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Pentesiléia de Kleist

Tradução e adaptação de
Jean Robert Weisshaupt e Roberto Machado
ATO I: PRÓLOGO

cena 1.

Seguidos por seus séquitos, entram Ulisses, por um lado, e


Antíloco, pelo outro. Depois Diomedes e, mais tarde, Aquiles com
mirmidões.

Antíloco. Salve, rei! Como está indo a guerra desde que nos
separamos nas muralhas de Tróia?

Ulisses. Mal, Antíloco. Olhe a planície! As tropas das amazonas


e dos gregos sangram-se como lobas raivosas sem nem mesmo saber
por quê. Se os deuses não pararem a carnificina, elas vão se
despedaçar sem arredar pé, os dentes de uma cravados na garganta
da outra.

Antíloco. Mas o que querem essas amazonas?

Ulisses. Aconselhado por Agamemnon, eu e Aquiles, o filho de


Peleu, partimos com a tropa dos mirmidões. Corria o boato que
Pentesiléia tinha saído das florestas da Cítia com suas amazonas -
suas guerreiras protegidas por peles de serpente - e trazia para Tróia
seu bando ávido de sangue para libertar Príamo. Chegando à margem
do Escamandro, soubemos que Deífobo, o filho de Príamo, acabava
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de sair de Tróia com sua tropa para saudar a rainha que veio
em sua ajuda. Redobramos o passo, a noite inteira, para impedir essa
perigosa aliança. Sabe, Antíloco, o que vislumbramos ao primeiro raio
da manhã? Num grande vale, bem à nossa frente, o exército das
amazonas em luta contra os troianos de Deífobo. Como um furacão
rasgando as nuvens, Pentesiléia estraçalha as fileiras troianas.

Antíloco. É muito estranho!

Ulisses. Cerramos fileiras, para agüentar o choque dos troianos


em fuga. Vendo isso, Deífobo, desconcertado, pára. Após rápida
deliberação, decidimos saudar a rainha das amazonas. Se ela havia
suspendido sua corrida vitoriosa, não era a coisa mais acertada a
fazer? Essa jovem que nos cai do céu, pronta para o combate, e se
mete em nossa briga, deve tomar partido por um dos lados. Se ela se
revela inimiga dos troianos, somos obrigados a pensar que é nossa
amiga.

Antíloco. É evidente!

Ulisses. Espere...! Aquiles e eu encontramos a heroína da Cítia


adornada de luz guerreira, como para uma festa. Por um momento, ela
nos olha, pensativa, sem expressão, como se fôssemos estátuas de
pedra. De repente, o seu olhar cai sobre o filho de Peleu e ela fica
vermelha como se o mundo a sua volta estivesse em chamas. Num
impulso, ela pula do cavalo, olha Aquiles com um olhar sombrio, joga
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as rédeas para a escudeira e pergunta por que viemos ao
seu encontro com escolta tão pomposa. Explico-lhe que nós, os
gregos, muito nos alegramos em encontrar uma inimiga dos troianos e
mostro-lhe as vantagens, para ela e para nós, de uma aliança.
Enquanto falo, noto, surpreso, que ela nem me escuta. De repente,
com o ar de espanto de uma virgem de dezesseis anos, ela se volta
para uma amiga a seu lado e grita: “Protoé, minha mãe jamais deve ter
encontrado um homem assim!”. Perturbada, sua amiga se cala.
Aquiles e eu nos entreolhamos sorrindo. Mas ela, fascinada, não pára
de comer com os olhos a figura luminosa do filho de Peleu, até que
ele, discretamente, se aproxima dela e lembra-lhe que ainda me deve
uma resposta. Então – não sei se de raiva ou de vergonha – seu rosto,
seu peito e até sua cintura se tingem de vermelho. Confusa,
orgulhosa, arisca, ela se volta para mim e diz que é Pentesiléia, a
rainha das amazonas, e me dará a resposta a flechadas.

Antíloco. Foi exatamente isto, palavra por palavra, o que disse o


seu mensageiro. Mas ninguém, no campo dos gregos, entendeu nada.

Ulisses. Não sabendo o que pensar dessa provocação,


envergonhados e com raiva, damos meia-volta. Os troianos, que
adivinham a humilhação por que passamos, se reorganizam
triunfantes, zombando de nós. Imaginando-se favorecidos pela sorte e
que a ira das Amazonas era um erro que logo seria desfeito, enviam
rápido um arauto para lhes oferecer mão e coração. O mensageiro
nem tinha ainda sacudido a poeira de sua couraça e a Centauro já se
precipita, desembestada, contra eles e contra nós, gregos e troianos,
varrendo uns e outros, juntos, como uma enxurrada.
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Antíloco. Que incrível!

Ulisses. Começa então uma batalha como nunca se viu na terra


desde que reinam as Fúrias. Acossado pelas amazonas, o troiano se
esconde atrás do escudo de um grego, o grego o salva das garras da
jovem que o persegue. Esquecido o rapto de Helena, grego e troiano
precisam se unir contra o inimigo comum na batalha, que,
ensandecida, estronda na planície como uma trovoada entre picos
rochosos coroados de florestas.

Antíloco. E não há meio de saber o que quer essa filha de Ares?

Ulisses. Não. Às vezes, vendo o estranho furor com que ela


procura o corpo a corpo com Aquiles, parece que tem o peito cheio de
um ódio pessoal contra ele. Uma loba, na neve das florestas, não
persegue com mais voracidade a presa marcada por seu olho cruel.
No entanto, há pouco, ela teve sua vida nas mãos e a devolveu
sorrindo; sem Pentesiléia, o filho de Peleu teria encontrado as
sombras.

Antíloco. Como? A rainha?

Ulisses. Ela mesma. Ontem, ao cair da tarde, Aquiles e


Pentesiléia voltavam a cruzar espadas. Deífobo aparece, toma o
partido da amazona e desfere um golpe tão brutal que racha a couraça
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do filho de Peleu. Lívida, a rainha deixa, por um momento,
cair os braços. De repente, louca de raiva, chicoteia com os cabelos
seu rosto em chamas, ergue-se na sela e mergulha sua espada
flamejante no pescoço de Deífobo, que desaba aos pés do filho de
Peleu. Este, em sinal de agradecimento, quer fazer o mesmo com ela,
que se esquiva, solta as rédeas do cavalo, olha em volta, sorri e
desaparece.

Antíloco. Inacreditável !

Ulisses. Mas, Antíloco, diga-me: quais são as notícias de Tróia?

Antíloco. Agamemnon mandou lhe perguntar se, diante da


mudança da situação, a prudência não aconselha uma retirada. O que
importa, disse ele, é derrubar os muros de Tróia, e não interromper o
caminho de uma princesa livre para um alvo que nos é indiferente. Se
Pentesiléia não vai ajudar Tróia, a ordem é voltar para as trincheiras
gregas.

Ulisses. Essa também é minha posição. Você pensa que tenho


prazer nesta carnificina absurda? A primeira coisa a fazer é tirar
Aquiles daqui. Assim como o cão se lança ao pescoço do cervo, assim
também faz esse louco desde que viu tão bela caça no bosque da
guerra. Seria possível detê-lo com uma flecha na coxa; quero ver,
Antíloco, o efeito que pode ter sua eloquência com ele espumando
desse jeito.

Antíloco. Tentemos juntos, mais uma vez, enfiar sem violência


um pouco de razão nessa cabeça quente. Astucioso Ulisses, você
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saberá encontrar a brecha de sua couraça. (Olhando para
fora) Diomedes está chegando, pálido e transtornado (entra
Diomedes).

Ulisses. Quais são as novas?

Antíloco. Alguma mensagem?

Diomedes. A pior que você já ouviu.

Ulisses. O que é?

Antíloco. Fale logo!

Diomedes. Aquiles está nas mãos das amazonas; agora é que


as muralhas de Tróia não caem mesmo.

Antíloco. Ave de mau augúrio!

Ulisses. Mas quando? Onde?

Diomedes. Como um raio, uma nova ofensiva dessas furiosas


guerreiras destroçava as fileiras dos bravos etólios e as empurrava,
como ondas, na nossa direção. Em vão tentamos deter sua fuga.
Como uma torrente impetuosa, ela nos afasta, no seu turbilhão, do
campo de batalha e só conseguimos fincar pé já longe do filho de
Peleu. Cercado de lanças, ele abandona o negro combate, desce, pé
ante pé, da colina e, felizmente, corre em nossa direção. Já o
saudávamos alegremente quando os gritos ficam entalados nas
gargantas. Seu carro tinha estancado na beira de um precipício. Os
cavalos se empinam, caem e se enredam nos arreios, que prendem o
filho dos deuses como nas malhas de uma rede.
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Antíloco. Que loucura !

Diomedes. Antes que ele possa soltar-se, a rainha, na frente de


uma tropa de amazonas triunfantes, lhe corta a saída.

Antíloco. Pelos deuses !

Diomedes. Em meio a uma nuvem de poeira, pára o cavalo,


solta as rédeas e, parecendo acometida por uma vertigem, segura
com as mãos seu rosto vermelho. Inquietas, as amazonas se
precipitam segurando-a pelos braços. Em vão! Com força e doçura,
ela afasta as companheiras e procura, pela ravina, um caminho para
seu desejo, na esperança insensata de por a mão na presa.

Antíloco. Que hiena cega de furor!

Ulisses. E Aquiles?

Diomedes. Com o carro desvirado, de um pulo, segura


novamente as rédeas. Começamos a respirar aliviados. Mas, no
momento em que movimenta os cavalos, as amazonas descobrem
uma trilha para o alto do penhasco e chamam sua rainha com gritos de
alegria. O filho de Peleu pode ter recuado seus cavalos e fugido, mas
eu o perdi de vista e não sei o que aconteceu.

Antíloco. Está perdido!

Diomedes. Amigos, o que vamos fazer?

Ulisses. O que nosso coração ordena. Vamos tirá-lo das mãos


da rainha, mesmo que seja uma luta de vida ou morte. Eu assumo a
responsabilidade diante de Agamemnon.
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Antíloco. (olhando ao longe) Mas olhem! Lá, na crista


da montanha, um elmo emplumado! Uma armadura brilhante! Um cinto
de ouro! Parece o sol resplandecente numa manhã de primavera. É
Aquiles! O filho dos deuses! No seu carro! São e salvo!

Diomedes. Honra aos deuses!

Antíloco. Veja como domina os cavalos! Como empunha o


chicote! Como seus divinos animais parecem puxar o carro com as
ventas: um cervo acossado não seria mais veloz.

Diomedes. (olhando ao longe) Olhem! Atrás dele! Na montanha!


Redemoinhos de poeira como nuvens negras de tempestade!

Antíloco. Deuses imortais! Pentesiléia, a rainha e o bando


inteiro das amazonas no encalço do divino Aquiles!

Ulisses. Aquela megera furiosa!

Antíloco. Olhem para ela! Vejam com que fúria ela prende, entre
as coxas, seu cavalo ruço. Como se deita sobre ele, o rosto colado em
sua crina, bebendo avidamente o ar que retarda o seu galope. Ela voa
como uma flecha.

Diomedes. A cada passada do cavalo, ela parece engolir um


pouco do caminho que ainda a separa de Aquiles. Já come a poeira
levantada pelo carro do filho de Peleu, lento demais.

Antíloco. Olhe o louco arrogante dando voltas como se


estivesse brincando. Cuidado, ela vai cortar caminho e pegá-lo!
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Diomedes. Já estão ombro a ombro; a sombra da


filha de Ares, imensa no sol da manhã, cai sobre ele e o esmaga.

Antíloco. Mas vejam, ele desviou seus cavalos e vem


novamente em nossa direção!

Diomedes. Que astucioso, ele a enganou. Incapaz de parar, ela


passa ao lado do carro, vacila da sela, tropeça...

Antíloco.... e cai! Estatela-se no chão. Uma amazona cai sobre


ela...

Diomedes. E outra...

Antíloco. Outra...

Diomedes. Outra...

Antíloco e Diomedes. Vitória! Salve! Salve, Aquiles! Salve, filho


dos deuses! Salve! (Aquiles, entra, salta do carro e tira o elmo. Os reis
o cercam).

Ulisses. Salve, herói da Grécia, vencedor até na fuga. Se, com


um golpe de mestre, você conseguiu derrubar sua inimiga na poeira,
de costas, sem olhar para ela, o que não fará quando a encontrar
frente a frente?

Diomedes. O que acabo de ver me convence de que sua


magistral corrida foi de propósito. Pergunto-me se, ao nascer do sol,
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quando estávamos ainda começando a nos equipar,
você já não tinha visto a pedra na qual a rainha ia tropeçar e se
espatifar no chão.

Ulisses. Mas, agora, leão da Grécia, se você não tiver uma idéia
melhor, acharia bom voltarmos, todos juntos, para nosso
acampamento. Agamemnon nos chama. Fingindo uma retirada,
tentaremos atrair as amazonas para o vale do Escamandro, onde
Agamemnon está emboscado para a batalha final. Pode acreditar, é aí,
e apenas aí, que você poderá apaziguar o ardor que lhe consome.
Pois eu também execro e odeio mortalmente essa Fúria, errante no
campo de batalha, atravessada em nossos projetos. Confesso que
gostaria de ver a marca de seu pé naquelas fuças cor de rosa.

Aquiles. (o olhar perdido na distância) Ela ainda está aí?

Ulisses. Por quem você pergunta? Pela rainha? Você ouviu o


que falamos?

Aquiles. O que disseram? Não, nada. O que era? O que


querem?

Ulisses. O que queremos? Que estranho... Nós lhe


comunicamos a ordem de Agamemnon de voltar imediatamente ao
acampamento grego. Antíloco, que está aqui -será que você não o
está vendo?-, Antíloco nos transmitiu o seguinte plano de batalha:
atrair para perto de Tróia a rainha das amazonas, a fim de que,
encurralada entre os dois exércitos e forçada pela situação, ela
finalmente revele de quem é amiga. Assim, qualquer que seja a
decisão dela, saberemos o que fazer. Confio no seu bom senso,
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Aquiles; você seguirá essa ordem sábia. Seria loucura
lutar, aqui, contra as amazonas, quando a guerra exige nossa
presença nas muralhas de Tróia. Além do mais, não sabemos o que
elas querem conosco nem mesmo se querem alguma coisa.

Aquiles. (recolocando o elmo) Lutem como eunucos, se


quiserem. Sinto-me homem suficiente para enfrentar essas mulheres,
mesmo que seja sozinho. Que fiquem ou não na sombra fresca dos
pinheiros, espreitando-as com desejos de impotentes, longe do leito da
batalha, onde o corpo a corpo as envolve no seu turbilhão, pouco
importa. Voltem para Tróia. Eu permito. Sei o que essa criatura divina
quer de mim. Ela tem mandado, pelo ar, caricias emplumadas que,
com seu silvo mortal, vêm me confiar seu desejo. Vão embora. Irei
encontrá-los no acampamento grego. Juro que não reverei Tróia antes
de fazer dela minha noiva, de lhe trançar uma coroa de feridas mortais
e de arrastá-la pelos cabelos pelas ruas de minha cidade.

Diomedes. (olhando ao longe) Olhem lá, perto do carvalho, onde


caiu, Pentesiléia recoloca o elmo e parece ter esquecido seu
infortúnio. Filho de Peleu, Pentesiléia se aproxima!

Aquiles. Vou atrás dela. Está a cavalo?

Diomedes. Não. Está a pé. Mas seu cavalo persa já se agita a


seu lado.

Aquiles. Ótimo. Depressa, um cavalo. Sigam-me, meus


corajosos mirmidões (Aquiles as com sua tropa)

Antíloco. Insensato!
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Ulisses. Experimente agora sua eloqüência, Antíloco.

Antíloco. Só à força...

Diomedes. Já está longe.

Ulisses. Maldita seja essa guerra das amazonas (Todos saem).

cena 2.

O acampamento das amazonas: Pentesiléia, Protoé, Astéria.

Astéria. Salve, vitoriosa! Salve, rainha da Festa das Rosas!


Salve!

Pentesiléia. Não me falem de triunfo. Não me falem da Festa


das Rosas. O combate novamente me chama e saberei vencer esse
arrogante jovem deus da guerra. O fogo de dez mil sois não teria a
meus olhos o brilho de uma vitória, de minha vitória sobre ele.

Protoé. Amada, eu lhe suplico...

Pentesiléia. Deixe-me! Seria mais fácil conter a torrente que


desaba morro abaixo do que o tumulto de minha alma. Quero ver a
meus pés, no pó, esse orgulhoso que vem ofuscar, neste glorioso dia
de luta, meu entusiasmo guerreiro, como ninguém o fez até agora. Os
deuses me amaldiçoaram! Como é possível que, quando o exército
grego, derrotado, debanda, o simples fato de vê-lo me abala até o
fundo da alma? Eu... desarmada... dominada... vencida? Se não mais
tenho seio, onde está o sentimento que me abate? Tenho que voltar ao
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tumulto da batalha, onde ele me espera com seu sorriso de
desprezo, para vencer ou morrer.

Protoé. Amada rainha, não quer descansar, por um momento, a


cabeça no meu colo? A queda que lhe abalou tão violentamente o
peito, também lhe inflamou o sangue, lhe excitou os sentidos. Você
está toda tremendo. Não decida nada antes de voltar à serenidade!
Venha! Descanse um pouco em meu ombro.

Pentesiléia. Por quê? O que aconteceu? O que foi que eu


disse?

Protoé. Você vai de novo se lançar ao acaso das batalhas por


uma vitória que seduziu, apenas por um momento, sua jovem alma?
Por um simples desejo insatisfeito, você vai arriscar a boa colheita de
homens que veio responder às preces de seu povo?

Pentesiléia. Maldito seja o dia de hoje! Minhas amigas mais


queridas se juntam ao traiçoeiro destino para me ferir! Quando estou
quase pegando a glória com a mão, uma força estranha me barra o
caminho; minha alma é contradição e revolta. Afaste-se!

Protoé. (à parte) Que os deuses a protejam!

Pentesiléia. Será que só penso em mim? Será que é apenas


meu desejo que me leva de volta ao campo de batalha? Sim, fizemos
a colheita; mas para quê? Vocês não vão coroar com flores os jovens
que capturaram. Não os levarão pelos vales perfumados, ao som dos
clarins e dos címbalos. Aquiles, o filho de Tétis, virá atrás. Eu o vejo
segui-las até os muros de nossa cidade, resgatar os cativos no interior
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do templo de Ártemis, soltá-los das correntes de rosas e
prendê-las com pesadas correntes de bronze. E eu, que teimo
loucamente em abatê-lo, devo parar de persegui-lo? Não! Prefiro
renunciar a minhas ações gloriosas, à coroa que orna minha cabeça e
à promessa de levá-las ao cume da felicidade. Maldito seja o coração
que não se pode impor medida!

Protoé. Rainha, seu olhar tem um brilho estranho,


incompreensível. Em minha alma inquieta nascem pensamentos tão
sombrios que parecem surgir das trevas. O exército grego se
dispersou como poeira no vento. Nossa posição isolou Aquiles, o filho
de Tétis. Deixe de provocá-lo, evite seu olhar! Juro que logo voltará
para as fileiras gregas. Eu ficarei na retaguarda. Prometo que ele não
resgatará nenhum cativo e não impedirá o riso de nenhuma das
virgens.

Pentesiléia. (para Astéria) Será possível fazer isso, Astéria?

Astéria. Senhora...

Pentesiléia. Posso levar o exército de volta, como quer Protoé?

Astéria. Desculpe, Princesa, no que me diz respeito...

Pentesiléia. Fale sem medo!

Protoé (timidamente) Se você for perguntar a opinião de todas


as princesas do conselho...
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Pentesiléia. É a opinião desta aqui que eu quero ouvir!


... Mas o que está acontecendo? Responda, Astéria, posso levar o
exército de volta à pátria?

Astéria. Quer saber? Confesso meu espanto diante do


inacreditável espetáculo que vejo. Saí atrasada e não pude seguir,
com minha tribo, a marcha torrentosa de seu exército. Ao chegar, esta
manhã, ouço de todas a boa nova: a vitória é nossa, a guerra das
amazonas acabou. No entanto, quando vou olhar as presas de guerra,
vejo um punhado de escravos lívidos e trêmulos - o rebotalho do
exército grego -, e as suas guerreiras entusiasmadas escolhendo entre
eles... Enquanto isso, o exército grego está inteiro: Agamemnon,
Menelau, Ajax, Palamedes, Ulisses, Diomedes, Antíloco zombam de
você e o jovem Aquiles, que sua mão deveria coroar de rosas,
arrogante lhe resiste. Ele quer, e o proclama alto e bom som, pisar no
seu pescoço real. E você, nobre guerreira, me pergunta se pode
celebrar o retorno triunfal?

Protoé. Falsa! A rainha viu aos seus pés heróis que por sua
nobreza, coragem e beleza...

Pentesiléia. Cale-se! Odeio você! Astéria sente a mesma coisa


que eu: somente aquele que ainda está de pé no campo de batalha e
me desafia merece ser abatido por mim.

Protoé. Senhora, não se entregue a essa paixão...!


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Pentesiléia. Morda a língua, víbora, se não quiser


enfrentar a fúria de sua rainha. Desapareça daqui!

Protoé. Pois enfrentarei a fúria de minha rainha! Prefiro nunca


mais lhe ver do que estar por perto e, adulando, traí-la covardemente.
Inflamada como está, você não é capaz de levar adiante a guerra das
virgens. Não conseguirá o filho de Tétis e, além disso, perderá os
jovens que capturamos a tanto custo.

Pentesiléia. Que coisa estranha! Não entendo o que, de


repente, lhe faz assim tão covarde. Diga-me: quem você venceu?

Protoé. Licaonte, o jovem príncipe da Arcádia. Você viu.

Pentesiléia. Ah, é? Era aquele que estava todo trêmulo quando


ontem me aproximei dos cativos?

Protoé. Trêmulo? Ele se mostrou tão firme quanto o filho de


Tétis frente a você. Só que, atingido por uma de minhas flechas, caiu
aos meus pés. Serei a mais orgulhosa de todas, quando, na Festa das
Rosas, o levar ao templo sagrado.

Pentesiléia. É assim? Como você está animada! Pois não tenha


medo, ninguém o tomará de você. Tragam Licaonte, o príncipe da
Arcádia! Para não perdê-lo, virgem que deixou de ser amazona, fuja
do fragor da batalha e procure, com ele, um esconderijo nos mais
afastados vales floridos de nossas montanhas, onde o rouxinol entoa
seu canto sensual! Celebre, luxuriosa, essa festa pela qual tanto
anseia, mas não apareça mais na minha frente! Seja eternamente
banida de nossa cidade! Que seu amante e seus beijos lhe sirvam de
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consolo quando tudo terá perdido: glória, pátria, amor, a
rainha, a amiga.

Astéria. (olhando ao longe) Rainha, Aquiles está se


aproximando.

Pentesiléia. Ótimo, companheiras, voltemos à batalha! Deuses,


concedam-me a alegria de derrubar vitoriosamente a meus pés esse
jovem guerreiro tão ardentemente desejado! Astéria, você conduzirá
as tropas. Cuide dos gregos e não deixe nenhuma das amazonas
tocar no filho de Tétis! Só eu posso abater o filho dos deuses. Se é
com ferro que tenho de abraçá-lo, eis o ferro que, sem ferir, com
doçura, vai trazê-lo, abraçado, para meu coração. Então, nosso cortejo
triunfal retomará o caminho da pátria e eu serei, para vocês, a rainha
da Festa das Rosas! Vamos, sigam-me! (Vê Protoé em lágrimas, se
volta para ela e a toma nos braços). Protoé, minha alma gêmea, quer
vir comigo?

Protoé (com voz embargada) Com você, iria até os infernos.


Mas sem você, o que iria fazer na Ilha dos Bem-Aventurados?

Pentesiléia. Ó Protoé, melhor de todas as mortais, quer vir


comigo? Ótimo. Juntas, lutaremos e venceremos, ou não. Que nosso
lema seja: coroas de rosas para nossos heróis ou coroas de ciprestes
para nós! (Saem).

cena 3.
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A suma sacerdotisa de Ártemis entra com um grupo de jovens


virgens, carregando cestos de rosas. Depois, voltam Protoé, Astéria,
Pentesiléia e algumas amazonas.

Sacerdotisa. Minhas bem amadas virgens portadoras de rosas,


deixem-me ver o fruto da colheita. Nestes campos é mais fácil colher
cativos do que rosas. As rosas são tão raras nestes vales! (à virgem 1)
Você colheu apenas uma única rosa. Mas que rosa: digna de coroar
um rei. Pentesiléia não poderá desejar mais bela quando derrubar
Aquiles, o filho dos deuses. Quando ela o vencer, você lhe dará essa
rosa real. Guarde-a, com cuidado. (às virgens) Talvez já comece a
combater o jovem que seus corpos aguerridos desejam. Na próxima
primavera, quando as rosas desabrocharem, vocês poderão procurar
um jovem guerreiro na batalha. Por enquanto, trancem as coroas!. Não
fiquem aí paradas. Como se eu precisasse ensinar-lhes os deveres do
amor... (Protoé entra apressada)

Protoé. O que faz aqui, Venerável Sacerdotisa, se o exército se


prepara logo ali para a decisão sangrenta?

Sacerdotisa. O exército? Impossível! Onde?

Protoé. Nas margens do Escamandro. Se prestar atenção ao


vento que sopra das montanhas, ouvirá os gritos furiosos da rainha, o
fragor das armas desembainhadas, o relincho dos cavalos, as
trombetas, os clarins, os címbalos, as vozes de bronze da guerra.

Sacerdotisa. O que ela ainda está querendo, se os cativos se


amontoam, aos milhares, nas florestas?
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Protoé. Olhe! Olhe! Surgindo entre as negras


nuvens, os raios do sol iluminam a cabeça de Aquiles. Luminoso, ele
se ergue no alto de uma colina, ele e seu cavalo, revestidos de
bronze. Seu esplendor ofuscante brilha mais do que a safira e a
ametista.

Sacerdotisa. Que importa ele? Uma filha de Ares, uma rainha,


não escolhe seu adversário. Você vê a rainha?

Protoé. Sim, na frente das guerreiras. Cingida de flamejante


couraça de ouro, inebriada pela promessa da luta, dançando, ela se
aproxima de Aquiles. Como mordida de ciúmes, parece querer se
antecipar ao sol no beijo na fronte juvenil do filho de Tétis.

Sacerdotisa. Onde já se viu tamanha loucura? A rainha, uma


filha de Ares que tirou o seio, atingida pelas flechas envenenadas do
amor? É assustador! Ela está à caminho do inferno. Se perecer, não
será frente ao adversário no combate, mas diante do inimigo que
guarda no peito. Ela nos arrastará para o abismo. (Astéria volta)

Astéria. Fuja, Venerável Sacerdotisa, e leve os cativos. O


exército grego inteiro se precipita em nossa direção.

Sacerdotisa. O que aconteceu? Onde está a rainha?

Astéria. Foi derrubada e foge em debandada o exército das


amazonas.

Sacerdotisa. Onde? Quando?


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Astéria. Eis, em poucas palavras, a pior das


catástrofes. Aquiles e Pentesiléia se enfrentam, lanças em riste, como
dois raios que se cruzam. As lanças se partem. O filho de Tétis
permanece montado. Pentesiléia, tocada pela sombra da morte, vai ao
chão e rola na poeira, obcecada pela desforra. Mas, por mais estranho
que pareça, quando pensávamos que ia mandá-la de vez para o
inferno, ele exclama, lívido: “Deuses, com que olhar me feriram esses
olhos agonizantes!”. Salta, ligeiro, do cavalo e, enquanto as guerreiras
imobilizadas de pavor, lembrando as ordens da rainha, não ousam
nem mesmo empunhar a espada, destemido, ele se aproxima do
corpo estendido no chão, se debruça sobre ela e grita: “Pentesiléia”.

Depois, a toma nos braços e, amaldiçoando o ato que cometeu,


chama-a de volta à vida, gemendo. “Para trás, odioso!”, berra todo o
nosso exército. “Que morra! Se não se afastar, crivem-no de flechas
certeiras!”, brada Protoé que se arremessa sobre ele com cavalo e
tudo, o atropela e lhe arranca Pentesiléia. Ela acorda, o peito rasgado,
descabelada e ofegante. Levamos a infeliz para a retaguarda, onde,
prontamente, se refaz. Mas ele, o misterioso grego, parece tocado por
um deus amoroso, que o derreteu por baixo da couraça de bronze:
“Parem amigas, diz ele, Aquiles lhes saúda e lhes oferece uma paz
eterna”. Joga a espada, o escudo, a couraça e procura a rainha sem
temor algum, como se soubesse, o louco temerário, que sua vida é
sagrada para nós, que o derrubaríamos, com nossas própria mãos, se
pudéssemos tocá-lo.

Sacerdotisa. Mas quem proibiu isso? Quem deu essa ordem


estapafúrdia?
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Astéria. A própria rainha.

Sacerdotisa. Não estou dizendo? É assustador!

Astéria. Olhem! Ela está chegando. É a imagem da desgraça!


(Pentesiléia entra, amparada por algumas amazonas).

Pentesiléia (com voz fraca) Soltem os cães! Joguem sobre ele


os carros de combate! Decepem seus membros viçosos!

Protoé. Bem amada, lhe imploramos...O filho de Tétis está em


seu encalço. Fuja, se ainda ama a vida.

Pentesiléia. Ter-me cortado o coração dessa maneira, Protoé!


Como se, furiosa, eu tivesse pisado a lira que, tocada pela brisa
noturna, sussurrava meu nome.

Protoé. Então, não quer fugir? Não quer se salvar?

Pentesiléia. É minha culpa, se, para ganhar seu amor, preciso


afrontá-lo no campo de batalha? Qual é meu desejo, quando puxo da
espada? Desejo precipitá-lo no inferno? Pelos deuses! Desejo apenas
apertá-lo no meu coração.

Protoé. Está delirando...

Sacerdotisa. Infeliz.

Protoé. Perdeu a razão.

Sacerdotisa. Não pensa em mais nada; só pensa nele!

Protoé. A queda a deixou fora de si.


22

Pentesiléia (esforçando- se para se controlar) Que seja


como vocês querem. Saberei me controlar, saberei vencer meu
coração e aceitarei de bom grado o que a sorte me reserva. Por que,
como uma criança, romper com os deuses? Por um desejo fugaz? É
verdade que minha felicidade teria sido plena, mas, se ela não caiu do
céu, não é uma razão para assaltá-lo. Dêem-me um cavalo e as
levarei de volta à pátria.

Protoé. Senhora, benditas sejam suas palavras de rainha.


Venha, tudo está pronto para a partida.

Pentesiléia. (nota as coroas de rosas nas mãos das virgens)


Quem deu a ordem de colher essas rosas?

Sacerdotisa. Esqueceu?

Pentesiléia. Quem?

Sacerdotisa. A festa da vitória, tão ansiosamente esperada,


deveria ser celebrada hoje. Essa ordem não veio de sua própria boca?

Pentesiléia. Maldita seja essa impaciência luxuriosa! Maldita


seja essa expectativa de orgia na hora da batalha sangrenta.

Malditos sejam, no ventre das filhas de Ares, esses ávidos


desejos de cadelas à solta. Não alcancei a vitória e o inferno me
insulta com essa caricatura de triunfo. Joguem isto fora. (destrói as
coroas). Que seque a primavera! Que murche a terra como cada uma
destas rosas!
23

Sacerdotisa. Infeliz! Está perdida. As Fúrias se


apossaram de sua alma.

Astéria. (olhando ao longe) Aquiles se aproxima. Já está a uma


flechada de distância.

Protoé. Imploro de joelhos... pense em sua salvação!

Pentesiléia. Sinto um cansaço mortal na alma. Podem fugir se


quiserem. Quero ficar aqui.

Protoé. O que está dizendo sua louca? O filho de Tétis está


perto.

Pentesiléia. Deixe-o vir. Deixe-o colocar no meu pescoço seu pé


de bronze. É isso o que eu quero. Deixe-o me arrastar, pelos cabelos,
atada a seus cavalos. Deixe meu corpo, cheio de vida, ser jogado nos
campos e servir de pasto aos cães e às aves de rapina. Melhor ser pó
do que uma mulher que não sabe seduzir.

Protoé. Minha rainha!

Pentesiléia. (arrancando seus colares) Longe de mim, falsos


brilhantes!

Protoé. É esse o controle que, há pouco, prometia?

Pentesiléia. Maldita seja a mão que me armou para o combate.


Maldita seja a boca traiçoeira que me prometeu a vitória.

Sacerdotisa. Rainha, se não fugir agora mesmo, estará perdida.


(Pentesiléia, os olhos cheios de lágrimas, se apoia em Protoé).
24

Protoé. (comovida) Seja feita a sua vontade! Se você


não puder, se você não quiser... tudo bem! Não chore! Ficarei junto. O
que não é possível, o que está fora de seu alcance, o que você não
pode fazer, livrem-me os deuses de exigi-lo. Virgens, podem partir.
Voltem para casa. Eu e a rainha permaneceremos aqui.

Sacerdotisa. Não é o destino que a detém, mas o insensato


coração...

Protoé. ...que é o seu destino! Talvez ela rompesse correntes de


ferro, mas não romperá esse sentimento que você menospreza. Ela
ansiava o bem supremo da vida, quase o alcançava, quase o agarrava
e agora sua mão não tem nem mais força de procurar outro bem. (a
Pentesiléia) Venha, se chegou sua hora, que seja no meu peito!

Pentesiléia. Se ainda pudesse fugir, se decidisse escapar, diga-


me: o que faria se fosse eu?

Protoé. Iria ao encontro de meu exército, descansaria, cuidaria


de minhas feridas e, se quisesse, ao raiar do dia, voltaria para a
guerra.

Pentesiléia. Se isso fosse possível... Se tivesse forças... Fiz o


maior esforço que pude... Tentei o impossível. Arrisquei tudo numa
única jogada. O resultado está aí... é o que preciso entender...
compreender que perdi.

Protoé. Não, não subestime tanto suas forças. Quantas coisas,


que nem imagina, poderíamos fazer juntas. Mas, tem razão, é muito
tarde.
25

Pentesiléia (inquieta) Onde está o sol agora?

Protoé. A pino. Se você fosse rápida, chegaria antes da noite.


Poderíamos fazer uma aliança com os troianos sem que os gregos
soubessem e, na calada da noite, chegar à baía, atear fogo a seus
navios, destroçar seus exércitos e, enfim, coroar de rosas os cativos
destinados ao nosso prazer. Como seria feliz, se pudesse viver esse
momento; como seria feliz de ver o filho de Tétis, depois de tanto
esforço, vencido a seus pés.

Pentesiléia. (animada) Ótimo! Ótimo! Por onde vamos?

Protoé. Que bom! Seja como um gigante, princesa! Não


desmorone mais, aprume-se e mantenha o prumo. Venha, me dê a
mão!

Pentesiléia. Espere! Antes de partir, tenho ainda algo a fazer.

Protoé. Ainda?

Pentesiléia. Apenas uma coisa, minhas amigas. Vocês têm de


convir que estaria completamente louca se não esgotasse todas as
possibilidades.

Sacerdotisa. Mas o que pretende fazer?

Pentesiléia. Oh! Nada, nada que possa irritá-las. Quero pôr o


monte Issa em cima do monte Ossa e, no topo, me erguer, tranqüila e
nua.

Protoé. Que os deuses a protejam!


26

Astéria. Rainha, isso é obra para gigantes!

Pentesiléia. E daí?

Protoé. E depois, o que fará?

Pentesiléia. Pelos seus cabelos de fogo, eu o puxaria para mim,


sua boba!

Protoé. Quem?

Pentesiléia. O sol quando passa por cima de minha cabeça...


(As amazonas se olham apavoradas. Pentesiléia olha para a água do
rio) mas não, ele está aqui, aos meus pés. Me abrace! (quer se jogar
na água, Protoé a segura. Ela desmaia).

Protoé. Infeliz! Desmaiou!

Sacerdotisa. O filho de Tétis está chegando. Nem o exército


inteiro das virgens pode detê-lo.

Astéria. Deuses imortais, salvem a rainha!

Sacerdotisa. (às virgens) Vamos embora, não há lugar para nós


no coração da batalha. (A sacerdotisa e as virgens saem).

ATO II: AQUILES E PENTESILÉIA

cena 1.

As mesmas. Aquiles, seguido por alguns gregos, aparece sem


elmo, sem armadura nem armas.
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Astéria. Se não dispararmos nossas flechas,


nada o deterá! Que faremos, Protoé?

Protoé. Atirem dez mil flechas, mas cuidado para não feri-lo
mortalmente.

Astéria. Cerrem fileiras! Que as flechas rocem seu rosto e


raspem seus cabelos! Que ele sinta furtivamente o gosto do beijo da
morte! (As amazonas retesam os arcos).

Aquiles. Virgens, para quem são essas flechas? Não é este


peito aberto que elas querem atingir. É preciso que eu rasgue minha
túnica de seda para que possam ver, com seus próprios olhos, meu
coração bater com toda inocência? Deixem essas flechas de lado; as
setas de seus olhares ferem muito mais! Não estou brincando: sinto-
me ferido no fundo do coração. É um homem totalmente desarmado
que se joga a seus pés.

Astéria. Aticem os cães contra ele!

Aquiles. Não acredito. A doçura de sua voz desmente suas


palavras. Não é você, jovem de olhos azuis e cachos sedosos, que
pensa lançar os cães contra mim. Se esses cães me atacassem
agora, você se jogaria na minha frente para proteger com seu próprio
corpo esse coração viril que se consome de amor.

Astéria. Arrogante! Presunçoso! Está querendo nos lisonjear...

Protoé. (para Astéria) Corra, Astéria! Junte a tropa ou estaremos


todas perdidas (Astéria sai).
28

Aquiles. (para Protoé que traz Pentesiléia para a


frente do palco) Como, ela está morta? Dê-me a rainha! (tomando a
rainha nos braços) Não há nada a temer(tirando a armadura de
Pentesiléia) Está morta.

Protoé. Que seus olhos jamais se abram para essa luz


miserável! Meu medo é vê-la acordar.

Aquiles. Onde a feri?

Protoé. Depois do golpe que lhe rasgou o peito, conseguimos


trazê-la para cá, cambaleante. Mas, ou pelas feridas de seus membros
ou pela dor de sua alma, ela não pôde suportar a idéia de ter caído no
combate diante de você. Suas pernas ficaram bambas, palavras sem
nexo saíam de sua boca.

Aquiles. Viu? Estremeceu! Ela ainda respira.

Protoé. Filho de Tétis, se for sensível à piedade, se algum


sentimento puder tocar seu coração, se não quiser que ela morra ou
enlouqueça, atenda a um pedido meu.

Aquiles. Peça logo!

Protoé. Não esteja aqui quando ela acordar. Afaste seus


guerreiros e não a cumprimente com estas palavras mortais: “Você é
presa de Aquiles”.

Aquiles. Quer dizer que ela me odeia?

Protoé. Não me pergunte isto, generoso Aquiles. Se alguma


esperança a trouxer de volta para a vida, que não seja para logo se
29
deparar com a face rude do vencedor! No coração das
mulheres nascem tantas coisas que não são feitas para a luz do dia...
Se o destino exige que ela sofra a dor de saudá-lo como seu amo,
saiba esperar que seu espírito esteja preparado para isso.

Aquiles. Diga-lhe que a amo.

Protoé. O quê? O que está dizendo?

Aquiles. Que a amo. Como os homens amam as mulheres:


castamente, e, no entanto, cheio de desejo no coração;
inocentemente, e, no entanto, querendo fazê-la perder a inocência.
Quero que se torne minha rainha.

Protoé. É isso mesmo que você quer?

Aquiles. Então, posso ficar?

Protoé. Deixe-me beijar seus pés, divino Aquiles. Veja, ela está
abrindo os olhos. Rápido! Afastem-se, e, você, filho de Tétis, esconda-
se atrás desta árvore! (Os guerreiros se afastam e Aquiles se esconde)
Pentesiléia, sua sonhadora, por onde anda sua alma inquieta, como se
o corpo onde ela reside não mais lhe interessasse? Enquanto isso, a
felicidade entrou no seu peito como um jovem príncipe que, surpreso
de encontrar a casa vazia, se afasta e volta para o céu! Insensata,
você não sabe segurar esse hóspede?

Pentesiléia. Onde estou?

Protoé. Não reconhece a voz de sua irmã? Por que suspira? O


que lhe inquieta?
30

Pentesiléia. Ah! Protoé! Que pesadelo eu tive. Como é


doce sentir, ao acordar, que meu coração esgotado de sofrimentos
bate ao encontro do seu. Sonhei que no meio do combate a lança do
filho de Tétis me atingia e eu caía fragorosamente no chão. O exército
inteiro se dispersava apavorado e eu ficava por terra, paralisada. O
filho de Tétis saltava do cavalo, se aproximava de mim, triunfante, e
me tomava, desfalecida, nos braços. Não tinha nem mesmo a força de
pegar o punhal. Eu era sua presa e, em meio a risos de desprezo, era
levada para seu acampamento.

Protoé. Nada disso, excelente rainha! A alma generosa do filho


de Tétis não conhece o desprezo. Mesmo que seu sonho fosse real,
ele só traria felicidade. Você só veria o filho dos deuses, caído a seus
pés, prestando-lhe homenagem.

Pentesiléia. Pobre de mim, se tivesse que passar essa


vergonha. Pobre de mim, se o homem que deveria me caber não me
tivesse sido dado, dignamente, pela espada.

Protoé. Calma, rainha!

Pentesiléia. Como assim, calma?

Protoé. Seu destino também será o meu. Seja forte!

Pentesiléia. Estava calma como o mar no fundo de uma


enseada, não sabia o que era a tormenta de um sentimento. Mas
estas palavras “Seja calma” criam em mim a mesma agitação que um
temporal em mar aberto. Por que deveria me acalmar? Por que essa
cara de espanto? Por que você olha tanto atrás de mim, como se
31
houvesse ali um monstro ameaçador? O que lhe contei
foi apenas um sonho... Ou não?... Será que aconteceu?... Fale! Onde
estão Astéria e as outras? (olha em volta e vê Aquiles) Que ódio, o
monstro está atrás de mim! Mas com essa mão... (desembainha seu
punhal)

Protoé. Infeliz!

Pentesiléia. Como, falsa amiga, está querendo me impedir?

Protoé. Salve-a, filho de Tétis!

Pentesiléia. Louca, ele vai pisar no meu pescoço.

Protoé. Pisar, sua insensata?

Pentesiléia. Afaste-se!

Protoé. Mas olhe, ele está desarmado.

Pentesiléia. O quê?

Protoé. Se pedisse, ele estaria pronto a se deixar coroar de


flores por você.

Pentesiléia. Será? Diga-me...

Protoé. Filho de Tétis, ela não quer acreditar em mim. Fale você!

Pentesiléia. Ele seria meu cativo?

Protoé. Não está vendo?


32

Aquiles (que se aproximou) Seu cativo, no


sentido mais doce da palavra, sublime rainha. Um cativo pronto para
passar o resto da vida prisioneiro de seu olhar.

Protoé. Está ouvindo? Ele caiu na poeira, junto com você,


quando se afrontaram e, enquanto você permanecia desmaiada, ele
foi desarmado... Não foi assim?

Aquiles. Fui desarmado e conduzido a seus pés (ajoelha-se


diante dela).

Pentesiléia. Pois então, eu te saúdo, doce encanto de minha


vida, jovem deus de viçoso rosto... Meu coração, libere o sangue que,
retido no fundo de meu seio, esperava sua chegada. Venham
mensageiras do prazer, seivas de minha juventude, fluam jubilosas em
minhas veias e desfraldem no reino de minhas faces seu estandarte
vermelho: o jovem Aquiles é todo meu. (levanta-se).

Protoé. Acalme-se, amada rainha.

Pentesiléia. Venham, virgens coroadas pela vitória, filhas de


Ares ainda cobertas pela poeira das batalhas, e levem pela mão o
jovem grego que cada uma de vocês venceu. Venham, portadoras das
rosas: onde estão as coroas trançadas? Corram pelo campo; que seu
hálito faça brotar as rosas que a primavera me recusa. Venham,
sacerdotisas de Ártemis.

Iniciem seu ofício: abram com estrondo as portas do templo


iluminado e incensado, tragam para o altar o touro do sacrifício,
33
abatam-no com a lâmina resplandecente, lavem o
sangue e derramem os óleos quentes da Pérsia. Suspendam seus
vestidos esvoaçantes, encham os cálices de ouro, soprem os clarins,
abalem os céus com a melodiosa explosão de sua alegria. Venha
Protoé, ajude-me a exultar, a embriagar-me de felicidade; amiga, irmã
de coração, prepare uma festa divina para os esponsais das virgens
guerreiras, a união dos jovens gregos com as filhas de Ares.

Protoé (procurando controlar a emoção de Pentesiléia) Vejo que


tanto a alegria quanto a dor lhe são funestas: ambas lhe levam à
loucura. Você se ilude, está sonhando que já está em casa. Está
ultrapassando os limites; tenho vontade de falar para refrear seu
delírio. Olhe à sua volta, criatura, onde está você? Onde está seu
povo? Onde está a sacerdotisa? Onde está Astéria?...

Pentesiléia. (apoiando-se no peito de Protoé) Deixe-me, Protoé!


Deixe esse coração, como uma criança que se lambuza, mergulhar
nessa torrente de felicidade. Como se fosse a presença dos deuses,
um sopro me envolve, atraindo-me para seu coro de vozes. Nunca
estive, como nesse instante, tão preparada para a morte...

Protoé. Oh, minha rainha!

Pentesiléia. Eu sei... eu sei... Dizem que o infortúnio purifica a


alma. Eu, minha querida, jamais acreditei nisto; a desgraça me deixou
amarga. Odiava cada rosto em que aparecia o rastro da alegria. Mas
como gostaria agora que todos aqueles que me cercam estivessem
satisfeitos e felizes! Oh, minha amiga, o homem pode ser grande e
heróico quando sofre, mas na felicidade, ele é divino... Mas vamos ao
34
que interessa: que o exército se apresse nos preparativos do
retorno. Quando as tropas e os animais estiverem descansados,
partiremos, com os cativos, para casa... (vê as rosas jogadas no chão)
De onde vêm, essas rosas?

Protoé. As virgens que as colheram nos campos deixaram aqui


um cesto. Que sorte, vou pegar algumas e trançar uma coroa para o
filho de Tétis. Faço isso? (senta-se).

Pentesiléia. Muito bem, querida, e eu farei outra para Licaonte,


o jovem arcádio que você conquistou pela espada. (apanha algumas
rosas e senta-se ao lado de Protoé) Música, mulheres, música! Estou
inquieta. Que os cantos me acalmem!

Protoé. O que você quer ouvir? O canto da vitória?

Pentesiléia. O hino.

Protoé. Está bem. (para si mesma) Coitada, como está


enganada. (para as amazonas) Cantem! Toquem!

Coro das amazonas (com acompanhamento musical)

Ares se afasta.

Sua carruagem branca volta para o inferno.

As terríveis Eumênides lhe abrem a porta.

O inferno novamente se fecha.

Himeneu, cadê você?


35

Acenda sua tocha e nos ilumine

Himeneu, cadê você?

Ares se afasta etc.

Aquiles. (à parte para Protoé) Quero saber onde isso vai dar.

Protoé. Espere mais um pouco, nobre Aquiles, e logo saberá.


(Quando as coroas ficam prontas, Pentesiléia troca a sua pela de
Protoé. As duas se abraçam e contemplam as flores. A música
termina)

Pentesiléia. E agora, doce Aquiles, venha e ponha-se a meus


pés. Não tenha medo! Você odeia aquela que lhe derrubou? Teme
aquela que lhe venceu?

Aquiles. Como as flores, um raio de sol.

Pentesiléia. Muito bem, então olhe para mim como se eu fosse


seu sol. Meu deus, você está ferido!

Aquiles. É um simples aranhão no braço, não está vendo?

Pentesiléia. Por favor, nobre Aquiles, não pense que desejei


atentar contra sua vida. É verdade que gostei da idéia de poder atingi-
lo, mas quando você foi derrubado, meu coração invejou a poeira
onde seu corpo estava caído. Você me perdoa?

Aquiles. Do fundo do coração.


36

Pentesiléia. Então me diga: o que faz o amor para


prender a fera ferida?

Aquiles. Basta lhe acariciar a cabeça e o leão amansa.

Pentesiléia. Fique quieto; os sentimentos de meu coração lhe


acariciam como se fossem mãos. (ela o cobre de flores) Esta grinalda
na sua cabeça, no seu pescoço, nos seus braços e nas suas mãos,
mais em baixo, nos seus pés, de volta à cabeça... pronto... O que você
está fazendo?

Aquiles. Cheirando o perfume de seus lábios.

Pentesiléia. Não... não! São as rosas que exalam esse perfume.

Aquiles. Gostaria de cheirá-las ainda em botão.

Pentesiléia. Quando elas desabrocharem, meu amado, você as


colherá. (põe mais uma coroa na cabeça de Aquiles) Quanta doçura e
suavidade vejo em seu rosto radiante... Foi mesmo você quem
derrotou Heitor, o maior herói de Tróia? Foi mesmo você quem o
arrastou pelos cabelos, preso a seu carro de guerra, em volta de sua
cidade natal? Diga-me!

Aquiles. Sim, fui eu.

Pentesiléia. Receba, então, esse beijo, mais indomável dos


homens, meu cativo! É a mim que você pertence, jovem deus da
guerra.

Aquiles. E quem é você, que vem a mim, luminosa como o dia?


Minha alma encantada se pergunta: “e ela, a quem pertence?”
37

Pentesiléia. Eu sou a rainha das amazonas. Minha


raça foi engendrada por Ares. Meu povo me chama de Pentesiléia.

Aquiles. Pentesiléia. Meu canto do cisne será “Pentesiléia”.

Pentesiléia. Devolvo-lhe a liberdade. Pode ir aonde quiser, no


campo das amazonas. Quero prender seu coração com outra corrente,
leve como as flores e firme como o bronze. Mas antes, meu jovem
amigo, você deverá ficar junto de mim, que proverei a todas as suas
necessidade e a todos os seus desejos. (levantando-se, para as
amazonas) Muito bem, vamos embora. Tenho muito o que fazer.

Aquiles. Como? Você vai embora? Você foge? Me abandona?

Protoé (inquieta, segurando-a) Como? Aonde você quer ir?

Pentesiléia (espantada) Quero passar minhas tropas em


revista... encontrar Astéria...

Protoé. Seu exército ainda persegue os gregos em fuga. Deixe


isso com Astéria, que o comanda. Você ainda está precisando de
descanso.

Aquiles. Minha amada, você ainda não me decifrou uma série


de enigmas.

Pentesiléia. Diga logo!

Aquiles. O que aconteceu para que tivesse se metido em nossa


luta nas muralhas de Tróia, sem ofensa de nossa parte? Por que
atacar os gregos, se lhe bastava simplesmente a beleza para ter o
outro sexo a seus pés, na poeira?
38

Pentesiléia. Ah, filho de Tétis, esses artifícios de


mulher não são para mim. Não é caindo, durante uma festa, nos
braços alegres de quem amo, mas apertando, com braços cobertos de
bronze, aquele que se encosta no meu peito, que tenho o direito de
escolher um amado. É no campo sangrento da batalha que devo
procurar o jovem que meu coração escolheu.

Aquiles. Que lei é essa, tão contrária ao sexo feminino, à


natureza e à raça humana?

Pentesiléia. A vontade de nossas mães decidiu assim e nós nos


inclinamos diante dela como você diante da tradição de seus pais.

Aquiles. Seja mais clara!

Pentesiléia. Escute... Onde hoje reina o povo das amazonas,


vivia outrora, em paz com os deuses, uma tribo dos Citas. Uma tribo
livre e guerreira. Um dia, um rei etíope apareceu e abateu, primeiro,
todos os guerreiros e, depois, todas as crianças e todos os velhos. A
mais magnífica das raças da terra desapareceu. Os vencedores se
instalaram em nossas casas e, arrancando as esposas dos túmulos de
seus esposos, as arrastaram para seus leitos desonrados.

Aquiles. Foi esse o terrível destino que gerou seu reino de


mulheres?
39

Pentesiléia. Sim. Mas as mulheres só esperaram as


bodas do rei etíope e de nossa rainha Tanaís para dar o beijo do ferro
no coração dos guerreiros. Tanaís apunhalou o rei e foi Ares, em vez
do vil tirano, quem consumou as núpcias. Nesta mesma noite, toda a
tribo criminosa foi acariciada a golpe de punhal e morreu.

Aquiles. Entendo muito bem que as mulheres tenham feito isso.

Pentesiléia. Nosso povo, reunido em conselho, tomou então


uma decisão: iria fundar um Estado sem tutela, um Estado no qual
nenhuma voz masculina daria ordens arrogantes. Se os olhos de um
homem avistassem o reino das amazonas, deveriam se fechar para
sempre. E todo recém-nascido homem seria morto. Mas no momento
solene da coroação de Tanaís, ouviu-se uma voz na multidão: “Como
mulheres fracas, atrapalhadas por fartos seios, conseguirão retesar
um arco?” Por um momento, a rainha permaneceu imóvel, esperando
o efeito destas palavras. Sentindo covardia a sua volta, decepou, de
um só golpe, o seio direito e batizou de amazonas, o que quer dizer
“seios cortados”, as mulheres capazes de retesar o arco.

Aquiles. Por Zeus, é claro que uma mulher como essa não
precisava de seios. Foi feita para governar um povo de homens e
minha alma se inclina diante dela... Mas termine sua história. Como
esse orgulhoso Estado das amazonas, nascido sem a ajuda dos
homens, pode se perpetuar?

Pentesiléia. Quando a rainha julga que é o momento de


substituir as companheiras que morreram, ela chama todas as virgens
ao templo de Ártemis e invoca Ares rogando-lhe fecundar seus jovens
40
corpos. É a Festa das Virgens em flor, chamadas de noivas
de Ares. O deus, então, revela, pela voz da grande sacerdotisa, o povo
esplêndido no qual ele se incarnará para nós. Chega o alegre dia da
partida. A tropa se desloca, no segredo e no silêncio, para a terra do
povo escolhido. Aí, como uma rajada de fogo, penetramos na floresta
dos homens e raptamos os mais belos. De volta, no templo de
Ártemis, as noivas de Ares fazem a Festa das Rosas. Quando, enfim,
uma nova safra brota em seu ventre, elas celebram a Festa das Mães.
Festa triste, porque é quando os homens voltam, carregados de
presentes e com grande aparato, para sua terra natal.

Aquiles. Então você também me abandonará um dia?

Pentesiléia. Não sei, meu amor. Não me pergunte.

Aquiles. Que estranho... Você pode me esclarecer mais um


enigma? Por que perseguiu, sem trégua, justamente a mim? Você me
conhecia?

Pentesiléia. Escute! Tinha eu vinte e três anos de idade, quando


minha mãe estava morrendo e Ares me escolheu como noiva. Em
mensagem solene, ele ordenava que eu partisse para Tróia e
trouxesse o deus coroado de rosas. Em prantos, nessa hora em que
minha mãe morria, eu quase não ouvi a mensagem. “Mãe, disse eu,
me deixe ficar ao seu lado!”. Mas ela desejava que eu partisse, pois
sua morte iria deixar o trono sem descendência. “Vá, minha criança,
ela me disse, Ares lhe chama, coroe de rosas Aquiles, o filho de Tétis,
e se torne uma mãe tão orgulhosa quanto eu.” Apertou-me docemente
a mão e morreu.
41

Protoé. Como? A rainha sua mãe disse o nome de


Aquiles?

Pentesiléia. Disse: uma mãe tem esse direito.

Aquiles. Qual é o problema?

Pentesiléia. Uma filha de Ares não deve procurar seu


adversário. Deve aceitar aquele que o deus coloca à sua frente, no
meio do combate. Não é Protoé?

Protoé. É exatamente assim.

Aquiles. E então...

Pentesiléia. O luto ainda me pesava quando apareci no templo


de Ares para receber o arco de ouro que confere a realeza. Quando o
toquei, fui tomada pelo espírito de minha mãe e executar sua última
vontade me pareceu o dever mais sagrado. Pus-me a caminho, menos
para obedecer a Ares do que para agradar a sombra de minha mãe. À
medida que me aproximava do Escamandro, minha dor diminuía e o
mundo alegre das lutas se revelava à minha alma. Então, eu não via
quem fosse mais digno de ser coroado de rosas, por mim, do que
aquele que minha mãe tinha escolhido: o amável, o selvagem, o doce,
o terrível, o vencedor de Heitor. Aquiles, você era o eterno objeto de
meus pensamentos e de meus sonhos.

Aquiles. Minha amada!


42

Pentesiléia. E quando o vislumbrei como um sol entre


pálidos astros noturnos foi como se o próprio Ares, o deus das
batalhas, tivesse descido do Olimpo, trovejando, a galope, para saudar
sua noiva em minha pessoa. Nesse momento, Aquiles, adivinhei a
verdadeira natureza do sentimento que me sufocava o peito. O deus
do amor acabava de me atingir. Foi então que decidi que de duas
coisas uma: ou lhe vencer ou morrer. E das duas, foi a mais doce que
me coube... O que está olhando? (Barulho de armas).

Protoé. (à parte, para Aquiles) Por favor, Aquiles, diga-lhe logo a


verdade.

Pentesiléia. O que está dizendo? O que aconteceu?

Aquiles. (com alegria forçada). Comigo, você dará à luz o deus


da terra, mas eu não a seguirei. É você quem vai me seguir. Uma vez
terminada a guerra, eu a levarei, triunfalmente, e a farei sentar no
trono de meus pais. (O barulho das armas continua)

Pentesiléia. Como? Não estou entendendo nada.

Aquiles. Não tenha medo, rainha! A falta de tempo me obriga a


lhe anunciar o destino que lhe reservam os deuses. Sem dúvida, eu
lhe pertenço, para sempre, pela força do amor. Mas você me pertence
pelo acaso das batalhas. Na luta, foi você, nobre rainha, quem caiu a
meus pés, e não eu aos seus.

Pentesiléia. (procurando se levantar) Cruel!


43

Aquiles. Por favor, minha amada! Nem Zeus poderia


mudar isso. Controle-se e compreenda que seu destino está selado
para sempre. Você é minha cativa.

Pentesiléia. Eu? Sua cativa?

Aquiles. Sim, rainha. Isso mesmo.

Pentesiléia (levanta as mãos para o céu) Deuses imortais, eu


lhes suplico.

cena 2.

Entram Diomedes e, a seguir, Ulisses com seu exército. Depois,


Astéria com as amazonas e, enfim, a sacerdotisa com as virgens..

Diomedes. Afaste-se Aquiles! A sorte das batalhas é incerta;


ela traz de volta as amazonas vitoriosas, gritando sem parar o nome
de Pentesiléia.

Aquiles. (rasgando a coroa de flores) Minhas armas! Meus


cavalos! Vou investir contra elas.

Pentesiléia. Olhe esse furioso! Será o mesmo de antes?

Aquiles. (armando-se, implacável, para a luta) Leve-a daqui!

Diomedes. Para onde?

Aquiles. Para o acampamento. Irei logo para lá.

Diomedes. (a Pentesiléia) Levante!

Protoé. Oh, rainha!


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Pentesiléia. Queria ser fulminada por Zeus.

Ulisses. (entrando) Saia daqui, Aquiles! As amazonas vão cortar


o único caminho que resta.

Aquiles (aos guerreiros que o ajudam a se armar) Meu elmo!


Minha lança! (vendo Pentesiléia se debater nas mãos de Diomedes)
Pentesiléia!

Pentesiléia, Aquiles, você não quer vir comigo? Venha! Eu ainda


não lhe disse tudo o que sabia.

Aquiles (estendendo-lhe a mão). É ao meu palácio que iremos,


rainha.

Pentesiléia. Não, amigo, mesmo que seu palácio seja a morada


das almas bem-aventuras, venha comigo ao templo de Ártemis.

Aquiles. (tomando-a nos braços) Minha amada, me perdoe! Eu


mandarei construir este templo no meu país.

Astéria. (entrando) Matem-no!

Aquiles (largando Pentesiléia) Foi com o vento que elas vieram?

Astéria. (às amazonas) Libertem a rainha!

Aquiles. (puxando Pentesiléia) Venha por aqui...

Pentesiléia (puxando Aquiles) Você não vem comigo? Você não


vem comigo! (As amazonas retesam seus arcos)
45

Ulisses. Você está louco! Suma daqui! Não há mais


tempo para bravatas. Vamos embora. (puxa Aquiles e os gregos saem
enquanto a sacerdotisa de Ártemis e as virgens entram)..

Astéria. Vitória! Ela está salva.

Pentesiléia. Maldita seja essa vitória vergonhosa; malditos


sejam os lábios que ousam celebrá-la. O acaso das batalhas não me
havia entregue a ele como exigem os nobres costumes?

Astéria. O que está dizendo?! (à sacerdotisa) Nobre sacerdotisa


de Ártemis, ela nos recrimina por tê-la afastado da vergonha da
servidão?

A sacerdotisa Tal insulto, rainha, coroa dignamente seus atos


no dia de hoje. Sem respeito por nossos costumes, começa por
escolher seu adversário na batalha. Depois, em vez de vencê-lo,
sucumbe diante dele. Para recompensá-lo de tê-la vencido, o coroa de
rosas. Finalmente, repreende suas fiéis amazonas que acabam de
libertá-la, foge delas e chama, de volta, seu vencedor. Pois bem, peço
perdão por essa vitória rápida demais; foi um erro. Só lamento o
sangue e os cativos perdidos por sua causa. Em nome do povo, eu lhe
declaro, portanto, livre de nossas leis. Você pode ir aonde quiser e
correr atrás daquele que pisou no seu cangote, já que esta é a lei de
sua guerra. Quanto a nós, permita, rainha, que renunciemos à luta e
voltemos para casa, já que não sabemos, como você, suplicar aos
gregos que perseguimos que se ajoelhem, diante de nós, na poeira.

Pentesiléia. (cambaleante) Protoé!


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Protoé. Querida irmã!

Pentesiléia. Eu lhe peço, fique junto de mim.

Protoé. Até que a morte nos separe... Você está tremendo?

Pentesiléia. Não é nada, irei me recuperar.

Protoé. Você acaba de sofrer um grande golpe. Agüente firme.

Pentesiléia. Nós os perdemos...?

Protoé. O quê, minha rainha?

Pentesiléia. Todos aqueles jovens esplêndidos que


capturamos... perdidos por causa de mim?

Protoé. Acalme-se. Você os devolverá em outra guerra.

Pentesiléia (apoiando-se nela). Nunca mais! Quero sumir na


noite eterna.

ATO III: EPÍLOGO

cena 1.

As mesmas, chega Antíloco.

Protoé. Está chegando um mensageiro, rainha. (a Antíloco) O


que tem a dizer?

Antíloco. (a Pentesiléia) Quem me enviou foi o filho de Peleu


para lhe dizer o seguinte: já que você quer levá-lo, cativo, para sua
terra natal e ele quer levá-la, cativa, para a terra dos gregos, ele a
47
desafia novamente para uma luta de vida ou morte em
campo aberto. Assim, a espada, língua de ferro do destino, designará
aos olhos justos dos deuses, quem, dos dois, deverá beijar os pés do
vencedor. Deseja este desafio?

Pentesiléia. (pálida) Como? (voltando-se para Protoé) Repita,


palavra por palavra, o que ele acaba de dizer!

Protoé. (trêmula) Acho que o filho de Tétis está lhe desafiando,


novamente, em campo aberto. Recuse logo essa proposta e diga:
“Não”!

Pentesiléia. Não é possível.

Protoé. O que está dizendo, rainha?

Pentesiléia. Aquiles me desafia no campo de batalha?

Protoé. Devo dizer “não” a este homem e mandá-lo embora?

Pentesiléia. Aquiles me desafia no campo de batalha?

Protoé. Sim, Senhora, para continuar a luta.

Pentesiléia. Ele, sabendo que estou fraca demais para medir


forças, me desafia ao combate? Este peito fiel só será capaz de
comovê-lo quando estiver atravessado por sua lança? Minha mão
coroou uma estátua de pedra?

Protoé. Esqueça o insensível!

Pentesiléia. (inflamada) Pois muito bem, terei forças para


enfrentá-lo.
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Protoé. Minha amada... Você pensou direito...?

Pentesiléia. Vocês terão de volta todos os cativos.

Antíloco. Irá, portanto...

Pentesiléia. Enfrentá-lo no campo de batalha, tendo os deuses,


até mesmo as Fúrias, por testemunha. (Uma trovoada enquanto
Antíloco sai)

Sacerdotisa. Rainha, ouça o estrondo de cólera dos deuses


contra você!

Pentesiléia. Sou eu quem os chamo com seu trovão e seus


raios. Venham, terríveis carros ceifadores! Cerquem-me, esquadrões
que pisam a colheita humana, destruindo, para sempre, o talo e o
grão! Eu o invoco, aterradora máquina de guerra! (Surgem amazonas
com cães na coleira. Aumentam as trovoadas. Pentesiléia apresenta
sinais de loucura, os cães uivam). Eu o invoco, Ares, fundador de
minha raça: “Ó Destruidor, minha esperança, minha força, mande-me
seu carro de bronze, para que eu possa, como um raio na tempestade,
atingir a cabeça desse grego“.

Protoé. (à parte) Está fora de si.(para Pentesiléia) Escute-me,


nobre rainha!

Pentesiléia. O filho de Tétis me chama. Sigam-me! (sai em meio


a violentas trovoadas).

Protoé. Rápido, vamos atrás dela.


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Sacerdotisa. Pelos deuses, o que estará nos


esperando? (Todas saem).

cena 2.

Aquiles, Diomedes, depois Ulisses e, mais tarde, Antíloco.

Aquiles. Faça-me o favor, Diomedes, de não dizer nada a


Ulisses, esse desmancha-prazeres. Sinto repugnância, vendo sempre
em seus lábios esse ar de reprovação.

Diomedes. Então é verdade que mandou Antíloco como


mensageiro?

Aquiles. Vou lhe confessar tudo: essa mulher fantástica, meio


Fúria, meio Graça, me ama. E eu também a amo. Acontece que ela
considera sagrado o capricho de só me ter amorosamente nos braços
depois de ter-me vencido pela espada.

Diomedes. E você a desafiou para o combate...

Aquiles. Mas ela não me fará mal nenhum; ela voltaria a mão
contra seu próprio peito gritando “Vitória!”, antes de levantá-la contra
mim. Estou decidido a fazer todas as sua vontades, durante um mês
ou dois. Meu velho trono não vai desmoronar por isso. Depois, ela
mesmo o disse, voltarei a ser livre como cabrito no prado. Se ela me
seguir, minha maior alegria será fazê-la sentar no trono de meus pais.
(Entra Ulisses)

Diomedes. Aproxime-se, Ulisses!


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Ulisses. Aquiles, você acaba de provocar a rainha


para o combate? Suas tropas estão esgotadas e você está se
arriscando numa empreitada que já lhe levou ao fracasso.

Diomedes. Nem lhe fale de empreitada ou de luta, ele só pensa


em ser capturado por ela.

Ulisses. O quê?

Aquiles Vá embora daqui!

Ulisses. Ele só pensa em...

Diomedes. Acabo de dizer... em romper seu elmo, arrombar seu


escudo e depois, sem uma palavra, se jogar a seus pezinhos!

Ulisses. Aquiles, esse homem perdeu o juízo? Ouviu o que ele


disse?

Aquiles. Por favor Ulisses, não faça essa cara de desdém. Isso
me irrita.

Ulisses Que inferno! Estarei ouvindo bem? Você jura, Diomedes,


que ele quer se entregar à rainha e se tornar seu cativo?

Diomedes. É o que acabo de dizer.

Ulisses. E nossa guerra por Helena, em Tróia, este insensato a


abandona?

Diomedes. Juro que é verdade.

Ulisses. Não acredito.


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Aquiles. Do que ele estava falando? De Tróia?

Ulisses. O que você está dizendo?

Aquiles. Eu?

Ulisses. Sim, você.

Aquiles. Eu perguntava se você estava falando de Tróia.

Ulisses. Sim, queria saber se a guerra por Helena tinha sido


esquecida, como um sonho matutino.

Aquiles. Mesmo se Tróia afundasse e em seu lugar surgisse um


lago de águas azuis, ela não me seria mais indiferente do que agora.

Ulisses. Mas ele está falando sério! (a Diomedes) Não deixe


esse homem sozinho! (entra Antíloco)

Aquiles. Então, ela aceita?

Antíloco. Aceita, filho de Peleu. Aliás, já está vindo. Mas com


uma tropa feroz de amazonas acompanhadas de cães. Não sei o que
está querendo com isso.

Aquiles. Deve ser o costume de sua raça... Ela é cheia de


artimanhas... Com cães, você disse?... É, mas eles devem comer na
mão; devem ser mansos como ela... Sigam-me!

Diomedes. Que louco!

Ulisses. É preciso amarrá-lo...


52

Diomedes. As amazonas estão chegando, vamos


embora. (Todos saem).

cena 3.

A sacerdotisa, as virgens e amazonas. Depois, Astéria. Depois


ainda Pentesiléia e Protoé com o cadáver de Aquiles.

Sacerdotisa. Tragam cordas! Derrubem a cadela! Amarrem-na!


Não há mãos que ainda possam dominá-la. Espumando, ela se
entrega à fúria entre os cães. Brandindo o arco e dançando pelos
campos, como uma bacante, ela chama de “irmãs” a estas feras
uivantes e atiça sua matilha carniceira contra o mais belo dos gamos.
Filhas de Ares, armem-se de cordas para derrubá-la como um cão
raivoso e amarrá-la. Vamos levá-la para casa e ver se há meio de
salvá-la.

Astéria. (ainda fora do palco) Vitória! Vitória! Aquiles caiu, ele foi
derrotado. Vencedora, ela vai coroá-lo de rosas.

Sacerdotisa. Ouvi bem? Qual de vocês poderia confirmar essa


notícia?

Astéria. (entrando). Os deuses do inferno são testemunhas:


Pentesiléia, nascida de uma mulher, está por terra com os cães e
dilacera o corpo do filho de Tétis.

Sacerdotisa. É apavorante! Quem poderá decifrar esse


monstruoso enigma?
53

Astéria. Santa sacerdotisa de Ártemis, castas


filhas de Ares, escutem-me: sou a Górgona africana que só de olhar
vai transformá-las em pedra.

Sacerdotisa. Fale, mulher medonha, o que aconteceu?

Astéria. Aquela que não tem mais nome para nós marchava ao
encontro do tão amado jovem guerreiro, brandindo o arco e tendo
seus cães em volta. Deixando para trás seus amigos, Aquiles, que,
como todo o exército assegura, a tinha desafiado apenas para render-
se voluntariamente a ela, pois também a amava, se aproxima com o
coração cheio de ternos presságios. Mas, quando ele - que, inocente,
só leva uma lança, e assim mesmo apenas para dar a impressão que
está armado -, quando ele vê que ela avança com esse sinistro
cortejo, vacila, vira a cabeça, escuta, foge apavorado, pára e foge
mais uma vez como um pequeno gamo que ouve ao longe o rugido do
leão. Com a força que lhe dá a loucura, a rainha retesa o arco, aponta,
atira e sua flecha traspassa o pescoço do filho de Tétis. Ele
desmorona, mas, ainda vivo, se levanta arquejante, cai, se levanta de
novo e tenta fugir. “Peguem!”, grita ela, “Cães, peguem-no!”
Precipitando-se sobre ele com toda a matilha, ela não passa de uma
cadela no meio de cães que aferram seu peito, seu pescoço...
Arrastando-se no sangue, ele ainda lhe acaricia o rosto, dizendo:
“Pentesiléia, minha noiva, era esta a Festa das Rosas que você me
prometia?” Mas ela arranca a couraça que ainda o cobre e crava seus
dentes em seu alvo peito, competindo em ferocidade com os cães.
Quando cheguei, o sangue pingava de sua boca e de suas mãos. (Um
silêncio de pavor).
54

Sacerdotisa. Uma virgem como ela, tão pura, tão


sensata, tão cheia de dignidade e de graça! (Silêncio).

Astéria. A infeliz permanece lá, junto ao cadáver, sem dizer uma


palavra, com os olhos fixos no vazio. De cabelos em pé, perguntamos
o que ela está fazendo ali? Ela se cala. Perguntamos se ela nos
reconhece? Continua calada. Perguntamos se ela quer vir conosco? O
mesmo silêncio... Apavorada, corri para cá. (Pentesiléia entra seguida
por Protoé carregando o cadáver de Aquiles coberto por um pano
vermelho).

Astéria. Ei-la que chega, coroada de ortigas e espinhos secos,


seguindo o cadáver, com o arco no ombro em sinal de vitória.

Sacerdotisa. (apavorada). Ártemis é testemunha, não sou


responsável por essa atrocidade. Suma daqui, criatura do Hades!
Afaste-se, sombra! Vá e acabe de apodrecer no campo onde voam os
corvos! (Pentesiléia examina uma flecha, limpa o sangue que a sujou,
seca as penas, separa a ponta de ferro da haste de madeira e olha em
volta. Estremece, deixa cair seu arco e chora.) Ajude-a, Protoé!

Protoé (parecendo viver uma luta interior, deita o cadáver no


chão, se aproxima de Pentesiléia e lhe fala, aos prantos) Não quer
sentar-se, rainha? Você lutou e sofreu demais. Não quer descansar no
meu coração fiel? (Pentesiléia olha em volta; Protoé, tomando-a pela
mão, senta numa pedra junto com ela) Você me reconhece, irmã de
meu coração? (Pentesiléia olha para ela, seu rosto se anima um
pouco) Sou eu, Protoé, que lhe ama com ternura (Pentesiléia lhe
acaricia o rosto; Protoé lhe beija as mãos). Não é fácil vencer, você
55
deve estar cansada. Não quer lavar o rosto e as mãos?
(Pentesiléia se olha e aprova com a cabeça). Tire essa coroa de
espinhos, sabemos que você foi vitoriosa! (Duas amazonas trazem
uma bacia d’água; Pentesiléia se ajoelha e molha o rosto).

Pentesiléia. Oh, Protoé!

Sacerdotisa. (contente) Ela está falando. Louvados sejam os


deuses!

Protoé. Que bom! Mergulhe a cabeça na água!

Pentesiléia. Que maravilha! (Protoé enxuga a rainha, levanta-a,


senta ao seu lado e a abraça) Que sensação estranha.

Protoé. De bem estar, espero.

Pentesiléia. (sussurrando) De encantamento.

Protoé. Doce irmã de meu coração, minha vida!

Pentesiléia. Diga-me, estarei nos Campos Elísios? Será você


uma das ninfas eternamente jovens que, para me alegrar, assumiu os
traços de minha querida Protoé?

Protoé. Não, melhor das rainhas, sou eu mesma, Protoé, que a


está abraçando. O que você está vendo é o mundo, o mundo frágil
que os deuses só olham de longe.

Pentesiléia. Não faz mal. Estou feliz. Ainda estou viva, isso me
basta para ser feliz. Deixe-me descansar! (Um silêncio; em êxtase)
56
Estou tão feliz, ó Ártemis, que posso morrer. Se eu morresse
agora, teria a certeza de ter vencido Aquiles.

Protoé. (para Astéria) Rápido, afaste o cadáver!

Pentesiléia. (olhando em volta) Querida, que artimanhas são


essas?

Protoé. Juro que não é nada.

Pentesiléia (para Astéria) O que vocês estão levando? Parem!


Quero ver.

Protoé. Oh, rainha, não queira saber.

Pentesiléia. (abre passagem até o cadáver encoberto) É ele?


Será que o atingi em alguma parte vulnerável? Afastem-se! Mesmo
que seus ferimentos sejam medonhos, quero vê-lo. (levanta o pano
que cobre o cadáver) Que monstro pode ter feito isso?

Protoé. Você nos pergunta?

Pentesiléia. Oh, Ártemis, tudo está consumado! (cai por terra)

Protoé. Por que você não seguiu meu conselho, infeliz? Melhor
teria sido perder-se para sempre na noite da razão do que ter visto
essa luz cruel.

Pentesiléia. (erguendo-se um pouco). Rosas de sangue! Coroa


de chagas! Seus botões já murcham e exalam o cheiro do túmulo.
57

Protoé. (com ternura) E, no entanto, foi o amor que o


coroou. Mas com entusiasmo demais, com os espinhos das rosas para
que a coroa fosse eterna.

Pentesiléia. Quero saber quem foi minha ímpia rival. Não quero
saber quem matou esse corpo cheio de vida, mas quem, pela segunda
vez, matou o morto. Perdôo quem lhe roubou a centelha da vida. Mas
quem desfigurou esse jovem, semelhante aos deuses, a tal ponto que
a vida e a podridão nem mais o disputam, deste, eu me vingarei.

Protoé. O que responder? Se for para aliviar sua dor, escolha


qualquer uma de nós para sua vingança.

Pentesiléia. Tome cuidado! Vocês ainda vão acabar dizendo que


sou eu a culpada.

Sacerdotisa. E quem mais, senão você, infeliz?

Pentesiléia. Princesa dos infernos, como se atreve?

Sacerdotisa. Ártemis é testemunha. A tropa inteira pode


confirmar minhas palavras. Foi sua própria flecha que o atingiu e
quisera deus que fosse apenas isso... Mas, ao vê-lo cair, desvairada,
você avançou com seus cães e cravou... não ouso dizer o que você
fez então... Não queira saber. Partamos!

Pentesiléia. Não acredito; quero que Protoé o confirme.

Protoé. Oh, rainha, não me pergunte.

Pentesiléia. Como? Eu? Com os cães? Com estas mãos tão


pequenas? Com essa boca entreaberta para o amor? Com essas
58
mãos e essa boca feitas para servi-lo de maneira tão
diferente? Não, vocês não podem me convencer disto. Estão
mentindo. Ou, então, me expliquem: por que ele não se defendeu?

Sacerdotisa. Ele a amava, infeliz. Ele só foi ao combate, ele só


lhe provocou, para tornar-se seu cativo. Ele veio ao seu encontro com
o coração pacífico, pronto a lhe seguir ao templo de Ártemis. Mas você
o feriu...

Pentesiléia. Eu o despedacei, não foi? Teria ele morrido de


meus beijos? Não foram beijos que eu dei? Teria eu o dilacerado
realmente? Respondam!

Sacerdotisa. Desgraçada. Que a noite eterna a envolva para


sempre!

Pentesiléia. Então foi um erro! Beijar, despedaçar, isso rima...


Quem ama de todo coração pode muito bem confundir uma coisa com
a outra. (ajoelha-se diante do corpo de Aquiles) E você, você me
perdoa, não é? Ártemis é testemunha: se me expressei de modo tão
errado, foi porque não era dona de meus lábios. Mas agora vou lhe
dizer mais claramente o que pensava naquele momento (ela o beija).
Era só isso. É verdade que mais de uma mulher se pendura ao
pescoço de seu amado e lhe diz: “Eu o amo tanto que o comeria”. Mas
bastam estas palavras, para elas sentirem náuseas. Eu, eu não fiz
isso, meu amado. Quando me pendurei a seu pescoço foi para cumprir
a promessa, palavra por palavra. Não estava tão louca quanto parece.

Sacerdotisa. Que monstro. O que ela está dizendo? Prendam-


na, levem-na daqui!
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Protoé. Venha, rainha!

Pentesiléia. (se levantando) Está bem. Aqui estou.

Sacerdotisa. Você vem conosco?

Pentesiléia. De modo algum. Voltem para casa e sejam felizes


se puderem.

Protoé. E você, amiga?

Pentesiléia. Rompo com a lei das amazonas e sigo este jovem


guerreiro na morte. Desço ao fundo do peito como ao fundo da terra e
de lá extraio um sentimento destruidor, frio como metal. Frio como um
metal que purifico no fogo da desgraça até endurecê-lo como aço, que
mergulho no veneno corrosivo do arrependimento, que levo para a
bigorna eterna da esperança, que afino e afio como adaga. A esta
adaga entrego meu coração. Assim! Assim! Assim! Assim está bem!
(cai nos braços de Protoé e morre)

Protoé. Flor poderosa e orgulhosa, ela morreu. (deita-a no chão)

Astéria. Ela realmente o seguiu. Foi melhor assim. Aqui não


havia mais lugar para ela.

Sacerdotisa. Ó deuses, quão frágil é o homem. Esta que jaz,


prostrada ao solo, ainda ontem, no auge da vida, fazia grande
alarido.

fim.

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