33 129 1 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

Fantasias de doença e cura presentes na primeira hora de

jogo diagnóstica - um estudo de caso 4


_______________
Niura Luci Schuch5

Resumo: O brinquedo é uma técnica, no atendimento de criança, tanto de avaliação,


quanto terapêutica. Por meio do brinquedo a criança expressa seus conflitos e
fantasias. O objetivo desse trabalho é ilustrar, por meio de um estudo de caso e, com o
relato do material trazido por uma criança, na sua primeira sessão diagnóstica, as idéias
de Aberastury, Melanie Klein e Anna Freud, comparando-as. O entendimento do
conteúdo da primeira hora de jogo diagnóstica de uma criança, do sexo feminino, de
cinco anos e seis meses de idade, no consultório psicológico, é apresentado. Em sua
primeira hora de jogo diagnóstica, a menina realizou um trabalho com lápis coloridos,
massa de modelar e cola que permitiu esclarecer sua percepção de doença e sua
consequente fantasia de cura. Este material, trazido pela criança é analisado e permite
a constatação do aporte teórico sustentado por Arminda Aberastury, quanto às
fantasias de doença e cura, que toda a criança tem, ressaltando, também, as idéias da
teoria kleiniana sobre a importância do brinquedo como técnica diagnóstica e
terapêutica no atendimento de crianças pequenas. Realiza-se, então, uma comparação
entre as principais posições teóricas propostas por Anna Freud, Melanie Klein e
Arminda Aberastury, sobre o emprego das clássicas técnicas de análise infantil,
Comenta-se sobre o emprego, a eficácia e a atualização da técnica da hora de jogo
diagnóstica para a avaliação e o entendimento psicodinâmico de crianças.

Palavras chave: Hora de jogo. Fantasias de doença e cura. Psicanálise na infância.

Abstract: The toy is a technique in child care, both evaluation and therapy. Through the
toy the child expresses their conflicts and fantasies. The aim of this paper is to illustrate
through a case study and, with a report of the material brought by a child in its first
diagnostic session, the ideas of Aberastury, Melanie Klein and Anna Freud, comparing
them. Understanding the contents of the first hour of play a child's diagnosis, female, five
and six months of age in psychological practice, is presented. In his first hour of play to

4
Estudo de caso supervisionado pelo Dr. José Ottoni Outeiral diretor da Clínica Winnicott, de Porto
Alegre/ RS.
5
Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia. Professora e coordenadora do curso de Psicologia
da FAMETRO.

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


diagnosis, the girl produced a paper with colored pencils, modeling clay and glue
clarified their perception of illness and its consequent fantasy of cure. This material
brought by the child is examined, and allows the verification of the theoretical sustained
by Arminda Aberastury, fantasies about the disease and cure, that every child has,
stressing also the ideas of Klein's theory about the importance of toys as technical
diagnosis and therapy in the care of young children. Takes place, then a comparison
between the major theoretical positions proposed by Anna Freud, Melanie Klein and
Arminda Aberastury on the employment of the classic techniques of child analysis, is
commented on the use, effectiveness and update the technique of time game for
diagnostic assessment and psychodynamic understanding of children.

Keywords: Time to play. Fantasies of illness and healing. Psychoanalysis in childhood.

I - DADOS DE IDENTIFICAÇÃO:
M., cinco anos e cinco meses, cor branca, sexo feminino, religião católica. Não
frequenta a escola. Filha única de pais separados há sete meses. Pai alcoolista.
Atualmente reside na casa dos avós maternos, junto com a mãe.
A mãe tem 30 anos, ensino fundamental completo, auxiliar de escritório.
O pai tem 32 anos, ensino fundamental incompleto, motorista, no momento,
desempregado.
Queixa principal: Constipação e encoprese, com três episódios de estenose anal após
muitos dias sem evacuar.

II HISTORIA PESSOAL
M. é filha única. Seus pais estão separados há aproximadamente sete meses. O
pai é alcoolista, motivo da separação do casal. A mãe engravidou após quatro anos de
casada, com a promessa do pai de M. de parar com a bebida, após o nascimento da
filha. Não houve preferência pelo sexo do bebê. A gravidez ocorreu sem complicações
até o sétimo mês, quando houve um episódio de ameaça de aborto espontâneo, que
fez com que a mãe de M.parasse de trabalhar. A partir disso, mostrou-se muito ansiosa
e preocupada com o parto e a criança. O casal tinha brigas constantes em razão do
alcoolismo do pai da menina. O parto foi normal e a termo e, segundo a mãe, “a criança
nasceu normal” (Sic).
M.mamou no peito até a idade de 1mês e meio, quando passou a tomar
mamadeira. Ainda segundo o relato da mãe, “M. sempre foi inapetente, sendo muito
enjoada para comer tem nojo de muitas coisas e rejeita algumas comidas” (Sic). Com

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


um ano, M. passou a tomar Nescau na xícara e deixou a mamadeira por demonstrar
nojo pelo bico.
A mãe relata que M. desde pequeninha teve “prisão de ventre” e por duas
vezes teve infecção intestinal com diarreia e muita febre: uma vez quando estava com
três anos, e outra, com quatro anos, no ano passado.
Quanto ao sono, a mãe de M. relata que a menina tem o sono muito leve,
acordando-se com qualquer barulho, mexendo-se muito enquanto dorme,
choramingando e rangendo os dentes. Atualmente M. dorme na cama do casal, junto
com a mãe. Antes da separação dos pais, dormia em seu próprio quarto, após ter
iniciado o sono na cama dos pais. Entretanto, costumava, no meio da noite, voltar para
a cama dos pais, ficando aí até a manhã do dia seguinte. O desenvolvimento
psicomotor de M., segundo sua mãe, foi adequado, pois M. fixou a cabeça aos quatro
meses, sentou-se aos sete meses e ficou em pé aos nove meses. Não usou andador e
tocava o carrinho com o pé. Muito cedo foi ao chão, mas não engatinhou. Caminhou
aos onze meses, segurando-se nos móveis e raramente caia. Por volta de um ano,
caminhava sozinha sem segurar-se em nada.
Não babou e a dentição foi tardia. O primeiro dente apareceu quando tinha um
ano e um mês.
O controle esfincteriano vesical diurno aconteceu por volta de um ano quando
passou a não usar mais fraldas e já sabia pedir. O vesical noturno foi por volta dos
dezoito meses, tendo havido raros episódios de enurese noturna. O controle
esfincteriano anal foi por volta dos seis meses, quando a mãe a treinou: “eu a segurava
no peniquinho, ficando com ela todos os dias na mesma horaaté que ela evacuasse.
Nos primeiros três dias ela não fez nada, mas no quarto dia fez e a partir do sétimo dia
passou a fazer sempre” (Sic). Completa acrescentando que o controle esfincteriano
anal aconteceu, portanto,quando a menina tinha seis meses e sete dias: “A partir desse
dia, ela espremia-se quando queria evacuar e eu a colocava no peniquinho. Nunca mais
fez nas fraldas” (Sic).
Quanto à linguagem a mãe refere que M. começou a dizer as primeiras palavras
quando tinha um ano, mas falava tudo em “B”, dizendo: “Bobó, quando se referia á
vovó, babá para a mãe” (Sic). Atualmente não demonstra possuir qualquer alteração na
linguagem falada.
Chupa bico até hoje, mas somente á noite, para dormir.
Quando tinha mais ou menos quatro anos, passou a puxar o lóbulo das orelhas
do pai para dormir. No momento, puxa as orelhas da mãe, que refere que tenta lhe tirar
este costume dando-lhe tapinhas nas mãos e escondendo as orelhas nas cobertas.

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


M. tem dores de ouvido seguidamente, desde que era bebê e atualmente,
queixa-se com frequência de dor de garganta, ficando com febre alta. Nestes episódios
a mãe a leva ao pediatra.
Com relação à sexualidade, a mãe diz que ela é muito curiosa, costuma tomar
banho com a mãe, mas nunca o fez com o pai.“Desde pequena ela entendeu o que é
gravidez, pois é curiosa e quando viu uma tia grávida indo para o hospital queria saber
tudo, perguntando o que o doutor fazia. Eu enrolei e disse que lá no hospital tinha muito
bebê, que o doutor distribuía para as mães. Ela ficou quieta e não perguntou mais”(Sic).
Quando viu o bebê da tia se espantou e apontou as diferenças, dizendo “Os meninos
tem tico e as meninas, não”(Sic) .A mãe afirma que nunca percebeu se ela se
masturbava.

III - SITUAÇÃO FAMILIAR


Os pais de M. estavam separados há sete meses, quando o atendimento foi
procurado. O pai é alcoolista, segundo a mãe de M., o marido já bebia antes do
casamento, mas não chegava a embriagar-se totalmente. A mulher refere que
acreditava que casando, ele pararia com a bebida, o que, porém, não ocorreu. Afirma
também, que quando bebe, o pai de M. fica inicialmente alegre e depois de um tempo,
passa a ser agressivo, tendo chegado a bater na mulher algumas vezes. Quando
sóbrio, era uma pessoa quieta e não costumava dar muita atenção à filha, contudo,
quando alcoolizado brincava muito com a menina e permitia que ela fizesse com ele
tudo o que queria: -“Pulava nas suas costas, andava a cavalo, cantava e ria muito”
(Sic). Muitas vezes, nessas ocasiões, conforme o relato da mãe de M., o casal entrava
em contradição, quando a mãe procurava colocar limites na filha e acalma-la, era
quando brigavam.
O pai de M. chegou a entrar em um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA) onde
permaneceu por cerca de dois anos. Nessa época parou de beber. Entretanto, a mais
de um ano, voltou a beber, após ter ficado desempregado e, no momento, está com
grandes dificuldades financeiras. Segundo a mãe de M., “Ele está bebendo cada vez
mais”(Sic).
Ainda quando namorados, o casal construiu uma casa, nos fundos do terreno
da casa dos pais da mãe de M. onde residiram após casarem-se e até separarem-se,
quando M. e sua mãe foram morar na casa dos avós maternos de M. A mãe de M.
juntou, então, todos os móveis que possuía, na peça da casa que correspondia ao
quarto de M, com exceção dos móveis do quarto do casal, que retirou e colocou em seu

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


antigo quarto de solteira, na casa de seus pais. Após ter feito isso, fechou a chave a
peça e alugou o restante da casa: “A fim de ter uma renda maior” (Sic).
A mãe de M. diz que esta decisão sua não foi comentada com a menina, assim
como também, nada lhe foi dito sobre o afastamento do pai da família. M. passou a
dormir com sua mãe, no quarto de solteira desta, mas na cama do casal, na casa dos
avos maternos. Quando perguntava por que o pai não vinha mais dormir em casa e
porque haviam se mudado, era lhe dito que seu pai estava morando com a mãe dele e
que quando pudesse viria visitá-la. Nada mais foi informado à menina, nem sobre a
separação, nem sobre o fato de terem se mudado para a casa de seus avós maternos.

IV - HORA DE JOGO DIAGNÓSTICA


Ao ser chamada para que entrasse no consultório, M. não quis separar-se de
sua mãe, tendo então, entrado as duas juntas na sala de atendimento.
Quando referi que já havia conversado com sua mãe e perguntei se ela tinha
conhecimento desse fato ela disse-me que sabia.
Mostrei-lhe, os brinquedos da sala e disse-lhe que poderia usá-los como
quisesse.
Ela olhou e disse: “que bonitinho”, em seguida, sentou-se junto à mesinha,
pegou o lápis preto, a tesoura, a borracha e o apontador. Mostrou a cola disse: “eu não
posso usar isso, me sujo toda”.
Digo-lhe que aqui poderá usar o que quiser e que se sujar algo, limparemos.
Pega, então, uma revista e diz que gosta de ver revistas. Arruma-se na
cadeirinha, sentando-se com cuidado e passa a folhear a revista sem dizer nada.
Sua mãe sai do consultório, ela olha, não diz nada e continua folheando a
revista, olhando detalhadamente as fotos e figuras.
Diz: “Lá em casa eu também tenho revista, só que não são iguais a esta.”
Deixa a revista, pega a caixa de lápis de cor e abre-a. Pega uma folha de papel
e com o lápis azul escuro faz um retângulo pequeno no alto da folha. Guarda o lápis
azul, cuidando para colocá-lo no mesmo lugar de onde o tirou. Pega outros lápis, o
amarelo, o azul claro, o verde, o rosa, o preto e o marrom e vai preenchendo o espaço
do retângulo com manchas coloridas. Cada vez que usa um novo lápis, tem o cuidado
de guardar o que usava na caixa, no mesmo lugar em que se encontrava anteriormente.
Pergunto-lhe o que está fazendo. Diz: “É um circo e estes são os animais” apontando
as manchas coloridas. Pega o lápis preto e faz novas manchas com ele. Pega o lápis
vermelho e contorna o retângulo por dentro.

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


Pergunto-lhe o que faz. Diz: “É a cerca do circo, para os bichos não fugirem,
mas eles ficam dentro das casas deles, como é mesmo o nome?” Eu digo: “Jaulas?” Ela
diz: “É isso mesmo!” Agora, pinta de amarelo a cerca vermelha do circo e diz: “Estou
pintando a cerca do circo”.
Guarda os lápis que usava, fecha a caixa, pega a cola e coloca pingos no centro
do retângulo que desenhara e diz: “Vou juntar as coisas para que elas não se soltem”.
Coloca a folha de lado e diz que vai esperar um pouco até que a colaseque.
Fecha a cola e mostra-me seus dedos dizendo: “Estás vendo como eu me sujo quando
pego a cola?”
Pede-me um pedaço de papel e para que eu a limpe, o que faço.
A seguir encosta-se para traz e inclina-se, na cadeirinha, dizendo que está com
fome e cansada e que queria ir embora. Digo-lhe que ainda há tempo. Ela então me diz
que é preguiçosa. Pergunto-lhe porque diz isto, ela responde: “Porque gosto de levantar
tarde”. Fica quieta e parece-me triste. Permanecemos alguns minutos quietas. Ofereço-
lhe novamente o material, ela olha as massinhas de modelar, pega-as e diz-me que
nunca havia brincado com elas. Digo-lhe que ela pode usá-las como quiser. Ela fica
pensativa por segundos, com a caixa nas mãos. Examina-a e diz que acha que não vai
gostar de brincar com as massinhas, pois irá se sujar. Pergunta-me se a massa pega
nos dedos. Digo-lhe que experimente. Ela abre a caixinha com certa dificuldade e
vagarosamente pega a massa de cor rosa, amassa-a e parte-a em duas partes, coloca
uma das partes sobre o desenho que havia feito, fazendo um arco sobre o mesmo.
Com o outro pedaço faz um arco menor que coloca do outro lado do desenho. Diz que
são as portas do circo. Depois, guarda as outras massinhas, e fecha a caixa.
Termina nosso tempo e eu lhe digo qual o dia em que ela voltará.

V - ENTENDIMENTO PSICODINÂMICO DA PRIMEIRA HORA DE JOGO


Nesta primeira entrevista M. mostrou como se sente trancada, dentro de um
pequeno retângulo, cheio de bichos ferozes que ela precisa manter trancados,
cercados, para que não fujam. Este foi o simbolismo que usou para me mostrar sua
doença: está com suas fezes presas (seus bichos ferozes), trancadas e cada vez mais
ela tenta não permitir que saiam, pois, esta é a maneira que tem para controlar sua
mãe, ela se tranca para ficar com a mãe. Através da retenção fecal ela mantém o
controle sobre a mãe, agindo da mesma forma que sua mãe, que trancou todas as
coisas da família no quarto dela, após a saída do marido de sua casa. Maria também se
tranca para não perder o que ainda lhe resta: a mãe. Tranca também os bichos do

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


alcoolismo do pai, numa tentativa onipotente de controlar seu pai a fim de poder fazê-lo
voltar e mantê-lo junto dela.
Não satisfeita com a cerca, ela ainda pinga a cola para ter certeza de que os
bichos não fugirão. Este é o seu medo: que todos fujam e a deixem sozinha: se ela
evacuar normalmente, não mais cuidarão dela e a fantasia que faz é de que ficará
sozinha e abandonada.
Ela se entristece quando pensa em sua doença, em sua situação.
Para ela é muito difícil brincar com as massinhas de modelar, pois elas lhe
lembram de suas fezes e de seu treinamento esfincteriano precoce, imposto pela mãe.
Isto fica evidente quando ela diz que não pode brincar com as massinhas, pois se
sujará, trazendo a problemática do sujar-se da encoprese e da exigência materna
quanto à limpeza.
Em seguida, ela mostra sua fantasia de cura, quando faz os dois arcos com as
massas dizendo que são as portas do circo. As portas que lhe ajudarão a destrancar os
animais que estão presos no circo.

VI - APORTE TEÓRICO:
O sucesso de Sigmund Freud em 1905, ao analisar o pequeno Hans, permitiu
que seus seguidores buscassem uma técnica específica para trabalharem com
crianças. O mais importante foi a constatação que com crianças, a associação livre
acontecia por meio do brinquedo. O primeiro a tentar uma adaptação da técnica
analítica para o tratamento infantil foi Hug-Hellmuth que, em 1921, observou seus
pacientes brincarem com jogos no seu próprio ambiente. Contudo, este teórico, acima
citado, não sistematizou sua experiência.
Logo após, Anna Freud em1927,ensina como realizar a interpretação de sonhos
durante o tratamento psicanalítico de crianças. Considera a análise de a atividade
lúdica uma técnica auxiliar, não lhe dando o mesmo valor que as associações verbais
do tratamento com adultos. Contudo, traz valiosas contribuições para o
desenvolvimento da técnica infantil. Chega à conclusão de que somente isolando a
criança de seu meio familiar pode-se conseguir a neurose de transferência,
indispensável para a repetição dos sintomas e sua cura, mas, enfatiza que isso traria o
risco de que a criança não pudesse, depois, se adaptar ao seu lar, ou, que voltasse a
repetir sua sintomatologia.
Uma característica do tratamento proposto por Anna Freud é sua afirmação de
que existe a necessidade de dar ao psicanalista, um papel educativo, uma vez que,
reforça a idéia de que o analista precisa reunir duas funções difíceis: analisar e educar,

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


pois a situação de dependência do superego, aos objetos originais, mantém-se,
segundo ela, durante todo o período de latência e pré-puberdade.
Sua visão sobre a transferência fundamenta-se na diferença de maturidade do
superego infantil para o adulto ao dizer: "O analista deve ter conhecimentos
pedagógicos, teóricos e práticos e se as circunstâncias o permitirem deverá também
assumir as funções de educador durante todo o curso da análise." (FREUD, A.1991,
p.63).
Anna Freud, (1991) também refere que a análise infantil exige uma vinculação
positiva, muitíssimo mais intensa que a do adulto e, não crê que o brinquedo possa ser
um instrumento técnico comparável à associação livre do adulto. Essa mesma teórica
usa o brinquedo como técnica complementar que pode esclarecer sobre os impulsos do
id, mas que não permite ver como funciona o ego. Para ela, na análise de crianças se
transferem sintomas e defesas, mas a neurose permanece centralizada nos objetos
originais.
Aproximadamente à mesma época, Melanie Klein inicia seu trabalho com
crianças baseando-se na utilização do brinquedo, continuando a investigação de Freud,
afirmando que a criança ao brincar vence realidades dolorosas e domina medos
instintivos, projetando-os ao exterior nos brinquedos, enfatizando que esse mecanismo
é possível, porque muito cedo, a criança,tem a capacidade de simbolizar.
É com Melanie Klein que se realiza uma autêntica revolução e uma formulação
plena e exaustiva de um modelo de análise infantil.
Klein em 1929 torna plenamente possível, uma efetiva análise infantil, isenta de
qualquer intenção pedagógica, graças à genial introdução do material de jogo e à
igualmente genial intuição da contínua atividade de personificação desenvolvida pela
criança, com o uso dos brinquedos na sessão psicoterapêutica, atividade semelhante
em tudo e por tudo, às associações livres dos adultos.
Ouvindo as crianças, Klein tomou consciência da extrema importância que têm
para elas os espaços no interior do corpo, seja o corpo da mãe, seja o seu próprio
corpo e derivou daí, uma revolução da "geografia da mente" segundo Meltzer (1979,
apud ABERASTURY, 1992).
Para Melanie, o brinquedo permite à criança vencer o medo aos objetos, assim
como, vencer o medo aos perigos internos. A técnica de jogo aplicada ao tratamento e
ao diagnóstico não exclui a utilização e a interpretação de sonhos, de sonhos diurnos e
de desenhos sugerindo que“{...} com o brinquedo ela sonhará pouco ou não sonhará”
(KLEIN, 1996, p. 43).

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


A função do brinquedo é considerada por Melanie necessária para que a
criança elabore as situações excessivas para o ego (traumáticas) cumprindo uma
função catártica e de assimilação por meio da repetição dos fatos cotidianos e das
trocas de papéis, fazendo ativo o que foi sofrido passivamente. Mas, assinala essa
teórica, que o brinquedo não suprime, mas canaliza tendências. Por isso, a criança que
brinca reprime menos que a que tem dificuldades na simbolização e dramatização dos
conflitos através desta atividade. A criança, portanto, expressa suas fantasias, desejos
e experiências de um modo simbólico por meio de seus brinquedos e jogos, utilizando a
mesma linguagem que nos é familiar em sonhos.
Na técnica kleiniana, revista por Aberastury (1992), o brinquedo desenvolve-se no
consultório, dentro de limites determinados de espaço e tempo. As distâncias e
proporções com respeito a si mesmo e ao terapeuta, sua mobilidade ou imobilidade, no
consultório, nos ensinam muito sobre sua relação com o espaço e seu esquema
corporal. Aberastury (idem) reforça que quando a criança brinca, busca representar algo
e que ao interpretarmos um brinquedo devemos considerar:
1) sua representação no espaço;
2) a situação traumática que involucra;
3) porque aparece aqui, agora e comigo.
Tanto para Melanie Klein (1996) como para Arminda Aberastury (1992) a
observação da primeira hora de brinquedo da criança permite-nos conhecer suas
fantasias inconscientes de enfermidade e de cura, podendo ser avaliada a gravidade da
neurose de acordo com o nível de brinquedo desenvolvido. Esta observação se
transformou num método diagnóstico das neuroses infantis.

CONCLUSÃO
Melanie Klein, em 1929, aplicou, ao entendimento dos brinquedos infantis, a
abordagem teórica e técnica dada por Freud aos sonhos, defendendo que as
brincadeiras infantis são o caminho, pelo qual, se tem acesso ao inconsciente da
criança, ou, em outras palavras, ao seu mundo interno. (KLEIN, 1996).
Melanie Klein foi a grande opositora de Anna Freud no tratamento analítico de
crianças. Entre os principais pontos de divergência entre estas duas teóricas estão as
questões da transferência e as que referem a se equipararem os brinquedos da criança
à livre associação no adulto, além da possibilidade da própria instrumentalização destes
entendimentos. Para Melanie, a capacidade de transferência é espontânea na criança e
deve ser interpretada, tanto positivamente quanto negativamente, não devendo o
analista tomar o papel de educador. Asdivergências iniciaram-se nas históricas

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


controvérsias entre Melanie Klein e Anna Freud, especialmente ao que se sabe, porque
Anna Freud não reconhecia as postulações de Melanie Klein como verdadeiras.
Durante um período de sua vida, Anna Freud aproximava-se das crianças com uma
perspectiva educativa, reservando a abordagem psicanalítica para crianças maiores,
com o complexo de Édipo e formação do superego já estruturado (ABERASTURY.
1992).
Outro aspecto importante a ressaltar é o referente ao que Melanie afirma quanto
à ansiedade da criança, que, segundo ela, é muito intensa e é a pressão dessas
ansiedades primárias que põe em funcionamento a compulsão à repetição, conduzindo
às simbolizações e personificações, onde ela reedita suas primeiras relações de objeto,
à formação do superego e à adaptação à realidade, que se expressam em seus
brinquedos e podem ser interpretados.
Melanie Klein (1996) é de opinião que pelo processo de simbolização a criança
distribui o amor aos novos objetos e assim, obtém novas fontes de gratificação. Coloca,
também, esta teórica, acima citada, que a criança distribui suas angústias e que pelos
mecanismos de repartir e repetir as diminui e domina, afastando-se de seus objetos
originários perigosos. È o que foi observado e registrado no caso estudado: quando M.
prende os bichos e os cola para que fiquem juntos e não se separem, e em seguida, faz
os dois arcos com as massinhas dizendo que são as portas do circo pelas quais os
animais sairão, mostrando sua fantasia de cura, atribuindo à terapeuta a porta menor e
ao tratamento a porta maior. Como já foi referido, pelo mecanismo de identificação
projetiva as crianças fazem transferências positivas ou negativas, de acordo com o
comportamento do objeto, aumentando ou aliviando sua ansiedade. As primeiras
defesas na relação da criança com os objetos surgem de suas tendências agressivas e
são projetivas, considerando o sujeito e a destruição, considerando o objeto, desde o
primeiro momento, a criança projeta no terapeuta suas tendências destrutivas e
amorosas, pois quando brinca, coloca o analista nos mais variados papéis.
De maneira bastante franca e aberta, Melanie Klein acreditava na importância
técnica da interpretação precoce das fantasias inconscientes infantis, principalmente ao
observar que as crianças pequenas respondiam prontamente às suas interpretações, o
que a encorajou a desenvolver sua técnica e concepções teóricas.
Atualmente, há várias formas de tratamento de crianças, mas para se trabalhar
com psicoterapia com enfoque psicodinâmico, é necessário que se tenha como
referencial teórico a psicanálise, uma vez que este tipo de psicoterapia é baseado nos
aportes trazidos pelos introdutores do atendimento de crianças, e, principalmente pela
psicanalista argentina Arminda Aberastury.

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


O caso estudado reforça a função dos brinquedos, na sessão psicoterapêutica
que é a de fornecer à criança um vocabulário e um instrumento de expressão de seu
universo mental, revelando em seus conteúdos, aspectos conscientes ou inconscientes
da vida infantil. Dessa forma, podemos considerar que a técnica da brincadeira de uma
criança pode ser interpretada como um sonho, dentro do contexto global da sessão.
É importante que se saliente, entretanto, que a técnica psicoterápica indicada para
a criança é sempre determinada pelo referencial teórico do terapeuta. Em psicoterapia
de orientação analítica, ou de enfoque psicodinâmico, um referencial possível é o da
teoria kleiniana atualizado complementado por Aberastury. Este referencial implica,
como já foi visto, na aceitação do uso dos brinquedos, como um equivalente da
associação livre do adulto, na convicção de que a criança estabelece uma relação
transferencial desde o primeiro momento, e, basicamente, na aceitação dos conceitos
de identificação projetiva e fantasia inconsciente. Uma vez que, por meio do brinquedo,
a criança se expressa, comunicando seus conflitos intrapsíquicos e sua vida de relação,
a observação da conduta da criança durante a sessão permite perceber sua ansiedade
predominante, as defesas que utiliza, assim como os impulsos subjacentes. Melanie
Klein (1996) já salientava que se deve observar tanto o brinquedo, como suas
interrupções ou, mudanças bruscas. Estes acontecimentos são, em geral, determinados
pelo surgimento ou agudização da ansiedade. Foi o observado e registrado
transferencialmente, no momento em que M.encostou-se à cadeirinha, e disse que era
preguiçosa e ficou quieta. O sentimento da terapeuta correspondeu ao sentimento da
menina.
Concluindo, o trabalho com crianças em idades diferentes apresenta, portanto,
características específicas, na medida em que a forma de expressão e compreensão
vai evoluindo com o crescimento. É importante, também que se registre que a
psicoterapia de orientação analítica de crianças, ainda que realizada a partir do mesmo
referencial teórico que a dos adultos, guarda diferenças marcantes, devido ás
peculiaridades da criança, um ser em evolução.
Assim, Prego e Silva (in OUTEIRAL, 1998) costumava dizer que o diagnóstico de
crianças deveria ser feito no gerúndio. Portanto, uma das tarefas do terapeuta consiste
em avaliar a capacidade do paciente de utilizar os recursos potenciais que possui, de
forma evolutiva.
O caso estudado possibilitou a confirmação de afirmações do aporte teórico
utilizado e pretende ser apenas mais um exemplo da grandiosidade do pensamento das
teóricas referidas, reforçando a idéia de que trabalhos semelhantes devem ser
debatidos para que cada vez mais seja possívelaprimorar o trabalho psicoterápico e,

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011


assim, consequentemente, contribuir para que muito mais crianças sejam felizes, na
medida em que serão ouvidas e entendidas.

REFERENCIAS
ABERASTURY, A.Psicanálise da criança. Porto Alegre: Artmed, 1992.
ABERASTURY, A. El psicoanálisis de niños y sus aplicaciones. Buenos Aires:
Paidós, 1990.
BARANGER, W. Posição e objeto na obra de Melanie Klein. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1991.
FREUD, A. O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de Janeiro: Imago,
1976/1991.
________Infância normal e patológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico V – Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
KLEIN, M. Narrativa da Análise de uma Criança. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KLEIN, M. HEIMANN,P. ISAACS, S. RIVIERE, J. Os progressos da psicanálise. Rio
de Janeiro: Zahar, 1991.
OUTEIRAL, J.O. org. Clinica psicanalítica de crianças e adolescentes. Rio de
Janeiro: Revinter, 1998.

Nambiquara: Revista Científica da Fametro, v. 1-2, n. 1-2, jan./dez./ 2011

Você também pode gostar