Thoman Mann - O Meu Irmão Hitler

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O M E U IRM O HITL E R (1 9 3 9 )*

Traduo e notas de Gilda Lopes Encarnao

* As notas referentes a este captulo encontram-se na pgina 204 (N. do E.).


Se no fossem os terrveis sacrifcios que continuam a
ser prestados em nome da psicologia fatal deste homem, se
no fosse a vasta paisagem de desolao moral que ele deixa
atrs de si, seria mais fcil admitir que a sua vida constitui
um fenmeno fascinante. impossvel resistir a tal tenta-
o: ningum consegue escapar a esta figura sombria, o que
se fica a dever, pura e simplesmente, ao carcter eficaz e
avassalador da poltica, ou seja, do ofcio que ele um dia es-
colheu como sabemos, por no ser capaz de exercer
qualquer outro. As consequncias so, pois, funestas para
todos ns e ignbeis para a Europa dos nossos dias, que,
indefesa, sucumbe ao fascnio deste homem, ao mesmo
tempo que permite que ele encarne o papel de eleito ou de
heri de todos os tempos. Graas a uma srie de acasos feli-
zes ou, melhor, desafortunados , magicamente combi-
nados, este homem tem conseguido levar, em todas as cir-
cunstncias, a gua ao seu moinho, acumulando vitrias e
conquistas umas atrs das outras, sem contar com a mnima
resistncia ou oposio.
O mero gesto de admitir ou reconhecer uma conjuntu-
ra to triste assemelha-se, por si s, a uma espcie de flage-
lao moral. necessrio munirmo-nos de um certo auto-
domnio, de mais a mais sempre em risco de tornar-se
imoral, j que o dio assoma por toda a parte, assumindo-se
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como a reaco natural de todo o indivduo a quem importa


de alguma forma o destino da nossa civilizao. dio
admito que tambm eu o nutro no meu peito. Contudo, pa-
ra ser sincero, o que desejo acima de tudo que este fen-
meno pblico possa conhecer um desfecho ignominioso,
to clere quanto possvel, ainda que a sua comprovada pru-
dncia dificilmente o deixe prever. Em todo o caso, sei que
o dio que nutro por essa criatura miservel, ainda que fat-
dica, no o melhor sentimento para alimentar dentro de
mim. Mas felizes e justos se me afiguram os momentos em
que o dio sucumbe ao desejo de liberdade, de contempla-
o ilimitada, numa palavra, ironia que eu desde h muito
considero ser o elemento natural de toda a arte e de toda a
criao intelectual. O amor e o dio so emoes profun-
das, embora o homem tenda, de uma maneira geral, a su-
bestimar a natureza emotiva que caracteriza precisamente
aquela atitude na qual amor e dio se renem da forma mais
curiosa, nomeadamente a atitude a que chamamos interesse.
Ao subestimar o lado afetivo do interesse, o homem subes-
tima ao mesmo tempo a sua moralidade. O interesse vem
associado a uma pulso para a autodisciplina, a uma tendn-
cia, meio humorstica, meio asctica, para o reconhecimen-
to, para a identificao, para a solidariedade, todas elas,
a meu ver, atitudes moralmente superiores ao dio.
O tipo um desastre, ainda que uma anlise da sua
personalidade e do seu destino individual no deixe de ser
interessante. Quis o acaso que se reunissem, em torno da
sua pessoa, as circunstncias mais improvveis: o ressenti-
mento insondvel e a sede de vingana pustulenta de um ser
intil, incapaz, malogrado uma srie de vezes, extremamen-
te preguioso, inapto para qualquer tipo de trabalho, con-
denado ao eterno fracasso, artista amador frustrado, um
verdadeiro desgraado todas estas circunstncias, dizia,
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calham a convergir com o complexo de inferioridade (muito


menos legtimo) de um povo derrotado, um povo que no
encontra o seu caminho depois da capitulao e que s an-
seia pela restaurao da sua honra. Ora, este homem que
nunca aprendeu nada, que nunca quis aprender nada por
certa arrogncia obstinada, que no dotado de qualquer
capacidade tcnica ou fsica, ao contrrio da maior parte dos
homens, pois no sabe montar a cavalo nem conduzir um
automvel ou um avio, que nem sequer foi capaz de gerar
uma criana, este homem, dizia, rene em si o que neces-
srio para convergir com o seu povo: uma eloquncia que
arrasta massas, ainda que de qualidade nfima, transformada
em mero instrumento histrico e histrinico com o qual vai
remexendo na ferida do povo, cativando-o com a profecia
de uma grandeza sada das cinzas, atordoando-o com pro-
messas, convertendo o sofrimento nacional em veculo para
a sua glria, a sua ascenso a alturas fantsticas, ao poder
absoluto, a compensaes e sobrecompensaes inauditas...
a uma glria e a uma santidade to avassaladoras que quem
quer que, no passado, tenha duvidado daquele homem des-
conhecido, invisvel e miservel, se transforma em alvo da
morte, por sinal, da morte mais vil e atroz, uma morte infer-
nal... este mesmo homem no se contenta com as fronteiras
nacionais e tem a Europa em mira, aprendendo a dissemi-
nar, em contexto alargado, as mesmas fices, as mesmas
mentiras histricas, os mesmos artifcios atordoantes que
lhe haviam servido de trampolim em casa... tornando-se
mestre na explorao das debilidades crticas e dos temores
do continente, no seu pavor pela guerra, conseguindo atrair
a si outros povos, por cima das cabeas dos seus legtimos
governantes, e conquistando o favor de grande parte das
populaes. A sorte est do seu lado, os muros desmoro-
nam-se, em silncio, a seus ps, de modo que o lgubre z-
-ningum de outrora, pelo simples facto de se ter dedicado
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poltica por amor ptria, como ele apregoa , pare-


ce estar agora em condies de subjugar a Europa ou,
quem sabe, o mundo inteiro. Tudo isto sumamente singu-
lar, indito e impressionante, pelo que nos impossvel dei-
xar de olhar para este fenmeno com uma certa admirao
enojada.
Na histria que acabmos de contar, podemos identi-
ficar alguns traos tpicos dos contos de fadas, ainda que
aqui eles nos surjam desfigurados (o motivo da distoro e
da decadncia assumem um papel importante na vida euro-
peia dos nossos dias): Joo, o Pateta, em O Ganso de Ouro,
que acaba por conquistar no s a princesa, como tambm
o reino inteiro; o motivo do patinho feio que se transfor-
ma num lindo cisne; A Bela Adormecida, rodeada no pelas
chamas de Brnhild, mas por sebes de rosas bravas, que
desperta com o beijo de Siegfried, sorrindo para o seu he-
ri1. Acorda, Alemanha!2 monstruoso, mas parece
fazer sentido. E no esqueamos tambm O Judeu entre os
Espinhos3 a convocao do esprito nacional mesclada
com elementos patolgicos infames. Tudo muito wagne-
riano, ao nvel da distoro, como h muito foi diagnosti-
cado, na sequncia da venerao bem fundamentada, se
bem que algo ilegtima que o poltico milagreiro nutria
pelo compositor que encantou a Europa, a quem Gottfried
Keller no resistiu a chamar meio barbeiro, meio charla-
to.
A arte... mencionei a flagelao moral, mas no sere-
mos obrigados, quer queiramos ou no, a reconhecer neste
fenmeno uma manifestao artstica? Est tudo l, de um
modo que no deixa de ser aviltante: as dificuldades, a
preguia e a desastrosa indefinio dos anos da juventude,
a incapacidade de acomodao, a falta de objectivos e de
orientao, uma existncia meio vegetal, meio obtusa, nas
profundezas da bomia social e mental, a arrogante recusa
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em exercer qualquer atividade sensata e honrada, simples-


mente por se ter em elevada conta com base em que fac-
to? Com base numa vaga sensao de estar reservado para
algo de totalmente indefinido, algo que, se pudesse ser no-
meado, desencadearia fortes gargalhadas por todo o lado.
Acresce ainda a m conscincia, o sentimento de culpa, a
raiva para com o mundo, o instinto revolucionrio, o desejo
violento, acumulado no subconsciente, de encontrar formas
de compensao, a tenaz e tumultuosa necessidade de se
justificar, de se afirmar perante os outros, a urgncia em do-
minar e subjugar, o sonho de ver um mundo que definha
em medo e amor, admirao e vergonha, rendido aos ps
daquele que fora outrora enjeitado... No aconselhvel
tomar a veemncia das conquistas alcanadas para tirar
concluses precipitadas, nem quanto profundidade e am-
plitude de uma dignidade latente que tanto sofreu com a
condio pouco honrosa do seu estado de crislida, nem
quanto extraordinria tenso de um subconsciente capaz
de produzir criaes de um estilo to distinto e impressio-
nante. O estilo alfresco, esse grande estilo da histria da arte,
no resulta da ao do indivduo, sendo fruto, sim, dos re-
cursos utilizados e do campo de aco alcanado. Os mto-
dos polticos e demaggicos, aplicados a povos inteiros ou a
grandes massas, no sem grande rudo e elevados sacrif-
cios, bem como os seus resultados grandiosos, no provam,
de forma alguma, o carcter extraordinrio desta mente, no
dizem nada sobre a envergadura deste histrico ostensivo.
E, repare-se, volta a pulso insacivel de compensao e de
autoglorificao, o desassossego e a insatisfao, o esqueci-
mento dos sucessos obtidos, o seu rpido desgaste e conse-
quente abandono, o vazio e o tdio, a sensao de inutilida-
de sempre que a respirao do mundo no est suspensa, a
urgncia infatigvel de provar, uma vez mais, o seu valor e
deixar a sua marca no mundo...
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Um irmo... Um irmo algo incmodo e indigno, que


nos deixa os nervos em franja, um parente que nos provoca
um grande desconforto. No quero, contudo, voltar as cos-
tas realidade. Como j referi anteriormente: mais gratifi-
cante, mais sincero e satisfatrio, mais produtivo at do que
o dio o auto-reconhecimento, a prontido em nos identi-
ficarmos com o objeto do nosso dio, ainda que correndo o
risco moral de esquecermos a capacidade de dizer No.
Nada receio; alis, a partir do momento em que a moral afe-
ta a espontaneidade e a inocncia da vida, deixa de interes-
sar realmente ao artista. Pode ser uma experincia tranquili-
zadora, e no apenas negativa, perceber que, no obstante
todo o conhecimento e toda a cincia, toda a anlise e todo
o avano na investigao do ser humano, sabemos muito
pouco acerca dos processos de actuao e de projeco do
inconsciente sobre a realidade circundante. Tal particular-
mente notrio se pensarmos no processo de primitivizao
a que a Europa dos nossos dias se sujeita de forma cons-
ciente e deliberada, ainda que essa conscincia e inteno,
essa maliciosa afronta ao esprito e ao estdio alcanado por
ele, constituam, por si, uma forte oposio a esse mesmo
primitivismo. No resta qualquer dvida de que o primiti-
vismo que tem a ousadia de se auto-glorificar perante o es-
tdio civilizacional atingido nos nossos tempos, o primiti-
vismo entendido como mundividncia ainda que esta
mundividncia se assuma como correco ou contraponto a
um certo intelectualismo rido impudente, corres-
pondendo exatamente quilo que o Antigo Testamento de-
signa como abominao e demncia. Ora, o artista, en-
quanto partidrio irnico da vida, s pode reagir voltando
costas, enojado, a um retrocesso to ignbil e hipcrita. Re-
centemente vi um filme em que os habitantes de Bali orga-
nizavam uma dana tribal e terminavam em transe absoluto,
os corpos dos jovens contorcendo-se, exaustos, em espasmos
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terrveis. Qual , afinal, a diferena entre rituais deste tipo e o


que se passa numa concentrao de massas, de cariz poltico,
na Europa? No nenhuma, ou melhor, talvez se possa iden-
tificar uma: a diferena entre o exotismo e a abjeco.
Eu era muito novo ainda quando, em Fiorenza4, permi-
ti a destruio da soberania da beleza e da cultura pela mo
de um monge que, movido pelo seu fanatismo scio-reli-
gioso, anunciava o milagre da inocncia reconquistada.
Em A Morte em Veneza5, encontramos uma forte rejeio do
psicologismo que reinava na poca, a par de uma nova de-
terminao e simplificao da alma que, no entanto, con-
denada, no final, a um destino trgico. Eu no era alheio s
tendncias e ambies da poca, aos acontecimentos que
insistiam em revelar-se ou que estavam destinados a suce-
der, s aspiraes que, vinte anos mais tarde, andariam na
boca do cidado comum. Quem poder ficar surpreendido
com o meu desinteresse por esse tipo de ideias, quando elas
chegaram ao animal poltico e se degeneraram de tal manei-
ra que s os professores obcecados com o primitivismo e
os lacaios literrios anti-intelectuais no recuaram perante o
seu horror? Estamos perante uma atitude que nos poderia
fazer perder o respeito pelas fontes da vida e que faz nascer
dio dentro de ns. Mas que importncia tem este dio
quando comparado com o dio que o malfeitor do incons-
ciente alimenta em relao ao esprito e ao conhecimento!
Acalento a secreta suspeita de que a raiva com que as suas
tropas marcharam sobre certa capital era, de facto, dirigida
a um velho psicanalista que l morava, o seu verdadeiro e
real inimigo, o filsofo que desmascarou as neuroses e des-
moronou as iluses, o arquitecto e mentor da prpria no-
o de gnio6.
Pergunto a mim prprio se a carga supersticiosa que
sempre tem acompanhado a ideia de gnio ser ainda to
forte que nos impea de atribuir o nome de gnio ao nosso
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amigo. Porque no dar-lhe esse nome, se isso o faz feliz?


O intelectual quase que anseia tanto por verdades dolorosas
como o tolo por verdades lisonjeiras. Se a genialidade uma
mistura de loucura e de prudncia (e esta no deixa de ser
uma definio possvel!), ento o homem um gnio: a
concluso no nos repugna de todo, se pensarmos que g-
nio define uma categoria, mas no uma classe ou escalo,
pelo que a genialidade se pode manifestar nos mais diferen-
tes graus intelectuais ou mentais, inclusivamente nos mais
nfimos, os quais podem ainda revelar traos ou produzir
efeitos que se deixam definir como geniais. Deixo, contudo,
em suspenso a questo de saber se a histria da humanidade
j ter sido alguma vez confrontada com um caso seme-
lhante, a saber, com um nvel moral e intelectual to baixo
combinado com um tipo de magnetismo a que damos o no-
me de genial, ou se ns, espectadores perplexos, seremos,
pelo contrrio, testemunhas de algo indito. Em todo o ca-
so, no posso estar de acordo com a possibilidade de este
caso particular lanar uma luz negativa sobre toda a catego-
ria da genialidade, isto , sobre o fenmeno do homem no-
tvel. O gnio sempre foi um fenmeno mais esttico do
que moral, ainda que, na realidade, tenha produzido algum
calafrio na humanidade, pelo facto de tentar ultrapassar as
fronteiras do humano. No nos podemos, todavia, esquecer
de que, a par dos temores que possa ter provocado, esse ca-
lafrio foi tambm de felicidade. H que respeitar as diferen-
as que so, em boa verdade, incomensurveis. No posso
deixar de sentir uma certa indignao quando oio hoje di-
zer: Afinal, Napoleo, como agora j sabemos, foi tambm
um canalha! Ora, isto querer pr tudo no mesmo saco!
um absurdo e uma aberrao querer comparar o grande
general e o cobarde sem limites, o grande homem de armas
e o pacifista chantagista, cujo protagonismo cairia por terra
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logo no primeiro dia de combate real. Poderemos alguma


vez comparar o ser que Hegel um dia denominou o espri-
to do mundo a cavalo, aquele crnio notvel que tudo do-
minava sua volta, com a sua incrvel capacidade de traba-
lho, a personificao da prpria revoluo, o arauto tirnico
da liberdade para sempre impregnado na memria da hu-
manidade como smbolo do classicismo mediterrnico, po-
deremos alguma vez comparar essa grandiosa figura com
este miservel mandrio, este verdadeiro z-ningum, idea-
lista de trazer por casa, tolo inimigo da revoluo social, sa-
dista fingido, esprito rancoroso e infame armado em repre-
sentante da sensibilidade?... J antes mencionei a distoro
que impera na Europa. verdade, a nossa poca foi frtil
em distorcer e desfigurar muita coisa: o esprito nacional e o
socialismo, o mito e a filosofia da vida, o irracionalismo e a
f, a juventude e a revoluo e sabe-se l que mais ainda.
E claro, desfigurou tambm a noo de gnio, de homem
notvel. necessrio que nos conformemos com o nosso
desgnio histrico e que nos contentemos com o estdio em
que o gnio se encontra presentemente entre todos
aqueles em que se poderia encontrar.
Um artista, um irmo. A solidariedade e o reconheci-
mento so, contudo, formas de expresso do desprezo da
arte por si mesma, uma arte que no deseja, ela prpria, ser
tomada totalmente letra. Gostaria de acreditar, melhor, es-
tou certo de que tempos viro ainda em que a arte sem limi-
tes morais ou intelectuais, a arte transformada em magia ne-
gra ou produto instintivo, irracional e irresponsvel, ser to
desprezada como venerada nos nossos tempos to pouco
humanos. verdade que a arte no s luz e esprito, mas
tambm verdade que no apenas trevas e cega aberrao
do submundo telrico, no s vida. A arte do futuro
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manifestar-se- e afirmar-se-, de modo mais notrio e feliz


do que sucedeu at hoje, como encantamento luminoso, co-
mo mediao alada, hermtica, lunar entre esprito e
vida. E no esqueamos: a mediao j esprito.

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