Banco de Idéias Nº 52 - Set/Out/Nov - 2010

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SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 1

Índice Expediente

DESTAQUE 5 POLÍTICA 11
Think Tank - A Revista da Livre-Iniciativa
Ano XIV - no 52 - Set/Out/Nov - 2010

CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Arthur Chagas Diniz
Elcio Anibal de Lucca
Alencar Burti
Paulo de Barros Stewart
Jorge Gerdau Johannpeter
A DIPLOMACIA BRASILEIRA E O CONSELHO AS IDEIAS SOCIALISTAS AVANÇAM, Jorge Wilson Simeira Jacob
DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS REALMENTE, NA AMÉRICA LATINA? José Humberto Pires de Araújo
Georges D. Landau Armando de la Torre Raul Leite Luna
Ricardo Yazbek
Roberto Konder Bornhausen

14
Romeu Chap Chap
ESPECIAL MATÉRIA DE CAPA 15 CONSELHO EDITORIAL
Arthur Chagas Diniz - presidente
Alberto Oliva
Aloísio Teixeira Garcia
Antônio Carlos Porto Gonçalves
Bruno Medeiros
Cândido José Mendes Prunes
Jorge Wilson Simeira Jacob
José Luiz Carvalho
Luiz Alberto Machado
Nelson Lehmann da Silva
O BOM, O MAU E O FEIO Octavio Amorim Neto
MERCADO E REGULAÇÃO DO SETOR Roberto Fendt
Uma visão liberal do fato DE SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL Rodrigo Constantino
Sandro Leal Alves William Ling
Og Francisco Leme e
INTERNACIONAL 21 LIVROS 26 Ubiratan Borges de Macedo
(in memoriam)
DIRETOR / EDITOR
Arthur Chagas Diniz
JORNALISTA RESPONSÁVEL
Ligia Filgueiras
RG nº 16158 DRT - Rio, RJ

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BRASIL E ÁFRICA: UMA NOVA PAN-AFRICANISMO SEM RACISMO
ETAPA NO RELACIONAMENTO? por Rodrigo Constantino FOTOS
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SÃO PAULO
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BANCO DE IDÉIAS é uma publicação do Instituto Liberal. É permitida a
reprodução de seu conteúdo editorial, desde que mencionada a fonte.
Leitores
Editorial
Sua opinião é da maior impor-
tância para nós. Escreva para
Banco de Idéias. s tentativas do Brasil de par- então debruçar-se sobre a regu-
A ticipar do Conselho de Segu- lamentação influenciada por um
Ao Editor, rança das Nações Unidas como viés sanitarista. A natureza dos
membro permanente datam das serviços de saúde impede o bom
Tenho assistido inúmeras in- conferências iniciais que consti- funcionamento de um mercado
vasões de terra, aqui perto do
Recife, onde moro. As desocu- tuíram a ONU. O Professor de Re- para tais serviços? A despeito das
pações são muito demoradas, lações Internacionais da FAAP, chamadas falhas de mercado, o
embora os invasores não ques- Georges D. Laundau, nos conduz autor deixa claro que as regula-
tionem o direito do proprietário a pelos caminhos trilhados pela Di- mentações impostas ao setor aca-
essas terras. De um modo geral,
eles abatem cabeças de gado, plomacia Brasileira, por iniciativa bam por emperrar o funciona-
destroem plantações e, quando o própria ou induzida pela Presidên- mento do mercado. Em sua aná-
proprietário consegue retomar o cia da República, na busca de um lise da regulamentação, Sandro
uso de suas terras, não recebe lugar permanente em tão seleto Leal não só destaca os benefícios
nenhuma indenização pelos pre-
juízos incorridos. O que preten- grupo. Nesse passeio pela histó- que se vêem, mas também os cus-
dem esses invasores do MST, e ria diplomática do Brasil o autor tos que não se vêem.
porque a justiça brasileira é tão examina com acuidade as impli- Roberto Fendt, Vice-Presidente
leniente? cações da diplomacia presidencial licenciado do IL e atualmente as-
Paulo Roberto dos Santos do governo Lula ao responder à sessor do Ministro de Estado e da
Recife – PE pergunta: Em que consiste essa Coordenação Econômica de An-
diplomacia essencialmente ideo- gola, nos guia em uma viagem até
Prezado leitor, lógica? a África, na qual ilustra seus con-
Embora não exista qualquer Muitos têm se alarmado com vidados sobre as relações do Brasil
justificativa para leniência em a aparente expansão, na Améri- com aquele continente. Com um
relação a crimes que caracteri- ca Latina, das teses reunidas sob discurso prazeroso e simples nosso
zam agressões ao direito de pro- o manto do socialismo do século guia inicia a jornada no século XV
priedade, o aparelho judiciário
em alguns estados da União pra- XXI. Estariam as idéias socialistas com a chegada dos portugueses.
tica o que chamamos de direito realmente prosperando na Amé- Passando pela intromissão de
alternativo. Isso significa que lá rica Latina? Destacando o cresci- outras potências no Atlântico Sul,
a justiça não trata a questão sob mento do autoritarismo de esquer- somos levados a conhecer as re-
a ótica da legalidade, mas trata
diferentemente os desiguais, da de alguns governos da região, lações do Brasil com a África des-
contra o que preceitua a lei. assim como o benigno exibicio- de a época do império. Nossa
Quando é autorizada a ação de nismo dos autodenominados so- viagem termina com um alerta:
reintegração de posse, os pro- cial-democratas, o professor Ar- chegaram os chineses.
prietários contam com a má von-
tade do governo local. mando de La Torre, Diretor da Na Casa de Meu Pai, do filó-
O MST, que é hoje em dia Escola Superior de Ciências So- sofo Kwame Anthony Appiah, é
uma excrescência, pratica uma ciais da Universidade Francisco o livro resenhado por Rodrigo
política de invasões cuja essência Marroquin, na Guatemala, res- Constantino. Nascido em Gana,
não é a ocupação da terra em
si, mas o questionamento do ponde a essa pergunta com um o autor analisa a noção de pan-
direito de propriedade. Quanto sonoro não. africanismo e destaca ser a cul-
ao ressarcimento de prejuízos, o O professor de economia da tura mais importante que a raça.
proprietário que teve sua terra Universidade Santa Úrsula e ge- NOTAS examina a proposta do
invadida não tem nenhum ressar-
cimento e paga, ainda, os custos rente-técnico da Federação Na- substitutivo do relator ao PL nº
de sua ação penal, porque o cional de Saúde Suplementar, 1876, o novo código florestal
MST não existe juridicamente. Sandro Leal Alves, analisa os prin- Nesta edição você encontra o
O editor cipais impactos da regulamenta- resumo do livro To Serve and Pro-
ção imposta pela ANS ao setor de tect, de Bruce L. Benson, efetuado
Envie as suas mensagens para saúde suplementar. De forma cla- pelo Prof. José L. Carvalho.
a rua Rua Maria Eugênia, 167 -
Humaitá - Rio de Janeiro - RJ - ra e didática o autor faz uma ra- Encerra esta edição o Bom, o
22261-080, ou [email protected]. diografia do setor, demonstrando Mau e o Feio, destacando fatos
sua importância quantitativa, para ocorridos no trimestre em curso.

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Destaque

A diplomacia brasileira e o Conselho


de Segurança das Nações Unidas
Georges D. Landau
Professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), São Paulo. Membro do
Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), Rio de Janeiro.

I. ANTECEDENTES HISTÓRICOS ção da paz e da segurança inter- ca da China) e a França. Os Esta-


nacionais. Neste órgão, com 15 dos Unidos já eram uma potência
uando, em 1945, após o membros, estipulou a Carta que nuclear, e subsequentemente os
Q fim da II Guerra Mundial a cinco deles – os países vitoriosos demais chegaram a sê-lo1.
Conferência de São Francisco re- no conflito – teriam assento per- Foi cogitada em 1945, quan-
sultou no estabelecimento da Or- manente e direito de veto. Então, do da conferência de Dumborton
ganização das Nações Unidas como hoje, os membros perma- Oaks (preparatória da de São
(ONU), criou-se como órgão su- nentes eram/são: os Estados Uni- Francisco), a participação do Bra-
premo da Organização o Con- dos, a Grã-Bretanha, a Rússia (su- sil como um dos membros perma-
selho de Segurança (CSNU), in- cessora da União Soviética), a Chi- nentes do Conselho de Segu-
cumbido de velar pela manuten- na Popular (sucessora da Repúbli- rança, que passariam a ser seis2.

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Destaque

Afinal, nosso país contribuiu para ocupar um assento permanente mas com “perspectivas de futuro”.
a vitória aliada com um contin- no Conselho de Segurança, re- Já na presidência de Itamar Fran-
gente militar que combateu bra- nunciando inclusive explicitamen- co, estando à frente do Itamaraty
vamente na Itália, e foi o único te ao direito de veto caso fosse o ministro Fernando Henrique Car-
país latino-americano a fazê-lo. O necessário. A demanda foi sem- doso, este, em outubro de 1992,
cemitério militar de Pistóia teste- pre individual, e não se revestiu preconizou a volta do Brasil ao
munha que sangue brasileiro foi do caráter de uma representação Conselho como membro não per-
derramado nos campos de bata- regional latino-americana, que manente (o que efetivamente
lha da Europa. Além de tropas, o aliás teria sido contestada, como ocorreu no ano seguinte, após 13
Brasil durante toda a II Guerra foi o foi, pela Argentina e pelo Mé- anos de ausência), e encareceu o
um precioso fornecedor de ma- xico. Em 1989, no discurso que imperativo da democratização do
térias-primas, e sem as bases pronunciou ao inaugurar a As- CSNU. Em sua primeira gestão,
aéreas estratégicas no Norte e sembleia Geral das Nações Uni- sob a presidência de Itamar Fran-
Nordeste do Brasil dificilmente das, o presidente José Sarney co, o ministro Celso Amorim pro-
teriam podido os Aliados atacar nunciou-se no mesmo sentido, na
os redutos do Eixo na África do Assembleia Geral de 1993. Entre-


Norte. Tudo isso, porém, foi esque- tanto, apenas cinco países, e não
cido em 19453. No intervalo en- Foi cogitada em dos maiores, apoiaram a preten-
tre as duas conferências foi logo 1945, quando da são brasileira, que não vingou.
descartada a pretensão brasileira, conferência de Com a presidência de Fernando
e a nossa diplomacia, então Dumborton Oaks Henrique Cardoso (1995-2002),
caudatária dos Estados Unidos, sendo chanceler (até 2001) Luiz
com isso se conformou4. Passa- (preparatória da Felipe Lampreia, mudou a ênfase
ram-se décadas sem que o Brasil, de São Francisco), do pleito brasileiro, passando este
prestigioso e acatado membro da a participação do a ter importância secundária; o
ONU – e honrado, desde 1948, Brasil como um Brasil não mais praticaria uma
com a tradição de abrir todos os política de prestígio, embora sim
anos a Assembleia Geral – reivin-
dos membros defendesse a necessidade de re-
dicasse assento permanente no permanentes forma do sistema institucional das
Conselho de Segurança, embora do Conselho de Nações Unidas, para que melhor
muitas vezes – como ocorre ago- Segurança, refletisse “a diversidade de visões
ra (biênio 2010-11) – tenha ocu- que passariam do mundo”. Este tema foi reite-


pado uma das dez cadeiras ro- rado ante a Assembleia Geral e
tativas e várias vezes a presidên- a ser seis. em várias outras oportunidades
cia do órgão. A reivindicação res- pelo presidente e pelo chanceler.
surgiu em 1989 no governo Sar- Em novembro de 2001, ao abrir
ney, que empreendeu esforços postulou formalmente o ingresso os debates da 56ª Assembleia Ge-
diplomáticos nesse sentido. A Car- do Brasil como membro perma- ral, o presidente FHC reclamou a
ta de São Francisco refletiu a cons- nente do CSNU, abdicando do ampliação do CSNU, em nome de
telação de forças do imediato direito de veto. Mas a proposta uma ONU “forte e ágil”, e defen-
após-guerra, e, embora países não foi adiante7. deu a criação de assentos perma-
como a Grã-Bretanha e a França Durante a presidência de Fer- nentes para países em desenvol-
estivessem então exangues e nando Collor o chanceler Celso vimento credenciados para exer-
exânimes,5 assim como a URSS e Lafer, ao proferir, em setembro de cer as altas responsabilidades
a então República da China (à 1991, o discurso de abertura da que o Conselho demandava. Em
qual sucedeu em 1949 a Repú- Assembleia Geral, invocou o ar- 2002, novamente chanceler,
blica Popular)6, todos devastados gumento da necessidade de Celso Lafer reiterou que o Brasil
pela guerra, qualificavam-se ain- democratização do sistema inter- estava “pronto a dar a sua contri-
da como potências vitoriosas na nacional e o da representati- buição para o trabalho do CSNU,
II Guerra, e o Brasil foi conside- vidade do Conselho de Seguran- e a assumir todas as suas respon-
rado um aliado menor, periférico. ça. Propôs o ministro Lafer que sabilidades”.
Em sucessivos ensejos subse- os reajustes a este, reivindicados Pode-se afirmar, em resumo,
quentes e com diferentes matizes por numerosos países, fossem que durante o governo de FHC a
o Brasil expressou interesse por considerados com prudência, questão foi suscitada, mas não de

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forma proativa. Com efeito, o pre- juntura, e outras medidas proces- tações, salvo as dos “hermanos”
sidente FHC temia melindrar a suais. Se adotadas, o Brasil decer- latino-americanos, o mesmo não
Argentina, inequivocamente opos- to teria sido aquinhoado com uma se pode dizer dos demais países
ta à pretensão brasileira, e o mi- das novas vagas permanentes.9 candidatos. A Índia tem as suas
nistro Lampreia, conhecedor das credenciais questionadas pelo
dificuldades de uma reforma II. TEMPOS ATUAIS: A Paquistão, o Japão conta com o
institucional das Nações Unidas, DIPLOMACIA DO GOVERNO LULA veto da China (bem lembrada das
manifestava-se cético em face do atrocidades cometidas em
êxito de uma hipotética reivindica- Já na presidência de Luiz Nanjing) e a Alemanha sofre opo-
ção. Lampreia tinha conhecimen- Inácio Lula da Silva, estando no- sição da Espanha e da Itália. As-
to de que o aumento do número vamente à frente do Itamaraty o sim, a proposta de reforma do
de membros permanentes, possi- ministro Celso Amorim,10 o Brasil Conselho gorou. Realisticamente,
velmente mediante alguma moda- incorporou-se ao G-4 (Alemanha, não se pode esperar a curto pra-
lidade de representação regional, Índia, Japão e, a partir desse mo- zo uma solução favorável da rei-
exigiria a reforma da Carta de São mento, o Brasil). Como tal, vindicação brasileira, agora
Francisco. Isso equivaleria a abrir apoiou uma das opções de indissociável dos seus parceiros
a caixa de Pandora, com conse- Annan, a que aumentava o nú- no G-4. Em termos de estratégia
quências imprevisíveis, e, na con- mero de membros permanentes diplomática, ao vincular a sua
juntura internacional dos anos para seis novos, i.e., os do G-4 candidatura ao G-4, dadas as
90, como na de hoje, as grandes mais dois africanos. No âmbito do resistências aos demais membros
potências, desejosas de preservar G-4 a Alemanha e o Japão (am- deste, o Brasil debilitou a sua pró-
uma situação privilegiada que bos “perdedores” da II Guerra pria aspiração.
para várias delas dificilmente se- Mundial, mas hoje entre os gran- No seu discurso de posse na
ria sustentável na atualidade, pre- des países líderes da economia chefia do Itamaraty, em 2003,
feriram ignorar o problema. global), e a Índia, integram o se- Celso Amorim, chanceler duran-
Em novembro de 2003 um leto clube de aspirantes a uma te todo o governo Lula, advogou
Comitê Internacional de Notáveis, cadeira vitalícia no Conselho. Se a inclusão no CSNU de países em
nomeado pelo Secretário-Geral a participação do Brasil nesse desenvolvimento como membros
Koffi Annan e integrado inclusive grupo não sofre maiores contes- permanentes, “de modo a refor-
pelo embaixador brasileiro João
Clemente Baena Soares, ex-Secre-
tário-Geral da OEA, havia formu-
lado propostas de reforma da
ONU, e em particular a limitação
do direito de veto no seio do
CSNU.8 O Secretário-Geral Koffi
Annan apresentou em 21 de mar-
ço de 2004 as suas propostas,
amplas e abrangentes, para a
reestruturação das Nações Uni-
das, inclusive a reforma do Con-
selho de Segurança, com a espe-
rança de que tais reformas fossem
adotadas no ano seguinte pela
Assembleia Geral comemorativa
dos 60 anos da Organização.
Contudo, tal não ocorreu. A ONU
estava demasiado polarizada com
a guerra do Iraque. Koffi Annan
propôs a expansão do número de
membros do Conselho de 15
para 24, para torná-lo mais re-
presentativo e compatível com a Em 2003, um Comitê Internacional de Notáveis, nomeado pelo então Secretário-
realidade geopolítica daquela con- Geral Koffi Annan, havia formulado propostas de reforma da ONU.

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Destaque

çar a legitimidade e a repre-


sentatividade [do Conselho]”. Lula
e seu chanceler iniciaram a par-
tir do começo do mandato uma
campanha proativa para obter a
ambicionada cadeira cativa no
CSNU.
Com efeito, o G-4 em dezem-
bro de 2004 expressou a opinião
coletiva dos seus membros de que
as reformas propostas pelo Se-
cretário-Geral Koffi Annan supri-
miriam as deficiências estruturais
do Conselho, e em março de
2005 o Brasil, na presidência
rotativa deste e apoiado pelos
outros três membros do G-4, pro-
pôs formalmente à Assembleia
Geral a reforma do CSNU. Em
julho do mesmo ano o Embaixa-
dor Ronaldo M. Sardenberg, Re-
presentante Permanente do Bra-
sil ante as Nações Unidas, apre-
sentou em nome de 29 países um Não há como negar que o protagonismo pessoal do presidente Lula elevou o
projeto de resolução (com pou- Brasil a um novo patamar nas relações internacionais do país.
cas assinaturas latino-america-
nas: Haiti, Honduras e Paraguai) dente Lula elevou o Brasil a um nismos internacionais tradicio-
sobre a reestruturação do Con- novo patamar nas relações inter- nais, tanto universais como re-
selho. A resolução não vingou, nacionais do país. O que cabe gionais, vem assumindo um papel
graças basicamente à oposição discutir é o custo-benefício dessa crucial na governança global. É
da União Africana – que pleitea- diplomacia presidencial. No cam- evidente que o mundo atual dife-
va para os seus membros três em po comercial, por exemplo, o pre- re fundamentalmente daquele de
vez de dois assentos permanen- sidente tem desempenhado, com depois da Segunda Guerra, e já
tes. Contudo, em sucessivos dis- certo êxito, um papel que melhor que parecem ser insuperáveis as
cursos do presidente Lula e arti- teria correspondido ao ministro dificuldades para a reforma es-
gos do ministro Amorim, entre da pasta pertinente. Entretanto, o trutural das Nações Unidas e seus
2005 – ano do 60º aniversário Brasil, sob a hipoteca diplomáti- Organismos Especializados, foi
da ONU – e 2007, o Brasil ex- ca de sua participação no Mer- preciso criar novos mecanismos
pressou a esperança de um des- cosul, não logrou firmar durante de governança global. Estes, po-
fecho favorável para o projeto esses oito anos um único acordo rém, não subtraem ao Conselho
que ampliaria o Conselho. 11 de livre comércio. Não compete de Segurança a sua responsabi-
Note-se que a política africana do a um chefe de estado ser caixeiro- lidade central pela manutenção
presidente (que até o presente fez viajante, ainda que o faça com da paz e da segurança interna-
onze visitas oficiais à região) não êxito. Mas é certo que o imenso cionais.
logrou angariar o apoio dos paí- carisma do presidente, que se re- Uma das consequências da
ses africanos à reivindicação bra- flete tanto no campo interno como diplomacia presidencial, altamen-
sileira. no externo, tem grangeado ao te personalizada, que caracteri-
país uma atuação invejável nos za o governo Lula, é a sua ideo-
III. CUSTO-BENEFÍCIO DA foros multilaterais. logização. Ao esposar, no início
DIPLOMACIA PRESIDENCIAL Entre estes, sobressaem o G-8 de seu governo, em 2003, os
e o G-20, e particularmente nes- princípios fundamentais da ges-
Não há como negar que o te último, que ante a relativa inér- tão econômica de seu predeces-
protagonismo pessoal do presi- cia e a obsolescência dos orga- sor, o presidente FHC, Lula optou

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Destaque

por satisfazer a ala radical do internacional cada vez maior, em cada um dos quais corresponde
Partido dos Trabalhadores me- si salutar, mas não raro remi- um voto, segue-se, na concepção
diante uma política externa que niscente do “Brasil potência” do do presidente Lula, que devem ser
destoa da política econômica in- regime militar, e igualmente des- individualmente cultivados muitos
terna, relativamente conserva- provida de substância. Trata-se desses Estados, sobretudo os
dora, que praticou ao longo dos da projeção externa de um na- emergentes, mediante o exercício
seus dois mandatos (especial- cional-desenvolvimentiano socia- de uma “diplomacia da generosi-
mente do primeiro), e que contri- lizante, cujos excessos – como a dade”, que o governo Lula, nes-
buiu para a atual prosperidade estatização desabrida – implicam ses quase oito anos de mandato,
do país. altíssimo custo, e só prejudicam tem praticado com afinco.
Um dos fatores responsáveis o país. Em que consiste essa diploma-
por tal ideologização da política É nesse contexto que se deve cia essencialmente ideológica? Na
externa do país foi a entrega, pelo situar a atuação do governo Lula criação de inúmeras embaixadas
presidente, de uma parcela cada em muitos âmbitos externos. de duvidosa utilidade nos países
vez maior da sua condução ao em desenvolvimento, inclusive os
assessor presidencial para assun- mais insignificantes; no perdão de
tos internacionais, o Prof. Marco
Aurélio Garcia, ideólogo do PT, e
durante uma década responsável
“ Em sucessivos
discursos do
vultosas dívidas de países
inadimplentes, na tolerância de
gestos de indisfarçada hostilidade,
pelas relações exteriores do Par- presidente Lula e como a da expropriação pela Bo-
tido com todas as esquerdas do artigos do ministro lívia, mediante uma indenização
planeta, refletidas no Foro de S. Amorim, entre pífia, de duas refinarias da Pe-
Paulo. A partir do Palácio do Pla- trobras; na aceitação de violações,
nalto, Garcia pratica uma espé-
2005 – ano do reiteradas e cabais, das regras do
cie de diplomacia paralela à do 60º aniversário da Mercosul e da OMC por países
Itamaraty, e nem sempre con- ONU – e 2007, o vizinhos; da renegociação do tra-
soante com esta. O Serviço Exterior Brasil expressou a tado de Itaipu (1973) com o Pa-
do Brasil é um corpo de elite na esperança de um raguai, sob condições que, se
administração brasileira, cultiva tra- aprovadas pelo Congresso, cus-
dicionalmente um profissionalismo desfecho favorável tarão ao consumidor brasileiro de
que honra o país, mas que muitas para o projeto que eletricidade mais de US$5 bilhões
vezes esbarra numa política de ampliaria o ao longo dos próximos 13 anos;
orientação ideológica que tem le-
vado o Brasil e seu governo a
situações constrangedoras.
Conselho.
” no silêncio complacente do Brasil
quando o Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas vota
Obviamente, não se contesta sanções a países que são contu-
aqui o direito de um governante Uma das linhas mestras da sua mazes violadores desses direitos;
que, democraticamente eleito e atuação consiste precisamente na na recusa da extradição à Itália
reeleito por expressiva maioria, busca de um assento permanen- do terrorista Battisti, condenado
queira imprimir à sua política ex- te, com ou sem direito de veto, no por quatro homicídios em seu país,
terior o seu viés político, que co- Conselho de Segurança das Na- ao passo que foram devolvidos a
incide com o do partido ao qual ções Unidas. As dificuldades Cuba dois atletas cubanos que
pertence. Daí as prioridades diplo- institucionais em lograr tal objeti- pediram asilo ao Brasil após os
máticas da gestão Lula – ênfase vo já foram mencionadas. Mas, Jogos Pan-americanos de 2007;
na direção Sul-Sul, com especial no altar dessa aspiração têm-se nas desastradas tentativas de me-
relevância para o entorno latino- sacrificado muitos outros interes- diação no Oriente Médio (repelida
americano e o africano, simpatia ses nacionais, em detrimento da por ambos os lados em conflito) e
por governos de esquerda (que cidadania e do contribuinte brasi- com o Irã, em flagrante desafio
vão do rosa pálido ao púrpura leiro. Dado que a reforma da Car- aos atuais cinco membros perma-
carregado), e até um certo anti- ta da ONU e a reestruturação do nentes do CSNU; na ridícula con-
americanismo primário. A execu- CSNU passam pela Assembleia- cessão do refúgio na embaixada
ção dessa política externa se ca- Geral da Organização, hoje com do Brasil em Honduras ao golpista
racteriza por uma assertividade quase 200 Estados-membros, a Manuel Zelaya, aliado ‘boliva-

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Destaque

riano’ de Hugo Chávez; e em Empenhou-se a fundo pela con-


muitas outras iniciativas, onerosas clusão da Rodada de Doha, mas NOTAS E REFERÊNCIAS
quer para o prestígio do país, quer não pôde impedir países africa-
para o bolso do contribuinte. nos de torpedear o acordo final, 1
Não é requisito que os membros perma-
Além da acolhida dada a um de transcendental importância nentes sejam potências nucleares. Também
o “clube atômico” se expandiu, e o mono-
bom número de refugiados de va- para o Brasil. Tampouco a parce- pólio do arsenal nuclear não mais se confi-
riada procedência, há um único ria estratégica com a França im- na, como há meio século atrás, aos cinco
membros permanentes do CSNU; mais re-
exemplo bem-sucedido da diplo- pediu que esta inviabilizasse o centemente Índia, Paquistão, Israel, Coréia
macia da generosidade, empre- acordo de livre comércio entre a do Norte e provavelmente o Irã, além de
outros países, já têm ou, em breve, terão
endida pelo presidente Lula, com União Européia e o Mercosul, sob armamentos nucleares e meios de detoná-
vistas a robustecer o seu pleito de negociação há seis anos. Outros los. Com o fim do apartheid, a África do Sul
desistiu de ter uma capacidade nuclear.
um assento permanente no parceiros votaram contra as can- 2
Comentários do chanceler brasileiro,
CSNU: é o da participação bra- didaturas brasileiras em vários or- Pedro Leão Velloso, ao Plano de Dumborton
Oaks de Criação das Nações Unidas (1945),
sileira na Minustah, a missão das ganismos internacionais, como a em Fernando de Mello Barreto (Os Suces-
Nações Unidas de estabilização OMC e o BID. Não se trata aqui sores do Barão, v.1 (1912-1964). S. Pau-
lo: Paz e Terra, 2001, pp. 156-162. Houve
e segurança no Haiti, com um de fazer uma crítica geral à polí- um acordo entre o Ministro Leão Velloso e
expressivo contingente militar e o tica externa do governo Lula, que o Secretário de Estado americano, Stettinius,
no sentido de que se fosse criada uma sexta
comando de um general brasilei- teve aspectos extremamente po- vaga no CSNU ela corresponderia ao Bra-
ro. O Brasil no passado teve ati- sitivos.12 Trata-se, sim, de demons- sil, mas os Quatro Grandes de então, (EUA,
Grã-Bretanha, URSS e China) recusaram a
va participação em numerosas trar que a insistente busca de uma proposta, oferecendo apenas ao Brasil um
missões de paz das Nações Uni- posição privilegiada no Conselho assento não permanente com mandato de
dois anos.
das, que credenciam o país como de Segurança das Nações Uni- 3
Soubessem então os EUA e os demais
um membro responsável da Or- das, a de titular de um assento aliados ocidentais que dois anos mais tarde
se abateria sobre a Europa uma “Cortina de
ganização, e, como no caso permanente, representou um alto Ferro”, e que com ela se iniciaria a Guerra
atual, do seu Conselho de Segu- ônus para a diplomacia brasilei- Fria, talvez tivessem insistido na participação
do Brasil no Conselho de Segurança, mas
rança. A missão no Haiti se dis- ra e a nação, não condizente com isso é mera especulação.
tingue ao representar um esfor- as realidades e aspirações do 4
Os antecedentes históricos sugeririam o
contrário. Ao tempo da Sociedade das Na-
ço significativo – em termos ma- país. ções (SDN), em 1926, o Brasil deixou a
teriais e humanos – em prol da Não se vislumbra por ora a organização quando a Alemanha (derrotada
no conflito de 1914-18), e não o Brasil, foi
estabilidade do país mais pobre realização da aspiração brasilei- convidada a integrar o Conselho Permanen-
do continente, mormente após o ra, velha de 65 anos, de uma ca- te da SDN. Veja-se Eugênio V. Garcia, o
Brasil e a Sociedade das Nações. Brasília:
recente terremoto que devastou deira permanente no Conselho de Fundação Alexandre de Gusmão.
o pouco que lhe restava. Tanto Segurança. Os méritos do Brasil 5
Para reerguer economicamente a Europa
e salvá-la do proselitismo soviético foi
assim é que ao contingente mili- para candidatar-se a esse galar- preciso que os EUA implementassem o Pla-
tar vieram somar-se representa- dão são hoje bem maiores e mais no Marshall a partir de 1948.
6
Nas Nações Unidas a substituição fez-se
ções de outros órgãos públicos e reconhecidos que ao tempo da em 1971, após a visita do Presidente Nixon
de numerosas ONGs humani- Carta de São Francisco. Também à China.
7
Luiz Felipe Seixas Corrêa, A Palavra do
tárias, que enaltecem o prestígio é bem mais nítida a capacidade Brasil nas Nações Unidas. Brasília: Fundação
do Brasil. brasileira de exercer tal mandato Alexandre de Gusmão, 1995, p.p 503-4.
se e quando for obtido, e de as-
8
Baena Soares integrou, a convite de Koffi
Annan, o Painel de Alto Nível sobre Amea-
IV. CONCLUSÃO sumir as grandes responsabilida- ças, Desafio e Mudança.
des daí decorrentes. Não depen-
9
Maria Helena Tachinardi, “A volta da ve-
lha senhora” in Desafios do Desenvolvimen-
Ao longo desses oito anos da de de nós a obtenção do assento to (IPEA, Brasília), ed. 10, agosto de 2004.
presidência Lula, a política exter- permanente, será um corolário da A alternância dos chanceleres pode pres-
10

tar-se a alguma confusão: Celso Lafer foi


na do país tem sido extremamen- conjuntura global. O Brasil fez o chanceler de Fernando Collor em 1992 e
te ativa. O presidente da repúbli- que pôde, e até mais. No gover- outra vez de FHC em 2001-2; Celso
Amorim foi chanceler de Itamar Franco em
ca visitou mais de 60 países, mui- no Lula pagou um altíssimo pre- 1993-94 e outra vez de Lula, em seus dois
tos deles mais de uma vez e ço diplomático por lograr a satis- mandatos (2003 ao presente).
11
Fernando de Mello Barreto. Os Suces-
vários como primeiro manda- fação de uma antiga ambição sores do Barão, tomo III (volume em prepa-
tário brasileiro a visitá-los. Fez nacional. A busca da cadeira no ração, consultado por deferência especial
do autor).
onze viagens à África, o que não CSNU permeou toda a política 12
Luiz Felipe d’Ávila e Oliver Stuenkel. O
impediu países africanos de sa- exterior do Brasil durante o gover- desafio de tornar a política externa relevante
para o Brasil. S. Paulo: CLP Papers, nº 3,
botarem o pleito brasileiro de um no Lula e suas relações bilaterais, 2010.
assento permanente no CSNU. assim como multilaterais.

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 10
Política

As ideias socialistas avançam,


realmente, na América Latina?
Armando de la Torre
Diretor da Escola Superior de Ciências Sociais da Universidade Francisco Marroquín, na Guatemala, desde 1977.

ão creio nisso, e até me nada mais que uma reciclagem Chávez mais ressonante foi, sem
N inclino a pensar o contrário. exausta e superficial de idéias dúvida, o suporte de abundantes
O acelerado crescimento do au- gastas e obsoletas, retiradas petrodólares que o acompa-
toritarismo “de esquerda” durante impulsivamente das diversas nham, diferentemente do atual
a última década na América versões do socialismo real do discurso moribundo de Fidel
Latina (sendo os mais extremados século XX. Castro.
os de Cuba, Venezuela, Bolívia, O fato é que isso se traduziu Inclusive, esse experimento
Nicarágua) provoca muita retórica em um enfraquecimento dos “comunista” em Cuba já é visto
barulhenta na mídia interna- direitos de propriedade e na mundialmente como um fra-
cional. hostilidade governamental, em casso total, até mesmo por muitos
Ainda mais, o benigno exibi- certos países, contra a livre daqueles que se manifestam em
cionismo de alguns outros expressão do pensamento, sem sintonia com o “socialismo do
governos da região, que se dizem que se tenha chegado, todavia, século XXI”. É muito fácil perceber
“social-democratas” (o de Correa exceto em Cuba, às violentas esse fato: a “esquerda” atual-
no Equador, o de Lula no Brasil, coletivizações estatizantes cujo mente faz apenas alusões ao
o de Colom na Guatemala), lhes símbolo mais gritante, o Muro de desempenho de Fidel Castro no
serve como uma caixa de resso- Berlim, foi derrubado com estré- passado.
nância para aumentar em alguns pito em 1989, pondo fim a mais Por outro lado a Venezuela,
decibéis a mais os seus pronun- de 70 anos de desumanização enquanto Estado benfeitor
benfeitor,
ciamentos. sistemática. caminha inevitavelmente em
O célebre “socialismo do Se alguma coisa tornou o direção a uma condição de
século XXI”, contudo, se mostrou palavrório demagógico de Hugo estado “falido”, e essa realidade

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 11
Política

começa a calar até as massas Também não se podem es- educarmos e educar
educar. Isto é, de
“chavistas” da própria república quecer os sucessivos milagres refinar nossos conceitos e hipó-
bolivariana que sentem na carne, econômicos ocorridos desde o teses no pressuposto de Pascal de
hoje em dia, a maior inflação fim da Segunda Grande Guerra, que “o esforço mental para
galopante do hemisfério, a a partir da Alemanha na década aclarar as idéias é o fundamento
progressiva escassez dos artigos de 1950 e, mais ainda, entre as de toda vida moral”.
de consumo da cesta básica economias nacionais da Ásia (os A ética pública ficou esque-
familiar, os mais altos índices de famosos “tigres asiáticos”), cida em excesso, entre nós, por
criminalidade urbana de toda sua enfatizando desde o início a muitos anos. Talvez o esforço
história, a ausência de investi- promoção das exportações e obsessivo para construir Estados
mentos estrangeiros que geravam não a sua substituição – ao con- benfeitores modernos nos tenha
emprego, a contração da pro- trário dos conselhos de nossos desviado do dever de prestar aten-
dução agrícola e industrial, a teóricos “da dependência” (em tor- ção prioritariamente à dimensão
polarização social cada vez mais no de Raúl Prebisch e da CEPAL), ética em nossas opções públicas.
aguda, a corrupção generalizada que tanto influenciaram os teó- E assim chegamos à prática
nos processos da justiça civil, logos católicos “da libertação”. pouco questionada de que em
penal e processual que atinge a Outros exemplos mais re- política, sobretudo no que se
todos, a ausência de represen- centes, como os de algumas eco- refere à justiça social, “o o fim
tação em um parlamento sem nomias ressurgentes no antigo justifica os meios
meios” (Cárdenas,
membros da oposição, os cho- bloco soviético (Estônia, Eslovênia, Vargas, Perón, Castro e que
ques com a Igreja no plano República Tcheca), se elevam como tais...)
interno e, no plano externo, as uma imponente e reiterada Por isso mesmo o êxito local e
desavenças com sua vizinha advertência endereçada ao mais passageiro do “chavismo” da
Colômbia, com os EUA, Israel, elementar sentido comum última década na América do Sul
União Européia, México, Peru e até contra o desacerto de qualquer não deve nos distrair desse
o Chile. enfoque coletivista. esforço educativo, muitíssimo
Soma-se a tudo isso uma Também, essa colaboração de mais importante do que descobrir
constante e maciça fuga de fachada cada vez mais estreita como tornar impossível sua recor-
capitais e a emigração cada dia entre os autoproclamados “so- rência: o sentido deliberado
mais volumosa de talentos nativos, cialistas do século XXI” e os de obrigação moral ao escolher
algo parecido com a nefasta autocratas islâmicos, associados ou utilizar os métodos para obter
experiência dos cubanos na pela opinião pública ao terrorismo nossos objetivos. Sob o estrito
década de 1960, embora de da jihad, os torna cada vez mais ponto de vista da experiência
maneira um pouco mais lenta. repugnantes aos olhos dos histórica, nossa primeira linha de
Porém, nossas classes médias amantes da liberdade e da paz. defesa deveria ser constituída pela
progressivamente mais edu- O sonho das utopias cole- reafirmação vigorosa dos direitos
cadas se mostram mais bem tivistas já foi sonhado, mas os de todos à propriedade privada,
informadas sobre essas reali- “socialistas do século XXI” não se inclusive a do subsolo
subsolo. Esta
dades em todos os quadrantes aperceberam. matéria não recebeu a devida
da América Latina. Ainda se poderia citar o importância da parte de nossos
Do mesmo modo, os êxitos incidente hondurenho de quase juristas latino-americanos. Creio
contemporâneos do livre mer- um ano atrás como uma prova que isso é uma herança do
cado, apesar da recente crise adicional da paulatina mudança esmagador positivismo “científico”
financeira mundial e do custo da da maré da opinião política latino- de August Comte (sobre o qual se
luta contra o terrorismo islâmico, americana, que nos afasta cada construiu, mais tarde, o posi-
estimulam paralelamente o vez mais do “socialismo do século tivismo jurídico de Hans Kelsen),
avanço pela consecução ou XXI”. entronizado em fins do século XIX
preservação de estados de direito Porém, não deveríamos nos e que abriu espaço para as
genuínos, como no Chile, Co- preocupar tanto com esse pre- “revoluções sociais” do século XX.
lômbia, Peru, Uruguai, Panamá tenso “socialismo do século XXI”, Esquecemo-nos de que os
ou Costa Rica, ressaltando para pois isso perturba nossa busca escravos foram o que foram
nossos povos uma alternativa sistemática para identificar o que porque seu direito à propriedade
válida, em seu futuro, frente queremos na realidade. não foi reconhecido, o que
ao mentiroso “socialismo do Aqui entra o tópico inevitável consequentemente os deixava
século XXI”. de nossa obrigação de nos indefesos por não disporem de

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Política

telhano. Os dissidentes cubanos


parecem divisar as primeiras luzes
do fim do longuíssimo túnel em
que vegetaram por mais de meio
século, enquanto ao mesmo
tempo os “socialistas do século
XXI” percebem as sombras que
haverão de engoli-los definitiva-
mente em um prazo relativamente
médio.
A antipatia dos governos do
Canadá, EUA e México em rela-
ção ao “socialismo do século XXI”
se soma às graduais medidas
restritivas da União Europeia, de
Israel e do Japão ao intercâmbio
comercial com esses regimes que
se qualificam como pseudosso-
cialistas.
Devemos nos voltar todos para
um pacto pan-americano que
destaque, como proclamou no
Em Cuba, Fidel Castro valeu-se espertamente por meio século da supressão de fato da
propriedade privada na ilha para consolidar sua férrea ditadura totalitária. século XIX o mexicano Benito
Juárez, a obrigação, tanto por
parte dos estados como dos
meios com os quais pudessem aceitar, e isso desde o primeiro indivíduos, de sempre ter em
defender todos os seus outros gesto de despotismo
despotismo. Não somos mente este lema primordial: “o
direitos, começando pelos direitos ilhas, muito menos átomos sepa- respeito ao direito alheio é a paz”.
à liberdade e à vida. rados... Isso implicaria, naturalmente,
O caso de Cuba talvez seja Tal vontade solidária se con- algumas reformas profundas em
mais transparente. Fidel Castro cretizou exemplarmente em nossos códigos civil, penal e
valeu-se espertamente por meio Honduras, onde o povo, em sua processual, para assegurar mais
século da supressão de fato da maioria e através de suas ins- efetivamente a integridade das
propriedade privada na ilha para tituições mais representativas (o pessoas e de seus bens diante das
consolidar sua férrea ditadura Congresso, a Corte Suprema, a agressões dos poderosos, visíveis
totalitária, enquanto desviava Corte de Constitucionalidade, a ou não
não.
nossa atenção de suas ações Controladoria de Contas, o Para isso cada um de nós
atrozes contra os direitos hu- Ministério Público), com o apoio precisa fazer um profundo exame
manos ao pôr em prática um moral das igrejas, impediu as de consciência sobre nossos
virulento antiamericanismo. intenções golpistas de Manuel respectivos contratos sociais
Uma segunda linha de defesa Zelaya, que seguia a linha orde- constitucionais
constitucionais. Temos fracas-
que poderíamos adotar deveria ser nada por Hugo Chávez. sado repetidamente porque não
a salvaguarda incondicional do Lamentavelmente, essa mesma reconhecemos a importância
direito à livre expressão
expressão. Sem vontade solidária para com o fundamental da cláusula de se-
esse direito os povos se arrastam povo hondurenho não ocorreu na paração dos poderes supre-
às cegas para seu próprio des- OEA, entre os embaixadores das mos autônomos e iguais en-
penhadeiro, que neste caso é o Américas, devido à intromissão tre si
si, a essência de qualquer
“socialismo do século XXI” ao ilegítima de Lula da Silva, Daniel republicanismo, de modo que
estilo venezuelano. Ortega e, uma vez mais, dos realmente contemos com repú-
Uma terceira linha de resis- irmãos Fidel e Raúl Castro, de blicas que respeitem as minorias,
tência seria constituída pela mãos dadas com seu financiador, e não com monarquias presiden-
vontade solidária de todos os Hugo Chávez. ciais eleitas por prazos de quatro,
homens e mulheres que acreditem “Não há mal que dure 100 cinco ou seis anos.
que viver subjugado por tiranos é anos nem corpo que resista a Mas esse assunto ficará para
a única coisa que não se pode tanto”, diz um velho ditado cas- uma outra ocasião.

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Especial
Uma visão liberal do fato

exta-feira, 8 de agosto de 2010: um mal para a democracia no entir é feio, aprendemos na


S Augusto Nunes mostra no blog É Brasil a homogeneidade, tanto M infância, tanto em casa quanto
‘Direto ao Ponto’, na Veja Online, de propostas quanto de ideologia, na escola. Entretanto, os políticos do
vídeo revelador sobre o Presidente dos candidatos à Presidência da PT agem como se nunca tivessem
Lula e o governador do Rio, Sérgio República. Estamos manietados pelo aprendido isso, ou se esqueceram.
Cabral, na inauguração de conjunto politicamente correto. A mesmice Mentem e dizem meias verdades. A
habitacional em Manguinhos, zona predomina devido aos riscos de ser pessoa que se vale da mentira para
norte do Rio. O jovem Leandro, de diferente, de propor algo novo. atingir seus objetivos torna-se um
17 anos, se aproxima do Sr. A ausência de diversidade limita as viciado em mentir. Mesmo que não
Presidente e do Sr. Governador – e escolhas. Isso não ocorre por acaso. venha a tirar partido de uma
sua entourage – para indagar sobre Nosso sistema político sempre teve afirmação mentirosa, ela é incapaz
a não existência de quadras de tênis como alimento o fisiologismo com de dizer a verdade. O vício a
e sobre o acesso à piscina, fechada. um forte componente arrivista. identifica com a mentira. Esse parece
Surpreso com a interpelação, o Todos querem estar com o vencedor, ser o caso da candidata Dilma
Presidente justifica que tênis é coisa inclusive os financiadores de Rousseff. Sua propaganda eleitoral
de burguês. Quanto à campanha. Temos uma gigantesca está recheada de mentiras sobre as
deficiência de homens e mulheres de realizações do atual governo. Uma
impossibilidade de uso da piscina, convicção, maior ainda entre os
Lula reage com um palavrão e delas é que ele criou o ProUni.
políticos. Convicções são forjadas na Mentira, o ProUni resultou de
volta-se para um assessor, advertindo família e na escola. Nosso “índice modificações introduzidas no já
sobre “o custo político” de uma de desenvolvimento” nestes dois existente crédito educativo, Creduc.
piscina fechada num fim de semana. quesitos é muito baixo, não por O programa ‘Minha Casa Minha
O Governador também se acaso. Hayek identificou a seleção Vida’, apontado repetidamente como
destempera e qualifica o jovem de adversa na política: os cidadãos responsável pela construção, e
“otário”, procurando intimidá-lo num mais bem preparados raramente se suposta entrega, de 400 mil
bate-boca revelador, talvez assustado tornam políticos profissionais, e unidades em um ano, até agosto
com a coragem do adolescente. Era quando tentam, não são eleitos, tinha produzido e entregue apenas
um dia de capitalizar politicamente não dominam o idioma das urnas. 0,9% do que foi prometido.
as propaladas benesses da parceria No Brasil, o custo moral de se Entretanto, a propaganda, em
política entre o governo federal e o aprender esse dialeto é muito meia- verdade, só se refere ao total
estadual para a população mais elevado. Os empresários já programado. As realizações do PAC
carente. O vídeo foi gravado em perceberam que é mais fácil e apresentadas como investimentos
maio de 2009, mas só agora vem proveitoso comprar a simpatia dos efetivamente realizados são, na
a público. São 73 segundos de pura dirigentes em favor de seus negócios realidade, apenas intenções, como
revelação da verdadeira face dos do que lutar abertamente por no caso da Rocinha – meia verdade
dois políticos. A coragem de Leandro liberdade. Aqueles convictos dos desmascarada pela imprensa.
e a tecnologia hoje disponível a ideais libertários vivem entre a cruz A estratégia do PT é insistir com a
baixo custo tornaram possível ao e a caldeirinha, em um exercício mesma mentira muitas vezes até
morador de Manguinhos a permanente para manterem que ela seja vista como verdade.
“revelação”. seus negócios. Além de feio, é imoral.

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Matéria de Capa

Mercado e regulação do setor de


saúde suplementar no Brasil
Sandro Leal Alves
Economista, Mestre em Economia, Professor-assistente do Instituto de Ciências Econômicas e Gestão
da Universidade Santa Úrsula e gerente-técnico da Federação Nacional de Saúde Suplementar.

aturalmente, nem a diligên- para comprovar tal resultado. de espaços públicos por grupos
“N cia dos mortais comuns nem Basta ler os jornais e assistir aos de interesses. Ao contrário, bus-
as energias de uma economia noticiários que teremos a dimen- caremos neste artigo analisar al-
competitiva podem detectar, pre- são das dificuldades que per- gumas das razões pelas quais o
venir ou corrigir todos os azares, meiam o oferecimento público mercado de saúde suplementar
negligências e fraudes da vida. de serviços de saúde e que re- não consegue atender o desejo de
Portanto, nada mais natural que sultam em filas intermináveis e muitos consumidores.
nos voltarmos para aquele centro baixa qualidade de atendimento, Para dar maior realismo ao ar-
de autoridade, aquele depositário penalizando principalmente os gumento, imaginem as seguintes
da virtude e da benevolência, mais pobres. situações hipotéticas. Um cida-
aquela fonte de justiça – o Esta- Não constitui objetivo deste en- dão deseja adquirir um plano de
do, para prover a mais ampla pro- saio buscar as causas para a ine- saúde que cubra o tratamento
teção ao consumidor. Em conse- ficiência do SUS, que vão desde de apenas algumas doenças bem
quência, convivemos hoje com um os objetivos definidos constitucio- específicas, como câncer ou
regime luxuriante e prolixo de leis nalmente, colocando a saúde doenças coronarianas, que ele,
e agências para proteger o con- como um direito fundamental, até por razões próprias, tema e bus-
sumidor”. as mazelas que atingem todo o
sistema político, como a ocupação
(George Stigler, prêmio Nobel de
Economia de 1982, em “The Theory
of Economic Regulation.” Bell Journal
of Economics and Management Science,
nº 3, pp. 3-18 – Tradução Livre)

1. INTRODUÇÃO
O sistema de saúde brasileiro
é tido pelos sanitaristas como sen-
do a maior e mais bem-sucedida
experiência de política social no
país. Ao final do período militar,
no esteio da chamada reforma
sanitária e, mais concretamente,
na promulgação da Carta Magna
de 1988, foram constituídos os
pilares de sustentação de um
sistema de saúde universal, inte-
gral e hierarquizado de viés bis-
marquiano. O Sistema Único
de Saúde (SUS) não consegue su-
prir as demandas crescentes da
sociedade por serviços de assis-
tência à saúde de forma igualitá-
ria e universal, e não é preciso
grande esforço demonstrativo

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 15
Matéria de Capa

que proteção fora do setor públi- mentação criou uma série de difi- ciários de planos médicos e odon-
co. Imagine outra situação onde culdades para o oferecimento de tológicos, cerca de 29% da popu-
numa localidade do interior exis- novos planos, e muitas operado- lação. Atualmente, operam no se-
tam apenas algumas clínicas par- ras optaram por atuar apenas no tor 1.658 empresas, sendo que
ticulares que queiram vender para mercado corporativo, deixando o 1.195 operam no segmento médi-
os moradores da região planos mercado de planos individuais, co-hospitalar e 463 no odontológico.
de saúde com cobertura restrita que precisa da constante entrada Existem diferentes modalidades
àqueles serviços disponíveis. Ima- de novos consumidores para sus- de operadoras, como as segura-
gine uma terceira situação. Um tentar o princípio do mutualismo. doras especializadas em saúde, as
empresário deseja oferecer um Com o envelhecimento da popu- empresas de medicina de grupo,
plano para seus funcionários que lação brasileira (daqui a quarenta as cooperativas médicas, as filan-
contemple apenas alguns tipos de anos teremos três vezes mais o trópicas, as empresas de auto-
consultas e exames. número de idosos), ficamos com gestão, as administradoras, as
Todas as situações anterior- o risco de inviabilizar soluções odontologias de grupo e as coo-
mente caracterizadas têm em co- advindas do setor privado devido perativas odontológicas. Essas
mum o fato de, por força da re- à proteção excessiva dada aos modalidades variam na sua cons-
gulamentação, não existir casa- consumidores atuais. A proteção tituição jurídica e tributária, mas
mento entre a oferta e a deman- atual gera custos aos consumido- essencialmente na forma de pres-
da de mercado. Nestes e em inú- res do futuro. tação de serviços médicos. Por
meros outros casos não há equi- Após uma breve apresentação exemplo, as seguradoras não po-
líbrio entre o desejo de ofertantes do setor passaremos a discutir, dem, por força de lei, possuír
e compradores, pois o Estado en- sob o enfoque da economia da redes de hospitais, enquanto as
tende que na área da saúde o regulação, algumas das políticas demais podem. As cooperativas
consumidor é hipossuficiente e in- públicas adotadas e seus efeitos são regidas pelo cooperativismo,
capaz de decidir pelo seu consu- imediatos e secundários. além da legislação específica do
mo. A regulamentação do setor setor de saúde suplementar, e os
buscou a proteção dos consumi- 2. RAIO X DO SETOR médicos são, em tese, ao mesmo
dores a partir do estabelecimento tempo prestadores e donos do ne-
de coberturas mínimas obrigató- O setor de saúde suplementar, gócio. As empresas de auto-
rias, do controle dos reajustes dos segundo dados da Agência Na- gestão são constituídas sob o pa-
planos individuais, da criação de cional de Saúde Suplementar (ANS), trocínio de uma empresa que de-
regras para a entrada, operação é constituído pelas denominadas seja oferecer o benefício saúde
e saída do setor, dentre muitas operadoras de planos de assistên- aos seus funcionários. As admi-
outras. Com o argumento de se cia à saúde, que oferecem cober- nistradoras apenas procedem à
proteger o consumidor, a regula- tura para 56 milhões de benefi- gestão do benefício, enquanto as

Tabela 1 – Distribuição dos Beneficiários de Planos de Saúde por Modalidade (Mar/2010)

Número de
Modalidade Operadoras % Beneficiários %

Autogestão 244 14,7 5.328.492 9,4


Cooperativa Médica 339 20,4 15.431.176 27,3
Filantropia 97 5,9 1.472.185 2,6
Medicina de Grupo 479 28,9 17.527.980 31
Seguradora Especializada em Saúde 13 0,8 6.750.078 11,9
Cooperativa Odontológica 133 8,0 2.371.443 4,2
Odontologia de Grupo 330 19,9 7.692.238 13,6
Administradora 23 1,4 0 0,0
Total do Mercado 1.658 100,0 56.573.592 100,00
Fonte: Caderno de Informações de Saúde Suplementar (ANS - Jun/2010)

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 16
Matéria de Capa

operadoras de odontologia de historicamente influenciada pelas tem sido a justificativa econômica


grupo e cooperativas odonto- diretrizes do sanitarismo, cuja aver- básica para a intervenção. A eco-
lógicas oferecem apenas planos são ao setor privado é notória. nomia da saúde reporta às deno-
odontológicos.1 A Tabela 1 resu- Parte da explicação deve-se ao minadas assimetrias informa-
me as estatísticas dessas modali- fato de a ANS ser uma agência cionais a causa de distorções que
dades. vinculada ao Ministério da Saúde, afetam o mercado de saúde su-
Esse conjunto de empresas foi portanto muito mais perto de plementar, de modo que este não
responsável pelo pagamento de uma regulação da assistência do opere com o mesmo grau de efi-
R$ 53 bilhões de despesas assis- que da regulação técnico-econô- ciência que os mercados em con-
tenciais no ano de 2009, o que mica. Duas máximas, pode-se di- corrência perfeita. Ao menos três
equivale a aproximadamente 44% zer, são adotadas pelos sanitaris- problemas resultam da existência
do orçamento público destinado tas: 1)O mercado é imperfeito e de assimetrias de informação en-
à saúde para a cobertura da to- o governo é dotado de qualida- tre os participantes desse merca-
talidade da população brasileira. des morais superiores para re- do: risco moral, seleção adversa
Para fazer frente a essas despe- gulá-lo de forma a atender as de- e a indução de demanda.
sas o setor arrecadou voluntaria- mandas da sociedade, e 2) Não O risco moral ocorre quando,
mente da sociedade, empresas e se aplica a teoria econômica tra- na presença de seguro (ou plano),
indivíduos cerca de R$ 65 bilhões, dicional para estudar o funciona- a estrutura de incentivos que o se-
e constituiu cerca de R$ 10 bi- mento dos mercados de saúde, gurado se depara se altera, favo-
lhões em provisões técnicas para pois saúde é um bem diferente. recendo a utilização de serviços
garantir eventos futuros. Nesse Partidários do sanitarismo brasi- para além do limite em que este
mesmo ano o setor foi respon- leiro acreditam que a atuação pri- utilizaria caso incorresse direta-
sável pela realização de 223 mi- vada na área da saúde deve ser mente no pagamento dos serviços.
lhões de consultas médicas e evitada, e a regulamentação re- Como o custo (monetário) mar-
odontológicas e aproximada- flete esse pensamento. Retirando ginal da utilização é zero, o bene-
mente 5 milhões de internações as digitais ideológicas da regula- ficiário não tem incentivo suficien-
hospitalares. mentação, pode-se buscar por ar- te para racionalizar sua deman-
gumentos que respaldem deter- da e provoca muitas vezes a utili-
3. MERCADO E REGULAÇÃO minadas intervenções, como a zação desnecessária de serviços,
produção pública de vacinas de- alterando a distribuição de proba-
A saúde suplementar foi regu- vido a externalidades positivas bilidades associada à ocorrência
lamentada pela Lei nº 9.656 de que produz na sociedade. do evento indenizável. O risco
1998, após dez anos em trami- moral pode ser atenuado median-
tação no congresso nacional. 3.1. Organização do te mecanismos de compartilha-
Como resultado tivemos a ampli- Mercado mento de risco entre a operadora
ação e a padronização das co- e o segurado, como a coparti-
berturas mínimas obrigatórias, a O setor de saúde suplemen- cipação deste no pagamento dos
necessidade de cumprimento de tar está organizado, pelo lado da serviços. A literatura mostra que
requisitos técnicos e financeiros oferta, por um conjunto de rela- a utilização desses mecanismos é
para a entrada e continuidade no ções contratuais (formais ou in- capaz de reduzir as perdas de bem-
negócio, a proibição da seleção formais) entre as operadoras de estar provocadas pelo risco moral.
de riscos por doença ou lesão pre- planos de saúde, os prestadores Adicionalmente, quanto maior for
existente, o controle atuarial so- de serviços de assistência médi- a cobertura, maior é o estímulo
bre os preços de venda, o estabe- co-hospitalar e odontológica, a ao risco moral, produzindo um
lecimento de faixas etárias para a indústria de medicamentos e, fi- trade-off entre grau de cobertura
precificação dos contratos e a re- nalmente, a indústria de mate- e risco moral.
gulamentação dos períodos de riais e equipamentos. Pelo lado da Já o fenômeno da seleção ad-
carência. Criada pela Lei nº demanda temos os consumidores versa ocorre no caso em que as
9.961, de 2000, a ANS é a agên- individuais, pessoas físicas, e os operadoras não são capazes de
cia reguladora das operadoras e clientes corporativos, pessoas ju- conhecer perfeitamente o risco
é uma autarquia sob regime es- rídicas. dos indivíduos (a probabilidade de
pecial, vinculada ao Ministério da A literatura de falhas de mer- adoecimento) antes de aceitá-los
Saúde. cado é bastante ampla, mas no em sua carteira. Assim, caso a
Na prática, o que se observa é caso dos planos de saúde a pre- operadora estabeleça um preço
que a regulação desse setor foi sença de informação assimétrica baseado na média de risco des-
1
Veja a Resolução de Diretoria Colegiada da ANS nº 39 de 2000 para maiores detalhes das modalidades.

SET/OUT/NOV - 2010 - Nº 52 17
Matéria de Capa

ses indivíduos teremos como re- serviços. O sistema fee-for-ser- e incentiva a seleção adversa ao es-
sultado que os indivíduos de nível vice (pagamento por procedi- tipular regras para a precificação
de risco superior à média do mer- mento realizado) está associado por faixas etárias. Ao aumentar as
cado contratarão o plano de saú- à indução de demanda, enquan- coberturas a cada dois anos o re-
de. Ao contrário, aqueles indiví- to outros mecanismos de remu- gulador estimula a utilização des-
duos com risco inferior ao risco neração, como pacotes, por ses procedimentos, e por mais que
médio não aderem ao contrato, exemplo, procuram reduzir tal in- possam ter recomendação cientí-
pois seria caro demais para eles. centivo. Na prática, o sistema de fica, acabam aumentando os pre-
No final do processo apenas os incentivos do setor leva a uma ços dos planos. No caso das
indivíduos com saúde precária produção exagerada de consul- faixas etárias, como há uma re-
participariam dos contratos, o que tas, exames e internações, o que gra que estabelece que a últi-
inviabilizaria a existência do mer- não necessariamente acompanha ma faixa etária não pode cus-
cado privado diante da não pos- tar mais do que seis vezes a pri-
sibilidade de diluição dos riscos meira, os preços dos planos
entre os seus consumidores. Em- acabam sendo caros para os jo-
piricamente, entretanto, diversos
estudos demonstraram que na
prática este efeito é muito reduzi-
“ O setor de saúde
suplementar está
organizado, pelo lado da
vens para subsidiar os mais ido-
sos, incentivando a entrada
daqueles com maior tendência
do ou inexistente: as empresas pro- de utilização.
curam reduzir a assimetria de in- oferta, por um conjunto Como é fruto da própria expe-
formação que lhes é desfavorável de relações contratuais riência humana com o objetivo de
através de, por exemplo, uma ava- (formais ou informais) facilitar o processo de trocas
liação individual do risco (ques- numa sociedade, o mercado, tal
tionários médicos), pelo estabele- entre as operadoras qual o ser humano, não é perfei-
cimento de carências e de contra- de planos de saúde, to. Entretanto, a utilização do sis-
tos diversificados. os prestadores de tema de mercado tem sido a for-
Uma característica interessante serviços de assistência ma mais indicada para resolver
no setor de serviços médicos é que diversos problemas de alocação
a responsabilidade pelo diagnós- médico-hospitalar e de recursos escassos a partir do
tico e, muitas vezes, pelo trata- odontológica, a indústria interesse pessoal e da coordena-
mento é uma tarefa que o pa- de medicamentos e, ção pelo sistema de preços, mas
ciente delega ao médico (ou den- finalmente, a indústria está longe da perfeição. O “mer-
tistas, hospitais etc.), em função cado”, tratado muitas vezes como
de materiais e

da assimetria de informação en- se fosse um ser dotado de conhe-
tre ambos. Quem compra não é equipamentos. cimento e desejos, nada mais é do
quem decide, na grande maioria que o conjunto de escolhas inde-
das situações. Nesse contexto, o pendentes realizadas por seres
corpo clínico e o médico são os humanos imperfeitos, mas que,
principais responsáveis pelo di- o interesse do paciente, que aca- na ausência de distorções, fun-
recionamento do paciente dentro ba pagando a conta na forma de ciona de forma superior ao ofere-
do setor médico-hospitalar, e é maiores mensalidades. cimento público estatal de bens e
o médico quem determina em serviços.
grande parte a alocação dos re- 3.2. Regulação Em que pese estarem as cha-
cursos escassos do setor. Surge madas falhas de mercado bem
dessa forma a possibilidade de Olhando de um prisma neo- identificadas e com elevados in-
criação de demanda pelos seus clássico, o arcabouço regulatório centivos para sua autocorreção,
próprios serviços creditada, nova- em mercados privados de saúde a experiência mostra que a regu-
mente, à assimetria de informa- deveria se limitar a garantir a lação que vem sendo implemen-
ção entre o médico e o paciente e produção de bens com grandes tada no setor ultrapassa os limi-
entre o médico e a operadora de externalidades positivas e, no limi- tes da regulação econômica, in-
plano. Tal fenômeno é conhecido te, contribuir para se evitar o risco duzindo as empresas de planos
como indução de demanda pela moral e a seleção adversa, além de saúde a oferecerem cobertu-
oferta. O mecanismo adotado de garantir direitos de propriedade. ras amplas e serem cada vez mais
pelas operadoras na remunera- No Brasil, tais parâmetros nunca responsáveis pelo resultado de
ção dos prestadores influencia di- foram respeitados. Ao contrário, sua gestão assistencial. Nesse sen-
retamente o comportamento des- a regulamentação incentiva o ris- tido, duas vertentes regulatórias
tes com relação à utilização dos co moral ao ampliar coberturas, serão examinadas no sentido de

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que elas ultrapassam a raciona- poucos competidores atuando, se 3.2.2. Rating de


lidade econômica para interven- recomenda, como política públi- Operadoras
ção no mercado e produzem ca, a redução das barreiras à en-
custos sociais elevados que, se fo- trada no mercado, algumas eco- Outra regulação, digamos,
rem mantidos tendem a ser trans- nômicas e tecnológicas e outras heterodoxa, é a produção pela
mitidos às futuras gerações. de natureza regulatória, como for- ANS do índice de desempenho em
ma de incentivar a competição e saúde suplementar (IDSS). O go-
3.2.1. Regulação de Preços inibir práticas anticompetitivas. É verno entendeu ser de responsa-
a política de defesa da concorrên- bilidade da operadora o resulta-
O controle de preços demons- cia monitorando a competição do final sobre a saúde dos bene-
tra ser uma prática tão antiga nos mercados a partir do contro- ficiários, e cabe a ela perseguir
quanto ineficiente. Datada pelo le dos atos de concentração, da formas de indução a um compor-
menos do Código de Hamurabi repressão às práticas de cartel e tamento de qualidade dos seus
(2000 a.c.),2 que controlou pre- demais condutas anticoncor- credenciados. O seu programa de
ços e salários, teve seu “apogeu” renciais.5 qualificação segue esta lógica
na época do Imperador Dio- Talvez mais importante do que onde a operadora é uma gestora,
cleciano que determinava simples- buscar argumentos que justifi- não de recursos financeiros, mas
mente a pena capital para aque- quem intervenção pública nos pre- da saúde dos seus beneficiários.
les que ousassem elevar os seus ços vale observar os seus efeitos Na prática, o IDSS procura
preços.3 Como resultado, tivemos reais no mercado como um bom medir o desempenho das opera-
a redução da oferta no mercado. indicador da qualidade da políti- doras mediante a utilização de
Por mais rigorosa que seja uma ca. A proteção de 7,5 milhões de diversos indicadores a fim de
legislação restritiva, como nos consumidores de planos individu- auferir os seus níveis de qualida-
casos acima mencionados, não ais resulta em ganhos reais de de. A partir da divulgação desses
há como revogar as leis da de- bem estar para a sociedade? Pro- dados à sociedade, segundo a
manda e da oferta. vavelmente para esses consumi- ANS, os agentes econômicos po-
A teoria econômica moderna, dores a política tenha sido bené- derão superar a assimetria in-
longe de prescrever punições mor- fica pois os preços pagos crescem formacional e melhorar a capaci-
tais como a do Imperador roma- menos que os custos para os pla- dade de escolha. O processo de
no, é capaz de identificar um con- nos. E os consumidores que ajustamento do mercado se da-
junto de situações em que a re- poderiam ter coberturas de pla- ria no sentido de uma migração
gulação dos preços pode ser efi- nos de saúde, mas não possuem dos consumidores para as opera-
caz. Entretanto essas são poucas, devido ao aumento dos preços doras de melhor qualidade, o que
e muito bem delimitadas situações, dos novos produtos? Possivel- estimularia o lado da oferta a se
como no caso de um monopólio mente o mercado ofereceria adaptar a esse novo ambiente e
natural.4 Nesse caso, como não produtos ajustados à demanda introduzir em suas funções-obje-
existe mercado para forçar uma na ausência da regulação de tivos a melhoria da qualidade
redução de preços aos níveis com- preços e os consumidores, em como forma de atração e reten-
petitivos, a empresa monopolista sentido amplo, estariam em ção de clientes.
se vale de seu poder de mercado melhor situação, pois o merca- No setor financeiro, por exem-
para cobrar preços de monopó- do estaria funcionando mais li- plo, as agências de rating produ-
lio. Há quem defenda que mes- vremente. zem serviços de avaliação sobre
mo nesses casos, caso as barrei- A despeito da questão teóri- a qualidade de crédito e a proba-
ras à entrada no mercado sejam ca, na prática a regulação dos bilidade default. Na vida cotidia-
suficientemente baixas a ponto de reajustes é identificada como na existem inúmeros exemplos de
contestar o monopólio, a própria importante inibidor do cresci- publicações que também ofere-
possibilidade de entrada elimina mento do mercado dos planos cem o serviço de avaliação de qua-
a regulação de preços. individuais e a intensificação dos lidade de restaurantes, hotéis etc.
Em mercados onde a compe- controles burocráticos da utili- No setor hospitalar existem enti-
tição é reduzida, ou seja, existem zação dos planos. dades privadas que também pro-

2
O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis já encontrados, e um dos exemplos mais bem preservados desse tipo de documento da antiga Mesopotâmia.
O objetivo deste código era homogeneizar o reino juridicamente e garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurabi afirma que elaborou o conjunto de leis “para
que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver todas as disputas e sanar todos os ferimentos”. Fonte: wikipedia.org
3
Mises, L. “As Seis Lições” Instituto Liberal, 1998.
4
O monopólio natural pode ser descrito como a estrutura de mercado onde a eficiência econômica é alcançada com a presença de apenas uma única empresa devido às
características tecnológicas de produção (elevados custos fixos e baixos custos marginais). Ex. Estações de tratamento de água, esgoto, redes de distribuição. Ainda que seja
monopolística, nada indica que a empresa tenha que ser de capital público.
5
Veja, por exemplo, W. Kip Viscusi, Joseph E. Harrington e John M. Vernon (2005) Economics of Regulation and Antitrust, 4th Ed. MIT Press.

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Matéria de Capa

duzem serviços similares, como a


Organização Nacional de Acredi-
tação e o Consórcio Brasileiro de
Acreditação. Os hospitais acredi-
tados por essas instituições bus-
cam voluntariamente a certifi-
cação como uma comprovação
de diferenciação da qualidade
procurando com isso angariar
mais clientes, melhores taxas de
financiamento ou melhores con-
dições de negociação.
No caso da saúde suplemen-
tar a ANS se apropriou dessa ta-
refa e, ao contrário das demais
agências reguladoras, que tenha-
mos conhecimento, divulga notas
de qualidade para as operadoras
reguladas numa tentativa de
influenciar a demanda e o com-
portamento das próprias opera-
doras, consequentemente.

4. CONCLUSÃO
Nem mesmo o SUS está sujeito à atribuição de notas pelo Ministério da Saúde.
A conclusão a que chegamos é
que o setor de saúde suplementar No setor de saúde suplemen- prios critérios de performance no
não teve sua regulação pautada tar os incentivos gerados são mercado. Vale lembrar que nem
por critérios técnicos de raciona- preocupantes. O controle de rea- mesmo o SUS está sujeito à atri-
lidade econômica. Ao contrário, justes de preços, por exemplo, a buição de notas pelo Ministério da
grande parte da intervenção pú- despeito de proteger 7,5 milhões Saúde. No longo prazo, cada vez
blica se dá no sentido de ampliar de consumidores, gera externali- mais o setor se submeterá aos
a cobertura e a responsabilidade dades negativas sobre os demais comandos regulatórios sob o ris-
do setor privado como se este fos- consumidores, que não acessam co de ter seu maior ativo, sua re-
se público. O argumento prepon- o mercado devido à ausência de putação, arranhada por critérios
derante da denominada econo- oferta ou pelos preços majorados. subjetivos e mutáveis.
mia do bem-estar social está na Além disso, algumas empresas Nossa conclusão é que o se-
assertiva de que cabe ao Estado que continuam a oferecer o pro- tor de saúde suplementar de fato
remediar as distorções e falhas duto individual utilizam controles nada tem de suplementar ao se-
dos mercados, eliminando suas estritos para conter a utilização. tor público no sentido técnico do
deficiências. Toda a literatura se Qual o custo social dessa políti- vocábulo. Cada vez mais, a regu-
desenvolveu no sentido de identi- ca? Há também um problema lamentação, sob o pretexto de
ficar falhas no funcionamento dos intertemporal. Se as populações proteger o consumidor, vem intro-
mercados privados e, a partir des- jovens não aderirem aos planos duzindo obrigações e coberturas
se diagnóstico, sugerir a partici- de saúde devido ao preço eleva- ao setor privado que, em tese,
pação do Estado seja regulamen- do (em comparação com a sua seriam de responsabilidade do
tando, seja provendo diretamente percepção de risco), como se dará setor público, sem a necessária
bens públicos. Essa escola de pen- a sustentabilidade intergeracional liberdade de revisão de preços.
samento pressupõe que a ação diante do envelhecimento da po- Trata-se, portanto, de um sistema
pública é sempre bem-sucedida pulação? de saúde duplicado com redes
na tarefa de eliminar falhas de Outra política abordada neste públicas e privadas, mas que pela
mercado, ou seja, os governos têm artigo diz respeito ao índice de ideologia regulatória falta oferta
sucesso onde os mercados fa- qualidade adotado pela ANS. privada onde há demanda. Não
lham e os recursos são alocados Além de regular e fiscalizar, a ANS seria um bom momento para re-
eficientemente. Ledo engano. atribui notas segundo seus pró- ver a regulamentação?

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Internacional

Brasil e África: uma nova etapa


no relacionamento?
Roberto Fendt
O autor é economista e vice-presidente licenciado do Instituto Liberal.
Atualmente assessora o Ministro de Estado e da Coordenação Econômica de Angola.

m 2000, O embaixador
E José Vicente de Sá Pimentel,
então Diretor-Geral do Departa-
mento de África e Oriente Próxi-
mo do Ministério das Relações Ex-
teriores do Brasil, observou que
“os temas africanos têm entre nós
uma trajetória peculiar. Suas re-
percussões são episódicas e emo-
cionais. Talvez por isso as percep-
ções mais difundidas sobre as re-
lações do Brasil com o continente
africano em geral oscilam entre
dois polos extremados, um deci-
didamente nostálgico, outro ca-
tastrófico.”1
O que mudou? A atual políti-
ca externa brasileira tem entre
suas prioridades o estreitamento
das relações Sul-Sul. Nesse con-
texto os países africanos, em es-
pecial os membros da Comunida-
de dos Países de Língua Portu-
guesa (CPLP), estariam entre os
prioritários. Qual a razão dessa
prioridade? Que interesses na-
cionais se refletem na expansão
das relações Sul-Sul, particular-
mente com relação à África? O
que justifica hoje o interesse na
bacia do Atlântico Sul na política
externa brasileira?
sa na costa atlântica e suas ilhas. teve pouco a ver com essa política
PRIMÓRDIOS: UMA DIGRESSÃO Foi também o começo de cinco de expansão ultramarina.3 É o que
NECESSÁRIA séculos de relações muitas vezes afirmou Celso Furtado na For-
tensas entre a Europa e a África mação econômica do Brasil.
O início do relacionamento da meridional.”2 O desenvolvimento econômico
África com a Europa é assim As razões para a busca de co- de Portugal no século XV — a ex-
descrito por David Birmingham: lônias ultramarinas estavam na ploração da costa africana, a ex-
“Cerca de 1.488, Bartolomeu pobreza do país e nas dificulda- pansão agrícola nas ilhas do
Dias, um navegador português, des de transporte do interior de Atlântico, e finalmente, a abertu-
chegou ao Cabo da Boa Esperan- Portugal para o litoral. Diferente- ra da rota marítima das Índias
ça, na ponta mais longínqua da mente de outros Estados contem- Orientais — constitui um fenôme-
África meridional. Esta foi a últi- porâneos, o fechamento do Me- no autônomo na expansão comer-
ma fase da exploração portugue- diterrâneo pela expansão turca cial européia, em grande parte in-

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Internacional

dependente das vicissitudes cres- nuava a ser uma combinação de terra firme e em parceria com os
centes criadas ao comércio do trabalho livre vindo de Portugal nativos. Nessa colônia, todo tipo
Mediterrâneo oriental pela pene- combinado com trabalho escra- de comércio interessava aos co-
tração otomana. A produção de vo, trazido de Tenerife. lonizadores portugueses; a com-
açúcar na Madeira e São Tomé A terceira fase teve por cená- pra de escravos era apenas uma
alcançou seus pontos altos na rio as ilhas de Cabo Verde (a par- entre essas atividades. De resto,
segunda metade do século XV, tir de 1460). Agora, o objetivo era já a partir de 1441 o comércio
época em que os venezianos ain- suprir Portugal de algodão. Se- de escravos havia se tornado sua
da conservavam intactas suas fon- guindo o modelo das fases ante- principal atividade.
tes de abastecimento nas ilhas do riores, combinava mão de obra A partir da década de 1570
Mediterrâneo oriental. O mesmo comprada no oeste do continen- evidenciou-se a impossibilidade da
se pode dizer do comércio das te africano com artesãos portu- escravidão dos indígenas no Bra-
especiarias das índias, pois a ocu- gueses que transferiam a tecno- sil e iniciou-se o tráfico de escra-
pação do Egito — entreposto prin- logia de tecelagem. Os tecidos vos africanos para a colônia ame-
cipal — pelos turcos só ocorreu produzidos nas ilhas eram troca- ricana. Por mais odioso que seja
um quarto de século depois da dos no continente por mais escra- dizê-lo, a rentabilidade do investi-
viagem de Vasco da Gama.4 vos para a expansão da produção. mento em escravos africanos era
A produção de açúcar não foi Na quarta fase o alvo era a alta. Na primeira metade do sé-
a primeira tentativa de Portugal ilha de São Tomé, ao largo do del- culo XVII o pay back nesse inves-
de superar as limitações da me- ta do Níger, iniciada em 1471. Lá timento macabro era de 13 a 16
trópole com a expansão ultrama- foi introduzida pela primeira vez meses. Em razão disso, estima-se
rina. a cana-de-açúcar, contando com que entre 1550 e 1855 cerca de
David Birmingham identificou a ampla oferta de escravos a par- quatro milhões de escravos afri-
seis fases da expansão portugue- tir dos entrepostos de São Jorge canos foram levados ao Brasil.6
sa na África. A primeira começou da Mina e de Axim, no continente. No século XVI a principal ori-
com a colonização dos Açores (a Diferentemente dos experimentos gem dos escravos eram as costas
partir de 1420) e da Madeira (a anteriores, o açúcar exigia uma da Guiné e da Mina. A partir do
partir de 1427), com o objetivo grande escala de produção, de século XVII a origem desloca-se
de suprir de trigo a metrópole. O forma a amortizar os investimen- para o Congo e Angola. Os por-
modelo era o de plantations com tos em engenhos e alambiques. tos de embarque são Cabinda,
mão de obra suprida por colonos Era também a cultura mais ade- Luanda e Benguela. No século
portugueses e escravos obtidos quada para uma economia escra- seguinte, estima-se que 70%
das costas berberes. Procurava-se vagista, dadas as demandas por dos escravos provinha de Ango-
com isso minimizar os problemas trabalho intenso nas épocas de la. O pagamento pelos escravos
e custos de acesso de Lisboa ao colheita. nas praças de destino, Salvador
interior de Portugal, além das li- A quinta fase deu-se com a ou Rio de Janeiro, era feito ou
mitações naturais do tamanho e exploração mineira. Os escravos com aguardente de cana e tiras
da topografia do território.5 das plantations nas ilhas do Atlân- grossas de tabaco curado com
A segunda fase envolveu a ten- tico foram transferidos para as melaço.7
tativa de estabelecer uma indús- minas de ouro no continente, pas-
tria vinícola no ultramar, de forma sando as ilhas a funcionar como INTRUSOS NO ATLÂNTICO SUL
a superar os problemas de trans- entrepostos de escravos.
porte do vinho do Porto em um Finalmente, na última fase de O sucesso do modelo de colo-
rio problemático como o Douro. sua expansão colonial, em Ango- nização portuguesa e as riquezas
As ilhas Canárias foram o território la deu-se um experimento diver- geradas com o trabalho escravo
escolhido para esse experimento. so. Ali, os portugueses tentaram – nas plantations de cana e nas
O sistema de exploração conti- um modelo de colonização em minas de ouro de prata, nos im-

Cerca de quatro milhões de escravos


africanos foram levados ao Brasil.

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Internacional

périos português e espanhol – Preocupados em assegurar gional dos países da região, nota-
atraiu outros Estados europeus suas rotas para a Índia e com a damente Brasil, Argentina e Áfri-
para o Atlântico Sul. abertura ao comércio para suas ca do Sul.
Primeiro vieram os franceses. manufaturas, a marinha real bri- Iniciativas isoladas, como a
Em 1555-1560 se estabelece- tânica restringiu progressivamen- política externa independente (PEI)
ram no Rio de Janeiro, e em 1612- te o tráfico de escravos no Atlân- de San Tiago Dantas e do chan-
1615 em São Luiz, no Maranhão. tico Sul. Em 1823, com o enfra- celer Araújo Castro, não tiveram
Foram expulsos, como se sabe. quecimento do império portu- consequências duradouras. A PEI
Depois vieram os holandeses. guês, soldados e colonos de Ben- teve resultados mais concretos, no
Se o período entre 1637 e 1644 guela promoveram uma rebelião campo político, com o chamado
foi de paz sob o governo de Mau- separatista. Os rebeldes procla- “ecumenismo” do governo dos
rício de Nassau, o período entre maram o desejo de formar uma presidentes Ernesto Geisel e João
1645 e 1654 — a “reconquista” confederação com o Brasil, a Baptista Figueiredo. O presidente
— foi de guerra. Em 1654 os ho- “Confederação Brasílica”, com o Sarney e o chanceler Abreu Sodré
landeses capitularam. Durante objetivo de manter o tráfico de procuraram consolidar os ganhos
sua permanência no Brasil os ho- escravos entre os dois lados do diplomáticos com a realização da
landeses procuraram mater os flu- Atlântico.10 O comércio entre Sal- Primeira Cúpula dos Países
xos de escravos africanos. Para vador, Bahia, e o Golfo da Guiné, Lusófonos e a criação do Institu-
isso, os holandeses ocuparam e entre o Rio de Janeiro e Luanda, to Internacional de Língua Portu-
Luanda e Benguela, em Angola, definhava. guesa.
em 1641. Ainda no campo político o Bra-
Salvador Correia de Sá e Bene- O IMPÉRIO, AS RELAÇÕES sil condenou explicitamente a po-
vides, que em 1625 combateu os BRASIL-ÁFRICA, E DEPOIS lítica do apartheid sul-africano e
holandeses na defesa da Vila do impôs sanções econômicas ao
Espírito Santo e na reconquista da A contestação britânica à su- país. Ainda por iniciativa brasilei-
cidade do Salvador, na Bahia, co- premacia de Portugal, e depois do ra, em 1986 resolução da ONU
mandou as forças que em 1647 império do Brasil, nas rotas do aprovou a declaração de Zona de
expulsaram os holandeses de Atlântico Sul, consolidou-se com Paz e Cooperação do Atlântico Sul
Luanda. Como que explicitando o a progressiva redução do tráfico (ZOPACAS), com o objetivo de
estreito relacionamento entre as negreiro entre a costa africana e promover o uso pacífico do Atlân-
colônias brasileira e africana, Sal- o Brasil, e com a abertura do ca- tico Sul pelos Estados ribeirinhos.
vador Correia de Sá e Benevides nal de Suez em 1837. O golpe Eram tempos de descolo-
foi Governador da Capitania do final se daria com a abertura do nização (iniciada nas décadas de
Rio de Janeiro entre 1637 e canal do Panamá em 1914. O 1950-60 e concluída em 1975
1642, Governador-geral da An- Atlântico Sul, aos poucos, no “lon- na África portuguesa) e redemo-
gola portuguesa em Luanda en- go século XIX” que termina em cratização, a última nos dois la-
tre 1648 e 1652, e novamente 1914, se tornando um “vazio” sob dos do Atlântico. Um novo mar-
governador do Rio de Janeiro en- a égide da Pax Britannica.11 co na nova política externa brasi-
tre 1659 e 1660. João Fernandes Encerrado o tráfico, com a leira com relação à África foi a
Vieira e André Vidal de Negreiros perda de significado econômico criação da Comunidade dos
também participaram da adminis- do Atlântico Sul, paulatinamente Países de Língua Portuguesa
tração da Luanda restaurada. definha o relacionamento do Bra- (CPLP). Expandiu-se a rede de re-
Novos desenvolvimentos trou- sil com a África. O predomínio da presentações diplomáticas do
xeram outros europeus para o Royal Navy na região, assegura- País, a um tempo em que o nú-
Atlântico Sul. O ouro foi desco- do pelo Acordo de Simonstown de mero de missões diplomáticas
berto em Minas Gerais por volta 1955 com a África do Sul, somen- africanas em Brasília passou de
de 1700, e em 1710 o corsário te seria questionado pela Argenti- 16 (em 2003) para 24.
francês Charles Duclerc atacou o na, com trágicas consequências No campo econômico, em-
Rio de Janeiro, e logo depois foi a na Guerra das Malvinas (Falk- preiteiras brasileiras começaram
vez do almirante Duguay-Trouin lands).12 a participar em obras de infra-
saquear a cidade.8 A Guerra Fria cristalizaria o estrutura viária, urbana e ener-
Pela época da independência espaço do Atlântico Sul como “re- gética em Angola e em outros
a Inglaterra já substituíra há mui- serva estratégica” do Ocidente.13 países da região. Essa presença,
to Portugal como a grande potên- Restava pouco para basear obje- com apoio creditício do governo
cia colonial. Desde a metade do tivamente um relacionamento en- brasileiro, enfatizou a intenção de
século XVIII a Inglaterra já inicia- tre o Brasil e a África, exceto a his- ampliar a inserção internacional
ra sua Revolução Industrial, cujos tória, a tradição e uma indefinida do Brasil. O objetivo de nossa di-
fundamentos foram descritos projeção dos interesses estratégi- plomacia era colocar a África no
com maestria por Adam Smith.9 cos em torno de um espaço re- centro da afirmação brasileira de

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Internacional

potência regional. Justificando país. O Brasil foi também o pri- que a corrente de comércio au-
esse intento, criou-se um novo meiro país a reconhecer a inde- mentou a uma taxa média anual
conceito de vizinhança: a “fron- pendência de Angola, em 11 de de 23,8%. O valor da corrente de
teira oriental” do outro lado do Novembro de 1975. E, em 20 de comércio aumentou quase 11,5
Atlântico Sul. novembro de 1994, para apoiar vezes, passando de US$ 1,5
A principal motivação para a o Acordo de Paz assinado em Lu- bilhão em 1989 para US$ 17,2
Zopacas era o jogo diplomático saca, tropas brasileiras integra- bilhões em 2009. As exporta-
em tempos de Guerra Fria. O fim ram as forças de manutenção de ções brasileiras para o continente
desse período retirou a maior parte paz da ONU, a UNAVEM III, no cresceram muito mais rapidamen-
do conteúdo dessa iniciativa. E total de sete mil homens, junta- te que as exportações do País
com ela modificou-se também a mente com tropas da Índia, para outros destinos, acumulan-
agenda da cooperação regional, Romênia e Zimbabue. do uma taxa média de crescimen-
que passa a privilegiar o espaço to de 11% ao ano. O crescimento
geográfico dos países vizinhos na das importações foi ainda mais
América Latina. expressivo, acumulando cresci-
O fim da Guerra Fria dá tam-
bém nova configuração ao Con-
selho de Segurança. Reunidas ali “ As construtoras
chinesas têm
mento médio anual de 14,3%
ao ano.
Considerados os 20 anos de
as superpotências que agora já penetrado agressi- comércio aqui cobertos (1989-
superaram muitas de suas rivali- 2009), nossas trocas com a Áfri-
dades e passam a agir de forma vamente em toda a ca revelaram um saldo negativo
mais concertada nos conflitos de África, deslocando acumulado de US$ 14,5 bilhões
suas periferias, reduz-se mais ain- antigos fornecedores nominais. Esse saldo foi positivo
da a importância dos arranjos re- entre 1989 e 1995 (US$ 2,3 bi-
gionais no Atlântico Sul. 14 desses serviços, lhões). Tornou-se negativo a par-
como as construtoras tir de então, acumulando um
O CRESCIMENTO DO chinesas, e ocupando deficit de US$ 17 bilhões entre
COMÉRCIO BILATERAL 1986 e 2009, com particular ex-
espaços que poten- pressão nos últimos dois anos
A atual administração enfatiza cialmente poderiam (US$ 8,4 bilhões).
a prioridade do relacionamento vir a ser ocupados Por esse indicador singelo, o
horizontal Sul-Sul e, dento dele, comércio Brasil-África cresceu
com a África em particular. O por empreiteiros mais acentuadamente que o co-
crescimento do comércio tem sido
apontado como o motor do novo
relacionamento, desde que a ini-
brasileiros.
” mércio com os demais parceiros.
Essa conclusão, contudo, deve ser
considerada com uma pitada de
ciativa da Zopacas perdeu muito cautela, já que ela ignora a com-
de sua consistência como promo- posição do nosso comércio e a
tor da coordenação política da A PROVA DO PUDIM: AS importância do petróleo em nos-
Zona. RELAÇÕES COMERCIAIS sas importações em boa parte do
Mais importante passou a ser BRASIL-ÁFRICA período aqui considerado.
a iniciativa de conformação de
blocos econômicos regionais — o Entre 1989 e 2009 a corren- O FUTURO: CHEGARAM
Mercosul, em um dos lados do te de comércio brasileira cresceu OS CHINESES
Atlântico, e a SADC do outro.15 a uma taxa média de 7,6%
A busca de cooperação entre os ao ano, passando de US$ 52,6 Até aqui nos detivemos na aná-
países-membros desses dois blo- bilhões para US$ 280,6 bilhões. lise dos fluxos de comércio entre
cos substitui em larga medida as As exportações totais do País cres- o Brasil e seus parceiros africanos.
boas intenções de coordenação ceram a uma taxa mais modesta, Para avaliar até que ponto a sim-
política da Zopacas, cujos resul- de 6,4% ao ano. Já as importa- ples extrapolação das tendências
tados prático ficaram aquém do ções aumentaram a uma taxa recentes pode ser equivocada, tor-
desejado. média de 9,4% ao ano, recupe- na-se necessário introduzir um
Isso não quer dizer que as ini- rando nesse período de 20 anos novo ator no palco do comércio
ciativas políticas tenham sido des- as décadas de forte repressão que bilateral: os chineses.
providas de resultados. Coerente caracterizou o comércio exterior As construtoras chinesas têm
com a intenção de promover a paz brasileiro antes da abertura da penetrado agressivamente em
e a cooperação no Atlântico Sul, economia. toda a África, deslocando antigos
o Brasil condenou o apartheid na Os mesmos cálculos para o fornecedores desses serviços,
África do Sul e impôs sanções ao comércio Brasil-África mostram como as construtoras chinesas, e

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Internacional

ocupando espaços que poten- estrutura, intensivas em trabalho


cialmente poderiam vir a ser ocu- – um objetivo importante para a
pados por empreiteiros brasileiros. China, independentemente da NOTAS E REFERÊNCIAS
A atuação chinesa baseia-se rentabilidade dos projetos envol- 1
José Vicente de Sá Pimentel, “Relações
em um tripé: crédito amplo e ba- vidos nas licitações em que suas entre o Brasil e a África subsaárica”.
Rev. Bras. Polít. Int. 43 (1): 5-23 [2000].
rato; mão-de-obra barata e empresas são vencedoras. So- 2
David Birmingham. Portugal e África. Lis-
trazida da China; e preços mais mente em Angola estima-se que boa: Nova Veja, 2010, p.25. De fato, o
competitivos que os dos concor- residam e trabalhem cem mil chi- ciclo da expansão portuguesa se inicia em
1415 com a conquista de Ceuta. Foram
rentes ocidentais. A forma de neses; para a totalidade da Áfri- necessários 53 anos para que fosse com-
atuação é agressiva. De casas a ca, a estimativa de mão de obra pletada a exploração da costa da África oci-
hotéis, de estradas e portos a li- dental, iniciada com a passagem por Gil
chinesa residente situa-se entre Eanes do Cabo Bojador em 1434, até que
nhas de transmissão, os chineses 500 mil e um milhão de trabalha- Bartolomeu Dias circunavegasse o Cabo da
estão em toda parte. dores. Boa Esperança em 1487.
3
O Mediterrâneo tem papel central na histó-
E os chineses estão em toda Também a Índia torna-se pro- ria européia. A opus magna de Fernand
parte e em todos os ramos de ati- gressivamente um concorrente de Braudel não por outra razão tem por título
vidade: estão operando postos de peso. A África abriga um grande La Méditerranée et le monde méditerranéen
à l’époque de Philippe II. Henri Pirenne, no
gasolina e supermercados no número de descendentes de seu Mahome et Charlemagne introduziu a
Lesoto; e se os russos construíram indianos e há séculos mantém um hipótese de que o fechamento das rotas do
em Luanda o mausoléu de Agos- Mediterrâneo pelos árabes foi a principal
fluxo regular de comércio com a causa da queda do império romano. A ex-
tinho Neto, o herói da indepen- Índia. Mais recentemente, medi- pansão turca na borda do Mediterrâneo de-
dência angolana, os chineses es- camentos provenientes deste últi- terminaria alguns séculos depois igual sorte
à república de Veneza.
tão agora a terminar o novo pré- mo país estão deslocando forne- 4
Celso Furtado. Formação econômica do Bra-
dio do Ministério da Justiça, além cedores tradicionais e estabele- sil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Na-
de estarem construindo hotéis e cendo canais de comercialização cional, 32 ed. 2003, p. 15.
5
Birmingham, op. cit., pp. 27-32.
casas populares no país. Os ne- de difícil conquista no futuro. 6
Os primeiros escravos africanos chegaram
gócios são melhores na África do Por tudo isso, o crescimento ao Brasil em 1538.
Birmingham, op. cit., pp. 70-71.
que na China, não somente para
7
vegetativo do intercâmbio comer- 8
Para detalhes, ver Jorge Caldeira. A nação
os empresários chineses, mas cial entre o Brasil e a África pas- mercantilista. São Paulo: Editora 34, 1999,
também para os trabalhadores.16 sará a depender cada vez mais de p. 13.
9
Adam Smith. An Inquiry Into the Nature and
Além disso, a pauta de expor- investimentos – em transportes, Causes of the Wealth of Nations Nations.
tação de produtos chineses para logística e criação de redes de Indianápolis: Liberty Fund, 1987.
a África é similar à pauta brasilei- comercialização. Os bons tempos 10
Benguela é a segunda mais importante
cidade e segundo porto de Angola, situada
ra. As vendas chinesas para a Áfri- de pouca concorrência de forne- ao sul de Luanda. O enfraquecimento do
ca em 2009 totalizaram US$ 50 cedores não tradicionais, e do de- império português, além da natural decadên-
bilhões, frente a menos de US$ 9 cia de uma economia baseada na tributação
sinteresse de fornecedores dos de suas colônias, deveu-se às invasões
bilhões exportados pelo Brasil. Os países desenvolvidos, estão se napoleônicas em 1807-11; às guerras civis
últimos números da balança co- acabando. de 1820 a 1845 e à independência do Bra-
sil em 1822. Ver, para detalhes, Wheeler e
mercial brasileira deste ano já Essas considerações são im- Pélissier, op. cit., pp. 143-44. Ver também
mostram os efeitos da expansão portantes ao se levar em conta o José Honório Rodrigues.
chinesa na África. O valor ex- objetivo declarado de nossa polí- Brasil e África: outro horizonte. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 1961.
portado pelo Brasil entre abril e ju- tica externa de privilegiar as rela- 11
A expressão, como se sabe, é de Eric
nho deste ano está 9% abaixo do ções comerciais e de investimen- Hobsbawn para caracterizar o período ho-
valor obtido no correspondente pe- mogêneo que vai de 1789 a 1914. A
tos Sul-Sul. As oportunidades de caracterização do Atlântico Sul como um
ríodo do ano passado. cooperação econômica se apro- “vazio” aparece no importante ensaio de Eli
Não somente a concorrência fundarão, já que os países da Alves Penhas, “Relações Brasil-África: os
avatares da cooperação sul-atlântica”.
chinesa limita o crescimento de SADC crescem mais rapidamen- 12
Como se recorda, o conflito deu-se entre
nossas exportações para o conti- te que o restante da economia o governo militar argentino encabeçado pelo
nente. Os chineses investiram em mundial. Para tirarmos partido general Galtieri e o governo da primeira-
ministra Margaret Thatcher, após a ocupa-
uma infraestrutura de transporte dessas oportunidades será im- ção pela Argentina das Ilhas Falkland, da
que permite negócios na região na prescindível secundar as intenções Geórgia do Sul e das Sandwich do Sul.
Alves Penhas, op. cit.
faixa de US$ 50 bilhões anuais.
13
com atos – notadamente com in- 14
Pimentel, op. cit.
No nosso caso, os transportes vestimentos em infraestrutura de 15
A Comunidade para o Desenvolvimento
constituem um limitador importan- transportes do nosso lado do da África Austral reúne África do Sul, An-
gola, Botsuana, República Democrática do
te, ao lado da menor disponibili- Atlântico. Afinal, outros países Congo, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Maurí-
dade de crédito e da menor ofer- emergentes, situados no hemisfé- cias, Moçambique, Namíbia, Suazilândia,
ta de mão de obra, especialmen- rio norte, como a China e a Ín- Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue.
16
The Economist, edição de 5 de agosto de
te a qualificada. A necessidade de dia, serão cada vez mais concor- 2010.
“exportar” mão de obra torna a rentes sérios, a disputar mercados
China imbatível em obras de infra- cada vez mais seletivos.

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Livros

Pan-africanismo sem racismo


Resenha do livro Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, de Kwame A. Appiah, Ed. Contraponto, RJ.

fensores do pan-africanismo, nor-


“Muitas sociedades africanas
têm tanto em comum com as malmente cidadãos negros “exi-
sociedades tradicionais não lados” no Novo Mundo, e criados
africanas quanto entre si.” na cultura ocidental.
(Kwame Appiah) A importância da cultura é
muito maior que a da “raça”, eis
o que sustenta Appiah. A África
o afã de resgatar um su- não é um lugar homogêneo, mas
N posto “orgulho negro” con- os africanos podem aprender uns
tra o racismo histórico, muitos têm com os outros, “tal como pode-
insistido num mito que pode vir a mos, é claro, aprender com toda
ser perigoso: a ideia de um pan- a humanidade”. O intercâmbio
africanismo sustentado pela iden- cultural e a crítica racional podem
tidade racial. Para qualquer um beneficiar todas as culturas, aju-
interessado no assunto – e acre- dar a “ensinar à raça única a que
dito que todos deveriam estar, pe- todos pertencemos”. A mentali-
los riscos envolvidos –, a leitura dade coletivista de pensadores
de “Na Casa de Meu Pai”, do fi- como Du Bois, que enxergaram a
lósofo Kwame Anthony Appiah, é história como história de raças,
altamente indicada. comete o mesmo tipo de erro dos perigoso. A “raça”, segundo ele,
Filho de pai ganês e de mãe marxistas, que viram a história “nos incapacita porque propõe
inglesa, Appiah está numa posi- como história de classes. O como base para a ação comum
ção privilegiada para tratar do simplismo e a arbitrariedade des- a ilusão de que as pessoas negras
tema em questão. Ainda assim, é ses conceitos anulam qualquer (e brancas e amarelas) são fun-
submetendo os argumentos à luz realismo da análise. damentalmente aliadas por natu-
da razão que ele pretende de- Falar de “raça”, para Appiah, reza e, portanto, sem esforço; ela
monstrar como o racialismo tem é “particularmente desolador para nos deixa despreparados, por
sido prejudicial aos próprios afri- aqueles de nós que levamos a conseguinte, para lidar com os
canos. Por trás da noção de pan- cultura a sério”. Além disso, o conflitos ‘intrarraciais’ que nas-
africanismo jaz o pressuposto de autor mostra como a ideologia do cem das situações muito diferen-
unidade política natural dos dife- pan-africanismo depende justa- tes dos negros (e brancos e ama-
rentes povos africanos. A Mãe mente de traços culturais ociden- relos) nas diversas partes da eco-
África acaba sendo vista como tais: “A nostalgia nativista, em nomia e do mundo”.
berço da “raça” negra, de forma suma, é basicamente impulsiona- Temos inúmeras identidades
um tanto monolítica, ignorando as da pelo sentimentalismo ociden- distintas, como “tribo”, religião,
inúmeras diversidades dentro do tal que nos é tão familiar desde etc. As identidades são comple-
continente. Para o autor, “os po- Rousseau; poucas coisas, portan- xas e múltiplas. Usar somente
vos da África têm muito menos em to, são menos nativas do que o uma delas como preponderante,
comum, culturalmente, do que se nativismo em suas formas atuais”. e ainda por cima a racial, repre-
costuma supor”. O pan-africanismo centrado na senta um grave erro. É possível
Para Appiah, um dos primei- ideia de raça não passa de uma defender o pan-africanismo sem
ros legados incômodos desta vi- invenção não africana. o racismo. O projeto de um na-
são falsa é a associação entre a Apesar de a fase do pré- cionalismo negro racializado vai
opinião negativa ocidental em re- colonialismo africano ser carac- contra a ideia moderna – e mais
lação à África com a questão ra- terizada pela ausência de algo racional – de direitos individuais
cial. A África, local de extrema como uma identidade africana, e humanos.
miséria e palco de desgraças hu- Appiah reconhece que começa a
manas infindáveis, ajuda a disse- surgir tal fenômeno, como cons-
minar uma opinião negativa so- trução histórica. Mas, para o au- por Rodrigo Constantino
bre os negros, resultado, em par- tor, sustentar tal identidade com Economista e escritor
te, do racialismo dos próprios de- base na ideia falsa de “raça” é

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