A Valoracao Da Prova Pericial
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ISSN: 1645-0760
R E V I S T A P O R T U G U E S A
27
DEZ. 2016 • ANO XXV • N.º 27
A PA DAC
A SS O C I AÇ ÃO P O R T U G U E S A
D E AVA L I AÇ ÃO
D O DA N O CO R P O R A L
11 A valoração da prova per ic ial
LESSEPS LOURENÇO DOS REYS, “Responsabilidade civil dos médicos”, in RFML, Série
III, Vol. 5, Nº5, p. 312, citando ETCHEGOYEN, A Era dos Responsáveis, 1995, p. 133.
1
Juiz Desembargador
DOI: https://doi.org/10.14195/1647-8630_27_1
Luís Filipe Pires de Sousa 12
2
La Valoración de la Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2010, pp. 294-298.
A proposta de Nieva Fenoll é tributária e entronca, em grande parte, na jurisprudência gerada nos
Estados Unidos a partir do caso Daubert vs. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc., de 1993. Nesse processo
discutia-se se um fármaco denominado Bendectin poderia ter provocado lesões num recém-nascido.
O juiz Blackmun ditou um tratado sintético de epistemologia com o propósito de elencar os critérios
a que o juiz deve ater-se para admitir ou excluir os meios de prova científicos apresentados pelas
partes. São quatro os critérios propostos:
a) a controlabilidade ou falsificabilidade da teoria científica ou da técnica em que se fundamenta a prova;
b) a percentagem de erro conhecido ou potencial, assim como o cumprimento dos estandares corres-
pondentes à técnica empregue;
c) a publicação da teoria ou técnica em questão em revistas submetidas ao controlo de outros peritos;
d) a existência de um consenso geral da comunidade científica interessada.
A preocupação subjacente a estes critérios é a de deixar fora do âmbito probatório conhecimentos que
se apresentam como científicos mas que não correspondem efetivamente a paradigmas partilhados de
validade científica – cf. Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, 2008, pp. 283-284. Na apreciação
de Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se Disse Antes do Julgamento. Estudo Sobre a Prova
no Processo Penal Português, À Luz do Sistema Norte-Americano, Coimbra Editora, 2011, p. 372, Nota
277, segundo o Acórdão Daubert, “a ciência é entendida numa perspetiva de busca da verdade e
entendimento cósmico baseado na persuasão, primariamente, numa particular comunidade de pares.”
Na expressão de Champod e Vuille, ScientificEvidence in Europe. Admissibility, Appraisal and Equilaty
of Arms, European Committee on Crime Problems, 2010, p. 26, apudGascónAbellán, “PruebaCientífica.
Un Mapa de Retos”, in CarmenVásquez (ed.), Estándares de Prueba y Prueba Científica, Marcial Pons,
Madrid, 2013, p. 193, a sentença Daubert “insiste de maneira implícita sobre o ceticismo que o juiz
deve manter em relação ao perito, o qual deixa de ser considerado como o membro de uma elite com
autoridade e passa a ser um agente social comparável a qualquer outro, eventualmente submetido a
pressões de ordem política e económica que podem alterar o seu relatório.”
As Federal Rules of Evidence na Rule 702, sob a epígrafe “Testimony by Expert Witnesses”, acolhendo
em grande parte a doutrina Daubert, dispõem que:
“
A witness who is qualified as an expert by knowledge, skill, experience, training , or education may
testify in the form of an opinion or otherwise if:
(a) The expert´s scientific, technical, or other specialized knowledge will help the trier of fact to
understand the evidence or to determine a fact in issue;
(b) The testimony is based on sufficient facts or data;
(c) The testimony is the product of reliable principles and methods; and
(d) The expert has reliable applied the principles and methods to the facts of the case.”
Por sua vez, no Reino Unido a Law Commission, The Admissibility of Expert Evidence in Criminal Pro-
ceedings in England and Wales. A New Approach to the Determination of Evidentiary Reliability, http://
lawcommission.justice.gov.uk/docs/cp190_Expert_Evidence_Consultation.pdf, pronuncia-se assim:
“We provisionally propose a list of guidelines along the following lines for scientific (or purportedly
scientific) expert evidence:
(1) In determining whether scientific (or purportedly scientific) expert evidence is sufficiently reliable to
be admitted, the court shall consider the following factors and any other factors considered to be relevant:
(
a) whether the principles, techniques and assumptions relied on have been properly tested, and, if
so, the extent to which the results of those tests demonstrate that they are sound;
(b) the margin of error associated with the application of, and conclusions drawn from, the principles,
techniques and assumptions;
(c) whether there is a body of specialized literature relating to the field;
(d) the extent to which the principles, techniques and assumptions have been considered by other
scientists – for example in peer-reviewed publications – and, if so, the extent to which they are
regarded as sound in the scientific community;
(e) the expert witness’s relevant qualifications, experience and publications and his or her standing
in the scientific community;
(f) the scientific validity of opposing views (if any) and the relevant qualifications and experience
and professional standing in the scientific community of the scientists who hold those views; and
(g) whether there is evidence to suggest that the expert witness has failed to act in accordance with
his or her overriding duty of impartiality.”
Michele Taruffo, “La Aplicación de Estándares Científicos a las Ciencias Sociales Forenses”, in Carmen
Vásquez (ed.), Estándares de Prueba y Prueba Científica, Marcial Pons, Madrid, 2013, pp. 208-209, enfatiza
que os critérios adotados no caso Daubert foram confecionados para as ciências duras ou da explica-
ção (v.g., física, química, engenharia), não se estando a pensar propriamente nas ciências sociais ou
da compreensão (v.g., psicologia, sociologia). Nas palavras de Taruffo, «(…) há uma clara diferença
entre os paradigmas de ambos os grupos de ciências: as ciências humanas, em particular, não usam o
paradigma nomológico hempeliano, que é próprio das ciências naturais. Dado que os standards Daubert,
como qualquer outro standard aplicável às ciências duras, não podem ser aplicados a ciências com
paradigmas fundamentalmente diferentes, estamos perante o problema de estabelecer que standards de
validade científica, se é que há algum, podem ser aplicados às ciências sociais. Um importante problema
adicional é que essas ciências não formam um conjunto homogéneo: cada uma delas tem o seu próprio
paradigma (ou paradigmas). Dentro de semelhante variedade, alguns critérios de validade científica
devem definir-se simplesmente tomando em consideração as caraterísticas específicas de cada ciência.»
Entre a escassa jurisprudência nacional que refere a doutrina Daubert, veja-se o Acórdão do Tribunal
da Relação de Évora de 21.10.2010, Gomes de Sousa, 281/04.
15 A valoração da prova per ic ial
3
Consoante veremos infra, o regime de apreciação da prova pericial no processo penal contém peculia-
ridades no que tange à admissibilidade do juiz dissidir do laudo pericial.
4
Maria Martínez Urrea, “La valoración de dictámes periciales contraditórios”, in Aspetos problemáticos
en la valoración de la prueba civil, Bosch Procesal, 2008, p. 109.
5
Cfr. Carmen Vázquez, “A Modo de Presentación”, in Carmen Vásquez (ed.), Estándares de Prueba y
Prueba Científica, Marcial Pons, Madrid, 2013, p. 17.
17 A valoração da prova per ic ial
6
Cf. Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, 2008, pp. 293-295.
7
Cf. Rosário Herrera Habián, La inmediación como garantía procesal (En el proceso civil y en el proceso
penal), Editorial Comares, 2006, p. 56.
8
La Valoración de la Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2010, pp. 308.
9
A propósito da diversidade de regimes do processo civil e do processo penal sobre a valoração da prova
pericial, discorreu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 422/99 de 30.6.1999, Bravo Serra, www.
tribunalconstitucional.pt., nestes termos:
“
(…) no processo criminal, e porque não se pode olvidar que a inocência do arguido se presume até ao
trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo uma das suas garantias o próprio direito ao recurso
quanto a sentenças impositoras de sanções penais, o dever de fundamentação da sentença quanto à
matéria de facto háde impor-se com maior acuidade do que no domínio civil, sendo certo que desta
afirmação não decorrerá desde logo que as soluções consagradas no processo penal são as únicas que
se hãode considerar como conformes à Constituição ou, ao menos, como as mais conformes a ela.
Alcançado, assim, que, mesmo ponderando uma harmonia do sistema jurídico, daí não decorre que
as leis adjetivas tenham de consagrar soluções idênticas, compreende-se que exista no processo
criminal norma tal como a constante do nº 2 do artº 163º do Código de Processo Penal, e que já não
se surpreenda essa existência no Código de Processo Civil, exatamente porque nem sequer se estatui
a presunção segundo a qual é subtraído à livre apreciação do juiz que o juízo técnico, científico ou
artístico inerente à prova pericial. E, inexistindo essa presunção, torna-se claro que se não imporá,
no domínio processual civil, uma prescrição semelhante à daquela norma.”
10
Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão de 1981, pp. 209-210.
11
Sendo relator Armindo Monteiro, CJ 2004-I, pp. 197-200.
19 A valoração da prova per ic ial
12
Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal à Luz da Constituição da
República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4ª
Ed., pp. 457-458. Como exemplo da situação referida em último lugar, veja-se o Acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra de 10.5.2006, Orlando Gonçalves, CJ 2006 - III, pp. 43-47.
13
Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.5.1995, Costa Pereira, CJ 1995-II, pp. 189-190, de
25.10.1995, Amado Gomes, CJ 1995- III, pp. 211-212; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de
11.3.2009, Jorge Gonçalves, 4/05.
Estão sujeitos ao regime geral da livre apreciação da prova, a apreciação ou perceção de factos que,
muito embora veiculados por um perito, não traduzam nenhum conhecimento especializado – Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2005, Sousa Fonte, CJ 2005-III, pp. 189-190.
14
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2007, Armindo Monteiro, 07P1416, de 1.10.2008, Raul
Borges, 08P2035, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.1.2010, Jorge Gonçalves, 45/06.
15
Se o juízo de imputabilidade diminuída, formulado pelo perito, foi emitido como uma probabilidade,
e não como um juízo técnico-científico é legítimo ao tribunal, com base em investigação definitiva
dos factos, apreciados livremente, nos termos do artigo 127º do CPP, concluir pela existência de uma
total inimputabilidade – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.1999, Armando Leandro, CJ
1999- III, pp. 196-197.
16
Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.7.96, Flores Ribeiro, CJ 1996-II. Pp. 214-215.
17
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.9.2011, Carlos Benido, 1154/07, www.colectanea-
dejurisprudencia.com.
18
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.3.2009, Fernando Fróis, 09P0392.
A propósito da articulação do relatório pericial ordenado no processo com os conhecimentos profis-
sionais de testemunhas que são médicos, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5.2.2013,
Gomes de Sousa, 529/08, raciocinou-se assim:
“
É certo que se suscita, com os médicos inquiridos como testemunhas e que emitem um “juízo” médico
sobre a matéria dos autos, um problema de cariz processual que outras legislações resolvem através
da criação de uma figura híbrida de “testemunha” e “perito”, o “temoin-expert”.
Confusão que também ocorre quando se pretenda fazer – erradamente - a analogia com os sistemas
anglo-saxónicos, que em regra apelidam o “perito” como “expert-witness”, o que se compreende pela
21 A valoração da prova per ic ial
generalizada inexistência – por ora – de peritagem oficial ou, ao menos, pela generalizada e sistemática
aceitação de opiniões periciais de testemunhas que o tribunal aceite com a qualidade de “expert-witness”
e no exercício de um contraditório amplo e privatístico no âmbito específico da perícia.
O sistema processual penal português não consagra tal figura híbrida, ou um sistema de perícias con-
traditórias, acolhendo um sistema oficial de peritagens, designadamente as de cariz médico-forense.
Mas não proíbe a testemunha de “emitir opinião” sobre matéria técnica ou científica que esteja no
âmbito dos seus conhecimentos, desde que assente num conhecimento perfeito e não parcial dos factos.
O peso relativo a atribuir a tais “opiniões”, aqui no sentido positivo de opinião sustentada numa
correta perceção dos factos aceites pelo tribunal como provados, racionalmente fundada, de acordo
com os princípios técnicos ou científicos a atender e passível de revisão face a “provas contrárias ou
raciocínios mais bem fundamentados”, está necessariamente, por imposição legal, inserido no princípio
da livre apreciação probatória e dependente - na sua aceitação substancial - da devida fundamentação
do tribunal recorrido.
Como já afirmou o relator, é «dever do tribunal, como do filósofo, “defender o raciocínio dialógico
entre as opiniões, a necessidade de justificar o opinado não a partir do inefável, do irredutível ou do
inverificável, mas sim através do publicamente acessível, do inteligível”» (Fernando Savater).
E, para esse desiderato, ouvir várias opiniões válidas e consistentes racional e científicamente, apre-
senta uma coloração positiva.
Mas enfrenta um obstáculo inultrapassável – com consagração legal – a prevalência formal e subs-
tancial da opinião do perito, que apenas pode ser afastada pelo tribunal nos termos do disposto no
artigo 163º do Código de Processo Penal, no que muitos consideram uma limitação ao princípio da
livre apreciação e que nós vemos como uma regra qualificada da livre apreciação probatória (v. g. o
nº 2 do artigo 163º do Código de Processo Penal).
Ou seja, a opinião emitida por um médico que seja testemunha no processo que incida sobre matéria
médica objeto do processo, não obstante qualificada pelo seu conhecimento profissional, será sempre
uma opinião não qualificada, face à opinião pericial.
Daqui resulta que, havendo discrepância entre a opinião pericial e a opinião de um qualquer médico
que seja testemunha, prevalecerá sempre a opinião pericial, a não ser que o tribunal fundamente,
com a razão e os conhecimentos técnicos e científicos implicados no caso, a divergência da opinião
pericial, se assumir como sua a “opinião” não (processualmente) qualificada de uma testemunha ou
se optar por uma visão científica ou técnica própria.
Isto é, o artigo 163º, nº 2 do Código de Processo Penal é aplicável não só à convicção livre e racional
do juiz enquanto processo interior mas racional de convicção e posterior motivação, também à apre-
ciação probatória feita pelo tribunal relativamente a vários e diferentes meios probatórios, com uma
obrigação legal e científica de fundamentar devidamente a não-aceitação da opinião pericial e o dar
prevalência à “opinião” divergente constante de qualquer outro meio de prova.”
19
Cf. Artigo 131º, nº3, do CPP, que prevê a realização de perícia sobre a personalidade de menor de
18 anos vítima de crime sexual. No sentido aludido, cf. Maria do Carmo Silva Dias, “Particularidades
da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, in Revista do CEJ, Nº 2, 2º
Semestre 2005, p. 221.
20
“Prueba Científica. Un Mapa de Retos”, in Carmen Vásquez (ed.), Estándares de Prueba y Prueba Cien-
tífica, Marcial Pons, Madrid, 2013, pp. 181-187.
23 A valoração da prova per ic ial
21
Em termos estatísticos, “likelihood” não é equivalente a probabilidade (“probability”). A primeira
designação reporta-se à possibilidade de os dados ocorrerem, no caso de uma hipótese ser verdadeira,
enquanto a segunda se refere à possiblidade de que a hipótese seja verdadeira, atentos os dados
observados – cfr. Kevin Clermont, “Standards of Proof Revisited”, http://scholarship.law.cornell.edu/
facpub/13/, p. 479, Nota 19.
22
Gascón Abellán, “Prueba Científica. Un Mapa de Retos”, in Carmen Vásquez (ed.), Estándares de Prueba
y Prueba Científica, Marcial Pons, Madrid, 2013, p. 187.
23
Sobre o standard de prova, cf., desenvolvidamente, o nosso Prova por Presunção no Processo Civil,
Almedina, 2013, 2ª ed., pp. 149-157.