Dimensões Da Dignidade Da Pessoa Humana
Dimensões Da Dignidade Da Pessoa Humana
Dimensões Da Dignidade Da Pessoa Humana
Eduardo Cambi
Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia. Doutor e mestre em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Universidade Estadual do
Norte do Paraná (UENP) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Promotor de Justiça no
Estado do Paraná. Assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Paraná. Coordenador do
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) do Ministério Público do Paraná.
Membro colaborador da Comissão de Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP). Coordenador Nacional do Projeto João Cidadão de Educação
em Direitos Humanos do CNMP. [email protected]
Elisângela Padilha
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP.
[email protected]
1 Introdução
Por isso, para melhor compreendê-la, devem ser adotadas dimensões da dignidade da
pessoa humana. Aqui, foram apontadas três dimensões para análise: a) a dimensão
ontológica, com destaque para a teoria de Immanuel Kant, na qual se encontram os
bens necessários e essenciais para a existência humana, impedindo a sua coisificação;
b) a dimensão cultural, em que se inserem os valores que variam em cada época e
sociedade conforme as condições econômicas, políticas e culturais; c) a dimensão
processual, na qual se encontram os pressupostos normativos fundamentais para que
possa ser assegurada pelo Estado.
2 Conceito de dignidade humana
A dignidade, em sentido jurídico, é uma qualidade intrínseca do ser humano que gera
direitos fundamentais: i) de não receber tratamento degradante de sua condição
humana (dimensão defensiva); ii) de ter uma vida saudável (dimensão prestacional),
vale dizer, de ter a colaboração de todos para poder usufruir de um completo bem-estar
físico, mental e social (conforme os parâmetros de vida saudável da Organização Mundial
de Saúde); iii) de participar da construção de seu destino e do destino dos demais seres
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humanos (autonomia e cidadania).
Assim, o Direito não deve determinar o conteúdo da dignidade humana, mas enunciá-lo
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como valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente,
para que fique gravado na consciência coletiva de determinada comunidade e possa ser
objeto de proteção, por meio de direitos, liberdades e garantias que a assegurem. Antes,
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Com efeito, não há como refutar que a dignidade humana tem alcançado um
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protagonismo jamais visto na história da humanidade. Justamente por isso é preciso
ter cautela para que a dignidade não sirva de justificação para uma espécie de
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fundamentalismo da dignidade, já que seu conceito é aberto e, como produto cultural,
deve ser construído historicamente.
Nesse contexto, a dignidade é uma qualidade própria do ser humano que vai exigir o
respeito por sua vida, liberdade e integridade física e moral, consolidando-se em um
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conjunto de direitos essenciais que impedem a coisificação do indivíduo,
independentemente da religião, cultura ou ideologia que adotam.
Pela dimensão ontológica, o valor da pessoa humana exige respeito incondicional por si
só, não sendo relevantes os contextos integrantes nem as situações sociais que ela se
insira. Embora a pessoa viva em sociedade, sua dignidade pessoal não pode ser
sacrificada em nome da comunidade que esteja envolvida, porque a dignidade e a
responsabilidade pessoais não se confundem com o papel histórico-social do grupo ou da
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classe que ela faça parte.
A dignidade, considerada como um valor, é um bem inalienável, que não pode ser objeto
de renúncia ou de transação por parte de seu titular, sobrepondo-se à autonomia da
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vontade, para evitar qualquer forma de subjugação ou degradação da pessoa.
Como todas as pessoas são iguais em dignidade, embora possam se comportar de modo
diverso, há um dever de respeito e de consideração recíproco de cada pessoa em relação
à dignidade alheia, além do dever de respeito e proteção por parte do poder público e da
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sociedade.
Além disso, cumpre ressaltar que a dignidade não pressupõe capacidade (psicológica) de
autodeterminação. Dela não estão privadas as crianças, as quais se beneficiam de
proteção da sociedade e do Estado, nem os portadores de anomalia psíquica. A pessoa
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conserva a sua dignidade, independentemente das suas condutas, ainda que ilícitas e
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sancionadas pelo ordenamento jurídico.
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outra, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.
(...) No reino dos fins, tudo tem um preço, pode-se pôr em vez dele qualquer outro
como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não
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permite equivalente, então tem ela dignidade”.
A propósito, Hannah Arendt afirma que os direitos humanos não nascem de uma só vez,
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pois estão em constante construção e reconstrução.
De igual modo, a dignidade da pessoa humana, ainda mais por possuir conceito vago e
aberto, não pode ser considerada unicamente como algo inerente à natureza humana no
sentido de uma característica inata pura e simplesmente, sendo produto da evolução
cultural decorrente da construção histórica fruto de distintas gerações e da humanidade
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em seu todo.
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Outra cultura que merece ser mencionada é a de alguns povos africanos, os quais
adotam um antigo código moral chamado ubuntu, que enfatiza a importância da
hospitalidade, do respeito e da generosidade que os indivíduos devem ter uns para com
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os outros, pelo fato de pertencerem a uma única família humana.
Com a utilização cada vez maior dos princípios jurídicos, ganhou ainda mais importância
a hermenêutica e a argumentação jurídicas nos processos judiciais, para a melhor
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aplicação do direito.
Nesse contexto, o novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei 13.105, de 16 de março
de 2015) instituiu um verdadeiro modelo constitucional de processo ao conferir grande
importância às normas constitucionais, prevendo já no art. 1º que o processo civil será
ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as
disposições do Código.
O novo CPC (LGL\2015\1656) não ignora a dignidade da pessoa humana, como um vetor
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hermenêutico de alta relevância, ao afirmar, no art. 8º, que ao aplicar o ordenamento
jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e
promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
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Tal dimensão processual da dignidade humana é importante, pois cada vez mais a
dignidade de certos seres humanos é violada, exposta e desprotegida, seja pelo
aumento assustador da violência contra a pessoa, seja pela carência social, econômica e
cultural ou pelo crescente comprometimento das condições existenciais mínimas para
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uma vida com dignidade e, destarte, de uma existência com sabor de humanidade.
O processo deve ser pensado não apenas como um mecanismo técnico de solução de
controvérsias, mas também um mecanismo importante de promoção de valores éticos e
emancipatórios consagrados pela Constituição Federal.
O novo Código de Processo Civil reforça que a atividade jurisdicional deve ser exercida
de modo a atender aos fins sociais, a permitir a inclusão social combatendo a
desigualdade em seus aspectos materiais (político, econômico e social). Com efeito, é
papel do Judiciário efetivar a dignidade da pessoa humana.
No entanto, é preciso atentar-se para o fato de que, não raras vezes, a disposição
constitucional da dignidade da pessoa humana vem sendo ponderada pelo Judiciário sem
nenhum critério, nem argumentação jurídica racional, o que leva ao problema do
decisionismo judicial. Não se pode admitir que os juízes, empoderados pela força
normativa dos valores e dos princípios constitucionais, possam impor a sua visão do que
é justo, sem a preocupação rigorosa com o dever de fundamentar racionalmente as
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decisões. A dignidade humana não pode ser usada como uma permissão constitucional
que possibilite que o juiz decida da forma que bem quiser. Daí a importância da
aplicação rigorosa do dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX).
Por isso, a dignidade humana não pode ser transformada em uma artimanha jurídica à
disposição tanto para os juízes quanto para as partes de um processo judicial. Nesse
sentido, a teoria da ponderação proposta por Robert Alexy, infelizmente ainda não
compreendida por muitos, não pode ser aplicada para forjar decisões
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pseudofundamentadas, que, na verdade, estão baseadas em elevada carga de
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discricionariedade, abrindo espaço para arbitrariedades. Tais decisões acabam por
manipular a dimensão processual da dignidade humana, para produzir casuísmos
jurídicos e alimentar a utilização arbitrária e, portanto, descriteriosa dos princípios.
Portanto, a decisão judicial não pode ser produto do acaso, mas sim de um processo
argumentativo, em que o julgador deve demonstrar de maneira racional o
enfrentamento das questões fáticas e jurídicas relevantes ao julgamento da causa. Sem
isso, a função judicial não se compatibiliza com a efetivação do Estado Democrático de
Direito.
É importante destacar que o art. 8° do novo Código de Processo Civil faz alusão à
proporcionalidade, um conceito-chave no debate sobre a justiça das decisões que
envolvem direitos humanos-fundamentais e que deve ser concebido como um
dever-jurídico-positivo, decorrente da garantia constitucional do devido processo legal
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(art. 5º, LIV, da CF (LGL\1988\3)).
Dessa forma, se, por um lado, a dignidade da pessoa humana ocupa o lugar de um
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valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente, por
outro lado, ela não fica imune a possíveis restrições. A dignidade humana não deve
prevalecer em toda e qualquer circunstância, apesar de assumir uma posição privilegiada
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para a concretização dos direitos fundamentais. Logo, mesmo a dignidade da pessoa
humana é passível de ponderação quando em rota de colisão com outros bens jurídicos
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de estatura constitucional.
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9 STF, HC 107108, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 30.10.2012, processo eletrônico
DJe 227, divulg. 19.11.2012, public. 20.11.2012.
13 “(...) os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana, por mais que sejam
também pautas para a reivindicação política, sendo por vezes até mesmo utilizados
como instrumento de um fundamentalismo disfarçado e que no discurso dos direitos
humanos e fundamentais busca a sua legitimação, devem – e podem! – operar (e por
isso a necessidade do recurso aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, entre
outros) justamente como ‘cláusulas de barreira ao fundamentalismo’. Com efeito, num
Estado constitucional (Democrático) de Direito, que traduz a ideia de uma comunidade
constitucional e republicana inclusiva, não há como – na esteira do que leciona Gomes
Canotilho – aceitar qualquer tipo de ‘fixismo’ nem transigir com posturas arbitrárias e
reducionistas, mesmo quando fundadas (mas nesse caso só aparentemente!) na própria
dignidade e nos direitos fundamentais” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.
11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 469).
14 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 403.
15 HÖFFE, Otfried. Medizin ohne ethik? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002. p. 60.
16 RENAUD, Michel. A dignidade do ser humano como fundamentação ética dos direitos
do homem. Brotéria – Revista de Cultura, v. 148, 1999. p. 135-154.
BAEZ, Narciso Leandro Xavier; SILVA, Rogério Luiz Nery da (org.). Dignidade humana e
direitos sociais e não positivismo. Florianópolis: Qualis, 2015. p. 62.
21 MIRANDA, Jorge. Human dignity and the value unit of the fundamental rights system.
Justitia, São Paulo, v. 201, jan.-dec. 2010. p. 373.
22 “Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano jamais seja visto,
ou usado, como um meio para atingir outras finalidades, mas sempre seja considerado
como um fim em si mesmo. Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade
legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana
enquanto tal. O imperativo categórico orienta-se, então, pelo valor básico, absoluto,
universal e incondicional da dignidade humana. É esta dignidade que inspira a regra
ética maior: o respeito pelo outro” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de
dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo, cit., p. 115).
27 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. p. 18.
29 HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 77-78; BAEZ, Narciso Leandro Xavier. A morfologia dos
direitos fundamentais e os problemas metodológicos da concepção de dignidade humana
em Robert Alexy, cit., p. 65.
35 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 624.
41 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2008.
v. 3, p. 61.
47 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 33-34.
51 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994.
p. 94 ss.
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