BIDERMAN, M.T. C Dimensões Da Palavra PDF
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DIMENSÕES DA PALAVRA
RESUMO: A palavra é a pedra de toque da linguagem humana. Vários são os ângulos sob os
quais esta complexa matéria pode ser analisada. Serão abordados aqui algumas das dimen-
sões mais importantes dessa entidade: o valor mágico da palavra e a potência criadora do
verbo; a dimensão cognitiva que se associa ao problema da nomeação e da designação da
realidade, gerando o vocabulário das línguas naturais; a dimensão significativa onde se exami-
na a questão do signo lingüístico e sua relação com a realidade.
E
m muitas religiões e culturas acredita-se que foi a lin-
guagem que ordenou o caos primitivo transformando-o
num cosmos significativo. Cada cultura foi ordenando, a
seu modo, o caos primevo através de seus mitos. A pala-
vra assume assim nos mitos de cada cultura uma força transcendental;
nela deitam raízes os entes e os acontecimentos. Por ser mágica, caba-
lística, sagrada, a palavra tende a constituir uma realidade dotada de
poder. Os mitos falam dos segredos e das essências escondidas na
palavra instituidora do universo.
O homem primitivo acredita que o nome não é arbitrário mas
existe um vínculo de essência entre o nome e a coisa ou objeto que ele
*
UNESP, Campus de Araraquara.
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designa. Assim sendo, não separa a palavra do referente que ela no-
meia. Crê que se pode atuar magicamente sobre uma pessoa através
de seu nome. Por isso esse homem primitivo considera seu nome como
parte vital de seu próprio ser. Em seu livro clássico The Golden Bough
(A Rama Dourada), Frazer cita muitos exemplos de povos onde foi
constatada a crença no poder mágico da palavra.
Um aborígene australiano acredita que um inimigo poderia pra-
ticar magia negra contra ele, se conhecesse seu nome. Na Ilha de Chiloé
no Chile, os índios guardam seus nomes em segredo; se um espírito
malévolo os conhecesse poderia fazer-lhes mal; não os conhecendo,
seria impotente para agir. Na Colúmbia Britânica (Canadá) e no arqui-
pélago malaio acontece a mesma coisa. Ninguém pronuncia seu pró-
prio nome. Esse mesmo tabu existe na Nova Guiné e na África do Sul.
Tal comportamento se baseia no fato de que se teme o mal provenien-
te dos maus espíritos. Esses povos primitivos temem revelar o próprio
nome a feiticeiros, que teriam assim uma maneira de fazer maldades
contra a pessoa detentora daquele nome.
Os antigos egípcios recebiam dois nomes: o nome verdadeiro e
o nome onomástico, isto é, o nome grande e o nome pequeno. O
onomástico, ou nome pequeno, era público; o verdadeiro, porém, era
secreto e ciosamente ocultado.
Em muitas sociedades arcaicas o nome de um rei, de um chefe
ou de uma pessoa sagrada é tabu.
No Dahomey o nome do rei era secreto; se algum capeta o co-
nhecesse poderia fazer-lhe mal. Os nomes com que os europeus co-
nheceram esses reis não eram seus nomes verdadeiros mas meros tí-
tulos. No antigo Sião era muito difícil descobrir o nome verdadeiro de
um rei, pois esse era mantido em segredo por medo de bruxarias;
quem o dissesse seria encerrado em um calabouço. Para referir-se ao
rei, diziam: o augusto, o perfeito, o supremo, o grande imperador, o
descendente dos anjos. Entre os sulus (mar de Sulu, sul das Filipinas)
ninguém mencionava o nome do chefe da tribo ou os nomes dos pais
do chefe; nem pronunciava palavras comuns que coincidissem ou re-
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“Deus disse: “Que a luz seja!” e a luz se fez. Deus viu que a luz era
boa, e Deus separou a luz das trevas. Deus chamou a luz dia e as trevas
noite. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia” [ Gen.I, 3-5]. E as-
sim a criação vai emergindo ao apelo da palavra divina.
O gesto criador de Deus identifica-se com esta palavra ontológica
essencialmente divina. O que nós homens somos e o que sabemos
nasce dessa revelação primordial da palavra criadora, do gesto divino
de dizer.
Na Índia afirmam antigos relatos: “Da palavra dependem todos
os deuses, os animais e os homens; na palavra repousam todas as
criaturas. A palavra é imperecível...”
Em muitas tradições culturais o homem possui um poder incon-
testável sobre todos os outros entes porque os deuses o agraciaram
com a palavra. Segundo mitos das mais variadas mitologias, os ho-
mens aprenderam a falar com os deuses nas origens da história huma-
na. Ora, os mitos constituem a linguagem primordial das culturas. As
culturas são desempenhos históricos das comunidades humanas. E as
culturas são tão diferentes porque a palavra pode falar e ser falada de
diversas maneiras, em linguagem e línguas diversas. (Crippa, 1975,
p. 101)
A história das religiões atribui sacralidade às origens. “Os mitos,
constituindo a linguagem adequada às primordialidades, são religio-
sos, ou envolvidos pela força do sagrado.” (Crippa, 1975, p. 104) O
mundo mítico é um mundo sagrado. Por isso também a cultura é sa-
grada. “Cada povo e cada revelação sagrada parte de acontecimentos
divinos singulares ou constituídos de maneira singular. Há sempre,
porém, uma história original, ou seja, uma proposição mítica de acon-
tecimentos que se verificaram num tempo primordial, anterior ao iní-
cio da história.” (Crippa, 1975, p. 105) Confronte-se o que acima foi
referido sobre a cultura judaica, relatos esses recebidos e ciosamente
conservados pelas culturas cristãs.
No mundo mítico há uma relação íntima entre mito e realidade
de um lado, e mito e sacralidade, do outro (Crippa, 1975, p. 111).
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aquilo que seria o “dicionário” de uma língua natural são uma lista e
uma amostragem das etiquetas de categorias naturais com que a es-
pécie humana processa o conhecimento; contudo, as palavras não são
meros rótulos de objetos específicos existentes no mundo real. Pode-
mos afirmar que a maioria das palavras designam campos de concei-
tos em vez de coisas físicas. É quase certo que seja assim, pois se fosse
de outra maneira nos depararíamos com uma enorme dificuldade para
explicar por que as palavras se referem a classes abertas. Por exemplo:
não podemos definir a categoria rotulada como casa partindo da enu-
meração de todos os objetos que recebem esse nome. A qualquer novo
objeto que satisfizesse certos critérios seria possível atribuir essa eti-
queta. É mais fácil dizer o que esses critérios não são que dizer o que
são. Assim eles não são um conjunto finito de variáveis objetivamente
mensuráveis tais como: textura, cor, dimensões físicas, etc. Exceto para
umas poucas palavras, que constituem um caso especial – os vocábu-
los que designam experiências como cor, temperatura, tamanho, etc.
Não podemos predizer que objeto poderia ser denominado casa e qual
não, considerando só as dimensões físicas desses objetos. Conclui-se
que o processo de categorização e a nomeação ou designação através
de palavras devem fundamentar-se em algo muito abstrato.
O processo de categorização subjaz à semântica de uma língua
natural. Os critérios de classificação usados para classificar os objetos
são muito diferenciados e variados. Às vezes, o critério é o uso que o
homem faz de um dado objeto; às vezes, é um determinado aspecto
do objeto que fundamenta a classificação; às vezes, é um determinado
aspecto emocional que um objeto pode provocar em quem o vê, e
assim por diante.
Voltemos ao exemplo de casa. Geralmente o objeto casa se apli-
ca a estruturas que servem de abrigo ao homem ou aos animais; po-
rém, freqüentemente muda-se o critério de categorização como resul-
tado de extensões metafóricas que se dá a essa palavra. Isso ocorre,
por exemplo, com casa de Deus, casa de David, casa de câmbio e no
português europeu, casa de banho. A facilidade com que se pode mu-
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“Constatou-se que o sistema lingüístico subjacente a cada língua (em outras pa-
lavras, a gramática) não é apenas um instrumento de reprodução para emitir idéias
mas ele é sobretudo um modelador de idéias, o programa e o guia para a atividade
mental do indivíduo. [...] As categorias e os tipos que nós isolamos do mundo dos
fenômenos não os encontramos aí porque eles estejam encarando cada observador
face a face; pelo contrário, o mundo é apresentado num fluxo caleidoscópico de im-
pressões que têm que ser organizadas por nossas mentes – e isso significa, em grande
parte, pelo sistema lingüístico em nossas mentes. Nós recortamos a natureza,
organizamo-la em conceitos, e lhe atribuímos significados da forma como o fazemos
porque constituímos as partes contratantes de uma convenção, segundo a qual deve-
mos organizá-la assim – tal convenção se mantém na nossa comunidade lingüística e é
codificada nos moldes da nossa língua. Naturalmente essa convenção é implícita e não
formulada, mas seus termos são absolutamente coercitivos; não podemos falar sequer,
a não ser subscrevendo a organização e a classificação dos dados decretados por essa
convenção. Somos assim introduzidos em um novo princípio de relatividade, o qual
estabelece que todos os observadores não são movidos pela mesma evidência física, a
uma mesma visão do universo, a menos que seus “backgrounds” sejam similares, ou
possam ser calibrados de alguma forma.” (Whorf, 1958, p. 5).“É fácil constatar que não
é possível definir um evento, uma coisa, um objeto, uma relação, etc., a partir da
natureza, mas defini-los sempre envolve um retorno circular às categorias gramaticais
da língua do definidor”. (ibidem, 6)
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FRANCÊS PORTUGUÊS
chômage = tempo passado sem trabalhar; interrupção do trabalho
débouché = saída que permite passar de um lugar fechado para um lu-
gar mais aberto; modo de escoar (vender) um produto; pers-
pectiva que se abre
détente = diminuição da tensão internacional
ESPANHOL PORTUGUÊS:
aposentar = hospedar, isto é, dar um aposento a alguém
cena = ceia, a última das refeições do dia
padre = pai
pitar = apitar, buzinar; assobiar vaiando
risco = penhasco alto
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mesma cor de outra forma, a saber: ocre. Isso porque, nesse segundo
caso, a mesma cor aparecia nas paredes de uma vila italiana.
Outros testes evidenciaram que a capacidade de identificar um
referente e de lhe dar um nome tem algo a ver com a estruturação
semântica mental dos falantes em virtude de sua língua materna. É
aqui que entrariam os estereótipos da percepção moldados conforme
essa língua materna. De qualquer forma os resultados das pesquisas
não confirmaram a hipótese de que existe uma pressão tirânica das
palavras sobre a cognição humana como afirmava o “relativismo lin-
güístico” de Whorf.
Foi possível concluir também que os sujeitos utilizam os recur-
sos disponíveis no vocabulário da sua língua materna para a referên-
cia. E mais: os conceitos que podem ser nomeados e facilmente for-
mulados no idioma nativo dos falantes são mais fáceis de adquirir
porque já se encontram codificados no léxico desse idioma.
Resumindo: as diferenças entre as línguas, fato que tanto impres-
sionou Whorf, não devem interferir no processo cognitivo. É fato
inconteste que nossas características biológicas entre as quais se en-
contra a capacidade de conceptualização e um modo peculiar de
categorização são comuns a todos os homens. É indiscutível que o pro-
cesso de formação de conceitos deve ser regulado de alguma forma por
determinantes biológicos; portanto, em todos os idiomas a nomeação
deve ter propriedades formais bastante similares. As línguas naturais se
distinguem por seus processos de conceptualização específicos, que se
refletem no seu vocabulário. Contudo, como os falantes utilizam as pa-
lavras livremente para etiquetar seus próprios processos de conceptua-
lização, o significado estático das palavras registrado pelos dicionários
não parece restringir as atividades cognitivas dos falantes.
É importante também concluir que a transmissão do repertório
lexical de geração em geração através da educação informal e formal
exerce papel importante na categorização/ conceptualização do uni-
verso, ao fornecer ao indivíduo um estoque de nomes já codificados
nessa cultura.
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"ÁRVORE"
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signo lingüístico
significado
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dos falantes e manipulada por ela, a língua é algo de que todos os indi-
víduos se servem todo dia. Nesse sentido, não se pode estabelecer com-
paração entre ela e as outras instituições. As prescrições de um código,
os ritos de uma religião, os sinais marítimos, etc., só ocupam simultane-
amente um determinado número de indivíduos e durante um tempo
limitado; a língua, pelo contrário, cada um participa dela a todo instan-
te, e é por isso que ela sofre sem cessar a influência de todos. Esse fato
fundamental basta para mostrar a impossibilidade de uma revolução. A
língua é de todas as instituições sociais aquela que propicia as menores
possibilidades às iniciativas [individuais]. Ela faz corpo com a vida da
massa social, e essa, sendo naturalmente inerte, manifesta-se claramen-
te como um fator de conservação.” (p. 107-8). Essa fixidez advém do
fato de que a língua se situa no tempo, continuando duradouramente
numa comunidade de falantes através das idades. É o tempo que altera
os signos lingüísticos e que introduz outro fator importante: a mutabili-
dade do signo. Assim mutabilidade e imutabilidade são solidários e cons-
tituem as duas faces da moeda. Na verdade o signo não muda integral-
mente de uma vez; as alterações vão se verificando paulatinamente atra-
vés da história. Embora seja difícil determinar as causas das mudanças
ocorridas no signo lingüístico, elas acarretam “um deslocamento da re-
lação entre o significado e o significante”. Essa é uma das conseqüênci-
as da arbitrariedade do signo lingüístico. É esse caráter arbitrário que
distingue a língua de todas as outras instituições sociais.
E em que se baseia a mutabilidade do signo? Ela decorre, em par-
te, das mudanças culturais operadas na sociedade no decorrer da histó-
ria; e, em parte, da ação desses fatores sobre a língua falada por uma
massa considerável de falantes. Um exemplo desse tipo de mudanças
ocorre na classe do substantivo que simboliza o modelo ideal de signo
lingüístico. Um caso típico é o envelhecimento e morte de palavras em
conseqüência do desaparecimento de instituições, costumes e objetos.
Veja-se, a título de ilustração, algumas palavras que desapareceram do
português contemporâneo porque a coisa designada não existe mais,
ou não se usa mais: aguazil, bacamarte, candeeiro, canga, caravela, cas-
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conceito/significado
realidade
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BIBLIOGRAFIA
ABSTRACT: The word is the cornerstone of human language. Several approaches may be used
to analyse this complex subject. We shall consider here the most important dimensions of this
entity: the magic value of the word and its creative power; the cognitive dimension associated
with the question of naming and designation of reality, generating the vocabulary of natural
languages; the significative dimension where the issue of the linguistic sign is analysed together
with its relationship with reality.
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