O documento descreve a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha como um fenómeno fascinante e singular. Apesar de reconhecer o ódio por Hitler, o autor argumenta que o interesse e a identificação com o "irmão incômodo" de Hitler são atitudes mais construtivas do que o ódio.
O documento descreve a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha como um fenómeno fascinante e singular. Apesar de reconhecer o ódio por Hitler, o autor argumenta que o interesse e a identificação com o "irmão incômodo" de Hitler são atitudes mais construtivas do que o ódio.
O documento descreve a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha como um fenómeno fascinante e singular. Apesar de reconhecer o ódio por Hitler, o autor argumenta que o interesse e a identificação com o "irmão incômodo" de Hitler são atitudes mais construtivas do que o ódio.
O documento descreve a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha como um fenómeno fascinante e singular. Apesar de reconhecer o ódio por Hitler, o autor argumenta que o interesse e a identificação com o "irmão incômodo" de Hitler são atitudes mais construtivas do que o ódio.
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O M E U IRM O HITL E R (1 9 3 9 )*
Traduo e notas de Gilda Lopes Encarnao
* As notas referentes a este captulo encontram-se na pgina 204 (N. do E.).
Se no fossem os terrveis sacrifcios que continuam a ser prestados em nome da psicologia fatal deste homem, se no fosse a vasta paisagem de desolao moral que ele deixa atrs de si, seria mais fcil admitir que a sua vida constitui um fenmeno fascinante. impossvel resistir a tal tenta- o: ningum consegue escapar a esta figura sombria, o que se fica a dever, pura e simplesmente, ao carcter eficaz e avassalador da poltica, ou seja, do ofcio que ele um dia es- colheu como sabemos, por no ser capaz de exercer qualquer outro. As consequncias so, pois, funestas para todos ns e ignbeis para a Europa dos nossos dias, que, indefesa, sucumbe ao fascnio deste homem, ao mesmo tempo que permite que ele encarne o papel de eleito ou de heri de todos os tempos. Graas a uma srie de acasos feli- zes ou, melhor, desafortunados , magicamente combi- nados, este homem tem conseguido levar, em todas as cir- cunstncias, a gua ao seu moinho, acumulando vitrias e conquistas umas atrs das outras, sem contar com a mnima resistncia ou oposio. O mero gesto de admitir ou reconhecer uma conjuntu- ra to triste assemelha-se, por si s, a uma espcie de flage- lao moral. necessrio munirmo-nos de um certo auto- domnio, de mais a mais sempre em risco de tornar-se imoral, j que o dio assoma por toda a parte, assumindo-se 142 THOMAS MANN
como a reaco natural de todo o indivduo a quem importa
de alguma forma o destino da nossa civilizao. dio admito que tambm eu o nutro no meu peito. Contudo, pa- ra ser sincero, o que desejo acima de tudo que este fen- meno pblico possa conhecer um desfecho ignominioso, to clere quanto possvel, ainda que a sua comprovada pru- dncia dificilmente o deixe prever. Em todo o caso, sei que o dio que nutro por essa criatura miservel, ainda que fat- dica, no o melhor sentimento para alimentar dentro de mim. Mas felizes e justos se me afiguram os momentos em que o dio sucumbe ao desejo de liberdade, de contempla- o ilimitada, numa palavra, ironia que eu desde h muito considero ser o elemento natural de toda a arte e de toda a criao intelectual. O amor e o dio so emoes profun- das, embora o homem tenda, de uma maneira geral, a su- bestimar a natureza emotiva que caracteriza precisamente aquela atitude na qual amor e dio se renem da forma mais curiosa, nomeadamente a atitude a que chamamos interesse. Ao subestimar o lado afetivo do interesse, o homem subes- tima ao mesmo tempo a sua moralidade. O interesse vem associado a uma pulso para a autodisciplina, a uma tendn- cia, meio humorstica, meio asctica, para o reconhecimen- to, para a identificao, para a solidariedade, todas elas, a meu ver, atitudes moralmente superiores ao dio. O tipo um desastre, ainda que uma anlise da sua personalidade e do seu destino individual no deixe de ser interessante. Quis o acaso que se reunissem, em torno da sua pessoa, as circunstncias mais improvveis: o ressenti- mento insondvel e a sede de vingana pustulenta de um ser intil, incapaz, malogrado uma srie de vezes, extremamen- te preguioso, inapto para qualquer tipo de trabalho, con- denado ao eterno fracasso, artista amador frustrado, um verdadeiro desgraado todas estas circunstncias, dizia, UM PERCURSO POLTICO 143
calham a convergir com o complexo de inferioridade (muito
menos legtimo) de um povo derrotado, um povo que no encontra o seu caminho depois da capitulao e que s an- seia pela restaurao da sua honra. Ora, este homem que nunca aprendeu nada, que nunca quis aprender nada por certa arrogncia obstinada, que no dotado de qualquer capacidade tcnica ou fsica, ao contrrio da maior parte dos homens, pois no sabe montar a cavalo nem conduzir um automvel ou um avio, que nem sequer foi capaz de gerar uma criana, este homem, dizia, rene em si o que neces- srio para convergir com o seu povo: uma eloquncia que arrasta massas, ainda que de qualidade nfima, transformada em mero instrumento histrico e histrinico com o qual vai remexendo na ferida do povo, cativando-o com a profecia de uma grandeza sada das cinzas, atordoando-o com pro- messas, convertendo o sofrimento nacional em veculo para a sua glria, a sua ascenso a alturas fantsticas, ao poder absoluto, a compensaes e sobrecompensaes inauditas... a uma glria e a uma santidade to avassaladoras que quem quer que, no passado, tenha duvidado daquele homem des- conhecido, invisvel e miservel, se transforma em alvo da morte, por sinal, da morte mais vil e atroz, uma morte infer- nal... este mesmo homem no se contenta com as fronteiras nacionais e tem a Europa em mira, aprendendo a dissemi- nar, em contexto alargado, as mesmas fices, as mesmas mentiras histricas, os mesmos artifcios atordoantes que lhe haviam servido de trampolim em casa... tornando-se mestre na explorao das debilidades crticas e dos temores do continente, no seu pavor pela guerra, conseguindo atrair a si outros povos, por cima das cabeas dos seus legtimos governantes, e conquistando o favor de grande parte das populaes. A sorte est do seu lado, os muros desmoro- nam-se, em silncio, a seus ps, de modo que o lgubre z- -ningum de outrora, pelo simples facto de se ter dedicado 144 THOMAS MANN
poltica por amor ptria, como ele apregoa , pare-
ce estar agora em condies de subjugar a Europa ou, quem sabe, o mundo inteiro. Tudo isto sumamente singu- lar, indito e impressionante, pelo que nos impossvel dei- xar de olhar para este fenmeno com uma certa admirao enojada. Na histria que acabmos de contar, podemos identi- ficar alguns traos tpicos dos contos de fadas, ainda que aqui eles nos surjam desfigurados (o motivo da distoro e da decadncia assumem um papel importante na vida euro- peia dos nossos dias): Joo, o Pateta, em O Ganso de Ouro, que acaba por conquistar no s a princesa, como tambm o reino inteiro; o motivo do patinho feio que se transfor- ma num lindo cisne; A Bela Adormecida, rodeada no pelas chamas de Brnhild, mas por sebes de rosas bravas, que desperta com o beijo de Siegfried, sorrindo para o seu he- ri1. Acorda, Alemanha!2 monstruoso, mas parece fazer sentido. E no esqueamos tambm O Judeu entre os Espinhos3 a convocao do esprito nacional mesclada com elementos patolgicos infames. Tudo muito wagne- riano, ao nvel da distoro, como h muito foi diagnosti- cado, na sequncia da venerao bem fundamentada, se bem que algo ilegtima que o poltico milagreiro nutria pelo compositor que encantou a Europa, a quem Gottfried Keller no resistiu a chamar meio barbeiro, meio charla- to. A arte... mencionei a flagelao moral, mas no sere- mos obrigados, quer queiramos ou no, a reconhecer neste fenmeno uma manifestao artstica? Est tudo l, de um modo que no deixa de ser aviltante: as dificuldades, a preguia e a desastrosa indefinio dos anos da juventude, a incapacidade de acomodao, a falta de objectivos e de orientao, uma existncia meio vegetal, meio obtusa, nas profundezas da bomia social e mental, a arrogante recusa UM PERCURSO POLTICO 145
em exercer qualquer atividade sensata e honrada, simples-
mente por se ter em elevada conta com base em que fac- to? Com base numa vaga sensao de estar reservado para algo de totalmente indefinido, algo que, se pudesse ser no- meado, desencadearia fortes gargalhadas por todo o lado. Acresce ainda a m conscincia, o sentimento de culpa, a raiva para com o mundo, o instinto revolucionrio, o desejo violento, acumulado no subconsciente, de encontrar formas de compensao, a tenaz e tumultuosa necessidade de se justificar, de se afirmar perante os outros, a urgncia em do- minar e subjugar, o sonho de ver um mundo que definha em medo e amor, admirao e vergonha, rendido aos ps daquele que fora outrora enjeitado... No aconselhvel tomar a veemncia das conquistas alcanadas para tirar concluses precipitadas, nem quanto profundidade e am- plitude de uma dignidade latente que tanto sofreu com a condio pouco honrosa do seu estado de crislida, nem quanto extraordinria tenso de um subconsciente capaz de produzir criaes de um estilo to distinto e impressio- nante. O estilo alfresco, esse grande estilo da histria da arte, no resulta da ao do indivduo, sendo fruto, sim, dos re- cursos utilizados e do campo de aco alcanado. Os mto- dos polticos e demaggicos, aplicados a povos inteiros ou a grandes massas, no sem grande rudo e elevados sacrif- cios, bem como os seus resultados grandiosos, no provam, de forma alguma, o carcter extraordinrio desta mente, no dizem nada sobre a envergadura deste histrico ostensivo. E, repare-se, volta a pulso insacivel de compensao e de autoglorificao, o desassossego e a insatisfao, o esqueci- mento dos sucessos obtidos, o seu rpido desgaste e conse- quente abandono, o vazio e o tdio, a sensao de inutilida- de sempre que a respirao do mundo no est suspensa, a urgncia infatigvel de provar, uma vez mais, o seu valor e deixar a sua marca no mundo... 146 THOMAS MANN
Um irmo... Um irmo algo incmodo e indigno, que
nos deixa os nervos em franja, um parente que nos provoca um grande desconforto. No quero, contudo, voltar as cos- tas realidade. Como j referi anteriormente: mais gratifi- cante, mais sincero e satisfatrio, mais produtivo at do que o dio o auto-reconhecimento, a prontido em nos identi- ficarmos com o objeto do nosso dio, ainda que correndo o risco moral de esquecermos a capacidade de dizer No. Nada receio; alis, a partir do momento em que a moral afe- ta a espontaneidade e a inocncia da vida, deixa de interes- sar realmente ao artista. Pode ser uma experincia tranquili- zadora, e no apenas negativa, perceber que, no obstante todo o conhecimento e toda a cincia, toda a anlise e todo o avano na investigao do ser humano, sabemos muito pouco acerca dos processos de actuao e de projeco do inconsciente sobre a realidade circundante. Tal particular- mente notrio se pensarmos no processo de primitivizao a que a Europa dos nossos dias se sujeita de forma cons- ciente e deliberada, ainda que essa conscincia e inteno, essa maliciosa afronta ao esprito e ao estdio alcanado por ele, constituam, por si, uma forte oposio a esse mesmo primitivismo. No resta qualquer dvida de que o primiti- vismo que tem a ousadia de se auto-glorificar perante o es- tdio civilizacional atingido nos nossos tempos, o primiti- vismo entendido como mundividncia ainda que esta mundividncia se assuma como correco ou contraponto a um certo intelectualismo rido impudente, corres- pondendo exatamente quilo que o Antigo Testamento de- signa como abominao e demncia. Ora, o artista, en- quanto partidrio irnico da vida, s pode reagir voltando costas, enojado, a um retrocesso to ignbil e hipcrita. Re- centemente vi um filme em que os habitantes de Bali orga- nizavam uma dana tribal e terminavam em transe absoluto, os corpos dos jovens contorcendo-se, exaustos, em espasmos UM PERCURSO POLTICO 147
terrveis. Qual , afinal, a diferena entre rituais deste tipo e o
que se passa numa concentrao de massas, de cariz poltico, na Europa? No nenhuma, ou melhor, talvez se possa iden- tificar uma: a diferena entre o exotismo e a abjeco. Eu era muito novo ainda quando, em Fiorenza4, permi- ti a destruio da soberania da beleza e da cultura pela mo de um monge que, movido pelo seu fanatismo scio-reli- gioso, anunciava o milagre da inocncia reconquistada. Em A Morte em Veneza5, encontramos uma forte rejeio do psicologismo que reinava na poca, a par de uma nova de- terminao e simplificao da alma que, no entanto, con- denada, no final, a um destino trgico. Eu no era alheio s tendncias e ambies da poca, aos acontecimentos que insistiam em revelar-se ou que estavam destinados a suce- der, s aspiraes que, vinte anos mais tarde, andariam na boca do cidado comum. Quem poder ficar surpreendido com o meu desinteresse por esse tipo de ideias, quando elas chegaram ao animal poltico e se degeneraram de tal manei- ra que s os professores obcecados com o primitivismo e os lacaios literrios anti-intelectuais no recuaram perante o seu horror? Estamos perante uma atitude que nos poderia fazer perder o respeito pelas fontes da vida e que faz nascer dio dentro de ns. Mas que importncia tem este dio quando comparado com o dio que o malfeitor do incons- ciente alimenta em relao ao esprito e ao conhecimento! Acalento a secreta suspeita de que a raiva com que as suas tropas marcharam sobre certa capital era, de facto, dirigida a um velho psicanalista que l morava, o seu verdadeiro e real inimigo, o filsofo que desmascarou as neuroses e des- moronou as iluses, o arquitecto e mentor da prpria no- o de gnio6. Pergunto a mim prprio se a carga supersticiosa que sempre tem acompanhado a ideia de gnio ser ainda to forte que nos impea de atribuir o nome de gnio ao nosso 148 THOMAS MANN
amigo. Porque no dar-lhe esse nome, se isso o faz feliz?
O intelectual quase que anseia tanto por verdades dolorosas como o tolo por verdades lisonjeiras. Se a genialidade uma mistura de loucura e de prudncia (e esta no deixa de ser uma definio possvel!), ento o homem um gnio: a concluso no nos repugna de todo, se pensarmos que g- nio define uma categoria, mas no uma classe ou escalo, pelo que a genialidade se pode manifestar nos mais diferen- tes graus intelectuais ou mentais, inclusivamente nos mais nfimos, os quais podem ainda revelar traos ou produzir efeitos que se deixam definir como geniais. Deixo, contudo, em suspenso a questo de saber se a histria da humanidade j ter sido alguma vez confrontada com um caso seme- lhante, a saber, com um nvel moral e intelectual to baixo combinado com um tipo de magnetismo a que damos o no- me de genial, ou se ns, espectadores perplexos, seremos, pelo contrrio, testemunhas de algo indito. Em todo o ca- so, no posso estar de acordo com a possibilidade de este caso particular lanar uma luz negativa sobre toda a catego- ria da genialidade, isto , sobre o fenmeno do homem no- tvel. O gnio sempre foi um fenmeno mais esttico do que moral, ainda que, na realidade, tenha produzido algum calafrio na humanidade, pelo facto de tentar ultrapassar as fronteiras do humano. No nos podemos, todavia, esquecer de que, a par dos temores que possa ter provocado, esse ca- lafrio foi tambm de felicidade. H que respeitar as diferen- as que so, em boa verdade, incomensurveis. No posso deixar de sentir uma certa indignao quando oio hoje di- zer: Afinal, Napoleo, como agora j sabemos, foi tambm um canalha! Ora, isto querer pr tudo no mesmo saco! um absurdo e uma aberrao querer comparar o grande general e o cobarde sem limites, o grande homem de armas e o pacifista chantagista, cujo protagonismo cairia por terra UM PERCURSO POLTICO 149
logo no primeiro dia de combate real. Poderemos alguma
vez comparar o ser que Hegel um dia denominou o espri- to do mundo a cavalo, aquele crnio notvel que tudo do- minava sua volta, com a sua incrvel capacidade de traba- lho, a personificao da prpria revoluo, o arauto tirnico da liberdade para sempre impregnado na memria da hu- manidade como smbolo do classicismo mediterrnico, po- deremos alguma vez comparar essa grandiosa figura com este miservel mandrio, este verdadeiro z-ningum, idea- lista de trazer por casa, tolo inimigo da revoluo social, sa- dista fingido, esprito rancoroso e infame armado em repre- sentante da sensibilidade?... J antes mencionei a distoro que impera na Europa. verdade, a nossa poca foi frtil em distorcer e desfigurar muita coisa: o esprito nacional e o socialismo, o mito e a filosofia da vida, o irracionalismo e a f, a juventude e a revoluo e sabe-se l que mais ainda. E claro, desfigurou tambm a noo de gnio, de homem notvel. necessrio que nos conformemos com o nosso desgnio histrico e que nos contentemos com o estdio em que o gnio se encontra presentemente entre todos aqueles em que se poderia encontrar. Um artista, um irmo. A solidariedade e o reconheci- mento so, contudo, formas de expresso do desprezo da arte por si mesma, uma arte que no deseja, ela prpria, ser tomada totalmente letra. Gostaria de acreditar, melhor, es- tou certo de que tempos viro ainda em que a arte sem limi- tes morais ou intelectuais, a arte transformada em magia ne- gra ou produto instintivo, irracional e irresponsvel, ser to desprezada como venerada nos nossos tempos to pouco humanos. verdade que a arte no s luz e esprito, mas tambm verdade que no apenas trevas e cega aberrao do submundo telrico, no s vida. A arte do futuro 150 THOMAS MANN
manifestar-se- e afirmar-se-, de modo mais notrio e feliz
do que sucedeu at hoje, como encantamento luminoso, co- mo mediao alada, hermtica, lunar entre esprito e vida. E no esqueamos: a mediao j esprito.