Doutorado Informal - Alex Bretas - Digital PDF
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Doutorado Informal - Alex Bretas - Digital PDF
Informal
uma jornada pela EDUCAO FORA DA CAIXA
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] PROJETO GRFICO ADRIANA PESSOA E FERNANDA FONTES
ILUSTRAES MATHEUS FONTES
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3
.Sumrio
PREFCIO 6
O INCIO 12
CASOS INSPIRADORES 22
AIESEC 24
Cinese 37
Gap Year (UnCollege Brasil) 48
Caminho do Serto 63
CIEJA Campo Limpo 83
Casas colaborativas 101
CARTAS 132
Andr Gravat 135
A resposta do Andr 144
Lusa Mdena 147
A resposta da Lusa 157
Paul Feyerabend 163
Juanita Brown 174
Jos Pacheco 187
Vera Poder 202
4
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR? 212
Snteses dos casos 214
Snteses das cartas 220
As 12 essncias da jornada 227
AGRADECIMENTOS 347
5
6
. Prefcio
Caminhante, so suas pegadas
o caminho e nada mais;
Caminhante, no h caminho,
se faz caminho ao andar.
Ao andar se faz o caminho,
e ao voltar a vista atrs
se v a senda que nunca
se h de voltar a pisar.
Caminhante no h caminho
seno esteiras no mar.
(Antonio Machado)
Confesso: foi o que pensei quando ouvi meu xar, o Andr Gravat, explicar seu
projeto nascente. A gente batia um papo na padaria da esquina do ap onde eu
morava, logo depois de um encontro organizado pelo Cinese.
assim que, com frequncia e sem se dar conta a gente desempenha o papel
de guardies do status quo. A gente prende a respirao para impedir a entrada
de ar fresco.
7
DOUTORADO INFORMAL
O papo com o Andr aconteceu por volta de 2012. Acho que, hoje, j consigo
entender e aceitar a proposta um pouco mais.
O livro sobre doutorado informal do Alex Bretas, que voc agora tem em mos
ou no monitor sua frente tambm uma viagem.
Voc vai ver que os elementos do caminho arquetpico do heri, que possvel
localizar em todas as boas histrias que a gente gosta de ouvir, esto presentes.
Deixa eu te mostrar:
Ento, Alex sentiu borbulhando nas entranhas um Chamado, como ecos indis-
tintos de terras longnquas, portando promessas de desafios e tentaes. Hesitou
o que deixou muita gente infeliz.
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PREFCIO
A etapa relativa aos Testes Aliados e Inimigos, que voc tambm pode recon-
hecer na cena clssica da Cantina, do filme Star Wars, a primeira parada na
Terra Estrangeira. E representa, para o caminhante, a oportunidade de recon-
hecer o novo terreno e a si mesmo na nova condio de descobridor.
Olha s o que ele, o Alex, fala sobre esse episdio do lanamento do livro:
Estava grvido de uma nova identidade: no mais o gestor pblico, mas o Alex
9
DOUTORADO INFORMAL
Eu fui um dos vrios aliados que o Alex colecionou ao longo da jornada. Tam-
bm fui testemunha do mpeto incansvel, do talento, da generosidade e do
cuidado amoroso com que construiu o seu caminho.
Ou, por outro ngulo, algum cujo texto, sacando de uma caixa de
parafernlias, encaixando e montando, a fim de entregar relevncias que alar-
guem os limites do possvel, em vez de nos chamar a concordar, discordar ou
10
PREFCIO
O livro do Alex pode se tornar, para voc, um guia de acesso precioso a pais-
agens humanas repletas de tesouros escondidos. Deve ser til para quem, assim
como ele e eu (e tantos outros), busca se aventurar alm das fronteiras do uni-
verso seguro, mas extremamente rido, da escolarizao tradicional.
11
12
. O incio
O incio o nome de um arquivo que at hoje est no disco rgido do meu
computador. Ele comeou a ser editado em dezembro de 2013, somente dois
meses aps a minha chegada em So Paulo. Mineiro que sempre fui, cheguei
a terras paulistanas pelo amor e pela dor. Depois de quatro anos namorando a
distncia, j estava na hora de juntar as escovas de dente e experimentar uma
vida a dois. Alm disso, So Paulo tambm foi minha rota de fuga: no queria
mais viver no crcere organizacional. At ento eu trabalhava para o governo de
Minas Gerais como gestor pblico, mas na verdade minha infelicidade estaria
intacta mesmo em outros lugares desde que tivesse que bater ponto e fingir
estar trabalhando.
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DOUTORADO INFORMAL
me desafiava a fazer algo com isso. Ter estado naquele lugar me acendeu a luz da
vontade.
Eu nunca entendi por que a educao a que fui submetido funcionava do jeito
que funcionava. Simplesmente aceitei, por no conhecer outras opes. Ao mes-
mo tempo, durante minha infncia e adolescncia eu ocupava todas as brechas
que podia com o que depois descobri ser autoeducao, quer fosse por meio de
conversas, leituras e, principalmente, atravs da internet.
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O INCIO
quase todo mundo que deseja se aprofundar em uma nova rea: ingressar em
um espao educativo formal, no caso, a universidade1.
Conto essa histria com mais detalhes na carta que escrevi para o Andr Gravat.
1
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DOUTORADO INFORMAL
Mergulhando de cabea
Ter conseguido financiar o projeto coletivamente me revestiu de responsabili-
dade, afinal, o dinheiro de muita gente estava em jogo. Mais do que viabilizar
a jornada, o crowdfunding me forneceu o comprometimento pblico que eu
precisava para agir. Em fevereiro de 2015 deixei de trabalhar como consultor de
forma fixa e finalmente pude mergulhar na pesquisa. Nesse perodo comecei a
alimentar mais frequentemente o blog, que passou a ter em mdia 3.500 visitas
e 1.400 leituras de posts por ms, graas principalmente ao texto O que um
doutorado, segundo quem?, que circulou por vrios sites diferentes. No total,
foram mais de 43.800 visitas e mais de 17.300 leituras (at janeiro de 2016). Os
nmeros so apenas uma das formas de dimensionar o alcance do que produzi
ou talvez sejam um resqucio das minhas manias de burocrata.
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O INCIO
Ao conseguir mais tempo para me dedicar ao projeto, iniciei uma srie de dilo-
gos presenciais e virtuais sobre o doutorado informal em parceria com o amigo
Andr Camargo, que tambm nutre bastante interesse pelo tema. Tambm
comecei, com a facilitadora Paula Manzotti, a realizar Crculos de Doutorandos
Informais2 (CDIs) em diferentes cidades com os objetivos de disseminar a ideia
do doutorado informal e fomentar mais percursos autnticos de aprendizagem.
2
Os Crculos so eventos de um dia de durao que buscam levar a ideia do doutorado informal para
mais pessoas de forma vivencial. Para ler relatos dos CDIs que j ocorreram, acesse o blog do projeto:
https://medium.com/@educforadacaixa
3
Para fazer o download do Manifesto em verso digital, acesse:
http://www.alexbretas.com.br/doutorado-informal
17
DOUTORADO INFORMAL
Alm de aprender sobre iniciativas, tambm queria dialogar com pessoas. Com
isso em mente, comecei a escrever cartas para algumas pessoas que me insti-
garam a aprofundar minhas reflexes sobre educao. No fazia sentido focar
apenas em pensadores consagrados: o principal critrio de deciso quanto aos
destinatrios foi o grau de influncia que cada um exerceu sobre a minha tra-
jetria. Assim, pude ficar vontade e me sentir como se conversasse com amigos
na sala de casa. As seis cartas tambm servem para apresentar a voc pessoas
que se tornaram muito especiais para mim, e cujas crenas e prticas educativas
valem a pena ser desvendadas.
4
O livro pode ser baixado gratuitamente pelo link: http://www.alexbretas.com.br/kit
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O INCIO
De forma at mesmo mais intensa do que ocorrera nos casos, acabei enviando
cartas para correspondentes que no estavam previstos no trajeto planejado
o caso, por exemplo, de Paul Feyerabend, que me hipnotizou com sua crtica
cida sobre as pretenses dogmticas da cincia. Na verdade, mudei quase todos
os destinatrios em relao ao que previ no comeo do projeto, mas o propsito
dos dilogos se manteve: expandir olhares em relao s alternativas para uma
aprendizagem fascinante e verdadeiramente autnoma. No vejo problemas nis-
so porque acredito que a serendipidade tem um papel fundamental nas desco-
bertas de quem confia na sua curiosidade. Serendipidade reconhecer o fio que
nos leva de uma descoberta a outra e confiar intuitivamente em sua trajetria.
Voc pode imaginar que, tanto nos casos quanto nas cartas, fazer pesquisa desse
jeito causa na gente uma srie de reaes, algumas inesperadas. Por isso, de vez
em quando precisei trazer tona algumas lembranas pessoais e redemoin-
hos internos para me ajudar a dar sentido ao que vivi. A ideia de valorizar as
conexes entre o que pulsa no mundo subjetivo do pesquisador com o prprio
percurso de investigao encontra receptividade em diversos mtodos de
pesquisa, dentre eles a investigao heurstica. Embora apenas tenha me depa-
rado com essa metodologia ao final da escrita deste livro, posso dizer que a tive
como inspirao desde o comeo. Sua principal premissa que a questo de
pesquisa precisa ter um forte apelo autobiogrfico, ou seja, o pesquisador deve
estar intensa e pessoalmente envolvido. Definitivamente, a jornada em busca
de alternativas e pensamentos educacionais libertadores um caminho que me
sensibiliza profundo.
19
DOUTORADO INFORMAL
aparecer no livro. Acredito que essa lgica interessante porque pode te ajudar
a refazer por meio da leitura o mesmo trajeto que fiz por meio da pesquisa e
da escrita. Fui me modificando durante o percurso, e possvel perceber isso
ao longo do livro um dos sinais dessas transformaes que, dentro de cada
seo, os captulos tendem a ficar cada vez maiores. como se progressivamente
eu encontrasse mais o que dizer e soubesse melhor como diz-lo.
Reunindo a tripulao
O que voc vai encontrar aqui mais parecido com um dirio de bordo do que
com uma tese de doutorado convencional. Assim como Juanita Brown, minha
mentora no incio do processo e destinatria de uma das cartas, o que quero
contar boas histrias e me fazer entender a partir delas. Histrias que transpar-
eam uma viso de aprendizagem diferente daquela que estamos acostumados.
Imagine, por exemplo, fazer cursinho para passar em um concurso pblico ou
no vestibular. Horas e horas de determinao, suor, contedos interminveis,
a presso dos simulados, professores despejando frmulas e macetes e um
sentimento de culpa por no ter sido to produtivo quanto deveria. A todo
momento ouvimos aquela voz que nos diz tenho que estudar e nunca achamos
que somos bons o bastante perante nossos concorrentes.
Tudo que pesquisei tem a ver com isso: aprendizagem livre. No se trata de se
O autor corrobora com essa viso em vrios textos, dentre eles, Multiversidade, disponvel no
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O INCIO
21
. Casos
inspiradores
22
Um comeo
Certa vez conheci um educador que falava dos cajueiros floridos antes dos de-
mais, em referncia s inovaes que pareciam antecipar o futuro. Os primeiros
itens do meu roteiro de pesquisa so como cajueiros precoces: de algum modo
eles conseguem traduzir no presente sinais poderosos do florescimento que nos
espera.
Comecemos por alguns jovens que desde o final da Segunda Guerra tm sonha-
do em mudar o mundo.
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DOUTORADO INFORMAL
AIESEC
A AIESEC a maior organizao sem fins lucrativos gerida por jovens no mundo.
Seu propsito promover oportunidades de desenvolvimento de liderana por
meio de intercmbios, conferncias, parcerias e outras atividades.
6
Conforme se v no verbete sobre a AIESEC na Wikipdia, disponvel no link AIESEC. Wikipdia.
Disponvel em: http://en.wikipedia.org/wiki/AIESEC
24
CASOS INSPIRADORES
Essa ampliao de olhares sobre o mundo ocorria de forma central por meio
de intercmbios. Os pases escandinavos, neutros na Segunda Guerra, possibil-
itaram que seus estudantes continuassem a viajar pela Europa mesmo durante
o conflito mundial, e isso ajuda a explicar porque o primeiro congresso inter-
nacional da AIESEC aconteceu em Estocolmo, na Sucia. Estudantes de sete
pasesBlgica, Dinamarca, Finlndia, Frana, Holanda, Noruega e Suciaco-
criaram, l, o documento de constituio da AIESEC, cujo propsito firmava-se
como estabelecer e promover relaes amigveis entre seus membros7.
Conversei com duas pessoas que faziam parte, em maro de 2015, da diretoria
nacional da AIESEC no Brasil. Elas me disseram que as competncias que a
organizao mais consegue desenvolver em sua membresia so a comunicao
efetiva, a orientao para a ao, a responsabilidade pelo mundo e o autoconhe-
cimento. Esses quatro pontos, ainda que revestidos de outros nomes, so a base
7
Idem anterior.
8
Extrado da mesma pgina da Wikipdia citada na nota anterior.
9
Basta ver o que projetos como o Mycelium (informaes no link http://mycelium.is), o YIP (The In-
ternational Youth Initiative Program, disponvel no site http://yip.se) e organizaes como o UnCollege
esto fazendo.
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DOUTORADO INFORMAL
O time
s vezes mais importante ter um perfil especfico dentro do time do que um
conhecimento tcnico. O todo mais importante que as partes. O cuidado com
a montagem dos times que tocam o dia a dia da AIESEC muito destacado,
conforme se v na afirmao acima, de uma diretora nacional. Trata-se de uma
preocupao menos voltada para os conhecimentos e mais para as habilidades
10
O texto de Amabile pode ser lido no livro The Innovators Cookbook: Essentials for Inventing What is
Next, organizado por Steven Johnson. Todas as outras citaes da autora foram extradas da mesma
fonte.
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CASOS INSPIRADORES
O sentimento de desafio
Participei da equipe responsvel pela facilitao de duas conferncias da
AIESEC voltadas para o desenvolvimento de lderes, em 2014 e 2015, chamadas
de Train the Trainers (Treinando os Treinadores numa traduo livre). Na
segunda vez que me envolvi, lembro-me de ter identificado dois padres que
ressoavam em vrias falas dos membros ao longo do evento: a dificuldade de se
desapegar do planejamento excessivo e o sentimento de desafio compartilhado
por eles no trabalho dentro da organizao. Sobre este ltimo, tanto as experin-
cias de intercmbio quanto as oportunidades de liderana local, regional, nacio-
nal e global proporcionadas pela AIESEC contribuem para despert-lo.
27
DOUTORADO INFORMAL
Outro aspecto que parece favorecer o senso de desafio na AIESEC atuao dos
membros. As pessoas so estimuladas frequentemente a ingressarem em novas
reas, mesmo que s vezes saibam bem pouco a respeito de seu funcionamento.
Voc no sabe tanto daquilo quanto voc imaginava quando entra em uma
nova rea na AIESEC, ouvi de uma das diretoras nacionais com quem conver-
sei. Isso parece fomentar uma habilidade que o diretor de gesto de pessoas do
Google, Laszlo Bock, chamou de humildade intelectual. Sem humildade, voc
incapaz de aprender. Pessoas brilhantes e de sucesso raramente experimentam
o erro, e ento elas no aprendem a aprender a partir daquele erro.11
11
Conforme se v na entrevista de Laszlo Bock disponvel no site Quartz por meio do seguinte link:
http://qz.com/180247/why-google-doesnt-care-about-hiring-top-college-graduates
28
CASOS INSPIRADORES
Para mim este o esprito da conversa: versar junto, tecer entendimentos, sejam
eles vocabulares ou no. Somos capazes de dialogar de diversas formas. Subita-
mente, a diversidade radical faz descobrir uma humanidade comum, um desejo
de ser escutado.
29
DOUTORADO INFORMAL
Em vrias conversas que tive com membros da AIESEC ficou ntido o valor que
eles enxergam ao receber um no. No ser escolhido para o pas que desejava
viajar de intercmbio, no ser eleito para um cargo, no ser alocado na equipe
formada para organizar uma conferncia, e assim a lista continua. Como existe
uma cultura de estmulo ao desafio, uma negativa dentro da organizao passa a
ser interpretada como uma oportunidade de dar ainda mais a cara a tapa (nas
palavras de um membro), e tambm como um convite reflexo. claro, tudo
isso convive com o sentimento de frustrao que uma situao dessas acaba
ocasionando.
Maturana construiu esse entendimento ao longo de seus estudos sobre a cognio. Um dos livros em
12
30
CASOS INSPIRADORES
O espao para que o no, o erro e o feedback aconteam uma das principais
razes que parecem tornar a AIESEC um espao de aprendizagem significativo.
A AIESEC foi o espao de criatividade, liberdade e autopercepo que eu pre-
cisava para me desenvolver como ser humano. Essa afirmao, de um ex-mem-
bro que entrevistei, atesta isso.
31
DOUTORADO INFORMAL
A motivao intrnseca
Teresa Amabile, em seus estudos sobre criatividade, apresenta-nos trs elemen-
tos para se entender a inovao nas organizaes: expertise (contedos e conhec-
imentos); habilidades de pensamento criativo (como as pessoas abordam as
questes); e motivao (dividida por ela em duas categorias, motivao extrnse-
ca e intrnseca). Vou contar uma histria que ouvi de um amigo que foi membro
da AIESEC e, em seguida, retornarei ao raciocnio de Teresa.
Certa vez, a AIESEC no Brasil decidiu criar uma nova rea na organizao,
chamada de Information Management (Gesto da Informao). Na poca, meu
amigo integrava um comit local e foi o responsvel por implement-la em seu
escritrio. Por conta prpria, ele resolveu desenvolver um manual de como uti-
lizar a ferramenta que estava sendo criada, fazendo um exerccio para tornar a
linguagem do material agradvel. Por isso, foi convidado a dar uma palestra em
uma conferncia nacional da AIESEC sobre o documento que havia desenvolvi-
do, tendo sido o primeiro membro de sua cidade a receber um convite desta
magnitude.
13
Jornada de aprendizagem neste caso um conceito especfico que se refere a viagens e excurses
capazes de promover aprendizados.
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CASOS INSPIRADORES
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DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
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DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
Cinese
O Cinese uma comunidade virtual que conecta pessoas que querem aprender
juntas de forma presencial. Encontros sobre qualquer tema podem ser criados no
site, quer sejam gratuitos ou pagos.
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DOUTORADO INFORMAL
maram de passar mais rpido: 19 horas! Depois de destilar todo o seu cuidado
na decorao da casa, luzes estrategicamente posicionadas, tratou de ajustar
os ltimos detalhesa msica ento comea a tocar e os ingredientes j so
separados na mesa da cozinha. Mais algum tempo se passa at que o primeiro
descobridor bate porta. As conversas comeam tmidas. Logo depois, chegam
mais quatro pessoas. Cinco. Seis. Nove!
No sei se foi assim que aconteceu, mas pelo menos foi o que minha imaginao
encenou quando a Camila Haddad, uma das empreendedoras do Cinese, me
disse sobre a histria de um dos primeiros encontros da plataforma on-line.
O Cinese um site e uma comunidade que nasceu para promover encontros
entre pessoas cheias de vontade de dividir seus conhecimentos, habilidades e
experincias14. A premissa que a internet pode ser um mecanismo potente
para convidar outras pessoas a interagirem e aprenderem juntas, em espaos
presenciais. Contatos e conexes ocorrem virtualmente, e trocas de experincias
e aprendizados so olho no olho, em qualquer lugar onde haja uma inteno
genuna.
14
Conforme se v na pgina Sobre do Cinese, disponvel em http://www.cinese.me/sobre
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CASOS INSPIRADORES
Como fazer a ponte entre pessoas que no se conhecem, mas que poderiam
aprender coisas juntas? Essa foi a inquietao inicial que moveu o trio, ainda
que cada uma tenha tido a sua motivao pessoal para se vincular ao novo em-
preendimento. Camila havia concludo um mestrado sobre iniciativas colabo-
rativas no exterior e viu no Cinese uma forma de materializar, na sua prpria
realidade, o que apaixonadamente estudara; Anna vinha de uma transio de
vida e carreira, e fundar a plataforma significou aprofundar seu movimento
de desconstruir crenas para dar espao a novas estruturas de pensamento;
e Giovana estava concluindo sua graduao em gesto ambiental com uma
srie de questionamentos sobre educao, e o trabalho no Cinese lhe ofereceu
uma maneira concreta de fazer algo com isso. Elas criaram o que queriam que
existisse e, de alguma forma, renasceram junto com o nascimento da plataforma.
Sobre esse momento inicial a Anna quem diz15:
A plataforma nasceu da nossa insatisfao com a forma tradicional de
aprender e ensinar. Todos ns, durante a nossa vida acadmica, nas
escolas, nas universidadese mesmo depoisnos cursos, MBAs, ps,
mestrados e extenses (e ainda que dentro de ambientes mais descolados
como as escolas criativas), aprendemos em um sistema one-to-many, alu-
no-professor, sem muita abertura ou interao. Uma pessoa (o professor)
a detentora oficial do conhecimento e impede o fluxo de trocas bem ri-
cas entre todas as outras. As pessoas no se conectam, no se identificam,
no trocam o quanto poderiam. Se fazem, fora da sala, nos intervalos
e corredores. Por fim, se d pouca importncia para o processo, para a
caminhada e os aspectos sutis da aprendizagem. O importante o resul-
tado. E da as provas, testes, teses, notas e tudo o mais.
15
Extrado do texto O que fazemos no Cinese?, disponvel no blog da plataforma.
Link: http://blog.cinese.me/post/94002114452/o-que-fazemos-no-cinese
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DOUTORADO INFORMAL
Como ouvi na conversa que tive com elas, no queramos fazer essa funo de
escola. At porque, na viso de mundo que originou a plataforma, aprender
possvel com qualquer pessoa e em qualquer lugar. O Cinese uma ferramenta
para que a cidade se torne um espao de aprendizagem.
40
CASOS INSPIRADORES
O Cinese tem que continuar vivo se as pessoas quiserem, se for til16 . A ideia
o projeto ser remunerado pelo valor que efetivamente entrega a quem dele se
beneficia. Ao anunciar essa deciso em um post no blog da plataforma, a equipe
do Cinese tambm manifestou ao mundo as crenas que animam o princpio
da abundncia: As pessoas sustentando coletivamente os projetos nos quais
acreditam, libertando-os de patrocinadores, propaganda e modelos de negcio
baseados na escassez. Por outro lado, se reapropriando dos processos (no caso
do Cinese, o processo de educao) de um jeito mais autnomo e livre17.
16
Extrado do texto Chegou a hora: tiramos o pedgio do Cinese, disponvel no blog da plataforma.
17
Idem acima.
41
DOUTORADO INFORMAL
Assim, ainda que o financiamento do Cinese continue a operar pela via mon-
etria, a escolha por no fixar preos da plataforma pode ser interpretada como
um presente direcionado comunidade. Ao mesmo tempo, por no impor uma
taxa a priori, mais usurios podero utilizar o site, e o cuidado que cada um ter
com a sustentao do servio que dir se ele continuar existindo e evoluindo.
O que o ato de no tornar obrigatrio um pagamento nem forar a gratuidade
faz abalar nosso sistema de crenas baseado na hierarquia: no h ningum
impondo nada.
A opo por no fazer nenhuma seleo prvia dos encontros que so criados na
plataforma tambm um reflexo de uma viso de mundo baseada no princpio
da abundncia. Da mesma forma que no se decide de antemo o preo, tam-
bm no se julga quais encontros so relevantes ou no. No que essa avaliao
no exista: ela feita o tempo todo pela rede de forma autorregulada, isto ,
pelas prprias pessoas que se deparam com os diferentes encontros oferecidos
no site. S faz sentido criar estruturas que legitimam certos conhecimentos em
detrimento de outros se operamos em um paradigma hierrquico. o que a
cincia e inmeras escolas e universidades insistem em fazer.
Minha impresso que, cada vez mais, a equipe do Cinese cuida para que a
lgica de funcionamento da plataforma espelhe os valores do paradigma da
abundncia. No tarefa fcil, visto que, como Eisenstein afirma, a cultura da
escassez nos envolve de tal sorte que a confundimos com a realidade19. Como
representante de um movimento novo sem rota preestabelecida, muitos desco-
brimentos vo se revelando ao Cinese.
18
Conforme se v no texto Um mundo de abundncia, de Charles Eisenstein, traduzido por Camila
Haddad e tambm disponvel no blog.
19
Idem nota anterior.
42
CASOS INSPIRADORES
43
DOUTORADO INFORMAL
quanto a traduo de um texto, espaos seguros foram sendo criados para que
mulheres revisitassem suas crenas. A sensibilizao gerada pela carta de Kasey
abriu caminho para uma onda de conscientizao por meio da troca. E esse pro-
cesso s foi possvel por conta da disposio da equipe por trs do Cinese em se
apropriar de algumas de suas questes mais essenciais e apresent-las corajosa-
mente ao mundo.
Crowdlearning
A plataforma, em fevereiro de 2016, contava com aproximadamente 15 mil
usurios cadastrados e mais de 1.600 encontros realizados. Quanto aos temas, j
se falou sobre sade, feminismo, educao alternativa, economia colaborativa,
religio, empreendedorismo, programao, marketing, polticas pblicas, edio
de vdeo, xadrez, culinria, pedaladas, poesia, storytelling, fotografia, com-
posio musical, entre vrios outros assuntos. A diversidade desponta porque se
trata de uma aprendizagem via multides: o crowdlearning.
A palavra esquisita. Mas voc faz o tempo todo. Com os amigos num bar.
Quando puxa papo com o taxista sobre o que deu ontem no jornal. Quando
troca milhares de links de vdeos no Youtube com a nova paquera. Quando toma
um caf com a v e ouve histrias da guerra. Quando conhece gente nova.20
o que se l em um texto sobre o conceito no blog do Cinese. Para alm de tentar
definir exatamente o que crowdlearning significa, o post vai no sentido de desen-
caixotar o que entendemos por aprender. O crowdlearning elimina o peso insti-
tucional, devolvendo s pessoas a capacidade de se educarem a partir de com-
binaes autorreguladas entre o que cada um oferece e o que cada um busca.
possvel perceber a plataforma, ento, inserida em um contexto em que aprender
tem a ver com gente. Com encontro, troca e conexo. Aquela fagulha que faz
coisa boa e nova vir tona. Que desperta aquela vontade grande de descobrir
mais de algo. Conhecer mais e mais gente diferente. Buscar novas referncias.
Frequentar novos cafs. Comear um outro livro. Escrever um poema21.
20
Extrado do texto Crowdlearning: aprender compartilhar, publicado no blog do Cinese.
21
Idem acima.
44
CASOS INSPIRADORES
22
Citao retirada do texto The World Caf: living knowlegde through conversations that matter, de
Juanita Brown, David Isaacs e a comunidade do World Caf.
23
Retirado do texto O fantstico mundo do encontro: conexo e presena, disponvel no blog do
Cinese.
45
DOUTORADO INFORMAL
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Aprendendo com desconhecidos
47
DOUTORADO INFORMAL
Respeitvel pblico! O que vocs esto prestes a ver agora algo nunca antes
presenciado na face da Terra! Esto preparados? Os incrveis, nicos, excepcio-
nais malabares do Senhor Emanuel Maia!
Isso poderia facilmente ter sado da boca de um animador de circo, mas no. Fui
eu mesmo quem disse. Numa ilha.
48
CASOS INSPIRADORES
Quando cheguei casa do UnCollege Brasil em Ilhabela (SP), era isso que me
aguardava. A Caa ao Tesouro foi a primeira de uma srie de atividades sobre
networking do dia, e eu no queria ficar s olhando. Como uma amiga diz,
preciso pesquisar com a pele, e assim acabei participando ativamente de alguns
momentos com a turma. Sendo um dos mentores do UnCollege, eu j conhecia
um pouco a respeito do Gap Year, um programa de um ano que se prope a
desenvolver as competncias necessrias a quem deseja hackear sua educao.
O UnCollege estava iniciando a segunda turma do programa no Brasil. Viven-
ciar a experinciaainda que apenas por um curto perodo de tempo foi uma
oportunidade nica.
49
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
Liberdade sustentada
Um risco assumido em prol da liberdade. Foi assim que um dos integrantes da
turma do UnCollege definiu o programa. E continuou, dizendo como percebia
sua prpria experincia: reiniciar-se, reinventar-se, desmontar o incompleto
para remontar o possvel completo.
Nesse sentido, uma histria marcante ocorreu quando uma das facilitadoras do
UnCollege, vegetariana, cozinhou frango no almoo para a turma. Ao refletir
sobre o ocorrido, ela escreveu: no estou abrindo mo das minhas crenas, mas
sim abrindo a minha cabea para respeitar a dos outros.
51
DOUTORADO INFORMAL
Ou seja: liberdade para fazer o que mais importa, de um lado; abertura para
conhecer, conviver e incorporar o diferente, de outro; e a unio do grupo e da
rede sustentando todo o caminho. O Eu ocupa o ponto central pelo fato de ser
por meio da conscincia e das escolhas individuais que se torna possvel fluir de
uma polaridade a outra. Isso algo que se verifica tambm em outros projetos
que pesquisei e parece compor um padro de trilhas de aprendizagem baseadas
na autonomia.
Uma das palavras que mais ouvi durante minhas passagens por Ilhabela
foi hackear. A ideia por trs do surgimento do UnCollege fundado pelo
norte-americano Dale J. Stephens aos 19 anos a de que podemos hackear a
nossa educao. Ao examinar os cinco princpios do movimento hacker surgido
nos Estados Unidos na segunda metade do sculo XX24(compartilhamento, ab-
ertura, descentralizao, livre acesso aos computadores e melhoria do mundo),
algumas aproximaes com o universo da aprendizagem autodirigida tornam-se
claras.
Compartilhamento
O que meu seu: no h motivos fortes o suficiente para restringir o compar-
tilhar. Pelo contrrio, existem muitas vantagens em faz-lo. Acelerar melhorias
de cdigo por meio de colaboraes e feedbacks, ser reconhecido pelo valor efe-
tivamente entregue e ampliar o alcance do que se quer criar so algumas delas.
24
A parte descritiva de cada um dos cinco princpios apresentada a seguir foi baseada no verbete
tica hacker disponvel na Wikipdia, no link https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89tica_hacker
52
CASOS INSPIRADORES
Abertura
No movimento hacker, abertura tem a ver com o livre acesso a informaes, de
forma a munir todos aqueles que desejam criar coisas novas com o contedo de
que precisam.
Descentralizao
Ao entenderem o que estava tomando forma, os hackers presenciaram uma
maneira diferente de coordenar pessoas, recursos e esforos. A emergncia das
redes de computadores resgatou a configurao social baseada na autorregu-
lao da rede. Subitamente as pessoas no mundo digital se perceberam interag-
indo de modo cada vez mais horizontal, peer-to-peer25. A descentralizao o
reflexo disso: neste novo multiverso, a sujeio a um intermedirio hierrquico
deixa de fazer sentido.
25
Peer-to-peer refere-se a uma forma de interao entre nodos de uma rede em que no h uma in-
stncia central hierrquica, e sim capacidades iguais de comunicao entre pares. Abordo mais sobre
o tema quando falo sobre as casas colaborativas.
26
No mundo da programao, hack pode ser entendido como uma melhoria gil e inteligente de um
cdigo.
53
DOUTORADO INFORMAL
Melhoria do mundo
Por mais que os hackers possam parecer ensimesmados nos territrios virtuais
que criaram, a finalidade do movimento melhorar o mundo. Atravs dos com-
putadores, os programadores acreditam que podem propor solues novas para
diversos desafios coletivos.
Desde sua origem, o movimento hacker tem interfaces com a aprendizagem au-
todirigida proposta pelo UnCollege. Hackear duvidar do que j existe em prol
de caminhos mais efetivos, pegar atalhos, no se conformar para com-formar
novas estratgias mais adaptadas s demandas do nosso tempo.
Inflao acadmica
Dale Stephens tem esse esprito desde muito novo. Aos 12 anos, pediu aos pais
para no ir mais escola. Conseguiu o que queria. Durante a adolescncia, Dale
frequentou aulas em universidades, empreendeu negcios, viveu na Frana,
trabalhou em campanhas polticas e ajudou a construir uma biblioteca27. Essas
foram suas disciplinas. At chegou a matricular-se numa universidadeo Hen-
drix College, mas isso funcionou apenas para que ele pudesse investigar mel-
hor os problemas que j identificava nas instituies de ensino. Segundo ele, a
universidade recompensa conformismo ao invs de independncia, competio
ao invs de colaborao, regurgitao ao invs de aprendizagem e teoria ao invs
de aplicao28.
27
Traduzido livremente do verbete sobre o fundador do UnCollege disponvel na Wikipedia, no link
https://en.wikipedia.org/wiki/Dale_J._Stephens
28
Idem nota anterior.
54
CASOS INSPIRADORES
29
Idem nota anterior.
30
Citao traduzida livremente do original extrado do Manifesto do UnCollege.
55
DOUTORADO INFORMAL
Fator ilha
A base do UnCollege Brasil no poderia ser em um local mais convidativo
uma jornada de reflexo: Ilhabela. O fator ilha um diferencial que ajuda
a tornar a experincia brasileira nica em relao sede norte-americana do
UnCollege em So Francisco, Califrnia. Estar rodeado pelo oceano remete
simbolicamente a um estado de imerso em si mesmo: significa livrar-se das
distraes sutis que impedem uma viso mais clara sobre o que se passa por
dentro. A busca pelo autoconhecimento uma das marcas da segunda turma do
Gap Year, formada somente por brasileirosdiferentemente do primeiro grupo,
composto por participantes de vrios pases.
31
Conforme se v na palestra que Barry Schwartz apresentou no TED, intitulada Sobre o paradoxo
da escolha.
56
CASOS INSPIRADORES
Jovens centauros
O pblico do UnCollege tem certas caractersticas em comum. Os estudos sobre
a biografia humana realizados pela antroposofia, cincia espiritual fundada por
Rudolf Steiner no incio do sculo XX, podem ser teis para compreend-las
mais a fundo. A antroposofia trabalha com os setnios, ou seja, perodos da
vida divididos de sete em sete anos. A faixa etria dos participantes do Gap
Year incorpora principalmente a fase dos 21 aos 28 anos, ou o quarto setnio. A
principal caracterstica desse momento biogrfico a instabilidade emocional,
conforme apontam os consultores Jair Moggi e Daniel Burkhard. Nesse perodo,
podemos estar nas nuvens e de repente nos sentirmos no fundo do poo para
em seguida elevarmo-nos novamente para as alturas, tudo dependendo das
experincias que temos no ambiente externo32.
32
Citao extrada do livro Assuma a direo de sua carreira: os ciclos que definem o seu futuro
profissional, de Jair Moggi e Daniel Burkhard.
33
Idem nota anterior.
57
DOUTORADO INFORMAL
Para que consigamos domar o animal que existe em ns nesse perodo da vida,
preciso ter a coragem de (se) experimentar. Os dois elementos centrais que
permeiam a jornada do Gap Yearliberdade e abertura para o novotornam-se
cruciais. Ao vivenciarem suas prprias jornadas e verdades, os hackademics rad-
icalizam sua liberdade reduzindo as distraes e, assim, aprendem a perseguir o
que faz seus coraes vibrarem. Como disse Joseph Campbell35:
Quando voc segue o que faz seu corao vibrar, voc se coloca em uma
trilha que sempre esteve ali, esperando por voc, e a vida que deveria
estar vivendo a que voc est vivendo. Onde quer que estejase estiver
seguindo o que faz seu corao vibrar, estar desfrutando desse frescor,
dessa vida em seu interior, o tempo todo.
34
Idem nota anterior.
35
Citao retirada do texto Duro no saber o que faz seu corao vibrar de Andr Camargo, publi-
cado na Obvious Magazine.
58
CASOS INSPIRADORES
Durante a Caa ao Tesouro, uma das misses que precisvamos cumprir era
abraar uma pessoa desconhecida. Mais tarde naquele mesmo dia, uma das
participantes descreveu o Gap Year da seguinte forma:
A experincia do UnCollege, para mim, est relacionada ao desafio
de abraar um estranho. Com o curso, voc abraa novas realidades,
conexes, histrias, habilidades, dvidas, questionamentos e projetos de
vida. Ao mesmo tempo, voc vai abraando novas facetas pessoais, o eu
desconhecido, a essncia escondida. abraar em mim e no mundo o
desconhecido que quer despertar.
36
Extrado do livro Assuma a direo de sua carreira: os ciclos que definem o seu futuro profissional,
de Jair Moggi e Daniel Burkhard.
59
DOUTORADO INFORMAL
O mito de Procusto
Em minha breve passagem pela casa do UnCollege Brasil, uma das participantes
do programa compartilhou conosco uma prola: Tantas vezes precisamos nos
encaixar e acabamos deformando nossas particularidades. Aqui, estou num
processo de me desencaixar para fortalecer minhas particularidades.
Ainda assim, isso no quer dizer que quem vai para o programa no precise
encarar seus desafios. Retornando a So Paulo depois de minha visita a Ilhabela,
ouvi de um dos cofundadores do UnCollege a histria de Camille Sondermann,
participante da primeira turma do Gap Year no Brasil: Antes de ela vir para o
UnCollege, ela me disse duas coisas que no queria fazer de jeito nenhum: falar
em pblico e viajar para a sia. Ao final do Gap Year, Camille havia feito um
intercmbio para a Tailndia e adorava falar para tudo quanto tipo de gente.
60
CASOS INSPIRADORES
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DOUTORADO INFORMAL
Outra vida
62
CASOS INSPIRADORES
Caminho do Serto
O Caminho do Serto uma jornada sociocultural e ambiental inspirado na obra
Grande Serto: Veredas, de Guimares Rosa. Em 2015, foram 160 km percorri-
dos a p durante sete dias pelos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, na Regio
Noroeste de Minas Gerais.
Nesse dia glorioso, eu j sabia que havia sido selecionado para participar do
Caminho do Serto. O que eu no dava conta de responder com convico, no
63
DOUTORADO INFORMAL
Faltava uma semana para a viagem. Andanas de p e a p por entre alguns dos
cenrios do Grande Serto de Guimares Rosa. Faltando quatro dias, comecei a
me sentir resfriado. E resfriado danado, porque no sabe se gripe ou nada.
Faltando trs dias, noite, fiquei com vontade de chorar, mas no consegui.
Pensava: est tudo to bom, porque me meter em uma coisa que desconfio seri-
amente que ser difcil e cansativa? Na verdade, eu estava era com muito medo.
Faltando dois dias, conversei muito com a Ana, minha companheira, mas depois
precisei escrever. Preenchi todo um arquivo do bloco de notas no computador
com listas de argumentos. Estava convicto: no vou.
(Um parnteses para contar como a Ana se liga a essa histria. A primeira vez
que soube da existncia do Caminho foi por meio da fala empolgadssima dela.
Fui um dos primeiros para os quais ela contou, j me convidando para fazer a
inscrio e ir caminhar com ela. Havia um processo seletivo. Aos 45 do segundo
tempo, resolvi me inscrever. No era apenas para acompanh-la, eu realmente
64
CASOS INSPIRADORES
tive vontade, curiosidade. Eu fui selecionado, mas ela no. Devastados, decidi-
mos que eu deveria ir, mas onde enfiar minha insegurana?)
Recuperei, mas me senti molenga durante todo o dia. Trabalhei muito, at noi-
te, tentando adiantar as coisas para caso eu escolhesse viajar. Novamente conver-
sei com a Ana. Discutimos. De repente a clareza se fez, ainda escorregadia.
H poucas horas do meu voo de ida, comprei a passagem de volta. Relaxei um
pouco e, de madrugada, comecei a arrumar as malas com a ajuda imprescindvel
da pessoa que originalmente se imaginara fazendo o Caminho. O que deu para
dormir foi um cochilo, e logo eu estava de p, caminhando para o txi, depois
para o avio, depois para a primeira rodoviria, ento a segunda e, quando
menos acreditei, havia chegado ao Serto.
37
Citao extrada do texto Na dvida, sem medo ou ambio, pergunte-se: esse caminho tem
corao? (Carlos Castaeda) de Nando Pereira, publicado no Dharmalog.
65
DOUTORADO INFORMAL
Nos dias que antecederam o Caminho a dvida era: faz sentido deixar esse
padro agir de novo? Eu j havia estudado um pouco sobre os padres biogrf-
icos segundo a antroposofia, e claramente essa repetio se afigurava como um.
J era algo consciente. Minha reao tpica era uma defesa aceitvel ou uma
paralisia que merecia ser transformada? Mais do que isso: o que me esperava na
outra margem do rio? Ao experimentar uma forma de agir diferente daquela
com que havia me acostumado, o que meus olhos veriam de novo? Essa curio-
sidade de chegar outra margem foi o que me impulsionou. Alm da misso de
trazer um pedacinho do serto para a Ana.
66
CASOS INSPIRADORES
Por entre mato, gado, cantos, ribeires, veredas, causos, sabedorias e muita areia,
o Caminho desafia quem o trilha a prestar mais ateno ao que tem ocorrido
no serto e, por consequncia, no planeta. A persistente beleza convive, infeliz-
mente, com as alarmncias.
A gua antes dava para mergulhar, agora se passar l num tampa nem a sandlia
do p. A preocupao de Seu Aleixo, morador do Barranco do Carinhanha,
aponta para um fenmeno que tem se intensificado rapidamente no territrio
sertanejo: a desertificao. Durante a caminhada, passamos por vrios pontos
em que antes existiam veredaso osis sagrado do serto, mas que agora esto
completamente secas. Nesses lugares, dos buritis s sobraram os tocos.
67
DOUTORADO INFORMAL
Segundo Gustavo Meyer, que concluiu sua tese de doutorado sobre a arte como
possibilidade de desenvolvimento no serto, as mensagens de desenvolvimento
propagadas pelos grupos hegemnicos entram em embate com a viso que bus-
ca reconhecer a sabedoria cultural dos povos sertanejos39. Os atuais smbolos de
poder no meio rural as grandes colheitadeiras e tratores, por exemplorevelam
o enraizamento de uma cultura de acumulao que enxerga a terra unicamente
como fonte de lucro e status. A dicotomia entre tal perspectiva e o resgate da
cultura tpica do serto a mesma que se operou em 1956, ano que marca o
incio da construo de Braslia, de um lado, e o lanamento da obra Grande
Serto: Veredas, de outro. Juscelino Kubitschek, cone do desenvolvimentismo
brasileiro, representava o discurso da ocupao do vazio, ao passo que Gui-
mares Rosa buscava enaltecer a oralidade, as formas de vida e a simplicidade
das comunidades j estabelecidas no serto. Quem adota essa viso percebe que
vazio no h.
Entretanto, houve pelo menos um caso em que a obra de Rosa foi utilizada
como justificativa para se criar vazios. A criao do Parque Nacional Grande
Serto Veredas, ltimo destino da caminhada, ocorreu s custas da expulso dos
moradores que historicamente povoaram a regio. Mundinho, ex-prefeito de
Chapada Gacha, relembrou os dizeres de um habitante do territrio que virou
38
Informao retirada do site da Prefeitura de Una. O link da pgina encontra-se ao final deste
captulo.
39
Gustavo tambm trabalha na organizao do Caminho e participou conosco de toda a travessia.
Tive contato com seu trabalho acadmico em uma mesa redonda ocorrida em Chapada Gacha,
durante o XIV Encontro dos Povos do Grande Serto Veredas, no ltimo dia do trajeto. A referncia
do trabalho encontra-se no fim do texto sobre o Caminho.
68
CASOS INSPIRADORES
parque: S foi possvel criar o parque porque ns vivemos nele durante sculos
e o preservamos. Agora isso est sendo usado contra ns. Mais uma vez, a lgi-
ca dominante abusa do poder e desestabiliza as culturas tradicionais.
40
Exploro mais o pensamento de Feyerabend na carta que enderecei a ele, mais a frente neste livro.
Para acessar as informaes sobre o livro pstumo do autor que utilizei como consulta, veja a seo de
referncias ao final deste captulo.
69
DOUTORADO INFORMAL
Mas toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar41. A cada passo, a
41
Essa frase d nome a uma msica da banda Siba e a Fuloresta. Todos os dias ao sairmos para
caminhar ns a ouvamos.
70
CASOS INSPIRADORES
42
O raciocnio do autor pode ser conferido no livro Liderar a Partir do Futuro que Emerge, cuja
referncia est no fim do texto.
43
Conforme se l no texto Dez Conselhos para os Militantes de Esquerda.
44
Baiangoneiro refere-se ao povo que mora na Trplice Juno, isto , nas fronteiras dos estados de
Minas Gerais, Bahia e Gois
71
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
pre s quatro e meia) rumo Vila Bom Jesus. 34 km que viraram 38 por causa
de uma modificao imprevista no trajeto. Logo no incio, um belo nascer do sol
que contrastava com a paisagem terrestre tomada pelo monocultivo de soja. Seu
Ademlson me disse que a vinda do agronegcio havia gerado empregos para
a comunidaderesta saber quais as condies desses empregos, e a servio de
quem eles esto.
Ao pousarmos em Vila Bom Jesus, tratei logo de armar minha barraca e ficar
quieto dentro dela. No estava exausto, mas sentia muita dor nos ps por conta
das bolhas. Tive vontade de chorar, mas no consegui. Minha crise interna me
levou a cochilar, e quando acordei ouvi outro caminhante, o Rogrio, dizendo
que sabia como tratar as bolhas. Havia um p de limo no lugar em que estva-
mos, e ele utilizava os espinhos do limoeiro para perfurar as erupes. Depois
passava arnica e fechava com gaze e esparadrapo artigo de luxo no serto. Esse
momento foi a minha virada de chave: eu poderia ficar dentro da barraca fing-
indo de morto e caando planos para ir embora mais cedo, ou eu poderia pedir
ajuda ao Rogrio. Resolvi pedir ajuda, algo no muito fcil para mim. Enfaixei
os ps e renovei minha confiana na jornada.
73
DOUTORADO INFORMAL
Andar sozinho foi uma experincia profundamente ritmada e sem muitos pens-
amentos. Quase uma meditao. Pude respirar o agudo silncio do serto. Ao
chegarmos ao Crrego Garimpeiro, um lugar rstico e sem luz, tomei banho de
vereda e fiz minhas necessidades atrs de um bambuzal. No havia outro lugar.
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DOUTORADO INFORMAL
Por mais que a festa seja direcionada aos estudantes com deficincia, ela aberta
para qualquer pessoa da comunidade escolar. Das sete da manh s dez e meia
da noite, os portes da escola permanecem acolhendo a todos que chegam.
Tanta abertura faz do CIEJA Campo Limpo um espao que respira diversidade.
Dona Eda, coordenadora geral da escola, diz que isso reflexo da prpria for-
mao do povo brasileiro, por um lado, e de uma caracterstica constituinte da
Educao de Jovens e Adultos (EJA) no pas, por outro.
84
CASOS INSPIRADORES
A iniciativa, liderada pelo professor Billy Silva, pode ser definida como um
grupo de pais, alunos e amigos em busca de uma sociedade realmente inclu-
siva, conforme se l no blog do projeto. O foco principal recai sobre as mes e os
pais dos alunos, que no raro se sentem desamparados ao lidar com as questes
e necessidades singulares de seus filhos. Os assuntos a serem abordados so
decididos em conjunto, e ento Billy e Dona Eda saem em busca de pessoas
85
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
Rebeldia paciente
Aes como o Caf Teraputico representam rotinas muito bem estabelecidas
no CIEJA. Toda sexta-feira dia de formao e planejamento de professores,
a assembleia em que participam todos os alunos convocada sempre que h
necessidade, h seis formaturas por anorefletindo os seis perodos de aula
oferecidos pela escola, entre outros exemplos.
Outras escolas cuja educao rompeu paradigmas tambm contam com rotinas
consolidadas, e, assim como no CIEJA, elas foram sendo construdas e recon-
strudas ao longo do tempo por meio das contribuies de todos. o caso, por
exemplo, da Escola da Ponte, em Portugal. L, prticas educativas inovadoras
como os grupos de responsabilidade, Preciso de Ajuda e a Definio de Direit-
os e Deveres so continuamente realizadas h anos. Desde que a escola comeou
a reformular suas estratgias de aprendizagem, em 1976, essas propostas foram
evoluindo a partir da aplicao reiterada dessas estratgias e de reavaliaes
sucessivas. O CIEJA Campo Limpo segue na mesma direo. uma rebeldia
paciente.
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DOUTORADO INFORMAL
(Se Ronaldo Entler conhecesse o CIEJA Campo Limpo, ele saberia que tambm
estava escrevendo sobre o que se passa por l, sem tirar nem pr.)
A citao abaixo foi extrada de um texto do autor, disponvel na pgina da Casa da Imagem no site
45
da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo. O link pode ser encontrado na seo de referncias
ao final deste captulo.
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DOUTORADO INFORMAL
A insistncia por uma educao industrial faz com que a escola hoje retenha
apenas as regularidades. No h espao para reaparecimentos. Por outro lado, o
imaginrio que reinventa todas as funcionalidades do CIEJA Campo Limpo d
lugar a ideias como a de Dona Eda, que elaborou um formulrio de diagnsti-
co inicial dos alunos no qual um dos campos diz respeito ao sonho/objetivo
de cada um deles. Por meio desse dispositivo, a equipe percebeu que deveria
montar um salo de beleza nos fundos da escola, visto que muita gente havia
manifestado o interesse em se profissionalizar nessa rea.
46
Idem nota anterior.
90
CASOS INSPIRADORES
Segundo Dona Eda, em 2007, durante a gesto de Gilberto Kassab (PSD), a pre-
feitura queria acabar com os CIEJAs. Foi quando o ento secretrio de Educao
Alexandre Schneider visitou o bairro. Dona Eda prontamente mobilizou seus
alunos e foi para a rua protestar o fechamento dos centros. O secretrio foi at
a escola e, percebendo o bom trabalho que estava sendo feito ali, desafiou Dona
Eda a escrever um novo projeto para reformular todos os CIEJAs da cidade.
Aps aceitar a misso, ela visitou todos os 13 Centros e fez equipe de cada um
deles a seguinte pergunta: O que esse projeto precisa ter para se aproximar de
vocs? Por meio de indagaes como essa, Dona Eda elaborou um projeto que
espelhava as diversas necessidades e aspiraes dos CIEJAs. Com isso, a ameaa
de desativao das escolas cessou e o modelo foi consolidado.
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DOUTORADO INFORMAL
(...) j falei com o Jos Serra para parar de dizer nos seus discursos que a
EJA para recuperar o tempo perdido. O tempo vivido no volta, e esse
tempo que eles viveram no foi perdido, de forma alguma!
Crenas datadas como essa s reforam a ideia de filme vencido associada aos
adultos que voltam a estudar.
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47
A frase pode ser lida no livro Pedagogia da Autonomia, disponvel integralmente na internet. O
link encontra-se no fim do texto.
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Ainda que faa uma crtica veemente s aulas, Bruno Martins no deixa de ver
nelas algum valor. Sua crena, no entanto, fundamenta-se na ideia de que a
aula no pode ser a base de processos de aprendizagem autnomos. No fundo,
o que o autor afirma em relao a Freire que ele levantou algumas questes
que no conseguiu responder sobre a prtica de uma educao que respeitasse
os princpios tericos por ele formulados. Nesse sentido, Martins continua seu
raciocnio dizendo que os ideais pedaggicos do patrono da educao brasileira
poderiam encontrar em outras frentes como a educao democrtica um
complemento importante.
No CIEJA Campo Limpo, todas as interaes que tive fora da sala de aulacom
alunos, educadores, pais, funcionrios e o prprio ambiente da escolaaponta-
vam para o cultivo da autonomia. Durante o almoo, por exemplo, as pessoas
com deficincia eram estimuladas a se alimentar da forma mais independente
possvel. Contudo, no tive a mesma impresso dos momentos em sala.
(Uma ressalva importante: quando afirmo isso, estou falando do lugar de algum
que tem suas prprias crenas e que sabe de sua interferncia no objeto obser-
vado. Alm disso, no acompanhei por muito tempo o cotidiano da escola, e
por isso talvez no tenha conseguido gerar uma imagem mais completa do que
ocorre nas situaes de aula. Por isso, tudo o que posso fazer aqui somente
levantar questionamentos, hipteses e algumas possibilidades.)
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DOUTORADO INFORMAL
Tal estrutura, de certa forma, faz muito sentido no contexto da EJA: os seis
perodos garantem flexibilidade para quem trabalha em diferentes horrios,
alm de permitirem que mais pessoas se matriculem na escola. A resoluo
de problemas afia o pensamento crtico de jovens e adultos que passam a usar
essa habilidade em seu dia a dia, e prticas como o Dirio de Bordo oferecem
oportunidades para que as pessoas conectem o que esto aprendendo com suas
histrias de vida.
48
No Brasil j esto em curso muitas experincias com tais caractersticas: a Escola Politeia, o Projeto
ncora e a EMEF Amorim Lima so exemplos. Em outros pases, vale destacar a Escola Democrtica
de Hadera, em Israel, a Escola da Ponte, em Portugal, e a Sudbury Valley School, nos EUA.
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CASOS INSPIRADORES
cocriao, no seria preciso que todos decidissem por um tema para o semestre.
Cada aluno escolheria se aprofundar no assunto que mais lhe desperta interes-
se, e, eventualmente, grupos de investigao poderiam se formar com base em
interesses comuns. Por que, por meio da constituio de uma maioria, todos
precisam deliberar pela mesma coisa?
Para responder a essa pergunta, seria preciso analisar uma srie de variveis
relativas ao contexto da Educao de Jovens e Adultos (ou talvez uma estratgia
mais efetiva fosse simplesmente testar algumas possibilidades em pequena esca-
la e avaliar). Muitos dos alunos que chegam ao CIEJA j sofreram discriminao
e vrios tm uma situao socioeconmica delicada. Trata-se de um contexto
desafiador em muitos aspectos. Soma-se a isso o fato de que, para muita gente, a
ideia de escola est indissociavelmente relacionada aula, ao professor-sabe-tu-
do e prova. Essa a escola que os educandos do CIEJA conheceram quando
mais novos, e nela que muitos creem terem fracassado. Desconstruir essas
crenas no tarefa fcil, especialmente em se tratando de adultos.
Ainda assim, sinto que o percurso trilhado pelo CIEJA Campo Limpo est em
constante evoluo. O que se conquistou por l digno de ser comemorado:
um modelo de escola aberta que nutre relaes ntimas com a comunidade.
como nas baladas escolares que Dona Eda comeou a organizar: sem cuidadores
exclusivos, mas com muita alegria, independncia e corresponsabilidade.
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Casas colaborativas
O movimento das casas colaborativas surgiu no Brasil com a Casa Liberdade, em
Porto Alegre, e logo se propagou para outras cidades. As casas so espaos auto-
geridos de livre interao baseados na nova cincia das redes sociais e no paradig-
ma da abundncia.
101
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Estive em uma das ocupaes, a da EE Joo Kopke. Ainda que o governo tenha
seus argumentos a favor da reestruturao, acredito que talvez o que cause mais
conflito a forma de conduo do processo. Com isso no quero dizer que o
fechamento das escolas algo menor, e sim que o caminho at se chegar
escolha pela reorganizao foi muito pouco dialgico. A deciso veio de cima e
no olhou para os lados, como tpico de organizaes altamente hierrquicas.
Em se tratando do movimento das ocupaes, porm, olhar para os lados e acol-
her quem quer se aproximar foi muito do que vi quando fui at a escola.
Voc deve estar se perguntando: por que comecei falando das ocupaes nas
escolas se o assunto aqui so as casas colaborativas? Em primeiro lugar, preciso
dizer que o movimento dos estudantes secundaristas me atingiu em cheio nos
ltimos dias: trata-se de um exemplo gritante do modo de fazer poltica que eu
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CASOS INSPIRADORES
Foi justamente no ano em que mais de um milho de pessoas foram s ruas para
protestar que comecei a me interessar pela cincia das redes sociaisas quais,
neste caso, no equivalem a Facebook ou Twitter, e sim s possibilidades de
interao e aos vnculos que nos aproximam. O que por conveno chamamos
de redes sociais so, na verdade, plataformas interativas digitais (mdias sociais)
que podem facilitar nossas conexes, mas o poder de se conectar do humano.
Da natureza, alis. Ainda assim, a influncia dessas ferramentas tem contribudo
decisivamente para ampliar nossa capacidade de criar laos uns com os outros.
Assim, eu passava vrias horas lendo livros on-line, acessando fruns e assistin-
do vdeos sobre o assunto, inclusive no horrio de trabalho. Sentia-me cada
vez mais distante daquilo que fazia, como se a necessidade de obedincia que
103
DOUTORADO INFORMAL
pairava sobre mim estivesse me sufocando. De certo modo, aprender sobre redes
sociais naquele momento funcionava como um casulo: era o refgio que eu
precisava antes de me transformar. Comecei a frequentar assiduamente a Escola
de Redes, uma comunidade virtual de pessoas interessadas em investigar o tema,
e l entendi que rede pode ser considerada o contrrio de hierarquia.
104
CASOS INSPIRADORES
Assim, possvel afirmar que tanto as casas como as ocupaes trazem, em sua
essncia, a ideia da colaborao. H diversas possibilidades de sentido associa-
das palavra colaborao, mas optei por resgatar sua compreenso etimolgi-
ca analisada de forma emparelhada noo de cooperao. o que se v no
trecho abaixo, extrado de um material elaborado pela equipe do Programa de
Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal da Bahia:
Autores como Fiorentini (2004) destacam que uma produo coletiva
pode se dar de forma cooperativa ou colaborativa. O autor distingue
cooperao e colaborao a partir da etimologia das palavras em que
co significa ao conjunta; operare, operar, executar, fazer funcionar;
e laborare, trabalhar ou produzir em vista de um determinado fim. Ele
afirma que na cooperao os membros de um grupo executam tarefas
que no resultam de uma negociao conjunta do coletivo, podendo
haver subservincia de uns em relao a outros, e relaes desiguais e
hierrquicas, enquanto que na colaborao todos trabalham conjuntam-
ente e se apoiam mutuamente, tendendo, dessa forma, a um relaciona-
mento no hierrquico. Assim como o referido autor, Kenski (2003, p.
112) destaca que nos processos colaborativos todos dependem de todos
para a realizao de atividades, e essa interdependncia exige aprendiza-
dos complexos de interao permanente, respeito ao pensamento alheio,
superao das diferenas e busca de resultados que possam beneficiar a
todos.
A frase completa : A fora da alienao vem dessa fragilidade dos indivduos, que apenas conseg-
49
uem identificar o que os separa e no o que os une e pode ser encontrada no blog da Escola Milton
Santos de Agroecologia. Link ao final do texto.
105
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
Os pontos nas trs imagens acima esto exatamente nos mesmos lugares, so-
mente as formas de conexo entre eles que mudam. A maior parte das orga-
nizaes existentes hoje atua com base no modelo descentralizado (diagrama
B): se ele fosse apresentado por meio de uma pirmide, seria possvel perce-
ber que se trata de um tpico organograma organizacional, com os diferentes
departamentos tendo que prestar contas s diretorias, e estas se reportando
presidncia. Paul Baran descobriu que uma rede seria to mais resiliente diante
de uma mudanano caso, um ataque nuclear, dado o contexto militar de sua
pesquisaquanto maior o seu grau de distribuio (ou seja, quanto mais ela se
assemelhasse ao diagrama C).
Augusto de Franco prope uma transposio dessa anlise para o campo social,
de modo a se resgatar o valor das redes sociais distribudas em contraponto
predominncia de configuraes hierrquicas. No limite, tudo depende do
padro de interao: os trs diagramas demonstram que podemos conectar as
mesmas pessoas nos mesmos lugares de formas absolutamente diferentes. E a
maneira como interagimos condiciona nossos comportamentos e a capacidade
de adaptao e inovao do sistema.
107
DOUTORADO INFORMAL
Outro vislumbre interessante dessa viso de mundo tem a ver com a forma com
que tomamos decises. Em uma realidade mais hierrquica predomina a lgica
da escassez, que se sustenta com base na crena de que no tem para todo
mundo ( a partir dessa premissa que a meritocracia surge). Acreditar nisso,
quer seja conscientemente ou no, influencia as escolhas que fazemos. Repro-
duzo abaixo alguns pargrafos do texto A lgica da abundncia, de Augusto de
Franco, em que o autor exemplifica de forma clara como essas crenas pautam
nossas decises.
Os problemas que se estabelecem a partir de divergncias de opinio
soem grande parteintroduzidos artificialmente pelo modo-de-reg-
ulao. Por exemplo, queremos escolher 5 pessoas para uma funo
qualquer, mas 10 pessoas esto postulando. Problema? Que nada! Basta
escolher as 10. Quem disse que teriam que ser apenas 5? Essa determi-
nao est, por acaso, nos 10 Mandamentos? Isso s ser um problema
se nos tornarmos escravos dos estatutos e regimentos: sim, em algum lu-
50
Citao extrada do livro Hierarquia: a Matrix realmente existente de Augusto de Franco.
51
Trecho retirado do texto Desobedea: uma inspirao para o netweaving, do mesmo autor, cujo
link est disponvel no fim do captulo.
108
CASOS INSPIRADORES
gar foi definido que teriam que ser 5 pessoas, mas e da? Qual o problema
de mudar essa definio?
Ah! Mas muita gente, no cabe na sala, vai dificultar o processo de
deciso Todas essas so, bvio, desculpas esfarrapadas para produzir
artificialmente escassez. No cabe na sala? Arrumamos uma sala maior
ou fazemos um rodzio de quem entra e quem fica fora de cada vez. Vai
dificultar o processo de deciso? Criamos duas instncias e redefinimos
as responsabilidades pelas funes.
O fato que somente em estruturas hierrquicas essas coisas so real-
mente problemas. Porque nessas estruturas o que est em jogo no
a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos
outros, quer dizer, a capacidade de exigir obedincia ou de comandar e
controlar os semelhantes.
Quanto mais distribuda for uma rede, mais a regulao que nela se
estabelece pode ser plurirquica. Uma pessoa prope uma coisa. timo.
Aderiro a essa proposta os que concordarem com ela. E os que no
concordarem? Ora, bolas, os que no concordarem no devem aderir. E
sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra
coisa aderiro a ela. E assim por diante.
52
Conforme se v na palestra que Oswaldo apresentou no TEDxFloripa, cujo link do vdeo est dis-
ponvel no fim deste texto.
53
Citao extrada do texto Um mundo de abundncia, de Charles Eisenstein, traduzido por Camila
Haddad. O texto traduzido est disponvel no blog do Cinese, e o link est na seo de referncias
deste captulo.
109
DOUTORADO INFORMAL
Nesse sentido, a crena que embasa uma viso de mundo abundante contrria
quela que fundamenta a escassez: tem o suficiente (e os caminhos possveis
so infinitos), ento no ficamos com medo nem precisamos nos destacar dos
outros para acumular. Logo, tendemos a colaborar para criar coisas juntos e nos
abstemos da necessidade de controle (o que, no limite, serve para acumular).
Com as pessoas colaborando e cocriando a produo aumenta, e, assim, os cus-
tos tendem a se reduzir. Dessa forma, o acesso torna-se mais inclusivo e equilib-
rado, e, ento, a profecia se autorrealiza: haver o suficiente para todos. Embora
o raciocnio tenha sido construdo a partir de uma perspectiva econmica,
possvel transpor a mesma lgica para outras reas: relacionamentos, tempo,
trabalho etc.
110
CASOS INSPIRADORES
Padres libertrios
Em minha investigao sobre as casas colaborativas, percebi que elas tendem a
se comportar de forma at certo ponto semelhante, compartilhando entre si os
seguintes padres:
54
Uma das fontes que atribui a frase ao filsofo uma pgina do site Brasil Escola, cujo link http://
brasilescola.uol.com.br/sociologia/consciencia-e-liberda-humana-texto-2.htm
111
DOUTORADO INFORMAL
55
O ttulo do vdeo POA VIVE #5Casa Liberdade, e o link pode ser encontrado no fim do captu-
lo.
112
CASOS INSPIRADORES
Discrio no que tange publicidade: todas as casas que estudei tinham seus
nomes baseados em seus prprios endereos (a Laboriosa 89 ficava na rua La-
boriosa, n 89, o primeiro espao da Catete 92 localizava-se na rua do Catete, n
92, e a Casa Liberdade situava-se na rua Liberdade). Isso reflete a opo dessas
comunidades em no seguir uma lgica publicitria tradicional. No h ann-
cios nem campanhas pagas, somente as estratgias de divulgao levadas a cabo
pela prpria rede. Assim, a disseminao do movimento baseada principal-
mente numa lgica peer-to-peer.
Rede > casa: o espao fsico um equipamento utilizado pela rede para po-
tencializar as interaes, mas a rede no pode ser confundida com a casa nem
esta pode assumir uma importncia maior do que as conexes entre as pessoas.
Geralmente a casa (ou qualquer outra manifestao tangvel) surge quando um
grupo da rede transborda, ou seja, quando um ncleo de pessoas estabelece
como inteno desenvolver algo que beneficia outros ns da rede. Uma forma
de perceber como a rede de fato maior que a casa observar a quantidade
de pessoas nos grupos do Facebook dos trs espaos tratados aqui: todos eles
contam com milhares de membros, um nmero muito maior do que os espaos
comportariam de uma s vez.
113
DOUTORADO INFORMAL
Como certa vez ouvi de Oswaldo Oliveira, o fenmeno das casas colaborativas
to simples quanto pessoas se conectando e se reconhecendo por paixes
comuns, por afinidades e at por necessidades comuns, e tentando materializar
coisas juntas.
A noo de comunidade importante. Existe algo que une todos que se relacio-
nam com a casa: o carinho e o zelo pelo espao. A premissa bsica confiar que
cada um far sua parte para cuidar do local, sem ordens ou vigilncias.
57
Citao extrada do glossrio contextual criado pelo autor, em que ele explica, dentre outros
conceitos, a noo de glocal. O link encontra-se no fim do captulo.
114
CASOS INSPIRADORES
A partir daqui, vou contar resumidamente as histrias das trs casas colabo-
rativas com as quais tive mais contatoa Casa Liberdade, em Porto Alegre, a
Laboriosa 89, em So Paulo, e a Catete 92, no Rio de Janeiro. Sei que nos relatos
faltou muita coisa: algum poderia facilmente escrever um livro s com os
causos de cada um desses lugares. Meu objetivo aqui no descrever detalha-
damente o que acontece ou j aconteceu nas casas, e sim refletir sobre a essncia
desse movimento e suas relaes com o tema da aprendizagem.
Casa Liberdade
A Casa Liberdade foi a primeira casa colaborativa surgida no Brasil. Em 2012,
a sede do escritrio da Engageempresa incubadora de projetos de tecnologia
para engajamentolocalizava-se na rua Liberdade, entre os bairros Rio Branco
e MontSerrat, em Porto Alegre. Percebendo que o local onde se instalaram
permitia muito mais do que somente aquilo que estavam fazendo, as pessoas
que trabalhavam na Engage comearam a convidar para frequentar a casa quem
estivesse interessado em fazer suas coisas por l.
115
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
Laboriosa 89
A histria da Laboriosa 89 se cruza com a da Casa Liberdade por meio da Ma-
dalena 80, um espao colaborativo iniciado por Oswaldo Oliveira e muito influ-
enciado pela experincia do Sul. Aps se aprofundar no estudo das dinmicas de
rede e se articular com outros interessados no tema, Oswaldo e mais um grupo
de pessoas iniciaram a Madalena 80 em um espao de 30 metros quadrados no
bairro Vila Madalena, em So Paulo.
117
DOUTORADO INFORMAL
de ver a nova iniciativa dando certo: ao negociar com Fabio Novo os termos de
aluguel da casa, Oliveira garantiu o primeiro ano de contrato, acreditando que
a comunidade se desenvolveria e ento seria capaz de honrar integralmente os
compromissos do imvel. Em janeiro de 2014 a Laboriosa 89tambm conheci-
da por Lab 89estava de p.
118
CASOS INSPIRADORES
Catete 92
O Rio de Janeiro tambm foi bero de um experimento de interao distribuda.
A Catete 92 surgiu das inquietaes de muita gente, incluindo Felipe Duarte,
119
DOUTORADO INFORMAL
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CASOS INSPIRADORES
foi aventada, mas logo foi descartada em prol de um modelo totalmente aberto.
Enquanto nos primeiros meses da casa fechar as contas fora um desafio, em se-
guida o fluxo de doaes aumentou medida que mais atividades aconteciam
e a rede foi sendo capaz de honrar todos os compromissos financeiros.
Por ter sido iniciada em uma vila residencial, desde o incio a Catete 92 enfren-
tou problemas relacionados sua vizinhana. Alguns vizinhos ficavam incomo-
dados por morarem ao lado de uma casa acessvel a qualquer um. Em julho de
2015, a comunidade soube de uma notificao extrajudicial motivada por que-
ixas do sndico da vila. A fim de evitar o risco de colocar os responsveis legais
pela casa em uma situao delicada, tomou-se a deciso de encerrar as ativi-
121
DOUTORADO INFORMAL
O movimento de busca por outro espao foi chamado de Transborda 92. Con-
forme se v em alguns registros dessa transio, a inteno da comunidade foi
transformar o momento de crise em uma oportunidade de fazer da Catete 92
algo ainda melhor. Assim como no encerramento da Casa Liberdade, pessoas
ofereceram seu tempo e seus talentos para arrecadar recursos a fim de saldar
as dvidas da casa. No dia 9 de outubro de 2015 um post no grupo do Facebook
anunciou que a Catete 92 havia transbordado para um novo lugar: o Corco-
vado Rio Hostel, no bairro Cosme Velho. Dentre as diversas possibilidades de
espao levantadas, a comunidade escolheu se mudar para oito ambientes, antes
ociosos, cedidos pelo hostel. O novo local absorveu o nome da iniciativa que a
fundou: Transborda 92.
122
CASOS INSPIRADORES
O frtil encontro entre liberdade e convivncia foi o ponto de partida para que
eu comeasse a me perguntar: O que possvel aprender ao se frequentar uma
casa colaborativa? Em primeiro lugar, penso que esses espaos conseguem nos
transmitir a potente mensagem de que outro mundo mais livre e abundante
possvel aqui e agora. Esperar que as instituies ou outras pessoas tomem a ini-
ciativa de protagonizar as mudanas que ns queremos ver no mundo so com-
portamentos tipicamente hierrquicos. o desespero do no h o suficiente
entrando em ao e o hbito de seguir sempre pelos mesmos caminhossem
enxergar os infinitos outrosoperando no nosso inconsciente.
Penso que as casas colaborativas podem nos ajudar a aprender coisas valiosas.
Depois de vrias conversas com pessoas que as frequentaram e olhando para as
minhas prprias vivncias, percebi que esses espaos so capazes de nos fazer:
123
DOUTORADO INFORMAL
124
CASOS INSPIRADORES
Talvez o maior smbolo de confiana das casas colaborativas seja a livre entrada
de qualquer pessoa. No apenas o acesso livre, como qualquer um pode fazer
uma cpia da chave quando quiser. Em alguns espaos existe o ritual da chave,
que consiste em sempre entregar uma cpia s pessoas que vo at a casa pela
primeira vez alm de explicar a elas como funciona o espao.
125
DOUTORADO INFORMAL
58
Open Space uma abordagem de cocriao criada por Harrison Owen que funciona a partir de
conversas simultneas livres em torno de um tema norteador.
126
CASOS INSPIRADORES
Neste sentido, um caso inusitado de cuidado com o coletivo no mbito das casas
colaborativas o catfunding que os frequentadores da Transborda 92 organi-
zaram para o gato adotado pela comunidade, o Z. Trata-se de um financiamen-
to coletivo cujo nome uma brincadeira com as palavras cat e crowdfunding. A
ideia surgiu em meio necessidade de tratar a sade do bichinho aps ele ter
se perdido e se machucado. A mobilizao em torno do bem-estar da mascote
simblica no sentido de atestar o quanto as casas colaborativas podem nos
ensinar a cuidar.
Pressupondo o consenso
Na VAGAS.com eu fao o que eu quero e todos tm tudo a ver com isso.
Quem me disse essa frase pela primeira vez foi Mrio Kaphan, fundador da
VAGAS.com, uma empresa brasileira que adotou uma cultura radicalmente
horizontal. A VAGAS.com atua no segmento de solues tecnolgicas de gesto
59
Citaes extradas do texto Como uma empresa sem chefes? O modelo de gesto horizontal,
disponvel no site da VAGAS.com. Link disponvel na seo de referncias.
127
DOUTORADO INFORMAL
de pessoas e uma organizao sem chefes, sem metas, sem decises tomadas a
portas fechadas, ou seja, sem hierarquia.
128
CASOS INSPIRADORES
O contexto do caso da VAGAS.com outro, mas talvez ele possa nos mostrar
um caminho de como balancear iniciativa individual e decises coletivas. A
histria das casas colaborativas at o momento aponta para a sua existncia em
ciclos curtos, mas acredito que, conforme formos aprendendo mais sobre como
viver em comunidade, possvel que elas se tornem mais duradouras. Olhar
para os lados e cuidar do todo so as molas que impulsionam as casas colabora-
tivas a se tornarem lugares poderosos. Para tanto, pressupor o consenso e abrir
espao para conversas coletivas so duas polaridades necessrias, e a navegao
entre elas se faz a partir do senso de responsabilidade de cada um.
No sei exatamente como as decises esto sendo tomadas pelos estudantes que
ocupam as escolas em So Paulo. Ainda que os mecanismos decisrios utiliza-
dos por eles sejam diferentes do que se v nas casas colaborativas, o que une ess-
es dois movimentos a cultura da horizontalidade. a abertura para o dilogo e
a disseminao em rede. o no se aquietar perante uma realidade na qual no
nos encaixamos. Acabo de saber que uma escola foi ocupada em Roma. O que
eles querem? Mais liberdade e protagonismo.
Em uma das reunies que culminou na abertura da Transborda 92, uma das
participantes disse: agora que j vivi tudo isso, no tem mais como voltar atrs.
Para quem j experimentou frequentar uma casa colaborativa, as marcas so
profundas. Fico imaginando o que os jovens que esto ocupando as escolas esto
aprendendo, como tudo isso est os transformando. Talvez tenha a ver com o
que escrevi aqui. Assim como eles, quem se aventura nas casas colaborativas s
est buscando aprender. De outro jeito.
129
DOUTORADO INFORMAL
130
CASOS INSPIRADORES
131
. Cartas
132
Um com-versar
Eu no queria fazer um referencial terico. No incio, quando minha pretenso
ainda era ser aprovado na ps-graduao formal, a lista de pessoas com as
quais eu queria conversar era formada basicamente por grandes intelectuais.
Paulo Freire, por exemplo, estava l. Freire teve uma importncia fundamental
na minha viso de mundo, especialmente quando comecei a me interessar por
educao. No entanto, ao longo da jornada, por algum motivo fui me afastan-
do dos autores cannicos e me aproximando dos amigos. No limite, qualquer
pessoa, quer seja reconhecida amplamente ou no, capaz de nos acender novos
entendimentos.
Assim, escrevi cartas para um poeta, uma doula, um anarquista, uma anfitri,
um revolucionrio e uma bruxa. Sim, tenho amigos bastante inusitados. De
todos s no conheci Paul Feyerabend, o filsofo anrquico do conhecimento,
porque ele infelizmente no est mais entre ns, mas me tornei amigo de suas
obras.
133
DOUTORADO INFORMAL
deles no tratam do tema educao, mas basta trocar de olho para enxergar.
Meu primeiro destinatrio foi quem me incendiou de coragem para iniciar meu
doutorado informal: um menino-poeta.
134
CARTAS
Andr Gravat
O Andr um poeta realizador. Foi ele
quem me apresentou a ideia do dou-
torado informalna verdade, ele o
criador do termo. Escreveu o livro Volta
ao mundo em 13 escolas, pelo Coletivo
Educ-ao, e cofundador do Movimen-
to Entusiasmo.
Meu caro, por esta ser a primeira, paraliso. Fico imaginando como as cartas
devem ser, como as pessoas acham que elas deveriam soar. Vim para a varanda
de casa em um daqueles dias em que a gente sabe que vai chover. A hora, no
entanto, ainda no chegou.
Lembro-me de uma histria, minha mesmo, que ocorreu quando eu tinha uns
8 ou 9 anos. Estudava no Colgio Ibituruna, uma escola bastante reconhecida
e tradicional em Governador Valadares, Minas Gerais, onde nasci. Eu era um
menino falante, inquieto, que costumava organizar clubes de amigos que anda-
vam em fila durante o recreio.
135
DOUTORADO INFORMAL
Ela riu amarelo, como os adultos fazem quando esto diante de uma criancice
absurda. At disse que poderia ser legal, mas desconversou e foi logo saindo da
sala, com cara de atarefada. Naquela hora, fiquei sem saber direito se ela tinha
gostado da ideia ou no. O tempo acabou respondendo: ela no tocou mais no
assunto, e aquele desejo acabou por se esvaziar precocemente. No fui escutado.
Entrou por um ouvido e saiu pelo outro, o que dizem quando algum no d
bola para o que voc falou. E foi isso que aconteceu.
Continuei trabalhando, at que tirei duas semanas de folga, uma no fim daquele
136
CARTAS
Virou o ano e a pergunta continuava: quando ser que serei realmente ouvido?
Quando que as pessoas sero escutadas desde a sua idade criana at sua idade
adulta?
137
DOUTORADO INFORMAL
mundo uma nova tese, queria me entregar tambm a um processo novo. O dou-
torado informal j me rondava, mas foi na encruzilhada que trocamos nossas
primeiras confidncias.
Um ano depois do nosso primeiro encontro, ficou claro para mim que te
conhecer foi uma experincia de despertar. Seu exemplo me catapultou para
um territrio imprevisvel em que uma das nicas bssolas disponveis era a co-
erncia. Agarrei-me a ela: o doutorado informal espelhava como nenhum outro
processo o meu entusiasmo em relao a alternativas educacionais libertadoras.
Fez sentido. A partir disso, comecei a apresent-lo como um instrumento capaz
de resgatar as fascinantes possibilidades de criao de conhecimento que h em
todos ns. Isso s fez aumentar aquela correnteza que me envolvera desde o
incio do trajeto. Nesse perodo, escrevi:
Os programas de doutorado so justamente aqueles que propem algo
novo mas, hoje, eles esto trancafiados em tribunais epistemolgicos,
as universidades. E se todos pudssemos propor algo novo, buscando
explorar o que mexe l no fundo da gente, com a nossa essncia? Este o
esprito do doutorado informal.
138
CARTAS
O que me encantae o que vejo em tudo que voc faz quando os universos
do prosaico e do potico se misturam. Vale refletir: quando que as prosas da
vida esto querendo se encontrar com o mar da poesia? Como que a poesia
pode se tornar ainda mais potente ao ser polvilhada por realidades? A partir
60
Conforme se v no texto Um encontro com Andr Gravat, de Pedro Ribeiro Nogueira para o
Portal Aprendiz. O link pode ser encontrado no fim desta carta.
61
A citao foi extrada do mesmo texto mencionado na nota acima.
139
DOUTORADO INFORMAL
Sei que voc tambm adora Manoel de Barros. Certa vez ouvi que o poeta
cujas obras frequentemente so adotadas por vestibulares sempre errava as
questes de mltipla escolha a respeito de seus poemas. Ao te escrever, lembrei
do filme Histrias da unha do dedo do p do fim do mundo, dirigido por
Evandro Salles e Mrcia Roth, que utiliza trechos da poesia manoelina apresen-
tados a partir de belas animaes. Por ter usado o nome do filme como ttulo
desta seo, senti que precisava falar algo sobre ele. Fui atrs de informaes.
Cheguei at um blog que disponibilizava o poema A doena, de Manoel,
cujo um dos versos fala de um lugar to longe, mas to longe que era a unha
do dedo do p do fim do mundo. Ao final da leitura, o blog disponibilizava
questes de interpretao de texto. Reproduzo abaixo o poema e a primeira
dessas questes:
A doena
Nunca morei longe do meu pas.
Entretanto padeo de lonjuras.
Desde criana minha me portava essa doena.
Ela que me transmitiu.
Depois meu pai foi trabalhar num lugar que dava
essa doena nas pessoas.
Era um lugar sem nome nem vizinhos.
Diziam que ali era a unha do dedo do p do fim
do mundo.
A gente crescia sem ter outra casa ao lado.
No lugar s constavam pssaros, rvores, o rio e
os seus peixes.
Havia cavalos sem freios dentro dos matos cheios
de borboletas nas costas.
O resto era s distncia.
A distncia seria uma coisa vazia que a gente
portava no olho
140
CARTAS
Verdades inventadas
H histrias to verdadeiras que s vezes parecem que foram inventadas62.
Voc nunca deixou a curiosidade escapulir, ou melhor, deixou sim, fez com que
ela voasse. Embora nunca tenhamos conversado sobre sua histria de vida, eu
andei investigando. Olha s o que encontrei63:
62
Este verso de Manoel de Barros e aparece no filme Histrias da unha do dedo do p do fim do
mundo, de Evandro Salles e Mrcia Roth. O filme est disponvel no Youtube e o link encontra-se no
fim deste texto.
63
Citao extrada do texto Um encontro com Andr Gravat, de Pedro Ribeiro Nogueira.
141
DOUTORADO INFORMAL
Fico imaginando a reao das pessoas que recebiam suas ligaes, depois de
tantas outras chamadas desaquecidas e robticas. Ligar para um nmero 0800
para saber histrias de quem est do outro lado fazer poesia. brincar de
testar as pequenas possibilidades ao nosso redor. E assim, brincando de testar as
pequenas possibilidades ao redor, comecei a empreender meu prprio caminho
de aprendizagem. No s a poesia que h dentro de voc me inspirou, mas a sua
brincadeira de realizar microrrevolues tambm.
Andr, voc me mostrou que o quando pode ser agora. Para ser realmente
escutado, estou indo atrs do qu, do como e do porqu quero falar. Ao longo
do percurso vou colecionando perguntas, palpites, prosas e poesias que talvez
ajudem mais pessoas a serem de fato ouvidas em seus desejos mais profundos
ainda que tudo que elas queiram seja uma edio local de No Limite.
H muitas prosas e poesias ainda por vir, meu amigo. Acho que a hora, enfim,
chegou.
Obrigadimenso,
Alex.
142
CARTAS
143
DOUTORADO INFORMAL
A resposta do Andr
Escrevo esta carta num dia nublado. O sol est l fora, d para v-lo pela janela,
mas h nuvens no meu ar, pois fatos delicados tm me acompanhado. Meu pai
est no hospital, j fez vrias cirurgias... Leio suas palavras sobre a importncia
da escuta e elas fazem ainda mais sentido no presente momento. Pois escuta
tem a ver com cuidado. Cuidar de si e dos outros. E por eu estar frequentando o
hospital quase todos os dias para visitar meu pai, vejo pessoas em situaes-lim-
ite que exigem muito cuidado. Dias atrs, logo que cheguei ao hospital, vi um
pai dando comida a seu filho. O garoto tinha os dentes projetados para fora e
dificuldade em falar e se locomover. Que cena maiscula: pai alimenta filho.
E alimentava-o sorrindo. No consigo saber ao certo, claro, se esse pai assim
com frequncia ou no, mas senti que naquele mido instante havia um carinho
verdadeiramente amoroso sobre os dois. E aquela cena me deixou com um pens-
amento na mo: cuidar bem de si e do outro uma habilidade vital. E no falo
aqui de qualquer cuidado. Mas do cuidado que d ao outro a possibilidade de
liberdade. O cuidado que d ao outro e a si mesmo a possibilidade de liberdade.
Pois pouco adianta tambm, claro, se o pai que d comida invadir demasiada-
mente a autonomia do filho e nunca permitir que o garoto sinta os alimentos
com suas prprias mos. Para cuidarmos de ns e dos outros ao mesmo tempo
em que damos espao para a liberdade, precisamos do qu? Escutar, escutar,
escutar. Escutar at que sejamos capazes de ver com os ouvidos.
144
CARTAS
uma forma nica, mas sim um convite para aprofundar a prpria autonomia
e capacidade de cuidar bem. Fico feliz que nos encontramos para apoiar um
ao outro no cultivo de autonomias frteis. H muito terreno em cada pessoa,
realmente precisamos cuidar das nossas bases para possibilitar a emergncia de
bonitezas, de aes que marquem pelo menos um pouquinho esse mundo em
que a poesia e o cuidado foram acuados pela prosa e presas do controle.
Aqui ao meu lado h um livro que tem me acompanhado nos ltimos dias.
Chama-se Os Irmos Karamzov, do russo Fidor Dostoivski. um romance
sobre a liberdade. um balde de poesia afiada. Na metade do livro, um person-
agem fala o seguinte: Tudo como o oceano, tudo corre e se toca, tu tocas em
um ponto e teu toque repercute no outro extremo do mundo. Essas palavras me
inspiram a declarar minha alegria quando constato que, nesse mundo-oceano,
to transbordante, o doutorado informal te tocou. E que voc est imerso em
suas pesquisas lembrando que teu toque repercute no mundo e tentando deixar
inspiraes e provocaes no extenso terreno da educao.
Boa sorte.
Do amigo,
Andr.
145
DOUTORADO INFORMAL
146
CARTAS
Lusa Mdena
Lusa uma amiga que conheci no
primeiro Crculo de Doutorandos In-
formais, realizado em So Paulo. Sendo
doula e educadora, no me contive em
explorar junto com ela as possibilidades
de interseo entre aprendizagem e
nascimento.
Querida Lusa,
147
DOUTORADO INFORMAL
Nascimentos de jardins
Sobre nascimentos, evoco Rubem Alves64 para dizer que:
Pedagogia se aprende em coisas pequenas. Olhem o que esse cara fala,
o William Blake: prazer engravida. Claro! Se voc tem uma viso do
Social, realizado no SESC Santos em maio de 2002. O link com o texto est disponvel ao final desta
carta.
148
CARTAS
sonho, voc fica grvido se voc tem uma viso do jardim, voc fica
grvido, voc comea a puxa vida, mas que coisa fantstica, voc
comea a ter prazer antecipado. A voc est disposto a passar por todos
os sofrimentos, vai l, cavouca de manh, carrega pedra, corta a mo,
machuca o p, finca espinho, mas no tem importncia, porque todo esse
sofrimento para qu? para dar luz um filho, que o jardim da gente.
E ao final, ento, o que que a gente tem? A gente tem o gozo do jardim.
Esses quatro elementos do forma a uma metfora que pode muito bem ser
utilizada para se enxergar os processos de aprendizagem. Afinal, aprender no
limite sempre envolve nascimentos, desde que o nosso ponto de partida seja an-
corado naquilo que nos essencial: o desejo, o sonho vivo de jardim. A figura da
lemniscata65, conhecida como a representao do infinito, pode ser uma imagem
65
Agradeo aos consultores e scios da Lumo por sugerirem a lemniscata como uma imagem capaz
de representar a ideia.
149
DOUTORADO INFORMAL
150
CARTAS
Vir-a-ser
Lusa, voc me disse que, durante o parto, as mes so vistas do avesso. Sen-
tem-se pelo avesso. O corpo a figura central. Tenho pensado em como temos
dado pouca ateno ao nosso corpo na educao que conhecemos. Parece que
s h espao para os trabalhos da mente. Muita gente j alertou: Rudolf Steiner,
na antroposofia; Ken Wilber, na teoria integral; Bernhard Wosien com as danas
circulares; os Mestres Gris com seus cantos, brincadeiras e danas...
At dar luz a um sonho, existe uma estrada que deve ser aproveitada nos mni-
mos detalhes. Basta ver como o corpo do feto vai sendo preparado, a arquitetura
cuidadosa de cada clula, de cada tecido. O DNA o mesmo a cada empreen-
dimento celular: a essncia, originada a partir do desejo, se conserva em toda
parte daquele novo ser. Ao mesmo tempo em que ele fortalece seu vir-a-ser, j .
No a me que gera o filho: ele que se constri, que emerge, dispondo do am-
biente privilegiado sustentado pelo corpo e pela alma materna. A me no deixa
de ser essencial nesse processo. Mas, em se tratando de nossos percursos de
aprendizagem, fico imaginando que talvez seja impossvel controlarmos todos
os detalhes da gerao de nossos bebs. Tudo o que podemos fazer iniciar e
sustentar um ambiente privilegiado e facilitar a emergncia do novo, confiando
que a essncia do sonho que estamos gestando no pode ser baseada seno no
desejo que o originouseu DNA.
151
DOUTORADO INFORMAL
Doulagens
Doula, do grego mulher que serve, quem apoia as futuras mes para que elas
aproveitem todos os aprendizados do percurso. Quando voc me disse isso,
percebi ter encontrado a satisfao intelectualcomo diz uma amigaque
justificava o meu inusitado interesse nas nossas conversas. Tornar-se doula no
uma opo trivial nos dias de hoje. uma escolha corajosa que repousa sobre
um propsito claro. Nesse sentido, percebo uma aproximao com o doutorado
informal: algo que requer emancipao, saber de si, encarar de frente nosso
sonho e estar disposto a faz-lo nascer.
Ser doula tambm significa batalhar por legitimidade, visto que ainda no
h reconhecimento da profisso no Brasil. lidar com a insegurana, com a
imprevisibilidade e com o preconceito por se acreditar no resgate ancestral de
uma experincia de cuidado com o outro. Sinto-me da mesma forma escrevendo
este livro, fazendo um doutorado informal. Em tempos de educao mecanizada
e cientificista e de frios partos hospitalares, as doulas e os que optam por um
caminho autnomo de aprendizagem tm algo em comum.
152
CARTAS
Trajetrias de vida
Quando conversamos voc me disse que a biografia, os conhecimentos ante-
riores e os interesses de uma doula impactam de forma significativa o tipo de
relao que ela construir com as gestantes. No seu caso, voc me contou que
est enveredando por um caminho de cunho mais teraputico, ainda que no
tenha uma formao especfica nesse sentido. como se o seu corao batesse
mais forte quando voc se d conta que consegue fazer a diferena a partir de
um talento seu. No libertador poder exercer um papel que te fortalece?
Cada doula carrega consigo marcas nicas que se manifestam de diferentes ma-
neiras no seu trabalho: algumas apostam em cuidados fsicos, outras encontram
nuances mais educativas, psicolgicas, mdicas, espirituais etc. No que se refere
sua prtica, Lusa, notei ainda sua preocupao em enxergar o nascimento de
66
Garrafadas so bebidas produzidas a partir de ervas medicinais, muito comuns nas regies Norte e
Nordeste.
153
DOUTORADO INFORMAL
Para que uma futura me receba o cuidado de uma doula, preciso confiana.
Isso requer, por sua vez, afinidade e afeto na relao. Todo o trajeto do nasci-
mento constitui-se de uma srie de momentos muito ntimos e preciosos para a
mulher. Ao entendermos a gestante como algum que empreende uma jornada
para dar luz ao seu sonho, a figura da doula se transforma em mentora. A
aproximao entre doulagem e mentoria possvel porque, em se tratando de
aprendizagem autnoma, mentor quem est do lado, no acima.
Em uma das histrias que a obstetriz Ana Cris Duarte nos conta, ela narra o
trgico episdio de um parto opressivo67:
A parteira de mscara na frente era uma total desconhecida, dando or-
dens, pra baixo, levanta o quadril, fora assim, respira. E ela [a gestante]
totalmente fora de si, como poderia entender o que estava falando aquela
desconhecida mascarada?
claro que existem bons mdicos e boas parteiras, assim como existem timos
professores. No entanto, talvez a essncia do papel desempenhado por esses
profissionais merea uma redefinio: das ordens durante o parto para uma
acolhida durante o nascimento; de quem professa o que sabe a quem apoia a
jornada do outro.
Amor e dio
Na sua jornada de aprendizagem, Lusa, voc me disse que nutre uma relao de
amor e dio com a teoria. Apaixona-se por alguns tericos e leva seus conceitos
67
O trecho foi retirado do texto As Coelhas, a Ursa e a Leoa quatro partos, quatro histrias, dis-
ponvel no site Doulas.com.br. Link: http://www.doulas.com.br/artigos.php
154
CARTAS
consigo por toda a vida, mas se enraivece com outros, cujos textos no quer ver
nunca mais.
Erich Fromm, autor de O medo liberdade, foi um dos que mais lhe cativou. Na
crtica de Fromm ao sistema capitalista talvez coubesse uma reflexo a respeito
de como a incessante busca material acaba subvertendo a aprendizagem: privile-
gia-se o ensino a partir do que economicamente valorizado, em detrimento do
que realmente queremos aprender.
Sabe, Lusa, tudo isso me fez ficar pensando em como funciona a curiosidade.
Cheguei concluso de que ela a ponte entre o conhecido dentro da gente e
o desconhecido fora de ns. Para erguer essa ponte, nossas vontades, necessi-
dades, sentimentos, valores e vises de mundo so matrias-primas. Algumas
dessas coisas aparecem de maneira consciente, outras, nem tanto. A gente vai se
revelando.
Uma vez voc me disse que tem dificuldade em acreditar que seu percurso vai
desaguar num nascimento. No entanto, grvida de sonhos voc j est. Ao fazer
encaixar a humanizao do nascimento, a educao livre e as histrias de vida,
um belo jardim vem por a. Curiosidade desejo, e como diria William Blake,
prazer engravida.
Muita gratido,
Alex.
155
DOUTORADO INFORMAL
156
CARTAS
A resposta da Lusa
Sim, grvida de sonhos! Alex, que presente foi receber a sua carta e reconhecer
nas suas palavras um profundo cuidado e delicadeza com algo que me to
querido. Suas palavras tm a fora de quebrar muros e construir pontes! Muita
gratido por esta instigante oportunidade de reflexo, de dilogo e de novos
olhares.
157
DOUTORADO INFORMAL
da doulagem?
Fui para o nosso caf e que delcia de conversa tivemos. Novas conexes, com-
preenses, trocas de conhecimento e perspectivas. Quase ao final, mesmo certa
do sentido pleno que fazia tudo que havamos acabado de conversar, eu ainda
no entendia muito como poderia ajud-lo de fato. Ento voc me contou sobre
uma parte do seu projeto que consistia em escrever cartas para pessoas que, de
alguma forma, dialogavam com os saberes que voc est construindo no seu
doutorado informal. Preciso lhe dizer da profunda surpresa e verdadeira alegria
quando soube que eu seria uma de suas remetentes.
Alex, lembro-me que em nossa conversa lhe contei sobre os partos que aconte-
cem com menos ou mais semanas de gestao do que o considerado normal e
como isso um problema para os sistemas que insistem em padronizar a vida.
Mesmo a me e o beb estando saudveis, h uma intensa presso para que
aquele nascimento acontea dentro do prazo estipulado no calendrio.
158
CARTAS
Nestas prticas, o desejo interno, a pulso de cada indivduo em sua busca pelo
conhecimento fica perdida no meio do caminho. Se pensarmos, ento, que o
prazer engravida e que estamos valorizando mais os resultados apressadamente
nascidos, como pode haver partos se no h gestao, ou seja, se no h prazer
ou desejo? O que estamos, ento, parindo em nossa educao? O que est
nascendo, de fato? Por isso achei muito linda, profunda e urgente a sua reflexo:
Quem sabe com mais jardins nascidos do desejo autntico de cada um tenham-
os paisagens coletivas mais desejadas por todos ns?
No sei se compartilhei isso com voc, mas muitas doulas e parteiras contam em
seus relatos que bem comum que as mulheres, instantes antes de parirem, di-
159
DOUTORADO INFORMAL
gam que vo morrer. Muitas acreditam que vo, literalmente, morrer. Em alguns
casos, essa sensao pode trazer alguns bloqueios que travam a concluso do
parto. Quando, ento, as mulheres de alguma forma elaboram essa percepo e
se entregam para uma morte simblica, um canal se abre e o nascimento, enfim,
acontece.
O momento do parto a expulso de algo que no cabe mais ali apenas, que
precisa expandir, que precisa ser entregue ao mundo. Essa entrega difcil e
dolorida e, ao mesmo tempo, vigorosamente prazerosa e transbordante. Por isso,
o momento que carrega em si o luto e a vida; a transmutao.
Lembro-me que te contei que os projetos e sonhos que fazem mais sentido para
mim so aqueles que eu mais tenho dificuldade de colocar em prtica, de entre-
gar para o mundo. Talvez isso carregue alguma semelhana com o que ouo de
muitas mulheres: gostariam que seus bebs ficassem para sempre em suas bar-
rigas, acolhidos, protegidos, embalados. No entanto, sabemos que uma gestao
no dura para sempre. preciso desapegar-se.
Sinto que a hora de parir j vem, posso vislumbr-la mais adiante. Dizem
que, dos nove meses de gestao, os primeiros oito passam voando e o ltimo
dura uma eternidade. A barriga j pesa, no h posio, difcil respirar. E
aquigrvida de tantos sonhostambm j quase insuportvel, cansativo e
desgastante ter s para mim este projeto longamente gestado, ainda que incon-
cluso. Ele precisa nascer! S ento conhecerei seu rosto e seus modos de viver.
160
CARTAS
profunda entrega e f.
Lusa.
161
DOUTORADO INFORMAL
162
CARTAS
Paul Feyerabend
Desculpe, Paul, mas devo confessar que no sei pronunciar seu sobrenome
direito. Fairaband? Feiraban? Feiaraband? Nas minhas buscas sobre voc, vi
pessoas dizendo seu nome de diferentes maneiras. No limite talvez todas estejam
certas, no ? Sei que voc foi algum que denunciou os absurdos do certo no
singular. Para isso, utilizou a filosofia, mas no aquela banhada em ouro, e sim a
singela arte de refletir sobre nossas questes mais essenciais.
163
DOUTORADO INFORMAL
Mas qual seria o propsito disso? Paul, se voc estivesse vivo, acredito que voc
responderia a essa pergunta de maneira bem diferente do que seus colegas
filsofos. Para voc, imagino que o propsito da epistemologia e tambm do
prprio conhecimento seria no somente o progresso tecnocientfico, mas
tambm o amor.
164
CARTAS
Em sua mais clebre obra, Contra o mtodo, o que voc fez foi implodir qualquer
noo abstrata e acabada sobre o mtodo cientfico pontuando casos na histria
em que cientistas cannicos escapuliram aos mandamentos. Coprnico um
deles: quando Coprnico introduziu uma nova viso do universo, ele no con-
sultou antecessores cientficos, ele consultou um louco pitagrico, Filolau. Ad-
otou suas ideias e ele manteve-as frente a todas as regras do mtodo cientfico71.
Galileu, por sua vez, ao retomar ultrapassada teoria de Aristteles sobre o
movimento da Terra, fez avanar a cincia por meio de um regresso a uma viso
68
A citao foi extrada de uma conferncia ministrada por Feyerabend em 1975 intitulada Como
defender a sociedade contra a cincia. A traduo de Paulo L. Durigan e o link est disponvel ao
final desta carta.
69
Idem nota anterior.
70
Trecho retirado do artigo Epistemoloque?, referenciado ao final do captulo.
71
e 72 Idem nota 68.
165
DOUTORADO INFORMAL
na poca taxada como absurda e pouco racional. Como voc mesmo disse72,
[...] mecnica e tica devem muito aos artesos; a medicina s parteiras e
bruxas. E em nossos dias [o texto de 1975] temos visto como a inter-
ferncia do Estado pode fazer avanar a cincia: quando os comunistas
chineses no se deixaram intimidar pelo julgamento de especialistas e
ordenaram a volta da medicina tradicional s universidades e hospitais,
houve uma gritaria em todo o mundo de que a cincia estaria em runas
na China. Muito ao contrrio ocorreu: a cincia chinesa avanou e a
ocidental aprendeu com ela.
73
Conforme se l em uma reportagem publicada no site Catraca Livre, cujo link pode ser encontrado
na seo de referncias.
74
Citao extrada da obra Contra o Mtodo, cuja referncia est disponvel no fim desta carta.
166
CARTAS
Sua crtica no engloba o fato de se fazer cincia, mas sim de se faz-la no singu-
lar. Cada campo do saber tem sua singularidade, seu jeito, e os conhecimentos
que o discurso dominante pode taxar como absurdos hojea astrologia, por
exemplopodem no somente ser teis a quem deles se serve, como tambm
servir a outros domnios por meio de uma atitude transdisciplinar. No limite,
[] a cincia muito mais desleixada e irracional do que a sua ima-
gem metodolgica. [] A diferena entre a cincia e a metodologia, fato
mais do que evidente ao longo da histria, indica uma fraqueza da lti-
ma, e talvez tambm das leis da razo. Porque aquilo que surge como
desleixo, caos ou oportunismo quando referido a essas leis desem-
penha uma funo da mxima importncia no desenvolvimento dessas
mesmas teorias que so consideradas partes essenciais do nosso conhe-
cimento da natureza. Esses desvios, esses erros, so precondies do
progresso. As ideias que hoje formam a base da cincia s existem porque
existiram no passado certas coisas como o preconceito, a imaginao,
a paixo; porque essas coisas se opuseram razo; e porque tiveram a
possibilidade de seguir o seu caminho75.
A escassez mora nos extremos e, neste caso, ela se revela quando queremos
fixar uma forma de pensar como a certa (escassez de possibilidades) e tambm
quando queremos impor a destituio de todas as estruturas j estabelecidas
(escassez de humildade). As metodologias, no s no territrio cientfico como
em qualquer outro, so ferramentas que guiam nosso pensamento em terras
ridas. Que tal aceitarmos todas elas, quer sejam cientficas ou no, como leg-
75
Idem anterior.
76
Constru esse entendimento a partir da vivncia na Escola de Dilogo de So Paulo. Vale acessar o
site da Escola: http://escoladedialogo.com.br
167
DOUTORADO INFORMAL
77
Trecho retirado do texto 67 proposies de Humberto Maturana sobre a biologia do amor, dis-
ponvel no site do Ministrio Pblico do Estado do Paran. Link no fim do texto.
78
Idem acima.
168
CARTAS
Ao tomar contato com sua trajetria acadmica, fiquei admirado com o fato de
um ex-tenente nazista se questionar seriamente sobre como lidar com a diver-
sidade. Na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidospor onde voc foi
professor durante mais de vinte anos,sua postura buscava explicitar e acolher
as tenses culturais que explodiam na dcada de 1960 e que, naturalmente, eram
trazidas pelos estudantes.
Via-se cada vez mais rostos negros em minhas aulas (num percentual
bem maior do que no campus hoje) e eu estava sempre confuso. Deveria
continuar alimentando-os com os manjares intelectuais que eram parte
da cultura branca? [] eu me sentia ignorante e deslocado81.
79
Mersault o protagonista do romance O Estrangeiro, publicado em 1942.
80
Citao extrada da autobiografia de Paul Feyerabend, intitulada Matando o tempo, referenciada
ao final deste texto.
81
Idem nota anterior.
169
DOUTORADO INFORMAL
Logo aps terem assumido que se tratava de uma encenao, vocs iniciaram
uma conversa com os alunos no sentido de levantar possibilidades do que fazer
quando se est diante de uma atitude autoritria. Fiquei com muita vontade
de um dia refazer esse experimento. Paul, casos como esse ilustram bem o seu
esprito travessoe tambm ajudam a explicar porque voc foi to criticado.
Como disse Mrio Bunge, um dos filsofos que o censurou, voc andava feito
cigano tanto pelo mapa do mundo quanto pelo mapa da cultura84. Cincia e filo-
sofia conviviam em voc com o teatro e o canto lrico, outras duas paixes suas.
Cantar, assim como o nascimento, mais uma metfora da aprendizagem cada
um vem ao mundo com um timbre de voz nico, que vai se moldando por meio
82
e 83 Idem nota anterior.
Conforme se l no texto que o autor produziu sobre Feyerabend para o seu livro Cpsulas,
84
170
CARTAS
de vivncias culturais singulares. Todos temos um tipo de voz que pode ser
desenvolvido, mas que encontra em um determinado conjunto de notas a sua
regio mais confortvel e brilhante de expresso. Aprendemos da mesma forma:
a partir dos nossos talentos, desconstrumos e construmos percepes mediante
as culturas que escolhemos viver. Nenhum timbre vocal igual ao outro, mas
todos tm sua regio de maior brilho. Assim tambm ocorre com as diversas fer-
ramentas que dispomos para conhecer a ns mesmos e o mundo.
A histria da cincia revela que o intercmbio entre os saberes tem sido funda-
mental para nossa existncia. Yoga, astrologia, surrealismo, feminismo, marce-
naria, medicina chinesa e mitologia guarani so somente alguns exemplos que
merecem habitar o mesmo patamar do conhecimento tido como cientfico. No
os desconsideremos: a epistemologia , antes de tudo, uma questo poltica.
Por mais que voc, Paul, tenha dito em sua autobiografia que logo esqueceu tudo
aquilo que vivera em seus trs anos de guerra, talvez isso tenha servido para
pavimentar sua trajetria oposta. como voc escreveu, pouco antes de partir,
na ltima linha de seu relato de vida: isto o que eu gostaria que acontecesse, a
sobrevivncia no intelectual, mas do amor85.
Obrigado,
Alex.
85
A frase a ltima que se l na autobiografia de Feyerabend, escrita por ele pouco tempo antes de
sua morte.
171
DOUTORADO INFORMAL
172
S o encontro fsico no aconteceu
173
DOUTORADO INFORMAL
Juanita Brown
Juanita Brown a criadora do World Caf, uma
abordagem de conversao e aprendizagem para
grupos utilizada no mundo todo. Ela tambm
uma das mentoras do meu doutorado informal.
Eu no tinha a menor ideia do que era um World Caf. Passava meus dias indo
e voltando a p da faculdade, tentando obter algum dinamismo mudando a rota
que fazia todos os dias. Eu tinha trs opes de caminho, e cada vez eu escol-
hia um diferente. Frequentava as aulas, achava algumas interessantes, outras,
odiveis, fazia as provas, e um sentimento anestesiante de normalidade pairava
no ar. Naquele tempo eu no pensava assim. No havia vivido outra coisa seno
a normalidade, a preguia de estudar, o medo de ser avaliado, as fofocas em
relao aos professores. Desde o przinho, passando pelos ensinos fundamen-
tal e mdio at chegar ao suposto ensino superior, boa parte da minha existncia
era preenchida dessa forma. At que, depois de uma aula tensa de clculo, um
amigo me convidou para fazer parte do Diretrio Acadmico (DA) do curso.
Fazer parte do DA me fez enxergar uma pequena, mas crescente fresta por
entre a fria e montona rotina da faculdade. Entre uma aula e outra fazamos
reunies e enfim eu sentia que as pessoas estavam falando de temas com os
quais realmente se importavam. As conversas eram vivas e as pessoas estavam
ali porque queriam estar. Ainda que fosse para discutir quantos engradados de
cerveja deveramos comprar para a prxima festa. Como esse tipo de conver-
sa no me interessava muito, mergulhei de cabea nas tarefas mais nerds do
DA: os eventos acadmicos e a representao estudantil. Planejei seminrios,
um simpsio e vrios ciclos de debates pequenas conversas organizadas em
torno de temas polmicos relacionados ao curso de administrao pblica. Um
174
CARTAS
dos ciclos ocorreu por conta da iniciativa de reforma curricular proposta pela
coordenao, e eu era o responsvel pela mobilizao dos alunos. Um colega se
ofereceu para facilitar a conversa e disse que poderia utilizar uma abordagem
chamada World Caf.
Juanita, devo lhe dizer: no instante em que vi o World Caf funcionando, a for-
ma com que eu encarava minha prpria educao se transformou. Fui procurar
saber o que era aquilo: uma metodologia de dilogo e aprendizado colaborativo.
O curioso que durante o encontro no aconteceu nada de especial que pudesse
justificar o meu sbito interesse pelo World Cafforam apenas conversas.
Facilitei e participei de outros Cafs muito mais significativos e interessantes nos
anos seguintes. Mas, de alguma forma, vi um potencial misterioso naquele est-
ranho mtodo. Aprendi que a curiosidade no depende de justificativa racional
para se manifestar, ela simplesmente acontece.
A partir desse primeiro contato, iniciei uma verdadeira jornada. Busquei artigos,
livros, textos, cursos e oportunidades para praticar a abordagemcheguei at
mesmo a conseguir dinheiro emprestado para fazer uma formao. Comecei a
175
DOUTORADO INFORMAL
conhecer pessoas novas cujos interesses eram semelhantes aos meus. Passei a
frequentar eventos em que se utilizava o World Caf e adorava falar sobre as no-
vas descobertas que fazia sobre a metodologia para as pessoas. No meu ltimo
ano de graduao, eu estava to tomado pelo assunto que arranjei um jeito de
torn-lo central no meu trabalho de concluso de curso. Como j havia comea-
do a escrev-lo, precisei apertar a tecla delete e apagar dezenas de pginas
para dar lugar ao que genuinamente me interessava. No me arrependi, embora
minha orientadora pensasse que eu estava louco. s vezes somos taxados de
loucos quando ousamos mergulhar no que nos fascina.
Era como se o World Caf fosse o centro de um enorme vrtex que sugava tudo
ao meu redor. Um vrtex ocorre quando h diferena de presso entre duas
regies vizinhas. Certamente havia diferena entre o modelo educacional que
eu estava acostumado e a incrvel jornada de aprendizagem que se descortinava
bem na minha frente. Eu me sentia muito mais instigado a percorrer o caminho
que se iniciara por meio da curiosidade do que fazer bonito para constar no
sistema.
Depois de me ver sugado pelo vrtex do World Caf, no consegui mais parar
de seguir as pistas do que me interessava. Por meio do World Caf descobri a
facilitao de processos, e por meio da facilitao pude aprender sobre diversas
outras abordagens para se trabalhar com grupos. Em paralelo descobri a edu-
cao democrtica, e no tardou para eu ligar os pontos: percebi que facilitao
e aprendizagem autnoma tinham muito em comum. Depois, ao me deparar
com o doutorado informal, embarquei em uma nova jornada. Uma descoberta
foi atraindo a outra naturalmente.
176
CARTAS
Acredito que o seu percurso, Juanita, tem algumas semelhanas com o que aca-
bei de contar. No limite, quando qualquer pessoa se percebe desvendando o que
mais lhe fascina, certos padres tendem a ocorrer: entusiasmo, sensao de que
o tempo no passa e vontade de compartilhar o que estamos aprendendo so al-
guns deles. A melhor forma de aumentar a efetividade dos processos educativos
deixar as pessoas seguirem o que lhes diz sua curiosidade.
Depois de muitos e-mails, conversamos cara a cara pela primeira vez por
Skype. interessante como pessoas que julgamos inacessveis se revelam gente
como a gente logo no primeiro contato. So os filtros que criamos quase incon-
scientemente que nos impedem de ver.
Antes da nossa primeira conversa, me lembro de andar por todo canto com a
sua tese de doutorado. Eu a possua em formato digital e sempre tinha em mos
o notebook para poder l-la: nas aulas da faculdade, na biblioteca e at no curso
de ingls (quer jeito melhor de se aprimorar em uma lngua estrangeira do que
ler apaixonadamente algo naquele idioma?). Eu no sabia que era possvel al-
gum ser to autntico em um doutorado. No vdeo que voc gravou para apoiar
a campanha de crowdfunding, voc nos conta um pouco sobre esse processo:
Eu mesma fiz um doutorado sobre o World Caf de uma forma muito
diferente, ajustada s minhas necessidades, em um programa de douto-
rado alternativo para adultos no Instituto de Inovao Social da Fielding
University. Por conta desse programa nico e inovador eu pude fazer
minha tese contando uma histria, compartilhando minha jornada pes-
soal de aprendizagem, o que incluiu encontrar minha prpria voz e meus
prprios entendimentos sobre o trabalho da minha vida.
177
DOUTORADO INFORMAL
A fim de criar sua prpria forma de pesquisar, voc props uma mescla de
perspectivas metodolgicas como a pesquisa-ao, a viso apreciativa, a con-
tao de histrias, a investigao heurstica e outras mais. O resultado disso
a sensao, em quem l, de estar sentado junto com voc e dezenas de outros
anfitries de World Cafs em um grande crculo de cadeiras, conversando e
alargando possibilidades.
178
CARTAS
Juanita, voc foi e tem sido essencial para fazer transbordar minha coragem.
Atravs de voc conheci seu companheiro David Isaacs e aprofundei meus
laos com a Amy Lenzo, dois outros membros da comunidade global do World
Caf que tambm se mostraram muito gentis ao conversarem comigo. Ainda
mais importante do que os insights resultantes dos nossos dilogos, vocs todos
acreditaram no que eu estava fazendo. Quando algum acredita na gente,
como se despertssemos de um sono profundo.
86
A origem do World Caf aparece contada em fontes distintas. A verso que apresento o meu
entendimento a partir do que Juanita escreveu em sua tese de doutorado, intitulada The World Caf:
Living Knowlegde Through Conversations That Matter. A referncia est disponvel ao final desta carta.
179
DOUTORADO INFORMAL
Alm da presena, outro grande aprendizado que voc provocou em mim tem
a ver com a importncia das boas perguntas. No meu trabalho de concluso de
curso sobre o World Caf na graduao, fui anfitrio de um encontro utilizando
a abordagem e minha principal descoberta foi sobre como (no) construir per-
guntas poderosas. O Caf funciona a partir das melhores perguntas que podem-
os nos fazer diante de uma situao realmente importante para todos os partici-
pantes. Em sua tese, voc retoma o que disse o consultor Felipe Herszenborn: a
pergunta gera uma descontinuidade, uma perturbao da qual o sistema tenta
se recuperar. A pergunta precisa gerar um pouco de ansiedade. No entanto, as
180
CARTAS
questes que propus no meu primeiro World Caf geraram ansiedade demais.
Elas focavam nos problemas e carregavam perigosos julgamentos, e uma conver-
sa que comea desse jeito tende facilmente a se tornar um beco sem sada. Errei
feio, mas aprendi muito.
Juanita, sua busca incessante pelas perguntas que nos provocam me contam-
inou. Com voc aprendi que uma pergunta poderosa um convite para que
abandonemos nossas posies mais arraigadas e comecemos a enxergar de
outra perspectiva. Ao refletirmos sobre as conversas que estamos tendo, vale nos
questionarmos: elas esto gerando frustraes ou elas nos geram entusiasmo e
novos insights?. Dilogos que so capazes de nos conduzir ao propositiva
so os principais mecanismos de mudana da sociedade. Como a consultora em
liderana Margaret Wheatley nos disse, no h poder comparvel ao poder de
uma comunidade que conversa consigo mesma sobre o que quer87.
87
A citao de Wheatley foi utilizada por Juanita Brown em sua tese.
181
DOUTORADO INFORMAL
Ao ler uma passagem da sua tese sobre Fritjof Capra, imaginei o seguinte fluxo:
conversa entusiasmante > conversas posteriores > rede de conversas > compar-
tilhamento de crenas, valores e entendimentos > ao coordenada > mudana
em larga escala. Trata-se de um padro que se manifesta em diversos movi-
mentos. O Movimento Entusiasmo, de transformao educacional por meio da
poesia, a comunidade global Art of Hosting, que congrega anfitries de conver-
sas significativas, e o prprio movimento do doutorado informal so exemplos
disso. Tudo comea com uma conversa capaz de aflorar a chama da vontade dos
participantes.
Assim como eu, Juanita, percebo que voc tambm foi bastante influenciada pe-
las descobertas de David Cooperrider, o precursor da Investigao Apreciativa.
Toda a base do World Caf foi fundada a partir de uma interpretao positiva
da realidade, de modo que inundar as pessoas com esse olhar uma das tarefas
mais importantes da abordagem. Como voc nos disse, os problemas no World
Caf so dissolvidos em vez de resolvidos89. Eles so transformados em desa-
fios e oportunidades medida que a conscincia do grupo comea a emergir.
Dissolver problemas para se construir jornadas de aprendizagem uma sbia e
sutil mudana de paradigma.
Quando direcionamos nossa energia para o que est dando certo, ao contrrio
de focar no que est dando errado, o que acontece? Talvez este seja um dos de-
88
A frase de autoria de David Cooperrider e Diana Whitney e pode ser encontrada no livro O
World Caf: dando forma ao nosso futuro por meio de conversaes significativas e estratgicas,
escrito por Juanita Brown, David Isaacs e a comunidade global do World Caf. A referncia est
disponvel ao fim deste texto.
89
Conforme se v na tese de doutorado de Juanita Brown, referenciada no final da carta.
182
CARTAS
safios mais urgentes do nosso tempo. Percebo que o mundo hoje s se preocupa
com o que est dando errado. Se por um lado isso ocorre no nvel das institu-
ies sistemas polticos, organizaes, escolas , por outro, tambm acontece
com as pessoas. Por isso o objetivo da Investigao Apreciativa nos parece to
difcil de ser alcanado: usar o melhor do que j existe como a base para o futu-
ro. Ser que a obsesso pelos problemas nos tornou especialistas em criar mais
problemas? Como virar esse jogo? Dissolv-los e buscarmos enxergar de outras
formas, em vez de desesperadamente tentar consert-los, o primeiro passo.
Juanita, seu trabalho com o World Caf foi para mim como uma luz no fim do
tnel. O tnel parecia no ter fim e era feito de castigos, imposies, armadilhas
e apatias educacionais. Eu no estava procurando pela luz, mas ela apareceu e eu
a enxerguei. E ento enxerguei tambm o tnel. Engajar-se em boas conversas,
seja participando de um Caf ou no, tem a ver com as trs necessidades hu-
manas bsicas que voc pontua em sua tese: sentirmo-nos seguros, pertencentes
a uma comunidade e capazes de usar nossas habilidades cognitivas a servio de
algo realmente importante para ns. Precisamos de mais espaos de aprendiza-
gem que preencham essas trs necessidades.
s vezes fico pensando como teria sido se os espaos em que estudei durante
boa parte da minha vida honrassem as necessidades humanas de segurana, per-
tencimento e propsito. No entanto, logo reconfiguro essa pergunta para o que
pode ocorrer aqui e agora, j que estou dando os primeiros passos no percurso
de aprendizagem que de fato escolhi. Como voc me disse certa vez, Juanita,
183
DOUTORADO INFORMAL
Alex.
90
A frase encontra-se no vdeo que Juanita gravou para a campanha de financiamento coletivo que
culminou na publicao deste livro. Link da campanha em que o vdeo aparece: https://www.catarse.
me/pt/educforadacaixa
184
CARTAS
185
DOUTORADO INFORMAL
186
CARTAS
Jos Pacheco
Jos Pacheco um dos educadores responsveis por
transformar a Escola da Ponte, em Portugal, em
uma referncia internacional de educao alterna-
tiva. Hoje, vive no Brasil e colabora com a Escola
Projeto ncora, em Cotia (SP), alm de fazer parte
de diversos movimentos de transformao educa-
cional.
Tiros pontiagudos, presso, medo do que escapa, morte certa. Gatilhos de fuga,
debandada, fora interior, um furaco de sentimentos controversos. Resistn-
cia, re-evoluo, resilincia, respirao ofegante, sensao de que lhe falta o ar
e o cho. Passos de botas ao som da voz de Zeca Afonso em Grndola, Vila
Morena. Portugal, 1974: um mundo de viveres e dvidas internas conectado a
um mundo de inconsistncias e raivosidades externas. Vontade incontestvel
de mudana. Histrias de quem sentiu na pele os horrores da vida blica, mas
tambm os encantamentos humanos que surgem mesmo nos cenrios de guerra.
A humanidade penetra at nos lugares mais insalubres. Narrativas que se fazem
entre o pico e o lrico, mas o pico me interessa menos. O que me fascina
perceber como experincias to tensas e marcantes se refizeram em voc e con-
triburam para lhe humanizar, ao invs de lhe deturpar.
Z, fui pego por uma avalanche no dia em que ouvi voc narrando os episdios
que lhe ocorreram durante a Revoluo dos Cravos. Eu estava cursando a
ps-graduao em Pedagogia da Cooperao e Metodologias Colaborativas e es-
perava ansiosamente pelo seu mdulo. Fizemos uma roda, era domingo. Mesmo
com uma tragdia familiar recente, voc fez questo de comparecer. Sentamos
para ouvir suas histrias, mas a mente, o corao e os cabelos ficaram em p.
Meu caro, o que se passava em seu interior naquele 25 de abril? Tentei reconsti-
tuir no incio desta carta um pouco do que l naquele momento estava vivo para
187
DOUTORADO INFORMAL
(Outra coisa que tambm no consegui foi encontrar minhas anotaes daque-
la nossa roda de conversa. Foi tudo to intenso que pode ser que eu no tenha
anotado nada. Tambm no aprendi muita coisa sobre a Revoluo dos Cravos
na escola, ainda que talvez tenha decorado uma ou duas informaes antes da
prova de histria. Logo esqueci, como voc sabe bem. Isso me fez ler e buscar
sobre o assunto para que eu fosse capaz de contar minimamente essa histria
aqui. Perdoe-me pela falta de preciso histrica, mas acredito que voc en-
tender minhas razes.)
Ao que me lembro, voc foi soldado do Movimento das Foras Armadas (MFA)
e contribuiu para fazer a Revoluo dos Cravos acontecer. A senha para o incio
da revoluo foi dada meia-noite por uma estao de rdio, e o poema de Zeca
Afonso entoou o caminho rumo mudana que se queria ver. O regime salazar-
ista foi deposto, e Portugal comeava a ser pensado de outro jeito. Pelo que li,
foi nesse perodo que Angola, Moambique, Cabo Verde e Guin-Bissau, todas
at ento colnias portuguesas, obtiveram independncia. Antes de se ocupar
com o desenvolvimento da autonomia em pessoas, Z, voc ajudou pases a
conquist-la.
Voc no costuma compartilhar muito sobre esse perodo, pelo menos no nas
vezes em que estivemos juntos. A Escola da Ponte e, mais recentemente, a Escola
Projeto ncora tomam quase toda a ateno. A primeira talvez seja o bero de
sua loucura com alguma experincia prtica, e o segundo representa o trans-
bordamento do aprender para muito alm da instituio escola, a partir da ideia
de comunidades de aprendizagem. Ambas as iniciativas representam caminhos
muito necessrios para uma narrativa de mundo mais prxima daquela que
queremos. Uma narrativa que espelha os princpios do projeto da Ponte: soli-
dariedade, responsabilidade e autonomia.
Ainda assim, quis trazer um pouco dos enredos revolucionrios porque a partir
deles descobri que, alm de um hbil contador de histrias, voc tambm viven-
ciou muito intensamente vrias delas. Talvez este seja um dos segredos de quem
conta boas histrias: t-las vivido.
188
CARTAS
189
DOUTORADO INFORMAL
190
CARTAS
incmodos. Foi logo depois de ter atuado na Revoluo dos Cravos que sua nova
jornada comeou, em uma escola nos arredores da cidade do Porto. Sobre as
transformaes da Escola da Ponte, voc assim se pronunciou91:
Ns abandonamos o sistema de turmas, porque ningum nos explicou o
que era uma turma, e muito menos uma turma do lixo [referncia a uma
turma a que eram direcionados somente os piores alunos da escola].
Deixamos de ter sries, porque se compreendemos que cada ser huma-
no nico e irrepetvel, no fazia sentido haver sries. Deixamos de dar
aulas, porque intil dar aulas para um aluno mdio que no existe.
Deixamos de fazer prova porque a prova no prova nada. Deixamos de
ter padres de tempo, toques de campainha, porque entendemos que
a normalizao s fazia sentido no sculo XIX, na primeira industrial-
izao. Deixou de haver livro ponto, deixou de haver manual igual para
todos, deixou de haver o trabalho do professor sozinho, o professor pas-
sou a trabalhar em equipe. E tudo isso ao longo desses trinta anos.
91
Citao extrada de uma entrevista de Jos Pacheco publicado no site do Sindicato de Professores e
Professoras de Guarulhos (Sinpro). Link: http://www.sinproguarulhos.org.br/entrevista_josepacheco.
pdf
191
DOUTORADO INFORMAL
estivesse cara a cara com um ba do tesouro. Minha primeira reao foi tentar
fazer algo com aquilo dentro de onde eu estavano ensino superior. Escrevi e
publiquei artigos sobre o assunto e tentei mais uma vez mobilizar meus colegas,
sem sucesso. Os artigos foram parar em algum peridico que ningum l.
Perguntar os porqus talvez tenha sido o principal mecanismo que levou voc
e seus amigos portugueses a reformularem a Escola da Ponte. Acredito que a
mesma estratgia tambm foi essencial nas transformaes vividas pelo Projeto
ncora. Sinto que ousar os porqus mais difceis em situaes nas quais s vezes
nunca sequer paramos para pensar fundamental em qualquer tentativa de
mudana.
192
CARTAS
92
Traduzi livremente o trecho.
193
DOUTORADO INFORMAL
Por isso, os quatro pilares ainda no so o bastante. Voc ento fornece mais
trs que, junto com o aprender a recomear, conformam a estratgia da Ponte:
aprender a desaparecer, para dar o espao necessrio vivncia da autonomia;
aprender a desaprender, para se dispor a aprender junto, ao invs de ensinar o
certo; e aprender a desobedecer, para que as leis no se tornem barreiras a uma
tica educativa que preza a independncia e a solidariedade.
Certa vez, sete jovens da Fundao Casa com idades entre 13 a 18 anos foram
parar na Escola da Ponte. Os adolescentes tinham um histrico pesado jogando
contra eles: trfico de drogas, prostituio, assalto a mo armada e at assas-
sinato. Um deles, ao agredir um professor, fez com que ele entrasse em estado
de coma. Eles chegaram Ponte acompanhados por uma equipe composta por
policiais, psiclogos e outros profissionais que juntos formavam uma verdadeira
escolta. Ao serem apresentados escola, voc lhes perguntou:
O que que meus amigos querem saber? O que vocs querem fazer? Estas
no eram perguntas que eles tinham se acostumado a ouvir nas outras escolas
que haviam frequentado, mas voc as fez. Ficaram desconfiados.
93
O trecho pode ser encontrado em mais uma entrevista de Jos Pacheco publicada no site da Gazeta
do Povo. Link na seo de referncias ao final desta carta.
94
Jos Pacheco conta essa histria frequentemente em palestras e eventos. Escrevi a verso abaixo a
partir de um vdeo gravado por Marcio Okabe e disponibilizado no Youtube. Link no fim do texto.
194
CARTAS
O mais novo dos meninos disse, ento, que queria trazer uns pssaros para a
escola. Na Febem os bichos eram maltratados e ele queria tir-los de l.
Aps voc perguntar isso, o mais velho disse que sabia fazer um viveiro de
pssaros, herana de seu tempo trabalhando na construo civil. Assim, todos
toparam arregaar as mangas e iniciar a empreitada.
Naquele ponto os jovens, por meio das provocaes que voc lanou, j haviam
chegado a uma inteno comum, a uma ideia de projeto e composto uma equi-
pe.
Para concretiz-lo era preciso saber sobre planta baixa, mapa, escala Assim,
comearam logo a listar tudo que necessitavam saber para tirar a ideia do papel.
195
DOUTORADO INFORMAL
Aps terem atingido o objetivo, toda a escola celebrou junto com os meninos a
vinda dos pssaros, que logo se habituaram sua nova casa. Todos que qui-
sessem saber como construir um viveiro poderiam agora perguntar para eles.
Durante todo o processo e ao compartilharem seus conhecimentos, os jovens
foram sendo avaliados. No final, o mais importante foi ter recuperado o prazer
de viver e o gosto por aprender dos meninos.
95
Conforme se v no artigo A mosca de Aristteles, disponvel no site Educare.pt. Link no fim deste
texto.
196
CARTAS
por um lado, vemos alguns pontos luminosos irradiando solues cada vez mais
ajustadas s demandas de um mundo em transio. Quem olha para esses pon-
tos com lentes do passado os enxerga como sinais de um futuro muito distante,
acessvel a poucos. De outro lado, vemos muitas experincias educacionais que
insistem em aprisionar corpos e colonizar mentes, sem que os profissionais
envolvidos sequer se deem conta disso. Quem olha para essas experincias com
lentes contemporneas enxerga que elas so produtos de uma viso envelhecida,
que vegeta, agoniza, como se l no mesmo artigo que traz a imagem da mosca
de Aristteles. Concluso: cada um percebe o que sua lente lhe permite enx-
ergar. Por isso sou otimista, porque vejo cada vez mais gente compartilhando
lentes novas por a. Documentrios, movimentos, escolas, livros, pensadores,
fazedores, comunidades: chovem iniciativas capazes de propagar alternativas
novas de se viver e se educar.
197
DOUTORADO INFORMAL
96
Trecho extrado da entrevista de Jos Pacheco para o Sindicato de Professores e Professoras de
Guarulhos (Sinpro).
97
Trecho extrado do livro Aprender em comunidade, de Jos Pacheco. Link no fim deste texto.
198
CARTAS
nos fascina. Aprender precisa ser fascinante, seno outra coisa. No nos deixe-
mos nos deseducar.
Alex.
98
Conforme se v no livro Dicionrio de valores em educao, de autoria de Jos Pacheco e disponvel
na ntegra em um link no final desta carta.
199
DOUTORADO INFORMAL
200
Quando o outro nos empresta um olho
201 201
DOUTORADO INFORMAL
Vera Poder
Vera Poder muitas coisas em uma
mulher s. Consultora, coach, professora,
artista, locutora e escoteira, para citar
algumas. Vinda de famlia armnia, sua
histria de vida recheada de prolas.
Vera, te devo desculpas. J se passou mais de um ano desde que voc me contou
tantas histrias e s agora consigo te escrever. No justo. Falha de pesquisador:
deveria ter transformado nossa conversa em letras logo depois de termos nos
encontrado. Minha memria estaria bem mais fresca. Ainda bem que registrei
com cuidado alguns pedacinhos saborosos do que falamos. No que a memria
no der conta, aciono a imaginao. Um texto precisa de verdade para fluir.
Sua histria de vida tambm marcada por episdios desafiadores. rduos, mas
luminosos. Quero te pedir permisso para compartilhar alguns deles com quem
nos l, porque espelham qualidades muito necessrias a quem quer se aventu-
rar em um percurso de aprendizagem autnomo. Ao cont-los, no permaneci
sempre em uma narrativa linear: cada histria tem seu brilho prprio. a forma
de me lembrar do que aprendi com voc.
202
CARTAS
203
DOUTORADO INFORMAL
vontades e necessidades. E isso foi essencial para que voc encontrasse um jeito
de recomear.
Tem a histria do presente que voc deu para o pediatra que cuidava de seus
filhos. Era aniversrio dele e a inteno era lhe dar uma recordao especial.
Mas o que poderia ser j que se tratava de um homem riqussimo e que j havia
provado de tudo na vida? A aposta na simplicidade fez com que voc confeccio-
nasse uma cesta ornamentada artesanal e personalizada, preenchida generosa-
mente com chocolates e outros mimos. Ao chegar casa do mdico, ele ainda
no havia chegado, mas o que j havia chegado era uma verdadeira pilha de
presentes de todos os tipos e tamanhos. O medo da rejeio bateu forte. Uma
das funcionrias da casa recolheu seu presente enquanto voc o esperava e o
colocou junto com os outros. Ao abrir a porta, o pediatra avistou a fartura e o
primeiro presente que degustou foi o seu. A eu entendi que corao fala com
corao, voc me disse.
204
CARTAS
sentar o resultado de suas observaes, foi contratada para um cargo que sequer
existia: gerente comercial.
Tudo parecia correr bem, at que o dono da organizao forou voc a acumular
a funo de gerente de telemarketing, cujo responsvel havia deixado a empresa
pouco tempo atrs. Ou assume a gerncia de telemarketing ou vai parar na rua.
O departamento estava em crise e um clima de tenso pairava no ar. A sensao
era a mesma de quando seu ex-marido quisera parar de brincar e abandonara
a marcenaria. No seu primeiro dia como nova gerente da rea, voc repetiu o
que sabia fazer neste tipo de situao. No sei nada sobre telemarketing, vocs
precisam me ensinar. Posso contar com a ajuda de vocs? A partir de ento,
voc comeou a dedicar 30 minutos por dia para conversar individualmente
com as funcionrias do setor, e os dilogos foram revelando as potncias e sut-
ilezas escondidas por trs do trabalho de cada uma.
205
DOUTORADO INFORMAL
entanto, nem isso foi suficiente para o dono da revista, que alegava que o resul-
tado no alcanava a meta que ele havia institudo arbitrariamente para a rea.
Demisso. Pouco tempo depois, a empresa faliu.
A agenda perdida
Aps sair da revista, voc comeou a tomar vrios cafs por dia com tudo quan-
to tipo de gente. Nas conversas, buscava entender as necessidades dos outros
e apresentava seu trabalho. Tudo de mais interessante que surgia nos dilogos,
bem como os compromissos assumidos ficavam anotados na sua agenda, que
um dia acabou sendo esquecida no nibus. Aflita, voc fez de tudo para recu-
per-la, sem sucesso. Foi ento que uma pessoa especial te disse: chega de fazer
o que os outros querem que voc faa, est na hora de fazer o que voc quer
fazer.
(Isso de modificar nossa identidade muito poderoso. Certa vez uma amiga me
contou que, quando tinha 17 anos, fez um ritual para se rebatizar. No tinha
nada a ver com burocracias de cartrio, era algo bem mais profundo e significa-
tivo que isso. Ela nunca sentiu sua alma se identificar realmente com seu nome
original. Na montanha com as amigas, ela ganhou uma tatuagem representando
a nova identidade e, dali em diante, comeou a se apresentar somente com o
nome que escolhera. Algo parecido com o que os helnicos faziam na Grcia an-
tiga: quando atingiam a faixa dos 16 a 18 anos, os jovens desse povo se rebatiza-
vam em praa pblica, assumindo ento a identidade e o propsito de vida pelos
quais se sentiam chamados.)
Aprender sonhando
Dentre as vrias habilidades que voc desenvolveu, talvez a que mais gere curio-
sidade a leitura da borra de caf. No entanto, o mais interessante como voc
206
CARTAS
aprendeu esse ofcio. Uma noite, seu irmo apareceu para voc em um sonho
e disse que, em vida, no havia tido tempo de te ensinar a arte de ler a sorte
por meio da borra de caf. Precisava faz-lo. No dia seguinte, perto da hora do
almoo, de repente voc comeou a pintar vrios quadros rapidamente, todos
abstratos. As pinturas fizeram voc se lembrar do sonho, e as formas de cada
uma delas foram ganhando significado a partir dos ensinamentos transmitidos
por seu irmo. O sonho encontrou uma maneira de se fixar no mundo por meio
da expresso artstica. Assim, uma importante tradio se perpetuou.
Talvez o fato de ter criado sua prpria ps-graduao tenha motivado o convite
para que voc se tornasse professora em uma universidade corporativa. O fato
de no ter feito um curso de graduao se apequena perto da sua experincia de
vida.
Bruxaria reinventada
Ao refletir sobre suas aventuras, Vera, a imagem essencial que me vem mente
a figura da bruxa. No aquela personagem malfica, feia e demonaca pinta-
da de forma desumana pela Igreja Catlica e pelo Estado medieval. A bruxa a
que me refiro representa a mulher que sabe o que quer, sabe do seu poder e se
utiliza dele para atingir seus objetivos. Acima de tudo, recorri bruxaria para
falar sobre resilincia, uma caracterstica que vejo presente em diversas histrias
207
DOUTORADO INFORMAL
Por trs do episdio da marcenaria, em que voc precisou exercer sua humil-
dade e aprender com seus funcionrios, vejo que a resilincia foi indispensvel
para transformar uma crise em uma oportunidade. O mesmo ocorreu quando
voc assumiu a gerncia de telemarketing e precisou compreender a fundo como
o setor trabalhava.
99
Essa frase intitula um texto publicado no site do Geleds Instituto da Mulher Negra, cujo link est
disponvel ao final da carta.
100
O artigo foi publicado no site Brasil 247, e o link encontra-se na seo de referncias no fim deste
texto.
208
CARTAS
Alm da coragem que lhe peculiar, a bruxa tambm tem formas prprias de
lidar com o poder da mente. No mesmo artigo, Pellegrini afirma que:
Para fazer contato com a sua divindade interior, para desfrutar de pode-
res sobrenaturais, a bruxa lana mo de recursos que ela pode dominar
sem a ajuda de ningum: a inteligncia, a fora de vontade, a imaginao.
No sentido prtico, ao desfrutar daquilo que se convencionou chamar
poderes da mente, a bruxa moderna transforma religio em psicologia.
Alex.
101
Trecho tambm retirado do texto de Luis Pellegrini.
209
DOUTORADO INFORMAL
210
211
. O que tudo
isso est
querendo
nos
212
mostrar?
Fiquei um bom tempo pensando sobre esta seo. Queria extrair reflexes
a partir do conjunto dos 12 episdios da jornada, ao mesmo tempo em que
entendia o valor intrnseco de cada um deles. Cada encontro foi nico: aprendi
e fui desafiado de formas distintas pelos casos e pelas pessoas com as quais me
correspondi.
Talvez uma boa forma de comear seja, ento, tentar explicitar as singularidades
de cada histria. Singularidade aquilo remete essncia nica. Essncia
aquilo que origina todo o resto, a pedra fundamental. O que est por trs dos
projetos que conheci? O que as cartas esto querendo nos revelar? Qual o DNA
dessas histrias?
213
DOUTORADO INFORMAL
AIESEC
Essncia: Comunidade
214
SNTESE DOS CASOS
Cinese
Essncia: Interao
215
DOUTORADO INFORMAL
Essncia: Ousadia
216
SNTESE DOS CASOS
Caminho do Serto
Essncia: Generosidade
217
DOUTORADO INFORMAL
Essncia: Acolhimento
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SNTESE DOS CASOS
Casas colaborativas
Essncia: Colaborao
219
DOUTORADO INFORMAL
Andr Gravat
Essncia: Escuta
220
SNTESE DAS CARTAS
Lusa Mdena
Essncia: Desejo
221
DOUTORADO INFORMAL
Paul Feyerabend
Essncia: Diversidade
222
SNTESE DAS CARTAS
Juanita Brown
Essncia: Coerncia
223
DOUTORADO INFORMAL
Jos Pacheco
A resposta no deve vir antes da pergunta, assim como a teoria no deve
vir antes da prtica.
Tradicionalismos escolares como aulas, provas, sries, turmas e disciplinas
tm pouco lastro cientfico e pouca preocupao tica.
A tica a menor distncia entre os pontos A e B, sendo que A o ideal e B
a ao.
Perguntar o porqu a porta de entrada para que recriemos realidades,
mas requer coragem.
As trs sndromes da educao brasileira: a Sndrome do Pensamento
nico, a Sndrome do Vira-lata e a Sndrome de Gabriela. A primeira nos
faz remediar o problema com mais do mesmo problema, a segunda, causa
a importao de modismos que atacam problemas superficiais, e a terceira
nos condiciona a negar que os problemas existem.
As quatro prticas da Escola da Ponte, complementares aos quatro pilares
da educao segundo a Unesco: aprender a recomear, aprender a desapa-
recer, aprender a desaprender e aprender a desobedecer.
As histrias como recursos de aprendizagem que penetram para alm da
cognio, sendo capazes de nos sensibilizar e de despertar mudanas de
atitude.
Aprender precisa ser fascinante, seno outra coisa.
Essncia: Pergunta
224
SNTESE DAS CARTAS
Vera Poder
225
DOUTORADO INFORMAL
Essncia: Resilincia
226
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
As 12 essncias da jornada
Olhemos para o desejo, por exemplo, a essncia que descobri ao trocar cartas
com a Lusa. Desejar aprender e viver experincias um elemento presente
em todas as narrativas. Caminhar no Serto partiu de um desejo consciente.
A estrutura do Gap Year, do UnCollege, s funciona sendo alimentada pela
vontade dos participantes. Juanita Brown no conseguia dar vazo ao seu desejo
de pesquisar o World Caf, at que finalmente encontrou quem a apoiasse e,
com isso, entregou ao mundo um trabalho que se tornou referncia. E assim vai.
No se aprende sem desejo ou sem uma necessidade identificada pelo prprio
indivduo. Aprender compulsoriamente uma iluso que nossos sistemas
educacional e acadmico alimentam o mximo que possvel fazer ensinar
227
DOUTORADO INFORMAL
a replicar. Rios de dinheiro, tempo e energia das pessoas so jogados fora por
conta disso.
Comunidade
H quem acredite que as palavras se desgastam com o tempo. A palavra comu-
nidade, para essas pessoas, pode parecer exaurida. Pois eu acredito que, mais
228
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
Hoje se fala muito em comunidades de aprendizagem. Mas o que ser isso? Qual
seria a unidade comum entre aqueles que se renem em uma comunidade de
aprendizagem? A resposta mais bvia seria o desejo de aprender. Quer sejam
buscas orientadas por um tema norteador, quer sejam empreendidas de forma
livre, os processos de aprendizado que ocorrem em comunidade so poderosos.
Eles nos convidam a perceber que no conseguimos exercer a brilhante tarefa de
ser, sozinhos.
Estamos todos indo para a mesma direo como seres humanos. No limite, a
maior comunidade em que vivemos o planeta Terra ou at mesmo o Univer-
so. Como encontrar a unidade na diversidade?
Interao
S somos capazes de aprender por meio das relaes que estabelecemos com
o outro e com o ambiente que nos rodeia. Mesmo a pessoa mais autodidata
do mundo l os livros que outra pessoa escreveu. O gnio isolado s capaz
de formular teorias porque se apoia em ferramentas e conhecimentos j di-
sponveis, construdos por quem veio antes ou contemporneo a ele. Se a inter-
ao est presente em todo processo de aprendizagem, o que aconteceria se ela
fosse conscientemente potencializada?
229
DOUTORADO INFORMAL
Ousadia
Quem ousa reconfigurar o que est posto mostra para os outros que possvel
fazer coexistirem realidades. De certo modo, ousadia est conectado postura
da criana, que enfia o dedo na tomada e a mo no fogo. O frescor e a inocncia
acabam por eliminar o medo de errar. No entanto, j sabido que a tomada d
choque e o fogo queima. Temos o dever de alertar quando algum age de forma
perigosa e inconsequente. No entanto, em territrios onde ainda no sabemos
o que esperar, a ousadia cumpre um papel muito importante. No sabemos ao
certo o que esperar quando pulamos os muros da educao tradicional.
Generosidade
O significado da palavra generoso aponta para algum que ajuda e compartil-
230
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
ha. A cultura de escassez insiste em nos fazer acreditar que ajudar e compartil-
har so atitudes tolas, dado que a concorrncia se faz no somente com a minha
melhora, mas tambm com a piora dos outros. A generosidade simplesmente
no faz sentido no mundo da competio. Ela suplica a ns outro mundo, ao
mesmo tempo em que quando acionada contribui para a sua gnese. o
mundo da cooperao, lugar cuja crena primordial a de que s venceremos
verdadeiramente se vencermos juntos.
Acolhimento
Imagine um abrao: um movimento universal capaz de conectar intimamente
duas pessoas e faz-las sentir o ritmo do corao uma da outra. Com alguns gru-
pos j vivenciei uma experincia de abraos sem restries, isto , quando cada
um deles dura o tempo que quer durar, sem ser interrompido por convenes
sociais. O acolhimento como um abrao: ele nos ajuda a sentir a essncia
do outro. Quem acolhe no julga, no rotula nem indiferente, simplesmente
abraa. Quem acolhe no menospreza, no aponta o dedo nem foge da con-
tribuio que poderia dar ao outro, somente reconhece e se doa.
Ainda que algo ou algum seja muito diferente de mim, posso escolher por
demonstrar meu acolhimento. Aprender a lidar com nossos prprios sentimen-
tos significa, em algum momento, aprender a abra-los e a respeitar o espao
que eles ocupam dentro de ns. Ao lidar com os sentimentos do outro, tambm
podemos adquirir essa mesma capacidade. Talvez ainda no saibamos como
controlar o que sentimos, mas o acolhimento o primeiro passo para sabermos
231
DOUTORADO INFORMAL
Colaborao
Colaborar no somente fazer junto. Exercemos atividades coletivas desde os
primrdios da humanidade, mas h diferenas no que se refere a como as pes-
soas se relacionam ao atuarem conjuntamente. A colaborao reconhece e honra
a interdependncia entre os envolvidos e pautada por uma lgica horizontal,
em que cada um se percebe em nvel de igualdade perante o outro e pode com
ele interagir livremente. Ainda que haja igualdade no tocante ao poder agir, as
diferenas que moldam as pessoas so valorizadas. Atributos e interesses difer-
entes so entendidos como geradores de novas possibilidades.
Escuta
Dizem que escutar diferente de ouvir: quando estamos somente ouvindo, no
estamos verdadeiramente atentos. Para escutar no suficiente abrir apenas os
ouvidos, preciso tambm abrir a mente e o corao. Contudo, a escuta pode
ir ainda mais longe e chegar perto da empatia e do cuidado. Quando escuto
algum porque o considero por inteiro, ou seja, porque o vejo a partir dos
olhos dele e no somente dos meus. Escutar uma das manifestaes mais
poderosas de um outro verbo: amar.
232
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
Desejo
O desejo o incio de tudo. Sua intensidade avassaladora. O desejo o pri-
meiro passo de um nascimento, e talvez seja por isso que nosso modelo educa-
cional no o leva a srio: no queremos pessoas que saibam como renascer. O
que interessa sociedade hierrquica so pessoas que saibam como reproduzir.
O desejo rebelde por natureza tudo que ele quer criar, no replicar. Como
ficariam os empregos, as religies, os Estados, os exrcitos e os dogmatismos
de qualquer ordem se todos ouvissem os prprios desejos? No ficariam, pelo
menos no estanques do jeito que so.
Diversidade
A hierarquia tem uma queda por dogmatismos. Uma configurao muito
hierrquica tende a criar deformaes no campo social que excluem diversas
233
DOUTORADO INFORMAL
Coerncia
A origem da palavra coerncia vem do latim cohaerere, que significa grudar
junto. Seu sentido no mudou muito ao longo do tempo: se somos coerentes
hoje, estamos grudando nossa ao junto aos princpios e necessidades que
julgamos relevantes. Contudo, sinto que no estamos sendo coerentes com o
mundo em que vivemos quando o assunto educao.
234
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
Acredito que o doutorado informal uma das respostas possveis a essa pergun-
ta, junto a outras pedagogias libertadoras. No porque h a disciplina empa-
tia no currculo, e sim porque caminhos autnomos de desenvolvimento so
capazes de desenvolver uma srie de competncias valiosas indiretamente. Ao
nos debruarmos sobre o que nos fascina, aprendemos mais sobre ns mesmos e
sobre como nosso processo de aprendizagem funciona. Quando formos apren-
der novamente, j saberemos melhor como fazer.
Pergunta
As respostas disponveis hoje so reflexos das perguntas que um dia nos fizemos
tanto na escala micro, que diz respeito dimenso do eu, quanto na escala
macro, que diz respeito s instituies e formas de funcionamento do mundo.
como um exerccio de perspectiva: ns enxergamos aquilo em que repousamos
o olhar. As perguntas so nosso jeito de ver o mundo a partir da curiosidade.
235
DOUTORADO INFORMAL
ou: por que voc sempre destaca o lado positivo? Ele respondeu: por que o
que eu escolhi enxergar.
Quer sejam mais crticas ou apreciativas, as perguntas que nos fazemos influen-
ciam decisivamente o que conseguiremos acessar.
Resilincia
Qualquer percurso tem momentos de crise. So esses momentos que mais nos
fazem criar laos de empatia com os personagens. Crises so importantes tam-
bm porque so capazes de aguar nossa viso, fazendo-nos perceber claramente
coisas que at ento permaneciam nebulosas. Quando se trata da nossa histria,
protagoniz-la d trabalho. Pisamos em falso repetidas vezes, at conseguir-
mos dar um salto de conscincia. O salto s se torna possvel por conta de uma
atitude resiliente.
Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as
perguntas.102 s vezes a vida nos pergunta o quanto conseguimos suportar, e
102
Essa frase circula na internet e j foi creditada a vrios autores, mas pelo visto at hoje ningum
conseguiu realmente descobrir quem a escreveu. Soube disso a partir do que consta no site Recanto
das Letras. Link: http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/2617070
236
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
s vezes ela nos questiona se pelo mesmo caminho que queremos continuar.
Somente a intuio sabe diferenciar uma pergunta da outra.
103
Para mais informaes a respeito, vale ler o artigo de Gerard Kenny, An introduction to Moustak-
ass heuristic method, disponvel no seguinte link:
http://journals.rcni.com/doi/pdfplus/10.7748/nr2012.04.19.3.6.c9052
237
DOUTORADO INFORMAL
238
O QUE TUDO ISSO EST QUERENDO NOS MOSTRAR
Minha experincia com o doutorado informal seguiu por trs trajetos intima-
mente conectados. Um deles a pesquisa que culminou na emergncia do DNA
composto pelas 12 essncias expostas acima. Outro segmento da investigao,
mais prtico e instrumental, pode ser conferido no livro Kit Educao Fora da
Caixa, que aborda 50 ferramentas de aprendizagem para quem quer sair da
caixa da educao. O terceiro caminho lida com o prprio doutorado informal
239
DOUTORADO INFORMAL
240
241
. Reflexes
sobre o
doutorado
242
informal
Se voc realmente pensa o novo, ter de criar palavras novas. No tema o ridculo
que elas carregam ao nascer, no primeiro momento em que so usadas.
(Cristovam Buarque)
Um chamado
Talvez voc esteja se perguntando: por que um livro cujo ttulo Doutorado
informal s agora vai tratar diretamente do assunto? As reflexes apresentadas
a seguir, bem como o Manifesto, que inicia a seo, s poderiam ser produzidos
a partir da vivncia no apenas a minha, mas tambm as de diversas pessoas
que encontrei ao longo do percurso. O ponto de partida a experincia, para
que depois possamos refletir sobre ela.
Um dos entendimentos que temos hoje sobre o doutorado informal que ele
feito no plural. Se, por um lado, escavamos para chegar aos seus cinco princpios
(apresentados no Manifesto), por outro, estamos falando de uma abordagem
capaz de acionar os mais belos talentos e interesses de cada um. No h um
nico modo de se fazer um doutorado informal, e na verdade este nem o nico
nome utilizado para designar processos de aprendizagem autnomos h vrios
outros movimentos em curso. Ainda assim, sinto que ele tem um brilho prprio,
uma fora simblica capaz de estimular nas pessoas o desejo de seguirem seus
prprios rumos.
243
DOUTORADO INFORMAL
conversa no termina aqui: o que trago tona somente uma pequenina e su-
perficial parte do iceberg. Tenho certeza que os entendimentos que possuo hoje
se transformaro no futuro. Infinitas reflexes sobre o tema ainda esto para
acontecer.
Se sua ansiedade est atingindo nveis preocupantes, pule direto para as pergun-
tas e respostas. L, talvez eu consiga ser mais direto e objetivo. Ainda assim, te
convido a fazer a leitura do Manifesto do doutorado informal, um documento
confeccionado a vrias mos e que traduz a essncia do movimento que estamos
criando.
244
=
245
246
247
248
249
250
251
252
253
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255
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257
258
05 p r i n c pi os
DO DO U TO R A D O IN FO R M A L :
[CaPES]
259
DOUTORADO INFORMAL
104
A histria foi adaptada e traduzida livremente por mim do original que consta no livro Democratic
Education: a beginning of a story, de Yaacov Hecht.
260
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
105
Conforme se v em uma reportagem do Glck Project.
O link est disponvel ao final deste captulo.
261
DOUTORADO INFORMAL
pode me dar nenhuma resposta, mas me d outra coisa: faz com que
todas essas questes se tornem irrelevantes. O tango tem esse poder
de me ancorar no presente, no prazer fsico do movimento, no prazer
emocional do encontro com a msica e com outra pessoa. Minha crise
existencial se dissolve diante disso.
Contudo, no por isso que devemos abandonar toda e qualquer busca racional.
Logo quando comecei a pesquisar sobre novas formas de aprendizagem, lia-se
em um dos meus primeiros rascunhos uma frase do artista plstico argentino
Ernesto Sabato: a razo no serve para a existncia. Eu precisei acreditar por al-
gum tempo nisso para curar meu trauma. Hoje, porm, penso que o doutorado
informal pode sim se apropriar de ambos os territriosracional e poticopara
alar voo.
Presente sem integrao com passado e futuro corre o risco de soar raso. E se
262
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
ausentar do presente inflando demais passado e futuro torna tudo muito pesado.
Para constatar que mundos to distantes podem andar de mos dadas, basta ver
o que fez Guimares Rosa em Grande Serto: Veredas ou o que tem feito o Movi-
mento Entusiasmo em So Paulo. Andr Gravat, Daniel Ianae e Antonio Sagra-
do Lovato esto inaugurando novos caminhos educativos partindo justamente
do terreno potico. Dessa forma, esto chegando a concluses bastante apuradas
do que pode ser feito para transformar nosso sistema educacional. como se a
poesia se assumisse, tambm, como razo.
106
Citao extrada do livro A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov.
263
DOUTORADO INFORMAL
Assim, ainda que seja abastecido pelas intersees entre as razes lgica e poti-
ca, no h como negar que o doutorado informal surgiu primeiro no territrio
leve da poesia. Seu sentido deve ser entendido no a partir do peso da compara-
o com o doutorado acadmico, e sim a partir das possibilidades de ressignifi-
cao da busca pelo conhecimento.
107
Tal como se ouve numa entrevista do escritor disponvel no Youtube. Link ao final deste texto.
264
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Doutorado informal
Investigao Constncia Entusiasmo
Pesquisa Novas verdades Sensibilidade
Intuio Serendipidade
consistente Experimentao Risadas
Sobriedade Poder Pessoas Fluxo
Liberdade Caos
Profundidade Chronos Atitude
Resultados Criar o novo Paixo
Viver-aprender curiosa
Transparncia Disciplina eapreciativa
Livre Arte
Atitude crtica e Sistematizao
questionadora Fundamentao interao Ritmo Histrias
Entregas Foco prprio
Autonomia Escuta
Inovao Linguagem Leveza
Estruturas racional Improviso Kairs Percurso
Plena
Centrado no Contribuir para a Multiplicidade ateno Sentir /
passado e no humanidade de formase querer
futuro saberes Confiar no
Ordem processo Rede
Encanto
Pensar / agir Dilogo
Planejamento Sua Centrado Poesia
Ter lgica biografia no presente Abertura
Moldar o mudana
processo Conexo
Curar suas
Comprometimento com a vida Felicidade
prprias
Produtividade Nutrir feridas Fazer
Conhecimento comunidades Criatividade sentido
265
DOUTORADO INFORMAL
Pelo alto grau de liberdade a que o aprendente informal tem acesso, natural
que ele v ao encontro do que mais lhe desperta interesse. Assim, pode ser que
esse processo o ajude a curar suas prprias feridas, ou seja, ao investigar temas
relacionados a questes profundas da sua histria de vida, o indivduo consegue
ressignificar situaes difceis e encontrar um sentido autobiogrfico naquilo
que aprende. Se aliarmos cura das prprias feridas a vontade de contribuir
para a humanidade seja entregando algo relevante para certa comunidade ou
compartilhando os conhecimentos construdos , as chances de ambos os obje-
tivos se concretizarem aumenta.
266
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
267
DOUTORADO INFORMAL
268
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
108
O artigo que consultei intitula-se O Bem e o Mal do ponto de vista da antroposofia e est dis-
ponvel no site do Instituto de Matemtica e Estatstica da Universidade de So Paulo IME-USP. O
link encontra-se no final do captulo.
269
DOUTORADO INFORMAL
109
A fim de coletar informaes sobre o modelo cardico, acessei o site da CoCriar, que contm uma
pgina elucidativa a respeito da teoria.Link: http://cocriar.com.br/biblioteca/inovacao-organizacional/
modelo-caordico
270
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
A prpria trajetria de Dee Hock reflete uma busca pelo equilbrio. Como CEO
de uma empresa que crescia aceleradamente, em 1984 ele abandonou sua car-
reira para passar quase dez anos morando em uma fazenda na costa do oceano
Pacfico. No ano de 1991, em seu discurso aps aceitar o convite para ingressar
no Hall da Fama dos Negcios norte-americano, ele explicou sua deciso110:
Com o passar dos anos, eu temi muito e tentei afastar as quatro feras que
inevitavelmente devoram seus donoso Ego, a Inveja, a Avareza e a Am-
bio. Em 1984, eu quebrei todos os meus vnculos com os negcios para
viver uma vida isolada e annima, convencido de que eu estava fazendo
uma tima troca ao preferir o tempo ao dinheiro, a liberdade aos cargos,
e a alegria ao egoe assim as feras foram seguramente enjauladas.
Dee Hock, ao decidir no alimentar as quatro feras, fez uma opo pelo camin-
ho cardico. O Ego e a Inveja podem ser considerados influncias lucifricas, ao
passo que a Avareza e a Ambio podem ser entendidas como foras arimnicas.
rim tem uma relao estreita com a obsesso pelo controle, ao passo que a
imagem de Lcifer pode ser associada ao caos destrutivo.
110
O trecho foi traduzido livremente por mim do original disponvel na Wikipedia. Link no fim do
captulo.
111
SimCity uma srie de jogos eletrnicos criada pela Maxis em que o jogador constri e administra
cidades.
271
DOUTORADO INFORMAL
272
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Assim, o doutorado informal pode ser considerado uma imagem que nos per-
mite chegar a revelaes fascinantes no que se refere s formas de se construir
conhecimento. Por muito tempo o raciocnio metafrico foi condenado pelos
arautos da cincia como sendo algo de menor importncia. No entanto, a comu-
nicao humana evoluiu graas s metforas e isso permanece nos dias de hoje.
A fim de utiliz-las conscientemente para facilitar e ampliar entendimentos,
preciso que saibamos brincar de desmontar e montar palavras.
113
Idem anterior.
273
DOUTORADO INFORMAL
274
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Quanto mais uma pessoa percorre uma trajetria de educao formal au-
toritria, mais tende a perder o referencial de como aprender de maneira
autnoma, consigo mesmo e com os outros, de maneira equilibrada. Mais tende
a ter dificuldade para identificar e dar vazo aos seus prprios interesses. Ou,
ainda, pode se tornar um viciado na ideia de sucesso, lanando-se em aes so-
mente pelo reconhecimento que elas podem lhe render no sobra espao para
o desejo. Esta ltima reflexo baseia-se no que afirma o educador Yaacov Hecht
ao observar os educandos que comeavam a experimentar a vida em uma escola
livre114. No caso analisado por ele, os sujeitos eram crianas e jovens; no caso do
doutorado informal estamos falando de adultos, os quais costumam carregar
consigo crenas ainda mais arraigadas.
114
O autor menciona em seu livro Democratic Education: a beginning of a story uma srie de arma-
dilhas e dilemas que as crianas e jovens enfrentavam ao comearem a frequentar uma escola onde
podiam aprender o que quisessem.
275
DOUTORADO INFORMAL
276
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
David tambm afirmou que desde o incio o World Caf foi pensado como uma
metodologia open source. Desde o comeo a ideia foi entregar humanidade um
presente que pudesse nos ajudar a acessar nossa sabedoria coletiva de formas
inovadoras e criativas. Isso no significa que ningum possa ganhar dinheiro
com o World Caf, mas sim que qualquer um pode se sentir livre para utiliz-lo
como quiser e construir a partir dele. O volume e a qualidade de informaes
sobre a metodologia disponveis de forma aberta, especialmente na internet,
permite que isso acontea. No difcil aprender a anfitriar um World Caf. O
mais interessante que, enquanto uma parte desse conhecimento foi produzida
por quem iniciou o movimento (Juanita, David, Amy e outras pessoas), outra
poro significativa foi elaborada pelos prprios membros da comunidade glob-
al. A prpria distino entre iniciadores do movimento e membros da comuni-
dade foi sendo nivelada: a sensao que elos mais profundos foram formados,
algo como uma unidade comum maior do que a soma de indivduos que
utilizam o World Caf.
115
Enquanto conversvamos, David Isaacs trouxe essa prola atribuda a George Pr, um dos facilita-
dores presentes na primeira apario do World Caf.
277
DOUTORADO INFORMAL
David Isaacs me responderam com outra: como seria uma estrutura mnima
e graciosa que pudesse sustentar a evoluo de um movimento? A prpria
redao da pergunta j carrega em si uma resposta possvel minha inquietao:
estamos falando de uma estrutura mnima e graciosa. Por um lado, pouca estru-
tura, por outro, ainda assim h alguma estrutura. Alm de enxuta, ela deveria
ser graciosa, no sentido de causar encantamento nas pessoas. Amy me disse que
David Isaacs e Juanita Brownos primeiros descobridores do World Cafso
algumas das pessoas mais acolhedoras que ela j conheceu. H at uma metfora
que Juanita costuma utilizar para se referir s conversas que costumam ocorrer
em um Caf: como se estivssemos ao redor da mesa da cozinha de casa con-
versando intimamente com amigos e simplesmente contando nossas histrias. A
hospitalidade um dos elementos-chave para se compreender o encantamento
propiciado pela abordagem.
278
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Talvez pela influncia de Ross, Juanita e David tambm optaram por criar a base
do World Caf por meio de princpios. Chamados de design principles, eles se
tornaram o principal alicerce da metodologia, sendo mencionados frequente-
mente pelos membros da comunidade.
Construindo um movimento
Ao nos depararmos com cada vez mais pessoas se interessando pelo doutora-
do informal, quisemos identificar alguns princpios que pudessem fornecer a
mnima estrutura graciosa de que precisvamos. No incio de 2015, eu e Andr
Camargo comeamos a anfitriar alguns encontros com o objetivo de pensar
sobre o que estvamos falando quando falvamos sobre o doutorado informal.
Alm desse propsito, o grupo que criamos objetivou potencializar a vitalidade
da comunidade e cuidar da essncia e da memria do movimento. Fizemos trs
encontros ao longo do ano em So Paulo, o primeiro na Escola de Dilogo e os
outros dois no Instituto Evoluir. No incio, havia muito mais perguntas do que
respostas.
279
DOUTORADO INFORMAL
280
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
281
282
DOUTORADO INFORMAL
116
A plataforma foi desenvolvida por um grupo de pesquisa liderado por Matthew Salganik, do
Departamento de Sociologia da Universidade de Princeton. Seu objetivo combinar os melhores ele-
mentos das abordagens qualitativa e quantitativa de pesquisa em um novo mtodo de survey digital.
283
DOUTORADO INFORMAL
284
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
117
A instituio Capes uma autarquia e agncia pblica de pesquisa vinculada ao Ministrio da
Educao cuja principal competncia avaliar os cursos de ps-graduao existentes no pas.
118
Inmeras outras histrias de pessoas que foram amplamente reconhecidas pelas suas contribuies
sociedade tm em comum a confiana na curiosidade. Selecionei trs, mas voc pode conferir
vrios outros exemplos no post 11 pessoas notveis que te faro considerar um doutorado informal,
disponvel no blog do projeto. O link est disponvel na seo de referncias no fim do texto.
285
DOUTORADO INFORMAL
Estar curioso querer construir uma ponte que liga o conhecido dentro de
ns com o desconhecido fora de ns. aquela sensao prazerosa de desejar
aprender, e justamente por ser um desejo, a curiosidade vem de dentroainda
que nasa da nossa convivncia com o mundo e retorne a ele para se manifestar.
Quanto mais espontaneamente damos vazo nossa curiosidade, maiores as
chances de ficarmos bons nisso. Neste ponto, trago Paulo Freire para a conver-
sa119:
A construo ou a produo do conhecimento do objeto implica o exer-
ccio da curiosidade, sua capacidade crtica de tomar distncia do obje-
to, de observ-lo, de delimit-lo, de cindi-lo, de cercar o objeto ou fazer
sua aproximao metdica, sua capacidade de comparar, de perguntar.
Quanto mais a curiosidade espontnea se intensifica, mas, sobretudo, se
rigoriza, tanto mais epistemolgica ela vai se tornando.
119
Citao extrada do livro Pedagogia da Autonomia.
286
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
287
DOUTORADO INFORMAL
Sabe quando voc faz algo de forma to prazerosa que no v o tempo passar?
Estar em fluxo como mergulhar em uma realidade alternativa. estar profun-
damente tomado por determinada atividade de modo que a concentrao
tanta que no nos damos conta de que estamos to concentrados. Assim, o flow
se torna uma experincia capaz de maximizar a performance porque requer
altos nveis de desafio e habilidade. Os desafios so encarados como motivaes
para aprimorar as habilidades, ao passo que as habilidades aprimoradas aca-
bam requisitando desafios mais intensos. Pessoas em estado de fluxo no se
preocupam em se sair bem na atividade que esto desempenhando: elas o fazem
simplesmente pelo prazer que aquilo lhes proporciona. como se ficassem to
extasiadas pelo que esto fazendo que se esquecem de suas ansiedades.
120
A fim de coletar informaes sobre o conceito, assisti palestra Mihaly Csikszentmihalyi sobre o
estado de Flow disponvel no site do TED. O link encontra-se no fim do captulo.
121
Conforme se l em seu livro Democratic Education: a beginning of a story.
288
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
122
Com informaes contidas no texto Biologia social das emoes, de Maria da Conceio de
Almeida. Link: http://www.cei.unir.br/artigo91.html
123
O poema completo pode ser encontrado no site http://www.homemdemello.com.br/psicologia/
psicodrama.html
289
DOUTORADO INFORMAL
124
Citao extrada do texto Biologia social das emoes, referenciado ao final do captulo.
290
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Vejamos o que Rubem Alves nos diz sobre o olhar em um trecho que se conecta
intimamente com o que estamos falando a respeito das emoes como condicio-
nantes das nossas aes125:
H tantos olhares diferentes! H olhar de desprezo, de admirao, de
ternura, de dio, de vergonha, de alegria A me encosta o filhinho na
parede e, a um metro de distncia, lhe estende os braos e diz sorrindo:
Vem. Encorajada pelo olhar, a criana, que ainda no sabe andar, d
seus primeiros passos. H olhares que do coragem. E h olhares que
destroem. Por exemplo, aquele olhar terrvel da professora que encara a
criana de um certo jeito, sem nada dizer. Mas a criana entende o que o
seu olhar est dizendo: Como voc burra.
125
Conforme se l no artigo Entre a cincia e a sapincia, publicado no site da Folha de So Paulo.
Link ao final do texto.
126
Tal entendimento verifica-se no texto Alteridade: Autonomia ou Ontonomia?, publicado no livro
Educao e Transdisciplinaridade III. Link disponvel no fim do captulo.
291
DOUTORADO INFORMAL
292
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
293
DOUTORADO INFORMAL
nos reconhea como inteiros, sem eliminar nossas autonomias e que seja capaz
de integrar diferentes fontes de conhecimento e sabedoria, a objetividade e as
sutilezas e o observador e o objeto observado. Vrios cursos hoje so especialis-
tas em fragmentar, e a ideia de percurso vem para nos oferecer uma alternativa
que se comunique com toda a integralidade do nosso ser.
Essa mesma ideia de se ter um momento de definio aps uma abertura ex-
ploratria inicial aparece no diagrama do duplo diamante do Design Thinking:
294
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Embora no seja preciso definir como ser o percurso logo no primeiro dia do
processo, em algum momento isso precisar acontecer caso a inteno seja en-
tregar algo concreto ao mundo. Antes de escrever meu projeto, fiquei uns bons
meses garimpando referncias, lendo livros, conversando com pessoas e indo a
encontros sobre o tema que me interessava. Flertei e namorei bastante antes
de decidir pela gestao do projeto que culminou nestas linhas.
Consistncia e flexibilidade
Ao se deparar com um mar de liberdade preciso traar uma rota de
navegao, ainda que o futuro nos faa reajust-la (e ele vai fazer). Com autono-
mia ganhamos flexibilidade para recalibrar o processo na medida em que o
imprevisvel acontece. No meu percurso, comecei delineando os casos, projetos
e autores que queria pesquisar, mas depois alguns deles deixaram de fazer sen-
tido enquanto outras coisas comearam a chamar mais minha ateno. Como
eu havia feito uma campanha de financiamento coletivo e nela descrito tudo
que iria pesquisar, precisei me reportar aos apoiadores dizendo os motivos de
295
DOUTORADO INFORMAL
Individual e coletivo
Da mesma forma que senti vontade de me equilibrar melhor entre teoria e
prtica, durante meu percurso tambm identifiquei uma necessidade de fazer
127
No livro Mistrios da Educao, cujo link est disponvel na seo de referncias ao fim dos textos
sobre os princpios.
296
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
128
Conforme se l no artigo do site Brasil Escola sobre o tema. Link no fim do texto.
297
DOUTORADO INFORMAL
129
Para mais informaes sobre esse mtodo, acesse o seguinte link:
http://www.youngbloodcoaching.com/accountability-buddy.html
298
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
A zona de crescimento, por sua vez, o campo que fascina a pessoa, no mo-
mento presente, mais do que qualquer outra rea. o assunto, rea de interesse
ou busca que causa no aprendente a maior atrao ou curiosidade131. Hecht
continua, afirmando que esse estado caracterizado por emoes intensas
como entusiasmo, empolgao e desafio, alm de um desejo aguado de retornar
para a mesma rea de interesse repetidas vezes132.
130
Conforme se l no livro Democratic Education: a beginning of a story.
131
Idem nota anterior
132
Idem acima
299
DOUTORADO INFORMAL
Saber e no saber
Yaacov Hecht aborda outro equilbrio sutil nos processos educativos: o saber e
o no saber133. Sendo um excelente contador de histrias, o autor se questiona a
respeito de como quase todos ns costumamos desenhar uma rvore. Traamos
primeiro o caule e as folhas e frequentemente nos esquecemos das razes. A raiz
no vista a olho nu, mas absolutamente essencial para a vida da rvore. O
mesmo acontece com nossas dvidas, questionamentos, curiosidades e no sa-
beres: so fundamentais para a vitalidade das nossas respostas, cuja visibilidade
ns adoramos ressaltar.
133
Idem nota 130
300
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
134
Citao contida no livro As palavras andantes e extrada do site Wikiquote, conforme se v no link:
https://pt.wikiquote.org/wiki/Eduardo_Galeano
301
DOUTORADO INFORMAL
Ao pontuar todos esses equilbrios, mo estou querendo dizer que quem se lana
em um doutorado informal precisa se preocupar a cada segundo com todas
essas coisas. Quem se pre-ocupa pode acabar no comeando nunca. Pro-
ponho-os mais como um exerccio de reflexo sobre diferentes aspectos de um
percurso de aprendizagem autnomo. Ao consider-los, o doutorado informal
assume uma posio singular em relao a outras formas de se construir conhe-
cimento na verdade, seria mais adequado falarmos de construo de sabe-
doria. Os equilbrios servem para no cairmos nem na opresso epistemolgica
da educao tradicional, nem na liberdade leviana de quem fica traumatizado
pelo sistema. Ao reconhecer essas duas tendncias, o doutorado informal aposta
em uma ousadia consciente, sempre pautada pelo reconhecimento da liberdade
do indivduo.
Conforme fui avanando no meu processo, me deparei com vrios desses apar-
entes dilemas. Outros eu detectei em pessoas que tambm iniciaram seus dou-
torados informais. Ainda no dei conta de equilibr-los todos no meu percurso,
e talvez eu ainda demore muito para faz-lo. Lembremos de Galeano: a utopia
serve para que no deixemos de caminhar.
302
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Uma das imprevisibilidades tem a ver com os prazos. Na Grcia antiga acredi-
tava-se em dois tempos diferentes, o tempo dos homens e o tempo de Deus,
associados respectivamente aos deuses Chronos e Kairs135. De Chronos que
vem nossa expresso tempo cronolgico, que foi o nico tipo de referncia
temporal que os modernos quiseram preservar. O tempo de Chronos exato,
planejvel e o que fazemos com ele baseado exclusivamente na supremacia
decisria de cada indivduo. Exercemos poder sobre ele. Por outro lado, em
Kairs possvel distinguir outra perspectiva de tempo, centrada no momento
presente, e por isso ele no passvel de ser planejado. Em Kairs a vida um
contnuo convite degustao atenta de cada instante. No doutorado informal,
Chronos pode ser associado dimenso do doutorado e Kairs do infor-
mal. Isso significa que, em um percurso de aprendizagem livre, preciso que
o indivduo se equilibre entre definir e cumprir os prazos de suas entregas e
aproveitar os momentos e as oportunidades nicas que aparecem no caminho.
Ainda com relao s formas de lidar com prazos, tenho observado que nos
sentimos mais motivados quando o processo recortado em ciclos menores
de entrega. Isso, alm de tornar os objetivos mais factveis, pode contribuir para
que o conhecimento gerado chegue a mais pessoas. Por consequncia, quem
135
Com informaes de Alexandre Rampin, conforme se l em seu texto Dois tempos: chronos e
kairs. Link no fim do texto.
303
DOUTORADO INFORMAL
opta por esse artifcio tem mais chances de receber feedbacks durante o percurso
e, assim, rev-lo e aprimor-lo. Feedbacks frequentes so muito importantes,
dado que por meio das pessoas que acessam as entregas da jornada que conse-
guimos saber se estamos em um caminho frutfero ou no. Como no doutorado
informal a avaliao no centralizada em um corpo burocrtico exclusivo e
sim distribuda em rede entre todos que so impactados pelo que entregamos
as oportunidades de obter feedbacks diversificados aumentam bastante.
304
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
305
DOUTORADO INFORMAL
Penso que os trs elementos acima merecem ser levados em conta ao se pen-
sar nas entregas de um doutorado informal. E no apenas nas entregas, como
tambm durante o percurso. Ao passo que vamos saindo do primeiro ponto
(autodesenvolvimento) e chegando ao terceiro (impacto sistmico), como saber
se de fato o que estamos construindo ser capaz de servir Terra? Duas reflex-
es podem ajudar: se o projeto est cumprindo o primeiro requisito, fica mais
fcil cumprir o segundo, e, se o segundo ponto conquistado, mais provvel
que se alcance o terceiro; alm disso, servir Terra no precisa ser considerado
de forma literal, uma vez que impactos locais so capazes de reverberar no todo.
Isso se verifica a partir do entendimento de que o mundo cada vez mais conect-
ado funciona a partir de articulaes glocais. Assim, ainda que atuemos em uma
escala micro, interessante nos conectarmos com outras comunidades ao redor
do mundo que tambm esto atuando em projetos complementares.
136
Em sua palestra no TED.
137
O Dragon Dreaming um conjunto de princpios e processos estruturados na forma de um sistema
cujo objetivo a realizao de projetos colaborativos e sustentveis.
138
Retirado do site do Dragon Dreaming no Brasil, cujo link est disponvel no final deste captulo.
306
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Mesmo assim, pode parecer que as aes locais so muito pequenas para
realmente mudarem alguma coisa. Muita gente acredita que somente transfor-
maes em larga escala so capazes de contribuir para o progresso da humani-
dade. Para adicionar um novo olhar a essa questo, vejamos o que o telogo
Paulo Brabo nos diz em seu texto sobre os microssalvamentos139:
O terrvel segredo, que ningum parece ter a coragem de encarar, que
o mundo no pode ser salvo de uma s vez. No h como se varrer a
misria da existncia em grandes e eficientes vassouradas. No h como
se pagar algum para ir salvando o mundo, do modo que se paga o
encanador para desentupir o ralo. Salvar o mundo um servio sujo que
s voc pode fazer, ao ritmo de um nfimo passo de cada vez. O mundo
salvo em partes. Em partes pequenas O nico modo verdadeiramente
virtuoso de se viver e o nico modo eficaz de se salvar o mundo pelo
regime dispendioso, frustrante e tremendamente lento dos microssalva-
mentos: redimindo-se um momento de cada vez. Um remdio de cada
vez. Uma refeio de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abrao de
cada vez. Uma caminhada de cada vez. Um cafezinho de cada vez. Um
pedido de desculpas de cada vez. Um perdo de cada vez. Um churrasco
de cada vez. Uma adoo de cada vez. Uma cura de cada vez. Uma dor
de cabea de cada vez. Os microssalvamentos no so glamourosos, no
so definitivos, no do manchete e no so recompensadores. No do
a impresso de trabalho realizado, porque no est. apenas o comeo
das dores, e amanh haver mais. A pedra que empurramos at o topo
hoje ter deslizado invariavelmente o morro amanh, e amanh haver
outras. No temos infelizmente o chamado ou a capacitao para salvar
o amanh, o que nos pareceria infinitamente mais atraente. Amanh as
coisas podem j ter mudado. Amanh posso ter dado um jeito de escapar
daqui. Minha tarefa, minha impensvel tarefa, salvar este momento,
este ridculo, insuportvel, irredimvel momento.
139
O texto Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez est disponvel no site
A Bacia das Almas, pertencente ao autor. Link na seo de referncias no fim do texto.
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DOUTORADO INFORMAL
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
sobre esse assunto. Afinal, como algum de 24 anos se atreve a falar sobre um
tema que demanda tanta experincia? Como algum que no pesquisou exausti-
vamente o estado da arte de tal conceito ousa pontuar qualquer coisa sobre ele?
Como um no filsofo pode dizer algo preciso e consistente sobre sabedoria?
Essas perguntas se originaram das crenas que observei atuando sobre mim.
Pelo menos conscientemente, eu sei que todos ns temos capacidade de abordar
um tema como a sabedoria. Todos somos potencialmente sbios. Contudo, as
crenas atuam em um nvel mais profundo: como se eu no soubesse exat-
amente de onde veio o medo que senti. Somente o percebi e no o condenei
nem me julguei por t-lo sentido. Para alguns filsofos ligados s tradies
orientais, observar os sentimentos que acometem nosso corpo sem julg-los
algo importante para desenvolvermos sabedoria. O medo foi a pista que eu
precisava para comear a escrever.
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DOUTORADO INFORMAL
Ambos os trechos nos convidam a fazer uma pausa para que enxerguemos mais
claramente o que estamos fazendo ao obter conhecimento. Obter, adquirir, ab-
sorver conhecimento so expresses que se ancoram em uma percepo esttica
e objetiva da realidade, como se os saberes fossem produtos industrializados que
pegamos na prateleira do supermercado. O conhecimento e a realidade no
est l para pegarmos, ele construdo biolgica e culturalmente por ns, em
uma lgica muito mais toque do chef do que comida manufaturada.
140
Retirei o trecho de uma resposta escrita por Andr a um texto meu, O que um doutorado,
segundo quem?, no blog do projeto.
141
Citao extrada do texto Entre a cincia e a sapincia, publicado no site da Folha.
310
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Algum poderia dizer que a ideia de admitir mltiplas verdades entra em confli-
to com o paradigma cientfico, dado que a cincia o processo responsvel por
descobrir a verdade sobre o mundo. No entanto, algumas revelaes no mbito
da prpria cincia nos revelam evidncias que apontam para outro cenrio. Ma-
ria Jos Esteves de Vasconcellos, pesquisadora na rea do pensamento sistmico,
percebe trs questes centrais enfrentadas pelo paradigma moderno de cincia a
serem abordadas pelo que ela chamou de cincia novo-paradigmtica: o prob-
lema lgico, o problema da desordem, e o problema da incerteza142.
Para lidar com o problema da desordem, a autora postula uma nova forma de
pensar capaz de incluir a indeterminao e a imprevisibilidade dos fenmenos.
Assim, alm de mltiplas, as verdades podem vir a ser inesperadas e imensu-
rveis.
Por ltimo, Maria Jos admite o problema da incerteza, que requer a reinte-
grao do observador sua observao. Recorrendo a Humberto Maturana e
seus estudos sobre o fenmeno da cognio, a autora conclui que tudo que
visto visto por algum. Tudo que dito dito por algum. Dessa forma, as
verdades ocorrem sempre nos mbitos da percepo e da linguagem, como se
fossem negociaes de significados.
142
Os trs problemas, bem como outras informaes visveis nos pargrafos seguintes, foram retira-
dos do livro Pensamento sistmico: o novo paradigma da cincia, de autoria de Maria Jos Esteves de
Vasconcellos.
311
DOUTORADO INFORMAL
Isso posto, a pesquisadora apresenta para cada um dos trs problemas identi-
ficados um novo paradigma correspondente: a complexidade, a instabilidade e
a intersubjetividade. Em todas as trs elaboraes h um questionamento em
relao noo de verdade absoluta uma ideia que fica evidente, por exem-
plo, na busca por leis e enunciados gerais proposta pela cincia positivista. O
paradigma da intersubjetividade, em especial, capaz de responder a um ponto
crucial: a noo de realidade objetiva.
Ao ouvir a expresso inteno que mais nos move, alguns de ns podemos en-
tend-la como misso ou propsito de vida. Vale refletirmos um pouco melhor
sobre isso. Marc Kirst, fundador do Prove, me disse certa vez que no aturava
mais o uso recorrente da palavra propsito. s vezes tambm me sinto assim.
Algumas abordagens de autoconhecimento quase nos obrigam a escrever nossa
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
misso de vida, apostando que isso ser capaz de resolver todos os nossos ques-
tionamentos internos. No acredito nisso. Propsito no singular to determin-
ista quanto a expectativa de muitos pais de que os filhos encontrem uma nica
profisso e a exeram indefinidamente.
No sou contra empregar a palavra propsito. Contudo, talvez uma outra forma
de abord-lo seja por meio do exerccio da presena em cada atividade que
desempenhamos. No Manifesto do doutorado informal encontramos uma tima
definio: propsito o que faz seu corao vibrar. Voc j sentiu seu corao
bater mais forte ao descobrir um tema ou atividade nova? O que essa descoberta
causou em voc? Ao dar vazo s nossas curiosidades, novas misses de vida
podem ser reveladas.
Alm desse caminho, Marc Kirst nos apresenta outra estratgia de reflexo que
aborda a questo do propsito de forma mais sutil e profunda143:
Parece que estamos sempre buscando nos tornar algo ou encontrar as
respostas. Entramos assim em um processo de construo do ego e iden-
tificao com uma causa (vulgo propsito) que se encaixe na imagem que
criamos de ns.
Talvez possamos pensar no caminho inverso: aprofundar em um proces-
so de desconstruo do ego e das camadas de identidade que pegamos
emprestado ao longo da vida. Isso significa desconstruir as crenas sobre
o mundo e ns mesmos e, assim, ir ao encontro de nossas dores, pergun-
tas e questes mais profundas.
A partir desse caminho, conseguiremos nos encontrar em vez de encon-
trar um propsito. Sabendo quem somos, mais fcil dar sentido a tudo
o que fazemos.
No h uma nica forma de acessar o que nos motiva, assim como para cada um
de ns no existe apenas uma nica fonte de motivao. Como Yaacov Hecht
diz, medida que algum avana eu seu percurso de aprendizagem, novas zonas
de excelncia e crescimento vo sendo descobertas.
A citao abaixo a sntese do que Marc Kirst apresentou em uma de suas palestras sobre o tema
143
propsito, na qual estive presente. Depois do evento, pedi a ele para me contar mais sobre sua argu-
mentao durante a palestra, e ele me retornou com esse trecho.
313
DOUTORADO INFORMAL
Aprender a partir do que faz nossos coraes vibrarem e estarmos atentos s ne-
cessidades do mundo praticar sabedoria. Na verdade, as necessidades do mun-
do se refletem dentro de ns, e quando acessamos nossas fontes de motivao
que conseguimos dar a nossa contribuio nica para encaminh-las.
O Andr Camargo tem uma expresso da qual gosto bastante: servir vida.
isso que vejo no doutorado informalum caminho que serve vida.
144
A frase pode ser encontrada no verbete Sabedoria da Wikipdia. Link no fim deste captulo.
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Sentindo-se em casa
Uma das coisas que eu mais gostava de fazer quando criana era ser o lder
dos meus grupos de amigos. Aos 8 ou 9 anos, eu era capaz de convencer alguns
colegas da escola a andarmos todos juntos em fila durante o recreio. Com 11
anos, lembro de ter criado uma espcie de clube com meus colegas que tinha
at carteirinhas para os membros. Eu confeccionava cuidadosamente as cartei-
rinhas com papel contact e utilizava moedas antigas para enfeit-las. Todas as
carteirinhas eram personalizadas com o nome de cada participante do clube.
Nasci e fui criado no Leste de Minas Gerais, local que ficou famoso pelo fluxo
constante de imigrantes ilegais para os Estados Unidos. A cidade de Boston, no
estado de Massachusetts, abriga uma grande comunidade de brasileiros no exte-
rior, a maioria mineiros dessa regio. Quase toda vez que falo que nasci em Gov-
ernador Valadares as pessoas se lembram da cidade como um polo de negcios
ilcitos relacionados imigrao para os EUA. Muita gente me pergunta: Como
tudo isso comeou? Embora eu nunca tenha me aprofundado a respeito dessa
questo, tenho uma hiptese para explicar por que os imigrantes valadarenses
foram se concentrando na mesma regio estadunidense ao longo dos anos: ne-
cessidade de pertencimento. A partir do momento em que os primeiros grupos
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DOUTORADO INFORMAL
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Assim como algum que imigra para outro pas, quem se arrisca a comear um
doutorado informal gente corajosa. No h garantias de que vai dar certo e
dar certo bastante relativo. preciso abandonar a segurana impositiva das
instituies, ainda que durante o percurso haja momentos de incurso em es-
paos educativos formais. Se no caso dos imigrantes ilegais nos EUA a principal
travessia ocorre no rio ou no deserto mexicano, a jornada essencial dos douto-
randos informais da heteronomia para a autonomia com corresponsabilidade.
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Perguntas e respostas
Onde eu fao a matrcula do doutorado informal? Perguntas inusitadas como
essa tm sido comuns desde que comeamos a embarcar em caminhos de
aprendizagem autnomos. O fato de o processo no se sustentar por meio de
nenhuma instituio gera estranheza em alguns. No estamos acostumados a
essa lgica de certo modo ainda valorizamos a segurana e o controle tpicos
da hierarquia.
As perguntas e respostas abaixo lanam luz sobre diversas questes que podem
surgir para quem se interessa pela ideia do doutorado informal. No quero de
forma alguma ser o dono das nicas respostas certas. O plano to somente
identificar algumas questes que j chegaram aos meus ouvidos bem como
algumas de minhas prprias inquietaes e tentar respond-las a partir da
minha experincia. Nada impede que mais adiante minhas percepes sobre
uma mesma pergunta mudem, ou que voc tenha perspectivas diferentes.
O doutorado informal como um beb que est dando seus primeiros passos e
aprendendo a falar. Estamos ansiosos para ouvir suas primeiras palavras, mas
ainda difcil compreend-las. Que as palavras abaixo sirvam no apenas como
um guia, mas tambm para te fazer explorar novas e ousadas questes.
321
DOUTORADO INFORMAL
No precisa ser um percurso solitrio, embora possa ser empreendido por ape-
nas um indivduo que conta com a colaborao e inspirao de outras pessoas
ao seu redor. Caso exista uma mesma vontade compartilhada por mais de uma
pessoa, o doutorado informal pode ser feito em grupo.
322
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Isso no significa que o doutorado informal seja apenas uma teoria ou filosofia
abstrata. Ainda que seja importante refletir sobre os rumos do conhecimento
humano, acreditamos que o primeiro passo para inaugurar novas formas de
construo de conhecimento ocorre no nvel da ao. O doutorado informal
uma ao. Em vez de somente criticar o que est posto e apontar caminhos
utpicos, a ideia fornecer uma possibilidade de agir imediata.
Longe de querer ter respostas contundentes para tantos dilemas, o que posso
fazer arriscar alguns palpites baseados na minha prpria jornada e na obser-
vao dos processos de outras pessoas.
Para comear um doutorado informal acredito que muito importante ter von-
tade de se lanar, ao mesmo tempo, em uma experincia e em um experimento.
O percurso como um todo ser uma experincia das mais marcantes, e os apren-
dizados decorrentes iro muito alm da esfera cognitiva. O mais importante em
um processo educativo autnomo, como afirma Yaacov Hecht, desenvolver
a inteligncia emocional que nos permite aprender a aprender. Alm disso,
enxergar o doutorado informal como um experimento te ajudar a no se cobrar
323
DOUTORADO INFORMAL
tanto, e com o tempo ser possvel entender se esse tipo de percurso realmente
o melhor caminho para voc.
Abaixo elenco algumas pistas derivadas da minha prpria experincia que talvez
possam te ajudar a comear e a viabilizar um doutorado informal:
Mergulhe fundo no tema que mais desperta sua curiosidade, explorando-o
livremente no primeiro momento;
Aps o mergulho inicial, desenhe o mapa da jornada, isto , planeje como
ser o percurso (no precisa ser um projeto acadmico, pode ser um mapa
mental, um vdeo, uma campanha de financiamento coletivo, um crono-
grama ou outro formato de planejamento que faa sentido);
Ao planejar o percurso, comprometa-se publicamente (por meio de um
blog, por exemplo) de modo a compartilhar aprendizados desde o incio e
manter-se disciplinado durante o processo;
Tenha um amigo auditor, ou seja, encontre-se com uma pessoa semanal-
mente para que ela possa te ajudar a monitorar o cumprimento de seus
objetivos (voc tambm pode ajud-la com os dela);
Busque se conectar com outras pessoas que esto interessadas no mesmo
tema que voc ou que tambm esto fazendo um doutorado informal e
marque encontros para trocar experincias;
Faa contato e marque conversas com pessoas que te inspiram ou que j
empreenderam um percurso de aprendizagem autnomo, de forma a aces-
sar novas perspectivas quanto ao seu processo;
Faa o convite a algum que voc admira e confia ou algum que voc
ainda no conhece, mas que acredita que seria interessante se aproximar
para que seja seu mentor ( possvel ter vrios mentores);
Tenha uma reserva financeira e planeje como ser seu sustento durante o
percurso;
Considere diversas estratgias de viabilizao e sustentao financeira:
financiamento coletivo, crowdfunding recorrente, captao empoderada145,
editais de fomento pesquisa e inovao, bolsas de organizaes interna-
cionais, premiaes de concursos etc.
145
A captao empoderada insere-se no conjunto de processos do Dragon Dreaming e uma forma
de financiamento colaborativo em rede, presencial e focada no fortalecimento das relaes.
324
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Minha histria com o doutorado informal comeou por uma necessidade de se-
guir o que meu corao me dizia. Eu j acreditava em uma viso de mundo pau-
tada pela liberdade de cada um aprender o que quiser, mas eu ainda no tinha
vivenciado isso de fato. Mesmo que durante a vida todos ns experimentemos
alguns momentos em que conseguimos dirigir os rumos de nossa aprendizagem,
fazer isso de forma sustentada e durante um perodo maior de tempo nunca
havia me acontecido. Com efeito, o doutorado informal pode nos ajudar a colar
discurso e prtica, viso de mundo e ao concreta, pelo menos em se tratando
daqueles que enxergam a autonomia como necessria educao.
325
DOUTORADO INFORMAL
brimento. Ao lembrar de cada caso que pesquisei e cada carta que escrevi,
consigo enunciar aprendizados que modificaram no s a forma como vejo o
mundo, mas a forma como me vejo nele. Esta a principal transformao que o
doutorado informal capaz de realizar: a metamorfose de ns mesmos por meio
da jornada que escolhemos viver.
Neste ponto, vale resgatar o que o psiclogo Daniel Goleman entende por
inteligncia emocional. Segundo uma citao146 de Yaacov Hecht referente ao
trabalho de Goleman, as quatro competncias que compem a inteligncia emo-
cional so o autoconhecimento, a autogesto, a conscincia social e a gesto das
relaes. Autoavaliao, autoconfiana, autocontrole, adaptabilidade, iniciativa,
transparncia e otimismo so qualidades que podem ser associadas primeira
e segunda competncias. Por outro lado, capacidades como empatia, estar a
servio, viso sistmica, colaborao, cultivo de vnculos, liderana e transfor-
mao de conflitos podem ser conectadas s duas ltimas. Ao olhar para o meu
processo consigo lembrar de vrias situaes em que me vi desenvolvendo essas
habilidades. O mais interessante que inteligncia emocional no se desenvolve
diretamente: sua conquista sempre indireta. Tais competncias no esto na
esfera do o que, e sim do como. Elas no so desenvolvidas via raciocnio, e
sim pela vivncia.
para conformar seu modelo de aprendizagem pluralista. Para mais informaes, vale a leitura do
captulo 3 do livro Democratic Education: a beginning of a story.
326
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
al. Ao fazerem cursos, o que boa parte das pessoas buscam hoje se diferenciar
no mercado para assim conseguirem melhores empregos.
Contudo, cada vez mais o mercado est buscando profissionais que tenham
desenvolvido competncias da esfera do como. medida que as habilidades
de inteligncia emocional esto ficando mais conhecidas, tambm esto cre-
scendo em importncia. Aprend-las talvez seja mais fcil fora das instituies
de ensino do que dentro delas, pelo menos enquanto esses espaos continuarem
anulando nossas liberdades. Sem liberdade no h espao para escolher, errar e
refletir sobre o erro. No h muitas possibilidades para que eu aprenda a confiar
em mim mesmo porque o que importa no o que eu quero ou preciso saber,
e sim o que devo saber. Sem liberdade no existe vivncia que faa sentido. O
doutorado informal nos permite vivenciar a liberdade e aprender a partir dela.
Isso condiz com o que disse Laszlo Bock, diretor de gesto de pessoas do Goo-
gle, em uma entrevista147:
Ao olhar para pessoas que no passaram pela escola e conseguem con-
struir seu caminho no mundo, estamos falando de seres humanos excep-
cionais. E ns devemos fazer de tudo para encontrar essas pessoas.
Ainda que Bock esteja se referindo a quem no foi escola, possvel estender
sua fala a todos aqueles que precisaram desenvolver habilidades emocionais
ao longo de seus caminhos de desenvolvimento autnomos. Logo, mesmo se
mantivermos intacto o principal objetivo do modelo educacional dominante
preparar as pessoas para o trabalho , iniciar um doutorado informal pode ser
interessante. No entanto, se considerarmos que em paralelo a isso h tambm
uma mudana de objetivos em curso, chegamos a outro ponto.
147
Retirado do texto Why Google doesnt care about hiring top college graduates, publicado no site
de notcias Quartz. Link no final do texto.
148
Um ponto de vista interessante nesse sentido o texto Desescolarizao e empregabilidade (dos
pais), de Carla Ferro, disponvel na seo de referncias ao final do captulo.
327
DOUTORADO INFORMAL
fazer a algo que impacte positivamente o mundo. E no apenas eles: muita gente
de 40, 50, 60 anos ou mais tambm est revendo sua vida com o intuito de se
realizar no apenas profissionalmente, mas como ser humano. Nesse sentido,
o doutorado informal pode ser um potente caminho de reflexo sobre o que
realmente faz sentido para cada um. Foi durante meu percurso que descobri e
elaborei os porqus de fazer o que fao, e tambm foi por meio dele que consoli-
dei minha mudana de profisso.
328
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Ainda que este seja um quadro extremo, ele serve como um contraponto for-
ma com que o doutorado informal lida com a certificao. Doutorado informal
no d diploma. Como no h nenhuma organizao que fale pelo doutorado
informal, ningum pode conceder um diploma reconhecido oficialmente a uma
329
DOUTORADO INFORMAL
cia utilizados por diversas organizaes e movimentos como grupos escoteiros, portais de ensino a
distncia e comunidades de programadores.
150
Um dos textos em que Franco fala sobre essa metfora intitula-se Multiversidade e pode ser
acessado no link http://net-hcw.ning.com/page/multiversidade
330
REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
Com efeito, a eficcia no nem uma avaliao objetiva passvel de ser determi-
nada por um corpo tcnico, nem uma avaliao somente subjetiva: ela sempre
intersubjetiva. Vamos examinar um caso real. Como as pessoas podero saber se
eu realmente sei do que estou falando no que se refere ao tema do meu douto-
rado informal? Como elas podero confiar nas minhas credenciais em relao
aprendizagem livre se eu no tenho um diploma emoldurado na parede?
Existem pelo menos outras duas. Algum que quer saber o nvel de qualidade do
151
Para mais informaes sobre a sabedoria Huna, acesse o texto de Serge Kahili King disponvel
em: http://www.huna.org/html/que-kupua.pdf
331
DOUTORADO INFORMAL
Ainda que no haja uma plataforma nica que incentive e disponibilize aval-
iaes de doutorados informais, algum pode perguntar a pessoas que tiveram
contato com o que fao como elas avaliam meu trabalho. Mecanismos como
indicaes, referncias, opinies de usurios e cartas de recomendao so todos
baseados nessa forma de avaliao, que se alimenta das dinmicas sociais.
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REFLEXES SOBRE O DOUTORADO INFORMAL
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. O que vem
depois
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Uma despedida e um convite
Sou incrivelmente grato por tudo que vivi nesta jornada. Quando eu era apenas
um recm-paulistano curioso com novas formas de educao, no poderia se-
quer imaginar que escreveria livros sobre o assunto. O caminho trilhado at aqui
ilustra como a curiosidade, ao se relacionar seriamente com a autonomia, pode
operar feitos importantes.
Ao ler a resposta da carta da Lusa, fiquei chocado com o que ela disse a res-
peito das mulheres na hora do parto. Algumas delas acreditam que vo morrer,
tamanha a intensidade do momento de dar luz. Quando conclumos uma
entrega muito preciosa para ns e a mostramos ao mundo, como se uma parte
de ns tambm morresse a fim de que outras histrias pudessem nascer dali em
diante. Uma despedida sempre oferece reincios.
152
Para assistir a um vdeo sobre a pesquisa de Daniel Pnk acesse
https://www.youtube.com/watch?v=bIhHrL73d4s
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. Outras
vozes sobre
a jornada
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Jos Pacheco
Creio que o amigo Alex seja um daqueles seres dotados de extrema sensibili-
dade, que revelam o sentido dos atos e o entendimento do destino. Imagino-a
em exerccios de canseira e paixo, criando condies de assegurar profundas
transformaes nas pessoas com quem partilha o seu dia-a-dia. Disso exemplo
a sua atividade epistolar. Mensagens enviadas a mortos e vivos, que considera
serem significativos. Velho professor, peregrino aprendiz do Brasil, no me sinto
merecedor de ser destinatrio de uma das suas cartas, mas acolho a oferenda e
lhe fico grato.
A escrita de cartas permite criar uma intimidade ficcional com os seus desti-
natrios e deles se tornar cmplice. Tanto na lida epistolar quanto no restante de
sua jornada, o amigo Alex transita criticamente pelos descaminhos que a escola
tomou e assume a coragem da denncia e do anncio de prxis alternativas.
Os eventuais leitores no ficaro indiferentes ao convite que, implicitamente, o
autor das cartas lhes dirige: o de agir, tornarem-se individualmente responsveis
pelo ato de um coletivo, que vai tomando forma e que parece capaz de mudar o
rumo da educao brasileira.
341
DOUTORADO INFORMAL
Tathyana Gouva
H potncia nas 12 essncias
Mas a potncia precisa se revelar
No basta criar asas, preciso voar.
Que no nos esqueamos disso na hora de fazer a lista de tarefas em nossos smart-
phones.
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OUTRA VOZES SOBRE A JORNADA
Paulo Vasconcelos
Admiro as pessoas que se arriscam, deixando para trs sua zona de conforto
para descobrir novos rumos que ajudem a nortear os caminhos dos que lhe cer-
cam. Porm, essa admirao se transforma em preocupao quando tais pessoas
nos so indissoluvelmente ligadas como no presente caso (Alex meu filho).
Mas vamos ao que interessa. Nos dias de hoje, quando as mquinas armazenam
e coordenam conhecimentos de forma muito mais eficiente do que a mente
humana, torna-se imperativa uma nova abordagem pessoal para se manejar
informaes. A simples memorizao e repetio de contedos armazenados
temporariamente no crebro parece ser insuficiente para enfrentarmos os desafi-
os que a vida incessantemente nos lana.
Sob este aspecto que analiso a singela abordagem que Alex nos brinda, sobre
uma nova maneira de utilizarmos criativamente o poder de nossas mentes, no
apenas como meros repetidores, mas como criadores de uma nova realidade
menos competitiva e mais colaborativa que a atual.
Por meio deste livro, o autor nos mostra o umbral de um mar interior descon-
hecido no qual todos os que querem viver a eterna renovao da existncia
inevitavelmente devero se lanar.
Alex, que a luz que nunca se apaga ilumine seu caminho de autodescoberta, que
a principal misso de todos e de cada um de ns nessa jornada apaixonante
chamada vida.
Com o amor de seu pai e sua me, siga o seu destino e que os bons ventos o
levem descoberta dos novos mundos que o aguardam.
343
DOUTORADO INFORMAL
Sabe aquela sensao de quando lemos um bom livro, aquela vontade de conver-
sar com o autor a respeito? De prolongar a leitura, trocar ideias, at sugerir uma
mudana aqui ou outra ali? No meu caso isso foi bem fcil. E muito difcil!
Escrever estas palavras isso: uma alegria, uma honra e uma tarefa ao mesmo
tempo muito confortvel e bastante desafiadora. A Educao Fora da Caixa e o
movimento do doutorado informal compem uma sntese muito curiosa do que
me diferencia do Alex. E do que nos une com uma fora preciosa.
Como ele, eu tambm gosto muito de contar histrias, e comeo com uma que
mais antiga, mas para este texto aqui vai comear em 2010. Dois estudantes, ele
de Administrao Pblica e ela de Estudos Literrios, resolveram escrever um
artigo cientfico juntos. Seria sobre Polticas Pblicas de Incentivo Leitura e
Relao Esttica Literria. Eles j se conheciam de longa data e aquela amizade
j tinha at brincado de ser colorida, mas depois a vida deu outros rumos. Agora
estavam ali, escrevendo juntos a distncia eu em Campinas, ele, em Belo Hor-
izonte. Um ms depois o artigo estava pronto, o namoro oficializado, e a deciso
de nunca mais escrever juntos pairava no ar. Acho que no chegamos at hoje
a nenhuma concluso sobre isso, e nem sei se deveramos. Escrever com o Alex
foi um drama e uma delcia. Isso est muito acadmico! Mas estava metafri-
co demais! E nisso iam horas, telefonemas, e-mails e mil arquivos diferentes
(acredite quem quiser, mas o muito acadmico era ele).
344
OUTRA VOZES SOBRE A JORNADA
O bvio talvez seja supor que eu fui a primeira leitora, a que mais encorajou.
No tenho certeza. Eu, que tenho profunda admirao por uma educao que
se pretenda mais humana e inovadora, fui inmeras vezes a advogada do diabo.
Entre outras coisas, porque eu sempre adorei a escola. Pelos meus privilgios,
pela minha criao, talvez por algo da personalidade, eu gosto da caixa. E a
cada vez que eu tinha uma briga feia com a caixa porque a gente briga muito
com aquilo que ama tambm , l estava o Alex de ouvidos e braos abertos.
verdade que eu tambm estive l quando ele brigou com a informalidade. Nem
tudo so flores: mas, sem espinhos, quantas ptalas sobrariam?
Sobre a pulga atrs da orelha: aos poucos, o que fomos descobrindo foi que
possvel aproveitar o que h de bom na caixa. E que quem prefere ficar de fora
dela pode continuar contribuindo com quem est dentro. Sabe todas aquelas
possibilidades que as crianas conseguem enxergar em uma caixa de papelo?
Ou em um clipe de papel? A Educao Fora da Caixa pode te ajudar a relem-
br-las. E isso pode te fazer querer sair, ou pode inspirar a transformar a caixa
em um foguete sensacional. Ou no. Pode ser que voc se descubra muito
satisfeita, obrigada, com a sua caixa. E tudo bem. Eu, na maior parte do tempo,
gosto de transitar entre os dois universos. E acho que, admitindo ou no, o que o
Alex faz isso tambm. At porque ele no tem como e nem acho que queira
negar seu passado acadmico.
O que aparece muito na turma dos desconfiados, como eu, a dvida sobre a se-
riedade do projeto. Depois de um tempo, quando as pessoas perguntavam para
o Alex o que ele fazia da vida, a resposta era estou escrevendo um livro sobre
educao. A despeito de outras palestras, workshops, consultorias, a profisso
dele agora era escritor. Para mim isso nem sempre foi fcil de aceitar. Mas ele se
345
DOUTORADO INFORMAL
disciplinou para horas e horas de escrita. Ele fez entrevistas e pesquisa de cam-
po. A pilha de livros foi aumentando, logo vai ser to grande quanto a minha
(vejam bem, eu sou uma acadmica que vem da literatura. Para nossa sorte, em
incio de carreira). Ele certamente escreveu muito mais do que eu, por ora, no
meu mestrado. O ritmo foi ficando cada vez mais intenso: teve educao fora
da caixa no sbado depois da feira, no domingo antes do jantar, teve doutorado
informal sendo discutido enquanto cozinhava o almoo e at no banho. Teve
educao fora da caixa at nos votos do nosso casamento, que uns e outros apeli-
daram de casamento fora da caixa.
A princpio, eu quis tentar separar a leitora da esposa, mas acho que isso seria
daquelas coisas incoerentes com o projeto, como o Alex costuma dizer. Con-
corde voc ou no com essa forma de ver o mundo, saiba que ela lhe est sendo
entregue com muito cuidado, muito trabalho, muita pesquisa, muito suor. E
tambm com muito amor. O que uma maravilha para os meus olhos de leitora
saudosa. Foi com muito respeito e muita admirao que li as reflexes, as provo-
caes e descobertas apresentadas aqui. Foi com saudade que eu quase consegui
escutar certas frases, que eu vi certos olhos brilhando. O Alex est em cada p-
gina, exposto, entregue. O livro a realizao de um sonho, a materializao de
uma pesquisa muito sria, e o corao do Alex com suas melhores qualidades,
mas sem esconder as imperfeies, porque ele tambm gente.
Vocs, que esto a com meu marido inteiro nas mos: cuidem bem dele.
Aproveitem com moderao. Que muitas caixas sejam abertas, coloridas, explo-
radas. Que outros coraes palpitem com essa leitura e transformem a vida de
vocs, como transformou a nossa.
346
.Agradecimentos
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DOUTORADO INFORMAL
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AGRADECIMENTOS
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DOUTORADO INFORMAL
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AGRADECIMENTOS
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AGRADECIMENTOS
Ligia Pimenta
Viviane Ribeiro
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