Habitao e Cidade: o caso da favela de Helipolis

Introduo

Helipolis uma das maiores favelas de So Paulo com aproximadamente 65 mil habitantes e 19 mil
domiclios (IBGE, 2010). Ela surgiu em 1971 quando a ento Secretaria do Bem Estar Social da Prefeitura
Municipal de So Paulo (SEBES) transferiu 150 moradores da favela de Vila Prudente para alojamentos
provisrios construdos em uma gleba que pertencia ao IAPAS, e que era conhecida como Vila Helipolis.
Estes alojamentos provisrios tornaram-se permanentes e induziram ocupao do entorno e ao de
grileiros no local (AMARAL,1991).

A ocupao de Helipolis ocorreu no bojo de intensas disputas pela terra tanto entre os ocupantes e os
grileiros, quanto entre ambos e o poder pblico. Isto porque a gleba de Helipolis est localizada em uma
regio relativamente prxima ao centro de So Paulo e com grande oferta de empregos, servios e
transporte.

Estas disputas fortaleceram os movimentos sociais presentes em Helipolis e a favela reconhecida na

cidade tambm pelo engajamento das associaes locais na luta por melhorias e pelo direito de
permanecer na favela. Este certamente um dos fatores que fez com que todas as gestes, desde 1986
at o momento atual, tivessem desenvolvido alguma ao em Helipolis. Apenas no mbito da proviso
habitacional, mais de 6 mil unidades j foram construdas e h mais 5 mil unidade previstas.

O presente artigo prope-se ao debate sobre a atuao do Poder Pblico Local em Helipolis a partir da
anlise de trs projetos de proviso habitacional construdos em momentos distintos. A escolha de trs
projetos deu-se tambm pois cada um deles sintetiza as trs estratgias urbanas que identificamos no
bojo das intervenes, quais sejam: i) construir um territrio novo, ii) construir sobre o territrio
existente e iii) construir com o territrio existente.

A parte pelo todo: Manoel Otaviano

A primeira pessoa que conheci quando cheguei em Helipolis foi Manoel Otaviano da Silva, coordenador
1
do Movimento Sem Teto de Helipolis da UNAS . Piauiense de Alegrete - uma pequena cidade um pouco
mais de 5 mil habitantes e que fica a quase 400 km da capital do estado, Teresina saiu de l e foi para a
regio de Serra Pelada, no Par, atrs de ouro.

Acabou no conseguindo a prosperidade que queria, lutou por melhorias nas pssimas condies de
trabalho do garimpo e, em 1988, mudou-se para So Paulo. Inicialmente, foi morar com a irm que j
residia na cidade, na antiga rua C de Helipolis, hoje rua Caju. Esta casa, que foi inicialmente construda
como um embrio de 25 m atravs dos recursos do Projeto Modelar, tem atualmente trs andares mais

1
A UNAS - Unio de Ncleos, Associaes dos Moradores de Helipolis e Regio uma entidade sem fins lucrativos
decretada de Utilidade Pblica Federal, surgiu em meados dos anos 1980 enquanto comisso de moradores da favela
de Helipolis que lutavam pelo direito moradia e posse da terra.
uma edcula no fundo. que ela precisou crescer para abrigar os filhos e netos da irm de Manoel e a
famlia investiu os recursos que tinha para acolher todo mundo.

No ano de 1988, Helipolis travava uma luta pelo direito moradia frente gesto do ento prefeito,
Jnio Quadros, e Manoel se engajou. Desde ento no parou mais, durante a gesto do prefeito Paulo
Maluf, a que ele considera mais truculenta desde que chegou na cidade, Manoel e outros moradores
ocuparam por 45 dias no Anel Virio do Sacom e conseguiram ser contemplado com suas reivindicaes.

Outra vitria que considera importante, foi quando da construo do projeto Cingapura, em Helipolis.
Por meio da luta, o movimento conseguiu que fossem realizadas modificaes no escopo original do
programa, dentre elas: a diversidade tipolgica (tem apartamentos de 1, 2 e 3 dormitrios) e edifcios de
uso misto com comrcio no trreo.

A UNAS exigiu essas modificaes porque as composies das famlias contempladas eram muito
diversificadas. Tinha algumas (poucas) com 10 filhos e outras com arranjos menores, como um casal de
idosos. Alm disso, muitas famlias que foram para o Cingapura tinham pequenos comrcios e precisavam
de espaos adequados para exercer essas funes.

Essas modificaes s foram possveis porque a associao conseguiu convencer o Banco Mundial, que
foi quem financiou o projeto, da necessidade de se adotar uma metodologia participativa para a
elaborao do projeto. O Banco Mundial, por sua vez, convenceu os arquitetos que estavam elaborando
o projeto a adotarem tais metodologias. (Albuquerque, 2006)

Durantes as gestes de Marta Suplicy, de Jos Serra e de Gilberto Kassab, parte da luta era por melhorar
as condies de moradias de reas que eram muito precrias, sobretudo as prximas ao crrego do
Sacom, a da gleba H e as famlias que viviam em habitaes provisrias prximo avenida das Juntas
Provisrias.

Da gesto Marta Suplicy, Manoel conta que o marcou foi o dilogo constante com a populao. Do ponto
de vista de produo de moradia em Helipolis, a gesto atuou pouco, segundo ele. J a gesto Serra
Kassab foi marcada pela quebra do dilogo e pela falta de transparncia, j que os tcnicos e governantes
no cumpriam o que era acordado (Otaviano apud Sares, 2010, p. 53).

Manoel continuou lutando pelo Direito Moradia mesmo aps ter conquistado sua casa prpria. Depois
de morar com a irm, mudou-se para a Rua Joo Pedro de Carvalho Neto, tambm em Helipolis e que
faz divisa com o Hospital Estadual de Helipolis. Em 1998, depois de muita luta, foi contemplado com um
apartamento na gleba N de Helipolis onde vive at hoje e atua com sndico.

O conjunto de prdios em que Manoel mora tem ao todo 344 apartamentos em 8 edifcios de 11
andares. No trreo no h reas de lazer, nem comrcios, apenas vagas marcadas de garagem e que no
contemplam todos os moradores. Como h muitas crianas e nenhuma rea de lazer projetada, as
crianas comearam brincando nas circulaes do prdio, sobretudo no elevador, que poca era uma
novidade.

Acontece que utilizar o elevador para este fim acabou elevando os custos de manuteno condominial e
da conta de luz e a brincadeira nos elevadores durou pouco. Hoje em dia as crianas brincam no trreo,
entre os carros. Vez ou outra, um carro aparece danificado, mas como no h nem em Helipolis nem no
projeto reas direcionadas ao lazer, as crianas acabam ficando sem alternativa.

Atualmente, como coordenador do movimento sem teto de Helipolis, Manoel tem negociado junto
prefeitura a proviso de reas de lazer, melhoria em nas rea da Lagoinha, da Dom Pedro, da gleba K, da
gleba J e da gleba N e mais unidades habitacionais para desadensar alguns pontos.

Nas demais reas, Manoel acredita que pequenas intervenes de melhorias nas vielas, de melhoria
habitacional e de regularizao fundiria resolveriam o problema. Alis, regularizao fundiria uma
reivindicao identificada em diversos relatrios sobre as expectativas dos moradores. A luta pela posse
da terra antiga, remonta ao incio da ocupao na dcada de 70.

Mesmo as famlias que moram em conjuntos habitacionais construdos pelo Poder Pblico ainda no tm
a documentao completa da posse do imvel. que a posse significa transferncia de terra e a terra,
como diz Maricato (1999), um n na sociedade brasileira.

Segundo ele, nas vielas importante melhorar a conexo e ampliar a calha da rua porque muitas delas
so to estreitas que prejudicam as condies de insolao e de ventilao da casas. Ou seja, ele
identifica que o que Helipolis mais precisa de intervenes pontuais, mas estratgicas.

Apesar dos problemas, Manoel gosta de morar em Helipolis, dentre outros motivos, porque muito
bem localizada. Seus dois filhos vo p para a escola. A proximidade com o centro e com o metr
facilitam a vida, mas, no dia a dia, Manoel prefere se deslocar de moto.

Nos momentos de lazer, a famlia gosta muito de cinema e de teatro mas, como so atividades caras, no
vo sempre. O cinema a gente vai aqui no shopping do lado do metr Tamanduate. Ns vamos a p,
conversando, e demora uns 20 mim pra chegar. Pro teatro a gente tem que ir pro centro, a vamos de
metr e demorarmos de 20 a 30 mim pra chegar.

Ao longo dos quase 30 anos em que mora em Helipolis, Manoel reconhece que houve muitos avanos:
as casas melhoraram e a escolaridade tambm mas progresso mesmo s vai haver quando toda criana
tiver escola de qualidade (Otaviano apud Santis & Persoli, 2013, p. 44).

Manoel diz que se fosse prefeito da cidade, comearia resolvendo os problemas da Lagoinha, que seria
transformada em um parque. Na regio do Dom Pedro, e na gleba J, faria uma interveno mais
estrutural e nas glebas B e N, faria intervenes pontuais e estratgicas para resolver a conexo e as
condies das moradias.
Alm disso, faria mais reas de lazer porque quase no tem reas pblicas deste tipo no territrio. O que
tem so reas comuns dentro dos projetos mais recentes, mas reas pblicas, destinadas recreao da
populao residente so rarefeitas.

Outra questo fundamental melhorar a qualidade dos equipamentos de sade. Manoel avalia que
Helipolis no sofre com a falta de equipamentos pblicos de sade, uma vez que tem hospital, tem
AMA, etc. O que precisa ampliar nmero de funcionrios e de especialidades para que a populao no
precise se deslocar at equipamentos mais afastados quando necessrio se consultar com mdicos que
no sejam clnicos gerais.

Por fim, Manoel promoveria a regularizao fundiria da favela, promessa antiga que, at hoje, no foi
concluda.

O todo pela parte

notvel que a construo de Helipolis se deu majoritariamente com base na ocupao e luta dos
nordestinos. Segundo o diagnstico realizado em 2005, 80,21% dos moradores de Helipolis so naturais
de municpios do nordeste.A maior parte dos moradores eram trabalhadores: aproximadamente 29% dos
eram assalariados com registro, 20% eram autnomos, 10% eram desempregos, 14% estudantes, 1,5%
eram de aposentados e os demais enquadravam-se em outras situaes como bicos, empregados sem
carteira, servidores pblicos etc.

H de se ponderar que, dada a baixa escolaridade do moradores, provvel que os trabalhos no exijam
grande qualificao, o que, por consequncia, tambm tem rebatimento nos salrios. No que se refere
escolaridade, 68% tinham ensino fundamental, 19% ensino mdio, 1% ensino tcnico ou superior e 12%
no tinham estudos.

A localizao de Helipolis mostra-se privilegiada em relao proximidade oferta de emprego. Dentre

as pessoas que trabalhavam, 40% delas trabalhavam em lugares prximos moradia (23% no prprio
bairro, 9% em reas contiguas e 8% na prpria favela), 9% no centro da cidade, 41% em outros bairros e
8% em outros municpios.

Certamente a localizao prxima oferta de trabalho, de transporte pblico e de importantes eixos

virios configuram fatores importantes que atraram milhares de pessoas a residir em Helipolis, mas
tambm engendrarem disputas pela apropriao e pela dotao de melhorias neste trecho de cidade.

Helipolis e a disputa pelo acesso a terra

At o ano de 1942, a gleba de aproximadamente 3 milhes de metros pertencia famlia Penteado que
l havia construdo 36 casas para locao e formavam o conjunto Residencial Vila Helipolis. Estas casas
foram construdas em uma rea prxima ao tecido da cidade e o restante da gleba acomodava uma
2
grande fazenda com rvores frutferas e duas lagoas alimentadas por minas de gua potvel.

Em 1942, a gleba foi adquirida pelo Instituto de Aposentadoria e Penses dos Industririos (IAPI) para a
construo de casas para seus associados, mas segundo Amaral (1991, p.31), o Instituto nunca chegou a
constru-las.

Em 1966, o decreto de lei n72 unificou diversos IAPs e a gleba correspondente a Helipolis passou a ser
gerida pelo Instituto de Administrao da Providncia e Assistncia Social (IAPAS) que, em 1969,
construiu o Hospital Helipolis e o Posto de Assistncia Mdica (PAM) em uma parte da gleba (Amaral,
1991, p. 31). importante destacar que, embora o IAPAS tenha parcelado a rea em diversas glebas
menores, e construdo os dois equipamentos de sade supracitados, o Instituto no construiu as
unidades habitacionais que havia planejado e boa parte do terreno permaneceu ociosa.

Em 1971, sob o comando do prefeito Jos Carlos de Figueiredo Ferraz, a ento Secretaria do Bem Estar
Social da Prefeitura Municipal de So Paulo (SEBES), promoveu o desadensamento da favela de Vila
3
Prudente e transferiu 153 famlias para Vilas de Habitao Provisria (VHP) que foram prximas Rua
Coronel Silva Castro e ao crrego Sacom. Em 1978, novos alojamentos foram construdos para abrigar
60 famlias removidas da favela Vergueiro.

A instalao desses alojamentos fomentou a ocupao de novos moradores que autoconstruram casas
de madeira e papelo em reas prximas. Inclusive os operrios que trabalharam na construo do
Hospital e do PAM acabaram se instalando por ali (Amaral, 1991 p.31). Estas ocupaes formaram o
primeiro ncleo da gleba e que passou se chamar Helipolis.

Outro fator fundamental para a densa ocupao foi sua localizao em um contexto urbano privilegiado,
4
relativamente prxima ao centro da cidade, a duas estaes ferrovirias , a um eixo industrial
importante no pas e com boa rede de infraestrutura e servios diversificados no entorno. (Amaral, 1991,
p. 34)

As novas ocupaes espontneas, por sua vez, despertaram outra forma de ocupao: a grilagem.
Segundo Amaral (1991, p.32), no final dos anos 70, os grileiros passaram a disputar, de forma violenta,

2
Ademais, a rea destinava-se criao de animais e ao lazer com campos de futebol que abrigavam campeonatos
de bairro, alm de campeonatos de balo e de corridas de carro. Outra questo importante que a Estrada das
lgrimas, uma das principais vias que marcam o permetro de Helipolis, era uma importante rota de soldados e
comerciantes no eixo So Paulo porto de Santos.

3
As VHP eram alojamentos provisrios construdos em madeira e com banheiros coletivos.
terras com os novos ocupantes que vinham chegando, sobretudo nas ruas Cnego Xavier e na Estrada
das Lgrimas, na poro mais ao sul da gleba.

Os grileiros parcelaram a terra, abriram ruas, demarcaram e venderam lotes e faziam um controle da
ocupao de Helipolis sob a gide da ameaa. Assim, as famlias que haviam se instalado sem o crivo dos
grileiros tinham que pagar um valor pela venda do lote ou ento seriam expulsos. Desta forma, criou-se
um outro ncleo dentro da gleba de Helipolis chamado So Joo Clmaco. Este outro ncleo
diferenciava-se do primeiro pelo ordenamento do solo e pela qualidade das construes que, aqui, eram
de alvenaria enquanto em Helipolis eram, em geral, de madeira.

O clima era de violncia e de disputa entre as famlias que ocupavam e os grileiros de modo que, quando
o IAPAS se deu conta, a ocupao da gleba j era uma realidade (Amaral, 1991, p. 32). Ou seja, o grande
responsvel pela criao e desenvolvimento da favela Helipolis/ So Joo Clmaco foi o poder Pblico
seja Federal, o IAPAS, que deixou sua propriedade abandonada, seja Municipal (...), que l instalou
alojamentos provisrios, que se tornaram permanentes (Amaral, 1991, p. 4)

tambm neste perodo do final dos anos 70 que o IAPAS decide impetrar uma srie de aes de
reintegrao de posse contra os grileiros e os demais ocupantes da gleba. Em 1979, o Juiz Federal da 6
vara, em So Paulo, emitiu uma liminar de reintegrao de posse em favor do IAPAS e, em 1983, a
determinao foi cumprida sendo lavrado o auto de reintegrao de posse. Estas aes estimularam a
organizao dos moradores em prol de dois eixos: resistir a elas e exigir, do poder pblico, a instalao
dos servios de gua e luz que at ento eram incipientes.

Por meio da intensa reivindicao popular dos moradores de Helipolis, em 1984 conseguiu-se uma
articulao entre a prefeitura de So Paulo, o IAPAS e o Banco Nacional de Habitao. Esta articulao
promoveu a transferncia da gleba de Helipolis para o BNH e este o repassou para a COHAB municipal
ensejando a construo de moradias para as famlias de baixa renda.

A COHAB dividiu a rea em 14 glebas e as nomeou de forma genrica, de A N. J a populao

identifica o territrio, em geral, de acordo com as caractersticas locais, sejam elas fsicas ou afetivas. o
caso do ncleo da mina, por exemplo. Essas diferenas de identificao esto expressadas na figura 1
abaixo.
Figura 1. Diferenas na identificao das reas de Helipolis segundo a COHAB e populao local.

Fonte: COHAB, 2016

Esta transferncia foi amplamente divulgada e atraiu novos moradores interessados em residir em uma
rea que seria objeto de interveno do poder pblico. De modo que sete anos depois, em 1991,
Helipolis j era uma das maiores favelas da cidade e abrigava mais de 40 mil pessoas em 9.711
domiclios. As famlias ocuparam praticamente toda a gleba, inclusive as reas alagadas que
conformavam as minas de gua potvel e a lagoa.

Os dados do censo de 2010 apontam que Helipolis tem aproximadamente 65 mil pessoas vivendo em
aproximadamente 19 mil domiclios, segundo nosso levantamento, mais de 7 mil (quase 40%) deles
construdos ou promovidos pelo Estado.

Assim, podemos dizer que a ocupao de Helipolis foi marcada por duas caractersticas: uma intensa
luta de seus moradores, seja contra o Estado ou contra os grileiros, para permanecer no local; e uma
forte relao com o Estado que, se num primeiro momento reservou a terra e foi conivente com a
ocupao irregular dos grileiros e das famlias de baixa renda, em outro, passou a ser um importante
agente promotor da ocupao.

Habitao e cidade: o olhar hegemnico sobre as favelas e as aes do poder pblico

Como j foi dito, o Poder Pblico construiu em Helipolis mais de 6mil unidades habitacionais. A
totalidade destas unidades reproduzem situaes precrias, seja pelos aspectos fsicos, isto , construdos
em reas imprprias ou sem todas as infraestruturas e equipamentos necessrios para a vida urbana, seja
pela questo fundiria visto que nenhuma unidade habitacional, mesmo as mais antigas, foram
efetivamente transferidas paras as famlias que ali vivem.
Esta reproduo da precariedade pelo Poder Pblico corrobora com o olhar hegemnico sobre a favela
como um lugar precrio, inseguro e que precisa ser erradicado. De modo geral, as aes do poder pblico
tendem a invalidar o territrio autoconstrudo apagando da cartografia da cidade um modo de morar
baseado em outras lgicas que no a hegemnica. evidente que as favelas precisam de aes do poder
pblico que qualifiquem aqueles espaos no sentido de promover urbanidade, espaos pblicos,
transporte e tambm erradicando os riscos oriundos dos aspectos geolgicos ou construtivos, mas estas
aes podem e devem levar em considerao a trama de relaes, de vivencias e as tipologias tpicas de
cada favela como um aspecto especfico e que singulariza aquele territrio.

Reunimos neste artigo trs projetos construdos em Helipolis entre os anos de 1986 e 2006 que
apresentam trs estratgias diferentes quando da proviso habitacional em favelas: construir um
territrio novo, construir sobre um territrio existente e construir com o territrio existente.

Projeto Experimental da Gleba L (1986/1989): construir um territrio novo

Este talvez seja um dos exemplos mais expressivos de como o poder pblico reproduz situaes
precrias. O terreno da Gleba L era (e ainda ) um terreno inadequado para fins de moradia, pois se trata
de um terreno alagadio e que abrigava um antigo lixo (Amaral, 1991, p. 111). Segundo relatrio da
5
CETESB de 2009, a rea apresenta elevada concentrao de metano em diversos pontos da gleba e
representa riscos sade das famlias que l residem.

5
A publicao est disponvel neste link: (http://areascontaminadas.cetesb.sp.gov.br/conjunto-cohab-heliopolis-
municipio-de-sao-paulo/) e foi acessado em 09/12/2016.
Ainda assim, foram construdos 688 apartamentos em 43 prdios de 16 apartamentos cada um. O projeto
contou com a participao de diversas construtoras e que deveriam testar diferentes tcnicas
construtivas.

At o final de 1990, os edifcios no estavam habitados pois no possuam gua encanada. Alm disso, no
momento mesmo da entrega, observou-se que as construes apresentavam trincas e infiltraes de
gua (Petrone, 1990 apud Amaral, 1991 p.111). Atualmente as habitaes esto conectadas s redes de
infraestrutura mas o risco de contaminao pelo gs metano permanece.

Projeto Cingapura (de 1996 2004): construir sobre um territrio existente

A Gleba A de Helipolis era uma das mais crticas da favela. O relatrio da gesto da SEHAB de 1991,
aponta que, poca, a gleba abrigava cerca de 3mil famlias e era formada tanto pelas habitaes
provisrias instaladas em 1971, quanto pela ocupao espontnea de milhares de famlias.

A implantao do Cingapura na Gleba A foi marcada por forte disputa entre a Prefeitura e as lideranas
locais que se opunham ao modelo de implantao terra arrasada do Programa que no diferenciava os
contextos do local e desperdiaria no s o trabalho humano e o tecido social das famlias residentes,
mas tambm os investimentos pblicos que esta regio havia recebido nas gestes anteriores
(Albuquerque, 2006, p. 194).

O projeto foi implantando ladeando grandes avenidas (Juntas Provisrias e Delamare) sem desenvolver
melhorias para as reas mais crticas e prioritrias prximas (e muitas vezes por sobre) o crrego do
Sacom. Tal implantao confirma a hiptese aventada por vrios pesquisadores de que o critrio de
visibilidade se sobrepunha ao critrio de precariedade quando das escolhas das reas de implantao do
Programa.

O modelo devastador do Cingapura ocasionou a remoo de 1.869 famlias da Gleba A, das quais apenas
849 voltaram para o local. As outras 1.020 famlias foram atendidas em unidades construdas em dois
6
outros empreendimentos distantes mais de 4km do local de origem .

De todo modo, apesar da pouca flexibilidade do Programa, as lideranas de Helipolis conseguiram

incorporar avanos que outras favelas no conseguiram (Albuquerque, 2006, p. 196), tais como a
proviso de 42 pontos de comrcio nos conjuntos habitacionais e a diversidade tipolgica com
apartamentos de 1, 2 e 3 dormitrios.

Desde a implantao do projeto a populao promoveu alteraes significativas, sobretudo nos recuos
dos edifcios da quadra 1, nica sem unidades comerciais no trreo. Nestes recuos a populao
autoconstruiu pequenas unidades de comrcios, servios e de garagem que do apoio ao cotidiano das
famlias de Helipolis (Souza, 2012, p. 117).

Estas ocupaes subvertem o partido original de rompimento com o tecido urbano, e promovem uma
7
ocupao perimetral alicerceado no uso em geral coletivo , quando em grandes avenidas, e privado
quando em ruas menores, e que ampliam as possibilidades de usos para as caladas.

interessante notar que estas ocupaes ocorrem apenas nos trechos em que h uma ruptura entre o
projeto e o tecido urbano, seja ela dada pelo afastamento entre um alinhamento e outro, seja pela
diferena de nvel. De tal modo que estas autoconstrues, precrias ou no, ensejam uma interface
entre a quadra a dimenso pblica da rua e das caladas como somente na fachada da Coronel Silva
Castro o Cingapura se props a promover.

8
Nesta fachada, nica que tem comrcios no trreo e em que a acomodao entre a cota da edificao e
da rua se d pela calada, as interferncias feitas pela populao tm um carter mais de adequao
escala dos usos definidos pelo prprio projeto, do que na proposio de novos.

Trata-se de expanso das coberturas, da aplicao de toldos e da criao de uma vitrine mais prxima
rua para divulgar de forma mais ampla os produtos de uma loja recuada a quase 20 metros da rua.

6
Segundo Albuquerque (2006 p. 195) a maior parte das famlias da Gleba A foi atendida em dois outros
empreendimentos: o Jos Paulino dos Santos com 640 unidades Habitacionais e o Jardim Imperador com 380 e que
distam mais de 4km da Gleba A de Helipolis.

7
H tambm autoconstrues que abrigam garagens individualizadas.

8
Exceto um pequeno trecho de 4 unidades na rua Almirante Nunes.
Conjunto 115 (2006): construir com o territrio existente

O conjunto 115 compe a obra de canalizao do crrego do Sacom, uma das reas que, at ento,
eram de grande risco populao residente. A conformao da Quadra que abriga o conjunto 115
composta pela justaposio entre as construes remanescentes da favela e o edifcio novo, que est
9
implantando no alinhamento da quadra , de modo a reconstruir uma possibilidade de quadras-bloco (...)
[em que] as construes novas abraam e conversam com as existentes sem qualquer indicao de
substituio progressiva ou osmose (Recamn, 2014)

Esta justaposio mediada pela proposio de trs ptios de miolo de quadra e que so desenhados
tanto pela edificao nova, quando pelas existentes.

Este interior da quadra realizaria a juno e mtua significao do

proposto e do existente. Nesse espao, o primeiro no existe sem o segundo;
tampouco existe uma relao hierrquica ou ainda de exemplo. E esse o seu
significado presente e que deveria ser aprofundado no futuro prximo, com a
progressiva abertura de quintais e estmulo da vida em comunidade
(Recamn, 2014, p. 23).

O bloco laminar marca o alinhamento da quadra e opera como fronteira entre a esfera pblica e a
privada. Entretanto, esta fronteira porosa, visto que o projeto prope prticos de acesso ao ptio que

9
No projeto original o edifcio longilneo estava recuado da linha da rua e havia caixas de circulao vertical
interrompendo a possvel monotonia (da fachada) dada a dimenso da lmina (Rubano, 2014, p. 145).
estimulam a fruio pblica e permitem que eles sejam utilizados tanto pelos moradores do edifcio,
quanto das casas ou mesmo pelo pblico em geral (...) [Isto ] a opo pelo ptio deu-se como ajuste
pela dimenso do pblico - entre a lmina nova e as construes preexistentes (Rubano, 2014, p. 146)

Desde sua inaugurao, a nica mudana estrutural que identificamos foi o gradeamento dos prticos
impedindo uma relao mais fluda entre a rua e o ptio. Entretanto, o gradeamento no um fenmeno
10
isolado pois tem ocorrido em diversas habitaes multifamiliares - de interesse social ou no - da cidade

As reas verdes so em geral lindeiras rua Michel da Silva e esto bastante preservadas. At o
momento, as garagens, que ficam entre o passeio peatonal e a calha da rua, tambm permanecem
preservados, sem alteraes ou coberturas.

Algumas consideraes

Bibliografia
Albuquerque, M. J. d., 2006. Verticalizao de Favelas em So Paulo: balan d euma experiencia (1989 -
2004). So Paulo: s.n.

Amaral, M. R. S., 1991. Helipolis: o percurso de uma invaso. So Paulo: Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de So Paulo (FAUUSP).

D'ottaviano, M. C. L.. Condomnios Fechados na regio metropolitana de So Paulo: que novo padro
esse?. In: Suely Leal; Norma Lacerda. (Org.). Novos Padres de Acumulao Urbana na Produo do
Habitat: Olhares Cruzados Brasil-Frana. 1 ed. Recife: Editora Universitria UFPE, 2010, v. 1, p. 151-17

Harvey, D., 2014. Cidades Rebeldes - do Direito Cidade Revoluo Urbana. So Paulo: Martins Fontes.

Recamn, L., 2014. Arquitetura em tempos difceis. In:: O Terceiro Territrio - Habitao Coletiva e
Cidade. So Paulo: Vigliecca e Associados.

Rubano, L. M., 2014. O Terceiro Territrio - Habitao Coletiva e Cidade. So Paulo: Vigliecca e
Associados.

Souza, V. P. d., 2012. Helipolis as intervenes pblicas e as trasnformaes na forma urbana da favela
(1970 -2011). So Paulo: s.n.

10
Dottaviano, 2010