte”, construindo um sentido interno que sustente a
prática de preservar meio ambiente e rever as relações socioculturais nas quais estamos
imerso.
Nesse sentido, contar histórias tradicionais para crianças e adolescentes em idade
escolar pode gerar bons frutos, promovendo o conhecimento sobre outras culturas,
colocando em cheque nosso comportamento, construindo significado para o ato de
preservar e plantar e, mais ainda, a depender da idade do aluno e do projeto político
pedagógico, pode servir como ponto de partida para conversas e reflexões sobre questões
culturais, sociais e econômicas que contribuam para a construção de uma consciência
ambiental politizada.
Sobre atividades e desdobramentos do trabalho com histórias, a partir da dinâmica
de apresentação e das conversas suscitadas, surgiram muitas ideias entre os participantes
80
da oficina, como por exemplo: desenvolver atividades com as crianças, em que elas
caminhassem em algum espaço, observassem as árvores, pesquisassem e contassem
histórias sobre essas árvores; ou, incentivar as crianças a pesquisarem na família as
árvores que cada um gosta e procurar saber as histórias de cada um sobre essas árvores;
ou ainda, propor como atividade, que os alunos, por um tempo observassem uma árvore e
fossem descrevendo o que acontecia com ela. Caso fosse uma árvore próxima ou dentro da
escola, o aluno poderia adotá-la e ser cuidador dela. Essas atividades poderiam ser
desenvolvidas como eixo para pesquisas e reflexões, planejadas com base nos objetivos
pedagógicos, considerando a faixa etária do aluno.
Ao final da oficina, compartilhamos nossas reflexões e sentimentos sobre a
experiência vivenciada. Caroline Amaral disse que: “contar histórias é essencial como meio
de sensibilização em EA. Esta metodologia [trabalhada na oficina] precisa ser estudada em
profundidade pelo corpo docente para que todos sintam-se seguros e apropriem-se da
técnica, estimulando a criança interior e sua capacidade imaginativa”.
Maristela Nascimento compartilhou que, em sua opinião, a metodologia trabalhada
era “eficiente do ponto de vista de despertar o interesse das crianças (pequenas e grandes)
e facilitar o diálogo entre os diferentes mundos. Propõe um espaço para o encantamento
pela vida em todas as suas formas.”
Ana Carolina Pinto de Souza Seixas, expressou que “a contação de histórias é
sempre uma atividade atraente. A partilha das histórias de cada um em um contexto coletivo
traz a tona imagens e valores como: saber escutar, imaginar o que o outro conta, se
emocionar com as histórias dos colegas. Isso tudo é sensibilização em EA”.
Partimos, então, para a apresentação do projeto de pesquisa elaborado a partir do
diálogo com um interlocutor da Escola da Natureza. A intenção foi abrir a proposta de
pesquisa para revisão, e até mesmo, reconstrução em grupo. E, ainda, fortalecer o
sentimento de responsabilidade coletiva pelo processo de pesquisa, promovendo um
sentimento de “a pesquisa é nossa”, invocando a base filosófica da pesquisa-ação.
Durante a apresentação, os professores demonstraram um sentimento de
curiosidade em relação a como se daria a pesquisa, como seriam as oficinas, e, em geral,
manifestaram o desejo de que as oficinas fossem mais vivenciais. Um dos professores
questionou a amplitude da abordagem, perguntando de que povos especificamente – de que
localidade – seriam as histórias. Sobre isso, esclareci que todas as histórias contadas,
africanas e indígenas, seriam seguidas de informações sobre o povo e a cultura dos quais
faziam parte, pois a ideia do projeto não era explorar este ou aquele povo ou cultura
específicos, mas instrumentalizar o professor com metodologias que ele pudesse adaptar à
abordagem do povo ou cultura que considerasse apropriado no contexto de seu trabalho
pedagógico.
81
Foi solicitado pelo grupo o compartilhamento de textos sobre o tema, além de
sugestão de histórias para as atividades de EA. Essa solicitação suscitou um debate
relevante, que foi totalmente ao encontro da questão do diálogo intercultural tratado na
pesquisa e da orientação da LDB. Uma professora compartilhou que, sendo evangélica, não
contaria histórias que dissessem respeito às deidades africanas, porque esta era uma
questão espiritual contra sua religião. Vários professores posicionaram-se, e a discussão
evidenciou um dissenso, e mais que isso, fez emergir um debate em torno das questões que
condicionam o fechamento ao diálogo e ao encontro entre as diversas culturas: o
preconceito religioso.
Uma professora disse: “quando falamos, dentro da abordagem das culturas, na
necessidade de conhecer a religião, é para acabar esse preconceito, porque isso acontece
nas escolas. Uma criança que o pai é pai de santo é discriminada porque usa um colarzinho
que é um símbolo da religião dela. Por que que as pessoas podem usar um crucifixo ou uma
estrela de Davi que ninguém fala nada, e a outra criança não pode usar um colarzinho azul
e branco, que ela é discriminada em sala de aula?”
Um professor deu sua opinião, dizendo: “[...] A gente tem que tomar um cuidado
muito grande em relação a isso, porque o que me bateu com relação a algumas colocações,
com todo respeito, foi uma visão muito preconceituosa. A gente tem que tomar muito
cuidado com relação a isso porque senão acabamos nos contradizendo com relação a
nossa lógica. Nossa lógica é de excluir ou de incluir? Será que vamos contribuir para que os
negros e os indígenas fiquem no time dos excluídos? Os terceiros excluídos? Eu vejo aí um
sintoma da necessidade que nós temos de viver, não necessariamente abrindo mão do que
nós somos, a experiência que está ali no objetivo [referindo-se ao objetivo da pesquisa],
buscando uma transição paradigmática que é característica de uma educação que seja
verdadeiramente emancipatória”.
Esse debate prolongou-se, seguindo as linhas de reflexão das falas acima citadas,
demonstrando a potencialidade da metodologia desenvolvida na oficina, e do trabalho com
histórias tradicionais, de suscitar as questões sociais, políticas e culturais que dão contorno
aos desafios de valorização da diversidade cultural nas escolas e na sociedade como um
todo.
Como aponta Thiollent (1994) ao tratar das potencialidades da pesquisa-ação: por
trás dos problemas enfrentados pelas ações de caráter prático de uma atividade coletiva em
pesquisa-ação, “há sempre uma série de condicionantes sociais a serem evidenciados pela
investigação.” (THIOLLENT, 1994, p. 15).
Ao final da oficina, a coordenadora pedagógica Renata Lafetá expressou o desejo de
incluir os resultados da pesquisa num banco de experiências em EA, que ela propôs que
fosse elaborado na Escola da Natureza.
82
3.2 SEGUNDA OFICINA: A FONTE E O FRUTO
17
Essa oficina aconteceu em 09 de outubro de 2011, na Escola da Natureza, com 12 participantes.
83
Questões
Tema Histórias na abordagem Histórias na Educação Técnicas e recursos Histórias, sagrado e
de questões culturais e Ambiental do contador de sustentabilidade
étnico-raciais histórias
Esclareci ao grupo que as questões que emergiram serviriam para orientar a todos
nós. Todos nós poderíamos buscar materiais e informações relacionadas a tais questões
para compartilhar com o grupo. Também, durante as oficinas, todos ficaríamos
especialmente atentos aos conteúdos relativos àquelas questões, ou seja, nós, em grupo,
buscaríamos as respostas para as perguntas que gostaríamos de ver respondidas.18 Em
nossa última oficina, retomaríamos as questões para avaliar em que medida, em nosso
processo de pesquisa, conseguimos chegar às respostas das perguntas que nos
propusemos.
Essa proposta buscou fundar um processo de responsabilização coletiva pela
construção de conhecimentos a que, como grupo de pesquisa, nos propomos. Até porque, a
formação do contador de histórias é gestada em sua trajetória de busca por suas próprias
respostas. Esse aspecto foi enfatizado na continuidade da oficina, ao abordar-se os
fundamentos da arte de contar histórias. Nas palavras de Machado,
ninguém pode ensinar uma pessoa a ser uma boa contadora de histórias e
ao mesmo tempo, qualquer pessoa pode aprender a contar bem uma
história. Muitos professores, por exemplo, procuram cursos que ensinem a
prática de narrar e esperam que lhes sejam respondidas perguntas tais
como: Que técnicas devem ser utilizadas? Que histórias devem ser
18 Metodologia adaptada da oficina Caravanserai: era uma vez a arte de contar histórias, com Regina Machado,
84
contadas para crianças de oito anos? Como manter a atenção da
audiência? Uma história deve ser lida ou contada?
É raro, no entanto, que perguntem: Como posso me preparar, ou seja, o
que posso aprender, para que eu mesmo encontre respostas para minhas
perguntas? (MACHADO, 2004, p. 69).
Para Machado, não há uma resposta única e definitiva, uma receita, para estas
perguntas. “Cada uma delas depende de um conjunto de circunstâncias, sempre
particulares, para ser respondida por alguém, dentro de uma determinada experiência de
aprender a contar. Antes de querer saber como contar, é preciso compreender que as
técnicas resultam de um processo de elaboração da presença, que começa com a pergunta:
por que contar?” (2004, p.69).
Assim, o que ancora a experiência de contar histórias é a clareza da intenção que
move o contador. Desse modo, nesse processo de reflexão, convidei os professores a,
durante o andamento de nossa pesquisa, refletirem sobre a questão proposta por Machado
(2004, p.70): “o que quero, o que pretendo, o que me leva a acreditar na importância dessa
ação de contar histórias?”
Essa intenção, diz Machado (2004, p.70), transparece na ação do contador,
enquanto está narrando, e também irá orientar o aprendizado, determinar as escolhas de
repertório e demais recursos externos e, ainda, os caminhos a serem seguidos. Além disso,
a intenção também “situa a audiência numa determinada frequência de escuta” (MACHADO,
2004, p.70).
Esse estudo acerca dos fundamentos da arte de contar história foi orientado pela
leitura e discussão coletiva de um texto (Anexo A). Seguimos na oficina, dialogando sobre
as dúvidas e curiosidades que emergiam a partir dessa leitura, e adentramos na discussão
da diferença entre histórias autorais e contos tradicionais.
Os contos tradicionais são universais e, ao mesmo tempo, particulares. “O conto,
tanto mais tradicional, conhecido e querido numa região, mais universal nos seus elementos
constitutivos” (CASCUDO, 1999, p. 20). Podemos, então, encontrar histórias adornadas
pelas cores e especificidades de uma cultura, e descobrir uma história com a mesma
estrutura em lugares e tempos diferentes, revestida pelas tonalidades de outra cultura. No
livro Meus contos africanos, Mandela (2009, p.6) afirma que “enquanto alguns procuram
identificar de onde vem cada história, aqueles que estão familiarizados com as
peculiaridades do folclore saberão que, algumas vezes – na verdade, com frequência –, é
totalmente impossível apurar com qualquer grau de precisão de onde ela se originou.”
Machado, explorando a abordagem de André Jolles em seu livro Forma simples,
aponta a identificação de algo na forma do conto tradicional – forma simples – que se
mantém presente como um “fundo”, mesmo o conto sendo narrado de diversas maneiras.
85
Machado discorre que
na forma simples, a linguagem permanece fluida e aberta, dotada de
mobilidade e renovação constante, sendo nesse caso a própria linguagem a
verdadeira força de execução da substância do conto. O universo
transforma-se de acordo com um princípio que rege apenas essa forma,
denominado por Jolles de disposição mental.
No conto, tal disposição mental deve-se ao fato de que seus personagens
nos proporcionam uma certa satisfação: “porque as coisas se passam
nessas histórias como gostaríamos que acontecessem no universo, como
deveriam acontecer”
Nesse sentido, ele chama de moral ingênua a ética contida nos contos,
porque se trata de um julgamento afetivo, que faz dos contos uma
reparação, quase um consolo e escape à imoralidade da realidade. Assim,
as características essenciais da forma conto seriam o maravilhoso e a ação
fora do tempo e do espaço conhecidos. No conto, esses elementos
garantem a segurança da ausência da imoralidade da realidade da vida,
porque no acontecimento cotidiano o que deve ser – segundo a moral
ingênua do conto – não pode ser. (JOLLES, 1976 apud MACHADO, 2004,
p. 161).
Machado (2004) também discorre sobre outras qualidades dos contos tradicionais,
como o fato de conservarem ensinamentos significativos ocultos em sua linguagem
simbólica. Afirma que “é preciso reconhecer não apenas o aspecto objetivo e supraindividual
dessas composições narrativas, mas também a significação metafísica do símbolo”
(MACHADO, 2004, p. 164).
Todas essas questões abordadas eram novas para o grupo, e a discussão seguiu
em uma atmosfera de interesse e tentativa de compreender o conteúdo. Conforme esclareci
ao grupo, a internalização desse conteúdo aconteceria com o tempo, a partir do estudo e da
prática. Compartilhei que essa havia sido minha experiência durante a trajetória de
exploração do universo da arte de contar histórias e da tradição oral. Na verdade essa
compreensão se renova e se amplia a cada experiência, desvelando novas nuances.
Partimos, então, para a experiência prática. Apresentei duas histórias aos
professores. Ambas as histórias se dão numa atmosfera de profunda conexão com a
natureza, em que pela experiência de transformação, a morte se reverte em vida e força.
Uma delas era uma história de Euá, orixá feminino cultuado pelos iorubás. “Para os iorubás
tradicionais e os seguidores de sua religião nas Américas19, os orixás são deuses que
receberam de Olodumare, o Ser Supremo, a incumbência de criar e governar o mundo,
ficando cada um deles responsável por alguns aspectos na natureza e certas dimensões da
vida em sociedade e da condição humana” (PRANDI, 2001, p.20). “Euá é orixá feminino das
fontes e preside o solo sagrado onde repousam os mortos” (PRANDI, 2001, p.21).
A outra história que apresentei ao grupo foi a Lenda do Guaraná, uma história da
etnia Sateré-Mawé, que habitava as regiões centrais da mata entre os rios Madeira e
Tapajós, no Estado do Amazonas, e hoje tem seu território bastante limitado. Esse povo
19
No Brasil, os participantes do Candomblé.
86
indígena foi o primeiro a cultivar o guaraná e inventar seu beneficiamento para transformá-lo
em bebida, a qual deram o nome de çapó (FITTIPALDI, 1986). O processo de
beneficiamento se dá da seguinte maneira:
87
O grupo de Ana Carolina, Estevão e Lucrécia, e o outro grupo composto por Renata,
Maristela, Janice e Márcia contaram a história de Euá (PRANDI, 2001, p. 232):
Havia uma mulher que tinha dois filhos, aos quais amava mais do que tudo.
Levando as crianças, ela ia todos os dias à floresta em busca de lenha,
lenha que ela recolhia e vendia no mercado para sustentar seus filhos. Euá,
seu nome era Euá e esse era seu trabalho, ia ao bosque com seus filhos
todos os dias.
Uma vez, os três estavam no bosque entretidos quando Euá percebeu que
se perdera. Por mais que procurasse se orientar, não pode Euá achar o
caminho de volta. Mais e mais foram os três se embrenhando na floresta.
As duas crianças começaram a reclamar de fome, de sede e de cansaço.
Quanto mais andavam maior era a sede, maior era a fome. As crianças já
não podiam andar e clamavam à mãe por água. Euá procurava e não
achava nenhuma fonte, nenhum riacho, nenhuma poça d’água. Os filhos já
morriam de sede e Euá se desesperava. Euá implorou aos deuses, pediu à
Olodumare. Ela deitou-se junto aos filhos moribundos e, ali onde se
encontrava, Euá transformou-se numa nascente d’água. Jorrou da fonte,
água cristalina e fresca e as crianças beberam dela. E a água matou a sede
das crianças. E os filhos de Euá sobreviveram. Mataram a sede com a água
de Euá. A fonte continuou jorrando e as águas se juntaram e formaram uma
lagoa. A lagou extravasou e as águas mais adiante originaram um novo rio.
Era o rio Euá, o Odô Euá.
88
E foi esticar-se mais adiante, no meio do caminho.
Quando a moça passou, a cobrinha olhou com firmeza nos olhos dela e
desejou que fosse sua esposa. Com este simples encanto, qualquer
alguém, árvore, bicho ou gente, já estava casado e gerava filho.
Assim, Uniaí ficou grávida, no encantamento de um perfume.
Seus irmãos não gostaram nada, nada:
- Agora ela só vai cuidar de criança, não arranja mais nada pra gente.
Ficaram furiosos! Não queriam ver a irmã com filho, de jeito nenhum.
Então ela foi embora do Noçoquém.
Nesse tempo, a castanheira já tinha espalhado a sua copa como um céu
verde de tão grande. E, nos galhos, pendurava seus ouriços, que nem
caixinhas de surpresas, que são as castanhas que tem dentro.
Uniaí fez sua casa bem longe, perto de um rio. A criança nasceu forte e
bonita. Ela banhava a criança no meio de tanta borboleta que gosta da beira
da água. E lá foi crescendo o menino, cada vez mais forte e bonito.
Uniaí contava pra ele as histórias do Noçoquém.
Contava das plantas, dos tios, da castanheira.
Logo que aprendeu a falar, o menino desejou:
- Também quero comer castanhas. Quero as frutas que os tios tanto
gostam.
- Está difícil, meu filho. Agora seus tios tomam conta do Noçoquém, a gente
não pode entrar lá.
O menino, porém, continuou a pedir as frutas tão boas de comer.
- Está perigoso, meu filho. Seus tios colocaram de guarda a cotia, o
periquito e a arara.
- Mesmo assim eu queria…
Queria porque queria. Querer é desejo, não tem outro jeito: foram.
Aconteceu que depois a cotia, passando pelo Noçoquém, viu no chão,
debaixo da castanheira, as cinzas de uma fogueira, onde tinham assado
castanha. Correu, foi contar o visto.
Um dos irmãos duvidou:
- Será? A cotia pode estar enganada…
O periquito também viu, correu contar. E a arara confirmou.
Daí, os dois irmãos decidiram mandar o macaquinho-boca-roxa tomar conta
da castanheira:
- Se aparecer alguém, alguma gente, algum menino, trate de pegar e sumir
com ele.
No dia seguinte o menino queria comer castanhas. Como já sabia o
caminho do Noçoquém, foi sozinho mesmo.
Deste vez o macaco viu o menino subir na castanheira.
Bem escondido pelas outras árvores, armou o arco, disparou flechas.
Caiu um montão de castanhas, caiu o menino junto.
Quando deu pela falta do filho, Uniaí saiu correndo para o Noçoquem.
Correu, correu o mais que podia.
Uniaí encontrou o filho sem nenhuma vida. Soprou, soprou, nada. Aí
chorou, chorou muito e triste, triste, chorou tanto!
Mas da tristeza fez força:
- Seus tios fizeram isso. Queriam você desse jeito, sem vida. Mas não será
assim! De você faço a semente da planta mais poderosa que já se viu!
E plantando a criança na terra, cantava:
Grande será, curador dos homens!
Todos terão que recorrer a você
Pra acabar com as doenças, ter força na guerra,
Pra ter força no amor.
Grande será!
Primeiro, do olho esquerdo do menino nasceu uma planta que não era forte.
Era o falso guaraná, que ainda existe e os índios chamam de “uaraná-hôp”.
Depois, do olho direito, nasceu o guaraná verdadeiro, que os índios
chamam de uaraná-cécé”. Por isso é que o guaraná é assim, que nem olho
de gente.
89
Dias depois, Uniaí foi ver a planta que criou. O guaraná estava grande,
cheio de frutos. Debaixo do guaraná, encontrou seu filho, alegre, forte, lindo.
Este menino, que nasceu que nem planta, de dentro da terra, foi o primeiro
índio Mawé.
Ele é a força e a vitalidade. Ele é a origem da tribo. (FITTIPALDI, 1986, p.1-
15).
Esse grupo, diferente dos demais, optou por uma abordagem teatral, em que cada
um do grupo representava personagens da história, enquanto uma pessoa do grupo
narrava. Depois das apresentações, na roda de conversa, dialogamos sobre técnicas e
possibilidades de trabalho com histórias, também abordadas no texto trabalhado nesta
oficina.
Não há uma técnica considerada melhor, há a técnica mais apropriada para o
objetivo pretendido. Ler a história é uma forma de estimular o contato com o livro e
incentivar a leitura. Narrar dá vida ao conto e privilegia o contato olho no olho e a exploração
da linguagem corporal. O professor pode optar pela técnica mais apropriada segundo seus
objetivos pedagógicos.
Sobre a atividade desenvolvida, o grupo compartilhou diversos sentimentos e
observações. Márcia Diniz disse: “as linguagens utilizadas (leitura e dramatização) ficaram
em meu imaginário como um sino suave a me lembrar do compromisso de resgate com a
natureza, a partir da mudança de atitudes, além, é claro, de socializar conhecimentos
adquiridos nesse processo”.
Ana Carolina compartilhou que “é sempre bom estudar histórias de povos
tradicionais como enriquecimento cultural e respeito a esses povos, que tem uma relação de
estreitamento profundo com a natureza. É também bom que a leitura e a narração seja em
grupos, pois podemos perceber as diferentes interpretações acerca de uma mesma história.
[...] Acho que esse conhecimento enriquece a prática de EA.”
Adolpho também manifestou sua opinião: “achei extremamente salutar [...] ver estas
versões de narrativas e a criação de apresentações coletivas para [inspirar] os nossos
trabalhos no Parque Escola, sendo uma ferramenta muito boa e adequada para nossas
atividades”.
Para Cláudia Maria, por meio da metodologia vivenciada na oficina, pode-se “ampliar
o repertório de histórias contadas às crianças, incluindo culturas além da europeia, e trazer
para a discussão a formação étnica do povo brasileiro”. Ainda referindo-se à metodologia,
ela afirmou que esta foi “interessante por apresentar as histórias de forma lúdica e
possibilitar a sua recriação e a vivência corporal além da intelectual”.
90
3.3 TERCEIRA OFICINA: RAÍZES DA PALAVRA
O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e agora, quando eu me for, vocês
terão de fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar na floresta onde eu
invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo.
Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo isso
e Deus virá.
Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu
exatamente às suas instruções, e Deus sempre veio. Na segunda geração,
porém, as pessoas já se haviam esquecido de como se acendia a fogueira
do jeito que o Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam
paradas no local especial na floresta, diziam a oração, e Deus vinha.
Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a
fogueira, nem do local na floresta. Mas diziam a oração assim mesmo, e
Deus ainda vinha.
Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira,
ninguém sabia mais que local exatamente da floresta deveriam ficar e,
finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma
pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo e relatou com voz
alta. E Deus ainda veio. (ESTÉS, 1998, p. 3).
A história criou uma atmosfera de silêncio e introspecção. Algo que me fez recordar
um relato de Regina Machado (2004, p. 20):
20
Essa oficina aconteceu em 16 de novembro de 2011, na Escola da Natureza, com 12 participantes.
21
O olhar do griot sobre o ofício do ator: reflexões a partir dos encontros com Sotigui Kouyaté. Tese de
Doutorado em Teatro defendida em 25 de Abril de 2008 na UNIRIO.
22
Edição nº 117, de fevereiro de 2007, da revista do SESCSP.
91
Sob efeito dessa experiência singular, lemos em grupo o primeiro texto que tratava
do ofício do griot na África, conforme a tradição que ainda subsiste na região que era
abrigada no século XIII pelo Império Mali23. Segundo Bernat,
A reportagem lida apresentava falas de Sotigui Kouyaté24 contando que os griots são
a memória do povo africano na parte da África antes abrigada pelo Império Mali. Segundo
Sotigui, os griots são os guardiões da tradição e da cultura africana nessa região, sendo
encarregados por organizar todas as cerimônias, cumprindo um papel indispensável para o
equilíbrio da sociedade africana. A reportagem também apresentou depoimentos de Sotigui
sobre como seu povo se relaciona em profunda conexão com a natureza e com devotada
hospitalidade com os estrangeiros.
A leitura desses textos contextualizou a cultura africana, matriz dos valores
ancestrais afrodescendentes, e ofereceu elementos para a compreensão do significado da
palavra entre os povos africanos que vieram para o Brasil.
Abordando os valores ancestrais afrodescendentes, Xavier (2006, p. 134) esclarece
que
mais do que veículo de informação, a palavra para o africano tem
dimensões sagradas (do ser sagrado para a humanidade) e religiosas (da
humanidade para o ser sagrado). Ela cria cenários possíveis! A mentira e a
falta de honra criam cenários falsos e insustentáveis. Foi esse valor que
23
Integra atualmente o Senegal, a Gâmbia, a Guiné Bissau, a Libéria, a Mauritânia, a Guiné, o Mali, Burkina
Fasso, o norte da Costa do Marfim e o leste do Níger.
24 Sotigui Kouyaté, integra a linhagem dos primeiros griots que, desde o século treze, passam de pai para filho o
92
permitiu aos velhos e velhas africanos que fundassem suas casas de axé e
que elas se preservassem até os dias atuais, como fontes geradoras e
retroalimentadoras de força vital para a realização de projetos. As casas de
cultos aos ancestrais foram plantadas, mantidas e perpetuadas pelas
palavras sagradas, veiculadores da verdade.
93
gente se identifica. [...] As pessoas não são muito diferentes [...], de maneira geral a vida
não é muito diferente”.
O sentido desta última parte da fala da professora Renata pode ser vislumbrado no
que disse Ítalo Calvino:
25
As fábulas são, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada
casuística de vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em
tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação das consciências
camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a
um homem e a uma mulher, sobretudo pela parte de vida que justamente é
o perfazer-se de um destino: a juventude, do nascimento - que tantas vezes
carrega consigo um auspício ou uma condenação - ao afastamento da casa,
às provas para se tornar adulto e depois maduro, para confirmar-se como
ser humano. E neste sumário desenho de tudo; a drástica divisão dos vivos
em reis e pobres, mas sua paridade substancial: a perseguição do inocente
e seu resgate como termos de uma dialética interna a cada vida; o amor
encontrado antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto bem
perdido; a sorte comum de sofrer encantamentos, isto é, de ser determinado
por forças complexas e desconhecidas, e o esforço para libertar-se e
autodeterminar-se como um dever elementar, junto ao de libertar os outros,
ou melhor, não poder libertar-se sozinho, o liberta-se libertando; a fidelidade
de uma promessa e a pureza de coração como virtudes basilares que
conduzem a salvação e ao triunfo; a beleza como sinal de graça, mas que
pode estar oculta sob aparências de humilde feiura como um corpo de rã; e
sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisas, a
infinita possibilidade da metamorfose do que existe. (CALVINO, 1992, apud
MACHADO, p. 26)
Tendo explorado um pouco do universo da tradição oral, tecemos uma rede para
sustentar a prática de contar histórias e aprender e ensinar pela palavra. A proposta de
atividade desta oficina foi escolher uma história que leríamos em grupo como preparação
para, na próxima oficina, praticar a narrativa de duas formas: um professor que desejasse
iria contar história individualmente e também a contaríamos em grupo, com todos os
professores presentes, em círculo, sem uma ordem pré-determinada.
Visando estudar os significados da tradição oral a partir de perspectivas abertas, os
professores optaram por ler coletivamente a história A mãe que se transformou em pó,
história do livro Meus contos africanos, de contos selecionados por Nelson Mandela, que
interessou aos professores especialmente pela forma de abordagem de questões
ambientais. As informações do livro não deixam claro se a história é tradicional, embora
pareça tratar-se de um reconto, por uma contadora de histórias, de um conto tradicional de
um povo do Malaui, país da África Oriental. Mesmo diante desta incerteza e tendo as
histórias tradicionais como foco, o grupo, abrindo-se à experimentação, própria de um
processo de pesquisa, acreditou ser interessante trabalhar com essa história. Fizemos a
leitura do conto, em grupo, sem uma ordem determinada:
25
No livro Fábulas Italinas, de Ítalo Calvino, utiliza-se o termo fábulas como sinónimo de contos populares.
94
Certa vez, o Sol tivera uma filha. Como seu pai, ela era uma estrela de
grande brilho e vivia no maior brilho do sol. Usava sapatos feitos de
fragmentos luminosos de estrelas e, em seus dedos, nos tornozelos, nos
pulsos e no pescoço, usava faíscas colhidas de estrelas cadentes. Ela
cintilava resplandecente e iluminava o espaço além do sol, conhecido como
céu. Reinava sobre ele com grande sabedoria, amor e compaixão.
Um dia, enquanto circulava de um lugar a outro inspecionando os
incontáveis planetas na vastidão do universo, ela viu um planeta numa
região distante. Era muito afastado, quase ao alcance da ponta dos dedos
do sol.
Suas cores tinham todas as tonalidades de azul e verde. Ela olhou
novamente e então falou.
- É ali naquele planeta – disse a Estrela ao Sol – que quero o meu trono.
Quero passar minha vida na riqueza verde e no frescor azul.
O sol suspirou. Ele olhou para a grande luminosidade da Estrela e suspirou
de novo. Seus olhos podiam ver muitos anos no futuro.
- Tudo é seu – ele disse. – Você pode ir onde quiser. Pode fazer o que
quiser. Saiba disso, porém você precisará se libertar da maior parte do seu
poder e deixa-lo aqui. Seu casaco radiante de pura luz, seus sapatos
estrelados, suas tornozeleiras, seus braceletes e seus colares com brilho
das estrelas da noite e da manhã, você não pode levar com você. O verde
sensível desse planeta não aguentaria o calor do seu brilho, e o azul se
secaria completamente. Entretanto, em vez de suas vestes cintilantes, você
pode fazer três pedidos, que lhe serão concedidos incondicionalmente.
- Muito bem – ela disse. – Deixe-me pensar sobre isso.
Ela pensou por anos e anos. Porque é assim que acontece com as estrelas
e o sol na sua vastidão do universo. Tudo leva anos e anos para acontecer,
embora para eles seja como num piscar de olhos. Por fim, quando havia
pensado o suficiente, tomou a decisão.
Ela concordou em largar seu casaco, e deixar seu manto de alvorada, seus
sapatos estrelados, suas sandálias do crepúsculo e seus chinelos de rubros
de anoitecer. Com uma luz ofuscante, elas os entregou ao sol. Então disse:
- Agora vou ao planeta verde e azul e me tornarei sua mãe.
- Leve tudo o que precisar. Saiba que sentiremos muito sua falta aqui,
mesmo você estando sob nossa vista diariamente. Saiba também que
sempre será bem-vinda aqui – disse o sol. – Que lástima... Nossa luz pode
não ser sempre prazerosa para seu novo corpo naquele pequeno planeta.
Então, tudo ao redor do sol, os anéis, as tornozeleiras, os bracelete e os
colares de Estrela, foi espalhado em um rastro de estrelas, pó cintilante e
faíscas espalhadas pelo espaço como um rastro de leite derramado. Foram
arrumados de modo que pudessem ser vistos por ela no planeta azul e
verde. Assim ela se lembraria de onde tinha vindo.
Finalmente ela partiu, montando primeiro numa estrela cadente que
rapidamente cruzou o tempo e o espaço. Mais tarde, seguiu num raio de luz
na suavidade do nascimento de um dia, mas ainda havia muito caminho
pela frente. Ela tinha levado consigo uma enxada, um almofariz e um pilão,
uma peneira, um cântaro de água, uma panela para cozinhar, pratos feitos
de bambu e madeira, um pequeno machado, uma esteira e uma grande
toalha de mesa. Enfim, viajou no primeiro feixe de luz e chegou ao planeta
azul e verde.
Aterrissando no planeta, viu como ele era e porque parecia tão verde a
distância no céu. As florestas eram tão lindas que fizeram seu coração se
expandir e ficar ainda mais brando do que já era antes. Ela olhou
amorosamente para as plantas, e estas cresceram felizes à sua vista, o
verde se tornava mais viçoso. Havia arbustos aqui, árvores ali, e, mais
além, havia flores de todas as cores que lembravam as luzes de seu lar
distante: amarelo, laranja, azul, violeta, branco, rosa, limão, lima, azul-
celeste, verde-água e incontáveis tonalidades e matizes entre elas.
- Filhos, eu quero ter filhos. Muitos, muitos filhos – ela disse. – Quero ter
filhos para amar. Filhos para correr no mato. Filhos para cantar, filhos para
95
rir e vozes para ecoar nas encostas das montanhas. Filhos para chamar e
abraçar, e quando eu envelhecer e ficar desamparada, filhos para cuidar de
mim. Filhos para fortalecer, quando eu enfraquecer e desfalecer. E quando
a hora vier, filhos para me por para dormir.
Seu pedido foi atendido e surgiram filhos. Ah, muitas crianças! Todas à sua
volta. De um lado e de outro. Em frente e atrás. Havia crianças altas, ágeis
e tão fortes que podiam ficar sobre um única perna durante horas. E havia
crianças amáveis e gentis, que compartilhavam afeto e compaixão mesmo
com aquelas que não podiam correr muito rapidamente ou ficar de pé por
tanto tempo. Havia filhas ternas e adoráveis como flores, amáveis como
mães, gentis como irmãos e compassivas como pais. Eles se agrupavam
em volta da filha do sol e a chamavam de Mãe.
E então a estrela, filha do Sol que reinava no céu com seu infinito
esplendor, tornou-se mãe de todos os filhos nascidos no planeta verde e
azul.
Ela os amava e cuidava deles. As crianças altas e as baixas, as gordas e as
magras, as escuras, as pálida e as douradas. Dia e noite, ela zelava por
todas.
[...] Ela se preocupava com todos e trouxe chuva e fartura para eles. Por
saber o caminho do céu, ela também trouxe sol e luz. E, quando era hora de
as plantas descansarem, ela trouxe o outono e o inverno para elas poderem
dormir.
Ela cuidava das crianças quando elas estavam acordada e quando elas
estavam dormindo. Levantava-se antes de todo mundo. Com uma grande
vassoura, varria e limpava, e começava cedo com sua enxada para que
crescessem os alimentos de que suas crianças necessitavam.
Apesar de serem esfomeadas, sempre tinha comida suficiente para elas
comerem [...]. A mãe de todos os filhos era muito forte, mas os anos foram
pesando bastante sobre seus ombros. E as crianças da terra mudaram.
Certo dia, ela reclamou para o Sol:
- Elas estão todas muito diferentes. Eu me tornei um nada para elas. Eu
duvido até mesmo que elas me vejam.
O Sol respondeu:
- Lembre-se, elas são crianças. Não pediram para serem trazidas ao
mundo. Trabalhe com elas. Você encontrará um tesouro onde menos
esperar.
E assim ela trabalhou, servindo as crianças, que começaram a brigar pelas
coisas. Elas não ajudavam umas às outras e não faziam nada por si
mesmas, mas estavam sempre chorando e pedindo sua presença e
atenção.
- Estou com fome! – Estou com sede! – Quero isso! – Quero aquilo! – Leve-
me! – Abrace-me! – Você é a mãe, você nos trouxe ao mundo. Cuide de
nós.
E a mãe de todos os filhos curou as feridas, alimentou bocas famintas, deu
de beber a gargantas secas e cuidou de todos até se tornarem homens e
mulheres. Eles seguiram para locais distantes, voltando apenas de vez em
quando, e, às vezes, sem nunca voltar. A essa altura haviam se tornado tão
maldosos e selvagens que matavam uns aos outros.
A tristeza começou a consumir o coração da mãe. Onde ela fora satisfeita e
orgulhosa, dobrava-se agora pela dor e a vergonha que seus filhos
amontoavam sobre ela quando a culpavam por tudo. Eles não ofereciam
uma única palavra de amor para ela, e a tristeza comeu pedaços de seu
coração, que sangrava.
E foi assim que, no vento que uivava e arrancava árvores, ela cantava para
se confortar enquanto trabalhava. Cantava na brisa fresca que beijava o dia
ao amanhecer enquanto suavemente balançava os pássaros adormecidos,
acordando-os para cantar o coro da manhã [...]. Ás vezes, quando colhia
lenha nas florestas ou nas planícies arborizadas, ela cantava sobre as
florestas, algumas das quais havia sido escasseadas por seus filhos
espalhados, que cortavam as árvores e levavam embora seus troncos que
96
tinham levado anos para crescer, deixando a terra semidestruída e
morrendo.
A mãe de todos os filhos sabia que seus filhos não ligavam para a Terra.
Eles cavavam buracos para procurar metais preciosos e deixavam as
feridas abertas sangrando. Quando andava pela Terra, esta era a canção
que ela cantava [...]:
Você me cultiva e me revira
para atender o pedido do seu coração
até me deixar desprotegida, ferida.
O castigo da seca me deixa improdutiva,
chuvas torrenciais rasgam minha pele
e os que passam me ridicularizam e cospem em mim.
E eu resisto a tudo.
Eu, a Mãe nascida para dar,
não levo nada de volta comigo.
Eu alimento o mundo e meus filhos observam
enquanto me deito envenenada por suas mãos.
Como os ouvidos dos filhos não estavam sintonizados com a música da
Terra, não prestaram atenção ao que ela cantava. Apenas de vez em
quando, quando ela cantava à noite, apenas de vez em quando, um peso
baixava nos corações dos filhos que um dia tinham sido gentis.
Conforme os filhos foram se espalhando ainda mais longe de casa, cada um
foi querendo mais e mais espaço. Eles se levantavam todos os dias e
brigavam por árvores. Brigavam por rochas brilhantes. Demarcavam
pedaços de terra [...].
Eles colecionavam pássaros das florestas e os colocavam em gaiolas sem
espaço para voar. Recolhiam os peixes e colocavam em recipientes sem
espaço para nadar [...]. E assim, quando a Terra ficou cansada e a mãe de
todos os filhos envelheceu, adoeceu e morreu, os filhos nem mesmo sabiam
se importar.
Em sua morte, foi-lhe concedido o segundo pedido: de que seus restos
mortais fossem vestidos de negro e que ela pudesse continuar servindo
seus filhos da melhor maneira possível. E, assim, até mesmo em sua morte
ela trabalhou, todo dia e toda noite, usando um manto negro e uma capa
negra. Ela trabalhava até mais agora que não precisava dormir. Os filhos
continuavam não se importando. Continuavam dizendo:
- Dê-me, dê-me, dê-me!
E ela continuou servindo sem parar.
Como ela agora era apenas um espectro, nunca disse nada. Suas canções
vinham à noite e ao romper do dia apenas, porque o vento as encontrava
nos vales e nas montanhas onde seus ecos ainda se demoravam. A mãe
cuidou especialmente de uma criança que havia nascido antes da hora, que
não podia falar. A criança tinha os olhos mais lindos, e seu cabelo escuro,
trançado e enfeitado com contas atrás dela, era forte. Ao mesmo tempo em
que seu cabelo crescia, seu coração também se expandia [...]. E ela se
tornou uma linda jovem.
Um dia, quando ia realizar suas tarefas, parou de repente e olhou para a
mãe. Então, ela falou pela primeira vez:
- Deixe-me ajudá-la, mãe. Por favor, sente-se e descanse.
Sua voz era amável e, depois que ela falou, um silêncio surdo caiu. A
amabilidade havia deixado o planeta há muito tempo, e agora tudo parecia
parar, mesmo que por apenas um momento.
A mãe soltou um suspiro.
- Oh, obrigada minha filha – ela disse.
Ela caiu no chão formando um monte e virou pó. Seu trabalho estava feito.
Um poderoso vento veio e reuniu seu pó, soprando-o no céu para formar a
lua que vemos hoje. Então, seu terceiro pedido, de que uma suave luz
brilhasse nela, de modo a poder ver seus filhos e o planeta verde e azul
todos os meses do ano, foi realizado.
97
Os filhos e filhas da lua ainda brigam e discutem, ainda reclamam. E a lua,
ao ver isso, tem de esconder sua face e chorar antes de poder suportar
olhar novamente, mostrando primeiro uma parte crescente de seu rosto.
Então ela vai mostrando mais até que esteja completa e irradiando amor.
Numa noite como essa, alguns pegam o amor e passam adiante [...] e
cantam a canção daqueles que tem o dom de servir, desejando mais um
pedido: que as crianças aprendam a amar sua mãe mais uma vez.
Essa oficina26 teve como foco a prática e observação de duas formas de contar
histórias que pudessem ser trabalhadas com alunos em Educação Ambiental.
Na trajetória da pesquisa, optei por planejar para as oficinas finais, um processo que
despendesse menos tempo com atividades pré-definidas, dispondo mais tempo livre para a
emergência de questões e reflexões do grupo. Para este dia, a proposta era a prática e
observação de formas de contar histórias, individual e em grupo, e também o
aprofundamento do estudo e da reflexão sobre qualidades dos contos tradicionais, refletindo
26 Essa oficina aconteceu em 12 de dezembro de 2011, na Escola da Natureza, com 13 participantes.
98
sobre o que o trabalho com esses contos poderia oferecer à prática de Educação Ambiental,
com relação ao estímulo do imaginário.
A dinâmica inicial proposta para esta oficina foi a seguinte: uma pessoa começaria a
criar uma história pronunciando uma única palavra e cada um deveria continuar a história,
buscando manter uma coesão, também dizendo apenas um palavra. Assim, sucessivamente
seguindo a ordem de disposição das pessoas em círculo, passando por cada um quantas
vezes fossem necessárias, até surgir uma história com um enredo mínimo, momento no
qual propôs-se que a história fosse finalizada em três palavras. Esse é um jogo muito
apropriado para exercitar a criatividade e integrar o grupo.
Depois dessa dinâmica, a professora Ana Carolina contou, para o grupo em círculo,
a história A mãe que se transformou em pó (lida na oficina anterior). Ela optou por usar
como recurso apenas a voz e gestos corporais. A maior parte das pessoas não se recordava
de todo o enredo da história lida na oficina anterior. Sentimos, e alguns do grupo
expressaram, que o jeito de contar da Ana Carolina ressaltou imagens da história,
despertando no grupo novos sentidos e emoções.
Depois, propus que todo o grupo contasse em roda a mesma história. Não foi
definida nenhuma ordem. Alguém iniciaria a narração, e quando este se calasse, outra
pessoa do grupo poderia dar continuidade por iniciativa própria, e assim por diante, até
terminar a história. Esclareci que essa metodologia poderia ser utilizada com qualquer
história e faixa etária, sendo muito apropriada para trabalhar com turmas de alunos com
idade entre 6 e 12 anos. Além de desenvolver a memória e promover a interação, esta
forma de trabalho estimula a ativação da escuta, o exercício da presença e o acordo dentro
do grupo.
O grupo considerou esse trabalho coletivo de narração muito interessante porque
promovia a participação de todos, desenvolvendo a atenção e a memória. Adentramos,
então, no aprofundamento do estudo e da reflexão sobre qualidades dos contos tradicionais
e da dimensão do imaginário.
O mito, a lenda, a saga e o conto, diz Machado (2004), trazem na sua própria
natureza a possibilidade atemporal de falar da experiência humana como uma aventura que
todos os seres humanos compartilham e todas essas formas narrativas falam do trabalho
criador da imaginação [...].
Essa dimensão da imaginação é reconhecida por Morin quando este afirma que “em
todo indivíduo, em toda sociedade há simultaneamente pensamento racional – empírico –
técnico e pensamento simbólico – analógico – mágico”. No entanto, essa dimensão humana
tem sido ignorada desde o início da experiência escolar.
99
Quanto a isso, conforme aponta Machado,
100
Quanto aos recursos internos, Machado (2004, p.72) explica que “a disposição
interna para se deixar levar pela respiração da história é uma aprendizagem que se faz pelo
exercício de habilidades de observação de pessoas, tipos humanos, fatos, objetos e
fenômenos da natureza, ou seja, da percepção da expressão das coisas [...]. Para isso,
continua Machado (2004, p.72), “são necessários curiosidade, senso de humor, capacidade
de brincar, de correr o risco, de perguntar, de ter flexibilidade para ver as coisas de
diferentes pontos de vista”, e, também, “contato com imagens internas significativas”.
Quanto aos recursos externos, Machado (2004) menciona a importância da pesquisa
de repertório, num processo de garimpo de material, e estudo, que irá enriquecer as
imagens internas do contador e possibilitará a escolha mais embasada de que tipo de
história é mais adequada a cada situação de aprendizado.
Também, segundo Machado (2004), é importante a pesquisa de diferentes começos
e finais de história. Essa pesquisa pode ser feita em livros ou pela escuta de outras pessoas
contando histórias, ou ainda em conversas do cotidiano. “Os começos têm o poder de abrir
a porta do universo da história, os finais fazem a passagem de volta para o mundo aqui de
baixo”, diz Machado (2004, p.76). Para trabalhar com mitos e lendas indígenas, uma forma
de iniciar ou finalizar a história pode ser um canto do povo a que a história se refere, o que
exige um certo trabalho de pesquisa. Mas também pode ser o som de um instrumento, por
exemplo, do maracá, que é muito comum entre os povos indígenas.
Outro aspecto importante é o cuidado com o espaço onde será contada a história. É
importante organizar o espaço para que não esteja poluído com elementos alheios à
história. Podem ser utilizados recursos cênicos. Em oficina anterior abordou-se a
possibilidade de trazer para a história objetos artesanais das culturas às quais a história se
refere, se isso for possível e considerando o objetivo pedagógico de tratar das culturas afro-
brasileira e indígena.
Sobre interferências durante a narração, Machado (2004, p.81) diz que “estar
presente no instante da narração é dialogar com o que surgir, sem ter sido previsto,
revertendo os acontecimentos a favor da história” porque “tudo o que acontece no momento
de contar é parte integrante da situação narrativa”.
Esta oficina28 foi dedicada à prática de narração oral de cinco histórias escolhidas e
estudadas pelos professores. O objetivo era aproveitar esse último encontro para promover
a experiência de escolha, preparação e narração em grupos, e, em seguida, conversar em
28 Essa oficina aconteceu em 14 de dezembro de 2011, na Escola da Natureza, com 14 participantes.
101
roda sobre os aprendizados dessa experiência. Por fim, na última etapa, retornamos as
questões propostas na segunda oficina, e refletimos sobre nosso processo de pesquisa e
possíveis desdobramentos.
O grupo formado pelas professoras Janice, Aparecida e Cláudia contaram a história
autoral As sementinhas de gigantes, que fala sobre a semente do Baobá inspirada nas
histórias da Costa do Marfim, na África.
102
Voltamos cedo das atividades fora da aldeia. Nossa gente gosta de ficar em
casa, partilhar momentos. Voltar para casa é sempre uma festa.
Especialmente para nós, crianças. É a hora de brincar no igarapé, subir nas
árvores ou simplesmente ficar brincando de atirar flechas para o ar ou nas
árvores e bananeiras que cercam a aldeia. Fazemos isso com gosto, mas
também com bastante cuidado. É o momento de observarmos o lugar onde
vivemos e conhecer os arredores.
Quando cansamos, vamos descansar em casa. Nessas horas, normalmente
nossas mães estão sentadas na frente de casa trançando paneiros,
pintando as crianças pequenininhas. Quando ali chegamos, elas nos pegam
no colo e se esquecem de tudo. Elas sabem que estamos cansados e que
precisamos de um pouco de colo. Cada mulher pega seu menino-quase-
homem ou sua menina-quase-mulher e deita no colo para tirar piolhos da
sua cabeça.
Nessa hora o mundo para. Ficamos totalmente entregues ao carinho
mágico de nossas mães, que não param de nos acariciar a cabeça atrás
dos teimosos piolhos.
Numa dessas tardes, no momento em que o sol já começava a iniciar sua
descida para o mundo dos sonhos, minha mãe me chamou para si. Parecia
estar um pouco preocupada. Deitou-me em seu colo e, enquanto fingia
catar piolhos, foi dizendo coisas que antes nunca me havia dito. Senti suas
mãos passeando por minha cabeça, mas notei que seus olhos
contemplavam o horizonte.
- Você sabe que um dia irá crescer, não é? - perguntou-me repentinamente.
Claro que estranhei a pergunta. Fez-me até despertar de um quase sono
que tomava conta de mim.
- Eu sei que não vou ficar para sempre deste tamanho.
- A gente não cresce apenas no tamanho, meu filho. Quem cresce só no
tamanho não cresce nunca de verdade. O que mamãe está querendo me
dizer? Que um dia você terá que partir.
- Partir para onde?
- Não importa, menino. Não importa para onde partimos. Às vezes saímos
de um lugar sem dele sair. Outras vezes permanecemos num lugar, mas
nunca estamos nele de verdade.
- A senhora está me deixando confuso, mãe.
- Eu sei. Mas o que quero dizer é que em breve você terá que buscar seus
próprios caminhos, terá que construir uma vida só pra você.
- Isso acontece com todo mundo, mãe?
- Para nosso povo é muito importante que a gente cresça e vá buscar sua
própria trilha na floresta.
- Eu vou precisar fazer isso?
- Só se você quiser ser um grande guerreiro para seu povo.
Mamãe falou isso fazendo cócegas na minha barriga e provocando uma
grande gargalhada em mim. Em seguida colocou-me em pé, deu uma
palmada no meu bumbum e mandou-me ir brincar mais um pouco. É claro
que corri para o encontro de meus amigos, mas não deixei de notar o olhar
orgulhoso de minha mãe. (MATÉ, 2006, p.17)
103
O marido tentava convencer a mulher a comer fosse o que fosse, e vivia lhe
trazendo para provar as mais deliciosas frutas que encontrava pelo bosque,
mas a mulher recusava todas. E, assim, foi ficando magra e magra, até que
pensaram que ela fosse morrer.
O marido, no auge da desesperança, perguntou-lhe:
- Diga, por favor, não há nada que você queira comer?
- Deixe-me ver... - e pensando com mais cuidado no assunto, neste dia, a
mulher sentiu um novo desejo - talvez um pouco de mel...
Foi o que bastou para animar o marido. Na mesma hora ele saiu feito louco,
em busca de um pouco de mel que fosse! Busca daqui e dali, encontrou o
que buscava e voltou correndo com uma tigela de madeira, cheia até a
boca. Mas quando foi dar à sua mulher, esta lhe disse, fazendo cara de
nojo:
- Argh! Não posso tomar isso! Veja só! Há abelhas mortas no fundo! Só
tomarei se for mel puro!
O homem ficou decepcionado. Saiu de casa e jogou fora todo o mel que
havia trazido. Continuou a procurar o que a mulher pedia. Assim que
encontrou um mel que aparentava ser mais puro que o anterior, voltou
correndo e o ofereceu à sua mulher.
Ela novamente olhou com nojo para a tigela que o homem segurava nas
mãos, bem abaixo de seus olhos, e exclamou:
- Este mel está cheio de formigas! Argh! Não quero!
E lá foi o marido procurar outra vez.
Na terceira vez ela recusou porque tinha terra no fundo da tigela. Na quarta
vez ela finalmente tomou o mel que o marido, incansável, tinha trazido com
todo o carinho.
Só que, agora, o mel tinha deixado a mulher morta de sede:
- Ah! Querido... preciso muito de água... de água fresca!
E lá se foi o marido à procura de uma nascente. Gastou um tempo longo,
mas, enfim, encontrou uma mina d'água e um lago cristalino, para onde
corria a água nascente. O lago tinha água doce, tão doce, que parecia
mesmo adoçada com açúcar. O homem encheu o cântaro que carregava ao
ombro e voltou o mais rápido possível.
A mulher bebeu quase sem parar. Deixou apenas um pouquinho no fundo
do cântaro e finalmente se recostou na cama:
- Agora sim, agora me sinto muito melhor!
E logo, logo, a mulher se levantou, se vestiu e começou a cuidar de sua
choupana. Mas agora era o marido quem precisava de cuidados. Mal a
mulher se pôs de pé, o marido assumiu o seu lugar, deitado, dizendo:
- Agora sou eu que não posso mais!
A mulher, espantada, perguntou:
- O que você tem?
- Você acabou com minhas forças! Estou com sede! Quero água!
A mulher, então, pegou o maior cântaro que havia em sua choupana e foi
até o poço que ficava no fundo da casa. Voltou logo e ofereceu:
- Pronto! Aqui está sua água - e já ia encostando o copo na boca do marido,
que imediatamente se recusou a beber.
- Não! Essa água só pode ser do poço ali do fundo. Não vê, mulher, que
está cheia de pedacinhos de folhas podres?!
A mulher ainda tentou argumentar, mas o marido nem deu ouvidos...
- Aposto que o poço estava sem a tampa! Quero outra água! Água fresca!
A mulher, meio contrariada, saiu novamente e caminhou até o pequeno
brejo, que ficava um pouco mais distante da casa. Encheu o cântaro e
voltou.
Mas assim que o marido colocou a boca no copo d'água, disse:
- Nossa, essa água tem gosto de rã! Tire isso daqui! Já disse que quero
água fresca!
Na terceira vez, o marido reclamou que a água tinha gosto de peixe morto!
E fez um discurso dizendo que o que ele queria era só um copo de água
fresca, e não água suja, com gosto de folhas podres, rã ou de peixe morto!
104
E lá se foi a mulher, pela quarta vez, carregando o cântaro na cabeça.
Desta vez passou direto pelo poço no fundo da casa, pelo brejo logo
adiante, pelo lago mais adiante ainda, e finalmente mergulhou o cântaro nas
águas da lagoa, que, àquela hora do dia, pareciam douradas, como se
estivessem cheias do mais puro mel. Ela encheu seu recipiente e, não
podendo resistir, inclinou-se ainda mais para também beber um pouco
daquela água!
Nesse momento, uma horrível cabeça de ogro apareceu gritando na
superfície do lago:
- Como se atreve a roubar a minha água?! Quem lhe deu permissão?! A
mulher gaguejou:
- Foi... cul... cul... pa... do... do... do... meu marido. Ele que... que... que...
me mandou buscar essa maldita água - ela tremia feito vara verde - mas
não me mate, por favor!
E dizendo isso, a mulher pensou rápido e suplicou ao ogro: - Me deixe ir
embora, e eu lhe darei meu filho em troca! O ogro parecia ter aceitado a
proposta da mulher: - E como faremos essa troca?
- Venha até a minha choupana... - ela completou - o menino que estiver com
os dois lados da cabeça raspada e com um colar de contas coloridas no
pescoço, pode levar, que é meu filho!
O ogro finalmente concordou, agora mais calmo e controlando seu apetite
por carne humana:
- Assim está bem! Irei amanhã!
A mulher ensinou o caminho de sua casa e, antes de voltar, ainda disse ao
ogro:
- Quando você chegar à nossa cabana, chame do lado de fora: Motikatika,
Motikatika! Quando ele sair ao seu encontro, coma-o imediatamente!
O ogro, então, deixou-a partir:
- Agora pode ir. E não tente me enganar!
Ela saiu correndo. Chegou a sua casa mais assustada do que nunca, e
ainda tremendo, contou tudo ao marido. Culpou-o pelo perigo que havia
passado. Por fim, largou em cima da mesa a água que havia trazido, virou
as costas e saiu para procurar o filho. O marido nem se abalou, levantou-se
e, finalmente, tomou sua água fresca.
O que aquela mãe não sabia é que seu filho tinha poderes mágicos. Ele
tinha ouvido, por artes de magia, toda a conversa da mãe com o ogro, e já
sabia como ia enganar o monstro. Por isso, veio para casa rindo, quando a
mãe finalmente o encontrou brincando no lado de fora da choupana.
Na manhã seguinte, antes de sair para ir trabalhar nos campos, a mãe
raspou a cabeça do menino, colocou-lhe um colar de contas no pescoço e
lhe disse:
- Fique em casa enquanto eu estiver fora. Não saia de jeito nenhum! Se
você me desobedecer, já sabe, um animal selvagem pode aparecer e
devorar você!
O menino fingiu estar com medo e concordou: - Tá bom! Tá bom!
Mas assim que sua mãe saiu, o menino pegou seus ossos mágicos e
enfileirou-os no chão da cabana, como se estivesse brincando, e foi
decidindo enquanto apontava os ossos:
- Você fica sendo o meu pai - disse para o osso médio. - Você é minha mãe
- disse para um outro osso menor. - Você será o ogro que vem me comer -
disse para o osso maior de todos. - E você, que é o menorzinho de todos,
fica sendo eu. Agora, vamos, me digam o que posso fazer?
Os ossos responderam:
- Reúna todos os meninos da sua idade, raspe-lhes os dois lados da
cabeça, pendura um colar de contas coloridas no pescoço de cada um e
avise a todos eles que devem responder, quando ouvirem alguém chamar:
"Motikatika!" E corra, vá rápido, porque não se deve perder tempo!
O menino fez tudo muito rápido: reuniu os outros meninos, raspou a cabeça
deles, pendurou os colares e deu todos os avisos necessários. E assim que
105
terminou de instruí-los, a terra tremeu. O ogro, como num passe de mágica,
já estava gritando do lado de fora da cabana:
- Motikatika! Motikatika! Venha até aqui!
Nesse momento, todos os meninos saíram da choupana, na direção do
monstro, dizendo:
- Estamos aqui! Estamos aqui!
O ogro ficou atônito e só teve tempo de dizer: - Mas quem é o verdadeiro
Motikatika?
O bando respondeu, em coro:
- Nós todos!
O ogro ficou furioso. Estava na cara que aquilo tudo era um arranjo! Mas
não podia se arriscar a comer pessoas inocentes! Conhecia muito bem o
castigo daqueles que atacavam os filhos de gente que não tinha feito nada
de mal!
Em seguida, as crianças saíram correndo e foram brincar. O ogro, desolado,
ficou parado e esperando até o final da tarde, quando a mulher voltou dos
campos. Quando ela passou por ele, ele aproveitou para dizer:
- Até agora não descobri quem é Motikatika!
- Mas como pode ser? Não o chamou pelo nome?
- Claro que sim! Mas todos os meninos desse povoado se chamam
Motikatika! Devia ver só quantos apareceram! Você me enganou!
A mulher, sem saber o que fazer, entrou na casa, dizendo:
- Espere aí!
Para que o ogro ficasse calmo, voltou com um prato de milho e ofereceu a
ele. Ele atirou o prato longe, gritando:
- Não quero milho! Quero comer menino! E não saio daqui enquanto não
conseguir!
A mulher desta vez entrou na cabana disposta a trazer o filho pela mão, a
qualquer custo!
- Espere um pouco que vou buscá-lo!
Ela entrava e saía da cabana sem encontrá-lo, e ainda por cima gritava, em
todas as direções:
- Motikatika, apareça aqui! Motikatika! Estou esperando! Motikatikaaaaaaa!
De longe, uma voz respondeu:
- Já estou indo, mãe!
E Motikatika, que estava no fundo da casa, com os seus ossos mágicos,
lançou-os ao chão e mais uma vez perguntou-lhes o que deveria fazer para
escapar da mãe e do ogro.
- Vamos, transforme-se num pequeno rato! - disseram os ossos.
O menino assim fez. A mãe e o ogro cansaram de esperar. Quando o ogro
não podia mais de tanta impaciência, gritou:
- Invente outro plano! Eu quero comer menino! Dou-lhe mais um dia de
prazo!
A mulher, então, propôs:
- Amanhã vou mandá-lo ao campo para colher feijão. Vá até lá e, quando o
encontrar, coma-o!
O ogro assentiu com a cabeça:
- Muito bem! Espero que desta vez ele caia mesmo em minhas mãos, do
contrário, nem sei...
O foi saindo de volta para a sua lagoa.
Motikatika, mais uma vez, ouviu a combinação da mãe e do ogro e, na
manhã seguinte, quando a mãe o mandou, com aquela enorme cesta,
colher feijão para o jantar, ele levou seus ossos mágicos e perguntou-lhes o
que fazer para escapar. Os ossos disseram:
- Desta vez você deverá partir os feijões ao meio e assim se transformará
numa íbis-preta.
Dito e feito. O ogro apareceu e não conseguiu apanhar o pássaro, porque
não sabia que aquele era Motikatika. Voltou espumando de raiva até a
choupana da mulher e gritou tão alto que parecia que ia estourar:
- Você me enganou de novo! Não vou esperar mais!
106
A mulher, tremendo de medo, fez sua última proposta:
- Volte esta tarde. Ele estará na cama, dormindo, coberto com uma manta
azul. Aí, você poderá comê-lo de uma vez por todas! Eu prometo!
Mas Motikatika, como sempre, ouviu tudo e consultou os ossos, que lhe
disseram:
- Pegue a manta vermelha da cama de seu pai e coloque a sua no lugar da
dele.
E foi exatamente isso que o menino fez.
O ogro apareceu, cego de raiva e de fome. Entrou na casa, agarrou o
homem que estava debaixo da manta azul, e comeu-o de uma só bocada!
Quando a mulher descobriu o engano, já era tarde. Só pôde chorar
amargamente e soluçar bem alto. Mas Motikatika, que assistiu a tudo, disse-
lhe:
- Não era a mim que você devia dar para o ogro comer. Era a ele mesmo!
Ele era o verdadeiro culpado... ele que mandou você buscar água fresca!
Ele... ele... (SISTO, 2007, p.32).
Por fim, as professoras Maristela e Renata contaram a história Palavras tão doces
quanto o mel de Sankhambi, história tradicional recolhida em Venda, na África.
Nos tempos antigos, os macacos não eram tão magros e ágeis como hoje.
Eles eram animaizinhos peludos e pançudos que se moviam
vagarosamente. Era tão divertido para o malvado Sankhambi aproximar-se
por trás deles sorrateiramente e puxar suas longas caudas! Isso deixava os
macacos furiosos, e de lá do alto das árvores eles o bombardeavam com
sementes e pedaços de ramos enquanto ele permanecia deitado
aquecendo-se ao sol.
Sankhambi não gostava nem um pouco dessa macaquice, e um dia decidiu
fazer alguma coisa.
- Queridos amigos - ele disse com uma voz doce e um brilho em seus olhos
perversos -, quero contar a vocês um grande segredo.
- Não acreditem nele! É mais uma tramoia - alertou o macaco mais velho,
mas Sankhambi pediu e apelou aos macacos que o ouvissem a respeito
desse segredo tão especial. E como os macacos são animais naturalmente
curiosos, desceram devagar dos troncos de árvore e foram se aproximando,
em passos de macaco.
- Eu gostaria de ter uma chance de fazer um favor a vocês - disse
Sankhambi, sua voz doce como o mel. - Lá em cima da montanha, perto do
grande lago, há uma caverna. E bem no fundo da caverna há uma enorme
colmeia cheia de favos de mel dourados. Eu sou o único que sabe sobre
isso. Sigam-me; vou mostrar-lhes o caminho.
Os macacos saltaram avidamente em fila atrás dele, pensando apenas na
delícia dourada que esperava por eles.
Sankhambi guiou-os ao longo de um penhasco até a boca de uma caverna
com saliências no topo.
- Entrem, amigos - ele ofereceu generosamente.
Mas, assim que os macacos entraram, Sankhambi começou a bater os pés
com força para que o som monótono dos golpes ecoasse por toda a
caverna.
- Nossa, macacos me mordam! - ele gritou, fingindo estar aterrorizado. -
Amigos, o teto está começando a desmoronar. Estiquem seus braços para
cima e segurem-no. Eu vou correndo buscar algumas estacas para
sustentá-lo. Fiquem parados onde estão, não movam nenhum músculo e
segurem firme!
Os macacos fizeram exatamente isso: ficaram parados como estátuas, com
os braços esticados sobre suas cabeças para impedir que o teto
continuasse a desabar. Eles permaneceram parados. E continuaram assim.
107
Porque não ousavam se mexer; do contrário, o teto da caverna ruiria sobre
suas cabeças.
Ah, se Sankhambi pudesse chegar logo com os suportes! Mas, é claro, a
essa altura Sankhambi descia correndo pela margem do lago.
- Que bando de macacos! - ele desdenhou e deixou-se
cair sob a luz do sol para um imperturbável cochilo da tarde.
Durante todo o calor do meio-dia, e durante o frescor da noite, quando as
estrelas pousavam brancas sobre a água do grande lago, lá estavam os
macacos, como pilares de pedra, segurando o teto da caverna com toda a
sua força.
Apenas quando a luz da manhã começou a vislumbrar no oeste, o macaco
mais velho de repente teve um pensamento. Ele desdobrou ansiosamente
um dedo, depois outro, depois a mão inteira, depois a outra mão... Olhou as
faces suadas de sua família próxima a ele e percebeu que Sankhambi tinha
feito todo mundo de bobo!
Um a um, os macacos foram abaixando seus braços tensos e doloridos. E
quando olharam para baixo, para seus corpos, viram que suas formas
pançudas tinham se alterado completamente. Depois de todo o trabalho
pesado e do suor, e de se esticar para segurar o teto da caverna, seus
corpos tinham se tornado altos e esguios.
E é por isso que, até hoje, os macacos são capazes de brincar pelas
árvores com tanta agilidade. (MANDELA, 2009, 37)
Fotografias 7 e 8 – Grupos de professores contando histórias durante a quinta oficina na Escola da Natureza.
Autora: Sumaya Dounis. Data: 14 de dezembro de 2011.
108
Na roda de conversa, após as apresentações dos professores, foram partilhados
reflexões e sentimentos sobre a experiência da oficina. “Quem quer falar como foi a
experiência de preparar e contar história hoje?” – perguntei ao grupo.
O professor Luís foi o primeiro a falar. “Assim que a Elza falou nessa história [história
sobre catar piolho], eu disse a ela: essa história vai ser contada e o que vai sustentar a
história é a força da palavra. Isso é muito complicado... Eu me acho pouco carismático e um
contador de histórias tem que ter carisma, por isso eu acho que fiquei um pouco aterrorizado
com essa possibilidade. Mas também sabia que esse era um desafio que poderia ser muito
frutífero porque... Você vai se reconhecer naquilo que você acha que lhe falta, né? Ou seja,
você ser reconhecido pelo outro por uma coisa que você acha que lhe falta é muito bom,
né?”
Sobre a narrativa do Luís, Adolpho se pronunciou, dizendo: “Eu acho que você
superou as expectativas... quando você fala e olha pra gente... nesse movimento de falar e
olhar, você está falando com o coração”.
Então, o Luiz respondeu: “É, eu estava emocionado, porque eu me identifico muito
com a história. Na minha relação com a minha mãe o piolho ocupava um espaço de
negociação, porque ela adorava catar meus piolhos e eu odiava. Então, eu cedia para ela
em troca de alguma coisa”.
Essa experiência relatada pelo Luís vai ao encontro do que diz Machado quanto às
histórias tradicionais:
ao relatar como foi a experiência de ouvir um determinado conto, cada
pessoa mostra que ouviu “um” conto, o seu. [...] O que importa é que o
conto estabelece uma conversa entre uma forma objetiva – a narrativa – e
as ressonâncias subjetivas que desencadeia, produzindo um determinado
efeito particular sobre cada ouvinte. (MACHADO, 2004, P.24).
A história do baobá levou o grupo a refletir e conversar sobre como criar histórias e
abordagens sobre árvores do cerrado. A professora Thaís chamou atenção para o fato de
que no livro da história A semente que veio da África havia instruções sobre um jogo
tradicional africano jogado com as sementes do baobá. Sobre isso ela disse: “as
brincadeiras africanas também podem ser resgatadas, isso tem tudo a ver com o nosso
trabalho”.
Outra professora, a Ana Carolina, também compartilhou a experiência vivida: “eu
também tremi, tanto na semana passada quanto hoje, quando eu contei a história, e não por
nervosismo, mas por emoção da força da palavra. E é interessante que eu já tive essa
sensação algumas vezes, recitando poesia por exemplo. Mas mesmo emocionada, é
impressionante como a respiração se contém. Eu acho que a respiração é que traz essa
força da palavra. Eu senti isso.”
109
Umas das professoras do grupo que contou a história Motikatika e o Ogro,
compartilhou a dificuldade de escolher uma história no livro de contos africanos. Segundo
ela, todas as histórias eram muito fortes, apresentando situações em que os personagens
agiam completamente fora da ética comumente aceita, e que ela viu nisso uma dificuldade.
Sobre isso, uma compreensão compartilhada entre alguns estudiosos de histórias é a de
que um acontecimento muito forte pode pretender chamar a atenção a uma mensagem
profunda e importante que está sendo transmitida pelo conto. É também um convite à
percepção para além da dicotomia bem/mal, certo/errado.
Observar o relato de dois professores mencionando a força da palavra nos levou a
considerar que a abordagem sobre tradição oral desenvolvida nas oficinas anteriores
produziu ressonâncias na experiência de ler e contar histórias nessa oficina.
Dando continuidade à conversa, perguntei aos professores: Depois de nossas
experiências, a partir do olhar de vocês, educadores ambientais, quais as potencialidades e
limitações de se trabalhar com educação ambiental com narrativas de histórias?
“Essa história que ouvimos [história As sementinhas de gigantes] tem tudo a ver com
o que a gente trabalha em Educação Ambiental, principalmente para crianças, pois fala do
nascimento da semente, seu desenvolvimento e crescimento. Então, eu acho que é uma
base”, afirmou uma professora.
O professor Adolpho se manifestou dizendo: “eu acho interessante abordar a
semente como uma potência, porque quando a gente está do lado de um árvore, temos
essa sensação... toda aquela grandeza começa com a semente. Então se contamos uma
história como essa e depois levamos os alunos para o viveiro, onde essa questão aparece,
a história vai integrar os alunos ao processo que vão passar ali”. E continuou: “Então contar
essa história e depois ir mostrar a semente (é uma possibilidade). Ou até mesmo caminhar
e mostrar árvores e sementes. [...] O potencial é muito grande, para nossa área tem tudo a
ver... fazer e contar histórias. E acho que o nosso desafio é colocar isso no nosso dia a dia e
no dia a dia das crianças. Quase todas as histórias que a gente pega nessas tradições
africanas, acho que já vem com nossos avós.”
A professora Renata, coordenadora pedagógica da Escola da Natureza, manifestou
sua opinião: “eu vejo só potencialidades no trabalho com histórias em Educação Ambiental.
Uma história pode ser o eixo de todo um trabalho, pode ser contada no encerramento de
uma atividade ou pode complementar uma atividade. Essas oficinas que fizemos com você
foram muito importantes para abrir nossa cabeça para as possibilidades”.
Sobre os desdobramentos da pesquisa, a Renata continuou: “no ano que vem uma
das ideias é que cada um de nós realize um tipo de trabalho, oficina. Eu gostaria muito de
trabalhar com contação de histórias. Inclusive se você puder [se referindo à mim],
gostaríamos muito que você continuasse trabalhando com a gente”.
110
O professor Adolpho sugeriu formar um grupo para pesquisar histórias de povos
tradicionais do cerrado. A professora Janice sugeriu que o acervo da pesquisa fosse
disponibilizado no blog da Escola da Natureza.
Por fim, o professor Luís disse que considerava importante esse tipo de pesquisa ser
levada para o ensino médio.
Retomamos, então, o quadro de questões elaboradas pelo grupo na segunda oficina
para averiguarmos em que me medida, durante nosso processo de pesquisa, tínhamos
alcançado as respostas que buscávamos. Sugeri aos professores que apontassem as
questões que sentiam que ainda precisavam ser discutidas. A questão a que nos atemos foi:
como navegar pelas diferentes culturas em sintonia com a faixa etária das crianças?
Em torno dessa questão, o grupo teceu um diálogo que acabou por perpassar todas
as demais questões, exceto as questões referentes às técnicas e recursos do contador de
histórias, e a questão do sagrado, que, segundo o entendimento do grupo, haviam sido
respondidas durante o processo de pesquisa. O diálogo do grupo se deu da seguinte forma:
− “Isso [como navegar pelas diferentes culturas] esbarra em uma série de filtros, de
julgamentos. Essa é uma questão fundamental e os professores têm um certo medo de lidar
com esse tipo de questão. Existe nas escolas um campo em relação a questões religiosas,
muito hostil a qualquer liberdade em relação a isso”.
− “Existe uma contradição: tem-se a necessidade de trabalhar com a temática [outras
culturas], e tem lei que hoje regulamenta isso e cobra isso, mas a resistência da própria
comunidade escolar é muito grande”.
− “No trabalho que desenvolvo no planetário, eu conto uma história em que aparecem vários
deuses. Eu já me senti extremamente oprimido em função disso, das pessoas acharem que
aquela história é muito politeísta, que as crianças não deveriam ser expostas uma história
em que não aparece apenas um deus, ou que a história é um pouco violenta, porque tem
um momento em que Artêmis manda um escorpião para picar Órion. Então, em algumas
situações fiquei me sentindo na berlinda”.
− “Isso que você está falando não acontece devido à faixa etária das crianças, mas por um
moralismo da sociedade”.
− “Isso é contraditório, porque o mesmo pai que faz isso, deixa o filho assistir a novela das
nove”.
− “Em relação a faixa etária, é claro que estaremos trabalhando com grupos diferentes e
muitas vezes não sabemos de onde as crianças vieram [...]. Então no nosso caso
encontramos a solução de trabalhar uma história neutra [...], que não crie nenhum tipo de
polêmica em relação a algum tipo de simbologia. Mas a gente vai ter que tratar dessas
questões sim, porque a gente vai ter que tratar das questões étnico-raciais [...]. E como que
a gente vai lidar com isso? Por que vão surgir questionamentos... Aí é que a gente tem que
111
trazer a cultura, a cultura de quem criou essa história, e contar a história da história [...].
Acho então importante localizar, no tempo e no espaço, de onde veio essa história. Então,
depois que a gente fez essas oficinas [referindo-se às oficinas da pesquisa] ficou mais claro
na minha cabeça como eu faria hoje contando uma história dessas [com temas polêmicos]”.
− “Quando eu fiz essa pergunta, eu estava pensando nisso mesmo: em como contar uma
história a partir da lente das culturas, e não a partir da lente da minha cultura”.
− “Acho que é então tentar trabalhar com a criança aprofundando no questionamento dela,
tentando fazê-la compreender que algumas coisas ela acha que não existe, é porque não
faz parte do mundo dela, mas que tem outras culturas que acreditam nisso. Então é não
deixar a questão sem resposta, nem nos negar a trabalhar a questão por esse tipo de
situação”.
− “Quando surgem essas questões... que são os olhares diferentes das crianças sobre
alguns elementos da cultura, eu acho que, dentro dessa perspectiva de diálogo intercultural,
o principal é abrir o olhar das crianças para a beleza da diversidade, buscando a integração:
não importa a diferença de olhares, mas o diverso é bonito, tem sua beleza, tem seu
ensinamento. Mostrar também que tem elementos das culturas africanas e indígenas que já
fazem parte de nós e isso dá perfeitamente para integrar com a questão ambiental, porque
estamos vivendo um momento de padronização, e as crianças estão se padronizando
seguindo as influências de um mercado que é avassalador com o meio ambiente. Isso pode
até levar a uma conversa sobre o que as crianças veem que têm em si e na sua família de
diferente”.
− “Porque a gente pode encontrar diferentes respostas pra os mesmos problemas. Quando
eu dava aula eu sempre dizia isso: vocês podem encontrar diferentes respostas pra os
mesmos problemas, e é isso que é interessante [...]. A gente tem que levar para os alunos
as coisas mais incomuns, as coisas mais estranhas, diferentes, as formas mais incomuns
que as culturas criam para obter respostas sobre questões profundas. E o quê que a gente
faz? A gente padroniza com medo do conflito, quando o que deveria ser estimulado seria
esses conhecimentos diversos para o aluno ter vários elementos para buscar suas
respostas”.
A discussão em torno da questão acima, foi adentrando outros aspectos vivenciados
pelos professores com relação à diversidade cultural no cotidiano escolar. A continuação
desse diálogo que se deu está descrito a seguir:
− “A diversidade cultural começa na família. E a família estabelece alguns limites que para
o professor acaba sendo muito difícil lidar. Por exemplo, festa junina, que é uma coisa bem
comum nas escolas. Algumas religiões que surgiram não permitem a participação nas festas
juninas. Isso cria no ambiente escolar, muitos impasses que o professor não tem como
interferir. Eu posso até conversar, mas não posso passar disso”.
112
− “Mas eu acho que a escola é mais que a família. A escola tem esse direito de dar
mecanismos para os alunos para que eles cheguem nos pais e questionem. Por que
também quando a gente se coloca nessa posição de não interferir no que é trazido pela
família, a escola acaba sendo limitada na sua ação. Eu acho que a escola deve ser um
ambiente de ampla liberdade para que o sujeito lide com várias fontes de entendimento das
coisas, de conhecimentos. E que não haja nenhum tipo de cerceamento nem religioso, nem
cultural. Deve ser um ambiente de diversidade e liberdade”.
− “O fundamental é trazer a comunidade escolar para dentro da escola. Por mais que a
escola tente passar informações da forma mais democrática possível, perpassando todas as
religiões e culturas, vai ter aquele pai que não vai aceitar. Então, acredito que a escola deve
sempre fazer esse exercício de trazer a comunidade para dentro da escola e trazer esse
debate, porque isso já é polêmico. Então a gente tem que pensar nisso, na questão de como
alguns pais podem aceitar que existe o entendimento deles e existem outros entendimentos
também, e que precisamos conviver com isso”.
Esse diálogo evidenciou a importância de envolver os educadores na elaboração de
propostas e soluções para a educação das relações étnico-raciais em processos de
formação que promovam a reflexões sobre o seu fazer pedagógico, ao mesmo tempo em
que desenvolva meios práticos de trabalho. A qualidade da discussão demonstrou o
potencial do trabalho com histórias tradicionais para estimular discussões em torno das
questões socioambientais, sem esquecer que esse é apenas um dos níveis de
compreensão e reflexão que podem ser acessados pelas histórias tradicionais.
113
CONCLUSÃO
114
e interculturalidade. Existem várias abordagens do conceito de cultura, mas o importante é
percebê-la como um fator que molda a visão, conformando uma perspectiva sobre a
realidade, quase sempre nos levando a depreciar modos de comportamento diversos de
nossa visão, gerando desequilíbrios nas relações interculturais como exclusão social,
xenofobia e racismo. Diante disso, o desafio posto é que as sociedades multiculturais
tornem-se interculturais e, para tanto, é necessário integrar a sociedade numa realidade
culturalmente pluralista, pelo estabelecimento de vias de comunicação entre os grupos e no
interior deles, partindo do reconhecimento do valor dos diversos saberes para a sociedade.
Neste sentido, é preciso ter claro que respeitar as diferenças não é diluí-las.
A atitude pluralista requer uma visão da pluralidade da verdade, como expressão de
uma realidade plural. O que não quer dizer abrir mão de opinião própria, mas de se abrir ao
reconhecimento do outro que é diferente. Essa visão abre caminho para a interculturalidade,
que acontece pelo encontro de culturas num horizonte comum, que não pertença a
nenhuma delas - um terceiro incluído, originado de uma tensão que gera um espaço mais
amplo e inclusivo. Esse processo depende principalmente da capacidade de ouvir, da
humildade, da empatia e da solidariedade. Daí a necessidade de diálogo intercultural,
tomando diálogo, segundo a visão de Buber, como um voltar-se-para-o-outro, tê-lo em sua
presença, criando entre ele e si próprio uma reciprocidade viva.
Essa experiência do diálogo autêntico, independente de qualquer determinação
normativa, é um desafio nos espaços de educação onde cruzam-se várias expressões da
diversidade. Embora haja um campo de configurações múltiplas em termos culturais no
espaço da escola, o foco na abordagem afro-brasileira e indígena é fundamental, em vista
da necessidade de compreensão e reconhecimento da magnitude da participação dessas
culturas na formação do povo brasileiro, e também por essas heranças culturais abrigarem
tradições de solidariedade e integração.
Pensar no incentivo a esse diálogo intercultural na escola demanda que se busque
conhecer e reconhecer as faces afro-brasileira e indígena, no que são agora e em sua
origem, conhecendo seus traços fundamentais, por meio de encontros e estudos que
envolvam representantes dessas culturas, num processo sistemático de diálogo na
execução da política de formação dos educadores prevista no Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-
raciais.
Neste trabalho, para vislumbrar a face das matrizes afro-brasileiras e indígenas,
recorremos a algumas características marcantes e aspectos da história da gestação do
brasileiro como povo, retratados pelo antropólogo Darcy Ribeiro em sua obra O povo
brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Observamos que as qualidades diferenciadoras
oriundas das matrizes indígena e africana é o que torna o brasileiro singular. E, que apesar
115
de todas as transformações e influências que instalaram-se mais fortemente com a
globalização, perdura muito dos valores, do gozo pela vida e da convivência solidária em
diversas etnias. Também observamos que a cultura africana, no Brasil, sobreviveu
principalmente no plano ideológico e nas crenças religiosas.
Reconhecemos a tradição oral como meio usado por povos de sociedades
tradicionais africanas e indígenas na educação de seus membros, desde a infância até a
idade adulta. A prática de educar por meio de mitos, fábulas, lendas e parábolas é
encontrado, ainda hoje, na cultura indígena e africana, e vive de diferentes formas entre os
afro-brasileiros e entre aqueles que partilham a cultura afro-brasileira, especialmente na
vivência do candomblé.
Adentramos, então, o universo da tradição oral, partindo da perspectiva da noção de
verdadeiro para além do verificável, e de tempo, em sua manifestação no presente.
Recorremos a Vansina, no estudo dos conceitos relativos à oralidade tradicional.
Compreendemos que uma sociedade oral reconhece a oralidade como um meio de
preservação da sabedoria dos ancestrais. Mais do que meio de comunicação diária, a
palavra tem força de ação entre os povos africanos e indígenas. Vansina esclarece que
numa sociedade oral, tudo o que é considerado importante é cuidadosamente transmitido
pela tradição oral.
As histórias tradicionais, veículo de transmissão dos conhecimentos ancestrais,
embora, se transformem no tempo para manterem-se vivas, são fontes da história, da
cultura e do conhecimento dos povos que as têm em seu seio. Assim, levar essas histórias
africanas e indígenas para as escolas é levar as vozes desses povos para falar sobre si
mesmos, promovendo uma forma de diálogo intercultural que pode favorecer a revisão de
paradigmas e equilibrar as relações interculturais e sociais.
No entanto, como vimos, praticar educação via tradição oral não é apenas contar
histórias, mas trata-se de uma outra lógica de transmissão de conhecimentos, que vigora
sob outra ética. Nesse sentido, buscar um diálogo autêntico, que promova o conhecimento e
o reconhecimento como fatores de coesão e transformação socioambiental, demanda a
revisão dos fundamentos que conformam o pensar e o fazer educação, partindo da reflexão
do que queremos da educação.
Vimos que o fazer pedagógico nas escolas, e suas orientações político-institucionais,
continuam a privilegiar a educação que reforça as desigualdades. Mas se o que desejamos
é uma educação para tornar comum o que é comum, precisamos de uma educação voltada
para a compreensão humana, que reconheça o caráter multidimensional do ser humano e
mobilize suas aptidões, conforme afirma Morin. É preciso ainda, segundo afirma esse
pensador, uma educação voltada para o aprendizado da vida, que se volte para a
necessidade de aprender estar aqui, a viver, a dividir, a comunicar e a comungar.
116
Para tanto, compreendemos ser necessário que a educação destine-se ao
desenvolvimento de relações que legitimem a presença do outro e que isso apenas é
possibilitado no domínio de ações do amor, conforme as reflexões de Maturana. Nesse
domínio é possível olhar para o outro como legítimo, sujeito, igual mesmo em sua diferença.
É também necessário, segundo Morin, desenvolver o conhecimento como um todo
complexo, que existe e faz sentido dentro de um contexto, superando a pedagogia
instrucionista voltada para a transmissão e aquisição de conhecimento. É preciso uma
formação integral que abranja as diversas dimensões do ser humano e compreenda sua
unidade na diversidade e sua diversidade na unidade.
Essas reflexões são presentes no campo da educação ambiental, em seu papel de
questionar e evidenciar os limites das abordagens pedagógicas tradicionais na formação de
sujeitos capazes de responder aos desafios atuais. Essas abordagens, além de
instrucionistas e desvinculadas da prática, desconsideram em sua atuação a afetividade e a
percepção sensível do mundo. Nesse sentido, é papel da educação ambiental buscar
transpor tais limites, integrando a dimensão afetiva, sem desconsiderar a razão ou a
inserção dos indivíduos em seus contextos culturais e históricos, evitando recair no mesmo
reducionismo que procura negar.
Quanto a esse aspecto, consideramos a proposta de Loureiro & Santos de que a
educação ambiental deve alcançar uma dimensão da afetividade que estimule a consciência
crítica necessária à transformação social e integre os laços afetivos na mobilização de uma
ação pedagógica que contribua no processo de emancipação individual e coletiva dos
sujeitos.
Com base nessas reflexões sobre a prática da educação, considerando a
necessidade de seu fazer ser contextualizado, integrativo, voltado para o desenvolvimento
de relações que legitimem o outro, abarcando a afetividade e a sensibilidade,
desenvolvemos uma proposta de educação ambiental, que abrace sob um novo desenho as
determinações da LDB quanto ao tratamento das relações étnico-raciais, numa perspectiva
não apenas de resgate de uma dívida histórica, mas de uma oportunidade de aprendizado,
enriquecimento, a partir da vivência da potencialidade da diversidade cultural, numa prática
de diálogo intercultural.
Entendemos que se o modo como se pensa e se faz educação não passar por uma
revisão, as ações de valorização e reconhecimento da singularidade e da identidade não
sairão da letra da lei, visto que o acolhimento e a valorização da diversidade não são
atitudes desenvolvidas pela transmissão de conteúdos, mas são experiências que precisam
ser vivenciadas e possibilitadas a partir de um processo de mudança de visão de mundo.
Nos perguntamos em que medida é possível promover uma prática pedagógica
crítica, transformadora e emancipatória sem desenvolver a capacidade de enxergar o
117
mundo de outras perspectivas. Nos respaldamos em Carvalho que afirma que o projeto
político-pedagógico de uma educação ambiental crítica deve conduzir-se para a formação
de um sujeito capaz de “ler” seu ambiente e interpretar suas relações, os conflitos e os
problemas aí presentes.
Entendemos que acessar cosmovisões de culturas ancestrais, por meio de suas
histórias tradicionais, pode contribuir para a formação de sujeitos capazes de “ler” seu
ambiente, favorecendo uma leitura crítica acerca de nossos modos básicos de organizar e
viver a vida em sociedade. Trabalhar com histórias tradicionais possibilita abordar a história
africana e as culturas afro-brasileira e indígena a partir de suas próprias perspectivas,
revelando suas faces. Trazer essas histórias para o pensar e fazer educação envolve refletir
sobre a condição insustentável de continuar a desconsiderar-se a legitimidade de outras
racionalidades frente às racionalidades respaldadas pela ciência.
Consideramos fundamental pautar essa reflexão quando pretendemos alinhar
educação ambiental com diálogo intercultural em um processo de revisão de nosso olhar e
viver no mundo. Nos respaldamos mais uma vez em Morin, que afirma ser necessário
misturar as heranças culturais mediterrâneas com as heranças culturais africanas e sul-
americanas, pois estas comportam modos míticos e religiosos de integração com o cosmo e
a natureza, nos quais devemos buscar a verdade profunda para ligá-la a nossa nova
consciência ecológica.
Nesse sentido, propomos a ressignificação da experiência da oralidade na
convivência e na educação, tal como resguardada pelos povos tradicionais, enxergando
essa ressignificação uma ação em si transformadora, considerando que a oralidade pratica
a transmissão de conhecimentos como algo que se torna vivo na convivência e na partilha,
contextualizando-se em tempo real e desfazendo as hierarquias entre letrados e não
letrados.
Consideramos que a ética da oralidade tem muito em comum com o paradigma
proposto pela Educação Ambiental Crítica ou Emancipatória, que convoca a educação a
assumir a mediação na construção social de conhecimentos implicados na vida dos sujeitos.
Vimos que a relação indivíduo-coletividade, assim como o caráter de responsabilidade
consigo próprio, com os outros e com o ambiente, pilares da EA Crítica, são temas
recorrentes nas histórias tradicionais.
Compreendemos que tanto as qualidades da oralidade quanto os conhecimentos
transmitidos pelas histórias tradicionais, por falarem das culturas onde se originaram,
apregoarem o cuidado com o meio ambiente e com o outro, tratando de questões humanas
e sagradas, apresentam potencialidades educativas que vão ao encontro dos saberes
necessários ao nosso tempo. Reconhecendo, então, essa dimensão educativa da palavra,
expressa nas histórias tradicionais, propomos para a educação ambiental uma pedagogia da
118
palavra - matéria-prima da arte de contar histórias.
Essa proposta tomou vida na pesquisa-ação desenvolvida com os professores da
Escola da Natureza no âmbito deste trabalho. A pesquisa deu-se no formato de oficinas de
formação, abrangendo reflexões sobre os aspectos políticos-pedagógicos e socioculturais
que contornam a abordagem da história e cultura afro-brasileira e indígena na escola, ao
mesmo tempo em que proveu conteúdos e atividades visando instrumentalizar os
professores a trabalharem com histórias tradicionais em EA. Nosso trabalho foi permeado
por uma questão orientadora: a abordagem das culturas afro-brasileira e indígena por meio
de histórias tradicionais viabiliza uma forma de diálogo intercultural que pode favorecer a
formação de valores e induzir práticas compatíveis com a transição paradigmática proposta
pela educação ambiental emancipatória?
Considerando o caráter prático da pesquisa, direcionado a um desafio real e
relevante no campo da EA, a abordagem metodológica da Pesquisa-ação mostrou-se como
orientação mais adequada. Foram desenvolvidas cinco oficinas pedagógicas, com duração
entre duas horas e meia e três horas. Durante as oficinas perpassamos o estudo do
significado da tradição oral entre os povos tradicionais, assim como alguns dos fundamentos
da arte de contar histórias, privilegiando a prática de narrativas. O processo vivenciado
desencadeou reflexões e discussões sobre a integração das culturas afro-brasileira e
indígena na educação, revelando os desafios e apontando caminhos.
Em geral, as discussões demonstraram direta e indiretamente a potencialidade do
trabalho com histórias tradicionais na educação das relações étnico-raciais em práticas de
EA. Diretamente, nos depoimentos dos professores que afirmaram acreditar ser essencial
contar histórias na prática de educação ambiental no ensino fundamental, por exemplo, com
vistas ao desenvolvimento da escuta e também como meio de abordagem de outras culturas
e seus valores. Indiretamente, quando, a partir das histórias tradicionais trabalhadas nas
oficinas, foram suscitadas discussões quanto aos preconceitos, principalmente de ordem
religiosa, que obstaculizam a abertura para a recepção e o reconhecimento da cultura
indígena e, mais fortemente, da cultura africana.
O processo da pesquisa teve como principal resultado o desenvolvimento de uma
metodologia de Educação Ambiental que denominamos Pedagogia da Palavra, que pode
ser aplicada em diversos espaços e práticas de EA. A metodologia experimentada neste
trabalho mostrou-se um caminho pedagógico para a abordagem de questões ambientais e
culturais de forma integrada e lúdica, valorizando a dimensão do imaginário humano como
via de construção de saberes. Esse caminho pedagógico revelou potencial para gerar
diálogos significativos a respeito das questões ambientais e socioculturais, a partir da
reflexão crítica e enraizada na realidade que nos cerca.
119
Esse potencial pôde ser observado no processo de reflexão e diálogo provocado
entre os professores, que concluíram que não podem acomodar-se em uma posição neutra
para evitar conflitos, mas precisam de fato superar os obstáculos e tratar das questões
étnico-raciais nas práticas de educação ambiental. Concluíram, ainda, que a escola deve ser
um ambiente de ampla liberdade e fonte de conhecimentos diversos, sem cerceamento
religioso ou cultural. Para tanto, alguns caminhos foram apontados: abordar os contextos
culturais em que as histórias tradicionais estão inseridas, como uma parte da realidade, não
como verdade absoluta, assim como nosso contexto cultural também não encerra toda a
verdade; tentar trabalhar com o educando, aprofundando em seus questionamentos, para
fazê-lo compreender que existem outras visões de mundo; e, trazer a comunidade para a
escola, envolvendo-a no debate em torno das questões étnico-raciais.
Esses caminhos apontados pelos professores para trabalhar a diversidade cultural
no espaço da escola evidenciam uma perspectiva dialógica própria de um modo de ensino-
aprendizagem que se pretenda Pedagogia da Palavra.
120
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YAMÃ, Y. Sehaypóri: o livro sagrado do povo Sateré-Mawé. São Paulo: Peirópolis, 2007.
125
ANEXO A
Ninguém pode ensinar uma pessoa a ser uma boa contadora de histórias e ao mesmo
tempo, qualquer pessoa pode aprender a contar bem uma história. Muitos professores,
por exemplo, procuram cursos que ensinem a prática de narrar e esperam que lhes sejam
respondidas perguntas tais como: Que técnicas devem ser utilizadas? Que histórias
devem ser contadas para crianças de oito anos? Como manter a atenção da audiência?
Uma história dever ser lida ou contada?
É raro, no entanto, que perguntem: Como posso me preparar, ou seja, o que posso
aprender, para que eu mesmo encontre respostas para minhas perguntas?
Essas perguntas, e tantas outras desse mesmo tipo, não têm uma resposta única e
definitiva. Cada uma delas depende de um conjunto de circunstâncias, sempre
particulares, para ser respondida por alguém, dentro de sua determinada experiência de
aprender a contar. Antes de querer saber como contar, é preciso compreender que as
técnicas resultam de um processo de elaboração da presença, que começa com a
pergunta: por que contar?
[...] O que eu quero, o que eu pretendo, o que leva a acreditar na importância dessa ação
de contar histórias?
Cada um tem um modo de entender e investigar essa questão. Alguém conta histórias
porque gosta de sonhar, ou quer compartilhar um momento de magia. Ou porque deseja
que outros experimentem o mesmo estado acima e além do tempo, ou se sente
desafiado a conquistar uma audiência, ou gosta de ver o brilho nos olhos das crianças.
Tanta coisa...
126
preciso buscar internamente uma intenção. À medida que se buscam respostas para essa
pergunta, seja descobrindo o que os outros já disseram - recursos externos -, seja
observando a própria prática - recurso interno-, é possível formular com palavras pessoais
essa intenção, que vai se aprofundando e configurando com o passar do tempo.
- observação
- percepção da expressão das coisas
- curiosidade
- contato com imagens internas significativas
- público, grupo
- objetos, panos, música, canto, luz, roupa, acessórios cênicos. como começar e corno
terminar
Ler para: valorizar a leitura e o livro corno objeto de aprendizado; apresentar a melodia e
a construção do texto popular (literatura como importante fenômeno cultural);
manusear o livro e mostrar imagens para apreciação das crianças, etc.
127
ANEXO B
BERNAT, I.G. O olhar do griot sobre o ofício do ator: reflexões a partir dos encontros
com Sotigui Kouyaté29, UNIRIO: 2008.
128
tecelões os trabalhadores de couro e os artesãos de madeira. O diferencial do griot em
relação aos outros ofícios está na própria imaterialidade do seu objeto de trabalho, a
palavra.
Nos estágios conduzidos por Sotigui o enfoque principal está sempre na valorização
das diferenças como veículo facilitador de uma verdadeira troca entre os indivíduos que
desta maneira podem vivenciar um verdadeiro encontro. Esta palavra por sinal é a base da
tradição que ampara o griot, pois é através dos encontros que podemos ampliar os nossos
referenciais sobre os homens e sobre o mundo. Desta forma é possível compreender
porque na África Ocidental, quando se vai assistir a um espetáculo, não se diz “eu vou ao
teatro”, mas sim “eu vou clarear o meu olhar”. Esta idéia tão impregnada na cultura da África
Ocidental, foi o guia dos quatro estágios conduzidos por Sotigui dos quais participei. A partir
de exercícios chamados carinhosamente por ele de “exercícios estúpidos” os participantes
vivenciaram na prática a necessidade de entrarem em contato com o outro para conseguir
resolver os problemas propostos. Um destes “exercícios estúpidos”, por exemplo, consiste
em pedir que um grupo de vinte pessoas sentadas em círculo conte de um a vinte sem que
haja ordem prévia ou combinação, sendo que duas pessoas não podem falar ao mesmo
tempo. Uma mesma pessoa pode falar mais de um número, da mesma forma que alguém
pode não dizer número nenhum. O que parece ser um exercício banal encerra várias
questões pertinentes ao trabalho do ator, como a importância de não se precipitar, a
ativação da escuta, o estar presente, a decisão, o acordo e principalmente o
reconhecimento da força do conjunto. Grande parte dos exercícios propostos nos estágios
busca despertar e ativar estas qualidades através dos enganos cometidos, pois através
deles podemos perceber que ao valorizar excessivamente a técnica nos distanciamos de
nós mesmos e dos outros31.
Paralelamente a estes exercícios Sotigui traz para os estágios contos de várias
partes do mundo para serem trabalhados individualmente e em conjunto. Por ser um mestre
da palavra o griot possui uma pedagogia particular fundamentada no exercício cotidiano de
contar histórias. Os contos iniciáticos apresentados por Sotigui permitem aos participantes
dos estágios um mergulho em outras culturas e tradições diversas da sua. Assim, um conto
de tradição oral proveniente da África Negra, como o Cultivador e o Guinarou, através das
palavras e imagens que contém possibilita uma viagem sensorial a este continente tão
presente em nossa cultura, mas ao mesmo tempo tão desconhecido. Além desta função de
esclarecimento, o mesmo conto toca ainda em questões éticas e humanísticas através da
saga do cultivador que alertado por todos a sua volta para não desmatar uma floresta
sagrada, encontra um destino trágico ao se deparar com Guinarou, o espírito protetor da
31
A descrição destes exercícios pode ser encontrada no quarto capitulo da tese.
129
mata. Sem didatismo, os contos iniciáticos proporcionam ensinamentos e reflexões
profundas, tanto para quem conta como para quem ouve. Nesta relação entre contador e
público, o conto, ele próprio, é o vértice do triângulo. É nesta triangulação que reside o
poder transformador do ato de contar, pois ele é um ato de comunicação tridimensional
(Loiseau: 1992, 131), já que mobiliza três instâncias, o contador, o auditório e o conto, que a
partir das suas características próprias se torna um verdadeiro parceiro do contador.
Através da minha prática de professor de interpretação teatral na Escola de Teatro
da UNIRIO, durante três semestres desenvolvi com os alunos do bacharelado em
interpretação e licenciatura uma pesquisa a partir dos ensinamentos que recebi diretamente
de Sotigui. O quarto capítulo da Tese, intitulado Ensinamentos- Prática e Transmissão relata
esta experiência e reflete sobre a repercussão desta pedagogia no desenvolvimento
humano e artístico dos alunos. Se o olhar de um griot como Sotigui Kouyaté foi o ponto de
partida para estes encontros com os alunos, ao mesmo tempo se construía o meu próprio
olhar a partir da troca com os alunos, da minha história como professor e da minha prática
artística como ator nos palcos cariocas. Através desta experiência cheguei a algumas
conclusões sobre o exercício do oficio do ator na atualidade, bem como sobre elementos
importantes na sua formação humana e artística. Na base de tudo que vivenciei neste cinco
anos, está sem dúvida à importância de não separar a arte da vida, o homem do artista e
para isto há que se considerar sempre as raízes culturais, familiares e a história pessoal de
cada um. O interesse pelas diferenças em vez de gerar conflitos é o que pode alimentar a
criatividade através de um movimento em direção àquilo e a quem pode lhe ser
complementar. Pois é através da relação com o outro que posso me desenvolver. Para estar
aberto a este contato é fundamental promover um esvaziamento das expectativas, pois tudo
é sempre uma experiência. Para conhecer o outro é fundamental que haja uma abertura,
que só pode ocorrer quando há espontaneidade no jogo.
Através dos exercícios percebi que antes de se buscar um aprimoramento técnico, é
preciso despertar a alegria, a auto-estima, e valorizar a história pessoal. Pois estas
referências são o alimento para o desenvolvimento de uma autoria artística, extremamente
salutar numa sociedade que caminha para uma suicida homogeneização cultural. Foi
possível ainda comprovar a eficácia da prática de contar histórias, tanto para atores
formados como para alunos de teatro no sentido de promover o encontro do artista consigo
mesmo, pois ao contarmos uma história sem intermediação de um personagem ou mesmo
de uma ação dramática é preciso que estejamos presentes como homens e mulheres que
tenham algo a dizer para outros homens e mulheres. Ao contar uma história nos
apresentamos com o que temos de mais palpável, ou seja, nossa humanidade, e só assim
podemos tornar presentes os mitos e ensinamentos que as histórias contêm. O ato de
contar histórias nos aproxima de nós mesmos, pois a parceria com a história e a
130
cumplicidade com os ouvintes só se estabelecem se o contador compreender que não há
uma diferença hierárquica em relação ao público, mas sim uma diferença de circunstância.
Através dos encontros com Sotigui Kouyaté, entrei em contato com a tradição do
griot e do seu olhar sobre o ofício do ator. Esta convivência reforçou em mim a crença na
responsabilidade social deste ofício dentro da sociedade. Tanto no que se refere à prática
do ator nos palcos, como no seu aprendizado e aperfeiçoamento, creio que os exercícios,
ensinamentos, e toda a pedagogia do griot, se configuram como mais uma importante
contribuição ao desenvolvimento artístico, espiritual e ético do ofício de ator. O humanismo e
a solidariedade presentes na conduta de um griot como Sotigui Kouyaté são, a meu ver,
fonte de inspiração para que o ator através da palavra retome sua vocação maior, a de ser o
intermediário entre o nosso plano cotidiano e um plano mais sutil, no qual só conseguimos
entrar através da arte. No entanto, o crescimento de cada um é individual e até mesmo um
pouco solitário, pois como dizia o Rabi Nachman, de Brastlav: “Não pergunte a ninguém
qual é o teu caminho, pois você corre o risco de não conseguir mais se perder.”
Bibliografia:
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Il n’y a pás de petite querelle. Paris: Stock, 1999.
LOISEAU, Sylvie. Le Pouvoirs du Conte. Paris: Presses Universitaires de France, 1992.
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ANEXO C
SEGREDOS DA ÁFRICA
O ator e diretor de teatro africano, nascido em Mali, Sotigui Kouyaté conta algumas
histórias de seu povo e fala das tradições de seu continente
MEMÓRIA COLETIVA
A África é imensa, grande e profunda. Muito vasta. Logo, querer falar pela África seria uma
grande pretensão. Por isso, escolhi falar sobre a pequena parte da África à qual pertenço, a
África do oeste. Na porção oriental do continente, antes da colonização, houve grandes
impérios. No século 11, houve o Império de Gana e, no século 13, o Império Mali
(Mandengue, na verdade, já que Mali é um nome ocidental). E eu faço parte do que era o
Império Mandengue, que abrigava o que hoje é o Senegal, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a
Libéria, a Mauritânia, a Guiné, o Mali, Burkina Fasso, o norte da Costa do Marfim e o leste
do Níger. Meu sobrenome, Kouyaté, tem origem nesse império e está ligado a sua história.
Ele quer dizer "há um segredo entre você e mim". Sou o que chamamos griot. Os griots são
como a memória do continente africano - dessa parte da África da qual falei. São a
biblioteca, os guardiões da tradição e da cultura africana, encarregados de organizar todas
as cerimônias. A função mais importante de um griot é a de mediador entre o povo, os reis e
as famílias - e isso ainda continua. A presença deles é indispensável para o equilíbrio da
sociedade africana. A gente não se torna griot, nasce. É algo que se passa de pai para filho.
E não somente os homens são griots, existem mulheres também, e elas são muito
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poderosas. Foi essa minha função de griot que me levou ao teatro. Porque um griot não
representa somente as palavras, tem a ver com estar a serviço de todo mundo. Minha
mulher diz que eu não sei dizer não. Mas um griot não pode dizer não a uma pessoa que lhe
faz uma pergunta, a menos que não possa responder.
COISAS SAGRADAS
Há dois anos aconteceu uma coisa que me fez adorar São Paulo mais que tudo. Uma moça
que está aqui na sala, a Juliana, foi a primeira guia que o Instituto Francês me confiou.
Como sou um pouco curioso, fiquei perguntando o nome das ruas e queria saber o
significado. Ela me disse que algumas ruas tinham nomes de árvores, e eu fiquei
completamente emocionado. Porque sei que, em alguns países civilizados, as ruas têm
nomes de personalidades históricas e políticas. Então, venho a um país onde a natureza
também tem direito a essa honra, e é essa natureza que conta para nós. O que nos
diferencia desses, que também são seres, é que nós somos seres humanos porque
recebemos uma parcela do poder criador divino, que é a palavra, a fala e o espírito.
Ainda temos muita relação com a natureza em nosso país. Os crocodilos, por exemplo, são
sagrados para nós; os meus filhos, que vieram ao Brasil comigo, encontraram alguns
desses animais e até sentaram em cima de alguns deles sem ser mordidos - tiraram fotos,
filmaram etc. É tudo uma questão de sensibilidade, de como o homem pode ter uma relação
de cordialidade com animais que são considerados ferozes. Em regiões diametralmente
opostas de Burkina Fasso, quando um crocodilo morre, é enterrado. É como se a alma de
uma pessoa da aldeia tivesse morrido também. Eles são muito protegidos. Mas não há
somente os crocodilos sagrados, há também as cobras e os peixes sagrados.
O estrangeiro também é sagrado para nós. Claro, não como há 50 anos, mas as regras
continuam sagradas. Um estrangeiro que chega, certamente, encontrará o que comer e
onde dormir. E também há uma grande estátua que dá as boas-vindas aos estrangeiros.
Chamamos os estrangeiros de "as pessoas ricas". Não materialmente - pois isso não é uma
riqueza -, mas são ricas porque trazem aquilo que não conhecemos, o que ignoramos.
Antigamente, quando o estrangeiro chegava, era alojado por três dias gratuitamente.
Também não pagava nada para se alimentar. Mas tinha uma obrigação: durante as três
noites ele ficava presente com a família, para falar de suas experiências, de onde vinha, o
que viu no caminho e o que acontecia em seu país. Depois de três dias, não tínhamos mais
obrigações. Ele também não. Mas era raro o mandarmos embora. E há uma dupla
vantagem nisso: por um lado, a gente se forma e se conhece, por outro, é uma maneira de
eles viajarem com poucos recursos. Não podemos dizer que um povo acolhedor não seja
civilizado. O sábio não é aquele que pensa que sabe, mas é aquele que sabe que cada dia
tem algo a aprender com outra pessoa. Por isso, também estou aqui como aprendiz, para
me enriquecer com suas experiências.
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estavam realizando por lá um concurso de veleiros. No primeiro dia de ensaio o vento levou
tudo embora. Por isso, não era possível fazer o espetáculo. Então, o Brook veio até mim e
disse: "Caro Sotigui, estamos em uma situação difícil". Então, eu disse que não poderíamos
fazer nada contra a natureza, que só poderíamos rezar. Daí ele pegou as minhas duas
mãos e disse para eu rezar. Nesse nosso grupo havia um indonésio. Como a Austrália e Bali
[capital da Indonésia] não ficam muito distantes, os pais dele haviam ido visitá-lo. Ele me
apresentou aos pais, e a mãe dele era uma sacerdotisa em Bali. Então, eu disse a esse
colega que naquela noite eu iria rezar por nossa situação. Por isso, falei para ele pedir à
mãe se ligar a mim mentalmente. No dia seguinte, voltamos à pedreira e não tinha mais
vento. O que deve ter sido ruim para o campeonato de veleiros.
Fonte:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?edicao_id=273&Artigo_ID=4230&ID
Categoria=4797&reftype=2
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