Esta Noite A Liberdade
Esta Noite A Liberdade
Esta Noite A Liberdade
pouca sorte de ter sido escolhido para romper os laos da Inglaterra com as ndias.
Afinal, o rei era imperador das ndias e tinha o direito de sancionar ou reprovar
a sua nomeao como vice-rei.
- Eu sei, respondeu Jorge VI com um sorriso compreensivo. O Primeiro ministro j v
eio falar comigo e eu dei o meu acordo. - Aceitou?, espantou-se Mountbatten com
certa emoo. Pensou bem?
- Certamente, estudei o assunto com o maior cuidado, respondeu o rei com entusia
smo.
- Mas uma misso extremamente arriscada, insistiu Mountbatten. Ningum entrev a
menor
possibilidade de conseguir um compromisso naquelas paragens. Parece impossvel re
unir as condies necessrias para isso. Sou seu primo. Se vou s ndias e s
consigo os mai
s deplorveis estragos, ser um golpe fatal para a coroa.
- Com certeza, respondeu Jorge VI, mas imagine os resultados benficos que da
viro p
ara a mesma coroa, se vencer.
- bastante optimista da sua parte, suspirou Mountbatten enterrando-se no
cadeiro.
O jovem almirante nunca estava naquela sala que no se lembrasse de outro primo, o
seu amigo mais antigo, o que fora seu padrinho em Westminster no dia do seu cas
amento, o homem que devia ter sido rei de Inglaterra, David, o prncipe de Gales,
mais tarde duque de Windsor. Ligavam-nos laos de amizade desde a mais tenra
infnci
a. Quando em 1936 David, ento rei Eduardo VIII, decidira abdicar porque no queria
reinar sem ter a seu lado a mulher que amava, "Dickie" Mountbatten testemunhara-
lhe sem descanso a sua fiel amizade.
Estranha ironia do destino, pensava Mountbatten, fora como oficial s ordens deste
primo preferido que ele pisara pela primeira vez, em 17 de Novembro de 1921, a
terra que deveria agora libertar. A ndia, anotara
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nessa noite o jovem Mountbatten no seu dirio, " aquele pas de que ouvimos sempre
fa
lar e com que sempre sonhmos". Durante a visita real nada poderia desiludi-lo. O
Imprio estava ento no znite. Nenhuma recepo parecia bastante sumptuosa,
nenhuma , man
ifestao bastante grandiosa para festejar a visita do herdeiro do trono imperial,
o
"Shahzada Sahib", e do seu squito. Fizeram a viagem no comboio branco e dourado
do rice-rei e a sua estadia foi uma sequncia ininterrupta de desfiles, de partida
s de polo, de caadas ao tigre, de passeios ao luar a dorso de elefante, de bailes
, de banquetes e recepes de uma elegncia sem rival, oferecidos pelos aliados
mais s
eguros da coroa, os marajs e nawabs das ndias. A despedida, Mountbatten anotara
ai
nda: "A ndia o pas mais maravilhoso do mundo e o vice-rei tem o lugar mais
maravil
hoso do mundo. " Jorge VI confirmava-lhe que este "maravilhoso lugar" lhe perten
cia.
Um curto silncio invadiu a sala do palcio de Buckingham, como se a emoo
dominasse de
sbito o rei.
- pena, lamentou ele com a voz carregada de melancolia, sempre quis ir v-lo ao
su
deste asitico quando estava ali a combater, e partir depois em visita s ndias,
mas
Churcill impediu-me. Depois da guerra, esperava pelo menos ir s ndias. Receio
agor
a nunca mais poder faz-lo. triste, continuou ele, fui coroado imperador das
ndias
sem ao menos ter l ido, e aqui, em Londres, que vou perder esse ttulo.
Jorge VI morreria efectivamente sem ter pisado esse pas fabuloso, jia do imprio
que
herdara do irmo. Para ele no haveria nem caada ao tigre, nem desfiles de
elefantes
constelados de ouro e de prata, nem cortejos de prncipes cobertos de joias, vind
os para lhe prestar homenagem. Ele apenas recolhera as migalhas da mesa da rainh
a Vitria. O seu reinado, que parecia no ter sido previsto pela histria da
Inglaterr
a, ia registar uma das pocas mais trgicas dessa histria. Nessa manh de Maio de
1937,
quando o arcebispo de Canturia tinha, pela graa de Deus, proclamado Jorge VI rei
da Gr-Bretanha, da Irlanda e dos Domnios situados alm-mar, protector da f e
imperado
r das ndias, vinte e oito dos noventa milhes de quilmetros quadrados das terras
do
globo estavam ligadas de uma forma ou de outra sua coroa. O nico facto deste
rein
ado ia ser a disperso da herana. Coroado rei-imperador de um imprio que
ultrapassav
a as mais extravagantes conquistas de Alexandre o Grande, de Roma, de Gengis Kha
n, dos califas e de Napoleo, Jorge VI acabaria soberano de um reino insular a pon
to de se tornar uma nao europeia como as outras.
- Sei que vou ser obrigado a retirar o "l" das minhas iniciais de Rex Imperator,
mas ficaria muito preocupado se tivesse de quebrar todos os laos com as ndias.
Jorge VI compreendia perfeitamente que o grande sonho imperial se tinha desvanec
ido e que o grandioso conjunto edificado pelos ministros da sua bisav estava cond
enado morte. Mas ele queria a todo o custo dar nova forma empresa: tudo o que o
Imprio representara devia sobreviver de forma mais compatvel com os tempos
moderno
s.
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- Seria um desastre se uma India independente se negasse a pertencer famlia do
Co
mmonwealth, observou ele.
Vasta comunidade de naes independentes cimentada por tradies comuns, por um
passado
comum, por laos previlegiados com a coroa, o Cornmonwealth podia desempenhar um p
apel primordial nos problemas mundiais. Situada no centro deste conjunto, a Ingl
aterra podia falar alto nos conselhos das naes, dando aos seus discursos o tom da
voz imperial que fora outrora a sua. Londres podia tornar a ser Londres, o centr
o cultural, espiritual,-comercial e financeiro de uma parte importante do univer
so. O Imprio podia morrer, mas o seu fantasma permitiria dar ao reino insular de
Jorge VI um lugar parte no conjunto das potncias europeias.
Para realizar este ideal, era indispensvel que a ndia independente entrasse para
o
Commonwealth. Se recusasse, as naes afro-asiticas que mais tarde ou mais cedo
conq
uistariam tambm a independncia, seguiriam quase automaticamente o seu exemplo. No
mesmo instante, o Commonwealth ficaria condenado a j no ser mais do que um clube
c
onstitudo apenas por naes de raa branca em vez daquele conjunto poderoso que o
rei d
esejava ver surgir dos escombros do Imprio.
O Primeiro ministro e o partido trabalhista no compartilhavam de forma nenhuma as
ambies do seu soberano. Attlee no tinha dado qualquer instruo a Mountbatten
no senti
do de conseguir que a ndia se mantivesse no Commonwealth. Rei constitucional sem
poderes verdadeiros, Jorge VI no tinha qualquer forma de impr os seus pontos de
vi
sta. Mas o primo, esse, podia. Ningum compreendia melhor as esperanas do monarca
d
o que o jovem almirante. Nenhum outro membro da famlia real tinha viajado tanto c
omo ele no velho imprio; nenhum ingls sentia mais cruelmente a dor do seu
desmembr
amento. junto da chamin da sala de Buckingham, os dois bisnetos de Vitria
tomaram,
naquele dia de janeiro, uma resoluo secreta: manter bem alto, graas ao
Commonwealt
h, o facho do Imprio.
Lord Mountbatten estava encarregado de a executar. Antes de voar para Nova Delhi
, conseguiria de Attlee que este alargasse nesse sentido o mbito da sua misso.
Nas
semanas seguintes nenhuma tarefa absorveria mais completamente o esprito, a fora
de persuaso e a habilidade do novo vice-rei das ndias do que a concebida naquela
t
arde na sala de Jorge VI, de conservar vivo o lao entre as ndias e a coroa da
Gr-Br
etanha.
Perfil de um aristocrata audacioso
Ningum parecia mais naturalmente indicado para ocupar as grandiosas funes de
vice-r
ei das ndias do que Lus Mountbatten. Assim que nasceu,.manifestou logo a sua
facil
idade instintiva para circular no meio dos reis, quando, com um soco, fez saltar
as lunetas do nariz imperial da
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sua bisav, a imperatriz Vitria, durante a cerimnia do seu baptisado. As origens
da
sua famlia remontavam ao sculo IV, e tinha como antepassado directo o imperador
Ca
rlos Magno. Estava, ou estivera ligado por la os de sangue ou por alianas ao
kaise
r Guilherme 11, ao czar Nicolau 11, ao rei Afonso XIII de Espanha, a Femando 1 d
a Romnia, a Gustavo VI da Sucia, a Constantino 1 da Grcia, ao rei Haakon VII da
Nor
uega e a Alexandre 1 da Jugoslvia. Para Lus Mountbatten, as crises da Europa eram
questes de famlia.
No havia muitos tronos vagos em 1900. O quarto filho da neta preferida da rainha
Vitria, a princesa Vitria de Hesse, e do seu primo, o prncipe Lus de
Battenberg, no d
evia saborear o prazer da vida real seno por meio de intermedirios. Passou os
Veres
da sua infncia nos castelos dos seus primos mais favorecidos, guardando dessas
fr
ias idlicas, fortes recordaes: os chs tomados nos canteiros do castelo de
Windsor, o
nde quase todos os convivas eram cabeas coroadas; cruzeiros no iate do czar; long
os passeios nas florestas vizinhas de So Petersburgo em companhia do primo, o cza
r Alexis e a irma deste, a gra-duquesa Maria, por quem se apaixonara loucamente.
O seu nascimento prometia ao jovem Lus Mountbatten uma vida calma de dignitrio em
qualquer corte da Europa; ali, poderia aplicar o seu gosto do fausto aperfeioando
usos e cerimnias em declnio. Mas optara por um caminho diferente e encontrava-se
hoje no cume de uma carreira excepcional.
Mountbatten acabava de completar quarenta anos quando, no Outono de 1943, Winsto
n Churchill, ento em busca de "um esprito jovem e vigoroso", o nomeara comandante
supremo interaliado no teatro de operaes do sudeste asitico. Semelhante
responsabil
idade, tais encargos, no eram comparveis seno com os do comandante supremo
interali
ado Dwight Eisenhower no teatro europeu. Cento e vinte e oito milhes de homens es
tariam no futuro sob a sua autoridade. No tendo ganho at ento nem vitrias nem
previlg
ios, este comando s oferecia como perspectivas "um terrvel moral, um terrvel
clima,
um terrvel inimigo e terrveis derrotas".
Muitos dos seus subordinados tinham mais vinte anos do que ele e eram de graduao
s
uperior. Alguns consideravam-no um play-boy que conseguira, graas s suas relaes
com
reis, trocar o smoking pela farda de almirante.
Consagrou toda a sua energia a reanimar o moral das suas tropas, visitou regular
mente todas as frentes, obrigou os seus generais a continuarem a combater sob o
dilvio da mono birmanesa, arrancou quilo por quilo aos seus superiores de
Londres e
de Washington, o reabastecimento indispensvel aos soldados. O resultado no se
fez
esperar: em 1945, aquele exrcito havia pouco desencorajado e desorganizado ganha
ria a maior vitria terrestre jamais conseguida sobre um exrcito nipnico. S a
exploso
da bomba atmica impediu o seu chefe de realizar o seu grande objecto, "a operao
Zip
per", que visava a reconquista da Malsia e de Sngapura por meio de uma audaciosa
o
perao anfbia cuja amplitude s serja Ultrapassada pelo desembarque da Normandia.
> E
m criana, Mountbatten escolhera a carreira da marinha. Queria seguir assim as pis
adas do pai que abandonara o seu pas natal, a Alemanh, para se alistar na Royal
Na
vy e conseguir o posto de Primeiro Lord do Mar. Mountbatten tinha apenas entrado
para a escola de cadetes quando uma tragdia aniquilou a carreira do pai. A vaga
de hostilidade anti- @germnica que deflagrou na Gr-Bretanha no princpio da
primeira
Guerra mundial obrigou-o a demitir-se das suas funes, devido sua origem alem.
Depo
sto, mudou o nome de Battenberg para Mountbatten a pedido do rei Jorge V. O aspi
rante de marinha Lord Lus Mountbatten jurou par um dia o posto de onde o pai tinh
a sido expulso por uma campanha de dio nacionalista.
Durante o perodo de entre-duas-guerras, esta asceno tinha forosamente que
sofrer o r
itmo lento e vulgar de qualquer carreira de oficial em tempo de paz. Por isso Mo
untbatten se dedicou a actividades no militares. O seu encanto, a sua incomparvel
seduo, o seu entusiasmo contagioso, permitiram-lhe tornar-se a personagem de
escol
de uma imprensa inclinada s futilidades de um mundo sedento de distraes aps os
horr
ores da guerra. O seu casamento com Edwina AshIey, uma bela e rica herdeira, foi
o acontecimento mundano de 1922. Raros foram os jornais e revistas que no public
aram todas as semanas uma fotografia ou indescrio acerca do casal em voga: os
Moun
tbatten no teatro em companhia de Noel Coward, os Mountbatten no camarote real e
m Ascot, o atltico Lord Mountbatten rasgando em ski aqutico as guas do
Mediterrneo o
u disputando uma partida de polo. Mountbatten nunca renegou o seu gosto pelas fe
stas e passeios. Mas por detrs desta imagem pblica escondia-se uma personalidade
q
ue surgia a primeiro plano quando terminava a festa.
O jovem lord no esquecera a sua jura de adolescente. Era o mais consciencioso e o
mais ambicioso dos oficiais de marinha. Era dotado de uma capacidade de trabalh
o surpreendente, que iria, durante toda a sua vida, esgotar os seus colaboradore
s. Persuadido de que o resultado das guerras futuras dependeria da aplicao de
tcnic
as cientficas novas e que no poderiam ser ganhas sem um sistema de comunicaes
infalve
l, Mountbatten lanou-se no estudo profundo das telecomunicaes. Em 1927, alcanou
o po
sto de major aps o curso de transmisses da Royal Navy e comeou imediatamente a
redi
gir o primeiro manual de utilizao dos Postos de rdio em servio na marinha.
Fascinado
com as ilimitadas possibilidades da tcnica e da cincia, entregou-se ao estudo da
fsica, da electricidade, das transmisses sob todas as formas. Tinha um grupo de
Na
mesma poca o prprio rei, de origem germnica, mudou o seu nome de Saxe-Cobourg
para
Windsor.
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amigos cujos nomes nunca apareciam ao lado do seu nas crnicas mundanas - engenhei
ros, sbios, construtores de avies, mecanicos. Conseguiu interessar a Royal Navy
no
s trabalhos do grande especialista francs de foguetes Robert Esnault-Pelterie,
cuj
o livro esboava um plano proftico sobre as bombas voadoras VI, os foguetes
teleguia
dos e at a viagem do homem Lua. Descobriu na Sua um canho de D.C.A.. de tiro
rpido ca
paz de combater os bombardeiros de voo picado Stitka e lutou durante meses para
convencer uma marinha ctica a adopt-lo.
Nas suas distraces, desenvolveu a mesma energia metdica para obter sempre o
melhor
resultado. Quando descobriu o jogo do polo, tirou filmes para analisar ao retard
ador a jogada dos maiores campees. Estudou cientificamente a forma do tacto e ima
ginou um novo modelo. Todos estes esforos no fizeram dele um grande jogador, mas
a
prendeu o suficiente para escrever sobre este desporto um trabalho abalisado, el
evar vitria as equipas que dirigia.
Dotado de uma compreenso instintiva do carcter germanico, Mountbatten seguiu com
i
nquietao crescente, a ascenso de Hitler e o rearmamento alemo. Observava com a
mesma
tristeza e sem iluses a evoluo do regime poltico que expulsara o seu tio
Nicolau 11
do trono dos tsars. Enquanto decomam os anos 3O, os Mountbatten dedicaram cada
vez menos tempo vida mundana para se entregarem mais tarefa de alertarem os
amig
os e os responsveis polticos para a iminncia de um conflito que viam aproximar-
se i
rremediavelmente.
Em junho de 1939, Lus Mountbatten aceitou com orgulho o comando de uma flutilha d
e destroyers. O seu navio, o Kellv. foi-lhe entregue a 23 de Agosto. Algumas hor
as mais tarde, a rdio anunciou a assinatura feita por Hitler e Staline de um pact
o de no-agresso. O comandante do Kelly compreendeu imediatamente o alcance desta
n
oticia: a guerra era uma questo de dias. Ordenou sua tripulao que trabalhasse
sem d
escanso, para que a nave estivesse pronta para o mar dentro de trs dias em vez da
s trs semanas habituais. Passados onze dias, quando estalou a guerra, Mouritbatte
n, de pincel na mo, suspenso da amurada do destroyer, estava ocupado com os seus
marinheiros a camuflar o Kelly. No dia seguinte, o navio caava o seu primeiro sub
marino alemo. "Nunca darei ordens para abandonar o navio, precisara Mountbatten
t
ripulao. Nunca o abandonaremos, a no ser que naufrague debaixo dos nossos ps."
O Kel
ly escoltou comboios no mar da Mancha, perseguiu torpedeiros alemes no mar do Nor
te, seguiu, no meio do nevoeiro e sob as bombas, em auxlio dos seis mil sobrevive
ntes da malograda expEDIO de Narvik. No mar do Norte, um torpedeiro danificou-lhe
a ppa e estragou-lhe as caldeiras. Mautbatten recusou-se a meter o navio a pique;
evacuou a totalidade da tripulao e passou uma noite sozinho sobre os restos do
ba
rco deriva. Depois, com dezoito voluntrios, conseguiu faz-lo rebocar a bom
porto.
Um ano mais tarde, em Maio de 1941, ao largo de Creta, a sorte abandonou
42
Kelly. Atingido a meio por uma bomba, foi ao fundo em poucos minutos. Fiel ao se
u juramento, Lus Mountbatten ficou na ponte at que o seu navio submergisse nas
ond
as. Agarrado com os sobreviventes nica jangada no meio da gua viscosa de
petrleo, m
anteve o moral dos seus homens pondo-os a cantar cano es populares sob o tiroteio
dos bombardeiros alemes. Mountbatten recebeu a cruz da Distingitisbed Service Or
der, o mais alto galardo britnico depois da Victoria Cross pela sua coragem em
com
bate, e o seu navio, a memria etema do filme de Noel Coward In Wbicb We Serve.
Passados cinco anos, Churcill, que procurava algum com audcia suficiente para
prep
arar as tcnicas da futura invaso do continente -
mandou chamar Mountbatten. Nenhuma outra misso podia adaptar-se mais sua
curiosid
ade cientfica e sua imaginao. jurando nunca mais recusar a priori uma ideia
nova, a
briu as portas do seu quartel general a uma legio de inventores, sbios, tcnicos,
e
de gnios. . Alguns dos seus projectos, como o iceberg-porta- avies sobre gua do
mar
gelada misturada com pasta de madeira, no passavam de pura fanta~ sia. Outros fo
ram brilhantes: por exemplo Pluto, o pipa-line submarino que atravessaria um dia
a Mancha, assim como os portos artificiais e as pequenas embarcaes que
permitiria
m o desembarque na Normandia. Estas realizaes valeram ao seu inventor ser
nomeado,
aos quarenta e trs anos, comandante supremo interaliado do sudeste asitico.
Presentemente, quando se preparava, aos quarenta e seis anos, para meter ombros
tarefa mais difcil da sua carreira, encontrava-se no auge dos seus recursos
fsicos
e intelectuais. A guerra no mar e a prtica das elevadas responsabilidades tinham
aguado o seu poder de deciso e desenvolvido as suas aptides naturais para o
comand
o. No era nem um filsofo nem um pensador abstracto, mas possua um penetrante
esprito
de anlise. S acreditava no xito. Ainda jovem oficial, levara um dia a sua
tripulao v
itria retumbante numa comda a remos graas a uma maneira de remar muito especial
qu
e inventara. Criticado pelo estilo fantasista que acabava de apresentar, tinha r
espondido secamente que a nica coisa importante era "ser o primeiro a chegar
meta
".
Uma Invencvel confiana em si prprio, que os seus crticos qualificavam de
orgulho, su
stentava esta mentalidade de vencedor. Quando Churchill lhe oferecera o comando
na sia, ele pedira vinte e quatro horas para reflectir.
- Porqu? - murmurara Churchill. - No se sente capaz?
- Sir, respondera Mountbatten, tenho a franqueza congnita de me Julgar capaz de t
udo.
O bisneto da rainha Vitria no teria tanta confiana em si prprio durante as
prximas se
manas.
Primeira escala do calvrio de Candhi "Como utilizar a luz do Sol"
Em todas as aldeias era o mesmo cerimonial. Logo chegada, o asitico mais clebre
vi
vo dirigia-se a uma cabana, de preferncia a de um muulmano, e pedia asilo. Se era
escorraado - s vezes acontecia -, Gandhi ia bater a outra porta. "Se ningum
quiser
receber-me, confessara ele um dia, contentar-me~ei com a sombra acolhedora de um
a rvore." Vivia do pouco alimento que os anfitries lhe davam: alguns frutos,
legum
es, leite de cabra coalhado e leite de noz de coco.
Os seus dias desenrolavam-se segundo um plano rigorosamente minutado. O tempo er
a uma das suas obcesses. Cada minuto da vida era um dom de Deus que devia ser apl
icado ao servio do homem. O emprego do tempo era portanto regulado por um dos pou
cos objectos que possua, um velho relgio Ingersoll de oito chelins que trazia
pend
urado cintura por um cordo. Levantava-se s 2 horas da manh para ler o Git e
dizer as
suas oraes. Depois, acocorado sobre a terra batida, respondia aos seus
correspond
entes - usando um lpis. Gastava os lpis at j no os poder segurar com os dedos,
porque
representavam aos seus olhos o fruto do trabalho de um dos seus irmos e
desperdi-l
o seria dar prova de indiferena por esse trabalho. Todas as manhs mesma hora
lavav
a-se com gua misturada com sal. Adepto invencvel dos tratamentos naturistas,
Gandh
i estava convicto dos benefcios desta cura para eliminar astoxinas dos intestinos
. Um discpulo sabia que fazia verdadeiramente parte da sua intimidade quando o Ma
hatma o convidava a administrar-lhe a sua lavagem. Ao nascer do Sol, Gandhi saa a
dar um passeio para se encontrar com os aldeos e falar com eles.
Preparou um mtodo para levar a calma e a segurana quela regio, mtodo tpico do
seu esti
lo. Em cada aldeia, procurava um responsvel hindu e outro muul mano dispostos a
ouvir a sua mensagem. Quando os encontrava, convencia-os a instalarem-se ambos s
ob o mesmo tecto. Tornavam-se ento ambos garantes da paz da aldeia. No caso dos s
eus concidados atacarem a comunidade hindu, o chefe muulmano comprometia-se a
jeju
ar at morte. O hindu fazia o mesmo juramento.
Pelos caminhos cobertos de sangue de Noakhaili, Gandhi no limitava a sua aco em
exo
rcisar o dio pregando a fraternidade entre muulmanos e hindus. Assim que sentia a
atmosfera de uma aldeia inclinar-se a seu favor, a sua mensagem de amor abria-se
a outros ensinamentos mais vastos. A ndia era para ele todas as aldeias perdidas
e inacessveis como aqueles aglomerados que atravessava todos os dias. Conhecia-o
s melhor que ningum. Queria que a nova ndia enraizasse nelas os seus alicerces e
p
ara isso era necessrio tir -las da rotina da sua existncia."
Proponho-me tambm mostrar-lhes a maneira de manter asseada a gua da vossa aldeia
e
os vossos corpos, anunciava ele aos habitantes. Voi,
44
ensin-los a empregar melhor a terra de que so feitos os vossos corpos; como beber
a fora da vida no infinito do cu acima das vossas cabeas; como reforar a vossa
energ
ia vital respirando o ar que vos rodeia; como utilizar judiciosamente a luz do S
ol."
O velho profeta era inesgotvel. Tinha uma confiana rredutvel na realidade dos
actos
concretos. Para grande indignao de muitos dos seus discpulos que achavam que
devia
ser adoptada uma ordem de prioridades diferente, Gandhi dedicava um cuidado meti
culoso e uma ateno idnticas na confeco de uma cataplasma de argila para um
leproso e
em preparar uma discusso com o vice-rei. Assim, acompanhava os aldeos aos seus
poos
, ajudando-os s vezes a escolher o melhor stio. Inspeccionava as latrinas
pblicas o
u, se a aldeia no as possuia - e era muitas vezes o caso -, indicava como as devi
am construir, participando at nos trabalhos. Persuadido de que as ms condies
higinica
s estavam na origem do elevado ndice de mortalidade indiana, lutava havia anos co
ntra os velhos hbitos de escarrar, assoar-se e fazer as suas necessidades no stio
onde a maior parte das pessoas passavam de ps descalos. "Se ns, os indianos,
escarrs
semos todos ao mesmo tempo, imaginara ele um dia, faramos um lago bastante grande
para afogar nele trezentos mil ingleses." Assim que via um campons cuspir no
cho,
repreendia-o com suavidade. Entrava nas casas para mostrar aos habitantes a man
eira de construir um filtro de gua potvel com carvo de madeira e areia. "A
diferena
entre o que fazemos e aquilo de que somos capazes bastaria para resolver a maior
ia dos problemas do mundo", repetia constantemente.
Todas as noites, fazia uma reunio pblica de orao para que convidava tambm os
muulmanos
, tendo sempre o cuidado de completar a recitao do Git com alguns versculos do
Alcoro
. Durante estas reunies, qualquer pessoa o podia interrogar sobre qualquer assunt
o. Um aldea o fez-lhe notar uma noite que em vez de perder tempo em Noakhali, er
a melhor voltar a Nova Dlhi para negociar com Jinnah e a Liga muulmana."
Um chefe, explicou GandhI, apenas o reflexo do povo que ele dirige. Ora o povo t
em primeiro necessidade de ser guiado para fazer as pazes consigo prprio. @> Depo
is acrescentou: "O desejo do povo de viver em entendimento fraterno h-de reflecti
r-se depois fatalmente nos actos dos seus chefes.,>
Achava que uma aldeia tinha compreendido a sua mensagem quando -a populao
muulmana
concordava em deixar entrar em suas casas os hindus aterrados. Metia-se ento a ca
minho para outro aglomerado a quinze ou vinte quilmetros dali. A sua partida era
invariavelmente s
7,3O h. Gandhi seguia frente, e o seu pequeno grupo deixava a aldeia por entre a
s mangueiras e os pntanos onde patos e gansos grasnavam sua passagem. Escolhia
um
caminho difcil por estreitos carreiros eriados de pedras agudas e de raizes,
atra
vs dos pegos e das saras. A pequena caravana enterrava s vezes na lama at ao
joelho.
Quando chegava etapa
45
seguinte, os ps nus do velho Mahatma estavam com frequncia completamente em
ferida
. Antes de iniciar a sua misso, Gandhi mergulhava-os numa bacia de gua quente, e
d
epois abandonava-se ao nico prazer da sua vida dolorosa. Deixava Manu, a sua fiel
e encantadora neta, aliviar-lhe as dores massajando-os com uma pedra.
O profeta da no-violncia acoida um continente
Durante trinta anos, estes ps martirizados tinham levado Ganelhi aos cantos mais
longnquos da ndia, at milhares de aldeias semelhantes s que ele visitava hoje,
s srdid
as colnias de leprosos, s mais desgraadas cidades da lata, aos sales dos
palcios impe
riais e s celas das prises, para conseguir o objectivo da sua vida, a libertao
da ndi
a.
Mohandas Gandhi era um estudante de dezoito anos quando a bisav de Jorge VI e de
Lus Mountbatten fora proclamada Imperatriz das ndias numa plancie perto de
Delhi. P
ara ele, esta grandiosa cerimniaestivera sempre associada a uma canoneta que
canta
va ento com os camaradas na sua cidade natal de Porbandar, beira do mar de Oma,
a
duzentos quilmetros de Delhi:
Vejam l este colosso ingls Rema sobre o pobre indiano Porque um comilo Mede
seis ps
de altura.
O rapazinho cuja fora espiritual viria a humilhar os ingleses de seis ps e o seu
g
igantesco imprio no pde resistir ao desafio destes versos. As escondidas, mandou
co
zer um bocado de cabra e comeu a carne proibida. A experincia foi desastrosa. O j
ovem Gandhi comeou imediatamente e sonhou toda a noite que tinha uma cabra aos pu
los dentro da barriga.
O pai era o diwan hereditrio, o Primeiro ministro, de um pequeno principado da pe
nnsula de Kathiawar a norte de Bombaim, e a me uma mulher particularmente piedosa
que cumpria longos jejuns religiosos.
Por curiosidade, o homem destinado a tornar-se o maior chefe espiritual da ndia d
os tempos modernos no nascera na aristocracia hindu, a casta superior dos Brahman
es, a elite religiosa e filosfica do hinduismo.
O pai pertencia casta dos Vaiyas, casta dos comerciantes que ocupa na hierarquia
social hindu uma posio relativamente inferior, acima dos uciras, os artfices e
o pes
soal de servio, mas abaixo dos Brahmanes e dos Kshatrlyas, os prncipes e os
guerre
iros.
Segundo o costume indiano da poca, Gandhi casou aos treze anos com uma rapariguin
ha completamente analfabeta chamada Kasturbai. Aquele que mais tarde daria ao mu
ndo um exemplo de pureza asctica
46
M7F briu com espanto os prazeres da carne. Quatro anos mais tarde, Gandhi e
a esposa entregavam-se a esse prazer, quando foram interrompidos por uma forte p
ancada na porta. Era um criado anunciando ao jovem que o pai acabava de morrer.
Gandhi ficou horrorizado. Adorava o pai. Momentos antes, estivera junto do doent
e, tentando aliviar-lhe as dores massajando-lhe as pernas. Mas um forte desejo s
exual afastara-o do leito do moribundo para ir acordar a mulher, que estava grvid
a. A partir de ento, um invencvel complexo de culpa comeou a adormecer nele as
paixe
s da carne.
Gandhi foi mandado para Inglaterra a fim de estudar direito, na esperana de poder
suceder ao pai como Primeiro ministro do principado. Tal Viagem representava gr
andes sacrifcios para uma piedosa famlia hindu. Nenhum membro da famlia antes
dele
fora ao estrangeiro. Gandhi foi solenemente excludo da sua casta de mercadores, p
orque aos olhos dos mais velhos, esta viagem alm-mar s podia manch-lo para
sempre.
Em Londres, Gandhi foi extraordinariamente infeliz. Era to tmido que s a ideia
de d
irigir a palavra a um estrangeiro o fazia sofrer. O seu aspecto franzino e a sua
indumentria eram um espectculo pattico no mundo sofisticado do tribunal de
Londres
. O fato mal cortado danava-lhe no corpo e parecia, com dezanove anos, to fraco,
to
tragicamente insignificante, que os colegas da faculdade o tomavam muita vez po
r um moo de recados.
- Gandhi decidiu que a nica maneira de escapar a esta tortura era transformar-se
num gentleman britnico. Ps de parte os trajes de Bombaim em troca de um guarda-
ro
upa novo em folha. Comprou um chapu alto de seda, uma casaca, botas de vemiz, luv
as brancas e uma bengala de casto de prata. Adquiriu uma loo para compor o
cabelo r
ebelde e pas- .sou horas em frente do espelho a admirar o seu novo aspecto e a t
reinar-se no n da gravata. Comprou at um violo, inscreveu-se numa escola de
dana, co
ntratou um professor de francs e um mestre de conversao.
Os resultados desta empresa foram to desastrosos como a sua experincia com a
carne
de cabra. S conseguiu tirar vagos gemidos do violo. Os ps apertavam-lhe dentro
das
botas de Bond Street, a lngua recusou-se a pronunciar uma palavra de francs, e
to
das as lies de pronncia foram impotentes em libertar o esprito que procurava
exprimi
r-se por detrs de uma total timidez. At uma visita a uma casa de prazer acabou em
fracasso. Gandhi no conseguiu passar da sala de entrada. Renunciando ento a
imitar
os ingleses, resolveu tornar a ser ele prprio. Assim que obteve o diploma, apres
sou-se a regressar ndia.
O seu regresso no teve nada de triunfal. Durante um ms, errou pelos tribunais de
B
ombaim em busca de uma causa para defender. O homem cuja voz levantaria um dia u
m povo, revelava-se incapaz de articular as Poucas frases susceptveis de impressi
onar um magistrado.
Este insucesso esteve na origem da primeira grande mudana na vida de Gandhi. Desi
ludida, a famlia mandou-o frica do Sul para tratar do
47
processo de um parente afastado. A viagem devia durar alguns meses. Mas ele esta
ria ausente um quarto de sculo. Naquela terra hostil e longnqua, Gandhi descobriu
os princpios filosficos que iriam transformar a sua vida e a histria da ndia.
Nada no seu comportamento indicava a menor vocao para o ascetismo ou para a
santid
ade quando desembarcou no porto de Durban em Abril de 1893. Foi vestido com a el
egante sobrecasaca dos advogados londrinos e colarinho branco engomado que o fut
uro profeta da pobreza fez a sua entrada na frica do Sul para defender a causa do
comerciante indiano que arranjara.
O verdadeiro contacto de Gandl-ii com este novo pas deu-se durante uma viagem em
caminho de ferro de Durban a Pretria. No fim da vida, Gandhi ainda considerava es
ta viagem como "a experincia mais decisiva da sua existncia". A meio caminho de
Pr
etria, um branco irrompeu no compartimento de 1 classe e mandou-o para a carruage
m das mercadorias. Gandhi, que comprara um bilhete de 1 classe, recusou-se a bbe
decer. Na paragem seguinte, o branco chamou um polcia e Gandl-ii foi expulso do c
omboio em plena noite. Sozinho, tiritando de frio porque no se atrevera a reclama
r as malas que despachara, Gandhi passou uma noite de profundo desalento. Era o
seu primeiro confronto com a injustia racial. Como um cavaleiro da Idade Mdia na
s
ua velada de armas, implorou ao deus do Git que lhe desse coragem e o iluminasse.
Quando rompeu o dia na pequena estao de Maritzburgo, o jovem tmido e
desajeitado t
omara a deciso mais importante da sua vida. A partir de agora, Mohands Gandhi dir
ia "no".
Uma semana mais tarde, fazia o seu primeiro discurso pblico aos indianos de
Pretri
a. O advogado inexperiente que demonstrara uma timidez doentia nos tribunais de
Bombaim soltara de repente a lngua. Exortou os seus irmos a unirem~se para
defende
r os seus interesses, e antes de mais nada, a aprenderem a faz-lo na lngua
inglesa
dos seus opressores. Na tarde seguinte, Gandhi comeava sem dar por isso, a cruza
da que ia no futuro libertar quatrocentos milhes de indianos, ensinando a
gramtica
inglesa a um lojista, um barbeiro e um funcionrio. E dentro de pouco tempo, ganh
ou a sua primeira vitria. Conseguiu arrancar s autoridades dos Caminhos de ferro
o
direito de os indianos decentemente vestidos viajarem em I ou II classe nos com
boios sul-fricanos.
Quando o processo que motivara a sua viagem terminou Gandhi resolveu ficar na fri
ca do Sul. Tornou-se ao mesmo tempo o primeiro homem da comunidade indiana local
e um advogado brilhante. Leal ao Imprio britnico apesar das injustias raciais,
tom
ou parte na guerra dos Boers ao lado dos ingleses, dirigindo um corpo de ambulnci
as.
Dez anos aps a sua chegada, outra viagem por caminho de ferro provocou a segunda
mudana da sua vida. Quando subia para o comboio de Johannesburgo-Durban, numa noi
te de 1904, um amigo ingls ofereceu-lhe um livro do filsofo John Ruskin,
intitulad
o Unto Tbis Last. Gandhi
48
a obra numa noite. Foi a sua revelao na estrada de Damasco. Antes , de chegar ao
s
eu destino no dia seguinte de manh, tinha feito a promessa de renunciar a todos o
s bens terrenos e viver de acordo com o ideal de @Ruskin. A riqueza era apenas u
ma arma para propagar a escravatura, escrevia o filsofo. Um campons era to til
socie
dade com a sua p,
advogado com os seus dotes oratrios, e a vida daquele que# Iacomo um wava a terra
era a nica que valia a pena ser vivida.
A deciso de Gandhi era tanto mais notvel, porquanto ele era, naquela altura da
vid
a, um homem extraordinriamente prspero, que ganhava mais de cinco mil libras
ester
linas por ano, quantia fabulosa para a frica do Sul da poca. Havia dois anos
contu
do que sentia a dvida lavrar-lhe no ntimo. Estava obcecado pela moral de renncia
pr
egada pelo Bhaga- < @vad Git como condio de todo o acordar espiritual. Ele j
tinha e
nveredado por esse caminho. Cortava o cabelo a si prprio, lavava a sua roupa e fa
zia os despejos. Ajudara at a mulher no seu ltimo parto. Os escritos de Ruskin
con
cordavam com ele nesta atitude. < Passados alguns dias, Gandhi instalou a famlia
e um grupo de amigos "ma propriedade de cinquenta hectares perto da aldeia de Ph
oenix, a vinte quilmetros de Durban, em pleno territrio zuiu. Era um lugar triste
e desolado, com uma cabana em runas, laranjeiras, amoreiras e manguei Irat, um ri
acho e serpentes em profuso. Gandhi ia ali tomar os hbitos por que havia de
reger-
se at morte: em primeiro lugar a renncia aos bens materiais, depois o esforo
para s
atisfazer da maneira mais simples as necessidades do homem; tudo isto ligado a u
ma vida em comunidade onde o trabalho de cada um tinha igual valor e onde os ben
s fossem divididos por todos.
Restava ainda um doloroso sacrifcio a cumprir: o voto de brahma- <@harya, o juram
ento de continncia que obcecava Gandhi havia anos. A "Ocatriz que tinha deixado n
a sua memria as circunstncias da morte do pi, o desejo de no ter mais filhos, o
ser
fervor religioso crescente, tudo o empurrava para essa resoluo. Uma tarde de
Vero d
e 1907, Gandhl anunciou solenemente a sua esposa Kasturbai que tinha feito o vot
o de brahmacharya. Iniciado num alegre frenesi com a ldde de treze anos, o ciclo
da sua vida amorosa atingia o seu termo com a idade de trinta e sete anos.
O brabmacharya representava para Gandhi muito mais do que uma simples represso do
s apetites sexuais. Queria atingir o domnio de todos Os sentidos. Isso significav
a o controle das emoes, da alimentao, da Mavra, a abolio da ira, da violncia
e do dio,
m resumo, a asceno a um estado sem desejos prximos do ideal do Git. Esta
escolha mar
cou @ sua escalada definitiva no caminho da ascese, o ltimo acto da sua transform
ao. Nenhuma das decises tomadas por Gandhi o obrigou a um combate interior to
violen
to como o voto de castidade. Estava Condenado a trav-lo, de uma forma ou de outra
, para o resto da vida.
49
Foi a lutar pelos seus irmos da frica do Sul que Gandhi elaborou as duas
doutrinas
que o iam tornar mundialmente clebre - a no-violncia e a desobedincia civil.
Curios
amente, foi um texto dos Evangelhos que o levou a meditar sobre a no-violncia,
Fic
ara impressionado com o conselho de Cristo aos discpulos para estenderem a outra
face aos agressores. j aplicara muitas vezes espontaneamente esta regra suportand
o com estoicismo as humilhaes e golpes dos brancos. A pena de Taliao - "olho por
o
lho, dente por dente" - no podia conduzir seno a um mundo de cegos, achava ele, e
no se mudam as convices de um homem cortando-lhe a cabea, assim como no se
enche de a
mor um corao, trespassando-o com uma bala. A violncia atrai a violncia. Gandhi
queri
a transformar os homens com o exemplo do bem, e reconcili-los pela vontade de Deu
s em vez de os dividir pelos seus antagonismos.
O governo da frica do Sul proporcionou-lhe a ocasio de experimentar as suas
teoria
s no Outono de 19O6. O pretexto foi um projecto de lei que obrigava todos os ind
iands de mais de dezoito anos a recensearem-se nos registos da polcia e a terem c
arto de identidade privativo com impresses digitais. No dia 11 de Setembro de
1906
, perante uma multido de indianos em fria, reunidos no teatro do Imprio de
Johannes
burgo, Gandhi tomou a palavra para se insurgir contra esta lei. Obedecer-lhe, de
clarou, aceitar a runa da nossa comunidade. "S vejo uma sada, resistir at
morte ante
s de nos submetermos descriminao." Pela primeira vez na vida, levou uma
multido a t
omar perante Deus o compromisso solene de se revoltar contra uma lei inqua, quais
quer que fossem os riscos. Gandhi no explicou aos ouvintes a forma de luta. Certa
mente ele prprio tambm no sabia. Apenas uma coisa era clara: a resistncia seria
feit
a sem violncia.
O novo princpio de luta poltica e social, que acabava de ser criado nessa noite
no
teatro do Imprio, em breve teve nome: Satygraban, a Fora da Verdade. Gandhi
organi
zou o boicote das formalidades do recenseamento e fez com que fosse proibida a e
ntrada nos centros de registo por comandos pacficos de piquetes de greve. Esta ca
mpanha teve como consequncia a primeira das suas muitas passagens pela priso.
Na sua cela, Gandhi ia descobrir a segunda obra profana que devia exercer no seu
pensamento uma influncia profunda, o ensaio do escritor americano Henry Thoreau
acerca do Dever de Desobedincia Civil'. Thoreau revoltava-se contra a complacncia
do seu governo em relao escravatura e contra a guerra injusta que ele fazia no
Mxic
o. Afirmava que um indivduo tem o direito de no cumprir as leis arbitrrias e
recusa
r.
1 A terceira foi a obra de Lons ToIstoi O Reino de Deus est em Vs. Gandhi
admirou a
insistncia com que o escritor russo aplicava os seus princpios morais sua vida
dir
ia. Os dois homens compartilhavam opinies extraordinariamente semelhantes acerca
da no-violncia, a educao, alimentao, industrializao. Trocaram
correspondncia importan
So#
K, obedecer a um regime cuja tirania se tornou insuportvel. Ter razo, dizia _hoJe
mais honroso do que respeitar as leis. Esta hora serviu de catalizador s reflexes
que dominavam havia# esprito de Gandhi. Quando saiu da priso, decidiu p-las em
ito
prtica opondo-se deciso do Transvaal de fechar as portas aos indianos.
ia de Novembro de 1913, 2.037 homens, 127 mulheres e 57 crianas
co#
Gandhi frente, comearam uma marcha de no-violncia em o territrio interdito.
direco a
Ao contemplar este pattico rebanho que o seguia confiante, Gandhi foi iluminado p
or uma nova revelao. Aqueles pobres diabos no tinham mais nada a esperar do que
pan
cadas e priso. Milicianos brancos arma-nos na fronteira do Transvaal. E todavia,
electrizados pela dos esperavam# sua determinao, ardendo pela causa que ele lhes
i
nspirara, avanavam no seu rasto, prontos, como ele diria, "a fazer chorar os
coraes
dos seus inimigos com o seu sofrimento silencioso". Gandhi compreendeu, perante
a sua calma resoluo, no que podia tornar-se a aco da massa no-violenta. Na
fronteira
do Transvaal avaliou a enorme fora do movimento que desencadeara. As centenas de
indianos que caminhavam atrs dele nesse dia podiam multiplicar-se em centenas de
milhar, uma onda avassaladora que uma f inabalvel no ideal de no-violncia
tornaria
invencvel.
Perseguies, ataques, prises e sanes econmicas seguiram~se a esta
manifestao, mas j na
odia estancar o impulso desencadeado por Gandhi. A sua cruzada Africana terminou
em 1914 com uma vitria quase total. Gandhi podia finalmente voltar sua terra.
Ti
nha ento quarenta e quatro anos.
O filho prdigo que regressava terra natal j no tinha nada de co mum com o
jovem adv
ogado tmido que desembarcara vinte e um anos antes na frica do Sul. Nesta terra
ins
pida descobrira os seus trs mesires: Ruskin, Thoreau e ToIstoi, um ingls, um
ameri
cano e um russo. Os seus ensinamentos e as duras experincias vividas entre os seu
s compatriotas tinham-lhe permitido elaborar as duas doutrinas - no-violncia e
des
obedincia civil - graas s quais iria durar os trinta anos seguintes, humilhar o
mai
s poderoso imprio do mundo.
Uma multido enorme reservava-lhe uma recepo de heri quando a <sua frgil
silhueta pass
ou sob o arco imperial da Porta das ndias em Bom- .baim no dia 9 de janeiro de 19
15. A sua sacola continha apenas uma riqueza: um grosso mao de folhas de papel ch
eias da sua caligrafia. O ttulo da obra, Hind Swaraj - Autonomia da ndia,
revelava
que a frica no fora para Gandhi mais do que um campo de manobras antes da
verdade
ira batalha da sua vida.
Gandhi instalou-se perto da cidade industrial de Ahmedabad numa das margens do r
io Sabarmati. Fundou ali um asbranq, quinta comunitria semelhante s que j tinha
cri
ado na frica do Sul. Como sempre, as suas Preocupaes orientavam-no em primeiro
luga
r no auxlio aos fracos e oprimidos. Organizou a resistncia dos pequenos
plantadore
s de anil do
51
Bilhar contra as exigncias dos grandes proprietrios britnicos, a greve do
imposto d
os camponeses da regio de Bombaim arruinados pelas secas, a luta dos operrios das
fbricas texteis de Ahmedabad contra os patres cujas contribuies financeiras
proporci
onavam contudo ao seu asbram os meios de subsistncia. Era a primeira vez que um
ld
er se debruava sobre as desgraas das multides miserveis das ndias. Em breve
Rabindran
ath Tagore, o grande poeta indiano laureado com o premio Nobel, lhe conferia o tt
ulo que passou a usar para o resto da vida: "Mahatma - A Grande Alma, vestida co
m os farrapos dos mendigos".
Como a maioria dos indianos, Gandhi manteve-se fiel Gr-Bretanha durante a
Primeir
a Guerra mundial, convicto de que esta saberia receber com simpatia as aspiraes
na
cionais da ndia. Enganava-se. Em 1919, a Inglaterra votou o Rowlatt Act, uma lei
que reprimia duramente qualquer agitao com vista libertao da ndia. Gandhi
meditou sem
anas seguidas para encontrar resposta recusa da Gr-Bretanha s esperanas do seu
pas.
Veio-lhe durante um sonho, e era to simples como extraordinria. A ndia ia
protestar
pelo silncio, um silncio de morte. Gandhi ia realizar uma experincia que
ningum ant
es dele ousara tentar. Ia paralizar o pas inteiro na calma glacial de um dia de l
uto, um hartal.
A semelhana de tantas das suas iniciativas polticas, este plano reflectia o seu
gni
o para descobrir ideias simples, ideias que podiam resumir-se em poucas palavras
acessveis aos espritos mais rudes, postas em prtica com os gestos mais
vulgares. P
ara seguir Gandhi, os indianos no precisavam sequer de violar a lei nem desafiar
as matracas da polcia. Deviam apenas no fazer nada. Fechando as lojas,
abandonando
as salas de aula, orando nos seus templos ou simplesmente ficando em casa, os i
ndianos mostravam a sua solidariedade com o grito de revolta. Gandhi escolheu pa
ra a sua jornada de hartal o dia 6 de Abril de 1919. Era o primeiro desafio aber
to que ele lanava s autoridades britnicas. Que a ndia inteira se paralize,
pediu ele
, e que os seus opressores compreendam a mensagem do seu silncio.
Infelizmente, as massas no ficariam em toda a parte silenciosas. Estalaram revolt
as. A mais grave deu-se no Panjab, em Amrltsar. A fim de protestar contra as med
idas de represlia impostas na sua cidade pelos ingleses, milhares de habitantes r
euniram-se no dia 13 de Abril numa manifestao pacfica, mas interdita, numa praa
cham
ada Jallianwalla Bagli. Apenas uma estreita passagem dava acesso a esta praa comp
letamente cercada por uma fila de casas. Assim que os manifestantes se juntaram,
surgiram uns cinquenta soldados britnicos, chefiados pelo comandante militar da
cidade, o general R. E. Dyer. Este formou os seus homens a ambos os lados da ent
rada e, sem o menor aviso, mandou fazer fogo sobre a multido indefesa. Enquanto o
s indianos presos na armadilha gritavam e imploravam piedade, as metralhadoras i
nglesas dispararam 165O balas que mataram ou feriram 1516 pessoas. Convencido de
que tinha feito
52
bom trabalho", o general Dyer retirou-se'. Este "belo trabalho" constituiu, na h
istria das relaes da Inglaterra com a ndia, uma viragem mais decisiva do que
fora o
grande motim dos Cipaios sessenta e trs anos antes. Mas para Gandhi, esta tragdia
tinha sentido particular. Fazia-o perder definitivamente a sua confiana nesse
Impr
io a que sacrificara os seus principios pacficos durante as duas guerras. A parti
r de agora, aplicaria todos os seus esforos para tomar o# da organizao que
encarnav
a as aspiraes nacionalistas da ndia.
A ideia de que o partido do Congresso podia vir a tornar-se a arma da agitao das
m
assas indianas teria certamente assustado o respeitvel funciOnrio ingls que
fundou
esta assembleia em 1885. Actuando com o acordo do vice-rei, Octavian Hume preten
dia criar um partido susceptvel canalizar os protestos crescentes da classe intel
ectual numa organizao moderada capaz de estabelecer um dilogo de gentlemen com
os g
overnantes britnicos na ndia. E era exactamente o que representava o partido do
Co
ngresso quando Gandhi entrou na cena poltica. Decidido a transform-la num
moviment
o de massas animado do seu ideal de no-violncia, apresentou ao partido no ano de
1
92O em Calcut, um plano de aco que foi aprovado por uma maioria esmagadora. A
parti
r da e at morte, quer ocupasse ou no uma posio na hierarquia do partido,
Gandhi foi a
conscincia e o guia do Congresso, o chefe incontestado da ;luta pela
independncia
. @Tal como a sua organizao de uma hartal nacional, a nova actuao de Gandhi era
de u
ma transparente simplicidade. O seu programa baseav-se numa frmula nica: a no-
colabo
rao. Os indianos iam boicotar tudo o que fosse ingls: os alunos boicotariam as
esco
las inglesas, os advogados os tribunais ingleses, os funcionrios os lugares ingle
ses, os soldados >as condecoraes inglesas. Gandhi comeou por mandar ao vice-rei
as
duas medalhas que tinha ganho com o seu corpo de ambulncias durante a guerra dos
Boers. O seu fim essencial visava fazer ruir o edifcio do poder britnic:o nas
ndias
atacando a sua economia nos prprios alicerces. A Gr-Bretanha comprava ento a
preos
irrisrios algodo indiano que enviava s fbricas de Lancashire e que voltavam s
ndias so
b a forma de tecidos vendidos com lucros considerveis, num mercado de que estavam
Praticamente excludos todos os txteis no britnicos. Era o ciclo clssico da
explorao im
perialista. Para dar um golpe nas mquinas das fbricas Inglesas, Gandhi escolheu
um
a arma que era a anttese absoluta daquelas:
O massacre de Amritsar valeu um processo ao general Dyer que foi obrigado demiti
r-se do exrcito. Conservou todavia pleno direito reforma e a sua prova de fora
foi
aplaudida pela maior parte dos ingleses que viviam nas ndias. Fez-se uma colecta
em todos os clubes do pas a fim de o ajudar a suportar o rigor da sua reforma fo
rada, e que rendeu a soma astronmica de vinte e seis mil libras esterlinas.
53
a dobadoura de madeira tradicional. Ia lutar durante vinte e cinco anos com uma
energia indomvel para obrigar a ndia inteira a rejeitar os tecidos estrangeiros
em
favor do khadi de algodo cr fiado em milhes de dobadouras. Persuadido de que a
misr
ia dos camponeses indianos provinha sobretudo do declnio das profisses rurais,
via
no renascimento do artesanato a chave do renascimento dos campos. Quanto s massa
s urbanas, fiar era para elas o caminho de uma verdadeira redeno espiritual, a
rec
ordao constante do lao que as uma ndia do interior, ndia de quinhentas mil
aldeias.
A dobadoura tornou-se o smbolo em volta do qual pregou as doutrinas que lhe inter
essavam. A esta cruzada veio juntar-se uma campanha de educao para incitar os
aldeo
s a usarem as latrinas, a melhorar as suas condies sanitrias, a combater a
malria, a
construir escolas para os filhos, a fazer a propaganda de um entendimento harmni
co entre hindus e muulmanos. Era todo um programa de regenerao da ndia rural
que ele
propunha desta forma.
Gandhi deu o exemplo dedicando ele prprio com a maior regularidade meia hora por
dia fiao e obrigando os discpulos a fazerem o mesmo. A sesso diria de
dobadoura tomou
o aspecto de uma verdadeira cerimnia religiosa, tornando-se o tempo gasto a fiar
num interldio de orao e meditao. O Mahatma psalmodiava o nome de Deus, "Rma,
Rama, Rma
", ao ritmo do estalar da roda.
Em Setembro de 1921 Gandhi deu novo impulso sua cruzada renunciando solenemente,
e para o resto da vida, a qualquer outro vesturio alm de um pano e um chaile de
a
lgodo tecidos manualmente. A humilde tarefa da fiao tornou-se um verdadeiro
sacrame
nto ligando por um rito dirio os membros de todas as tendncias do partido do
Congr
esso. O seu produto - o khadi de algodo - tornou-se o uniforme dos combatentes da
independncia, que tanto vestia ricos como pobres com o mesmo pedao de tecido
bran
co grosseiro. A pequena dobadoura de Gandhi representava o emblema da sua revoluo
pacfica, o desafio ao imperialismo ocidental de um continente que despertava, o
sm
bolo da unidade nacional e da liberdade.
Avanando na lama ou sobre as pedras agudas dos caminhos, passando noites inteiras
sentado nos bancos de III classe dos comboios, Gandhi foi levar a sua mensagem
at aos stios mais afastados da ndia. Discursava cinco ou seis vezes por dia,
visita
ndo milhares de aldeias. Era um espectculo grandioso. Gandhi seguia frente,
desca
lo, com um pano de khadi em volta da cintura, os culos de aro de ao na ponta do
nar
iz, apoiado a uma bengala de bambu. Atrs seguiam os partidrios vestidos de
maneira
idntica. Fechando a marcha, transportada cabea, avanava a cadeira-retrete do
Mahat
ma, aviso concreto da importncia que ele dava ao respeito pela higiene.
A sua longa jornada obteve um xito fantstico. As multides acorriam para ver
aquele
a quem chamavam " a Grande Alma". A sua pobreza
54
tria, a sua simplicidade, a sua humildade que o tornavam num #san homem vindo de
qualquer passado longnquo para fazer nascer uma _nova ndia. Nas cidades, repetia
s
massas urbanas que se a nao quisesse conseguir sua autonomia, tinha que comear
por
renunciar a todos os produtos de origem estrangeira. Convidou as populaes a
desfaz
erem-se dos seus fatos ingleses. Sapatos, pegas, calas, camisas, chapus,
sobretudos
, depressa formaram uma enorme pilha diante dele. No seu entusiasmo, um homem fi
cou completamente nu. Com um sorriso de satisfao, Gandhi pegou fogo quela
pirmide de
roupa "Made in England". > Os ingleses no tardaram a reagir. Se hesitavam em p
render Gandhi com medo de o transformar num mrtir, no se privaram de atacar
durame
nte os seus partidrios. Trinta mil pessoas foram presas, reunies e marchas
dispers
adas pela fora, as sedes do Congresso rebuscadas.
No dia 1 de Fevereiro de 1922, Gandhi comunicou atenciosamente por escrito ao vi
ce-rei que resolvera intensificar a sua actuao. Da no-colaborao ia passar
desobedincia
civil. Aconselhou os camponeses a fazerem a greve dos impostos, os citadinos a
no respeitarem as leis britnicas, os soldados a deixarem de servir a coroa. Era
um
a declarao de guerra no violenta que Gandhi fazia ao governo colonial das
ndias. "Os
ingleses querem obrigar-nos a desencadear a luta no campo das metralhadoras por
que tm armas e ns no, anunciou ele. A nossa nica possibilidade de vencer
conduzir a
luta para um campo onde ns temos armas e eles no".
Milhares de indianos responderam ao apelo. Milhares foram metidos na priso. Aterr
ado, o governador de Bombaim classificou esta empresa como "a experincia mais col
ossal da histria do mundo e que esteve beira de triunfar". Falhou contudo devido
a uma exploso de violncia sangrenta numa pequena aldeia a noroeste de Nova Delhi.
Contra os votos de quase todos os membros do seu partido, Gandhi deu contra-orde
m ao movimento: sentia que os seus partidrios no tinham compreendido bem a ideia
d
e no-violncia.
Vendo que este retrocesso o tornava mais vulnervel, os ingleses incriMinaram-no.
Gandhi declarou-se culpado perante a acusao de deciso e reclamou a pena mxima
num co
movente apelo aos seus juzes. Foi condenado a seis anos de cadeia na priso de
Yera
vda, perto de Poona. No estava arrependido de coisa nenhuma. "A liberdade, escrev
eu ele, deve com frequncia ser procurada nas prises, muitas vezes no cadafalso;
nu
nca nos conselhos, nos tribunais ou nas escolas."
1 Gandhi foi libertado por questes de sade antes do termo da sua pena e
recomeou
imediatamente as suas peregrinaes atravs da ndia, inoculando nas multides os
seus pri
ncpios de no-violncia a fm de impedir a repetio dos acontecimentos sangrentos
que o ti
nham forado a interromper a sua aco.
No fim de 1929, estava pronto para dar mais um passo em frente. Em
55
Lahore, ao bater da meia-noite, convenceu o partido do Congresso a fazer o voto
solene de conseguir o swaraj, a independncia total da ndia. Milhes de militantes
do
Congresso repetiram este juramento durante reunies em todo o pas. Um novo
confron
to com os ingleses tornava-se inevitvel.
Gandhi reflectiu longamente, esperando que a sua "voz interior" lhe indicasse a
maneira mais favorvel de conduzir a bom termo este confronto. A resposta assim co
nseguida-era a obra mais subtil do seu gnio criador, a mais espantosa provocao
polti
ca dos tempos modernos. A sua concepo era to simples, e a sua apresentao to
espetacula
r que Gandhi conquistou imediatamente popularidade mundial.
O seu desafio era paradoxalmente constitudo por um condimento alimentar a que o M
aliatitia renunciara havia anos na luta pela castidade, o sal. Embora Gandhi pud
esse privar-se dele, o sal constitua no clima trrido da ndia um ingrediente
vital d
a alimentao de todos os habitantes. Encontrava-se em interminveis dunas brancas
ao
longo da costa, dom da Providncia eterna, o mar. Mas o governo britnico detinha o
monoplio da sua distribuio e o seu preo era acrescido de uma taxa. Apesar de
mnima, e
sta taxa representava para um campons cerca de duas semanas de jorna.
No dia 12 de Maro de 1930 s 6 h 30 m da manh, as costas levemente curvas, o
habitua
l bocado de tecido branco em volta da cintura, Gandhi saiu do seu asbram frente
de um cortejo de setenta e nove discpulos, e ps-se a caminho em direco ao mar,
que f
icava a quatrocentos quilmetros dali. Milhares de simpatizantes acotovelavam-se p
ara o saudar ao longo da estrada que juncavam com um tapete de folhas. jornalist
as, vindos de todo o mundo, seguiam o avano da estranha caravana. De aldeia em al
deia, a multido renovava-se, ajoelhando passagem da "Grande Alma". Como um man
sob
re limalha, Gandhi arrastava dezenas de milhar de pessoas. A figura quase chapli
nesca da inslita silhueta semi-nua caminhando para o mar a fim de desafiar o
Impri
o britnico encheu dia aps dia a primeira pgina de todos os jornais do mundo e
foi t
ema dos filmes de actualidades de todas as salas de cinema. No vigsimo quinto dia
s seis horas da tarde Gandhi e o seu cortejo chegaram beira do oceano ndico,
pert
o da cidade de Dandi. No dia seguinte de madrugada, aps uma noite de orao, o
grupo
meteu-se na gua para um banho ritual. Depois, perante milhares de espectadores, G
andlil baixou-se e apanhou um punhado de sal misturado no cascalho. Com ar grave
e decidido, brandiu o punho antes de o abrir e mostrar multido o aglomerado de
c
ristais brancos, essa ddiva interdita do mar, que ia ser o novo smbolo da luta
pel
a independncia.
Em menos de uma semana, toda a pennsula ficou em efervescncia. De um extremo a
out
ro continente, os partidrios de Gandhi comearam a recolher sal e a distribu-lo.
O p
as foi invadido por folhetos explicando a maneira de purificar em casa o sal do m
ar. Em toda a parte acenderam-se
56
milhares de fogueiras para queimarem, numa espcie de arraial, todos os produtos i
mportados de Inglaterra. @ os ingleses responderam com a razia mais gigantesca d
a histria das ndias e meteram milhares de pessoas na priso. Gandhi foi uma
delas. @
A.ntes de ser reduzido ao silncio na sua cela de Yeravda, conseguiu enviar ~
ltima
mensagem aos seus partidrios. "A honra da ndia, dizia-lhes foi simbolizada por um
punhado de sal na mo de um homem da no-violncia. O punho que encerrou esse sal
pode
ser cortado, mas no largar o sal."
Durante trs sculos, no interior daquelas paredes da Cmara dos Comuns do
Parlamento
ingls, tinham sido ouvidos as vontades de um grupo de homens que construiram e go
vernaram o Imprio britnico. Os seus debates e decises dirigiam o destino de meio
mi
lhar de seres humatios dispersos por toda a superfcie do globo e impunham o
domnio
cristo branco de uma pequena elite europeia sobre mais de um tero dos
contnentes.
De gerao em gerao, os construtores do Imprio tinham subido,quela tribuna para
dali exp
licarem as grandiosas empresas que faziam da Inglaterra a nao mais poderosa do
mun
do. Testemunhas mudas destas grandezas passadas, as altas traves de carvalho tin
ham ouvido sucessivamente os discursos de William Pitt anunciando a anexao do
Cana
d, do Senegal, das Antilhas, da Florida, a colonizao da Austrlia e a partida
para a
volta ao mundo de um veleiro com as cores britnicas fretado pelo explorador James
Cook. Tinham ouvido Disraeli anunciar a ocupao do canal de Suez - a artria
vital l
igando a Inglaterra ao seu Imprio das ndias -, a conquista do Transvaal, a
submisso
dos zulus, a derrota dOs afgos e a apoteose do Imprio, a sua deciso de fazer
procl
amar Vitria Imperatriz das ndias. Tinham ouvido Joseph Chamberlain apresentar o
fa
moso projecto de envolver a frica numa cintura de ao britnico graOs ao caminho
de f
erro desde o Cabo ao Cairo.
Naquela tarde montona de Fevereiro de 1947, os membros da Cmara dos comuns
esperav
am na sombra glacial e melanclica do seu prestigioso recinto sem aquecimento que
o Primeiro ministro subisse tribuna Para pronunciar a orao fnebre do Imprio
britnico.
Nos bancos da Oposio sentava-se como uma figura de proa, Winston Churchill,
pesad
o bloco de granito metido num sobretudo preto.
Durante cerca de cinquenta anos desde que, jovem oficial de cavalaria <Jue abraar
a a carreira do jornalismo e da poltica, se tinha juntado s fileiras desta
assembl
eia, a sua voz encarnar ali o sonho imperial, como acontecera, durante a Segunda
Guerra mundial, a conscincia da Inglaterra e o catalizador da sua coragem.
Poltic
o de rara viso, mas inflexvel nas suas convices, Churchill dedicava ao Imprio
uma afe
io apaixonada.
57
E de todos os vastos e pitorescos territrios que o compunham, nenhum ocupava no s
eu corao lugar comparvel ao das ndias. Churchill amava as ndias com todas as
fibras d
o seu ser. Tinha prestado servio ainda muito jovem, como oficial do 4.' regimento
de Hussardos da rainha, e vivera todas as aventuras das personagens de Kipling.
jogara o polo nos relvados das suas maidan, perseguira os javalis lana e caara
o
tigre. Escalara as vertentes da passagem de Khyber e galopara contra os patans d
a fronteira de noroeste. Um gesto simbolizava a solidez dos laos que o ligavam
que
le pas: cinquenta anos aps a sua partida, ainda mandava todos os meses duas
libras
esterlinas a um antigo criado de Bangalore.
A esta paixo sentimental juntava-se uma f inabalvel na grandeza imperial.
Afirmara
constantemente que a posio da Inglaterra no mundo dependia do seu imprio. Aderia
co
m sinceridade ao dogma vitoriano que assegurava que "estes pobres povos privados
de leis" eram infinitamente mais felizes sob a autoridade da Inglaterra do que
sob o jugo de um bando de dspotas locais.
Nada podia alterar a fora da sua convico. O domnio da Gr-Bretanha nas ndias
fora sempr
e justo, exercdo no melhor interesse do pas; o seu povo dedicava aos senhores
amiz
ade e gratido; os agitadores polticos que reclamavam a independncia constituiam
ape
nas uma pequena minoria industriada e no exprimiam nem as aspiraes do povo nem
os seus interesses. Apesar de toda a lucidez de que dera prova durante tantas cr
ises mundiais, Churchll ficava cego e surdo perante o drama das ndias. Desde
1910,
lutara contra todos os esforos para levar este pas independncia. Desprezava
Gandhi
e a maior parte dos polticos indianos, que classificava de "homens de palha".
Mais do que qualquer outro deputado presente naquele dia, Churchill estava consc
iente da pressa demonstrada pelo Primeiro ministro que o substituira, neste desm
embramento do Imprio de que se recusara sempre a ser instrumento. Mas se tinha si
do batido - para espanto de todo o mundo - nas eleies de 1945, o velho leo
controla
va ainda uma maioria absoluta na Cmara dos Lordes, e esta vantagem dava-lhe o pod
er de retardar pelo menos dois anos o desfecho trgico. Cerrando os lbios, viu
subi
r tribuna o seu sucessor socialista.
A curta declarao que Clement Attlee se preparava para ler tinha, em grande parte,
sido redigida pelo jovem almirante que enviava s ndias, e de quem ia agora
revelar
o nome. Com a sua audcia habitual, Lus Mountbatten conseguira sobrepor o seu
prpri
o texto ao longo discurso que Attlee preparara. O novo texto definia em termos p
recisos a misso do vice-rei. Continha alm disso um esclarecimento que o almirante
achava fundamental, e sem o qual, pensava ele, o quebra-cabeas indiano no tinha a
menor probabilidade de ser resolvido. Mountbatten lutara seis semanas com Attlee
, para conseguir que este ponto fosse mencionado.
A friorenta assembleia ficou hirta quando Attlee comeou a ler a sua declarao
histric
a. "O governo de Sua Majestade deseja dar a conhecer
58
d# mente que sua firme inteno tomar as disposies necessrias para proceder
transfernc
da soberania das ndias.para as mos de uma @utoridade indiana responsvel em data
no
posterior ao ms de junho de#
Um silncio de espanto dominou os deputados enquanto cada um avaIjava a medida im
ediata destas palavras. Eles tinham conscincia das# conviAsoes da Histria,
conheci
am a orientao poltica deliberadamente @preparada pela Gr-Bretanha nas ndias,
mas nada
atenuou a melancolia que ficaram ideia de que o Imprio britnico das ndias no
tinha
,,mais de catorze meses de vida. Terminava uma era do destino da Inglaterra. O q
ue o Manchester Guardian classificava no dia seguinte como "o @maior descompromi
sso da Histria", estava a ponto de se realizar.
A imponente silhueta ergueu-se no banco da oposio quando chegou sua vez de
pronunc
iar um ltimo discurso a favor do Imprio. A tremer de frio e de emoo, Churchill
denun
ciou "a manobra do governo que se Servia de figuras ilustres da guerra para enco
brir uma triste e desastrosa _transao". Fixando um prazo to curto para abandonar
as
ndias, Attlee submetia-se a "uma das mais tresloucadas exigncias de Gandhi"
grita
ndo Inglaterra que partisse e @<abandonasse a ndia ao seu destino... com
profundo
desgosto, lamentou ele, que assisto ao desmantelar do Imprio britnico com todas
a
s suas glrias e todas as obras realizadas para o bem ,do humanidade. Muitos so
aqu
eles que defenderam a Gr-Bretanha contra os seus inimigos. Ningum pode defend-la
co
ntra si prpria ... Evitemos acrescentar a isto uma fuga vergonhosa, um naufrgio
rpi
do e prematuro. Evitemos pelo menos juntar aos abismos de tristeza sentida por g
ritos de ns, o perfume e o gosto da vergonha".
Estas palavras eram as de um mestre da eloquncia, mas no constituiam mais do que
u
ma tentativa de impedir que o Sol se escondesse. A hora do escrutnio, a Cmara dos
comuns ratificou a marcha da Histria. por uma maioria esmagadora, votou o fim do
reinado da Gr-Bretanha nas ndias com a data limite de junho de 1948.
Segunda escala da via dolorosa de Gandhi Estilhaos de garrajs e excrementos
Quanto
mais o seu pequeno grupo se embrenhava nos pntanos do distrito de Noakhali, mais
difcil se tornava a misso de Gandhi. O caloroso acolhimento por parte das
populaes
muulmanas dos primeiros povoados irritava fortemente os responsveis pelas aldeias
que ele se preparava agora para visitar. Achando que ele ameaava a sua prpria
auto
ridade, resolveram hostilizar os habitantes contra o Mahatma.
Naquela manh, dirigiu os passos para uma escola muulmana onde crianas de sete e
oit
o anos, acocoradas em volta do seu cheikh, seguiam
59
uma aula ao ar livre. Radiante de alegria como um av que encontra os netos prefer
idos, Gandhi precipitou-se para o grupo. Mas o cheikh levantou-se imediatamente
e com um gesto brusco e zangado, mandou as crianas entrarem para a sua cabana, co
mo se aquele velho fosse um feiticeiro que lhes viesse lanar mau olhado. Cheio de
espanto, Gandhi ficou em frente da cabana, fazendo tristes sinais com a mo s
cria
nas que distinguia na penumbra, recebendo em troca os seus olhares sombrios cheio
s de curiosidade. Depois levou a mo ao corao para os saudar com um "salm"
maneira muu
lmana. Nenhuma das crianas lhe correspondeu, Nem mesmo aqueles inocentes tinham o
direito de aceitar a sua mensagem de fraternidade. Com um doloroso suspiro, Gan
dhi deu meia volta e retomou o seu caminho.
Houve outros incidentes. Quatro dias antes, algum tinha sabotado as estacas de um
a ponte de bambu e corda de jura por onde Gandhi devia passar. Felizmente o crim
e fora descoberto antes da ponte abater e precipitar Gandhi e o seu grupo nas on
das lamacentas que delizavam cinco metros abaixo. Noutra manh, Gandhi encontrou,
pregados nas rvores muitos letreiros cobertos de slogans: "Vai-te embora... "Acei
ta o Paquisto".
Estas mensagens de dio deixavam-no indiferente. A fora fsica, a capacidade de
supor
tar os golpes sem protestar, de enfrentar resolutamente o perigo eram, segundo p
arece, as qualidades essenciais de um militante da no-violncia. Depois da lio
que re
cebera na frica do Sul quando o postilho branco de uma diligncia o quisera
atirar d
o lugar que lhe pertencia, o frgil homem dera muitas provas desta espcie de
corage
m.
Dominando o desgosto profundo de ver crianas fugirem dele, Gandhi seguiu a sua ma
rcha at aldeia prxima. A noite tinha sido hmida e fria e o orvalho tornava
escorreg
adio o estreito atalho por onde caminhava o pequeno grupo. De repente, todos par
aram enquanto Gandhi punha de parte a sua bengala de bambu e se inclinava para o
cho. Algum tinha espalhado no caminho por onde ele iria passar descalo,
estilhaos d
e garrafas e excrementos humanos. Gandhi cortou devagarinho uma folha de palmeir
a, abaixou-se e realizou humildemente o acto mais desonroso para um hindu de cas
ta; servindo-se da palma como se fosse uma vassoura, varreu o cho."
Esse faquir semi-nti"
Durante vrias dcadas, o adversrio britnico mais feroz daquele velho que varria
pacie
ntemente as imundices do seu caminho fora o invencvel tribuno da Cmara dos
comuns.
Todas as frases memorveis pronunciadas por Winston Churchill durante a sua carre
ira podiam encher um volume inteiro de antologia, mas poucas delas haviam tido n
a opinio pblica
60
to profunda ressonncia como a de que ele se servira para classificar "Gandh:
"Esse
faquir semi-nu". Fora por ocasio de um acontecimento que marcara uma viragem na h
istria do Imprio britnico. Era o dia 17 de Fevereiro de 1931. Amparando-se com
uma
das mos no seu bambu, segurando com a outra as pontas do chaile branco, o Mahatma
Gandhi subira nessa manh os degraus de tijolo vermelho do palcio do vice-rei das
n
dias. O seu rosto mostrava ainda as marcas das longas semanas que ele passara nu
ma priso <britnica. Mas no era um mendigo a pedir favores que se apresentava
perant
e o vice-rei - era a prpria ndia.
Brandindo o punho cheio de sal, Gandhi rasgava o vu do templo. O poio popular ao
s
eu movimento alastrara de tal forma que o vice-rei Lord lrwin se sentira obrigad
o a tir-lo da priso e a convid-lo a ir a Nova Delhi a fim de negociar com ele na
qu
alidade de lder reconhecido das aspiraes nacionais. Gandhi era, em 1931, o
primeiro
dessa cadeia de revolucionrios - lderes rabes, africanos ou asiticos - que
seguiria
m um dia o mesmo caminho que leva de uma priso inglesa a uma sala de conferncias.
Winston Churchill compreendera o alcance deste encontro. No clebre J ftcinto onde
no desistia de se revoltar contra o abandono das ndias por parte da Inglaterra,
c
ensurara "o espectculo nojento e humilhante desse smitico advogado do tribunal de
Londres, agora faquir sectrio, subindo# meto nu os degraus do palcio do vice-rei
para discutir e negociar de igual para igual com o representante do rei-imperado
r". "A perda das ndias, gritara ele com uma clarividncia que se antecipava ao
disc
urso que havia de pronunciar dezasseis anos mais tarde, seria para ns um golpe fa
tal e definitivo. Ela faz parte de um processo que nos reduziria a uma nao
insigni
ficante."
Este apelo no teve o mais pequeno eco em Nova Delhi. As negociaes desenrolaram-
se d
urante trs semanas, constando de oito entrevistas, e terminaram por um acordo con
hecido pelo nome de "Gandhi-Irwin Pact". Este pacto, semelhante em todos os pont
os a um tratado entre duas Potncias soberanas, dava a medida da vitria alcanada
por
Gandhi. O Vice-rei aceitava libertar os milhares de indianos que tinham acompan
hado o seu chefe na priso. Gandhi concordava por seu turno em suspender a campanh
a de desobedincia e a tomar parte numa mesa redonda em Londres, a fim de discutir
o futuro das ndias.
Ningum beneficiaria mais deste acordo do que um jovem estudante sikh chamado Gurc
haran Singh. De mos atadas atrs das costas, Gurcharan Singh seguia nessa manh
por u
m comprido corredor da priso de Labre ao fim do qual o esperava o carrasco e a fo
rca britnicos que deviam pr termo sua existncia de patriota revolucionrio.
Quando Gu
rcharan Singh j avistava o patbulo, ouviu atrs dele passos precipitados.
Voltando-s
e, viu chegar o major que dirigia a priso.
- Parabns! - gritou-lhe este mostrando uma folha de papel azul.
61
Oito meses depois, em Outubro de 1931, com espanto de toda a Inglaterra, o Mahat
ma Gandhi, usando sempre um pano de algodo e sandlias - retrato vivo do Gunga Din
de Kiling que "no usava quase nada pela frente e ainda menos por trs" -, dirigia-
s
e ao palcio de Buckingham para tomar ch com o rei-imperador. Interrogado sobre a
r
azo da sua vestimenta, Gandhi respondeu com malcia que "Sua Majestade tinha fatos
por ns dois".
A publicidade que envolveu este encontro traduzia o verdadeiro alcance da visita
do Gandhi a Londres. Todavia, a conferncia no teve xito. A Inglaterra ainda no
esta
va preparada para aceitar a independncia das ndias. Gandhi sempre afirmara que a
v
erdadeira vitria "ser ganha fora da sala de conferncias... semeando agora as
sement
es que adoarao um dia a atitude britnica". A imprensa e a opinio inglesas
apaixonar
am-se por aquele estranho homenzinho que pretendia deitar abaixo o Imprio, oferec
endo s pancadas a outra face.
Sara do navio vestido apenas com o seu pano, amparado ao bambu, sem oficial s
orde
ns, sem criados, sem guardas. Apenas alguns discpulos e uma cabra desceram a pont
e atrs dele, uma cabra que fornecia ao Mahatma a sua tijela de leite diria.
Despre
zando os hotis, instalou-se num bairro pobre de East End. Aquele que fora, naquel
a mesma cidade, um estudante incapaz de articular trs palavras revelava agora uma
eloquncia inesgotvel. Falou com mineiros, com crianas, conheceu Bemard Shaw, o
arc
ebispo da Canturia, Charlie Chaplin, os operrios das fbricas texteis de
Lancashire
que os seus companheiros na ndia tinham reduzido ao desemprego: em resumo, toda a
gente, excepto Winston Churchill que se recusou obstinadamente a receb-lo, da
no-
violncia. A ironia do destino quis que fosse ele quem recolheu nos braos, hora
da
morte, aquele que lhe salvara a vida.
Gandhi causava uma forte impresso. Os filmes de actualidades sobre a Marcha do sa
l j o tinham tornado clebre. Para as multides inglesas vtimas do mal-estar
industria
l, do desemprego e das graves injustias sociais, aquele emissrio do Oriente
vestid
o como Cristo, portador de uma mensagem de amor, era uma personagem ao mesmo tem
po fascinante e inquietante. Mais tarde, o prprio Gandhi explicou a razo desse
fas
cnio num discurso feito na rdio americana. A ateno dada era atrada pela luta
das ndias
pela independncia, declarou ele, "porque os meios que O jovem Sikh perdeu a calm
a.
- No lhes falta cinismo, gentleman - berrou ele - vo enforcar-me e do-me os
parabns!
O oficial ingls anunciou-lhe que todas as execues capitais tinham sido suspensas
de
pois de um pacto recentemente assinado em Nova Delhi.
Gurcharan Singh foi liberto algumas semanas mais tarde. A primeira coisa que fez
foi uma peregrinao ao asbram de Gandhi. O ardente revolucionrio ficou fascinado
co
m o Mahatma. jurou seguir-lhe os passos e tornou-se adepto.
62
i# -liemos para obter essa liberdade so nicos... O mundo est farto de ver
sangue. Pr
ocura sair desse pesadelo e agrada-me crer que ser ver# co talvez privilgio da
vel
ha terra indiana apontar uma sada ao mundo sequioso de paz". Mas por enquanto, o
Ocidente ainda no estava maduro. Em vsperas de nova guerra mundial, uma cabra
pare
cia-lhe uma arma menos eficaz do que uma metralhadora. Todavia, quando tornou a
partir, o trajecto do caminho de ferro que o levava ao porto de Brindes, milhare
s de franceses, de suos e de italianos acorreram na esperana de verem a frgil
silhue
ta janela da carruagem de III classe. Em Paris, uma multido to compacta
invadira a
gare do Norte, que Gandhi teve de subir para um vago de bagagens a fim de discur
sar. Na Sua, onde foi recebido pelo seu amigo Romain Rolland, o sindicato dos
lote
iros de Lnian reivindicou a honra de alimentar o "rei das ndias". Em Roma, avisou
Mussolni de que o fascismo "cairia como um castelo de cartas" e chorou perante o
Cristo na cruz da capela Sixtina.
Apesar desta travessia triunfal da Europa, Gandhi chegou ao seu pas cheio de
mgoa.
"Volto de mos vazias", anunciou ele multido de admiradores que o esperavam
chegad
a a Bombaim. A ndia teria de voltar desobedincia civil. Passado menos de um
ms, o h
omem que tomara ch com o rei de Inglaterra no palcio de Buckingham era novamente
hs
pede de Sua Majestade imperial, numa cela da priso de Yeravda.
Durante os trs anos seguintes, O Mahatma sofreu frequentes prises `enquanto em
Lon
dres Churchill gritava que era preciso "esmagar Gandh e@tudo o que ele representa
va". Apesar destas declaraes, os ingleses propuseram um plano de reforma que
deleg
ava nas provncias indianas uma parte da autoridade central. Numa das suas sadas
da
priso, Gandhi resolveu abandonar temporariamente a aco poltica para se dedicar
a du
as# que tinham tentado sempre no seu corao sobrepor-se luta pela -Uberdade: a
misri
a de milhes de intocveis e a situao das aldeias indianas.
A aproximao da Segunda Guerra mundial fortalecia o seu ideal de no-violncia, o
nico c
apaz de salvar o homem da destruio. Quando Mussolin invadiu a Etipia, Gandhi
estimu
lou os etopes "a deixarem-se massacrar". O resultado, explicou ele, ser mais
frutfe
ro do que a resistncia, porque "afinal, Mussolim no vai querer ocupar um
deserto".
No dia seguinte a Munique, aconselhou os checos a "recusarem-se a obedecer vont
ade de Hitler, sujeitando-se a morrer na sua frente de mos vazias". Horrorizado c
om as perseguies aos judeus, exclamou: "Se alguma vez pode haver na histria da
huma
nidade uma guerra Justificvel, ser uma guerra contra a Alemanh para impedir o
aniqu
ilamento insensato de uma raa inteira." Todavia, acrescentou, "no acredito na
guer
ra". Em seu lugar, propunha "a resistncia calma e decidida de homens e mulheres d
esarmados, recebendo de Jeov a fora para sofrer. Essa atitude obrigaria os
alemes a
respeitarem a dignidade humana". A Persistncia da selvageria dos nazis perante a
entrada resignada, alguns
63
anos mais tarde, de seis milhes de judeus nas cmaras de gaz desmentiria
cruelmente
as utpicas esperanas de Gandhi.
Quando finalmente a guerra estalou de facto, Gandhi orou para que pelo menos pud
esse surgir do holocausto, como um romper de Sol, alguma atitude heroica, o sacr
ifcio no violento que iluminasse o caminho da humanidade e lhe permitisse escapar
de Caroe pela sua provncia fronteiria. A sua devoo era to completa, que os
seus detra
ctores acusavam o velho celibatrio de ter casado com o seu Panjab "ao ponto de se
esquecer que o resto das ndias existia". Qualquer soluo do problema indiano,
decla
rou ele, arrastaria por fora perturbaes na sua provncia. Seria necessrio pelo
menos u
m corpo de exrcito para manter ali a ordem, no caso de se decidir a Partilha. "
ab
surdo prever que o Panjab se ponha a ferro e fogo se for dividido, concluiu, por
que j est a ferro e fogo."
O governador Sir Frederick Burrows estava doente, mas o relatrio sobre a situao
no
Bengal apresentado pelo seu adjunto era em todos os pontos to alarmante como os d
ois anteriores.
Quando esta panormica termInou, Mountabatten mandou distribuir a cada governador
um documento contendo, explicou, as grandes linhas "de um dos planos em estudo p
ara resolver a situao". Para "facilidade de designao", dera-lhe o nome de
"Plano Bal
cans". Era o esboo do plano de Partilha das ndias que o vice-rei pedira uma
semana
antes ao seu chefe de gabinete Lord Ismay.
Uma onda de choque pareceu percorrer a assembleia enquanto os governadores folhe
avam as primeiras pginas. Ao mesmo tempo construtores e defensores da unidade das
ndias, aqueles homens tinham dedicado a vida luta para a consolidar e agora a
Gr-
Bretanha pretendia destrui-la.
O plano - cujo nome era inspirado pela fragmentao dos Balcans num cardume de
Estad
os aps a guerra de 14-18 - dava a cada uma das onze provncias indianas a escolha
d
e se integrar quer no Paquisto, quer na ndia; ou ento, se a maioria dos
habitantes
hindus e muulmanos o resolvessem, de se tornar independente.
Mountbatten acentuou que "no abandonaria negligentemente toda a esperana de
conser
var a unidade das ndias". Queria que o mundo inteiro soubesse bem que os ingleses
faziam tudo o que estava ao seu alcance para a salvaguardar. Mas se a Gr-Bretanh
a falhasse, era essencial que o mundo soubesse igualmente que era " a opinio indi
ana e no uma deciso britnica que ditara a escolha da Partilha". Quanto a ele,
acred
itava que o Paquisto seria um Estado to pouco vivel que os seus responsveis no
tardar
iam em querer voltar "ao seio de uma ndia reunificada".
Os onze homens, personificaes da sabedoria colectiva que governara as ndias
durante
um sculo, receberam esta perspectiva sem entusiasmo: segundo eles a Partilha no
p
odia trazer a soluo do dilema indiano. Todavia, no se opuseram. Na realidade,
no tin
ham nada a propor.
Nessa noite, na sala de banquetes do palcio, onde os retratos dos
111
dezanove vice-reis das ndias pareciam contempl-los como juzes vindos do passado,
os
governadores, acompanhados das esposas, encerraram a sua ltima conferncia com um
banquete solene presidido por Lord e Lady Mouritbatten. No final, os criados tro
uxeram garrafas de Porto. Quando todos os copos estavam cheios, Lord Mountbatten
, de p, levantou o seu. Ningum se apercebia ainda, mas com este gesto, terminava
u
ma era. Nunca mais um vice-rei das ndias proporia os seus governadores a sade que
Mountbatten fazia agora ao seu prprio primo:
- Ladies and Gentlemen, to the King-Emperor!
O impressionante cone branco do Naga Parbat enquadrou-se nas vigias do avio. Apon
tava para o cu o vertiginoso cume de oito mil metros dominando orgulhosamente os
outros picos. Em toda a linha do horizonte, os passageiros podiam admirar as ver
tentes nevadas de uma das maiores cadeias de montanhas do munddo, o Hindu-kush,
muralha formidvel que separa o sub-continente indiano da imensidade das estepes r
ussas. O aparelho virou para o sul, e sobrevoou a serpente cintilante do Indo pa
ra comear a descida em direco s paredes de terra batida e dos telhados de adobe
que
envolviam a cidade de Peshawar, capital da Provncia fronteiria do Nordeste.
Quando o avio entrava na pista, os viajantes viram uma multido em marcha ladeada
p
or um simples cordo de polcia em redor do aeroporto. Mountbatten decidira
suspende
r temporariamente as negociaes no seu escritrio climatizado de Nova Delhi, para
ir
tomar a temperatura poltica das duas provncias mais perturbadas, o Panjab e a
Provn
cia fronteiria do Nordeste. A notcia da sua visita espalhara-se como um rastilho
d
e plvora por toda a regio. Havia vinte e quatro horas, alvoroados pelos
militantes
da Liga muulmana de Jinnah, dezenas de milhar de homens dirigiram-se a Peshawar.
Vindos em camies, em autocarros, a cavalo, a p, em tonga, em comboios especiais,
c
antando e brandindo as suas armas, espalhavam-se pela capital da provncia para se
entregarem maior manifestao popular da sua histria Estes gigantes de pele
clara da
s belicosas tribus patans preparavam-se para oferecer a Mountbatten uma recepo
ine
sperada. Enervados pelo calor e pela poeira, passando frente dos que os conduzia
m, vibravam no mesmo desejo frentico de gritar o seu apoio causa do Paquisto. A
po
lcia conseguira canalizar esta torrente para a vasta esplanada entre a via frrea
e
as muralhas do velho forte mogol de Peshawar. Mas na sua impacincia crescente, a
meaavam a todo o momento perturbar a visita do vice-rei e da esposa com disparos
de espingarda.
A presena destas multides em Peshawar era devida situao poltica paradoxal da
provncia
fronteiria. Apesar de ser noventa e trs por cento muulmana, a sua populao
votara semp
re a favor do partido Indu
112
do Congresso. O lider local era um chefe tribal muulmano chamado Abdul Ghaffar Kh
an, um colosso barbudo que fazia lembrar um profeta# rado a sua vida pregao da
men
sagem Velho Testamento. Tinha consagrado de amor e no-violncia de Gandhi queles
gue
rreiros para quem a vingana do sangue era uma tradio sagrada. Alcunhado "o
Gandhi d
a "Fronteira", esta personagem singular mantivera o apoio popular at ao dia em qu
e, fiel ao Mahata, se revoltara contra a pretenso do Jinnha de ,criar um Estado m
uulmano. Influenciada pelos agentes da liga muulmana, a populao tinha-se
finalmente
revoltado contra Abdul Gaffar Khan e o governo provincial que ele nomeara em Pah
awar.
A presena desta multido# ululante que viera receber Mountbatten, a esposa e a
filh
a Pamela, de dezassete anos de idade, provava que era Jinnah e no "o Gandhi da Fr
onteira" quem tinha agora os sufrgios desta provincia.
Visivelmente inquieto, o governador Sir Olaf Caroe apressou-se a conduzir os vis
itantes a sua residncia sob uma forte escolta. Cem mil manifestantes ocupavam a e
splanada prxima, prontos a explodir. Se chegassem a isso, as foras de segurana
no po
deriam fazer outra coisa seno abrir fogo. Da resultaria um massacre, afogando num
mar de sangue as esperanas trazidas pelo reinado de Mountbatten.
Contra a opinio dos chefes da polcia e do exrcito que achavam este projecto uma
ver
dadeira loucura, o governador sugeriu ao vice-rei que se Mostrasse multido para
t
entar acalm-la. "De acordo, vou correr o risco "respondeu Mountbatten. Para deses
pero dos responsveis da segurana, Edwina exigiu acompanh-lo.
Alguns minutos mais tarde, um `ipe deixava-os com o governador junto da linha do
caminho de ferro. Mountbatten deu a mo mulher e escalaram ambos o montculo. A
seg
uir a este pequeno dique, descobriram aos ps a multido ululante e hostil. O cho
tre
mia sob os ps dos manifestantes cujos gritos e excitao exprimiam a violncia das
paixe
s que agitavam nessa Primavera as multides indianas desesperadas. Nuvens de poeir
a subiam no ar; os gritos agitavam a atmosfera saturada de calor.
Lord e Lady Mountbatten sentiram por momentos vertigens. Tinha chegado a hora da
verdade para a operao Seduo, uma hora em que tudo podia sossobrar.
observando as duas figuras que enfrentavam a multido, Sir Olaf aroe sentiu o
corao
apertar-se. Havia ali talvez vinte, trinta ou quarenta mil espingardas. Bastava
um louco, um esquisofrnico para abater o Vice-rei e a esposa "como patos num tanq
ue". Durante segundos interminveis, Caroe julgou que "as coisas iam correr mal".
Mountbatten parecia hesitar. No sabia uma s palavra de pshtu, a lngua dos
patans. M
as de repente, deu-se uma viragem inesperada na situao.
Para aquele encontro improvisado com os guerreiros mais ferozes do Imprio, o acas
o quisera que o vice-rei tivesse vestido o uniforme de tecido
113
leve que usara quando fora comandante supremo interaliado na Birmnia. Era a cor d
este traje que iria evitar a tragdia: o verde, a cor do Islo, o verde sagrado dos
Hadjis, os santos homens que tinham feito a peregrinao a Meca. Os amotinados, a
ma
ior parte dos quais usava o uniforme dos "Camisas verdes", viram provavelmente n
a escolha daquele vesturio a vontade de se solidarizar com a sua causa, uma delic
ada homenagem prestada sua religio. Acalmaram-se imediatamente, e a esplanada
fic
ou em silncio atento.
Sempre segurando a esposa pela mo, Mountbatten segredou-lhe: "Faz-lhes um aceno".
Lenta e graciosamente, Edwina ergueu o brao ao mesmo tempo que ele em direco ao
ma
r de gente. Enquanto as duas mos se agitavam devagar no ar escaldante, ouviu-se d
e sbito um imenso e interminvel clamor uma litania triunfal que transformava em
ap
oteose os segundos mais perigosos da operao Seduo."
Moiintbatten zindabad! gritavam os ferozes guerreiros patans, Mountbatten zindab
ad - Viva Mountbatten!"
Quarenta e oito horas depois desta confrontao, Lus e Edwina Mountbatten
aterravam e
m Panjab. Sir Evan Jenkins levou-os imediatamente at uma pequena aldeia a quarent
a quilmetros de Rawalpindi. O vice-rei ia poder verificar in loco a justificao
do g
rito de alarme lanado catorze dias antes pelo governo, e descobrir com os seus
prp
rios olhos a atrocidade da tragdia que se preparava naquela Primavera cruel de 19
47.
Quando jovem capito de fragata Mountbatten tinha visto desaparecer muitos dos seu
s companheiros no naufrgio do seu destroyer ao largo de Crera; comandante de guer
ra, dirigira milhes de combatentes atravs da inspita selva birmanesa. Todavia,
nada
igualava em horror o espectculo que se patenteava aos seus olhos naquela aldeia
de trs mil e quinhentas almas, igual a outras quinhentas mil aldeias indianas. Du
rante sculos, dois mil hindus e# slkhs tinham ali coabitado em paz com mil e quin
hentos muulmanos. O elegante minarete da mesquita e a torre arredondada do gitrit
-dwara sikh eram hoje os nicos vestgios do que fora Kahuta.
Algum tempo antes da visita de Mountbatten uma patrulha britnica do Nor `folk Re
giment pudera constatar, certa noite, durante uma misso de reconhecimento, que os
aldeos dormiam descansados na paz e confiana mtuas do seu bom entendimento. No
dia
seguinte de manh, Kahuta deixara de existir. Os hindus e os sikhs estavam todo o
s mortos, Ou tinham desaparecido.
Uma horda de muulmanos tinha assaltado a aldeia, pegando fogo s casas; famlias
inte
iras tinham morrido nas chamas. Os que conseguiram fugir, foram apanhados, atado
s uns aos outros, regados com gasolina e queimados vivos. Arrancadas da cama par
a serem violadas e convertidas fora ao islamismo, algumas mulheres hindus
sobrevi
veram. Outras conseguiram escapar aos raptores para se irem lanar nas chamas e mo
rrerem ,com as famlias. Impossvel de dominar, o incndio atingiu o bairro
muulmano e
acabou por fazer desaparecer Kahuta."
Antes de ir a Kahuta, escreveria Mountbatten ao governo de Londres, no tinha aval
iado a amplitude das abominaes que se praticam aqui."
O seu encontro com as massas de Peshawar e o espectculo de uma aldeia devastada d
o Panjab, davam-lhe a ltima confirmao de que precisava: a opinio que formara
aps dez
dias de consultas em Nova Delhi estava certa. A rapidez era a condio essencial
par
a a resoluo da situao indiana. Se no agisse imediatamente, o pas ia sossobrar
no caos,
arrastando na sua queda o Imprio e o seu vice-rei. Para sair do impasse, era pre
ciso adoptar com urgncia a soluo que pessoalmente repugnava mas que as
circunstncias
impunham - a Partilha.
Quinta escala da via dolorosa de Gandbi Um homem s com o seu sonho desfeito
A longa via dolorosa do Mahatma Gandhi tinha recomeado. Nessa noite de 1 de Maio
de 1947, a nova escala era aquele mesmo pardieiro do bairro dos Intocveis de Nova
Delhi onde, quinze dias antes, tinha sem xito aconselhado os companheiros a dare
m a jinnah a ndia inteira para talvar a todo o custo a sua unidade. Sentado no
cho
mais uma vez, com Uma toalha hmida sobre o crneo, o velho profeta assistia agora
aos de antes dos chefes do Congresso reunidos em sua volta. Iniciada durante a r
eunio anterior, a rutura definitiva era inevitvel. Os longos anos de priso as
penos
as greves da fome, os bartal de luto e de silncio, as campanhas de boicote tinham
marcado outras tantas etapas no caminho que terminava por esta derrota. Gandhi
transformara a face da ndia e pregara uma das doutrinas mais originais do seu tem
po para conduzir o seu povo # por meio da no-violncia; e agora essa vitria
sublime a
meaava transformar-se em conflito pessoal. Com a coragem e a pacincia esgo os
comp
anheiros estavam prontos a aceitar a diviso da ndia como ndio infalvel da sua
indepen
dncia.
Gandhi no se opunha Partilha por qualquer venerao mstica a da unidade
indiana. Mas o
s anos passados nas aldeias tinham-lhe dado um conhecimento profundo da alma ind
iana, que no podia ter nenhum dos polticos de Nova Delhi. Sabia que a Partilha
no p
odia ser essa simples "operao cirrgica" que jinnah propusera a Mountbatten.
Seria u
m massacre gigantesco que iria lanar uns contra os outros, desconhecidos, mas tam
bm vizinhos, amigos e colegas atravs de toda a pennsula. Correria sangue em nome
de
uma causa odiosa e intil, a diviso do pas em dois blocos inimigos condenados a
dev
orarem-se um ao outro. E esta luta nunca mais teria fim.
O drama de Gandhi era no ter outro caminho a propor aos companheiros seno
obedecer
em ao seu instinto, aquele instinto que no passado os guiara tantas vezes para a
luz. Ora o velho profeta deixara de o ser aos seus olhos. Com Mountbatten, todo
s sentiam que estava iminente uma catstrofe e que a Partilha, por mais dolorosa q
ue fosse, era a nica forma de lhe escapar.
Gandhi acreditava com todas as fibras do seu ser que eles estavam enganados. E,
de qualquer forma, na sua opinio era prefervel o caos Partilha. Jintiah no
consegui
ria o seu Paquisto, a no ser que os ingleses lho dessem, proclamava ele, e no
lho d
aro se esbarrarem com a oposio de uma maioria do Congresso. Digam aos ingleses
para
se irem embora, sejam quais forem as consequncias da sua partida, pediu ele. Dig
am-lhes que abandonem a ndia "a Deus, ao caos, anarquia, ao que quiserem, mas
que
se vo embora". "Caminharemos sobre as chamas, mas seremos purificados por elas".
A sua voz pregava a partir de agora no deserto. Os discpulos fiis surdos s suas
exo
rtaes. Persuadidos de que a secesso dos muulmanos s podia favorecer o
desenvolvimento
de uma ndia hindu, muitos estavam de longa data inclinados ideia de uma
partilha
.
Dividido entre o seu profundo afecto por Gandhi e a admirao por Mountbatten,
Nehru
no sabia que fazer: o Mahatma falava com o corao, o vice-rei com a razo. Se
por ins
tinto, Nehru odiava a ideia da Partilha, o seu esprito racionalista dizia-lhe que
era o nico caminho. Depois que chegara mesma concluso, Mountbatten tinha, com
a a
juda da esposa, desenvolvido todo o seu poder de persuaso e o seu encanto para le
var a concordar com ela o seu amigo hindu. Servira-se para tanto de um argumento
capital: livre de Jinnah e dos muulmanos, a ndia podia escolher o governo forte
d
e que Nehru precisava para construr um Estado socialista.
A adeso de Nehru arrastou a dos outros chefes do partido. O Primeiro ministro ind
iano foi encarregado de informar o vice-rei de que o Congresso "embora continuas
se apaixonadamente ligado ao princpio da unidade das ndias", aceitava a Partilha,
com a condio de as duas grandes provncias do Panjab e do Bengal serem divididas.
Abandonado pelos seus, Gandhi ficou szinho com o seu sonho desfeito.
No dia seguinte ao 2 de Maio de 1947 s 18 horas, exactamente quarenta dias aps a
a
terragem em Nova Delhi, o York MW 102 voava para Londres levando o director do G
abinete de Mountbatten. Lord lsmay ia submeter aprovao de Sua Majestade um
plano p
ara a partilha das Indias.
Todos os esforos do vice-rei para preservar a integridade do continente
116
indiano tinham finalmente esbarrado perante a intransigncia de jinnah. Mountbatte
n continuava a ignorar a existncia do nico elemento que teria podido modificar a
s
ituao, a doena de que morreria o lder muulmano. Durante o resto da vida,
consideraria
a sua impotncia em convencer Jinnah como o nico fracasso da sua carreira. A
angsti
a que sofria ideia de ficar na Histria como o autor da partilha das ndias
exprimia
-se num documento levado tambm por Ismay. Era o quinto relatrio do ltimo vice-
rei d
as ndias ao governo de Clement Attlee."
A Partilha, escreveria Mountbatten, uma autntica loucura, e ningum poderia
obrigar
-me a aceit-la se a incrvel demncia racial e religiosa que se apossou aqui de
todos
no tivesse cortado qualquer outra sada. A responsabilidade desta deciso
insensata
deve ser claramente atribuda, perante os olhos do mundo, aos indianos, porque ele
s lamentaro amargamente um dia a escolha que esto prestes a fazer".
117
Captulo sexto"
UMA FERIDA POR ONDE SE PERDERA o MELHOR SANGUE DA NDIA"
Naquele dia no era necessrio nenhum aparelho de climatizao: a vista que Lus
Mountbatt
en descortinava das janelas do seu novo escritrio, bastava para o refrescar. Eram
os cumes nevados do Himalaia, o "Tecto do Mundo", essa muralha de gelo que sepa
ra a ndia do Tibet e da China. O espectculo vivificante das vertentes verdes
atape
tadas de abrteas e jacintos, de florestas de conferas que escondiam tufos
esbrazea
dos de rododendros, repousavam-no da luz diablica da capital atabafada de calor.
Esgotado pelo trabalho das ltimas semanas, Mountbatten observara a tradio dos
seus
antecessores abandonando Nova Delhi e tirando #ente do Imprio das ndias, uma
prove
ito da instituio mais surpreend pequena cidade britnica p1 antada nos
contrafortes
do Himalaia: Simla.
Havia mais de um sculo, todos os Veres, este grande burgo aninhado a dois mil
metr
os de altitude transformava-se durante cinco meses em capital imperial. Era um l
ugar encantador com o seu coreto de pilares de ferro forjado, os chals com janela
s de vidros pequenos, e o campanrio Tudor da catedral anglicana cu'o sino era fei
to, ao estilo marcial do cristianismo vitoriano, com o bronze fundido dos canhes
capturados durante as guerras contra os sikhs. A mil e quinhentos quilmetros do m
ar, servdo por um carreiro de via nica, praticamente inacessvel de automvel,
este ap
razvel pedao de campo ingls dominava altivamente as plancies tarridas e super-
povoad
as das ndias.
Em meados de Abril, assim que vinham os grandes calores, o vice-rei partia para
Simila no seu comboio especial branco e dourado. Todo o Imprio se deslocava com e
le para a capital de Vero: os esquadres da sua > guarda, os ajudantes de campo,
os secretrios, os generais, os principes mais importantes, os embaixadores estran
geiros, os correspondentes de imprensa os altos funcionrios do governo e a
multido
inumervel dos seus subordinados. Seguia-se um exrcito de alfaiates,
cabeleireiros
, sapateiros, ourives, "By Appointment to H. E. Tbe Viceroy", negociantes de vin
hos e alcois, de# memsabib ingleses, com as suas pirmides de malas, as legies de
cr
iados e as suas turbulentas progenituras. At 1903, a linha de caminho de ferro te
rminava em Kalka e os viajantes tinham que tomar tongas de dois cavalos para os
sessenta ltimos quilmetros da escalada at Sinila. Os cofres dos arquivos eram
trans
portados em carros de bancos Ou s costas de homens. Em colunas interminveis, o
dor
so curvado sob a carga, os cules levavam uma quantidade incrvel de caixotes cheio
s de conservas, de foie gras, de lagostins, de salsichas, de vinho de Bordus,
119
champanhe, e sherry destinados s festas que tornariam a estncia de Simia num
paraso
de requinte e elegncia sem rival no Oriente.
No interior da cidade, o martelar dos cascos de cavalo ou o estalar dos motores
eram substituidos pela frico regular dos ps de centenas de cules. O protocolo
exigi
a que apenas trs carros a cavalos, e mais tarde a motor, pudessem circular dentro
da cidade: os do vice-rei, do comandante chefe do Exrcito das ndias e do
governad
or do Panjab. Nem mesmo Deus tinha conseguid@ autorizao de andar de automvel em
Sit
rila, dizia uma brincadeira local. Os veculos de uso eram os rickshaw. Eram carro
s confortveis "e no caranguejolas com bancos que do cabo dos ossos", recorda um
dos
seus proprietrios. Eram precisos quatro homens para o puxar nas ruas ngremes. Um
quinto homem ia a correr ao lado, descalo como os companheiros e pronto para subs
tituir um deles.
Embora lhes proibissem o uso de calado, os patres rivalizavam em luxo o traje dos
seus cules. O vice-rei tinha o exclusivo da cor escariate. Um escocs resolvera ve
sti-los com o kilt, uma outra famlia mandara fazer-lhes fardas diferentes para de
dia e para a noite. Todos usavam no peito uma placa de prata com as armas da ca
sa que serviam gravad `as. Os cules de Sinila morriam cedo, a maior parte d
as vezes de tuberculose.
As festas onde conduziam os patres eram sumptuosas; as mais grandiosas eram todav
ia sempre as dadas em Viceregal Lodge, o palcio do vice-rei, centro da nobreza im
perial e templo do aparato. Uma roseta presa ao varal do seu rickshaw distinguia
os convidados, dos quais apenas alguns tinham direito ao porto de honra. Todos t
inham porm a certeza de nunca ali encontrarem cidados do pas sobre que reinavam
do
alto do seu olimpo. "No se pode imaginar o ambiente em volta de Viceregal Lodge n
uma noite de baile, conta com nostalgia uma testemunha. Com as pequenas lamparin
as de azeite a brilhar no escuro, as longas filas de rickshaws seguiam para o pa
lcio no meio do roagar abafado de centenas de ps descalos."
O outro polo da vida mundana era o holtel Cecil, cuja hospilidade era considerad
a uma das mais faustosas do mundo. Todas as noites s 2O h. 15, um criado de turba
nte percorre os corredores cobertos de grossas alcatifas, tocando a sineta para
o jantar, como nos paquetes da Peninsidar and Orient Oriental. Os homens casaca
e as senhoras em traje de noite desciam ento para tomar lugar nas mesas cobertas
de baixela de Mappin Webb, loia de Dalton e copos de cristal da Bomia sobre
toalha
s de bordado irlands. Em frente de cada talher perfilavam-se cinco copos - para c
hampanhe, whisky, vinho de Bordus, Porto e gua.
O centro de Simila era o MalI, larga avenida que atravessava a pequena cidade de
um extremo ao outro, ostentando uma srie de lojas, de bancos e de salas de ch.
Os
passeios e as caladas estavam to cuidadosamente cobertos de tijolos como o
palcio
do vice-rei. No meio, erguia-se a catedral anglicana onde, todos os domingos, o
vice-rei e a vice-rainha, acompanhados por toda a colnia britnica iam ouvir os
psa
lmos do servio
120
I,,:# cantados pelas "nicas vozes apropriadas - vozes inglesas". At Primeira
Guerr
a mundial, o Mall era interdito aos indianos. Esta segregao tinha um carcter
simblic
o. A migrao anual at s alturas de Simila representava muito mais do que um rito
da e
stao. Levava consigo a subtil confirmao da superioridade racial da Inglaterra,
da gr
aa da Providncia que permitia aos ingleses viverem fora dos formigueiros humanos
q
ue pululavam a seus ps nas plancies ridas.
Vrios aspectos desse Simla de outros tempos haviam j desaparecido quando Lus
Mountb
atten a se instalou em princpios de Maio de 1947. A guerra tinha posto termo s
desl
ocaes de Vero do governo das ndias. Presentemente, um indiano podia at
circular no Ma
il, com a condio de > no usar o traje tradicional do seu pas'.
Embora estivesse esgotado, Mountbatten tinha fortes razes para estar de excelente
humor. No terminara em seis semanas o que os seus antecessores no haviam
consegui
do em anos? Apresentara ao governo de Londres um plano que proporcionava Gr-
Breta
nha um meio de se livrar com honra do vespeiro indiano, e aos indianos uma soluo
q
ue, embora penosa, desobrigava o seu futuro. Tendo obtido de Attlee poderes exce
pcionais, no fora obrigado a conseguir o acordo formal dos dirigentes indianos an
tes de enviar o seu plano a Londres. Limitara-se a garantir ao governo de Clemen
t Attlee que eles o aceitariam quando lhes fosse apresentado.
O seu plano era uma mistura hbil de quanto aprendera na intimidade do seu gabinet
e. Fundado no seu conhecimento das convices e dos sentimentos pessoais de cada um
dos dirigentes indianos, representava uma estimativa exacta do que eles estariam
normalmente dispostos a admitir. Mountbatten tinha tal confiana no seu parecer q
ue anunciara oficialmen- > te a inteno de lhes apresentar este plano assim que
vol
tasse a Nova Delhi em 17 de Maio.
A frescura revigorante e a calma do olimpo de Simla favorecia a refle Simla ia m
udar rapidamente aps a Independncia. Testemunha de um passado que desejavam
esquec
er, a cidade foi abandonada pelos indianos. "A nica coisa que ainda existe da ant
iga Simla lamentava-se em 1973 M. S. Oberoi, proprietrio do hotel Cecil, o
clima.
" Uma sobrevivente inglesa da grande poca continua a habitar a cidade. Com oitent
a e nove anos e viva, a Senhora Penn Montague vive sozinha na enorme e melanclica
moradia vitoriana herdada de um tio que foi ministro das Finanas do vice-rei Lord
Curzon, com seis ces, cinco gatos, quatro criados e uma coleco de recordaes.
A Senho
ra Penn Montague, que fala seis lnguas, levanta-se sempre s 4 horas da tarde.
Depo
is do pequeno almoo, que toma ao pr do Sol, retira-se para uma sala onde est o
obje
cto mais precioso da sua existncia solitria, um aparelho de rdio /enith
Transoceani
c. Enquanto Simla dorme, a Senhora Montague instala-se a ouvir o mundo. As 4 hor
as da manh , a luz da velha senhora com certeza a nica que brilha entre Simia e
o
Tibete.
121
xao, e o vice-rei no tardou em pensar se no teria sido demasiado otimista. Depois
de receber o plano, o governo de Londres no cessava de o bombardear com telegrama
s sugerindo a alterao desta ou daquela clusula.
Srias inquietaes comeavam a atormentar o vice-rei. Se todas as resolues
fossem. aplica
das, no seria em duas partes mas em trs que o sub-continente indiano acabava por
s
er dividido. Porque Montabatten previra uma clusula que permitia a uma das onze p
rovncias, - o Bengal - tornar-se independente se a maioria de cada uma das suas c
omunidades assim o resolvesse. Os sessenta e cinco milhes de hindus e de
muulmanos
bengalis poderiam, se o desejassem, formar juntos um Estado independente, vivel
e lgico, com o grande porto de Calcut como capital. Esta ideia era devida ao
dirig
ente muulmano de Calcut, Sayyid Suhrawardy, o playboy amante de bares noturnos e
d
e champanhe que, nove meses antes, organizara o terror nas ruas da sua cidade ex
citando os seus militantes contra a populao hindu. A proposta seduzira
Mountbatten
. Contrariamente ao monstruoso Estado de duas cabeas reivindicado por Jinnah, um
Bengal independente era possvel num plano tnico e econmico. Com agradvel
surpresa do
vice-rei, os dirigentes hindus locais tinham-se igualmente mostrado favorveis a
este projecto.
No seu desejo de agir depressa, Montbatten esquecera-se porm de falar com Nehru;
era uma negligncia que o inquietava agora. Pensando bem, o Primeiro ministro indi
ano poderia verdadeiramente aceitar uma soluo que privasse a india do porto de
Cal
cut e da sua rica cintura industrial? Se, depois de todas as garantias que mandar
a a Londres, a resposta fosse negativa, Mountbatten passaria por um negociador b
astante inconsciente aos olhos da Inglaterra, das indias e do mundo.
A sua intuio aconselhou-o a verificar junto de Nebru, seu hspede nesta curta
estadi
a no Himalaia, que na o coma esse risco. Mais do que nunca, Lus Mountbatten via q
ualidade das suas relaes com o sedutor Jawahrlal Nehru uma promessa de futuro: a
b
ase de relaes previlegiadas entre a nova india e os seus antigos colonizadores.
Um
a forte amizade ligava tambm. Nehru e Edwina Mountbatten. Na india da primeira me
tade do sculo XX, agarrada ainda s tradies, uma mulher como Edwina era uma
personage
m de qualidades raras. Ningum melhor do que esta encantadora aristocrata, intelig
ente e generosa, sabia fazer sair o lider indiano da sua concha nos seus momento
s de dvida e de angstia. Quantas situaes no tinha ela j resolvido, quantos
acordos fac
ilitado encantando-o durante um passeio nos jardins mogis, um banho na piscina ou
em frente de uma chvena de ch?
Obedecendo ao seu impulso e contra a opinio dos seus colaboradores, Mountbatten c
onvidou Nehru para tomar um clice de Porto nessa mesma noite no seu escritrio.
Com
toda a naturalidade, entregou-lhe um exemplar do famoso plano, pedindo-lhe para
o analisar e dizer-lhe depois que espcie de aceitao previa da parte do
Congresso.
Contente e lisonjeado,
122
Nehru prometeu estud-lo imediatamente. Algumas horas mais tarde, enquanto Mountba
tten repousava, entregando-se ao seu passatempo favorito - a elaborao da rvore
gene
algica da sua famlia -, Jawaharlal Nehru passava peneira o texto que ditaria o
des
tino do seu pas. Ficou horrorizado. Que viso de pesadelo ia ser essa ndia onde
cada
provncia teria o direito de decidir do seu futuro, essa ndia no cortada em
duas, m
as fragmentada numa poro de bocados. A porta que Mountbatten deixava aberta para
a
secesso do Bengal abriria nevitavelmente uma ferida por onde se perderia o
melhor
sangue da ndia. Nehru viu o espectro de uma ndia mutilada, amputada do seu
pulmo v
ital, Calcut e as suas instalaes porturias, as suas fbricas de ao, de
cmento, as oficin
as texteis; o espectro de um Cachemir independente, a ptria dos seus antepassados
, governada por um dspota que ela odiava; o espectro de Estado de Hyderabad torna
ndo-se um corpo muulmano cri-# cravado no corao da ndia; o espectro de toda uma
srie
de outros Estados reclamando tambm o direito independncia. Este plano ameaava
liber
tar todas as foras centrfugas que tinham desde sempre posto em causa a unidade
das
ndias e fazer desintegrar o pas num verdadeiro mosaico de Estados. Durante trs
scul
os, os ingleses tinham dividido para reinar. Agora, dividiam para se irem embora
.
Plido de clera, Jawaharlal Nehru atirou as folhas pela casa fora e gritou:
- Acabou-se!
Foi uma carta que informou no dia seguinte de manh Lus Mountbatten a reaco do
lder in
diano. O soberbo edifcio que o vice-rei tinha construdo pacientemente durante as
s
eis semanas anteriores abatia-se como um castelo de cartas. O seu plano, escrevi
a-lhe Nehru, causava uma tal impresso "de diviso, de possibilidade de conflitos e
desordens" que "no podia deixar de ser amargamente julgado e completamente desapr
ovado pelo partido do Congresso".
O homem que acabava de anunciar orgulhosamente que dentro de dez dias daria uma
soluo ao dilema indiano, compreendeu ento que no tinha soluo nenhuma a
propor. O plano
que o gabinete britnico estava a discutir, o plano para o qual ele garantira a a
deso unnime dos indianos, j no tinha qualquer possibilidade conseguir o acordo,
indi
spensvel, do partido do Congresso. Consciente de que podiam censurar-lhe a pressa
ou a ingenuidade, Mountbatten no era todavia homem para se deixar vencer por um
insucesso. Longe de se entregar perspectiva da catstrofe, congratulou-se por ter
revelado as suas intenes a Nehru antes que fosse demasiado tarde. Apressou-se
imed
iatamente a remediar os estragos, confiando que a sua amizade venceria esta cris
e. Neliru aceitou com efeito ficar mais um dia em Simla para dar ao vice-rei tem
po para tornar o projecto
123
aceitvel. A nova redaco devia eliminar os pontos sombrios que tinham provocado a
su
a hostilidade. S deveria deixar s onze provncias e aos Estados principescos uma
nica
possiblidade de escolha: a integrao o com a ndia ou a integrao com o
Paquisto. O sonh
o de um Bengal independente desvanecera-se.
Mountbatten nem por isso estava menos convencido de que o Paquisto de duas cabeas
de Mohammed Ali Jinnah estava destinado a desaparecer. Antes de um quarto de scul
o, previu ele, o Bengal oriental que seria o Estado de Jinnah ter abandonado o Pa
quisto. A guerra do Bangla Desh em 1971 provaria que s se tinha enganado num ano
a
o fazer a sua profecia. *
Para engendrar o novo plano da independncia das ndias, Montbatten fez apelo ao
jov
em indiano V. P. Menon. Este era uma personagem incongruente na corte distinta d
o vice-rei. Nenhum pergaminho de Oxford ou de Cambridge ornava as paredes do seu
escritrio. Sendo o mais velho de doze irmos, Menon abandonara a escola aos treze
anos para trabalhar como pedreiro, mineiro, operrio de uma fbrica, fogueiro de
loc
omotiva, intermedirio de vendas de algodo e professor primrio. Tendo aprendido a
es
crever mquina com dois dedos, foi em SimIa, em 1929, que entrou para a
administrao
indiana como simples empregado de escritrio'. A sua carreira foi sem dvida a
ascen
so mais vertiginosa da administrao imperial. Comissrio das Reformas, Menon
ocupava e
m 1947 no gabinete do vice-rei o cargo mais elevado jamais entregue a um indiano
. Ali ganhara a confiana e depois a amizade de Montbatten.
O almirante anunciou-lhe sem rodeios que devia apresentar, antes dessa mesma noi
te, uma nova verso do plano de independncia. O esprito fundamental desse
documento
-@-- a Partilha das ndias - no devia ser modificado, precisou ele, e a
responsabil
idade da escolha devia continuar a pesar apenas sobre os indianos.
Sexta escala da via dolorosa de Gandbi "Eles j no precisam de mim"
Vtima de uma violenta crise de apendicite, o corpo da jovem tremia Para pagar as
quinze rupias da viagem at Simia, V. P. Menon dirigiu-se a um velho sikh que enco
ntrou na rua e contou-lhe a sua pobreza. O bom homem deu-lhe a quantia pedida. Q
uando Menon lhe perguntou a morada a fim de o reembolsar, o sikh respondeu: " mui
to simples. At ao dia da sua morte, sempre que um homem honesto lhe pedir auxlio,
d-lhe quinze rupias". Ele assim fez. Seis meses antes de morrer, em 1965, um mend
igo veio bater-lhe porta em Bangalore, conta a filha. Menon foi buscar o porta-m
oedas, tirou quinze rupias e deu-as ao mendigo. At aos seus ltimos dias,
continuou
a reembolsar a sua dvida.
124
como varas verdes sob os cobertores que o tio-av lhe pusera na cama.
Com os olhos ardentes de febre, as mos crispadas sobre o ventre dolorido, Manu ge
mia como um animal ferido. Silencioso e angustiado, Gandhi andava no quarto de u
m lado para o outro.
Novo conflito torturava o velho que os discpulos acabavam de desenganar. Desta ve
z era com respeito tmida rapariga que o tinha seguido na sua peregrinao
solitrio pel
os caminhos de Noakhali.
Depois que tratara as vtimas de uma epidemia de varola na frica do Sul, Gandhi
tinh
a uma confiana absoluta nos remdios naturais. Denunciava a medicina moderna,
acusa
ndo-a de querer curar o corpo sem procurar curar a alma, de receitar drogas em v
ez de apelar para as foras morais, ,,,de se interessar mais pelo dinheiro dos doe
ntes do que pela sua cura. O campo indiano era rico em ervas medicinais, afirmav
a ele, postas disposio por Deus para curar os males de todos. O Mahatma
considerav
a que o tratamento pelas plantas era um prolongamento da sua filosofia de no- .,.
-violncia. Fora em nome dessa doutrina que se recusara a deixar sujeitar o corpo
da esposa simples violncia de uma injeco de penicilina quando ela agonizava
sobre o
catre da priso.
Quando Manu comeou a queixar-se de dores no ventre, Gandhi prescreveu-lhe o trata
mento que a sua medicina natural lhe aconselhava em semelhantes casos: cataplasm
as de argila, uma dieta restrita, e lavagens. Trinta e seis horas depois, o seu
estado tinha-se agravado de tal forma que a sua vida estava presentemente em per
igo. Como em Noakhali, esta vida pertencia ao Mahatma, a jovem abandonara-se sua
vontade, pronta a aceitar tudo o que ele resolvesse.
O velho profeta das ervas milagrosas tinha tratado demasiados doentes para no con
hecer os perigos do mal que atacava a sobrinha-neta. Es desfeito. O seu tratamen
to tinha falhado: a doena de Manu era sem dvida uma manifestao da imperfeio
espiritual
de ambos. Reconheceu sua derrota e cedeu: "No tive coragem de deixar morrer assi
m uma jovem que se entregara nas minhas mos", confessaria mais tarde. " Com a `@,
-MaIor repugnncia" , aquele que recusara esposa moribunda uma injeco salvadora
perm
itia da sobrinha-neta fosse sujeito agresi# iu que o corpo So do bisturi de um
ci
rurgiao. Manu foi transportada de urgncia ao hospital para uma apendicectomia.
Enquanto estava inconsciente sob o efeito da anestesia, Gandhi ps-lhe a palma da
mo na testa. "Entrega-te a Rma, murmurou ele, e tudo correr bem."
Algumas horas mais tarde, assustado com a expresso ansiosa do Mahatma, um mdico
af
astou-o devagar da cabeceira de Manu. "Deve repousar, pediu ele. O povo precisa
mais que nunca de si."
Gandhi ergueu para ele um olhar desesperado. <@Nem o povo nem os que esto no pode
r precisam de mim, suspirou tristemente. O meu nico desejo morrer entregue
minha
tarefa, pronunciando o nome de Deus com o meu ltimo flego".
125
Trs sculos e meio duma epopeia resultou no ltimo grande Imprio da Histria
Comeada por
uma tmida aventura colonial, a conquista das ndias deu origem ao ltimo grande
imprio
romntico do mundo. Com o seu palcio de 347 divises e os esquadres indianos da
sua g
uarda (abaixo), o vice-rei das ndias, era um dos personagens mais poderosos do pl
aneta ` A sua chegada s ndias acompanhou-se dum fausto extraordinrio -ao
lado
em cima: o marqus de Liniithgow transps em Bombaim, em 1936 , a
"Po
rta das ndias". Uma inscrio gravada no fronto deste edifcio revelava que tinha
sido "
erguido para comemorar o desembarque nas ndias de Suas Magestades imperiais o rei
Jorge V e a rainha Maria em 2 de Dezembro MCMXI" (foto em baixo). Duas geraes de
jovens ingleses passaram primeiro sob este arco de triunfo antes de ir impor a P
az britnica at aos centros mais recuados das ndias e a fazer reinar a lei do
homem b
ranco. (Fotos de D. Conchon, Fox e Roger-Viollet).
126
O Pior divertimento dos ingleses nas indias foi oNepal). Cada cidade que se prez
ava possua uma )rto e a caa. Em 1947, havia ainda mais de equipagem com co
(abaixo)
com matilhas imporA# 14 1 ` - - NA-- o exerccio mais desportivo
a Nas florestas de Kipling infestadas de tigres, florestas indianas e a sua caa
ta as a ng a# e wO tigres nas
Imente montado-em elefantes no era a caca do javali a cavalo e lana (por
baix
o em panteras, bfalos e de javalis# ticava-se gera edies que duravam
baixo
, em Meerut). O primeiro caador que fazia# urso de verdadeiras exp
#
ngue" dum javali recebia a taa da as caadas empolgantes dos senhores do lmperI(
vezes vrios dias (pgina da
e
squerda, na terra "correir o sa
arai de ViJayanagar junto fronteira do vitria. (Fotografia Popperfoto e
Fox).
127
M
A esquerda o Paquisto, direita a ndia. No decurs da sua longa investigao
Dorninique L
apierre ( esquerda) e Larry Collins ( direita) pararam no lugar histrico onde
ficou
aps 1947 a fronteira que separa o velho Imprio das ndias. Se bem que trs
guerras te
nham oposto a ndia e o Paquisto depois da partida dos Ingleses, Lapierre e
Collins
conseguiram fazer posar com eles os dois chefes de posto da fronteira de Wagah:
esquerda, o major paquistans Abdul Natif; direita, o coronel indiano Bhular.
Amb
os usam o pingalim dos oficiais britnicos, herana dos tempos em que serviram o
fam
oso Exrcito das ndias. (Foto de D. Conchon).
128
J'Operaca-o ducao/11 com
#
os lderes @ M `w das ndias
Foi utilizando uma tctica revolucionria que Lus Mountbatten conseguiu
negociaes com o
s trs grandes lderes das ndias: s conferncias plenrias, ele preferiu a
intimidade fami
liar das conversaes privadas. Os trs indianos@ passaram a vida a conspirar
contra a
nglaterra, sem nunca ter havido para qualquer deles algum entendimento entre aqu
ela e eles. Ao alto esquerda, o muulmano Mohammed Ali Jinnah; em cima, com
Gandhi
, o profeta da no violncia que conduziu as massas indianas na sua revolta contra
a
Inglaterra
129
Trinta anos de negociaes para obter a libertao de 400 milhes de homens
Vestindo o seu
humilde dhoti, Gandhi veio vrias vezes reclamar a Londres a independncia do seu
p
as (em 1931, foto de cima). Suas campanhas de desobedincia civil, de boicote de
pr
odutos ingleses, de manifestaes silenciosas e as perturbaes da Segunda Guerra
Mundia
l, acabaram por constranger a Inglaterra a dar-lhe satisfao. Em 2 de Junho de
1947
(ao lado), Lord Mountbatten anunciava aos principais lderes indianos a partida d
a Inglaterra e a partilha das ndias em dois Estados: o Paquisto e a Unio
Indiana. A
seguir, direita de Mountbatten: os Hriclus Nel-iru, Patel e Kripalani,
represent
ando o Congresso indiano; Baldev Singh, representando a comunidade sikh; Rab Nis
htar, Liaquat Ali Khan e Mohammed Ali Jinnah, re .presentando a Liga muulmana. A
trs do vice-rei, seus colaboradores Sir Eric Miville e Lord Ismay. No ocupando
qual
quer cargo oficial na hierarquia Indiana, Gandhi absteve-se de participar nesta
reunio histrica. (Fotos# Popp@@rfo@o).
230
- Golgilumutj be apoia o velho adversrio dos Ingleses Mountbatten compreendeu des
de a sua chegada a Nova Delhi que era Gandhi que possua @chave do dilema indiano.
Entre o velho profeta da no violncia e o prestigioso chefe dEguerra, iam-se unir
laos de afeio que salvariam a Inglaterra e as ndias de um desastre. A salda da
sua p
rimeira entrevista, o adversrio mais encarniado dos# Innfi-p- tneamente a mo no
ombr
o dn `- - . . .
231
Captulo stimo
ELEFANTES, ROLLS-ROYCES E MARAJS
O criado de turbante avanou com passo respeitoso para a figura imponente que dorm
ia. Mal pousando os ps nus nas peles de tigre, de pantera e de antlope que
atapeta
vam o quarto, trazia nas mos uma bandeja de prata cinzelada, pertencente a um ser
vio encomendado em Londres no ano de 1921, para a visita s ndias de Sua Alteza
real
o prncipe de Gales. Um bule de prata dourada exalava o aroma subtil de folhas em
infuso, uma mistura enviada de quinze em quinze dias pela famosa mercearia Fortr
ium and Mason de Londres, com vrias qualidades de biscoitos. Na penumbra do quart
o, nas paredes e dentro de vitrinas, brilhavam os olhos das feras empalhadas e a
coleco de trofus de prata, testemunhos da virtuosidade do senhor daqueles
domnios n
as partidas de caa e nos desportos dos gentiemen, o polo e o criquet.
O criado colocou a bandeja na banca de cabeceira e inclinou-se para anunciar em
voz baixa:
- Bed tea, Master.
O homem adormecido espreguiou-se com gestos de felino e levantou-se. Sado da
sombr
a, um segundo criado apressou-se a pr-lhe sobre os ombros um robe de brocado. Com
eava mais um dia de Sua Alteza o prncipe Yadavindra Singh, oitavo maral do
Estado i
ndiano de Patiala.
Yadavindra Sirigh era presidente de uma das mais singulares associaes do mundo,
um
a pequena confraria como a humanidade nunca conhecera, nem tornaria a conhecer.
Naquela manh de Maio, menos de dois anos aps o cataclismo de Hiroshima e do fim
de
uma guerra que abalara o mundo, os 565 marajs, rajs, e nawabs que compunham esta
assembleia reinavam ainda como herdeiros soberanos e absolutos sobre um tero do t
erritrio das ndias e um quarto da sua populao: havia de facto duas ndias sob o
domnio
ingls - a ndia das provncias, administrada pela capital Nova Delhi, e a ndia
dos 565
principados.
A situao anacrnica dos prncipes indianos tinha a sua origem na conquista
acidental d
o pas pela Gr-Bretanha. Os soberanos que tinham recebido os ingleses de braos
abert
os, ou aqueles que se tinham mostrado adversrios leais no campo de batalha, foram
autorizados a conservar o seu trono com a condio de reconhecerem a Inglaterra
com
o potncia soberana. Este princpio devia ser ratificado por tratados independentes
Maraj, raj: ttulos de prncipes de religio hindu; nawb, nizam: ttulos de
Prncipes de rel
igio muulmana.
127
entre cada monarca e a coroa britnica. Os prncipes aceitaram a soberania do rei-
im
perador, representado pelo vice-rei, deixando-lhe o controle das questes exterior
es e da sua defesa. Receberam em contrapartida a garantia da sua autonomia inter
na.
Prncipes como o nizam de Hyderabad e o maraj de Cachemir reinavam sobre Estados
to
vastos e povoados como as grandes naes da Europa. Outros, como alguns da
pennsula d
e Kathiawar beira do mar de Oman, viviam em antigas cavalarias e governavam
domnio
s apenas um pouco maiores do que o Bosque de Bolonha. A rea de mais de quatrocent
os Estados no excedia trinta quilmetros quadrados. A confraria de prncipes
contava
com alguns dos homens mais ricos do mundo e com monarcas de rendimentos mais mod
estos do que os de um mercador do bazar de Bombaim. Um clculo permitia contudo es
tabelecer que cada um deles possua em mdia 11 ttulos, 5,8 mulheres, 12,6 filhos,
9,
2 elefantes, 2,8 carruagens de caminho de ferro privativas, 3,2 Rolls-Royces e u
m palmars de 22,9 tigres abatidos.
Um grande nmero de prncipes proporcionavam aos seus sbditos condies de vida
infinitam
ente melhores do que as dos indianos administrados pelos ingleses. Outros, em
menor nmero, no passavam de dspotas mais interessados em roubar os cofres do
seu r
eino e em satisfazer os seus caprichos do que em promover o progresso do seu pov
o.
Quaisquer que fossem as suas virtudes ou taras, o futuro dos 565 prncipes indiano
s constitua um grave problema naquela Primavera de 1947. Nenhuma soluo da
equao india
na podia resultar se no resolvesse ao mesmo tempo a sua situao particular.
Para GandhI, Nehru e o Congresso, a resposta era clara. Era preciso por termo ao
reinado desses senhores feudais e integrar os seus Estados na ndia independente.
Esta perspectiva no tinha a menor probabilidade de receber a aprovao de
Yadavindra
Singh nem dos seus pares. O seu Estado de Patiala, no corao do Panjab, era um
dos
mais ricos e ele contava com um exrcito de quinze mil homens, equipado com tanqu
es Centurion e baterias de artilharia.
Uma expresso preocupada vincava o rosto do chanceler da Cmara dos prncipes
enquanto
bebia o seu ch. Sabia, nessa manh de Maio, o que o vice-rei das ndias ignorava
ain
da a dez mil quilmetros do seu palcio, um homem ia pronunciar um apelo
desesperado
para que a sua sorte e a de todos os prncipes no fosse aquela a que Nheru e os
so
cialistas do Congresso queriam conden-los.
Este homem no era um maraj, mas um ingls. Tinha partido de Nova Delhi para
Londres
sem o vice-rei saber. Filho de um pastor# milionrio, Sir Conrad Corfield represen
tava uma das grandes foras e ao mesmo tempo uma das grandes fraquezas da administ
rao britnica das
128
Indias. Tinha feito quase toda a sua carreira na secretaria das Questes jos princ
ipados, e a ndia dos prncipes tinha-se tornado a sua prpria# !ridia. O que
achava b
om para os seus prncipes parecia-lhe bom para a ndia. Odiava os inimigos
daqueles,
em especial Nehru e o Congresso, com tanta fora como eles prprios. @ . Nesse ms
de
Maio de 1947, Corfield era o Secretrio poltico do vice-rei, isto , o seu
represent
ante junto dos prncipes no exerccio da soberania britnica.
Assoberbado, desde que chegara, com a tarefa enorme de encontrar nma soluo para o
conflito que opunha hindus e muulmanos, Lord Mountbatten ainda no tivera tempo
par
a se entregar ao problema dos prncipes. Isso em nada modificara o estado de
esprit
o de Corfield. Sabendo que o novo vice-rei teria necessidade de conquistar as si
mpatias de Nebru e do Congresso, fora a Londres tentar conseguir para os prncipes
um tratamento melhor do que certamente acabaria por lhes dar o vice-rei, Ia emp
reender a sua diligncia junto do secretrio de Estado para as Indias, no seu
gabine
te alcunhado "A gaiola dourada" desde o tempo da imperatriz Vitria. Esta sala oct
ogonal tinha uma caracterstica inslita: ,,no eixo da secretria, colocada no
centro,
abriam-se duas portas completamente iguais no tamanho, forma e ornatos. Dois prn
cipes de grau idntico podiam assim apresentar-se ao mesmo tempo na presena do
repr
esentante do rei-imperador, sem sofrer o vexame de qualquer falta s regras da pre
cedncia. No ficava manchada a honra de nenhum. Corfield apresentou acaloradamente
os seus argumentos ao ministro, conde de Listowel. Aceitando a soberania da Coro
a, os prncipes tinham entregue uma parte dos seus poderes Gr-Bretanha e s a
ela, de
clarou. No dia em que essa soberania cessasse, esses poderes deviam ser-lhes pes
soalmente restitudos. Ficavam ento livres para negociar novos acordos ,,Com a
ndia
ou o Paquisto; ou se o quisessem e se isso fosse vivel, tornarem-se
independentes.
Qualquer outro procedimento constitua uma violao dos tratados feitos entre a
Gr-Bre
tanha e os principados.
Sob o ponto de vista estritamente jurdico, a interpretao de Corfield estava
Correct
a. Mas as suas consequencias praticas eram terrveis de encaXar. Se todas as impli
caes previstas na sua apaixonada exposio se materializassem, a ndia
independente coma
o risco de uma balcanizao :C# tijas propores nem mesmo Nehru previra, no seu
ataque
de fria em Simia.
Os marajs e nawabs das ndias formavam uma aristocracia de tal @maneira fora do
com
um que a Rudyard Kipling pareceu que "estes homens tinham sido criados pela Prov
idncia para encher o mundo de cen-# < nos Pitorescos, histrias de tigres e
espectcul
os grandiosos". Poderosos humildes, ricos ou pobres, pertenciam a uma raa excepci
onal cujos
129
membros haviam fornecido matria para as fabulosas lendas de uma ndia condenada
ago
ra a desaparecer. As histrias dos seus vcios e virtudes, das suas extravagncias
e p
rodigalidades, das suas fantasias e excentricidades tinham enriquecido a memria d
os homens e maravilhado um mundo sedento de exotismo e de sonho. Os marajs passav
am pela vida sobre o tapete voador de um conto oriental. A poca da sua glria
termi
nava, mas era de recear que depois deles o mundo se aborrecesse.
Estes mitos no eram na verdade apangio seno de um pequeno nmero, aqueles a quem
a ri
queza, a ociosidade e uma imaginao particularmente frtil permitiam entregar-se
s mai
s delirantes loucuras. Estes extravagantes aristocratas compartilhavam as mesmas
paixes avassaladoras: a caa, os desportos, os automveis, os palcios, os
harns, e sob
retudo, o fascnio das jias.
Este fascnio era neles de natureza quase religiosa. Atribuiam s pedras preciosas
u
ma essncia mstica dotada de poderes imensos. Assim, os diamantes possuam,
segundo a
creditavam, mara, isto , foras femininas susceptveis de aumentar o poder sexual.
A
escolha e tamanho das pedras eram determinados pelos astrlogos em funo do
horscopo e
do carcter de cada um.
O maraj de Baroda tinha pelo ouro e pelas pedras preciosas uma venerao
feiticista.
Apenas uma famlia tinha o previlgio de tecer com fios de ouro as tnicas de
cerimniad
o maraj. As unhas desses teceles eram cortadas em forma de dente de pente, para
co
nseguirem a maior perfeio no tecido. A sua coleco de diamantes inclua a famosa
Estrel
a do Sul, o stimo diamante do mundo pelo tamanho, e o Eugnia que fora oferecido
po
r Napoleo III esposa depois de ter pertencido a Potemkine, o favorito da grande
C
atarina da R ssia. Mas as peas mais admirveis do seu tesouro eram uma coleco
de tapet
es todos feitos de prolas ornamentados com desenhos em rubis e esmeraldas.
O maraj de Bharatpur possua uma coleco de tapetes ainda mais espantosa. Eram
feitos
de marfim. Cada um deles era fruto de vrios anos de trabalho de uma famlia
inteira
. O seu fabrico exigia uma mincia extraordinria, porque as presas de elefante
tinh
am que ser primeiro descascadas a fim de fornecer a matria prima.
O maior topzio do mundo brilhava como um olho de Ccople no turbante do simptico
mar
aj sikh de Kapurthala. Os tesouros do maraJ de Jaipur estavam enterrados perto da
sua cidade cor-de-rosa numa colina do Rajasthan, guardada de gerao em gerao,
por uma
tribo de ferozes Raiasthan. Os herdeiros desta nobre dinastia s estavam autoriza
dos a visitar o tesouro uma vez na vida para escolherem as pedras destinadas a d
ar um brilho especial ao seu reinado. Entre essas maravilhas encontrava-se um co
lar composto de trs idas de rubis, cada um do tamanho do corao de um pombo,
realados
por trs esmeraldas, pesando a maior noventa quilates.
A jia mais importante da coleco do maraj de Patiala era um colar
130
de prolas seguro pelos Lloyds de Londres em meio milhao de francos antigos. A pea
mais curiosa era uma couraa constelada de mil e um diamantes com reflexos azul
pli
do. At ao princpio do sculo, os seus antepassados tinham o costume de aparecer
todo
s os anos ao povo vestidos apenas com esta couraa, a sua virilidade real em
ereco.
Com esta demonstrao flica, associavam a sua pessoa fora criadora do deus
Civa, enqua
nto que os reflexos dos diamantes asseguravam aos sbditos o afastarnento das
foras
malficas.
Um maraj de Mysore ouvira dizer a um viajante chins que os afrodisacos mais
eficaze
s eram confeccionados com diamantes modos. Esta desgraada informao levaria ao
empobr
ecimento rpido do seu tesouro, por terem sido reduzidas a p centenas de pedras
pre
ciosas. As bailarinas que iriam aproveitar os efeitos mgicos passeavam nos jardin
s sobre elefantes com os dentes incrustados de rubis e pendentes das orelhas gig
antescos brincos de diamantes que haviam escapado aos filtros de amor.
O elefante onde se deslocava o maraj de Baroda estava ainda mais bem paramentado.
As inquietantes defesas deste monstro centenrio tinha despedaado mais de vinte
ri
vais noutros tantos combates. Todos os seus arreios eram de ouro macio: o palanqu
im real, a gualdrapa, os pesados braceletes nas quatro patas, e as correntes que
lhe pendiam das orelhas. Valia cada uma trinta milhes de francos antigos e repre
sentava uma vitria do animal.
Os elefantes tinham sido, durante geraes, o meio de locomoo favorito dos
prncipes. Smb
olos da ordem csmica, nascidos da mo do deus Rma, eram aos olhos deles os
pilares d
o universo, o suporte do cu e das nvens. Uma vez por ano, o maraj de Mysore
prostra
va-se perante o rei dos seus paquidermes. Por meio desta homenagem, renovava a s
ua `*fiana COM as foras da natureza e assegurava um ano de prosperidade aos seus
sb
ditos. A riqueza de um soberano avaliava-se pelo nmero, idade e corpolncia dos
ele
fantes que ocupavam as quadras dos seus patados, algumas das quais abrigavam cer
ca de trezentos animais.
- Depois de Anbal atravessar os Alpes com a sua legio de elefantes, `Ialvez nunca
se tivesse visto uma manada to impressionante como a que era apresentada uma vez
por ano em Mysore por ocasio da festa de Da< salira. Um milhar destes animais, de
corados com desenhos, colares de flores, jias, chanis e cabeadas de ouro,
desfilava
m atravs da cidade. Cabia ao macho mais forte a honra de transportar o palanquim
do soberano, que era um trono de ouro macio forrado de veludo e sobrepujado por u
m Iparda-sol, atributo do poder principesco. Atrs, seguiam dois elefantes paranie
ntados com igual luxo. Transportavam dois palanquins vazios cuja ---Vista provoc
ava um silncio respeitoso na multido: supunha-se que conduziam as almas dos
antepa
ssados do maraj.
Combates de elefantes davam sempre um brilho especial s festas do Prncipe de
Barod
a, provocando duelos terrveis. Dois enormes machos, ,>"Mfurecidos com golpes de l
ana, eram aulados um contra o outro. Fazendo
131
tremer a terra com o seu peso colossal e o cu com os seus urros, combatiam at
mort
e de um deles. O vencedor recebia a honra de entrar para a quadra do prncipe.
O raj de Dhenkanal, um pequeno feudo a leste da ndia, proporcionava todos os anos
a milhares de convidados ocasio de assistirem a uma exibio to curiosa como
aquela em
bora menos sangrenta: o acasalamento de dois dos mais belos elefantes da sua cri
ao.
Um maraj de Gwalior usou mesmo certa vez um dos seus animais para uma tarefa que
nenhum outro paquiderme realizara nunca. Tendo encomendado em Veneza um candeeir
o cujo peso e tamanho excediam as dimenses do maior lustre do palcio de Buckingl-
i
am, resolveu verificar a solidez do telhado do palcio pondo ali a passear o mais
pesado dos seus elefantes, que para l foi iado por meio de um guindaste
especialme
nte concebido.
Outros animais ocupavam no corao de certos prncipes lugar to prevlegiado como
os elef
antes, Para o nawab de Junagadh, um minsculo principado a norte de Bombaim, eram
os ces. Tinha instalado os animais preferidos em aposentos com electricidade e te
lefone, onde eram servidos por criados especiais. Celebrou o casamento da sua ca
dela favorita Roshana com um cao Labrador chamado Bobby durante uma cerimniagrand
iosa para a qual convidou todos os prncipes e dignitrios das ndias, inclusiv o
vice-
rei. Para seu grande desgosto, o representante do rei-imperador declinou o convi
te. Todavia, cento e cinquenta mil pessoas acotovelavam-se no percurso do cortej
o nupcial que era aberto pelos lanceiros do nawab e pelos elefantes reais. Aps o
desfle, o soberano ofereceu um banquete em honra do casal canino antes de fazer
conduzir os jovens esposos aos seus aposentos nupciais para ali consumar a unio.
S esta festa custou trinta milhes de francos antigos, quantia que teria bastado
pa
ra satisfazer durante um ano inteiro as primeiras necessidades de doze mil dos s
eiscentos e vinte mil desgraados sbditos do prncipe.
Os funerais dos ces davam ocasio a cerimnias no menos solenes. Os animais
faziam a lt
ima viagem ao som da Marcha fnebre de Chopin antes de serem sepultados para o rep
ouso eterno nos mausolus de mrmore do cemitrio que lhes era reservado. Em
Junagadh,
valia mais ser um co do que um homem.
O aparecimento do automvel viria reduzir o papel dos elefantes em matria de
aparat
o. O primeiro carro que desembarcou nas ndias em 1892 era um De Dion-Bouton
francs
destinado ao maraj de Patiala. Este acontecimento ficou marcado para a posterida
de pela atribuio de um nmero de matrcula histrico - "O". O nizam de Hyderabad
fez uma
coleco de automveis graas a uma tcnica que abonava a favor do seu lendrio
esprito de e
conomia. Assim que os seus rgios olhos viam, o
132
interior das muralhas da sua capital, um carro que ihc agradava, mandava o,feliz
proprietrio que "Sua Alteza Exaltada>@ teria o maior prazer em <receb-lo de
presen
te. Em 1947, as garagens do soberano abarrotavam de centenas de carros de que nu
nca se servia.
O hspede favorito das garagens dos prncipes indianos era naturaljwnte o rei dos
ca
rros, o Rolls-Royce. Importavam-nos de todos os mode- <los e tamanhos, em forma
de torpedo, de limusine, coup, breack e at camionete. O pequeno De Dion-Bouton do
maraj de Pitiala depressa fiCOU acompanhado por um rebanho de elefantes mecanicos
, vinte e dois Rolls-Royces do maraJ de Bharatpur eram tratados como seres vivos
por pessoal especializado. O prncipe possua o exemplar mais extico jamais
instrudo p
ela firma inglesa, um Rolls-Royce descapotvel de prata ma- ,ia. Dizia-se que
mister
iosas ondas afrodisacas emanavam da carrosseria# @t@,qOe o gesto mais amvel do
pro
prietrio era emprest-lo# e outro prncipe para a cerimonia imperial. O maraj
mandara
mesmo equipar um dos seus <. RolIls-Royces para a caa s feras. Certo dia de 1921,
levou o prncipe de Gales e o seu jovem ajudante de campo Lord Lus Mountbatten
para
a sei-# _1,@*,nesse automvel. O carro, escreveu nessa noite o futuro vice-rei da
s >ndias no seu dirio, atravessou regies selvagens, galgando covas e fossos aos
sol
avancos e balouando como um navio no alto mar, sem que fosse preciso nunca fazer
a mudana para segunda velocidade."
O veculo mais espantoso do parque dos soberanos indianos era contudo um Lancaster
pertencente ao maraj de AIwar. Era chapeado a ouro.
O motorista e o mecnico sentavam-se tanto no interior como no exterior em almofa
das de fio de ouro num compartimento fechado em que o volante era de marfim escu
lpido. O feitio era exactamente a rplica do coche da coroao dos reis de
Inglaterra.
E graas a qualquer milagre mecnico, o Motor conseguia levar a cento e `quarenta
q
uilmetros hora o pesado e veculo. . ..... .Alguns marajs tinham pela
deslocao ferrovir
ia tanta paixo como automveis. O de Indore mandara construir na Alemanh uma
carruag
em especial dotada de um luxo provavelmente nico no mundo. Dera a pelos maiores o
urives da casa parisiense Pulforcat, esta carruagem verdadeiro iate sobre rodas.
O caminho de ferro preferido do ma# oderoso Estado de Gwalior era um brinquedo
to aperfeioado Ia op
#
nunca criana nenhuma sonhou receber do pai Natal. A sua rede de s e prata macia
c
oma sobre a imensa mesa em forma de ferradura Sala de antar do palcio e prolonga
va-se, atravs das paredes, at s NU cercanhas. Em noites de gala, um quadro de
coman
dos era colocado junto `do soberano. Mexendo em manpulos, alavancas, botes e
serei
as, o prnA,5 de estao regulava a marcha dos combois miniatura que tra-
#
a
s bebidas, cigarros, charutos e gulodices aos seus hspedes. As# car@,',@'-,,:,,M,
agens-cstemas, cheias de whisky, vinho, Porto eMadeira, paravam em @ente de cada
conviva para lhe matar a sede. Carregando com o dedo num @Oto, O Monarca podia,
se quisesse, privar de bebida ou de charutos um
133
dos seus convidados. Certa noite dos anos 3O, durante um banquete em honra do vi
ce-rei, deu-se um curto- circuito no quadro de comandos. Perante os olhos horror
izados de Suas Excelncias, os comboios do maraj, como loucos, corre~ ram de um
ext
remo a outro da sala de jantar, atirando para cima dos vestidos das senhoras, da
s casacas e dos uniformes dos homens um verdadeiro dilvio de vinho e de sherry. E
sta catstrofe, nica nos anais ferrovirios, quase provocou um incidente
diplomtico.
Os palcios dos grandes prncipes das ndias rivalizavam em dimenses e opulncia,
e at em
bom gosto, com monumentos grandiosos como o Tai Mahal. O de Mysore era talvez o
mais vasto do mundo com as suas seiscentas divises, vinte das quais estavam apena
s ocupadas por uma coleco de tigres, panteras, elefantes e bfalos selvagens
empalha
dos, trofus roubados s selvas do reino por trs geraes de prncipes amantes da
caa. De no
ite, com as suas dezenas de milhar de lmpadas elctricas parecia um paquete
colossa
l que tivesse encalhado em pleno centro da ndia.
Novecentas e cinquenta e trs janelas, todas de mrmore rendilhado, abriam sobre a
f
achada-terrao do palcio dos Ventos da cidade cor-de-rosa de Jaipur. Para atenuar
a
luz viva do deserto, o maraj de Bikaner mandara colocar nas janelas do seu
palcio
vitrais de jade, de alabastro, topzio e ambar. As paredes de mrmore branco do
palc
io de Udaipur surgiam como um navio fantasma no meio das guas contilantes de um l
ago. Entusiasmado pela sua visita a Versailhes, o imaginativo e culto niaraj de l
(apurthala trouxera para a sua corte o fausto do Rei-Sol. Mandou vir de Frana uma
equipa de arquitectos e decoradores e construiu na base do Himalaia uma pequena
rplica do palcio de Versailles. Encheu-o de vasos de Svres, de tapearias de
Gobelin
s, de mveis antigos, proclamou o francs lngua oficial da corte, imps o vinho
tinto e
a gua de vian mesa, e mascarou os skins ao seu servio com as cabeleiras
empoadas,
bofes de renda, cales de seda e chinelas de fivela dourada dos marqueses do rei
de
Frana.
Os tronos de alguns palcios eram sem sombra de dvida os assentos mais luxuosos
ond
e alguma vez pousaram ndegas humanas. O de Mysore, de ouro macio, pesava uma
tonel
ada. Subia-se para ele por nove degraus reluzentes, tambm de ouro, que simbolizav
am a ascenso de deus Visnu para a Verdade. Um guarda-sol de metal precioso repres
entando uma flor de Itus sobrepujava o cadeIro real coberto de almofadas bordadas
a ouro e prolas finas. O trono de um rai de Orissa parecia uma enorme cama. O
prnci
pe tinha-o comprado num antiqurio de Londres porque era a cpia exata da cama da
su
a rainha soberana, Vitria. Colocado numa sala com as dimenses de uma catedral,
sob
re um palco rodeado de colunas gregas e de esttuas de mulheres nuas de mrmore
bran
co, o trono
134
do nawab de Rampur era dominado por uma gigantesca coroa de metal dourado com um
metro de altura. A sua concepo original inspirava-se tambm no exemplo ilustre
do R
ei-Sol: no veludo dourado do assento havia um orifcio de retrete. Este reizinho o
riental podia assim, tal como o grande monarca, fazer as suas necessidades em pbl
ico sem interromper o curso das questes do seu reino.
As vezes as horas pareciam interminveis e alguns dos moradores destes luxuosos pa
lcios. Para matarem o seu tdio, entregavam-se em geral a dois passatempos
favorito
s - as mulheres e o desporto. O harm fazia parte integrante do palcio de um
verdad
eiro soberano - quer fosse hndu ou muulmano -, domnio habitado por centenas de
jove
ns bailarinas e concubinas para seu uso privativo.
1 As selvas dos seus Estados eram-lhes tambm exclusivamente reservadas, sendo a
sua fauna - e em especial os tigres, de que a ndia contava nessa altura mais de v
inte mil exemplares - o alvo preferido das suas espingardas. O prncipe de Bharatp
ur abatera o seu primeiro tigre com oito anos de idade. Quando tinha trinta e ci
nco, as peles das feras mortas por ele, cosidas umas s outras como uma alcatifa,
cobriam o cho dos seus sales. O seu territrio foi teatro de um fabuloso massacre
de
patos, tendo morrido 4 482 destas aves em trs horas durante uma caada oferecida
e
m honra do vice-rei, Lord Harding de Penshurst. O maraj de Gwalior matou s sua
con
ta mais de mil e quinhentos feras. Era autor de um livro destinado a um pblico mu
ito restrito, o Guia da caa ao Tigre.
O senhor incontestado dos prazeres da caa e da carne tinha sido o pai do chancele
r da Cmara dos prncipes, Sir Bhupinder Singh, chamado <,O Magnfico", stimo
maraj de P
atiala. Com a sua estatura colossal, cento e trinta quilos de peso, bigodes reto
rcidos como os chifres de um touro bravo, a esplndida barba preta cuidadosamente
enrolada atrs do pescoo velha moda dos sikhs, lbios sensuais e olhar
arrogante, par
ecia sado de uma gravura mogol. Para o mundo do perodo de entre-duas-guerras, Sir
Bhupinder encarnou todo o fausto dos marajs das ndias. O seu apetite era to
grande,
que podia comer facilmente vinte quilos de comida por ---dia. Devorava de boa v
ontade dois ou trs frangos hora do ch. Adorava O pOrcO e, galopando cabea
dos seus
"Tigres de Patiala", ganhara em todos os campos do mundo trofus que lhe enchiam o
palcio. Para permitir estas proezas, os seus estbulos albergavam quinhentos dos
m
ais belos espcimes de raa cavalar.
Desde a mais tenra adolescncia, Bhupinder Singh mostrou as melhores aptides para
a
prtica do outro divertimento igualmente digno de um prncpe, o amor. Os cuidados
qu
e por fim dedicou ao seu harm acabariam por matar a sua paixo pela caa e pelo
polo.
Era ele prprio quem escolhia as iniciadas conforme os seus atractivos e talentos
amorosos. No
135
auge da sua glria, o harm real de Patiala contava com trezentas e cinquenta
esposa
s e concubinas.
Durante os Veres escaldantes do Panjab, parte delas instalavam-se todas as tardes
beira da piscina, beldades de selos nus, sereias submissas que ele vigiava enqu
anto fazia os seus exerccios natatrios. Blocos de gelo refrescavam a gua, e o
monar
ca flutuava na maior beatitude, aproximando-se de vez em quando da borda da pisc
ina para acariciar um seio e beber um trago de whisky. As paredes e tectos dos s
eus aposentos estavam decorados com cenas inspiradas nos baixos-relevos erticos d
os templos que faziam com justia a celebridade das ndias, verdadeiro catlogo de
exi
biesamorosas capazes de esgotar o esprito mais imaginativo e o corpo mais
atltico. U
m enorme hamac de seda permitia a Sua Alteza procurar entre cu e terra a
embriagus
dos prazeres sugeridos pelos frmitos das personagens do tecto.
Para satisfazer os seus desejos insaciveis, o inventivo soberano decidiu renovar
com regularidade os encantos das suas mulheres. Abriu as portas do palcio e uma e
lite de perfumistas, joalheiros, cabeleireiros, esteticistas e costureiros. Os m
aiores mestres da cirurgia plstica foram convidados para modelarem as feies das
sua
s favoritas ao sabor dos seus caprichos e dos padresdas revistas de beleza de Lon
dres e Paris. A fim de estimular os seus ardores, teve a ideia de transformar um
a ala do palcio num laboratrio cujas provetas e alambiques fabricavam uma
coleco exti
ca de perfumes, loes, cosmticos e filtros.
Estes extravagantes requintes apenas conseguiam mascarar o fracasso do ambiente
de luxria oriental concebido pelo maraj. Que homem, mesmo um sikh to bem dotado
pel
a natureza como Bhupinder Sirigh "O Magnfico", teria podido satisfazer as
exigncia
s das trezentas e cinquenta beldades que esperavam por detrs das gelosias do seu
harm?
O recurso aos afrodisacos tornou-se inevitvel. Os seus mais qualificados
alquimist
as fabricaram sapientes poes base de ouro, de prolas, especiarias, prata,
ervas e f
erro. Durante algum tempo, a mais eficaz era uma mistura de cenouras e mioleiras
de pardal. Quando o efeito destes preparados comeou a diminuir, Sir Bhupinder Si
righ apelou para tcnicos franceses que supunha, muito naturalmente, peritos em qu
estes de amor.
O tratamento de rdium que lhe aplicaram devia infelizmente dar um resultado to
efme
ro como os anteriores. No havia cura para a doena de que sofria o maraj, a mesma
qu
e atacava tantos dos outros prncipes seus colegas - o tdio. Morreria desse mal.
A ndia mstica tinha por hbito atribuir origens divinas aos maioreS dos seus
prncipes
. As do maraj de Mysore confundiam-se com o nascimento da Lua. Todos os anos, pel
o equincio de Outono, o soberano tornava-se para o seu povo num deus vivo. Como u
m sadbu no interior de
136
uma gruta do Himalaia, separava-se do mundo dentro de uma sala escura do palcio.
No se barbeava nem se lavava. Nem mos nem olhares humanos podiam pousar sobre ele
durante o tempo em que Deus habitava o seu corpo. Tornava a aparecer no nono dia
. Um elefante coberto de veludo constelado de ouro e pedrarias, com uma cabeada i
ncrustada de esmeraldas, esperava porta do palcio para o conduzir no meio de uma
escolta .,de lanceiros a um stio mais popular do que divino, o campo de comdas -d
a capital. Ali@ perante a multido dos seus sbditos, sacerdotes bramanes
@banhavam-
no cantando mantra, barbeavam-no e davam-lhe de comer. &iquanto o Sol se escondi
a na floresta, era apresentado ao monarca um cavalo preto. No momento em que o m
ontava, milhares de archotes acen- `diam-se em redor da pista. O prncipe galopava
em toda a volta desta coroa de chamas, desencadeando aplausos passagem. O filho
da Lua regressara para o seu povo.
O maraj de Udaipur, esse, tinha a sua origem no Sol. O seu trono, com dois mil an
os de idade, era o mais antigo e prestigioso das ndias. V a vez por ano, tambm se
tornava um deus vivo. De p proa de uma# M galera semelhante ao barco de Cle
patra,
passeava sobre as guas infestadas de crocodilos do lago que banhava o seu
palcio.
Na ponte, atrs dele, como o coro de uma tragdia antiga, em atitude de venerao,
esta
vam os -<bgnitrios da corte, com tnicas de musselina branca.
As pretenses do soberano de Bebares, a cidade santa beira do Gange, embora menos
ambiciosas, inspiravam a mesma piedade. A tradio mandava que a primeira coisa que
o prncipe daquela terra abenoada visse todas as manhs ao abrir os olhos, fosse o
smb
olo hindu da eternidade eslmica, uma vaca sagrada. Assim, ao alvorecer era posta
uma vaca sob a Janela do seu quarto e picada no flanco para que os mugidos acord
assem o .,piedoso maraj. Certa vez em que foi de visita ao nawab de Rampur, o cum
primento deste rito levantou um problema delicado: como os aposentos reservados
ao visitante eram no segundo andar do palcio, o nawab @@teve de recorrer a um sis
tema engenhoso para salvaguardar o ritual do acordar do seu hspede. Comprou uma g
rua que todas as manhs iava uma vaca at janela do quarto. Aterrado pela sua
inslita
ascenso, o pobre animal soltava mugidos to sonoros que acordou todo o palcio
hora q
ue o maraj de Benares. Ricos ou pobres, devotos ou depravados, decadentes ou prog
ressistas, os prncipes tinham mostrado a maior lealdade para com a Inglaterra e u
m zelo exemplar em servir os seus interesses. No lhe haviam recusado nem o >seu d
inheiro nem o seu sangue durante as suas guerras mundiais. Tinham organizado, eq
uipado, treinado corpos expedicionrios que se distingui~ ram em todas as frentes
sob a bandeira da Union Jack. O maraj de Bikaner, ele prprio general do exrcito
bri
tnico e membro do gabinete de guerra, tinha mandado os seus cameleiros assaltarem
as trincheiras alemas da Grande Guerra. Os lanceiros de Joelhpur tinham conquis
tado Halfa aos turcos a 23 de Setembro de 19171. Em 1943, sob as ordens do seu j
ovem
137
maraj, comandante nos Lifeguards, os cipaios da cidade cor-de-rosa de Jaipur tinh
am limpo as encostas do monte Cassino e aberto o caminho de Roma aos exrcitos ali
ados. Para premiar a sua coragem frente do seu batalho, o maharao raj de Bundi
rec
ebera a Military Cross em plena selva birmanesa.
Os ingleses provaram a sua gratido a estes fiis e prdigos vassalos da maneira
mais
hbil: cobrindo-os de uma chuva de honras e condecoraes, suas jias preferidas.
Os mar
ajs de Gwalior, de Cooch Beliar e de Patiala receberam o insigne previlgio de
esco
ltarem a cavalo, na qualidade de ajudantes de campo honorrios, o coche real de Ed
uardo VII durante as festas da sua coroao. Oxford e Cambridge concederam
pergaminh
os honorficos a toda uma srie de prncipes. Os peitos dos soberanos mais
merecedores
enriqueceram-se com medalhas reluzentes de ordens novas criadas para a circunstn
cia - Ordem da Estrela das ndias, e Ordem do Imprio das ndias.
Foi sobretudo pela graduao subtil de uma forma particularmente engenhosa de
recomp
ensas que a potncia soberana testemunhou a sua estima. O nmero de salvas de
canho q
ue saudava um monarca indiano era o critrio final e sem contestao do seu lugar
na h
ierarquia principesca. O vice-rei tinha autoridade para aumentar o nmero de salva
s para honrar um soberano em recompensa de servios excepcionais, ou pelo
contrrio,
reduzi-lo em sinal de castigo. A dimenso dos reinos e a importncia da sua
populao no
eram os nicos factores que determinavam o nmero destas salvas de canho. A
fidelid
ade Coroa, o sangue e o dinheiro gastos na sua defesa eram igualmente considerad
os. Cinco soberanos - os de Hyderabad, de Cachemir, de Mysore, de Gwalior e de B
aroda - tinham direito suprema honra de vinte e uma salvas. Vinham a seguir os E
stados de dezanove, depois, de dezassete, quinze, treze, onze e nove salvas. Par
a 425 humildes rals e nawabs que reinavam sobre pequenos principados quase esquec
idos no mapa, no havia salvas nenhumas. Eram os prncipes pobres das ndias, por
quem
no troava o canho.
A ndia dos marajs e dos nawabs apresentava uma outra face. Muitos prncipes
tinham v
iajado no Ocidente, estudado em universidades, descoberto os benefcios da cincia,
da tcnica, da educao. Muitos tinham lutado para transformar os seus Estados em
pila
res da civilizao e do# Em matria mais pacfica, o mesmo maraj introduzira no
Ocidente
os "jodhpurs", o calo de montar usado habitualmente no seu reino. Chegando a
Londr
es para assistir aos festejos do jubileu de ouro da rainha Vitria, o infeliz
prnci
pe soube que o navio que transportava todas as suas bagagens naufragaraPara salv
ar a situao, foi obrigado a revelar a um alfaiate londrino o segredo do corte dos
seus cales preferidos.
138
progresso, por vezes nicos na sia. Milhes de homens gozavam nestes reinos de
condies
de existncia e vantagens materiais e sociais que a Inglaterra desconhecia na
ndia.
O maraj de Baroda proibira a poligamia e tornara a instruo gratuita e
obrigatria mui
to antes de 1900. Lutara a favor dos Intocveis com um zelo to encarniado como o
de
Gandhi, criando instituies para os alojar, vestir, instruir, e financiando na
univ
ersidade de Columbia em Nova York os estudos do homem que se tornaria o seu lder,
o doutor BhirrIro Ramji Ambedkar. O maraj de BIkarier transformara algumas
regies
do seu deserto do Raiasthan num verdadeiro osis de jardins, lagos artificiais e c
idades florescentes disposio dos seus sbditos. Governado pelos descendentes de
um p
rncipe Bourbon vindo do Pau no sculo XVI, ,o principado muulmano de Bliopal dera
s m
ulheres uma liberdade sem par em todo o Oriente. O Estado de Mysore possua a univ
ersidade de cincias mais conceituada da sia e uma enorme cadeia de barragens hi-
@
.dro-elctrcas e de indstrias sem equivalente na ndia britnica. Herdeiro de um
dos mai
ores astrnomos da Histria, um sbio que traduzira os da geometria de Euclides em
snsc
rito, o maraj de Jaipur toro observatrio da sua capital num centro de estudos de
r
enome internacional. As estradas, as vias frreas, as escolas, hospitais e institu
ies # democrticas com que o maraj de Kapurthala dotara o seu principado,
tornaram-no
num Estado moderno e liberal que podia rivalizar com muitas naes ocidentais.
A Segunda Guerra mundial vira subir aos tronos indianos uma nova gerao de
p
rncipes menos fanticos, menos extravagantes,* menos fabus# que os pas, mas cada
vez
mais conscientes de escasss dos seus privilgios e da necessidade de reformar os
c
ostumes dos seus reinos. Uma das primeiras decises do oitavo maraj de Patiala
fora
encerrar o lendrio h# de seu pai Sir Bhupinder Singh "O Magnfico". O maraj de
Gwali
or posara uma plebeia, filha de um funcionrio, e abandonara o enorme palcio da
faml
ia para viver numa casa de tamanho mais compatvel com reall# ades do mundo do
aps-
guerra. Mas para desgraa destes prncipes e de todos quantos governavam os us#
Esta
dos com competncia e honestidade, o mundo associaria sempre _Z@ marajs e nawabs
da
s ndias com os excessos e excentricidades de um pequeno nmero dos seus iguais.
Para dois Estados da ndia dos prncipes, dois soberanos que disfrutavam a suprema
h
onra da salva de vinte e um tiros de canho, a iniciativa ada em Londres por Sir C
onrad Corfield podia ter consequncias prodas. Os dois reinos tinham dimenses
excep
cionais. Ambos eram# enves. Ambos tinham como monarcas homens de uma regio difere
nte da maioria dos seus sbditos. E ambos acalentavam o mesmo sonho: fazer do
21
seu Estado uma nao independente e soberana. De todas as personagens exticas e
singu
lares que reinavam nas ndias, Rustum-i-Dauran, Arustu-i-Zeman, Wal Mamalik, Asif
Jah, Nawab Mir Osman, Alikhan Bahadur, Musafrul Mulk, Nizam AI-Mulk, Sipali Sala
r, Fatel---i Jang, Sua Alteza Exaltada, Aliado Fiel da Coroa, o stimo nizam do Es
tado de Hyderabad era sem dvida a mais espantosa. Este muulmano erudito e piedoso
possua o Estado mais vasto e mais populoso das indias - vinte milhes de hindus e
t
rs milhes de muulmanos - situado em pleno corao da pennsula. Era um velho com
metro e
meio de altura, que pesava apenas quarenta quilos. Uma vida inteira passada a ma
stigar folhas de betel deixara-lhe na boca s um ou outro dente encarniado. Tinha
t
anto medo de ser envenenado que se fazia acompanhar sempre por um servo que prov
ava antes dele a sua refeio invarivel de queijo fresco, gulodices, fruta, betel
e u
ma poro de pio. O nizam era o nico soberano da india que podia usar o ttulo de
"Altez
a Exaltada", distino que lhe fora conferida pela Inglaterra em reconhecimento dos
cinquenta milhares de francos antigos que ele oferecera por ocasio da Grande Guer
ra.
Em 1947, o nizam passava por ser o homem mais rico do mundo. Cunhava moeda, e a
sua fortuna legendria s era comparvel em reputao sua avareza no menos
legendria.
Vestia-se com pijamas miserveis e calava sandlias compradas por poucas rupias no
ba
zar local. Durante trinta e cinco anos usara o mesmo fez, duro de transpirao e de
sebo. Apesar de possuir um servio de prata dourada que lhe permitia receber mais
de cem convivas, comia num prato de lata, acocorado sobre o tapete do quarto. Er
a to econmico que fumava as pontas de cigarros deixados nos cinzeiros pelos
convid
ados. Quando um jantar oficial o obrigava a oferecer champanhe, tinha o cuidado
de no deixar que a nica garrafa que mandava abrir se afastasse dele. Quando o
vice
-rei Lord Zvell o visitou em 1944, o nizam telegrafou para Nova Dlhi a fim de sab
er se ele exigia que fosse servido champanhe apesar da carestia devido guerra. T
odos os Domingos, aps o servio religioso, O cnsul britnico ia cumpriment-lo.
Imediata
mente, aparecia um criado trazendo uma bandeja com duas chvenas de ch, dois
biscoi
tos e dois cigarros. Certo dia, o Cnsul chegou inesperadamente em companhia de um
visitante de grande distino. O nizam segredou qualquer coisa ao criado que
voltou
com a chvena de ch , o biscoito e o cigarro que faltavam.
Na maior parte dos Estados, o uso obrigava os nobres a oferecerem, todos os anos
ao seu soberano uma moeda de ouro, limitando-se o monarca a toc-la antes de a de
volver ao seu proprietrio. Mas em Hyderabad no havia oferendas simblicas. O
nizam a
poderava-se de todas as moedas de ouro e metia-as numa fronha de travesseiro pen
durada atrs dele. Em determinado ano, uma das moedas rolou para debaixo do trono:
sem hesitar um segundo, e apresentando aos sbditos o espectculo poucO
140
@a"radveI do seu assento, o nizam ps-se de gatas para recuperar a moeda. Era tal
a
sua mesquinhs, que o mdico vindo de Bombaim para lhe observar o corao, no
conseguiu
obrig-lo a fazer um electrocardiograma. Nenhum aparelho elctrico funcionava como
d
evia ser em casa dele: por medida de economia, o nizam ordenara central elctrica
de Hyderabad _que reduzisse a voltagem.
Descendente de*Maom, herdeiro do fabuloso reino de Golconda, o nizam recusara~se
sempre a habitar o palcio dos seus antepassados. Preferia morar numa casa velha q
ue lhe deixara um dos seus cortezos. O quarto parecia uma pocilga, mobilado apena
s com um colcho, uma mesa,# @ras, uma ser espcie de cinzeiros e de cestos de
papis,
despejados uma vez por ano, no dia do seu aniversrio. O escritrio estava
atravanc
ado de _mesas velhas e de cmodas carregadas de maos de arquivos cobertos de teias
de aranha.
Contudo, este palcio da misria albergava nos seus recantos uma for# que desafiava
a imaginao. A gaveta da secretria desengonada# :,@,,.,,,,O"tinha, embrulhado
num jor
nal velho, o Kob-i-Noor - "A Montanha de @z" um fabuloso diamante de 28O quilate
s que fora a grande jia do tero# os imperadores mongis. O nizan utilizava-o s
veze
s como pisapapeis. No jardim abandonado havia uma dzia de camies to carregados
que
se enterravam no cho at aos eixos. Estavam cheios de lingotes Uma coleco de
jias, to
fantstica que se dizia que podia coouro
OS passeios de Picadilly, enchia todas as gavetas e o velbo cofre-forte seu quar
to. Possua bas cheios de rupias, de dlares e de libras esterlinas embrulhadas em
pa
pel de jornal e totalizando cinco bilioes de francos tgos. Uma legio de ratos que
dela faziam a sua refeio favorita, desavam todos os anos em vrios milhes esta
fortu
na. Finalmente, guardados por um batalho de amazonas Africanas armas de punhais,
quarenta esposas legtimas, uma centena de concubinas e outros tantos filhos nasci
dos das suas proezas povoavam o seu harm.
A fortuna mais querida do nizam naqueles tempos incertos era de facto Dispunha o
seu numeroso exrcito, equipado com artilharia e aviao. - sim e quase todos os
trun
fos para a independncia, excepto o acesso ao
4r e o apoio do seu povo. Na maioria hindus, os sbditos apoiavam a queria minori
a muulmana que os governava. O estranho monarca no tinha porm quaisquer dvidas
sobre
o seu futuro. Quando Sir Conrad orfield o foi informar da deciso da Gr-Bretanha
d
e abandonar as n- >@'dias, ele pulou de contente na cadeira.
- Enfim! gritou, enfim, vou ser livre! A mesma ambio animava outro poderoso
sobera
no no extremo oPosto das ndias. Reinando sobre um dos mais clebres e mais belos
lu
gares do mundo, o vale encantado de Cachemir, Hari Singh era um hindu de alta ca
sta bramane. Os seus quatro milhes de sbditos eram em trs quartos Muulmanos. O
seu r
eino, encravados entre as paredes dos picos do Himalaia, estendia-se sob o Tecto
do mundo varrido pelos ventos que sopravam
- 141
-
do Ladalch, doTibete e do Siri Kiang. Constituia uma encruzilhada vital para a nd
ia, o futuro Paquisto, a China e o Afganisto haviam fatalmente de se enfrentar um
dia.
Pessoa fraca e indecisa, o maraj Hari Singh dividia o seu tempo entre as festas l
uxuosas de jammu, sua capital de Invemo, e as lagoas cobertas de Itus da sua capi
tal de Vero, Srinagar, a Veneza do Oriente. Inaugurara o seu reinado com algumas
tentativas de reforma, depressa dominadas pelo seu despotismo crescente, mandand
o a pouco e pouco todos os adversrios para as prises do seu Estado. Um deles fora
o prprio Nehru, preso durante uma visita ao Cachemir dos seus antepassados. Como
o nizam de Hyderabad, Hari Singh possua um exrcito capaz de defender as
fronteiras
do seu reino e de fazer pesar a sua reivindicao de independncia.
142
~MIO oitavo "UM DIA AMALDIOADO PELOS ASTROS "
- O homem que descia do carro em frente do N.O 1O de Downing Street podia estar
legitimamente apreensivo. Convocado para se apresentar em Londres a fim de expli
car o incidente de Sitrila com Nehru, Lord Moutitbatten fora prevenido por Ismay
logo aterragem de que o governo estava fortemente irritado com a sua maneira de
agir". Contudo, no sentia a inquietao.
Levava consigo o novo plano de independncia das ndias, redigido# p>r@V,,P. Menor
aps
a rejeio brutal da primeira verso por parte de N,,4rg. Estava persuadido de que
es
te plano continha agora a chave do problema indiano. De qualquer forma, no viera
a Londres para "se explicar. Tencionava pelo contrrio substituir o antigo texto p
elo novo e demonstrar a Clement Attlee e ao seu governo "que podiam sentir-se fe
liz, por ele ter tido a intuio de mostrar o projecto a Nehru".
Com um largo sorriso, Mountbatten atravessou a barreira dos fotgrafos, e dirigiu-
se ao escritrio onde fora investido da sua misso, cinco meses antes. Attlee e
todo
s os ministros relacionados com as questes indianas estavam sua espera. O
acolhim
ento foi cordial mas reservado. $im.i'se: mostrar desconcertado, Mountbatten com
eou a relatar a situao. % N,-@q_ lhes mostrei o menor arrependimento, contaria
ele
mais tarde, como lhes dei a menor justificao. Tive a sensao terrvel, no de
orgulho, ma
s, de convico absoluta de que tudo dependia de mim e de que todos aqueles
ministro
s deveriam fazer o que eu lhes dissesse."
as modificaes feitas no plano inicial, Mountbatten anunciou que tinha razes para
af
irmar que todas as partes em causa estavam agora de acordo para aceitarem as pro
postas do novo documento. Mas sobretudo, acrescentou, trazia uma informao da mais
alta importncia. Recebera a garantia de que a ndia e o Paquisto independentes
conti
nuariam ligados Gr-Bretanha fazendo parte do Commowealth britniCO, O partido do
Co
ngresso estava com efeito disposto a aceitar o estatuto domnio. Mas com uma
condio:
que a independncia fosse dada imediatamente, sendo a data limite de 3O de junho
de 1948 considerada muito afastada. , Persuadido de que a rapidez era a base do x
ito, Mountbatten queria convencer o governo da necessidade de agir depressa. Qua
nto tempo teria ele de esperar que o Parlamento votasse a lei dando a independnci
a s ndias? perguntou. j@-# O vontade do jovem almirante perante o austero
aerpago fo
i to
143
notvel, que em poucos minutos conseguia mudar em seu favor uma atmosfera ao
princp
io hostil. Fascinados pelo seu encanto e poder de persuaso, os ministros adoptara
m o novo plano sem lhe fazer qualquer alterao, por mais pequena que fosse.
- Good God! exclamou Lord lsmay que fora testemunha de tantas tempestades provoc
adas por Churchill naquela mesma residncia. Assisti a muitas proezas na minha vid
a, mas a que voc acaba de conseguir ultrapassa-as todas!
A possante silhueta que Lus Mountbatten via deitada na cama, com um roupo escocs
so
bre os ombros, com meios culos a cavalo na ponta do nariz, o famoso charuto na bo
ca, fizera sempre parte da sua existncia, A imagem de Winston Churchill povoava a
s suas recordaes de adolescente, desde o dia em que o tinha visto, jovem e
exubera
nte Primeiro Lord do Almirantado, a falar no salo da residncia familiar com o
pai,
enta o primeiro Lord do Mar. Mouritbatten lembrava-se at de ouvir a me dizer por
graa a propsito do homem que se tornaria o smbolo da resistncia contra Hitler
que <@
no se podia contar com ele", porque praticara uma falta inqualificvel: no
devolvera
um livro que pedira emprestado.
Nos meses que se seguiram crise de Munique, uma viva simpatia aproximara o jovem
oficial de marinha e o poltico que aconselhava, no meio da indiferena geral, o
re
armamento da Gr-Bretanha. Mais tarde, impressionado pela impetuosidade de Mountba
tten, Churchill dera-lhe o seu primeiro alto comando de guerra nomeando-o chefe
das Operaes combinadas, depois comandante supremo interaliado do Sudeste
asitico. A
pesar da diferena de idades, laos profundos haviam ligado os dois homens durante
t
odo o tempo de guerra e Mountbatten nunca se esquecera de ir visitar o velho lea
o sempre que qualquer misso o obrigava a ir a LondreS.
1 Tratava-se do livro francs Psychologie des foules de Gustave Le Bon.
2 Logo aps o seu naufagio em Crera, Mountbatten fora convidado por Churchill para
almoar no sbado 21 de junho de 1941, em companhia do magnate da imprensa
britnica L
ord Max Beaverbrook. O Primeiro ministro recebeu nesse dia os seus convidados co
m rosto alegre.
- Tenho novidades interessantssimas, anunciou ele. Hitler vai atacar a Rssia
amanh
de madrugada. Durante toda a manh temos tentado adivinhar o que vai acontecer.
- Eu digo-lhe o que vai acontecer, interrompeu Beaverbrook. Os alemes vao entrar
na Rssia como em terreno conquistado. E que razia! Em menos de um ms, seis
semanas
o mximo, tudo estar terminado.
- Os americanos, objectou Churchili, acham que os alemes vao levar mais de dois m
eses, e o nosso Estado-Maior da mesma opinio. Quanto a mim, penso
-
-
-
- 144
Mountbatten sabia que Churchill o estimava, mas, explicava ele, "por duas razes.
Pensava que era apenas um guerreiro, uma espcie de mata-# .@ffiuros. No fazia a
men
or ideia da natureza das minhas concepo espo#- @y@Cas". O jovem almirante estava
c
onvencido de que se Churchill tivesse ,4OO eleito em 1945, ele seria "eliminado
como um trapo velho", por causa das suas opinies liberais acerca do futuro do Sud
este asitico.# Hoje, Mountbatten visitava Churchill a pedido do Primeiro ministro
,
o convencer a cumprir a misso mais dolorosa de velho Conservador.
que desse o seu beneplcito ao plano que ia desencadear o# &~embrarnentc>
inexorvel
do seu querido Imprio. "Winston a mola do problema em Inglaterra, declarara
Attl
ee a Mountbatten ao aconselhar-lhe esta diligncia. Nem eu nem ningum do meu
govern
o conseguir convenc-lo. Mas ele estima-o. Confia em si. Voc tem possibilidades."
Rude tarefa. Mountbatten sabia que ChurchlI achava desastroso quallquer projecto
que permitisse aos indianos governarem-se sozinhos. @"edtava sinceramente que " a
pior catstrofe que podia acontecer s indias era priv-las da eficiente
administrao br
itnica para a substituir por um bando de indianos perturbadores e inexperientes".
`'Mountbatten comeou a esboar o plano dos seus esforos dos ltimos" meses. O
momento
era crucial. Havia meio sculo que Churchill dizia ,@@" a qualquer reforma que pu
desse levar as indias independncia.
os russos vo aguentar pelo menos trs meses, mas que depois sero vencidos e ou
ns fic
amos como antes, entre a espada e a parede ...
Dando ento com os olhos em Mountbatten, que parecera ter ficado esquecido durante
a conversa, Churchill dirigiu-se ao seu jovem amigo, quase desculpando-se,#cont
e-nos l os seus combates em Creta! j pertencem ao passado, respondeu Mountbatten.
Mas se me permite dar opinio, gostava de lhe dizer o que vai acontecer na Rssa.
Chu
rchill concordou, um pouco contrariado.
No sou da opinio de Max Beaverbrook, declarou Mountbatten. Tambm I)ko,estou-de
acor
do com os americanos, com o nosso Estado-Maior e, sinceramente, consigo mesmo, S
enhor Primeiro ministro. No penso que os russos sejam vencidos. Vai ser o fim de
Htler. a viragem da guerra.
Ento, Dickie, respondeu Churchill a sorrir, porqu esse seu ponto de vista to
difere
nte?
Primeiro porque as purgas militares de Estaline eliminaram toda a oposio interna
p
rovvel de que os nazis poderiam procurar servir-se. Depois, e doloroso# J@a#
tnM re
conhec-lo visto que a minha famlia reinou ali durante tanto tempo, `4 russos tm
ago
ra qualquer coisa a defender. Desta vez lutaro todos.
Churchill no pareceu de forma nenhuma convencido. sempre agradvel ouvir uma
opinio
jovem e entusistica como a sua,# @ Dickie. Veremos.
145
Um ltimo "no" daria agora o golpe fatal a todas as esperanas de Mountbatten.
Chefe
da maioria da Cmara dos lords, Churchill podia, recorrendo a todos os artifcios
do
processo parlamentar, retardar durante dois anos a lei promulgando a independnci
a das ndias.
O vice-rei sabia a tragdia que podia resultar desse "no". O acordo do Congresso
ao
seu plano dependia da outorga imediata da independncia. O seu governo, a sua adm
inistrao e todo um continente borbulhante depaixes raciais e religiosas no
sobrevive
ria a esse adiamento que um Churchill irascvel podia infligir ao curso da
Histria.
Com os olhos semi-cerrados, Churchill ouviu o vibrante apelo do seu jovem amigo
com o ar de um Buda perdido em meditao. Nada, nem o espectro da derrocada das
ndia
s, nem o caos, nem a guerra civil, provocou a menor reaco no seu rosto
impassvel.
Mountbatten lanou ento a ltima carta. Anunciou que possua a garantia de que as
ndias
ficariam no Comunwealth se a independncia fosse concedida imediatamente.
Churchill no acreditou nos seus ouvidos. Era possvel que os inimigos mais
implacvei
s do Imprio tivessem aceite conservarem-se nas fileiras da comunidade britnica?
Qu
e as glrias passadas do seu querido Imprio se perpetuassem nas novas estruturas
da
era que comeava? Que podia restar qualquer coisa dessa velha ndia onde queimara
a
s energias da sua juventude romntica; que continuariam, acima de tudo, os seus
lao
s com a Inglaterra?
Desconfiado, interrogou o visitante. Possuia ele uma garantia escrita? Mountbatt
en respondeu que tinha uma carta de Nehru dando todas as garantias desejadas.
- E o meu velho inimigo Gandhi? perguntou Churchill. Mountbatten reconheceu que
Gandhi era uma personagem imprevisvel. Representava um perigo real, mas o vice-re
i esperava poder neutraliz-lo com a ajuda de Nehru e de Patel.
Churchill pareceu voltar sua meditao. Ergueu-se por fim sobre o travesseiro e
decl
arou que se Mountbatten obtivesse o acordo solene e pblico de todos os partidos i
ndianos ao plano que propunha, "a Inglaterra inteira" estaria com ele. Os Conser
vadores juntar-se-iam com os Trabalhistas para fazerem votar a lei necessria ante
s das frias de Vero do Parlamento. As ndias poderiam ser independentes no
dentro de
anos ou meses, mas dentro de algumas semanas, e at de alguns dias.
De toda uma srie de fogueiras espalhadas atravs das ndias, espessos rolos de
fumo s
ubiam ao cu. No havia nenhuma madeira de sndalo, nenhuma oferenda de gbi a
alimenta
r estas piras crematras improvisadas. Nenhuma carpideira cantando mantra estava
ju
nto dos brazeiros vigiados
146
apenas por alguns funcionrios britnicos imperturbveis. Era# w@>apeI o que as
chamas
devoravam, quatro toneladas de documentos, de relatrios, de arquivos. Acesos por
ordem de Sir Conrad Corfield, estes
>,#ibg@de f reduziam a cinzas os episdios mais sinistros de alguns captulos
pitoresc
os do passado das ndias: a histria secreta dos vcios, das lou- ,tUr@w,e_dos
escndalo
s de cinco geraes dos seus protegidos, os prncipes# irios. Corficid receava que
esse
s arquivos, acumulados pelo zelo meti-
ivos da coroa, caindo intactos nas mos Qf~ dos representantes sucess ",,:,.,dos f
uturos dirigentes da ndia e do Paquisto, se tornassem armas de uma channtagem
polti
ca. _@9>wApesar de ter regressado de Londres com a garantia de que a Inglater-4`
lno abandonaria impunemente os seus prncipes indianos nas garras socialistas do
C
ongresso, Corfield continuava to pessimista quanto futuro que estava resolvido a
preservar pelo menos o seu passado. T@*& conseguido o acordo do governo de Attle
e para a destruio desses arquivos, ordenara imediatamente a todos os cnsules
e agentes polticos "britnicos colocados nos principados que queimassem todos os
do
cumentos# e arquivos vida privada dos prncipes. -I@,@.@@'Sir,Conrad Corfield
acen
deu ele prprio a primeira fogueira debaixo suas ,janelas do seu escritrio. Era
uma
pequena montanha de dossiers guardados at ento num cofre-forte de que s ele e o
se
u adjunto possuiam a chave. A escrupulosa compilao de cento e cinquenta anos de
es
- ~os@principescos desfazia-se em fumo. Considerando que esses documentos,faziam
parte do patrimnio indiano, Nehru protestou energicamente, #@, wji.>, Mas, era d
emasiado tarde. Em Patiala, Hyderabad, Indore, Mysore, .11atoda, Porbandar - ptri
a de Gandhi nas margens do mar de Oman -, ,~.@ZhiIral no Himalaia, na atmosfera
tropical dos pntanos de Cochim, `@@-toda,a parte, os funcionrios britnicos
atiravam
s chamas a crnica `~Ud-alosa de uma poca. Todos os relatos das excentricidades
sexu
ais de alguns prncipes podiam por fim alimentar as chamas durante horas. Um nawab
de Rampur apostara ICOM.,'vrios dos seus pares que era capaz de desflorar num an
o maior n- ,flcro,de virgens do que os outros. A prova de cadauma das suas
conquis
tas era o anel de ouro que as jovens usam na narina at ao casamento. @,@FZViando
os seus espadachins s aldeias do seu reino, como batedores da @' ~wao faiso, o
naw
ab ganhou com enorme vantagem a aposta. No "-fim d ano a colheita de anis pesava
vr
ios quilos. A fogueira dos arquivos do mara' de Cachemir consumia os segredos um
dos mais rocambolescos escndalos de entre as duas guerras. O
fora um dia surpreendido num quarto do hotel Savoy, em Londres; por um homem que
se apresentou como o esposo da sua jovem `@@"nte iniziesa. De facto caira nas m
alhas de uma quadrilha de chantasisItOs@que iam quase conseguindo esvaziar os co
fres do Estado de Cachemir -POT intermdio da conta bancria pessoal do seu
soberano
. O escndalo
147
rebentou quando o verdadeiro marido da jovem, achando que no fora suficientemente
remunerado pelo emprstimo da esposa, foi revelar tudo polcia. No retumbante
proce
sso que se seguiu, a identidade do infeliz maraj foi disfarada com o pdico
pseudnimo
de "M. A.". Desiludido para sempre das mulheres, Hari Singh voltou para Cachemi
r onde descobriu novos horizontes sexuais na companhia de rapazes novos. Fielmen
te registados pelos representantes da coroa, os relatos dessas novas actividades
voavam agora no ter do Himalaia, com a ajuda da fresca brisa de Srinagar que ace
lerava a sua combusto.
O nizam de Hyderabad combinava, esse, duas paixes: a fotografia e a pornografia.
Tinha reunido uma impressionante coleco de documentos erticos. O ilustre velho
diss
imulara nas paredes e tectos dos quartos dos convidados, cmaras automticas que
reg
istavam os seus actos sexuais, Fizera at instalar um aparelho por detrs do
espelho
da casa de banho dos aposentos do palcio reservados aos hspedes de qualidade. A
c
olheta desta cmara apresentando os grandes da ndia aliviando o ventre sentados
nas
sanitas constituia o melhor da sua estranha coleco.
O ltimo relatrio acerca do nizam referia-se aos esforos do cnsul britnico
para ter a
certeza de que as inclinaes sexuais do prncipe herdeiro estavam conformes com
as d
e um futuro soberano. Com todo o tacto de que era capaz, o ingls fizera aluso a
c
ertos rumores segundo os quais as preferncias do jovem no se dirigiam s
princesas.
O nizam mandou imediatamente chamar o filho, assim como uma das mais graciosas r
aparigas do seu harm. Sem fazer caso dos protestos embaraados do cnsul, disse ao
fi
lho para demonstrar ali, pblica e completamente a sua virilidade. S assim podia
se
r desmentida a insinuao caluniadora de que ele era incapaz de perpetuar a
dinastia
.
De todos os escndalos que desapareciam nas fogueiras purificadoras de Sir Conrad
Corficid, nenhum deixara um rasto to slido como o do reinado, pelos anos 3O, do
prn
cipe de um pequeno Estado de oitocentos mil habitantes na fronteira do Rajzsthan
. O mara de Aiwar era um homem to encantador e culto que conseguira fascinar
vrios v
ice-reis ao ponto de continuar impunemente as suas actividades. Como acreditava
ser uma reincarnao do deus Rma, usava permanentemente luvas de seda preta a fim
de
conservar as mos livres da sujidade da carne de qualquer mortal , ao ponto de se
recusar a descalar a luva para cumprimentar o rei de Inglaterra. Pretendendo usar
um turbante igual ao do deus Rma, contratara um exrcito de telogos hindus
apenas c
om o objectivo de lhe calcularem as verdadeiras dimenses.
Entre os seus poderes temporais de prncipe e o poder divino que a si prprio se
atr
ibua, o maraj de AIwar no era homem para dominar os seus apetites. Sendo um dos
mel
hores atiradores da ndia, adorava matar os animais servindo-se de crianas como
isc
a. Mandava-as buscar s aldeias, prometendo aos pais horrorizados abater o animal
antes dele ter tempo de devorar os filhos. Homossexual de gostos particularmente
per
148
h transformado o seu leito real na nica academia militar onde os, tin# a os joven
s oficiais do seu exrcito podiam esperar obter gales. As orgias "que os obrigava
a
participar terminavam s vezes com assassnios sdicos. Se a frequncia e
regularidade
dos seus abusos tinham deixado indife# nao suzerana, os dois crimes que o maraj
de
AIwar teve a infelicidade de praticar sob o reinado do vice-rei Lord Willingdon
seriam a sua# 1,*Oa. Convidado a almoar no palcio do vice-rei, o prncipe foi
posto
e@'# ta de Lady Willingdon que admirou com entusiasmo o enorme diaic que ele u
sava num dos dedos enluvados. A admirao da vice talvez no fosse completamente
desin
teressada. Com efeito, a tra mandava que os prncipes oferecessem ao vice-rei ou
v
ice-rainha objecto que suscitasse o seu apreo. A convite amvel do hspede,
contemplo
u-o mais maravilhada vice-rainha experimentou o anel, e devolveu-o ao seu propri
etrio.
O prncipe mandou vir discretamente um recipiente com gua. Com espanto de todos os
convivas, a reincarnao de Rma comeou a# car cuidadosamente a jia de toda a
sujidade q
ue nela pudesse ter
-rainha. Terminada a operao, tornou a meter o anel no ado a vice
segundo crime, mais imperdovel ainda aos olhos dos britnicos, desenrolou-se num
ca
mpo de polo. Furioso com a fraca demonstrao de @<los# seus pneis durante um
desafio
, o soberano mandou-o regar com scou ele mesmo o fsforo que o transformou numa to
cha viva. ina e ri revelao pblica da sua crueldade para com um animal pesou
mais# @
4xje todos os requintes sdicos e por vezes mortais que infligira a grannumero de
companheiros de orgias. O mara' de AIwar foi deposto e tado. Acabou os seus dias
no exlio dourado do seu castelo na Ute
pesar de excepcional, o caso deste prncipe no foi o nico a perturbar as relaes
entre
os puritanos senhores britnicos e os seus extrava-
#
1 tites vassalos. Com a crnica das torpezas dos prncipes ardiam tambm relatos de
nu
merosas crises,
m is grave tivera como responsvel o mara' de Baroda. Escandalo com facto do
cnsu
l britnico colocado no seu Estado, " um coro-
o obscuro", ter direito ao mesmo nmero de salvas de canho que ele, o
ipe mandou imediatamente fundir dois canhes em ouro macio para s suas salvas uma
re
ssonncia mais real que a do coronel. Conside-
-se insultado, o cnsul enviou a Londres um relatrio desfavorvel
a moral do maraj, acusando-o de tratar como escravas as mulheres do seu harm.
Para
se vingar, o prncipe convocou os melhores astrlogs e os homens
149
mais santos do seu reino, intimando-os a verem na conjuntura dos astros uma mane
ira de fazer desaparecer o indesejvel coronel. Aconselharam-lhe o envenenamento p
or meio do diamante. O prncipe escolheu no seu tesouro uma pedra do tamanho de um
a avela, que achou apropriada categoria do cnsul. Os astrlogos reduziram-na a
p, qu
e foi certa noite, misturado aos alimentos do coronel. Mas as horrveis dores inte
stinais que provocou permitiram salv-lo; foi transportado ao hospital, onde uma l
avagem ao estmago evitou o pior.
Esta tentativa de assassnio na pessoa de um representante da coroa resultou numa
questo de Estado. O maraj foi castigado. Os seus juzes no se comoveram com a
garanti
a dada pelos sacerdotes brmanes de que tinham cumprido devidamente todos os ritos
que garantiam a transmigrao da alma do coronel, nem com a de um joalheiro
assegur
ando que o valor do diamente "correspondia exactamente ao de um coronel ingls".
O maraj de Baroda foi deposto por "incapacidade para administrar correctamente um
Estado vassalo da coroa britnica".
Foi vingado por um prncipe seu amigo. Quando o vice-rei que assinara a ordem de e
xlio, foi visitar o seu Estado, o maraj de Patiala ordenou aos artilheiros
encarre
gados de disparar os trinta e um tiros de canho devidos ao representante do rei-i
mperador que usassem to pouca plvora que as exploses "no fizessem mais barulho
do qu
e um petardo de criana".
Outras medidas para as quais Corfield rerebera igualmente o acordo de Londres se
guiram-se destruio dos arquivos. Eram menos espectaculares, mas podiam revelar-
se
de importncia muitssimo maior. Um dilvio de cartas enviadas por grande nmero de
prin
cipes comeou a chover sobre Nova Delhi. Por meio delas, os marajs informavam a
adm
inistrao central da ndia britnica a sua inteno de anular os acordos
autorizando os Cam
inhos de ferro, os Correios, os Telgrafos e os outros servios a utilizarem as
faci
lidades dos seus territrios. Esta tctica ofensiva tinha como objectivo demonstrar
que os prncipes no estavam desprovidos de trunfos para enfrentarem a explicao
decisi
va que se aproximava. A ndia que tais medidas faziam prever era uma ndia de
pesade
lo, onde os comboios no andariam, os avies no poderiam aterrar, onde a
electricidad
e no seria distribuda, onde o telefone e o telgrafo ficariam calados.
O enorme retrato do general Robert Clive dominava os debates dos sete lderes indi
anos reunidos no gabinete do vice-rei. Representantes dos quatrocentos milhes de
homens e de mulheres das ndias, esses milhes de seres a quem justamente Gandhi
cha
mava "os miserveis espcimes de uma humanidade de olhar sem expresso", tinham
ido, n
esse dia 2 de junho de 1947, a casa de Lord Mountbatten para discutir o document
o que ia devolver ao seu povo o continente conquistado dois sculos antes Pelagene
ral britnico. O vice-rei trouxera-o pessoalmente quarenta e oito horras antes de
Londres onde fora aprovada pelo gabinete de Clement At-
Cada lider ocupou o seu lugar na mesa redonda presidida por Lord wfflntbatten. J
innah, Linquat Ali Khan e Rab Nislitar em nome da Liga muulmana. O Congresso era
representado por Nchru, Patel e o seu presidente, Acharya Kripalani. Finalmente,
Baldev Singh, porta-voz dos seis milhes de sikhs, a comunidade que viria a ser a
mais afectada pelo que ia deMir-se4 L ,,Un@ fotgrafo oficial apareceu para imort
alizar a cena. Depois, aps alguns minutos de silncio cortados por leves tosses
ner
vosas, um secretrio colocou em frente de cada participante um sobrescrito contend
o um exemplar do plano redigido em Simla por V. P. Menon e aceite sem altera-
por Londres. oiuEra a @primeira vez, desde a sua chegada s ndias, que Mountbatten
se ~abrigado a substituir por uma mesa redonda a sua estratgia dos diloOs a dois.
Decidira ser o nico orador, no querendo sob nenhum pretexto correr o risco de ver
a reunio degenerar em assembleia onde cada um t~se destruir o plano que fora to
di
fcil de elaborar. @@; `@',,onsciente da importncia histrica desta reunio,
comeou por s
ubliinhar que, durante os cinco anos decomdos, tomara parte em muitas conferncias
-onde se decidira o destino da guerra. Mas no se recordava de @,~hwm encontro to
d
ecisivo como aquele. Mountbatten lembrou os esforos que desenvolvera desde a sua
chegada a Nova Delhi, depois passou _~amente em revista os pontos essenciais do
plano que tinham na sua k~ Abordando a clusula acerca da permanncia da ndia e do
Pa
quis- `4WmwComirion~Ith, o que fizera merecer a adeso de Winston Churchill, subli
nhou que ela no exprimia de forma nenhuma um desejo da Gro-Bretanha de continuar
a
dominar, mas dava a garantia de que a assis- ~;britnica no seria retirada
repenti
namente, no caso de ser deseja- @,EVoOu a seguir o problema de Calcut, depois a
tr
agdia que ameaa-
os skins.
@PIMeclarou `que no pedia aos presentes que fossem contra a sua conscincia dando
o
seu acordo total a um plano do qual alguns aspectos cho-
as:suas convices profundas. Ma@ convidava-os a aderirem a ele esprito de
tranquilid
ade geral e comprometerem-se a aplc-lo eviti,derramamentos de sangue. `@"lVT<mdo
o
cuidado de dar aos seus interlocutores um prazo de reflexo o mais curto possvel,
Mountbatten pediu-lhes o acordo definitivo para o @"guinte, mesma hora. Mas dese
java, acrescentou, que cada um, at lhe @
desse o seu acordo em princpio.# `tI'e;@_4@@Gentlemen, concluiu, gostaria de ter
notcias vossas hoje antes da #noite.
Uma preocupao secreta dominava Lus Mountbatten desde o seu regresso
a
Nova Dlhi, uma preocupao que empanava o brilho dos seus xitos londrinos e o seu
"eno
rrne optimismo quanto ao futuro". Iria o "imprevisvel Mahatma" tentar conseguir q
ue falhassem os seus projectos? Esta perspectiva aterrava-
Sentia verdadeiro afecto pelo seu "pobre pardalito". A ideia de que ele, o guerr
eiro profissional, o vice-rei, podia ser obrigado a travar uma luta de fora com o
apstolo da no-violncia, consternava-o.
Era todavia uma eventualidade a encarar. Se Jinnah fora o homem que aniquilara a
s suas esperanas de preservar a unidade das ndias, Gandhi podia ser quem pusesse
o
bstculo sua tentativa de a dividir. Desde a sua chegada s ndias, o vice-rei
no desis
tira de procurar atrair a confiana dos lideres do Congresso a fim de poder, em ca
so de luta de fora, neutralizar o Mahatma durante algumas horas cruciais.
A empresa fora mais fcil do que ele esperava. "Tinha-a estranha sensao, contaria
ma
is tarde Mountbatten, de que eles estavam at certo ponto dispostos a apoiar-se co
ntra Gandhi, que me estimulavam quase a desafi-lo".
Mas o vice-rei sabia tambm que o Mahatma dispunha de recursos excepcionais. Dispu
nha do prprio partido, milhes de militantes que o veneravam, e sobretudo,
dispunha
do seu poder nico de galvanizar as massas. Se ele decidisse no fazer caso dos
com
promissos dos dirigentes e voltar-se directamente para as multides indianas, Gand
hi podia provocar uma crise terrvel.
Tudo indicava que se preparava justamente para enveredar por esse caminho. No aca
bava ele de gritar durante a sua orao pblica da noite: "Que o pas inteiro se
torne p
asto das chamas! Nunca abandonaremos uma polegada da ptria."
Por detrs destas palavras escondia-se uma surda angstia. Evidentemente que todas
a
s fibras do seu ser lhe diziam que a Partilha era um mal. Mas, pela primeira vez
, Gandhi j no tinha a certeza absoluta de que as massas da ndia estariam prontas
a
segui-lo.
Certa manh, durante um passeio nas ruas de Nova Dlhi, um dos seus partidrios
interp
elou-o:
- Na hora decisiva, espantou-se ele, parece que no conta 1s muito,
como se quisessem deixar-vos de fora, a vs e aos vossos ideais.
- verdade, suspirou o Mahatma com amargura, toda a gente se preocupa em pr
flores
na minha fotografia e nas minhas esttuas. Mas ningum quer seguir os meus
conselho
s.
Alguns dias mais tarde, Gandhi acordara meia hora antes da orao da alvorada. Ele
e
a sobrinha-neta Manu tinham retomado o hbito de dormirem juntos. A jovem ouviu o
velho lamentar-se no escuro da sua cabana no bairro dos Intocveis.
152
"Agora estou sozinho, murmurou ele. At mesmo Nehru e Patel estou errado e que a P
artilha trar a paz ... Perguntam se eu que eu um pouco caprichoso com a idade."
Seguiu-se um grande sime torne Depois Gandhi suspirou: "Talvez eles tenham razo e
eu esteja a Seguiu-se outro longo silncio, depois Manu em vo nas trevas."
e t fase: "Talvez eu j no esteja neste mundo para assistir, mas se s a r que eu
re
ceio viesse a atacar aIndia e pr a sua independncia em a posteridade saiba a
agoni
a que sofreu esta velha alma ao go, que ssas desgraas. " ne A "velha alma" tinha
entrevista marcada no escritrio do vice-rei no -2de Junho ao meio-dia e meia, ou
seja, hora e meia depois dos sete lders in an
dios, para dar a Mountbatten a resposta que este esperava com impacincia. Gandhi,
para quem a exactido era sagrada, chegou no preciso em que soava meio-dia e meia
hora. Receando que uma demonstrao de guerra lhe sasse da boca, o vice-rei
levantou
-se para o receantes de ter tempo para lhe dese'ar as boas vindas, o Mahatma pus
era ,,,,',,,#w,dedo nos lbios. " Graas a Deus, o seu dia de silncio! "pensou
com alv
io. andhi instalou-se no cadeiro e tirou das abas do seu dboti um mao brescritos
u
sados e uma minscula ponta de lpis. Negando-se a des- <ar nem que fosse um bocado
de papel, abria ele mesmo o correio e Asformava todos os sobrescritos em bilhete
s que usava para comunicar -'~',os outros nos seus dias de silncio. @,Assim que M
ountbatten acabou de expor o seu plano, Gandhi molhou do lpis com a lngua e
redigi
u a resposta, enchendo o verso de sobrescritos com a sua letra inclinada. ",Lame
nto no poder falar consigo, escreveu ele. Quando tomei a deciso observar um dia
de
silncio segunda-feira, previ a hiptese de quebrar este voto em dois casos:
para t
ratar de questes urgentes @Om uma alta individualidade, e para tratar doentes. Or
a, eu sei que no `a que eu quebre o meu silncio. H todavia duas coisas que devo
tra
ir Consigo. Mas hoje no. Se tornarmos a ver-nos lhe direi."
Depois levantou-se e despediu-se.
O Palcio do vice-rei estava mergulhado na escurido e no silncio. De em quando,
com
o um fantasma roando os tapetes com os ps descalos, passava um criado de tnica
branc
a. As luzes do gabinete de trabalho Mountbatten brilhavam ainda apesar da hora a
vanada da noite, iluminando o ltimo encontro daquele dia frtil em surpresas.
Mountb
atten `.Observava espantado o seu novo visitante. Os dirigentes do Congresso tin
ham dado a conhecer no praso marcado a deciso de aceitarem o plano Proposto nessa
mesma manh. Os sikhs tambm. E agora o homem a
153
quem este plano devia agradar mais do que a ningum, aquele cuja vontade inflexvel
conseguira a Partilha das ndias, procurava retardar as coisas. Era tambm, at
certo
ponto, o dia de silncio de Mohammed Ali Jinnah.
O objectivo de toda a sua vida estava ao seu alcance. Mas por qualquer razo miste
riosa, no se decidia a dizer a palavra que obstinadamente se recusara a dizer tod
a a vida: sim.
Puxando lentamente fumaas de um dos seus eternos Craven A metido na ponta de uma
boquilha de jade, Jinnah obstinava-se em .repetir que no podia dar o seu aco
rdo antes de consultar a Liga muulmana, formalidade que exigiria pelo menos uma s
emana.
Mountbatten sentiu-se dominado pela ira. Todas as frustraes que a atitude glacial
e intransigente do chefe muulmano o tinham feito sofrer voltaram-lhe memria.
Nessa
noite, Jinnah ultrapassara os limites. Conquistara "o seu maldito Paquisto". At
m
esmo os sikhs estavam resignados a isso. Todas as suas principais exigencias hav
iam sido satisfeitas, e eis que no momento decisivo, se preparava para fazer cai
r todo o edifcio devido sua incapacidade psicolgica de articular apenas a
palavra
"Sim".
Mountbatten tinha uma razo imperiosa para querer o acordo imediato de Jinnah: den
tro de menos de vinte e quatro horas, Clement Attice ia anunciar a Partilha das n
dias na Cmara dos Comuns. O vice-rei empenhara toda a sua responsabilidade assegu
rando ao Primeiro ministro e ao governo britnico que no haveria mais surpresa
nenh
uma e que, desta vez, todos os dirigentes indianos assinariam o plano aceite por
Londres. A custa de enormes dificuldades, conseguira pr o Congresso de acordo co
m a ideia da partilha. O prprio Gandhi se afastara, pelo menos temporariamente da
luta. A menor hesitao da parte de Jinnah, a mais nfima suspeita de que ele
tentass
e manobrar para conseguir uma ltima concesso, e morria a esperana de ver as
ndias es
caparem ao caos.
- Senhor Jinnah, declarou Mountbatten, se julga que eu posso esperar uma semana
sentado neste cadeiro que o senhor rena os seus partidrios em Nova Delhi, est
comple
tamente louco. Bem sabe que a situao chegou a um ponto que no pode retroceder.
Cons
egui apanhar o seu Paquisto quando ningum acreditava que o conseguisse. Eu sei: o
senhor sabe que o pas que vai receber est "destinado aos ratos", mas ser de
qualque
r forma o Paquisto. Tudo depende agora da sua aceitao do plano, amanh, ao mesmo
temp
o que os seus adversrios. Se os dirigentes do Congresso adivinhassem a sua recusa
em se comprometer, retiravam imediatamente o seu acordo e tudo estaria perdido.
Jinnah pareceu insensvel a este apelo. Protestou que todas as regras democrticas
d
eviam ser observadas.
- Eu no sou a Liga muulmana, respondeu.
- Vamos, Senhor Jinnah! disse Mountbatten. Ningum pensa semelhante coisa. No
tente
enganar-se a si prprio. Toda a gente sabe quem est nas fileiras da Liga
muulmana.
154
Mas no, obstinou-se Jinnah, todos os preceitos devem ser respeitados
hor en Jinnah, respondeu o vice-rei, vou dizer-lhe uma ultima coi No tenciono
deix-lo dar cabo do seu prprio plano. No posso autow, .tar a soluo que tanto
lhe custo
u a conseguir. Estou disposto
o a reje it-la da sua parte. Amanh, durante a sesso onde ser concludo o
acordo, vou d
eclarar que recebi a resposta do Congresso, com algu- @reservas que estou certo
de poder satisfazer, e que, portanto onsso aceitou. Vou declarar que os slkhs ta
mbm aceitaram. Anunciarei z4O
o que tive na noite anterior, uma conversa muito longa e cordial com
hor Jinnah, que estudmos o plano em pormenor, e que o Senhor ah me garantiu pesso
almente que estava de acordo comeste plano. ".Nesse momento, continuou Mountbatt
en, volto-me para si. No
que os dirigentes do Congresso o obriguem a explicar-se publica S quero que o sen
hor faa uma coisa. Quero que o senhor baixe a ea para indicar que est de acordo
com
igo. "Se no baixar a cabea, Senhor Jinnah, concluiu Mountbatten, ento ApeMido.
J no p
oderei fazer nada por si. Ser a derrocada. Isto no jo ameaa, uma profecia.
Se no bai
xar a cabea nessa altura, a minha presena aqui j no ser de qualquer utilidade,
e o se
nhor ter perdido o paQUisto, e acho que pode ir para o diabo!"
A reunio decorreu exactamente da forma que Mountbatten decidira.
-re
1 quele dia 3 de Junho de 1947, o vice 1 condenou os seus interlocuto "O -ao
silncio, tomando o monoplio da palavra, conforme fizera na vs-
Compreendendo embora as reservas das artes em presena, congra-
p w5e com o acordo unnime que haviam dado ao seu plano. Agradeceu dirigentes do C
ongresso, depois ao representante dos sikhs. Finalmen- @61nunciou que Jinnah lhe
tinha garantido tambm o seu acordo. ---glw ,,,@,ionforme estava previsto, o
vice-
rei voltou-se ento para o lder mu-
sua direita. No fazia a menor ideia da atitude que iria d Ali Jinnah. Lembrar-se-
ia toda a vida daquele minuto
O lder muulmano esboou finalmente o gesto de ao mais discreto que algum
pudesse fazer
com a cabea para sair obilidade.
este sinal apenas perceptvel, uma nao de noventa milhes de ens via ratificada a
sua
existncia. Por mais difceis que ameaassem As circunstncias do seu nascimento,
"o son
ho impossvel" do Paquisto realizava-se finalmente Mountbatten podia a partir de
ag
ora continuar Sua tarefa. Antes que os sete interlocutores tivessem tempo de res
pirar,
dou distribuir-lhes um texto de trinta e quatro pginas. Pegando no txto
lar, o vice-rei mostrou ostensivamente antes de o possuir com gesto teatral. Com
voz grave, anunciou o ttulo do documento: @<Consequncias
155
Administrativas da Partilha". Era uma prenda de baptizado minuciosamente elabora
da por Motintbatten e pelos seus colaboradores aos dirigentes indianos, um guia
destinado a conduzi-los nos caminhos da tarefa gigantesca que os esperava. Pgina
aps pgina, desenvolvia as implicaes da deciso que acabava de ser tomada.
Nenhum dos s
ete homens estava preparado para enfrentar a terrivel realidade que descobriram
logo nas primeiras linhas. Iam ser obrigados a enfrentar um problema que nunca n
ingum tivera que resolver antes deles, um problema de dimenses que desafiavam a
im
aginao. Iam ser obrigados a arolar a herana de quatrocentos milhes de homens, a
divi
dir os bens acumulados havia mais de cem geraes, a repartir os frutos de
trezentos
anos de progresso tecnolgico. Teriam de dividir as reservas dos bancos, os selos
dos correios, os livros das bibliotecas, as dvidas, a terceira rede de caminhos
de ferro do mundo, as prises com os seus presos, os tinteiros, as vassouras os ce
ntros de pesquisa, os hospitais, as universidades, os asilos de alienados, os ca
nais de irrigao, as instituies e uma poro de bens de variedade e nmero
incalculveis.
Um silncio angustiante dominou a sala enquanto os sete homens comeavam apenas a
me
dir a enormidade das suas responsabilidades. Mountbatten tinha preparado cuidado
samente o seu aparato. Graas a este estratagema, cortava o caminho a todas as dis
cusses inteis e concentrava o esprito dos seus interlocutores num novo
objectivo: c
onseguir a Partilha.
Foi quando dava um banho aos ps no regresso do seu passeio da tarde que Gandhi so
ube da deciso dos lderes indianos de aceitarem a Partilha. Enquanto a sobrinha-
net
a Manu o maajava, longe de sentir alvio, o seu rosto exprimia cada vez mais dor.
@
< Que Deus os proteja e lhes d juizo a todos!" suspirou ele.
Alguns minutos depois das sete horas, naquela mesma tarde de 3 de Junho de 1947,
o vice-rei e os trs representantes das diferentes comunidades entraram no estdio
de radiofuso de Nova Dlhi para anunciar aos seus povos a diviso das ndias em
duas naes
independentes e soberanas.
Como convinha sua categoria, Mountbatten foi o primeiro a falar. Em poucas frase
s curtas, desejou boa sorte aos dois Estados que iam nascer. Exprimindo-se em hi
ndi, o Nehru sucedera-lhe ao microfone. Uma grande tristeza ensombrou o rosto do
homem de Estado indiano quando declarou: "O grande destino da ndia vai realizar-
se com um duro e difcil parto." Explicou a sua angstia quando se resignara a
aceit
ar a Partilha, e disse, para terminar: " sem a menor alegria no corao que os
inform
o do acordo que acabamos de concluir."
Jinnah tomou ento a palavra. Nada podia ilustrar melhor do que O seu discurso a i
mensidade da obra realizada, e o paradoxo do seu triunfo. Para anunciar aos nove
nta milhes de muulmanos que conseguira par,
156
ks um Estado independente, Mohammed Ali Jinnah era obrigado a exprimir-se numa
lng
ua que eles no podiam compreender. Falou em in-
i. Um locutor traduzia depois o discurso em urdu. Baldev Singli anunciou por fim
aos skins a sua aceitao do plano de portilha, lanando um apelo paz entre as
comuni
dades retalhadas por cita deciso.
O curto adiamento concedido a Mountbatten pelo dia de silncio terMinara e estava
iminente a confrontao temvel. Pouco depois do meio-
no dia seguinte, 4 de junho, o vice-rei recebeu uma mensagem urgente Gandhi prep
arava-se para romper com a direco do partido do Congresso e para denunciar o
plano
nessa mesma noite durante a orao pblica. Mountbatten mandou imediatamente um
emissr
io junto do Ma-
pedindo-lhe que fosse falar com ele. Gandh chegou apenas uma hora antes da sua re
unio de orao. Para `t~ impedir um desastre, o vice-rei s dispunha de cinco
minutos.
Assim <Iw,O viu, compreendeu at que ponto o velho estava perturbado. Metido O cad
eiro "como um pssaro de asas cortadas", o Mahatma abanava a"
to terrvel, to terrvel." gemendo com voz que mal se ouvia Naquele estado,
Gandhi se
ria capaz de tudo, pensou Mountbatten. Se denunciasse publicamente a Partilha, N
ehru, Patei e os outros dirigentes que o vice-rei tinha com tanta pacincia conven
cido, seriam levados ou a romper com ele, ou a voltarem com a palavra atrs. Em os
casos seria a catstrofe. Decidido a recorrer a todos os argumenpodia conceber a
sua frtil imaginao, Mountbatten comeou por explicar ao Mahatma como compreendia
e co
mpartilhava a sua dor.
Enquanto falava, teve uma sbita inspirao.
Os jornais baptisaram este plano com o nome de "Plano Mountbaten ec arou, mas de
viam ter-lhe chamado "Plano Gandhi".
O -,No fora Gandhi quem tinha sugerido os principais elementos dele? O atma olhou
para o seu interlocutor com surpresa.
efeito, continuou Mountbatten, Gandhi pedira-lhe que deixasse @*,WpOo indiano a l
iberdade de escolha, e era precisamente o que o seu facilitava. Eram as assemble
ias provinciais eleitas pelo povo que iam aro futuro de cada provncia. Cada uma d
elas votaria para decid r inte- "C ou na india ou no Paquisto.
De qualquer forma, Jinnah terminou em urdu, gritando: "Paxistan Znda-Viva o Paqui
sto!", mas com um sotaque to deplorvel, que alguns ouvinjulgaram que ele tinha
dito
"Pakistan is in the bag! - O Paquisto est no sa"
157
- Se, por um milagre, todas essas assembleias escolhessem pertencer
ao mesmo pas, explicou Mountbatten, ento a unidade da ndia estar a salva, e o
senho
r teria ganho. Caso contrrio, estou certo de que no espera dos ingleses que se
opo
nham deciso deles pela fora das armas.
Vibrante, empregando todo o seu encanto, Lus Mountbatten defendeu a sua causa per
ante o velho de setenta e oito anos, cuja palavra ia talvez, dentro de poucos mi
nutos, decidir o destino da ndia.
Gandhi pareceu abalado: devia permanecer fiel ao seu instinto e continuar a desa
provar a Partilha, com risco de fazer mergulhar a ndia no caos, ou devia aceitar
a chamada razo do vice-rei?
Mountbatten ainda no tinha acabado a sua demonstrao quando o visitante se
levantou.
Pediu desculpa por ter de se ir embora, mas nunca fizera esperar os fiis das sua
s oraes pblicas.
Alguns instantes depois, sentado numa plataforma de terra batida no meio da mise
rvel colnia dos Intocveis de Delhi, Gandhi pronunciou o seu veredicto. Entre a
mult
ido que se apinhava em seu redor, muitos tinham vindo, no para orar, mas na
espera
na de ouvir do profeta da resistncia um apelo luta, uma declarao de guerra
contra o
plano de partilha. Mas nenhum discurso blico saiu nessa noite da boca do homem qu
e tantas vezes clamara que preferia a vivisseco do seu prprio corpo do que a do
seu
pas.
- intil acusar o vice-rei da Partilha, declarou ele. Olhai para vs e para o
interi
or dos vossos coraes, e encontrareis a explicao do que se passou.
Lord Mountbatten acabava de ganhar a vitria mais difcil da sua notvel carreira.
Qua
nto a GandhI, muitos indianos nunca mais lhe perdoariam. Mais tarde, o frgil velh
o cujo corao havia de chorar eternamente a partilha da ndia pagaria com o seu
sangu
e o preo do seu silncio.
Nunca o soberbo hemiciclo, construido para albergar os debates dos legisladores
da ndia fora testemunha de espectculo comparvel. Falando sem apontamentos, Lord
Mou
ntbatten revelava opinio indiana e do mundo um dos actos de nascimento mais
impor
tantes da Histria, esse plano que ia permitir a um quinto da humanidade atingir a
plena independncia, e servir de percursos a um novo agregado de povos do planeta
, compreendendo dois teros da populao do globo, o terceiro mundo.
Trezentos jornalistas e correspondentes vindos da Rssia, da China, da Amrica e da
Europa, misturados com os reprteres da imprensa local, representantes de uma vari
edade de jornais, de lnguas, de culturas e de religies diferentes, seguiam com
uma
ateno extraordinria a conferncia de imprensa do vice-rei.
Para Lord Mountbatten, esta reunio era a consagrao de um golpe de fora. Em
menos de
dois meses, e quase sozinho, conseguira o impossvel: entabular um dilogo com os
ch
efes da ndia, lanar as bases de uri,
158
do, persuadir os seus interlocutores a aceit-lo, conseguir finalmente o jo sem re
servas, tanto do governo como da oposio de Londres. Na-
m percia entre os escolhos que lhe apareceram no caminho. A ra co ltima proeza,
re
alizara-a entrando na propria jaula do velho leo;
1vencera Winston Churchill a encolher as garras e a rosnar, tambm ele,
aprovao. Um metralhar de perguntas assaltou o orador, mal acabou a sua expo-
o. " 1
No tive a menor apreenso, diria Mountbatten. Tinha vivido o problema, era o nico
qu
e lhe conhecia todas as facetas. Pela primeira vez a imprensa encontrava o nico h
omem que possuia todas as
rocesso. ves op
a voz acabou por fazer a nica pergunta deixada em suspenso. cletar o seu puzzle,
era tambm a ltima casa que MoLintbatten
ue reencher.
que todos esto de acordo em reconhecer que urgente proisto
independncia das ndias, pensou certamente numa data? perara tou um jornalista
indi
ano.
Claro que sim, respondeu Mountbatten. Pode indicar-nos qual ? Uma srie de imagens
e de clculos rpidos passaram pelo esprito do
D facto, ele ainda no escolhera uma data; estava apenas cons-rei. e te de que dev
ia ser muito prxima. "Era necessrio precipitar o acontecimento, dir ele mais
tarde.
Sabia g
h ue obrigar o parlamento britnico a votar a lei outorgando a tin aq pendncia
antes das frias parlamentares de Vero, se quisesse contir com o controle da
situao.
Estvamos sentados beira de um vulsobre um barril de plvora. No sabamos quando
explodi
ria." Mountbatten contemplou o hemicclo apinhado de gente. Todos os
estavam fixos nele. Uma atmosfera de espectativa, adensada pela
-rei estava o dos ventiladores, pesava sobre a assistncia. O vice `ddo a
mostrar que
era "O patrono de toda a questo". Vrias datas giravam na cabea como os nmeros
de um
a roleta posta a rodar a a a velocidade. Dia 5 de Setembro? Dia 1O? 2O de Agosto
? A roleta @-~u finalmente e a bola saltou para uma cavidade cujo nmero pareceu a
propriado, que a deciso de Mountbatten foi instantnea. Era uma .@@'4Rta
relacionad
a com o maior xito da sua existncia, o dia em que a sua
campanha atravs das selvas birmanesas terminara com a capitula~ incondicional do
Imprio nipnico. j que toda uma poca da histria humanidade terminara com a
queda da sia
feudal dos samurais, ne- ,@huma data podia `ustificar-se mais ara celebrar o na
scimento de uma
p @-,"tjO:va sia democrtica. Lord Mountbatten anunciou a sua escolha:
-A proclamao oficial da independncia das ndias realizar-se- no `dia 15 de
Agosto
de 1947.
159
Esta revelao estalou como uma bomba. No parlamento britnico, junto do Primeiro
mini
stro, no palcio de Buckingham, a notcia causou uma surpresa brutal. Ningum, nem
mes
mo Clement Attlee, suspeitava de que Mountbbatten estava pronto para fazer desce
r a cortina sobre a epopela indiana da Gr-Bretanha com tanta precipitao. Em Nova
De
iffi, os colaboradores mais ntimos do vice-rei no tinham tido o menor
pressentimen
to de que ele escolhesse uma data to prxima. Tambm no passara a menor suspeita
de um
praso to curto pelo esprito dos lderes indianos com quem ele conversara tantas
hor
as durante os dois primeiros meses da sua msso.
Em parte nenhuma, todavia, a escolha da data de 15 de Agosto de 1947 para a inde
pendncia das ndias causaria tanta consternao como nas fileiras de uma
corporao que reg
ulava a vida de milhes de hindus com uma tirania mais opressiva do que a dos 1
ngleses, dos chefes do Congresso e dos prncipes todos juntos. Mountbatten cometer
a o erro imperdovel de comunicar esta data sem consultar previamente os represent
antes do poder oculto mais poderoso das indias: osiyotisbi, os astrlogos.
Nenhum povo estava mais sujeito do que o povo indiano sua autoridade e ao seu su
posto conhecimento das leis que regem o universo. Cada maraj, cada templo, cada a
ldeia possua com carcter permanente um ou vrios jyotislyi que reinavam como
ditador
es sobre a vida da comunidade hindu. A sua interveno abrangia todos os domnios.
Mil
hes de indianos nunca se tinham atrevido a fazer uma viagem, receber um amigo, co
ncluir um negcio, partir para a caa, estrear um traje, comprar uma jia, cortar o
bi
gode, lavrar um campo, casar uma filha ou at celebrar um funeral, sem previamente
consultar um astrlogo.
Lendo a ordem e os destinos do mundo nas suas cartas celestes, os astrlogos tinha
m adquirido um poder ilimitado. As crianas que eles declaravam nascidas sob uma m
estrela eram muitas vezes abandonadas pelos pais. Alguns homens suicidavam-se no
momento em que eles previam uma conjuno dos planetas particularmente favorvel
tran
smigrao da sua alma. Os astrlogos anunciavam os dias da semana, e as horas do
dia b
enficas, e os que o no eram. O Domingo era um dia especialmente nefasto, ass
a-feira. Ora, qualquer indiano podia ficar a saber por um simples calen
drio que nesse ano de 1947, o dia 15 de Agosto calhava a uma sexta-feira.
Assim que a rdio anunciou a data fatdica, os astrlogos da ndia inteira
comearam a con
sultar os seus alfarr bios. Os da cidade santa de Benares e de vrias cidades do
Su
l proclamaram imediatamente que o dia
15 de Agosto era to funesto que a ndia "faria bem em tolerar os ingleses mais um
d
ia, em vez de se arriscar danao eterna".
Em Calcut, o jovem astrlogo Swarnin Madanand desenrolou o seu navamanch, uma
enorm
e carta astral redonda, composta por uma srie de crculos concntricos sobre os
quais
estavam inscritos os dias e os meses
160
ano, os cicios da Lua e do Sol, os planetas, os signos do Zodaco e a das vinte e
sete constelaes do Zodaco lunar que influenciam o o no da terra. No centro,
encontrav
a-se um planisfrio. Madananand
os crculos at coincidirem todos com o dia 15 de Agosto de `91r
rtindo do centro do continente indiano sobre o planisf-
7. Depois, pa traou um feixe de linhas em direco aos diferentes crculos da
carta te.
Cada vez que um dos traos atravessava a linha de 15 de Agosto, .;a suores frios
na espinha. Os seus clculos faziam prever uma catas-
A India, como alis Nehru e Jinnah, estava nesse dia sob a influncia "@Makara
Capri
crnio, uma das particularidades do qual uma hostili-
implacvel a todas as foras centrfugas, por conseguinte Partilha. mais
alarmante ain
da, sob a influncia preponderante de Saturno, o
s
malfico dos planetas, o dia 15 de Agosto de 1947 ia passar sob o nio de Rahu, o n
odo lunar ascendente, chamado @<cabea sem cor- @i. e do qual todas as
manifestaes -
a comear pelos eclpses - eram
2 stas . Desde as zero horas at meia-noite de 15 de Agosto de 1947, sies de
Jpiter e
de Vnus eram igualmente desfavorveis, por a sua
om Saturno os colocar, durante todo aquele dia, no pior stio Juno c "obbada
celeste,
"no infemo da nona casa do Karamstban". Como bisdos seus colegas, o ovem astrlog
o ergueu a cabea, horrorizado
a enormidade da tragdia que previa.
Que fizeram eles? Mas que fizeram eles? - gritou. esar do seu domnio do corpo e d
o esprito, adquirido com a prtica --ffi os e yoga, de meditao e de prticas
tantnica
s, o jovem astrlogo
u o controle de si prprio. Agarrando numa folha de papel, redigiu elo ao
responsve
l involuntrio desta catstrofe. "Lor Mountbatten, suplicava ele, pelo amor de
Deus,
no d a indedncia a india no dia 15 de Agosto de 1947. Se sobrevierem inunda-
secas, massacres, e o caos, ser porque a india livre nasceu num dia amaldioado
pel
os astros."
Nebru nasceu no 7." dia da Lua minguante do ms de Margairsha do ano da era
Sarnvat
(14 de Novembro de 1889, isto , sob o signo do Escorpia o um ascendente
Capricrni
o). Jinnali nasceu a 25 de Dezembro de 1876. Alm do Sol, da Lua e dos Planetas, o
s astrlogos indianos contam ainda Rabu e Ketit (respectivamente uma cabea sem
corp
o e um corpo sem cabea) so os "nodos,, lunares, ascendente e descendente, restos
d
o corpo (cortados dois por Vishnu) de um demnio que ousara molhar os lbios na
taa d
o licor imortalidade (amrita).
161
Captulo nono
O MAIOR DIVORCIO DA HISTRIA
Nada comparvel fora tentado antes. No havia precedentes, nem modelos, nenhuma
juri
sprudncia podia ser evocada para o divrcio mais total e mais complexo da histria
da
humanidade, a disperso de uma famlia de quatrocentos milhes de homens, a
diviso dos
seus bens, acumulados no decorrer de sculos de exist ncia comum sobre a mesma
ter
ra.
Para regularizar as formalidades desta separao, faltavam exactamente setenta e
trs
dias. A fim de persuadir todos desta extrema urgncia, Mountbatten mandou afixar e
m cada repartio da capital um calendrio mural de tipo indito: comeava a 3 de
junho, e
terminava em 15 de Agosto. Tal como a contagem ao contrrio de uma exploso
atmica,
cada folha indicava por debaixo da data, o nmero de <@dias que faltavam para prep
arar a Transmisso dos Poderes,>.
A responsabilidade de organizar a gigantesca partilha do patrimnio foi confiada a
dois indianos, que faziam as vezes de advogados de ambas as partes. Um e outro
eram perfeitos espcimes da fina flor burocrtica que um sculo de domnio
britnico fizer
a nascer nas ndias. Viviam em duas vivendas semelhantes pertencentes ao Estado, d
irigiam-se diariamente s suas reparties quase contguas em dois Chevrolets
anteriores
guerra tambm idnticos, recebiam salrio igual, e pagavam, com a mesma
pontualidade,
as suas cotas mensais na mesma caixa de reformas. Um era hindu, o outro muulmano
.
Todos os dias, de 3 de junho a 15 de Agosto, com o respeito pelas frmulas e pelo
pormenor que os seus tutores ingleses lhes tinham ensinado, o muulmano Chaudhuri
Mohammed Ali e o hindu H. M. Patel embrenharam-se no estudo dos dossiers que lhe
s permitiriam dividir os bens dos seus quatrocentos milhes de compatriotas. A iro
nia quis que, para dissecar a sua ptria, usassem a lngua dos colonizadores. Mais
d
e uma centena de colaboradores, divididos por uma srie de comisses e sub-
comisses a
presentavam-lhes pareceres. As suas decises eram depois comunicadas por aprovao
fin
al a um Concelho de Partilha presidido pelo vice-rei.
O Congresso reivindicou logo de princpio os seus direitos sobre o bem mais precio
so de todos, o prprio nome de ndia". Rejeitou a proposta de baptizar o novo
Estado
com o nome de "Industo", argumentando que era o Paquisto quem fazia a secesso.
Como na maioria dos divrcios, foram as questes de dinheiro que deram ocasio s
discus
ses mais acesas. A mais delicada de todas referia-se diviso do crdito que a
Gr-Breta
nha deixava aps a sua partida.
163
Depois de ser acusada durante decnios de explorar e pilhar as ndias, a Inglaterra
liquidava com efeito a sua epopeia indiana ficando devedora da quantia astronmica
de cinco bilies de dlares. Esta dvida fabulosa representava uma parte do preo
que l
he custara a vitria na guerra mundial. Esta levara-a a uma bancarrota cujo proces
so histrico que comeava nas ndias era uma das consequncias.
Era preciso tambm repartir os haveres dos bancos do Estado, os lingotes de ouro g
uardados nos cofres do Bank of ndia, e todas as liquidaes, at s ltimas notas
de uma ru
pa e aos selos do correio arrumados no cofre do chefe de distrito perdido no meio
das tribus de caadores de cabeas naga. O problema revelou-se to o espinhoso que
os
dois liquidatrios tiveram que ser fechados num escritrio e proibidos de sairem
at
chegarem a um acordo.
Aps laboriosas combinaes, os dois homens acabaram por concordar em conceder ao
Paqu
isto 17,5%, das existncias bancrias e dos balanos em libras esterlinas em troca
da o
brigao de tomar a seu cargo 17,5%) da dvida nacional indiana.
Decidiram atribuir ndia 8O % dos bens materiais da enorme mquina administrativa
e
2O% ao Paquisto. Atravs de todo o pas, os funcionrios comearam imediatamente a
fazer
a estatstica das mquinas de escrever, das mesas, cadeiras, escarradores,
vassouras
. Estes inventrios levaram a espantosas revelaes. Descobriu-se por exemplo que o
eq
uipamento do ministrio do Abastecimento e da Agricultura do pas do globo mais
atac
ado pela fome, se compunha ao todo e para tudo de 85 mesas e 85 cadeiras de func
ionrios superiores, 425 mesas de funcionrios subalternos, 85O cadeiras vulgares,
5
6 cabides, 6 deles com espelho, 13O armrios, 4 cofres-fortes, candeeiros de mesa,
17O mquinas de escrever, 12O relgios de parede, 11O bicicletas, 6OO tinteiros, 3
viaturas de servio, 2 sofs e 4O escarradores.
A diviso destes bens foi objecto de discusso interminvel, at mesmo de
pugilatos. Alg
uns chefes de servios tentaram subtrair diviso as suas melhores mquinas de
escrever
e deixar para o Estado rival as cadeiras mais desengonadas. Algumas reparties
tran
sformaram-se em verdadeiros tanques de regateiras, e viram-se por vezes funcionri
os respeitveis que exerciam a sua autoridade sobre vrias centenas de milhar de
pes
soas, discutir um tinteiro contra uma jarra, um porta-guarda-chuvas contra um ca
bide, 125 almofadas para alfinetes contra um escarrador.
Em Lahore, o chefe da polcia Patrick Rich dividiu o seu material pelos dois ajuda
ntes, um muulmano, o outro hndu. Dividiu tudo, as polainas, os turbantes, as
espin
gardas, os latbi, essas comprida mocas de bambu. Quando chegou aos instrumentos
da banda de msica, RIch dividIu-os to escrupulosa mente, dando uma trombeta ao
Paq
uisto, um tambor ndia uma flauta ao Paquisto, um par de cmbales ndia, at
no restar
do que um nico objecto. Qual no foi o seu espanto ao ver os seus dois adjuntos,
q
ue tinham vivido anos de boa camaradagem, lutarem como
164
ces pela posse de um trombone. Algumas das disputas mais violentas tiveram por ob
jecto a diviso das bibliotecas. Coleces completas da Enciclopdia britnica
foram relig
iosamente partidas, sendo os volumes pares distribudos a um Estado; e os volumes
m
pares ao outro. Dividiram-se os dicionrios, ficando a ndia com as letras de A a K
e o Paquisto com as outras. Quando havia apenas um exemplar de qualquer obra, os
bibliotecrios tinham que decidir a qual dos Estados o assunto interessava mais. A
ssim, homens instrudos e inteligentes jogaram pancada para ficarem com Alice no
p
as das maravilhas ou O Monte dos Vendavais.
O pagamento das penses devidas s vivas dos marinheiros mortos no mar acarretou
inte
rminveis discusses. O Paquisto devia tomar a seu cargo todas as vivas
muulmanas fosse
qual fosse o local da sua residncia? Quanto ndia, encarregava-se das vivas
hindus
que vivessem no Paquisto?
S os vinhos e os alcois escaparam a qualquer controvrsia. Foram automaticamente
atr
ibudos ndia hindu, recebendo o Paquisto muulmano um crdito equivalente.
Algumas divises foram verdadeiros quebra-cabeas. Devendo o Paquisto ficar com a
sua
parte da rede de estradas e caminhos de ferro das Indias - ou seja mais de um q
uarto -, como deviam ser repartidas as ps e os carrinhos de mo dos cantoneiros,
as
locomotivas, as carruagens-restaurante e os vages de mercadorias dos caminhos de
ferro? Devia-se aplicar a regra dos 2O%> e dos W%, ou ter em conta a quilometra
gem das linhas e das estradas pertencentes a cada Estado?
Houve distribuies impossveis de efectuar, Como o ministrio do Interior havia
declara
do que as "responsabilidades do actual servio de informaes no estavam
verdadeirament
e destinadas a diminuir com a diviso do pas", os seus agentes recusaram-se
categor
icamente ceder fosse o que fosse ao Paquisto, desde um simples tinteiro a um apar
a-lpis. Em contrapartida, s existia uma mquina de imprimir selos e notas de
banco,
esses dois emblemas indispensveis a qualquer identidade nacional. Os indianos rec
usaram-se, com igual obstinao, a compartilhar o seu uso COM os futuros vizinhos.
Os muulmanos foram portanto obrigados a emitir dinheiro provisrio carimbando a
pal
avra "Paquisto" sobre as notas de banco indianas.
As velhas rivalidades religiosas da ndia ressurgiram na altura desta diviso do
pat
rimnio. Alguns muulmanos reclamaram a demolio do Tai Mahal e o seu transporte,
pedra
por pedra para o Paquisto, argumentando que este famoso mausolu fora edificado
po
r um rei mogol. Bramanes indianos reivindicaram a posse do Indo, cujo curso pass
ava pelo interior do futuro Paquisto, porque os seus Vedas sagrados haviam sido e
laborados nas suas margens vinte e cinco sculos antes.
Nenhum dos dois Estados mostrou todavia a menor repugnncia em herdar os smbolos
ma
is evidentes do poder imperial que os dominara
165
durante tanto tempo. O sumptuoso comboio branco e dourado dos vjce-reis que tril
hara as plancies ridas do Decao e o frtil vale do Ganges, foi atribudo ndia.
O Paquis
to recebeu em compensao a limusine oficial do comandante-chefe do Exrcito das
ndias e
a do governador do Panjab.
A mais espantosa talvez de todas as divises deu-se no ptio das eStrebarias do
palci
o do vice-rei. Doze coches eram o motivo da cobia. Com os seus ornatos carregados
de ouro e de prata, os arreios reluzentes, os cichins escarlates, simbolizavam
a pompa e majestade soberbas que haviam fascinado os sbditos indianos do Imprio,
e
xcitando ao mesmo tempo a revolta. Cada vice-rei, cada soberano de visita, cada
dignatrio, da corte, de passagem pelas ndias, tinha percorrido as avenidas da
capi
tal imperial dentro de um destes ladaus. Seis dos carros eram ornamentados a our
o, os outros seis a prata. No havia possibilidade de os desaparelhar, Foi portant
o decidido que um dos domnios receberia o conjunto de carruagens douradas, devend
o o outro contentar-se com as ornamentadas a prata.
Para escolher os benefcios, o capito de conveta Peter Howes, ajudante de campo de
Mountbatten, props o mais plebeu dos sistemas: jogar a cara ou coroa. Acompanhado
pelo major Yacoub Khan, futuro comandante da guarda paquistanesa, e pelo major
Govind Singli, futuro comandante da guarda indiana, atirou uma moeda ao ar.
- Caras! gritou Govind Singh. Quando a moeda caiu nas lages do ptio, os trs
homens
precipitaram-se. O indiano deu largas sua alegria. A sorte acabava de dar os co
ches dourados dos senhores imperiais de ontem aos chefes da ndia socialista de am
anh.
Seguiu-se a distribuio dos arneses, dos chicotes, botas, cabeleiras, e uniformes
d
os cocheiros. Em breve no restava seno um ltimo acessrio: a corneta do
postilhao rea
l de que s existia um exemplar.
O jovem oficial ingls pensou um momento. Era evidente que no havia possibilidade
d
e diviso. Podia jog-la tambm a caras ou coroas. Mas Peter Howes teve uma ideia
melh
or. Mostrou o objecto aos dois camaradas indianos e declarou: "Bem vem que no
pode
mos dividir esta corneta.
Por isso, creio que s h uma soluo razovel: fico eu com ela."
Com um sorriso malicioso, meteu o instrumento debaixo do brao e foi-se embora.
No havia s as notas de banco, os coches e as cadeiras dos burocratas de um quinto
da humanidade para inventariar e dividir antes de 15 de A corneta do postilhao d
os coches dos vice-reis das ndias est hoje sobre a
chamin dasua vivenda de Wiltshire para onde se retirou Peter Howes. Almirante ref
ormado, conta muitas vezes aos amigos a histria deste objecto e nunca perde a oca
sio de soprar nela alegremente, para recordar os bons velhos tempos.
166
e 1947. Havia tambm as centenas de milhar de homens ligados administrao, desde
o di
rector dos caminhos de ferro e os presidentes dos at aos criados, aos varredores
e aos babu, esses poderosos jOj"1sterios a -de-alpaca que se tinham multiplicado
como cogumelos em todos "
ngas
os da tentacular burocracia indiana. Todos estes funcionrios tinham direito de op
tar quer pela ndia quer pelo Paquisto segundo a sua partiram com as famlias nos
pri
meiros comboios Feita a escol ,jornada que seria o maior xodo da Histria. X>,
a mais dolorosa de todas as divises punha em `ogo um milho e `@,"~rOS m
1 homens - hindus,@ muulmanos, sikhs e ingleses - reunidos @n
1 criada pela Gr-Bretanha: o Exrcito das ndias. ~Osa gloriosa
inst
ituio ente do papel capital que poderia desempenhar esta fora na manuteno da
ordem a
seguir Partilha, Mountbatten pediu a Jinnah que a se intacta durante um ano sob
a autoridade de um comandante subritnico responsvel junto dos dois governos. Mas
o
pai do Po foi inflexvel: um exrcito era o atributo indispensvel da soberania
duma n
ao. Jimiah exigiu que o seu estivesse dentro das suas fro anantes de 15 de
Agosto.
A razo de um tero para o Paquisto, e dois s para a. ndia, o Exrcito das
ndias ia port
anto ser divido como tudo mais. Com este desmantelamento terminava uma nobre e g
loriosa lenda.
is de Kipling nos lanceiros de Bengal
exrcito das ndias: o nome s por si dava origem a um mundo de ias romnticas que
entu
siasmavam a imaginao. Fora ele o ltimo o de encontro das epopeias, o clube
ond
e toda uma juventude inglesa,
t de glria e de espao, viera procurar aventuras. Desde os heris `-1,3'O Kipling
at Ga
ry Cooper galopando nas telas do cinema cabea dos de Bengal, uma srie de
imagens c
elebrava os feitos destes gentletros brancos arrastando atrs dos seus capacetes e
mplumados esquadres aleiros de turbante. Geraes de filhos dessa Inglaterra que
rein
ava metade do mundo tinham vindo escrever a Histria nas solides selgens dos
pilare
s do Imprio, escalando as ravinas vertiginosas da passa de Khyber, perseguindo, s
ob a neve ou sob um sol implacvel, os fero-
patans que acabavam com os prisioneiros punhalada. Essas lhas na fronteira afga
eram um desafio mortal que os ingleses travacom o esprito desportivo dos jogos
de estudantes em Eton ou HarA maior parte das operaes eram realizadas por
pequeno
s grupos ostos de um oficial e alguns cipaios. Tinham por fim tornar um pon-alto
, fazer uma embuscada, capturar um acampamento - forma de ,combate que exig
ia coragem, iniciativa, e uma confiana absoluta entre o <h ck e os seus homens.
O regimento era a clula do Exrcito das indias. Oficiais Ingleses e
167
tropas indgenas entravam para ele como para uma religio. Os recrutas indianos
devi
am depositar cinquenta libras esterlinas para a compra do seu equipamento, quant
ia fabulosa para bolsas modestas. Mas era tO prestigioso servir nesse exrcito que
cada regimento tinha uma lista de espera de vrios anos. Dura e perigosa durante a
s operaes, a vida dos oficiais, no regresso s guarnies, era cheia de conforto
e de lu
xo. A abundncia de criadagem indiana, o custo nfimo do necessrio e do suprfluo,
os p
rivilgios de que gozavam os militares, tudo permitia a esses jovens levar uma exi
stncia de sonho. Lord Ismay, o director do gabinete de Mountbatten, no esqueceria
nunca o primeiro jantar na messe do seu regimento, quando voltava esgotado da tr
avessia de metade da ndia debaixo da poeira e do calor trrido. Os camaradas,
vesti
dos com o magnfico uniforme vermelho, azul marinho e ouro, estavam sentados
volta
da mesa. Por detrs de cada um havia um criado "de tnica de musselina branca
imacu
lada, realada por um cinturo e um turbante com as cores do regimento. Ramos de
ros
as vermelhas e uma profuso de pratas ornamentava uma toalha de linho branco adama
scado. Por cima da chamin, estava o retrato do nosso coronel honorrio, o prncipe
Al
bert Victor, irmo de Jorge V, e nas paredes alinhavam-se as cabeas empalhadas de
t
igres, leopardos, "rriarkhors" e cabras monteses". Era na poca em que os oficiais
se vestiam como personagens de opereta. Usavam fardas cor de pssego, de hortela,
prateadas. Cada regimento organizava, uma vez por ano, um jantar de gala. Exigi
a-se dos novos recrutas que ficassem perdidos de bbedos durante esta festa tradic
ional, e se apresentassem pontualmente chamada no dia seguinte s seis horas da
ma
nh. Um toque de corneta anunciava que o jantar estava na mesa. As charlateiras re
luzentes nos seus gales dourados, e as botas a brilhar como espelhos, os oficiais
seguiam o coronel at sala de jantar. A luz dos candelabros, saboreavam uma
cozin
ha to requintada como a dos melhores restaurantes europeus de Calcut ou de
Bombaim
. Aps a sobremesa, era trazida uma garrafa de Porto que passava religiosamente a
todos os convivas, no sentido contrario ao dos ponteiros de um relgio, comeando
pe
lo coronel. Qualquer falta a este rito era considerada de mau augrio. O coronel p
ropunha invarivelmente trs sades: ao rei-imperador, ao vice-rei e ao regimento.
No
7. regimento de cavalaria ligeira do Panjab, mandava a tradio que o cornel
atirass
e o seu copo para trs das costas a seguir a cada sade. O sargento da messe,
postad
o atrs dele, apressava-se a esmigalh-lo com o calcanhar da bota antes de se pr
em s
entido.
O bar e a cave das messes do Exrcito das ndias estavam prodigamente fornecidos, e
a honra de um oficial exigia que as suas contas no bar fossem superiores ao tota
l do seu sollo. De qualquer forma, a sua situao financeira no era grave seno
quando o
seu dbito excedesse, no banco, a sua conta pessoal.
O bem mais precioso de cada regimento era a coleco de trofus de prata que
mareavam
a sua histria. Cada oficial que servia nas suas fileiras
168
oferecia-lhe um objecto com o seu nome e a data da sua incorporao. As peas
assinala
vam a glria do regimento nos campos de polo e de et ou celebravam os seus feitos
em batalhas. No 7.' regimento de laria ligeira do Panjab nos anos 3O, uma curios
a alcunha foi posta a taa durante um jantar particularmente animado. Excitados co
mo ntes depois de um exame, os tenentes do regimento tinham nessa 1 do para cima
da mesa a fim de urinarem todos dentro do presti- ~e sa ta > recipiente. Co
m pouca capacidade para conter as cascatas das suas r
pletas de champanhe, foi imediatamente baptizada com o nome e over flow Cup, " A
Taa Transbordante " .
Como as manobras e exerccios apenas ocupavam as manhs, s havia maneira digna de
pas
sar as tardes livres: a prtica do desporto e dos d equipa, quer fosse o polo, a c
aada do javali lana, o criquet, o I o a perseguio raposa. Os jovens
ingleses deviam
gastar de uma U
nergia juvenil, obrigao a que no faltavam os duches sa a sua e que os jesutas
inflig
iam aos seus alunos. Porque na existncia idlica xrcito das ndias como no
seminrio, o s
exo era banido. Os oficiais "am encorajados a no se casarem antes dos quarenta. D
epois da revolta @:,j~na de 1857, manter relaes com uma indiana parecia mal, e as
ca-O5 de prostituio no eram lugares que um gentleman frequentasse. Um ,~de
galope rd
ea solta era o exaustor aconselhado.
tp@@. Os oficiais tinham direito a dois meses de licena por ano, mas conse"~.M co
m facilidade mais quando havia calma nas fronteiras. Iam ento ao trigre e
pantera
nas selvas da ndia central, caavam o leopardo `nCves a cabra monts e o urso
preto
junto do Himalaia, ou pescavam -.4*,'Irrequieto mabseer nas cascatas transparent
es de Cachemir. Ismay passavam assim as suas primeiras frias numa casa flutuante
de Srinagar, com s poneis do jogo do polo a pastarem na margem prxima, por entre
-Corolas abertas das flores de Itus. Quando chegava a estao quente, a at
Gulmarg, a
27OO metros de altitude. " O campo de polo tinha feito com verdadeira turfa ingl
esa e havia l no alto um clube onde vam noites inteiras a modificar o mundo."
jovens oficiais do Exrcito das ndias nunca resolveram os problemas do mundo. Mas,
com as suas espingardas prontas em matar os tigres ala como os rebeldes das trib
us tumultuosas da fronteira afga, com .O folclore que acompanhava as suas cavalg
adas nos elevados planalsia, com os seus cantis sempre cheios de whisky, os seus
sticks e os da tacos de polo, foram os soberbos e longnquos guardies do maior no
d
a Histria.
rvindo lado a lado em franca camaradagem de armas, os soldados us, sikhs e muulma
nos do Exrcito das ndias tinham, sob o comando dos oficiais britnicos, dado
durante
geraes um belo exemplo de fraternidade. Misturavam o seu sangue nos campos de
bat
alha, compartilhavam Os Mesmos perigos, os mesmos deveres, as mesmas alegrias. S
ob o dular dos estandartes britnicos, reconciliavam os seus antagonismos
169
ancestrais. A Segunda Guerra mundial e os dias perturbados que se seguiram devia
m contudo modificar este equilbrio. Durante as ltimas semanas da sua existncia,
o E
xrcito das ndias comeou tambm a ser contaminado pela vaga de dio que sacudia
o'pas. Pe
la primeira vez, cipaos sikhs e muulmanos recusaram-se a tomar as refeies
juntos. Es
te racismo, que o Exrcito das ndias se orgulhava de no conhecer, ia servir hoje
par
a o dividir'.
Um simples formulrio passado a ciciostilo, enviado no princpio de junho a cada um
dos seus membros, tornou-se o agente da destruio do Exrcito das ndias. Pedia-
lhe par
a especificarem se queriam servir no exrcito paqustans ou indiano. A escolha no
traz
ia qualquer problema aos sikhs e aos hindus: Jinnah no os queria no seu exrcito,
e
decidiram todos sem excepo ficar no exrcito indiano.
Para os muulmanos cujas habitaes se encontravam situadas na India aps a
Partilha, es
ta folha de papel levantava em contrapartida um terrvel dilema. Deviam abandonar
a terra natal, a casa dos antepassados, as famlias, e juntarem-se ao exrcito de
um
Estado que reclamava os seus servios pela simples razo de serem muulmanos? Ou
devi
am continuar a viver no pas a que os ligavam tantos laos e aceitarem o risco de
ve
rem as suas carreiras sofrerem a animosidade crescente contra a comunidade a que
pertenciam?
Um destes indianos muulmanos a quem mais custava a aleternativa era um veterano d
e El Alamein, o tenente-coronel Enath Habibullah. Pediu uma licena para ir
visitar
a famlia a Lucknow, onde o pai era vice-
1 Apesar das guerras sangrentas que puseram em confronto os exrcitos indiano e pa
quistans depois da Partilha, um esprito de fraternidade devia subsistir contudo
en
tre todos os oficiais que tinham servido lado a lado no Exrcito das ndias.Foi
assi
m que durante a guerra do Bangla Desh, um grupo de oficiais de blindados paquist
aneses, que tinham partido em busca de oficiais indianos para se renderem, acaba
ram por encontrar um oficial de cavalaria no bar de um clube que a unidade deste
acabava de ocupar. Antes de aceitar a sua capitulao, o indiano exigiu que os
pris
ioneiros bebessem com ele. Quando os soldados paquistaneses depuseram as armas,
os indianos e paquistaneses que acabavam de se matar uns aos outros nos arrozais
do Bangia organizaram desafios de hoquei e de futebol, como nos velhos tempos.
Escandalizados, os partidrios do cheique Muhjibur Rahman enviaram um vigoroso pro
testo a Nova Delhi. A reaco veio. directamente do gabinete do Primeiro ministro
in
diano Senhora Indira Gandhi. Recordava com secura ao general comandante da regio
que o seu dever era "fazer a guerra, e no jogar ao criquet".
170
_chanceler da universidade e a me uma partidria fantica do Paquisto. passeou
pelas r
uas da cidade, contemplou as moradas dos seus antepassados, bares feudais do rein
o de Oudh, e deu uma volta pelas runas deixadas pela grande revolta de 1857. "Os
meus avs morreram por estas pedras, pensou. Esta a ndia com que sonhei no
colgio em
Inglaterra e debaixo dos obuses alemes do deserto da Lbia. ao meu lar, a
esta ter
ra que perteno. Ficol." Para o comandante Yacoub Khan, um jovem oficial muulmano
q
ue prestava servio na guarda do vice-rei, a deciso que devia tomar era a mais
impo
rtante da sua vida. Foi tambm resolver a sua escolha ao principado de Rampur onde
o pai era Primeiro ministro do tio, o nawab. Olhou com emoo para a bela
residncia
perto do sumptuoso palcio do tio. Guardava tantas boas recordaes daquela casa:
os b
anquetes de cem talheres servidos em baixela dourada, as noites de festa, as caad
as e os cortejos de vinte ou trinta elefantes conduzindo os atiradores da selva,
os bailes fabulosos que duravam at ao amanhecer ao som de uma dzia de
orquestras,
a procisso de Rolls-Royces em frente da escadaria, o champanhe que coma a rodos.
Lembrava-se dos pique-niques debaixo das tendas decoradas com almofades multicol
ores e preciosos tapetes de seda, dos bufetes abarrotados de vitualhas. Ficou a
sonhar pelos sales do palcio, tornou a ver com nostalgia a grande sala dos
jantare
s de gala, ornamentada com os retratos de Vitria e de Jorge V, a pescina de
mrmore
branco onde passara tantos dias alegres. Tudo isso fazia parte de uma outra vid
a, pensou, uma vida destinada a desaparecer na ndia socialista que ia surgir com
a Independncia. Que lugar podia essa ndia ter para algum como &, herdeiro de uma
fa
mlia principesca muulmana?
Yacoub Khan sentiu que no havia para ele outra alternativa seno emigrar para o
Paq
uisto. Tentou explicar isso me:
- Viveu a sua vida, disse ele. A minha est ainda no princpio. No julgo que haja
fut
uro para os muulmanos na ndia depois da Partilha.
A velha senhora olhou para ele, incrdula e irritada ao mesmo tempo.
- No compreendo o que queres dizer, espantou-se ela. Vivemos aqui h trs sculos.
Ham
bawa-k bankbon davara b. Chegmos s plancies das ndias nas asas do vento,
continuou em u
rdu. Assistimos pilhagem de Delhi. Os teus avs lutaram contra os ingleses por
est
a terra. O teu bisav foi fuzilado durante a revolta. Batemo-nos, revoltmo-nos,
def
endemo-nos. E agora, temos uma ptria livre. A nossa sepultura ser aqui.
Estou velha, concluiu. Os meus dias esto contados. No entendo muito de poltica,
mas
tenho os meus sentimentos de me, e esses so egostas. Receio que a tua deciso
nos se
pare.
- No - protestou o filho. - Seria to simples como se estivesse numa
Os dois irmos de Enaith Habibullah, a irma e o cunhado preferiram emigrar para o
Paquisto. Admiradora fervorosa de jinnah, a me resolveu porm ficar na india.
joluso
171
guarnio em Carachi em vez de Nova Delhi. Partiu no dia seguinte de manh, por um
bel
o dia de Vero. A me vestia um sari branco - cor do luto tanto para os muulmanos
com
o para os hindus ---, que recortava a sua silhuenta sobre a fachada de grs cor-de
-rosa da casa familiar. Mandou o filho passar por debaixo de um exemplar do Alco
ro que levantou acima da sua cabea. Depois entregou~lhe o livro sagrado e pediu-
lh
e para o beijar. Ento, recitaram juntos alguns versculos maneira de orao de
despedid
a. Em seguida a ma e soprou devagar na direco do filho para ter a certeza de que
a
orao o acompanhava.
Abrindo a porta do grande Packard que o levaria estao, Yacoub Khan voltou-se
para
fazer um ltimo aceno com a mo. Direita e digna na sua tristeza, a velha senhora
sa
udou com a cabea. Das janelas da casa, os criados de turbante enviavam os seus sa
lm. Umas dessas janelas era a do quarto que Yacoub Khan ocupara na adolescncia,
ch
eio ainda dos seus martelos de criquet, dos albuns de fotografias, das taas ganha
s no jogo do polo, de todas as recordaes da sua infncia. No havia pressa,
pensou ele
. Uma vez instalado no Paquisto viria buscar tudo aquilo.
Yacoub Khan enganava-se. Nunca mais voltaria ao lar paterno, nem tornaria a ver
a me. Da a poucos meses, frente de um esquadro do exrcito paquistans,
subiria uma das
vertentes nevadas de Cachemir ao assalto a uma posio guardada por homens que
tinh
am sido seus companheiros no Exrcito das ndias. Entre as unidades que tentariam
tr
avar o seu avano encontrava-se uma companhia do Garbwal Battalion indiano.
Muulman
o tambm, o chefe fizera em julho de 1947 uma escolha inversa da de Yacoub Khan e
decidira ficar no pas onde nascera. Tambm ele era natural de Rampur, tambm ele
se c
hamava Khan, Younis Khan. Era o irmo mais novo de Yacoub.
A tarefa mais complexa, a mais temvel levantada pela Partilha coube a um advogado
de nome arrancado aos dossiers do seu gabinete de Londres. Apesar dos seus conh
ecimentos enciclopdicos, Sir Cyril Radcliffe ignorava praticamente tudo a respeit
o das ndias. Esse ingls tranquilo e gordinho nunca lidara com qualquer estatuto
ju
rdico que a elas se referisse. Nem sequer pusera l os ps. Foi paradoxalmente por
es
sa razo que recebeu uma convocao do Lord Chanceler da Gr-Bretanha, para 27 de
junho
de 1947 tarde.
O plano de partilha das ndias deixava em suspenso um problema capital, explicou o
lord Chanceler ao visitante: as linhas divisrias do Panjab e de Bengal. Sabendo
que eles prprios nunca mais chegariam a um acordo sobre o traado, Jinnah e Nehru
t
inham resolvido confiar essa responsabilidade a uma comisso de demarcao cujo
presid
ente desejavam fosse um eminente jurista britnico. Este no devia ter nenhuma
exper
incia das ndias, sob pena de ser desclassificado por uma das partes como no
oferece
ndo
172
todas as garantias de imparcialidade. A sua reputao de homens de leis, e a sua
no m
enos notvel ignorncia das questes indianas tornavam-no o candidato ideal,
sublinhou
o lord Chanceler.
Espantadssimo, Radcliffe endireitou-se no cadeiro. Dividir o Panjab e Bengal era
a
ltima coisa que ele desejava ser obrigado a fazer. Embora ignorasse tudo a respe
ito das ndias, tinha experincia jurdica bastante para saber que essa misso
seria imp
erdovel. Todavia, como muitos ingleses da sua gerao, possua por princpio um
sentido p
rofundo do dever. Pensou que se, nesta encruzilhada crtica da sua histria, os
dois
adversrios polticos indianos tinham conseguido entender-se para o indicar, ele,
u
m ingls, era obrigado a aceitar.
Uma hora mais tarde, um alto funcionrio da secretaria de Estado dos Negcios
indian
os desdobrou diante dele uma carta geogrfica. Enquanto com o dedo seguia o curso
do Indo, contornava a barreira do Himalaia, descia o Ganges e passava pelas marg
ens do golfo de Bengala, Radcliffe descobria pela primeira vez os limites das im
ensas provncias que teria de cortar em duas. Oitenta e oito milhes de homens, as
r
espectivas habitaes, arrozais, campos de juta, os seus prados e pomares, os seus
c
aminhos de ferro, estradas e fbricas - dezenas de milhar de quilmetros quadrados
s
urgiam aos seus olhos na abstraco de uma folha de papel colorido.
Sobre um mapa semelhante ele iria ser obrigado a desenhar a linha que amputaria
aquele pedao da humanidade com a segurana do escalpelo de um cirurgio.
Antes da sua partida para Nova Delhi, Sir Cyril Radcliffe foi recebido pelo Prim
eiro ministro. Clement Attlee observou com orgulho a personagem cujas decises iam
influenciar mais a vida das ndias do que as de qualquer outro ingls havia trs
sculo
s. No quadro sombrio da cena indiana carregada de nvens, sentiu pelo menos um mot
ivo real de satisfao: era um antigo aluno de Haileybury, como ele prprio, que
Jinna
h e Nehru tinham escolhido para cortar a terra natal de oitenta e oito milhes dos
seus compatriotas.
Lus Mountbatten mal tivera tempo de saborear a sua vitria, que havia ganho
consegu
indo arrancar o acordo dos lderes indianos ao seu plano de partilha, quando lhe c
au nas mos novo problema, mais complexo ainda. Os seus interlocutores no seriam,
de
sta vez, um punhado de advogados formados no tribunal londrino, mas os 565 membr
os do rebanho dourado de Sir Conrad Corfield, os marais e nawabs das ndias.
A atitude imprevisvel, por vezes irresponsvel, destes soberanos ressuscitava um
ve
lho pesadelo. Se os seus chefes polticos podiam dividir a ndia, os seus prncipes
po
diam aniquil-la. A ameaa deles no era uma simples partilha, mas uma exploso
numa mul
tido de Estados. Arriscavam-se a fazer estalar todas as foras de desintegrao
inerent
es s mltiplas
173
lnguas, raas, religies, das regies que dormitavam sob a frgil superfcie da
unidade ind
iana. Satisfazer as suas reivindicaes de independncia comprometeria fatalmente a
pe
nnsula num processo que levaria por fora ao seu desmembramento. A sucesso do
Imprio
das ndias no seria ento mais do que um mosaico de pequenos territrios inimigos
e sem
defesa, expostos cobia da grande rival da ndia, a China.
A viagem secreta de Sir Conrad Corfield a Londres dera certos resultados. O gabi
nete reconhecera a validez da sua tese: as prerrogativas que os prncipes tinham c
edido ao rei-imperador em troca da sua suberania deviam ser-lhes directamente de
volvidas. Isso implicava que voltassem a ter todos os atributos da sua soberania
partida dos ingleses, e que seriam ento tecnicamente independentes. Corfield
no s
entiria a menor hesitao em encorajar os mais poderosos a proclamarem oficialmente
esta independncia."
Ningum me deixara prever que o problema dos principados indianos ia ser to
difcil d
e resolver, seno mais, do que o da ndia inglesa", lamentou Mountbatten num
relatrio
enviado a Londres. Felizmente, ningum estava mais habilitado que ele para tratar
com esses soberanos. Era, afinal, um dos seus pares. Possuia o que era aos olho
s deles a mais incontestvel das referncias, laos de sangue com metade das casas
rea
is da Europa, e, acima de tudo, com a coroa que durante tanto tempo os protegera
. Fora alis na companhia de alguns desses prncipes - cujos tronos tencionava
agora
liquidar -, que ele descobrira, vinte e cinco anos antes, o fabuloso Imprio das
n
dias. Fora seu hspede. Percorrera as suas selvas e perseguira os seus tigres, mon
tara os seus elefantes reais. Bebera o seu champanhe pelas suas taas de prata, sa
boreara os seus festins orientais na sua baixela de ouro, danara sob os candelabr
os de cristal dos seus palcios com a jovem que vira a ser sua esposa. Sobre a
relv
a dos seus soberbos campos, iniciara-se no jogo do polo, de que se tornaria mais
tarde um perito mundialmente conhecido. Entre os poucos ntimos que o tratavam po
r "Dckie", encontravam-se alguns marajs, de quem tinha ficado amigo aps essa
viagem
.
joluso
Mas, quaisquer que fossem os seus laos de sangue e o seu encanto pessoal, Moumbat
ten era sobretudo um realista, profundamente fiel aos seus princpios liberais. Os
pais dos prncipes tinham sido talvez os aliados mais seguros do Imprio; na poca
mo
dema que ia iniciar-se, a Gr-Bretanha devia procurar os seus novos amigos entre o
s socialistas do Congresso. Mountbatten no conseguiria conquist-los se
subordinass
e os interesses nacionais da ndia aos de uma pequena casta anacrnica de senhores
f
eudais.
O maior servio que podia prestar a esses herdeiros de tempos idos era salv-los de
si prprios dos seus fantasmas e em certos casos, do sonhos megalmanos que o
isolam
ento dourado dos seus Estados contribuira para alimentar. Uma viso obcecava Mount
battn desde a adolescncia, uma cena a que no assistira mas que imaginara muitas
vez
es, o espectcu-
174
lo atroz da cave de lekaterinbourg onde o seu tio, o tsar, a tia e os primos -ti
nham cado sob as balas dos revolucionrios russos. Sabia que certos
inarajs comam o risco de praticar actos irreparveis susceptveis de transformar
os s
eus palcios em aougues. E o caminho que o seu Secretrio poltico, Sir Conrad
Corfield
os encorajava a tomarem era justamente de molde a levar a semelhante tragdia,
Muitos deles julgavam todavia que Mountbatten ia ser o seu salvador, que ia cons
eguir p-los a salvo, a eles e sua existncia privilegiada. Enganavam-se. O vice-
rei
queria pelo contrrio, convencer os seus caros e velhos amigos de que a nica
soluo a
ceitvel entrar no esquecimento sem fazer barulho. I@esejava v-los abandonar
qualqu
er reivindicao de independncia e proclamar a sua vontade de se associarem
ndia ou ao
P- quisto antes de 15 de Agosto. Estava pronto, pela sua parte, a usar da sua
aut
oridade junto de Nehru e de Jinnali para obter como compensao da sua colaborao
as me
lhores condies para o seu futuro pessoal.
Foi primeiro a Vallabhbhai Patel, ministro indiano encarregado de resolver as qu
estes do,; prncipes, que Mountbatten props o seu ajuste. Se o Congresso
permitisse
aos marajs a aos nawabs conservarem os seus ttulos, os seus palcios, as suas
listas
civis, a sua imunidade principesca, o direito s condecoraes britnicas e o
estatuto
quase diplomtico, teria o direito de conseguir que eles assinassem um pacto de ad
eso transferindo pura e simplesmente a sua soberania para a ndia.
A oferta era tentadora. Patel sabia que no existia ningum nas fileiras do
Congress
o que gozasse junto dos prncipes de influncia comparvel de Mountbatten.
- Mas preciso que eles estejam todos de acordo, declarou ao vice-rei. Se me trou
xer um cesto com todas as maas da rvore, aceito. Se no existirem la todas,
recuso.
- Dispensa-me de uma dzia de irredutveis^, perguntou o vice-rei.
- muito, protestou Patel. Dois, o mximo.
- muito pouco, lamentou Mountbatten.
O vice-rei e o ministro indiano discutiram como dois mercadores de tapetes a pro
psito de territrios to populosos como metade da Europa. Transigiram finalmente
no nm
ero de seis. A tarefa que esperava Mountbatten nem por isso era mais leve. A tot
alidade menos seis, somava de qualquer forma mais de quinhentas e cinquenta maas
a recolher antes de
15 de Agosto.
O convite de JawaharIal Neliru era o mais surpreendente que um ingls podia recebe
r de um indiano. Ficaria indita nos anais da descolonizao. Apenas a sabedoria
ances
tral da ndia e a personalidade excepcional dos interlocutores podia explic-la.
Nel
iru viera pedir solenemente ao ltimo vice-rei das ndias para ser o primeiro
titula
r do mais alto cargo
175
que podia oferecer a ndia independente, o de governador-geral. Apesar de profunda
mente sensibilizado com a enorme honra que lhe era prestada, Mountbatten ps grand
e reticncias. Tinha triunfado brilhantemente durante os seus quatro meses nas
ndia
s. Podia partir, conforme esperava, "numa luminosa aurola de glria". Estava
demsiad
o cons-
ciente das dificuldades que iam surgir e receava ver rnancbado o seu xito. Para d
esempenhar eficientemente o papel de rbitro, era necessrio ainda que Jinnah lhe
fi
zesse a mesma proposta.
O velho lder muulmano no tinha pela sua parte a menor inteno de renunciar s
prrerogati
vas da magistratura suprema do Estado conse-
guido aps tantos esforos. Seria ele mesmo o primeiro govema dor-geral do
Paquisto.
Mountbatten faz-lhe notar que ele no escolhera o lugar apropriado: no regime de t
ipo britnico que escolbera para o seu Estado, era o Primei.ro mi.nistro quem tinh
a todos os poderes. O papel de govema- dor-geral era apenas honorficq, sem verdad
eira autoridade, como o do rei de Inglaterra, explicou.
Estes argumentos no fizeram vacilar um momento jinnah.
- No Paquisto, respondeu secamente, serei eu o governador-geral, e
o Primeiro ministro far o que eu lhe mandar.
O rei, AttIce, Churchili, todos os que tinham conscincia do alcance da homenagem
prestada por Nehru Gra -Bretanha, exortaram o vice-rei a aceit-la.
Antes de dar o seu acordo, Lord Mountbatten desejava todavia obter uma beno.
Parec
ia impossvel que um homem que levara a nda libertao pregando a sua doutrina
de no-v'ol
cia conseguisse ver outro que dedicara a vida arte da guerra tornar-se o primeir
o chefe de Estado da sua ptria independente. Num daqueles rasgos quixotescos que
lhe eram habituais, Gandh j dera a conhecer ao mundo a personalidade ideal que
des
cava para esse posto: uma varredora intocvel, "de grande corao, incorruptvel e
pura c
omo o cristal".
Apesar de tudo quanto os separava, uma verdadeira afinidade uma o
velho Mahatma e o lovem almirante, mais novo do que ele trinta anos.
Mountbatten estava fascinado coni Gandhi. Adorava o seu humor trialicioso. Logo
chegada, decidira ignorar todos os padres britnicos e tentar honestamente
compreen
d-lo. Cada encontro aumentara a sua simpatia e a da esposa por aquela curiosa per
sonagem. Gandhi ficara sensibilizado com esse calor ao ponto de lhe corresponder
com uma diligncia de uma generosidade excepcional. Uma tarde de Julho, esquecend
o todos os anos passados nas prises britnicas, o Mahatma foi pedir
espontneamente a
Lus Mountbatten para ser o primeiro chefe de Estado do pas que levara trinta e
ci
nco anos a arrancar aos ingleses. Esta oferta era um enorme tributo ao ltimo vice
-rei e Gr-Bretanha. Contemplando a frgil si lhueta
176
perdida no enorme cadeiro, Mountbatten estava profundamente comovido. "Foi preso
por ns, pensou ele, humilhado, desprezado, desdenhado, e ele ainda possui grandez
a de alma suficiente para ter este gesto. Agradeceu a Gandhi. O velho balouou a c
abea e continuou a conversa.
Com um gesto da mo, indicou a fileira de construes pertencentes ao palcio e os
jardi
ns mogois. Tudo isto, declarou ele ao homem que arriava cada uma daquelas pedras
e a faustosa vida que ali se vivia, todo este esplndido e incomparvel conjunto
va
i pertencer ndia independente. A sua arrogante opulncia e o passado com ela
relaci
onado eram uma ofensa para os seus compatriotas miserveis. Os novos dirigentes da
ndia deviam dar o exemplo, a comear pelo governador-geral.
- Deixe este palcio, suplicou ele, e v viver para uma casa sem criados. O seu
palc
io poder servir para um hospital.
Mountbatten fez um esgar divertido a esta ideia. Como poderia a prirneira figura
da maior democracia do mundo receber dignamente chefes de Estado estrangeiros n
uma humilde casa sem conforto? Enquanto Jorge VI, Attlee, Nehru tentavam convenc
er o ltimo vice-rei das ndias a aceitar um cargo que lhe inspirava as mais vivas
r
eticncias, este encantador feiticeiro pedia-lhe para ser o primeiro socialista da
ndia independente, o responsvel pelo destino de mais de um quinto da humanidade,
na austeridade espartana de uma vivenda onde fosse ele mesmo a fazer a limpeza!"
No do bisturi do cirurgio que eu vou precisar para cortar o Parijab e Bengal,
mas
do machado do magarefe", inquietava-se Sir Cyril Radcliffe ao ouvir Lus Moutitbat
ten pormenorizar-lhe os termos da sua misso, sua chegada a Nova Delhi. Perante o
eminente 1 .urista que a Partilha das ndias arrancara ao seu gabinete londrino,
o vice-rei foi categrico: o plano da partilha devia estar pronto dentro de seis
semanas. No dia 14 de Agosto de 1947, o mais tardar.
A menos de vinte quilmetros do palcio do vice-rei comeavam as primeiras
plancies de
uma das maiores provncias que a mo de Sir Cyril Radcllffe ia irremediavelmente
des
troar, o Panjab. Nunca "o celeiro das Panjab, fizera prever recolhas to
abundantes
como as que amadureciam nos seus campos dourados de trigo e cevada, nas suas ex
tenses ondulantes de milho, de milho paino e de cana de acar. No seu andar
desengonad
o, os bois avanavam j em longas caravanas, pelos caminhos poeirentos, atrelados
ao
s carros onde se empilhavam os primeiros frutos da mais frtil terra indiana.
As aldeias para onde se dirigiam eram todas semelhantes. Coberto de
177
musgo esverdeado, havia primeiro o charco onde as mulheres iam lavar a roupa, e
os homens os animais de carga; depois a confuso de casas de adoube, com os pequen
os ptios onde se espanejavam ao sol, ces, cabras, bfalos, vacas, e um rancho
enorme
de crianas, de ps descalos e com os olhos besuntados de Khl; grandes bfalos
faziam g
irar lentamente pesadas ms de pedra que moia o trigo e o milho; as mulheres achat
avam em forma de bolacha escremento fresco misturado com palha que, depois de se
co, ia servir de combustvel nos seus lares.
O corao do Panjab era a antiga capital do Imprio das Mil e Uma Noites, Lahore, a
pr
eferida dos reis mogois. Tinham-na estimado e alindado com uma profuso de monumen
tos e de tesouros: a mesquita imperial de Aurangzeb, a mais vasta da sia, com fai
anas brilhantes como talisinas sob a poeira dos sculos; o mausol u de mrmore de
Jeha
ngir, gravado com os noventa e nove nomes de Al; as muralhas de grs cor~de-rosa
do
imponente forte de Akbar, com os seus terraos repletos de mosaicos e incrustaes
pr
eciosas; os mausolus de Noor Jahan, a princesa cativa que desposou o carcereiro e
se tornou imperatriz, e o de Anarkali, " Flor de Romanzeira", jia do harm de
Akba
r, enterrada viva por ter sorrido para o filho dele; fontes transparentes dos ja
rdins olorosos do Shalimar. Uma cidade inteira pululando de nostalgias de um pas
sado glorioso.
Mais cosmopolita do que Nova Delhi, mais aristocrtica do que Bombaim, mais altiva
do que Calcut, Lahore era para muitos a cidade mais sedutora das indias. O seu c
entro era o MalI, uma larga avenida bordada de cafs, de bares, de lojas, restaura
ntes e teatros. As casas de prazer eram as mais requintadas da pennsula, e a cida
de gozava havia muito a reputao de ser o Paris do Oriente.
O traje tradicional era o khazancbi, essa graciosa tnica de seda que algumas indi
anas preferem ao sari, cujas pregas caem sobre calas compridas tufadas apertadas
nos tornozelos, semelhantes s usadas pelas mulheres dos harns dos imperadores
mong
ois. Mas, neste centro incontestado da elegncia as mulheres de sociedade gostavam
de se vestir como as cortesas do grande sculo, as jovens como os manequins da ru
a de Ia Paix, os estudantes como os galas dos filmes de Ren Clair, e os actores c
omo os gigolos do cinema mudo.
Era em Lahore que os ingleses tinham criado as melhores instituies onde formavam
a
elite das novas geraes indianas. Com os campanrios gticos das suas capelas, os
seus
campos de crquet, aqueles colgios eram as rplicas exatas dos modelos britnicos
tran
sportados para as plancies escaldantes do Panjab. Professores de colarinho engoma
do ensinavam ali o grego e o latim a indianos de blazer, com os bons enfeitados c
om nobres divisas: "A luz do cu o vosso guia", ou "A coragem de saber".
Fotografi
as amarelecidas cobriam as paredes dos corredores, mostrando as equipas de rugby
, de crquet e de hquei, filas de rapazes de cor morena sob bons redondos,
apertando
com orgulho os sticks de hquei ou os martelos de criquet. Hindus, muulmanos ou
si
khs, estes jovens tinham
178
cantado lado a lado na capela os hinos marciais de uma Inglaterra crist, aprendid
o de cor as obras dos poetas e dos romancistas britnicos, arremetido com os corpo
s nos campos de desporto conquista das virtudes viris dos senhores das ndias a
qu
em reclamavam hoje as chaves da sua ptria.
Lahore era antes de mais uma cidade tolerante. As diferenas religiosas entre os s
eus habitantes - seiscentos mil muulmanos, quinhentos mil hindus e cem mil sikhs
- manifestavam-se ali menos do que em qualquer outra parte das ndias. Nas pistas
de dana do Gymkbana Club e nas do Cosmopolitan Club, limitavam-se muitas vezes
gr
ossura de um sari enquanto sikhs, muulmanos, hindus, cristos e parsis rodopiavam
d
e mistura ao ritmo de um tango ou de um fox trot. juntavam-se sem descrminaes
nas r
ecepes, jantares e bailes da alta sociedade, e as sumptuosas vivendas dos bairros
residenciais pertenciam indiferentemente a membros de todas as comunidades.
Mas este quadro idlico era um sonho que comeava a desvanecer-se. Desde janeiro de
1947, agitadores da Liga muulmana faziam reunies secretas nos bairros habitados
pr
incipalmente por muulmanos. Brandindo fotografias, crnios e ossadas, mostrando
por
vezes um fugitivo horrivelmente mutilado, acusavam os hindus de todas as atroci
dades perpetradas algures, atiando o fogo do dio racial e religioso.
Uma primeira erupode violncia deu-se no princpio de Maro quando, ao grito de
Pakistan
Murdabad! - "Morte ao Paquisto!" um lder sikh cortou a golpes de machado, o
mastr
o no alto do qual flutuava a bandeira da Liga muulmana. Sangrentas represlias
resp
onderam a este desafio, causando mais de trs mil vtimas, na maior parte sikhs.
Sob
revoando uma srie de aldeias devastadas, o general Sir Frank Messervy, com andant
e- chefe da zona norte do Exrcito das ndias, ficara aterrado com as filas de
cadver
es "alinhadoscomo faisoesdepoisde uma caada".
A violncia atingira as ruas de Lahore quando ali chegara o homem que, com um
lpis,
ia decidir o seu destino. Com a cabea cheia de todas as histrias que ouvira em
In
glaterra acerca da espantosa cidade, da radiosa poca de Natal, dos bailes, da fes
ta do cavalo, e da faustosa vida mundana, Sir Cyril Radcliffe no encontrou nada d
isso. Na capital do Panjab, s viu " calor, poeira, revoltas e incndios". Cem mil
c
idados haviam j fugido. Apesar do calor insuportvel, os restantes tinham
renunciado
ao velho costume de dormir nos terraos ao ar livre. Tornara-se cada vez maior o
perigo de ver surgir das trevas um punhal.
A zona mais perturbada de Lahore era o interior de uma muralha de pedra de doze
quilmetros, antiga muralha de Akbar, que abrigavam um dos aglomerados humanos mai
s densos. Trezentos mil muulmanos e cem mil hindus e sikhs viviam ali, num labiri
nto de ruelas, de praas, lojas, oficinas, templos, mesquitas e casebres. Todos os
cheiros, todos os rudos, todos os gritos da sia dos bazares saam deste
formigueiro
sempre em movimento. Com as bandejas de cobre em equilbrio cabea, mercadores
179
ambulantes circulavam por todo o lado, apregoando pirmides de frutos e gulodices
orientais: balva e barfi, filhs com pimenta, laranjas, papaias, bananas, mangas,
uvas e tmaras, por vezes pretas de moscas. Com as pupilas brancas do vu do
tracoma
, crianas esmagavam cana de acar em prensas rudimentares e ofereciam o suco aos
tra
nseuntes.
As ruelas desta cidade velha compunham um mosaico bizantino de quitandas e ofici
nas a meio metro acima do cho para ficarem protegidas das cheias. Fronteiras mist
eriosas separavam esta confuso de barracas em corporaes rgidas. Havia a rua dos
ouri
ves com a sua exposio lucilantes de pulseiras de ouro que constituiam o p-de-
meia d
e muitos hindus; a rua dos perfumistas com a sua floresta de pausinhos de incens
o e os velhos vasos da China cheios de essncias exticas misturadas ao gosto do
cli
ente; filas reluzentes de babuchas bordadas a lantejoulas, com a ponta revirada
fazendo lembrar uma gndola; artfices que apresentavam uma profuso de objectos
envem
izados incrustados de mosaicos, caixas de laca graciosamente enfeitadas com ilum
inuras, cofres de madeira de s ndalo com as tampas craveladas de delicados desenh
os em folha de ouro ou marfim.
Havia lojas de armas, cheias de espingardas, de lanas de kirpan, o sabre ritual d
os sikhs. Havia vendedores de flores, que desapareciam por detrs das montanhas de
rosas e de jasmins que os filhos enfiavam num fio como as prolas de um colar; ma
is coloridos ainda e ricos de aromas, os expositores de especiarias e as ceiras
dos ervanrios, cuja variedade de plantas medicinais curava desde a gota at s
comich
oes, opresso ou anemia. Havia vendedores de ch que apresentavam uma dzia de
folhas
diferentes, desde o negro cor de tinta at ao verde plido de azeitona. Havia
mercad
ores de tecidos, acocorados de ps descalos como Budas sobre esteiras, no meio do
v
ariegado multicor da sua mercadoria. Alguns s vendiam trajes para casamentos, e o
s seus mostrurios estavam cheios de turbantes enfeitados com palhetas douradas, d
e tnicas e vestidos incrustados de vidros coloridos, esmeraldas e rubis dos pobre
s.
Todo o Oriente das fri as circulava como num palco. Muulmanas, escondidas sob
o
s burqa, olhos espreita por detrs da delgada viseira do vu, deslizavam, como
freir
as hora de vsperas, no turbilho chocalhante dos tonga, dos rickshaws, das
biciclet
as e dos trens.
Da varanda rendilhada de uma casa do bairro hindu, o homem mais rico da antiga L
ahore contemplava satisfeito toda esta ruidosa agitao. Um quarto ou quase dos
camp
oneses do Panjab estavam presos, alguns para toda a vida, nas suas malhas dourad
as. O velho Bulagi Shali era o usurrio mais prspero da provncia.
As primeiras vtimas do seu dio racial jaziam agora por debaixo das suas janelas,
vt
imas absurdas, mortas ao acaso s porque usavam um turbante slkh ou um cafetan
muul
mano.
E todavia, apesar do dio e do medo, viam-se ainda cenas de confraternizao. A
noite,
nos clubes, em volta dos bares, hindus e muulmanos
180
da alta burguesia trocavam promessas apaixonadas. Se a nossa cidade ficar em ter
ritrio indiano, havemos de os proteger, juravam os hindus aos amigos muulmanos,
qu
e faziam a mesma promessa aos amigos indianos, no caso de a Partilha trazer a si
tuao inversa.
O ingls de quem dependia a futura nacionalidade de Lahore chegava no meio de um t
al desencadear de violncias que o governador do Panjab no se atreveu a dar-lhe
hos
pitalidade na sua residncia. Sir Cyril Radcliffc instalou-se como qualquer caixei
ro viajante, no hotel Faletti, fundado em 1860 por um napolitano que se apaixona
ra por uma cortesa local. Empregou todo o seu poder de convico para obter a ajuda
dos juizes da comisso de fronteiras - dois muulmanos, um hindu e um sikh - que
dev
iam ser seus assistentes. Mas estes quatro magistrados compartilhavam as paixes p
artidrias dos seus compatriotas. Radcliffe compreendeu que devia concluir sozinho
a sua terrvel misso. A sua chegada a Lahore causara sensao ao ponto de uma
escolta
de inspectores ter de velar dia e noite pela sua segurana. Sempre que saa do
hotel
, um bando de indianos vibrantes de desespero caa sobre ele no meio do calor infe
rnal. A ideia de verem os frutos de uma vida inteira de trabalho destrudos de um
golpe pelo risco do seu lpis, estavam dispostos a oferecer-lhe fosse o que fosse
para conseguirem uma fronteira favorvel sua comunidade.
noite, a fim de escapar a estas patticas diligncias, Radcliffe refugiava-se no
ltim
o bastio "para europeus apenas", o Pzinjab Club. Ali, saboreando o seu whisky and
soda sobre a relva, enquanto os criados de t nica branca circulavam na sombra co
mo fantasmas, o jurista ingls que ignorava tudo a respeito das ndias perguntava a
si prprio onde, para alm daquele jardim, na cidade febril de dio, poderia
encontrar
qualquer vestgio da Lahore idlica e lendria. A cidade estava agora apenas
dominada
por rudos e vises sombrias que lhe surgiam por detrs da cerca do Punjab Club:
as f
agulhas ardentes de um bazar em chamas, o gemido irritante da sereia das ambulnci
as, os gritos de guerra dos adversrios, os Sat Sr. Akal! dos slkhs, os Allab Akba
r! dos muulmanos, o sinistro tan-tan dos fanticos extremistas hindus martelando
na
noite hstil.
A cinquenta quilmetros a leste de Lahore, erguem-se as muralhas da segunda maior
cidade do Panjab, Amritsar, culas ruas envolvem o santurio mais sagrado do slkhls
rno. Erigido no meio das guas lisas de um vasto lago ritual atravessado por uma p
onte, o Templo de Ouro um edifcio de mrmore branco reluzente de ornatos de
cobre,
prata e ouro. A cpula, completamente forrada de placas de ouro, alberga o exempla
r manuscrito original do livro santo dos slkhs , o Grantb Sabib, cu)as pginas for
radas de seda so todas as manhs cobertas de flores frescas abanadas dia e noite
co
m um leque feito de cauda de boi cavalo. S uma vassoura de penas de pavo digna
de
espanejar este lugar venervel.
181
cuecas. Quando tomou conhecimento da mensagem, o homem que conhecia melhor que n
ingum o Panjab, encolheu os ombros em sinal de impotncia.
- Infelizmente no podemos fazer nada para os impedir de agir, suspirou com triste
za Sir Evan Jenkins.
Cinco dias mais tarde, durante a noite de 11 para 12 de Agosto, os comandos sikh
s de Tara Singh executaram a primeira parte do plano organizado pelo R. S. S. S.
Duas cargas de plstico postas na via frrea fizeram explodir o comboio especial
do
Paquisto, a nove quilmetros da estao de Giddarbaha no distrito de Ferozepore,
no Pa
njab.
O jurista britnico que at a nunca pusera os ps nas ndias, comeara o seu
trabalho de vi
viseco. Fechado na vivenda de persianas verdes que o vice-rei pusera sua
disposio no
recinto do seu palcio, sufocando no calor de Nova Delhi, Sir Cyril Radcliffe
traa
va sobre um mapa do estado-maior do Royal Engineers as fronteiras que iam separa
r os oitenta e oito milhes de indianos.
O prazo que lhe haviam imposto todas as partes condenavam-no a cumprir esta tare
fa na solido daquela casa. Desligado de todo o contacto com as grandes entidades
vivas que dissecava, no podia prever as consequncias da obra do seu bisturi sobre
aquelas terras pujantes de vida seno baseando-se em dados abstractos, mapas, esta
tsticas ou relatrios.
Todos os dias retalhava uma rede de irrigao instalada nas terras do Panjab como
se
fossem veias na pele de um homem, sem poder avaliar in loco as repercusses do se
u traado. Sabia que no Panjab a gua representava a vida, e que quem controlasse a
g
ua, controlava a vida. Contudo, era incapaz de seguir o caminho do seu lpis sobre
a rede das canalizaes, dos diques, dos reservatrios. Mutilava arrozais e campos
de
trigo sem nunca os ter visto. No tinha podido visitar uma s das centenas de
aldei
as atravs das quais ia passar a sua fronteira, nem fazer uma ideia dos dramas a q
ue ela ia sujeitar os pobres camponeses subitamente privados dos seus campos, do
s poos, dos caminhos. Nunca teria a possibilidade de ir a esses lugares e atenuar
nenhuma das tragdias humanas que as suas decises provocavam. Vrias comunidades
fic
ariam separadas das suas culturas, das fbricas e das fontes de abastecimento, das
centrais elctricas e das linhas de distribuio. E tudo isso devido necessidade
louc
a em que se encontrava de dividir diariamente dezenas de quilmetros de um pas
cuja
economia, agricultura, e sobretudo populao, lhe eram quase desconhecidos.
O prprio material de que dispunha era por vezes precrio. Faltavam-lhe mapas de
lar
ga escala, e as informaes fornecidas por outros estavam erradas. Apercebeu-se
assi
m de que os cinco rios do Panjab tinham uma tendncia curiosa para correr por veze
s a vrios quilmetros do leito que
200
lhes tinham marcado os servios hidrogrficos oficiais. As estatsticas
demogrficas que
deviam constituir a sua referncia de base eram inexactas e permanentemente falsi
ficadas pelas partes em presena para apoiarem as suas pretenes antagonistas.
Das duas provncias, foi a de Bengal que lhe deu menos trabalho. Radcliffe hesitou
apenas sobre o destino de Calcut. A reivindicao da cidade por Jinnah parecia-
lhe j
ustificada: a cidade permitiria o escoamento natural da juta para as fbricas de t
ransformao e para o porto de exportao. Mas a forte maioria hindu da sua
populao repres
entava aos seus olhos um factor mais importante do que as consideraes econmicas.
Um
a vez estabelecido este princpio, o resto era relativamente simples. A sua fronte
ira no era todavia mais "do que um risco de lpis traado num Mapa" com tudo o que
is
so acarretava de arbitrrio. No emaranhado de pntanos e plancies meio inundadas
do B
angal, no existia nenhuma barreira geolgica que pudesse servir de demarcao
natural.
A diviso do Panjab era uma empresa igualmente melindrosa, As populaes muulmanas
e hi
ndus que habitavam o Lahore em propores quase iguais, reivindicavam o direito
cida
de com igual paixo. Para os sikhs, Amritsar e o seu Templo de Ouro s podiam
perten
cer ndia; ora a cidade estava rodeada de zonas povoadas de muulmanos. Na
realidade
, toda a provncia era um mosaico de comunidades diversssimas metidas umas nas
outr
as. Se tentasse delimitar uma fronteira que respeitasse a integridade destas com
unidades, Radcliffe arriscava-se a criar uma minoria# de minsculos conclaves cujo
acesso ia resultar incerto; se se esforasse, pelo contrrio, por se inspirar nos
i
mperativos da geografia e impr uma fronteira mais prtica, precisava de talhar a
fu
ndo.
O jurista ingls lembrar-se-ia sempre do calor trrido daquelas semanas de Vero,
daqu
ela humidade abrasadora, sufocante, aniquiladora. Trs divises da sua residncia
esta
vam peiadas de mapas, documentos, relatrios dactilografados sobre centenas de fol
has de papel de arroz impalpveis. Quando trabalhava, em mangas de camisa, as folh
as ficavam-lhe coladas nos braos hmidos, deixando-lhe na pele estranhos sinais: a
marca de algumas palavras que significavam talvez as esperanas ou splicas
desesper
adas de centenas de milhar de seres humanos. Suspenso do tecto, um ventilador sa
cudia o ar pesado. De vez em quando, movidas por qualquer misteriosa descarga elc
trica, as ps pareciam loucas e enchiam a vivenda de violentas rajadas de ar quent
e. As folhas comeavam ento a rodopiar pela casa, como uma tempestade simblica
press
agiando o triste destino que esperava as desventuradas aldeias do Panjab.
Radcliffe compreendeu que uma onda de sangue resultaria do seu plano de partilha
, Sabia que um vento de demncia comeava a soprar sobre certas aldeias, as mesmas
q
ue estava a dividir. Aps sculos de vida pacfica em comum, hindus e muulmanos
lanavam-
se uns contra os outros numa fria de massacre.
Aparte estas informaes, ele no tinha praticamente nenhum contacto
201
com o exterior. Quando se aventurava a ir a uma recepo ou um jantar, ficava
imedia
tamente cercado por uma multido de pessoas que o assaltavam com as suas splicas.
O
seu nico repouso era um curto passeio. Todas as tardes, andava um bocado ao long
o de um talude onde os ingleses tinham em 1857 reunido as suas foras para esmagar
as revoltas de Delhi.
Pela meia noite, esgotado de fadiga, saa a dar alguns passos debaixo dos eucalipt
os do seu jardim. O jovem funcionrio que lhe servia de assistente acompanhava-o d
e vez em quando. Prisioneiro das suas angstias, Radcliffe passeava a maior parte
das vezes no jardim em silncio. Outras, os dois homens conversavam. Mas o sentido
das convenincias impedia Radcliffe de comunicar as suas preocupaes a quem quer
que
fosse, e o seu adjunto era demasiado discreto para fazer a menor pergunta. Ento,
esses dois veteranos de Oxford falavam de Oxford na quente noite indiana.
Lentamente, por meio de pequenos traos, tomando primeiro as decises mais fceis,
Rad
cllffe desenhou a sua fronteira. Uma ideia obcecava-O: "Executo este trabalho ho
rrvel o mais depressa e melhor que posso, pensava ele, mas tudo isto no serve
para
nada. Faa o que fizer, quando acabar, eles vo todos matar-se uns aos outros."
No Panjab, a tragdia j se desencadeara. As estradas e vias frreas da provncia
melhor
administrada das ndias j no ofereciam segurana. Hondas de sikhs vagueavam nos
campo
s, atacando os aglomerados e bairros muulmanos. A vaga de crimes e pilhagens que
se abateu sobre Lahore era to violenta, que um inspector da polcia britnica teve
"a
impresso de que toda a cidade estava a suicidar-se". A estao central dos
correios
era inundada por milhares de postais enviados a hindus e slkhs. Mostravam cadvere
s de homens mutilados, mulheres violadas e massacradas. No verso, a mensagem anu
nciava: "Eis a sorte dos nossos irmos e irms quando carem em poder dos
muulmanos. Fu
jam antes que esses selvagens lhes faam o mesmo!>@ Esta guerra psicolgica era
obra
da Liga muulmana, que procurava semear o pnico entre hindus e slkhs.
Nos bairros residenciais, cujos habitantes tinham sido outrora to orgulhosos da s
ua tolerncia, apareceu nas paredes das casas muulmanas o crescente verde do
islo, n
a esperana de que este sinal os protegeria dos ladres da sua religio. Na porta
da s
ua residncia de Lawrence Road, um homem de negcios, pretencente pequena
comunidade
dos parsis, que era poupado ao frenesi religioso, inscreveu uma mensagem que co
nstituia uma espcie de epitfio ao sonho desfeito de Lahore. " Os muulmanos, Os
sikh
s e os hindus so todos irmos, dizia ele. Mas, o meus irmos, esta casa pertence a
um
a parsi."
Como as demisses se multiplicavam entre os polcias indgenas, esta#
responsabilidade
de reter esta vaga de violncia coube a um pequeno grupo de inspectores
britnicos.
"No havia tempo para sensibilidades, conta Patrick Famer, que em quinze anos de
servio no Pan*ab nunca disparara um nico tiro. Primeiro aprendia-se a usar a
metra
lhadora, depois a fazer interrogatrios."
Outro inspector, Bil Rich, recorda-se das suas patrulhas noctumas em jeep atravs
dos bazares desertos da cidade abrasada pelos incndios, cri# uanto vinha dos telh
ados o apelo lancinante dos vigias muulmanos, gritando de viela para viela:
"Ateno,
ateno, ateno ...".
Entregues de corpo e alma ndia, orgulhosos por servirem na polcia, convictos
contr
a tudo e contra todos da sua aptido para manterem a ordem no Panjab, estes homens
sentiam dolorosamente o drama sofrido pela sua provncia. Acusavam os cabecilhas,
os slkhs e a Liga muulmana. Mas acima de tudo, censuravam "o arrogante almirante
" instalado no seu palcio de Nova Delhi e "a sua odiosa pressa em pr termo ao
rein
ado da Gr-Bretanha nas ndias".
A prpria natureza parecia unir-se contra eles. Dia aps dia, fixavam o cu
procura da
s nuvens anunciadoras da mono que nunca mais chegava. S as trombas de gua
torrenciai
s poderiam apagar os incndios, e as rajadas de ar fresco atenuar o calor abrasado
r que enlouquecia todos aqueles homens. A mono fora sempre a arma mais eficaz
para
esmagar um motim, mas era uma arma sobre a qual os polcias ingleses nunca haviam
tido o menor controle.
Em Amritsar, a situao era ainda pior. Matava-se ns vielas dos bazares como se
cuspi
a. Alguns hindus tinham inventado uma tctica particu- @larmente cruel. Vestidos c
omo MUUlmanos, aproximavam-se dos muulmanos autnticos e atiravam-lhes para os
olhos
cido ntrico ou sulfrico. 'Incendirios lanavam rochas para dentro das casas e
das loj
as.
Tropas britnicas foram finalmente chamadas como reforo, e decretado um recolher
ob
rigatrio de quarenta e oito horas. Mas estas medidas no trouxeram qualquer
sossego
. Como ltimo recurso, Rule Dean, chefe da polcia, usou de um estratagema que
nenhu
m manual de manuteno da ordem mencionava. Certo dia, aps uma onda de violncia
extrem
amente selvagem, mandou a banda da polcia para a praa principal. Ali, no corao
daque
la cidade prestes a desaparecer no meio do fogo e do sangue, puxando pelos pulmes
para abafar o rudo dos incndios, os msicos da polcia tocaram trechos de
Gilbert and
Suflivan, uma opereta Popular cujas melodias eram a ltima esperana de levar
razo u
ma ci- ,dade de cabea perdida.
Para manter a ordem no Panjab aps o dia 15 de Agosto, Mountbatten decidiu criar u
ma fora especial de cinquenta e cinco mil homens. Os seus membros viriam de unida
des do antigo Exrcito das ndias, como os
102
Gurkhas, cuja disciplina e origens nepalesas punham ao abrigo das paixes raciais
e religiosas. Chamado "Panjab Bouridary Force", este pequeno exrcito foi colocado
sob o comando do general ingls T. W.# Teterees. Os seus efectIvos representavam
o dobro dos que o governador da provncia julgara necessrios em caso de Partilha.
T
odavia, quando rebentasse a tempestade, esta fora seria desfeita como um molho de
palha.
A verdade era que ningum, nem Neliru, nem Jinnah, nem o iminente governador do Pa
nJab, sir Evan Jenkins, nem o prprio Mountbatten, previam ento a amplitude da
catst
rofe que se preparava. Esta cegueira havia de espantar os historiadores e suscit
aria as maiores crticas ao ltimo vice-rei das ndias.
Homens tolerantes, desprovidos de fanatismo religioso, Nebru e Jinnah cometeram
ambos o grave erro de menosprezar o grau de frenesi a que as paixes religiosas po
diam arrastar as populaes indianas. julgavam que os seus povos reagiriam com a
lgic
a e tolerncia de que eles prprios davam mostras. Cada um pensava que a Partilha
no
provocaria confrontos fsicos. Enganavam-se. Entusiasmados pela euforia da indepen
dncia prxima, confundiam os seus desejos com a realidade. E tinham levado
Mountbat
ten a compartilhar da sua convico.
O nico dirigente indiano que previu a tragdia foi Gandhi. Lidava tanto com as
mass
as, comungando com a sua vida diria e os seus sofrimentos, que adquirira a faculd
ade quase mgica de presentir-lhes as menores variaes de humor. Os ntimos
gostavam de
o comparar com o profeta de uma velha lenda hindu sentado junto de uma fogueira
, numa noite gelada de Inverno, e que comea de repente a tremer. "Olha em redor,
dizia o profeta ao discpulo. Algures na escurido, h um pobre homem a morrer de
frio
." O discpulo procurava na noite e descobria de facto a presena de um desgraado.
Ta
l era, afirmavam os seus ntimos, o gnero de intuio que o Mahatma tinha da alma
india
na.
Uma muulmana censurou-o certa vez pela sua hostilidade Partilha.
- Se dois irmos que vivem sob o mesmo tecto quisesem separar-se e viverem em casa
s diferentes, vocs opunham-se? perguntou ela.
- Ah, suspirou Gandhi, se ao menos pudessemos separar-nos como irmos. Infelizment
e, no ser assim. Vamos matar-nos uns aos outros dentro das prprias entranhas da
me q
ue nos traz no ventre.
O verdadeiro pesadelo do vice-rei, naqueles ltimos dias em que ainda encarnava o
poder imperial da Inglaterra nas ndias, no era o Panjab. Era Calcut. Ele sabia
que
mandar tropas para Calcut no serviria de nada. No labirinto ftido e ruidoso dos
seu
s bairros da lata e dos seus bazares, nenhuma polcia, por mais numerosa que fosse
, conseguiria manter a ordem. De qualquer forma, a criao de uma fora especial
para
o Panjab tinha absorvido quase todas as unidades locais consideradas ainda de co
nfiana.
204
"Se tivessem que desencadear-se tumultos em Calcut, diria mais tarde Mountbatten,
as torrentes de sangue que fariam correr tornariam, por comparao, tudo o que
pude
sse acontecer no Panjab, num verdadeiro mar de rosas.
Teria de encontrar outra forma de manter a calma na cidade. A que escolheu era u
ma tentativa desesperada, mas em Calcut o mal era to grande e os remdios to
limitado
s, que s um milagre podia salvar a situao. Para travar o frenesi da cidade mais
fant
ica do mundo, decidiu apelar para o seu @<pobre pardalito", o Mahatma Gandhi.
Exps-lhe o seu projecto no fim de julho, Com o seu exrcito do Parijab, podia
aguen
tar essa provncia, explicou, mas se houver motins em Calcut, "estamos perdidos.
Eu
nada poderei fazer. Existe ali de facto uma brigada; nem sequer a mandarei refo
rar. Se Calcut se tornar num braseiro, pois bem, Calcut desaparecer no
incndio".
- esse o resultado das suas concesses e das concesses do Congresso a jinnah,
respo
ndeu Gandhi.
Talvez, reconheceu Mountbatten. Mas nem Gandhi nem ningum tinha sido capaz de pro
por outra alternativa. Havia contudo alguma coisa que Gandhi podia fazer agora.
A sua personalidade e o ideal de no-Violncia podiam fazer reinar em Calcut a paz
qu
e as tropas eram incapazes de impor. Gandhi, esse, seria o nico reforo que ele
man
daria sua brigada aflita.
- V a Calcut. Ser ali, sozinho, o meu exrcito.
O velho no tinha a menor inteno de ir a Calcut. J decidira passar o dia da
independnci
a a orar, a fiar na sua dobadora e a jejuar no meio da minoria hindu aterrada do
distrito de Noakhali, no sul de Bengal, pela segurana da qual ofecera a vida dur
ante a peregrinao de penitncia do Ano Novo. Contudo, Mountbatten no seria o
nico a pe
dir a Gandhi que fosse garantir a paz nos bairros da lata da efervescente Calcut.
Outra voz no tardou a levantar-se. E foi a do ltimo homem que se podia esperar ao
lado de Gandhi. O lider muulmano Sayyid Suhrawardy simbolizava com efeito a
anttes
e absoluta de todos os valores que o Mahatma defendia.
Este homem adiposo, de quarenta e sete anos, era havia muito tempo o chefe dos m
uulmanos de Calcut. Era o prototipo do poltico corrupto e venal que GandhI
denuncia
va. A sua filosofia poltica era simples: uma vez eleito, no h razo para um
homem aba
ndonar mais as suas funes. Suhrawardy assegurava assim a sua presena contnua no
pode
r, utilizando os fundos pblicos para manter uma mafia de homens de aco
encarr
egados de reduzir ao silncio os adversrios polticos a golpes de matraca ou de
punha
l.
205
Durante as fomes que assolaram o Bengal em 1943, interceptara e vendera no merca
do negro dezenas de toneladas de auxlios alimentares destinados aos seus compatri
otas. Vestia fatos de seda talhados por medida e calava sapatos de crocodilo de d
uas cores. Os cabelos pretos, tratados todas as manhs pelo cabeleireiro particula
r, reluziam de brilhantina. Enquanto Gandhi lutava havia quarenta anos para exti
nguir no seu corpo os ltimos vestgios do apetite sexual, Sul---irawardy fazia
gala
em seduzir todas as bailarinas de cabaret e todas as prostitutas da alta de Cal
cut. Se Gandhi se permitia s vezes os benefcios de um pouco de bcabornato de
sdio na g
ua, o copo de Suhrawardy s se enchia geralmente de champanhe. Enquanto as ementas
do Mahatma se limitavam a algumas colheres de sopa de lentilhas, de soja ou de
iogurte, as de Subrawardy incluiam grossas postas de carne, toda a espcie de cari
l e pastelaria extica, regime que o envolvera de uma manta de gordura que contras
tava com a magreza dos seus concidados.
Mas havia pior: tinha as mos tintas de sangue. Decretando dia feriado a famosa jo
rnada de aco directa organizada por Jinnah, retendo a polcia, encorajando
secretame
nte os seus partidrios da Liga muulmana, Suhrawardy, ento Primeiro ministro do
Beng
al, era responsvel pelos atrozes massacres que haviam devastado Calcut em Agosto
d
e 1946.
Era agora o receio das represlias hindus que o levava a pedir auxlio a Gandhi.
Precipitando-se para o asbram de Sodepur onde o Mahatma fazia escala antes de pa
rtir no dia seguinte para o distrito de Noakhali, pediu-lhe que no abandonasse Ca
lcut. S ele, afirmava, podia salvar ali os muulmanos e apaziguar o furaco de
dio e de
incndios que ameaava a cidade.
- Afinal, protestava ele, os muulmanos tm tanto direito sua proteco como os
hindus.
Sempre disse que pertencia tanto a uns como aos outros.
Uma das grandes foras de Gandhi fora saber sempre distinguir a parte boa do adver
srio. Percebeu no corao de Sulirawardy uma verdadeira angstia.
Se aceitasse ficar em Calcut, respondeu Gandhi, s poderia ser com duas condies.
Suln
awardy devia primeiro conseguir dos muulmanos do distrito de Noakhali a garantia
solene da segurana das populaes hindus. Se um nico hindu ali fosse morto, ele,
Gandh
i, no teria outra coisa a fazer seno lutar at morte. Por esta subtil
transferncia de
responsabilidades, o Mahatma tornava assim Subrawardy responsvel pela sua prpria
vida.
Quando recebeu a garantia reclamada, GandIu formulou a sua segunda exigncia.
Props
a aliana mais incongruente que se possa imaginar. A sua presena em Calcut era
subo
rdinada do lder muulmano: Sulnawardy devia instalarse junto dele, dia e noite,
sem
armas nem proteco, no meio do bairro da lata mais srdido da cidade. Ali, os
dois h
omens arriscariam
106
ambos a vida em penhor da paz de Calcut. "Encontro-me aqui bloqueado, escreveu Ga
ndhi depois de Sulirawardy aceitar a sua proposta, e vou correr agora grandes ri
scos... O futuro reserva-nos surpresas. Este um alerta!"
O calendrio de Mountbatten j no tinha mais folhas do que um <mal-me-quer.
Aqueles lt
imos dias do Imprio britnico das ndias pareciam ao vice-rei esgotado "os mais
cansa
tivos de todos". Cada dia surgiam "novos problemas a resolver". Os que se referi
am organizao das festas comemorativas da Independncia no eram os menores. Os
dirigen
- _tes do Congresso insistiram para "que houvesse muito luxo", segundo a antiga
e grandiosa tradio do Imprio. O rosto severo do socialismo apareceria mais
tarde.
O Congresso ordenou para dia 15 de Agosto o encerramento dos matadouros, a organ
izao de sesses de cinema gratuitas em todo o pas, a distribuio nas escolas,
de bombons
e de uma medalha comemorativa. Mas nada se tornava simples. Em Lahore, um comun
icado oficial anunciou que "os festejos eram suprimidos devido situao
perturbada".
Os dirigentes do movimento extremista dos hindus Mabasabba, adversrios ferozes d
a Partilha, preveniram os militantes de que era "impossvel haver alegria e partic
ipar nas celebraes de 15 de Agosto". Exortaram pelo ,contrrio os seus filiados a
em
penharem todas as suas foras na luta pela reunificao "da ptria mutilada".
Uma questo de protocolo suspendeu temporariamente a preparao das cerimnias
previstas
no Paquisto para 14 de Agosto: Jinnha exigia a presena do vice-rei antes mesmo
da
hora oficial da Independncia. Outros contratempos esperavam o lder muulmano.
Desco
briu-se que um dos seis cavalos do coche, que lhe fora atribudo no jogo de caras
ou coroas, era manco. Mountbatten teve de lhe oferecer em substituio um Rolls-
Royc
e descoberto para o seu primeiro desfile solene atravs das ruas em Carachi. Jinna
h estabeleceu ele mesmo a lista dos festejos que deviam celebrar o nascimento do
Paquisto. Abririam, ordenou, com um almoo oficial na sua residncia, na quinta-
feir
a, 13 de Agosto. Um silncio embaraoso acolheu o seu desejo. Um dos colaboradores
f
oi ento obrigado a lembrar discretamente ao homem que ia tornar-se o chefe da pri
meira nao islmica do mundo que a quinta-feira 13 de Agosto calhava na ltima
semana d
o Ramado, poca em que todos os muulmanos crentes do mundo devem jejuar do nascer
ao
pr do Sol.
Enquanto o vice-rei e os chefes dos dois novos domnios resolviam esta quantidade
de pormenores, trs sculos e meio de colonizao britnica
107
nas ndias terminavam com o tilintar vibrante de milhares de copos e com as
melancl
icas promessas inspiradas pelo gin e pelo whisky dos coktails de despedida. De u
m extremo ao outro das ndias, uma srie ininterrupta de recepes, de chs, de
jantares,
bailes, marcou a passagem do Imprio para a Independncia.
Muitos ingleses, em especial aqueles que exerciam as funes comerciais que haviam
t
razido em tempos os seus antepassados a este pas, continuariam a viver na ndia.
Ma
s para outros sessenta mil, soldados, funcionrios, inspectores da polcia,
engenhei
ros do caminho de ferro, empregados das teleaplicao ou das guas e florestas,
chegar
a o momento de regressar ilha a que tinham sempre chamado "a casa longnqua".
Para
alguns, a mudana seria brutal. De um dia para o outro, trocavam um palcio de
gove
rnador com as suas legies de criados por uma vivenda de campo e uma reforma que a
inflao ia rapidamente devorar. Apesar de haver um dito que afirmava que a vista
m
ais bela das ndias era a que se disfrutava da ppa de um navio da Peninsular and
Or
iental afastando-se de Bombaim, milhares de ingleses, prevendo as restries de uma
Inglaterra socialista, sentiam a nostalgia dos belos anos passados na ndia. A
ltim
a imagem do porto de Bombaim seria para eles a mais triste das vises.
Em centenas de vivendas, encaixotavam-se febrilmente as rendas e as pratas, as p
eles de tigre, os retratos dos tios com grandes bigodes, desaparecidos no 9 regim
ento de Lanceiros de Bengal ou no 6 de Rajput, os capacetes de plumas, os mveis
pe
sados e tristes mandados de Inglaterra quarenta anos antes. Um povo, cujo grande
erro nas ndias fora, segundo Winston ChurchilI, viver margem, despedia-se numa
e
xploso de cordialidade. Como se quisessem, antes da partida, prestar homenagem
no
va ordem que lhes sucedia, os ingleses abriram de par em par as portas dos seus
clubes e das suas casas aos indianos, permitindo pela primeira vez aos saris, s
tn
icas sherwar e aos vus de khadi roarem a antiga raa imperial. Uma extraordinria
atmo
sfera de simpatia dominava estas reunies. Acontecimento nico: os colonizadores
aba
ndonavam aqueles que haviam colonizado no meio de uma girndola de boa vontade e s
impatia.
Chandril Chowk, o bazar da Velha Dlhi, pululava de funcionrios ingleses que iam
tr
ocar o seu frigorfico, a grafonola e at o automvel por tapetes orientais, presas
de
elefante, objectos de ouro ou prata, ou peles empalhadas de tigres e panteras p
ara oferecerem aos que nunca tinham podido matar nas florestas da pennsula.
Este povo que partia deixava atrs de si uma fnebre herana: os monumentos, as
esttuas
, os cemitrios solitrios onde repousavam cerca de dois milhes de ingleses
naqueles
"tmulos errantes" de que fala scar Wilde, "junto s muralhas de Dlhi", ou
"nessas ter
ras afgs e perto das areias movedias das sete bocas do Ganges".
A terra onde dormiam essas testemunhas do passado nunca mais seria inglesa, mas
a proteco dos seus despojos pertencia para sempre Gr-Bretanha. Achando que
"era imp
ossvel deixarmos os nossos mortos em
107
mos estrangeiras", o vice-rei mandou colocar o cuidado destas sepulturas sob a au
toridade directa do governo britnico. Em Inglaterra, o arcebispo, de Canturia
orga
nizou mesmo uma colecta para a sua manuteno.
Ficou decidido transferir para o cemitrio da igreja de Cawnpore o sinistro poo
ond
e os rebeldes indianos da grande revolta de 1857 tinham atirado os restos mutila
dos de novecentos e cinquenta homens, mulheres e crianas. A inscrio que infamava
es
te massacre foi discretamente velada para no ofender o amor prprio indiano.
Vrias separaes foram acompanhadas de cenas tipicamente britnicas. Recusando-se
a con
denar os corajosos pneies, cujo galope os fizera ganhar tantas partidas de polo,
a acabarem os seus dias entre os varais de uma tonga, muitos oficiais preferiram
mat-los a tiro. No podendo encontrar uma hospitalidade digna para a matilha de
caa
a cavalo da escola do estado~maior de Quetta, o coronel George Noel Smith mando
u abater o1s cem ces que a constituiam. A tarefa de matar "os nossos queridos vel
hos companheiros com quem tinhamos feito to belas partidas de desporto" foi, reco
rda o coronel, "uma das mais dolorosas" da sua carreira. O futuro do Clube canin
o numa ndia devidida chegou mesmo a ser evocado num conselho do vice-rei.
Mountbatten deu ordens formais para que todas as recordaes oficiais do Imprio
ficas
sem no seu lugar. Os impressionantes retratos de Clive, de Hastings e de Wellesl
ey, assim como as vigorosas esttuas da sua bisav Vitria. Todos os trofus, as
pratas,
bandeiras, uniformes, bibelots, todos os testemunhos do reinado e das pompas da
Inglaterra imperial deviam ser legadas ndia e ao Paquisto que fariam deles o
uso
que entendessem.
A Gr-Bretanha desejava, declarou Lord Ismay, que "os dois novos Estados possam re
cordar com orgulho os nossos trs sculos de associao com as ndias. Talvez eles
no queir
am essas recordaes, mas a eles que compete diz-lo".
As ordens do vice-rei no impediram que alguns tesouros do domnio britnico
desaparec
essem. Desesperados por deixarem os seus regimentos, muitos oficiais levaram par
a as brumosas guarnies insulares os trofus desportivos ganhos na poeira do Deco
ou d
o Panjab. Em Bombaim, dois inspectores das alfndegas foram chamados ao gabinete d
o seu chefe Viclor Mattews, prestes a regressar a Inglaterra.
- Pode ser que estejamos a liquidar o Imprio, murmurou ele, mas no vamos
abandonar
este tesouro aos indianos.
E indicava um pesado ba metlico colocado no meio do gabinete e de Estes esforos
no d
eram resultado. Poucos lugares da ndia esto hoje em mais pattico abandono do que
os
cemitrios ingleses. Macacos aos guinchos perseguem os lagartos sobre o tmulo do
g
eneral John Nicholson que comandou a l~ tima operao contra os motins de Delhi.
Desd
e Madras a Peshawar, as ervas daninhas cobrem hoje as inscries das campas dos
ingl
eses cados nas ndias.
209
que s ele possuia a chave. John Ward Orr, um dos seus dois subordinados, abriu ce
rimoniosamente o ba, esperando encontrar alguma fabulosa escultura hindu ou um Bu
da coberto de jias. Com grande espanto, verificou que s havia l dentro livros
cuida
dosamente arrumados. O "tesouro" constitua uma ltima homenagem s virtudes do
esprito
burocrtico. Era a coleco completa das obras pornogrficas que as alfndegas
britnicas t
inham apreendido havia cinquenta anos, achando-as demasiado escabrosas para o pas
cujos templos estavam todavia ornamentados com as esculturas mais erticas jamais
talhadas pela mo do homem. John Ward Orr folheou uma das obras, um blgum intitul
ado Les Trente Positions de l'Amour. Achou que as poses prosaicas ali representa
das tinham tanto que ver com os requintes do erotismo dos deuses hindus dos temp
los de Khajuraho como uma matrona de caf-concerto com a graa de uma primeira
baila
rina da pera.
Mattews estendeu solenemente a chave do ba a William Witcher, o mais antigo dos s
eus adjuntos. Podia agora abandonar as ndias descanado, anunciou: o maior
"tesouro
" das alfndegas ficaria em mos inglesas'.
Como sempre, estava sozinho. Fechado no seu silncio, Mohammed Ali Jinnah dirigia-
se para uma pedra tumular do cemitrio muulmano de Bombaim. Viera ali cumprir um
ac
to que milhes de outros muulmanos iriam cumprir tambm nos prximos dias. Antes
de par
tir para a sua terra prometida do Paquisto, Jinnah deps um ltimo ramo de flores
na
campa que deixava para sempre atrs de si. jinnah era um homem extraordinrio, mas
p
rovavelmente, nada na sua vida fora mais extraordinrio ou em todo o caso mais
insl
ito, do que o amor profundo e apaixonado que dedicara esposa. O seu amor e o cas
amento tinham desafiado quase todas as regras da sociedade indiana da sua poca. N
a verdade, Ruttie Jinnah no devia ter sido enterrada naquele cemitrio islmico. A
es
posa do messias muulmano das ndias no nascera na religio de Maom; era uma
parsi, memb
ro da seita que descendia dos zoroas trianos adoradores do fogo da
#
1 O famoso ba ficou na realidade piedosamente guardado por mos inglesas durante
ce
rca de dez anos. Witcfier levou-o para casa, e a esposa, filha de um pastor angl
icano, quase desmaiou no dia em que o marido deixou o ba aberto por distrao e
ela d
escobriu a natureza do contedo. Witcher entregou o ba a Orr quando abandonou a
ndia
. Quando chegou a vez de Orr, em 1955, j no havia na ndia nenhum sobrevivente
deste
nobre corpo de alfandegrios britnicos que haviam penado tanto para evitar s
ndias o
contgio ignominioso daquele gnero de literatura. Depois de escolher duas obras,
L
e Guide des Caresses e Les Nuits du -kIaem, para aperfeioar o seu conhecimento do
francs, Orr resignou-se a entregar o ba aos indianos. Depois voltou para
Inglaterr
a. Alguns dias depois, o pobre funcionrio foi avisado de que toda a sua bagagem e
stava retida na alfndega "por posse ilegal de literatura pornogrfica". Confessou-
s
e culpado.
110
Prsia antiga e que colocavam os corpos dos seus mortos no alto das torres para se
rem devorados pelos abutres.
Fora com a idade de quarenta anos, durante umas frias em Darjeeling, e quando par
ecia destinado ao celibato, que Jinnah se apaixonara loucamente por Ruttie, filh
a de um dos seus amigos. Ela tinha menos vinte e quatro anos do que ele, e ficou
completamente fascinada'. Furioso, o pai da jovem conseguiu uma ordem do tribun
al proibindo o seu ex-amigo de tornar a ver a rapariga, mas no dia em que fez de
zoito anos, levando como bagagem apenas o seu cozinho de estimao nos braos, a
apaixo
nada Ruttie fugiu da casa do pai milionrio e desposou Jinnah.
O casamento durou dez anos. Muito bela, Ruttie Jinnah tornou-se de uma seduo
lendri
a na cidade de Bombaim, famosa pelo esplendor das suas mulheres. Gostava de envo
lver a sua silhueta esguia com saris difanos ou de se mostrar com vestidos cingid
os que escandalizavam a boa sociedade. Era ao mesmo tempo uma mundana e uma arde
nte nacionalista indiana.
Mas a diferena de idade e de carcter provocaria crises inevitveis. A exuberncia
da j
ovem embaraou muitas vezes o marido e comprometeu a sua carreira poltica. Apesar
d
a sua paixo, o austero Jinnah, teve cada vez mais dificuldade em se entender com
a inconstante e avassaladora esposa.
O seu sonho desfez-se numa noite do ano de 1928, quando a mulher que amava, mas
que no conseguira compreender, o abandonou. Passado um ano, em Fevereiro de 1929,
ela morreu vtima de uma dose excessiva de morfina, que usava para acalmar as dor
es de uma doena incurvel de que sofria. Jinnah, j ferido pela humilhao pblica
da sua f
uga, foi vencido pelo desgosto. Ao deitar o primeiro punhado de terra na campa o
nde colocava agora as suas flores, chorava como uma criana. Foi a ltima
manifestao pb
lica da emotividade de Mohammed Ali Jinnah. A partir desse dia, dedicou a vida a
o despertar dos muulmanos indianos.
O monculo era o nico acessrio de gentleman britnico que Jinnali conservava.
Renuncia
ra aos seus trajes de cerimnia e aos sapatos de coiro branco e preto. Mohammed Al
i Jinnah seguia de avio para Carachi, sua capital, vestido como raramente se vest
ira desde que abandonara aquele porto cinquenta anos antes para ir estudar Direi
to em Londres. Envergava uma tnica comprida e apertada sherwani, abotoada at ao
qu
eixo, e #cb11ndor, essas calas justas at ao tornozelo.
O seu jovem ajudante de campo, o tenente de marinha Sayy1d Ahsan -
1 Jinnah j fora casado com uma criana que nunca tinha visto e que um amigo dos
pai
s escolhera para ele antes da sua partida para os estudos em Londres. Segundo o
costume, ela fora representada pelos pais na cerimnia de casamento. Morreu antes
do regresso de Jinnah de Inglaterra.
21
esculpidas nos frisos erticos dos templos. Deus incarnava em rvores como as
figuei
ras asiticas, nos cento e trinta e seis milhes de macacos da ndia, heris das
suas ep
opeias mitolgicas, nos seus duzentos milhes de vacas sagradas, nas suas
serpentes,
em particular as cobras, cujo veneno matava todos os anos vinte mil dos seus ad
oradores. Entre as trs mil seitas da ndia encontravam-se os zoroastras,
descendent
es dos adoradores do fogo da antiga Prsia, e os Jains, um ramo reformado do
hindus
mo culos adeptos consideravam toda a existncia como sagrada ao ponto de apenas ca
minharem com uma mscara de gaze sobre a boca, com receio de engolir e de matar um
insecto por inadvertncia.
A nao que os deputados esta noite reunidos em Nova Delhi representavam
compreendia
alguns dos homens mais ricos do mundo e trezentos milhes de camponeses que dific
ilmente conseguiam sobreviver. As suas terras, que teriam podido ser as mais prsp
eras do Globo, eram as mais miserveis. Oitenta e trs por cento da populao era
analfa
beta. O rendimento mdio por pessoa no ultrapassava 5O cntimos por dia. Um quarto
do
s habitantes das duas grandes cidades indianas, Calcut e Bombaim, dormia, fazia a
s necessidades, tinha os filhos e morria na rua. A mdia recebia por ano uma mdia
d
e 114 centmetros de chuva, mais que as plancies de Beauce e os jardins de
Touraine
, mas este man era muito desigualmente repartido pelos meses do ano e pelas
regies
do pas a tal ponto que muitas vezes era ineficaz. Um tero das chuvas torrenciais
da mono ia perder-se sem proveito no mar. Trezentos mil quilmetros quadrados,
uma s
uperfcie to vasta como a Alemanh, no recebia mais de 2O cm de gua por ano,
enquanto o
utras regies eram cobertas por um dilvio que todos os anos devastava o solo e
ameaa
va afogar milhes de homens.
A ndia contava trs dos maiores nomes da indstria mundial, os Birla, os Tata e os
Da
lmial mas a sua economia, essencialmente feudal, apenas aproveitava a um punhado
de poderosos proprietrios de terras e capitalistas. Os seu colonizadores no
tinha
m feito nenhuns esforos para industrializar o pas. As exportaes limitavam-se
quase u
nicamente a culturas industriais: juta, ch, algodo, tabaco. A maior parte das
mquin
as tinha de ser importada. O consumo de electricidade por habitante era insignif
icante, 5O vezes inferior ao dos franceses. Enquanto que o subsolo encerrava per
to de um quarto das reservas de ferro do mundo, a produo siderrgica apenas
atingia
um milho de toneladas por ano. A ndia possua 6083 quilmetros de costa, mas as
tcnicas
de pesca eram to primitivas que nem mesmo podiam dar a cada indiano uma libra de
peixe por ano.
De facto, a nica herana dos colonizadores britnicos parecia ser uma terrvel
coleco de
problemas e de maldies. Contudo ningum nesta noite, no recinto do Parlamento
indian
o, parecia alimentar a menor animosidade para com eles, nenhum parecia pensar qu
e a partida dos senhores da ndia ia bastar para aliviar o peso dos terrveis males
que sumergiam o pas.
234
O homem que a carregar com a esmagadora responsabilidade de salvar a ndia do seu
i
nfortnio levantou-se para falar. Aps a sua dolorosa conversa telefnica com
Lahore,
Jawaharlal Nehru no tivera nem o tempo nem a fora de preparar um discurso para
cel
ebrar a independncia. Improvisou a sua alocuo, deixando falar o corao.
- H numerosos anos, declarou marcmos uma entrevista ao destino e chegou a hora de
cumprir a nossa promessa ... ao bater da meia noite, quando os homens dormirem,
a ndia despertar para a vida e para a liberdade.
As frases brotavam, eloquentes, vibrantes. Mas para Nehru, esta hora triunfal fo
ra irremediavelmente estragada. "Dificilmente me dava conta do que dizia, confes
sar ele. As palavras surgiam espontaneamente, mas o meu esprito no podia
desprender
-se da viso de Lahore em chamas."
- Chegou o momento, prosseguiu Nehru, um momento raramente oferecido pela histria
quando um povo sai do passado para entrar no futuro, quando uma poca acaba, quan
do a alma de uma nao, longo tempo abafada, reencontra a sua expresso. ( ... )
No
alvorecer da histria, a ndia comeou uma procura sem fim; desde a naite dos
tempos,
o seu passado testemunho dos seus esforos, da grandeza dos seus sucessos e dos
se
us falhanos. Atravs da sua boa como da sua m sorte, nunca perdeu de vista a sua
fin
alidade nem esqueceu o ideal donde tira a sua fora. Hoje, pomos fim a uma poca de
desgraa. A ndia encontrou-se finalmente. (... ) A hora no de crticas
mesquinhas e de
struidoras, concluu, nem de rancores ou insultos. Devemos construir a nobre casa
da ndia livre, acolhedora para todos os seus filhos.
Nehru props assembleia levantar-se, dcima segunda badalada da meia noite,
para pre
star o juramento de servir a ndia e o seu povo. Fora, o estrondo da trovoada rasg
ou de repente o cu e fez cair as cataratas da mono sobre os milhares de homens e
mu
lheres que se tinham agrupado volta do edifcio. Encharcados at aos ossos, o
pobre
povo de Nova Delhi esperava estoicamente o instante fatdico.
No hemiciclo, as duas agulhas do velho relgio britnico por cima da tribuna
aproxim
aram-se do nmero romano da dcima segunda hora. Os delegados do povo indiano que
de
ntro de alguns segundos se ia tornar a segunda nao do mundo esperavam tambm, num
si
lncio meditativo.
Enquanto se apagava o eco das doze badaladas do carrilho, o som retiniu na sala,
apelo ancestral surgido desta noite de sculos de que Nehru falara. O longo choro
montono do bzio anunciava aos representantes da ndia milenria o nascimento da
sua nao,
e ao mundo, o fim de uma poca colonial.
Esta poca comeara num dia de vero do ano de 1492 num pequeno porto da Espanha.
Part
indo pelo infinito dos oceanos em busca da ndia, Cristvo Colombo tinha, por
engano,
descoberto a Amrica. Quatro sculos e meio da histria do homem tinham a marca
desta
descoberta e das suas consequncias: a explorao religiosa, econmica e poltica
dos pov
os
235
de cr atravs do globo pelo Ocidente Cristvo, lnkas, Swahilis, Egpcios,
Iraquianos, Ho
tentotes, Chineses, Algerianos, Birmanos, Filipinos, Marroquinos, Vietriamianos,
uma interminvel onda de povos, de naes, de civilizaes que quatrocentos e
cinquenta a
nos de experincia colonial tinham dizimado, empobrecido, domesticado, envelhecido
, convertido, enriquecido, explorado ou economicamente estimulado e sempre irrev
ogavelmente transformado.
As multides famintas de um continente em orao acabavam de arrancar a sua
liberdade
aos arquitectos do maior imprio que esta colonizao crist produzira, um imprio
cujo ta
manho, a populao e a importncia esmagavam os de Roma, da Babilnia, de
Carta
go e da Grcia. Doravante, nenhum outro imprio colonial poderia durar
m
uito tempo. Os seus chefes poderiam tentar opr-se marcha da Histria
por
discursos e pelas armas: os seus esforos seriam vs e sangrentas tentativas
condena
das ao falhano. De uma maneira irrevogvel, definitiva, a indepen~ dncia da ndia
punh
a fim a um captulo da histria da humanidade.
Na rua, o dilvio cessara sbitamente e a multido manifestava a sua alegria. Logo
que
Nehru apareceu, milhares de pessoas precipitaram-se para ele numa comda louca q
ue ameaou submergi-lo, com os seus ministros. Observando o estreito cordo de
polcia
s que tentava conter esta avalanche, Nehru sorriu.
Sabe, declarou a um dos seus companheiros, h exactamente dez anos, tive em Londre
s uma disputa com o vice-rei Lorde Linlithgow. Estava de tal modo encolerizado q
ue lhe gritei: "maldito seja eu se dentro de dez anos a ndia no estiver
independen
te>@. Respondeu~me: "Oh, no correis qualquer risco. Em minha vida a ndia no ser
inde
pendente, Serhor Nehru, nem na vossa".
Para alm dos muros do Parlamento de Nova Dell, na imensidade dos dois Estados que
acabavam de nascer, o apelo do bzio encontrou o seu eco na alegria delirante de
milhes de homens.
Em Bombaim, um polcia pregou um cartaz com a inscrio "Fechado" na porta da
cidadela
da supremacia branca, o yacht club. Este lugar, em que trs geraes de sahib
tinham
saboreado o seu whisky ao abrigo de qualquer olhar indgena, ia tornar-se a messe
dos cadetes da marinha indiana. Em Simia, ltima badalada da meia noite, centenas
de homens e de mulheres em dhoti e em saris precipitaram,-se cantando para o Mal
I, a avenida em que jamais qualquer indiano tivera o direito de circular em fato
nacional. Centenas de outros invadiram os restaurantes e as pistas de dana do ho
tel Firpo em Calcut, do Faletti em Lahore, de famoso Taj Mahal em Bombaim, at
ento
reservados aos clientes em smoking e vestidos
236
de noite'. Nova Deli celebrava esta gloriosa noite por uma orgia de iluminaes. O
v
asto centro comercial de Connaught Circus e as ruelas da cidade velha rebrilhava
m de lmpadas cor de aafro, brancas e verdes. Os templos, as mesquitas e os guru-
dwa
ra sikhs estavam enfeitados de lanternas multicolores, bem como o Forte vermelho
dos imperadores Mongis.
O mais clebre dos templos modernos de Nova Deli, o Birla Mandir, parecia-se, com
as cpulas e modelagens de gesso cobertas de lampies a qualquer alucinao de Lus
11 da
Baviera. No bairro dos varredores-limpa-latrinas intocveis, onde Gandhi tantas ve
zes vivera, a independncia trazia um benefcio at ento desconhecido destas
pobres gen
tes - a luz. A municipalidade oferecera as velas e as lmpadas de leo que, nesta
no
ite, iluminariam os seus casebres em honra da liberdade. De bicicleta, em tonga,
de camio, a p, at mesmo no dorso de elefantes, todos acomam para o centro de
Nova
Deli para cantar a sua alegria num grande arrebatamento de fraternidade. Os rest
aurantes, e os cafs de Connaught Circus estavam repletos. O bar do hotel Imperial
, um dos santurios dos antigos colonizadores, estava invadido por indianos em
jbil
o. Logo a seguir meia noite, um deles subiu ao balco para pedir aos seus
compatri
otas que cantassem com ele o hino nacional.Um clamor de alegria acolheu este con
vite, mas depois de ter entoado o refro do poeta nacional Rabindrana Tagore, a ma
ior parte dos cantores fez uma descoberta aflitiva: conheciam a letra do God Sav
e the King, mas no a do hino do seu pas. No hotel Maiden, o mais clebre
estabelecim
ento da Velha Deli, uma encantadora indiana danava de mesa em mesa para com o seu
baton pr na testa de cada um tilak escarlate.
Na sombra cmplice de um jardim prximo do centro, o jornalista Kartar Duggal Sing
c
elebrou a independncia do seu pas de uma maneira muito pessoal. Beijou Aisha Ali,
a linda estudante de medicina que encontrara alguns dias antes. O seu abrao foi o
primeiro de uma longa e maravilhosa histria de amor, comeada contudo sob os mais
desfavorveis auspcios. Ia de encontro a estas outras paixes que em breve deviam
des
truir o norte da india. Kartar Duggal Singh era sikh. Aisha Ali era muulmana.
Apesar da exuberncia desta noite de Independncia, os primeiros si~ nais da
tempest
ade j se haviam manifestado no prprio corao da capital. Nos bairros da Velha
Deli, n
umerosos muulmanos murmuravam o novo slogan lanado pelos fanticos da Liga
muulmana:
"obtivemos o 1 Um deputado indiano quis introduzir na constituio uma clusula
proibi
ndo aos estabelecimentos pblicos de exigir dos seus clientes o uso do smoking, o
fato preferido dos antigos colonizadores.
2 Os Duggal Singh casaram alguns meses mais tarde no Tempo de Ouro de Amritsar,
o santurio sagrado dos Sikhs. Mas durante onze anos foram considerados suspeitos
e tiveram de viver como prias, sem emprego nem casa. Tiveram trs filhos e habitam
hoje Nova Deli. Ele editor, ela mdica.
237
Paquisto pelo direito - vamos agora conquistar o Hindustoepla fora". Nessa
manh, o m
ullah de uma mesquita lembrara aos seus fiis que os muulmanos tinham reinado
duran
te sculos sobre Deli e que "Inch Allah," com a graa de Deus, iam recomear".
Inversa
mente, refugiados hindus e sikhs do Panjab amontuados em campos de ocasio volta
d
a cidade ameaavam transformar os bairros muulmanos da capital "numa gigantesca
fog
ueira para celebrar a independncia".
Uma predico exprimiu, nesta noite de festa, a inquietao que comeava a
despontar. Ouvi
ndo o concerto dos bzios e dos clamores populares, V. P. Menon, o brilhante funci
onrio indiano que em Sirrila remodelara o plano de partilha de Mountbatten, tomou
repentinamente um ar grave. "agoraque o nosso pesadelo vai comear", anunciou aos
seus filhos.
Para milhes de outros indianos atravs da pennsula, este 14 de agosto meia
noite mar
cava o comeo - de vinte e quatro horas de alegria. No forte de Landi Kotal, domin
ando a passagem de Khyber, carneiros inteiros assavam sobre uma dzia de braseiros
crepitantes. Os oficiais paquistaneses e os atiradores do Khyber Klfles festeja
vam com os seus tradicionais inimigos, os montanheses das tribos, patanes. O cor
onel ofereceu ao seu adjunto e convidado de honra, o capito ingls Kermeth Dance,
o
pedo da escolha, o fgado de um carneiro envolvido na tri.pa amarelada e
gordurosa
de um pedao de intestino. A primeira badalada da meia noite c,#
homens da tribos pegaram nas espingardas e lanaram na noite uma rajada de metralh
a gritando: "A Khyber nossa, a Khyber nossa!"
Em Cawnpore, a cidade maldita dos massacres da sublevao de 1857, os ingleses e os
indianos abraaram-se nas ruas. Em Ahmedabad, a capital da indstria txtil onde
Gandh
i organizara as primeiras greves, um jovem professor que fora preso em 1942 por
ter desfraldado uma bandeira indiana, recebeu o privilgio de iar o emblema
naciona
l na cmara municipal.
Em Lucknow, uma cerimnia reuniu os elementos notveis na residncia do governador
par
a o iar das cores nacionais. Os convites gravados especificavam: "Trajo nacional.
Recomenda o dhotl": RaJeshwar Dayal, um indiano funcionrio da administrao
britnica,
admirou-se deste pormenor. Habituado aos fatos e gravatas brancas dos seus anti
gos patres, nem sequer possua dhoti. O ambiente da recepo foi absolutamente
diferent
e das reunies oficiais de outrora. Mal as portas foram abertas, uma nuvem de mulh
eres e de crianas lanaram-se sobre os bolos e as guloseimas do bufete. Ao ver
elev
ar-se a bandeira do seu pas, um curioso pensamento veio ao esprito de Dayal, que
t
raduzia bem a maneira como os ingleses tinham reinado sobre a ndia. Em 14 anos de
servio, tivera muitos colegas britnicos. Porm jamais algum havia sido um
"amigo".
238
Em Madras, Bangalore, Patria, em milhares de cidades e de aldeias, as multides en
traram meia noite nos templos para depor ptalas de rosa aos ps das divindades e
pe
dir as suas benos para a nova nao. Em Benares, o pasteleiro mais reputado fez
um exc
elente negcio confeccionando um bolo da independncia com as cores nacionais
base d
e polpa de laranja, de arroz doce e de pistacha.
Mas em nenhuma parte a independncia foi celebrada com mais fervor e entusiasmo qu
e no grande porto de Bombam. Exactamente meia noite, na varanda da sua
residncia,'
o primeiro ministro da provncia gritou "Sois livres! multido reunida sob as
suas j
anelas. As duas palavras mgicas levantaram uma ovao fantstica. Nos passeios
desta me
trpole, muitas vezes tingidos com o sangue dos patriotas cados sob as pancadas de
Lathi, nesta cidade cuja histria estava inexplicavelmente misturada ao combate da
ndia pela liberdade, nas ruas que tinham visto tantas manifestaes, hartals,
greves
, todo um povo se entregou mais louca alegria. Desde o bairro residencial de Mar
ine Drive aos longnquos bairros de lata de Parel, das "vilas" de Malabar Hill ao
ferro velho poeirento da Feira da ladra, Bombam era apenas um mar de luzes. "Meia
noite tornara-se meio dia", escreveu um jornalista. "Era um novo Diwali, um nov
o ld, um Novo Ano, eram todas as celebraes desta terra de festas reunidas numa
s, p
orque era a festa da liberdade".
Uma outra srie de recepes que, essas, no tinham nenhum carcter de regozijo,
inaugurou
igualmente o incio da nova era nos palcios de alguns representantes da velha
ndia
dos prncipes. Passara o tempo dos Maliarajas. Para a maior parte deles, o 15 de A
gosto seria um dia de luto.
O nizam de Hyderabad ofereceu no seu palcio iluminado um banquete de despedida ao
s funcionrios britnicos do seu reino cuja misso terminava esta noite, ao mesmo
temp
o que se rompiam os laos privilegiados que o umam coroa de Inglaterra. A
exubernci
a da numerosa progenitura do nisam e a elegncia das mulheres no impediram que a
so
ire se desenrolasse numa atmosfera de velada fnebre. No fim da refeio, mesmo
antes d
a meia noite, o velho monarca vestido de calas remendadas levantou-se para propr
u
m ltimo brinde ao rei-imperador. John Peyton, um dos convivas ingleses, observou
o rosto fnebre do seu hospedeiro. "Como triste, pensou, ver acabar duzentos anos
de histria neste nico e pattico gesto de adeus".
Para muitos indianos, a noite com que h tantos anos sonhavam foi um terrvel
pesade
lo. Para o tenente coronel Jangu T. Sataravala, um Parsi coberto de condecoraes
do
Frontier Force Rifles, ficaria para sempre associada mais revoltante viso: a
dos
corpos horrivelmente mutilados de toda uma famlia de hindus ardendo nas runas de
um subrbio de Quetta, no Balu quisto. Ao lado, massacrados com igual selvajaria,
jaziam os cadveres da corajosa famlia muulmana que oferecera hospitalidade a
estes
hindus.
Sushila Nayar, uma jovem mdica, passara dois anos na priso e consagrara
239
a sua vida causa cujo termo era esta noite. Contudo, nem sentia alegria nem sent
imento de vitria. Enviada por Gandhi a um campo de refugiados do Panjab, apenas t
inha conscincia da misria dos milhares de infelizes de que estava encarregada e
qu
e incessantemente aprendiam a obscuridade de recear ver surgir Muulmanos vindos p
ara os matar.
Lahore, a cidade que deveria ter sido a mais feliz de todas, oferecia um espectcu
lo de desolao. Chegado ao anoitecer com os seus Gurkhas, o capito Robert Atkins
viu
acorrer sua tenda uma multido de hindus aterrorizados. Agarados aos filhos, a
um
a trouxa, a um colcho, imploravam a proteco dos soldados. Cerca de cem mil
hindus e
slkhs estavam cercados nas murallhas da velha Lahore, sem gua, rodeados pelas ch
amas dos incndios, perseguidos por grupos de muulmanos prontos a saltar sobre
aque
les que se aventurassem sair. Os incendirios tinham j deitado fogo ao mais
clebre g
uru-dwara sikh e saudado com ovaes os gritos das suas vtimas que ardiam no
interior
.
Em compensao, Calcut, a cidade maldita, estava a viver uma surpreendente
metamorfos
e. Esta tinha comeado timidamente antes do pr do sol, quando uma procisso de
hindus
e de muulmanos se dirigira para Hydari Mansion, o quartel general de Gandhi.
sua
passagem, a atmosfera modificava-se pouco a pouco. Nos amontoados miserveis de K
elganda Road e volta da gare de Sealdah, os goonda hindus e muulmanos metiam os
p
unhais na bainha para juntamente afixarem bandeiras indianas nos candeeiros e na
s varandas. Cheikhs abriam as suas mesquitas aos adoradores de Kali; Estes, em p
aga, convidavam os muulmanos a vir aos seus templos contemplar as esttuas da
deusa
da destruio.
Fanticos que, vinte e quatro horas antes, estavam prontos para se degolar, estrei
tavam-se agora na rua. Mulheres e crianas hindus e muulmanas trocavam guloseimas.
Para o escritor bengali Kurriar Bose, Calcut evocava "a noite de natal do filme "
A Oeste nada de novo", quando os soldados franceses e alemes saem das suas trinch
eiras para durante um curto momento esquecerem que so inimigos".
Enquanto que a ndia se entregava sua alegria, uma pequena revoluo agitava a
vasta h
abitao que fora o santurio do poder imperial britnico. De um canto a outro do
palcio
de Nova Deli, um exrcito de criados trabalhavam para fazer desaparecer os smbolos
imperiais susceptveis de ofender as sensibilidades de uma nao tornada livre. Uma
eq
uipe de criados ia de diviso em diviso substituir o papel de cartas com cabealho
de
@,Vicerby's House" por novos blocos com a meno "Govemment House". Outros tinham
p
or misso fazer desaparecer os armrios imperiais da sala do trono. Uma srie de
insgni
as escapou modificao. O monograma do visconde de Mountbatten da Birmnia
continuou a
figurar nas caixas de fsforos, nas anilhas dos charutos, nas soboneteiras e nas
240
manteigueiras do palcio. Um pouco depois da meia noite, uma delegao do
Parlamento i
ndiano chegou ao palcio. Na sua qualidade de presidente da nova assembleia consti
tucional, o Dr. Ralendra Prasad vinha solenemente convidar o ltimo vice~rei das
nd
ias a tornar-se o primeiro governador geral da ndia independente. Com emoo e
gravid
ade, Lord Mountbatten prometeu servir a ndia como se ele prprio fosse indiano.
Neh
ru entregou-lhe em seguida um envelope contendo a lista das personalidades que,
com o seu acordo, deviam formar o primeiro governo da nova ndia.
Mountbatten pegou ento numa garrafa de Porto e serviou ele prprio os seus
visitant
es. Depois ergueu o seu copo: " sade da ndia!" props. Aps ter bebido uma
golada, Nehr
u ergueu o seu sade do ingls. "Ao rei Jorge VI!" disse. Esta homenagem suscitou
a
admirao e o respeito do almirante ingls. "Que homem! pensou, Aps tudo o que
passou,
tem a elegncia e a generosidade de fazer tal gesto em semelhante noite."
Antes de ir deitar-se, Mountbatten, abriu o envelope que Nchru lhe entregara. Ao
descobrir o seu contedo, desatou a rir. Na pressa desta noite louca, Nehru esque
cera-se de escrever os nomes dos seus ministros. A folha estava virgem.
Um pequeno grupo de ingleses abriam caminho atravs da obscuridade e da multido
que
cercava a gare de Lahore. Eram os ltimos representantes de uma nobre linhagem de
administradores, de polcias, de soldados, que tinham feito do Panjab o orgulho d
a ndia britnica. Agora regressavam a casa, deixando a outros os canais, as
estrada
s, as vias frreas, as pontes que os seus predecessores tinham construdo. Ao
chegar
em ao seu comboio viram ferrovirios lavar o cais com abundante gua. Algumas horas
antes, a gare tinha sido teatro de um massacre de refugiados hindus. Bill Rich,
que acabava de terminar a sua misso, de chefe da polcia de Lahore, notou um
pormen
or atroz: carregadores empurravam um carro de bagagens, mas no estava cheio de en
comendas. Eram cadveres que a iam amontoados. Para subir para o seu vagon, Rich
te
ve depois de saltar um corpo. No foi contudo a viso deste homem jazendo mutilado
a
os seus ps que mais o espantou, mas sua prpria indiferena, a sua descoberta
brutal
do grau de endurecimento a que os horrores do Panjab o tinham conduzido.
Rule Dean, o seu colega de Aniritsar que lhe enviara a fanfarra tocar operetas p
raa da cidade, contemplava com melancolia a paisagem que desfilava, por detrs dos
vidros do seu compartimento. Via as chamas devorando as aldeias que tinha como m
isso proteger. No claro avermelhado dos braseiros, distinguia por vezes as
silhuet
as dos incendirios danando uma dana macabra."
Em lugar de partirmos na paz e na dignidade, pensava, apenas deixamos
241
atrs de ns o caos." A meio caminho de Nova Delhi, foi atrelado ao comboio um
vagao
-reStaurante. vista da loua e das toalhas imaculadas, o oficial ingls, que em
brev
e venderia utenslios de plstico num subrbio de Londres, compreendeu que o
Pankjab p
assara para um outro mundo.
A habitao em runas de Beliaghata Road estava silenciosa. porta, um punhado, de
hind
us e de muulmanos faziam guarda, lado a lado. Nenhum claro era visvel por detrs
dos
vidros quebrados de Hydan Mansion. Nada, nem mesmo os acontecimentos desta noite
histrica, tinham perturbado o ritmo imutvel dos hbitos do seu ocupante. Na
diviso q
ue partilhava com os seus companheiros, ele estava estendido numa esteira de rfia
, colocada no cho. Ao lado de socos de pau, de um exemplar da Git, de uma
dentadur
a e de uns culos com aros de ferro, enquanto soavam as doze badaladas mgicas de
um
a nova era e a ndia despertava para a vida e para a liberdade, Mohandas Karaincha
nd Gandhi dormia num sono profundo.
142
Captulo dcimo segundo"
COMO BELO ESTAR VIVO NESTE ALVORECER"
A brisa da aurora dissipou enfim o manto de bruma que cobria as guas. Como faziam
desde a noite dos tempos, as multides convergiram para as margens sagradas do Ga
nges, considerado como o cu aqui na terra, "este grande canal fnebre e receado',
me
de toda a vida e rio dos deuses, para procurar na imerso ritual o caminho da ete
midade. Nenhuma cerimnia podia celebrar melhor o nascimento deste 15 de Agosto de
1947. Benares, que os hindus consideram a primeira terra emersa do primordial o
ceano, honrava com os seus ritos matinais a mais jovem nao do globo.
Estes ritos eram a expresso perpecitiamente renovada da etema histria de amor que
uma os hindus ao seu rio sagrado. Por esta unio mstica, o hindusmo exprime a
necess
idade natural do homem de se entregar s foras misteriosas que governam o seu
desti
no. Desde a base do glaciar do Himalaia onde nasce a mais de cinco mil metros de
altitude at s guas lamacentas do golfo de Bengala, o Ganges atravessa em dois
mil
e quinhentos quilmetros regies trridas e superpovoadas. O seu caudal caprichoso
inu
nda e devasta regularmente as terras dos camponeses que o adoram. O seu curso ca
va as runas de cidades e de aldeias abandonadas, testemunhos silenciosos das suas
bruscas cleras no decorrer dos sculos. A despeito da sua turbulenta natureza, os
Hindus consideram-no todo como um lugar privilegiado, no o sendo, porm, nenhum
mai
s que o largo crescente que desenha durante a travessia de Benares. Desde todos
os tempos, os hindus vieram banhar-se a este stio, beber a gua sagrada e implorar
a os favores dos deuses caprichosos.
As multides silenciosas desciam ao longo dos ght, as largas escadas que conduzem
a
o rio. Cada peregrino trazia como oferta uma pequena lmpada de manteiga derretida
ou de cnfora, smbolo da luz que afasta as trevas da ignorncia, piedoso
pensamento
transmitido a um outro mundo pelo fogo e pela gua. Metidos at ao peito no rio
sagr
ado, milhares de outros, cujas chamas vacilantes se pareciam a Mirades de pirilam
pos, estavam j imveis, absortos pela sua orao. Depois de ter oferecido ao
Ganges cor
oas de flores,- o olhar voltado para l da margem oposta, os peregrinos esperavam
a renovao do milagre quotidiano, a apario do disco de fogo que ia surgir das
entranh
as da terra, o sol, origem de todas as formas de vida. Logo que a sua aurola desp
ontava no horizonte, milhares de cabeas se voltavam ritualmente para ele numa exp
loso de fervor.
1 Andr Malraux, "Antimemrias"
243
Depois, para lhe agradecer este prodgio, os fiis ofereceram-lhe gua de Ganges -
a q
ue dissolve todas as formas - que deixaram correr das suas mos entreabertas.
Na cidade, a honra de ser o primeiro a transpor o limiar do Templo de Ouro, o sa
nturio mais venerado de Benares, pertenceu ainda esta manh ao pandil Brawani
Shank
ar. Ningum, em Benares, sentia a independncia com tanta alegria como este velho
ho
mem de Deus. Durante anos, dera asilo aos nacionalistas perseguidos pela polcia b
ritnica.
Com um vaso de cobre cheio de gua do Ganges e uma taa de sndalo nas mos, o
padre atr
avessou o templo para se deter perante uma grande pedra de granito. Este rochedo
arredondado era a mais preciosa relquia hindu de Benares. Subtraindo-a pilhagem
das hordas fanticas do imperador Aurangzeb, os antepassados do santo homem haviam
conquistado o direito de serem os seus guardas hereditrios. Que o padre viesse p
rostrar-se perante ele, era o gesto mais prprio para dar graas aos deuses neste
di
a da independncia.
Este culto era uma das mais antigas formas do fervor religioso. Era um lingam, u
m "sinal" de pedra simbolizando o poder vital do Deus iva, o atributo da fora do
p
oder gerador da natureza. Benares era o centro desse culto. A os lingam erguiam-s
e em quase todos os templos, no fundo de nichos cavados nas ruas, nos degraus da
s ght. Quando o sol apareceu, milhares de hindus imitaram o velho pandit e exprim
iram a sua gratido pela reincarnao da sua antiga nao cobrindo com amor a
superfcie pol
ida dos lingam com ofertas de massa de sndalo, de leite, de gua do Ganges, de
mant
eiga derretida, entranando-lhe coroas de jasmim e de cravos da india e oferecendo
-lhe ptalas de rosas e as folhas amargas da rvore preferida de iva, a bilva2.
Enquanto o claro da aurora coloria a cidade de um tom rosa, um grupo de Intocveis
- aqueles a quem Gandhi chamava os Filhos de Deus-, as costas curvadas sob o pes
o de feixes e de grandes achas de pau, desceram os degraus do lugar mais alucina
nte de Benares, a ght de Manikar-
Ttulo honorfico dado na ndia aos Brmanes instrudos na cincia religiosa, aos
fundadores
de seitas, etc. (N. da T.)
#
2 Uma pitoresca lenda hindu revela assim a origem de culto do Lingam. Um dia, o
Deus iva e a sua esposa Parvati embriagaram-se e foram surpreendidos a ter
relaes p
or Vislinu acompanhado de outros deuses. Absortos pelos seus entusiasmos, no dera
m qualquer ateno aos seus visitantes. Escandalizados por esta desordem, os deuses
lanaram uma maldio ao casal divino e foram-se embora.
Quando iva e Parvati tiveram conhecimento do que se passara, morreram de vergonha
na posio em que haviam sido surpreendidos. <,A vergonha que me matou, proclamou
iv
a, deu-me uma nova vida sob a forma de um lingam. Este branco. Tem trs olhos e
ci
nco caras. Tem riscas como uma pele de tigre. Existia antes do mundo e a fonte e
o comeo de todas as coisas. Faz desaparecer os nossos receios e os nossos terror
es e permite a realizao do nosso destino".
244
nika. Alguns minutos mais tarde, quatro homens levando aos ombros uma padiola de
bambu desembocaram no cimo da escada. Diante deles caminhava uma quinta persona
gem que ritmava docemente em pequenos cmbaios e mantra sagrado que eles salmodiav
am "Rmnam satya kai" - o nome de Rm Verdade". Estas palavras lembravam a todos
os
que viam passar a pequena procisso que um dia tambm eles acabariam como este
corpo
que repousava na padiola, embrulhado numa mortalha de algodo.
Morrer em Benares para todo o hindu a surpresa beno. Se a morte o surpreende no
in
terior de um permetro de 6O quilmetros volta da cidade, iva, a sua divindade
tutela
r, liberta-o do ciclo perptuo das reincarnaes e permite sua alma fundir-se
para a e
ternidade no paraso de Brahma. por isso que se vem a Benares no para a viver
mas pa
ra a morrer.
Os transportadores desceram at ao rio o despojo do primeiro candidato do dia
cele
ste viagem e mergulharam-no no Ganges pela ltima vez.
Um deles abriu depois a boca do defunto para a deixar cair algumas gotas de gua.
D
epois colocaram o corpo sobre uma fogueira. Os Intocveis de servio cobriram o
cadve
r com lenha e despejaram-lhe em cima um pote de ghi, manteiga clarificada.
Com o rosto e o crneo rapados o corpo purificado pelas ablues rituais, o filho
mais
velho do defunto deu cinco vezes a volta fogueira para um ltimo adeus. Um
servid
or do templo vizinho dedicado a Ganesh, o Deus com cabea de elefante, entregou-lh
e ento uma tocha acesa no fogo perptuo do santurio. P-la sob a lenha e um monte
de c
hamas sau da pirmide de lenha. Os homens da famlia sentaram-se volta do
braseiro qu
e projectava para o cu de vero um geyser de falhas. Um rudo seco sau de
repente do cr
epitar das chamas. Os fiis recolheram-se mais profundamente murmurando uma aco
de g
raas. O crneo do defunto acabava de rebentar, abrindo assim energia csmica os
canai
s em que circulara a energia vital. Neste 15 de Agosto de 1947, quando a ndia se
libertava da servido imperialista, Benares, como todas as manhs, oferecia aos
seus
mortos a suprema libertao.
Cerca das duas horas da manh - uma hora antes do levantar habitual de Gandhi -, a
pareceu janela de Hydan Mansion a luz incerta de uma vela. O dia em que o seu po
vo celebrava a libertao deveria ter sido uma apoteose para o velho profeta, a
coro
ao de uma cruzada que provocara a admirao do mundo e mudara o curso da
histria. No era
nada disso. A vitria porque aceitara tantos sacrifcios tinha um gosto a cinzas.
Como durante a sua peregrinao do Ano Novo atravs dos pntanos do distrito de
Noakhali
, sete meses antes, o doce apstolo da no-violncia estava cheio de dvidas. "j
no vejo c
laro, escrevera na vspera. Terei conduzido o pas para um caminho errado?" Como
era
hbito
245
nos momentos de incerteza e de sofrimento, Gandhi debruara-se desde o despertar s
obre o livro desde h tempo tornado o seu guia, o canto celeste da Bhagavad Git.
Qu
antas vezes os seus versculos o no tinham consolado j?
Ainda hoje, acocorado sobre a sua esteira com o tronco nu Gandhi inaugurava port
anto a independncia da ndia lendo a Git. Rodeado pelos discpulos, recitava o
primeir
o dos dezoito dilogos do santo livro, um apelo desesperado lanado a Krishria pelo
guerreiro Arjuna: "No campo do cumprimento do Dliarma, no campo sagrado de Kuru,
os meus homens e os filhos de Pandu esto espalhados, ardendo no desejo de se bat
erem. Que devem eles fazer, Sanjaya?"
Esta interrogao aplicava-se extraordinariamente nesta hora pattica da histria
indian
a.
Um rudo velho como a vida despertara-o: o bater regular da pedra contra a pedra.
Num ptio da aldeia de Chatharpur, perto de Nova Delhi, um campons estendido sobre
as cordas entrelaadas de um charpoy abriu os olhos. No claro ambreado de uma
lmpada
de leo, viu a esposa debruada sobre um almofariz. Com o rosto meio oculto pelas
p
regas do vu que lhe envolvia o corpo, pilava o gro do dia para a famlia.
Como todas as manhs, a primeira preocupao do campons Ranjit Lal, com a idade de
52 a
nos, foi purificar-se lavando a boca para pronunciar o mantra ensinado pelo pai:
" Que o esplendor do Sol, que o esplendor de Deus, nos ajude!" "Oh Vislinu, mur
murou, iva, Sol, Lua, Marte, Mercrio, Jpiter, Vnus, Rabu, Ketu, fazer que o dia
nos
seja propcio?" Depois levantou-se saiu do ptio para se juntar aos outros
camponese
s que se escapavam no claro da aurora para o campo que servia de latrinas pblicas
aos trs mil habitantes de Chatharpur, uma das 557987 aldeias da ndia.
A dominao estrangeira que nesta aurora de Agosto acabava no perturbava
absolutament
e nada estes homens. Nunca em toda a sua existncia, Rarilit Lal dirigira uma pala
vra prfida a um representante da raa que governara o seu pas. Como todos os
outros
aldeos apenas via um Ingls uma vez por ano, quando o colector regional dos
imposto
s vinha a Chatharpur assegurar-se de que a aldeia pagava correctamente as suas t
axas. A nica frase que sabia pronunciar na lngua dos senhores da ndia era a que
os
seus companheiros e ele prprio empregavam para designar aquilo que estavam a faze
r: the call of natur, "o apelo da natureza". Embora qualificado com um termo est
rangeiro, este acto era objecto de vinte e trs regras hindus draconianas. Ranjit
Lal tinha na mo esquerda uma jarra de cobre cheia de gua. O dhoti com que estava
v
estido nem devia ser novo nem ter sido lavado h pouco. O campo para que se dirigi
a fora escolhido em virtude do seu afastamento de qualquer ribeira, poo, encruzil
hada, lago,
246
figueira ou qualquer outra rvore sagrada, bem como do templo da aldeia. Ao chegar
ao campo, o campons suspendeu o seu triplo cordel de brmane na orelha esquerda,
c
obriu a cabea com as abas do dhoti, tirou as sandlias e agachou-se to baixo
quanto
possvel. Qualquer outra posio era incorrecta. Devia ento observar um silncio
absoluto
e nem olhar o sol, nem a lua, nem as estrelas, nem o fogo, nem uma figueira, ne
m um outro brtnane, nem o templo da aldeia.
Qu ando terminou, Ranjit Lal levantou-se evitando olhar para trs e lavou os ps e
as mos com a gua, da sua jarra. Depois, tendo cuidado em proteger, com a mo
esquerd
a, as suas partes ntimas, dirigiu-se ao tanque da aldeia. Para as suas ablues,
util
izou um punhado de terra cuja natureza estava rigorosamente determinada. No devia
, sob qualquer pretexto, provir de uma pastagem, de um cemitrio, do recinto de um
templo, de um formigueiro, do p de uma rvore, de um terreiro ou de um caminho.
Ne
m devia ser salgada nem estril e no devia servir para os oleiros. Misturando a
ter
ra com gua, o campons limpou, sempre com a mo esquerda, a parte suja do seu
corpo'.
Aps isso, lavou as mos cinco vezes seguidas comeando pela esquerda, igualmente
cin
co vezes os ps comeando pelo direito, depois lavou trs vezes a boca tendo o
cuidado
de cuspir bem para a esquerda a gua poluda. Feito isto, estava preparado para
res
peitar a vigsima terceira perscrio que acompanhava a libertao quotidiana dos
seus int
estinos. Purificou o interior do seu corpo bebendo, pela concha da mo, junto do p
unho, trs goladas de gua em que invocara a presena do Ganges.
Cumprido este rito, Ranjit retomou o caminho de casa atravessando a terra ingrat
a dos campos a que com dificuldade arrancava a subsistncia da mulher e dos sete f
ilhos. No amanhecer, podia aperceber trs figueiras cuja ramagem se abria como som
brinhas por cima de uma pequena esplanada. Era o lugar de cremao da aldeia. Uma
al
menara de pedra elevava-se na bruma do horizonte. sua esquerda, apareciam duas g
raciosas cpulas, runas de uma metrpole construda no sculo X111 pelo sulto
Aladine, fun
dador de uma das sete cidades da antiga Delhi.
Para o norte, a menos de trinta quilmetros, nas largas avenidas de Nova Delhi, Ra
njit Lal e os seus concidados tinham esta manh entrevista com a histria. A maior
pa
rte deles nunca antes efectuara esta curta viagem. Em 52 anos, Ranjit apenas fiz
era uma vez, para comprar na rua da prata do bazar da Velha Deli a bracelete de
casamento da filha mais velha. Mas hoje para os aldeos de Chatharpur bem como par
a os de todos os arredores, as distncias j no existiam. Braos mltiplos de um
rio imen
so, acomam para o centro da sua capital em festa para a celebrar a libertao de
uma
colonizao que a maior parte nem sequer conhecera.
1 O umbigo para os hindus a fronteira do corpo. A mo esquerda deve ser utilizada
para todos os actos a realizar abaixo deste. Para cima, em geral a mo direita
que
empregue.
247
"Sede bendita, maravilhosa aurora de liberdade, que imunda de ouro e de prpura um
a antiga capital", cantava o poeta s multides que submergiam a cidade. Havia
carav
anas de tonga, tocando alegremente todos os seus guisos. Havia bois com os casco
s e os chifres pintados de aafro, branco e verde, que puxavam compridos carros
che
ios de famlias em jbilo. Havia camions transbordando de cachos humanos, com o
teja
dilho e os lados de corados com pinturas ingnuas cheias de serpentes, de guias,
de
falces e de vacas sagradas sobre um fundo de montanhas cobertas de neve. As pess
oas chegavam montadas em burros, a cavalo, de bicicleta, a p, camponeses com turb
antes de todas as cores, mulheres vestidas com saris cintilantes e com toda uma
quinquilharia de jias que lhes brilhavam nos braos, nos tornozelos, nos dedos e
na
s narinas.
Nesta barafunda fratemal, nem existia posio, nem casta, nem religio. Brmanes,
intocve
is, hindus, sikhs, muulmanos, parsis, anglo-indianos, todos riam, cantavam, chora
vam.
Raript Lal alugara por quatro anos uma tonga em que se meteram a mulher e os set
e filhos. sua volta, ouvia camponeses volveis explicar porque am todos a Nova
Deli
. @<os ingleses vo-se embora, gritavam eles. Nehru vai iar a nossa bandeira.
Somos
livres!"
Um toque de trombetas de prata anunciou a abertura das cerimnias da independncia
p
ela entronizao do primeiro governador geral constitucional da jovem nao
indiana. O h
omem que a prestar juramento era um ingls, aquele que acabava de assumir as mais
a
ltas funes de um imprio destinado pelos seus fundadores a adorar mil anos. Com o
me
smo ar grave que arvorara em Karachi, o bisneto da rainha Victria avanou na sala
d
o trono onde ia receber uma honra nica na histria mundial da descolonizao. Para
Lord
Mountbatten, "o dia mais importante da sua existncia" acabava de comear, este
dia
em que o povo indiano, a quem alis acabava de dar a sua soberania, o convidava a
continuar o seu chefe supremo. A esposa Edwina caminhava ao seu lado, vestida c
om uma capa de larn prateado, os cabelos castanhos presos por um diadema. Decidid
o a que este dia se desenrolasse numa ltima exploso de pompa", Mountbatten
cuidara
ele prprio dos mnimos pormenores das cerimnias da independncia, imprimindo-
lhes a s
ua delicadeza e o seu gosto pelo fausto. Uma escolta de uniformes enfeitados con
duzia o par real para os tronos dourados de que haviam tomado posse cinco meses
antes.
De p sua esquerda e sua direita sobre um estrado de mrmore estavam os novos
senhor
es da ndia, Nehru em jodhpur de algodo e colete de linho cru, Vallabhbhai Patel,
s
emelhante a um imperador romano no
248
seu dhoti branco, os outros com o barrete branco do partido do Congresso. Tomand
o o lugar ao lado dos ministros, Mountbatten pensou com humor que pelo menos tod
os tinham em comum uma experincia, a de terem sido os hspedes das prises
britnicas.
Foi portanto perante este nobre arepago de antigos pensionistas da administrao
peni
tenciria de Sua Magestade que levantou a mo direita para jurar solenemente ser o
h
umilde e fiel servidor da ndia independente. Os ministros de que, na vspera,
Nehru
se esquecera de dar a lista, prestaram por sua vez juramento perante o ingls que
dera a independncia ao seu pas.
Fora, as vinte e uma salvas celebrando o acontecimento comearam a ressoar atravs
d
a capital em jbilo'. junto da monumental escada da sala do trono, coberta com uma
passadeira vermelha, esperava o carro preto e dourado fabricado nos ateliers lo
ndrinos da casa Barker e C"., para a visita real s ndias de Jorge V e da rainha
Ma
ria. Diante da atrelagem de seis cavalos baios estava alinhada toda a guarda a c
avalo do governador geral em botas neliras brilhantes, tnicas brancas de vero
aper
tadas com cintures bordados a ouro, e turbantes de seda azul. O cortejo fulgurant
e de cores agitou-se, oficiais de sabre desembainhado, cavaleiros com as lanas ao
alto e os estandartes flutuando ao vento, cintilando ao sol. Quatro esquadres re
unidos num ferico cambiante de luzes preparavam-se para o ltimo espectculo de um
ve
lho album de glrias e a primeira parada da ndia independente. Lord Mountbatten,
de
p na carruagem, saudava a dupla fila de guardas a cavalo que prestavam as honras
aos portes do palcio.
Para alm, a ndia esperava. Uma ndia como nenhum ingls pudera contemplar em trs
sculos
de colonizao. A verdadeira dimenso fora sempre o desmedido das suas multides,
mas nu
nca um tal oceano havia sqbmergido Nova Deli. O cortejo depressa foi invadido, o
s cavalos da guarda obrigados a marcar passo. O protocolo de calcado sobre as tr
adies de uma outra ndia foi afastado, absorvido pela ideia nova, triunfante que
afo
gava o ouro e a prpura no turbilho de milhares de cabeas morenas."
Caem as cadeias minha volta ", pensou o jornalista sikh que, na noite precedent
e, saudara a independncia beijando uma estudante de medicina muulmana. Recordou-
se
que um dia, na sua infncia, um estudante ingls o empurrara de um passeio.
"Ningum
poder mais fazer-me isso", pensou. No via mais sua volta nem pobres nem ricos,
nem
intocveis nem senhores, nem advogados nem empregados bancrios, nem coolies nem
pi
ckpockets, havia apenas pessoas felizes que se abraavam e se interpelavam ao grit
o de Azad, Sahib - "Somos livres, Senhor!" "Era como se todo um povo tivesse enc
ontrado sbitamente a sua casa", recorda uma outra testemunha. Ao ver a bandeira d
o seu pas flutuar pela primeira vez, S os vice-reis das indias haviam tido
direito
saudao de trinta e um tiros de canho. A saudao foi reduzida a vinte e um
tiros para
o governador geral.
249
na messe dos oficiais de Nova Deli, o major indiano Ashwini Dubey pensava: "Nest
a messe onde ns fomos bodes expiatrios, agora j apenas haver acima de ns
camaradas in
dianos".
Diante da mesma bandeira, Sulochana Palidi, uma liceal de 16 anos, partilhava co
m milhes de jovens a @<impresso de se tornar adulta ao mesmo tempo que o seu
pas,@.
Recordou um verso de William Wordsworth que aprendera nos bancos da sua escola
britnica: "Como belo estar vivo neste alvorecer murmurou, e como ser jovem o
paras
o".
Para muitos indianos, a palavra mgica de independncia significava o nascimento de
um mundo novo. Ranilt Lal, o campons de Chatharpur, assegurou aos filhos de que
no
teriam mais falta de comida. Em nome da jovem liberdade, alguns creram que dora
vante tudo era gratuito e autorizado. Assim, um mendigo penetrou na tribuna rese
rvada aos diplomatas. Ao polcia que lhe pedia o seu carto de convite, exclamou:
- O meu convite? Porque precisaria eu de um convite? Tenho a minha independncia.
Isso basta.
Em todo o pas se desenrolavam as mesmas cenas de jbilo. Em Calcut, uma multido
vinda
dos bairros da lata penetrou no palcio dos antigos governadores, enquanto Sir Fr
ederick Burrows e a esposa ainda a tomavam o pequeno almoo. Indianos, que nunca
ha
viam dormido seno em cordas de um charpoy quando no era mesmo no cho, celebraram
a
independncia saltando como crianas na cama onde haviam dormido geraes de
governadore
s britnicos. Outros exprimiram a sua alegria apunhalando com a ponta do guarda-ch
uva os retratos dos antigos senhores da ndia.
Em Bombaim, foi no templo da elegncia imperial, o hotel Tai Malial que a multido
s
e precipitou. Em Madras, os indianos com a pele negra das gentes do sul desfila
ram todo o dia ao longo do molhe para contemplar com orgulho a bandeira flutuand
o no forte Saint-Georges, primeira fortaleza da East ndia Trading Company
Britnica
. Em Surat, dzias de veleiros embandeirados participaram numa regata da
independnc
ia na baa onde o capito do Galeo Hector inaugurara a epopeia indiana.
Este dia trouxe uma liberdade ainda mais tangvel a uma certa categoria de
cidados.
Uma amnistia geral abriu as portas das prises a centenas de presos polticos.
Fora
m comutadas condenaes morte. Mesmo os animais foram privilegiados, estando
todos o
s matadouros fechados nesse dia. A ndia mstica, a ndia dos Fakirs e das lendas,
tom
ou parte na festa. Em Turukalikundram no sul, as duas guias brancas que todos os
dias ao meio dia descem do alto dos cus para vir comer s mos do padre do templo,
ce
lebraram o acontecimento batendo alegremente as asas, afirmou-se. Na selva de Ma
dura perto de Madras, sadhus entregaram-se a espectaculares demonstraes.
Suspensos
de ganchos enterrados nas cos tas,
250
dedicaram o seu sacrifcio independncia da ndia - e recolheram logo uma
abundante co
lheita de esmolas.
O dia foi marcado por uma boa vontade geral para com os ingleses e pela dignidad
e com que estes ltimos participaram nas cerimnias. Em Shiliong, o coronel
britnico
que comandava os atiradores dos Assam Rifles esquivou-se discretamente para deix
ar ao seu adjunto indi.ano a honra de presidir ao desfile da independncia. Peter
Bullock, director da imensa plantao de ch de Chuba, perto da fronteira Brmane,
deu f
eriado aos seus mil e quinhentos trabalhadores e ofereceu-lhes uma grande festa,
enquanto que a maior parte deles no conhecia a razo disso.
Houve excepes. Em Sinila, a Senhora Maud Penn Montague recusou-se a deixar a casa
em que dera tantos jantares e bailes. Nascida, bem como o seu pai, na pennsula, c
onsiderava a ndia como a sua nica ptria. excepo de cinco anos de colgio na
Inglaterra,
passara a toda a sua vida. A um amigo que lhe sugeria que chegara o momento de s
e ir embora, replicara: "Meu caro, que iria eu fazer para a Inglaterra? Eu nem s
equer sei ferver a gua para o ch". Assim, enquanto a antiga capital de vero do
impri
o se entregava alegria, ela ficou em casa a chorar, incapaz de ver subir outra b
andeira ao mastro onde flutuara a sua querida Union Jack.
Para o Paquisto, o 1,5 de Agosto ocoma num dia particularmente favorvel. Era a
ltim
a sexta-feira do ms do Ramadan. As festividades glorificavam quase tanto o patron
o do Paquisto como o nascimento do prprio Estado. A fotografia e o nome de Jinnah
espalhavam-se por todo o lado, s janelas, nos bazares, nas lojas, nos gigantescos
arcos de triunfo sobrepostos s avenidas. Um pequeno anncio no Pakistan Times
decl
arava mesmo que "por intermdio da voz dos seus guardas, os camelos, os macacos e
os tigres do zoo de Lahore se associavam alegria geral para enviar as suas felic
itaes ao Quaid-i-Azam e anunciar Pakistan Zindabad". Em Dacca, a capital do
Paquis
to Oriental onde "o grande lder" nunca pusera os ps, o seu retrato decorava
todas a
s montras.
Jinnah celebrou pessoalmente este dia de apoteose apoderando-se de todas as alav
ancas de comando do Estado. Durante os poucos meses que lhe restavam de vida, aq
uele que proclamara to ardentemente a sua vontade de respeitar as regras constitu
cionais governava como ditador. Contudo o membro mais prximo da sua famlia no
estav
a ao seu lado para partilhar o seu triunfo. A oitocentos quilmetros de Karachi, n
a varanda de um apartamento de Colaba, um dos bairros mais elegantes de Bombaim,
uma jovem decorara a sua varanda com duas bandeiras, uma indiana, a outra paqui
stanesa. A sua justa posio simbolizava o dilema que representava a independncia
par
a tantos muulmanos. Diria, a nica filha de Mohammed Ali Jinnah, ainda no pudera
esc
olher entre a terra do nascimento e a nao islmica criada por seu pai.
Conscientes do drama que se escondia por detrs da euforia deste dia, numerosos in
dianos foram incapazes de partilhar a alegria dos seus compatriotas. Em Lucknow,
Anis Kidwai recordar-se- sempre do espectculo
251
incongruente da multido cantando a sua alegria agitando bandeiras, ao lado de pes
soas que soluavam porque acabavam de ter conhecimento da morte de parentes massac
rados no Panjab.
O advogado Sikh Khushwant Singh, originrio de Lahore ficou indiferente ao transbo
rdar das multides em delrio de Nova Deli. "No tinha nenhuma razo de me
regozijar, re
corda com amargura. Para mim, como para milhes de pessoas no meu caso, a
independn
cia traria uma tragdia. Haviam mutilado o PanJab, e eu perdera tudo".
No Panjab, este dia glorioso era um dia de horror. Em Amrltsar, enquanto as nova
s autoridades ordenavam um rpido iar da bandeira na antiga fortaleza monglica,
Sikh
s devastavam um bairro muulmano. Massacraram sem piedade os homens, arrancaram os
fatos s mulheres, violaram-nas, e arrastavam-nas atravs da cidade at ao Templo
de
Ouro antes de as degolar. No Estado de Patiala, outrora governado por 13hupinder
Singh, "o magnfico" bandos de Sikhs vagueavani pelos campos em busca dos refugia
dos muulmanos que fugiam para o Paquisto. O princpe Balindra Singh, irmo do
MaharaJa
, cau sobre um destes grupos arma-
dos com enormes Kirpan, os seus sabres tradicionais. Suplicou-lhes que voltassem
aos seus trabalhos.
- o tempo da ceifa, argumentou. Devercis voltar para casa e ceifar as vossas
colh
eitas.
- Temos primeiro uma outra colheita a ceifar, replicou o chefe fazendo voltejar
o seu Kirpan.
A construo de tijolo da gare de Amritsar tornara-se um verdadeiro campo de
refugia
dos. Os milhares de hindus que fugiam do ParrJab Ocidental tinham invadido as sa
las de espera, os guichs, os gabinetes, os cais, espreitando a chegada de cada co
mboio na esperana de encontrar membros das suas famlias.
Ao entardecer do 15 de Agosto, o chefe da gare Chan Singh abriu uma passagem no m
eio desta multido superexcitada, apoiando-se na
autoridade que lhe conferia o seu bon azul e a bandeira vermelha que brandia na
mo
. Chani Singh conhecia antecipadamente a cena que se seguiria chegada do express
o n.o 1O. A cada comboio se reproduzia a
mesma coisa. Homens e mulheres lanavam-se s Janelas e s portinholas dos vagons
de t
erceira classe na busca angustiada de um filho perdido na
fuga, gritando nomes, abraando-se em crises de desespero. Pessoas cor-
riam de vaga em vaga chamandpaaprentes ou procurando algum da sua aldeia
susceptve
l de lhes dar notcias. Havia crianas em lgrimas abandonadas no meio de pacotes e
de
trouxas, e outras nascidas durante o xodo que continuavam, nesta confuso, a
chupa
r o peito da me em lgrimas.
Chani Sirigh conseguiu atingir a extremidade do cais e baixou a ban-
252
deira logo que a locomotiva apareceu. Um pormenor o mpressionou. Quand
o o assobiar do vapor e o chiar dos traves se calaram, o chefe da gare compreende
u que no expresso ri.' ]O se passava algo de inslito. Um silncio petrificado
abate
ra-se sobre o cais. Chani Singh inspeccionou a
enfiada dos oito vagons. Todos os vidros dos compartimentos estavam baixados, ma
s no se via nenhum viajante. Nem uma portinhola se abrira. Ningum descia dos
vagon
s. Era um comboio de fantasmas que acabara de entrar na gare de Amritsar. O chef
e da gare d'esferrolhou uma portinhola e subiu ao interior para a descobrir um am
ontoado de corpos degolados, desventrados, com os crnios rebentados. Pernas,
braos
, troncos juncavam os corredores. De uma pilha de cadveres saiu um gemido es-
trangulado. Chani Singh gritou imediatamente "estais em Amrltsar, aqui somos tod
os hindus e slkhs. A polcia est a. No tenhais medo". Alguns feridos mexeram-se
ento l
evemente. O pesadelo ficaria gravado na memria do chefe da gare. Uma mulher apanh
ou a cabea do marido num lago de sangue e apertou-a nos braos gritando. Crianas
aga
rravam-se s
mes massacradas, homens loucos de dor retiraram duma pilha de cadveres os corpos
m
utilados dos seus filhos. Estonteado, o chefe da gare coma de um vagon para o ou
tro. Em cada compartimento, o espectculo era o mesmo. Ao ltimo, foi acometido de
nu
sea e comeou a vomitar. Asfixiado pelo cheiro de carneiro, fechou os olhos, inter
rogando-se "como os deuses tinham podido permitir semelhante horror". Quando lev
antou a
cabea, descobriu, pintada em letras grandes no lado da ltima carruagem a
assinatur
a dos assassinos. Leu: "Este comboio o nosso presente de mdependncia a Nchru".
Em Calcut, com as suas oraes e a sua roda, Gandhi conseguira conquistar os
bairros
da lata, onde se esperava uma exploso de uma violncia ultrapassando em amplitude
e
em horror os piores acontecimentos de Panjab. O milagre que a procisso noctuma d
a vspera para Hydari Mansien deixara pressagiar realizava-se. Atravs de toda a
cid
ade que um ano antes vtimas da jornada de aco directa de Jinnah juncavam,
Muulmanos
Hindus desfilavam em conjunto. Era, observa Pyarelal Nayar, o
secretrio do Mahatma, "como se, aps as nuvens negras de um ano de loucura,
aparece
sse de novo o sol da razo e da boa-vontade".
Esta transformao inimaginvel acelera-se, desde a aurira com a chegada a Hydari
Mans
ien de um novo desfile, este composto por jovens muulmanos e hindus. Tinham camin
hado toda a noite para obter o daran de Gandhi. A sua visita era a primeira de um
a onda de peregrinos que convergaram todo o dia para a sua casa em runas. Todas
as
meias horas o Mahatma era obrigado a interromper a sua meditao o seu trabalho na
roda de fiar para se mostrar multido. Considerando este dia como um dia de luto,
no preparara nenhuma mensagem de felicitaes para o po-
253
vo, que conduzira liberdade. A um grupo de responsveis polticos vindos procurar
a
sua beno, declarou: "Desconfiai do poder, porque o poder corrompe. No calais nas
su
as armadilhas. No esqueceis que a vossa misso servir os pobres das aldeias da
ndia"
.
Nessa tarde, trinta mil pessoas, trs vezes mais que na vspera, acorreram num
conce
rto de bzios para assistir orao pblica de Gandhi. Ele falou-lhes de um
estrado de ma
deira erguido pressa num terreno vago, vizinho, e agradeceu-lhes pela vitria de
C
alcut. Desejou que o seu exem-
plo inspirasse os seus compatriotas de Panjab.
- Quando se bebeu a taa envenenada do dio, o nctar da amizade devia parecer
ainda m
ais doce, declarou.
Com os traos marcados pela fadiga de um jejum de vinte e quatro horas, bastante i
nesperado nele, Sayyid Suhrawardy dirigiu-se em seguida ao auditrio. Aquele que e
ra o chefe incontestado dos Muulmanos de Calcut pediu s multides misturadas
para sel
arem a sua reconciliao gritando com ele Jai Hind - "Viva a ndia!".
Aps isto, os dois chefes empreenderam uma volta pela cidade na ve-
lha Chevrolet de Gandhi. Desta vez no foi com pedras e injrias que foram
acolhidos
. Em cada esquina, as multides entusiastas aspergiam o seu
carro de gua de rosas clamando a sua gratido: "Gandhi, s o nosso salvador".
A cerimnia celebrada num terreno vago da cidade de Poona, a cento e cinquenta qui
lmetros a sudeste de Bombaim, parecia-se a milhares de outros que neste 15 de Ago
sto de 1947 se desenrolavam no novo domnio da ndia. Era o hastear das cores
nacion
ais. Contudo, um pormenor diferenciava o ritual observado em Poona. A bandeira q
ue subia lentamente o mastro improvisado colocado no meio de um grupo de quinhen
tos homens no era a bandeira da ndia independente. Era um triangulo cor de
laranja
onde aparecia um smbolo que durante dez anos aterrorizara a Europa, o svastika.
Esta cruz gamada encontrava-se no estandarte de Poona pela mesma razo que aparece
u nas bandeiras do Terceiro Reich de Hitler. Era um smbolo solar e csmico
introduz
ido nas ndias pelos con-
quistadores Arias vindos de Noroeste, mais de trs mil anos antes. Os homens reuni
dos em Poona pertenciam todos ao R. S. S. S., o movimento hindu para-fascista, d
e que alguns membros tinham recebido como misso assassinar Jinnah em Karachi quar
enta e oito horas antes. Hindus fanti -
cos, tinham pelo menos um ponto comum com o profeta da no-violncia: tambm eles
esta
vam chocados pela diviso da ndia. Mas a aproximao ficava por a. Odiavam Gandhi
e a su
a aco. O heri nacional da ndia era aos seus olhos o inimigo fidagal do
hindusmo.
O seu movimento fundamentava-se num velho sonho histrico, o de
254
reconstruir um grande imprio hind, indo desde as nascentes do Indo at s do
Bramaputr
a, dos cumes de neve do Tibet at ao cabo Comorin. Consideravam a doutrina da no-
vi
olncia como uma filosofia de parvos, prpria para corromper a fora de carcter
dos pov
os hindus. No seu ideal no havia qualquer lugar para a fraternidade e a tolerncia
para com a minoria muulmana da ndia. Enquanto hindus, consideravam~se os nicos
suce
ssores dos conquistadores arianos e, consequentemente, os proprietrios legtimos
do
pas. Segundo eles, os muulmanos no eram mais que os descendentes de um cl de
usurpa
dores, e dos mongis. Mas havia sobretudo um pecado que nunca poderiam perdoar ao
velho libertador da ndia. Esta acusao era em si mesma uma cruel ironia.
Considerava
m Gandhi, o nico poltico indiano a ter-se oposto a isso at ao fim, como o nico
respo
nsvel pela partilha da ndia.
O homem que presidia concentrao de Poona era um jornalista. Nathuran Gods
fizera 37
anos, mas as suas grandes bochechas de criana davam-lhe um ar mais jovem. Os gra
ndes olhos inocentes impressionavam pela intensidade do olhar e por uma espcie de
melancolia que o geito dos lbios acentuava mais. De natureza tmida e reservada,
G
ods inflamava-se na aco. Nessa mesma manh exprimira sua maneira os
sentimentos que a
independncia da ndia lhe inspirava na primeira pgina do jornal que dirigia, o
Hind
u Rashira - a nao hindu. O lugar reservado ao seu editorial quotidiano fora
deixad
o em branco e rodeado por uma tarja negra de luto.
junto da bandeira, foi ainda mais explcito. As cerimnias da independncia em todo
o
pas eram apenas, explicou, " uma camuflagem destinada a esconder ao povo o facto
de centenas de Hindus estarem j a ser massacradas e centenas de mulheres roubadas
e violadas. A viviseco da ndia uma calamidade condenando milhes de indianos
a horrve
is sofrimentos". E era essa "a obra do partido do Congresso e, antes de mais, do
seu chefe, Gandhi". No fim do discurso, Nathuram Gots convidou as suas tropas a
saudar o emblema do seu movimento. Depois, com o polegar da mo direita sobre o co
rao, a palma voltada para o cho, prestaram juramento: " Ptria que me viu
nascer e ond
e cresci, juro que o meu corpo est pronto a morrer pela sua causa". Uma vez mais,
a estas palavras, Nathurarn Cot@e sentiu-se invadido por uma vaga de orgulho. T
oda a sua vida conhecera o falhano, tanto na escola como na meia dzia de
profisses
que exercera. Falhara em tudo, at ao dia em que abraara a doutrina extremista do
R
.S.S.S. Penetrando-se do seu ensinamento e da sua literatura, aprendendo a escre
ver e a falar em pblico, tornara-se um dos melhores pelemistas do movimento. E ag
ora, projectava assumir um novo papel, mstico. Seria o vingador da ndia,
purifican
do-a dos inimigos de uma ressurreio hindu.
De todas as grandiosas cerimnias que celebraram a independncia em Nova Delhi, a
ma
is impressionante foi sem dvida um lanche para crianas, que viu, a famlia
Mountbatt
en misturar-se sem protocolo a milhares de jovens indianos, smbolos da ndia nova.
Mas a recordao mais espectacular deixada por este dia 15 de Agosto de 1947 seria
a
do iar das cores indianas na capital, s cinco horas da tarde, na esplanada
prxima
do arco de argila amarelada dedicado aos noventa mil indianos mortos para o impri
o britnico durante a primeira guerra mundial.
Os colaboradores de Lord Mountbatte'n tinham previsto a presena de uma trintena d
e milhares de hindus. TI nham-se enganado em meio milho. Nunca ningum vira
n
ada de semelhante a esta avalanche na capital. Surgindo de todos os lados, as ma
ssas que, de manh, tinham convergido para a cidade, submergiam a pequena tribuna
erguida junto do mastro. Dir-se-ia recorda, uma testemunha, "uma barcaa agitada p
or um
oceano tempestuoso." As barreiras, as cordas destinadas a canalisar os espectado
res, os recintos reservados, os polcias, tudo fora arrastado pela irresistivel ma
r humana. Afogado nesta massa movedia, Ranjit Lal, o
campons que deixara ao amanhecer a sua aldeia de Chatharpur, pensou que apenas se
podiam juntar tais multides para os Kumbhamela, as grandes peregrinaes s
margens do
Ganges. O aperto era to grande que nem ele, nem a mulher, nem os filhos podiam m
exer os braos, a ponto de serem incapazes de comer os chapati que tinham trazido.
Muriel Watson e Elisabeth Ward, as duas assistents de Lady Mouritbatten, chegaram
pouco antes das cinco horas. Tinham vestido elegantes vestidos de cocktail, com
luvas brancas at aos cotovelos e pequenos chapus de plumas multicolores.
Sentiram
-se de repente aspiradas nos
turbilhes, levantadas do cho, arrastadas pela onda. Agarrando-se uma outra, sem
ch
apus, com os vestidos esfarrapados, lutaram desesperadamente para no serem
sufocad
as. Pela. primeira vez na sua vida, Elisabeth Ward, que contudo tomada de pnico.
- Vamos ser espezinhadas, gritou amiga.
- Graas a Deus, esto descalos, acalmou-a Muriel Watson. Pamela Mountbatten, com
17
anos, alcanou a esplanada acompanhada por dois colaboradores de seu pai. -Os trs.
abriram com grande dificuldade uma passagem em direco pequena tribuna oficial.
A m
enos de cinquenta metros do fim, tombaram num muro intransponvel de pessoas senta
das no cho. . Vendo a jovem da plataforma onde j se encontrava, Nehru gritou-lhe
p
ara ir para junto dele, passando sobre os ombros das pessoas.
- Impossvel! Tenho sapatos de saltos.
- Tire-os!
- Oh, nunca ousaria, nsurgiu-se Pamela.
- Ento deixe-os estar, impacientou-se Neliru, e caminhe simplesmente sobre as pes
soas, no diro nada.
256
- Mas os saltos vo mago-las!
- Deixe-se de infantilidades, gritou Nehru, descalce-s e venha depressa.
Com um suspiro de impotncia, a filha do ltimo vice-rei da ndia tirou os chinelos
e
tentou saltar o tapete humano que a separava da tribuna. No bom humor geral, uma
floresta de braos se levantou imediatamente para ela, a fim de facilitar a sua a
crobtica progresso.
No momento em que os turbantes dos cavaleiros da escolta do primeiro governador
geral da ndia surgiram por cima das cabeas, uma vaga de fundo levantou
literalment
e a multido. Observando o caminhar lento da carruagem dos seus pais, Pamela Mount
batten foi testemunho de um incrvel espectculo. Milhares de mulheres estavam l
com
os seus bebs nos braos. Receando ver os filhos esmagados no aperto, tiveram uma
in
iciativa desesperada. Com os braos atiravam-nos ao ar no espao livre por cima das
cabeas, atirando-os de novo ao ar como bolas quando eles caam. Num minuto, o cu
fic
ou cheio de milhares de crianas. "Meu Deus, pensou a jovem inglesa estupefacta, e
st a chover bebs".
Mountbatten compreendeu instantaneamente que no havia nem sombras de hipteses de
v
er respirar o protocolo estabelecido para o iar da bandeira. Nem sequer podia des
cer da carruagem.
- preciso iar a bandeira, gritou a Nehru. Pior para a msica. A fanfarra est
bloquea
da com a guarda de honra. Apesar da barulheira, o seu chamamento foi ouvido na p
lataforma. O emblema aafro, branco e verde, de uma ndia livre elevou-se
imediatamen
te, enquanto que de p na sua carruagem, o bisneto da rainha Victria o saudava.
A apario da bandeira, uma ovao frentica saiu de quinhentos mil peitos. Na
alegria des
te momento, a ndia, esquecia a derrota de Plassey a represso dos motins de 1857,
o
massacre de Arritsar. Esquecia as humilhaes da lei marcial, as cargas dos
polcias,
o turbilho dos seus lathi, as execues dos mrtires da Independncia. Trs
sculos de provo
desapareciam no jbilo. Quando a bandeira da nova ndia atingia o cimo do mastro,
u
m arco-ris aureolou-a, arco de Deus Indra, que uneb cu e a terra. Para este povo
a
tento linguagem do alm e respeitador das vontades celestes, este sinal, apenas
po
dia ser a manifestao da presena divina: o alaranjado, o amarelo e o verde do
espect
ro solar davam sua bandeira uma dimenso universal.
- Se o prprio Deus nos envia tal pressgio, lanou uma voz, quem poder
atravessar-se n
o nosso caminho?
O regresso ao palcio de Lus e Edwina Mountbatten ia fazer-lhes viver uma
experincia
inesquecvel. A sua carruagem parecia-se a uma jangada derivando ao sabor dos red
emoinhos da multido exuberante. Levado de brao em brao pelos seus compatriotas
em d
elrio, Nehru conse-
257
guiu juntar-se-lhes. Dir-se-a, pensou Mountbatten, "uma espcie de gigantesco
pique
nique de perto de um milho de pessoas que se divertem como nunca na sua vida". Es
ta exploso de alegria espontnea e incontrolvel reflectia o verdadeiro
significado d
esta jornada. De p no meio da floresta de mos que se estendia para ele,
Mountbatte
n procurava o limite deste oceano de cabeas; pareceu-lhe infinito. To longe
quanto
o olhar conseguia alcanar, encontrava sempre a multido. Trs vezes seguidas, o
governador geral e a esposa debruaram-se para levantar uma mulher quase a cair de
baixo das rodas do carro. Instalados nas almofadas de couro preto feitas para o
rei e para a rainha de Inglaterra, os trs naufrgos atravessaram maravilhados a
mul
tido ao lado do ltimo vice-rei e da ltima vice-rainha das ndias.
Mas acima de tudo, a recordao deste dia ficaria, para Lus e Edwina Mountbatten,
lig
ada a um grito, um grito vibrante incansavelmente repetido. Nenhum ingls tivera,
antes deles, o previlgio de suscitar uma homenagem to carregada de emoo e de
sinceri
dade. Compassadas como salvas triunfais, rebentavam incessantemente as aclamaes
da
multido: Mountbatten-K Jai! - "viva Mountbatten!"
A dez mil quilmetros das multides exultantes de Nova Deli, no cora-
o dos HighIands da Esccia, um carro oficial penetrou nesse dia no ptio do castelo
de Balmoral. O seu passageiro foi introduzido no gabinete de trabalho onde o rei
Jorge VI o esperava. O conde de Listoweli, ltimo secretrio de Estado para os
assu
ntos indianos, informou oficialmente Sua Majestade de que a Gr-Bretanha tinha tra
nsmitido os seus poderes s autoridades indianas. Este acto modificava irrevogavel
mente a natureza do reino do monarca britnico: doravante no tinha mais o direito
a
o ttulo de Rex Imperator.
Restava realizar uma ltima -formalidade para enterinar esta mudana.
O ministro devia restituir ao rei os selos que tinham sido as garantias do seu c
argo, a incarnao dos laos que umam o Imprio,das ndias coroa
britnica. Infelizmente, estes selos j no existiam. Algum os desviara j h
bastante temp
o. A ltima recordao que o ltimo secretrio de Estado para os Negcios Indianos
podia pro
por aosoberano deste Imprio que nunca visitara, era uma inclinao respeituosa da
cab
ea e o gesto simblico de lhe estender a palma.
O crepsculo descia sobre a capital da ndia, ao mesmo tempo que caa a poeira
levanta
da por um milho de ps. As multides continuavam a percorrer as ruas cantando,
gritan
do e abraando-se. Na Velha Deli, junto das muralhas do Forte Vermelho, milhares d
e indianos em delrio, parti-
258
cipavam num gigantesco carnaval de encantadores de serpentes, de jograis, de adi
vinhos, de ursos sbios, de lutadores, de msicos, de engolidores de sabres, de
faki
res que atravessavam o rosto com punhais. Outros deixavam a cidade aos milhares,
em interminveis caravanas multicolores e partiam para as suas aldeias. Ranjit La
l, o campons brmane de Chatharpur, estava entre eles. Para sua grande clera, o
coch
eiro de tonga que de manh pedira quatro anna para o levar a Nova Deli, reclamava
agora oito vezes mais para o levar a casa. Considerando que era pagar bastante
caro a liberdade, Raript Lal e a famlia fizeram a p os trinta quilmetros de
traject
o.
Finalmente ss nos seus apartamentos privados, Lus e Edwina Mountbatten caram nos
br
aos um do outro. Estavam radiantes de felicidade e de emoo. A roda do seu
destino a
cabara de dar uma volta completa. Nas ruas da cidade que vira nascer o seu amor
h um quarto de sculo, acabavam de partilhar a mesma apoteose. Nunca o almirante,
q
ue todavia saboreara a embragus de receber a capitulao de setecentos e
cinquenta mil japoneses, viveria um momento mais exaltante. Era um momento compa
rvel celebrao louca do fim da guerra, pensava Mountbatten, excepto que desta
vez se
tratava de "Uma guerra ganha pelas duas partes, uma guerra sem vencidos".
No dia seguinte de manh em Londres, um visitante chegado de Nova Del apresentou-
se
porta do ri.' 1O de Downing Strect. O Primeiro Ministro Clement Attlee tinha to
das as razes para estar satisfeito. A independncia das ndias fora acompanhada de
ma
is manifestaes de boa vontade para com a Gr-Bretanha que ningum tinha podido
esperar
seis meses antes. Comparando a atitude da Inglaterra com a dos Pases-Baixos na I
ndonsia e da Frana na Indochina, uma personalidade indiana observara: "No
podemos s
eno admirar a coragem e o senso poltico do povo britnico. "
Luis Mountbatten enviara contudo a Londres o seu secretrio particular, George Abe
il, para prevenir Affice contra as falsas esperanas que tais declaraes podiam
fazer
nascer. A maneira como o problema da independnca fora resolvido, declarou George
Abell ao Primeiro Ministro, era um triunfo ao mesmo tempo para o seu governo e p
ara o homem que designara como vice-rei, mas no devia regozijar-se demsiado
depres
sa, reco~ mendou, nem demsiado ostensivamente, porque a partilha do sub-continent
e indiano a inelutavelmente acarretar "o mais terrvel dos banhos de sangue".
Attlee tirou algumas fumaas do seu cachimbo e acenou tristemente a cabea. Esteja
d
escansado, prometeu, daqui nenhuma declarao esclarecedora sair. No tinha
"nenhuma il
uso". O que fora realizado era gigantesco, mas tambm ele sabia bem que era
preciso
pagar o seu preo.
259
Em Nova Deli, chegara a hora de abrir a caixa de Pandore. Antes de as enviar aos
seus destinatrios, Lord Mountbatten considerou uma vez mais os dois envelopes am
arelos. Cada um continha um jogo das novas cartas geogrficas da pennsula, bem
como
uma dzia de folhas dactilografadas. Eram os ltimos documentos oficiais que a
Ingl
aterra legaria s ndias, as ltimas malhas de uma longa cadeia que comeara pela
outorg
a da carta real de Isabel 1 East India Trading Company em 1599, e acabou com est
a lei sancionada menos de um ms antes pelas palavras rituais "o Rei o Quer". Nenh
um dos textos precedentes tivera consequncias comparveis s que estes dois
ltimos doc
umentos iam trazer.
Mountbatten entregou um dos envelopes a Jawaharlal Nelru, Primeiro Ministro da
ndi
a, e o outro a Liaquat Ali Khan, Primeiro Ministro do Paquisto, e props-lhes
estud
arem o contedo deles com os seus colaboradores, antes de virem discuti-lo com ele
.
A clera que abrasava os rostos dos dois chefes de governo aps este exame
assegurou
Mountbatten da perfeita imparcialidade observada pelo autor da partilha das ndia
s. Tanto um como outro dos dois homens pareciam bbedos de raiva. Mal se sentaram,
explodiram numa tempestade de protestos. Desvanecera-se a euforia da Independnci
a.
Ao cortar a carta das ndias, Sir Cyril Radcliffe respeitara rigorosamente as inst
rues recebidas. Com algumas insignificantes excepes, traara a fronteira
atribuindo ao
s indianos as zonas com maioria Hindu, e aos Paquistaneses as de maioria Muulmana
. No papel, o resultado podia ainda parecer aceitvel. Na realidade, era um desast
re.
No Bengala, a linha de partilha coma o risco de condenar cada uma das duas parte
s runa econmica. Enquanto oitenta e cinco por cento da juta mundial se criava
na z
ona atribuda ao Paquisto, no seu territrio no havia uma nica fbrica de
transformao. Em
ompensao, a ndia encontrava-se com mais de uma centena de fbricas e com o nico
porto
de exportao, Calcut, mas sem juta.
No Panjab, a fronteira de Radcliffe atribua a cidade de Lahore ao Paquisto e a de
Arriritsar com o seu templo de Ouro ndia, cortando em
duas as terras e as populaes de uma das comunidades mais militantes e mais unidas
das ndias, os Sikhs. Levados pelo desespero, estes iam tor-
nar-se os principais actores da tragdia do Pan)ab.
Uma grave controvrsia ia surgir a propsito da pequena aglomerao de Gurdaspur,
abriga
da na base do Himalaia, no extremo norte do Parijab. Afim de permitir sua fronte
ira seguir neste stio o limite natural de uma ribeira, Radcliffe colocou a pequen
a cidade, povoada na sua maioria
26O
por muulmanos, e as poucas aldeias que a rodeavam, do lado da Unio Indiana de
Nehr
u, recusando-se a criar um enclave paquistans em territrio indiano. Noventa
milhes
de muulmanos nunca lhe perdoariam esta deciso. Porque, se Radclife tivesse, ao
con
trrio, atribudo Gurdaspur ao
Paquisto, no eram algumas casas de barro amassado com palha que o
Estado de Mohammed Ali Jinnali teria ganho. A Gurdaspur viria fatalmente juntar-
se um dia ou outro o vale encantado cujo nome inspirara as ltimas palavras do imp
erador mongol Jehangir, no seu leito de morte: "Cachemira, 6 Cachemira". Sem a p
assagem que Gurdaspur permitiria, no sop do Himalaia, a ndia no possuiria
efectivam
ente nenhuma via de acesso terrestre para o Cachemira e o seu maharaja hindu, se
mpre indeciso, no teria outra escolha seno ligar o destino do seu Estado ao
Paquis
to. Inconscientemente, o escalpelo do jurista britnico ofereceria assim ndia a
ocas
io de um dia absorver o Cachemira.
O homem a quem se tinha confiado a viviseco da ndia porque ignorava tudo dos
seus p
roblemas, perscrutava do alto do cu as paisagens que acabava de dividir. Rodeado
de severas medidas de segurana, Sir Gyril Radcliffe voltava Inglaterra. A ltima
ta
refa do jovem funcionrio que o acompanhava fora passar o avio a pente fino, no
rec
eio de uma bomba. Perdido nos seus pensamentos, o jurista britnico contemplava at
ravs da sua janela a extenso infinda dos campos de trigo e de cana-de-acar do
Panjab
. Avaliava melhor que ningum a consternao e a desgraa que os seus traos
provocariam.
Infelizmente, no existia nenhum traado ideal que tivesse podido evitar esta
colhei
ta de angstia e de sofrimentos. As razes que levavam inexoravelmente o Panjab e o
Bengala tragdia existiam muito antes de Sir Cyril Radcliffe ter sido arrancado
ao
seu escritrio londrino. Tinha a certeza de que o o seu trabalho resultaria em de
struio e em violncia. E certamente tambm saberia que o tornariam responsvel
por esta
tragdia.
Quando o tinham encarregado da sua misso, Nehru e Jinnali tinham ambos prometido
aceitar as suas decises e faz-las aceitar. Ora, os dois homens tinham-se
apressado
a conden-las. Alguns dias mais tarde, desgostoso, Radcliffe responderia sua
atit
ude com a nica resposta que possua: recusaria as duas mil libras esterlinas
repres
entando o salrio proposto para a mais complexa partilha geogrfica dos tempos
moder
nos.
Imperceptvel ao olhar de Radaclffe no seu avio, a maior migrao da histria da
humanidad
e comeava j. As primeiras filas de refugiados do Panjab apressavam-se nos
carreiro
s, ao longo dos canais, atravs dos
pelo asfalto escaldante da Grand Trunk-Road. Dentro de algu-
261
mas Horas, a publicao do relatrio de Sir Cyril Radcliffe a juntar uma nova
dimenso ao
s horrores que ainda ameaavam esta provncia. Aldeias, cujos habitantes muulmanos
ti
nham saudado com entusiasmo o nascimento do Paquisto, achar-se-am na ndia. Por
outr
o lado, Sikhs, que criam ter celebrado nos seus guru-dwara a ligao da sua aldeia
nd
ia, apenas deviam a vida a uma fuga desvairada para o outro lado da fronteira, p
ara alm dos campos que sempre tinham cultivado.
Certos absurdos a que a urgncia condenara o jurista 'britnico no tardaram a
aparece
r. Canais de irrigao tinham as suas comportas de alimentao num pas, e a sua
rede de d
istribuio no outro. A fronteira atravessava por vezes o centro de um casal.
Aconte
cia mesmo cortar uma
casa em duas, deixando a porta de entrada do lado indiano e a janela de trs abert
a para o Paquisto.
Todas as prises do Panjab se encontraram no Paquisto, assim como
o seu nico asilo de loucos. Numa repentina crise de lucidez, os pensionistas hind
us e sikhs do estabelecimento suplicaram desesperadamente aos
seus enfermeiros que os transferissem para a ndia para escaparem aos
Muulmanos, que no deixariam de os massacrar. Os seus mdicos mostraram menos
clarivi
dncia que eles. Rejeitaram a sua splica.
Captulo dcimo terceiro"
OS NOSSOS POVOS CAIRAM NA LOUCURA"
Isto devia ser um verdadeiro cataclismo. Durante seis semanas, o norte da ndia ia
de repente cair num banho de sangue de uma amplitude extraordinria. Como nas hor
as mais tristes da humanidade, uma loucura, de assassnio apoderava-se de milhes
de
homens. Nem uma aldeia, nem uma famlia seriam poupadas pelo contgio. Neste breve
e monstruoso morticnio pareceriam tantos indianos como franceses na segunda guerr
a mundial.
Por toda a parte, os mais numerosos e os mais fortes atacaram as minorias mais f
racas. Nas ricas vivendas da avenida Aurangzeb da capital, os souks de jias de Ch
andrii Chowk na velha Delhi e os mahalla de Arriritsar; nos elegantes arredores
de Lahore, os bazares de Rawalpindi, por detrs das muralhas de Peshawar; nas bout
iques, nos stands, nas casas de barro e nas ruelas das aldeias; nos fornos de ti
jolos, nos ateliers de texteis e nos campos, nas gares, nos hospitais, nos asilo
s, nos escritrios e nos cafs, por toda a parte as comunidades que at ento
tinham viv
ido lado a lado lanaram-se umas contra as outras num transbordar de dio. Nem era
u
ma verdadeira guerra, nem uma guerra civil, nem uma guerrilha. Era uma convulso,
a brutal e sbita exploso de um mundo. Um crime provocava outro, o horror trazia o
horror, a morte engendrava a morte. Em breve, tal como a carcaa de um imvel que
se
abate sob o efeito de uma ltima bomba, as paredes de toda uma poro da sociedade
in
diana ruiram umas sobre as outras.
Este desastre no era furtuito. Ao nascer, a ndia e o Paquisto eram dois irmos
siames
es ligados um ao outro por um tumor maligno, o Pari~ jab. O escalpelo de Sir Cyr
il Radcliffe cortara ao meio o tumor e separara os gmeos, mas no pudera eliminar
a
s clulas cancerosas. O seu corte deixara cinco milhes de sicks e de hindus na
meta
de paquistanesa do Parijab e cinco milhes de muulmanos na metade indiana.
Intoxica
dos pelas promessas de Jinnah e dos lderes da Liga muulmana, as massas muulmanas
ex
ploradas tinham acabado por se convencer que no Paquisto, "Pas dos Puros,"
usurrios
hindus, comerciantes e impiedosos grandes proprietrios sicks teriam desaparecido
. Ora, eles continuavam l. Ocupavam as suas quintas e as suas boutiques, exigiam
o pagamento dos seus juros e dos seus alugueres. Como os muulmanos ento pensaram:
"Se o Paquisto nosso, ento as boutiques, as quintas, as casas, as fbricas dos
hindu
s so nossas tambm ". No mesmo momento, na parte tornada indiana, os sikhs
preparav
am-se para expulsar todos os muulmanos que vi-
263
viam na sua zona afim de instalar no seu lugar os seus irmos que fugiam do
territr
io paquistans. Era portanto inevitvel que todos - hindus, sikhs e muulmanos - se
de
frontasse com igual fria exterminadora.
As ndias sempre tinham sido a terra do desmedido. O horror das carnagens do Panja
b, a amplitude dos sofrimentos e das desgraas que criaram no fugiram a esta
tradio.
Os povos civilizados matavam-se uns aos outros com exploses atmicas, de Vi, de
obu
ses, de fsforo, com lana chamas e gazes asfixiantes. Os povos do Panjab
massacrara
m-se com chuos de bambu, facas, sabres, matracas, martelos, paraleleppedos e
ganch
os em forma de dentes de tigre? Estupefactos pelo frenesim que inconscientemente
tinham desencadeado, os seus dirigentes tentaram desesperadamente cham-los
razo.
Em vo: a india enlouquecera.
O capito R. E. Atkins, do 2.O batalho de Gurkhs, ficou com a respirao cortada.
O esp
ectculo de que tanto ouvira falar sem nisso acreditar, tinha-o agora diante dos o
lhos. Nas valetas de Lahore, coma uma tor-
rente de sangue. O belo "Paris do Oriente" no era mais que runa e desolao. Ruas
inte
iras eram pasto das chamas. A noite, a agitao dos larpios lembrava ao capito
ingls a
das formigas brancas moendo a madeira. Desde a instalao por comerciantes hindus
qu
e lhe propunham uma fortuna - vinte, trinta, cinquenta mil rupias, as filhas e a
s jias das mulheres - se ele lhes permitisse fugir no seu jeep ao infemo em que L
ahore se tornara.
Precisamente do outro lado da fronteira, em Amritsar, os bairros muulmanos eram a
penas escombros, donde se escapavam grossas espirais de fumo acre. Companhias de
abutres pareciam velar por este cenrio de apocalipse donde saa o odor sufocante
d
os corpos em decomposio. Por toda a parte cenas anlogas desfiguravam o Panjab.
Em L
yalipur, os
operrios muulmanos de uma fbrica de texteis exterminaram os seus companheiros de
tr
abalho Sikhs. A sinistra descoberta do capito Atkins tomava aqui uma dimenso
compl
etamente diferente: desta vez, era um
canal de irrigao que levava o sangue de centenas de vtimas sikhs e hindus.
Em Simla, Fay Campbell-johnson a esposa do delegado de imprensa de Lord Mountbat
ten, estremeceu de horror perante o que descobriu da varanda do hotel Cecil, ond
e geraes de administradores imperiais tinham saboreado o seu whisky nas tardes de
vero. Fazendo rodar os seus kirpan, slkhs dirigiam-se de bicicleta para o MalIm e
m perseguio dos muulmanos tais como cavaleiros perseguindo um javali. Quando
atingi
am uma presa, decapitavam-na com um golpe de sabre. Uma outra inglesa viu a cabea
de um destes infelizes rolar no passeio e parar aos seus ps, com o gorro sempre
no lugar. Pedalando furiosamente, o assassino lanava-se j sobre uma nova vtima
bran
dia o sabre escorrendo sangue e
264
gritava: "Vou matar outros! Vou matar outros!"
O carrasco era geralmente um desconhecido, mas por vezes tambm um amigo. Todos os
dias desde h quinze anos, Naranjan Siongh, um cafeteiro sikh do bazar da cidade
de Mountgomery, recebia a visita do seu vizinho um curtidor muulmano. Numa manh
de
Agosto, mal lhe tinha preparado a sua taa de ch negro de Assam, encontrou na
fren
te um rosto perturbado de dio. Apontando-o, o vizinho gritou: "Matai-no, matai-no
!" Um grupo de muulmanos surgiu imediatamente da ruela. Com um golpe de sabre, um
deles seccionou a pema do sikh, enquanto os outros massacravam o pai, com a ida
de de noventa anos, e o seu nico filho. An~ tes de perder o conhecimento, o cafet
eiro assistiu impotente ao rapto da sua filha de dezoito anos pelo homem a quem
servira ch durante quinze anos.
Por toda a parte se abatia o mesmo terror sobre as comunidades minoritrias. Em Uk
arna, uma pequena cidade txtil com maioria muulmana, Madanial Pahwa, um hindu de
v
inte anos, antigo marinheiro da marinha indiana, refugiou-se em casa de uma das
suas tias. Das janelas assistiu s manifestaes delirantes da populao muulmana
que danava
, cantava e brandia as bandeiras do Paquisto cantando: "Hanskelya Paquistan, Lark
elinge Hindustan!" - "Ganhmos o Paquisto a rir, ganharemos a ndia a combater!"
Mand
all Pahwa odiava os muulmanos. No seu uniforme Kaki, ornado com o galo negro da
or
ganizao extremista hindu R.S.S.S., nunca desperdiara uma oportunidade de os
aterror
izar. Era agora a sua vez de se inquietar: "Todos temos medo, pensou, parecemo-n
os a carneiros que vo para o sacrifcio.
Graas sua experincia militar e sentido de organizao, os sikhs eram os
assassinos mai
s eficazes. Agrupados em jattha bandos de cinquenta a cem homens armados at aos d
entes, caam sobre as aldeias muulmanas como nuvens de gafanhotos, apenas deixando
atrs de si sangue e ruina.
O quinteiro muulmano Ahmed Zarullah habitava, perto de Ferozepore, um destes pequ
enos casais sem defesa que os iattha sikhs atacavam de preferncia. "Numa noite, r
ecorda, eles chegaram dando horrorosos gritos de guerra. Ns sabamos que amos ser
ex
terminados como ratos. Escondemo-nos debaixo dos charpoy e atrs dos montes de bos
ta de vaca. Os Sikhs fizeram saltar a minha porta machadada. Fui atingido por um
a bala no brao esquerdo. Quando tentava levantar-me vi cair a minha mulher, ferid
a por sua vez. Coma-lhe sangue da coxa e das costas. O meu filho de trs anos foi
atingido no ventre. Nem sequer deu um grito. Morreu instantaneamente. Peguei na
minha mulher ao colo e, abandonando o nosso filho morto, fugi por uma janela com
o nosso outro filho. Vi sikhs abater muulmanos que se escapavam das casas em cha
mas. Outros comam arrastando mulheres e garotas. Ouviam-se uivos, gemidos, choro
s impressionantes. Sikhs lanaram-se sobre mim e arrancaram-me o corpo da minha mu
lher. Levaram o nosso filho. Depois deram-me uma punhalada e
265
deixaram-me como morto na poeira. Tudo acabara para mim. A vida j no contava:
aque
les que eu amava tinham desaparecido. j nem sequer tinha foras para chorar. Os
meu
s olhos estavam to secos como um oued do Sind antes da mono. Perdi os sentidos".
Em Shelkhpura, um grande burgo comercial ao norte de Lahore, todos os habitantes
hindus e sikhs foram reunidos num vasto depsito onde a banca local depositava o
gro que servia de cauo aos seus emprstimos. Polcias muulmanos e desertores do
exrcito a
tiraram para o monte com metralhadoras, matando-os at ao ltimo.
Entre os oficiais ingleses que tinham ficado para servir no exrcito indiano ou pa
quistans, repetia-se incessantemene o mesmo refro: "O que aqui se passa pior
que t
udo o que se pde ver durante a segunda guerra mundial."
O enviado especial do New York Times, Robert Trumbull, que cobrira bom nmero de g
uerras no decorrer da sua carreira, telegrafou ao seu
iornal: "Nunca nada me impressionou tanto, nem mesmo os montes de cadveres aps o
d
esembarque de Tarawa. Hoje na ndia correm rios de sangue. Vi mortos s centenas e,
mais horrvel que tudo, milhares de india-
nos sem olhos, sem ps, sem mos. Raros so os que tm a sorte de morrer com uma
bala. H
omens, mulheres e crianas so as mais das vezes batidos at morte com matracas,
lapid
ados, abandonados ao suplcio de uma
agonia que o calor e as moscas tornam ainda mais horrorosa".
Todas as comunidades davam prova de igual selvaiara. Um oficial ingls da Fora de
In
terveno do Panjab descobriu quatro bebs muulmanos "enfiados em espetos e
assados com
o leites" numa aldeia devastada por sikhs. Um outro viu "um cortejo de mulheres h
indus cujos seios tinham sido cortados por fanticos muulmanos,,.
Em certos sectores, os muulmanos ofereceram aos vizinhos hindus a possibilidade d
e se converterem ao islamsmo ou de deixarem o Paquisto.
O campons Bagh Das vivia numa aldeia de trezentos hindus em plena zona muulmana,
a
ocidente de LyalIpur. Numa tarde, vrias centenas de muulmanos cairam sobre a
pequ
ena comunidade. Todos os habitantes foram reunidos num campo enquanto pilhavam a
s suas casas. Depois foram conduzidos at primeira aldeia onde se erguia um
minare
te. Foram obrigados a lavar os ps na bacia das ablues, antes de serem empurrados
pa
ra o interior da mesquita onde tiveram de se ajoelhar. Depois de lhes ter
lido alguns versculos do Alcoro, o maulvi declarou:
- Tendes de escolher entre tornardes-vos muulmanos e viver felizes, ou serdes mo
rtos,
- Preferimos tornarmo-nos muulmanos, acabou por responder Bagh Das em nome dos co
mpanheiros.
Cada ,convertido" recebeu ento um nome muulmano e foi obrigado a recitar um verso
do alcoro. O grupo foi em seguida conduzido para o ptio da mesquita onde estava a
assar uma vaca. Cada um foi forado a
comer um bocado. Bagli. Das, que era vegetariano, teve "uma irresistvel
266
vontade de vomitar", mas fez um esforo com receio de ser morto se no obedecesse.
junto dele, um brmane pediu autorizao para ir, com a mulher e os trs filhos,
buscar
os pratos e os talheres do seu casamento a fim de honrar como devia ser esta gra
nde viragem da sua existncia. Lisongeados, os seus raptores muulmanos aceitaram.
N
em o Brmane nem ningum da sua famlia voltou a comer a carne sacrlega.
"Escondera, em
casa uma faca, conta Bagli Das. Quando chegou a casa, tirou-a do esconderijo. D
egolou primeiro a mulher, depois os trs filhos. Finalmente espetou a faca no
corao"
.
Um motivo que nada tinha a ver com o fervor religioso impelia muitas
vezes os muulmanos do Paquisto a exterminar os vizinhos sikhs e hindus ou a
provoc
ar a sua fuga. Era a cobia dos seus bens.
O sikh Sardar Prem praticava, numa aldeia perto de Sialkot uma profisso que os
muu
lmanos desprezavam: emprestava sob cauo. @<Eu pertencia a uma famlia muito rica,
ex
plica. Tinha uma grande casa de dois andares, com um slido porto de ferro
forjado.
Toda a gente na aldeia sabia que eu era o mais rico. Muitos muulmanos me pediam
para hipotecar as suas jias. Conservava-as num cofre metlico. Quase todos os
muulma
nos da aldeia tinham, num momento ou noutro, depositado em
minha casa qualquer valor com cauo."
Numa manh, pouco depois da independncia, Sardare Pren viu manifestantes
muulmanos a
vanarem para a sua casa brandindo matracas, barras de ferro e facas. A maior part
e dos rostos era-lhe familiar: cada um forapelomenos uma vezseu devedor. "O cofr
e, ocofre!" Gritavam."
Ah! eles pensavam ceifar uma bela colheita", conta Sardar Prem. Mas o cofre ence
rrava tambm uma espingarda de dois canos e vinte e cinco cartuchos. Sardar Prem p
egou na arma e subiu ao segundo andar. Durante uma hora, defendeu a casa corrend
o de uma janela outra e atiran- ,do sobre os desordeiros que tentavam arrombar o
porto.
Durante este tempo, no rs do cho desenrolava-se uma cena alucnante. A esposa
reunir
a as seis filhas no vestbulo e trouxera um bidon de alcol. Regou com ele todo o
co
rpo. Depois de ter implorado a misericrdia do guru Nanak e ordenado s filhas que
a
imitassem, imolou-se sem um grito. Uni odor de carne calcinada encheu imediatam
ente a casa, subindo at ao segundo andar onde Sardar Prem atirava os ltimos
cartuc
hos. Mandou ainda uma chumbada e lanou-se ofegante na escada.
Chegado a baixo, deu um grito de horror. A mulher e trs das suas filhas no era
mai
s que um monte informe de carne e de ossos carbonizados no cho do vestbulo.
Tinham
preferido perecer nas chamas que serem
violadas pelos muulmanos.
Tais cenas no eram raras. Quando os muulmanos atacaram a casa
de Ganda Singh, um proprietrio agrrio do distrito de Gurdaspur, as filhas e todas
as mulheres vivendo sob o seu tecto imploraram-lhe que as
matasse para lhes poupar cairem nas mos dos muulmanos. Ganda Singh
267
colocou-se por detrs de um cepo 'mprovisado, tapou os olhos, empunhou o sabre e
decapitou-as todas sucessivamente. Quando os muulmanos acabaram por arrombar a su
a porta, apenas o encontraram vivo a ele. Ataram-no a uma rvore e cortaram-no em
bocados.
Nem todos os slkhs e hindus que foram expulsos das suas casas eram ricos. O jove
m Guldap Singli, com catorze anos, era filho de um modesto rendeiro pertencente
a uma comunidade de uma cinquentena de sikhs e de hindus isolados no meio de sei
scentos muulmanos de uma aldeia prxima de Lahore. Vivia com os pais em duas
divises
de barro amassado, tendo como fortuna dois bfalos e uma vaca. Um dia, os
muulmano
s cercaram o bairro aos gritos de @dexai o Paquisto, seno matamo-vos!". Todos os
ha
bitantes fugiram de casa e correram refugiar-se em casa do sikh mais importante
da aldeia. <,Os muulmanos chegaram com sabres, facas, compridos chuos de ferro
com
as pontas envolvidas por panos embebidos de gasolina, recorda Guidap Singh, Bom
bardemo-los com tijolos e pedras, mas conseguiram pr fogo casa. Conseguiram
agarra
r um sikh e puseram fogo sua barba. Enquanto a barba ardia como uma tocha, vi-o
lanar um tijolo cabea de um muulmano. Depois cau nas chamas gritando o nome
do Guru
Nanak. Muulmanos conseguiram penetrar na
casa e apoderar-se de alguns homens que arrastaram para fora para os acabar com
podeadas ou machadas. Precipitei-me para o terrao onde as mulheres se tinham refu
giado. Algumas tinham bebs nos braos. Acende-
ram uma grande fogueira, e chorando deram de mamar aos filhos. Depois, ltima
gota
de leite, depuseram-nos no braseiro antes de por sua vez se atirarem s chamas. E
ra um espectculo insuportvel. "
O jovem saltou do terrao e aproveitou-se da confuso e da noite que caa para
subir a
uma rvore. Ficou a escondido durante as seis horas seguintes."
O odor da carne grelhada chegava at mim, recorda. Eu sabia que o
meu pai e a minha me nunca sairiam da casa: estavam mortos. A minha me atirara-se
ao fogo. Vi muulmanos levarem duas garotas. Elas no choravam: deviam estar
desmaia
das. Pela noite adiante, quando a calma voltou, desci da minha rvore e deslizei p
ara o interior. Toda a gente estava morta. Excepto as duas garotas e eu todos os
sikhs e hindus tinham perecido.
Guldap Singh errou toda a noite no carneiro, incapaz mesmo de chorar. Ao amanhec
er, tentou identificar os restos carbonizados dos seus pais. No conseguiu. Encont
rou no cho uma faca coberta de sangue e serviu-se dela para cortar os cabelos a f
im de poder fazer-se passar muulmano. Depois fugiu.
Durante estes dias de apocalipse, o horror foi o feito de todos e mediu-se com u
ma igualdade quase bblica, olho por olho, violao por violao, assassnio por
assassnio. O
nico trao que diferenciava Mohammed Yacub do jovem slkh era a religio. Moliamed
ti
nha tambm catorze anos e, como Guldap Sirigh adorava jogar bilhar. Entregava-se a
o seu jogo
268
favorito, diante da casa de barro amassado que habitava com os pais e seis irmos
e irms numa aldeia situada prximo de Amrltsar, na india, quando um jattha
irrompeu
. Conseguiu fugir e esconder-se num campo de cana de acar. "Os sikbs cortaram os
s
eios de vrias mulheres, conta. Camponeses desorientados degolaram ento as
mulheres
e as filhas para que no cassem nas suas mos. Vi sikhs trespassar com lanas
dois dos
meus irmos mais novos. Louco de dor, o meu pai comeou a correr em todos os
sentid
os. Os sikhs no conseguiam agarr-lo. Acabaram por lanar atrs dele os ces da
aldeia. M
ordido nos tornozelos, o meu pai teve de diminuir a sua comda e os sikhs puderam
apoderar-se dele. Ataram-no. Depois atiraram-no ao cho e cortaram-no aos bocados
com sabres. A cabea, as mos, os braos, as pernas foram separadas do corpo. Os
sikh
s abandonaram ento aos ces os restos do meu pai>,.
Apenas cinquenta dos quinhentos muulmanos da aldeia escaparam ao massacre, salvos
pela interveno de uma patrulha da Fora de Interveno do Panjab. nico
sobrevivente da s
ua famlia, Mohammede foi "levado por soldados Gurkhas do exrcito indiano para uma
terra desconhecida mas onde ele estaria em segurana porque pertencia, afirmavam o
s seus dirigentes, aos muulmanos".
A recordao destas terrveis concluses deixaram cicatrizes indelveis no corao
de milhes
pessoas. Raras seriam as famlias do Panjab que no teriam perdido um ser querido
n
esta carnagem insensata. A feliz provncia no ia ser mais durante anos, seno uma
reu
nio dolorosa de memorias traumatizadas, cada uma povoada de atrocidades mais desp
edaadoras umas que as outras, histrias terrveis de um povo repentinamente
desenraiz
ado, arrancado terra a que estava ligado h geraes, lanado no terror pelos
caminhos d
o xodo.
Uma paixo particular ligava o campons sikh Sant Srigh aos campos de que fora
expuls
o. Tinha-os, em certo sentido, pago com o seu sangue derramado pela Inglaterra n
a praia de Gallipoli, durante a primeira guerra mundial. Foram-lhe precisos 16 a
nos para desbravar e plantar os cinquenta hectares da parecela ri.' 1O5115 que l
he fora atribuda, bem como a milhares de outros combatentes slkhs, a sudoeste de
Lahore, numa zona valorizada pela instalao de uma rede de canais de irrigao.
Instala
ra a esposa na tenda onde vivera mais de dez anos, criara os filhos na sua terra
, construra as cinco divises da sua casa de tijolos secos que era ao mesmo tempo
o
seu orgulho e o testemunho do seu xito. Dois dias antes da independncia, um dos
s
eus trabalhadores muulmanos trouxe-lhe um panfleto que circulava secretamente no
sector. "Os slkhs e os hindus no pertenCem a esta terra. Devem ser expulsos", est
ava escrito. O ataque ocorreu trs dias depois. Sant Singh e os duzentos sikhs da
sua aldeia resolveram fugir. Com cinco outros aldeos comandados por um venervel
ex
-sargento de 8O anos, foi encarregado de escoltar as mulheres da aldeia. Antes d
e se pr a caminho, foi recolher-se em orao no guru-dwara, o templo que ajudara a
co
nstruir. "Cheguei aqui com as mos vazias, mur-
269
murou. Parto com as mos vazias. Guru Nanak, apenas peo a tua proteco ".
A proteco do guru pareceu cessar no limite de um casal de nome Birwalla onde o
cam
ion de Sant Sirigh avariou por falta de gasolina. "Esta- v escuro, conta. Tnhamos
caminhado ao longo do caminho de ferro e no pela estrada a fim de no sermos
apanha
dos pelos muulmanos. Tinham-nos prevenido de que eles tinham levantado uma enorme
barricada e que matavam todos os hindus e os sikhs que encontrassem. Ouviamo-lo
s a gritar e a chamar na noite, porque a aldeia apenas se encontrava a algumas c
entenas de metros. De repente, vimos um velho que se escapava sem barulho na obs
curidade. Tinhamos a certeza de que ele ia advertir os seus concdados e que
depres
sa nos viriam atacar. Ouvimos vozes que se aproximavam cada vez mais. Estavamos
aterrorizados. O velho sargento deu-nos ento uma ordem: devamos matar as nossas
mu
lheres. No podamos fazer-lhes correr o risco de serem raptadas e violadas.
Fizemo-
las descer do camion e sentar no cho, alinhadas em trs filas. Tapmos-lhes os
olhos.
Um beb de dois meses a mamava. Ordenmos-lhes que recitassem incessantemente a
orao
sikh "Deus Verdade". A minha esposa encon-
trava-se no meio da primeira fila. As nossas duas filhas tambm l estavam, do
mesmo
modo que a minha nora e as nossas duas netas. Tentei no olhar. Tinha uma espinga
rda de caa de dois canos e os outros tinham espingardas de guerra 3O3, dois
revlve
res e uma metralhadora Sten. Entoei um versculo do quinto livro do livro santo do
guru Nanak. Dizia: "Tudo a vontade de Deus e, se a tua hora chegou, deves morre
r". Depois peguei num leno branco e preveni os meus companheiros de que o baixari
a trs vezes. terceira vez, todos faramos fogo. Baixei o leno uma primeira vez
e gri
tei: @<Ek!" - "Um! "Baixei-o uma segunda vez e gritei: "Do!" -"
Dois!" Intimamente no deixava de repetir: "Meu Deus, no me abandoneis." a baixar
o
meu leno pela terceira vez quando vi faris na noite. Compreendi que Deus escutara
a minha orao e pedi aos meus companheiros para deporem as armas porque amos
poder p
edir socorro. " E se o carro est cheio de muulmanos?" Inquietou-se o velho
sargent
o. Era de facto um camion do exrcito paquistans com soldados muulmanos, mas o
ofici
al era um bravo homem. Disse-nos que ia escoltar-nos. Beijmos-lhe os ps e
seguimo-
lo.
Eram quase cem mil. H cinco longas horas esperam-no, submergindo a praa de
Narikel
danga de Calcut, nas beiras dos telhados, das varandas, suspensos das sacadas, ag
arrados como cachos de frutos aos ramos das rvores. A trs mil quilmetros das
plancie
s do Panjab onde se matavam as duas comunidades, esta multido de Hindus e de
Muulm
anos misturados espreitava a chegada do pequeno homem que conseguira, apenas pel
o magnetismo da sua presena, deter a violncia da cidade que pas-
27O
sava pela mais brutal do mundo. Quando a frgil silhueta de Gandhi apareceu na peq
uena plataforma, uma corrente mstica pareceu galvanizar a assistncia. "Agora que
a
onda da boa vontade desce de novo sobre Calcut, declarou o Mahatma, preciso que
cada um contribua para fazer durar esta amizade reencontrada." E Gandhi fustigou
aqueles que criam ter dado prova de patriotismo atacando na antevspera a vivenda
do administrador francs da vizinha caixa de Chandemagor "A Frana um grande
povo a
mante da liberdade, ex-
clamou, e a ndia deve proteger as suas possesses nela existentes."
Contemplando a multido vibrante de alegria e entusiasmo que o ouvia, o velho prof
eta foi de repente assaltado pela dvida. Era demsiado belo para ser verdadeiro.
Qu
e milagre de Calcut no seja apenas uma
efervescncia passageira!" Implorou.
O que um homem sozinho sem armas realizava em Calcut, cinquenta e cinco mil solda
dos no conseguiam realiz-lo no Panjab. A poderosa fora especial de interveno
formada
por Mountbatten estava ultrapassada pelos acontecimentos. Nada era menos surpree
ndente. Doze distritos estavam a fogo e sangue. Alguns cobriam uma superfcie maio
r que a Palestina onde mais de cem mil soldados britnicos tambm no bastavam,
nesse
Outono, para manter a segurana. As vias terrestres e os diques que cortavam a reg
io eram dificilmente praticveis para os veculos pesados. S as unidades de
cavalaria
teriam podido oferecer a mobilidade desejada, mas a cavalaria j no existia neste
e
xrcito, em que o cavalo durante muito tempo fizera a sua glria.
O desabamento total das estruturas administrativas do pas complicava singularment
e as operaes de manuteno da ordem. O telgrafo, os correios, o telefone, j no
funcionava
m. A falta de instalaes mais con-
venientes, os indianos eram obrigados a governar a sua metade do Panjab a partir
de uma modesta casa particular equipada com uma nica linha telefnica e com um
pos
to de rdio instalado nos sanitrios.
A situao do lado paquistans revelava-se ainda mais trgica. O novo
estado estava beira do caos. Se Jinnah tinha encontrado o jogo de bolas que falt
ava no inventrio do seu palcio, no tinha recuperado grande coi-
sa mais. Roubados, perdidos ou desviados, centenas de vagons contendo a
parte da herana pertencente ao Paquisto tinham desaparecido. falta de cadeiras
e d
e mesas, os funcionrios de Karachi tinham de dactilografar no passeio os primeiro
s documentos da maior nao muulmana do Mundo. No podendo oferecer-lhes sofs nem
canaps,
ministros recebiam de p os primeiros embaixadores que chegavam dos quatro cantos
da terra.
Separadas uma da outra por mais de dois mil quilmetros de territrio indiano, as
du
as metades do Paquisto no estavam unidas por nenhum
271
meio de comunicao. A economia nacional estava em plena anarquia. Os entrepostos
pa
quistaneses estavam a abarrotar de algodo, de juta, de peles, mas no havia
atelier
s, nem fbricas de curtumes susceptveis de as tratar. O pas produzia um quarto de
ta
baco da pennsula mas no possua manufactura de fsforos. Subitamente privados dos
seus
quadros e dos seus empregados hindus, o comrcio e todo o sistema bancrio estavam
atingidos de paralisia. Foi preciso importar a preo de ouro carvo da frica do
Sul p
ara fazer andar as centrais elctricas, recusando-se a ndia a vend-lo ao seu
vizinho
.
Mas foi no envio do que lhe pertencia do antigo Exrcito das ndias que o Paquisto
en
controu na ndia uma m vontade que se parecia a um acto deliberado de sabotar a
sua
sobrevivncia. Das cento e setenta mil toneladas de equipamento e de material que
lhe eram devidas, o Paquisto apenas recebeu seis mil. Tinham sido previstos trez
entos comboios especiais para fazer esta gigantesca mudana de casa. Chegaram apen
as trs. Os oficiais paquistaneses encontraram neles cinco mil pares de botas, cin
co mil espingardas inutilizveis, um lote de batas de enfermeiras e caixas cheias
de tijolos e de ... preservativos.
Estas atitudes suscitaram nos muulmanos um vivo rancor, e a convico profunda de
que
a ndia procurava estrangular o seu pas ainda no bero. O antigo comandante em
chefe
dos Exrcitos das ndias partilhava do seu receio. O marechal Sir Claude
Auchinleck
, que fora encarregado de supervisar a partilha, escrevia, no fim de Agosto, ao
governo britnico: <,no hesito em afirmar que o actual governo indiano est
implacave
lmente determinado a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para impedir o alar
gamento do domnio do Paquisto.
No eram todavia as sombrias maquinaes da ndia que mais pesavam sobre o futuro
do Paq
uisto. O novo Estado estava a pontos de ser absorvido, como o seu vizinho indiano
, pela maior migrao de todos os tempos. De um canto ao outro do Panjab, um povo
at
errorizado pelo orago da violncia fugiu a p, em tanga, em charabs, de comboio,
de bi
cicleta, levando o que podia, uma vaca, um chorpoi, um saco de trigo, uma trouxa
, alguns utenslios. A interminvel onda ia provocar uma troca de populaes de uma
ampl
itude inegualvel. Nos fins de Setembro, quando se tornaria um verdaeiro maremoto,
mais de cinco milhes de fugitivos encontrar-se-iam iludidos nas estradas e nos c
aminhos do Panjab. Mais de dez milhes de pessoas - que formariam uma cadeia indo
de Calcut a Nova York - mudariam de domiclio em menos de trs meses.
Este xodo sem precedentes faria dez vezes mais refugiados que a criao do Estado
de
Israel no mdio Oriente e quatro vezes mais "pessoas desalojadas" que a segunda gu
erra mundial.
Para os muulmanos da pequena cidade de Karnal, ao norte de Nova
272
Deli, a partida foi dada pelo guarda campestre tamborilando de uma rua outra e a
nunciando que "para a salvaguarda da populao muulmana, chegaram comboios para a
tra
nsportar ao Paquisto". Vinte mil habitantes abandonaram imediatamente as suas cas
as para se dirigirem gare.
Um outro guarda campestre informou os dois mil muulmanos de Kasauli que tinham vi
nte e quatro horas para deixar a cidade. Reunidos no dia seguinte ao alvorecer n
o campo de manobras, viram-se despojados de todos os seus bens excepo de um
cobert
or por pessoa.
Madarilal Pahwa, o antigo marinheiro hindu que se refugiara na casa da tia pensa
ndo " somos como carneiros que conduzem ao sacrifcio", partiu num autocarro perte
ncente ao primo. Tinham amontoado a os mveis, a loua, os fatos, a roupa branca,
o c
ofre encerrando as economias e as jias, as recordaes e os retratos de famlia,
as ima
gens de Civa. Mas o pai de Madarilal recusou-se a subir. O seu astrlogo afirmara-
lhe que vinte de agosto no era um dia favorvel viagem. Mesmo a ameaa de um
ataque i
minente dos muulmanos no o abalaria. Como bom hindu respeitador das leis
celestes,
apenas iria embora quando os astros o recomendassem: em 23 de agosto s 9 h e 3O
m. da manh.
Foi um pesadelo que decidiu o empreiteiro de curtumes hindu Jee Chaudri a fugir.
Sonhou que se encontrava na gare onde milhares de pessoas tomavam de assalto to
dos os vagons do comboio em que desesperadamente tentava subir. Acordou a suar q
uando o comboio do seu sonho partiu sem ele. Levantou-se imediatamente, ps alguma
s coisas no saco, correu at gare e meteu-se no primeiro comboio com destino
ndia.
Ningum escapou maldio do xodo. Os tuberculosos muulmanos do sanatrio de
l(asauli foram
expulsos pelos mdicos hindus que os tratavam. Alguns apenas tinham um pulmo;
outr
os acabavam de deixar a mesa de operaes. Todos foram conduzidos at ao porto do
estab
elecimento com ordem de atingir a p a sua nova ptria. Os vinte e cinco Sadhu de
As
hram de Baba Leal, do lado paquistans, foram expulsos dos edifcios onde tinham
con
sagrado a sua vida orao, meditao, ao yoga, e ao estudo das escrituras
vdicas. Envolvi
dos na sua toga cr de laranja, com o seu santo padroeiro Swan---ii Sundar frente
no cavalo branco do Ashram a que se atribuiam milagres, puseram-se a caminho can
tando mantras enquanto muulmanos incendiavam ]' os lugares que eles acabavam de
ab
andonar.
A preocupao principal no momento da partida era salvar alguns bens de valor. B.
R.
Abalkha, um prspero comerciante hindu de Montgomeri escondeu quarenta mil rupias
num cinto que enrolou sua volta "para comprar os muulmanos ao longo do caminho
a
fim de que no nos matem". Eram numerosos os que tinham convertido as suas econom
ias em joias, sobretudo entre os hindus ricos. Um quinteiro dos arredores de Lah
ore embrulhou cuidadosamente as da mulher e o seu ouro em pequenos pacotes que a
tirou para o fundo do poo, prometendo a si mesmo voltar um dia a recuper-las.
Mati
Das, um comerciante de sementes hindu de
273
Rawalpindi, fechou o fruto de toda uma vida de esforos, trinta mil rupias e quare
nta "tola" de ouro numa caixa. Para ter a certeza de no a perder, atou-a ao pulso
por uma cadeia. V precauo. Alguns dias mais tarde, um muulmano adquiri-la-la
da man
eira mais simples: cortando-lhe o pulso.
O que Renu Brariblai, a esposa de um campons hindu do distrito de Mianwalli, poss
ua de mais precioso era intransportvel: a sua vaca. Dedicava-lhe uma venerao
especia
l. Convencida de que "os muulmanos am mat-la para a comer", decidiu dar-lhe a
liber
dade. Depois, impressionada com o ar infeliz do animal, pegou em p de sinbrio e
fe
z-lhe na testa um tilak para a proteger e lhe dar sorte. Alia Hyder, uma rica jo
vem muulmana de Lucknow, conseguiu fugir de avio com a me e a irm. Partiam para
semp
re mas apenas tinham direito, como simples turistas, a 2O kg de bagagens. Nunca
esqueceria a manh que passaram na cozinha a seleccionar pelo peso os objectos que
lhes eram mais queridos. A irm escolheu o sari vermelho entrelaado de fios de
our
o do seu casamento, a me escolheu o tapete de orao de veludo azul, e ela
decidiu-se
por um exemplar do Alciro cobertura de madeira de rosa estava incrustada com uma
guirlanda de prolas.
Uma preocupao inversa animou o grande proprietrio agrrio de Mianwallah, Baldev
Rai,
e os cinco irmos. Persuadidos de que iam ser despojados na fuga, levaram o
contedo
do cofre forte familiar para o terrao da casa. Os muulmanos iam talvez ocupar-
lhe
s as terras, pensava Baldev Rai, mas "nunca o nosso dinheiro cairia nas mos desse
s mandries". Fez um monte com os maos de rupias acumuladas em toda uma vida de
lab
or e de poupana, depois, desatando aos soluos, lanou-lhes fogo.
Alguns foram-se embora bastante decididos a voltar. Ahined Abbas, jornalista muul
mano originrio de Panipal, uma cidade histrica ao norte de Nova Dell, sempre fora
hostil ideia do Paquisto. No foi para a terra prometida de Jinnah que partiu,
mas
para a capital indiana. Ao partir, a me atou um cartaz porta da casa. "Esta casa
pertence famlia Abbas, que decidiu no ir para o Paquisto, dizia ela. Esta
famlia vai
apenas passar alguns dias a Nova Dell e regressar em breve".
Para Vickie Noon, a encantadora esposa inglesa de Sir Feroz Khan Noon, um import
ante paquistans de Lahore, o xodo comeou com a chegada de um mensageiro porta
da su
a vivenda de frias de Kulu, junto do Ilimalaia. "Vo atacar a vossa casa esta
tarde
", anunciou-lhe. Povoada por uma maioria de hindus, a regio ficava doravante em t
erritrio indiano. A jovem possua para se defender as duas espingardas de caa e o
re
vlver do marido. Confiou as espingardas a dois dos seus mais fiis servi- dores e
f
icou com o revlver, embora nunca se tivesse servido de uma arma de fogo.
Quando a noite chegou, viu chamas no vale. Eram as casas de outros muulmanos que
ardiam j. Cerca das onze horas da noite, uma violenta
274
chuvada encharcou os incndios e o fervor dos assaltantes. A linda Viccie Noon
esta
va salva por esta noite. No dia seguinte ao alvorecer, conseguiu refugiar-se no
palcio do seu velho amigo o Raja de Mandi. A sua trgua devia ser de curta
durao. Uma
aventura picaresca comeava para a jovem inglesa de pele branca e olhos azuis.
No medo, no desgosto, no dio, no rancor, no pnico da precipitao ou na ordem de
uma p
artida meticulosamente preparada, puseram-se em marcha. Aos milhares. s centenas
de milhares. Aos milhes. A chegada destes formigueiros humanos provocou trgicos
pr
oblemas aos dois Estados que lutavam j pela sua sobrevivncia, colocando-os na
obri
gao de os acolher, com o espectro da fome e de epidemias gigantescas perante
eles.
Estes milhes de refugiados espalhavam sua passagem o vrus da grande histeria
que
varria o Panjab. As narraes de atrocidades mantinham o ciclo infemal e lanavam
nas
estradas novas colunas de misria. Esta migrao demencial ia alterar para sempre o
ro
sto e o carcter desta terra carregada de histria. No se encontraria mais um
nico muul
mano em numerosos altos lugares em que o gnio dos mongis tinha enfeitado a ndia
de
tantas maravilhadas.
Dos trezentos mil sikhs e hindus que tinham habitado Lahore, apenas restava um m
ilhar. No fim do ms de Agosto, enquanto a violncia aumentava, um desconhecido
real
izou antes de fugir um gesto que constitua o epitfio do sonho perdido da cidade
da
s Mil e Uma Noites, uma reflexo amarga sobre o que podia significar a
Independncia
para tantos Panjabis. Uma mo annima deps no corao da cidade uma coroa de
flores ao p
da esttua da imperatriz Victria.
Desta vez, eram quinhentos mil a esper-lo. O "milagre de Calcut" persistia.
Quinhe
ntos mil hindus e muulmanos misturados num oceano fratemal cobriam a imensa espla
nada do parque Maidan de Calcut cujas relvas tinham sido outrora domnio exclusivo
dos Ponis de polo e dos jogos de cricket dos senhores britnicos. O prprio
Gandhi, n
o enlevo da sua alma caridosa nunca imaginara semelhante espectculo. Este dia de
Agosto era o da grande festa muulmana chamada ld-ud-Fitr, marcando o fim do jejum
do Ramado, e multides de uma amplitude sem precedentes tinham acomdo sua
reunio de
orao.
Desde o amanhecer, milhares de hindus e de muulmanos tinham desfilado debaixo das
janelas da casa em runas onde residia o velho lder, vindo procurar a sua beno,
traz
endo-lhe flores e guloseimas. Como era segunda feira, o seu dia de silncio, Gandh
i passou uma grande parte do dia a rabiscar em inteno dos seus visitantes
mensagen
s de votos e de gratido nas costas de envelopes usados que lhe serviam de papel d
e carta. Durante certo tempo, outros hindus e outros muulmanos desfilavam juntos
atravs das ruas onde um ano antes se tinham massacrado mutuamen-
275
te. Cantavam slogans de unidade e de fraternidade, trocavam cigarros, bolos, bom
bons, molhavam-se com gua de rosas. Quando Gandhi atingiu a pequena tribuna edifi
cada em sua inteno, um louco entusiasmo excitou a assistncia. s 19 horas
exactas, vi
sivelmente perturbado por esta fabulosa manifestao de amor, levantou-se e
ofereceu
multido a saudao com as mos juntas segundo a tradio indiana. Depois o
velho chefe hin
du quebrou o seu voto de silncio para se associar em urdu festa dos muulmanos:
"Id
Mubarak!" - "Feliz Id!"
Para centenas de milhares de Panjabis, o primeiro reflexo de sobrevivncia no cata
clismo que abalava a sua provncia, foi precipitarem-se para os edifcios de tijolo
e de ardsia pintados que ofereciam em cada aglomerao de alguma importncia um
smbolo c
almante de ordem e de organizao - as gares de caminho de ferro. Os nomes dos
combo
ios que, durante geraes, tinham passado perante os seus cais de beto faziam
parte d
a legenda indiana e ilustravam uma das realizaes mais prestigiosas da Inglaterra
n
as ndias. O Frontier Mail, o Calcut-Peshawar express, o Bombay Madras tinham,
como
o Orient-Express, o Transiberiano e o Union Pacific americano, unificado um con
tinente, espalhando ao longo das suas vias os benefcios da tecnologia e do progre
sso.
Neste fim de Vero de 1947, estes comboios representavam para as
multides aterrorizadas a mais slida esperana de fugir ao pesadelo. Para dezenas
de
milhares de pessoas, iam tornar-se caixes rolantes. Durante estes terrveis dias,
a
apario de uma locomotiva desencadeava o mesmo frenesim em todas as gares do
Panja
b. Como a proa de um navio cortando as ondas, as mquinas abriram uma passagem no
meio das multides, despedaando os infelizes que caam nos carris. Todos tinham
esper
ado durante dias, muitas vezes sem gua nem comida, sob o sol implacvel de um
vero a
que a mono se recusava pr fim. Num concerto de gritos e
de choros, a multido atirava-se s portinholas e s janelas dos vagons. Cachos
humano
s agarravam-se s paredes, s balaustradas, aos puxadores, aos estribos, aos
tampons
. Quando j no restava mais nada para deitar a mo, as pessoas subiam para os
tectos
arredondados das carruagens edificando sobre o metal escaldante alucinantes pirmi
des de corpos, de pacotes, de embrulhos, que a abbada do primeiro tnel poderia
tra
nsformar numa horrvel massa.
O professor hindu Nihal Bhranbi, a mulher e seis filhos conseguiram subir para u
m vago, mas a sua viagem para a esperana parou a. Depois de ter esperado durante
se
is horas que o comboio deixasse a gare da pequena cidade paquistanesa onde h vint
e anos ensinava, o hindu e a sua famlia ouviram finalmente um apito. Mas este sin
al anunciava apenas a partida da locomotiva. Enquanto ela desaparecia no fundo d
a via, um bando de muulmanos brandindo matracas, lanas e machados, caa sobre
276
a gare. Gritando "Allah Akbar!" - "Deus grande!" atiraram-se ao comboio, massacr
ando passagem todos os hindus que esperavam no cais. Irrompendo nos vagons, os a
ssassinos lanaram os viajantes para o cais, onde os seus cmplices os degolavam.
Al
guns hindus tentaram fugir mas outros muulmanos com camisas verdes perseguiram-no
s e depressa os apanharam, atirando em seguida mortos ou moribundos para o fundo
de um poo diante da gare. A esposa do professor ouviu o chefe encorajar os assas
sinos ao grito de: "Quanto mais hindus matardes, maior certeza tereis de ir para
o paraso".
A jovem, o marido e os seis filhos apertavam-se uns contra os outros
no seu compartimento quando muulmanos arrombaram a portinhola e
atiraram para o monte. <@O meu marido foi atingido assim como o nosso nico filho,
recorda a Senhora Blirandi, O meu filho comeou a gemer: "gua, gua". No tinha
sequer
uma gota para lhe dar. Pedi socorro. Os gemidos do meu filho espaaram-se suaveme
nte e fechou os olhos. O meu marido no dizia nada. Coma-lhe um fio de sangue da c
abea. De repente, a sua pema teve especie de convulso, depois os membros
esticaram
. Atirei-me sobre os dois corpos para tentar reanim-los sacudindo-os. Mas j no
mexi
am. As minhas filhas agarravam-se ao meu sari. Muulmanos agarram-nos e empurraram
-nos para o cais. Levaram as minhas trs filhas mais velhas. Vi-os bater na cabea
d
a mais velha. Ela estendeu as mos para mim e gritou: "Mam, mam!" Mas eu no
podia faz
er nada."
Um pouco mais tarde, muulmanos vieram buscar o meu marido e o meu filho, sem
dvida
para precipitar os seus corpos no fundo de um poo. Tudo acabara para eles. Ento
f
iquei louca e comecei a gritar. Tinha a
impresso de que j nada importava, nem mesmo os dois filhos que me
restavam. Estava como morta."
Apenas uma centena dos dois mil viajantes deste comboio deviam so-
breviver tragdia e atingir a outra extremidade do Panjab.
O pai de Madarilal Pahwa, aquele hindu que no quisera fugir antes da data conside
rada propcia pelo seu astrlogo, descobriu num destes comboios malditos que a
astro
logia no era uma cincia exacta. A vinte quilmetros da fronteira indiana, um
bando d
e muulmanos subiu ao es-
tribo do seu vagon, precipitou-se no compartimento vizinho ocupado por mulheres
e arrancou-lhes aneis e braceletes, cortando-lhes os dedos, punhos ou tornozelos
quando as jias no caam depressa. Alguns fizeram depois passar as mais jovens
pela
janela e saltaram atrs delas. Outros muulmanos atiraram-se ao compartimento do
pai
de Madanial Pahwa. Com um golpe de sabre, um deles decapitou a mulher sentada e
m frente dele. Durante um instante, a cabea, ainda ligada ao pescoo por alguns
mus
culos, pendeu sobre o peito como a de uma boneca partida enquanto,
nos seus joelhos, o seu beb lhe sorria chilreando. O viajante sentiu ento
punhalad
as a atravess-lo. Rolou no cho e ficou quase imediatamente coberto pelos corpos
do
s seus companheiros de infortnio. Antes de desmaiar, teve uma curiosa sensao: um
la
rpio arrancava-lhe os sapatos.
277
Quando a primeira rajada de balas atingiu o seu comboio na gare de Gujrat, o com
erciante de sementes sikh Prem Sirigh pensou: "Os muulmanos vo fazer-nos pagar
trs
sculos de escravatura. Vo exterminar-nos". Num compartimento vizinho, aos
primeiro
s tiros, o fazendeiro Dhani Ram estendeu no cho a esposa e os quatro filhos, depo
is deitou-se sobre eles. Quase imediatamente cairam-lhes feridos em cima. Sentin
do sangue correr, o hindu teve um reflexo que ia salvar a sua famlia: sujou o
rosto com ele, bem como o da mulher e dos filhos a fim de que passassem todos po
r mortos.
Enquanto se acelerava o ritmo do xodo nas duas direces, estes comboios de
misria tor
naram-se, de cada lado da fronteira, o alvo preferido dos assassinos. Foram atac
ados nas gares, detidos por emboscadas em pleno campo. Foram desmontadas vias frr
eas para os fazer descarrilar perante bandos de assaltantes que se atiravam carn
ia. Comboios foram imobilizados por cmplices que accionavam a campainha de
alarme.
Outros foram parados por mecnicos que tinham sido subornados ou amea-
ados de serem mortos. Na ndia, hindus e sikhs revistaram comboios inteiros de ref
ugiados e massacraram todos os machos circuncisados. No Paquisto, muulmanos
degola
ram todos os homens que o no eram.
A meticulosa organizao que fazia o orgulho dos caminhos de ferro indianos foi
comp
letamente desfeita. j no havia horrios. Poucos ma-
quinistas hindus aceitavam conduzir um comboio para o Paquisto, e reciprocamente.
Por vezes, durante quatro ou cinco dias de seguida, todos os
comboios que chegavam a Lahore ou a Amritsar apenas traziam um carre-
gamento de cadveres e de moribundos.
Ashwini Dubey, o maior indiano que tinha ficado louco de alegria, no
dia da Independncia, por ver a bandeira do seu pas flutuar na messe
onde se sentira humilhado pelos seus superiores britnicos, descobriu em
Lahore o preo desta liberdade quando um comboio entrou na gare, cheio de mortos e
de feridos. De cada portinhola escomam rios de sangue, "co-
mo a gua transbordando do radiador de um automvel num dia de grande calor".
Por toda a parte, neste Panjab que se teria crido maldito os sikhs mostraram uma
real loucura de exterminao, manchando a imagem de um
grande povo com ondas de sangue. Depois de terem atacado um comboio em Arriritsa
r, enviaram falsos socomstas percorrer os vagons e acabar com os sobreviventes.
Margaret Bourke-White, a fotgrafa americana da revista Life, travou conhecimento
com alguns destes slkhs, "verierveis
com as suas longas barbas e turbantes azuis da seita Akal, acocorados ao
longo do cais. Com um sabre recurvado pousado nas pernas, esperavam tranquilamen
te o comboio seguinte".
A bordo de certos comboios foram colocados pequenos destacamentos armados, mas o
s soldados evitavam geralmente atirar sobre os assaltantes que pertenciam sua co
munidade. A presena de alguns oficiais bri-
tanicos a cabea destas escoltas realizou por vezes verdadeiros prodgios
278
Intrigado pelo abrandarnento inslito do seu comboio a uma centena de quilmetros
da
fronteira do Paquisto, o ferrovirio muulmano Ahed Zahur deslizou at
locomotiva. Sur
preendeu dois sikhs que entregavam um mao de rupias ao maquinista hindu ao fim de
que parasse o comboio na gare de Amritsar. Aterrorizado, o ferrovirio correu rev
elar o que se conspirava ao tenente britnico que comandava a escolta. Saltando de
um vagon para o outro pelos tejadilhos com num westem, o jovem oficial correu a
t locomotiva. De revlver em punho, deu ordem para acelerar. Em vez de obedecer,
o
maquinista quis accionar os traves. O Ingls deu-lhe uma pancada com a coronha,
ato
u-o como um salsicho e apoderou-se dos comandos da locomotiva. Alguns minutos mai
s tarde, num apito estridente e com um Ingls negro de fuligem como maquinista, no
comboio de Zahur e de trs mil viajantes muulmanos atravessou a toda a velocidade
a gare de Amritsar nas barbas dos sikhs que se preparavam para a os massacrarem.
Chegados sos e salvos ao Paquisto, reconhecidos, os muulmanos, que escaparam
pusera
m uma guirlanda ao pescoo do seu benfeitor britnico. No era feita de flores de
jasm
im e de cravos da ndia, mas de notas de banco.
O pesadelo existia por todo o lado. O comboio que conduzia de SimIs para Nova De
li as centenas de criados da comitiva do antigo vice-rei foi detido ao sinal de
um petardo. 51khs lanaram-se ao assalto dos vagons. Os criados hindus tintaram-se
a eles para se lanarem sobre os camaradas Muulmanos com os quais tinham servido o
imprio. No seu compartimento, Sarah Ismay e o seu noivo, o capito aviador Werity
B
eaumont um dos ajudantes de campo de Lord Mountbatten, pegaram cada um, um revlve
r. Dissimulado sob uma pilha de malas, encontrava-se com eles o criado de quarto
muulmano, Abdul Hamid. Dois hindus apareceram portinhola e pediram-lhes
cortsment
e autorizao para levar o muulmano que os acompanhava.
- Um passo mais e sois mortos, responderam em coro os dois jovens ingleses apont
ando para os intrusos as suas Smith e Wesson.
Nesse dia, Abdul Hamid foi o nico muulmano que chegou vivo a Nova Deli.
A odisseia destes @<comboios da morte" a constituir o captulo mais negro da lenda
maldita do Panjab. O americano Richard Fischer, representante dos tractores Cate
rpillar, seria atormentado toda a vida pela cena de que foi testemunho da janela
do seu compartimento, apanhado numa emboscada entre Quetta e Labore. Muulmanos t
inham-se atirado ao comboio e lanavam todos os viajantes sikhs para os carris ond
e cmplices os matracavam at morte com curiosas canas de extremidades em forma
de c
rescente. Treze slkhs pereceram assim aos olhos do americano horrorizado. Acabad
a a sua tarefa, os Muulmanos brandiram com orgulho os seus instrumentos de morte.
Fischer pde ento identific-los. Eram sticks de hquei.
O Americano no chegara ao fim das suas surpresas. Esperava-o um
279
espectculo surpreendente chegada gare de Lahore. Para alm dos ca-
dveres que juncavam o cais, o seu olhar foi atrado por um cartaz. Recordao dos
dias
felizes em que a provncia dos cinco rios era um modelo de ordem e de prosperidade
, indicava: <,est disposio dos senhores viajantes um cademo de reclamaes no
gabinete
do chefe de gare. Todas as pessoas que desejem fazer uma reclamao a propsito dos
se
rvios oferecidos pelos Caminhos de Ferro, convidada a utilizar este registo."
Desta vez, eram quase um milho. Dia aps dia, durante estas duas semanas trgicas
em
que o Panjab soobrava na loucura, a grandeza das multides que assistiam reunio
de o
rao de Ganelhi tinha aumentado, transformando a metrpole que mais de uma vez se
mos
trara selvagem num osis de amor e de fraternidade. As massas humanas mais pobr gl
obo tinham ouvido a mensagem do profeta da reconciliao e encc do as suas
tradies anc
estrais de tolerncia.
O "milagre de Calcut" prolongava-se. @<A cidade, escrevia o New York Times, a
mar
avilha da ndia".
Com a sua habitual humildade, Ganelhi recusou a patemidade deste prodgio. "Apenas
somos brinquedos na mo de Deus, explicou no seu jornal Harijan. Ele faz-nos
danar
ao som da sua msica". Uma carta de Nova Deli veio contudo prestar a este humilde
Csar as honras que lhe eram devidas. "No Panjab, temos uma fora especial de
cinqu
enta e cinco mil soldados, e vastas desordens entre mos, escrevia Lus Mountbatten
ao seu <@pobre monge". Em Bengala, a nossa fora de interveno tem apenas um nico
home
m, e no h desordens". Na sua dupla qualidade de chefe militar e de administrador,
o ltimo vice-rei das indias reivindicava "O direito de prestar homenagem ao nico
s
oldado do seu exrcito".
Rolavam lado a lado num carro descoberto. Trinta anos de luta comum contra a dom
inao britnica deveriam ter dado aos primeiros ministros dos dois novos Estados -
O
Paquisto e a ndia - o privilgio de desfilar triunfalmente no meio das multides
vibra
ntes dos seus compatriotas. Era pelo contrrio num mundo de horror e de misria que
Jawaharlal Nehru e Liaquat Ali Khan avanavam, um mundo de rostos silenciosos expr
imindo o medo e a angstia e no a gratido pelos benefcios que a liberdade lhes
tinha
trazido. Os dois homens percomam o Panjab pela segunda vez na busca desesperada
de uma soluo susceptvel de restaurar um pouco de ordem nesta terra de
clamidades.
Tinham perdido completamente o controlo da situao. As suas foras de polcia
tinham-se
desintegrado, a autoridade das suas administraes dissolvera-se na tormenta e nem
sequer podiam contar com a lealdade dos
28O
seus exrcitos. O Panjab era o pas do medo e da anarquia. Perante o espectculo
das i
nterminveis colunas de refugiados que se
arrastavam nos dois sentidos, das aldeias devastadas pelas chamas e pela pilhage
m, dos campos que ningum ceifara, os dois chefes de governo caram nos seus
bancos,
como que esmagados pelo peso de tantas desgraas.
Nehru acabou por romper o silncio. Que infemo esta maldita partilha nos traz! ind
ignava-se voltando-se para Liaquat Ali Khan. Como poderamos ns ter previsto tal
ca
tstrofe quando a aceitamos? Ento todos ramos irmos. Porque aconteceu tudo isso?
- Os nossos povos caram na loucura, suspirou Liaquat Ali Khan. De repente, um hom
em destacou-se de uma coluna de refugiados e
precipitou-se para o carro. Era um hindu, com um ar alucinado. Tinha reconhecido
o lder indiano. Nehru era algum importante, " um mastar de Deli, o chefe do
gover
no, algum que poderia fazer qualquer coisa". De lgrimas nos olhos, agarrando-se
s b
ordas da portinhola, o infeliz implorou Nehru para que o ajudasse. Um bando de M
uulmanos tinha, a alguns quilmetros, surgido de um campo de cana de acar e
roubado a
sua nica filha, a sua garota de dez anos. Adorava a filhinha mais do que todas a
s
coisas. "Devolvei-ma suplico-vos, devolvei-ma!" Gritava este homem louco de dor.
Impressionado por este brutal confronto com a desgraa do seu povo, Nehru enterrou
-se mais no banco com uma brusca vontade de vomitar. Era o primeiro ministro de
mais de trezentos milhes de cidados, mas era
incapaz de socorrer este pai desesperado que contava com ele para realizar um mi
lagre e lhe restituir a filha. Abatido por tristeza e impotncia, Nehru ps a
cabea n
as mos e chorou.
Nessa noite, o primeiro ministro da ndia no pode conciliar o sono.
Ainda sob o efeito de tudo o que acabava de ver, percorreu durante horas o corre
dor da casa que ocupava em Lahore. A crueza sanguinria de que o
seu povo dava provas era para ele uma revelao aterradora. Ressentia como uma
horrve
l queimadura o dio que submergia o Panjab, e nada na sua existncia o tinha
prepara
do para afrontar tal tragdia. Pareceu-lhe to odiosa que no hesitou em se
arriscar a
perder o apoio dos seus com-
patriotas para a combater.
Avisado de que os sikhs de uma aldeia prxima de Amritsar se preparavam para massa
crar os seus vizinhos Muulmanos, convocou imediatamente os seus chefes debaixo de
uma enorme figueira da ndia.
- Sei o que preparais, declarou-lhes. Se tocais num s cabelo dos vossos vizinhos
Muulmanos, far-vos-ei reunir neste mesmo lugar, amanh ao alvorecer e darei
pessoal
mente ordem aos meus guardas para vos executarem.
Cerca das duas horas da manh, Nehru foi acordar o seu ajudante de campo e pediu-l
he para entrar em contacto com Nova Deli a fim de seguir os ltimos desenvolviment
os da situao. Aps a longa ladainha das ms
281
novas, apenas recebeu uma nica informao tranquilizadora: o velho homem que ele
trara
para aceitar a Partilha continuava a realizar o seu milagre. Calcut estava calma
.
Um assobio cortou o ar: era o sinal. Seis jovens lanaram-se em perseguio aos
dois h
omens que caminhavam calmamente na rua. Gritando: "Muulmanos! Muulmarios!",
alcanar
am os passeantes e estenderam-nos por terra. Aterrorizados, estes juraram que er
am Hindus, dando nomes hindus e direces em bairros Hindus. Mas o chefe de grupo,
u
m estudante de desassete anos chamado Sunil Roy, exigia uma prova mais formal e
arrancou as abas dos seus dboti. Pde constatar que tinham efectivamente os estigm
as da f de Morn: Eram circuncisados.
Um dos jovens hindus atirou-lhes uma toalha cabea, enquanto um outro lhes atava
o
s braos. Seguidos por toda uma multido de fanticos brandindo matracas, facas e
barr
as de ferro, os dois infelizes foram empurrados aos gritos de " morte, sujos
Muulm
anos!". At crianas se juntaram ao sinistro cortejo para os ameaar com tijolos e
par
aleleppedos.
O seu caminho de cruz durou algumas centenas de metros at curva magestosa de um
r
io. "Em tempo normal, teramos achado repugnante poluir a gua sagrada com sangue
muu
lmano, devia declarar mais tarde o
chefe dos raptores. Muitos hndus cumpriam o seu Puja ao longo das margens. Mulher
es banhavam-se."
Os torcionrios fizeram contudo descer as suas vtimas at ao rio. Uma barra de
ferro
cintilou ao sol e abateu-se sobre o primeiro muulmano com um rudo de madeira
parti
da. Com o crneo rebentado, o homem cau na gua, deixando superfcie uma aurola
vermelha
. O seu companheiro debateu~se furiosamente. @<O mesmo rapaz bateu-lhe na cabea,
contaria mais tarde o chefe dos assassinos. Crianas atiraram-lhe tijolos. Um home
m apunhalou-o no pescoo para ter a certeza de que estava bem morto. "
Em redor, fiis Hindus continuavam a rezar, aparentemente indiferen-
tes ao espectculo dos dois assassinatos perpetrados a alguns metros deles. Realiz
ada a sua tarefa, Sumi Roy empurrou com um pontap os dois corpos para o largo e a
corrente arrastou-os. Elevou-se ento do grupo dos assassinos um grito repetido t
rs vezes: " Kali May1-Ki Jai! " - "Viva a nossa me Kali!"
Era a manh de 31 de Agosto de 1947. Aps dezasseis dias de milagre, o virus do
dio r
eligioso contaminava de novo a cidade de Calcut. Como nos outros lados, a infeco
al
astrava, propagada pelas narraes de horror dos refugiados que chegavam do Panjab.
Bastara um vago rumor dos refugiados que chegavam do Panjab. Bastara um vago rum
or anunciando que um adolescente hindu tinha sido espancado at morte por
Muulmanos
num carro elctrico para voltar a pr fogo ,plvora.
282
s dez horas dessa noite, um corte)o de )ovens fanticos hindus rrompeu
bruscamente n
o ptio de Hydari Mansion para exigir uma entrevista com o Mahatma. Estendido na s
ua esteira entre as sobrinhas fiis Manu e Abha, Gandhi dormia. Exibindo uma
criana
com a cabea envolvida numa ligadura, que pretendia ter sido batida por Muulmano,
a multido comeou a gritar e a atirar pedras casa. Manu e Abha saram para
tentar apa
zigu-la mas sem sucesso. Empurrando os polcias,os revoltosos espalharam-se pelo
int
erior da casa. Acordado pelo barulho, Gandhi levantou~se e enfrentou os assaltan
tes. " Que nova loucura esta? Perguntou. Eis-me: Matai-me!" As suas palavras per
deram-se no alarido. Dois Muulmanos cobertos de sangue conseguiram atravessar as
filas dos manifestantes para virem refugiar-se junto de Gandhi. Uma matraca voou
na sua direco e passou junto da cabea do Mahatma antes de vir espetar-se na
parede por detrs dele.
Chegaram por fim reforos da polcia e Gandl-ii pde voltar a esten-
der~se na sua esteira. Estava impressionado: o "milagre de Calcut" no fora mais
qu
e uma extraordinria miragem.
As suas ltimas iluses foram definitivamente varridas no dia seguinte. Pouco
depois
do meio dia foram feitos uma srie de ataques combinados contra os bairros de lat
a Muulmanos onde os habitantes, confiantes pela presena de Gandhi, tinham
regressa
do. A maior parte destas aces eram conduzidas por fanticos do R. S. S. S., a
organi
zao hindu extremista cujos militantes tinham, no dia da independncia, saudado em
Po
ona a cruz gamada da sua bandeira cor de laran)a. Em Beliaghata Road, no longe da
residncia do Mahatma, duas granadas explodiram num camion evacuava um grupo de M
uulmanos aterrorizados. Gandh ocorreu imediatamente. Tinham sido mortos dois
traba
lhadores. Com os olhos vidrados, jaziam num charco de sangue, nvens de moscas vol
tejavam em torno das suas chagas abertas. Uma moeda de quatro annas tinha rolado
do bolso de um deles e brilhava no cho ao lado do seu cadver.
Gandhi sentiu tal choque que recusou qualquer alimento e isolou-se no silncio. "R
ezo para a Luz. Procuro no mais profundo de mim. Apenas o silncio me pode ajudar"
, disse simplesmente.
Algumas horas mais tarde, aps um curto passeio no ptio, acocorou-se na esteira
par
a redigir uma declarao pblica. Encontrara a resposta que procurava e a sua
deciso er
a irrevogvel. Para fazer voltar Calcut razo, ia submeter o seu velho corpo a
uma gr
eve da fome at morte.
Dcima estao do caminho de cruz de Gandhi A paz ou a morte
A arma que Gandl-ii ia brandir era a mais paradoxal que se podia em-
pregar neste pas onde morrer de fome era, desde h sculos, a mais co-
283
mum das maldies. Esta arma era portanto to antiga como a ndia. O antigo adgio
dos Ris
hi, os primeiros sbios da ndia antiga - "Se fizerts isso, sou eu que morro" -,
no t
inha deixado de inspirar um povo desmunido as mais das vezes de qualquer outro m
eio de coao. Em 1947, camponeses iam ainda jejuar diante da casa do seu fiador na
esperana de fazer prorrogar o prazo da sua dvida. Fiadores faziam o mesmo para
obr
igar os seus devedores a respeitar os seus compromissos. Mas o gnio de Gandhi tin
ha sido de dar um alcance nacional ao que at ento fora uma arma individual.
Manejada por este homem, a greve da fome tornara-se a arma poltica mais poderosa
jamais utilizada por um povo desarmado e economicamente subdesenvolvido. Porque
"Imps ao adversrio um sentido da urgncia que lhe impede de se escapar", Gandhi
esco
lhera-a "todas as vezes que um obstculo se tornava insupervel! Efectivamente,
afir
mava ele na grande tradio dos Rishi, apenas o jejum podia "abrir os olhos da
compr
eenso, sensibilizar as fibras morais daqueles contra quem dirigida".
Toda a vida de Gandhi estava assinalada por vitrias alcanadas em
consequncia das suas greves da fome. Dezasseis vezes, por grandes OU
modestas causas, tinha renunciado publicamente a alimentar-se. Duas vezes, os se
us jejuns tinham durado trs semanas conduzindo-o s fronters da morte. Quer
tenham si
do empreendidas em nome da equidade racial na frica do Sul, ou na ndia para a
reco
nciliao dos Muulmanos e
dos hindus, para modificar a condio dos Intocveis ou para apressar a partida dos
In
gleses, as suas greves da fome tinham comovido centenas de milhes de homens
atravs
do mundo. Faziam parte da sua imagem pblica ao mesmo ttulo que o seu calado de
pe
regrino, o seu dhoti e as suas lunetas com aros de ferro. Toda uma nao, em que
85%
, dos cidados no sabiam ler e no tinham possibilidade de ouvir a rdio, tinha
mesmo
assim conseguido seguir cada uma das suas lentas agonias, tremendo numa unidade
instintiva todas as vezes que estava ameaado de morte.
Gandhi mostrara uma formidvel resistncia e desenvolvera no decorrer dos anos uma
d
outrina original do emprego do jejum que fazia dele o maior - no o nico - terico
mu
ndial deste estranho meio de aco poltica. O desencadear de uma greve da fome
devia,
segundo ele, obedecer a critrios fsicos e morais extremamente severos. O axioma
f
undamental era que no se devia jejuar contra quem quer que fosse, mas unicamente
"contra um adversrio cujo amor se podia pretender". Segundo esta teoria, teria si
do assim absurdo para um deportado de um campo nazi ou Stalinista empreender uma
greve da fome at morte contra os seus guardas das Gals. A aco de Gandhi fora
de fac
to possvel porque a ndia tinha como ocupante um povo a cujo amor os indianos
podia
m ousar aspirar. Alis, numa ndia ocupada por Hitler ou Stalme, que teria sido
feit
o de Gandhi e das suas cruzadas?
As regras de higiene preconizadas pelo Mahatma no eram menos rigorosas que os cri
trios morais. Durante os seus jejuns, apenas bebia
284
gua adicionada de um pouco de bicarbonato de sdio. De tempos a tempos juntava-lhe
apenas o sumo de um limo. Uma vez, em 1924, tendo o
seu estado de sade deteriorado bruscamente aps vinte dias de jejum, aceitara
alivi
ar os rigores do seu sacrifcio pela administrao de uma lavagem com gua
aucarada.
A prtica do jejum era igualmente para Gandhi uma arma pessoal que se servira regu
larmente para saciar a sua necessidade constante de penitncia. Como a continncia,
era para ele uma forma de orao, um elemento essencial do progresso espiritual do
h
omem. "Creio, dizia ele, que a fora da alma apenas pode crescer com o domnio da
ca
rne. Esquecemos demsiado fcilmente que a comida no feita para agradar ao
Palato, ma
s
para manter o nosso corpo escravo. "Transposto para o domnio pblico, o sacrifcio
vo
luntrio do jejum constitua, cria ele, a arma mais eficaz do arsenal da no-
violncia p
orque era capaz @@de agitar as conscincias indolentes e de inflamar na aco os
coraes
generosos@,.
Agora, na vspera do seu 78" aniversrio, Gandhl ia infligir-se aos novos
sofrimento
s de uma greve da fome. Desta vez utilizava a sua arma
num novo tipo de conflito. Ia jejuar at morte no contra os Ingleses, mas contra
os
seus compatriotas e a loucura que se apoderara deles. Para salvar milhares de i
nocentes que comam o risco de perecer nas violncias de Calcut, oferecia a perda
da
sua prpria vida.
Conscientes do perigo que, na sua idade, uma greve da fome comportava, os discpul
os de Gandhi tentaram dissuadi-lo disso.
- Mas Bapu, espantou-se o seu velho companheiro do Congresso, C. R. Rajagopalach
ari, tornado o primeiro governador indiano do Bengala,
como se pode jejuar contra bandidos?
- Quero tocar os coraes dos que esto por detrs dos bandidos.
- E se morreis? A conflagrao a que tentais pr fim seria ainda pior.
- Pelo menos, respondeu Gandhl, j no existirei para a ver. Nada nem ningum pde
fazer
mud-lo de opinio. Gandhi precisou s suas duas "muletas" Manu e Abha, que a sua
gre
ve da fome comeara nesta noite do 1 .' de Setembro, com o jantar que no pudera
com
er depois de ter visto as vtimas do camio diante da sua casa. Confirmou-lhes a
von
tade de jejuar at ao fim das perturbaes. Devia conseguir ou morrer. "Ou haver
paz em
Calcut ou eu morrerei", confiou-lhes.
Desta vez, as foras fsicas do Mahatma declinaram rapidamente. A tenso emocional
que
sofrera desde o dia do ano novo esgotara-o. Desde as primeiras horas de jejum,
o seu ritmo cardaco mostrou inquietantes sinais de irregularidade. Uma massagem e
um clister com gua quente fizeram-lhe bem. Contudo, foi com dificuldade que abso
rveu um litro de gua morna adicionada ao bicarbonato. Cerca do meio dia, a sua vo
z j no era mais que um murmrio. Em algumas horas, a notcia do seu novo desafio
285
espalhou-se atravs de Calcut e grupos de visitantes ansiosos afluram para Hydari
Ma
nsion. Mas a epidemia de violncia que sacudia todos os bairros no podia ser
travad
a num s dia. Incndios, assassinos e pilhagens continuaram a destruir a cidade. Da
sua enxerga, Gandhi podia mesmo ouvir o eco dos tiros.
Os seus partidrios correram a encontrar-se com os chefes dos extre~ mistas hindus
da cidade para lhes suplicar que interviessem. Milhares dos seus haviam sido sa
lvos no distrito de Noakhali, graas ao juramento arrancado por Gandhi aos lderes
M
uulmanos de Calcut, explicaram-lhes. Por sua vez, deviam tentar tudo ao seu
alcanc
e para fazer cessar o massacre dos Muulmanos de Calcut.
Desde a manh do segundo dia, misturou-se pouco a pouco um outro embrulho ao crepi
tar dos fuzilamentos, os gritos das multides cada vez mais numerosas convergindo
para Hydari Mansion, entoando slogans de paz. Mesmo os assassinos mais endurecid
os depuseram facas, barras de ferro e espingardas para se informarem da tenso art
erial do Mahatma, da taxa de albumina da urina, do nmero das pulsaes cardacas.
Duran
te a tarde, o governador anunciou que os estudantes da universidade tinham decid
ido lanar uma aco geral para o restabelecimento da paz. Personalidades hindus e
Muul
manas acorreram cabeceira do velho homem agonizante para lhe implorar que renunc
iasse greve da fome. Um Muulmano lanou-se aos seus ps gritando: "se vos
acontece o
que quer que seja, ser o fim de ns, Muulmanos". Nenhuma splica, por mais
desesperada
que fosse, a contudo abalar a vontade que ardia no corpo esgotado de Gandhi.
@<No
interromperei o meu jejum antes de voltar a gloriosa paz dos ltimos quinze dias"
, declarou.
Ao alvorecer do terceiro dia, a sua voz no era mais que um murmrio imperceptvel
e o
seu pulso to fraco que se podia crer a morte iminente. Enquanto a notcia se
espal
hava, a angstia e o remorso apoderaram-se de Calcut. Para alm dos seus muros,
toda
a ndia procurou as informaes sobre o estado de sade do Mahatma.
Produzia-se ento o milagre. Se outras cidades do antigo imprio das ndias tambm
tinha
m sido capazes de se deixar arrastar para abominveis acessos de selvajaria, perte
ncia a Calcut a mais contestatria e a mais rebelde de todas, poder transform-los
em
mpetos de entusiasmo e de generosidade.
Enquanto no corpo esgotado de Mohandas Gandhi lutavam os ltimos sopros de vida, u
ma vaga de amor e de fraternidade submergiu de repente a indomvel metrpole para
sa
lvar o seu benfeitor. Cortejos con-
1.untos de Muulmanos e de Hindus espalharam-se nos bairros de lata mais atingidos
pela loucura assassina para a restaurar a ordem e a calma. A prova definitiva de
que um vento novo soprava sobre Calcut apareceu ao
meio dia quando um grupo de vinte e sete goonda dos bairros do centro se
apresentou porta de Hydari Mansion. De cabea baixa, a voz vibrante de remorso,
re
conheceram os seus crimes, pediram perdo a Gandhi e su-
286
plicaram-lhe que renunciasse ao jejum. Algumas horas mais tarde, um dos mais cleb
res chefes do bando veio oferecer um arrependimento semelhante. O Gang de goonda
, responsvel pela mortandade de Beliagbata Read que determinara Gandhi a jejuar,
acorreu por sua vez. Aps ter confessado os seus crimes, o chefe declarou ao Mahat
ma: "Estamos prontos a submeter-nos com alegria a qualquer castigo que escolhais
desde que ponhais fim ao vosso sacrifcio: "Querendo provar a sua sinceridade, ab
riram todos as abas dos seus dhoti para lanar aos ps de Gandhi uma chuva de
facas,
de punhais, de sabres, de pistolas e de "dentes de tigre", alguns ainda vermelh
os de sangue, Para lhes testemunhar a sua confiana, Gandhi murmurou: "A minha
nica
punio ser mandar-vos aos bairros dos Muulmanos a quem fizestes tanto mal para
que l
hes ofereais a vossa proteco ".
Toda a noite, uma onda de visitantes desfilou cabeceira do Mahatma. Uma mensagem
escrita pela mo do governador anunciou que a calma voltara a toda a cidade. Um c
amio cheio de granadas de armas automticas, de pistolas e de facas
espontaneamente
entregues pelos bandos de goonda foi levado ao porto de Hydari Mansion. Notveis
H
indus, Sikhs e Muulmanos redigiram uma declarao comum prometendo solenemente
"lutar
at morte para impedir que o veneno do dio religioso renasa na cidade. "
s 9 h 15 m. da tarde de 4 de Setembro de 1947, aps 73 horas, Gandps fim sua
greve
da fome bebendo algumas goladas de sumo de Iaranja. Antes de se decidir a isso,
dirigira uma advertncia aos representes das diferentes comunidades que se apertav
am volta da sua enxerga. "Calcut, declarou, detm hoje a chave da paz em toda a
ndia
. O menor incidente aqui capaz de provocar nos outros lados repercusses
incalculve
is. Mesmo que o mundo viesse a abrasar-se, devereis agir de maneira que Calcut fi
casse fora das chamas".
Eles mantero a palavra. Desta vez o "milagre de Calcut" perduraria, enquanto que
n
as plancies torturadas do Panjab na provncia fronteiria do Noroeste, em Karachi,
Lu
cknow e Nova Deli, o pior ainda -no tinha chegado. A cidade mais rebelde e sangui
nria das ndias saberia ser fiel ao seu juramento e ao velho hdmem que arriscara a
vida para lhe assegurar a paz. Nunca mais, em vida de Gandhi, o sangue do dio, re
ligioso mancharia os pavimentos de Calcut. "Gandhi realizou bastantes proezas, di
ria o seu velho amigo Rajagopalachari, mas nada, nem mesmo a independncia foi to
p
rodigioso como a sua vitria sobre o mal em Calcut".
As homenagens no perturbaram nada o velho lutador.
- Penso partir amanh para o Panjab, anunciou simplesmente.
Gandhi nunca iria at ao Panjab: uma nova exploso de violncia interromperia a sua
vi
agem a meio caminho. Desta vez, isso produzia-se no centro vital donde a ndia era
govemada, a altiva e artificial capital do im-
287
prio defunto, Nova Deli. A cidade que fora o cenrio de tantas pompas e factos, o
s
anturio de um gigantesco exrcito de escreventes, no devia ser poupada pelo
veneno d
a violncia.
Construda na orla do Panjab, outrora cidadela dos imperadores Mongis, Nova Deli
er
a em 1947 uma cidade muulmana por bastantes aspectos. A, a maior parte dos
criados
eram muulmanos, do mesmo
modo que os cocheiros de tonga, os vendedores ambulantes de frutas e de legumes,
os artistas do bazares. A insegurana crescente dos campos em
redor tinha, por outro lado, lanado nas suas ruas milhares de muulmanos vindos
pro
curar a refgio.
Excitados pelss narraes dos refugiados s 'ikhs e Hindus, irritados pelo
espectculo
de tantos muulmanos fervilhando na sua capital, os Sikhs da seita Akali e os ext
remistas Hindus do R.S.S.S. desencaderam uma vaga de terror na manh de trs de
Sete
mbro.
Tudo comeou pelo massacre de coolies muulmapos na gare central. Alguns minutos
mai
s tarde, o jornalista francs Max Olivier-Lacamp teve de saltar vrios corpos ao
che
gar a Connaught Circus, o centro comercial de Nova Deli, e descobriu uma multido
de Hindus a saquear as boutiques dos muulmanos e abater os proprietrios at os
matar
. Por cima das cabeas, viu um barrete branco do Congresso e reconheceu a silhueta
familiar que fazia voltejar um Lathi, invectivando e enchendo de pancadas os
desordeiros contra os quais procurava fazer reagir alguns polcias visivelmente in
diferentes. Era Jawaharlal Nehru, o primeiro ministro indiano. Para os comandos
dos Sikhs com turbantes azuis na cabea e os fanticos do R.S.S.S. com as testas
cin
gidas de tiras brancas, estes ataques foram o
sinal da aco geral. Incendiaram o Green Marcet da Velha Deli, onde tinham tenda
ce
ntenas de pequenos vendedores muul..lanos. No Lodi Colony, o bairro vizinho do Ma
usolu com cpula de mrmore do imperador Humayun, bandos de Sikhs irromperam pelas
vi
vendas dos funcionrios muulmanos e massacraram todos os que a encontraram. Ao
meio
dia, os
corpos das vtimas juncavam os relvados que rodeava os edifcios de onde a
Inglaterr
a fizera reinar a sua Pax Britnnica sobre toda a pennsula. Ao ir jantar cidade
nes
sa noite, o cnsul da Blgica contou 17 cadveres no seu
caminho. Sikhs andavam pelas ruelas sombrias da cidade velha, atraindo as presas
aos gritos de "Allah Akbar". Quando um muulmano tinha o
azar de responder a este apelo, a sua cabea voava com um golpe de sabre.
Militantes do R.S.S.S. apoderaram-se de uma m-lhet muulmana ves-
tida no seu burga, molharam-na de gasolina e imolaram-na diante da porta da resi
dncia de Nehru em York Road afim de protestar contra os esforos do primeiro
minist
ro, para proteger os muulmanos indianos. Em alguns dias, a residncia e o jardim
de
Nehru foram transformados em ver-
dadeiro campo de refugiados guardado por uma seco de gurkhas. Advertidos por
mensa
geiros sikhs de que todas as casas abrigando um muulmano seriam impiedosamente in
cendiadas e os seus habitantes executados, centenas de famlias Hindus, Sikhs e me
smo Crists e Parsis lanaram
288
rua os seus fiis servidores, condenando-os aos Kirpan Sikhs ou a uma fuga
desespe
rada para um dos campos de refugiados improvisados.
Os nicos beneficirios desta vaga de atrocidades deviam ser as esquelticas
pilecas d
os tonga culos cocheiros muulmanos tinham sido exterminados ou tinham fugido. Lib
ertas das suas liteiras, festejavam alegremente a liberdade partilhando com as v
acas sagradas hindus a erva tenra dos soberbos relvados desenhados pelos antigos
senhores da ndia. As desordens que assolava Nova Deli apenas ameaavam uma cidade
mas punham em perigo a ndia inteira. Porque incalculveis consequncias no
conjunto d
a pennsula podiam resultar de uma derrocada da ordem na capital. Os Muulmanos da
p
olcia - que representavam mais de metade dos efectivos - tinham desertado. As
fora
s armadas contavam menos de
9OO homens disponveis. Os servios pblicos estavam paralizados a ponto de o
secretrio
de Nehru ter assegurado ele prprio a distribuio do correio do primeiro ministro
in
diano.
Na tarde de 4 de Setembro, um antigo coronel do exrcito das ndias resumia sua
mane
ira a situao. Escutando o crepitar dos fuzilamentos, M.S. Chopra, veterano de
long
os anos de embuscadas ao longo da fronteira do Afganisto, pensou: "Hoje, aqui em
Nova Deli que se situa a fronteira. "
Pela primeira vez desde que aterrara seis meses antes em Nova Dell, Lus Mountbatt
en podia enfim gozar um pouco de repouso. A independncia tinha retirado dos seus
ombros um fardo esmagador. Ontem um dos homens mais poderosos do mundo, hoje ape
nas ocupava um posto honorfico. A violncia que sacudia o Parijab afectava-o
doloro
samente,
mas a sua qualidade de governador geral no lhe dava nenhuma autoridade para tenta
r intervir. Esta tarefa esmagadora incumbia agora aos dirigentes indianos. Para
lhes mostrar bem que no desejava imiscuir-se na conduta dos seus assuntos, eclips
ara-se discretamente da capital,para se retirar para o Olimpo paradisaco do
imprio
defunto, Simla.
A tempestade que se agitava em baixo nas plancies continuava a poupar a estranha
e fascinante cidadezinha. As abrteas e os rododendros arvorescentes estavam em fl
or junto das filas majestosas de abetos e de cedros Deodar, e os picos cobertos
de neve do Himalaia brilhavam no cu cristalino do vero. No pitoresco Vaiety
Theatr
e, representava-se Jane Steps Out, um daqueles espectculos de amadores que, sesse
nta anos antes, tinham encantado Kipling durante as suas estadias na capital imp
erial de vero.
O antigo vice-rei das ndias encontrava-se em Simla num universo bastante afastado
da tragdia que atingia o Panjab quando o telefone tocou cerca das dez horas da n
oite, na quinta-feira 4 de Setembro. Passeava nas margens do Reno, ocupado em de
scobrir as ramificaes da rvore genea-
289
lgica da sua famlia atravs da Alemanh, dos condados de Hesse, da Prssia e de
Saxe-Cob
ourg, o seu passatempo favorito. Era V. P. Menon que o chamava. No havia ningum
na
ndia cujas opinies e conselhos contassem mais para Mountbatten que os do indiano
que remodelara o
plano de partilha neste mesmo cenrio de Sirrila.
- Excelncia, preciso que regresseis a Nova Delhi, disse simplesmente Mrion.
Mas acabo mesmo agora de partir de l! Protestou Mountbatten confundido. Se o gove
rno deseja fazer-me subscrever documentos, no
tem mais que enviar-mos para aqui.
- No se trata disso, explicou Menon. A situao agravou-se consideravelmente desde
qu
e Vossa Excelncia partiu, as agitaes atingiram Nova Dell. No sabemos at onde
isso pod
e ir. O Primeiro Ministro e o
Ministro do Interior esto muito inquietos. Pensam-que capital vs regressardes.
- Mas ento porqu? Perguntou Mountbatten.
- Precisam da vossa ajuda.
- No posso acreditar que seja isso que eles querem, admirou-se Mountbatten. Acaba
m precisamente de obter a sua independncia e, pelo contrrio, estou certo de que a
l
tima coisa que desejam que o seu chefe de Estado simblico volte a meter o nariz
n
os seus assuntos. No h razo
para eu regressar.
- Muito bem, vou dizer-lho. Mas no serviria de nada se depois mu-
dsseis de opinio. Se no chegardes dentro de vinte e quatro horas, depois
intil incom
odar-vos. Ser demsiado tarde. Teremos perdido a ndia.
Houve um longo e pesado silncio. Mountbatten rompeu-o por fim:
- Bom, bom, ganhastes. Vou mandar preparar o -..leu avio.
Durante um quarto de sculo, o resultado da conferncia que se realizou em Nova
Dell
no gabinete de Lus Mountbatten no sbado 6 de Setembro de 1.947 permaneceria
secre
ta. Se as decises tomadas no decorrer desta reunio tivessem sido divulgadas a
carr
eira do chefe poltico indiano destinado a tornar~se em breve uma das grandes.4igp
ras mundiais teria sem dvida sido destruda.
Trs homens participavam na entrevista: Mountbatten, Nehru e Vallabhbhal Patel. Os
dois lderes indianos estavam tristes e visivelmente acabrunhados. Faziam pensar
em "dois estudantes que acabassem de ser castigados". A amplitude do xodo ultrapa
ssava tudo o que teriam podido recear. Escapava-lhes completamente o domnio dos a
contecimentos no Panjab e o caos ameaava agora atingir a capital.
- j no sabemos que fazer, reconheceu Nehru.
- Deveis tomar as coisas nas mos, disse Mountbatten.
- Mas como poderiamos conseguir isso? Perguntou humildemente
29O
Nehru. No temos nenhuma experincia. Passmos os nossos melhores anos nas vossas
prise
s. Sabemos manejar a arte da agitao, no a da administrao. j teramos
dificuldade em faze
r funcionar um governo bem organizado em circunstncias normais. Como quereis que
sejamos capazes de defrontar a derrocada da ordem pblica?
Nehru formulou ento uma splica quase incrvel. Que este altivo indiano que
consagrar
a a sua vida ao combate pela independncia tenha podido mesmo resolver-se a isso,
revelava ao mesmo tempo a nobreza dos seus sentimentos e a gravidade da situao.
Ad
mirara sempre em Mountbatten o seu sentido da organizao e das decises rpidas.
Sentia
que a ndia tinha hoje necessidade destas qualidades e ele era demsiado generoso
p
ara a privar disso por orgulho ou vaidade.
- Quando ocupveis um dos mais altos comandos da guerra, ns estvamos numa priso
britni
ca, afirmou. Sois um administrador incomparvel. Comandastes milhes de homens.
Poss
us a experincia e o saber que o colonialismo nos recusou. No podeis, vs
ingleses, de
sembaraardes deste pas e irdes simplesmente embora, enquanto estivestes connosco
d
urante toda a nossa existncia. Estamos em perigo e precisamos da vossa ajuda. Que
reis aceitar retomar a direco do pas?
- Sim, insistiu Patel, o velho companheiro realista de Nehru, ele tem razo. Devei
s aceitar.
Mountbatten estava sufocado.
- justos cus, mal acabo de vos entregar o vosso pas e pedis-me agora para o
retoma
r!
- Suplicamo-vos que compreendeis, insistiu Nehru. Deveis faz-lo. Comprometemo-nos
a respeitar todas as vossas decises.
- Mas inconcebvel! Se algum descobre que me entregastes as rdeas do poder,
ser o fim
das vossas carreiras polticas. Os indianos enfim livres chamando de novo o seu v
ice-rei britnico para o repor no trono? Dais-vos conta disso? No realmente
possvel.
- Ser sem dvida preciso encontrar uma maneira de disfarar o vos-
so regresso, concordou Nehru, mas uma coisa certa, no podemos sair
disto sem vs.
Mountbatten pareceu reflectir. Se adorava os desafios, este era verdadeiramente
demsiado grande. Tinha contudo demsiada afeio pela ndia, demsiada estima por
Nehru e d
emsiada noo das responsabilidades para rejeitar tal splica.
- Entendido! Acabou por dizer no tom de um almirante ao reencontrar a ponte de c
omando. Encarrego-me disso. Mas devemos estar bem de acordo:que nunca ningum sonh
e isso. Ningum deve saber que viestes buscar-me de novo. Ides apenas pedir-me par
a formar um Comit de ur- gncia no mbito do governo.
- De acordo, responderam Nchru e Patel.
- Aps isso, ides propr-me para assumir a sua presidncia.
- Est certo, aquiesceram os dois indianos, um pouco siderados pela
291
velocidade a que Mountbatten punha as coisas em andamento.
- O Comit de urgncia apenas ser composto por pessoas que eu prprio escolherei.
- No deveria compreender todo o governo?Exclamou Nehru.
- De maneira nenhuma! indignou-se Mountbatten. Seria um desastre. Apenas quero h
omens que esto verdadeiramente nos comandos, como o director da aviao civil, o
dire
ctor dos caminhos de ferro, o chefe dos servios de sade. A minha mulher ocupar-
se-
das organizaes de beneficincia e da Cruz vermelha. Os relatrios de reunio iro
sendo tr
anscritos por uma equipe de estengrafos britnicos a fim de estarem disponveis no
fi
m de cada reunio. Convidais-me realmente a fazer tudo isso?
- Convidamo-vos insistentemente, responderam em coro Nebru e Patel.
- Quando das conferncias, prosseguiu Mountbatten, vs Nehru, o Primeiro ministro,
f
icareis sentado minha direita e vs, Patel, o ministro do Interior, minha
esquerda
. Nunca deixarei de vos consultar, mas pe- o-vos para nunca discutir-vos o que eu
propuser. No temos tempo para isso. Direi: "Estou persuadido de que o Senhor Pri
meiro Ministro deseja que eu actue assim", e vs responder-me-eis: "Certamente, fa
z favor." tudo.
- Mas de qualquer modo poderemos exprimir... arriscou Patel.
- Nada que possa retardar as coisas, interrompeu Mountbatten. Quereis ou no que e
u dirija o pas?
Os trs homens fizeram ento a lista dos membros do seu Comit de urgencia.
- Meus senhores, concluiu Mountbatten, teremos hoje mesmo a nossa primeira sesso
de trabalho, s cinco horas da tarde.
Tinham sido precisos trinta anos de lutas, milhares de greves, manifestaes,
hartas
silenciosas e fogueiras de regozijo destruindo os fatos ingleses para que a ndia
acedesse finalmente sua independncia. Vinte dias mais tarde, era de novo-
dirigid
a por um Ingls.
Captulo dcimo quarto"
A TRISTE E DOCE MSICA DA HUMANIDADE"
Lord Mouritbatten tinha a impresso de reviver uma vida anterior. Era de novo o co
mandante em chefe e era o papel que melhor conhecia. Algumas horas depois de ter
sido convidado a presidir o Comit de urgncia, convertera o palcio de grs rosa,
edif
icado para abrigar as pompas do Imprio, em quartel general de um exrcito em
campan
ha.
Defacto, conta um dos seus colaboradores, mal Nehru e Patel tinham deixado o seu
gabinete, quando "o infemo se desericadeou". Mountbatten requisitou a antiga sa
la do conselho do vice-rei para as reunies do Comit. Mandou transformar o
gabinete
vizinho de Lord Ismay em Q.G. Operacional, e mandou trazer os melhores mapas do
Estado Maior do Panjab. Deu ordem aviao para efectuar, do alvorecer ao pr do
sol,
voos de reconhecimento por cima da parte indiana da provncia. Os pilotos deviam e
nviar todas as horas mensagens rdio indicando a posio de cada coluna de
refugiados,
a sua importncia, o seu comprimento, o seu itinerrio e a sua progresso. As
princip
ais linhas de caminho de ferro foram co-
locadas sob vigilncia area e as emboscadas sistemtica mente detectadas. Com a
sua p
aixo pelas teleaplicao, Mountbatten mandou ligar o seu palcio aos pontos
nevrlgicos d
o sector por uma rede especial de transmisses de rdio. Decidido a que todos
partic
ipassem no desenlace da crise, contratou mesmo a sua filha Pamela, com desassete
anos, como secretria.
Mountbatten abriu a primeira sesso do Comit de urgncia colocando brutalmente os
res
ponsveis indianos perante as realidades que as cartas geogrficas e os quadros
esta
tsticos nas paredes do seu Q.G. traduziam. Alguns ignoravam at ento a gravidade
da
situao. A sua descoberta provocou uma "reaco de estupefaco, e como que de
alucinao per
te o abismo", recorda o delegado de imprensa de Mountbatten. Nehru parecia "acab
runhado de tristeza e de resignao", Patel, "rutidamente inquieto", transbordando
d
e "clera e frustrao".
Mountbatten no lhes concedeu nenhuma folga. O encantador vice-rei das indias que
tinham conhecido, tornara-se um chefe intransigente, decidido a tudo para obter
o resultado desejado.
O director da aviao civil indiana no a tardar a dar-se conta disso sua custa.
Sabend
o que no pudera encontrar um avio para mandar com urgncia um carregamento de
medica
mentos, Mountbatten encolerizou-se imenso:
- Senhor director, declarou, ides dirigir-vos imediatamente ao aero-
293
porto. E no saireis de l, no cornereis nem dormireis at terdes assistido
pessoalment
e descolagem do aparelho e me terdes informado disso.
O homem levantou-se e sau cabisbaixo. E um avio levou os medica-
mentoS.
Mountbatten apressou-se a familiarizar os que o rodeavam com os mtodos particular
mente radicais que entendia utilizar. Informado de que os soldados encarregados
de escoltar os comboios de refugiados se abstinham em geral de abrir fogo sobre
os seus correligionrios, ordenou que os destacamentos de escolta de todos os comb
oios cuja defesa fora ineficaz fossem imediatamente presos, e que todo o militar
indeirme fosse julgado em tribunal marcial e imediatamente fuzilado. Tais exemp
los teriam o melhor efeito sobre a disciplina, anunciou.
A situao na capital preocupava mais particularmente o almirante. "Se cairmos em
No
va Deli, todo o pas que ir cair connosco", declarou. Decretou medidas de
urgncia, c
hamou reforos de tropas, confiou aos esquadres da sua guarda pessoal misses de
manu
teno da ordem, re-
quisitou camions para o transporte de vveres, ordenou o levantamento e a cremao
dos
cadveres que juncavam as ruas da cidade. Suprimiu os feriados e os domingos, mob
ilizou os funcionrios, tomou disposies para pr em funcionamento o telefone e os
serv
ios pblicos essenciais. Enfim, para diminuir os riscos de incidentes mandou
evacua
r os refugiados sikhs para outras provncias.
Seriam precisas semanas para que estes esforos conseguissem deter o
maremoto que submergia o norte da india. Mas, diria uma testemunha, "passara-se,
em menos de uma noite, da velocidade de um carro de bois para a de um avio a rea
co".
Durante os dois meses seguintes, toda a angstia do Panjab ia ser representada por
uma mriade de alfinetes com cabea de cor, avanando como formigas vermelhas nos
map
as do Q.G. de Mountbatten. Cada mi-
nscula pea de metal correspondia a um volume de misria e de sofrimentos
dificilmmen
te concebvel. Um deles simbolizava por si s uma caravana de oitocentas mil
pessoas
, a maior coluna de regugiados que jamais foi formada na histria tumultosa da hum
anidade. Imagine-se a populao inteira de uma cidade como Marselha - cada homem,
ca
da mulher, cada criana obrigada a fugir a p para Lon.
Jinnah e Nehru tinham tentado opr-se a esta fantstica migrao tentando convencer
as f
amlias aterrorizadas a ficarem. Mas a amplitude da tragdia tinha destruido os
seus
esforos e obrigara-os a admitir esta inevitvel troca de comunidades como preo a
pa
gar pela independncia dos seus pases.
Dia aps dia, o movimento dos alfinetes de cabea vermelha reflectia a
progresso dolorosa dos refugiados. Todas as manhs ao alvorecer os pi-
294
lotos voltavam a localizar a interminvel onda abandonada na vspera, marcando nos
s
eus mapas o curto trajecto percomdo na obscuridade cumplce das primeiras horas do
dia. O capito aviador recordaria sempre estas "filas de seres humanos que atrave
ssavam o campo como imensos rebanhos de Westers". Um outro recorda-se de ter sob
revoado uma coluna durante quinze minutos a mais de trezentos quilmetros hora
sem
he ver o fim. Por vezes, estrangulada num caminho mais estreito a torrente inch
ava numa inextricvel confuso de pessoas, de animais e de veculos que ento se
estrei
tavam numa delgada tira antes de se amontoarem de novo entrada da prxima
garganta
.
Levantado pelos cascos dos bovinos, pelo pisar desordenado do mar humano um vu de
poeira traava no horizonte um gigantesco rasto acinzentado que revelava o avano
d
os fugitivos. Ao cair da noite, as colunas paravam e os refugiados esgotados ace
ndiam pequenas fogueiras onde preparavam a nica comida do dia, uma delgada chapat
i. Vistos do cu, centenas de milhares de lares pareciam cobrir a terra, avermelha
da pelos ,,ltimos raios do crepsculo, por uma nuvem de fogos ftuos.
Mas era ao nvel do solo, no meio da desgraa dos homens, que o '"drama do xodo
apare
cia em todo o seu horror. Com os olhos e a gargan- ,".,ta queimados pela poeira,
a planta dos ps queimada pelo calor das pedras e do asfalto, torturados pela fom
e e pela sede, envolvidos num sufocante ".odor de urina, de excrementos, de suor
, os condenados do Panjab arrastavam-se como autmatos nos seus dhoti despedaados
e
nos seus saris em farrapos. Velhas mulheres agarravam-se aos ombros dos filhos,
outras quase a dar luz aos dos maridos. Os inais jovens levavam os velhos s
cost
as, os invlidos ou os moribundos avanavam sobre liteiras de bambu improvisadas
que
parentes ou amigos levavam. Mes apertavam os bebs contra o peito durante
centenas
de quilmetros. Atados s costas ou em equilbrio cabea am os magros bens que
tinham po
dido trazer: alguns utenslios de cozinha, um embrulho de roupa de uso, imagens de
Civa ou de guru Nanack, um exemplar do Alcoro. Homens curvavam-se ao peso de com
pridas trancas em cuja extremidade estava fixado o que tinham podido salvar do d
esastre. Uma criana acocorada numa prancha fazia por vezes contrapeso a tudo o qu
e restava a uma famlia para comear uma nova vida: uma p, uma enchada, uma roda
de f
iar, uma lata contendo um pouco de gua, um pequeno saco de sal.
Toda a fauna domstica da ndia misturava o seu infortnio ao dos humanos,
patticas man
adas de bfalos, de vacas, de bois, de camelos, de cavalos, de burros, de cabras,
de carneiros. Os bfalos e os bois puxavam carroas abatendo sob a carga da
hetercilt
a mudana de casa. Pirmides de charpy, enxergas, ferramentas, fardos de forragem,
u
tenslios, sacos de sementes transbordavam destas jangadas rolantes arrancadas ao
naufrgio de toda uma existncia. Trouxas contendo por vezes fatos de noivado,
preci
osas relquias de um passado feliz. Casais tinham conseguido levar as suas prendas
de noivado, tendo cuidado, se eram hindus, que o seu nme-
295
ro no terminasse por um zero, sendo este algarismo altamente nefasto. Os camelos
e os cavalos arquejavam entre os varais das carroas, das tonga de cortinas comdas
que as mulheres Muulmanas utilizavam, e de tudo o que tinha rodas.
No era uma viagem at prxima aldeia que estes indianos e estes paquistaneses
empreen
diam. Partiam para o mundo desconhecido, efectuavam um trajecto sem regresso de
trezentos, quatrocentos e mesmo quinhentos quilmetros que duraria semanas, sob a
perptua ameaa do esgotamento, da fome, da clera, e, uma boa metade do percurso,
dos
selvagens ataques contra os quais quase nunca tinham defesa. Hindus, Muulmanos,
ou Silchs, as vtimas inocentes desta agitao eram camponeses iletrados que toda a
su
a vida tinham penado nos campos, ignorando na sua maioria que as ndias tinham sid
o conquistadas pelos Ingleses, indiferentes s lutas polticas do partido do
Congres
so e da Liga muulmana, e que nunca se tinham preocupado com acontecimentos como a
partilha, o traado das fronteiras, ou mesmo a independncia em nome da qual se
enc
ontravam mergulhados na desgraa. E para consumar a misria dos milhes de seres
que a
travessavam as plancies do Panjab, havia o sol, um sol cruel que os obrigava a vo
ltar os rotos desvairados ao cu incandescente para suplicar Ala, Civa ou o guru N
anck que lhes enviasse o socorro da mono cujas chuvas se obstinavam em no cair.
O tenente Ram Sardilal, encarregado de escoltar uma coluna de Muulmanos que deixa
va a ndia para o Paquisto, recordar-se-ia sempre "dos Sikhs que seguiam a
caravana
, tal como abutres, comerciando com
os infelizes a compra de alguns bens que eles tentavam conservar, esperando paci
entemente que os quilmetros fizessem baixar os preos, at ao
momento em que, resignados, os refugiados dariam tudo em troca de algumas gotas
de gua".
O capito Robert E. Atkins acompanhou durante semanas colunas nos dois sentidos. "
Punham-se a caminho numa espcie de euforia, conta
ele. Depois, sob a tortura do calor, da fome, dos quilmetros que se junta-
vam aos quilmetros, abandonavam pouco a pouco tudo o que traziam, at no terem
mais
nada". Quando um avio aparecia no cu e largava alguns vveres, era a investida.
Os s
eus soldados gurkhas tinham de proteger os socorros baioneta para assegurar uma
justa distribuio. Atkhins viu um dia refugiados correrem como dementes atrs de
um co
que tinha roubado um chapati, prontos a mat-lo para recuperar a bolacha.
Extenuados pela privaes, a doena, os sofrimentos desta marcha forada, milhares
de ve
lhos, de mulheres, de crianas, renunciavam ir mais longe, deixando-se calcar mesm
o ali pelos que vinham atrs, ou arrastando-se para a sombra de um fosso ou de um
arbusto para esperar a morte. No tendo j fora para os levar, mulheres depunham
os b
ebs nas naves laterais na esperana de que uma mo providencial os recolheria
antes q
ue fosse demsiado tarde. Infelizes encontravam a morte atirando-se sfregos gua
de p
oos envenenados pelos seus inimigos. A imagem de uma crian-
296
a abandonada na borda da estrada, puxando o brao da me morta, incapaz de
compreende
r porque no a agarrava, ficar para sempre gravada na memria da fotgrafa
Margaret Bou
rke-White.
Milhares de cadveres assinalaram depressa os caminhos deste xodo infemal. Os
seten
ta quilmetros da estrada ligando Lahore a Amritsar tornaram-se um interminvel
cemi
trio ao ar livre. Para atenuar o mau-Cheiro atroz, o capito AtkIns tinha de tomar
precauo de tapar a boca e o nariz, com um leno embebido em loo refrescante. "A
cada m
etro, passava-se na frente de corpos, uns massacrados, os outros mortos de clera.
Os abutres tinham-se tornado to gordos que j nem sequer podiam voar, e os ces
selv
agens to exigentes que j apenas comiam o fgado dos cadveres".
H. V. R. lyengar, o secretrio particular de Nehru, lembra-se de ter encontrado do
is oficiais do exrcito indiano que tinham a misso de seguir de camioneta uma
colun
a de cem mil refugiados para apenas se ocuparem dos recm-nascidos e dos mortos. Q
uando uma mulher comeava a dar luz, estendiam~na na parte de trs do veculo que
para
vam o tempo de dei-
xar nascer a criana. Quando chegava uma outra mulher, a precedente devia ceder-lh
e o lugar, levantar-se e retomar, com o filho, a sua marcha para a ndia.
O jornalista indiano Kuldip Singh nunca esquecer "aquele velho slkh de barba bran
ca que lhe estendia o neto nos braos implorando: "Agarrai-o! que ele viva ao meno
s para ver a ndia". A proteco destes cortejos que se estendiam por centenas de
quilm
etros era uma tarefa sobrehumana. Em qualquer momento podiam surgir ataques. Os
dos Sikhs eram os mais assassinos. Em grandes bandos, surgiam dos campos de cana
de acar ou de trigo, matavam, pilhavam, raptavam as garotas e as mulheres, e
desapareciam. O oficial D. Lal rev ainda um velho muulmano empurrando para o
Paqui
sto o que pudera salvaguardar da sua quinta, uma
cabra. A uma dezena de quilmetros da sua nova ptria o animal tomado de pnico
fugiu
para o campo. O velho homem lanou-se em sua perseguio quando um slkh surgido de
um
matagal lhe cortou a cabea com um
golpe de sabre e fugiu com a cabra.
Ao prestar socorro a estes Muulmanos sem defesa, alguns oficiais sikhs das unidad
es de escolta am contudo proteger a selvaiaria de alguns dos seus
correligionrios.
No extremo da pequena cidade de Ferozopero, o
tenente-coronel slkh Gurba Singh deparou com o espectculo mais atroz que jamais v
ira: os cadveres de toda uma caravana de refugiados Muulmanos massacrados por
Sikh
s e que os abutres devoravam. Mandou pr os seus soldados SIkhs em sentido perante
o carneiro e declarou-lhes: "Os Sikhs que cometeram estes crimes desonraram o n
osso povo. Mas a desonra seria ainda maior se vs deixsseis fazer novas vtimas
entre
aqueles que hoje esto sob a vossa proteco".
Duas colunas - uma subindo para o Paquisto, a outra descendo para a ndia -
cruzava
m-se muitas vezes nos caminhos do xodo. Acontecia que
297
refugiados vidos de vingana saassem das fileiras e se atirassem sobre os que
marcha
vam em sentido inverso, breve exploso sanguinria que aumentava o nmero dos
mortos.
Por vezes, pelo contrrio, camponeses hindus e Muulmanos indicavam uns aos outros
a
localizao das quintas e dos campos que acabavam de abandonar a fim de que fossem
l instalar-se.
O jovem oficial da polcia Ashwini Kumar foi testemunho de uma cena inesquecvel na
Grand Trunk Rold entre Amrtsar e JuIlundur. Nesta estrada histrica que os
macednios
de Alexandre O Grande e as hordas dos Mongis tinham tomado, viu duas colunas de
Muulmanos e de Hindus cruzarem-se durante vrios quilmetros numa atmosfera de
outro
mundo. No trocaram nenhum gesto hostil, nenhum olhar ameaador. Milhares de homens
passavam sem se ver. De tempos a tempos, uma vaca passava de uma fila outra e da
va um mugido. parte disso, o chiar das rodas de madeira e o arrastar cansa
do dos ps no macadame eram os nicos rudos que saam destas multides em marcha.
Como se
, nas profundidades da sua infelicidade, os refugiados de cada nao partilhassem
in
stntivamente o infortnio daqueles que encontravam.
Quer o xodo se dirigisse para o Paquisto ou para a ndia, os seus
inumerveis ramos reagrupavam-se no stio onde uma ponte, um vau, uma barca
permitia
m atravessar trs grandes rios do Panjab - o kavi, o Statlej e o Byas.
Prisioneiros de gigantescos engarrafamentos que se aglutinavam de cada lado, os
refugiados tinham de aguentar durante horas ou dias inteiros para atravessar est
as gargantas inextrcveis. Perdido na multido sem rosto que numa tarde de
Setembro s
e escoava pela ponte de Sulemanki sobre o Safli, encontrava-se um slido rapaz de
vinte anos. Tinha grandes olhos pretos, uma farta cabeleira castanha que um risc
o de lado separava e
lbios carnudos encimados por um fino bigode. Era Madarilal Pahwa, o
jovem marinheiro Hindu que fugira no autocarro do primo enquanto o
pai ficara para esperar a data propcia indicada pelo seu astrlogo.
Soldados paquistaneses colocados entrada da ponte tinham confiscado o autocarro
e toda a sua carga: os mveis, a roupa, as jias, o dinheiro, os retratos de Civa.
D
o mesmo modo que milhes de outros refugiados, Madarilal Pahwa a penetrar na sua
no
va ptria sem um vintm no bolso,
sem outra bagagem que os seus fatos. Avanando sobre a ponte no fim da qual
comeava
a ndia, sentia-se "nu como um verme, como se tivesse sido despojado de tudo e la
nado na estrada". De corao enraivecido, jurou que nem um s muulmano devia
ficar na ndi
a, que todos deviam ser escorraados como ele o fora do Paqusto, sem uma rupia,
sem
uma mala.
Era apenas um revoltado mais na onda miservel que um sofrimento comum uma. E cont
udo, Madrilal Pahwa tinha sido escolhido pelos astros
298
para se distinguir das multides que ocercavam. Pouco tempo aps o seu
nascimento, os astrlogos que a ndia venerava tinham predito que o seu nome seria
c
onhecido atravs de toda a india".
O seu pai recorda: "Eu no notara o boletineiro que estava ao meu
lado naquele dia de Dezembro de 1928 at que ele me agarrou a mo para me entregar
u
m telegrama. Nascera-me um filho na noite precedente. Tornara-me pai aos dezanov
e anos. Dei algumas moedas ao boletineiro porque me trouxera uma boa nova e fui
comprar ladus, guloseimas para
os meus colegas de escritrio. Depois, pus-me a caminho de casa.
Quando cheguei a casa, saudei primeiro o meu pai, tocando ao de leve
nos seus ps em sinal de respeito. Ele ps-me um bocado de acar na boca para
celebrar
o nosso alegre reencontro. Pus o beb nos joelhos e pensei: vou oferecer-lhe a mel
hor instruo possvel. preciso que se torne engenheiro ou mdico a fim de
assegurar uma
boa reputao ao nome da nossa famlia. Convoquei os Pandits mais letrados da
aldeia
e os astrlogos para me ajudarem a encontrar-lhe um nome. Disseram que devia
comear
por um "M". Escolhi Madanlal. Os astrlogos estudaram as suas cartas do cu e
profe
tizaram que Madatilal se desenvolveria bem. Anunciaram-me que um dia o seu nome
seria clebre em toda a ndia.
Contudo, abateu-se sobre mim o mau olhado. Quarenta dias aps o
nascimento do meu filho, a minha mulher morreu com um resfriamento. Madanlal foi
esperto e travesso nos seus primeiros anos de escola, depois tornou-se uma cria
na cada vez mais difcil e mostrou acentuadas tendncias para a revolta. Em 1945,
fug
iu de casa. Alertei todos os nossos parentes e os nossos amigos em todo o Panjab
, mas ningum sabia para onde fora. Ao fim de alguns meses, recebi uma carta. Fora
a Bombaim alistar-se na marinha. Quando voltou em 1946, comeou a militar nas fil
eiras da organizao nacionalista R. S. S. S. e a atacar os Muulmanos. Estava
inquiet
o por ele. Foi por isso que fui a Nova Deli em julho de 1947, para visitar o meu
amigo Sardar Tarlok Singh, um dos colaboradores do grande Pandit Nehru. Pedi-lh
e para me ajudar a proteger Madanial das suas ms companhias. Ele aceitou. Promete
u-me intervir para fazer nomear o meu
filho para o melhor posto que eu podia sonhar para ele, o de brigadeiro da polcia
@>.
Pouco aps a sua entrada em territrio indiano, Mandalal Pal---iwa sou-
be que o pai fora gravemente atingido no comboio que o evacuava do Paquisto. Enco
ntrou-o no hospital militar de Ferozpore. A, no meio dos gemidos da enfermaria, n
o odor do sangue, do ter e da podrido os sofrirnentos dos seus irmos Hindus
tomara
para Mandaial o rosto do seu pai "plido e trmulo sob os seus pensos".
O pobre homem tirou do bolso a carta de recomendao que fora buscar a Nova Del e
est
endeu-a ao filho. "Vai a Deli, implorou. Comea uma
299
nova vida e entra num bom servio do governo". Mandarilal pegou a carta, mas no
tin
ha nenhum desejo de se integrar num "bom servio do governo". Os astrlogos tinham
r
azo. O seu destino no seria tornar-se qualquer obscuro polcia no comissariado de
um
a longnqua cidade de provncia. Ao sair do hospital, com os olhos ainda cheios da
d
olorosa viso do seu pai ferido apoderou-se de si um sentimento novo, um sentiment
o que ento partilhavam centenas de milhares de indianos e de paquistaneses. No
tin
ha nada a ver com um alistamento na polcia. "Vou vingar-me", jurou.
A vida de Vi'ckie Noon, a encantadora esposa inglesa de Sir Feroz Khan Noon, alt
a personalidade muulmana do Paquisto, a depender de uma pequena caixa de graxa
para
calado cor de mogno. O esconderijo que encontrara no palcio do seu amigo rai
hindu
de Mandi j estava descoberto. Toda a populao estava agora no seu encalce. Sikhs
ti
nham mesmo ameaado ao rai raptar os filhos se ele no entregasse a fugitiva.
Ajudado pelo jovem comerciante hindu Gautam Sahgal vindo de Lahore em seu socorr
o, o princpe acabava de mergulhar a sua protegida num banho de permanganato de po
tssio para escurecer a cor da sua pele. Ele maquilhava-lhe agora o rosto com a gr
axa que a devia fazer passar por uma autntica indiana. Ao crepsculo, o Rolls-
Royce
do rai, de cortinas comdas para completar o logro, sau como um furaco do
palcio, se
rvindo de isca aos perseguidores. Alguns minutos mais tarde, vestida com um sari
hindu, um tilak vermelho na testa e uma argola de ouro no nariz, a inglesa deix
ou discretamente o seu refgio a bordo do Dobje creme do comerciante Gautam Sahgal
.
Alguns quilmetros depois, Vickie pediu ao seu amigo para lhe permitr satisfazer
um
a necessidade natural. Caa gua a rodos e a jovem deu um passo em falso na
obscurid
ade. O barulho que fez um objecto ao cair no cho, ela teve um tremor de pnico.
Aca
bava de deixar cair a pequena caixa de graxa, perdendo assi o nico garante do seu
anonimato - e portanto da sua salvao. Sob as cataratas da mono, retomara
efectivame
nte a sua pele branca de Europeia. Palpando de gatas no meio das pedras e dos bu
racos, lanou-se em busca da pequena caixa salvadora. Escapou-lhe um grito de aleg
ria quando por fim a encontrou. Apertando-a nas mos como um tesouro, voltou ao ca
rro onde o seu companheiro se apressou a untar-lhe a cara com uma nova camada de
graxa.
Mesmo antes da pequena cidade de Gordaspur, depararam com uma barreira feita por
Sikhs que cercaram imediatamente o seu veculo. Sahgal reconheceu entre eles um c
omerciante de cimento com quem tivera relaes de negcios.
- Que se passa? Perguntou ele.
- A esposa de Feroz Khan fugiu do palcio da rai de Mandi, expli-
3OO
cou o homem, e todos os Sikhs da regio a procuram. Sahgal contou que cerca de tri
nta quilmetros antes tinha precisamente ultrapassado o Rolls-Royce do princpe, e
q
ue tinha de se despachar porque levava a sua mulher grvida ao hospital.
O Sikh deu uma olhadela para o interior do carro. Aterrorizada, Vickie Noon pedi
u a todos os deuses do Panteo, Hindu que a sua maquilhagem no trasse o seu
disfarce
e que o Sikh no se pusesse a falar-lhe em
linguagem hindu. Depois de a ter virado com uma curiosidade admirativa, o homem
endireitou-se finalmente e mandou abrir a passagem.
Logo que o carro atingiu a fronteira do Paquisto, a jovem inglesa aliviada, acari
ciou com gratido a pequena caixa de graxa.
- Sabe, Gautam, confiou ao seu companheiro, o meu marido nunca poder oferecer-me
nada de mais precioso.
Esta aventura foi provavelmente nica, porque raros foram os britnicos que temeram
pela sua vida durante este Outono atormentado. Efecti- vamente, ao longo das sem
anas mais perturbadas de Setembro, o hotel Faletti de Lahore permaneceu um osis d
e paz no meio do Oanjab em fria. Cavalheiros em smoking acompanhados de damas em
vestido comprido saboreavam todas as noites o seu cocktail no terrao, antes de pr
ovar luz da vela a sua especialidade de lavagante Thermidor e de danar ao
ritmo da sua orquestra sul-americana a algumas centenas de metros das runas fumeg
antes de um bairro hindu.
Contudo, de todas as colunas de refugiados que se estendiam de um Estado ao outr
o, a mais incongruente, a mais inslita, no era hindu, nem sikh, nem muulmana,
mas b
ritnica. Dois autocarros escoltados por uma
companhia de soldados gurkhas, evacuaram ao longo das primeiras colinas do Himal
aia respeitveis velhos ingleses que acabavam de abandonar o paraso perdido de
Simi
a onde se tinha retirado. Tinham deixado as encantadoras vivendas com nomes romnt
icos de "O meu repouso", "Ao fim da estrada", ou "O meu retiro", com relvados al
egrados por arbustos florisos, onde tinham desejado acabar a sua existncia. Algun
s tinham riascido nas ndias e nunca tinham conhecido verdadeiramente outra ptria.
Eram os centuries reformados do imprio, ex-coroneis dos ltimos regimentos de
cavala
ria do Exrcito das ndias, antigos juzes e altos funcionrios do Indian Civil
Service,
tendo outrora administrado milhes de indianos.
No tinham tido muito mais tempo para preparar a sua partida que os
Panjabis aterrorizados das plancies. Quando a situao se agravara bruscamente,
tinha
m-lhe sido enviados autocarros para os conduzir a Nova Deli. Tinham-lhes dado um
a hora para pr algumas coisas numa mala e fechar as portas das suas casas.
Fay Campbell-johnson, a esposa do delegado de imprensa de Motint-
3O1
batten fez a viagem com eles. Vrios destes Ingleses eram bastante idosos e sofria
m de uma deficincia da bexiga. Assim os autocarros tinham de parar todas as duas
horas. Olhando estes antigos senhores do prestigioso imprio das ndias urinar na
be
rma da estrada sob o olhar impassvel dos seusguardas Gurkhas, a jovem pensou em t
odas as belas frases de Kipling.
- Meu Deus, pensou, desta vez o homem branco desceu realmente do seu pedestal.
Como numerosos jovens militares sedentos de aventura, o Capito Edward Behr oferec
era-se como voluntrio para ficar no Paquisto aps a independncia. Era agora
oficial d
e informao da brigada de Peshawar. Para ele, este domingo anunciava-se semelhante
a tantos outros que os oficiais britnicos que serviam nas ndias tinham saboreado.
Quando terminou o seu pequeno almoo de papaia e de ovos mexidos no relvado da sua
vivenda, dirigir-se-a ao seu clube para jogar squash, dar algumas braadas na
pisc
ina, beber um ou dois gins tnicos e almoar tranquilamente.
Aparentemente nada mudara nesta cidade que fora a porta do imprio das ndias.
Apesa
r da prxima e turbulenta presena dos Pathans, Teshawar no conhecera nenhuma
agitao.
Este dia seria todavia bastante diferente do que Edward Behr imaginar. Mal tinha
engolido a sua papaia quando o telefone tocou.
- Passa-se algo de terrvel, anunciou-lhe um oficial do P.C. da brigada, os nossos
batalhes esto a matar-se um ao outro.
O mais estpido dos incidentes era responsvel por esta conflagrao. A sentinela
sikh d
e uma unidade que ainda no fora repatriada para a ndia desacarregara
acidentalment
e a espingarda ao limp-la. Por uma incrvel pouca sorte, a bala atravessara o
toldo
de um camio cheio de soldados Muulmanos que chegavam ao Panjab em plena guerra
ci
vil. No fora preciso mais a estes combatentes exaltados para provocar um drama. C
onvencidos de que os Sikhs os tinham atacado, os Muulmanos tinham saltado do
camio
e aberto fogo sobre os camaradas.
O capito Behr enfiou o uniforme e precipitou-se a casa do comandante da brigada.
O general C.R. Morris engoloiu uma ltima golada de ch, limpou calmamente os
lbios,
levantou-se, ps na cabea a sua boina com taria vermelha de general britnico e
subiu
para o jeep com o fato civil que todos os domingos vestia para ir igreja.
Ao chegar ao acantonamento, os dois ingleses viram Muulmanos e Sikhs que se metra
lhavam de uma parte e de outra do campo de manobras. Analisando a situao
primeira
vista, o general ergueu-se, agarrou com uma mo a parte superior do pra-brisas e
ap
ontou a outra em direco ao campo de batalha.
- Para a frente! ordenou ao capito Behr embaraado. De p, a cabea erguida, com o
bon c
omo nico uniforme, incarna-
3O2
o soberba e etema de todo o poderio do sahib, o general Ingls penetrou no campo
de
tiro gritando aos seus soldados para cessarem fogo. A disciplina lendria do antig
o exrcito das indias foi mais forte que o dio. O fogo cessou.
Mas Peshawar no a livrar-se disso to pouco, o rumor de que os
Sikhs massacravam os camaradas Muulmanos espalhara-se entre as tri-
bos da regio. Como para a visita de Mountbatten quatro meses antes, os guerreiros
pathans afluiram cidade em camions, em autocarros, em tonga, a cavalo. Porm,
des
ta vez no vinham s manifestar. Vinham matar. E mataram.
Apesar dos esforos do general Ingls e do capito Edward Behr, o desastroso tiro
da s
entinela Sikh devia fazer mais de dez mil mortos em menos de uma semana. Semelha
ntes labaredas de violncia abrasaram toda a provncia fronteiria do noroeste,
atiran
do para as estradas novas vagas de refugiados. Que uma impercia to benigna
pudesse
arrastar to trgicas consequncias revelava a atmosfera explosiva que ento
impregnava
o subcontinente indiano. Bastava uma fasca para que Bombaim, Karachi, Lucknow, H
yderabad, e Cachemira, todo o Bengala, se inflamas-
se por sua vez.
Vindo de Calcut, Mohandas Gandhi chegou a Nova Delhi em 9 de Setembro de 1947, pa
ra nunca mais voltar a partir. Doravante, no se tratava de se instalar entre os v
arredores-limpa-latrinas intocveis de Bhangi Coloni. Tendo o bairro sido envadido
por milhares de miserveis refugiados do Panjab, era impossvel assegurar a a
segura
na do Mahatma. O ministro do interior Vallabhbahi Patel mandou conduzir Gandhi de
sde a sua descida do comboio para o ri.' 5 de Albuquerque Road em pleno cen-
tro do bairro residencial mais elegante da capital.
Com a sua cerca, o seu roseiral e o seu soberbo relvado, o cho de mrmore, as
porta
s em madeira de teck e a sua legio de criados apressados, a casa do milionrio
Birl
a era o antpode da miservel barraca de intocveis que Gandhi costumava escolher
para
as suas estadias em Nova Deli. Contudo, ilustrando com um novo paradoxo a sua d
esconcertante carreira, o poeta da pobreza que viajava em terceira classe, que r
enunciara a qualquer posse, e que o roubo de um relgio de oito shelins podia faze
r chorar, aceitou, a instncias de Nehru e de Patel, instalar-se nesta habitao
luxuo
sa.
O seu proprietrio, Ghanshyamdas Birla, era o chefe patriarcal de uma das trs
grand
es famlias industriais indianas, um rei da finana cujos interesses englobavam
entr
e outras fbricas de txteis, companhias de se-
guros, minas de carvo, e todo um leque de indstrias diversas.
Embora Gandhi outrora tivesse organizado numa das suas fbricas a primeira greve d
o movimento operrio indiano, Birla era um dos seus mais
3O3
antigos discpulos e um dos mais generosos apoios financeiros do partido do Congre
sso.
A capital da ndia continuava a ser sacudida pela violncia. Em certos stios, a
cidad
e oferecia o espectculo de verdadeiros carneiros. Os servios municipais
encarregad
os de levantar os mortos extravazavam. As proibies das castas e da religio
tornavam
a sua tarefa particularmente difcil. Ao sair de manh do seu palcio, Edwina
Mountba
tten encontrou um corpo na rua. Mandou imediatamente parar um camio que passava.
Mas o motorista era um hindu: a sua casta proibia-lhe tocar no cadver. A ltima
vic
e-rainha das ndias levantou-o ela prpria e p-lo no interior do veculo.
- Agora, ordenou ao motorista estupefacto, conduza este homem morgue.
Os muulmanos de Nova Deli foram reunidos em campos de refugiados para a aguardar,
numa segurana relativa, a sua evacuao para a terra prometida de Mohammed Ali
Jinnah
. Por uma cruel ironia, foi junto de dois esplndidos monumentos erguidos pelos se
us antepassados os imperadores Mongois, que grande nmero deles foram reagrupados.
Tratava-se do tmulo do grande rei Humayun, e do Velho Forte, o Purana Qila, jia
d
a Deli do sculo XV. Cento e cinquenta mil pessoas iam viver nestes santurios da
an
tiga grandeza do islamismo no meio de condies horrveis sem o menor abrigo para
se p
rotegerem das cataratas da mono ou do sol esmagador do outono indiano, e "sem
outr
o alimento, conta o jornalista Max Olivier-Lacamp, seno o que tinham podido traze
r. Idiotas de terror, os infelizes no ousavam sair dos recintos em cujo interior
estavam amontoados, nem que fosse para enterrar os seus mortos. Atiravam-nos aos
chacais, por cima das muralhas".
s dezenas de milhares, morreram de fome, de insolao, de tifide, de clera. Em
Purana
Qilal apenas haviam dois marcos de gua para vinte e
cinco mil refugiados. As pessoas faziam as necessidades em latrinas ao ar livre
cavadas no meio da multido. Num tal infemo, e apesar das devastaes das
epidemias, o
s tbus da sociedade indiana no perdiam os seus
1 Alis produziram-se numerosos incidentes deste gnero. Os Sikhs e os Hin-
dus de um campo de refugiados instalado no Paquisto queixaram-se violentamente ao
s Muulmanos que os guardavam de serem obrigados a viver em condies de higiene
inace
itveis, porque no havia Intocveis para despejar e limpar as retretes.
Em Karachi, a capital de Mohammed Jinnah, os servios municipais de limpeza e
de higiene deixaram de funcionar por causa da fuga dos limpa latrinas Hindus. Pa
ra os reter, os edis Muulmanos anunciaram aos Intocveis que eles eram -
como sempre haviam sido na sociedade Hindu - uma comunidade parte. Mas em
vez de deles fazerem prias, os Muulmanos fizeram uma casta privilegiada. Foram
aut
orizados a distinguir-se do resto da populao usando braadeiras verdes e
brancas semelhantes s da guarda nacional muulmana. A polcia recebeu a instru-
o muito
rigorosa de proteger todas as pessoas que arvorassem estas insgnias.
3O4
direitos. Os Muulmanos recusavam-se a despejar as suas fossas. No ponto mais fort
e dos massacres que ensanguentavam a cidade, o Comit de urgncia teve de enviar ao
Velho Forte cem Intocveis Hindus, sob escolta armada, para assegurar este trabalh
o aborrecido'.
Os defeitos e as carncias da gigantesca burocracia indiana agradavam a situao.
Quan
do os refugiados encerrados no recinto do tmulo de Humayun comearam a cavar
latrin
as suplementares, um representante da municipalidade apressou-se a protestar que
se arriscavam "a estragar a beleza e a harmonia dos relvados". Para dissimular
a sua incompetncia em fornecer soro a tempo o servio de sade atribuu as
devastaes da cl
era a uma epidemia de "Gastro-entrite". Quando um curandeiro se apresentou final
mente porta do Purana Qila com 327 doses de soro, constatou-se que no havia
serin
gas para as ministrar.
Apesar da imensidade de todos estes problemas, os efeitos das decises do Comit de
urgncia comearam todavia a fazer-se sentir. A chegada de reforos militares
permitiu
impr um toque de recolher de vinte e quatro horas e proceder busca sistemtica
das
armas ilegalmente detidas. A violncia acalmou pouco a pouco.
As dificuldades destes dias trgicos tinham aproximado mais Jawaharhal Nehru e Lus
Mountbatten. Neliru vinha duas ou trs vezes por dia
conversar com o antigo vice-rei, "por vezes pelo nico prazer de ter uma companhia
" conta Mountbatten. "Gostava de me confiar os pesos da sua
alma, porque tinha a certeza de encontrar sempre conforto junto de mim". Muitas
vezes tambm, Nelru enviava ao seu amigo Ingls uma mensagem que comeava assim:
"No sei
porque vos escrevo, seno porque preciso que eu escreva a algum para aliviar o
meu
corao".
O lder indiano dedicou-se sem conta durante este perodo. Em alguns meses, notaria
um dos seus companheiros, "envelheceu vinte anos, passando do fsico de Tyrone Pow
er ao de um homem gasto por trs anos de trabalhos forados num campo de
concentrao".
O seu secretrio surpreendeu-o um dia com a cabea nas mos, tentando dormitar
alguns
minutos.
- Estou extenuado, confessou Nehru. Durmo apenas cinco horas por noite. Se pudes
se repousar ao menos mais uma hora! E vs, quantas horas de sono tendes?
- Sete ou oito, respondeu H. V. R. Iyengar. Nehru encarou-o.
- Nos momentos como aqueles que vivemos, diz ele, seis horas so um mnimo, sete um
luxo, oito vcio.
3O5
Dcima primeira estao do caminho de cruz de Gandhi "Devemos deixar-nos degolar
como
carneiros?"
A amplitude dos massacres que atingiram a capital foi para Gandhi ao mesmo tempo
uma surpresa e um choque terrvel.
Nunca Gandhi foi to fiel aos ideais que tinham guiado a sua existncia como nas
hor
as trgicas do crepsculo da sua vida. Confrontado ao desastre que persentira,
agarr
ava-se aos princpios que o tinham inspirado desde a frica do Sul: o amor, a no-
violn
cia, a verdade, uma crena inquebrantvel num Deus universal. Mas o seu povo
tornava
-se surdo sua mstica.
Pregar o amor e a no-violncia s massas indianas para lutar contra a
dominao britnica havia sido j uma aposta. Pregar agora o perdo e a
fraternidade a homens que tinham assistido ao massacre dos filhos, violao das
espo
sas, ao assassnio dos pais e das mes, a homens e a mulheres que tudo tinham
perdid
o e que atingiam o cume.do desespero, parecia uma quimera. Teria sido preciso qu
e todos fossem santos para entenderem a mensagem que Gandhi considerava, todavia
, como a nica possibilidade de escapar engrenagem do dio.
Dominando a sua extrema fraqueza, Gandhi a todos os dias visitar os campos de ref
ugiados para tentar atingir o corao dos infelizes que reclamavam vingana.
- Explica-nos ento, apstolo da no-violncia, o que devemos fazer para
sobreviver? Esc
arneceram um dia alguns Hindus. Pedes-nos para en-
tregarmos as armas, mas no Panjab os Muulmanos atiram a descoberto sobre os nosso
s irmos. Devemos deixar-nos degolar como carneiros?
- Se todos os Panjabis consentissem em morrer at ao ltimo sem preservar uma nica
vi
da, replicou Gandhi, o Panjab tornar-se-a imortal.
O que outrora aconselhava aos Etiopes, aos judeus, aos Checos e aos Ingleses, Ga
ndhi suplicava hoje aos seus compatriotas para o porem em prtica.
- Oferecei-vos voluntariamente no altar do sacrifcio. Aceitai serdes os mrtires
da
no-violncia.
Um clamor de troa acolheu esta petio.
- Vai tu prprio ver ao fundo do Panjab o que a se passa! Gritaram-lhe vozes
encole
rizadas.
Apesar do "milagre" que em favor deles realizara em Calcut, os Muulmanos nem
sempr
e lhe reservaram um melhor acolhimento. Uma vez, entrada de um campo, um homem l
anou-lhe nos braos o cadver do seu beb. O rosto de Gandhi exprimiu a sua
dolorosa im
potncia, mas
esforou-se por consolar a multido sua volta.
Estai prontos a morrer, se for preciso, com o nome de Deus nos lbios, suplicou,
no
perdeis a confiana.
A sua convico era to forte que acalmava o auditrio. Um dia em que penetrava sem
esco
lta na cerca do Purana Quila, Mu-
3O6'
ulmanos rodearam o seu carro e conspurcaram-no. Algum abriu brutalmente a
portinho
la. Imperturbvel, Gandhi sau do automvel e fez frente aos seus adversrios.
Estando a
sua voz demsiado fraca em consequncia do recente jejum destinado a salvar outros
muulmanos, algum teve de repetir palavra a palavra as suas frases.
Explicou que aos seus olhos no existia "nenhuma diferena entre os Hindus, os
Muulma
nos, os Cristos, os Sikhs. Para mim so todos um." Mas a sua mensagem de amor
apena
s suscitou uma indignao geral.
Contudo, o adversrio irredutvel da criao de um Estado Muulmano separado
depressa a tom
ar o lugar de Jinnali no corao dos Muulmanos que ficaram na ndia e tornar-se
seu ben
feitor. Desde a sua chegada a Deli, Gandhi fora assaltado por uma torrente inint
errupta de delegaes Muulmanas atormentando-o com a narrao de todas as
desgraas infligi
das sua comunidade e suplicando-lhe para ficar na capital onde s a sua presena
pod
eria garantir-lhes a segurana. O Maliatina prometeu "no deixar a cidade antes de
e
la ter reencontrado a sua quietude de outrora."
Nada provocaria ento tanta clera em numerosos Hindus como a sua solicitude para
co
m os Muulmanos, e a sua insistncia em afirmar que a infelicidade e o sofrimento
no
conheciam religio. Se o "milagre de Calcut" lhe valera o reconhecimento de
numeros
os Muulmanos Indianos, tinha igualmente levantado contra si bastantes coraes
Hindus
. Mas Gandhi no era homem de renunciar aos seus princpios por causa das emoes
que el
es poderiam arrastar. Nas suas reunies de orao pblica, misturara sempre os
cnticos cr
istos aos Mantra Hindus, a leitura dos versiculos do Alcoro, do Antigo e do Novo
T
estamento, aos da Git. Recusou modificar os seus hbitos.
Uma tarde, uma voz furiosa elevou-se da assembleia dos fiis:
- As nossas mulheres e as nossas irms foram violadas e os nossos irmos
massacrados
em nome desse Al que tu nos cantas!
- Gandhi Murdabad! Morte a Gandhi! Gritou uma outra voz. A multido juntou-se aos
protestos, cobrindo a voz do Maliatina. Teve de se calar. O que os Boers no conse
guiram na frica do Sul e os Ingleses na ndia, conseguiram os seus compatriotas.
Pe
la primeira vez na sua vida Gandhi foi obrigado a interromper a sua reunio de
orao.
Para Mandalal Pahwa, o jovem marinheiro Hindu, obrigado a abandonar a sua terra
natal e cujo nome a ndia inteira devia um dia conhecer, o
caminho da recompensa comeou no gabinete de um mdico de Gwalior, uma cidade
situad
a a trezentos quilmetros a sul de Nova Deli.
Com a cabea redonda, o crneo calvo e o sorriso desdentado, o homeopata Dattatraya
Parchur parecia-se bastante a Gandhi. A sua fama local vinha do seu sita plialadi
, um tratamento natural base de sementes
3O7
.de cardamomo, de cebolas, de rebentos de bambu, de acar e de mel, com que curava
a bronquite e a pneumonia. Mas no foram perturbaes pulmonares que haviam
conduzido
Mandalai Pahwa at ele.
A verdadeira paixo de Parchur era a poltica. Era o chefe local da organizao
extemista
hindu R.S.S.S. Ferozmente anti-muulmano, mantinha uma milcia de um milhar de
part
idrios com a qual se gabaria mais tarde de ter comdo da inda sessenta mil
muulmanos
. O essencial dos seus honorrios servia para dotar o seu pequeno exrcito de
matrac
as, facas, dentes de tigres, revlveres e espingardas. Estavam sempre procura de
n
ovos recrutas e o refugiado exaltado pareceu-lhe um candidato ideal. Parchur prom
eteu a Madarilal permitir-lhe satisfazer a sua sede de vingana. Com um alistament
o nas suas tropas, ofereceu-lhe alojamento, comida, e todos os inimigos que quis
esse matar. Madarilal aceitou. Durante o ms seguinte, recebeu o treino de um coma
ndo especializado na exterminao dos muulmanos que tentavam fugir do Estado de
Bhopa
l para Nova Delhi. "A tcnica simples, conta ele. Espervamos na gare. Parvamos
o
comboio. Saltvamos para os vagons. Massacrvamos os viajantes".
Madarilal e os companheiros desempenharam a sua misso com tanto zelo que o eco da
sua selvajaria chegou at capital. Gandhi fustigou os
seus crimes durante uma orao pblica. O Maharaja hindu de Gwalior teve de pedir
ao d
outor Parchur para acalmar o fanatismo sanguinrio dos seus homens.
Frustrado, Madarilal partiu para Bombaim. Inscreveu-se num campo de refugiados e
reuniu um grupo de jovens partidrios decididos a tudo como ele."
Todos os dias tomvamos o caminho do bairro muulmano de Bombaim, recorda.
Entrvamos
num hotel, o melhor, encomendvamos uma
boa refeio, pratos que antes nunca tnhamos provado. Quando nos traziam a conta,
diza
mos que andvamos na dependura, que ramos refugiados. Se as pessoas no ficavam
conte
ntes, espancavam-se e partia-se tudo."
Por vezes, atacavam-se muulmanos na rua e despojavam-se do dinheiro. Apoderavamo-
nos tambm dos tabuleiros dos vendedores ambulantes e corramos vender as suas
merca
dorias. Todas as noites, no campo, os meus rapazes vinham prestar-me contas e tr
azer-me o que tinham rou-
bado. Eu fazia a repartio. Era a bela vida."
Mas depressa, Madanlal foi levado a justificar a sua aptido para o
comando por aces de mais vasta envergadura que simples furtos de patife. Por
ocasio
da festa muulmana de Bawan partiu para Ahmedriagar com dois cmplices e trs
granadas
. Lanaram os seus engenhos sobre uma multido de peregrinos. Aproveitando o
pnico, M
adarilal escapou-se pelas ruelas do bazar. Flutuando na sacadade um palacete dec
rpito chamado Deccan Guest House, apercebeu um emblema familiar, o orifiama laran
ja marcado com a cruz gamada do R.S.S.S. Atirou-se para o interior.
- Escondei-me, gritou ele, acabo de lanar uma granada sobre um
3O8
cortejo de muulmanos. Barrigudo, com trinta e sete anos, o proprietrio do
estabele
cimento Vishnu Karkar deu um pulo, bateu as mos num sinal de gratido e abriu
fratem
almente os braos ao fugitivo. Para MadanIal Pahwa, os caminhos da vingana tinham
d
eixado de ser caminhos solitrios.
Em dois de Outubro de 1947, as naes do mundo associaram-se ndia independente
para c
elebrar o septuagsimo aniversrio do maior indiano vivo. Aos milhares, telegramas,
cartas e mensagens levaram ao Mahatma a homenagem afectuosa do seu povo e dos se
us admiradores estrangeiros. Lderes ou refugiados, Hndus, Sikhs e Muulmanos
suceder
am-se em Biria House com a oferta de fruta, de guloseimas, de flores. Pela sua p
resena, Nerhu, Patel, os ministros, jornalistas, embaixadores, Lady Mountbatten d
eram ao acontecimento a dimenso de uma festa nacional. Nada porm evocava a
atmosfe
ra disso no quarto de Gandhi. Todos os visitantes ficaram impressionados pela su
a extrema fraqueza, e sobretudo pelo ar de profunda melancolia que se lia no seu
rosto vulgarmente to alegre. Aquele que um dia exprimiu o desejo de viver cento
e cinte e cinco anos porque era esse "o tempo necessrio a um soldado da no-
violncia
para realizar a sua misso", decidira marcar a passagem de um novo ano da sua vid
a orando, jejuando, e consagrando a maior parte do dia a trabalhar na sua querid
a roda de fiar. Queria que o aniversrio do seu nascimento fosse a ocasio de
glorif
icar um renascimento, o do instrumento ancestral, e das virtudes que representav
a, virtudes que a ndia parecia ter esquecido na sua loucura assassina.
Porqu este dilvio de felicitaes? Exclamou admirado durante a reunio de orao.
Teriam sid
o mais apropriadas "condolncias ".
Pedi a Deus, suplicou aos seus partidrios, para que acabem as confrontaes
actuais o
u que me chame a si. No quero que um novo aniversrio me surpreenda numa ndia em
cha
mas."
Tnhamos ido para junto dele na exaltao, anotou nessa noite no seu dirio a filha
deVa
llabhaiPatel. Partimoscom o coraopesado".
A radiodifuso da ndia independente prepara um programa especial em honra de
Gandhi
. Mas ele recusou-se a ouvi-Ia. Preferiu meditar enquanto fiava a fim de ouvir,
atravs do chiar regular da roda, o murmrio da "triste doce msica da humanidade".
A tragdia da partilha no teria sido completa sem a inevitvel exploso de
selvajaria s
exual. Quase todas as atrocidades que atingiram a infeliz provncia do Panjab se a
gravaram numa orgia de violaes e de raptos. Dezenas de milhares de jovens e
mulher
es foram arrancadas s colunas de
3O9
refugiados, aos comboios sobrecarregados, s aldeias isoladas. Uma cerimnia
religio
sa santificava em geral o rapto das mulheres Sikhs e Hindus, converso forada que
a
s tornava dignas de entrar na casa ou no harm dos seus raptores muulmanos.
Santosh NandIal, uma jovem Hindu de 16 anos, filha de um advogado de Miariwallah
, no Paquisto, foi conduzida aps a sua captura para casa do presidente da cmara
de
uma aldeia vizinha. "Esbofetearam-me conta ela, depois um chegou com um pedao de
carne que me foraram a engofir. Era atroz: nunca na minha vida comera carne. Toda
a gente ria. Desatei aos soluos. Um Mullah entrou e recitou versos do Alcoro.
Tiv
e de os repetir palavra a palavra". Aps isso, Santish recebeu um novo nome: "Alla
h Rakhi" "salva por Deus".
A jovem foi ento oferecida em leilo. O seu comprador foi um lenhador. "No era um
ma
u homem, reconheceria ela trinta anos mais tarde. Nunca me obrigou a comer carne
". No fim do sculo XVII, o dcimo guru Gobind Singh proibira formalmente aos Sikhs
ter relaes sexuais com Muulmanas, o que cobrira estas de todos os atrativos do
frut
o proibido.
As agitaes da partilha do Panjab depressa fizeram varrer esta lei religiosa e em
b
reve se viu florescer uma verdadeiro comrcio de jovens rapatadas.
O campons Sikh Boota Sngh, um antigo soldado de Mountbatten durante a campanha da
Birmnia, trabalhava o seu campo numa tarde de Setembro quando ouviu gritos de ter
ror. Viu uma adolescente correr desesperadamente para escapar ao seu perseguidor
. Era uma jovem muulmana arrancada a uma coluna de refugiados em marcha para o Pa
quisto. Esgotada, a infeliz veio lanar-se-lhe aos ps: "Salvai-me, salvai-me!"
Inipl
orou.
Esta intruso inopinada no seu bocado de terra ofereceu a Boota Sirigh a ocasio
pro
videncial de resolver o problema que mais o atormentava a solido. Aos sessenta e
cinco anos, este homem tmido nunca se casara.
Interps-se entre a jovem e o seu raptor.
- Quanto queres? Perguntou a este..
- Quinhentas rupias. Boota Singh no pensou um segundo ao negociar. Foi at sua
casa
de barro e voltou com a quantia.
Filha de um pequeno campons de Rajasthan, a jovem muulmana tinha dezassete anos e
charnava-se Zenib. A sua chegada transformou a
existncia solitria do seu benfeitor iluminando-o com uma presena ma-
ravilhosa. Boota Singh tratou a jovem companheira como uma princesa, enchendo-a
de todos os presentes que a sua modesta condio lhe permitia: um sari, gua de
rosas,
sandlias incrustadas de lantejolas.
Para Zenib, que fora roubada famlia, espancada e violada, a sua
tema compaixo e atenes delicadas foram to reconfortantes como inesperadas. No
tardou
em sentir uma viva afeio pelo velho Sikh. Ele tor-
nou-se o polo a cuja volta doravante a vida dela gravitou. Acompanhava-o
31O
para os campos, ordenhava as duas bfalas ao nascer e ao pr do sol, dormia junto
de
le. Apenas a alguns quilmetros da tormenta do xodo, Boota Sirigh oferecia-lhe um
h
avre de paz e de amor.
Um dia, muito antes da aurora como exige a tradio Silch, reteniu no caminho um
ale
gre concerto. Escoltado de cantores, de tocadores de flauta e de vizinhos com to
chas, cavalgando uma montada toda enfeitada, e en-
volvida em veludo, Boota Sirigh vinha pedir a mo pequena muulmana que comprara.
Um
guru trazendo um exemplar do Granth Sahib, o livro santo dos Sikhs, seguiu-o ao
.interior da casa onde, trmula no seu sari de noiva entretecido de ouro, Zenib es
perava. Radiante de felicidade, com
um turbante novo vermelho vivo, Boota Singh sentou-se ao lado da futura esposa n
o cho de terra batida. O guru lembrou-lhes as obrigaes da vida conjugal e leu os
ve
rsculos sagrados que cada um repetiu com ele. Depois Boota Sirigh levantou-se, pe
gou a ponta de uma charpe bordada e estendeu a outra a Zenib. Assim ligados um ao
outro, realizaram juntos quatro lawan, descrevendo quatro crculos msticos em
volt
a do santo livro. O guru pde ento declar-los marido e mulher. Fora, o sol
erguia-se
sobre os campos de Boota Singh.
Sinnimos de tantos sofrimentos para milhes de Panjabis, os dias futuros am
realizar
a felicidade do velho Sikh. A jovem esposa esperava um filho. Esta beno suprema
p
arecia mostrar que a Providncia velava sobre a terra maldita do Panjab. Contudo,
este casal feliz no seria poupado. Uma prova cruel devia atingi-lo em breve. Para
os seus correligionrios divididos, Boota Singh e Zenib am incarnar a tragdia da
Pa
rtilha.
Nos mapas do Q. G. de Lus Mountbatten, cada traado de alfinetes de cabea
vermelha l
evava inelutavelmente a um campo de refugiados. Os milhes de homens desenraizados
chegando ndia e ao Paquisto punham os dois governos perante problemas at
ento desco
nhecidos. Desorientados com a desgraa, estas multides esperavam agora um milagre.
Tinham conquistado a liberdade, e criam que esta liberdade dotaria os seus dirig
entes com o poder de apagar a sua infelicidade.
O jornalista indiano D. A. Karaka encontrou um dia, num campo de Juliundur um ve
lho homem que agitava uma folha de cademo escolar. Mandara escrever a, por um jor
nalista, a lista de todos os bens que tivera de abandonar no Paquisto - a vaca, a
casa, os charpoy, as ferramentas, a charrua - com a avaliao do seu valor. O
monta
nte total elevava-se a quatro mil e quinhentas rupias. Agora a "apresentar esta f
actura ao governo para se fazer reembolsar".
- Que governo? Exclamou o jornalista.
- O meu governo, respondeu o velho. Depois, com uma tocante ingenuidade, acresce
ntou:
311
- Perdo, Master, podeis indicar-me onde posso encontrar o meu governo?
Os ricos no foram mais privilegiados que os pobres. Um oficial Sikh em Arnritsar
teve de albergar vrios dos seus amigos com as famlias. Dois meses antes, eram
todo
s milionrios em Lahore. Tinham perdido tudo.
Um oficial de Gurkas que escoltava um comboio at Nova Deli ficou chocado ao encon
trar um homem visivelmente abastado, que chorava amargamente. O viajante confiou
-lhe que estava completamente arruinado.
- No vos resta realmente nada? Compadeceu-se o oficial.
- Somente quinhentas mil rupias.
- Ento, ainda sois rico! Protestou o oficial.
O refugiado acenou a cabea em sinal de negao e explicou:
- No, porque cada anna de cada rupia apenas deve servir para mandar assassinar Ne
hru e Gandhi.
As dificuldades sem conta postas pelo acolhimento dos refugiados ultrapassavam a
imaginao. Tudo faltava: milhes de cobertores, doses de vacinas, dezenas de
milhare
s de tendas. Encontrar e distribuir vveres em quantidade suficiente exigia meios
logsticos de uma amplitude incalculvel.
As condies de vida nos campos no deixaram de piorar, trazendo cada dia seu
aumento
de bocas a alimentar. Um insuportvel fedor de excrementos, de morte, de
putrefao, s
ubia destes refgios onde uma populao de condenados fervilhava - o " odor da
liberda
de ", notou com rancor um coronel Sikh no decorrer de uma inspeco. A extrema
misria
juntava o srdido ao horror nestas antecmaras do infemo. Os mais resistentes
fazia
m guarda junto dos pais moribundos para estarem seguros de recuperar os seus mag
ros bens na hora do ltimo suspiro.
excepo de Gandhi, nenhum dirigente indiano se tornaria to popular junto dos
refugi
ados como uma inglesa em uniforme Kaki. Durante estes meses de pesadelo, Edwina
Mountbatten desgastou-se sem conta,
com uma energia e uma vontade que o prprio marido no teria podido ultrapassar.
Con
solar a terrvel misria era uma tarefa altura desta mulher generosa. A sua
autorida
de o seu sentido da organizao, o seu incansvel deotamento, a sua compaixo
profunda i
am fazer de Edwina Mountbatten um anjo de misericrdia que dezenas de milhares de
indianos jamais esqueceriam.
A trabalhar todas as manhs desde as seis horas, passava o dia a correr de um camp
o ao outro, de hospital em hospital, passando tudo em revista, procurando solues,
dando ordens, retificando erros. Nos se tratava de visitas protocolares. Ela conh
ecia o nmero de marcos de gua necessrios por milhares de refugiados, sabia como
org
anizar uma vacinao sistemtica, que regras de higiene impr com prioridade.
H. V. R. Iyengar, o secretrio particular de Nehru, recorda-se de uma tarde a ter
visto chegar a uma reunio do Comit de urgncia, apos uma
312
volta extenuante dos campos do Panjab sob um sol ardente. Enquanto o seu ajudant
e de campo adormecera de esgotamento na diviso ao lado, Edwina, "fresca e sorride
nte, fazia uma exposio exacta das suas observaes e sugeria a adopo de toda a
espcie de
medidas".
Sugeita a indisposio de altitude, detestava viajar de avio. Contudo, nunca
hesitou
em escolher este meio de locomoo quando ele lhe permitia ganhar tempo, tendo
ento o
cuidado de se maquilhar um pouco mais chegada. Em caso de urgncia, no hesitava
em
impr descolagens e aterragens acrobticas em terrenos no balizados ou submersos
no
nevoeiro."
A coisa mais absurda de lhe dizer teria sido: "Excelncia, receio no ser
convenient
e fazerdes isto", conta o capito de corveta Peter Howes, porque podieis ter a cer
teza de que ela o faria imediatamente".
Nenhum espectculo era mais atroz, nenhum contacto demsiado repugnante, nenhuma
tar
efa demsiado degradante, nenhum ser demsiado miservel para no merecer a sua
consider
ao. Peter Howes rev-la-a sempre atolada na lama e nas imundcies at aos
tornozelos, no
meio de homens, de mulheres e de crianas morrendo de clera - uma das agonias mais
horrveis -, inclinando-se para eles, acariciando-lhes a testa ardente de febre, s
uavizando os seus ltimos instantes com um sorriso afectuoso.
O drama da partilha que a india e o Paquisto viveram suscitou outros comportament
os admirveis, de sacrifcio e de herosmo cujos autores permaneceram as mais das
veze
s annimos. "A nica maneira de se agarrar razo era tentar salvar todos os dias
uma v
ida", diria o oficial de polcia Hindu Ashwini Kumar, resumindo assim os sentiment
os de numerosos indianos que recusaram deixar-se arrastar pela histeria colectiv
a. O prprio Kumar arrancou morte vrios milhares de refugiados Muulmanos nos
caminho
s do xodo no hesitando em abrir fogo sobre os seus
compatriotas que os atacavam.
Viram-se Sikhs arrancar Muulmanos s multides desenfreadas que comeavam a
linch-los. M
uulmanos. esconder Hindus e Sikhs em suas casas durante meses. Um hindu desconhec
ido salvou o ferrovirio Ahwed Ariwar gritando aos que se preparavam para o cortar
em bocados: "Alto, um Cristo!" Um capito muulmano do Frontier Riffies foi
morto ao
defender uma coluna de refugiados Sikhs. Foram centenas, cuja coragem iluminou c
om um pouco de esperana esta longa noite de horror.
Uma aparncia de ordem emergiu pouco a pouco do caos. O Comit de Urgncia, cuja
aco rep
resentava para Nehru "a melhor lio na arte
de governar que um novo Estado jamais recebeu", retomou um controle parcial da s
ituao no Panjab. Milhes de refugiados continuavam l, mas as paixes
antagonistas comeav
am a acalmar-se. Esta melhoria foi assinalada por um comunicado lacnico anunciand
o que "o hbito de atirar os Muulmanos pelas janelas dos comboios parecia em
declnio
".
313
Estava porm reservada aos infortunados do xodo uma ltima maldio. Do cu, cujo
socorro m
ilhes de refugiados tinham implorado no infemal calor do vero, caram enfim as
esper
adas cataratas da mono, mas com uma tal violncia que a ndia no conhecera h
meio sculo.
Dir-se4a que, numa brutal exploso de clera, todos os deuses do Panjab queriam
cast
igar com um ltimo flagelo o povo que os irritara. Os cinco rios do Panjab - os ri
os que tinham dado o nome provncia e feito prosperar os seus filhos hoje
desenrai
zados - am agora tornar-se o instrumento final da sua destruio.
As chuvas fizeram derreter sob as suas trombas as neves do Himalaia e encheram o
s leitos ressequidos de torrentes furiosas com uma rapidez assustadora. A partil
ha e o caos que se seguiu tinham desorganizado o sistema de alarme montado pelos
Ingleses. Massas de gua, altas como casas, cairam de repente em vinte e quatro d
e Setembro no corao do Panjab, afogando num tumulto de fim do mundo as
deze
nas de milhares de refugiados que l tinham parado para passar a noite.
O campons muulmano Abduraman Ali e os habitantes da sua aldeia tinham instalado o
seu acampamento nas margens do Dyas ento praticamente seco. Parecia anim-los uma
e
uforia particular: nessa noite o asilo do Paquisto j no ficaria muito longe.
Apenas
alguns o atingiriam. Ali tinha arrumado o seu charab numa elevao. Acordado
pelos g
ritos e pela louca enchente, conseguiu subir para ele com a famlia. A gua atingiu
os eixos, depois o lastro, chegou-lhe at aos joelhos, subiu at ao peito. Durante
d
ois dias, Ali e os seus agarraram-se ao veculo, sem comida, a tremer de frio e de
terror perante o espectculo das ondas circulando volta dos restos dos atrelados
e dos cadveres inchados dos seus vizinhos e dos animais.
As pontes que durante geraes tinham resistido foram submersas, arrancadas pelo
ter
rvel poder das guas. O maior indiano Ashwini Dubey viu a torrente engolir a que
at
ravessava o Byas perto de Arriritsar. Os charabs, os bois, as pessoas, foram arra
stadas nos turbilhes, projectadas contra os peges com uma fora que "pulverizou
as c
arroas como caixas de fsforos, esmagando homens e animais".
A fotgrafa Margarett Bourke-White foi surpreendida no seu sono pelo transbordar f
ulgurante do Ravi e teve de lutar na gua e na lama at cintura antes de poder
ating
ir um refgio. Quando por fim a gua se retirou, voltou a estes lugares de
apocalips
e, um prado entre a ribeira e a rampa da via frrea onde quatro mil Muulmanos
tinha
m parado nessa noite.
Mais de trs mil tinham-se afogado. O prado "parecia-se a um campo de batalha cobe
rto de charabs de rodas para o ar, de cadvers, de ferramentas, de utenslios
aglomer
ados numa massa de lama e de destroos>@. Para o oficial de polcia Sikh Gurucharan
Singh, a recordao indelvel destas inundaes assassinas seria " a viso do corpo
de um so
ldado Gurka
314
suspenso de uma rvore como um grotesco palhao e que abutres devoravam
metodicament
e na luz sublime da manh."
Nunca ningum saber quantos seres humanos pereceram no Panjab durante as terrveis
se
manas do Vero e do Outono de 1947. Os massacres surgiram na ausencia de qualquer
autoridade organizada e no meio de tal confuso que foi impossvel estabelecer o
seu
balano com exactido. O nmero das vtimas abandonadas na berma das estradas,
lanadas p
ara o
fundo dos poos, das queimadas vivas no incndio das suas casas e das suas aldeias
u
ltrapassa o entendimento. As avaliaes mais sombrias va-
riam de um a dois milhes de mortos. Uma das altas personalidades indianas encarre
gadas de fazer um inqurito sobre estes acontecimentos, o juiz G. D. Khosia d no
se
u relatrio o nmero de quinhentos mil'. Os dois eminentes historiadores britnicos
de
ste perodo Penderei Moon, que esta-
va na poca em servio no Paquisto, e H. V. Hodson, adiantam o nmero de duzentos
a duz
entos e cinquenta Mil2. Sir Chandulal Trivedi, o primeiro governador indiano do
Panjab oriental e uma das personagens oficiais melhor informadas da situao, fixou
em duzentas e vinte cinco mil vidas humanas a amplitude da hecatombe.
A estatstica dos refugiados seria em compensao um pouco mais precisa. Durante
todo
o Outono e uma parte do Invemo, continuaram a
abalar, razo de quinhentos a setecentos mil por semana, at ser atingido o
nmero de
dez milhes e meio. Um outro milho a mudar de domiclio no Bengala, em
circunstncias to
davia menos trgicas.
Os horrores do Panab deviam inevitavelmente suscitar crticas destreza do ltimo
vice
-rei e dos dirigentes indianos e paquistaneses. De Londres, Winston Churchill -
o velho adversrio da independncia das ndias
- fustigou com uma satisfao mal dissimulada o espectculo destas populaes que
tinham v
ivido em paz durante geraes sob a "generosa, tolerante e imparcial dominao da
coroa
britnica", e que se lanavam umas
s outras "com uma ferocidade de canibais."
O Primeiro ministro Clement Attlee perguntou a Lord Ismay no come-
o de Outubro se a Gr-Bretanha "no tinha seguido um mau caminho e precipitado
demsia
do as coisas". Concerteza que era impossvel responder a esta pergunta. O que teri
a acontecido, se a poltica do vice-rei no tivesse sido ditada pela sua convico
de qu
e s uma soluo de urgncia podia evitar um desastre, ca no domnio da pura
hiptese. Contud
o uma
coisa parece certa: no s os lderes indianos tinham aprovado Mountbatten por
querer
agir to depressa quanto possvel, mas todos sem, excepo
1 Stem reckoning, por Gopal Das Khosla. jaico Books, Bombaim, 1963.
2 Divide and quit, par Penderel Moon. Chatto and Windus, Londres, 1961. The grea
t divide, par H. V. Hodson. Hutchinson and Co., Londres, 1969.
315
- lhe tinhan imposto a rapidez como regra de conduta. Jinnah no cessara de repeti
r que a essncia do contrato residia na cadncia da operao. Nehru advertira
constantem
ente o vice-rei de que todo o atraso na escolha de uma soluo coma o risco de
arrra
star uma guerra civil. Mesmo Gandhi, apesar da sua oposio Partilha, empurrava o
vi
ce-rei para,um nico caminho: a retirada imediata da Inglaterra das-ndias. O
predec
essor de Mountbatten, Lord Wavel estivera j to persuadido da necessidade de agir
d
epressa que recomendara na sua famosa "operao casa de doidos uma evacuo das
ndias, pr
ovncia por provncia, nos mais curtos prazos". Considerando a situao dramtica
que Lord
Mountbatten encontrou, ficaria quanto a si firmemente convencido de que qualque
r outra poltica a no ser um acordo negociado para uma Partilha teria mergulhado o
pas num confronto fraticida de uma amplitude nica na histria das ndias,
desastre que
a Gr-Bretanha no teria tido os meios nem a vontade de deter.
O desencadear de violncias que submergiu o Panjab aps a partilha atingiu porm
propo
res que nem Mountbatten nem-nenhum dos peritos consultados, nem nenhum lder
indiano
, tinham imaginado. Os cinquenta e cinco mil soldados da fora especial de
segurana
mobilizados para manter a ordem na provncia foram ultrapassados por este catacli
smo sem precedentes. Mas por mais terrveis que fossem as consequncias da tragdia
fo
ram limitadas a uma nica provncia e a menos de um dcimo da populao total da
ndia. Ora,
qualquer outra soluo correria o risco de expr o pas inteiro a horrores
anlogos aos d
o Panjab.
Para os sobreviventes, a longa e dolorosa experincia da reintegrao duraria
meses, m
esmo anos. Tinham pago pela liberdade de um quinto da humanidade, e este preo dei
xaria amargas recordaes a toda uma gerao. Esta amargura encontraria uma
espantosa ex
presso num grito de raiva e de frustrao, um grito suplicante lanado numa tarde
de Ou
tono em frente de um oficial britnico por um refugiado num campo do Panjab: "Ide
dizer aos Ingleses para voltarem!"
Captulo dcimo quinto
CACHEMIRA,
O TEU NOME EST GRAVADO NO MEU CORAO
A cerimnia que se desenrolava em Srinagar, no palcio brilhantemente iluminado do
m
aharaja de Cachemira, coroava uma das celebraes mais faustuosas do calendrio
hindu.
Todos os anos, no nono dia da lua crescente do ms de Avina em Outubro, os Hindus
celebravam Dasahra, a vitria lendria da Deusa Durga, esposa do Deus Civa, sobre o
demnio-bfalo, Mahishasura, smbolo da ignorncia. Na noite de 24 de Outubro de
1947 o
Maharaja Hari Singh encerrava os festejos desta nova festa segundo o rito ancest
ral, recebendo o tradicional juramento de fidelidade dos dignatrios da sua corte.
Avanavam um a um e depunham na palma do soberano a oferta simblica de uma moeda
d
e ouro envolvida num leno de seda.
O inconstante maharaja era um homem feliz. Da extravagante confraria dos seus 56
5 princpes que tinham reinado sobre um tero do continente indiano, ele figurava
en
tre os trs nicos a possuir ainda um reino. Os outros dois eram o nawab de
Junagadh
, - aquele pequeno Estado em que mais valia nascer na pele de um co que na de um
homem - e o nizan de Hyderabab. O Nawab de Junagadh tentara contra toda a lgica l
igar ao Paquisto o seu minsculo principado situado porm em pleno corao do
territrio in
diano. Os seus dias estavam contados: dentro de menos de duas semanas, uma invaso
do exrcito indiano no lhe deixaria seno o tempo de encher um avio com os seus
ces fa
voritos, as suas mulheres e as suas joias antes de fugir para o Paquisto. Os dias
do nizan tambm es-
tavam contados: apesar de um ltimo combate para fazer reconhecer a sua
autonomia, veria o seu reino integrado fora na ndia independente, pouco tempo
depo
is da partida do ltimo vice-rei.
O maharaja de Cachemira " restabelecer-se " da indigesto diplomtica que lhe
evitar
a, no ms de junho, responder s exortaes do seu velho amigo "Dickie" Mountbatten
e li
gar-se ndia ou ao Paquisto. Sentado sob a sua sombrinha de ouro em forma de
flor d
e lotus, com um turbante de musseline na cabea enfeitado com um medalho de
diamant
es, o pescoo rodeado por doze filas de prolas enquadrando uma esmeralda - jia da
su
a dinastia, Hari Singh agarrava-se ao seu sonho: a independncia do "Vale Encantad
o" que a East India Trading Campany tinha, um sculo antes, vendido aos seus antep
assados por seis milhes de rupias e um tributo anual de seis chales de pashmina,
tecidos com pelo de cabras do Himalaia. Enquanto prosseguia o desfile dos seus n
obres sbditos sob os lustres de cristal do seu palcio, a oitenta quilmetros da,
nas
margens do rio Jhelam, um comando de dinamitadores forava a porta da central elc-
317
trica de Maliura. Um dos homens fixou explosivos num painel coberto de quadros e
de manetes. Dez segundos mais tarde uma violenta deflagrao aturdia os ares.
No mesmo instante, apagavam-se todas as luzes desde a fronteira paquistanesa at a
o Ladakh e aos confins da China. O palcio e toda a capital ficaram simultncamente
mergulhados nas trevas. No seu salo de cabeleireiro flutuante "Vanity", a velha d
onzela Inglesa Florence Lodge no escondeu a sua contrariedade. O corte da corrent
e privava a sua ltima cliente dos benefcios da "mquina de frisar" que trouxera
de P
aris em
1929. Dezenas de outros Ingleses retirados nas suas casas flutuantes amarradas s
margens do lado Dai, interrogaram-se sobre o que podia significar a repentina es
curido. Estes antigos oficiais do exrcito da ndias e estes funcionrios do
imprio igno
ravam ainda, mas esta avaria anunciava o fim da sua calma existncia num paraso de
sol e de flores onde cada um se podia crer o imperador Jehangir por trinta libra
s esterlinas por mes.
No seu quarto onde uma operao pema o tinha estendido, o jovem Karan Singh,
filho m
ais velho do maharia, escutava no escuro os gemidos do vento de invemo que vinha
dos glaciares do Himalaia. De repente, como o pai, como os convidados, como mil
hares de habitantes de Srinagar, ouviu um outro barulho trazido pelo vento. Era
o uivo longnquo de chacais que desciam sobre a cidade.
Uma matilha de outro gnero dirigia-se tambm para Srinagar e o Vale do Cachemira
ne
sta noite de 24 de Outubro de 1947. H quarenta e oi o horas, centenas de guerreir
os das tribos Pathanes paquistanesas tinha invadido o reino de Hari Singh. O seu
exrcito privado tinha desertado quase inteiramente para se juntar s filas dos
inv
asores.
Este ataque de surpresa tinha como origem verosmil a inocente reclamao dirigida
doi
s meses antes por Mohammede Ali Jinnah ao director do seu gabinete militar, o co
ronel Ingles E. S. Birnie. Esgotado por semanas de negociaes difceis,
enfraquecido
pelo mal impiedoso que lhe roa os pulmes, Jinnah resolvera repousar. Mandou
Birnie
ao Cachemira
tomar as disposies que lhe permitissem passar a duas semanas de' frias em
meados de
Setembro. Esta escolha de Vilegiatura era natural. Para Jinnah e a maior parte d
os seus compatriotas, parecia inconcebvel, aps a Partilha que o Cachemira, cuja
po
pulao era trs quartos Muulmana, pudesse ter outro destino seno fazer parte do
Paquisto
.
O oficial britnico devia porm trazer uma notcia espantosa: Hari Singli no
desejava q
ue Jinnah pusesse os ps no solo do seu reino, nem que fosse como turista. Esta re
cusa revelava brutalmente ao chefe do Paquisto que a situao no Cachemira coma o
ris
co de no seguir o caminho previsto. Para ficar desenganado, encarregou um
emissrio
de trazer luz as verdadeiras intenes do hospitaleiro maharaja.
318
As J lf muletas" do velho peregrino da liberdade
na companhia das suas duas jovens e fiis sobrinhas, Manu, de 19 anos ( direita)
e
Abha, que Ganclhi empreendeu nos pntanos de Bengala a ltima cruzada da sua vida
p
ara a reconciliao dos Hindus e dos Muulmanos do seu pas. De aldeia em
abrigos que os camponeses lhes ofereciam. Ela massajava-o, orava com ele, prepar
ava-lhe as cataplasmas de argila, administravalhe as lavagens, acarinhava-o quan
do ele sofria das diarreias, comia na mesma escudela de mendigo.
,oda uma vida sacrifcios ra quebrar s grilhetas e um convite
ndhi, que Churchill chou "esse fakir meio nu", correu durante trinta anos ndia at
aos cantos mais uados para incitar o seu vo a quebrar as grilhetas e levar-lhe a
sua mensagem amor e fraternidade. A a Pobreza voluntria, a sua ,imPlicidade, a s
ua humilade faziam dele um homem into vindo dum passado ngn@quo para fazer nascer
ma India nova. Todos os ias, fiava durante algumas %ras no ancestral tear que e
tinha tornado smbolo da a mensagem. o viajava seno em 3. a
lasse e no vestia nem que sse Para ir ver o rei da glaterrra que uma simples nga
de algodo. hora do h, mesmo na companhia .O vice-rei, s tomava um UCO de
iogurte nu
ma esudela de madeira proveniene da sua ltima priso. (Foto arnera Press-
Parimage).
innah e ehru, dois Vandes chefes "a
cabeca o Imprio dividido
durante UM jantar em 1931 em Londres (ao alto) no qual participou o C'
4-1 ampeo da
causa muculmana Mohammed Ali jinnab foi ianada a idei i +), que
a de um _'tado IsI^Mico independente reunindo os
muulmanos indianos- Este Estado devia chamar-se Paquisto, Dezasseis anos mais
tard
e a 14 de Agosto de 1947, Jn@ah, t.rNA
nado o pai do Paqust-o Passava revista s )tima@ tropas inglesas deixando Karachi
(a
o centro), Algumas horas mais tarde, no grande salo do Irono do Palcio dos ViCe-
re
is em Nova Delhi Jawaharial Nehru Primeiro Ministro (Ia ndia, 'proclamava a ifIci
Pr)endncia do seu
Lord Mountbatten Pari_ser O primeiro governador geral (em baixo). Para aquele que
O mundo chamaria "o homem da rosa" (ao lado) e que um fotgrafo surpreendeu um di
a na posio de pino (ao lado em baixo), este momento coroava uma longa cruzada.
Neh
ru Passou nove anos nas p,i- @es inglesas a'meditar numa <> India nova Ide
alista, so- "'ava conciliar em territrio < Indiano a Democracia parlaMent
ar da Gr-Bretanha e o socialismo econmico de f 1 Kart Marx'Queria uma ndia
ce
ntralizada, li v,e da misria
as Supersties, uma i.a as ue.as chamins de s ne a izessem entrar no
cui . (Foto CaMeia-
S-L be1@.
Com o fim do Imprio
das ndias desapareceu
o mundo fabuloso dos
Marajs
565 marais, rajs e nawabs dominavam em 1947 um tero do territrio das
ndias e u
m quarto da. sua populao. Cada um possua em mdia 11 ttulos, 5,8 mulheres, 12,6
filhas
, 9,2 elefantes,
2,8 vagons de caminho de ferro privado e 3 a 4 Rolis-Royce. Sob a sombrinha dour
ada (ao alto), o maraj de Patiala Yadavindra Singh @ubmete-se sua coroao. A
volta d
o seu faiscante pescoco um colar de oito voltas de prolas avaliado em meio milho
d
e-francos antigos pelos Lloyds. O nizam de HYderabad (de bengala ao centro) pass
ava por ser o homem mais rico do mundo. Duma avareza lendria, era Possuidor de ma
las cheias de dlares e de libras esterlinas embrulhadas em jornais velhos.
Prncipe
modemo e Progressista, o maraj de Kapurthala (em baixo esquerda) dotou o seu
rei
no de escolas, hospitais, e at um Parlamento. O seu palcio era Uma rplica de
Versai
lles onde se falava francs e se bebia gua de vian. Os tronos dos marajs eram
geralme
nte de ouro macico (ao lado). Alguns prncipes (ao lado em baixo , o maraj de
Bikan
er) celebravam o seu jubileu recebendo o seu Peso em ouro. (Fotos PopPerfoto, Ke
ystone).
ndias desencadeia uma tragdia
apocaltica
Filha do amor, mas vtima do dio, a pequena Tanvier Boota Singh nasceu na ndia de
um
pai sikh e me muulmana que havia sido raptada numa colnia de refugiados durante
o
terrvel xodo do Panjab. Quando a sua esposa muulmana foi enviada forca para o
Paqui
sto, o pai da pequena Tanvier suicidou-se. (Colecco dos autores).
Estes apaixonados triunfaram sobre o dio. Enquanto que as suas comunidades se deg
iadiavam atravs do Panjab em loucura, o Sikh K.S. Duggal, jornalista da rdio-
Lahor
e, e a muulmana Aisha Ali, estudante de medicina em Nova Delhi, amaram-se e casar
am. (Coleco dos autores).
Para este infeliz coolie (carregador na india n. d. t.) de Calcut, degolado entre
os varais do seu "ricksham" (transporte de duas rodas puxado por um homem n. d.
t.), a independncia no seria mais do que um sonho. Tal como 5OOOOO dos seus
compat
riotas, pagu com a vida as paixes religiosas que envenenaram o sub-continente
Indi
ano (Foto Associated Press).
Anjo de misericrdia, Edwina Mountbatten dedicou-se integralmente a atenuar a infe
licidade de inumerveis vtimas. Mobilizando socorros, galvanizando os volun-
1-O v--AI I"L4 1 l" @_4" li l@_4l " 1 o 1 '.' 1 1 _
pronunciando o nome de Deus
Envolvido num simples lenol de khadi, uma grinalda de algodo volta do pescoo,
a cab
ea repousando num travesseiro de flores, o libertador da
ser conduzido sua fogueira. As suas o de seguida transportadas confluncia
do Ganges e do Yamuna e entregues gua , je havia levado as cinzas de milhes de
ind
iar ), annimos que ele havia feito suas as alegrias e 3s tristezas. Gandhi uniu-s
e ento para sempre Ia alma colectiva do seu povo.
O seu relatrio teve o efeito de uma bomba: o monarca no tinha nenhuma inteno de
liga
r o seu reino ao Paquisto. Jinnah no podia evitar enfrentar este desafio. O seu
Pr
imeiro ministro Liaquat Ali Khan reuniu em Lahore um grupo de colaboradores qual
ificados para estudar a melhor maneira de obrigar o Maharaja recalcitrante.
Uma invaso declarada foi imediatamente excluda. O exrcito paquistans no estava
prepar
ado para tal aventura que no deixaria de provocar uma guerra com a india.
Oferecam
-se duas outras possibilidades. A primeira foi apresentada pelo coronel Akbar Kh
an, antigo aluno da academia de Sandhurst animado por um acentuado gosto das con
spiraes. Sugeriu fomentar uma insurreio geral dos Muulmanos de Cachemira
contra o seu
soberano hindu. Isso exigiria vrios meses de preparao inas, no seu termo, ver-
se-am
"quarenta ou cinquenta mil habitantes de Cachemira descer a Srinagar para obrig
ar o maharaja a assinar a sua ligao ao Paquisto".
Mais sedutora, a segunda proposta tinha como autor o primeiro ministro da famosa
provncia fronteiria do Noroeste. Apelava para a populao mais turbulenta e mais
temi
da do subcontinente, as tribos Patanes vivendo nos confins do Afganisto. O Paquis
to tinha herdado da Inglaterra o fardo de manter a ordem na regio perturbaba que
o
cupavam. A indocilidade destas tribos era tal que nada estava menos seguro que a
sua submisso dominao poltica dos seus irmos Muulmanos de Karachi.
Trabalhados pelos a
gentes do rei do Afganisto que sonhava com a expanso para o Vale do Indo,
constitu
iam de facto um real perigo para o jovem Estado de Mohammed Ali Jinnah. Desviar
estes terrveis guerreiros para o Cachemira oferecia pois considerveis vantagens.
Isso permitiria encarar uma rpida queda do maharaja hndu e a anexao do seu
Estado, m
as tambm afastar a cobia dos Pathans.
A reunio acabou por um aviso de alerta do Primeiro ministro: a operao devia ser
mon
tada em absoluta clandestinidade, e o financiamento assegurado pelos seus fundos
secretos. Nem o exrcito, nem a administrao, nem sobretudo os oficiais e
funcionrios
britnicos que tinham permanecido ao servio do novo Estado deviam ter a mnima
suspe
ita disso.
Trs dias mais tarde, na cave de uma casa da velha cidade de Peshawar, os principa
is chefes de tribo travavam conhecimento com o homem escolhido para conduzir a s
ua marcha sobre Srinagar, o major Jurshid Ariwar, uma estranha personagem singul
armente dotada para os disfarces. Acocorados sua volta, os Pathans pareciam-se,
com as longas tnicas e as barbas compridas caindo sobre o peito, aos soldados de
Saul ou de Davd. Bebendo ch, tirando fumaas dos hukka, cachimbos de gua,
seguiram at
entamente o sombrio quadro que o enviado de Jinnah lhes esboou.
Explicou-lhes que o infiel e idlatra monarca hindu estava quase a lanar-se nos
brao
s da india, que no poderia tardar a ocupar todo o seu reino. Milhes de Muulmanos
ca
iriam assim sob o jugo hindu. O seu dever era portanto de voar em socorro dos se
us irmos do Cachemira. Por
319
detrs deste convite a uma cruzada, patritica ocultava-se uma operao bem
diferente, u
ma cruzada tambm antiga mas menos herica susceptvel de galvanizar o ardor dos
Patha
ns melhor que uma mobilizao religiosa: a promessa da pilhagem. Algumas horas mais
tarde, nos Morkha de barro das aldeias, nos acampamentos em redor de Landi Kotal
, nas cristas da passagem de Khyber e nas grutas escondidas onde h geraes
fabricava
m as suas espingardas, como nos esconderijos das suas caravanas de contrabando,
os Pathans lanaram o velho apelo do Islo guerra santa, o Jihd. De bazar em
bazar, a
gentes clandestinos asseguraram o abastecimento em biscoitos de milho, gro de bic
o e acar. Amontoando estes vveres num cinto em volta da cintura, os combatentes
ter
iam com que se alimentar vrios dias. Depois os homens, s armas e os abastecimento
atingiram os pontos de reunio.
As vezes eram as de dois altos funcionrios do Paquisto. Contudo, exprimiam-se em
I
ngls. Sir Jeorjes Cunninghan, novo governador da provncia fronteiria de
noroeste, t
elefonava ao general Sir Frank Messervy, Comandante em chefe do exrcito
paquistans
. Nestes primeiros meses da sua existncia, o Paquisto era em grande parte
administ
rado por Ingleses. Consciente de que o seu pas e o seu exrcito teriam
imediatament
e a seguir independncia uma necessidade crucial de quadros competentes, Jinnah -
como Nehru na ndia - tivera a sabedoria de refrear o orgulho nacional e de nomear
os britnicos para os principais postos de comando da nao. O Paquisto no era
menos po
r isso uffia terra oriental e os negcios eram a orientados com subtilidade
absolut
amente bizantinas. Como o Primeiro ministro ordenara, os organizadores da invaso
do Cachemira tinham agido de tal maneira que os seus antigos senhores, hoje ao s
eu servio, ignoravam tudo dos seus projectos.
- Diga-me, Old boy, exclamava o governador Curinrigham do seu gabinete Peshawar,
tenho a impresso de que se tramam coisas bastante estranhas.
H vrio5 dias, explicou ele ao general Messervy, camoins cheios de homens das
tribo
s 'caam sobre a cidade aos gritos de "Allah Akbar". Toda a gente parecia ao corre
nte do destino desta tropa entusiasta, excepto ele prprio,
- Tendes a certeza, prosseguiu ele, de que os paquistaneses so verdadeiramente ho
stis a uma invaso do Cachemira pelos Pathans? Eu seria antes tentado a acreditar
que o Primmeiro ministro da minha provncia em pessoa que os encoraja a lanar-
se nes
ta aventura.
Esta chamada telefnica surpreendera o general Messervy no momento exacto em que f
echava a sua mala. O governo procurara efectivam-ente que no dia J, ele se encon
trasse a dez mil quilmetros do seu quartel general. Uma misso a Londres para
arran
jar as armas destinadas a substituir
32O
as que a inda no tinha entregue, em violao aos acordos da Partilha, tinha
servido de
pretexto para o afastamento do comandante e chefe britnico do exrcito
Paquistans.
- Posso certificar-vos de que me oponho pessoalmente a qualquer empreendimento d
este gnero, respondeu o general Messervy e o Primeiro Ministro deu-me a garantia
de que tambm o era.
- Nesse caso, suspirou Curmirigham, fareis bem em vos informardes do que aqui se
passa.
A caminho de Londres Messervy fez uma paragem em Lahore para se precipitar a cas
a de Liacuat Ali Khan. Com toda a serenidade de um buda dominando num baixo rele
vo de Gandara, o Primeiro ministro do Paquisto acalmou o chefe do seu exrcito. Os
seus receios no tinham fundarnento. O Paquisto nunca toleraria tal operao. H
frente d
o seu visitan- .te, telegrafou imediatamente aos responsveis da provncia
fronteira
* do iigroeste e ordenou-lhes que fizessem cessar esses preparativm escandalo
sos. Messervy voou para Londres tranquilizado. Os canhes e os obuses que l ia
comp
rar serviriam de facto para em breve alimentarem um conflit habilmente provocado
durante a sua ausncia.
Com as luzes apagadas, motor desligado, o Brak Ford deslizou na noite glacial e
imobilizou-se cem metros de uma ponte. Atrs de si estendam-se sombras negras,
uma
dzia de camions onde se apinhavam homens e,arnias, silenciosos. O rudo da
torrente
que coma no fundo do leito do Jhelam enchia a noite. No Break Sairab Khayat Kha
n, o )ovem chefe da seco local dos camisas verdes cofiava nervosamente o bigode.
O
reino do Cachemira comeava do outro lado da ponte e o oficial espreitava com imp
acincia o foguete que devia anunciar-lhe que os soldados Muulmanos do exrcito do
ma
haraja se tinham amotinado, tinham massacrado os seus superiores Hindus, cortado
a linha telefnica de Srinagar e neutralizado as sentinelas do posto de guarda.
Um claro rosado desenhou enfim o arco luminoso esperado. Sairab Kharab Khayat Kha
n voltou a ligar o motor. Comeava a guerra do Cachemira.
Alguns minutos mais. tarde, a coluna chegava perante o edifcio de alfndega da
pequ
ena cidade de Muzaffarabad. Crendo na chegada atrasada de um comboio de mercador
ias, dois guardas sonolentos fizeram-lhe sinal para parar.
Os Patans saltaram ento dos camions dando o seu grito de guerra e ataram os dois
funcionrios com o fio cortado do telefone. ,O jovem chefe da vanguarda das foras
i
nvasoras exultava: a operao no podia comear sob melhores auspcios. A estrada
de Srina
gar estava aberta, uma estrada sem defesas nem obstculos, duzentos quilmetros de
u
m passeio sem perigo que poderiam percorrer desde agora at ao nas-
321
A INVASO DE CACHEMIRA
..... Fronteira segundo a ndia ---Fronteira segundo a China e o Paquisto Linha do
"cessar-fogo" Territrios contestados entre a China e a ndia Cachemira sob
administ
racO paquistanesa depois do "cessar-fogo" (1949)
cer do sol. Aos primeiros raios do alvorecer, milhares de Patans invadiram a cap
ital adormecida de Hari Singli. Os seus homens apoderar-se-lam do palcio, imagina
va Sairab Khayat Khan, e ele prprio levaria ao mahara)'a, no tabuleiro do seu peq
ueno almoo, a notcia que desse 22 de Outubro de
1947 devia dar a volta ao mundo: " o Cachemira pertence ao Paquisto ".
Tudo isso no era mais que um sonho e o jovem militante no a tardar a
desencantar-se
. Os estrategas de Lahore que tinham concebido esta invaso tinham de facto cometi
do um erro fatal: quando Sairab Khayat Khan quis reagrupar as suas tropas para a
s lanar na estrada de Srinagar, tinham desaparecido. Nos seus camions no havia j
um
nico Pathan. Tinham desaparecido na noite inaugurando a sua cruzada para liberta
r os
seus irmos Muulmanos do Cachemira por uma surpresa noctuma nas boutiques do bazar
de Muzaffarabad. A abundncia das riquezas que a encontraram a para sempre privar
Mo
hammed Ali Jinnah da alegria de
322
reaver e de possuir o vale encantado do Cachemira. "Era cada um para si, conta S
airab Khayat Khan. Foravam as fechaduras, arrombavam as portas, pilhavam tudo o q
ue tinham um mnimo de valor". Ajudado pelos seus oficiais, tentou arranc-los a
est
a libertinagem, puxando-os pela aba das tnicas.
- Que fazeis, gemia desesperado, a Srinager que devemos ir! Mas a embriagus do
sa
que tinha excitado os Patns. Nada podia acalmar o seu frenezi. Srinagar no caria
ne
ssa noite nas mos desses homens. Ao ritmo das suas pilhagens sistemticas, ser-
lhe-
iam precisas quarenta e oito horas para percorrer os cento e trinta quilmetros at
ado realmente a viver seno na idade de doze anos, quando o pai e um grupo de padr
es Brmanes cantando mantras lhe tinham passado em bandoleira volta do pescoo,
sobr
e o ombro esquerdo, a delgada trana de algodo que o ligava aos outros Brmanes,
aos
seus antepassados, e, atravs deles, a Brama o criador. Menos de cinco por cento d
a imensa populao indiana podiam pretender a esta elite. A sua iniciao tinha
fechado
o
jovem Gods numa gargantilha de inumerveis regras e previlgios.
Estes no eram de ordem econmica. O pai de gods no ganhava,
332
como carteiro, seno 15 rupias por ms. Mas foi com um encarniamento ridculo que
este
humilde funcionrio criou os filhos na mais pura tradio Hindu. Desde a mais tenra
in
fncia, muito antes de ser cingido com o seu
cordo, Nathuram teve de aprender a recitar todos os dias os versculos snscritos
dos
textos sagrados Hindus.
Como a maior parte dos Brmanes ortodoxos, o seu pai era vegetariano. Nunca comia
em companhia de algum que no fosse Brmane. Antes de tomar a refeio, procedia
s rituais
ablues e vestia fatos limpos, lavados e secos antes, afastados de todo o
contacto
com um ser impuro, tal como um burro, um porco, ou uma mulher no perodo das regr
as. Se um
co-,uma criana ou um Intocvel viessem a tocar-lhe quando ia absorver os
alimentos,
devia privar-se de comer. Conformente aos ritos, tocava os
alimentos apenas com os dedos da mo direita aps ter cuidadosamente espalhado no
se
ntido dos ponteiros do relgio' algumas gotas de gua volta do seu prato e posto
de
parte uma poro para as aves e os pobres. Nunca lia enquanto comia, porque tinta
im
pura e no se pode fazer bem duas coisas ao mesmo tempo.
Esta rgida atmosfera religiosa conveio perfeitamente ao jovem Nathuram que desde
muito cedo mostrou srias disposies para o misticismo. Desde a idade de doze
anos, ps
-se a praticar com espanto da famlia uma
forma estranha e quase desaparecida de um culto tntrico, a Kapallk Puj. Nathuram
c
obria com bosta fresca de vaca uma parede da sua casa. Depois confeccionava uma
mistura de leo e de fulgem, espalhava-a num
prato redondo e colocava o recipiente contra a parede. Acendia ento uma
lmpada cuja luz vacilante projectava sombras sobre o revestimento de bosta, de
leo
e de fulgem. A criana acocorava-se em seguida perante este surpreendente cenrio
e
caa numa espcie de estado secundrio, descobrindo na fulgem e no leo todas as
espcies d
e formas, de imagens, de palavras que antes nunca vira nem lera. Sado deste trans
e, no se recordava de mais nada. Mas este poder de decifrar os sinais misteriosos
no leo e na cera prometiam-no, pensava a famlia, a um destino excepcional.
Nada na sua adolescncia devia justificar com o tempo tais esperanas. Incapaz de
te
r xito no menor exame escolar, errou desde a sada da escola de um emprego para
out
ro, pregando caixas num depsito de mer-
cadorias, vendendo fruta pelas rua@, recauchutando pneus numa garagem. Foi junto
de um grupo de missionrios americanos que aprendeu a sua nica profisso, a de
alfai
ate, que exercia ainda em 1947.
A poltica era de facto a nica paixo de Nathuram Gods. Muito jovem, inflamara-se
pela
s cruzadas de Gandhi e foi por ter entendido o seu apelo desobedincia civil que
f
ez a sua primeira estadia na priso. Em
1937, Nathuraril abandonou Gandhi para se juntar a uni outro mestre do pensament
o, um guru. Crmane Chitpwan como ele - Vir Savarkar.
Nenhum lider poltico teve alguma vez discpulo mais atento e dedica-
Mais exactamente, no sentido da rotao da terra volta do eixo dos polos.
333
do. Gods seguiu Savarkar atravs de toda a ndia, ocupando-se de tudo, mesmo das
tare
fas mais humildes. Sob a tutela deste profeta do Hinduismo militante, Gods pde
fin
almente e realizar algumas das promessas anunciadas pelo adolescente que sabia d
ecifrar os sinais na fuligem. Lanou-se com frenesim ao estudo e leitura, ligando
tudo o que aprendia ao dogma da supremacia racial que pregava o Hindutva de Sava
rkar. As suas qualidades de polemista e de orador no tardaram em se manifestar, e
conservando ao mesmo tempo uma paixo fantica pelos ideiais do seu guru, Gods
depre
ssa ocupou um lugar entre os pensadores nacionalistas da ndia. A partir de 1942,
os deuses do jovem, criado porm na mais rigorosa ortodoxia religiosa deixaram de
ser Brahma, iva, Vislinu. Foram substitudos por uma galxia de divindades
mortais, o
s dolos militantes que tinham sublevado os Hindus contra os Mongis e os Ingleses.
Gods abandonou para sempre os templos da sua infncia por santurios seculares de
um
novo gnero, os P.C. do movimento extremista R. S. S. S.
Foi um desses que Nathuram Gods encontrara aquele que ia tornar-
-se seu associado, Narayan Apt. Fundado em 1944 por iniciativa de Savarkar, o seu
jornal tornara-se o rgo mais virulento da ndia central. A sua publicao
acabava mesmo
de ser provisoriamente suspensa por ordem do governo provincial de Bombaim pelo
seu apoio ao "Dia negro" de protesto contra a Partilha organizada em 3 de julho
por Savarkar e o partido nacionalista Hindu Maliasabha.
O papel de cada scio neste jornal reflectia exactamente as diferenas das suas
pers
onalidades.
Apt era o homem de negcios, o administrador, o criador; Gods o pensador, o
escritor
, o orador. To rgido, to inflexvel nas suas concepes morais quanto Apt se
mostrava flex
el, acomodatcio, e sempre pronto a concluir um arranjo susceptvel de trazer mais
a
lgumas rupias suplementares, Gods vivia como asceta na tradio dos Sadliu. Com
excepo
da sua irrepressvel inclinao para o caf, desinteressava-se da comida.
Habitava ao lado do seu atelier de alfaiate numa espcie de cela monacal mobilada
com um nico charpoy, um leito de cordas entranadas. Levantava-se todas as manhs
s 5
h 3O ao rudo da gua cando bruscamente no seu lavabo quando a municipalidade de
Poon
a abria as vlvulas da distribuio matinal.
Apt, ao contrrio, incarnava o tipo perfeito de bon vivant. Logo que tinha algumas
economias partia para Bombaim para a mandar confeccionar um fato no melhor alfaia
te. Adorava a boa cozinha, o whisky velho e de maneira geral todos os prazeres d
a existncia. Se Gods se desviara da religio hindu para abraar os ideais
polticos do s
eu dolo Savarkar, o epicurista Apt passava o tempo riso templos, alertando os
deus
es com um toque de sino, depondo ofertas junto das numerosas divindades. As suas
cincias preferidas eram a astrologia e a leitura das linhas da mo.
Embora no hesitasse em pregar a violncia para despertar o povo
334
Hindu, Gods era incapaz de suportar a vista de sangue. Um dia que rolava ao volan
te do velho Ford de Apt, pessoas mandaram-no parar para lhe pedirem que levasse a
o hospital uma criana gravemente ferida. "Ponham-no atrs, gemeu, porque posso
desm
aiar se vejo todo esse sangue". Contudo, Gods tinha uma paixo pelos romances
polic
iais de Perry Mason e os filmes de violncia e de aventuras. Quantas noites passar
a numa cadeira de uma rupia do cinema Capitlio de Poona, a deleitar-se sozinho co
m as proezas de AI Capone em Scarface e dos soldados armados de sabres de A Carg
a da Brigada Ligeira.
Se Apt nunca faltava a uma reunio mundana, Gods evitava o contacto das pessoas
que
o punham pouco vontade. Tinha poucos amigos. "Gosto de ficar solitrio no meu
trab
alho", explicava ele. Mas era acima de tudo na atitude para com as mulheres que
os dois homens se opunham. Nenhuma tarefa, por mais urgente que fosse, podia des
viar Apt de uma possvel conquista. Do seu casamento nascera uma criana disforme,
o
que o persuadira de que fora lanado um "mau olhado" sobre a esposa. Tendo cessado
todas as relaes sexuais com ela, encontrara noutro lado generosas compensaes.
Profe
ssor de matemtica durante anos na escola de uma misso americana de Ahmednagar, na
realidade aplicara-se sobretudo em iniciar as jovens alunas nas subtilidades erti
cas do Kma-sutra.
O seu olhar fascinante e o seu encanto valiam-lhe uma slida reputao de sedutor.
Gods, esse, odiava as mulheres. excepo da me, no suportava a presena delas.
Renunciara
aos seus direitos de filho mais velho e abandonara o domiclio familiar para no
te
r de suportar o mnimo contacto com as cunhadas. Apercebendo um dia uma enfermeira
na sala do hospital de Poona para onde fora transportado desmaiado em consequen
cia de uma enxaqueca fulminante, Gods enrolou-se num lenol e fugiu para no
correr o
risco de ser tocado por uma mo feminina. Contudo, a despeito desta repulsa - ou
talvez por causa dela -, as palavras que incessantemente saam da sua pena para de
screver os horrores do Panjab eram os de "violao" e de "castrao".
Gods tinha, com a idade de vinte e oito anos, feito o voto de Brahmacharya, e ren
unciado obra carnal sob todas as suas formas. Aparentemente permanecera-lhe fiel
. Antes de fazer esta escolha, julga-se, apenas tinha tido uma experincia sexual
- tendo como inciador o seu mentor poltico, Vir Savarkar.
Dcima segunda estao do caminho de cruz de Gandhi "Facas e lanas no sol de
invemo"
A pequena cidade de Panipat, a noventa quilmetros ao nordeste de Nova Deli, servi
ra de cenrio por trs vezes s grandes batalhas que tinham permitido aos
conquistador
es Mongis controlar a estrada que conduzia capital da ndia, marcava hoje o
terminu
s de uma nova vaga de invasores, a dos miserveis "desenraizados" que continuavam
a avanar para a ndia em comboios completos provenientes do Paquisto.
A gare no era mais que um vasto campo de refugiados. Numa tarde de fim de novembr
o, o chefe de gare Hindu Devi Dutta viu de repente um bando de Sikhs enraivecido
s saltar do seu comboio ainda em andamento e lanar-se sobre o primeiro Muulmano
qu
e viram brandindo os Kirpan. O chefe de gare correu em socorro do infeliz, grita
ndo aos desordeiros a nica frase que lhe veio ideia de funcionrio respeitador
dos
regulamentos: "Nada de massacres no cais na minha gare, se fazem favor!" Os Sikh
s obedeceram. Arrastaram a vtima para detrs do edifcio onde lhe corta-
ram a cabea. Depois atiraram-se para os bairros Muulmanos da cidade.
Uma hora emeia mais tarde, um automvel trazia o nico socorro que podia impedir
nes
se dia uma perseguio geral dos Muulmanos de Panipat, o Mahatma Gandhi. Para o
salva
dor de Calcut, a manuteno numa cidade indiana dos seus habitantes Muulmanos
tinha o
valor de smbolo. Porque a nica ndia que Gandhi aceitava encarar era aquela em
que H
indus, Sikhs, Muulmanos, Cristos e Parsis viveriam em paz lado a lado.
Dirigiu-se sem proteco para a multido dos refugiados Sikhs que ocupavam as
proximid
ades da gare.
- Ide abraar os Muulmanos desta cidade e pedi-lhes vs prprios para ficarem,
disse. I
mpedi-os de partirem para o Paquisto.
Um rudo hstil acolheu este apelo.
- Foi a tua mulher que eles violaram? Foi o teu filho que eles corta-
ram em pedaos? Gritaram vozes.
- Sim, respondeu Gandhi, foi a minha mulher que eles violaram, foi o
meu filho que eles mataram, porque as vossas mulheres so as minhas mulheres, os v
ossos filhos os meus filhos.
Enquanto falava, uma coroa de sabres, de facas, de lanas, pusera-se a brilhar no
sol de invemo.
- Esses instrumentos de violncia e de dio no podero resolver nenhum probelma,
suspir
ou.
A notcia da sua presena espalhou-se como um relmpago atravs da cidade. Saindo
dos se
us bairros com barricadas, os Muulmanos correrarti para a praa do mercado onde as
autoridades municipais se apressavam a erguer um pequeno estrado e a ligar autof
alantes para uma reunio de orao improvisada. Hindus e Sikhs afluiram por sua
vez, C
omo o maidan de Calcut dois meses e meio antes quando da festa de Id-ud-Fitr, a p
raa grande de Panipat depressa ficou cheia de uma multido suspensa dos l-
336
bios do velho homem de quem esperava um novo prodgio. O milagre comeara j. Os
refug
iados da gare chegavam tambm para se misturarem aos habitantes e ouvirem Gandhi.
Com a garganta presa, constantemente obrigado a aclarar a voz, como se soluos o e
strangulassem, Gandhi afrontou a multido com a nica arma- que possua, - a
palavra.
Definiu de novo o seu ideal poltico, "aquele ideal que faz de ns todos, Hindus,
Si
lchs, Muulmanos, Cristos, os filhos e as filhas da nossa me comum, a
India". Aos rostos dolorosos dos regugiados ofereceu toda a compaixo da sua alma.
Mas pediu-lhes para no deixarem o esprito cruel e de vingana invadir os seus
coraes.
Como sempre pregara s massas miserveis do seu pas, implorou-lhes que
encontrassem
na sua infelicidade os germens de uma prxima vitria.
Uma tmida corrente de simpatia pareceu aquecer a assistncia. Aqui e ali, um Sikh
e
stendeu a mo a um Muulmano. Muulmanos ofereceram um cobertor ou o seu colete a
Sikh
s que tremiam de frio ao vento do invemo. Outros distribuiram chapavi e bombons
aos filhos dos refugiados.
Duas horas mais tarde, Panipat levava em triunfo para o seu carro aquele que aco
lhera com escrnio. Mas a vitria de Panipat no a ter seguimento. Se a
interveno de Gand
hi tinha sem dvida salvo milhares de vidas humans, no tinha extirpado o medo do
co
rao dos Muulmanos da cidade. Menos de um ms aps a sua visita, os vinte mil
descendent
es de uma das mais antigas comunidades Muulmanas da india decidiram finalmente de
ixar a sua terra natal e fugir para o Paquisto. " O Islamismo, observaria tristem
ente Gandhi no dia da sua partida, perdeu a quarta batalha de Panipat".
Tambm Gandhi a perdera.
A sadhu de barba negra vestido com um dothi com quem Narayan Apt, o administrador
do jornal Hindu Rashtra discutia, no era um verdadeiro sadhu. Este facto servia
de disfarce ao traficante de armas Digambar Badg para cobrir as suas actividades
ilcitas. Porque era muito mais pela riqueza do seu registo criminal que pela sua
piedade que este falso sashu era reputado na regio de Poona. Durante os desassete
anos decomdos, fora preso trinta e sete vezes por variadas inculpaes: deteno
ilegal
de armas, ataques de bancos mo armada, assassinatos. Mas a polcia nunca pudera
re
unir as provas suficiente para o fazer condenar. S uma vez, em 193O, cumprira um
ms de priso por ter respondido ao apelo de uma campanha de desobedincia civil de
Ga
ndhi e cortado rvores numa floresta protegida. A coberto de uma pequena livraria,
Badge possua em Poona um shastra bhandar, uma "boutique de armas" clandestina. N
o fundo da sua barraca estava metida toda uma coleco de bombas artesanais,
munies, e
xplosivos, punhais, pontas e sabres, "garras de tigre", em resumo, todos os inst
rumentos assassinos to largamente utilizados pelos degoladores do Panjab. Entre d
ois clientes, Badg e o seu velho pai "tricotavam" igualmente um estranho acessrio
pelo qual eram clebres junto
337
dos assassinos contratados, dos destruidores de sindicatos, dos polticos corrompi
dos, uma cota de malhas prova de balas como usavam os cavaleiros da Idade Mdia@
O administrador do Hindu Rashira era um dos melhores clientes do famoso sadhu. D
esde o ms de junho, Apt tinha-lhe comprado mais de trs mil rupias de armas
diversas
. Porque estava perpetuamente a organizar conspiraes. Uma delas tivera como
object
ivo assassinar Jinnah com granadas por ocasio de uma reunio da Liga Muulmana em
Nov
a Deli * Mais tarde, quando soube que o fundador do Paquisto devia ir a Ge
nebra, Apt decidira ir execut-lo na Suia. Mas, para seu desespero, Jinnah doente
no
sara do Paquisto. Muito recentemente, Apt fora a Hyderabad para a fomentar
aces de gue
rrilha e estudar a possibilidade de matar o Nizam.
- Estou a preparar um novo golpe cochichou ele ao falso sadhu, um
grande golpe. Vou precisar de granadas, de cartuchos explosivos e sobretudo de r
evlveres.
Badg pareceu reflectir, No possua nenhum destes artigos em stock e tornara-se
difcil
arranjar revlveres. Porm, ele no era homem de deixar passar um negcio.
- Aguarde um pouco, sugeriu, terei a mercadoria daqui at ao fim de Dezembro.
Dcima terceira estao do caminho de cruz de Gandhi "Crucificmos o Cristo vivo"
Segundo o seu fiel secretrio Pyarelal Nayar, o Mahatma Gandhi parecia, nestes pri
meiros dias de Dezembro de 1947, "o homem mais triste que jamais se vira" A tragd
ia do xodo dos Muulmanos de Panipat acabara de lhe espedaar o corao. Por outro
lado,
agora que os seus companhei~ ros detinham os lugares daquele poder h tanto tempo
esperado, Gandhi sentia que uma barreira psicolgica se erguera entre ele e aquele
s que guiara na luta pela independncia. Interrogava-se se a sua presena neste
pas q
ue ele tanto contribuira para libertar, no se tornara v, at mesmo embaraosa.
Se a ndia j no precisa da no violncia, interrogava-se ele, pode ainda precisar
de mim
?" No sentiria qualquer surpresa, confiou, se os dirigentes indianos declarassem
um dia: "Estamos fartos deste velho. Porque no nos deixa ele tranquilos?".
Aguardando esse dia, no tinha nenhuma inteno de dar a mnima trgua aos seus
antigos co
mpanheiros. Atacou a corrupo crescente da dministrao indiana e os estravagantes
banq
uetes que os ministros ofereciam enquanto milhes de refugiados morriam de fome. A
cusou-os de estarem "hipnotizados pelas sedues do progresso cientfico e dos
xitos ec
onmicos do Ocidente". Criticou o sonho de Neliru de querer promover
338
o Estado socialista ideal custa de uma excessiva centralizao do poder.
O povo parecer-se-ia a "um rebanho de carneiro espera que o pastor lhe encontras
se as melhores pastagens. Mas os cajados dos pastores, advertia Gandhi, tornaram
-se sempre barras de ferro e os pastores lobos".
Tendo cuidado, declarava ainda, "os novos intelectuais da ndia preparam-se para i
ndustrializar a nao sem se preocuparem com os interesses dos meus queridos
campone
ses". A soluo que preconizava para fazer face a este perigo a um dia inspirar
Mo-Ts-T
ung, Que se enviem estes tecnocratas para as aldeias, "que se lhes faa beber a
gua
dos charcos onde os aldees se banham, o seu gado se rola e se dessedenta, que os
obriguem tambm a curvar sob o sol escaldante os seus corpos de citadinos. Ento
ta
lvez comecem a compreender as preocupaes dos camponeses ".
Se os dirigentes indianos agiam doravante sem receber o conselho do velho profet
a, ele tambm no os consultava. Convocou um dia de Dezembro o industrial de
Bombam q
ue o albergara sada da sua ltima priso inglesa, para lhe confiar uma misso
que a nin
gum devia revelar, nem mesmo a Neliru, ou a Patel. Era destinada a preparar a rea
lizao do sonho que h semanas acariciava.
- Ide a Karachi, pediu, e organizai a minha visita ao Paquisto.
O industrial no acreditou no que ouviu.
- Essa ideia pura loucira declarou. Podeis ter a certeza de que vos vo
assassinar
se executais o vosso projecto.
- Ningum pode encurtar a minha vida um s minuto, respondeu Gandhi. Ela pertence a
Deus.
Gandhi sentia porm que antes de empreender esta nova cruzada devia tentar mais um
a vez restabelecer a ordem no seu pas. "Que cara poderei oferecer aos paquistanes
es se o incndio continua a abrasar tudo aqui?" exclamava desolado.
Nenhum incndio o torturava tanto como aquele que se desencadeava em Nova Delhi. O
s Muulmanos da capital persistiam em afirmar que a nica garantia de segurana era
a
sua presena juto deles. A polcia, culas fileiras se tinham enchido de refugiados
H
indus e Sikhs, mostrava-se ferozmente hostil aos Muulmanos. Outros sobreviventes
do xodo do Parijab apoderavam-se todos os dias das suas mesquitas e das suas casa
s.
O facto de a paz da ndia independente depender em definitivo da fora das armas, e
no da "fora da alma", dos seus habitantes, desesperava Gandhi. Caa em silncios
medit
ativos cada vez mais frequentes, silncios que nele precediam sempre uma deciso
imp
ortante. Quando o ano chegava ao fim, a sua melancolia pareceu agravar~se.
Atravs dos tempos, o mundo lapidou sempre os profetas antes de erigir templos em
sua memria, declarou uma tarde a um grupo de visitantes Ingleses. Hoje, adoramos
Cristo, mas crucificmos Cristo vivo". Quanto a ele, a sua conduta inspirar-se4a n
a antiga mxima de Confuccio: <@Conhecer o bem e no o praticar no mais que
cobardia"
.
339
As pequenas manchas aparecidas na radiografia pulmonar de Mouritbatten Ali Jinna
h estendiam-se inexoravelmente. Durante algumas semanas, a vontade sobrehumana d
o fundador do Paquisto parecera entravar a progresso da tuberculose que o
consumia
. Satisfeito o seu sonho, esta energia perdera de repente o seu vigor, e o mal d
esenvolvia-se de novo. Jinnali deixara Karachi no domingo 26 de Outubro para uma
breve visita a Lahore. "Ao partir, parecia ter 6O anos, conta o coronel Ingls E.
S. Birme. No seu regresso, cinco semanas mais tarde, parecia ter oitenta" . A
batido por uma tosse e uma febre extenuantes, no tinha praticamente sado da cama
d
urante toda a estadia em Lahore.