Breve Historia Da Teoria Da Conservação e Do Restauro

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Breve histria da teoria da conservao e do


restauro

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Eduarda Luso Paulo B. Lourenco


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Breve histria da teoria da conservao e do restauro

Eduarda Luso1

Escola Superior de Tecnologia e Gesto, Instituto Politcnico de Bragana, Portugal

Paulo B. Loureno2

Universidade do Minho, Guimares, Portugal

Manuela Almeida3

Universidade do Minho, Guimares, Portugal

RESUMO

Os monumentos sofrem as consequncias das condies atmosfricas e dos diferentes


usos sociais que geraes lhe atribuem ao longo dos tempos. Ainda que restaurar signifique
repor em bom estado algo que perdeu as suas qualidades originais, a aplicao prtica deste
conceito no simples. Tal como houve ao longo dos sculos uma evoluo e alteraes nos
estilos usados na arquitectura, com aplicao de novos materiais, novas tcnicas de
construo e fundamentalmente novas correntes artsticas e arquitectnicas, o restauro
tambm sofreu mutaes, com mais intensidade a partir do sculo XIX. Da mesma forma, a
noo de patrimnio abarca hoje consensualmente tambm pequenos edifcios, espaos
envolventes, construes rurais e centros urbanos histricos de cidades e vilas.

1 - OS PRIMEIROS RESTAUROS

O homem teve, desde sempre, sentido de fazer perdurar no tempo todos os objectos
que fossem teis s suas necessidades, reparando aquilo que tivesse alguma funo especfica.
O prioritrio no era preservar testemunhos histricos, mas sim reparar algo que deixou de
exercer as funes para que foi concebido, se necessrio alterando-o. Originalmente, o
edifcio no compreendido como um bem que possui valor histrico ou cultural, mas sim
como um bem til ou que representa algo nessa poca. S neste caso far sentido fazer o
edifcio perdurar no tempo.
A actividade de restauro tem origem nos sculos XVIII e XIX. At esta data, os monumentos
sofreram diversas aces de conservao, alterao de uso e renovao, que no devem ser
designadas de restauro, tal como hoje entendido. Assim como a histria da arquitectura se
modificou ao longo dos anos, alterando tcnicas de construo e fundamentalmente os estilos

1
Assistente do 2 Trinio do Departamento de Construes Civis e Planeamento
2
Professor Associado do Departamento de Engenharia Civil
3
Professora Auxiliar do Departamento de Engenharia Civil

Nmero 20, 2004 Engenharia Civil UM 31


de concepo e decorao, tambm edifcios j existentes conheceram novas fachadas e
ornamentaes. Os novos conhecimentos de arquitectura, os novos instrumentos e as novas
tcnicas so aplicados sobre o existente, como se se tratasse de um enxerto, resultando
edifcios alterados sem distino entre o presente e o passado.
Existem muitos exemplos de monumentos que ao longo dos anos foram alvo de
modificaes nas fachadas e tambm no seu interior por caprichos de eras mais modernas.
Um deles o mosteiro de Alcobaa que em pleno Sculo XII constitua o nico exemplo
precoce da arte gtica em Portugal. A fachada primitiva deve ter sido de grande simplicidade
nas linhas e na decorao, segundo a norma cisterciense. Foi reedificada no sculo XVIII em
estilo barroco, com pormenores gticos, manuelinos e de outras inspiraes, tais como nichos,
esttuas e a varanda sobreposta, (ver Figura 1). A S de Lisboa, a S do Porto, assim como a
de Viseu e at a mais antiga de todas, a de Braga, entre outras, foram substancialmente
alteradas em pocas posteriores, apresentando poucos vestgios das partes primitivas.
de destacar que os monumentos mais grandiosos demoravam anos e por vezes
sculos para serem construdos, passando por vrias fases de construo e vrias alteraes de
projecto conforme os gostos e os ideais dos arquitectos da poca e dos caprichos dos reis. O
caso do Mosteiro da Batalha, a construo mais monumental e representativa da arte gtica
em Portugal, foi mandado construir por D. Joo I (1385-1433) e os trabalhos prolongaram-se
at ao reinado de D. Joo III (1521-1557), onde j se construa no estilo manuelino. Em pouco
espao de tempo o mosteiro sofreu vrias calamidades. Foi afectado por terramotos, o que
provocou fendas nas abbadas e muros, e consequentes infiltraes de gua. Em 1810 os
invasores franceses roubaram, partiram e incendiaram, em 1811 um incndio causou vastos
danos, entre eles a destruio do claustro mandado fazer por D. Joo III e em 1834 a extino
das ordens religiosas determinou o abandono [3]. Salvaram-no, em 1840, os cuidados do Rei
consorte D. Fernando II e do Engenheiro Mouzinho de Albuquerque. Sero discutveis
algumas obras ento efectuadas, sem a necessria fidelidade s originais, mas, certo ,
evitaram a perda total. Os vitrais ainda subsistentes e outras intervenes de restauro foram
efectuadas pela Direco Geral de Monumentos e Edifcios Nacionais, j no nosso tempo.
Outros factos histricos levaram a que se reutilizassem edifcios degradados, em
runas ou mesmo em bom estado de conservao, para outros fins que no os originais, devido
a alteraes polticas ou religiosas. Uma das alteraes mais marcantes em Portugal a
difuso do Cristianismo, que requereu a adaptao de edifcios s exigncias da nova religio.
O caso da antiga Mesquita de Mrtola hoje Igreja Matriz disso um exemplo. Pensa-se que
seja uma obra do sculo XII, erigida pelos rabes durante os anos que permaneceram na
Pennsula Ibrica. Consta-se que o edifcio mourisco estava muito danificado aps a conquista
crist, e foi alvo de vrios trabalhos de reparao e adaptao. Pensa-se que ser a nica
mesquita existente em Portugal que foi totalmente remodelada para o culto cristo. O espao e
o desenho da planta foi respeitado, mas muitos sinais da arquitectura muulmana foram
tapados, (ver Figura 2). Ainda no h muito tempo foi descoberto um mihrb que estava
entaipado numa das paredes [10]. Muitas outras obras se seguiram em vrias pocas,
nomeadamente remodelaes exteriores no reinado de D. Manuel I, que cobriram elementos
decorativos e arquitectnicos do edifcio primitivo.
Outros edifcios no tiveram essa sorte e foram utilizados como pedreira para a
edificao de novas obras, uma vez que eram considerados sem utilidade e smbolos do
passado. Alguns desses edifcios seriam restaurados mais tarde, no sculo XIX, mas outros
edifcios perderam-se totalmente, no s em Portugal como tambm no resto da Europa.

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Figura 1 Perspectiva do Mosteiro de Alcobaa Figura 2 O Interior da Igreja Matriz de Mrtola
pelo final do sculo XVIII [8]

O Renascimento, movimento cultural e artstico que surgiu na Itlia no sculo XIV e


XV, e que se caracterizou por uma imitao da antiguidade greco-romana, ser a primeira
etapa da histria ocidental que tem conscincia do passado, e que adopta algumas medidas
para tentar recuperar ou conservar amostras daquele tempo. O gosto pela histria e pela
literatura antiga fomentaram uma cultura inspirada nos ideais do mundo clssico, que viria a
favorecer a alterao do gosto em relao s formas gticas. Analisaram-se e estudaram-se os
escritos, desenhos e relevos, assim como as runas romanas, o que conferiu aos artistas do
sculo XV o conhecimento do perfeito equilbrio das formas e dos volumes, permitindo a
criao de obras originais, representativas daquela poca.
A atitude perante os monumentos antigos no de proteco da histria. Alguns so
restaurados maneira do antigo, compondo o que resta e acrescentando partes modernas.
Tentaram incorporar o novo no antigo de forma harmoniosa e sem destoar [5]. O esprito de
conservao dos edifcios como testemunhos culturais e histricos no vinga e os
monumentos so considerados mitos do passado. Alguns so espoliados para construo de
palcios ou para formar parte das primeiras coleces de homens cultos [5].
At meados do sculo XVIII, o interesse cientfico pelos monumentos antigos
desenvolve-se lentamente. Com o movimento neoclssico adoptam-se de novo as formas
clssicas do Renascimento. Surge a curiosidade e o interesse pelas descobertas arqueolgicas
de Pompeia, iniciam-se as primeiras escavaes na Grcia, d-se importncia escultura e
arte antiga e surgem os primeiros museus como sinal da importncia da histria. Distinguem-
se os diferentes estilos utilizados em cada poca, com influncia de Johann Winckelmann4, e
classificam-se os monumentos dentro de cronologias definidas. Adquire-se conscincia de
histria, dotando-a de valores definidos e concretos, e que necessrio preservar.
Mas foi um facto histrico em Frana, do qual resultou a destruio de numerosos
monumentos e documentos do passado, que apressou a definio de critrios de interveno e
de uma linha de actuao. A Revoluo Francesa, em 1789, marca tambm o incio da Idade
Contempornea. Com a revoluo vem o vandalismo, a degradao e o desaparecimento de
alguns monumentos, que tornam urgente promover o interesse pblico pelos monumentos e a
interveno do Estado na sua salvaguarda. Em 1794, a Conveno Nacional Francesa,
promulgou um decreto que declarava: - Os cidados so os depositrios de um bem, do qual
a Comunidade tem direito a pedir contas. Os brbaros e os escravos detestam a cincia e no
respeitam as obras de arte. Os homens livres as amam e conservam [5].
ento necessrio proteger os monumentos e iniciar a discusso sobre a metodologia
de conservao e restauro. O Estado encarrega personalidades como Vitet e Merime de

4
(1717-1768) Historiador de arte alemo, trabalhou em Roma a partir de 1755. Os seus estudos sobre a Grcia e
a Roma antigas foram uma inspirao para o movimento do neoclassicismo, estabelecendo as bases da moderna
histria da arte e influenciaram a educao no seu pas.

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debater e desenvolver os critrios a aplicar, assumindo Vitet o novo cargo de Inspector dos
Monumentos Histricos. Estes desenvolvimentos so seguidos pelo resto da Europa,
resultando em diferente teorias e prticas consoante o pensamento dos responsveis nacionais,
ainda que com influncias recprocas e com o objectivo comum de proteco do monumento.
Em Itlia surge uma tendncia que se viria a denominar de restauro arqueolgico,
com influncia dos escritos do Papa Leo XIII acerca da Baslica de So Pedro em Roma,
alvo de divergncias sobre a sua reconstruo na poca: - nenhuma inovao se deve
introduzir nem nas formas nem nas propores arquitectnicas, nem nas decoraes do
edifcio resultante, se no for para excluir aqueles elementos que num tempo posterior sua
construo foram introduzidas por capricho da poca seguinte [5]. Aos edifcios histricos
eram retirados todos os acrescentos de pocas anteriores que no fizessem parte do projecto
original do monumento, at ser encontrado o aspecto primitivo. Os monumentos eram
estudados e analisados, de modo a perceber como seriam na poca da sua construo, e obter
a recomposio do edifcio mediante, se possvel, utilizao de partes originais (anastilosis),
tornando-o numa unidade completa e perfeita. Por este motivo destruram-se muitas partes da
histria dos edifcios inclusive as suas envolventes, de modo a que estes fossem admirados
como smbolos histricos intocveis. As tendncias romnticas que se viviam na poca
tiveram, com certeza, influncia no modo de agir sobre os monumentos. Tambm em
Portugal, com as ideias romnticas de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, se procederam
a intervenes com linhas puristas, tal como a envolvente do Palcio da Vila em Sintra [1].
Como exemplos referem-se ainda o Anfiteatro de Arles, em Frana, um exemplo de
arquitectura romana construdo em I d.C., serviu de refgio populao arliense que
construiu as casas no seu interior, elevou duas torres de entrada e transformou o monumento
numa cidade fortificada, (ver Figura 3). O restauro ocorrido entre 1809 e 1830 restituiu a
Arles o seu exemplo de arquitectura romana, (ver Figura 4).

Figura 3 O Anfiteatro de Arles em 1686 [11] Figura 4 Anfiteatro de Arles actualmente

Outras obras importantes so realizadas sob orientao do restauro arqueolgico, tais


como o Arco de Constantino e o Coliseu, em Roma. O restauro do Arco, monumento do
sculo IV d.C., ficou a cargo de Raffael Stern e Giuseppe Valadier, que realizaram escavaes
arqueolgicas na envolvente e recuperaram peas originais que foram identificadas, estudadas
e reconstitudas na sua forma inicial. No Coliseu de Roma, que tinha servido de pedreira
durante sculos, consolidaram os anis exteriores, cujas estruturas de sustentao se
encontravam gravemente arruinadas por causa dos ltimos terramotos sucedidos na altura. Em
ambos foi consolidada a estrutura, de modo a evitar a sua runa, mas as suas formas foram
respeitadas, inclusive foram deixadas visveis as fendas e aberturas, dando o aspecto instvel
ao monumento [5]. Estes restauros podem-se considerar um restauro moderno, com respeito
pelo valor histrico e esttico, colocando em primeiro lugar o monumento arqueolgico, sem
lhe atribuir nenhuma utilizao funcional e intervindo somente por razes culturais.

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Em Frana, o j referido primeiro Inspector Geral dos Monumentos Ludovic Vitet
(1802-1873) literrio e crtico de arte, desenvolve uma intensa actividade de tutela dos
monumentos. Defende que o arquitecto para alm de ter conhecimentos de histria da arte,
dever proceder ao estudo arqueolgico do edifcio, para que a partir das suas runas possa
reconstitu-lo de modo a que coincida com o seu estado primitivo. Segue-lhe Prosper
Merime (1803-1870), um jovem literrio e historiador, que se torna no segundo Inspector
Geral dos Monumentos. Este aprofunda os postulados de Vitet e acrescenta que quando o
traado do monumento tenha desaparecido, no sendo possvel conhecer o seu estado original,
se copiem traos de outros monumentos nas proximidades ou pertencentes a outra poca.
Em qualquer caso prescrevia-se o estudo arqueolgico para determinar a data de
construo e, com base nesta informao, preservar o original ou reconstru-lo, mesmo sem
usar os materiais com que eram constitudos [5]. Apesar do restauro do monumento segundo
o seu estilo caracterstico, imposto pelos inspectores gerais franceses, que inicia a poca do
restauro estilstico, esta teoria de restauro est ligada ao nome de Eugne Viollet-le-Duc.

2 - OS RESTAUROS ESTILSTICOS DE VIOLLET-LE-DUC

O parisiense Viollet-de-Luc nasceu em 1814 e faleceu em 1879 em Lausanne. Foi uma


personalidade polmica, arquitecto, desenhador, escritor, crtico e historiador de arte
arquitectnica. Foi ainda um excelente restaurador de edifcios da Idade Mdia, que
influenciou as ideias ocidentais acerca do restauro no sculo XIX. Foi um grande admirador
do gtico, estilo que ele considerava o modo mais racional de construir, que viveu num
ambiente culto e teve possibilidade de se integrar na vida cultural francesa, convivendo com
intelectuais, escritores e artistas, e tendo acompanhado desde a sua infncia Vitet e Merime.
As suas ideias vinham em sequncia dos desenvolvimentos anteriores. Na prtica
defendia a destruio de todos os acrescentos de pocas anteriores de modo a restituir
cientificamente o original. Era necessrio conduzir o monumento ao estado mais puro, mesmo
que ele nunca tenha existido, o que implicava que o arquitecto restaurador tivesse que se
colocar na pele do projectista da obra original e perceber quais seriam as suas ideias para
continuar a obra, mediante documentos e desenhos, ou na sua falta, atravs de regras de estilo
ou edifcios circundantes, sem acrescentar contributos pessoais. O arquitecto deveria optar
pela reconstruo do monumento melhorando os defeitos e procurando um ideal do seu estilo.
No entanto, Viollet, ao longo da sua carreira, no aplicou religiosamente as suas ideias
e realizou restauros bastante fantasiosos e com invenes e decoraes realmente criativas.
Mas ao longo da sua vida conduziu inmeros trabalhos onde manifestou o seu talento
excepcional, excelentes conhecimentos tcnicos e uma capacidade invulgar de decifrar a
arqueologia [5]. Esses conhecimentos abrangiam tambm a parte estrutural do edifcio,
dando importncia racionalidade e funcionalidade construtivas. Sobre este assunto, o
mesmo Viollet afirmou: o arquitecto deve proceder como o cirurgio hbil e experimentado
que no toca um rgo sem ter tomado conscincia da funo e sem ter previsto as
consequncias imediatas e futuras da operao. Antes que ter azar melhor no fazer nada.
Melhor deixar morrer que mat-lo.
As suas ideias e orientaes foram seguidas durante todo o sculo XIX, prolongando-
se at durante o sculo XX, por toda a Europa. Em Inglaterra foi seguido por George Scott,
um dos mais representativos arquitectos ingleses, que restaurou diversos edifcios como a
Estao de S. Pancras em Londres, que ainda hoje subsiste a dvida, se uma igreja ou um
castelo.
Viollet-le-Duc, ficou conhecido tambm pelas suas obras escritas, onde se destaca o
seu Dicionrio da Arquitectura Francesa, no qual trabalha a partir de 1854 at 1871,

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expondo as suas ideias e conceitos sobre restauro. Nesta obra escreveu: - restaurar um
edifcio no conserv-lo, repar-lo ou refaz-lo, restabelec-lo num estado de plenitude
que no poder ter existido em nenhum momento.
Em 1840, Mrime regista o grave estado em que se encontra a Igreja de Vzelay e
confiou o restauro a Viollet onde intervm profundamente em 1843. Refora as fundaes dos
pilares da nave central, acrescenta dois contrafortes, reconstri a abbada e altera a fachada.
Faz o escoramento das partes que ameaam ruir e restitui a posio inicial da janela gtica
que se encontrava inclinada cerca de 50cm. No concorda com o completamento da torre
norte nem a reconstruo do pinculo e opta pela forma romnica primitiva, recuperando o
estilo da igreja e a sua coerncia estilstica [9].
A igreja de Notre-Dme em Paris, depois de ser alvo de destruies na poca da
Revoluo Francesa, foi entregue a Lassus5 e Viollet que ficaram encarregues de a restaurar, o
que acontece entre 1845 e 1864. Estes dois intervenientes tinham opinies divergentes acerca
do restauro da catedral. Viollet pretende levar a catedral a um estado ideal que nunca chegara
a ter, defendendo a reconstruo da fachada com a restituio das duas torres e do pinculo
central com 96 metros de altura, uma vez que o pinculo uma marca fundamental no
conjunto da construo. Lassus, que no incio era favorvel a este projecto, ope-se a esta
pretenso. Aps a morte de Lassus em 1857, Viollet, convicto que no se pode deixar
incompleta uma pgina to admirvel construir os pinculos e colocar um conjunto de
esttuas e baixos relevos sobre a fachada gtica [9].
A obra mais emblemtica de Viollet-le-Duc dever ser o restauro do Castelo de
Pierrefonds, onde se assiste a uma notvel evidncia dos aspectos criativos. O Castelo foi
mandado construir em 1396 pelo Duque de Orlees, irmo do ento Rei Carlos VI, como
fortificao militar. Tem a forma de um quadriltero irregular com oito torrees, cada um
sustentando um nicho com uma esttua de um bravo histrico. Depois de ser palco de vrias
guerras, a 16 de Maio de 1617, o Rei Lus XIII decide desmantel-lo pelo que algumas zonas
do castelo ficam completamente em runas e os telhados so destrudos, (ver Figura 5). O
castelo est representado em desenhos e pinturas da poca, ficando conhecido como runas
pitorescas e ponto de interesse nas visitas romnticas aos bosques de Valois. Em 1848
declarado monumento nacional, noo que apareceu em sequncia da Revoluo Francesa.
Em 1857 Napoleo III decide restaurar o Castelo de Pierrefonds e Viollet-le-Duc
encarregue dessa tarefa. O arquitecto francs trabalha no projecto intensa e cientificamente.
Faz o levantamento das runas e atravs da informao obtida consegue reconstruir a planta
do edifcio original, assim como as oito esttuas em cada uma das torres. Em 1863, Napoleo
pretende que o castelo seja habitvel e Viollet-le-Duc teve que acondicionar o edifcio s
novas exigncias, modificando o interior, projectando salas novas com influncias romnticas
e aumentando um andar a dois torrees da entrada em estilo medieval. Viollet morre em 1879
e o seu genro, arquitecto Ouradou, sucede-lhe nos trabalhos que terminam em 1885. Este
castelo um exemplo da inteno de Viollet em devolver o estado completo, ideal e absoluto
ao edifcio, com a introduo de inmeras alteraes em relao ao original, (ver Figura 6).

3 - AS CRTICAS S TEORIAS DE RESTAURO DE VIOLLET-LE-DUC

No mesmo perodo de Viollet-le-Duc, quase em simultneo, surgem outras tendncias


em Inglaterra, mais fatalistas e com ideias opostas, protagonizadas por John Ruskin e William
Morris.
5
(1807-1857), Arquitecto mais moderado que Viollet trabalhou com ele em algumas obras de restauro, como
Notre-Dme e S.Chapelle, donde inventam o pinculo central, vitrais e interiormente criam um cromatismo
excessivo.

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Figura 5 Castelo de Pirrefonds antes do restauro Figura 6 Castelo de Pierrefonds actualmente

Em Inglaterra vivia-se o perodo neogtico, caracterizado pelo avivar das formas


gticas, que teve maiores repercusses neste Pas que no resto da Europa. Os seus seguidores
consideravam o gtico um estilo puro e rigoroso, visto mais como uma religio do que um
estilo arquitectnico. Pensamento seguido por Augustus Pugin que afirmava: o nico estilo
em que se podia projectar os edifcios religiosos era o gtico. Pugin contra modernidades,
inclusive em intervenes de restauro, onde no aceita acrescentos modernos. Levou a cabo
obras onde lhes acrescenta detalhes neogticos, como exemplo o Parlamento em Londres.
Este perodo marcado pela publicao dos textos de John Ruskin, anteriores ao
Dicionrio de Viollet, mas que manifestam ideias opostas s do arquitecto francs. Ruskin
nasceu em 1819 e faleceu em 1900 muito transtornado psicologicamente. Foi escritor, crtico
de arte e socilogo e possua paixo pelo desenho e pela msica. Para Ruskin o trabalho dos
construtores e artificies era um valor a respeitar. Aos acrescentos de novas eras chamava-lhe
mentiras arquitectnicas, nomeadamente se no fossem manufacturadas. A produo
industrial era considerada uma falsidade, numa poca em que se vive um perodo de grande
desenvolvimento industrial e a fabricao manual substituda pela maquinaria. A
arquitectura seria tanto mais nobre quanto mais evitasse todos estes procedimentos falsos
[7]. Ruskin impulsiona os movimentos literrios desenvolvidos em Inglaterra nos meados do
sculo XIX que consideravam que as obras do passado se deveriam manter intactas. Mais
tarde, afirmar que o restauro pode ser uma necessidade, mas s estruturalmente e sem
preocupao nos meios usados, pois mais vale uma muleta, do que um membro perdido [5].
Outros seguidores de Ruskin, principalmente Morris, espalharam as suas ideias pelo
resto da Europa, em conferncias e debates. Morris, poltico e crtico de arte, nasceu em 1834
e estudou teologia na Universidade de Oxford. Iniciou o movimento Arts and Crafts, apoiado
inicialmente por Pugin e Ruskin que pretendia conservar as caractersticas das actividades
artesanais e da arquitectura tradicional, salientando a importncia dos trabalhos manuais e
opondo-se produo em srie da industrializao. A 2 de Maro de 1877, em Londres,
Morris fundou a Sociedade de Proteco de Edifcios Antigos, onde reuniu literrios, artistas,
arquitectos, homens de cultura e da igreja. A sociedade apoiava as ideias de Ruskin a respeito
da conservao dos monumentos, defendendo a sua constante manuteno para evitar um
futuro restauro. Os seus membros denunciaram as intervenes feitas na Europa em alguns
monumentos e opuseram-se realizao de restauros que se pretendiam efectuar na poca.
Gerou-se desta forma, em Inglaterra, que iria ficar conhecido por Movimento Anti-Restauro.

4 - AS TEORIAS DE RESTAURO ITALIANAS

No final do sculo XIX e incio do sculo XX, surge uma gerao de arquitectos
preocupados com o conceito de restauro e em defesa da conservao e reparao, de modo a

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preservar os valores histricos e artsticos do monumento, baseados nos princpios
estabelecidos pelo arquitecto italiano Camillo Boito. Como reaco aos conceitos de restauro
de Viollet-le-Duc, e s ideias passivas de Ruskin e Morris, Boito e os seus seguidores
defendem intervenes de nvel intermdio, que viro a servir de base s teorias actuais.
Camillo Boito nasceu em Roma no ano de 1836, e desde cedo ficou a par da cultura
europeia e das teorias francesas e inglesas que se desenrolavam na poca. Estudou msica e
literatura, com o seu irmo Arrigo Boito, e frequentou o curso de Belas Artes em Veneza.
Mais tarde foi professor de Arquitectura, onde se empenhou na renovao do estudo da
arquitectura, da arte do desenho e do restauro. Aprofunda os seus conhecimentos com viagens
dentro de Itlia e Europa, com o que se torna admirador das obras de Viollet-le-Duc.
Boito ops-se s integraes de modo a acabar a obra inacabada, propondo, pelo
contrrio, respeitar todas as partes do monumento. Os acrescentos de pocas posteriores
testemunham a histria do monumento. Assim, o valor histrico que possuem o mximo
valor a preservar e as intervenes de restauro s devem ser executadas quando necessrio.
Boito defende a manuteno do edifcio ao longo do tempo de modo a evitar-se o restauro,
com acrescentos e renovaes semelhana de Ruskin, mas sem deix-lo cair em runas
passivamente. Quando necessrio intervir dever ser bem diferenciada a obra antiga e a
moderna, afirmando-se contra os restauros estilsticos que falsificavam os monumentos.
Esta nova perspectiva de interpretao do restauro resumida em princpios de
actuao, que foram apresentados no III Congresso de Arquitectos e Engenheiros Civis em
Roma, no ano de 1883, e que so o resultado de toda a experincia de Boito. Inicialmente, o
Ministrio da Instruo Pblica de Itlia, e depois gradualmente toda a Europa, assumiu os
seus postulados. O governo italiano estabeleceu a lei para a conservao dos monumentos e
dos objectos de antiguidade e arte, seguindo as normas e os conselhos estabelecidos por
Boito. Como aspectos mais relevantes, salientam-se os seguintes: (a) devero limitar-se as
intervenes ao mnimo possvel, mas caso se executem tm de ser bem identificadas;
(b) dever ser visvel a diferena entre as partes antigas e as novas; (c) dever ser visvel a
diferena entre os materiais modernos e os originais aplicados nas diversas obras; (d) as partes
que foram eliminadas, devero ser expostas num lugar prximo ao monumento restaurado; (e)
dever ser feito o registo da interveno acompanhada de fotografias das diversas fases dos
trabalhos, colocadas no prprio monumento ou num lugar pblico prximo; (f) deve-se
assinalar ou gravar a data de execuo das intervenes no edifcio numa epgrafe descritiva
da actuao.
Estes princpios serviram de base s teorias mais modernas que tm sido reformuladas,
adaptadas e melhoradas pelos seus seguidores e alunos. Em Espanha seguiu-lhe o exemplo
Leopoldo Torres, que interveio com alguma polmica no Alhambra em Granada, onde
recuperou claustros e decoraes perdidas, e eliminou alguns acrescentos anteriores. Em
1923, Torres iniciou a reconstruo do Palcio de Carlos V, abandonado desde 1568.
Em Frana segue-lhe Paul Lon e em Itlia os conhecidos Luca Beltrami e Gustavo
Giovannoni. Beltrami, nasceu em Milo em 1845, e afirmava-se arquitecto, restaurador,
histrico e crtico de arte. Sendo aluno de Boito, ps em prtica as suas teorias com alguns
ajustes j que, ao contrrio dele, era um arquitecto praticante. Acrescentou que a reconstruo
deve ser baseada em desenhos, plantas e historiografia, de modo a se proceder ao restauro o
mais verdadeiro possvel sem as inovaes e analogias que o restauro estilstico adoptava.
Embora este mtodo seja baseado em conceitos rigorosos e srios, nem sempre foi
bem sucedido, talvez ainda por falta de experincia na interpretao dos dados histricos ou
por insuficincia desses mesmos dados. Posteriormente Gustavo Giovannoni marcou o
restauro da primeira metade do sculo XX, baseado nos postulados de Boito e conhecido por
diversos autores como Restauro Cientfico. Arquitecto, engenheiro civil, histrico, urbanista e
crtico de arquitectura, Giovannoni nasceu em 1873 em Roma e a sua vida intensa foi

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preenchida a leccionar a cadeira de Arquitectura Geral na Faculdade de Engenharia de
Roma, a escrever diversas publicaes sobre arquitectura italiana e tambm sobre restauro.
Foi considerado um dos mais importantes intervenientes da Conferncia de Atenas de 1931,
da qual surgiu o primeiro documento internacional publicado no sentido de considerar
universais certas regras de proteco e salvaguarda de monumentos: a Carta de Atenas.
Giovannoni imprime uma importncia especial ao urbanismo, que considera um
complemento social e por isso o transmite incansavelmente aos seus alunos. Embora se
limitasse envolvente urbana do monumento, que lhe d carcter e identidade, mais tarde o
conceito de urbanismo alargado. Recuperam-se casas e ruas, com regras em relao a sobre-
elevaes, descontinuidades e mudanas de volume. Giovannoni manifesta-se contra os
acrescentos a que chama de restauro de inovao. Caso os acrescentos sejam absolutamente
necessrios, estes devero ser identificados e datados, atravs da utilizao de novos materiais
que se adaptem harmoniosamente aos originais. No entanto os complementos que se
sobrepuseram no edifcio devem ser respeitados e identificados, podendo ser removidas as
partes sem valor que com a sua remoo no afectem o edifcio.
Giovannoni tem tambm especial preocupao com as estruturas, com os materiais
utilizados na construo e com as tcnicas construtivas, devido talvez sua formao na rea
da engenharia. Defende por isso o recurso a tcnicas modernas, inclusive a utilizao de beto
armado, em intervenes de consolidao, reparao e reforo do edifcio, de modo a
aumentar a resistncia da construo.

5 - CARTAS DE RESTAURO E RECUPERAO APS A II GUERRA MUNDIAL

A histria recente est plena de ideias diversas e protagonistas diferentes em vrios


pases, e por isso percebeu-se a necessidade de estabelecer regras aceites internacionalmente,
tendo em vista solucionar os problemas complexos de salvaguarda do patrimnio artstico e
histrico. Em 1921, no Congresso Internacional de Histria e de Arte em Paris, manifesta-se
essa necessidade, assim como em Roma em 1930, mas foi em Atenas no ano de 1931, que se
realizou uma conferncia com resultados para o futuro. Nela participaram vinte pases
europeus, tendo-se discutido a tutela e o restauro dos monumentos arquitectnicos, e
elaborado um documento, a Carta de Atenas, onde se expem as ideias fundamentais:
(a) manuteno e conservao regular das obras de arte e monumentos como medida eficaz
para assegurar a durabilidade dos objectos e evitar as restituies integrais. Quando seja
inevitvel a interveno, pela degradao do monumento, aconselhvel respeitar todas as
obras histricas e artsticas do passado sem excluir estilos de qualquer poca; (b) importante
a reutilizao do edifcio, mantendo o seu uso original ou o uso funcionalmente mais
adequado, de modo a respeitar o carcter histrico e artstico, garantindo a sua continuidade
futura; (c) valorizao do aspecto envolvente do edifcio, recomendando a reflexo sobre
novas construes nas proximidades do monumento, de modo a no degradar a paisagem e o
ambiente. Alm disso, devem ser suprimidos elementos como publicidade, postes e fios
telefnicos, indstrias ruidosas e outros; (d) aceitvel utilizar os recursos da tcnica
moderna, inclusive o beto armado, usando-os de forma dissimulada, para que no alterem a
imagem e o carcter do monumento; (e) o monumento antes da interveno deve ser alvo de
estudo e anlise de toda a documentao, de modo a realizar um diagnstico correcto e
trabalhos de restauro adequados. Para esta tarefa fundamental o trabalho interdisciplinar
entre arquelogos e arquitectos restauradores, assim como a colaborao de representantes de
cincias fsicas, qumicas e naturais, de modo a analisar futuras degradaes provocadas pela
passagem do tempo e por efeito dos agentes atmosfricos; (f) preocupao especial na
educao dos povos, desde as primeiras idades, no sentido de transmitir a importncia da

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proteco de obras de arte e de limitar actos que possam degradar estes testemunhos de toda a
civilizao.
A conferncia de Atenas representou um importante ponto de referncia para a
actividade de restauro e constituiu um estmulo para outras naes seguirem o exemplo, o que
fez surgir, em muitos pases europeus, regulamentos e cartas de restauro.
Entre estes documentos apresenta especial interesse a Carta de Restauro Italiana,
transcrita por Giovannoni e aprovada no Conclio Superior pela Antiguidade e Belas Artes,
logo aps a Conferncia de Atenas e publicada no Boletim de Arte do Ministrio da
Educao Nacional no primeiro nmero de 1932. Os princpios desta carta baseiam-se na
Carta de Atenas, mas acrescenta noo de patrimnio no s as obras de arte, mas tambm
as da cincia e tecnologia. A nova carta considera importante a elaborao de desenhos,
fotografias e o estudo de todas as fases de interveno, tanto para edifcios como para
escavaes arqueolgicas. A grande mudana verificada nestes pensamentos em relao aos
anteriores a grande preocupao pelo espao envolvente e pela funcionalidade adequada a
dar a cada objecto de restauro.
Uma outra fase na histria do restauro marcada pela II Guerra Mundial que afectou a
Europa no sculo XX. A guerra deixou arrasadas muitas cidades e consequentemente grande
parte das construes existentes, algumas completamente arruinadas e outras com marcas de
destruio profundas, provocadas pelos incndios e pelos efeitos blicos. Perante a desastrosa
destruio de monumentos histricos com valor artstico e cultural, surgiu a necessidade de
inovar em relao conservao com interveno mnima dos princpios da Carta de Atenas.
Consequentemente, o sentimento pelo valor artstico do monumento destrudo supera o valor
histrico. Cesari Brandi, sendo um dos protagonistas de teorias de restauro, inclusive pela
publicao do seu livro Teoria do Restauro, preocupa-se com o problema e trabalha no
sentido de ampliar o conceito, de modo a se adaptar s novas exigncias. As suas ideias
acerca do tema, ficaram conhecidas por Restauro Crtico, onde defende que os valores
artsticos prevalecem sobre os histricos, afirmando: - A consistncia fsica da obra de arte
deve ter necessariamente prioridade porque assegura a transmisso da imagem ao futuro.
Brandi foi, em 1939, fundador e posteriormente director durante vinte anos do
Instituto de Restauro em Roma e teve como seguidores Renato Bonelli e Giovanni Carbonara.
O restauro era visto como uma obra de arte particular para cada caso, no se podendo
generalizar com regras e normas, e constitua um acto criativo e crtico. O restauro dever
restabelecer a unidade potencial da obra de arte, sempre que isto seja possvel sem cometer
uma falsificao artstica ou uma falsificao histrica, e sem apagar as marcas do percurso da
obra de arte atravs do tempo [2].
Em relao situao que se vivia na poca, era necessrio analisar se as partes
desaparecidas teriam valor de obra de arte ou no. Caso no fossem dotadas desse valor
poderia ser realizada a sua reconstruo mas se os elementos desaparecidos forem obras de
arte, h que excluir a possibilidade de que se reconstruam como cpias. O ambiente dever ser
reconstitudo com base nos dados espaciais do monumento desaparecido e no nos formais.
Assim, deveria construir-se de novo uma Torre na Praa de S. Marcos de Veneza, mas no a
torre derrubada, e igualmente deveria levantar-se uma ponte em Santa Trinit, mas no a
ponte de Ammannti [2]. Estas duas obras comentadas por Cesari Brandi, constituem dois
exemplos de reconstrues entre muitas realizadas na Europa, devido s destruies
provocadas pela guerra ou acidentais.
De facto, a Torre da Praa de S. Marcos em Veneza, desmoronou-se totalmente, a 14
de Julho de 1902, resultando num monte de destroos irrecuperveis e afectando parte do
edifcio anexo. Um dos smbolos de Veneza, projectado no sculo IX e erguido entre os
sculos XII e XVI, tinha desaparecido. Vrias opinies surgem a partir desta ocorrncia, umas
a favor da reconstruo comera dovera, outras a apoiar a reconstruo mantendo a silhueta

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e o volume mas no uma cpia. Giacomo Boni tinha iniciado um processo de recolha e
identificao dos pedaos de material que poderiam ser reutilizados ou merecessem ser
conservados. Em 1903, Luca Beltrami prosseguiu esse trabalho e investiga tambm toda a
documentao relativa ao campanrio at Junho desse ano, altura em que se demite
atormentado pelas polmicas. substitudo por Gaetano Moretti que completa os estudos [9].
A construo da torre inicia-se nesse mesmo ano, tendo-se utilizado todos os instrumentos
modernos, cientficos e grficos, e materiais como o beto armado revestido com materiais
tradicionais. A construo esteticamente igual original terminou em Maro de 1912.
Os exemplos de restauro resultantes do ps-guerra so mais comuns. Em Varsvia
perante o cenrio desolador, a reconstruo da cidade aps a invaso nazi inicia-se com o fim
da guerra. O significado da cidade, dos seus bairros e dos seus monumentos no podia ser
abalado. Os fragmentos das casas de habitao da Praa do Castelo que restaram foram
consolidados com injeces. Todas as casas foram reconstrudas tal como eram antes com
materiais modernos, deixando at visveis as marcas das balas que perfuraram as paredes e
aproveitando os restos de construo que foi possvel recuperar, (ver Figura 7 e Figura 8).

Figura 7 - Praa do Castelo aps a guerra, Varsvia Figura 8 - Praa do Castelo aps a reconstruo

Mas nem sempre a soluo encontrada envolveu a reconstruo do monumento


perdido. Em Berlim, a Igreja da Memria constitui uma combinao entre a runa de um
edifcio do passado com construes modernas. A igreja foi construda em 1895 a mando de
Guilherme II, em honra a seu av, Guilherme I, para testemunhar a unio entre o trono e a
igreja da Prssia. Em 1943 foi destruda em consequncia da guerra e em 1960 foi decidido
preservar a torre ocidental que restou. A runa foi integrada no ambiente da nova igreja, um
edifcio octogonal moderno com fachadas de vidro, flanqueado por uma torre, (ver Figura 9).

Figura 9 Igreja da Memria em Berlim na Alemanha

Em 1945, a Organizao das Naes Unidas (ONU), criou a Organizao das Naes
Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (UNESCO), com sede em Paris e com o objectivo

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de garantir universalmente a justia, a lei e os direitos do homem, entre todas as Naes,
promovendo a educao, a cincia e a cultura. Define-se o conceito de patrimnio
arquitectnico e estabelecem-se Convenes e Recomendaes para a sua salvaguarda.
Refere-se em particular a Conveno de Haia ou Conveno para a Proteco de Bens
Culturais em caso de Conflito Armado, realizada em 1954. Este documento reconhece o
efeito devastador das guerras e proclama a necessidade de estabelecer medidas em tempo de
paz. Defende a execuo de uma inventariao internacional dos bens culturais de maior
importncia e a proteco, alm do monumento, tambm da zona urbana e da paisagem rural.
Trs anos depois, em 1957, no I Congresso Internacional de Arquitectos e Tcnicos de
Monumentos Histricos, foi proposta a criao de organismos nos diversos pases de modo a
assegurar a proteco dos monumentos e foi defendida a criao de uma assembleia
internacional de tcnicos especializados na conservao de monumentos histricos.
Em 1964, do II Congresso de Arquitectos e Tcnicos de Monumentos Histricos
realizado em Veneza, resulta um documento ainda hoje reconhecido: a Carta de Veneza. Esta
carta vem ampliar a noo de patrimnio arquitectnico e assinalar a importncia da
conservao de reas e estruturas edificadas, quer urbanas, quer rurais. Os pontos mais
importantes que refere so os seguintes: (a) ampliao do conceito de monumento, que alm
de criaes arquitectnicas isoladas histricas, devem ser tambm os conjuntos urbanos e
rurais com significado especial e obras modestas com valor cultural. O conceito de
monumento histrico deve envolver tambm o espao envolvente e o local onde este se
encontra implantado; (b) quando for necessrio, o restauro deve respeitar os materiais
utilizados e todas as partes de diferentes pocas, que no devem ser adulteradas ou destrudas;
(c) estudo acompanhado de investigao arqueolgica e histrica do monumento, utilizando
meios interdisplinares avanados: levantamentos arqueolgicos, sondagens estratigrficas,
tcnicas estticas, procedimentos magnticos, tcnicas informticas, fotogrametria e outros,
que precedam os trabalhos de restauro; (d) as intervenes de restauro devem abranger
trabalhos que, em qualquer momento, o objecto sobre o qual se actuou se possa despojar da
actuao e voltar ao momento anterior sua realizao, ou seja defende a necessidade de
reversibilidade nas intervenes estruturais e construtivas; (e) refere a necessidade de uma
manuteno peridica dos edifcios e uma atribuio funcional socialmente til.
No entanto, a Carta de Amesterdo, ou Carta Europeia do Patrimnio Arquitectnico,
adoptada pelo Comit dos Ministros do Conselho da Europa, em 26 de Setembro de 1975,
acrescenta a todos estes aspectos anteriormente enumerados, a chamada conservao
integrada. Este conceito traduz o trabalho dos tcnicos de restauro, que em conjunto procuram
encontrar a funo apropriada a cada caso, com o apoio dos meios jurdicos, administrativos,
financeiros e tcnicos. A noo de patrimnio arquitectnico no abrange somente os
monumentos mas tambm cidades antigas e aldeias tradicionais.
Sucessivamente esta noo de patrimnio vai tendo tambm modificaes ao longo
dos anos, alargando-se nos dias de hoje a paisagens naturais com interveno humana ou no,
centros histricos, bairros tpicos, bairros sociais de propostas inovadoras e outros. Destaca-se
finalmente a Carta de Cracvia, documento subscrito em Junho de 1991, por diversos pases,
incluindo os pases de Leste da nova Europa. A carta sublinha a importncia pelo respeito dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais como base para o desenvolvimento da
criatividade cultural, e ainda a necessidade de cooperao ao nvel da formao tcnico-
cientfica entre os Estados aderentes [12].

6 - PORTUGAL E AS OBRAS DE RESTAURO

As cartas de restauro serviram para organizar ideias dispersas dos protagonistas de


obras de restauro e uniformizaram de uma forma geral o modo de intervir. Em cada Pas

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estabeleceram-se regras prprias e comisses especiais para dirigir esses trabalhos. Os
primeiros responsveis de restauros em Portugal procuram mais reconstituir do que
propriamente restaurar, aproximando-se bastante dos mtodos de Viollet-le-Duc [6]. De
facto, no fim do sculo XIX e incio do sculo XX o que interessava era restituir a obra
como deveria ser, mais do que como de facto teria sido [6]. Inmeras igrejas em Portugal
so alvo de intervenes que lhe modificam o aspecto, normalmente ao gosto e de acordo com
as pretenses dos seus mentores.
Em 1834 os bens da igreja so expropriados, os templos integrados no patrimnio
nacional, e alguns conventos e mosteiros so vendidos como quintas a particulares. Os seus
novos proprietrios estavam mais interessados na produo agrcola das suas terras do que no
edifcio, com funes de um simples abrigo ou sem utilidade, votado ao abandono e at total
destruio. Os monumentos que ficaram na posse do Estado tiveram melhor sorte, pois no
foram destrudos, mas converteram-se em espaos com novas funes, nomeadamente
quartis, hospitais, universidades e outros servios, o que levou completa modificao do
espao interior e tambm, por vezes, a alteraes profundas nas fachadas e volumetrias. Em
1881 elaborada uma primeira lista que classifica os monumentos nacionais. Com a
proclamao da Repblica em Outubro de 1910, esta lista renovada.
Com o perodo do Estado Novo vive-se uma poca de relativa importncia no que
respeita a obras de restauro. Salazar dando uma importncia significativa a todos os smbolos
da Ptria Portuguesa criou a Direco Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionais que,
apesar da polmica, salvou alguns dos monumentos portugueses. Os restauros mais antigos
eram, por vezes, acompanhados de destruies de elementos artsticos de pocas anteriores,
desaparecimento de vestgios arqueolgicos e mais frequentemente reconstituies completas
dos monumentos originais. As intervenes eram acompanhadas da publicao de Boletins
onde constava informao seleccionada acerca da histria do edifcio e dos trabalhos
executados. A primeira interveno realizada foi a Igreja de Lea do Balio, em 1930.
Com a crescente necessidade dos diversos pases pela preservao do patrimnio,
Portugal no ficou atrs e consequentemente elaboraram-se orientaes, critrios e definies
acerca da forma prtica de proceder a essa preservao, pelas quais se regem em caso de
intervenes de restauro. Em 1992, foi criado o Instituto Portugus do Patrimnio
Arquitectnico e Arqueolgico em substituio do Instituto Portugus do Patrimnio Cultural
surgido na dcada de 80. um servio destinado a promover a salvaguarda e a valorizao
de bens que, pelo seu interesse histrico, arqueolgico, artstico ou paisagstico, integrem o
patrimnio arquitectnico e arqueolgico do Pas [13].

7 - CONCLUSES E VISO ACTUAL

O restauro uma palavra com vrias definies e prticas, mutvel ao longo dos
tempos e que possui hoje uma definio clara na Carta de Cracvia: - uma interveno
dirigida sobre um bem patrimonial, cujo objectivo a conservao da sua autenticidade e a
sua apropriao pela comunidade. expectvel que esta definio seja alterada no futuro.
O uso dos imveis tem vindo a ser alterado, referindo-se o exemplo do Estado
Portugus, promovendo a sua reutilizao como escolas, universidades, hospitais ou quartis.
Outros imveis foram reconstrudos adquirindo funes tursticas como por exemplo a rede
de Pousadas e o Palcio de Seteais. Estas intervenes e outras geram habitualmente
polmica.
No entanto, para alm dos aspectos tericos, princpios, gostos ou modas associadas
conservao e restauro de um imvel degradado, destrudo ou at mesmo desaparecido, h
tambm o problema das questes econmicas, que so fundamentais para o sucesso. Estes

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trabalhos so operaes de elevada complexidade e que requerem tcnicos especializados,
possuindo custos mais elevados que a construo de uma obra nova. Embora j se note
alguma diferena em relao ao passado, existem poucas empresas especializadas que
assegurem de forma satisfatria os trabalhos de conservao e restauro, tanto mais que a
legislao que enquadra a sua actividade demasiado permissiva.
Por outro lado, no fcil encontrar artfices que se dediquem a este tipo de trabalho,
muitas vezes manual, de empenho e de gosto pelo arranjo e pela aplicao de materiais e
tcnicas antigas, as quais transmitem s mos e do vida ao monumento [4]. Os artfices e
mestres de obra so essenciais para o sucesso de um trabalho de restauro, pois so eles que
vo executar o que foi projectado.
Os trabalhos de anlise, inspeco, diagnstico e projecto exigem equipas
multidisciplinares, sendo necessrio dar uma nova oportunidade ao patrimnio abandonado,
com especial enfoque nos centros histricos e no patrimnio rural, que se encontram
abandonados em diversas reas do pas. A sociedade civil e a prpria economia do pas, em
que o turismo j responsvel por cerca de 10% do PIB, exigem a conservao e o restauro
do patrimnio construdo de inegvel valor cultural e arquitectnico.

8 - REFERNCIAS

[1] Appleton, Joo et al, Guio de Apoio Reabilitao de Edifcios Habitacionais, Volumes
1 e 2, LNEC, (1998)
[2] Brandi, Cesari, Teoria de la Restauracion, Alianza Editorial, (1988)
[3] Gil, Jlio, As Mais Belas Igrejas de Portugal, Vol. 2, Editorial Verbo, (1989)
[4] Luso, Eduarda, Contribuio para Intervenes no Centro Histrico de Bragana, Tese
de Mestrado, U.Minho, Guimares, 2002
[5] Rivera, Javier, Restauracion Arquitectonica desde los Origenes Hasta Nuestros Dias.
Conceptos, Teoria e Historia, em: Teoria e Historia de la Restauracion, tomo 1, MRRP,
Editorial Munilla-Leria, (1997)
[6] Rodrigues, Jorge, A Arquitectura Romnica, em: Histria da Arte Portuguesa, Direco
Paulo Pereira, Crculo de Leitores, Vol. I, (1995)
[7] Ruskin, John, Las Siete Lmparas de la Arquitectura, Editorial Alta Fulla, (1987)
[8] Salema, lvaro, Um Poema de Pedra, em: Maravilhas de Portugal, salvat Editora do
Brasil, (1987)
[9] Sette, Maria Pereira, Profilo Storico, em: Trattato di Restauro Architettonico. Dir:
Giovanni Carbonara, Volume Primo, Sezione B, (1996)
[10] Torres, Cludio et al., A Arquitectura e as Artes, em: Histria da Arte Portuguesa,
Direco Paulo Pereira, Crculo de Leitores, Vol. I, (1995)
[11] Vela Cossio, Fernando, Intervenciones Arqueolgicas en Poyectos de Restauracon de
Edifcios Histricos, em: Metodologia de la Restauracion y de la Rehabilitacion. Tomo 2,
DCTA-UPM, Editorial Munilla-Leria, (1999)
[12] Cartas e Convenes Internacionais, Informar para proteger, Patrimnio Arquitectnico
e Arqueolgico, Ministrio da Cultura, I.P.P.A.R., (1996)
[13] Alterao do Decreto-Lei 316/94 de 24 de Dezembro

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