Memorias de Adriano - Marguerite Yourcenar PDF

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando


por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo
nvel."
Marguerite Yourcenar
Memrias de Adriano
Crculo do Livro S.A.
Caixa postal 7413 01051 So Paulo, Brasil
Edio integral Ttulo do original: Mmoires dHadrien suivi de carnets de notes
de Mmoires dHadrien
Copy right 1974 by Marguerite Yourcenar e ditions Gallimard, 1951 by
Librairie Plon
Traduo: Martha Calderaro
Licena editorial para o Crculo do Livro por cortesia da Editora Nova Fronteira
S.A.
Animula vagula, blandula,
Hospes comesque corporis,
Qu nunc abibis in loca
Pallidula, rgida, nudula,
[1]
Nec, ut soles, dabis iocos

P. llius Hadrianus, Imp.


ndice

Animula vagula blandula


Varius Multiplex multiformis
Tellus stabilita
Sculum Aureum
Disciplina Augusta
Patientia

Caderno de notas das Memrias de Adriano


Nota
A autora e sua obra
Animula vagula blandula

Meu caro Marco,

Estive esta manh com meu mdico Hermgenes, recm-chegado Vila depois
de longa viagem atravs da sia. O exame deveria ser feito em jejum; por essa
razo havamos marcado a consulta para as primeiras horas da manh. Deitei-
me sobre um leito depois de me haver despojado do manto e da tnica. Poupo-te
detalhes que te seriam to desagradveis quanto a mim mesmo, omitindo a
descrio do corpo de um homem que avana em idade e prepara-se para
morrer de uma hidropisia do corao. Digamos somente que tossi, respirei e
retive o flego segundo as indicaes de Hermgenes, alarmado, a contragosto,
pelos rpidos progressos do meu mal e pronto a lanar no oprbrio o jovem Iolas,
que me assistiu em sua ausncia. difcil permanecer imperador na presena do
mdico, e mais difcil permanecer homem. O olho do prtico no via em mim
seno um amontoado de humores, triste amlgama de linfa e sangue. Esta
manh, pela primeira vez, ocorreu-me a idia de que meu corpo, este fiel
companheiro, este amigo mais fiel e mais meu conhecido do que minha prpria
alma, no seno um monstro sorrateiro que acabar por devorar seu prprio
dono. Paz Amo meu corpo. Ele me serviu muito e de muitas maneiras: no lhe
regatearei agora os cuidados necessrios. Mas j no creio como
Hermgenes pretende ainda nas maravilhosas virtudes das plantas, na
dosagem exata dos sais minerais que ele foi buscar no Oriente. Esse homem,
embora perspicaz, cumulou-me de vagas expresses de conforto, demasiado
banais para iludir a quem quer que seja. Ele sabe o quanto odeio esse gnero de
impostura, mas no impunemente que se exerce a medicina durante mais de
trinta anos! Perdo a esse bom servidor a tentativa de ocultar-me minha prpria
morte. Hermgenes um sbio e tambm bastante judicioso. Sua probidade
superior de qualquer outro mdico da corte. Tenho a fortuna de ser o mais
bem-tratado dos doentes. Mas nada pode ultrapassar os limites estabelecidos;
minhas pernas intumescidas j no me podem sustentar durante as longas
cerimnias romanas. Sufoco! Tenho sessenta anos!

Numa coisa no te iludas, porm; no estou ainda bastante enfraquecido para


ceder s alucinaes do medo, quase to absurdas quanto as da esperana, e
naturalmente muito mais incmodas. Fosse-me necessrio exceder-me,
preferiria faz-lo no sentido da confiana; nada teria a perder e sofreria menos.
Esse fim to prximo no necessariamente imediato: deito-me ainda, cada
noite, com a esperana de acordar pela manh. Dentro dos limites
intransponveis de que falava h pouco, conto defender minha posio passo a
passo e at mesmo reconquistar algumas polegadas do terreno perdido. Ainda
no atingi a idade em que a vida para cada homem uma derrota consumada.
Dizer que meus dias esto contados nada significa! Assim foi sempre. E assim
sempre ser, para todos ns. Mas a incerteza do lugar, da ocasio e do modo, que
nos impede de ver distintamente esse fim para o qual avanamos
inexoravelmente, diminui para mim medida que progride minha mortal
enfermidade. Qualquer um de ns pode morrer a qualquer instante, mas um
enfermo sabe, por exemplo, que no estar vivo dentro de dez anos. Minha
margem de hesitao j no abrange anos, apenas alguns meses. Minhas
probabilidades de morrer de uma punhalada no corao ou de uma queda de
cavalo so mnimas; a peste parece improvvel; a lepra ou o cncer esto
definitivamente afastados. J no corro o risco de tombar nas fronteiras atingido
por um machado calednio, ou trespassado por uma flecha parta. As
tempestades no souberam aproveitar-se das ocasies oferecidas e o feiticeiro
que me predisse morte por afoga-mento parece no ter tido razo. Morrerei no
mximo em Tbur, em Roma, ou em Npoles, e uma crise de sufocao se
encarregar da tarefa. Serei abatido pela dcima ou pela centsima crise? Essa
toda a questo. Como o viajante que navega entre as ilhas do arquiplago v a
bruma luminosa levantar-se tarde, descobrindo, pouco a pouco, a linha do
litoral, comeo a discernir o perfil de minha morte.

Alguns aspectos de minha vida j se assemelham s salas desguarnecidas de um


vasto palcio que o proprietrio empobrecido desiste de ocupar por inteiro. J no
cao: se eu fosse o nico a perturb-los nas suas ruminaes e nos seus
folguedos, os cabritos monteses das colinas da Etrria poderiam ficar
completamente tranqilos. Sempre entretive com a Diana das florestas as
mltiplas e apaixonadas relaes de um homem com o objeto amado.
Adolescente, a caa ao javali proporcionou-me os primeiros contatos com o
comando e com o perigo. Entregava-me a esse desporto com paroxismo, e meus
excessos levaram Trajano a admoestar-me. A distribuio aos ces, numa
clareira da Espanha, das entranhas dos animais abatidos minha mais antiga
experincia da morte, da coragem, da piedade pelas criaturas e do prazer trgico
de v-las sofrer. Homem feito, a caa aliviava-me o esprito de tantas lutas
secretas com adversrios ora sagazes, ora obtusos, ora fracos, ora fortes demais
para - mim. A luta equilibrada entre a inteligncia humana e a astcia dos
animais selvagens parecia-me extraordinariamente adequada comparao
com os embustes dos homens. Imperador, minhas caadas na Toscana serviram-
me para avaliar a coragem e os recursos dos altos funcionrios; nessas ocasies,
escolhi ou eliminei mais de um homem de Estado. Mais tarde, na Bitnia e na
Capadcia, fiz das grandes batidas um pretexto para festas, um triunfo outonal
nos bosques da sia. Morreu jovem, porm, o companheiro de minhas caadas
e, depois de sua partida, meu gosto pelos prazeres violentos diminuiu bastante.
Entretanto, mesmo aqui em Tbur, o resfolegar sbito de um cervo sob a
folhagem suficiente para despertar em mim o mais antigo dos instintos, por
obra e graa do qual me sinto um leopardo, tanto quanto um imperador. Quem
sabe? possvel que eu seja avesso ao derramamento de sangue humano por t-
lo derramado tanto quando se tratava de animais ferozes. E dizer que s vezes,
secretamente, eu os preferia aos homens! De qualquer modo, a lembrana das
feras -me familiar ainda, e custa-me no prosseguir narrando interminveis
histrias de caa que poriam prova a pacincia dos meus convidados da noite.
Sem dvida, a reminiscncia do dia da minha adoo deliciosa, mas a
recordao dos lees abatidos na Mauritnia no fica atrs. A renncia
equitao sacrifcio mais penoso ainda; uma fera apenas um adversrio; o
cavalo era um amigo. Se me fosse dado optar por minha condio neste mundo,
teria escolhido a de Centauro. Entre mim e Borstenes o entendimento era de
uma preciso matemtica: o cavalo obedecia-me como a seu prprio crebro, e
no a seu dono. Terei algum dia conseguido tanto de um homem? Uma
autoridade to absoluta comporta, como qualquer outra, riscos de erro por parte
do homem que a exerce, mas o prazer de tentar o impossvel nos saltos com
obstculos era intenso demais para que eu lamentasse um ombro deslocado ou
uma costela partida. Meu cavalo substitua as mil noes relativas a ttulo, posio
e nome, que complicam as relaes humanas, pelo simples conhecimento do
meu peso. Partilhando meus entusiasmos, sabia exatamente e melhor do que
eu mesmo, talvez o ponto onde minha vontade se divorciava de minha fora.
Ao sucessor de Borstenes j no inflijo o fardo de um corpo doente, de msculos
amolecidos, e fraco demais para iar-se por si mesmo sela. Meu ajudante de
campo, Cler, exercita-o neste momento na estrada de Prenesta. Minhas antigas
experincias com a velocidade dos galopes permitem-me agora partilhar o
prazer de cavalo e cavaleiro lanados a toda a velocidade sob o sol e o vento.
Quando Cler salta do cavalo, com ele retomo contato com o solo. O mesmo
passa-se com a natao: a ela renunciei, mas continuo participando do prazer do
nadador acariciado pela gua. Correr, mesmo o mais curto percurso, seria hoje
to impossvel para mim quanto para a pesada esttua de pedra de um Csar.
Posso, entretanto, lembrar-me de minhas carreiras de criana pelas colinas secas
da Espanha, das brincadeiras comigo mesmo, nas quais ia at os limites do
flego, seguro de que o corao perfeito e os pulmes intactos restabeleceriam o
equilbrio. Como o mais insignificante dos atletas que treina sua corrida ao longo
do estdio, tenho um entendimento to perfeito que a inteligncia por si s no
me poderia proporcionar nunca. Assim, de cada arte praticada, retiro hoje um
conhecimento que me compensa em parte os prazeres perdidos. Acreditei, e nos
meus bons momentos ainda acredito, que seria possvel partilhar da existncia de
todos os homens, e que essa simpatia seria uma das formas irrevogveis da
imortalidade. Momentos houve em que essa compreenso tentou ultrapassar o
humano, foi do nadador prpria vaga. Mas ali nada de positivo me foi
explicado, porque entrara no domnio das metamorfoses do sonho.

Comer em excesso hbito romano. Eu, porm, fui sbrio por volpia.
Hermgenes nada teve que modificar em meu regime, a no ser talvez a
impacincia que me obrigava a devorar, no importa onde fosse e a qualquer
hora, a primeira iguaria servida, para saciar de uma s vez as exigncias da
fome. No seria prprio do homem rico, que s uma vez na vida conheceu uma
privao voluntria e disso no fez mais do que uma experincia a ttulo
provisrio, como um dos incidentes mais ou menos excitantes da guerra e da
viagem, vangloriar-se de no se exceder mesa. Embriagar-se em certos dias
de festa foi sempre a ambio, a alegria e o orgulho dos pobres. Agradava-me o
odor das carnes assadas e o rudo das marmitas raspadas nas festas do exrcito, e
o fato de que os banquetes do acampamento (ou o que num acampamento se
pode chamar de banquete) eram o que sempre deveriam ser: um alegre e
grosseiro contrapeso s privaes dos dias de trabalho. Tolerava bastante bem o
odor das frituras nas praas pblicas, no tempo das Saturnais. Entretanto, os
festins romanos causavam-me tanta repugnncia e tanto tdio que, acreditando
s vezes morrer no curso de uma explorao ou de uma expedio, dizia a mim
mesmo, para reconfortar-me: pelo menos, nunca mais jantarei! No me faas a
injustia de tomar-me por um vulgar renunciador: uma operao que tem lugar
duas ou trs vezes por dia, e cuja finalidade alimentar a vida, merece
certamente todas as nossas atenes. Comer um fruto fazer entrar em si
mesmo um belo objeto vivo, estranho, nutrido e favorecido, como ns, pela terra.
consumar um sacrifcio no qual ns nos preferimos ao objeto. Jamais
mastiguei a crosta do po das casernas sem maravilhar-me de que essa massa
pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em
coragem. Ah! por que o meu esprito, nos melhores momentos, s possui uma
pequena parte dos poderes assimiladores do meu corpo?

Foi em Roma, durante os longos banquetes oficiais, que me aconteceu meditar


nas origens relativamente recentes do nosso luxo, e naquele povo de rendeiros
parcimoniosos e soldados frugais, acostumados a nutrir-se de alho e cevada,
subitamente deslumbrados pela conquista, devorando as iguarias complicadas da
cozinha asitica com a rusticidade de camponeses esfomeados. Nossos romanos
empanturram-se agora de aves delicadas, afogam-se em molhos e envenenam-
se com especiarias. Um discpulo de Apcio orgulha-se da sucesso dos servios,
da srie de pratos doces ou picantes, leves ou pesados, que compem a
magnfica seqncia dos seus banquetes. Seria mais desejvel que cada iguaria
fosse servida separadamente, assimilada em jejum, sabiamente degustada por
um apreciador de papilas intactas. Apresentadas confusamente, numa profuso
banal e cotidiana, elas formam no paladar e no estmago uma mistura
detestvel, na qual o odor, o gosto e a prpria substncia essencial perdem seu
valor peculiar e sua deliciosa identidade. O pobre Lcio comprazia-se outrora em
preparar-me pratos raros; suas tortas de faiso, com a sbia dosagem de presunto
e especiarias, revelavam uma arte to consumada como a do msico ou do
pintor. Entretanto, eu deplorava secretamente a carne pura da linda ave. A Grcia
era bastante superior nesse sentido: seu vinho resinoso, seu po salpicado de
sementes de gergelim, seus peixes assados na grelha, beira-mar, escurecidos
aqui e ali pelo fogo e temperados de quando em quando pelo estalido de um gro
de areia, satisfaziam simplesmente o apetite sem cercar de excessivas
complicaes a mais pura das nossas alegrias. Saboreei numa srdida espelunca
de Egina ou de Falera alimentos to frescos, que se conservavam divinamente
puros, a despeito dos dedos imundos do moo da taverna. Eram escassos, mas to
saborosos que pareciam conter, sob a forma mais resumida, uma certa essncia
de imortalidade. A carne cozida nas noites das caadas possua uma espcie de
qualidade sacramentai que nos levava muito longe, quase alm das origens
selvagens das raas. O vinho inicia-nos nos mistrios vulcnicos do solo e nas
riquezas minerais ocultas. Uma taa de Samos degustada ao meio-dia, em pleno
sol, ou, ao contrrio, saboreada numa noite de inverno, num estado de fadiga tal
que nos permita sentir no fundo do diafragma seu fluxo quente, sua abrasadora
disperso ao longo das artrias, uma sensao quase sagrada e, por vezes,
demasiado forte para um crebro humano. No reencontro essa sensao no
mesmo estado de pureza nos vinhos numerados das adegas de Roma, e
impacienta-me o pedantismo dos grandes conhecedores de vinhos. Mais
primitivamente ainda, a gua bebida na concha da mo ou na prpria fonte faz
correr em ns o sal mais secreto da terra e toda a chuva do cu. A gua, ela
mesma, uma delcia da qual o doente que sou agora no deve usar seno com
parcimnia. No importa, mesmo na agonia e ainda que de mistura com o
amargor das ltimas poes, tentarei sentir sua fresca insipidez nos meus lbios.

Experimentei rapidamente a abstinncia de carne nas escolas de filosofia onde


acontece provarmos, um a um, todos os mtodos de conduta. Mais tarde, na sia,
vi os gimnosofistas indianos desviarem a cabea dos quartos de gazela e dos
cordeiros fumegantes servidos na tenda de Osros. Mas essa prtica, na qual tua
jovem austeridade descobre tamanho encanto, exige cuidados mil vezes mais
complicados que os da prpria gastronomia. Ela nos afasta com exagero
ostensivo do comum dos homens, numa funo quase sempre pblica e qual
presidem geralmente a amizade ou a pompa. Prefiro nutrir-me por toda a vida
de patos gordos e galinhas-dangola, a ser acusado por meus convidados de
ostentao de ascetismo. Muitas vezes, valendo-me de alguns frutos secos, ou do
contedo de um copo lentamente absorvido, tentei evitar que meus convidados
percebessem que os pratos elaborados por meus chefes o eram sobretudo para
eles, e que a minha curiosidade por essas iguarias havia muito se esgotara. Falta
ao prncipe a latitude de que goza o filsofo: no pode permitir-se discordar dos
demais ao mesmo tempo. E os deuses sabem que meus pontos de discordncia
eram numerosos, embora estivesse persuadido de que muitos deles eram
invisveis. Os escrpulos religiosos dos gimnosofistas e sua repugnncia pelas
carnes sangrentas ter-me-iam impressionado, se no perguntasse a mim mesmo
em que o sofrimento da erva que se corta diferia essencialmente do sofrimento
dos carneiros que se degolam. E refletia se nosso horror ante os animais
assassinados no estaria condicionado ao fato de nossa sensibilidade pertencer ao
mesmo reino. Mas em certos momentos da vida, nos perodos de jejum ritual,
por exemplo, ou no curso das iniciaes religiosas, conheci as vantagens
espirituais e tambm os perigos das diferentes formas de abstinncia, e at da
inanio voluntria. Falo desses estados prximos da vertigem em que o corpo,
em parte alijado do seu peso, penetra num mundo para o qual no foi feito e que
prefigura a fria leveza da morte. Em outros momentos, essas experincias
permitiram-me brincar com a idia do suicdio progressivo, da morte por
inanio como a de certos filsofos, espcie de deboche ao inverso, no qual se
vai at o esgotamento da substncia humana. Mas desagradou-me sempre aderir
totalmente a um sistema: jamais teria permitido que um escrpulo me privasse
do direito de empanturrar-me de salsichas, se acaso me apetecessem ou se este
fosse o nico alimento disponvel.

Os cnicos e os moralistas concordam em colocar a volpia do amor entre os


prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a,
contudo, menos indispensvel do que aqueles, visto que podem perfeitamente
prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanta-me que o cnico se
tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus prprios demnios,
seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforando-se por
aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrvel sob o qual sucumbem, e
diminuir o estranho mistrio no qual se sentem perdidos. Eu acreditaria nessa
associao do amor s alegrias puramente fsicas (supondo-se que tais alegrias
existam) no dia em que visse um gastrnomo soluar de prazer diante do seu
prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o
do amor o nico capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o nico no
qual o jogador se abandona necessariamente ao delrio do corpo. No
indispensvel que aquele que bebe abdique da razo, mas o amante que conserva
a sua no obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinncia quanto o
excesso engajam apenas o homem s. Salvo no caso de Digenes, cujas
limitaes e carter racional e pessimista definem-se por si mesmos, toda
experincia sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigncias
e as servides da escolha. No conheo, fora do amor, outra situao em que o
homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutveis. No amor, o
objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e ainda no
amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da
criatura. A partir do desnudamento total, comparvel ao da morte, de uma
humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-me ao ver
renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das
promessas, das pobres confisses, das frgeis mentiras, dos compromissos
apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laos impossveis de
romper e to depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistrios, que vai do amor
de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para
consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as
do prazer, que comportam as mais contraditrias realidades, desde as noes de
aconchego, doura e intimidade dos corpos, at as da violncia, da agonia e do
grito. A pequena frase obscena de Posidnio sobre o atrito de duas parcelas de
carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicao de menino
ajuizado, incapaz de definir o fenmeno do amor, assim como a corda que o
dedo faz vibrar no pode explicar o milagre dos sons. O que essa frase insulta no
tanto a volpia, mas a prpria carne, esse instrumento de msculos, sangue e
epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma o relmpago.

Confesso que a razo permanece confusa em presena do prodgio do amor, da


estranha obsesso que faz com que essa mesma carne, que to pouco nos
preocupa quando compe nosso corpo, limitando-nos somente a lav-la, nutri-la
e, se possvel, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixo de carcias
simplesmente porque animada por uma personalidade diferente da nossa e
porque representa certos traos de beleza sobre os quais, alis, os melhores juizes
no estariam de acordo. Aqui, como nas revelaes dos Mistrios, tudo se passa
alm do alcance da lgica humana. A tradio popular no se enganou ao ver no
amor uma forma de iniciao e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se
tocam. A experincia sensual equipara-se ainda aos Mistrios quando a primeira
aproximao provoca nos no-iniciados o efeito de um rito mais ou menos
assustador, escandalosamente desligado de todas as funes at ento familiares,
como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou
terror. Da mesma maneira que a dana das mnades ou o delrio dos coribantes,
nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situao normal,
nos vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o
ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um crucificado sua
cruz, penetrei em certos segredos da vida que comeam a desvanecer-se da
minha lembrana por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente,
depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, que
o prisioneiro posto em liberdade esquea a tortura, e o triunfador, a embriaguez
da glria.

Por vezes sonhei elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no


erotismo. Uma teoria do contato na qual o mistrio e a dignidade de outrem
consistiriam precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de ligao com um
mundo desconhecido. A volpia seria, nessa filosofia, a forma mais completa e
mais especializada de aproximao com o Outro, uma tcnica a mais colocada a
servio do conhecimento de uma individualidade estranha nossa. Nos
encontros, mesmo os menos sensuais, ainda no contato que a emoo nasce ou
morre, tal como acontece com a mo um tanto repugnante da velha que me
apresenta uma petio, a fronte mida do meu pai em agonia, ou a chaga lavada
de um ferido. As prprias relaes mais intelectualizadas, ou as mais neutras,
ocorrem atravs desse sistema de sinais materiais: o olhar subitamente iluminado
do tribuno a quem explico determinada manobra numa manh de batalha; a
saudao impessoal do subalterno que nossa passagem imobiliza em atitude de
obedincia; o olhar amistoso do escravo a quem agradeo por trazer-me uma
bandeja; ou a expresso apreciadora de um velho amigo ante o camafeu grego
com que acabamos de presente-lo. Com a maior parte das pessoas, os mais
ligeiros ou mais superficiais desses contatos bastam a nosso desejo, ou at o
excedem. Que esses mesmos contatos insistam e se multipliquem em torno de
uma criatura nica at bloque-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo
apresente para ns tantas significaes perturbadoras como os traos de um
rosto; que um nico ser, em vez de inspirar-nos quando muito irritao, prazer ou
aborrecimento, nos obceque como uma melodia ou nos atormente como um
problema; qu esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se
torne mais indispensvel do que ns prprios, e estar realizado o admirvel
prodgio: assistiremos ento invaso da carne pelo esprito, e no mais a um
passatempo do corpo.

Tais conceitos sobre o amor poderiam conduzir-me a uma carreira de sedutor. Se


no a empreendi foi, sem dvida, por ter feito coisa melhor. falta de gnio,
semelhante carreira requer cuidados e estratagemas para os quais no me sentia
dotado. As armadilhas preparadas, sempre as mesmas, a rotina condicionada a
contnuas aproximaes e limitada pela prpria conquista, entediaram-me. A
tcnica do grande sedutor exige, na passagem de um a outro objeto, uma
facilidade e uma indiferena de que no me sinto capaz. Por outro lado, devo
dizer que as pessoas que amei deixaram-me mais vezes do que as deixei. Jamais
compreendi que algum pudesse saciar-se de um ser. O desejo de aquilatar
exatamente todas as riquezas que um novo amor nos traz, de observ-lo
transformar-se, v-lo envelhecer talvez, no condiz com a multiplicidade de
conquistas. Acreditei outrora que um certo gosto pela beleza substituiria em mim
a virtude, que eu saberia imunizar-me contra as solicitaes demasiado
grosseiras. Enganei-me, todavia. O apreciador da beleza acaba por descobri-la
no importa onde, como o filo de ouro nos mais ignbeis veios, para
experimentar, ao manusear essas obras-primas fragmentrias, sujas ou
quebradas, a emoo de um conhecedor solitrio ao colecionar uma pea
supostamente vulgar. O obstculo mais srio para o homem de gosto uma
posio de eminncia nos negcios humanos, onde o poder quase absoluto
comporta os maiores riscos de adulao e hipocrisia. O simples pensamento de
que algum possa dissimular em minha presena, por pouco que seja, capaz de
levar-me a lastim-lo, desprez-lo e at odi-lo. Tenho sofrido essas
desvantagens da minha fortuna como um homem pobre sofre os inconvenientes
da sua misria. Um passo a mais e teria aceitado a fico que consiste em
acreditar que seduzimos quando sabemos que apenas nos impomos, coisa que o
comeo do desencanto ou do cabotinismo.

Aos estratagemas da seduo aqui expostos, acabaramos por preferir as


verdades simples do deboche, se a tambm no prevalecesse a mentira. Em
princpio, estou pronto a admitir que a prostituio seja uma arte como a
massagem ou os penteados, mas a custo suporto barbeiros e massagistas. Nada
mais srdido do que um cmplice. O olhar oblquo do proprietrio da taverna que
me reserva seu melhor vinho e, conseqentemente, dele priva a outro, bastava,
na minha juventude, para saturar-me dos divertimentos de Roma. Desagrada-me
que algum julgue poder satisfazer meu desejo, prev-lo e adaptar-se
mecanicamente ao que supe ser minha preferncia. Esse reflexo imbecil e
deformado de mim mesmo, que me oferece nesses momentos um crebro
humano, por pouco me faria preferir os lamentveis efeitos do ascetismo. Se a
lenda no exagera os excessos de Nero e os sbios requintes de Tibrio, teria sido
preciso que esses consumidores de prazeres possussem sentidos muito
embotados e um singular desprezo pelos homens para se sujeitarem a um
sistema to complicado, e, ao mesmo tempo, tolerarem que outros os
ridicularizassem ou que se aproveitassem deles. Quanto a mim, se renunciei de
certa maneira a essas formas maquinais de prazer, ou nelas no me aprofundei
muito, devo-o mais minha sorte do que a uma virtude incapaz de resistir a coisa
alguma. Naturalmente, ao envelhecer, poderia cair nessas prticas como em
qualquer outra espcie de confuso ou de esgotamento. A enfermidade e a morte
relativamente prxima salvar-me-o da repetio montona dos mesmos gestos,
semelhante sabatina da lio h muito decorada.

De todas as venturas que lentamente me abandonam, o sono uma das mais


preciosas, embora seja das mais comuns tambm. Um homem que dorme
pouco e mal, apoiado sobre dezenas de almofadas, medita com vagar sobre essa
volpia diferente. Concordo em que o sono mais perfeito necessariamente um
complemento do amor: repouso tranqilo, refletido sobre dois corpos. Mas o que
me interessa aqui o mistrio especfico do sono saboreado por si mesmo, o
incontrolvel e arriscado mergulho a que se aventura todas as noites o homem
nu, s e desarmado, num oceano onde tudo novo: cores, densidades, o prprio
ritmo da respirao, e onde reencontramos os mortos. O que nos tranqiliza no
sono a certeza de que dele retornamos, e retornamos os mesmos, j que uma
estranha interdio nos impede de trazer conosco o resduo exato dos nossos
sonhos. Outra coisa nos tranqiliza ainda: que ele nos cura temporariamente da
fadiga pelo mais radical dos processos, isto , fazendo com que cessemos de
existir durante algumas horas. Nisso, como em outras coisas, o prazer e a arte
consistem em nos abandonarmos conscientemente a essa bem-aventurada
inconscincia, consentindo em sermos sutil-mente mais fracos, mais leves, mais
pesados e mais confusos do que ns mesmos. Voltarei mais tarde aos habitantes
extraordinrios de nossos sonhos. Por ora, prefiro falar de certas experincias do
sono puro e do puro despertar, um e outro confinando com a morte e com a
ressurreio. Hoje, procuro reencontrar a antiga sensao dos sonos fulminantes
da adolescncia, quando adormecemos completamente vestidos sobre os livros,
sbito transportados para fora da matemtica e dos tratados de direito, e
mergulhados num sono slido e profundo, to cheio de energia no consumida,
que poderamos experimentar, por assim dizer, a exata sensao de existir
atravs das plpebras abaixadas. Evoco ainda os sonos repentinos sobre a terra
nua, dentro da floresta, aps fatigantes jornadas de caa. Despertava-me o
ladrido dos ces ou o peso de suas patas apoiadas sobre meu peito. O eclipse era
to absoluto que eu poderia, cada vez, encontrar-me outro. Admirava-me ou, s
vezes, entristecia-me a rgida necessidade que me trazia de to longe para este
estreito canto de humanidade que sou eu prprio. De que valem as
particularidades s quais damos tanto valor, visto que contavam to pouco para o
ser adormecido e livre que, por um segundo, antes de reentrar a contragosto na
pele de Adriano, chegava a saborear quase conscientemente a sensao de ser
um homem vazio com uma existncia sem passado?

Por outro lado, a doena e a idade operam tambm seus prodgios e recebem do
sono outras formas de bno. Foi em Roma, h cerca de um ano, depois de um
dia particularmente exaustivo, que conheci uma dessas trguas em que o
esgotamento das foras operava os mesmos milagres, ou antes, outros milagres
semelhantes s reservas inesgotveis de outrora. S vou raramente cidade,
onde procuro cumprir, num s dia, o maior nmero possvel de obrigaes. O dia
fora desagradavelmente sobrecarregado: uma sesso do Senado seguira-se de
outra no tribunal e de uma discusso interminvel com um dos magistrados das
finanas, e, finalmente, de uma cerimnia religiosa impossvel de ser abreviada,
durante a qual a chuva caiu sem cessar. Eu prprio programara tantas atividades
diferentes sem intervalos, deixando entre elas o menor espao de tempo possvel
para as importunaes e bajulaes inteis. O regresso a cavalo foi um dos meus
ltimos trajetos no gnero. Cheguei Vila indisposto, doente, sentindo frio como
s se sente quando o sangue se recusa a circular nas artrias. Cler e Chbrias
desdobraram-se em cuidados, mas a prpria solicitude pode ser fatigante, ainda
quando sincera. Recolhido a meus aposentos, engoli algumas colheradas de um
caldo quente que eu mesmo preparei, no por suspeita como muitos pensam,
mas porque s assim poderia dar-me ao luxo de estar s. Deitei-me em seguida.
O sono parecia estar to distante de mim como a sade, a juventude e a fora.
Todavia, adormeci. Ao despertar, a ampulheta provou-me que eu mal havia
dormido uma hora. Um curto momento de adormecimento total na minha idade
torna-se o equivalente dos sonos que duravam outrora toda uma meia revoluo
dos astros. Meu tempo passou a medir-se por unidades infinitesimais. Uma nica
hora fora suficiente para operar o humilde e surpreendente prodgio: o calor do
sangue reaquecia-me as mos; meu corao e meus pulmes recomeavam a
funcionar com uma espcie de boa vontade. A vida corria como um manancial
no muito abundante, mas fiel. O sono, em curto espao de tempo, havia
reparado meus excessos de virtude com a mesma imparcialidade com que teria
reparado os do vcio. A divindade desse grande restaurador quer que seus efeitos
benficos se exeram sobre qualquer pessoa adormecida, da mesma forma que
a gua carregada de poderes curativos no se preocupa com a identidade de
quem a bebe na nascente.

Mas, se meditamos to pouco num fenmeno que absorve quase um tero de


nossa existncia, porque necessria uma certa modstia para apreciar seus
dons. Adormecidos, Caio, Calgula e o justo Aristides equivalem-se. Eu prprio
renuncio a meus vos e importantes privilgios e j no me distingo do guarda
negro que dorme atravessado no umbral de minha porta. Que nossa insnia,
seno a obstinao manaca da nossa inteligncia em manufaturar pensamentos
e formular uma srie de raciocnios, silogismos e definies que lhe so prprios?
Ou, ainda, a recusa em abdicar em favor da divina estupidez dos olhos fechados
ou da sensata loucura dos sonhos? O homem que no dorme e tenho tido,
desde alguns meses, freqentes ocasies de constat-lo em mim mesmo
recusa-se mais ou menos conscientemente a confiar no fluxo das coisas. Irmos
da Morte Iscrates estava enganado. Sua frase no passa do exagero de um
retrico. Comeo a conhecer a morte; ela tem outros segredos muito mais
estranhos ainda nossa atual condio humana. E, contudo, to entrelaados, to
profundos sob esses mistrios de ausncia e de parcial esquecimento, que
podemos sentir perfeitamente a confluncia, em algum lugar, da fonte branca
com a fonte escura. Propositadamente, jamais olhei dormir aqueles a quem
amava: descansavam de mim, bem sei; sei tambm que me escapavam. Todo
homem se envergonha do seu rosto alterado pelo sono. Quantas vezes, tendo-me
levantado muito cedo para ler ou estudar, eu prprio coloquei em ordem as
almofadas amassadas e os lenis amarrotados, evidncias quase obscenas dos
nossos encontros com o nada, provas de que a cada noite deixamos de existir
Pouco a pouco, esta carta, comeada para te informar sobre os progressos do
meu mal, transformou-se no entretenimento de um homem que j no tem a
energia necessria para se dedicar longamente aos negcios do Estado, a
meditao escrita de um doente que d ouvidos a suas recordaes. J agora
pretendo ir mais longe: proponho-me contar-te minha vida. certo que no ano
passado fiz um relatrio oficial dos meus atos, assinado por Flgon, meu
secretrio. Menti o mnimo possvel. O interesse pblico e a decncia foraram-
me, contudo, a retocar certos fatos. A verdade que pretendo narrar aqui no
particularmente escandalosa, ou melhor, no o seno na medida em que toda
verdade escandaliza. No espero que teus dezessete anos compreendam qualquer
coisa disso. Empenho-me, porm, em instruir-te e tambm em chocar-te. Teus
preceptores, que eu prprio escolhi, deram-te uma educao austera, fiscalizada
e excessivamente protegida talvez, da qual espero, apesar de tudo, que resulte um
grande bem para ti mesmo e para o Estado. Ofereo-te aqui, como corretivo,
uma narrativa desprovida de idias preconcebidas e de princpios abstratos, tirada
da experincia de um s homem, isto , de mim mesmo. Ignoro a que
concluses esta narrativa me conduzir. Conto com este exame dos fatos para
definir-me, para julgar-me talvez ou, quando muito, para melhor conhecer a
mim mesmo antes de morrer.

Como toda gente, s disponho de trs meios para avaliar a existncia humana: o
estudo de si mesmo, o mais difcil e o mais perigoso, mas tambm o mais
fecundo dos mtodos; a observao dos homens, que tratam freqentemente de
ocultar-nos seus segredos ou de nos fazer crer que os tm; os livros, com os erros
peculiares de perspectiva que surgem entre suas linhas. Li quase tudo o que
nossos historiadores, poetas e narradores escreveram, embora estes ltimos
tenham reputao de frvolos. A todos devo talvez mais informaes do que as
recolhidas nas mais diversas situaes da minha prpria vida. A palavra escrita
ensinou-me a apreciar a voz humana, tanto quanto a grande imobilidade das
esttuas me levou a valorizar os gestos. Em compensao, e no decorrer dos
tempos, a vida me fez compreender os livros.

Mas estes mentem, mesmo os mais sinceros. Os menos hbeis, na falta de


palavras e frases com que possam represent-la, traam da vida imagem pobre
e vulgar. Alguns, como Lucano, fazem-na pesada e obstruda por uma solenidade
que ela no possui. Outros, pelo contrrio, como Petrnio, fazem-na leve,
transformando-a numa bola saltitante e vazia, fcil de receber e de atirar num
universo sem peso. Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais
belo, mais ardente ou mais suave, por isso mesmo diferente do nosso e, na
prtica, quase inabitvel. Os filsofos, a fim de estudarem a realidade pura,
submetem-na quase s mesmas transformaes que o fogo ou o pilo operam
nos corpos: nada de um ser ou de um fato, tal como os conhecemos, parece
subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos as
imagens do passado atravs de sistemas excessivamente completos, com uma
srie de causas e efeitos demasiado exatos e demasiado claros para serem
inteiramente verdicos. Recompem a dcil matria morta, e tenho certeza de
que mesmo a Plutarco escapar Alexandre. Os narradores, os autores de fbulas
milsias, maneira dos aougueiros, s fazem pendurar no balco do aougue os
pedaos de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia dificilmente a um
mundo sem livros, mas a realidade no est ali, porque eles no a contm inteira.
A observao direta dos homens um mtodo menos completo ainda, limitado
freqentemente pelas dedues excessivamente torpes com as quais se satisfaz a
malevolncia humana. A categoria social, a posio e todos os nossos acasos
restringem o campo de viso do conhecedor dos homens. Meu escravo dispe,
para observar-me, de facilidades completamente diferentes das que eu tenho
para observ-lo; elas so to limitadas quanto as minhas. O velho Eufrion me
apresenta, h vinte anos, meu frasco de leo e minha esponja, mas meu
conhecimento sobre ele se limita a seu servio e o conhecimento que ele tem de
mim no vai alm do meu banho. Toda tentativa no sentido de ampliar esse
conhecimento surtiria rapidamente, tanto no imperador quanto no escravo, o
efeito de uma indiscrio. Quase tudo o que sabemos de outrem de segunda
mo. Quando um homem se confessa, ele defende sua causa. Se o observarmos,
veremos que no est s: sua apologia est antecipadamente preparada.
Censuraram-me o gosto pela leitura dos relatrios da polcia de Roma. que
neles descubro sempre motivos de surpresa: amigos ou suspeitos, desconhecidos
ou familiares, toda essa gente me perturba e suas loucuras servem de desculpa s
minhas. No me canso de comparar o homem vestido ao homem nu. Mas esses
relatrios, to ingenuamente circunstanciais, juntam-se s pilhas dos meus
apontamentos sem me auxiliarem a encontrar o veredicto final. Que tal
magistrado de aparncia austera tenha cometido um crime, de modo algum me
ajuda a conhec-lo melhor. Daquele momento em diante, passo a estar em
presena de duas incgnitas: a aparncia do magistrado e seu crime.

Quanto observao de mim mesmo, a ela me obrigo no s para entrar num


acordo com o indivduo junto do qual serei obrigado a viver at o final, como
tambm porque uma intimidade de quase sessenta anos comporta no poucas
probabilidades de erro. No fundo, meu conhecimento de mim mesmo obscuro,
interior, informulado e secreto como uma cumplicidade. So noes quase to
frias e to impessoais quanto as teorias que posso elaborar a respeito dos
nmeros. Emprego toda a minha inteligncia para observar minha vida de to
longe e de to alto, que ela me aparece como a vida de um outro e no a minha
prpria. Mas esses processos de conhecimento so difceis e requerem um
mergulho dentro de ns mesmos e uma sada totalmente para fora de ns. Por
comodismo, inclino-me, como todo mundo, a substituir esses processos por um
sistema de pura rotina, uma concepo de minha vida parcialmente modificada
pela imagem que o pblico tem dela atravs de julgamentos pr-fabricados, isto
, malfeitos. Uma espcie de modelo pronto, ao qual o alfaiate inbil adapta
laboriosamente o tecido que nosso. Trata-se de um equipamento de valor
desigual, com instrumentos mais ou menos embotados. Mas no possuo outros:
com esses que devo compor, bem ou mal, uma idia do meu destino de homem.

Quando examino minha vida, espanto-me ao encontr-la informe. A existncia


dos heris, tal como nos contada, simples. Vai direto ao fim como uma seta. A
maioria dos homens prefere resumir sua vida numa frmula, no raro uma
frmula de louvor ou uma queixa, e quase sempre uma recriminao. Sua
memria fabrica-lhes complacentemente uma existncia explicvel e clara.
Contudo, minha vida tem contornos menos firmes. Como acontece
freqentemente, justamente aquilo que no fui que a define com maior
exatido: bom soldado, mas no grande guerreiro; apreciador da arte, mas no o
artista que Nero acreditava ser na hora da morte; capaz de crimes, mas no um
criminoso. Ocorre-me pensar que os grandes homens se caracterizam
justamente por sua alta posio, e que seu verdadeiro herosmo consiste em
manterem-se nela durante toda a vida. Eles so nossos plos, ou nossos antpodas.
Quanto a mim, ocupei sucessivamente todas as posies mais altas, mas no me
mantive nelas. A vida obrigou-me sempre a mudar. No posso, pois, como um
lavrador ou um carregador virtuoso, vangloriar-me de uma existncia sem altos
e baixos.

A paisagem dos meus dias parece compor-se, como as regies montanhosas, de


material heterogneo desordenadamente acumulado. A encontro minha
natureza, j realizada, formada por partes iguais de instinto e de cultura. Aqui e
ali surgem os granitos do inevitvel e, por toda parte, os desmoronamentos do
acaso. Esforo-me em voltar sobre meus passos para tentar encontrar um plano
inicial e seguir um veio qualquer, de chumbo ou de ouro, ou mesmo o curso de
um rio subterrneo, mas esse plano inteiramente fictcio no mais que uma
aparncia enganosa da lembrana. De quando em quando, julgo reconhecer
uma fatalidade num encontro, num pressentimento, numa srie definida de
acontecimentos, mas muitos caminhos no conduzem a parte alguma e muitas
somas no se adicionam jamais. Distingo perfeitamente, nessa multiplicidade e
nessa desordem, a presena de uma pessoa, mas seus contornos parecem
traados quase sempre pela presso das circunstncias, e seus traos baralham-
se tal como acontece com uma imagem refletida na gua. No sou daqueles que
dizem que suas aes no se parecem com eles. Pelo contrrio. imprescindvel
que elas se paream comigo, porque so minha nica medida e o nico meio de
me delinear na memria dos homens, ou na minha prpria, pois que a
impossibilidade de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela ao talvez a
nica diferena entre os mortos e os vivos. Mas entre mim e esses atos de que
sou feito, existe um hiato indefinvel. A prova disso que experimento
continuamente a necessidade de pes-los, explic-los e deles prestar contas a
mim mesmo. Alguns trabalhos que duraram pouco so certamente
insignificantes, mas as ocupaes que se estenderam por toda a vida no
significam muito mais. Por exemplo, no momento em que escrevo isto, o fato de
ter sido imperador a custo parece-me essencial.
Trs quartos da minha vida escapam, alis, a essa definio pelos atos: a soma
das minhas veleidades, dos meus desejos e at dos meus prprios projetos
permanece to nebulosa e fugidia quanto um fantasma. O resto, a parte palpvel,
mais ou menos autenticada pelos fatos, apenas um pouco mais distinta, e a
seqncia dos acontecimentos to confusa como a dos sonhos. Tenho minha
cronologia pessoal, impossvel de conciliar com a que se baseia na fundao de
Roma ou com a era das Olimpadas. Quinze anos no exrcito duraram menos do
que uma manh de Atenas. Existem pessoas com que convivi durante toda a
minha vida e que no reconhecerei no Limbo. A concepo de distncia entre os
acontecimentos torna-se confusa, e os fatos sobrepem-se uns aos outros: o Egito
e o vale do Tempe esto continuamente prximos, e j no me acho sempre em
Tbur quando aqui de fato me encontro. Em certos momentos, minha vida
parece-me banal a ponto de no valer a pena ser escrita, nem sequer
contemplada longamente e, de modo algum, mais importante, mesmo aos meus
prprios olhos, do que a vida de um desconhecido qualquer. Em outros
momentos, ela me parece nica e, por isso mesmo, sem valor e intil, porque
impossvel tom-la como experincia para o comum dos homens. Nada me
define: meus vcios e minhas virtudes so insuficientes para tanto; minha
felicidade talvez o faa melhor, embora por intervalos, sem continuidade e,
sobretudo, sem motivo aceitvel. O esprito humano, porm, reluta em se aceitar
como obra do acaso, em ser apenas o produto fortuito do imprevisto ao qual
nenhum deus preside, nem mesmo ele prprio. Uma parte de cada vida, e
mesmo das vidas pouco dignas de ateno, passa-se procura das razes de ser,
dos pontos de partida, das origens. Minha incapacidade de descobri-los foi o que
me fez, por vezes, inclinar-me s explicaes sobrenaturais, procurando nas
alucinaes do ocultismo o que o senso comum no me proporcionava. Quando
todos os clculos complicados se evidenciam falsos, quando os prprios filsofos
no tm nada mais a nos dizer, desculpvel que nos voltemos para o gorjeio
fortuito dos pssaros, ou para o longnquo contrapeso dos astros.
Varius Multiplex multiformis

Marulino, meu av, acreditava nos astros. Esse velho alto, magro e encardido
pelos anos dedicava-me o mesmo grau de afeio sem ternura, sem sinais
exteriores, quase sem palavras, que votava aos animais da sua propriedade, sua
terra e sua coleo de pedras cadas do cu. Descendia de uma longa sucesso
de antepassados estabelecidos na Espanha desde a poca dos Cipies. Era, na
linha senatorial, o terceiro do nome: a nossa famlia at ento fora da ordem
eqestre. Tomara parte, alis modesta, nos negcios pblicos sob o reinado de
Tito. Esse provinciano desconhecia o grego e falava o latim com um sotaque
espanhol gutural que me transmitiu, e que foi motivo de riso mais tarde. Todavia,
seu esprito no era de todo inculto. Aps sua morte, foi encontrada em sua casa
uma arca cheia de instrumentos de matemtica e de livros nos quais ele no
tocava havia vinte anos. Possua conhecimentos em parte cientficos, em parte
camponeses, naquela mistura de preconceitos rgidos e de velha sabedoria que
caracterizaram Cato, o Velho. Mas Cato foi durante toda a vida o homem do
Senado romano e da guerra de Cartago, o perfeito representante da impiedosa
Roma da Repblica. A rudeza quase impenetrvel de Marulino remontava a mais
longe, a pocas mais antigas. Era o homem da tribo, a encarnao de um mundo
sagrado e quase terrvel, de que encontrei, por vezes, vestgios junto aos
necromantes etruscos. Andava sempre de cabea descoberta, costume que me
transmitiu e que me valeu muitas crticas. Seus ps, ressequidos como o couro,
dispensavam sandlias. Seu vesturio dos dias comuns pouco diferia das vestes
dos velhos mendigos e dos graves meeiros acocorados ao sol. Diziam-no
feiticeiro, e os aldees evitavam-lhe o olhar. Dispunha de singulares poderes
sobre os animais: vi sua velha cabea aproximar-se prudentemente,
amistosamente, de um ninho de vboras, e seus dedos nodosos executarem uma
espcie de dana diante de um lagarto. Costumava levar-me para observar o cu
durante as noites de vero, do alto de uma colina rida. Cansado de contar os
meteoros, eu adormecia dentro de um fosso. Quanto a ele, permanecia sentado,
de cabea erguida, girando imperceptivelmente com os astros. Devia conhecer
os sistemas de Filolau e de Hiparco, e tambm o de Aristarco de Samos, que
adotei mais tarde. Tais especulaes, entretanto, j no o interessavam mais. Os
astros eram para ele pontos inflamados, objetos como as pedras, ou os vagarosos
insetos dos quais ele retirava os pressgios, partes constituintes de um universo
mgico que abarcava tambm as volies dos deuses, a influncia dos demnios
e o quinho reservado aos homens. Ele construra o tema da minha natividade.
Certa noite, veio ter comigo, sacudiu-me para despertar-me e anunciou-me o
imprio do mundo com o mesmo laconismo resmungo com que teria anunciado
uma boa colheita ao pessoal da fazenda. Depois, tomado de desconfiana, foi
procurar um tio na pequena fogueira de sarmentos que mantinha acesa para
nos aquecer durante as horas mais frias. Aproximou-o da minha mo, lendo, na
minha palma cheia de menino de onze anos, no sei que confirmao das linhas
inscritas no cu. O mundo era para ele um s bloco; a mo confirmava os astros.
Sua mensagem perturbou-me menos do que se poderia crer: as crianas tudo
esperam. A seguir, creio que esqueceu sua prpria profecia, naquela indiferena
pelos acontecimentos presentes e futuros peculiar idade avanada. Uma
manh, encontraram-no no bosque de castanheiros, nos confins do nosso
domnio, completamente frio e bicado aqui e ali pelas aves de rapina. Antes de
morrer, tentara ensinar-me sua arte, mas sem sucesso. Minha curiosidade natural
saltava s concluses sem se preocupar com os detalhes complicados e um tanto
repugnantes da sua cincia. Conservei, porm, talvez em demasia, o gosto por
certas experincias perigosas. g

Meu pai, lio fer Adriano, era homem sobrecarregado de virtudes. Sua vida
passou-se em administraes inglrias; jamais teve voz ativa no Senado. Ao
contrrio do que acontece ordinariamente, seu governo na frica no o
enriqueceu. Em nossa casa, no nosso municpio espanhol de Itlica, ele se
consumia resolvendo conflitos locais. No tinha ambies, nem alegrias. Como
todos os homens que, de ano para ano, se apagam cada vez mais, entregou-se
com aplicao manaca aos pequenos misteres a que ficou reduzido. Eu prprio
conheci essas respeitveis tentaes da mincia e do escrpulo. A experincia
havia desenvolvido em meu pai um extraordinrio ceticismo a respeito do
prximo, no qual ele me inclua desde pequeno. Meus xitos, se os tivesse
presenciado, no o teriam absolutamente deslumbrado; o orgulho da famlia era
to forte que ningum poderia esperar que eu contribusse para lhe acrescentar
qualquer coisa. Tinha doze anos quando esse homem extremamente cansado nos
deixou. Minha me se instalou para o resto da sua vida numa austera viuvez. No
a revi depois do dia em que, chamado por meu tutor, parti para Roma. Conservo
do seu rosto alongado de espanhola, marcado por uma doura cheia de
melancolia, uma lembrana que o busto de cera da galeria dos antepassados
confirma. Como as filhas de Gades, tinha os ps pequenos calados em sandlias,
e o suave balano dos quadris, que caracteriza as bailarinas dessa regio,
reaparecia nessa jovem matrona irrepreensvel.

Refleti freqentemente a respeito do erro que cometemos quando supomos que


um homem, uma famlia, participa necessariamente das idias ou dos
acontecimentos da sua poca e do sculo. A repercusso das intrigas romanas
afetava muito superficialmente meus parentes nesse recanto da Espanha,
conquanto, na poca da revolta contra Nero, meu av houvesse hospedado Galba
por uma noite. Vivamos no culto da memria de um certo Fbio Adriano,
queimado vivo pelos cartagineses no cerco de tica, de um segundo Fbio,
soldado infortunado que perseguiu Mitridates nas estradas da sia Menor, heris
obscuros de alguns arquivos sem importncia. Dos escritores contemporneos,
meu pai ignorava quase tudo: Lucano e Sneca eram-lhe desconhecidos, se bem
que, como ns, oriundos da Espanha. Meu tio-av lio, que era letrado, limitava-
se leitura dos autores mais conhecidos do sculo de Augusto. Esse desdm pelos
usos contemporneos o poupava de uma possvel falta de gosto e o protegia de
qualquer espcie de afetao. O helenismo e o Oriente eram ali desconhecidos,
ou olhados de longe com um severo franzir de sobrancelhas. No havia, creio,
uma s boa esttua grega em toda a pennsula. A economia caminhava a par
com a riqueza; solenidade quase pomposa aliava-se certa rusticidade. Minha
irm Paulina era grave, silenciosa e retrada. Casou-se jovem com um velho. A
probidade era rigorosa, mas mostravam-se inflexveis para com os escravos.
Embora no nutrissem curiosidade por coisa alguma, observavam-se
mutuamente, pensando sobretudo no que convinha a um cidado romano. De
tantas virtudes se a isso se pode chamar virtude , fui o grande dissipador.

A conveno oficial exige que um imperador romano nasa em Roma, mas foi
em Itlica que nasci. Foi a esse pas seco e, no entanto, frtil que sobrepus mais
tarde muitas regies do mundo. A conveno tem a vantagem de provar que as
decises do esprito e da vontade transcendem as circunstncias. O verdadeiro
lugar de nascimento aquele em que lanamos pela primeira vez um olhar
inteligente sobre ns mesmos: minhas primeiras ptrias foram os livros. Em
menor escala, as escolas. As da Espanha ressentiam-se dos cios da provncia. A
escola de Terncio Escauro, em Roma, ensinava mediocremente os filsofos e os
poetas, mas nos preparava bastante bem para as vicissitudes da existncia
humana: os mestres exerciam sobre os discpulos uma tirania que eu me
envergonharia de impor aos homens. Cada qual, confinado dentro dos estreitos
limites do seu saber, desprezava os colegas, que, por sua vez, conheciam as
outras matrias de maneira igualmente limitada. Esses pedantes discutiam at
ficarem roucos. As que-relas de precedncia, as intrigas, as calnias
familiarizaram-me com o ambiente que encontraria mais tarde em todas as
sociedades em que vivi. No obstante, estimei alguns dos meus mestres. Gostava
das relaes estranhamente ntimas e singularmente indefinidas que existem
entre professores e alunos, como um canto de sereia no fundo de uma voz
trmula que, pela primeira vez, nos revela uma obra-prima, ou nos d a
conhecer uma idia nova. O maior sedutor no , afinal, Alcibades, mas
Scrates.

Os mtodos dos gramticos e dos retricos so, talvez, menos absurdos do que eu
imaginava na poca em que lhes estava sujeito. A gramtica, com sua mistura de
regras lgicas e de uso arbitrrio, prope ao esprito jovem um antegosto do que
lhe oferecero mais tarde as cincias da conduta humana, o direito ou a moral,
todos os sistemas, enfim, em que o homem codificou sua experincia instintiva.
Quanto aos exerccios de retrica, em que ramos sucessivamente Xerxes e
Temstocles, Otvio e Marco Antnio, arrebatavam-me, e eu me sentia um novo
Proteu. Tais exerccios ensinaram-me a penetrar alternadamente no pensamento
de cada homem e a compreender que cada um se decide, vive e morre segundo
suas prprias leis. A leitura dos poetas surtiu efeitos mais perturbadores ainda: no
estou certo de que a descoberta do amor seja necessariamente mais deliciosa do
que a da poesia. Esta me transformou: a iniciao morte no me levar mais
longe num outro mundo do que o crepsculo de Virglio. Mais tarde, preferi a
rudeza de nio, to prxima das origens sagradas da raa, ou a sbia amargura
de Lucrcio, ou a graa generosa de Homero, ou ainda a humilde parcimnia de
Hesodo. Apreciei, sobretudo, os mais complicados e os mais obscuros poetas que
obrigavam meu pensamento ginstica mais difcil, fossem mais recentes ou
mais antigos, desde que me franqueassem novos caminhos ou que me ajudassem
a encontrar as pistas perdidas. Naquela poca, porm, eu preferia, na arte dos
versos, aqueles que falavam mais diretamente aos sentidos, como o metal polido
de Horcio ou a brandura voluptuosa de Ovdio. Escauro desanimou-me ao
afirmar que eu nunca seria mais do que um poeta medocre: faltavam-me o dom
e a aplicao. Acreditei por muito tempo que ele se enganara: tenho em certo
lugar, sob chave, um ou dois volumes de versos de amor, na maior parte imitados
de Catulo. Mas agora me importa muito pouco que minhas produes pessoais
sejam detestveis ou no.

Serei, at o final, reconhecido a Escauro por me haver iniciado desde jovem no


estudo do grego. Era menino ainda quando ensaiei pela primeira vez traar com
o uso do estilete os caracteres de um alfabeto desconhecido: comeavam ento
minha grande emigrao, e minhas longas viagens, e o sentimento de uma
escolha to deliberada e to involuntria como a do amor. Amei essa lngua por
sua flexibilidade, sua elasticidade, sua riqueza de vocabulrio, no qual se atesta,
em cada palavra, o contato direto e variado com a realidade. Amei-a tambm
porque quase tudo o que os homens disseram de melhor o foi em grego. Existem,
eu o sei, outras lnguas, mas esto petrificadas ou ainda por nascer. Os sacerdotes
egpcios mostraram-me seus antigos smbolos, antes sinais do que propriamente
palavras, esforos muito antigos para classificar o mundo e as coisas, linguagem
sepulcral de uma raa extinta. Durante a guerra judaica, o rabino Joshua
explicou-me literalmente certos textos dessa lngua de sectrios, to obcecados
pelo seu Deus a ponto de negligenciarem o lado humano. Familiarizei-me no
exrcito com a linguagem dos auxiliares celtas; lembro-me especialmente de
certos cantos Mas os jarges brbaros valem, no mximo, pelas reservas de
palavras que acrescentam linguagem humana e por tudo o que, sem dvida,
exprimiro no futuro. O grego, ao contrrio, tem atrs de si tesouros de
experincia, que abrangem a sabedoria do homem e a sabedoria do Estado. Dos
tiranos jnicos aos demagogos de Atenas, da pura austeridade de um Agsilas
aos excessos de um Dnis ou de um Demtrio, da traio de Demarato
fidelidade de Filopmen, tudo o que cada um de ns pode tentar para prejudicar
os seus semelhantes ou para servi-los j foi feito, pelo menos uma vez, por um
grego. Sucede o mesmo com as nossas escolhas pessoais: do cinismo ao
idealismo, do ceticismo de Pirro aos sonhos sagrados de Pitgoras, nossas recusas
ou nossos consentimentos j existiram, nossos vcios e nossas virtudes tm
modelos gregos. Nada se compara beleza de uma inscrio latina votiva ou
funerria: umas poucas palavras gravadas sobre a pedra resumem com
majestade impessoal tudo o que o mundo necessita saber de ns. Foi em latim
que administrei o imprio; meu epitfio ser talhado em latim sobre a parede do
meu mausolu, s margens do Tibre, mas em grego terei vivido e pensado.
Tinha dezesseis anos; voltava de um perodo de aprendizagem junto Stima
Legio, acantonada nessa poca em plenos Pireneus, numa regio selvagem da
Espanha citerior, muito diferente da parte meridional da pennsula onde cresci.
Aclio Atiano, meu tutor, julgou de bom alvitre contrabalanar pelo estudo esses
poucos meses de vida rude e de caadas bravias. Prudentemente, deixou-se
persuadir por Escauro da necessidade de enviar-me a Atenas para junto do
sofista Iseu, homem brilhante, dotado sobretudo de raro gnio de improvisador.
Atenas conquistou-me imediatamente. O estudante desajeitado, o adolescente de
corao desconfiado, experimentava pela primeira vez aquele ar vivo, aquelas
conversaes rpidas, aqueles passeios sem rumo sob os longos crepsculos
rosados, aquela incomparvel liberdade tanto nas discusses como na
voluptuosidade. As matemticas e as artes ocuparam-me alternadamente, em
pesquisas paralelas. Em Atenas, tive tambm ocasio de seguir o curso de
medicina de Leotquides. A profisso de mdico ter-me-ia agradado; seu esprito
no diverge essencialmente daquele com o qual procurei aceitar meu ofcio de
imperador. Apaixonei-me por essa cincia demasiado prxima de ns e, por isso
mesmo, incerta e sujeita ao entusiasmo e ao erro, conquanto retificada sem
cessar pelo contato do imediato e do nu. Leotquides tomava as coisas do ponto de
vista mais positivo: elaborara um admirvel sistema de reduo de fraturas.
Quando, ao entardecer, caminhvamos beira-mar, esse homem universal se
interessava pela estrutura das conchas e pela composio do lodo marinho.
Carecia, entretanto, dos meios de experimentao, e ressentia-se da falta dos
laboratrios e das salas de disse-cao do Museu de Alexandria, que freqentara
na juventude, do choque das opinies e da proveitosa concorrncia dos homens.
Esprito positivo, ensinou-me a preferir as coisas s palavras, a desconfiar das
frmulas, a observar mais do que julgar. Esse grego amargo ensinou-me o
mtodo.

A despeito das lendas que me cercam, amei muito pouco a juventude, a minha
menos que qualquer outra. Considerada em si mesma, essa juventude to
elogiada aparece-me mais freqentemente como uma poca malpolida da
existncia, um perodo opaco e informe, frgil e fugidio. No preciso dizer que
encontrei certo nmero de deliciosas excees a essa regra, duas ou trs
admirveis, a mais pura das quais foste tu mesmo, Marco. Quanto a mim, era
aos vinte anos mais ou menos o que sou hoje, apenas sem a mesma consistncia.
Nem tudo em mim era mau, mas poderia s-lo: o bom ou o melhor
contrabalanavam o pior. No medito, sem corar, na minha ignorncia do
mundo, que acreditava conhecer, na minha impacincia, espcie de ambio
frvola e de grosseira avidez. Seria preciso confess-lo? No seio da vida estudiosa
de Atenas, onde at os prazeres eram desfrutados com sobriedade, sentia falta de
Roma, no por ela mesma, mas pela atmosfera do lugar onde se fazem e se
desfazem continuamente os negcios do mundo, onde se pode ouvir o rudo das
polias e das rodas de transmisso da mquina do poder. O reinado de Domiciano
chegava ao fim; meu primo Trajano, coberto de glria nas fronteiras do Reno,
transformava-se em grande homem popular; a tribo espanhola implantava-se em
Roma. Comparada a esse mundo de ao imediata, a bem-amada provncia
grega parecia modorrar numa poeira de idias j respiradas; a passividade
poltica dos helenos me parecia uma forma demasiado inferior de renncia. Era
inegvel meu apetite de poder, de riqueza, que entre ns freqentemente a
primeira forma de ambio e de glria, para dar esse nome belo e apaixonante
comicho de ouvir falar de ns mesmos. A isso se misturava confusamente o
sentimento de que Roma, inferior em tantas coisas, era superior na familiaridade
com as grandes aes que ela exigia dos seus cidados, pelo menos daqueles que
pertenciam ordem senatorial ou eqestre. Atingira o ponto em que a mais banal
discusso sobre a importao do trigo do Egito parecia ensinar-me mais sobre o
Estado que toda A Repblica, de Plato. J alguns anos antes, jovem romano
acostumado disciplina militar, eu acreditava compreender, melhor do que
meus professores, os soldados de Lenidas e os atletas de Pndaro. Abandonava
Atenas, seca e dourada, pela cidade onde os homens encapuzados em pesadas
togas lutam contra o vento de fevereiro, onde o luxo e o deboche so destitudos
de encanto, mas onde as decises mais insignificantes afetam a sorte de uma
parte do mundo; onde um jovem provinciano vido, mas no demasiadamente
obtuso, acreditando a princpio s obedecer a ambies bastante grosseiras,
deveria pouco a pouco perd-las ao realiz-las, aprendendo a adaptar-se s
medidas dos homens e das coisas, a comandar e, coisa finalmente um pouco
menos ftil, a servir.

Nem tudo era perfeito nesse advento de uma virtuosa classe mdia que se
firmava em razo de uma prxima mudana de regime. A honestidade poltica
ganhava a partida com a ajuda de estratagemas bastante ambguos. O Senado,
colocando aos poucos toda a administrao nas mos dos seus protegidos,
fechava o crculo em torno de Domiciano, j no fim de suas foras; os homens
novos, aos quais me ligavam laos de famlia, no eram talvez muito diferentes
daqueles que pretendiam substituir. Apenas, no estavam ainda corrompidos pelo
poder. Os primos e sobrinhos da provncia contavam, no mnimo, com postos
subalternos que eram solicitados a ocupar com integridade. Quanto a mim, fui
nomeado juiz no tribunal encarregado dos litgios entre herdeiros. Foi nesse posto
modesto que assisti aos ltimos lances do duelo de morte entre Domiciano e
Roma. O imperador havia perdido p na cidade, onde s se mantinha custa de
execues que lhe apressavam o fim. O exrcito inteiro tramava-lhe a morte. Eu
compreendia pouca coisa dessa esgrima, mais mortal do que a da arena.
Contentava-me em sentir pelo tirano em apuros o desprezo um tanto arrogante de
um discpulo dos filsofos. Aconselhado por Atiano, exerci meu cargo sem me
ocupar muito com a poltica.

Esse ano de trabalho diferiu pouco dos de estudo: o direito era-me desconhecido.
Tive a sorte de ter por colega no tribunal Nercio Prisco, que concordou em
instruir-me e que permaneceu meu conselheiro legal e meu amigo at o dia de
sua morte. Ele pertencia a esse rarssimo tipo de esprito que, conhecendo a
fundo uma especialidade, vendo-a por assim dizer de dentro e de um ponto de
vista inacessvel aos leigos, conserva, todavia, o senso do seu valor relativo na
ordem das coisas, medindo-o em termos humanos. Mais versado na rotina da lei
que nenhum outro dos seus contemporneos, nunca hesitava perante inovaes
teis. Foi graas a ele que, mais tarde, consegui realizar certas reformas. Outros
trabalhos impuseram-se. Tendo conservado meu sotaque provinciano, meu
primeiro discurso no tribunal suscitou o riso geral. Decidi-me ento a freqentar
os atores, escandalizando minha famlia. Minhas lies de elocuo foram,
durante longos meses, a mais rdua e a mais deliciosa de minhas tarefas, e o
segredo mais bem guardado de toda a minha vida. A prpria devassido tornou-
se um estudo nesses anos difceis; procurava imitar em tudo a juventude dourada
de Roma, o que, alis, jamais consegui completamente. Por covardia prpria da
idade, cuja temeridade exclusivamente fsica gasta em outros lugares, eu s
ousava confiar em mim pela metade e, na esperana de assemelhar-me aos
outros, embotava ou aguava minha natureza.

Era pouco estimado. Alis, no havia nenhuma razo especial para que o fosse.
Certos traos de minha personalidade, por exemplo o gosto das artes, que
passavam despercebidos no estudante de Atenas e que seriam geralmente aceitos
no imperador, prejudicavam o oficial e o magistrado nos primeiros estgios da
autoridade. Meu helenismo provocava sorrisos, tanto mais porque eu ora o exibia,
ora o dissimulava desastradamente. No Senado, cognominaram-me o estudante
grego. Comeava a criar minha lenda, reflexo cintilante e bizarro, inspirado em
parte por nossas aes, em parte pelo que o vulgo pensa delas. Os cnicos
litigantes mandavam-me as mulheres como suas delegadas, assim que sabiam de
uma intriga minha com a esposa de um senador, ou o prprio filho, quando eu
alardeava loucamente minha paixo por algum jovem. Dava-me prazer
confundir essa gente com minha indiferena. Mais lastimveis ainda eram
aqueles que, para agradar-me, falavam de literatura. A tcnica que tive de
desenvolver nesses postos medocres serviu-me mais tarde nas minhas
audincias imperiais. Dedicar-me inteiramente a cada pessoa durante a breve
durao da audincia, pr de lado tudo o que no fosse aquele banqueiro, aquele
veterano, aquela viva; conceder a pessoas to diversas, embora encerradas
naturalmente em seus estreitos limites, toda a ateno polida que dispensamos a
ns mesmos nos melhores momentos, e v-las aproveitar quase infalivelmente
essa oportunidade para incharem como a r da fbula; enfim, consagrar alguns
momentos para pensar seriamente em seus problemas ou em seus negcios. Era
ainda como o gabinete do mdico. Nessas audincias eu colocava a nu terrveis
dios antigos; uma verdadeira lepra de mentiras. Maridos contra mulheres, pais
contra filhos, colaterais contra todo mundo; o pouco respeito que nutro
pessoalmente pela instituio da famlia no resistiu muito a isso.

No desprezo os homens. Se o fizesse, no teria o mnimo direito, nem a mnima


razo para tentar govern-los. Eu os reconheo vos, ignorantes, vidos,
inquietos, capazes de quase tudo para triunfarem, para se fazerem valer mesmo
aos seus prprios olhos, ou, muito simplesmente, para evitarem o sofrimento. Sei
muito bem: sou como eles, pelo menos momentaneamente, ou poderia ter sido.
Entre outrem e mim, as diferenas que percebo so por demais insignificantes
para contarem na edio final. Esforo-me, portanto, para que minha atitude se
afaste tanto da fria superioridade do filsofo quanto da arrogncia de um Csar.
O homem mais tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca
corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso dos escravos,
talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo seu ltimo pedao de po.
Existem poucos a quem no se possa ensinar convenientemente alguma coisa.
Nosso grande erro tentar encontrar em cada um, em particular, as virtudes que
ele no tem, negligenciando o cultivo daquelas que ele possui. Aplicarei aqui, na
busca dessas virtudes fragmentrias, o que disse acima sobre a procura da
beleza. Conheci seres infinitamente mais nobres, mais perfeitos do que eu
prprio, como teu pai Antonino. Convivi com bom nmero de heris e mesmo
com alguns sbios. Encontrei na maioria dos homens pouca consistncia no bem,
mas no maior no mal; sua desconfiana, sua indiferena mais ou menos hostil,
cedia quase depressa demais, quase vergonhosamente demais, transformando-se
com excessiva facilidade em gratido, em respeito, alis pouco durveis,
evidentemente. Seu prprio egosmo poderia ser aproveitado para fins teis.
Admiro-me sempre de que to poucos me tenham odiado; no tive seno dois ou
trs inimigos encarniados, por cuja inimizade, como sempre acontece, fui em
parte responsvel. Fui amado por alguns; estes me deram muito mais do que eu
tinha direito de exigir ou mesmo de esperar deles: algumas vezes, sua vida;
outras, sua morte. E o deus que eles trazem em si mesmos revela-se
freqentemente quando morrem.

S existe um ponto no qual me sinto superior ao comum dos homens: sou, ao


mesmo tempo, mais livre e mais submisso do que eles ousam ser. Quase todos
desconhecem igualmente sua exata liberdade e sua verdadeira servido.
Amaldioam seus grilhes, embora, s vezes, deles se vangloriem. Por outro
lado, seu tempo escoa-se em pequenos e inteis desregramentos; no sabem
tecer para si prprios o mais leve jugo. Por mim, aspirei mais liberdade do que
ao poder e, se o procurei, s o fiz porque ele a favorece. O que me interessava
no era uma filosofia de homem livre (todos aqueles que abordam esse tema
causaram-me imenso tdio), mas uma tcnica atravs da qual pretendia
alcanar o ponto em que nossa vontade se articula com o destino e onde a
disciplina secunda a natureza, em lugar de cont-la. preciso que compreendas
bem que no se trata aqui da inflexvel vontade do estico, cujo poder exageras,
nem de no sei que espcie de escolha ou de recusa abstrata que insulta nosso
mundo pleno, contnuo, formado de objetos e de corpos. Sonhei com uma
concordncia mais ntima, ou com uma boa vontade mais flexvel. A vida era
para mim como um cavalo, a cujos movimentos s nos unimos depois de hav-lo
adestrado com perfeio. Sendo tudo, em suma, uma deciso do esprito, mais
lenta e menos sensvel e que acarreta tambm a adeso do corpo, esforava-me
para atingir gradualmente esse estado quase puro de liberdade ou de submisso.
Para tanto, a ginstica ajudava-me, e a dialtica no me prejudicava. Comecei
por procurar uma espcie de liberdade de frias, constituda de pequenos
momentos livres. Toda vida bem-disciplinada os tem, e quem no sabe consegui-
los no sabe viver. A seguir, fui mais longe: idealizei uma liberdade simultnea,
na qual duas aes, dois estados seriam possveis concomitantemente; tomando
Csar como modelo, aprendi, por exemplo, a ditar vrios textos ao mesmo tempo
e a falar sem deixar de ler. Concebi um modo de vida no qual a tarefa mais
pesada poderia perfeitamente ser executada sem que me absorvesse nela por
inteiro; na verdade, ousei por vezes propor-me a eliminar at a sensao fsica da
fadiga. Em outros momentos, exercitava-me na prtica de uma liberdade de
alternativas: as emoes, as idias e os trabalhos deviam, a todo instante, ser
passveis de interrupo, podendo ser retomados em seguida. A certeza de poder
afast-los ou cham-los, tal como a outros tantos escravos, suprimia-lhes toda
probabilidade de tirania e, a mim, todo sentimento de servido. Fiz melhor ainda:
organizei todo um dia em torno de uma idia preferida que eu no mais
abandonava; tudo o que dela pudesse distrair-me ou desencorajar-me, os
projetos e os trabalhos de outra ordem, as palavras sem valor, os mil incidentes
dirios apoiavam-se nela como ramos de videira no fuste de uma coluna. Outras
vezes, ao contrrio, dividia as idias at o infinito: cada pensamento, cada fato
era por mim partido, seccionado em um nmero ilimitado de pensamentos ou de
fatos menores e, portanto, mais fceis de manipular. As resolues difceis de
tomar pulverizavam-se em decises minsculas, adotadas separadamente, uma
conduzindo outra, tornando-se, dessa maneira, fceis e inevitveis.

Mas foi ainda liberdade de aquiescncia a mais rdua de todas que me


apliquei mais rigorosamente. Eu queria o estado em que me encontrava; nos
meus anos de dependncia, minha sujeio perdia o que tinha de amargo, ou
mesmo de indigno, desde que eu aquiescesse em descobrir nela um exerccio
til. Escolhia o que eu tinha, com uma nica condio: possuir esse pouco
totalmente e desfrut-lo o mais intensamente possvel. Os trabalhos mais
enfadonhos eram por mim executados sem esforo, por pouco que me agradasse
dedicar-me a eles. Se alguma coisa me repugnava, eu a transformava em objeto
de estudo, forando-me a retirar dela algum motivo de alegria. Em face de uma
ocorrncia imprevista ou quase desesperada, de uma emboscada ou de uma
tempestade no mar, contanto que todas as providncias relativas aos outros
fossem tomadas, aplicava-me a festejar o acaso e a aproveitar o que ele me
trazia de inesperado, e a emboscada, assim como a tempestade, integravam-se,
sem qualquer choque, nos meus planos ou nos meus sonhos. Mesmo em meio a
meu pior desastre, vi o momento em que o esgotamento lhe subtraiu uma parte
do seu horror quando o tornei meu, concordando em aceit-lo. Se algum dia tiver
de submeter-me tortura e a doena sem dvida se encarregar disso , no
estou certo de manter por longo tempo a impassibilidade de um Trsea, mas terei
pelo menos o recurso de me resignar a meus prprios gritos. Foi dessa maneira,
com uma mistura de prudncia e audcia, de submisso e revolta
cuidadosamente calculada, de extrema exigncia e prudentes concesses, que
acabei finalmente por aceitar-me a mim mesmo.
A vida em Roma ter-me-ia certamente corrompido, gasto e amargurado caso se
prolongasse por mais tempo. O retorno ao exrcito salvou-me. A vida militar tem
tambm os seus compromissos, conquanto infinitamente mais simples. Partir
significava viajar, e eu o fiz com grande entusiasmo. Acabava de ser promovido
a tribuno da Segunda Legio Auxiliar: passei alguns meses de um outono
particularmente chuvoso s margens do alto Danbio, sem outro companheiro
alm de um volume de Plutarco recm-aparecido. Em novembro fui transferido
para a Quinta Legio Macednica, acantonada nessa poca (e ainda hoje) na
embocadura do mesmo rio, nas fronteiras da Mosia Inferior. A neve que
bloqueava as estradas impediu-me de viajar por terra. Embarquei em Pola,
tendo apenas tempo de visitar, de passagem, Atenas, onde mais tarde viveria
durante longo tempo. A notcia do assassinato de Domiciano, anunciada poucos
dias depois da minha chegada ao acampamento, no surpreendeu ningum, mas
a todos alegrou. Trajano foi imediatamente adotado por Nerva. A idade
avanada do novo prncipe fazia dessa sucesso uma questo de alguns meses no
mximo. A poltica de conquistas na qual era sabido que meu primo engajaria
Roma, os reagrupamentos de tropas que comeavam a efetuar-se, o rigor
progressivo da disciplina mantinham o exrcito em estado de efervescncia e
expectativa. As legies danubianas funcionavam com a preciso de uma
mquina de guerra recm-lubrificada e em nada se assemelhavam s
guarnies sonolentas que eu havia conhecido na Espanha. Um detalhe
importante: a ateno dos militares deixara de se concentrar nas disputas
palacianas para se dedicar aos negcios exteriores do imprio; nossas tropas no
se reduziam mais a um abando de beleguins prontos a aclamar ou a degolar
qualquer um. Os oficiais mais inteligentes esforavam-se por distinguir um plano
geral nessas reorganizaes em que tomavam parte, preocupando-se com o
futuro, e no somente com o seu prprio futuro. Alis, trocavam no poucos
comentrios ridculos acerca desses acontecimentos, no primeiro estgio de
crescimento. noite, planos estratgicos, to gratuitos quanto ineptos, cobriam a
superfcie das mesas. O patriotismo romano e a f inquebrantvel nos benefcios
da nossa autoridade e na misso de Roma de governar os povos assumiam nesses
profissionais da guerra formas brutais a que eu ainda no me habituara. Nas
fronteiras, onde precisamente teria sido necessria, pelo menos
momentaneamente, muita habilidade para conciliar certos chefes nmades, o
soldado eclipsava completamente o homem de Estado. Os servios impostos e as
requisies de gneros davam lugar a abusos que no surpreendiam ningum.
Graas s perptuas divises dos brbaros, a situao no nordeste era, em suma,
to favorvel quanto poderia ser: duvido mesmo que s guerras que se seguiram
tenham ali melhorado qualquer coisa. Os incidentes nas fronteiras causavam-nos
perdas pouco numerosas, que eram inquietantes apenas por serem contnuas;
reconheamos que o permanente Quem vem l? servia pelo menos para
estimular o esprito militar. Todavia, eu estava persuadido de que menores
despesas, aliadas ao exerccio de uma atividade mental um pouco mais ampla,
teriam sido suficientes para submeter certos chefes e conciliar outros. Em vista
disso, decidi consagrar-me sobretudo a essa ltima misso, por tantos
negligenciada.

Impelia-me minha paixo pelas mudanas: agradava-me conviver com os


brbaros. O vasto territrio situado entre a embocadura do Danbio e a do
Borstenes, tringulo do qual percorri pelo menos dois lados, figura entre as
regies mais surpreendentes do mundo, pelo menos para ns, homens nascidos
nas costas do mar Interior, habituados s paisagens puras e secas do sul, s
colinas e s pennsulas. Aconteceu-me ali adorar a deusa Terra tal como aqui
adoramos a deusa Roma. No me refiro a Ceres, mas a uma divindade mais
antiga, anterior mesmo inveno das colheitas. Nosso solo, grego ou latino,
sustentado em toda parte pela ossatura dos rochedos, possui a elegncia pura de
um corpo macho; a terra cita tinha a abundncia um pouco pesada de um corpo
de mulher estendido languidamente. A plancie s terminava no cu. Eu vivia em
permanente admirao diante do milagre dos rios: aquela vasta terra vazia no
era para eles mais que um declive e um leito. O curso dos nossos rios pouco
extenso: olhando-os, nossa sensao de estarmos sempre prximo das
nascentes. Mas o enorme escoadouro, que ali terminava em confusos esturios,
arrastava todo o lodo de um continente desconhecido e todo o gelo de regies
inabitadas. O frio de um alto planalto da Espanha no perde para nenhum outro.
Era, porm, a primeira vez que me encontrava face a face com o verdadeiro
inverno, que em nosso pas s faz breves aparies, mas que ali se instala por
longos perodos, meses inteiros, e que, mais ao norte, imaginamos imutvel, sem
princpio nem fim. Ao entardecer da minha chegada ao acampamento, o
Danbio era uma imensa esteira de neve vermelha, que empalidecia logo depois
para tornar-se azulada. Sulcado pelo trabalho interior das correntes, apresentava
estrias to profundas como as marcas deixadas pelas rodas de um carro. Ns nos
protegamos do frio usando pesados casacos de peles. A presena desse inimigo
impessoal, quase abstrato, causava-nos exaltao indescritvel e crescente
sensao de energia. Lutvamos para conservar o prprio calor, assim como em
outros lugares o fizramos para conservar a coragem. Em certos dias, a neve
fazia desaparecer sobre a estepe todos os acidentes do terreno, de resto pouco
sensveis. Galopvamos ento num mundo de espaos e de tomos puros. O gelo
imprimia s coisas mais banais ou mais inexpressivas certa transparncia e, ao
mesmo tempo, certa solidez celeste. Um canio partido transformava-se em
flauta de cristal. Ao crepsculo, Assar, meu guia caucasiano, fendia o gelo para
matar a sede dos cavalos. Esses animais eram, alis, um dos nossos mais
eficientes pontos de contato com os brbaros: uma espcie de amizade
estabelecia-se com base em ajustes e discusses infindveis, e no respeito mtuo
motivado por alguma proeza eqestre. noite, as fogueiras do acampamento
iluminavam os saltos extraordinrios dos danarinos de cintura delgada e faziam
luzir seus extravagantes braceletes de ouro.
Muitas vezes, na primavera, quando o degelo permitia aventurar-me mais longe
pelas regies do interior, aconteceu-me voltar as costas ao horizonte do sul, que
abrangia os mares e as ilhas conhecidas, e ao do oeste, onde em algum lugar o
sol se punha sobre Roma. Nesses momentos, desejava penetrar mais longe
naquelas estepes, ou para alm dos contrafortes do Cucaso, em direo ao
norte, ou para a parte mais longnqua da sia. Quantos climas, faunas e raas
humanas teria descoberto! Quantos imprios to ignorantes de ns quanto ns
ignoramos a eles, ou que nos conhecem quando muito graas a algumas
mercadorias transportadas at eles por uma longa sucesso de mercadores, e to
raras para eles quanto a pimenta da ndia e o mbar das regies blticas o so
para ns! Em Odessa, um negociante, recm-chegado de uma viagem de muitos
anos, fez-me presente de uma pedra verde, semitransparente, que segundo
consta substncia sagrada num vasto reino de que ele conhecia toda a costa
sem interessar-se por seus costumes e deuses, de tal forma se achava obsedado
pelos proventos materiais. Essa gema fantstica provocou em mim o efeito de
uma pedra cada do cu, meteoro de outro mundo. Conhecemos bastante mal a
configurao da Terra. A tamanha ignorncia, no compreendo que algum se
resigne. Invejo aqueles que um dia faro a volta dos duzentos e cinqenta mil
estdios gregos, to bem calculados por Eratstenes, cujo percurso nos levar de
volta ao ponto de partida. Procurava imaginar-me tomando a simples deciso de
continuar a andar sempre para a frente pelos caminhos que j comeavam a
substituir as estradas. Brincava com essa idia Ser s, sem bens, sem prestgio,
sem nenhum dos benefcios de uma cultura, expor-me a um ambiente de
homens novos, por entre riscos nunca experimentados evidente que tudo isso
no passava de um sonho, o mais breve dos sonhos. A liberdade que eu idealizava
s existia distncia; bem depressa teria recriado tudo a que acabava de
renunciar. E mais: em todos esses lugares, fui provavelmente apenas um romano
ausente de Roma. Uma espcie de cordo umbilical prendia-me cidade.
possvel que naquela poca, no posto de tribuno, eu me sentisse ainda mais
estreitamente ligado ao Imprio do que agora, como seu imperador, da mesma
forma que o osso do punho menos livre do que o crebro. Contudo, esse sonho
fabuloso, que teria feito estremecer os nossos antepassados prudentemente
confinados em sua terra do Lcio, eu o sonhei e, por hav-lo sonhado, embora
por um instante, tornei-me para sempre diferente de todos eles.
Trajano estava frente das tropas na Germnia Inferior. O exrcito do Danbio
enviou-me como emissrio de suas felicitaes ao novo herdeiro do Imprio. Eu
estava a trs dias de marcha de Colnia, em plena Glia, quando, na etapa da
noite, me foi anunciada a morte de Nerva. Seduziu-me a possibilidade de tomar a
dianteira do correio imperial e levar pessoalmente a meu primo a notcia de sua
ascenso ao trono. Parti a galope e percorri o caminho sem parar em nenhum
lugar, salvo em Treves, onde meu cunhado Serviano residia na qualidade de
governador. Ceamos juntos. A cabea tonta de Serviano estava cheia de fumaas
imperiais. Esse homem ardiloso, que procurava prejudicar-me ou pelo menos
impedir-me de agradar, tratou de me anteceder, enviando seu prprio correio a
Trajano. Duas horas mais tarde, fui atacado no vau de um rio. Os assaltantes
feriram meu ordenana e mataram meus cavalos. Conseguimos, apesar disso,
agarrar um dos agressores, antigo escravo do meu cunhado, que confessou tudo.
Serviano devia ter compreendido que no se impede facilmente um homem
decidido de continuar seu caminho, a no ser que se v at o assassinato, hiptese
diante da qual sua covardia recuava. Tive de percorrer a p vinte quilmetros
antes de encontrar um campons que me vendeu seu cavalo. Cheguei na mesma
noite a Colnia, antecedendo por algumas horas o correio do meu cunhado. Essa
aventura fez sucesso, o que me valeu excelente acolhida por parte do exrcito.
Quanto ao imperador, conservou-me junto de si na qualidade de tribuno da
Segunda Legio Fiel.

Recebeu a notcia de sua ascenso ao poder com uma naturalidade admirvel.


H longo tempo a aguardava. Em vista disso, seus projetos no sofreram
nenhuma alterao. Permaneceu o que sempre fora e o que seria at o dia de
sua morte, um chefe militar. Sua virtude consistia em ter adquirido, graas a uma
concepo tipicamente militar de disciplina, uma noo de tudo o que significa
ordem no Estado. Pelo menos no comeo, tudo girava em torno dessa idia, at
mesmo seus planos de guerra e seus projetos de conquista. Imperador-soldado,
mas nunca soldado-imperador. Sua vida no mudou em coisa alguma; era
modesto, sem afetao e sem arrogncia. Enquanto o exrcito se regozijava, ele
aceitava suas novas responsabilidades como uma parte do trabalho cotidiano. Aos
ntimos, deixava entrever um contentamento cheio de simplicidade.

Eu lhe inspirava pouqussima confiana. Sendo meu primo, vinte e quatro anos
mais velho do que eu, aps a morte do meu pai tornou-se meu co-tutor.
Desempenhava suas obrigaes de famlia com uma seriedade provinciana;
estava to pronto a fazer o impossvel para promover-me, se me mostrasse
digno, quanto para me tratar com maior rigor do que a qualquer outro, se me
mostrasse incompetente. Tinha encarado as minhas loucuras de rapaz com
indignao que no era inteiramente injustificada, indignao que, de resto, no
se encontra em parte alguma, a no ser na famlia. Minhas dvidas o
escandalizavam, alis, muito mais do que meus desatinos. Outras particularidades
minhas o inquietavam: inculto, ele nutria pelos filsofos e literatos um respeito
tocante, mas uma coisa admirar de longe os grandes filsofos, e outra ter ao
seu lado um jovem primeiro-tenente demasiado impregnado de literatura.
Ignorando onde se situavam meus princpios, desconhecendo meus limites e
meus freios, supunha-me desprovido de fora interior e inclusive de recursos
contra mim mesmo. Ainda bem que eu jamais havia cometido o erro de
negligenciar o servio. Minha reputao de oficial o tranqilizava, se bem que
no fosse para ele mais do que um jovem tribuno cheio de futuro a quem se deve
vigiar de perto.

No tardou que um incidente de minha vida privada quase acarretasse minha


perda. Conquistado por um belo rosto, liguei-me apaixonadamente a um jovem
que o imperador tambm havia notado. A aventura era perigosa, e saboreada
como tal. Um certo Galo, secretrio de Trajano, que h muito tempo tomara por
obrigao inform-lo sobre minhas dvidas, denunciou-nos ao imperador. Sua
irritao foi terrvel, e tive que passar um mau pedao. Alguns amigos comuns,
Aclio Atiano entre outros, fizeram o possvel para impedi-lo de se obstinar num
rancor demasiado ridculo. Acabou por ceder s suas instncias e a
reconciliao, a princpio pouco sincera de ambas as partes, foi mais humilhante
para mim do que as passadas cenas de clera. Confesso ter conservado por esse
Galo um dio ilimitado. Muitos anos mais tarde, foi reconhecido culpado de
falsificao de escrituras pblicas. Com prazer senti-me vingado.

A primeira expedio contra os dcios foi desfechada no ano seguinte. Por gosto
e por poltica, sempre me opus ao partido da guerra, mas teria sido menos do que
um homem se esses grandes feitos de Trajano no me houvessem entusiasmado.
Vistos em conjunto e distncia, esses anos de guerra contam-se entre os mais
felizes de minha vida. Seu incio foi duro, ou assim me pareceu. S ocupei a
princpio postos secundrios; ainda no conquistara inteiramente a benevolncia
de Trajano. Mas, como eu conhecia o pas, sabia-me til. Quase sem dar por
isso, inverno aps inverno, acampamento aps acampamento, batalha aps
batalha, via crescer em mim objees poltica do imperador. Nessa poca no
tinha nem o dever nem o direito de fazer tais objees em voz alta. Alis, se as
fizesse, ningum me teria escutado. Colocado mais ou menos distncia, no
quinto ou talvez dcimo lugar, conhecia tanto melhor minhas tropas quanto mais
partilhava de suas vidas. Possua ainda certa liberdade de ao ou, antes, certo
desinteresse em relao prpria ao, difcil de ser mantido quando se chega
ao poder e depois dos trinta anos. Tinha vantagens bem pessoais: meu gosto por
aquele pas rude, minha paixo por todas as formas voluntrias, alis
intermitentes, de desprendimento e austeridade. Era talvez o nico dos jovens
oficiais a no lamentar estar longe de Roma. Quanto mais os anos de campanha
se prolongavam na lama e na neve, tanto maior era minha resistncia.

Vivi ento toda uma poca de exaltao extraordinria, devida em parte a um


pequeno grupo de primeiros-tenentes que me cercavam e que haviam trazido
estranhos deuses das mais longnquas guarnies da sia. O culto de Mitra, ento
menos difundido do que aps nossas expedies junto aos partos, conquistou-me
momentaneamente pelas exigncias do seu rduo asceticismo, que retesava
durante o arco da vontade, e pela obsesso da morte, das armas e do sangue, que
elevava a aspereza banal das nossas vidas de soldado categoria de definio do
mundo. Nada poderia contradizer mais a opinio que eu comeava a formar
sobre a guerra, mas esses ritos brbaros, que criam entre seus filiados liamas
para a vida e para a morte, lisonjeavam os sonhos mais ntimos de um jovem
impaciente do presente, incerto quanto ao futuro e, conseqentemente, capaz de
grande receptividade para compreender os deuses. Fui iniciado numa pequena
torre de madeira e de canios s margens do Danbio, sob a responsabilidade de
Mrcio Turbo, meu companheiro de armas. Lembro-me de que o peso do touro
agonizante ameaou fazer desabar o soalho de grades sob o qual me encontrava
para receber a asperso sangrenta. Mais tarde, refleti nos riscos que essas
sociedades secretas podiam representar para o Estado sob o governo de um
prncipe fraco, e acabei por agir com rigor contra elas. Confesso, porm, que em
presena do inimigo elas transmitem a seus adeptos uma fora quase divina.
Cada um de ns acreditava escapar aos estreitos limites de sua condio humana,
sentindo-se simultaneamente ele mesmo e o adversrio, integrado a um deus,
no sabendo j se morria sob forma bestial ou se matava sob ..forma humana.
Esses sonhos bizarros, que hoje me atemorizam, no diferiam inteiramente das
teorias de Herclito sobre a identidade do arco e do alvo. Naquela poca, eles me
ajudaram a suportar a vida. A vitria e a derrota se misturavam e se confundiam,
como raios diferentes de um mesmo dia solar. Os soldados da infantaria dcia,
que eu esmagava sob os cascos do meu cavalo, os cavaleiros srmatas abatidos
mais tarde em lutas corpo a corpo, em que nossas montarias empinadas se
mordiam no peito, eu os atacava mais facilmente quando com eles me
identificava. Abandonado num campo de batalha, meu corpo despojado de suas
vestes pouco diferiria do deles. O choque do ltimo golpe de espada teria sido
idntico. Acabo de revelar-te aqui pensamentos extraordinrios que figuram
entre os mais secretos de minha vida, e uma estranha embriaguez, que nunca
mais experimentei exatamente sob essa forma.

Certo nmero de aes brilhantes, que no teriam sido notadas num simples
soldado, deram-me fama em Roma e uma espcie de glria no exrcito. Porm,
a maior parte de minhas pretensas faanhas no passou de simples bravatas
inteis. Nelas descubro hoje, com alguma vergonha, um desejo baixo de agradar
a todo custo e de atrair a ateno sobre mim, tudo isso de mistura com a
exaltao quase sagrada de que te falava ainda h pouco. Foi assim que, num dia
de outono, atravessei a cavalo o Danbio engrossado pelas chuvas, carregado
com o pesado equipamento dos soldados batavos. Nesse feito de armas, se assim
se lhe pode chamar, minha montaria teve mais mrito do que eu. Contudo, esse
perodo de loucuras hericas ensinou-me a distinguir os diversos aspectos da
coragem. A bravura que eu teria desejado possuir devia ser fria, indiferente,
isenta de toda excitao fsica e impassvel como a equanimidade de um deus.
Esta, no posso vangloriar-me de jamais t-la atingido. A contrafao de que me
utilizei mais tarde no passava, nos meus dias maus, de uma forma cnica de
indiferena pela vida; nos bons, era apenas o sentimento do dever a que me
aferrava. Mas, por pouco que o perigo durasse, bem depressa o cinismo ou o
sentimento do dever cediam lugar a um delrio de intrepidez, espcie de estranho
orgasmo do homem unido a seu destino. Naquela idade, essa coragem
embriagadora persistia sem interrupes. Um ser brio de vida no prev a
morte; ela no existe; ele a nega em cada uma de suas atitudes. Se a recebe
provavelmente sem o saber; a morte para ele apenas um choque ou um
espasmo. Sorrio amargamente ao dizer a mim mesmo que, hoje, a cada dois
pensamentos, um consagrado a meu prprio fim, como se fossem necessrios
tantos preparativos para decidir este corpo gasto a enfrentar o inevitvel. Naquela
poca, ao contrrio, um homem jovem, que teria tanto a perder se no vivesse
alguns anos mais, alegremente arriscava todos os dias seu futuro.

Seria fcil dispor os dados precedentes como a histria de um soldado demasiado


letrado que pretende fazer-se perdoar pelos seus livros. Essas perspectivas
simplificadas so falsas. Personagens diversas viviam em mim alternadamente,
nenhum por muito tempo, e o tirano cado recuperava logo o poder. Eu abrigava
assim o oficial meticuloso, fantico por disciplina, mas que partilhava
alegremente com seus homens as privaes da guerra; o melanclico visionrio
dos deuses; o amante capaz de tudo por um momento de vertigem; o jovem e
altivo primeiro-tenente que se retira para sua tenda, estuda os mapas luz de um
candeeiro e no esconde aos amigos seu desprezo pela maneira como anda o
mundo; e, enfim, o futuro homem de Estado. No esqueamos, porm, o ignbil
complacente que, para no desagradar, consentia em embriagar-se mesa
imperial; o homenzinho ainda jovem pronto a resolver todas as questes do alto
de uma segurana ridcula; o frvolo e belo conversa-dor capaz de, por um bom
dito, perder um bom amigo; o soldado que cumpre com preciso maquinai suas
baixas tarefas de gladiador. E mencionemos tambm esse personagem vago,
sem nome, sem lugar na histria mas to eu mesmo quanto todos os outros,
simples joguete das coisas, nem mais nem menos do que um corpo estendido
sobre o leito de campanha, distrado por um perfume, ocupado a respirar,
vagamente atento a algum eterno zumbido de abelha. Contudo, pouco a pouco,
outro recm-chegado entrava em funo, um chefe de grupo, um diretor de
cena. Conhecia o nome dos meus atores, marcava suas provveis entradas e
sadas, cortava as rplicas inteis, evitava gradualmente os efeitos vulgares.
Aprendia, enfim, a no abusar do monlogo. Com o decorrer do tempo, meus
atos me formavam.

Meus xitos militares me teriam valido a inimizade de um homem que no


possusse a envergadura de Trajano. A coragem, entretanto, era a nica
linguagem que ele compreendia imediatamente, e a nica cujas palavras
penetravam diretamente no seu corao. Trajano acabou por ver em mim um
desdobramento de si mesmo, quase um filho, e coisa alguma do que sucedeu
mais tarde pde separar-nos completamente. Pelo meu lado, certas objees
nascentes sobre seus pontos de vista foram, pelo menos momentaneamente,
postas de parte, esquecidas em presena do gnio admirvel que ele desenvolvia
no exrcito. Sempre gostei de ver trabalhar um grande especialista. No seu
mister, o imperador era de uma habilidade e de uma firmeza sem iguais.
Colocado frente da Legio Minerviana, a mais gloriosa de todas, fui designado
para destruir os ltimos redutos do inimigo na regio das Portas de Ferro.
Terminado o cerco da cidadela de Sarmizegetusa, entrei aps o imperador na
sala subterrnea onde os conselheiros do rei Decbalo acabavam de se
envenenar durante um ltimo banquete. Fui encarregado por ele de cremar o
estranho amontoado de homens mortos. Na mesma noite, sobre as escarpas do
campo de batalha, Trajano passou para meu dedo o anel de diamantes que ele
recebera de Nerva e que representava, de certa forma, o penhor da sucesso ao
poder. Nessa noite, adormeci contente.
Uma popularidade nascente imprimiu minha segunda permanncia em Roma
alguma coisa do sentimento de euforia que viria a experimentar mais tarde em
grau muito mais intenso, durante meus anos de felicidade. Trajano presenteara-
me com dois milhes de sestrcios, destinados s liberalidades para com o povo,
o que naturalmente no bastava; por esse tempo, contudo, eu geria pessoalmente
minha fortuna, que era considervel, e as preocupaes de dinheiro deixaram de
me atingir. Havia perdido, em grande parte, meu ignbil medo de desagradar.
Uma cicatriz no queixo forneceu-me bom pretexto para usar a pequena barba
dos filsofos gregos. Introduzi na minha indumentria uma simplicidade que
continuei a exagerar na poca imperial: meu tempo de braceletes e perfumes
havia passado. Pouco importa que essa simplicidade fosse, por sua vez, uma
pose. Lentamente me habituava ao desprendimento por si mesmo e ao contraste,
que cultivei mais tarde, entre uma coleo de pedras preciosas e as mos nuas do
colecionador. Para ficar no captulo da indumentria, reporto-me a um incidente
que foi considerado portador de pressgios e que ocorreu durante o ano em que
servi na qualidade de tribuno do povo. Certo dia em que devia falar em pblico,
por um tempo horrvel, perdi meu manto de chuva feito de grossa l gaulesa.
Obrigado a pronunciar meu discurso com uma toga em cujas dobras a gua
escorria como numa goteira, passava e tornava a passar continuamente a mo na
fronte, tentando limpar a chuva que me inundava os olhos. Resfriar-se em Roma
privilgio do imperador, j que lhe proibido, seja qual for o tempo,
acrescentar qualquer complemento toga: a partir desse dia, a vendedora da
esquina e o negociante de melancias acreditaram na minha boa fortuna.

Falamos muito nos sonhos da juventude. Esquecemos, talvez demasiado, os


clculos. Clculos so tambm sonhos, e no menos loucos do que estes. No era
o nico calculista durante esse perodo de festas romanas: toda a armada se
precipitava na corrida s honrarias. Desempenhei com bastante alegria um papel
de ambicioso que no conseguia representar com convico durante muito
tempo, nem sem o constante apoio de um ponto. Aceitei cumprir com sensata
meticulosidade a aborrecida funo de curador dos atos do Senado, onde soube
prestar todos os servios teis. O estilo lacnico do imperador, admirvel no
exrcito, era insuficiente em Roma. A imperatriz, cujas preferncias literrias
coincidiam com as minhas, persuadiu-o a me deixar preparar seus discursos. Foi
o primeiro dos bons ofcios que fiquei devendo a Pio tina. Meu sucesso foi tanto
maior porque estava habituado a esse gnero de favores. Nos meus comeos
difceis, redigira muitas vezes, para senadores curtos de idias e com poucos
conhecimentos de oratria, discursos de que acabavam por se acreditar os
autores. Ao trabalhar assim para Trajano, sentia um prazer muito semelhante
quele que os exerccios de retrica me haviam proporcionado na adolescncia;
sozinho no meu quarto, ensaiando efeitos diante de um espelho, sentia-me
imperador. Na verdade, aprendia a s-lo. Audcias de que no me teria julgado
capaz tornavam-se fceis quando a outro cabia endoss-las. O pensamento do
imperador, simples mas inarticulado, e por isso mesmo obscuro, se me tornou
familiar. Orgulhava-me de conhecer seu pensamento melhor do que ele prprio.
Era apaixonante imitar o estilo militar do chefe e ouvi-lo no Senado pronunciar
frases que lhe pareciam peculiares, e pelas quais eu era o nico responsvel. Em
outras ocasies, estando Trajano preso ao leito, fui encarregado de ler os
discursos de que ele ento j no tomava conhecimento. Minha enunciao
impecvel fazia honra s aulas do ator trgico Olimpos.

Essas funes quase secretas valiam-me a intimidade do imperador e at mesmo


sua confiana. Estranho que, a despeito disso, a antiga antipatia persistia.
Cedera momentaneamente ao prazer que um velho prncipe experimenta ao ver
um jovem do seu sangue iniciar uma carreira que ele imagina, um pouco
ingenuamente, que dar seqncia sua. Mas esse entusiasmo no teria, talvez,
inchado tanto nos campos de batalha de Sarmizegetusa, se no tivesse havido
enfim um entendimento, aps tantas camadas superpostas de velha desconfiana.
Acredito ainda que deveria existir em tudo isso alguma coisa alm da simples e
inextirpvel animosidade, baseada em questes dificilmente conciliveis em
diferenas de temperamento ou, simplesmente, nos hbitos de esprito de um
homem que envelhece. Por instinto, o imperador detestava os subalternos
indispensveis. Teria compreendido melhor, de minha parte, uma mistura de zelo
e de irregularidade no servio; eu lhe parecia quase suspeito fora de ser
tecnicamente irrepreensvel. Isso ficou bem patente quando a imperatriz julgou
servir a minha carreira, arranjando-me o casamento com a sobrinha-neta de
Trajano. Ele ops-se obstinadamente a esse projeto, alegando minha falta de
virtudes domsticas, a extrema juventude da adolescente e at minhas remotas
histrias de dvidas. A imperatriz obstinou-se. Eu prprio persisti no jogo: naquela
idade Sabina no era de todo desprovida de encantos. Esse casamento,
temperado por uma ausncia quase contnua, constituiu para mim no decorrer do
tempo uma tal fonte de irritao e aborrecimentos, que me custa lembrar o fato
de ter sido um triunfo para um ambicioso jovem de vinte e oito anos.

Eu era, mais do que nunca, da famlia, e nela fui mais ou menos forado a viver.
Tudo, porm, me desagradava nesse ambiente, exceto o belo rosto de Plotina. Os
conterrneos espanhis e os primos da provncia abundavam mesa imperial, tal
como os reencontrei mais tarde nos jantares de minha mulher, durante minhas
raras permanncias em Roma. No direi que ento os achei envelhecidos
porque, j naquela poca, toda essa gente parecia centenria. Exalava-se deles
uma espessa circunspeco, espcie de prudncia ranosa. Quase toda a vida do
imperador fora passada no exrcito; ele conhecia Roma infinitamente menos do
que eu. Empenhava-se, porm, com incomparvel boa vontade em rodear-se de
tudo quanto a cidade lhe oferecia de melhor, ou que lhe apresentavam como tal.
O mundo oficial que o cercava compunha-se de homens admirveis em
decncia e honorabilidade, mas de cultura um tanto pesada e cuja filosofia
demasiado dbil no atingia o fundo das coisas. Jamais apreciei a afabilidade
afetada de Plnio. O sublime aprumo de Tcito parecia-me um ponto de vista de
republicano reacionrio, estagnado desde a poca da morte de Csar. Os
elementos no oficiais eram de grosseria repulsiva, o que me levou a evitar os
riscos dessa convivncia. Entretanto, mantive, para com essas pessoas to
diferentes, a polidez indispensvel. Fui deferente para com uns, malevel para
com outros, acanalhado se preciso, e sempre, mas no excessivamente, hbil.
Minha versatilidade era-me necessria; multiplicava-me por clculo, era
ondulante por jogo. Caminhava sobre a corda bamba. No era somente das aulas
de ator que eu precisava, mas das de um acrobata.
Reprovavam-me, nessa altura, alguns adultrios com jovens patrcias. Duas ou
trs dessas ligaes to criticadas duraram aproximadamente at o incio do meu
principado. Roma, to indulgente para com a devassido, jamais admitiu o amor
quando envolvia seus governantes. Marco Antnio e Tito souberam bem o que
significava isso! Minhas aventuras eram mais modestas, mas no vejo como, nos
nossos costumes, um homem a quem as cortess desagradavam profundamente,
e para quem o casamento j se tornara insuportvel, poderia encontrar outra
maneira de se familiarizar com o mundo variado das mulheres. Encabeados
pelo intolervel Serviano, meu idoso cunhado, que sendo trinta anos mais
velho do que eu exercia sobre mim os cuidados de preceptor e os de espio,
meus inimigos pretendiam que a ambio e a curiosidade desempenhavam papel
mais importante nos meus amores do que o prprio amor, que a intimidade com
as esposas me introduzia, pouco a pouco, nos segredos polticos dos maridos, e
que as confidencias das minhas amantes substituam para mim os relatrios da
polcia com os quais me deliciei mais tarde. certo que qualquer ligao um
tanto longa me proporcionava quase inevitavelmente a amizade de um esposo
gordo ou dbil, afetado ou tmido e, quase sempre, cego. Mas geralmente essas
amizades me proporcionavam tambm pouco prazer e nenhum proveito. Devo
inclusive confessar que certas informaes indiscretas das minhas amantes,
sussurradas no leito, acabavam por despertar em mim certa simpatia por aqueles
maridos to escarnecidos e to mal compreendidos. Essas ligaes, agradveis
quando as mulheres eram hbeis, tornavam-se perturbadoras quando eram belas.
Estudava as artes; familiarizava-me com as esttuas e aprendia a conhecer
melhor a Vnus de Cnido ou a Leda trmula sob o peso do cisne. Era o mundo de
Tibulo e de Proprcio: uma melancolia, um ardor um pouco artificial, mas
persistente como uma melodia maneira frgia; eram beijos sob escadas
secretas, echarpes esvoaantes sobre seios, partidas ao romper da aurora e
guirlandas de flores cadas no umbral das portas.

Ignorava quase tudo dessas mulheres; a parte que entregavam das suas vidas
cabia entre duas portas entreabertas. Seu amor, do qual falavam sem cessar,
parecia-me por vezes to leve como uma de suas guirlandas, como uma jia da
moda, um ornamento caro e frgil. Imaginava-as ataviando-se com sua paixo,
tal como usavam o carmim ou colocavam seus colares. Minha vida ntima no
lhes era menos misteriosa; no desejavam sequer conhec-la, preferindo
fantasi-la segundo a imaginao. Acabei por compreender que o esprito do
jogo exigia esses perptuos disfarces, esses excessos nas confidencias e nas
queixas, esse prazer ora aparente, ora dissimulado, esses encontros planejados
como os passos de uma dana. Mesmo nas disputas, esperavam de mim uma
rplica antecipadamente calculada, e a bela mulher desfeita em lgrimas torcia
as mos como num palco.
Tenho pensado freqentemente que os amantes apaixonados pelas mulheres se
prendem ao tempo e aos acessrios do culto tanto, pelo menos, quanto sua
prpria deusa. Deleitam-se com os dedos tintos pela hena vermelha, com os
perfumes na pele, com os mil artifcios que realam a beleza e, por vezes,
fabricam-na por completo. Esses ternos dolos diferem em tudo das grandes
fmeas brbaras ou das nossas camponesas pesadas e graves; nascem das
volutas douradas das nossas grandes cidades, dos cubculos dos tintureiros ou do
vapor mido das estufas, assim como Vnus das ondas dos mares gregos.
Dificilmente se poderia dissoci-las da doura febril de certas noites da
Antiquia, da excitao das manhs de Roma, dos nomes famosos que usavam,
do ambiente de luxo em que o maior requinte era mostrarem-se nuas, mas
jamais sem seus adereos. Eu teria ambicionado muito mais: queria a criatura
humana despojada de tudo, sozinha consigo mesma, como teria sido foroso que
estivesse algumas vezes na doena, ou depois da morte do primeiro filho recm-
nascido, ou frente a uma primeira ruga no espelho. Um homem que l, pensa ou
calcula, pertence espcie e no ao sexo; nos seus melhores momentos ele
escapa inclusive ao humano. No entanto, minhas amantes pareciam vangloriar-
se de s pensar como mulheres: o esprito ou a alma que eu buscava ainda no
era mais que um perfume.

Contudo, ali devia existir alguma coisa mais. Como uma personagem de comdia
que aguardasse o momento propcio dissimulado atrs de um reposteiro, eu
espreitava com curiosidade os rumores de um interior desconhecido, o som
peculiar das tagarelices femininas, a exploso de clera ou de risos, os
murmrios de uma intimidade, tudo o que cessava quando sabiam de minha
presena. As crianas, a eterna preocupao com o vesturio, os problemas de
dinheiro deviam reassumir na minha ausncia uma importncia que me
ocultavam; o prprio marido, to escarnecido, tornava-se essencial, talvez
amado. Comparava minhas amantes fisionomia desagradvel das mulheres da
minha famlia, as econmicas e as ambiciosas, incessantemente ocupadas na
apurao das contas domsticas, ou em supervisionar a limpeza dos bustos dos
antepassados; perguntava a mim mesmo se aquelas frias matronas, por sua vez,
estreitavam um amante em seus braos sob o cara-mancho do jardim, e se
minhas fceis beldades no esperariam apenas minha partida para
recomearem suas discusses com o mordomo. Bem ou mal, procurava juntar
aquelas duas faces do universo das mulheres.

No ano passado, pouco depois da conspirao na qual Serviano acabou por


perder a vida, uma das minhas antigas amantes deu-se ao incmodo de vir Vila
para me denunciar um dos seus genros. No dei importncia acusao, que
tanto podia inspirar-se num dio de sogra quanto no desejo de me ser til. Mas a
conversa interessava-me: tratava-se apenas, como outrora no tribunal de
heranas, de testamentos, maquinaes tenebrosas entre parentes, casamentos
inesperados ou infelizes. Reencontrava o crculo estreito das mulheres, seu duro
senso prtico e seu cu cinzento a partir do momento em que o amor acaba.
Certas amarguras, uma espcie de spera lealdade, recordavam-me minha
desagradvel Sabina. As feies da minha visitante pareciam achatadas,
esbatidas, como se a mo do tempo houvesse passado e repassado brutalmente
sobre uma mscara de cera mole; aquilo que eu aceitara, por um momento,
como beleza nunca fora mais que a flor efmera da juventude. Mas o artifcio
ainda subsistia: a face enrugada tentava desajeitadamente utilizar-se do sorriso.
As recordaes voluptuosas, se alguma vez existiram, estavam completamente
apagadas para mim; restava apenas uma troca de frases amveis com uma
criatura marcada, como eu, pela doena ou pela idade, a mesma boa vontade
irritada que eu teria manifestado para com uma velha prima da Espanha, uma
parenta afastada chegada de Narbona.

Esforo-me por recuperar por um instante os anis de fumaa, as bolhas de ar


irisadas de uma brincadeira de criana. Mas to fcil esquecer! Tantas coisas
se passaram depois desses amores ligeiros, de que agora no reconheo nem
mesmo o sabor! Agrada-me sobretudo negar que alguma vez me tenham feito
sofrer. E, no entanto, entre tantas amantes, pelo menos uma existiu que amei
deliciosamente. Era ao mesmo tempo mais fina e mais firme, mais terna e mais
dura do que as outras: seu dorso franzino e redondo fazia pensar na flexibilidade
de um canio. Sempre admirei a beleza dos cabelos, essa parte sedosa e
ondulante de um corpo, mas as cabeleiras da maior parte de nossas mulheres so
torres, labirintos, barcos ou ninhos de vboras. Os dela eram como gosto que
sejam: cachos de uvas das vindimas, ou asas, simplesmente. Deitada de costas,
apoiando sobre mim a cabecinha altiva, falava-me dos seus amores com um
despudor admirvel. Agradava-me seu ardor e seu desinteresse no prazer, seu
gosto difcil, seu furor ao dilacerar a alma. Conheci-lhe dzias de amantes,
embora ela houvesse perdido a conta deles. Eu era apenas um parceiro que no
exigia fidelidade. Naquela ocasio, estava apaixonada por um danarino
chamado Btilo, to belo que justificava antecipadamente todas as loucuras.
Soluava o nome dele nos meus braos; minha aprovao dava-lhe coragem.
Em certos momentos, ramos muito juntos. Morreu jovem, numa ilha insalubre
para onde a famlia a deportou, em seguida a um divrcio escandaloso. Alegrei-
me por ela, que temia envelhecer, embora este seja um sentimento que jamais
experimentamos por aqueles que amamos verdadeiramente. Ela precisava
imensamente de dinheiro. Certo dia, pediu-me que lhe emprestasse cem mil
sestrcios. Levei-os para ela no dia seguinte. Sentou-se no cho perfeita
imagem de jogadora de ossinhos , despejou o saco no soalho e ps-se a dividir
em pilhas o metal reluzente. Eu sabia que, para ela como para todos ns, os
prdigos, aquelas moedas de ouro no eram dinheiro legal, cunhadas com a
cabea de um Csar, mas uma matria mgica, uma moeda pessoal que tinha
como efgie uma quimera na figura do danarino Btilo. Naquele momento, eu
j no existia. Ela estava s. Quase feia, enrugando a fronte, numa comovente
indiferena pela sua prpria beleza, fazia e refazia nos dedos, com gestos de
escolar, as adies difceis. Jamais foi to encantadora
A notcia das incurses srmatas chegou a Roma durante a celebrao do triunfo
de Trajano sobre os dcios. Essa festa tantas vezes adiada j durava oito dias.
Fora necessrio quase um ano para fazer vir da frica e da sia os animais
selvagens que se projetava abater em massa na arena. O massacre de doze mil
feras e a decapitao metdica de dez mil gladiadores faziam de Roma um mau
lugar de morte. Encontrava-me nessa noite no terrao da casa de Atiano, com
Mrcio Turbo e nosso anfitrio. A cidade iluminada estava tomada por terrvel e
ruidosa alegria; a dura guerra, qual Mrcio e eu havamos consagrado quatro
anos da nossa juventude, era para a populaa um pretexto de festas regadas a
vinho, um brutal triunfo de segunda mo. No era oportuno informar ao povo que
aquelas vitrias to enaltecidas no eram definitivas e que um novo inimigo se
aproximava das nossas fronteiras. O imperador, j ento ocupado com seus
novos projetos sobre a sia, desinteressava-se mais ou menos da situao ao
nordeste, que preferia considerar liquidada de uma vez por todas. Essa primeira
guerra srmata foi apresentada como simples expedio punitiva. Fui mandado
para l com o ttulo de governador da Pannia, com poderes de general-em-
chefe.

Durou onze meses, e foi atroz. Continuo a acreditar que o aniquilamento dos
dcios foi, de certa maneira, justificado: nenhum chefe de Estado suporta
voluntariamente a existncia de um inimigo organizado instalado s suas portas.
Contudo, a derrocada do reino de Decbalo criara naquelas regies um vazio
onde os srmatas se precipitaram. Remanescentes de tropas, pequenos bandos
sados no se sabe de onde, infestavam o pas devastado por anos de guerra,
queimado e requeimado por ns, onde nossos efetivos insuficientes no tinham
pontos de apoio. Tais bandos pululavam como vermes no cadver de nossas
vitrias dcias. Nossos recentes xitos haviam solapado a disciplina: havia nos
postos avanados qualquer coisa da grosseira indiferena das festas romanas.
Certos tribunos mostravam uma confiana imbecil ante os riscos que corriam;
perigosamente isolados numa regio da qual a nica parte bem conhecida era
nossa antiga fronteira, contavam, para continuar a vencer, com nosso
armamento, que eu via diminuir dia a dia em conseqncia das perdas e do
prprio desgaste, e com reforos que eu no esperava ver chegar, sabendo que
todos os nossos recursos seriam dali em diante concentrados na sia.

Outro perigo comeava a despontar: quatro anos de requisies oficiais haviam


empobrecido as aldeias da retaguarda. Desde as primeiras campanhas dcias,
para cada manada de bois ou rebanho de carneiros ostensivamente tomados ao
inimigo, eu vira interminveis desfiles de gado extorquido aos habitantes. Se esse
estado de coisas persistisse, estaria prximo o momento em que nossas
populaes camponesas, cansadas de suportar nossa pesada mquina de guerra,
acabariam por preferir os brbaros a ns. A rapinagem da soldadesca
representava um problema menos essencial talvez, mas muito mais evidente. Eu
era bastante popular para no ter receio de impor s tropas as mais duras
restries; lancei em moda uma austeridade que eu prprio praticava; inventei o
culto da Disciplina Augusta, que consegui, mais tarde, estender a todo o exrcito.
Mandei regressar a Roma os imprudentes e os ambiciosos que complicavam
minha misso; em contrapartida, fiz vir tcnicos de que carecamos. Foi
necessrio reparar as obras de defesa que o orgulho de nossas recentes vitrias
nos havia feito negligenciar inexplicavelmente. Abandonei definitivamente
aquelas que seria muito dispendioso manter. Os administradores civis,
solidamente instalados na desordem que se segue a todas as guerras, passavam
gradativamente posio de chefes semi-independentes, capazes de todas as
exigncias para com os nossos sditos e de todas as traies para conosco. Via
ainda prepararem-se, num amanh mais ou menos prximo, as revoltas e as
divises futuras. No creio que possamos impedir esses desastres, assim como
no podemos evitar a morte, mas depende de ns faz-los recuar por alguns
sculos. Demiti os funcionrios incapazes; condenei morte os piores. Eu prprio
me descobria implacvel.

A um vero mido, sucederam-se um outono brumoso e um frio inverno. Tive


necessidade dos meus conhecimentos de medicina para cuidar de mim mesmo.
A vida nas fronteiras conduzia-me, aos poucos, ao nvel dos srmatas: a barba
curta do filsofo grego transformava-se na do chefe brbaro. Voltei a presenciar
tudo o que j havia visto at nusea durante as campanhas dcias. O
inimigo queimava vivos seus prisioneiros; comeamos a degolar os nossos, por
falta de meios de transporte para envi-los aos mercados de escravos de Roma
ou da sia. As estacas das nossas paliadas eriaram-se de cabeas cortadas. O
inimigo torturava seus refns; vrios de meus amigos pereceram assim. Um
deles arrastou-se at nosso acampamento sobre as pernas ensangentadas.
Estava to desfigurado que, a partir daquele momento, nunca mais consegui
recordar seu rosto intacto. O inverno fez suas vtimas: grupos eqestres presos no
gelo ou levados pelas guas dos rios, doentes dilacerados pela tosse, gemendo
debilmente sob as tendas, cotos gelados de feridos. Cercava-me uma admirvel
boa vontade; a pequena tropa estreitamente integrada que eu comandava possua
a mais alta forma de virtude, a nica que suporto ainda: a firme determinao de
ser til. Um desertor srmata, do qual eu havia feito meu intrprete, arriscou a
vida para retornar sua tribo a fim de fomentar novas revoltas e traies.
Consegui, entretanto, negociar com aquela gente: a partir de ento, seus homens
combateram em nossos postos avanados, protegendo nossos soldados. Alguns
golpes de audcia, imprudentes em si mesmos, mas sabiamente preparados,
provaram ao inimigo o absurdo de provocar Roma. Um dos chefes srmatas
seguiu o exemplo de Decbalo: foi encontrado morto em sua tenda, junto das
suas mulheres estranguladas e de um horrvel embrulho que continha seus filhos.
Naquele dia, a minha averso pela destruio intil abrangeu as perdas brbaras;
lamentei aqueles mortos que Roma teria podido assimilar e utilizar um dia como
aliados contra hordas mais selvagens ainda. Postos em debandada, nossos
agressores desapareceram tal como tinham vindo, naquela obscura regio de
onde surgiro, sem dvida, muitas outras calamidades. A guerra no estava
terminada. Tive de recome-la e termin-la alguns meses depois de ter sido
proclamado imperador. Pelo menos, a ordem reinava momentaneamente
naquela fronteira. Reentrei em Roma coberto de honrarias. Envelhecera, porm.
Meu primeiro consulado foi ainda um ano de campanha, uma luta secreta, mas
contnua, em favor da paz. Mas no a empreendia sozinho. Uma mudana de
atitude paralela minha tinha-se dado, antes do meu regresso, em Licnio Sura,
em Atiano, em Turbo, como se, apesar da severa vigilncia que eu exercia nas
minhas prprias cartas, meus amigos j me houvessem compreendido,
precedido ou seguido. Antigamente, os altos e baixos da minha sorte
embaraavam-me sobretudo perante eles; temores ou impa-cincias que eu
teria, sozinho, suportado alegremente tornavam-se opressivos, desde que me
sentisse forado a ocult-los sua solicitude, ou infligir-lhes sua confisso.
Desagradava-me que seu afeto se inquietasse por minha causa mais do que eu
prprio, que no fossem capazes de ver em mim, sob as agitaes exteriores, o
ser tranqilo a quem nada importa de fato e que, conseqentemente, pode
sobreviver a tudo. Mas dali em diante me faltava tempo para interessar-me por
mim mesmo, e tambm para desinteressar-me. Minha pessoa se apagava
precisamente porque meu ponto de vista comeava a contar. O que importava
que algum se opusesse poltica de conquistas, encarando suas conseqncias a
seu fim, e se preparasse, se possvel, para reparar seus erros.

Meu posto nas fronteiras me mostrara uma face da vitria que no figura na
Coluna de Trajano. Meu regresso administrao civil permitiu-me acumular
contra o partido militar documentos ainda mais decisivos do que todas as provas
reunidas no exrcito. Os quadros das legies e toda a guarda pretoriana so
exclusivamente formados por elementos italianos: aquelas guerras longnquas
drenavam as reservas de um pas que j era pobre de homens. Aqueles que no
morriam estavam to perdidos como os outros para a ptria propriamente dita,
visto que os foravam a estabelecer-se nas novas terras conquistadas. Mesmo na
provncia, o sistema de recrutamento provocou nessa poca distrbios srios.
Uma viagem Espanha, empreendida um pouco mais tarde para fiscalizar a
explorao das minas de cobre da minha famlia, revelou-me a desordem
introduzida pela guerra em todos os setores da economia: acabei por me
convencer que tinham fundamento os protestos dos homens de negcios com os
quais convivia em Roma. No tinha a ingenuidade de acreditar que dependeria
sempre de ns evitar todas as guerras; mas s as queria defensivas; idealizava um
exrcito preparado para manter a ordem nas fronteiras, retificadas se necessrio,
mas seguras. Qualquer novo acrscimo do vasto organismo imperial parecia-me
uma excrescncia doentia, um cncer, ou o edema de uma hidropisia de que
acabaramos por morrer.

Nenhum desses pontos de vista podia ser apresentado ao imperador. Ele havia
chegado a um certo momento da vida, varivel para cada homem, em que o ser
humano se abandona ao seu demnio ou ao seu gnio, e segue uma lei misteriosa
que lhe ordena destruir-se a si mesmo ou superar-se. No conjunto, a obra do seu
principado fora admirvel, mas os trabalhos de paz para os quais seus melhores
conselheiros o haviam engenhosamente inclinado, os grandes projetos dos
arquitetos e dos legistas do imprio, sempre contaram menos para ele do que
uma nica vitria. Um delrio de despesas se havia apossado desse homem, to
nobremente parcimonioso quando se tratava de suas necessidades pessoais. O
ouro brbaro, retirado do leito do Danbio, e os quinhentos mil lingotes de ouro do
rei Decbalo tinham sido suficientes para custear as liberalidades feitas ao povo,
as doaes militares de que eu tivera minha parte, o luxo insensato dos jogos e os
fundos iniciais necessrios s grandes aventuras da sia. Essas riquezas nocivas
iludiam o verdadeiro estado das finanas. Aquilo que vinha da guerra guerra
retornava.

Nesse nterim, morreu Licnio Sura. Era o mais liberal dos conselheiros privados
do imperador. Sua morte foi para ns uma batalha perdida. Ele sempre me dera
provas de uma solicitude paternal. Havia alguns anos que suas foras, muito
reduzidas pela doena, no lhe permitiam os longos trabalhos de ambio
pessoal, mas foram sempre suficientes para servir a um homem cujos objetivos
lhe pareciam sensatos. A conquista da Arbia foi empreendida contra seus sbios
conselhos; somente ele, se houvesse vivido, teria podido poupar ao Estado as
fadigas e as despesas gigantescas da campanha parta. Esse homem, consumido
pela febre, passava suas horas de insnia a discutir comigo planos que o
esgotavam, mas cujo xito lhe importava mais do que algumas migalhas
suplementares de existncia. Vivi sua cabeceira, antes e nos ltimos momentos
de sua administrao, algumas das futuras fases do meu reinado. As crticas do
moribundo poupavam o imperador, mas ele sentia que levava consigo o que
restava de sabedoria no regime. Se tivesse vivido dois ou trs anos mais, certos
processos tortuosos que marcaram minha ascenso ao poder talvez tivessem sido
evitados; teria conseguido persuadir o imperador a adotar-me mais cedo e
abertamente. Mas as ltimas palavras desse chefe de Estado que me legava sua
misso foram uma das minhas investiduras imperiais.

Se o nmero dos meus partidrios aumentava, sucedia o mesmo com os dos


meus inimigos. O mais perigoso dos meus adversrios era Lsio Quieto, romano
mestio de rabe, cujos esquadres mmidas tinham representado papel
importante na segunda campanha dcia, e que incitava selvagemente guerra na
sia. Detestava tudo na personagem: seu luxo brbaro, o esvoaar pretensioso e
estudado dos seus vus brancos presos por um cordo de ouro, seus olhos
arrogantes e falsos e sua inacreditvel crueldade para com os vencidos e
submetidos. Os chefes do partido militar dizimavam-se em lutas intestinas, mas
os que restavam fortaleciam-se cada vez mais no poder, e isso expunha-me
ainda mais s desconfianas de Palma ou ao dio de Celso. Por felicidade, minha
posio era quase inexpugnvel. O governo civil repousava mais e mais sobre
meus ombros, desde que o imperador passara a se dedicar exclusivamente aos
projetos de guerra. Meus amigos, os nicos que poderiam suplantar-me por suas
aptides ou por seu conhecimento dos negcios pblicos, empenhavam-se, com
modstia muito nobre, em preferir-me em detrimento de si prprios. Nercio
Prisco, em quem o imperador depositava f, limitava-se cada dia mais
deliberadamente sua especialidade legal. Ariano organizava sua vida no sentido
de me servir, e eu contava com a prudente aprovao de Plotina. Um ano antes
da guerra, fui promovido ao posto de governador da Sria, ao qual se juntou mais
tarde o delegado junto ao exrcito. Encarregado de controlar e de organizar
nossas bases, tornei-me uma das alavancas de comando de um empreendimento
que eu prprio julgava insensato. Hesitei por algum tempo, depois aceitei.
Recusar seria fechar os caminhos do poder no momento em que o poder me
interessava mais do que nunca. Seria tambm perder a nica oportunidade de
desempenhar o papel de moderador.

Durante esses poucos anos que precederam a grande crise, tomei uma deciso
que para sempre levou meus inimigos a considerar-me frvolo, e que foi, em
parte, calculada para essa finalidade com o objetivo de enfraquecer qualquer
ataque. Fui passar alguns meses na Grcia. A poltica, pelo menos em aparncia,
nada teve que ver com essa viagem. Tratava-se de uma excurso de prazer e
estudo: trouxe de l algumas taas esculpidas e livros que partilhei com Plotina.
Recebi todas as honras oficiais, mas, entre estas, a que aceitei com a mais pura
alegria foi ter sido nomeado arconte de Atenas. Concedi a mim prprio alguns
meses de trabalhos e prazeres fceis, passeios durante a primavera pelas colinas
cobertas de anmonas e o contato agradvel com a pureza do mrmore nu. Em
Queronia, aonde fui expressamente para comover-me com a evocao dos
antigos pares de amigos do Batalho Sagrado, hospedei-me por dois dias em casa
de Plutarco. Tive meu prprio Batalho Sagrado, exclusivamente meu, mas,
como me acontece freqentemente, minha vida emociona-me menos do que a
histria. Cacei na Arccia e orei em Delfos. Em Esparta, beira do Eurotas,
alguns pastores ensinaram-me uma ria de flauta muito antiga, um estranho
canto de pssaro. Prximo a Megara, houve uma boda camponesa que durou
toda a noite; meus companheiros e eu ousamos tomar parte nas danas, o que nos
teria sido proibido pelos pesados costumes de Roma.

Os vestgios dos nossos crimes eram visveis por toda parte: as muralhas de
Corinto destrudas por Mmio, bem como os espaos deixados vazios ao fundo
dos santurios I pelo rapto das esttuas, organizado durante a escandalosa viagem
de Nero. A Grcia empobrecida conservava uma atmosfera de graa pensativa,
de clara sutileza e de sbia voluptuosidade. Nada mudara desde a poca em que
o discpulo do retrico Iseu havia respirado pela primeira vez o odor do mel
quente, do sal e da resina. Em suma, nada mudara havia sculos. A areia das
palestras era to dourada quanto antes. Fdias e Scrates no mais as
freqentavam, mas os jovens que se exercitavam ali se assemelhavam ainda ao
delicioso Chrmidas. Parecia-me, s vezes, que o esprito grego no levara at
suas concluses extremas as premissas do seu prprio gnio: as colheitas estavam
por fazer; as espigas amadurecidas pelo sol e j ceifadas eram pouca coisa em
comparao com a promessa eleusina da semente escondida naquela bela terra.
Mesmo entre meus selvagens inimigos srmatas, encontrara vasos de contornos
purssimos, um espelho embelezado com uma imagem de Apoio, resplendores
gregos como um plido sol sobre a neve. Entrevia a possibilidade de helenizar os
brbaros, aticizar Roma e impor suavemente ao mundo a nica cultura que um
dia se separou do monstruoso, do informe, do esttico, e que inventou uma
definio do mtodo e uma teoria da poltica e da beleza. O leve desdm dos
gregos, que nunca deixei de sentir sob suas mais calorosas homenagens, no me
ofendia. Pelo contrrio, achava-o natural. Fossem quais fossem as virtudes que
me distinguiam deles, sabia que seria sempre menos sutil do que um marinheiro
de Egina, e menos sbio do que uma vendedora de ervas da Agora. Aceitava
sem irritao os obsquios um tanto altivos dessa raa orgulhosa; concedia a todo
um povo os privilgios que sempre concedi to facilmente aos objetos amados.
No entanto, para dar aos gregos o tempo de continuar e de completar sua obra,
seriam necessrios alguns sculos de paz vividos entre os calmos cios e a
prudente liberdade que s a paz proporciona. A Grcia contava conosco para
sermos seus guardies, j que nos pretendamos seus senhores. Prometi a mim
mesmo velar sobre o deus desarmado.
Havia um ano que eu ocupava meu posto de governador da Sria quando Trajano
reuniu-se a mim na Antiquia. Vinha observar os preparativos finais para a
expedio da Armnia que, em sua mente, preludiava o ataque contra os partos.
Plotina acompanhava-o como sempre, e tambm sua sobrinha Matdia, minha
indulgente sogra, que h anos fazia parte da sua comitiva na qualidade de
intendente. Celso, Palma e Nigrino, meus velhos inimigos, pertenciam ainda ao
Conselho e dominavam o estado-maior. Toda essa gente se reuniu no palcio
espera da entrada em campanha. As intrigas da corte recomearam com maior
intensidade. Cada qual fazia seu jogo antes que os dados da guerra fossem
lanados.

O exrcito se deslocou quase em seguida em direo ao norte. Vi afastar-se com


ele a imensa multido dos altos funcionrios, dos ambiciosos e dos inteis. O
imperador e sua comitiva detiveram-se alguns dias em Comagena para celebrar
as festas j triunfais; os pequenos reis do Oriente, reunidos em Satala, porfiavam
em protestar uma lealdade em que eu, se estivesse no lugar de Trajano, teria
confiado muito pouco com relao ao futuro. Lsio Quieto, meu perigoso rival,
colocado frente dos postos avanados, ocupou as margens do lago de Van no
decorrer de uma imensa passeata militar. A parte setentrional da Mesopotmia,
evacuada pelos partos, foi anexada sem problemas; Abgar, rei de Osroena,
prestou submisso em dessa. O imperador voltou a fazer da Antiquia seu
quartel de inverno, adiando para a primavera a invaso do imprio parto
propriamente dito, mas j decidido a no aceitar qualquer proposta de paz. Os
acontecimentos caminhavam de acordo com seus planos. A euforia de
mergulhar finalmente naquela aventura, adiada durante tanto tempo, restitua
uma espcie de juventude quele homem de sessenta e quatro anos.

Meus prognsticos permaneciam sombrios. Os elementos judeu e rabe eram


cada vez mais hostis guerra; os grandes proprietrios das provncias irritavam-
se por serem obrigados a custear as despesas causadas pela passagem das tropas;
as cidades suportavam mal a imposio de novos impostos. Logo que o
imperador regressou, uma primeira catstrofe anunciou todas as outras: um
tremor de terra ocorrido no meio de uma noite de dezembro destruiu em alguns
instantes uma quarta parte da Antiquia. Atingido pelo desmoronamento de uma
trave, Trajano continuou heroicamente a ocupar-se dos feridos; entre seus
auxiliares mais chegados, houve alguns mortos. A ral sria procurou
imediatamente designar os responsveis pela tragdia: renunciando por uma vez
a seus princpios de tolerncia, o imperador cometeu o erro de permitir o
massacre de um grupo de cristos. Eu prprio tenho pouqussima simpatia por
essa seita, mas o espetculo de velhos aoitados e de crianas torturadas
contribuiu para a agitao dos espritos, e tornou mais odioso ainda aquele
inverno. No havia dinheiro suficiente para reparar a curto prazo os efeitos do
sismo; milhares de pessoas sem abrigo acampavam nas praas durante a noite.
Minhas visitas de inspeo revelavam-me a existncia de um descontentamento
surdo, de um rancor secreto do qual os altos dignitrios que superlotavam o
palcio sequer suspeitavam. O imperador prosseguia, em meio s runas, os
preparativos da prxima campanha: uma floresta inteira foi derrubada para a
construo de pontes movedias e de pontilhes para a passagem do Tigre. Ele
recebera com alegria uma srie de novos ttulos atribudos pelo Senado; no via o
momento de terminar a campanha do Oriente para voltar triunfante a Roma. O
menor atraso era motivo para crises de furor, que o sacudiam como um ataque
de febre.

O homem que media com passos impacientes as imensas salas daquele palcio,
construdo outrora pelos selucidas, e que eu prprio (que aborrecimento!) havia
decorado em sua honra com inscries laudatrias e panplias dcias, j no era
mais o mesmo que me acolhera havia vinte anos no acampamento de Colnia.
Suas virtudes tinham envelhecido. Sua jovialidade um tanto pesada, que encobria
outrora uma verdadeira bondade, tornara-se rotina vulgar; sua firmeza
transformou-se em obstinao; sua inclinao para o imediato e o prtico
reduziu-se a uma total incapacidade de pensar. O terno respeito que ele
dispensava imperatriz, a afeio rabugenta que testemunhava sobrinha
Matdia transformavam-se numa dependncia senil para com essas mulheres.
Inexplicavelmente, porm, opunha resistncia cada vez maior aos conselhos
delas. Suas crises de fgado inquietavam Crton, o mdico, embora ele mesmo
no se preocupasse com isso. A seus prazeres sempre faltara arte; com a idade, o
nvel deles descera ainda mais, se isso fosse possvel. Pouco importava que,
terminado o dia, o imperador se entregasse libertinagem de caserna em
companhia dos jovens em quem encontrava atrativos ou beleza. Parecia, por
outro lado, bastante grave que ele suportasse mal o vinho de que abusava. Mas
grave ainda era que aquela corte de subalternos medocres, selecionados e
manobrados por ex-escravos desonestos, fosse autorizada a assistir a todas as
minhas conversas com ele, transmitindo-as em seguida a meus adversrios.
Durante o dia, s via o imperador nas reunies de estado-maior. Nessas reunies,
totalmente ocupadas com o planejamento dos detalhes de campanha, qualquer
tentativa de manifestar uma opinio livre era impossvel. Fora dali, ele evitava
todo e qualquer dilogo. O vinho inspirava a esse homem pouco sutil um arsenal
de artimanhas grosseiras. Sua antiga suscetibilidade desaparecera; insistia em
associar-me a seus prazeres: a algazarra, as gargalhadas, os gracejos mais
inspidos dos rapazes eram sempre bem recebidos, como outros tantos meios de
me fazer compreender que a hora no era apropriada para tratar de assuntos
srios. Ele espreitava o momento em que um copo a mais me perturbaria a
razo. Nessas ocasies, tudo girava minha volta naquela sala, onde as cabeas
de auroques dos trofus brbaros pareciam rir na minha cara. Os jarros de vinho
sucediam-se ininterruptamente; canes avinhadas ecoavam aqui e ali,
interrompidas somente pelo riso insolente e encantador de um jovem pajem;
apoiando na mesa a mo cada vez mais trmula, o imperador, emparedado
numa embriaguez talvez mais simulada do que real, perdido longe de tudo nas
estradas da sia, mergulhava gravemente em seus sonhos

Desagraadamente, eram belos esses sonhos. Eram os mesmos que outrora me


haviam feito pensar em abandonar tudo para seguir, alm do Cucaso, as rotas
setentrionais que conduzem sia. A fascinao, qual o imperador envelhecido
se entregava como um sonmbulo, Alexandre j a experimentara antes; chegara
quase a realizar esses mesmos sonhos, e deles morrera aos trinta anos! Mas o
maior risco desses grandes planos era a sua sabedoria: como sempre, as razes
prticas se multiplicavam para justificar o absurdo, para possibilitar o impossvel.
O problema do Oriente preocupava-nos havia sculos; nada mais natural do que
procurar resolv-lo definitivamente. Nossas permutas de mercadorias com a
ndia e com o misterioso Pas da Seda dependiam inteiramente dos mercadores
judeus e dos exportadores rabes que possuam a franquia dos portos e das
estradas partas. Uma vez aniquilado o vasto e flutuante imprio dos cavaleiros
arscidas, atingiramos diretamente esses ricos confins do mundo. A sia,
finalmente unificada, seria apenas uma provncia a mais para Roma. O porto de
Alexandria, no Egito, era nossa nica sada para a ndia que no dependia da boa
vontade dos partos; ali tambm esbarrvamos constantemente com as exigncias
e rebelies das comunidades judaicas. O xito da expedio de Trajano ter-nos-
ia permitido ignorar aquela cidade pouco segura. Contudo, todas essas razes
jamais seriam suficientes para persuadir-me da convenincia de tais campanhas.
Sbios tratados de comrcio me teriam satisfeito muito mais. J entrevia a
possibilidade de reduzir o papel de Alexandria fundando uma segunda metrpole
grega nas vizinhanas do mar Vermelho, o que fiz mais tarde ao fundar Antino.
Comeava a conhecer o mundo complicado da sia. Os simples planos de
exterminao total, que haviam logrado sucesso na Dcia, no se adaptavam a
esse pas, possuidor de uma vida mais mltipla, fortemente enraizada, e do qual,
alm disso, dependia a riqueza do mundo. Atravessado o Eufrates, comeava
para ns o pas dos riscos e das miragens, das areias movedias, das estradas que
terminam sem chegar a lugar nenhum. O menor revs teria como conseqncia
um enfraquecimento de prestgio, passvel de ser seguido pelas catstrofes mais
imprevisveis. No se tratava apenas de vencer, mas de vencer sempre, e nossas
foras esgotar-se-iam nessa empresa. Ns j o havamos tentado: pensava
horrorizado na cabea de Crasso, jogada de mo em mo como uma bola no
curso de uma representao das Bacantes de Eurpedes, que um rei brbaro com
um verniz de helenismo fez representar numa noite de vitria sobre ns. Trajano
pretendia vingar essa antiga derrota; de minha parte, desejava sobretudo impedir
que ela se reproduzisse. Previa o futuro com bastante exatido, coisa fcil,
especialmente quando fundamentada sobre bom nmero de elementos relativos
ao presente: algumas vitrias inteis levariam muito longe nossas tropas,
imprudentemente retiradas de outras fronteiras. O imperador, j prximo da
morte, cobrir-se-ia de glria, e ns, que tnhamos o futuro pela frente, ficaramos
encarregados de resolver todos os problemas e remediar todos os males.

Csar tinha razo ao preferir o primeiro lugar numa aldeia ao segundo em Roma.
No por ambio ou por glria v, mas porque o homem colocado em segundo
lugar s tem escolha entre os perigos da obedincia ou da revolta, ou ainda os do
compromisso, muito mais graves. Eu no era nem mesmo o segundo em Roma.
No momento de partir para uma expedio temerria, o imperador no me
designara ainda seu sucessor: cada passo frente dava uma chance aos chefes
do estado-maior. Aquele homem quase ingnuo parecia-me agora mais
complicado do que eu prprio. Somente seus acessos de mau humor me
tranqilizavam: o imperador mal-humorado me tratava como a um filho. Em
outros momentos, esperava ser afastado por Palma, ou suprimido por Quieto to
logo meus servios pudessem ser dispensados. No tinha poder algum: no
conseguia sequer obter uma audincia para os membros influentes do Sindrio da
Antiquia, que, tanto quanto ns, temiam as violncias dos agitadores judeus, e
que teriam esclarecido Trajano sobre as maquinaes dos seus correligionrios.
Meu amigo Latnio Alexandre, que descendia de uma das antigas famlias reais
da sia Menor e cujo nome e fortuna tinham grande peso, no foi mais ouvido
do que eu. Plnio, enviado para a Bitnia quatro anos antes, ali foi morto sem ter
tido tempo de informar o imperador sobre o exato estado de esprito do povo e
das finanas, supondo-se que seu incurvel otimismo lhe permitisse faz-lo. Os
relatrios secretos do mercador Opramoas, da cidade de Lcia, que conhecia a
fundo os negcios da sia, foram ridicularizados por Palma. Os ex-escravos se
aproveitavam das manhs de ressaca, aps as noites de bebedeira, para me
afastar dos aposentos imperiais: o ordenana do imperador, um tal Fdimo,
honesto, mas estpido e predisposto contra mim, recusou-me por duas vezes a
entrada. Em compensao, o cnsul Celso, meu inimigo, trancou-se uma noite
com Trajano para um concilibulo que durou horas, ao cabo do qual me senti
perdido. Procurei aliados onde pude; corrompi a peso de ouro antigos escravos
que, de bom grado, teria enviado s galeras; desci at o ponto de acariciar
horrveis cabeas encarapinhadas. O diamante de Nerva j no brilhava mais.

Foi ento que me apareceu o mais sbio dos meus gnios bons: Plotina. Conhecia
a imperatriz havia quase vinte anos. Provnhamos do mesmo meio e tnhamos
quase a mesma idade. Vira-a viver com serenidade uma existncia quase to
constrangida quanto a minha, e mais desprovida de futuro. Plotina apoiou-me nos
meus momentos mais difceis, sem parecer notar que o fazia. Mas foi durante os
maus dias da Antiquia que sua presena se me tornou indispensvel, como mais
tarde sua estima o continuou a ser sempre, e esta eu tive at sua morte. Habituei-
me presena daquela figura de vestes brancas, to simples quanto o podem ser
as de uma mulher. Acostumei-me igualmente a seus silncios, a suas palavras
ponderadas que nunca passavam de respostas, e sempre as mais claras possveis.
Sua aparncia no destoava absolutamente daquele palcio mais antigo do que
todo o esplendor de Roma: a filha de novos ricos era digna dos selucidas.
Estvamos quase sempre de acordo. Tnhamos, os dois, a paixo de ornamentar
e depois despojar nossa alma, de submeter nosso esprito a todas as pedras de
toque. Ela se inclinava para a filosofia epicurista, esse leito estreito, mas limpo,
sobre o qual estendi por vezes meu pensamento. O mistrio dos deuses, que me
perseguia, no a inquietava; tambm no tinha, como eu, o gosto apaixonado
pelos prazeres do corpo. Era casta por desprezo das coisas fceis, generosa mais
por determinao do que por natureza, desconfiada por prudncia, conquanto
pronta a aceitar tudo dos amigos, mesmo seus erros inevitveis. A amizade era
uma escolha na qual ela se empenhava por inteiro, entregando-se sem reservas,
como s conseguiu faz-lo no amor. Plotina conheceu-me melhor do que
ningum, porque s a ela permiti ver o que eu dissimulava cuidadosamente
diante dos outros: por exemplo, minhas covardias secretas. Agrada-me crer que,
por sua vez, ela nada me escondeu. A intimidade dos corpos, que jamais existiu
entre ns, foi compensada pelo contato dos nossos dois espritos, estreitamente
identificados entre si.

Nosso entendimento estava acima das confisses, explicaes ou reticncias.


Bastavam-nos os fatos, e ela os observava melhor do que eu. Sob as pesadas
trancas que a moda exigia, aquela fronte lisa era a de um juiz. Sua memria
fixava a imagem exata dos menores objetos. Jamais lhe acontecia como a
mim hesitar por muito tempo, ou decidir-se depressa demais. Com um rpido
olhar, ela descobria meus adversrios mais secretos e avaliava meus aliados com
prudente frieza. Na verdade, ramos cmplices, ainda que o ouvido mais
apurado fosse incapaz de reconhecer entre ns qualquer sinal da existncia de
um acordo secreto. Diante de mim, Plotina jamais incorreu na indiscrio de se
queixar do imperador, nem no erro mais sutil de desculp-lo, ou de elogi-lo.
Quanto a mim, minha lealdade era ponto pacfico. Atiano, recm-chegado de
Roma, associava-se a essas entrevistas, que duravam por vezes toda a noite, mas
nada parecia fatigar aquela mulher imperturbvel e frgil. Conseguiu fazer
nomear meu antigo tutor como conselheiro privado, eliminando assim meu
inimigo Celso. A desconfiana de Trajano, ou a impossibilidade de encontrar
algum que me substitusse na retaguarda, retiveram-me na Antiquia. Contava
com ambos para me informarem sobre tudo o que os relatrios no
mencionavam. Em caso de desastre, saberiam conquistar para mim a fidelidade
de uma boa parte do exrcito. Meus adversrios teriam de suportar a presena
daquele velho gotoso que partia unicamente para me servir, e daquela mulher
capaz de exigir de si mesma a prolongada resistncia de um soldado.

Vi-os afastarem-se, o imperador a cavalo, firme e admiravelmente plcido, o


grupo paciente das mulheres em liteira, os guardas pretorianos misturados aos
batedores nmidas do temvel Lsio Quieto. O exrcito, que havia hibernado nas
margens do Eufrates, ps-se em marcha logo que o chefe chegou; a campanha
parta comeava, fossem quais fossem as conseqncias. As primeiras notcias
foram sublimes. Babilnia conquistada, o Tigre transposto, Ctesifonte submetida.
Como sempre, tudo cedia ao espantoso domnio daquele homem. O prncipe da
Arbia Sarracena rendeu-se, abrindo assim todo o curso do Tigre s flotilhas
romanas. O imperador embarcou para o porto de Charax, ao fundo do golfo
Prsico. Chegava finalmente s margens fabulosas. Minhas apreenses
subsistiam, mas dissimulava-as como se fossem crimes. um erro ter razo
cedo demais. Mais do que isso, duvidava de mim mesmo, e sentia-me culpado
daquela forma baixa de incredulidade que nos impede de reconhecer a grandeza
de um homem que conhecemos excessivamente. Esquecia-me de que alguns
homens alteram os limites do destino, ou por outra, mudam a histria. Havia
blasfemado contra o gnio do imperador. Consumia-me no meu posto. Se por
acaso o impossvel sucedesse, poderia eu ser excludo? Como tudo sempre mais
fcil do que a sensatez, senti o impulso de tornar a vestir a cota de malha das
guerras srmatas e utilizar a influncia de Plotina para me fazer convocar para o
exrcito. Invejava ao ltimo dos nossos soldados a poeira das estradas da sia, o
choque dos batalhes couraados da Prsia. O Senado votou, finalmente, o direito
de o imperador celebrar no mais um s, mas uma sucesso de triunfos, que
perdurariam tanto quanto sua vida. Eu prprio fiz o que era devido: ordenei festas
e comemoraes, e fui sacrificar no ponto mais alto do monte Cssio.

Subitamente, o incndio que lavrava naquela terra do Oriente irrompeu com


mpeto em toda parte e ao mesmo tempo. Alguns mercadores judeus
recusaram-se a pagar impostos Selucia; Cirene revoltou-se imediatamente, e
o elemento oriental massacrou ali o elemento grego. As estradas que levavam
at nossas tropas o trigo do Egito foram bloqueadas por um bando de zelotas de
Jerusalm. Em Chipre, os residentes gregos e romanos foram presos pela
populao judia, que os obrigou a se entrematarem em combates de gladiadores.
Consegui manter a ordem na Sria, mas via chispas nos olhos dos mendigos
sentados no portal das sinagogas, e percebia risos de escrnio nos lbios grossos
dos condutores de dromedrios em suma, um rancor que no merecamos. Os
judeus e os rabes tinham, desde o incio, feito causa comum contra uma guerra
que ameaava arruinar seus negcios, mas Israel aproveitava-se disso para se
lanar contra um mundo do qual o excluam seus furores religiosos, seus ritos
singulares e a intransigncia do seu Deus. O imperador, tendo regressado a toda a
pressa Babilnia, delegou poderes a Quieto para castigar as cidades rebeladas:
Cirene, dessa, Selucia, as grandes metrpoles helnicas do Oriente foram
entregues s chamas como punio pelas traies premeditadas durante as
paragens das caravanas, ou maquinadas nos guetos judeus. Mais tarde, ao visitar
essas cidades por reconstruir, caminhei sob as colunatas em runa, entre filas de
esttuas partidas. O imperador Osros, que financiara as revoltas, tomou
imediatamente a ofensiva. Abgar insurgiu-se e reentrou em dessa em cinzas.
Nossos aliados armnios, com os quais Trajano acreditava poder contar, deram
mo forte aos strapas. O imperador viu-se bruscamente no centro de um
imenso campo de batalha onde era preciso lutar em todas as frentes.

O inverno foi perdido no cerco de Hatras, ninho de guias quase inexpugnvel,


situado em pleno deserto, e que custou a nosso exrcito milhares de mortos. Sua
obstinao assumia, cada vez mais, um carter de coragem pessoal: aquele
homem doente recusava-se a abrir mo do poder. Sabia por Plotina que, apesar
da advertncia de um leve ataque de paralisia, Trajano se obstinava em no
nomear seu herdeiro. Se esse imitador de Alexandre morresse, por sua vez, de
febre ou intemperana em qualquer canto insalubre da sia, a guerra estrangeira
complicar-se-ia com a ecloso de uma guerra civil; uma luta de morte
irromperia entre meus partidrios e os de Celso, ou de Palma. De repente, as
notcias cessaram quase completamente. A frgil linha de comunicao entre
mim e o imperador era mantida somente atravs dos bandos nmidas do meu
pior inimigo. Foi por essa poca que encarreguei pela primeira vez meu
mdico de marcar sobre meu peito, a tinta vermelha, o lugar exato do corao.
Se acontecesse o pior, no queria cair vivo nas mos de Lsio Quieto. Ao
encargo dificlimo de pacificar as ilhas e as provncias limtrofes, juntavam-se as
demais responsabilidades do meu posto, mas o trabalho desgastante dos dias no
era nada comparado lentido das noites de insnia. Todos os problemas do
imprio atormentavam-me ao mesmo tempo, conquanto meu prprio problema
pesasse muito mais. Queria o poder! Queria-o para impor meus planos,
experimentar minhas solues, restaurar a paz. Queria-o sobretudo para ser eu
mesmo antes de morrer.

Ia fazer quarenta anos. Se sucumbisse naquela altura, no restaria de mim mais


do que um nome numa srie de altos funcionrios, e uma inscrio em grego em
honra do arconte de Atenas. Mais tarde, sempre que vi desaparecer um homem
em plena maturidade e do qual o pblico julgava poder avaliar exatamente os
sucessos e as derrotas, lembrava-me de que, naquela idade, eu s existia aos
meus prprios olhos e aos olhos de alguns amigos, que deviam por vezes duvidar
de mim, como eu duvidava deles. Compreendi ento que pouqussimos homens
se realizam antes de morrer, e aprendi a julgar com mais piedade seus trabalhos
interrompidos. Essa obsesso de uma vida frustrada imobilizava meu pensamento
num ponto fixo, como um abscesso. Dava-se com a minha nsia do poder o
mesmo que se d com o amor, que impede o amante de comer, dormir, pensar e
at mesmo amar enquanto certos ritos no se cumprem. As tarefas mais
urgentes pareciam-me vs desde o momento em que me era interditado agir
como senhor e assumir como chefe as decises relativas ao futuro. Precisava da
certeza de reinar para readquirir o gosto de ser til. Aquele palcio da Antiquia,
onde eu viveria alguns anos mais tarde numa espcie de frenesi de felicidade,
era ento para mim meramente uma priso, talvez uma priso de condenado
morte. Enviei mensagens secretas aos orculos, a Jpiter Amon, a Castlia, ao
Zeus Doliquiano. Mandei chamar os magos; cheguei a ordenar que trouxessem
das enxovias da Antiquia um criminoso condenado crucificao, ao qual um
feiticeiro cortou o pescoo na minha presena, na esperana de que a alma,
flutuando por um instante entre a vida e a morte, me revelasse o futuro. Aquele
miservel escapou assim a uma agonia mais prolongada; minhas perguntas,
porm, ficaram sem resposta. Durante a noite arrastava-me de um vo de porta
para outro, de balco em balco, ao longo das salas daquele palcio em cujas
paredes se viam ainda as rachaduras provocadas pelo abalo ssmico, traando
aqui e ali, sobre o mrmore do piso, clculos astronmicos, interrogando as
estrelas que tremeluziam no cu. Entretanto, era sobre a terra que urgia procurar
os sinais do futuro.

Finalmente, o imperador levantou o cerco de Hatras e decidiu-se a refazer a


travessia do Eufrates, que nunca deveria ter sido transposto. A temperatura
trrida e o esgotamento dos arqueiros partos tornaram ainda mais desastroso esse
triste regresso. Por uma escaldante noite de maio, fui receber fora dos portes da
cidade, nas margens do Orontes, o reduzido grupo atormentado pela febre, pela
ansiedade e pela fadiga: o imperador doente, Atiano e as mulheres. Trajano
insistiu em fazer a cavalo o percurso at a entrada do palcio. Mal agentando-se
de p, aquele homem to cheio de vida parecia mais mudado do que qualquer
outro beira da morte. Crton e Matdia ajudaram-no a subir os degraus,
levaram-no at o leito e instalaram-se sua cabeceira. Atiano e Plotina
narraram-me os incidentes da campanha, de que no haviam podido dar notcias
em suas breves mensagens. Uma dessas narrativas emocionou-me a tal ponto
que passou a fazer parte, para sempre, das minhas recordaes pessoais e dos
meus prprios smbolos. Mal havia chegado a Charax, o imperador, cansado,
fora sentar-se na praia, em frente s pesadas guas do golfo Prsico. Nessa
poca ele ainda no duvidava da vitria, mas, pela primeira vez, sentiu-se
esmagado pela vastido do mundo, pelo sentimento da idade e dos limites que nos
encerram a todos. Grossas lgrimas correram pelas faces enrugadas daquele
homem, que ningum teria julgado capaz de chorar. O poderoso chefe, que
levara as guias romanas at praias ainda inexploradas, compreendeu, nesse
momento, que nunca chegaria a navegar naquele mar to sonhado: a ndia, a
Bactriana e todo o obscuro Oriente, cuja simples anteviso distncia tanto o
perturbava, permaneceriam para ele apenas como um sonho e alguns nomes. No
dia seguinte, as ms notcias o foraram a partir novamente. Desde ento, cada
vez que o destino me disse no, lembrei-me daquelas lgrimas choradas uma
noite, numa praia longnqua, por um velho que, pela primeira vez, encarava sua
vida e sua idade face a face, como talvez nunca tivesse feito at ento.

Na manh seguinte, subi aos aposentos do imperador. Sentia por Trajano um


afeto a um tempo filial e fraterno. Aquele homem, que sempre se vangloriara de
viver e de pensar como cada soldado de suas tropas, terminava seus dias em total
solido. Estendido sobre o leito, continuava a traar planos gloriosos pelos quais
ningum mais se interessava. Como sempre, sua linguagem seca e arrogante
desfigurava-lhe o pensamento. Articulando as palavras com grande dificuldade,
falou-me do acolhimento triunfal que lhe preparavam em Roma. Trajano
negava a derrota, assim como negava a morte. Uma segunda crise sobreveio
dois dias mais tarde. Reiniciei meus concilibulos ansiosos com Atiano e Plotina.
A previdncia da imperatriz acabava de fazer elevar meu velho amigo posio
todo-poderosa de prefeito do pretrio, colocando assim sob as nossas ordens a
guarda imperial. Matdia, que no abandonava o quarto do enfermo, estava
felizmente do nosso lado; de resto, aquela mulher simples e terna era como cera
entre as mos de Plotina. Entretanto, nenhum de ns ousava lembrar ao
imperador que a questo da sucesso continuava pendente. Era bem possvel que,
tal como Alexandre, estivesse decidido a no nomear ele prprio seu herdeiro, e
era possvel tambm que mantivesse com o partido de Quieto certos
compromissos s dele conhecidos. Ou, mais simplesmente, recusava-se a
encarar seu prprio fim, como comum verse em certas famlias. Quantos
velhos obstinados morrem intestados! Para eles, no se trata tanto de conservar
at o fim seu tesouro ou seu imprio, j meio desligados dos seus dedos
entorpecidos, mas sobretudo de no se instalar demasiado cedo no estado
pstumo de um homem que j no tem decises a tomar, surpresas a causar,
ameaas ou promessas a fazer aos vivos. Sentia profunda piedade por ele.
Diferamos demais para que ele pudesse ver em mim o continuador dcil,
antecipadamente comprometido com os mesmos mtodos e at com os mesmos
erros, que a maior parte das pessoas que exerceram uma autoridade absoluta
procura desesperadamente em seu leito de morte. No entanto, o mundo ao seu
redor estava vazio de homens de Estado: eu era o nico que ele teria podido
designar sem faltar a seus deveres de funcionrio e de grande prncipe. O chefe
habituado a analisar e a avaliar as folhas de servio sentia-se quase forado a
aceitar-me. Era, alis, excelente razo para que me odiasse. Pouco a pouco, sua
sade se restabeleceu o suficiente para lhe permitir deixar o quarto. Voltou a
falar em empreender uma nova campanha, na qual nem ele prprio acreditava.
Seu mdico, Crton, que receava por ele os calores do vero, conseguiu afinal
que se decidisse a embarcar para Roma. Na noite que precedeu a partida, ele me
mandou chamar a bordo do navio que devia conduzi-lo Itlia e nomeou-me
comandante-em-chefe para substitu-lo. Comprometia-se at esse ponto. Mas
no foi alm. O essencial havia ficado por fazer.

Contrariamente s ordens recebidas, comecei imediatamente, da maneira mais


secreta, a tratar dos preliminares de paz com Osros. Essas decises eu as
tomava na certeza de que provavelmente no teria mais contas a prestar ao
imperador. Menos de dez dias mais tarde, fui despertado em plena noite pela
chegada de um emissrio que reconheci como um homem da confiana de Pio
tina. Trazia-me duas cartas. Uma, oficial, comunicava-me que Trajano, incapaz
de suportar as oscilaes do mar, desembarcara em Selinunte, na Siclia, onde se
encontrava gravemente doente em casa de um mercador. Uma segunda carta,
esta secreta, anunciava-me sua morte, que Pio tina me prometia manter em
segredo pelo tempo que fosse necessrio, dando-me assim a vantagem de ser a
primeira pessoa prevenida. Parti incontinenti para Selinunte, depois de tomar
todas as providncias necessrias para me assegurar o controle sobre as
guarnies srias. Mal me pus a caminho, um novo correio veio anunciar-me
oficialmente a morte do imperador. Seu testamento, que me designava herdeiro,
acabava de ser enviado a Roma por um portador de confiana. Tudo aquilo que,
havia dez anos, vinha sendo febrilmente sonhado, combinado, discutido ou
silenciado, reduzia-se a uma mensagem de duas linhas traadas em grego com
mo firme, numa minscula caligrafia de mulher. Atiano, que me aguardava no
cais de Selinunte, foi o primeiro a saudar-me com o ttulo de imperador.

E aqui, no intervalo entre o desembarque do enfermo e o momento da sua


morte, que se situa uma srie de acontecimentos impossveis de serem
reconstitudos um dia por mim. Entretanto, sobre eles foi edificado meu destino.
Esses poucos dias vividos por Atiano e pelas mulheres na casa de um mercador
decidiram para sempre minha vida, mas o segredo ficar eternamente com
aqueles que tudo presenciaram, tal como aconteceu em certa tarde sobre o Nilo,
da qual jamais saberei coisa alguma, precisamente porque me importava saber
tudo! O ltimo dos basbaques, em Roma, tem opinio formada sobre esse
episdio da minha vida, mas sou, relativamente a eles, o menos informado dos
homens. Meus inimigos acusaram Plotina de se ter aproveitado da agonia do
imperador para obrigar o moribundo a traar as breves palavras que me
legavam o poder. Caluniadores grosseiros chegaram a descrever um leito sob os
cortinados, iluminado pela claridade incerta de uma lmpada, enquanto o mdico
Crton ditava as ltimas vontades de Trajano num tom de voz que procurava
imitar a do imperador. Deram grande destaque ao fato de que o ordenana
Fdimo, que me odiava e cujo silncio meus amigos no conseguiram comprar,
sucumbiu oportunamente de uma febre maligna no dia seguinte ao da morte de
seu senhor. H nessas imagens de violncia e intriga algo que impressiona a
imaginao popular, e at mesmo a minha. No me desagradaria absolutamente
a idia de que um pequeno grupo de pessoas honestas tivessem sido capazes de ir
at as ltimas conseqncias do crime por amor a mim, nem que a dedicao da
imperatriz a tivesse levado to longe. Ela conhecia os perigos que uma pequena
indeciso teria representado para o Estado. Respeito-a o suficiente para acreditar
que ela teria concordado em cometer uma fraude necessria, desde que a
prudncia, o bom senso, os interesses pblicos e a amizade a houvessem forado
a tanto. Tive depois nas minhas mos esse documento, to violentamente
contestado por meus adversrios: a mim, impossvel pronunciar-me contra ou a
favor da autenticidade desse ltimo ditado de um enfermo. Prefiro, sem dvida,
supor que o prprio Trajano, fazendo antes de morrer o sacrifcio das suas
preferncias pessoais, deixou por sua livre vontade o imprio quele que, apesar
de tudo, considerou o mais digno. Devo, porm, confessar que, nesse caso, o fim
me importava muito mais do que os meios: o essencial que o homem guindado
ao poder provasse, com o decorrer do tempo, que merecia exerc-lo.

O corpo foi cremado na praia pouco depois da minha chegada, enquanto


aguardava a realizao das exquias triunfais que seriam celebradas em Roma.
Poucas pessoas assistiram cerimnia simples, que teve lugar ao nascer do dia, e
que no foi seno um episdio a mais entre os longos cuidados domsticos
prestados pelas mulheres pessoa de Trajano. Matdia chorava amargamente; a
vibrao do ar em volta da pira embaava os traos de Pio tina. Calma, distante,
abatida pela febre, ela manteve-se, como sempre, claramente impenetrvel.
Atiano e Crton cuidaram para que tudo fosse convenientemente concludo. A
leve fumaa dissipou-se no ar plido da manh sem sombras. Nenhum dos meus
amigos voltou a mencionar os incidentes dos dias que precederam a morte do
imperador. Sua senha era evidentemente o silncio; a minha era no fazer
indagaes perigosas.

No mesmo dia, a imperatriz viva e seus familiares embarcaram com destino a


Roma. Regressei Antiquia acompanhado ao longo da estrada pelas
aclamaes das legies. Uma calma extraordinria se apossou de mim: a
ambio e o medo pareciam um pesadelo j esquecido. Sucedesse o que
sucedesse, eu tinha estado desde sempre decidido a defender at o fim minhas
possibilidades imperiais. O ato da adoo simplificava tudo. Minha prpria vida
j no me preocupava: podia novamente pensar no resto da humanidade.
Tellus stabilita

Minha vida havia entrado em ordem, mas no o Imprio. O mundo que eu


herdara assemelhava-se a um homem na fora da idade, robusto ainda, embora
j revelando, aos olhos do mdico, sinais imperceptveis de desgaste, tendo
inclusive acabado de passar pelos distrbios de uma molstia grave. Dali por
diante as negociaes prosseguiram abertamente. Mandei espalhar por toda parte
que o prprio Trajano me incumbira dessa misso antes de sua morte. Eliminei
de vez as conquistas perigosas: no somente a Mesopotmia, onde no nos
teramos podido manter, como tambm a Armnia, demasiado excntrica e
demasiado longnqua, que s conservei na categoria de Estado vassalo. Duas ou
trs dificuldades, que teriam feito arrastar-se por anos e anos uma conferncia
de paz se os principais interessados tivessem vantagem em prolong-las, foram
aplainadas pela habilidade do mercador Opramoas, que sabia fazer-se ouvir
pelos strapas. Procurei transmitir s minhas negociaes o ardor que outros
reservam para o campo de batalha. Forcei a paz. Meu parceiro a desejava, alis,
quase tanto quanto eu prprio: os partos s pensavam em reabrir suas rotas de
comrcio entre a ndia e ns. Poucos meses depois da grande crise, tive a alegria
de ver formar-se de novo s margens do Orontes a fila das caravanas. Os osis
repovoavam-se de comerciantes que comentavam as notcias ao claro das
fogueiras onde preparavam sua comida. Ao recarregarem cada manh suas
mercadorias destinadas aos pases desconhecidos, levavam consigo certo nmero
de pensamentos, de palavras e de costumes nossos, que pouco a pouco se
apoderariam do globo terrestre mais facilmente do que legies em marcha. A
circulao do ouro e o trnsito das idias, to sutil como o ar vital nas artrias,
recomeavam no interior do grande corpo do mundo. O pulso da terra voltava a
bater.

Por sua vez, a febre da rebelio diminua. Fora to violenta no Egito, que era
necessrio recrutar s pressas milcias camponesas enquanto se esperava por
nossas tropas de reforo. Encarreguei imediatamente meu amigo Mrcio Turbo
de ali restabelecer a ordem, o que ele fez com firmeza e sabedoria. Mas a ordem
nas ruas s me satisfazia pela metade; queria, se possvel, restabelec-la nos
espritos, ou melhor, faz-la reinar neles pela primeira vez. A permanncia por
uma semana em Pelusa foi inteiramente empregada no sentido de manter o fiel
da balana entre gregos e judeus, eternos incompatveis. No vi nada daquilo que
eu teria querido ver: nem as margens do Nilo, nem o Museu de Alexandria, nem
as esttuas dos templos. Tive tempo apenas para consagrar uma noite s
agradveis orgias de Canopo. Seis dias interminveis se passaram no barril
efervescente do tribunal, protegido contra o calor do exterior por longos
cortinados de ripas que estalavam com o vento. noite, enormes mosquitos
zumbiam em volta dos candeeiros. Tentei demonstrar aos gregos que nem
sempre eram eles os mais sbios; aos judeus, que no eram de modo algum os
mais puros. As canes satricas com as quais os helenos de baixa classe
perseguiam sem descanso seus adversrios no eram menos estpidas que as
grotescas imprecaes dos judeus. Aquelas raas, que viviam lado a lado sculos
a fio, no haviam tido, em nenhum momento, a curiosidade de se conhecerem,
nem a decncia de se aceitarem mutuamente. Os litigantes exaustos que
abandonavam o lugar tarde da noite encontravam-me novamente sentado no
meu banco, ao amanhecer, ocupado ainda em separar o amontoado de lixo dos
falsos testemunhos. Os cadveres apunhalados que me ofereciam como provas
eram muitas vezes de doentes mortos em seus leitos e roubados aos
embalsamadores. Mas cada hora de acalmia era uma vitria, embora precria
como o so todas; cada disputa arbitrada representava um precedente, um
empenho para o futuro. Importava-me muito pouco que o acordo obtido fosse
aparente, imposto de fora, provavelmente temporrio. Sabia que tanto o bem
como o mal so uma questo de rotina, que o temporrio se prolonga, que o
exterior se infiltra no interior, e que, com o decorrer do tempo, a mscara se
transforma na prpria face. J que o dio, a estupidez e a loucura surtem efeitos
duradouros, no vejo por que a lucidez, a justia e a benevolncia no surtam
tambm os seus. A ordem nas fronteiras no valeria nada se eu no persuadisse
aquele trapeiro judeu e aquele salsicheiro grego a conviverem tranqilamente
lado a lado.

A paz era minha meta, mas no absolutamente meu dolo; a prpria palavra
ideal me desagradaria por estar muito afastada da realidade. Havia pensado
levar at o extremo minha repulsa s conquistas, comeando por abandonar a
Dcia. T-lo-ia feito se pudesse, sem loucura, romper frontalmente com a
poltica do meu predecessor, mas era prefervel utilizar o mais prudentemente
possvel as vitrias anteriores ao meu reinado e j registradas pela histria. O
admirvel Jlio Basso, primeiro governador dessa provncia recm-organizada,
sucumbira, como quase me acontecera durante meu ano passado nas fronteiras
srmatas, morto pela misso inglria de pacificar sem esmorecer um pas
aparentemente submetido. Dei ordens para que em Roma lhe fizessem exquias
triunfais, reservadas normalmente aos imperadores. Essa homenagem a um
governador sacrificado obscuramente foi meu ltimo e discreto protesto contra a
poltica de conquistas: j no era obrigado a denunci-la em voz alta, desde que
estava em minhas mos o poder de elimin-la. Em contrapartida, uma represso
militar impunha-se na Mauritnia, onde os agentes de Lusio Quieto fomentavam
agitaes que no exigiam minha presena imediata. O mesmo sucedia na
Bretanha, onde os calednios tinham aproveitado a retirada das tropas, motivada
pela guerra da sia, para dizimar as guarnies insuficientes deixadas nas
fronteiras. Jlio Severo encarregou-se disso com a necessria urgncia, visto que
do restabelecimento da ordem dependia a longa viagem que eu devia
empreender. Contudo, decidi terminar eu prprio a guerra srmata que ficara em
suspenso, empregando o nmero de tropas indispensvel para pr fim, de uma
vez por todas, s depredaes dos brbaros. Recusava, nesse caso como em todos
os outros, sujeitar-me a um sistema. Aceitava a guerra como um meio de atingir
a paz, quando todas as negociaes que houvessem esgotado, tal como o mdico
se decide pelo cautrio depois de haver experimentado as plantas medicinais. As
coisas so de tal modo complicadas nos tratados entre os homens que meu
reinado pacfico teria, por sua vez, seus perodos de guerra, assim como a vida de
um grande capito tem, quer ele queira ou no, seus interldios de paz.

Antes de retornar ao norte para liquidar de vez o conflito srmata, revi Quieto. O
carniceiro de Cirene continuava temvel. Minha primeira deciso fora dissolver
suas colunas de batedores nmidas; permiti que ficasse com seu lugar no Senado,
seu posto no exrcito regular e aquele imenso domnio de areias ocidentais de
que podia fazer, a seu bel-prazer, um trampolim, ou um asilo. Convidou-me para
uma caada na Msia, em plena floresta, e maquinou astuciosamente um
acidente no qual, com um pouco menos de sorte ou de agilidade fsica, eu teria
certamente perdido a vida. Pareceu-me mais prudente aparentar nada suspeitar,
ter pacincia e esperar. Pouco tempo depois, na Mosia Inferior, no momento
em que a capitulao dos prncipes srmatas me permitiu prever meu regresso
Itlia em data bastante prxima, fui informado, por uma troca de despachos
cifrados com meu antigo tutor, que Quieto, tendo chegado precipitadamente a
Roma, se unira a Palma. Nossos inimigos fortificavam suas posies e
reorganizavam suas tropas. No estaramos seguros enquanto tivssemos contra
ns esses dois homens. Escrevi a Atiano ordenando-lhe que agisse rapidamente.
O velho amigo feriu como um raio. Exorbitou minhas ordens e desembaraou-
me, de um s golpe, de todos os inimigos declarados que me restavam. No
mesmo dia, com poucas horas de diferena, Celso foi executado em Baias,
Palma, em sua vila de Terracina. Nigrino, em Favencia, entrada de sua casa de
veraneio. Quieto pereceu em viagem, ao sair de um concilibulo com seus
cmplices, j com o p no estribo da carruagem que o conduziria cidade. Uma
onda de terror abateu-se sobre Roma. Serviano, meu velho cunhado, que
aparentemente se resignara com minha boa sorte, mas que espreitava meus
futuros passos em falso, deve ter sentido um estremecimento de alegria, que foi,
sem dvida, em toda a sua vida, o que conheceu de melhor em termos de
volpia. Todos os sinistros rumores que corriam a meu respeito voltaram a
merecer crdito.

Recebi essas notcias na ponte do navio que me reconduzia a Roma. Fiquei


aterrado. uma sensao confortvel saber que estamos livres dos nossos
adversrios, mas meu tutor havia demonstrado uma indiferena de velho pelas
conseqncias futuras do seu ato: esquecera-se de que eu teria de conviver com
o resultado desses assassinatos durante mais de vinte anos. Meditei sobre as
proscries, ordenadas por Otvio, que mancharam para sempre a memria de
Augusto; pensei nos primeiros crimes de Nero, seguidos por outros e outros.
Recordei os ltimos anos de Domiciano, homem medocre, nem pior nem
melhor do que os anteriores, a quem o medo infligido e sofrido tinha pouco a
pouco privado da forma humana, morto em pleno palcio como fera acuada na
floresta. Minha vida pblica comeava j a escapar a meu prprio desgnio: a
primeira linha da inscrio trazia, profundamente gravadas, algumas palavras
que eu no conseguiria apagar jamais. O Senado, esse grande organismo to
frgil, mas que se tornava poderoso quando perseguido, jamais esqueceria que
quatro dos seus homens haviam sido executados sumariamente por minha
ordem; trs intrigantes e um bruto feroz foram transformados em mrtires.
Adverti imediatamente a Atiano que viesse encontrar-me em Brundisium para
responder pelos seus atos.

Esperava-me a dois passos do porto, num dos quartos da estalagem voltada para
o Oriente onde outrora morrera Virglio. Veio, mancando, receber-me porta;
sofria de uma crise de gota. Mal ficamos a ss, explodi em censuras: um reinado
que eu queria moderado, exemplar, comeava por quatro execues das quais
apenas uma era indispensvel, considerando-se ainda que o executor
negligenciara perigosamente cercar tais atos com uma aparncia legal. Tamanho
abuso de fora ser-me-ia tanto mais reprovado quanto mais eu me aplicasse,
para o futuro, em ser clemente, escrupuloso ou justo; servir-se-iam disso para
provar que minhas supostas virtudes no passam de uma srie de mscaras. Com
esses argumentos seria fcil criar em torno do meu nome uma reputao de
tirano que me seguiria talvez at o fim da histria. Confessei-lhe meus temores:
no me sentia inteiramente isento de crueldade nem de outras taras humanas:
acreditava no lugar-comum que prescreve que o crime atrai o crime, e na
imagem do animal que j provou o gosto do sangue. Meu velho amigo, cuja
fidelidade me parecera inquebrantvel, comeava a emancipar-se.
Aproveitando-se das fraquezas que supusera ver em mim, e agindo sob o
pretexto de me servir, tratara de acertar contas pessoais com Nigrino e Palma.
Comprometia assim minha obra de pacificao, ao mesmo tempo que me
preparava o mais sombrio regresso a Roma.

O velho pediu permisso para se sentar e estendeu sobre um banco a perna


envolvida em ataduras. Continuando a falar, coloquei um cobertor sobre seu p
doente. Deixava-me prosseguir com o sorriso do velho professor de gramtica
que ouve o discpulo sair-se bastante bem de uma exposio difcil. Quando
terminei, perguntou-me gravemente o que havia pensado fazer dos inimigos do
regime. Seria fcil provar, se necessrio, que aqueles quatro homens haviam
conjurado minha morte; tinham pelo menos interesse em faz-lo. Toda passagem
de um reinado a outro acarreta sempre semelhantes operaes de limpeza. Ele
encarregara-se daquela para me deixar as mos limpas. Se a opinio pblica
exigia uma vtima, nada mais simples do que demiti-lo do seu cargo de prefeito
do pretrio. Ele previra essa medida; aconselhou-me a tom-la. Aceitaria o
afastamento ou at o exlio, se tanto fosse preciso para conciliar o Senado.

Atiano havia sido o tutor a quem sempre se subtrai dinheiro, o conselheiro dos
dias difceis, o procurador fiel; entretanto, era a primeira vez que eu olhava com
ateno para aquele rosto de bochechas flcidas cuidadosamente barbeadas,
para aquelas mos deformadas, tranqilamente juntas sobre o casto da bengala
de bano. Conhecia bastante bem os diversos elementos da sua existncia de
homem prspero: a mulher que lhe era querida e cuja sade exigia cuidados; as
filhas casadas e os netos, para os quais nutria ambies a um tempo modestas e
obstinadas, como o haviam sido as suas prprias. Conhecia seu gosto pelos pratos
requintados; sua decidida predileo pelos camafeus gregos e por jovens
danarinas. Ele me colocara acima de tudo isso: durante trinta anos, sua primeira
preocupao fora proteger-me, depois servir-me. A mim, que at ento
acalentara idias, projetos ou, no mximo, uma futura imagem de mim mesmo,
esse devotamento banal de homem para homem parecia-me prodigioso,
insondvel. Ningum digno de tamanha dedicao, e, alis, at hoje isso
permanece inexplicvel para mim. Segui seu conselho: ele perdeu o posto. Seu
sorriso delicado era uma prova de que esperava ser tomado ao p da letra. Sabia
muito bem que nenhuma solicitude intempestiva para com um velho amigo me
impediria, em nenhuma hiptese, de adotar a atitude mais esclarecida; aquele
fino poltico no aprovaria que eu agisse diferentemente. No era necessrio,
porm, exagerar a extenso da sua desgraa: depois de alguns meses de eclipse
poltico, consegui faz-lo entrar para o Senado. Era a maior honra para^ mim
poder conceder quele homem a ordem eqestre. Ele teve uma velhice fcil de
rico cidado romano, garantida pela influncia que lhe proporcionava o
conhecimento perfeito das famlias e dos negcios. Fui muitas vezes hspede dele
em sua vila dos montes de Alba. No importa: como Alexandre na vspera de
uma batalha, eu tinha sacrificado ao Medo antes de entrar em Roma: acontece-
me incluir Atiano entre minhas vtimas humanas.
Atiano estava certo: o ouro virgem do respeito seria muito fraco sem uma certa
liga de medo. Aconteceu com o assassinato dos quatro consulares como com a
histria do testamento forjado: os espritos honestos e os coraes virtuosos
recusaram-se a considerar-me implicado; os cnicos supuseram o pior, mas em
compensao me admiraram mais por isso. Roma voltou calma no momento
em que ficou claro que meus rancores no iam mais alm; a alegria
experimentada por cada um ao se sentir tranqilizado fez com que depressa todos
se esquecessem dos mortos. Admiravam-se da minha brandura porque a
julgavam deliberada e voluntria, adotada cada manh em substituio a uma
violncia que me teria sido igualmente fcil. Louvavam minha simplicidade
porque suspeitavam haver nela um clculo.

Trajano possura a maioria das virtudes modestas; as minhas tinham o dom de


surpreend-los; pouco faltava para que fossem vistas como um refinamento do
vcio. Eu era o mesmo homem de antes, mas tudo o que haviam menosprezado
em mim passava a ser sublime; uma extrema polidez, que os espritos grosseiros
haviam interpretado como forma de fraqueza, talvez de covardia, parecia-lhes
agora a bainha polida e lustrada da fora. Elevaram s nuvens minha pacincia
para com os solicitantes, minhas freqentes visitas aos enfermos dos hospitais
militares, minha familiaridade amistosa com os veteranos que retornavam
ptria. Nada disso diferia da maneira como eu havia, durante toda a minha vida,
tratado meus servidores e os colonos das minhas terras. Cada um de ns possui
mais virtudes do que os outros supem, mas s o sucesso as coloca em evidncia,
talvez porque se espere que deixemos de pratic-las. Os seres humanos
confessam publicamente suas piores fraquezas quando se espantam de que os
poderosos no sejam totalmente indolentes, presunosos, ou cruis.

Tinha recusado todos os ttulos. No primeiro ms do meu reinado, o Senado me


havia condecorado, sem meu consentimento, com a srie de ttulos honorficos
que se colocam, como se fosse um xale de franjas, em volta do pescoo de
certos imperadores. Dcico, prtico, germnico: Trajano apreciara esses belos
sons de msicas guerreiras, semelhantes aos cmbalos e ao tambores dos
regimentos partos; haviam suscitado nele ecos e respostas; a mim, simplesmente
irritavam-me ou atordoavam-me. Mandei abolir tudo isso; recusei tambm,
embora provisoriamente, o admirvel ttulo de pai da ptria, que Augusto s
aceitou no fim da vida e do qual ainda no me sentia digno. Tomei a mesma
atitude relativamente ao triunfo; teria sido ridculo aceitar a glria de uma guerra
em que meu nico mrito havia sido colocar-lhe um fim. Aqueles que
interpretaram essa recusa como modstia enganaram-se tanto quanto os que me
acusavam de orgulho. Meus clculos visavam menos aos efeitos produzidos nos
outros do que a minhas prprias vantagens. Queria que meu prestgio fosse
pessoal, colado minha pele, imediatamente mensurvel em termos de agilidade
mental, de fora, ou de atos realizados. Os ttulos, se viessem, viriam mais tarde,
acrescidos de outros ttulos, testemunhos de vitrias mais secretas, s quais sequer
ousava pretender ainda. Bastava-me, no momento, a preocupao de me tornar
ou de ser o mximo possvel Adriano.

Acusam-me de no amar Roma suficientemente. Entretanto, ela era bela


naqueles dois anos em que o Estado e eu experimentvamos mutuamente nossas
capacidades. A cidade das ruas estreitas, dos fruns apinhados, dos tijolos cor-de-
carne antiga. Roma, vista de novo depois do Oriente e da Grcia, revestia-se de
uma espcie de estranheza que um romano nascido e acostumado a viver
sempre na cidade no lhe encontraria. Reabituava-me a seus invernos midos e
cobertos de fuligem, a seus veres africanos temperados pelo frescor das
cascatas de Tbure e dos lagos de Alba, a seu povo quase rstico,
provincianamente apegado s sete colinas. A ambio do romano e seu atrativo
pelo lucro, os acasos da conquista e da servido, fazem afluir a Roma todas as
raas do mundo, desde o negro tatuado ao germano peludo, ao grego esbelto, at
o oriental espesso. Libertei-me de certas delicadezas: passei a freqentar os
banhos pblicos no horrio popular; aprendi a suportar os jogos em que s vira,
at ento, um feroz esbanjamento. Minha opinio no mudara: continuava a
detestar os massacres nos quais a fera no tem nenhuma alternativa. No entanto,
ia percebendo pouco a pouco seu valor ritual e seus efeitos de trgica purificao
sobre a multido inculta. Queria que o esplendor das festas igualasse o de
Trajano, embora com mais arte e mais ordem. Obriguei-me a apreciar a
rigorosa esgrima dos gladiadores com a condio, porm, de que ningum fosse
forado a exercer essa profisso contra sua vontade. Aprendi, do alto da tribuna
do Circo, a parlamentar com a multido atravs da voz dos arautos, a no lhes
impor silncio a no ser com uma deferncia que ela me devolvia centuplicada,
a no lhe conceder coisa alguma que ela no tivesse o direito de esperar, a nada
recusar sem explicar os motivos da recusa. No levava, como tu, meus livros
para a tribuna imperial: desprezar as alegrias do povo insult-lo. Se o espetculo
me aborrecia, o esforo despendido para suport-lo me parecia um exerccio
mais valioso do que a leitura de Epiteto.

A moral uma conveno privada; a decncia, um assunto pblico; toda


permissividade muito visvel sempre me pareceu uma exibio de mau gosto.
Proibi os banhos mistos, motivo de rixas quase constantes; mandei fundir e
restituir aos cofres do Estado a colossal baixela de ouro macio encomendada
pela intemperana de Vitlio. Nossos primeiros Csares deixaram uma detestvel
reputao de caadores de heranas: adotei como sistema no aceitar, nem para
o Estado nem para mim mesmo, nenhum legado ao qual os herdeiros diretos se
julgassem com direito. Procurei diminuir o nmero exorbitante de escravos a
servio da casa imperial, e sobretudo a audcia com a qual alguns deles
pretendiam igualar-se aos melhores cidados, aterrorizando-os por vezes. Certa
vez, um dos meus criados dirigiu impertinentemente a palavra a um senador;
ordenei que fosse esbofeteado. Minha averso desordem chegou ao ponto de
mandar aoitar em pleno Circo os dissipadores cobertos de dvidas. Para evitar
confuses na cidade, insisti no uso em pblico da toga e do laticlavo, vestes
incmodas como tudo o que honorfico, a que eu mesmo s me sujeito em
Roma. Levantava-me para receber meus amigos; conservava-me de p durante
minhas audincias, como reao contrria sem-cerimnia da atitude sentada
ou deitada. Ordenei a reduo do nmero insolente de equipagens que
atravancam nossas ruas, luxo de velocidade que se anula por si mesmo, pois que
um pedestre leva vantagem sobre cem veculos colados uns aos outros ao longo
das curvas da Via Sagrada. Para minhas visitas, habituei-me a me fazer
transportar em liteira at o interior das habitaes particulares, poupando a meu
anfitrio o incmodo de me esperar ou de me reconduzir at a rua sob o sol ou o
vento spero de Roma.

Reencontrei meus parentes: sempre senti certa ternura por minha irm Paulina, e
o prprio Serviano me parecia menos odioso do que outrora. Minha sogra Matdia
trouxera do Oriente os primeiros sintomas de uma doena mortal. Esforcei-me
por distra-la dos seus sofrimentos por meio de festas frugais, em que bastava
uma gota de vinho para embriagar aquela matrona com ingenuidades de donzela.
A ausncia de minha mulher, que se refugiara no campo em um dos seus acessos
de mau humor, no diminua em coisa alguma as alegrias familiares. Entre todas
as pessoas com quem convivi, ela foi talvez aquela a quem jamais consegui
agradar: verdade que no me empenhei muito nesse sentido. Freqentei a
pequena casa onde a imperatriz viva se entregava aos prazeres austeros da
meditao e dos livros. Reencontrei o emocionante silncio de Pio tina. Ela
apagava-se suavemente; aquele jardim, aquelas salas claras tornavam-se cada
dia mais o recinto fechado de uma Musa, o templo de uma imperatriz j divina.
Sua amizade permanecia exigente, conquanto Plotina no tivesse seno
exigncias judiciosas.

Revi meus amigos; conheci o prazer sutil de retomar contato aps longas
ausncias, de reconsiderar meus julgamentos, e de v-los reconsiderarem os
seus. Vtor Vocnio, o companheiro das alegrias e dos trabalhos literrios de
outrora, tinha morrido. Encarreguei-me de compor sua orao fnebre; sorriram
ao ouvir-me mencionar entre as virtudes do morto uma castidade desmentida
pelos seus prprios poemas e pela presena, no funeral, de Tstilo, o jovem dos
caracis cor de mel, a quem Vtor chamava noutro tempo seu belo tormento.
Minha hipocrisia era menos grosseira do que parecia: todo prazer sentido com
gosto parece-me casto. Colocava Roma em ordem, tal como uma casa da qual o
proprietrio deseja poder ausentar-se sem que ela sofra com sua ausncia: novos
colaboradores foram testados; os adversrios reconciliados cearam no Palatino
com os amigos dos tempos difceis. Nercio Prisco delineava minha mesa seus
planos de legislao; o arquiteto Apolodoro nos explicava seus projetos; Cenio
Cmodo, riqussimo patrcio descendente de antiga famlia etrusca com sangue
real, grande conhecedor de vinhos e homens, acertava comigo os detalhes da
minha prxima manobra no Senado.
Seu filho, Lcio Cenio, ento com dezoito anos apenas, alegrava essas festas,
que eu queria austeras, com a graa risonha de jovem prncipe. Tinha j certas
manias absurdas e, ao mesmo tempo, deliciosas: a paixo de preparar iguarias
raras para seus amigos, o gosto requintado pelas decoraes florais, o amor louco
pelos jogos de azar e pelos disfarces. Marcial era seu Virglio: declamava aquelas
poesias lascivas com impudncia encantadora. Fiz-lhe promessas que mais tarde
me embaraaram muito; esse jovem fauno danante ocupou seis meses da
minha vida.

Muitas vezes perdi Lcio de vista e muitas vezes tornei a encontr-lo no decorrer
dos anos que se seguiram, a tal ponto que corro o risco de ter guardado dele uma
imagem feita de memrias superpostas que no correspondem, no conjunto, a
nenhuma fase da sua breve existncia. O rbitro um tanto insolente das
elegncias romanas, o orador iniciante, timidamente curvado sobre as
dificuldades do texto, exigindo minha opinio sobre uma passagem difcil, o
jovem oficial inquieto, torturando a barba pouco densa, o enfermo atormentado
pela tosse junto do qual velei at a agonia, s existiram muito mais tarde. A
imagem de Lcio adolescente ficou confinada nos mais secretos recantos da
memria: um rosto, um corpo, o alabastro de uma tez plida e rosada, o
equivalente exato de um epigrama amoroso de Calmaco e de algumas linhas
ntidas e nuas do poeta Estrato.

Mas eu tinha pressa de sair de Roma. At ento meus predecessores se haviam


ausentado principalmente em razo das guerras; para mim, os grandes projetos,
as atividades pacficas e minha prpria vida comeavam fora dos muros de
Roma.

Antes, porm, cabia-me tomar uma ltima medida: dar a Trajano o triunfo que
obsedara seus sonhos de doente. O triunfo s assenta bem nos mortos. Aos vivos,
h sempre algum para censurar-lhes as fraquezas, como outrora reprovavam a
Csar a calvcie e os amores. Mas o morto tem direito a essa espcie de
consagrao na sepultura, algumas horas de pompa e brilho antes dos sculos de
glria e dos milnios de esquecimento. A boa fortuna de um morto acha-se ao
abrigo dos reveses; suas mesmas derrotas adquirem o esplendor de vitrias. O
ltimo triunfo de Trajano no comemorava seu xito mais ou menos duvidoso
sobre os partos, mas o honroso esforo de toda uma vida. Ns nos reunramos
para celebrar o melhor imperador que Roma conheceu depois da velhice de
Augusto: Trajano, o mais constante no trabalho, o mais honesto, o menos injusto.
Seus prprios defeitos no eram nada mais do que as particularidades que
concorrem para acentuar a semelhana do busto de mrmore com a face do ser
vivo. A alma do imperador subia ao cu levada pela espiral imvel da Coluna de
Trajano. Meu pai adotivo transformava-se em deus e iniciava sua participao
na srie de encarnaes guerreiras de Marte eterno, que vem perturbar o mundo
de sculo em sculo. De p na varanda do Pala tino, eu media minhas
diferenas; instrumentava-me para fins mais calmos. Comeava a sonhar com
uma soberania olmpica.
Roma j no cabe mais em Roma: a partir de agora deve decair ou igualar-se
metade do mundo. Esses telhados, esses terraos, essas ilhotas de casas, que o sol
poente doura com um rosa to belo, j no so, como no tempo dos nossos reis,
prudentemente cercados de muralhas; eu prprio reconstru boa parte delas ao
longo das florestas germnicas e nas extensas charnecas brets. Sempre que
avistei de longe, numa curva de qualquer estrada ensolarada, uma acrpole
grega e sua cidade perfeita como uma flor, ligada sua colina como o clice
sua haste, sentia que essa planta incomparvel era limitada pela sua prpria
perfeio, consumada num ponto do espao e num segmento do tempo. Sua
nica probabilidade de expanso, como a das plantas, era sua semente: o smen
das idias com que a Grcia fecundou o mundo. Roma, porm, mais pesada e
informe, mais vagamente estendida na sua plancie s margens do seu rio,
organizava-se em direo a um desenvolvimento mais amplo: a cidade tornara-
se o Estado. Bem quisera eu que o Estado se expandisse ainda mais,
transformando-se na prpria ordem do mundo, na prpria ordem das coisas. As
virtudes, antes suficientes pequena cidade das sete colinas, teriam de se tornar
flexveis, diversificar-se, para convirem a toda a Terra. Roma, que eu era o
primeiro a ousar qualificar de Eterna, assemelhar-se-ia cada vez mais s deusas-
mes dos cultos da sia: progenitora dos jovens e das colheitas, cerrando contra
o seio lees e colmias. Contudo, toda criao humana que aspira eternidade
deve adaptar-se ao ritmo instvel dos grandes objetos naturais e harmonizar-se
com o tempo dos astros. Nossa Roma j no a aldeia pastoral do velho
Evandro, grvida de um futuro que j , em parte, passado. A Roma
conquistadora da Repblica cumpriu seu papel; a louca capital dos primeiros
Csares tende, por si mesma, a tornar-se mais circunspecta; outras Roms viro
das quais mal posso imaginar a fisionomia, mas para cuja formao terei
contribudo. Visitando as cidades antigas, santas, mas acabadas, sem valor
presente para a raa humana, fazia a mim mesmo a promessa de evitar que
minha Roma tivesse o destino petrificado de uma Tebas, de uma Babilnia ou de
uma Tiro. Salvar-se-ia do seu destino de pedra; criaria para si, com a palavra
Estado, com a palavra cidadania, com a palavra Repblica, uma imortalidade
mais segura. Nos pases ainda incultos, s margens do Reno, do Danbio, ou do
mar dos Batavos, cada aldeia defendida por uma paliada de estacas me fazia
lembrar a cabana de canios, o monte de gravetos onde nossos gmeos romanos
dormiam saciados pelo leite da loba: essas futuras metrpoles iriam reproduzir
Roma. Aos corpos fsicos das naes e das raas, aos acidentes geogrficos, s
exigncias discordantes dos deuses ou dos antepassados, teramos para sempre
superposto, mas sem nada destruir, a unidade da conduta humana, o empirismo
de uma sbia experincia. Roma perpetuar-se-ia na mais insignificante das
cidades onde os magistrados se esforassem por verificar a balana dos
negociantes, por limpar e iluminar suas ruas, por se opor desordem, incria,
ao medo, injustia, e reinterpretar razoavelmente as leis. Assim, s sucumbiria
com a ltima cidade dos homens.

Humanitas, Felicitas, Libertas: essas belas palavras que figuram nas moedas do
meu reinado, no fui eu que- as inventei. Qualquer filsofo grego e quase todos
os romanos cultos tm, como eu, a mesma imagem do mundo. Colocado diante
de uma lei injusta porque excessivamente rigorosa, ouvi Trajano exclamar que a
execuo dela j no correspondia ao esprito da poca. A esse esprito da poca,
eu teria sido talvez o primeiro a subordinar conscientemente todos os meus atos, a
fazer dele qualquer coisa mais que o vago sonho de um filsofo, ou a aspirao
um tanto imprecisa de um bom prncipe. E agradecia aos deuses por me terem
concedido viver num tempo em que a tarefa que me coube consistia em
reorganizar prudentemente o mundo, e no em extrair do caos uma matria
ainda informe, ou em deitar-me sobre um cadver para tentar ressuscit-lo.
Felicitava-me pelo fato de que nosso passado tivesse sido bastante antigo para nos
fornecer exemplos, e no pesado demais para nos esmagar; felicitava-me
tambm pelo fato de que o desenvolvimento das nossas tcnicas tivesse atingido
tal ponto que facilitasse a higiene das cidades e a prosperidade dos povos sem os
excessos que ameaariam sobrecarregar o homem com aquisies inteis; que
nossas artes, rvores um tanto fatigadas pela abundncia dos seus dons, fossem
capazes ainda de produzir alguns frutos deliciosos. Alegrava-me que nossas
religies vagas e venerveis, decantadas de toda intransigncia ou de todo ritual
selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem
e da terra, sem contudo proibir as explicaes laicas dos fatos, numa viso
racional da conduta humana. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras,
Humanidade, Liberdade e Felicidade, no tivessem ainda sido desvalorizadas
pelo excesso de aplicaes ridculas.

Considero a maior objeo a todo e qualquer esforo para melhorar a condio


humana o fato de os homens serem, talvez, indignos dele. Afasto-a, porm, sem
dificuldade: enquanto o sonho de Calgula permanecer irrealizvel e o gnero
humano no for todo ele reduzido a uma nica cabea oferecida ao cutelo,
teremos de toler-lo, cont-lo e utiliz-lo para nossos prprios fins. Nosso
interesse, claro, ser o de bem servi-lo. Meu processo baseava-se numa srie
de observaes feitas havia muito tempo em mim prprio: toda explicao lcida
sempre me convenceu, toda polidez me conquistou, toda felicidade quase
invariavelmente me tornou mais moderado. Jamais dei muito crdito s pessoas
bem-intencionadas que afirmam que a felicidade excita, que a liberdade
enfraquece, que a clemncia corrompe aqueles sobre quem se exerce.
possvel: na situao normal do mundo, seria o mesmo que recusar o alimento
necessrio a um homem magro por receio de que, dentro de alguns anos, ele
viesse a sofrer de pletora. Quando tivermos reduzido o mximo possvel as
servides inteis, evitado as desgraas desnecessrias, restar sempre, para
manter vivas as virtudes hericas do homem, a longa srie de males verdadeiros:
a morte, a velhice, as doenas incurveis, o amor no partilhado, a amizade
rejeitada ou trada, a mediocridade de uma vida menos vasta do que nossos
projetos e mais enevoada do que nossos sonhos. Enfim, todas as desventuras
causadas pela divina natureza das coisas.

Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando demasiado duras, so
transgredidas com razo. Quando muito complicadas, o engenho humano
encontra facilmente o meio de escapar por entre as malhas dessa rede frgil e
escorregadia. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que a piedade humana
tem de mais profundo; serve tambm de travesseiro inrcia dos juizes. As leis
mais antigas participam da selvageria que elas mesmas pretendem corrigir; as
mais venerveis so ainda um produto da fora. A maioria das nossas leis penais
s atingem, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; nossas leis civis
jamais sero bastante flexveis para se adaptar fluida variedade dos fatos.
Mudam menos rapidamente do que os costumes; perigosas quando estes as
ultrapassam, o so ainda mais quando pretendem preced-los. Contudo, desse
amontoado de inovaes perigosas que oferecem tantos riscos, ou de rotinas
obsoletas, surgem aqui e ali, como na medicina, algumas frmulas aproveitveis.
Os filsofos gregos ensinaram-nos a conhecer um pouco melhor a natureza
humana: nossos melhores juristas vm trabalhando h algumas geraes visando
ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas parciais, que so as
nicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida m: cabe ao legislador
revog-la ou substitu-la antes que o desprezo por uma disposio insensata se
estenda a outras leis mais justas. Propus-me como meta uma anulao prudente
de leis suprfluas e a promulgao, com firmeza, de um pequeno grupo de
decises sbias. Parecia chegado o momento de reavaliar, no interesse da
humanidade, todas as prescries antigas.

Na Espanha, nos arredores de Tarragona, certo dia em que visitava


desacompanhado uma mina semi-abandonada, um escravo, cuja vida bastante
longa se passara quase toda naqueles corredores subterrneos, lanou-se sobre
mim com uma faca. No sem lgica, ele se vingava na pessoa do imperador dos
seus quarenta e trs anos de servido. Desarmei-o facilmente e entreguei-o a
meu mdico. Sua fria abrandou; transformou-se no que realmente era: um ser
no menos sensato do que outros, e mais fiel do que muitos. Esse delinqente, que
a lei rigorosamente aplicada teria executado imediatamente, tornou-se-me til
servidor. A maior parte dos homens assemelha-se a esse escravo: submeteram-se
demais. Os longos perodos de embotamento so interrompidos por algumas
revoltas to brutais quanto inteis. Desejava saber se uma liberdade sabiamente
compreendida no daria melhor resultado, e espanta-me que semelhante
experincia no tenha tentado outros prncipes. Esse brbaro condenado ao
trabalho das minas tornou-se, para mim, o smbolo de todos os nossos escravos,
de todos os nossos brbaros. No me parecia de todo impossvel trat-los como
eu havia tratado esse homem, torn-los inofensivos atravs da bondade, contanto
que soubessem, em princpio, que a mo que os desarmava era firme. At agora
todos os povos decaram por falta de generosidade: Esparta teria sobrevivido
mais tempo se tivesse interessado os hilotas na sua sobrevivncia; um belo dia
Atlas cessa de sustentar o peso do cu e sua revolta abala a Terra. Eu teria
querido recuar o mais possvel, evitar, se pudesse, o momento em que os
brbaros do exterior e os escravos do interior se lanaro sobre um mundo que
lhes mandam respeitar de longe, ou servir como inferiores, mas cujos benefcios
no so para eles. Empenhava-me em que a mais deserdada das criaturas, o
escravo encarregado da limpeza das cloacas das cidades, o brbaro esfaimado
que ronda as fronteiras, pudessem sentir interesse pela estabilidade de Roma.

Duvido que toda a filosofia do mundo seja capaz de suprimir a escravido: no


mximo, mudar-lhe-o o nome. Sou capaz de imaginar formas de servido
piores que as nossas, porque mais insidiosas: seja transformando os homens em
mquinas estpidas e satisfeitas que se julgam livres quando so subjugadas, seja
desenvolvendo neles, mediante a excluso do repouso e dos prazeres humanos,
um gosto to absorvente pelo trabalho como a paixo da guerra entre as raas
brbaras. A essa servido do esprito ou da imaginao, prefiro ainda nossa
escravido de fato. Seja como for, a terrvel condio que coloca um homem
merc de outro homem deve ser cuidadosamente regulada pela lei. Providenciei
para que o escravo no continuasse a ser essa mercadoria annima que se vende
sem levar em conta as ligaes de famlia que ele haja criado, esse objeto
desprezvel de que um juiz no registra o testemunho antes de hav-lo submetido
tortura, em lugar de aceit-lo sob juramento. Proibi que fossem obrigados a
executar funes degradantes ou perigosas, que fossem vendidos aos donos de
casas de prostituio ou s escolas de gladiadores. Que aqueles que se
comprazem com essas profisses sejam os nicos a exerc-las: sero assim mais
bem desempenhadas. Nas propriedades agrcolas, onde os feitores abusam da
fora, substitu, o mximo possvel, o escravo pelo colono livre. Nosso anedotrio
est cheio de histrias de gastrnomos que atiram seus criados s morias, mas
os crimes escandalosos e facilmente punveis so pouca coisa comparados aos
milhares de monstruosidades corriqueiras cometidas diariamente por gente de
bem, mas de corao duro, a quem ningum pensa em incomodar. Protestaram
quando expulsei de Roma uma rica patrcia, muito considerada, que maltratava
seus velhos escravos. O mais insignificante dos ingratos que negligencia seus pais
enfermos choca muito mais a conscincia pblica, mas vejo pouca diferena
entre essas duas formas de desumanidade.

A condio das mulheres determinada por estranhos costumes: elas so ao


mesmo tempo dominadas e protegidas, fracas e poderosas, excessivamente
desprezadas e excessivamente respeitadas. Nesse caos de costumes
contraditrios, a sociedade sobrepe-se natureza: pior ainda, no fcil
distinguir uma da outra. Esse estado de coisas to confuso , em toda parte, mais
estvel do que parece: no conjunto, as mulheres querem continuar como esto;
resistem s mudanas, ou as utilizam em benefcio prprio. A liberdade das
mulheres de hoje, maior ou pelo menos mais visvel do que a dos tempos antigos,
no passa de um dos aspectos da vida mais fcil das pocas prsperas; os
princpios e mesmo os preconceitos de outrora no foram seriamente atingidos.
Sinceros ou no, os elogios oficiais e as inscries tumulares continuam a atribuir
s nossas matronas as mesmas virtudes de inteligncia, castidade e austeridade
que lhes eram exigidas sob a Repblica. Alis, essas mudanas, reais ou
aparentes, no modificaram em nada o eterno desregramento dos costumes da
classe baixa, nem a perptua hipocrisia burguesa, e s o tempo poder provar sua
durabilidade. A fraqueza das mulheres, como a dos escravos, deve-se sua
condio legal; sua fora desforra-se nas pequenas coisas nas quais o poder que
elas exercem quase ilimitado. Raramente vi o interior de uma casa onde as
mulheres no reinassem; tambm vi vrias vezes reinar ali o intendente, o
cozinheiro, ou o ex-escravo. No campo financeiro, as mulheres permanecem
legalmente subordinadas a uma certa forma de tutela; na prtica, em todas as
lojas de Suburra, normalmente a vendedora de aves ou de frutos quem tem voz
ativa no balco. A esposa de Atiano administrava os bens da famlia com
admirvel gnio de homem de negcios. As leis deveriam diferenciar o menos
possvel sua aplicao: concedi mulher uma liberdade acrescida do direito de
administrar sua fortuna, de testar ou de herdar. Insisti em que nenhuma jovem se
casasse sem seu prprio consentimento: essa transgresso das leis to
repugnante como qualquer outra. O casamento sua grande questo; muito
justo que elas s a resolvam por livre e espontnea vontade.

Uma parte dos nossos males provm de que muitos homens so excessivamente
ricos, e outros, desesperadamente pobres. Por felicidade, certo equilbrio tende a
se estabelecer atualmente entre esses dois extremos: as fortunas colossais dos
imperadores e dos ex-escravos pertencem ao passado: Trimalcio e Nero esto
mortos. Mas, no que respeita a uma inteligente reformulao econmica do
mundo, tudo est por fazer. Ao chegar ao poder, renunciei s contribuies
voluntrias das cidades para o imperador, que no passam de um roubo
disfarado. Aconselho-te a renunciar a elas, por tua vez. A anulao completa
das dvidas dos particulares ao Estado era uma medida mais arriscada, porm
necessria para fazer tbua rasa depois de dez anos de economia de guerra. H
um sculo nossa moeda vem sendo perigosamente desvalorizada. , entretanto,
pela taxa das nossas peas de ouro que se avalia a eternidade de Roma: cabe-nos
restituir-lhes o valor e o peso solidamente calculados em coisas. Nossas terras so
cultivadas ao acaso: s os distritos privilegiados, o Egito, a frica, a Toscana e
alguns outros, souberam criar comunidades camponesas inteligentemente
exercitadas na cultura do trigo ou da uva. Uma das minhas preocupaes era
amparar essa classe e dela obter instrutores destinados a treinar as populaes
camponesas mais primitivas ou mais rotineiras e menos hbeis. Pus termo ao
escndalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietrios indiferentes
ao bem pblico: todo campo no cultivado durante cinco anos passava,
automaticamente, a pertencer ao lavrador disposto a faz-lo produzir. Medidas
semelhantes foram tomadas com relao s exploraes mineiras. A maior parte
dos nossos ricos faz enormes donativos ao Estado, s instituies pblicas, ao
prncipe. Muitos agem assim por interesse, alguns, por virtude; quase todos,
finalmente, ganham na transao. Teria preferido, porm, ver a generosidade
deles assumir outras formas que no fossem a da ostentao na esmola, ensinar-
lhes a aumentar sensatamente seus bens no interesse da comunidade, como s o
fizeram at o presente para enriquecer os filhos. Foi dentro desse esprito que eu
prprio tomei nas minhas mos a administrao do domnio imperial: ningum
tem o direito de tratar a terra como o a varo a sua arca de ouro.

Nossos comerciantes so, por vezes, nossos melhores gegrafos, nossos melhores
astrnomos, nossos mais sbios naturalistas. Nossos banqueiros podem colocar-se
entre nossos mais hbeis conhecedores de homens. Utilizava sua competncia;
lutava com todas as minhas foras contra a usurpao. O apoio dado aos
armadores decuplicou o intercmbio com as naes estrangeiras; consegui, dessa
maneira, aumentar com pouca despesa a custosa frota imperial. No tocante s
importaes do Oriente e da frica, a Itlia uma ilha e depende dos corretores
de trigo para sua subsistncia, desde que no ela prpria a fornec-lo; a nica
maneira de fazer face aos perigos dessa situao tratar esses indispensveis
homens de negcios como funcionrios vigiados de perto. Nossas velhas
provncias atingiram nos ltimos anos uma prosperidade passvel de ainda ser
aumentada, mas o que realmente importa que essa prosperidade sirva a todos,
e no somente ao banco de Herodes tico, ou ao pequeno especulador que
aambarca todo o azeite de uma aldeia grega. Nenhuma lei demasiadamente
dura para reduzir o nmero de intermedirios que abundam em nossas cidades:
raa obscena e obesa, que cochicha pelas tavernas, encostada a todos os balces,
pronta a solapar toda poltica que no lhe ^proporcione vantagens imediatas.
Uma distribuio judiciosa dos celeiros do Estado ajuda a conter a escandalosa
inflao dos preos em tempos de escassez, mas eu contava sobretudo com a
organizao dos prprios produtores, dos vinhateiros gauleses, dos pescadores do
Ponto Euxino, cuja cota miservel devorada pelos importadores de caviar e de
peixe salgado, que engordam custa dos trabalhos e dos perigos deles. Um dos
meus dias mais felizes foi aquele em que consegui persuadir um grupo de
marinheiros do Arquiplago a associar-se em corporao e a tratar diretamente
com os mercadores das cidades. Jamais me senti to prncipe e to til.

Demasiadas vezes, a paz para o exrcito apenas um perodo de ociosidade


turbulenta entre dois combates. A nica alternativa inao, ou desordem, so
os trabalhos preparatrios para uma nova guerra, e depois a prpria guerra.
Rompi com essas rotinas: minhas constantes visitas aos postos avanados eram
apenas um meio entre outros de manter aquele exrcito pacfico em estado de
atividade til. Por toda parte, nos terrenos planos como na montanha, na orla da
floresta como em pleno deserto, a legio amplia ou concentra suas edificaes
sempre iguais, bem como seus campos de manobras. Da mesma forma, ocupa-
se dos acampamentos construdos em Colnia para resistir neve c, em
Lambesa, para resistir s tempestades de areia; dos seus armazns, cujo material
intil mandei vender; e, finalmente, do seu crculo de oficiais, a que preside uma
esttua do prncipe. Mas essa uniformidade apenas aparente: os alojamentos
em contnua renovao abrigam alternadamente uma multido sempre diferente
de tropas auxiliares. Todas as raas trazem para o exrcito suas virtudes e suas
armas peculiares, seu engenho de infantaria, de cavalaria ou de arqueiros.
Encontrava ali, em estado primitivo, aquela diversidade na unidade que foi minha
aspirao imperial. Permiti aos soldados o uso dos seus gritos de guerra nacionais
e ordens de comando transmitidas em seus prprios idiomas; sancionei as unies
dos veteranos com as mulheres brbaras e legitimei seus filhos. Esforava-me
assim por suavizar a selvageria da vida dos acampamentos, por tratar esses
homens simples como homens. Mesmo correndo o risco de torn-los menos
receptivos a futuros deslocamentos, ainda assim queria-os mais presos ao palmo
de terra que tinham por misso defender; no hesitei inclusive em regionalizar o
exrcito. Esperava restabelecer no imprio o equivalente s milcias da jovem
Repblica, nas quais cada homem defendia seu campo e sua fazenda.
Trabalhava sobretudo para desenvolver a eficcia tcnica das legies; pretendia
servir-me desses centros militares como de uma alavanca de civilizao, como
uma cunha bastante slida para penetrar aos poucos nos lugares onde os
instrumentos mais delicados da vida civil estivessem embotados. O exrcito
tornava-se um trao de unio entre o povo das florestas, da estepe e dos charcos,
e o habitante requintado das cidades: uma espcie de escola primria para
brbaros, escola de resistncia e de responsabilidade para o grego letrado, ou
para o jovem cavalheiro habituado s comodidades de Roma. Conhecia
pessoalmente os lados penosos dessa vida, to bem como as suas facilidades e os
seus subterfgios. Anulei os privilgios; proibi as licenas demasiado freqentes
concedidas aos oficiais; fiz desobstruir os acampamentos de suas salas de
banquetes, dos seus pavilhes de prazer e dos dispendiosos jardins. Essas
edificaes inteis foram transformadas em enfermarias e em asilos para
veteranos. Recrutvamos nossos soldados numa idade muito tenra e os
mantnhamos em atividade at muito velhos, o que era ao mesmo tempo pouco
econmico e cruel. Modifiquei tudo isso. A Disciplina Augusta tem o dever de
participar da humanizao do sculo.

Somos funcionrios do Estado, no somos Csares. Tinha razo aquela queixosa a


quem me recusei certo dia a ouvir at o fim, quando gritou que, se o tempo me
faltava para ouvi-la, certamente me faltaria tambm para reinar. As desculpas
que lhe apresentei no foram por mera formalidade. E, contudo, o tempo me
falta: quanto mais o Imprio cresce, tanto mais os diferentes aspectos da
autoridade tendem a concentrar-se nas mos do funcionrio-chefe. Esse homem
apressado deve necessariamente descarregar sobre terceiros uma parte de suas
tarefas; seu talento deve cada vez mais consistir em cercar-se de assessores de
confiana. O grande crime de Cludio, ou de Nero, foi deixar por negligncia
que seus ex-escravos ou seus escravos se apoderassem das posies de agentes,
conselheiros e delegados do soberano. Uma parte da minha vida e das minhas
viagens foi dedicada a escolher os ocupantes dos primeiros lugares de uma
burocracia nova, a trein-los e a harmonizar o mais judiciosamente possvel cada
talento com a respectiva funo, a abrir possibilidades teis de emprego para a
classe mdia de que o Estado depende. Conheo o perigo desses exrcitos civis:
resumem-se, em uma palavra, na instituio da rotina. Essas engrenagens,
montadas para durar sculos, estragar-se-o se no forem muito cuidadas; cabe
ao chefe regular-lhes constantemente os movimentos, prever e reparar-lhes o
desgaste. Mas a experincia demonstra que, apesar dos nossos infinitos cuidados
na escolha dos nossos sucessores, os imperadores medocres sero sempre os
mais numerosos. Oxal reine apenas um insensato em cada sculo! Em tempos
de crise, essas reparties bem organizadas podero continuar a ocupar-se do
essencial, a preencher a interinidade, por vezes muito longa, entre um prncipe
sbio e outro prncipe sbio. Alguns imperadores arrastam atrs de si imensas
filas de brbaros atados pelo pescoo, em interminveis procisses de vencidos.
A elite de funcionrios em cuja formao me empenhei meu cortejo. O
conselho do prncipe: foi graas queles que o compem que pude ausentar-me
de Roma durante anos e aqui voltar apenas de passagem. Correspondia-me com
eles atravs dos correios mais rpidos; em caso de perigo, atravs de sinais dos
semforos. Eles, por sua vez, formaram novos auxiliares de grande utilidade. Sua
competncia obra minha; sua atividade bem-orientada permitiu-me dedicar-
me eu prprio a outros assuntos. Essa mesma competncia vai permitir-me, sem
demasiada preocupao, ausentar-me na morte.

Em vinte anos de poder, passei doze sem domiclio fixo. Vivia, alternadamente,
nos palcios de mercadores da sia, nas tranqilas residncias gregas, nas
magnficas vilas providas de banhos e calefatores dos romanos residentes na
Glia, em cabanas, ou em propriedades rurais. A tenda leve, a arquitetura de lona
e cordas, era ainda a preferida. Os navios no eram menos variados que os
domiclios terrestres: possu o meu prprio, dotado de ginsio e biblioteca, mas
desconfiava demais de toda e qualquer estabilidade para me fixar em algum
domiclio, mesmo flutuante. O barco de recreio de um milionrio srio, os navios
de alto bordo da frota, ou o caque do pescador grego satisfaziam-me igualmente.
Meu nico luxo era a velocidade, e tudo o que a favorecesse: os melhores
cavalos, as carruagens com as melhores molas, as bagagens menos
embaraosas, o vesturio e os acessrios mais apropriados ao clima. O grande
recurso, no entanto, era, antes de tudo, o perfeito estado do corpo; uma marcha
forada de vinte lguas no era nada, uma noite de insnia era considerada
apenas como um convite a pensar. Poucos homens gostam, durante muito tempo,
de viagens, esse constante rompimento com todos os hbitos, essa quebra
contnua de todos os preconceitos. Quanto a mim, esforava-me por ter poucos
hbitos e no alimentar nenhum preconceito. Apreciava a profundeza deliciosa
dos leitos, mas no menos o contato e o cheiro da terra nua, as desigualdades de
cada segmento da circunferncia do mundo. Habituei-me variedade das
iguarias, aos cereais britnicos, ou melancia africana. Aconteceu-me certo dia
provar a caa semi-deteriorada que faz as delcias de certos povos germnicos.
Vomitei-a, mas a experincia foi tentada. Muito consciente das minhas
preferncias amorosas, mesmo nesse campo temia a rotina. Minha comitiva,
limitada ao indispensvel ou ao especial e delicioso, isolava-me pouco do resto do
mundo. Procurava manter livres meus movimentos e fcil minha aproximao.
As provncias, essas grandes unidades oficiais, cujos emblemas eu prprio havia
escolhido, a Britnia sobre o seu assento de rochedos ou a Dcia e seu alfanje,
dissociavam-se em florestas de que eu buscara a sombra, em poos onde eu
bebera, em indivduos encontrados ao acaso das paradas, em rostos conhecidos,
por vezes amados. Conhecia cada milha das nossas estradas, talvez o mais belo
dom que Roma fez terra. O momento inesquecvel, porm, era aquele em que
a estrada se detinha no flanco de uma montanha, onde se subia de fenda em
fenda, de bloco em bloco, para contemplar o nascer do sol do alto de um pico dos
Pireneus ou dos Alpes.

Antes de mim, j alguns homens haviam percorrido a terra: Pitgoras, Plato,


uma dzia de sbios e bom nmero de aventureiros. Pela primeira vez, o viajante
era, ao mesmo tempo, o senhor com plena liberdade de ver, reformar e criar.
Era a minha oportunidade, e compreendi que talvez tivessem de decorrer sculos
antes que se reproduzisse esse feliz acordo entre um cargo, um temperamento e
um mundo. Foi ento que me apercebi da vantagem de ser um homem novo e
um homem s, muito pouco casado, sem filhos, praticamente sem ancestrais,
Ulisses sem outra Itaca alm da interior. Devo fazer aqui uma confisso que
nunca fiz a ningum: jamais experimentei o sentimento de pertencer
completamente a qualquer lugar, nem mesmo minha Atenas bem-amada,
sequer a Roma. Estrangeiro em toda parte, mesmo assim no me sentia
particularmente isolado em lugar algum. Exercia, no curso das viagens, as
diferentes profisses que constituem o ofcio de imperador: adotava a vida militar
como um traje que se tornou cmodo fora de ser muito usado. Recomeava a
empregar sem nenhum esforo a linguagem dos acampamentos, esse latim
deformado pela. presso das lnguas brbaras, entremeado de pragas rituais e de
gracejos fceis. Reabituava-me ao incmodo equipamento dos dias de
manobras, a essa mudana de equilbrio que a presena do pesado escudo no
brao esquerdo produz em todo o corpo. A longa funo de contabilista ocupava-
me cada vez mais em toda parte, quer se tratasse de verificar as contas da
provncia da sia, ou as de um pequeno burgo britnico endividado pela
construo de um estabelecimento termal. J falei sobre a profisso de juiz.
Vinham-me ao esprito analogias com outros empregos: pensava no mdico
ambulante, curando as pessoas de porta em porta, no operrio dos consertos e
limpezas chamado a reparar uma calada ou a soldar de novo um cano de gua,
no homem de vigia que corre de um extremo a outro dos navios encorajando os
remadores, mas utilizando o chicote o menos possvel. E hoje, nos terraos da
Vila, observando os escravos a podar os ramos ou a capinar os canteiros, penso
sobretudo no tranqilo vaivm do jardineiro.

Os artistas que levava comigo em minhas viagens quase no me causavam


preocupaes: seu gosto pelas viagens igualava o meu. Tive dificuldades somente
com os homens de letras. O indispensvel Flgon possui defeitos de mulher velha,
mas o nico secretrio que tem resistido fadiga: l est ainda. O poeta Floro, a
quem ofereci um secretariado em lngua latina, dizia a todos que no teria
querido ser um Csar se para tanto fosse obrigado a suportar o frio das regies
citas e as chuvas brets. Tampouco lhe agradavam as longas caminhadas a p.
De minha parte, deixava-lhe de bom grado as delcias da vida literria de Roma,
as tavernas onde os literatos se encontram noite aps noite para trocar as mesmas
belas frases e deixar-se picar fraternalmente pelos mesmos mosquitos. Dei a
Suetnio o lugar de curador dos arquivos, o que lhe permitia consultar os
documentos secretos de que necessitava para sua biografia dos Csares. Esse
homem hbil, to apropriadamente cognominado o Tranqilo, no era
concebvel a no ser no interior de uma biblioteca. Permaneceu em Roma, onde
se tornou um dos familiares de minha mulher, um membro do pequeno crculo
de conservadores descontentes que se reuniam em casa de Sabina para criticar
os acontecimentos do mundo. Esse pequeno grupo me agradava muito pouco:
mandei aposentar Tranqilo, que se retirou para sua casinha dos montes Sabinos,
a fim de sonhar em paz com os vcios de Tibrio. Favorino de Aries ocupou
durante algum tempo um secretariado grego: esse ano de voz aflautada no era
desprovido de argcia. Era um dos espritos mais falsos que tenho encontrado:
discutamos, mas sua erudio encantava-me. Divertia-me com a hipocondria
que o fazia ocupar-se de sua sade como um amante da mulher amada. Seu
servo hindu preparava-lhe arroz vindo do Oriente por alto preo. Por infelicidade,
aquele cozinheiro extico falava muito mal o grego e quase nada de qualquer
lngua: nada pde ensinar-me das maravilhas do seu pas natal. Favorino
orgulhava-se de haver conseguido em sua vida trs coisas bastante raras: gauls,
era mais bem helenizado do que qualquer outro; homem sem importncia,
discutia constantemente com o imperador e no vivia pior por isso, singularidade
que, alis, revertia toda a meu crdito; impotente, pagava freqentes multas por
adultrio. verdade que suas admiradoras da provncia lhe causavam
complicaes, das quais fui obrigado a livr-lo mais de uma vez. Cansei-me,
afinal, dele, e o substitu por Eudemo. Mas, no conjunto, fui extraordinariamente
bem servido. O respeito desse pequeno grupo de amigos e empregados
sobreviveu, os deuses sabem como, intimidade brutal das viagens: sua discrio
foi mais admirvel ainda, se possvel, do que sua prpria fidelidade. Os Suetnios
do futuro tero muito poucas anedotas a recolher relativas minha pessoa. Tudo
aquilo que o pblico sabe sobre minha vida foi revelado por mim mesmo. Meus
amigos guardaram todos os meus- segredos. Os polticos e os outros tambm.
justo dizer que fiz muitas vezes outro tanto por todos eles. Construir colaborar
com a terra: colocar um marco humano numa paisagem, marco que a
modificar para sempre; contribuir tambm para a lenta transformao que
constitui a vida das cidades. Quantos cuidados para encontrar a colocao exata
de uma ponte, ou de uma fonte, para dar a uma estrada montanhosa a curva
mais econmica e que seja, ao mesmo tempo, a mais pura O alargamento da
estrada de Megara transformava a paisagem de rochas esquironianas; os dois mil
estdios aproximados de vias empedradas, providas de cisternas e postos
militares, destinados a unir a cidade de Antino ao mar Vermelho, fizeram com
que a era da segurana sucedesse dos perigos no deserto. No era demais a
renda de quinhentas cidades da sia para construir um sistema de aqueduto na
Trade; o aqueduto de Cartago indenizava de certo modo os sacrifcios das
Guerras Pnicas. Edificar fortificaes era, em suma, a mesma coisa que
construir barragens: tratava-se de encontrar a linha pela qual pode ser defendido
um talude ou um imprio, o ponto onde o assalto das vagas ou dos brbaros ser
contido, sustado, desmantelado. Abrir portos era fecundar a beleza dos golfos.
Fundar bibliotecas era construir celeiros pblicos, aprovisionar reservas contra o
inverno do esprito, cuja aproximao eu podia prever mesmo contra minha
vontade. Tenho reconstrudo muito: uma forma de colaborar com o tempo sob
seu aspecto de passado, preservar ou modificar seu esprito, fazer dele uma
espcie de reserva para o futuro; reencontrar sob as pedras o segredo das
origens. Nossa vida breve; falamos sem cessar dos sculos que nos precederam
ou daqueles que viro depois de ns como se uns e outros nos fossem totalmente
estranhos; entretanto, tocava neles ao remanejar as pedras. Aquelas paredes que
eu escorava esto quentes ainda do contato dos corpos desaparecidos; mos que
ainda no existem acariciaro um dia estes fustes de coluna. Quanto mais
meditei sobre minha morte, e sobretudo sobre a morte de um outro, mais tenho
desejado anexar s nossas vidas esses prolongamentos quase indestrutveis. Em
Roma, utilizava de preferncia o tijolo eterno que s muito lentamente volta
terra de onde proveio, cuja decomposio imperceptvel se processa de tal
maneira, que o edifcio permanece montanha mesmo quando deixou de ser
visivelmente uma fortaleza, um circo, ou um tmulo. Na Grcia e na sia,
empregava o mrmore local, a bela substncia que, uma vez talhada, permanece
fiel dimenso humana, de tal forma que o plano de todo o templo fica inteiro e
contido em cada fragmento de coluna partida. A arquitetura rica de
possibilidades mais variadas que as quatro ordens de Vitrvio nos fazem supor;
nossos blocos de mrmore, assim como nossos tons musicais, so suscetveis de
reagrupamentos infinitos. O Panteo fez-me retornar velha Etrria dos
adivinhos e feiticeiros; o santurio de Vnus, pelo contrrio, arredonda ao sol
formas jnicas, numa profuso de colunas brancas e rosadas em volta da deusa
de carne de onde nasceu a raa de Csar. O Olimpo de Atenas era o exato
contrapeso do Partenon, estendido na plancie como o outro se ergue na colina,
imenso como o outro perfeito: o ardor rendendo culto serenidade, o esplendor
aos ps da beleza. As capelas de Antino e seus templos, cmaras mgicas,
monumentos da misteriosa passagem entre a vida e a morte, oratrios de uma
dor e de uma felicidade asfixiantes, eram o lugar de prece e reapario;
abandonava-me ali a meu luto. Meu tmulo na margem do Tibre reproduz em
escala gigantesca os antigos tmulos da Via pia, mas suas propores o
transformam, fazem pensar em Ctesifonte, na Babilnia, nos terraos e nas torres
pelos quais o homem se aproxima dos astros. O Egito funerrio ordenou a
construo dos obeliscos e das alias de esfinges do cenotfio, que impe a uma
Roma vagamente hostil a memria do amigo nunca suficientemente chorado. A
Vila era o tmulo das viagens, o ltimo acampamento do nmade, o equivalente,
construdo em mrmore, das teridas e dos pavilhes dos prncipes da sia. Quase
tudo o que nosso gosto se dispe a tentar j foi realizado no mundo da forma.
Passei ao da cor: o jaspe verde como as profundezas do mar, o prfiro granuloso
como a carne, o basalto, a sombria obsidiana. O vermelho intenso dos estofos
recamava-se de bordados os mais habilidosos; os mosaicos dos pisos ou das
paredes nunca eram bastante dourados, nem bastante brancos ou bastante
escuros. Cada pedra era a estranha concretizao de uma vontade, de uma
memria, por vezes de um desafio. Cada edifcio era o plano de um sonho.

Plotinpolis, Andrinopla, Antino, Adriantera Multipliquei o mximo possvel


essas colmias de abelha humana. O bombeiro e o pedreiro, o engenheiro e o
arquiteto presidem a esses nascimentos de cidades; a operao exige tambm
certos dons de feiticeiro. Num mundo em que mais da metade ocupada ainda
pelas florestas, pelo deserto e pelas plancies incultas, constitui belo espetculo
contemplar uma rua pavimentada, um templo dedicado seja a que deus for,
balnerios e latrinas pblicos, a loja onde o barbeiro discute com os clientes as
notcias de Roma, a tenda do pasteleiro, do negociante de sandlias, talvez uma
livraria, a tabuleta de um mdico, um teatro onde se representa de tempos em
tempos uma pea de Terncio Os exigentes lamentam a uniformidade das
nossas cidades. Sofrem por encontrar em toda parte a mesma esttua do
imperador e os mesmos aquedutos. No tm razo: a beleza de Nmes difere da
de Aries. Mas a prpria uniformidade reencontrada em trs continentes alegra o
viajante como a de um marco milirio. As mais comuns das nossas cidades
possuem ainda seu prestgio tranqilizador da muda, da posta ou do abrigo. A
cidade: a moldura, a construo humana, montona se quiserem mas como
so montonos os favos de cera carregados de mel, o lugar dos contatos e das
trocas, o ponto onde os camponeses vm vender seus produtos, retardando-se
para admirar, boquiabertos, as pinturas de um prtico Minhas cidades nasciam
de reencontros: a minha, com um recanto de terra, a dos meus planos de
imperador, com os incidentes de minha vida de homem. Plotinpolis nasceu da
necessidade de estabelecer na Trcia novas feitorias agrcolas, mas tambm do
terno desejo de homenagear Plotina. Adriantera destinada a servir de emprio
aos forasteiros da sia Menor: inicialmente foi para mim o refgio de vero, a
floresta abundante de caa, o pavilho de troncos enquadrados junto da colina de
tis, a torrente salpicada de espuma onde nos banhamos todas as manhs.
Adrianpolis, no piro, abre um centro urbano no seio de uma provncia
empobrecida: nasceu de uma visita ao santurio de Dodona. Andrinopla, cidade
rural e militar, centro estratgico na orla de regies brbaras, povoada por
veteranos das guerras srmatas; conheo pessoalmente o forte e o fraco de cada
um desses homens, seus nomes, o nmero dos seus anos de servio e dos seus
ferimentos. Antino, a mais querida, nascida no local da desgraa, acha-se
comprimida numa estreita faixa de terra rida, entre o rio e os rochedos. Tinha o
maior empenho em enriquec-la com outros recursos: o comrcio da ndia, os
transportes fluviais e os sbios atrativos de uma metrpole grega. No h na terra
lugar que eu deseje menos voltar a ver; no entanto, h poucos aos quais eu tenha
consagrado mais desvelos. Essa cidade um peristilo contnuo. Correspondo-me
com Fido quila, seu governador, acerca dos propileus do templo, das esttuas do
arco; escolhi os nomes dos blocos urbanos e dos burgos, smbolos aparentes e
secretos, catlogo completo das minhas recordaes. Tracei eu mesmo o plano
das colunatas corntias que correspondem ao alinhamento regular de palmeiras
ao longo das margens. Mil vezes percorri em pensamento esse quadriltero quase
perfeito, cortado de ruas paralelas, dividido em dois por uma avenida triunfal que
vai de um teatro grego a um tmulo.

Estamos sobrecarregados de esttuas, fartos de belezas pintadas ou esculpidas,


mas a abundncia cria uma iluso; reproduzimos incansavelmente algumas
dzias de obras-primas que j no seramos capazes de criar. Eu prprio mandei
copiar para a Vila o Hermafrodita e o Centauro, a Nobe e a Vnus. Desejei
viver o mximo possvel entre essas melodias da forma. Encorajava as
experincias com o passado, um sbio arcasmo que reencontra o sentido das
intenes e das tcnicas perdidas. Tentei as variaes que consistem em
reproduzir em mrmore vermelho um Mrsias nu esculpido em mrmore
branco, transportando-o assim para o mundo das figuras pintadas, ou em transpor
para o branco de Paros o granito negro das esttuas do Egito, transformando o
dolo em fantasma. Nossa arte perfeita, isto , consumada, mas sua perfeio
suscetvel de modulaes to variadas como os tons de uma voz pura: cabe-nos
fazer esse jogo hbil, que consiste em aproximar-se ou afastar-se,
interminavelmente, da soluo encontrada de uma vez por todas, ir at o extremo
do rigor ou do excesso, encerrar inmeras construes novas no interior dessa
bela esfera. uma vantagem termos atrs de ns mil pontos de comparao,
podermos imitar inteligentemente Escopas, ou contradizer voluptuosamente
Praxteles. Meus contatos com as artes brbaras levaram-me concluso de que
cada raa se limita a certos temas, a certos modos entre os modos possveis; cada
poca opera uma triagem entre as possibilidades oferecidas a cada raa. Vi no
Egito deuses e reis colossais; encontrei no pulso dos prisioneiros srmatas
braceletes que repetem ilimitadamente o mesmo cavalo a galope ou as mesmas
serpentes que se entredevoram. Mas nossa arte (quero dizer, a arte dos gregos)
preferiu limitar-se ao homem. Ns, somente ns, soubemos mostrar a fora e a
agilidade latentes num corpo imvel; ns, s ns, transformamos uma fronte lisa
no equivalente a um pensamento sbio. Sou como nossos escultores: o humano
me satisfaz plenamente; nele encontro tudo, at o eterno. A floresta to amada
para mim se resume toda inteira na imagem do centauro; a tempestade nunca
respira melhor do que nas echarpes enfunadas das deusas marinhas. Os objetos
naturais, os emblemas sagrados nada valem se no forem carregados de
associaes humanas: a pinha flica e fnebre, a taa com as pombas que sugere
a sesta junto s fontes, o grifo que arrebata para o cu o bem-amado.

A arte do retrato me interessava pouco. Nossos retratos romanos s tm um valor


de crnica: cpias marcadas por rugas exatas, ou verrugas nicas, decalques de
modelos com quem nos cruzamos distraidamente na vida e que so esquecidos
to logo morrem. Os gregos, ao contrrio, amaram de tal maneira a perfeio
humana que pouco se preocuparam com a face mltipla dos homens. Eu no
lanava mais que um olhar de relance minha prpria imagem, esta face
trigueira, modificada pela brancura do mrmore, estes olhos bem abertos, esta
boca fina, conquanto carnuda, controlada at o tremor. Mas a fisionomia de um
outro preocupou-me muito mais. Desde que ele passou a representar um papel
importante em minha vida, a arte deixou de ser um luxo: tornou-se um recurso,
uma forma de socorro. Impus essa imagem ao mundo. Existem hoje mais
retratos desse menino que de qualquer homem ilustre ou de qualquer rainha.
Empenhei-me primeiro em fazer fixar pela estaturia a beleza sucessiva de uma
forma em constante mutao; a arte tornou-se em seguida uma espcie de
operao mgica capaz de evocar uma face perdida. As efgies colossais
pareciam um meio de exprimir as verdadeiras propores que o amor transmite
aos seres; essas imagens, eu as queria enormes como um rosto visto de muito
perto, altas e solenes como as vises e as aparies de um pesadelo, pesadas
como essa lembrana. Exigia um acabamento perfeito, uma perfeio pura,
aquele deus em que todo ser morto aos vinte anos se transforma para quem o
amou. Exigia tambm a semelhana exata, a presena familiar, cada
irregularidade de um rosto mais querido do que a prpria beleza. Quantas
discusses para encontrar a linha espessa de uma sobrancelha, a curva
levemente intumescida de um lbio Contava desesperadamente com a
eternidade da pedra, com a fidelidade do bronze, para perpetuar um corpo
perecvel ou j destrudo, mas insistia tambm em que o mrmore, ungido todos
os dias com uma mistura de leo e de cidos, adquirisse o brilho e quase a
maciez de uma carnadura jovem. Encontrava em toda parte aquele rosto nico:
amalgamava as pessoas divinas, os sexos e os atributos eternos, a cruel Diana das
Florestas com o Baco melanclico, o Hermes vigoroso das palestras com o deus
dissimulado que dorme, apoiando a cabea sobre o brao, num abandono de flor.
Procurava averiguar at que ponto um jovem que pensa se parece com a viril
Atenas. Meus escultores se sentiam perdidos ante minhas idias; os mais
medocres tombavam ora no desnimo, ora no entusiasmo; todos, entretanto,
participavam, de certa maneira, do sonho. Existem esttuas e pinturas do jovem
vivo, aquelas que refletem a paisagem prodigiosa e inconstante que vai dos
quinze aos vinte anos: o perfil srio de menino ajuizado; aquela esttua na qual
um escultor de Corinto ousou fixar o abandono do adolescente que arqueia o
ventre recuando os ombros, com a mo nos quadris, como se observasse uma
partida de dados na esquina de uma rua. Existe um mrmore no qual Ppias de
Afrodsias esculpiu um corpo mais nu do que a prpria nudez, totalmente
indefeso, impregnado do frescor suave de um narciso. E Aristias esculpiu, sob
minhas ordens, numa pedra levemente rugosa, a pequena cabea, imperiosa e
altiva Existem tambm os retratos executados aps a morte e pelos quais a
morte passou: as grandes faces de lbios silenciosos, carregados de segredos que
j no so os meus, porque j no so os segredos da vida. H ainda o baixo-
relevo que Cariano Antonianos dotou de uma graa elsia o vindimador vestido de
seda crua, com o focinho amigo do co apoiado sobre a perna nua. E a mscara
quase insuportvel, obra de um escultor de Cirene, na qual o prazer e a dor se
fundem e se entrechocam na mesma face como duas vagas sobre o mesmo
rochedo. E as pequenas estatuetas de argila de preo nfimo que serviram para a
propaganda imperial: Tellus stabilita, o Gnio da Terra Pacificada, sob a figura de
um jovem deitado que segura frutos e flores.

Trahit sua quemque voluptas. A cada um a sua inclinao: a cada um tambm o


seu objetivo, sua ambio, se quiserem, seu gosto mais secreto e seu mais claro
ideal. O meu estava contido na palavra beleza, to difcil de definir, apesar de
todas as evidncias dos sentidos e dos olhos. Sentia-me responsvel pela beleza do
mundo. Queria que as cidades fossem grandiosas, arejadas, banhadas por guas
claras, povoadas por seres humanos cujo corpo no tivesse sido deteriorado pelas
marcas da misria ou da servido, nem pela vaidade de uma riqueza grosseira.
Que os estudantes recitassem com entonao perfeita as lies que no fossem
ineptas; que as mulheres mantivessem no lar uma espcie de dignidade maternal,
e que todos os seus movimentos fossem a perfeita imagem do poder repousante.
Que os ginsios fossem freqentados por jovens que no ignorassem jogos nem
artes; que os pomares produzissem os mais belos frutos, e os campos, as mais
abundantes colheitas. Queria que a imensa majestade da paz romana se
estendesse a todos, imperceptvel, mas presente como a msica do cu em
marcha; que o mais humilde viajante pudesse passar de um pas ou de um
continente a outro, sem formalidades vexatrias e sem perigos, na certeza de
encontrar em toda parte um mnimo de legalidade e de cultura. Que nossos
soldados continuassem sua eterna dana prrica nas fronteiras; que tudo
funcionasse sem obstculos, as oficinas e os templos; que o mar fosse sulcado por
belos navios e as estradas percorridas por grande nmero de atrelagens. Que,
num mundo bem organizado, os filsofos tivessem seu lugar, e os bailarinos,
tambm. Esse ideal, modesto em suma, estaria bem prximo se os homens
colocassem a seu servio uma parte da energia despendida em trabalhos
estpidos ou ferozes; circunstncias felizes permitiram-me realiz-lo
parcialmente durante este ltimo quarto de sculo. Arrieno de Nicomdia, um
dos melhores espritos destes tempos, gosta de repetir para mim os magnficos
versos nos quais o velho Terpandro definiu em trs palavras o ideal espartano, o
modo de vida perfeito com o qual Lacedemnio sonhou sem jamais atingi-lo: a
Fora, a Justia, as Musas. A Fora constitua a base, rigor sem o qual no existe
beleza, firmeza sem a qual no existe justia. A Justia era o equilbrio das partes,
o conjunto das propores harmoniosas que nenhum excesso deve comprometer.
Fora e Justia no eram mais do que um instrumento afinado nas mos das
Musas. Toda misria, toda brutalidade deviam ser proibidas como outros tantos
insultos ao belo corpo da humanidade. Toda iniqidade era uma nota desafinada a
ser evitada na harmonia das esferas.
Fortificaes ou acampamentos a renovar ou a construir, estradas a abrir ou a
reparar retiveram-me na Germnia cerca de um ano; novos basties erigidos
num percurso de setenta lguas reforaram nossas fronteiras ao longo do Reno.
Esse pas de vinhas e rios espumantes no me oferecia nenhum imprevisto;
encontrava ali os traos do jovem tribuno que levou a Trajano a notcia do seu
acesso ao poder supremo. Reencontrava tambm, para alm do nosso ltimo
forte, feito de troncos cortados nas matas de abetos, o mesmo horizonte
montono e negro, o oceano de rvores, a reserva de homens brancos e louros, o
mesmo mundo fechado para ns desde a imprudente ponta de lana que
lanaram at ali as legies de Augusto. Terminados os trabalhos de
reorganizao, desci ao longo das plancies belgas e batavas at a embocadura do
Reno. Dunas desoladas compunham, uma paisagem setentrional cortada por
ervas sibilantes. As casas do porto de Noviomago, construdas sobre estacas,
apoiavam-se aos navios amarrados sua entrada; aves martimas
empoleiravam-se nos seus tetos. Gostava daqueles lugares tristes, que pareciam
horrveis a meus ajudantes de campo, daquele cu enevoado, daqueles rios
lamacentos cortando uma terra informe e sem fia-ma, cuja origem nenhum
deus modelou.

Uma barca de fundo quase chato transportou-me ilha da Bretanha. O vento


empurrou-nos muitas vezes seguidas para a costa que havamos deixado: a
travessia difcil proporcionou-me surpreendentes horas vazias. Densos vapores e
ondas gigantescas nasciam do mar pesado e sujo pelo movimento incessante da
areia revolvida no seu leito. Como outrora, entre os dcios e os srmatas, eu
contemplara a terra religiosamente, observava aqui, pela primeira vez, um
Netuno, mais catico que o nosso, um mundo lquido infinito. Havia lido em
Plutarco uma lenda sobre navegantes que mencionava uma ilha situada nestas
paragens vizinhas ao mar Tenebroso, onde, vitoriosos, os habitantes do Olimpo
teriam h sculos repelido os Tits vencidos. Esses grandes cativos do rochedo e
da vaga, flagelados para sempre por um oceano sem sono, incapazes de dormir,
mas interminavelmente ocupados em sonhar, continuariam a opor ordem
olmpica a sua violncia, sua angstia, sua vontade perpetuamente crucificada.
Reencontrava, nesse mito situado nos confins do mundo, as teorias dos filsofos
que adotara como minhas: no curso da sua vida breve, cada homem tem sempre
de escolher entre a esperana incansvel e a sbia ausncia de esperana, entre
as delcias do caos e as da estabilidade, entre o Tit e o Olimpo. Em suma,
escolher entre eles, ou conseguir harmoniz-los um dia.

As reformas civis realizadas na Bretanha fazem parte da minha obra


administrativa de que falei em outro lugar. O que importa nesse caso que eu era
o primeiro imperador a instalar-se pacificamente naquela ilha situada nos limites
do mundo conhecido, onde Cludio se arriscara por alguns dias na qualidade de
general-em-chefe. Durante todo um inverno, Londinium tornou-se, por minha
escolha, o centro efetivo do mundo, que a Antiquia havia sido em conseqncia
das necessidades da guerra parta. Cada viagem deslocava assim o centro de
gravidade do poder, colocando-o por algum tempo s margens do Reno, ou do
Tmisa, permitindo-me avaliar o que teria sido o forte e o fraco de semelhante
cerco imperial. A temporada na Bretanha fez-me considerar a hiptese de um
Estado centralizado no Ocidente, isto , de um Mundo Atlntico. Tais
consideraes so desprovidas de valor prtico: deixam, contudo, de ser absurdas
desde o momento em que o calculador tome por base de suas computaes uma
poro bastante vasta de futuro.

Trs meses antes da minha chegada, a Sexta Legio Vitoriosa fora transferida
para territrio britnico. Devia substituir ali a infeliz Nona Legio, desbaratada
pelos calednios durante a agitao que o terrvel contragolpe de nossa expedio
junto aos partos provocara na Bretanha. Duas medidas se impunham para
impedir a repetio desse desastre. Nossas tropas foram reforadas pela criao
de um corpo auxiliar nativo: em Eboracum, do alto de uma colina verde, vi
manobrar pela primeira vez esse exrcito britnico recm-formado. Ao mesmo
tempo, a construo de uma muralha, que cortava a ilha em duas na sua parte
mais estreita, serviu para proteger as regies frteis e policiadas do sul contra os
ataques das tribos do norte. Inspecionei pessoalmente uma boa parte desses
trabalhos, atacados ao mesmo tempo em diversos pontos num declive de oitenta
lguas: no espao bem delimitado que vai de uma costa a outra, tive a ocasio de
testar um sistema de defesa que se poderia em seguida aplicar em qualquer outro
lugar. Portanto, essa obra essencialmente militar favorecia a paz e desenvolvia a
prosperidade daquela parte da Bretanha. Aldeias nasciam, e um movimento de
afluxo produzia-se em direo s nossas fronteiras. Os operrios da Legio eram
secundados na sua tarefa por equipes nativas. A edificao da muralha era para
muitos montanheses, na vspera ainda insubmissos, a primeira prova irrefutvel
do poder protetor de Roma, tal como o dinheiro da jornada era a primeira moeda
romana que lhes passava pelas mos. Aquela muralha tornou-se o smbolo da
minha renncia poltica de conquistas: ao p do posto mais avanado mandei
erigir um templo ao deus Termo.

Tudo me encantou naquela terra chuvosa: as franjas de brumas no flanco das


colinas, os lagos consagrados s ninfas ainda mais fantsticas que as nossas, a
raa melanclica de olhos cinzentos. Tinha por guia um jovem tribuno do corpo
auxiliar britnico: aquele deus louro aprendera o latim, balbuciava o grego e
aplicava-se timidamente a compor alguns versos de amor nessa lngua. Por uma
fria noite de outono, eu o fiz meu intrprete junto de uma sibila. Sentados na
cabana enfumaada de um carvoeiro celta, aquecendo as pernas abrigadas em
grossas bragas de l spera, vimos arrastar-se at ns uma criatura velha,
encharcada pela chuva, desgrenhada pelo vento, selvagem e esquiva como um
animal das florestas. Atirou-se aos pezinhos de aveia que coziam no fogo. Meu
guia soube lisonjear a profetisa: ela concordou em consultar, em minha inteno,
as espirais de fumaa, as breves fagulhas e a frgil arquitetura dos gravetos
queimados e das cinzas. Viu cidades que se edificavam, multides em regozijo, e
ao mesmo tempo cidades incendiadas, filas desesperadas de vencidos que
desmentiam meus sonhos de paz. E viu ainda um rosto jovem e doce que ela
tomou por uma figura de mulher, na qual me recusei a acreditar, um espectro
branco que no passava talvez de uma esttua, objeto mais inexplicvel do que
um fantasma para aquela habitante dos bosques e das charnecas. E, distncia
imprecisa de alguns anos, predisse minha morte, que eu teria previsto
perfeitamente sem sua ajuda.

A Glia prspera e a Espanha opulenta retiveram-me menos tempo que a


Bretanha. Na Glia Narbonesa reencontrei a Grcia, que difundira at ali suas
magnficas escolas de eloqncia e seus prticos sob um cu puro. Detive-me
em Nmes para estabelecer o plano de uma baslica dedicada a Plotina e
destinada a tornar-se um dia o seu templo. Recordaes de famlia ligavam a
imperatriz quela cidade, tornando-me mais querida sua paisagem seca e
dourada.

Contudo, a revolta da Mauritnia ainda fumegava. Abreviei minha passagem


pela Espanha a ponto de passar entre Crdova e o mar, sem me deter um instante
em Itlica, cidade da minha infncia e dos meus antepassados. Embarquei para a
frica em Gades.

Os belos guerreiros tatuados das montanhas do Atlas intranqilizavam as cidades


costeiras africanas. Vivi ali, durante alguns breves dias, o equivalente nmida dos
combates srmatas; revi as tribos subjugadas uma a uma, a altiva submisso dos
chefes prosternados em pleno deserto no meio de uma desordem de mulheres,
fardos e bestas ajoelhadas. A areia substitua a neve.

Ter-me-ia sido agradvel, para variar, passar a primavera em Roma,


reencontrar ali a Vila iniciada, o terno carinho de Lusio e a amizade de Plotina.
Mas essa temporada na cidade foi interrompida quase imediatamente por
alarmantes rumores de guerra. A paz com os partos fora concluda havia apenas
trs anos, e incidentes graves j comeavam a eclodir no Eufrates. Parti
imediatamente para o Oriente.
Estava decidido a liquidar esses incidentes de fronteira por um meio menos
vulgar que o das legies em marcha. Uma entrevista pessoal foi combinada com
Osros. Levava comigo para o Oriente a filha do imperador, aprisionada quase
ainda no bero, na poca em que Trajano ocupou Babilnia, e mantida depois
em Roma como refm. Era uma jovem doentia, de olhos grandes. Sua presena
e a das suas damas perturbou em parte o curso de uma viagem que importava,
sobretudo, efetuar sem perda de tempo. Aquele grupo de criaturas veladas foi
sacudido no dorso dos dromedrios atravs do deserto srio, sob um pequeno toldo
de cortinas austeramente descidas. noite, nas paradas de cada etapa, mandava
saber se no faltava nada princesa.

Detive-me por uma hora na Lcia a fim de decidir o mercador Opramoas, que j
demonstrara suas qualidades de mediador, a acompanhar-me at o territrio
parto. A falta de tempo impediu-o de se apresentar com o luxo habitual. Aquele
homem, amolecido pela opulncia, nem por isso deixava de ser um admirvel
companheiro de viagem, acostumado a todos os perigos do deserto.

O ponto de encontro se situava margem esquerda do Eufrates, no muito longe


de Dura. Atravessamos o rio numa jangada. Os soldados da guarda parta,
couraados de ouro e montados em cavalos no menos resplandecentes,
formavam uma linha ofuscante ao longo dos taludes. O inseparvel Flgon estava
muito plido. Os prprios oficiais que me acompanhavam experimentavam
tambm certo receio: o encontro podia ser uma cilada. Opramoas, habituado a
farejar o ar da sia, sentia-se vontade, confiante naquela estranha mistura de
silncio e tumulto, de imobilidade e galopes sbitos, naquele luxo lanado sobre o
deserto como um tapete sobre a areia. Quanto a mim, estava maravilhosamente
isento de inquietao: como Csar na sua barca, confiava na jangada sobre a
qual se jogava minha sorte. Dei prova dessa confiana, restituindo
imediatamente a princesa parta a seu pai, em lugar de mant-la em nossas linhas
at meu regresso. Prometi tambm restituir o trono de ouro da dinastia arscida,
arrebatado outrora por Trajano, que no tinha o menor interesse para ns e ao
qual a superstio oriental dava grande importncia.

A magnificncia dessas entrevistas com Osros foi apenas exterior. Coisa alguma
as diferenciava das negociaes entre dois vizinhos que se esforam por resolver
amigavelmente a questo de uma parede-meia. Estava envolvido com um
brbaro requintado, que falava o grego, nada estpido, no necessariamente mais
prfido do que eu, todavia vacilante o bastante para parecer pouco seguro.
Minhas curiosas disciplinas mentais ajudavam-me a captar aquele pensamento
fugidio: sentado em frente ao imperador parto, aprendia a prever e, pouco
depois, a orientar suas respostas. Entrava no seu jogo, imaginando-me o prprio
Osros a negociar com Adriano. Tenho horror aos debates inteis, em que cada
um sabe de antemo se ceder ou no ceder: a verdade em matria de
negcios agrada-me sobretudo como meio de simplificar ou de andar mais
depressa. Os partos temiam-nos; ns temamos os partos; dessa unio dos dois
medos nasceria a guerra. Os strapas incitavam essa guerra por interesse
pessoal: no tardei a aperceber-me de que Osros tinha seus Quietos e seus
Palmas. Farasmanes, o mais agitado daqueles prncipes semi-independentes
postados nas fronteiras, era mais perigoso para o imprio parto do que para ns.
Acusaram-me de ter neutralizado, pela concesso de subsdios, uma camarilha
de malfeitores sem energia, mas foi dinheiro bem empregado. Estava demasiado
seguro da superioridade das nossas foras para me embaraar com um amor-
prprio imbecil: estava decidido a fazer todas as concesses vazias que s dizem
respeito ao prestgio, mas nenhuma outra. O mais difcil foi persuadir Osros de
que, se eu fazia poucas promessas, era porque estava decidido a mant-las.
Contudo, acreditou-me ou procedeu como se me acreditasse. O acordo concludo
entre ns durante essa visita ainda perdura. So passados quinze anos e, de uma
parte e de outra, coisa alguma perturbou a paz das fronteiras. Conto contigo para
que esse estado de coisas continue depois de minha morte.

Uma noite, no pavilho imperial, durante uma festa dada em minha honra por
Osros, notei, entre as mulheres e os pajens de longos clios, um homem nu,
descarnado, completamente imvel, cujos olhos muito abertos pareciam ignorar
a confuso de pratos carregados de carnes, os acrobatas e danarinas. Falei-lhe
por intermdio do meu intrprete: no se dignou responder. Era um sbio. Mas
seus discpulos eram mais loquazes: os piedosos vagabundos vinham da ndia, e
seu mestre pertencia poderosa casta dos brmanes. Compreendi que suas
meditaes induziam-no a crer que o universo inteiro no mais que um
encadeamento de iluses e erros. A austeridade, a renncia e a morte eram, para
ele, o nico meio de escapar a esse encadeamento das coisas. Era o oposto do
nosso Herclito, que procurou alcanar atravs do mundo dos sentidos a esfera
do puro divino, o firmamento fixo e vazio com o qual sonhou Plato. Atravs da
inabilidade dos meus intrpretes, pressenti certas idias que no foram
completamente estranhas a alguns dos nossos sbios, mas que o indiano exprimia
de maneira mais nua e mais definitiva. Aquele brmane j atingira o estado no
qual, salvo o corpo, nada mais o separava do deus intangvel, sem substncia e
sem forma, ao qual desejava unir-se. Decidira queimar-se vivo no dia seguinte.
Osros convidou-me para essa solenidade. Uma fogueira de madeiras odorferas
foi preparada; o homem lanou-se nela e desapareceu sem um grito. Os
discpulos no manifestaram nenhum sinal de pesar: para eles, aquilo no era
uma cerimnia fnebre.

Voltei a pensar no assunto longamente durante a noite seguinte. Estava deitado


sobre um tapete de l preciosa, numa tenda decorada com estofos pesados e de
reflexos cambiantes. Um pajem massageava-me os ps. Do exterior, chegavam
at mim os raros sons da noite asitica: uma conversa de escravos, em voz baixa,
minha porta; o leve roar das folhas de uma palmeira; o ressonar de Opramoas
por trs de uma tapearia; a batida de um casco de cavalo preso; mais longe,
vindo do alojamento das mulheres, o som melanclico de um canto. O brmane
desprezara tudo aquilo. Aquele homem embriagado pelo sentimento de recusa
entregara-se s chamas como um amante mergulha na maciez do leito da
amada. Repelira as coisas, os seres, depois a si prprio, como se fossem outras
tantas vestes que lhe ocultavam a presena nica, o centro invisvel e vazio que
ele preferia a tudo.

Sentia-me diferente, disposto a outras escolhas. A austeridade, a renncia, a


negao no me eram completamente estranhas: eu as experimentara, como
sempre sucede aos vinte anos. Tinha menos que essa idade quando, em Roma,
conduzido por um amigo, fui visitar o velho Epiteto no seu tugrio de Suburra,
poucos dias antes de Domiciano exil-lo. O antigo escravo, de quem um senhor
brutal havia, muito tempo antes, quebrado uma perna sem conseguir arrancar-
lhe uma s queixa, o velho cativo, que suportava com pacincia os longos
tormentos das pedras na bexiga; parecera-me possuidor de uma liberdade quase
divina. Contemplei com admirao as muletas, a enxerga, o candeeiro de
terracota, a colher de madeira no jarro de argila, utenslios simples de uma vida
pura. Mas Epiteto renunciava a coisas em excesso, e no tardei a compreender
que, para mim, nada era mais perigosamente fcil que renunciar. O indiano,
mais lgico, rejeitava a prpria vida. Eu tinha muito que aprender com esses
fanticos, puros, com a condio, porm, de desvincular do seu sentido a lio
que me ofereciam. Aqueles sbios esforavam-se por encontrar seu deus para l
do oceano das formas, reduzi-lo qualidade de nico, intangvel, incorpreo, a
que ele renunciou no dia em que se quis universo. Vislumbrava de outro modo
meu relacionamento com o divino. Imaginava-me a secund-lo no seu esforo
de enformar e ordenar um mundo, desenvolvendo-o e multiplicando suas
circunvolues, suas ramificaes e seus desvios. Eu era um dos segmentos da
roda, um dos aspectos dessa fora nica empenhada na multiplicidade das coisas,
guia e touro, homem e cisne, falo e crebro simultaneamente, Proteu que ao
mesmo tempo Jpiter.

Foi por essa poca que comecei a sentir-me deus. No faas confuso: eu era
sempre, era mais que nunca o mesmo homem, nutrido com os frutos e os
animais da terra; devolvia ao solo os resduos desses alimentos e sacrificava ao
sono a cada revoluo dos astros, inquieto at a loucura quando faltava por muito
tempo a clida presena do amor. Minha fora, minha agilidade fsica ou mental
eram cuidadosamente sustentadas por uma ginstica toda humana. Mas o que
posso dizer a respeito de tudo isso, exceto que era divinamente vivido? As ousadas
experincias da juventude haviam terminado, assim como a sofreguido de viver
o tempo que passa. Aos quarenta e quatro anos, sentia-me sem impacincia,
seguro de mim, to perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno.
Compreende bem que se trata, neste caso, de uma concepo do intelecto: os
delrios, se preciso que lhes seja dado tal nome, vieram mais tarde. Eu era deus
simplesmente porque era homem. Os ttulos divinos que a Grcia me concedeu
depois s fizeram proclamar aquilo que, h muito tempo, eu tinha constatado por
mim mesmo. Creio que me teria sido possvel sentir-me deus at nas prises de
Domiciano, ou no fundo de uma mina. Se tenho a audcia de pretend-lo que
esse sentimento me parece apenas extraordinrio, mas de modo algum nico.
Outros alm de mim o experimentaram, e outros o experimentaro no futuro.

Disse que meus ttulos acrescentaram pouca coisa a essa espantosa certeza: em
contrapartida, ela era confirmada pelas mais simples rotinas do meu ofcio de
imperador. Se Jpiter o crebro do mundo, o homem encarregado de organizar
e de moderar os negcios humanos pode razoavelmente se considerar uma parte
desse crebro, que a tudo preside. A humanidade, com ou sem razo, quase
sempre concebeu seu deus em termos de Providncia; minhas funes
obrigavam-me a ser, para uma parte do gnero humano, essa providncia
encarnada. Quanto mais o Estado se desenvolve, encerrando os homens nas suas
malhas exatas e geladas, mais a confiana humana aspira a colocar no outro
extremo dessa imensa cadeia a imagem venerada de um homem protetor. Quer
eu o desejasse ou no, as populaes orientais do imprio tratavam-me como
deus. Mesmo no Ocidente, inclusive em Roma, onde s somos oficialmente
declarados divinos depois de mortos, a obscura piedade popular compraz-se cada
vez mais em nos deificar em vida. No tardou que o reconhecimento parto
erigisse templos ao imperador romano que havia instaurado e mantido a paz; tive
meu santurio em Vologsia, no seio daquele vasto mundo estrangeiro. Longe de
ver nessas demonstraes de adorao um perigo de alienao mental ou de
prepotncia para o homem que as aceita, descobri nelas um freio, a obrigao de
procurar assemelhar-me a um modelo eterno, de associar ao poder humano uma
parte de suma sapincia. Ser deus obriga, em suma, a possuir mais virtudes do
que as de um imperador.

Dezoito meses mais tarde, fiz-me iniciar junto a Elusis. A visita a Osros tinha
marcado, em certo sentido, uma mudana na minha vida. Em vez de voltar para
Roma, decidiria consagrar alguns anos s provncias gregas e orientais do
imprio: Atenas tornara-se cada vez mais minha ptria, o centro do meu
universo. Empenhava-me em agradar aos gregos e tambm em helenizar-me o
mximo possvel; essa iniciao, motivada em parte por consideraes polticas,
constituiu, entretanto, uma experincia religiosa sem igual.

Os grandes ritos no fazem mais do que simbolizar os acontecimentos da vida


humana, mas o smbolo vai mais longe que o ato, explica cada um dos nossos
gestos em termos da mecnica eterna. Os ensinamentos recebidos em Elusis
devem permanecer secretos: alis, suas probabilidades de divulgao so muito
poucas, devido sua natureza inefvel. Formulados, no iriam alm das
evidncias mais banais; nisso consiste justamente sua profundidade. Os graus
mais elevados que me foram conferidos em seguida, durante conversaes
privadas com o hierofante, no acrescentaram quase nada ao impacto inicial
experimentado pelo mais ignorante dos peregrinos, que participa das ablues
rituais e bebe da nascente. Tinha ouvido as dissonncias resolverem-se em
harmonias; apoiara-me, por um momento, sobre outra esfera, contemplara de
longe, mas tambm de muito perto, a procisso Humana e divina onde eu tinha
meu lugar, esse mundo onde a dor ainda existe, mas no mais o erro. O destino
humano, esse vago traado no qual o olhar menos exercitado reconhece tantas
faltas, cintilava como desenhos no cu.

Aqui convm mencionar um hbito que me atraiu, durante toda a minha vida, a
caminhos menos secretos que os de Elusis, mas que acabam por lhe serem
paralelos: quero falar do estudo dos astros. Fui sempre amigo dos astrnomos e
cliente dos astrlogos. A cincia destes ltimos incerta, falsa nos detalhes, talvez
verdadeira no todo: j que o homem, parcela do universo, comandado pelas
mesmas leis que presidem o cu, no absurdo procurar l em cima os temas
das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos xitos e dos nossos
erros. Jamais deixei, em todas as noites de outono, de saudar, ao sul do Aqurio, o
Escano celeste, o Dispensador sob cujo signo nasci. No me esquecia de
marcar cada uma das passagens de Jpiter e Vnus, que presidem minha vida,
nem de ponderar a influncia do perigoso Saturno. Mas, se a estranha refrao
do humano na abbada estelar preocupava com freqncia minhas horas de
viglia, interessava-me mais intensamente ainda pelas matemticas celestes,
pelas especulaes abstratas a que os grandes corpos inflamados do lugar.
Inclinava-me a acreditar, como alguns dos nossos sbios mais ousados, que a
Terra tambm tomava parte nessa marcha noturna e diurna de que as santas
procisses de Elusis so, quando muito, o simulacro humano. Num mundo onde
tudo no passa de um turbilho de foras, uma dana de tomos, onde tudo est
ao mesmo tempo em cima e embaixo, na periferia e no centro, era difcil
conceber a existncia de um globo imvel, de um ponto fixo que no fosse
simultaneamente mvel. Outras vezes, os clculos da precesso dos equincios,
estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria, tornavam-se uma obsesso em
minhas viglias noturnas: sob a forma de demonstraes e no mais de fbulas ou
smbolos, encontrava neles o mesmo mistrio eleusaco da passagem e do
regresso. A Espiga da Virgem j no se encontra mais, nos nossos dias, no
mesmo ponto em que a carta de Hiparco a assinalou, mas essa variao a
concluso de um ciclo, e o prprio deslocamento confirma as hipteses do
astrnomo. Lentamente, inelutavelmente, o firmamento voltar a ser o que era
no tempo de Hiparco, e ser novamente o que era no tempo de Adriano. A
desordem integrava-se ordem; a transformao fazia parte de um plano que o
astrnomo era capaz de captar por antecipao; o esprito humano revelava aqui
sua participao no universo pelo estabelecimento de teoremas exatos, tal como
em Elusis o faziam os gritos rituais e as danas. O homem que contempla e os
astros contemplados rolavam inexoravelmente em direo a seu fim, assinalado
em qualquer parte do cu. Cada instante dessa queda era um tempo de parada,
um ponto de referncia, um segmento de uma curva to slida quanto uma
cadeia de ouro. Cada deslizamento nos conduzia ao ponto que nos parece o centro
do mundo porque, por acaso, nele nos encontramos.

Desde as noites da minha infncia, quando o brao erguido de Marulino me


indicava as constelaes, a curiosidade das coisas do cu nunca mais me
abandonou. Durante as viglias foradas dos acampamentos, contemplei a lua
correndo atravs das nuvens dos cus brbaros; mais tarde, nas claras noites
ticas, ouvi o astrnomo Tero de Rodes discorrer sobre seu sistema do mundo.
Estendido na ponte de um navio, em pleno mar Egeu, contemplei a lenta
oscilao do mastro deslocar-se entre as estrelas, ir do olho vermelho do Touro
ao pranto das Pliades, de Pgaso ao Cisne. Nessa ocasio, respondia da melhor
maneira possvel s perguntas ingnuas e graves do jovem que comigo
contemplava o mesmo cu. Aqui, na Vila, fiz construir um observatrio cujas
escadas a doena me impede hoje de subir. Apenas uma vez em toda a minha
vida fui alm: ofereci s constelaes o sacrifcio de uma noite inteira. Isso
aconteceu depois da minha visita a Osros, durante a travessia do deserto srio.
Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas
toda a perplexidade humana, entreguei-me, do anoitecer madrugada, quele
mundo de flama e cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da
constelao da Lira, estrela polar dos homens que vivero quando, aps algumas
dezenas de milhares de anos, no existirmos mais, resplandecia sobre minha
cabea. Os Gmeos luziam fracamente nas ltimas claridades do poente; a
Serpente precedia o Sagitrio; a guia subia em direo ao znite, com as asas
abertas e tendo a seus ps a constelao ainda no designada pelos astrnomos e
qual dei mais tarde o mais querido dos nomes. A noite, nunca to completa
como a imaginam aqueles que vivem e dormem em seus quartos, fez-se mais
escura, depois mais clara. As fogueiras, acesas para espantar os chacais,
apagaram-se; aqueles montes de carves ardentes fizeram-me lembrar meu
av, de p em seu vinhedo, e suas profecias, que o presente confirmou e que logo
faro parte do passado. Experimentei unir-me ao divino sob muitas formas.
Conheci mais de um xtase: alguns so atrozes, outros, de uma doura
perturbadora. O da noite sria foi estranhamente lcido. Gravou em mim os
movimentos celestes com uma preciso que nenhuma outra observao parcial
jamais me teria permitido atingir. No momento em que te escrevo, sei
exatamente quais so as estrelas que passam no s aqui em Tbure, por cima
deste teto ornado de estuques e pinturas preciosas, mas algures, l longe, sobre
um certo tmulo. Alguns anos mais tarde, a morte se tornaria o objeto da minha
contemplao constante, o pensamento a que eu dedicava todas as foras do meu
esprito que no eram absorvidas pelo Estado. E quem diz morte diz tambm
mundo misterioso ao qual talvez tenhamos acesso atravs dela. Depois de tantas
reflexes e experincias por vezes condenveis, ignoro ainda o que se passa do
outro lado dessa cortina negra. Mas a noite sria representa minha parte
consciente de imortalidade.
Sculum Aureum

Foi na sia Menor que passei o vero seguinte ao meu encontro com Osros; fiz
alto na Bitnia para observar pessoalmente o corte das florestas do Estado. Na
Nicomdia, cidade clara, policiada e sria, instalei-me na casa do procurador da
provncia, Cneu Pompeu Prculo, antiga residncia do rei Nicomedes, repleta de
voluptuosas lembranas do jovem Jlio Csar. A brisa do Propntide ventilava as
salas frescas e sombrias. Prculo, homem de gosto, procurando agradar-me,
organizou algumas reunies literrias em minha honra. Sofistas de passagem,
pequenos grupos de estudantes e de amadores das belas-letras reuniam-se nos
jardins, beira de uma fonte consagrada a P. De quando em quando, um servo
mergulhava ali um jarro de argila porosa; os versos mais lmpidos pareciam
opacos, comparados quela gua pura.

Naquela noite leu-se uma pea bastante obscura de Lcrofon, que me agrada por
suas loucas justaposies de sons, aluses e imagens, e pelo seu complexo
sistema de reflexos e ecos. Um jovem, postado parte, escutava as difceis
estrofes com ateno ao mesmo tempo distrada e pensativa; pareceu-me a
figura de um pastor no fundo de um bosque, vagamente sensvel ao grito
indefinido de um pssaro. Ele no trouxera nem a tbua, nem o estilete. Sentado
beirada do tanque, tocava com os dedos a superfcie lisa da gua. Soube que
seu pai ocupara um modesto lugar na gesto dos grandes domnios imperiais.
Entregue muito jovem aos cuidados de um av, o estudante fora enviado para a
casa de um hspede dos seus pais, armador na Nicomdia que, aos olhos daquela
famlia pobre, parecia rico.

Retive-o a meu lado depois que todos partiram. Era pouco instrudo e ignorava
quase tudo, mas era ponderado e crdulo. Eu conhecia Claudipolis, sua cidade
natal: consegui faz-lo falar da sua casa paterna, na orla das grandes florestas de
pinheiros utilizados na construo dos mastros dos nossos navios. Ele disse amar a
msica vibrante do templo de tis, situado sobre a colina; amava tambm os
belos cavalos do seu pas e seus estranhos deuses. Tinha a voz um pouco velada e
pronunciava o grego com o sotaque da sia. Subitamente, sentindo-se ouvido, ou
talvez olhado, perturbou-se, corou e caiu num daqueles silncios obstinados com
os quais logo me habituei. Esboava-se entre ns uma grande intimidade.
Acompanhou-me dali por diante em todas as viagens. Alguns anos fabulosos
acabavam de comear.

Antnoo era grego: remontei, atravs das recordaes daquela famlia antiga e
obscura, at a poca dos primeiros colonos arcdios, s margens do Propntide.
A sia introduzira nesse sangue, um tanto acre, o efeito da gota de mel que turva
e ao mesmo tempo perfuma o vinho puro. Reencontrava nele as supersties de
um discpulo de Apolnio e a f monrquica de um sdito oriental do Grande Rei.
Sua presena era extraordinariamente silenciosa: seguiu-me como um animal ou
um gnio familiar. Possua infinita capacidade de alegria e indolncia, de
selvageria e confiana, semelhana de um cozinho novo. O belo galgo vido
de carcias e de ordens instalou-se em minha vida. Admirava sua indiferena,
quase altiva, por todas as coisas que no se referissem a seu prazer ou a seu culto.
Nele, essa indiferena substitua o desinteresse, o escrpulo e todas as virtudes
estudadas e austeras. Maravilhavam-me sua spera doura e o devotamento
sombrio em que engajava todo o seu ser. Entretanto, essa submisso no era
cega; suas plpebras, freqentemente abaixadas na aquiescncia ou no sonho,
erguiam-se e mostravam os olhos mais atentos do mundo, diretamente fitos em
mim. Sentia-me julgado. Mas era-o como um deus julgado por seu sdito fiel:
minhas asperezas, minhas crises de desconfiana (porque as tive mais tarde)
eram pacientemente, gravemente aceitas. Fui senhor absoluto apenas uma nica
vez, e de um nico ser.

Se eu nada disse ainda sobre beleza to definitiva, no se deve ver nessa omisso
a espcie de reticncia do homem irremediavelmente conquistado. que as
fisionomias que procuramos desesperadamente costumam escapar-nos: existem
apenas por um momento Revejo uma cabea inclinada sob a cabeleira
noturna, olhos que o prolongamento das plpebras fazem parecer oblquos, um
rosto jovem e amplo. O corpo delicado modificava-se sem cessar, tal uma
planta. Algumas dessas alteraes atribuem-se passagem do tempo. O menino
transformou-se; cresceu. Uma semana de indolncia bastava para amolec-lo;
uma tarde de caa restitua-lhe a firmeza e a agilidade atltica. Uma hora ao sol
o fazia passar da cor do jasmim do mel. As pernas um pouco pesadas de potro
alongaram-se; a face perdeu o leve arredondado da infncia, cavando-se
ligeiramente sob as mas salientes. Dilatado pelo ar, o trax do jovem corredor
dos estdios ganhou as curvas suaves e macias de um colo de bacante. O trejeito
amuado dos lbios revestiu-se de ardente amargura, de saciedade triste. Na
verdade, o rosto mudava como se, noite e dia, eu o tivesse incansavelmente
modelado.

Quando me detenho sobre esses anos, creio reencontrar a Idade de Ouro. Tudo
me parecia fcil: os esforos de outrora eram compensados por um bem-estar
quase divino. A viagem era um divertimento; prazer controlado, conhecido,
sabiamente preparado. O trabalho incessante era apenas uma forma de volpia.
Minha vida, onde tudo acontecia tarde o poder e tambm a felicidade ,
adquiria o esplendor de um pleno meio-dia, das horas ensolaradas da sesta,
quando todas as coisas esto banhadas por uma atmosfera dourada, desde os
objetos do quarto at o corpo estendido a nosso lado. A paixo total possui uma
espcie de inocncia; quase to frgil como qualquer outra: o resto da beleza
humana passava condio de espetculo, deixava de ser a caa de que eu fora
o caador. A aventura banalmente comeada enriquecia e ao mesmo tempo
simplificava minha vida: o futuro pouco me importava. Cessei de questionar os
orculos; as estrelas passaram a ser apenas admirveis desenhos na abbada do
cu. Jamais havia observado com tanta delcia a palidez da madrugada sobre o
horizonte das ilhas, a frescura das grutas consagradas s ninfas e freqentemente
visitadas pelas aves de arribao, o vo compacto das codornizes ao crepsculo.
Reli os poetas. Alguns pareceram-me melhores do que antes, a maior parte
pareceu-me pior. Escrevi versos que me pareceram menos insuficientes do que
de hbito.

Divisamos um mar de rvores: as florestas de sobreiros e de pinheiros da Bi tinia;


o pavilho de caa provido de galerias iluminadas por clarabias, onde o jovem,
reconquistado pelos hbitos de indolncia do pas natal, espalhava ao acaso suas
flechas, sua adaga e seu cinto de ouro, e rolava com os ces sobre os divas de
couro. As plancies tinham armazenado o calor do longo vero; margem do
Sangarius, uma nuvem de vapor subia dos prados onde galopavam manadas de
cavalos selvagens. Ao romper do dia, descamos para nos banharmos nas
margens do rio. Pelo caminho amos pisando a relva molhada pelo orvalho
noturno, sob um cu de onde pendia o delgado crescente da lua que serve de
emblema Bitnia. Essa regio foi cumulada de favores; tomou at o meu nome.

O inverno surpreendeu-nos em Sinope; inaugurei a, sob um frio quase cita, as


obras de ampliao do porto, empreendidas sob minhas ordens pelos marinheiros
da frota. Na estrada de Bizncio, as pessoas importantes mandaram acender
enormes fogueiras entrada das aldeias, junto das quais se aqueciam meus
guardas. A travessia do Bsforo foi emocionante sob uma tempestade de neve.
Cavalgamos atravs da floresta trcia, sentindo o vento spero penetrar nas
dobras das capas, sob o infindvel tamborilar da chuva nas folhas. Durante a
parada no acampamento dos trabalhadores onde ia erguer-se Andrinopla,
ouvimos as ovaes dos veteranos das guerras dcias e contemplamos a terra de
onde surgiriam brevemente torres e muralhas. Na primavera, uma visita s
guarnies do Danbio levou-me at a aldeia prspera que hoje Sarmizegetusa;
o jovem bitnio usava no pulso um bracelete do rei Decbalo. O regresso
Grcia fez-se pelo norte. Permaneci por longo tempo no vale do Tempe,
agradavelmente refrescado pelas guas vivas. A Eubia dourada precedeu a
tica cor de vinho rosado. Mal tocamos em Atenas. Em Elusis, no decorrer da
minha iniciao nos Mistrios, passei trs dias e trs noites misturado multido
de peregrinos que eram ali recebidos durante essa festa: a nica precauo
tomada foi proibir aos homens o porte de faca.

Levei Antnoo Arcdia dos seus antepassados: as florestas conservavam-se to


impenetrveis quanto no tempo em que os antigos caadores de lobos ali
viveram. Por vezes, um cavaleiro afugentava uma vbora com uma chicotada; o
sol flamejava nos cimos pedregosos, como no rigor do vero. Encostado ao
rochedo, o jovem dormitava com a cabea inclinada sobre o peito, os cabelos
levemente agitados pelo vento, espcie de Endmion em pleno dia. Uma lebre,
que meu jovem caador aprisionara com grande dificuldade, foi dilacerada
pelos ces. Foi a nica nota triste desses dias sem nuvens. Os habitantes da
Mantinia reivindicavam para si laos de parentesco com aquela famlia de
colonos bitnios at ento desconhecidos. A cidade, na qual o menino teve mais
tarde seus templos, foi por mim enriquecida e ornamentada. O imemorial
santurio de Netuno, em runas, era to venervel que a entrada estava proibida a
toda e qualquer pessoa: os mistrios, mais antigos do que a prpria raa humana,
perpetuavam-se por trs daquelas portas eternamente fechadas. Fiz construir um
novo templo, de dimenses muito mais vastas, em cujo interior o velho edifcio
jaz para sempre, como semente no centro de um fruto. Na estrada, no muito
longe da Mantinia, mandei restaurar o tmulo onde Epaminondas, morto em
plena batalha, repousa junto de um jovem companheiro abatido a seu lado. Uma
coluna, na qual foi gravado um poema, foi edificada para comemorar essa
lembrana de um tempo em que tudo, visto distncia, parece ter sido nobre e
simples: a ternura, a glria, a morte. Na Acaia, os Jogos stmicos foram
celebrados com um esplendor que no era visto desde tempos imemoriais. Ao
restabelecer as grandes festas helnicas, esperava tornar a fazer da Grcia uma
unidade viva. As caadas levaram-nos at o vale do Hlicon, dourado pelas
ltimas cores do outono. Detivemo-nos junto Fonte de Narciso, perto do
Santurio do Amor. Os despojos de uma ursa nova, trofu suspenso por pregos de
ouro na parede do templo, foram oferecidos quele deus, o mais sbio de todos.

O barco que o mercador Erasto de feso me emprestara para navegar no


Arquiplago ancorou na baa de Falero: instalei-me em Atenas como um homem
que regressa ao lar. Ousei tocar na sua beleza para tentar fazer daquela cidade
admirvel uma cidade perfeita. Atenas, pela primeira vez, via aumentar sua
populao e recomeava a crescer depois de longo perodo de declnio:
dupliquei-lhe a extenso. Previ, ao longo do Ilisso, uma nova Atenas a cidade
de Adriano, ao lado da de Teseu. Tudo estava por organizar, por construir. Seis
sculos antes, o grande templo consagrado a Zeus fora abandonado, logo aps
iniciado. Meus operrios puseram-se ao trabalho com entusiasmo: Atenas
conheceu de novo uma atividade alegre, no experimentada desde os tempos de
Pricles. Eu conclua aquilo que um selucida tentara em vo terminar; restitua,
uma por uma, as pilhagens do nosso Sila. A inspeo das obras exigiu idas e
vindas cotidianas em meio a uma confuso de mquinas, polias, fustes meio
erguidos e blocos de mrmore branco, empilhados negligentemente sob o cu
azul. Todo esse movimento tinha qualquer coisa da excitao dos estaleiros
navais: uma embarcao desencalhada era aparelhada para o futuro. noite, a
arquitetura cedia lugar msica, essa construo invisvel. Pratiquei um pouco
de todas as artes, mas a arte dos sons a nica em que me exercito
constantemente e para a qual me considero razoavelmente dotado. Em Roma eu
o dissimulava, mas em Atenas podia dedicar-me discretamente a esse gosto. Os
msicos se reuniam no ptio junto esttua de Hermes, sob um cipreste solitrio.
Seis ou sete, apenas: uma orquestra de flautas e liras qual, por vezes, vinha
juntar-se um virtuoso, acompanhado de sua citara. Eu tocava geralmente a
grande flauta transversal. Executvamos rias antigas, quase esquecidas, e
tambm melodias novas compostas por mim. Gostava da austeridade viril das
rias dricas, mas no exclua as melodias voluptuosas ou apaixonadas, as
suspenses patticas ou eruditas que as pessoas graves, cuja virtude consiste em
tudo temer, rejeitam como perturbadoras dos sentidos ou do corao. Avistava
por entre as cordas o perfil do meu jovem companheiro, muito srio, ocupado
em desempenhar sua parte no conjunto, enquanto movia os dedos delicadamente
ao longo das cordas re-tesadas.

Foi um belo inverno, rico em convvios amigveis: o opulento tico, cujo banco
financiava minhas obras edlicas, alis no sem tirar proveito disso, convidou-me
para seus jardins de Quefsia, onde vivia cercado de uma corte de
improvisadores e escritores em voga. Seu filho, o jovem Herodes, era um
conversador ao mesmo tempo arrebatado e sutil; tornou-se comensal
indispensvel s minhas ceias de Atenas. Nessa ocasio j perdera
completamente a timidez que o fazia interromper a conversao em minha
presena. Isso aconteceu quando a efebia ateniense enviou-o s fronteiras
srmatas para me felicitar pelo meu acesso ao poder supremo; agora sua
vaidade crescente parecia-me, quando muito, um agradvel ridculo. O retrico
Plemon, o grande homem da Laodicia, que rivalizava com Herodes em
eloqncia e sobretudo em riquezas, encantou-me com seu estilo asitico, amplo
e brilhante como as vagas do Pactolo: esse hbil colecionador de palavras vivia
como falava, com ostentao. Mas o reencontro mais precioso de todos foi o de
Arriano da Nicomdia, meu melhor amigo. Mais jovem do que eu cerca de doze
anos, ele j iniciara a bela carreira poltica e militar na qual continua a
empenhar-se e a servir. Sua experincia dos grandes negcios, seu conhecimento
de cavalos e ces e de todos os exerccios do corpo colocavam-no infinitamente
acima dos simples fazedores de frases. Em sua juventude, fora dominado por
uma dessas paixes do esprito sem as quais no existe talvez a verdadeira
sabedoria, nem a verdadeira grandeza: passara dois anos de sua vida em
Nicpolis, no piro, no pequeno quarto frio e nu onde Epiteto agonizava, e onde
assumiu o encargo de recolher e transcrever, palavra por palavra, os ltimos
propsitos do velho filsofo doente. Essa fase de entusiasmo o havia marcado:
conservava dela uma admirvel disciplina moral, uma espcie de candura grave.
Praticava em segredo certas austeridades de que ningum suspeitava. Mas o
longo aprendizado do dever estico no o petrificou numa atitude de falso sbio.
Era demasiado inteligente para no se aperceber de que existem extremos de
virtude e extremos de amor, e que seu mrito consiste precisamente na sua
raridade, no seu carter de obra-prima nica, de extraordinria perfeio. A
inteligncia serena e a honestidade integral de Xenofonte passaram a servir-lhe
de modelo. Escrevia a histria da sua terra, a Bi tinia. Eu havia colocado essa
provncia, mal administrada por longo tempo pelos procnsules, sob minha
jurisdio pessoal: Arriano aconselhou-me nos meus planos de reforma. Esse
leitor assduo dos dilogos socrticos no ignorava coisa alguma das reservas de
herosmo, devotamento e, por vezes, de sabedoria com que a Grcia soube
enobrecer a paixo pelo amigo. Sempre tratou meu jovem favorito com terna
deferncia. Os dois bitnios falavam o suave dialeto da Jnia, de desinncias
quase homricas, que, mais tarde, convenci Arriano a empregar em suas obras.
Atenas tinha nessa poca seu filsofo de vida frugal: Demnax levava uma
existncia exemplar, embora alegre, numa cabana da aldeia de Colono. Ele no
era Scrates; deste no tinha a sutileza nem o ardor, mas eu amava sua bonomia
zombeteira. O ator cmico Aristmenes, que interpretava com humor a velha
comdia tica, foi outro desses amigos de corao simples. Chamava-lhe minha
perdiz grega: baixo, gordo, alegre como uma criana ou um passarinho, conhecia
melhor do que ningum os ritos, a poesia e as receitas da cozinha antiga.
Divertiu-me e instruiu-me durante longo tempo. Por essa poca, Antnoo
afeioou-se muito ao filsofo Chbrias, platnico e entusiasta do orfismo, o mais
inocente dos homens, que dedicou ao menino uma fidelidade de co de guarda,
transferida mais tarde para mim. Onze anos de vida na corte no o mudaram:
sempre o mesmo ser cndido, dedicado, castamente ocupado pelos sonhos, cego
s intrigas e surdo aos rumores. Aborrece-me algumas vezes, mas s me
separarei dele por ocasio de morte.

Meu relacionamento com o filsofo estico Eufrates foi de breve durao.


Retirou-se para Atenas depois de ruidoso sucesso em Roma. Tomei-o como
leitor, mas os sofrimentos que havia muito lhe causava um abscesso no fgado e
seu conseqente enfraquecimento persuadiram-no de que a vida no lhe oferecia
mais nada que valesse a pena. Pediu-me permisso para deixar meu servio
atravs do suicdio. Jamais fui inimigo da sada voluntria; eu prprio pensei nisso
como um fim possvel, no momento da crise que precedeu a morte de Trajano.
O problema do suicdio, que depois se tornou para mim uma obsesso, parecia-
me ento uma soluo fcil. Eufrates recebeu a autorizao pedida; mandei-lha
pelo meu jovem bitnio, talvez porque me agradasse receber atravs daquele
mensageiro a resposta que poria fim a tudo. O filsofo apresentou-se em palcio
na mesma noite para uma conversa que em nada diferia das anteriores. Matou-
se na manh seguinte. Voltamos a falar muitas vezes sobre o incidente: o menino
permaneceu impressionado e sombrio por alguns dias. O belo ser sensual
encarava a morte com horror; no me apercebi de que ele j pensava muito
sobre ela. Quanto a mim, custava-me compreender que se deixasse
voluntariamente um mundo que me parecia belo demais, que no se esgotasse
at o fim, a despeito de todos os males, a ltima possibilidade de pensar, sentir e
olhar. Mudei muito, depois.

As datas confundem-se: minha memria compe-se de um s afresco, no qual


se acumulam os incidentes e as viagens de muitas estaes. O barco
luxuosamente decorado, de propriedade do mercador Erasto de feso, voltou a
proa em direo ao Oriente, depois para o sul e, por fim, para a Itlia, que se me
tornara o Ocidente. Tocamos em Rodes por duas vezes, e por duas vezes
visitamos Delos ofuscante de brancura. Primeiramente, numa manh de abril, e
mais tarde, sob o plenilnio do solstcio. O mau tempo na costa de piro permitiu-
me prolongar minha visita a Dodona. Na Siclia, demoramo-nos alguns dias em
Siracusa para explorar os mistrios das nascentes: Aretusa, Ciania, as belas
Ninfas azuis. Dediquei um pensamento a Licnio Sura, que outrora consagrara
seus lazeres de homem de Estado a estudar as maravilhas das guas. Tinha
ouvido falar das surpreendentes irisaes da aurora sobre o mar Jnio,
contemplado do Etna. Decidi empreender a ascenso da montanha; passamos da
regio das vinhas das lavas, depois da neve. O menino, cujas pernas
pareciam danar, corria pelas encostas mais difceis; os sbios que me
acompanhavam subiram no dorso de mulas. Um abrigo fora construdo no alto
para que pudssemos esperar pela aurora. Ela surgiu. Um imenso arco-ris
desdobrou-se de um horizonte ao outro; estranhos fogos brilharam sobre o gelo do
cimo; o espao terrestre e martimo abriu-se diante do nosso olhar at a frica
visvel e a Grcia adivinhada. Foi um dos momentos culminantes da minha vida.
Nada faltou, nem a franja dourada de uma nuvem, nem as guias, nem o
escano da imortalidade.

Estaes alcinicas, solstcio dos meus dias Longe de embelezai minha


felicidade distncia, devo lutar para no lhe enfear a imagem; mesmo sua
recordao hoje demasiado forte para mim. Mais sincero que a maioria dos
homens, confesso sem subterfgios as causas secretas dessa felicidade: a calma
to propcia aos trabalhos e s disciplinas do esprito parece-me um dos mais
belos efeitos do amor. Espanto-me de que essas alegrias to precrias, to
raramente perfeitas no curso de uma vida humana, independentemente da forma
pela qual as tenhamos procurado ou recebido, sejam consideradas com tanta
desconfiana por pretensos sbios que lhes receiam o hbito e o excesso, em
lugar de temer sua falta e sua perda. Admiro-me de que utilizem, para tiranizar
seus sentidos, um tempo que seria mais bem aproveitado para educar ou
embelezar sua alma. Naquela poca, eu me empenhava em fortalecer minha
felicidade, em fru-la, e tambm em julg-la, dispensando-lhe a ateno que
sempre dei aos menores detalhes dos meus atos. O que , afinal, a prpria
volpia, seno um momento de ateno apaixonada do corpo? Toda felicidade
uma obra-prima: o menor erro a adultera, a menor hesitao a modifica, a
menor deselegncia a desfigura, a menor tolice a embrutece. Minha felicidade
de modo algum responsvel pelas imprudncias que mais tarde a fraturaram:
enquanto agi a seu favor, fui sbio. Creio mesmo que teria sido possvel a um
homem mais prudente do que eu ser feliz at a morte.

Foi na Frgia, nos confins onde a Grcia e a sia se confundem, que tive, mais
tarde, a imagem mais completa e mais lcida da felicidade. Estvamos
acampados num lugar deserto e selvagem, junto ao tmulo de Alcibades, morto
ali por obra das maquinaes dos strapas. Mandei colocar sobre aquele tmulo,
negligenciado havia sculos, uma esttua de mrmore de Paros, a efgie desse
homem que foi um dos mais amados pela Grcia. Ordenei tambm que todos os
anos fossem celebrados ali certos ritos comemorativos; os habitantes da aldeia
juntaram-se ao pessoal da minha escolta para a primeira dessas cerimnias. Um
novilho foi sacrificado, e uma parte da carne, reservada para o festim da noite.
Houve uma corrida de cavalos improvisada na plancie, e danas nas quais o
bitnio tomou parte com graa esfuziante. Um pouco mais tarde, beira da
ltima fogueira, atirando para trs a bela cabea, ele cantou. Gosto de me
estender junto dos mortos para tomar minha medida: nessa noite comparei
minha vida do grande hedonista envelhecido que tombou naquele local varado
pelas setas, defendido por um jovem amigo e chorado por uma cortes de
Atenas. Na minha juventude, no pretendi igualar o prestgio desfrutado pelo
jovem Alcibades: minha multiplicidade igualava ou superava a dele. Havia
usufrudo tanto quanto ele, refletira mais longamente e trabalhara muito mais.
Possua, como ele, a estranha felicidade de ser amado. Alcibades a todos
seduziu, at mesmo Histria e, entretanto, deixou atrs de si pilhas de atenienses
mortos, abandonados nas estradas de Siracusa, alm de uma ptria vacilante e
deuses das encruzilhadas estupidamente mutilados por suas mos. Governei um
mundo infinitamente mais vasto do que aquele em que o ateniense viveu.
Mantive-o em paz e aparelhei-o como a um belo navio, preparado para uma
viagem que dever durar atravs dos sculos. Empenhei-me na luta para
enaltecer o lado divino do homem, sem, contudo, sacrificar-lhe o lado humano. A
felicidade foi a minha recompensa.
Havia Roma. A essa altura, porm, j no me sentia obrigado a manobrar, a
tranqilizar, a agradar. A obra do principado impunha-se; as portas do templo de
Jano, que se abrem em tempo de guerra, permaneciam fechadas. Os ideais
produziam seus frutos, e a prosperidade das provncias reflua para a metrpole.
J no recusava o ttulo de pai da ptria que me haviam proposto na poca do
meu advento.

Pio tina no existia mais. Durante uma temporada anterior na cidade, revira pela
ltima vez aquela mulher de sorriso um tanto cansado, a quem a nomenclatura
oficial dera o ttulo de minha me e que era bem mais: era minha nica amiga.
Desta vez, dela s encontrei uma pequena urna depositada sob a Coluna de
Trajano. Assisti pessoalmente s cerimnias da sua apoteose. Contrariamente ao
uso imperial, mantive o luto por um perodo de nove dias. Mas a morte mudava
pouca coisa nessa intimidade que havia anos dispensava a presena; a imperatriz
permaneceu o que sempre fora para mim: um esprito, um pensamento ao qual o
meu se unira.

Algumas das grandes obras de construo estavam sendo terminadas. O Coliseu,


restaurado e purificado das lembranas de Nero que ainda assombravam aquele
lugar, foi decorado com uma efgie colossal do Sol, Hlios-Rei, em substituio
imagem do imperador e como aluso a meu nome gentlico, lio. Dvamos os
ltimos retoques no templo de Vnus e de Roma, construdo tambm no local da
escandalosa Casa de Ouro, onde Nero esbanjara um luxo sem gosto e mal-
adquirido. Roma, Amor: a divindade da Cidade Eterna identificava-se pela
primeira vez com a Me do Amor, inspiradora de todas as alegrias. Esse era um
dos planos da minha vida. O poderio romano assumia assim seu carter csmico
e sagrado, a forma pacfica e tutelar que eu ambicionava conferir-lhe.
Acontecia-me por vezes identificar a imperatriz morta com a Vnus pudica,
conselheira divina.

Todas as divindades me pareciam, cada vez mais, misteriosamente fundidas em


um Todo, emanaes infinitamente variveis, manifestaes iguais de uma
mesma fora: suas contradies no seriam mais do que expresso do seu
acordo. A construo de um templo dedicado a Todos os Deuses, de um Panteo,
se me impunha. Escolhera seu lugar sobre as runas dos antigos banhos pblicos
oferecidos ao povo romano por Agripa, o genro de Augusto. Nada restava do
antigo edifcio, alm de um prtico e uma placa de mrmore com uma
dedicatria ao povo de Roma. Essa placa foi cuidadosamente recolocada,
exatamente como estava, no fronto do novo templo. Pouco me importava que
meu nome figurasse ou no num monumento que era a expresso do meu
pensamento. Agradava-me, muito pelo contrrio, que uma velha inscrio de
mais de um sculo o associasse ao princpio do Imprio, ao reino pacificado de
Augusto. Mesmo quando inovava, preferia sentir-me, antes de tudo, um
continuador. Para alm de Trajano e de Nerva, considerados oficialmente como
meu pai e meu av, ligava-me aos doze Csares, to maltratados por Suetnio: a
lucidez de Tibrio, menos sua insensibilidade, a erudio de Cludio, menos sua
fraqueza, o gosto de Nero pelas artes, mas despojado de toda vaidade tola, a
bondade de Ti to, sem sua sensaboria, a economia de Vespasiano, sem sua
avareza ridcula, constituam outros tantos exemplos que propunha a mim
mesmo. Esses prncipes haviam desempenhado seu papel nos negcios humanos;
era a mim que cabia, para o futuro, escolher entre seus atos aqueles cuja
continuao seria importante. Pretendia consolidar os melhores, corrigir os
piores, at o dia em que outros homens, mais ou menos qualificados, mas
igualmente responsveis, se encarregassem de fazer o mesmo relativamente aos
meus.

A solenidade da dedicao do templo de Vnus e de Roma foi uma espcie de


triunfo acompanhado por corridas de carros, espetculos pblicos, distribuio de
especiarias e perfumes. Os vinte e quatro elefantes, monolitos vivos, que haviam
transportado para o local da construo os enormes blocos de mrmore,
diminuindo desse modo o trabalho forado dos escravos, tomaram parte no
cortejo. A data escolhida para a festa foi o dia do aniversrio de Roma, o oitavo
aps os idos de abril do ano 882 depois da fundao da Cidade. A primavera
romana nunca fora mais doce, mais violenta, nem mais azul. No mesmo dia,
com uma solenidade mais grave e como que abafada, teve lugar uma cerimnia
consagratria no interior do Panteo. Eu prprio corrigira os planos demasiado
tmidos do arquiteto Apolodoro. Utilizando as artes da Grcia como simples
ornamentao, ou um luxo a mais, procurei voltar, pela prpria estrutura do
edifcio, poca fabulosa e primitiva de Roma, ao mesmo tempo que reproduzia
os templos redondos da Etrria antiga. Quis que esse santurio de Todos os
Deuses reproduzisse a forma do globo terrestre e da esfera estelar, do globo onde
se encerram as origens do fogo eterno, da esfera oca que tudo contm. Era
igualmente a forma das cabanas ancestrais, nas quais a fumaa dos mais antigos
lumes humanos escapava por um orifcio situado no topo. A cpula, construda
com uma lava slida e leve, que parecia -participar ainda do movimento
ascendente das chamas, comunicava com o cu por uma grande abertura,
alternadamente negra e azul, tal como a noite e o dia. Esse templo, aberto e ao
mesmo tempo secreto, era concebido como um quadrante solar. As horas
girariam naqueles caixotes, cuidadosamente polidos por artfices gregos, e o
disco do dia ficaria suspenso ali como um escudo de ouro. A chuva formaria uma
poa de gua pura no pavimento, e as preces escapar-se-iam como uma fumaa
em direo ao vazio onde costumamos colocar os deuses. Essa festa foi para
mim uma dessas horas em que tudo converge. De p, no fundo do poo do dia,
tinha ao meu lado o corpo auxiliar do meu principado, o material humano de que
se compunha meu destino de homem amadurecido, j edificado em grande
parte. Reconhecia a energia austera do fiel Mrcio Turbo; a dignidade mal-
humorada de Serviano, cujas crticas, feitas em voz cada vez mais baixa, j no
me atingiam; a elegncia real de Lcio Cenio; e, um pouco parte, na clara
penumbra que combina com as aparies divinas, o rosto sonhador do jovem
grego em quem eu encarnara minha boa sorte. Minha mulher, presente tambm,
acabava de receber o ttulo de imperatriz.

Havia longo tempo eu preferia, aos comentrios ineptos dos filsofos sobre a
natureza divina, as fbulas referentes aos amores e s disputas dos deuses;
aceitava ser a imagem terrestre daquele Jpiter mais deus do que homem,
sustentculo do mundo, encarnao da justia, da ordem das coisas, amante dos
Ganimedes e das Europas, esposo negligente de uma Juno amarga. Meu esprito,
predisposto naquele dia a colocar todas as coisas sob uma luz sem sombras,
comparava a imperatriz quela deusa, em honra de quem, numa recente visita a
Argos, eu consagrara um pavo de ouro ornado de pedras preciosas. Teria podido
desembaraar-me, pelo divrcio, dessa mulher que eu no amava. Fosse eu um
homem comum, no teria hesitado em faz-lo. Mas Sabina incomodava-me
pouco, e nada em sua conduta justificava tamanho insulto pblico. Jovem esposa,
meu afastamento a perturbava, mas pouco a pouco, como seu tio, comeou a
irritar-se apenas com minhas dvidas. Agora, ela assistia s manifestaes de
uma paixo que se anunciava duradoura, sem sequer demonstrar perceb-la.
Como muitas mulheres pouco sensveis ao amor, ela mal compreendia seu poder.
Essa ignorncia exclua ao mesmo tempo a indulgncia e o cime. Inquietava-se
apenas quando seus ttulos ou sua segurana estavam ameaados, o que no era o
caso. Nada lhe restava da graa adolescente que, em outros dias, me interessara,
ainda que passageiramente. A espanhola, prematuramente envelhecida, era
grave e dura. Agradava-me que sua frieza a tivesse impedido de possuir
amantes; agradava-me tambm que soubesse usar com dignidade seus vus de
matrona, que eram quase os de viva. Comprazia-me que um perfil de
imperatriz figurasse nas moedas romanas, tendo no reverso uma inscrio
dedicada ora ao Pudor, ora Tranqilidade. Freqentemente me acontecia
pensar naquele casamento fictcio que, na noite das festas dedicadas a Elusis,
realizou-se entre a grande sacerdotisa e o hierofante, casamento que no uma
unio, nem mesmo um contato, mas um rito e, como tal, sagrado. Na noite que
se seguiu a essas celebraes, contemplei Roma arder do alto de um terrao. As
fogueiras da alegria equivaliam aos incndios ateados por Nero: eram quase to
terrveis quanto estes. Roma: o cadinho, mas tambm a fornalha e o metal em
ebulio; o malho, mas tambm a bigorna; a prova visvel das transformaes e
dos recomeos da histria, um dos lugares do mundo onde o homem ter vivido
mais intensamente. A conflagrao de Tria, de onde um fugitivo escapara
trazendo em sua companhia o velho pai, o jovem filho e seus deuses domsticos,
resultava naquela noite em grandes fogos festivos. Pensava tambm, com uma
espcie de terror sagrado, nas conflagraes do futuro. Os milhes de vidas
passadas, presentes e futuras, os novos edifcios nascidos dos edifcios antigos e
seguidos, eles prprios, de edifcios por nascer, pareciam-me suceder-se no
tempo como vagas. Por acaso, era a meus ps que, naquela noite, essas grandes
vagas vinham quebrar-se. Ponho de parte os momentos de delrio em que a
prpura imperial, estofo sagrado que eu to raramente consentia em usar, foi
lanado sobre os ombros da criatura que se transformara, para mim, no meu
Gnio. Quis, por um momento, observar o contraste entre o vermelho profundo e
o ouro plido de uma nuca, mas quis sobretudo obrigar minha Felicidade, minha
Fortuna, essas entidades incertas e vagas, a encarnar-se nessa forma to
terrestre, a adquirir o calor e o peso tranqilizador da carne. As slidas paredes
do Pala tino, que eu ocupava to poucas vezes, mas que acabava de reconstruir,
oscilavam como o costado de um barco; as cortinas afastadas para deixar entrar
a noite romana assemelhavam-se a bandeiras num mastro de navio, e os gritos
da multido soavam como o rudo do vento no cordame. O enorme escolho
entrevisto ao longe, na sombra, era a base gigantesca do meu tmulo em incio
de construo s margens do Tibre. Contudo, nessa noite, nada disso me inspirava
temor, nem v meditao sobre a brevidade da vida.
Imperceptivelmente, a luz mudou. Aps mais de dois anos, a passagem do tempo
era acentuada pelo desenvolvimento de uma juventude que se forma, que se
torna dourada, que sobe em direo ao seu znite: a voz grave habituara-se a dar
ordens aos pilotos e aos chefes das caadas; o passo do corredor alongara-se; as
pernas do cavaleiro dominavam mais habilmente a montaria. O estudante que
aprendera de cor, em Claudipolis, fragmentos de Homero, comeava a
apaixonar-se pela poesia voluptuosa e sbia, entusiasmava-se com certas
passagens de Plato. Meu jovem pastor transformava-se num jovem prncipe. J
no era aquele menino diligente que saltava do cavalo nas escalas para me
oferecer a gua das fontes recolhida na concha das mos. O doador conhecia
agora o imenso valor dos seu dons. Durante as caadas organizadas nos domnios
de Lcio, na Toscana, sentia prazer em misturar aquele rosto perfeito s
fisionomias pesadas e inquietas dos grandes dignitrios, aos perfis agudos dos
orientais, s carrancas macias dos monteiros brbaros, e em obrigar o bem-
amado a representar o difcil papel de amigo. Em Roma, as intrigas giravam em
torno daquela cabea jovem. Empregavam-se os mais vis esforos no sentido de
captar sua influncia, ou substitu-la por qualquer outra. A concentrao num
nico pensamento dotava o jovem de dezoito anos de um poder de indiferena
que falta aos mais sbios. Embora soubesse como desdenhar ou ignorar tudo isso,
a linda boca adquirira um vinco amargo que no escapava aos escultores.

Ofereo aqui aos moralistas uma ocasio fcil para triunfarem sobre mim. Meus
censores se preparam para provar que minha infelicidade conseqncia de um
desregramento, o resultado de um excesso. Torna-se-me difcil contradiz-los,
pois no vejo em que consiste o desregra-mento, nem onde se situa o excesso.
Esforo-me por reduzir meu crime, se crime houve, a propores justas: digo a
mim mesmo que o suicdio no raro, e que comum morrer aos vinte anos. A
morte de Antnoo s um problema e uma catstrofe para mim. Talvez esse
desastre fizesse parte integrante de um excesso de alegria, de um acrscimo de
experincia, de que eu no teria consentido privar a mim mesmo, nem a meu
companheiro de perigo. Meus prprios remorsos transformaram-se, pouco a
pouco, numa forma amarga de posse, um modo de convencer-me de que fui, at
o fim, o triste senhor do destino dele. Mas no ignoro que preciso contar com as
decises do belo desconhecido que existe, apesar de tudo, em cada ser que
amamos. Assumindo toda a culpa, reduzo o jovem amigo s propores de uma
esttua de cera, que eu teria modelado e depois esmagado entre minhas prprias
mos. No tenho o direito de depreciar a extraordinria obra-prima em que ele
transformou sua partida. imperioso que eu deixe a essa criana o mrito de sua
prpria morte.

Evidentemente, no incrimino a preferncia sensual, demasiado vulgar, alis,


que determinava minhas escolhas em matria de amor. Paixes semelhantes
atravessaram constantemente minha vida; esses freqentes amores s me
haviam custado, at ento, um mnimo de juramentos, mentiras e males. Minha
breve predileo por Lcio levara-me somente a algumas loucuras reparveis.
Nada impedia que sucedesse o mesmo com essa suprema ternura; nada, exceto
a qualidade nica que a distinguia das outras. O hbito nos teria conduzido ao fim
sem glria, mas sem desastre, que a vida oferece a todos os que aceitam seu
lento enfraquecimento pela saciedade. Teria visto a paixo transformar-se em
amizade, como querem os moralistas, ou em indiferena, o que mais
freqente. O jovem se desligou de mim no exato momento em que nossos laos
teriam comeado a pesar-me. Outras rotinas sensuais, ou as mesmas sob outras
formas, ter-se-iam estabelecido em sua vida. O futuro incluiria certamente um
casamento nem pior nem melhor do que tantos outros, um posto na
administrao provincial, a gesto de um domnio rural na Bitnia, ou, em outras
circunstncias, a inrcia da vida da corte, continuada em alguma posio
subalterna; em ltimo caso, seria um confidente, um alcoviteiro, destino de quase
todos os favoritos decados. A prudncia, se de prudncia entendo alguma coisa,
consiste em nada ignorar dos riscos de que feita a prpria vida, e permanecer
livre para afastar o pior. Mas nem aquela criana nem eu ramos prudentes.

No esperei pela presena de Antnoo para me sentir deus. O sucesso


multiplicava minha volta as probabilidades de vertigem; as estaes pareciam
colaborar com os poetas e os msicos da minha comitiva, para fazer da nossa
existncia uma festa olmpica. No dia da minha chegada a Cartago, uma seca de
cinco anos terminou. A multido, delirante sob o aguaceiro, aclamou em mim
aquele que dispensava os benefcios do alto. Depois disso, as grandes obras da
frica no foram mais do que uma forma de canalizar a prodigalidade celeste.
Algum tempo antes, no curso de uma escala na Sardenha, uma tempestade
obrigou-nos a procurar refgio numa cabana de camponeses. Antnoo auxiliou
nosso hospedeiro a assar sobre a brasa duas postas de atum; olhando-o, senti-me
como Zeus visitando Filmon em companhia de Hermes. O jovem, com as
pernas dobradas sobre o leito, era aquele mesmo Hermes que desatava as
sandlias; Baco colhia um cacho de uva, ou provava para mim uma taa de
vinho rosado, e, finalmente, os dedos endurecidos pela corda do arco eram os do
prprio Eros. Entre tantas fantasias, e entre tantos sortilgios, aconteceu-me
esquecer o ser humano, o menino que se esforava em vo por aprender o latim,
que pedia ao engenheiro Decriano que lhe desse lies de matemtica,
abandonando-as em seguida, e que, mnima censura, ia amuado para a proa do
navio, onde permanecia a contemplar o mar.

A viagem frica terminou em pleno sol de julho nos bairros novos de


Lambessa. Meu companheiro vestiu, com pueril alegria, a couraa e a tnica
militares. Fui, por alguns dias, o Marte nu e de capacete que participa dos
exerccios de campo, o Hrcules atltico embriagado pelo sentimento do seu
vigor ainda jovem. A despeito do calor e dos demorados trabalhos de
terraplenagem efetuados antes da minha chegada, o exrcito funcionou, como
tudo o mais, com perfeio divina. Teria sido impossvel obrigar o corredor a
saltar um obstculo a mais, impor ao cavaleiro um novo volteio sem prejudicar a
eficcia de suas prprias manobras, sem romper em alguma parte o exato
equilbrio que constitui a beleza. Fui forado a advertir os oficiais de um nico,
imperceptvel erro: um grupo de cavalos deixados a descoberto durante o
simulacro de um ataque em campo raso. Meu prefeito Corneliano me satisfez
em tudo. Uma ordem inteligente regia aquela massa de homens, de animais de
tiro, de mulheres brbaras acompanhadas de filhos robustos, comprimindo-se em
volta do pretrio para me beijar as mos. Essa obedincia no era servil; esse
entusiasmo selvagem visava sustentar meu programa de segurana; nada havia
custado caro demais, nada havia sido negligenciado. Planejei mandar escrever
por Arriano um tratado sobre a ttica, to exato como um corpo bem-feito.

Em Atenas, a cerimnia da dedicao do Olimpo forneceu pretexto, trs meses


mais tarde, s festas que lembravam as solenidades romanas; mas o que em
Roma se passava em terra, em Atenas situava-se em pleno cu. Por uma tarde
dourada de outono, tomei lugar sob o prtico concebido segundo a escala sobre-
humana de Zeus; o templo de mrmore, erigido no lugar onde Deucalio viu
cessar o dilvio, parecia perder seu peso, flutuar como uma densa nuvem
branca. Minhas vestes rituais harmonizavam-se com os tons do entardecer sobre
o Himeto, prximo dali. Havia encarregado Plemon do discurso inaugural. Foi
nessa ocasio que a Grcia me conferiu os ttulos divinos em que eu via, ao
mesmo tempo, uma fonte de prestgio e o ideal mais secreto das realizaes da
minha vida: Evrgeta, Olmpico, Epifnio, Senhor de Tudo. E o mais belo, o mais
difcil de merecer de todos os ttulos: Jnio, Fileleno. Havia muito de ator em
Plemon, mas as expresses fisionmicas de um grande comediante traduzem
muitas vezes uma emoo da qual participa toda uma multido e todo um sculo.
Ele ergueu os olhos e concentrou-se antes do seu exrdio, parecendo reunir em si
todos os dons contidos nesse momento do tempo. Eu havia colaborado com as
eras e com a prpria vida grega; a autoridade exercida por mim era menos um
poder do que uma misteriosa onipotncia superior ao homem, mas que age
eficazmente s atravs da interveno de um ser humano. Cumprira-se o
casamento de Roma e Atenas: o passado assumia um aspecto de futuro; a Grcia
movimentava-se outra vez como um navio que, h longo tempo imobilizado pela
calmaria, sente de novo em suas velas o impulso do vento. Foi nesse instante que
uma melancolia momentnea comprimiu-me o corao: refleti sobre as
palavras acabamento e perfeio, que contm em si a palavra fim. Talvez
eu tivesse apenas oferecido mais uma runa ao tempo, que tudo devora.

Penetramos em seguida no interior do templo, onde os escultores ainda se


atarefavam: o imenso esboo do Zeus de ouro e marfim iluminava vagamente a
penumbra. Ao p dos andaimes, o grande pton que eu mandara trazer da ndia
para consagrar naquele santurio grego, repousava no seu cesto de filigrana,
animal divino, emblema rastejante do esprito da Terra, associado desde sempre
ao jovem nu que simboliza o Gnio do imperador. Antnoo, assumindo mais e
mais esse papel, serviu ele mesmo ao monstro sua rao de abelheiros de asas
aparadas. Depois, erguendo os braos, orou. Eu sabia que aquela orao, feita
em minha inteno, se dirigia exclusivamente a mim, mas eu no era bastante
deus para lhe adivinhar o sentido, nem para saber se seria, um dia ou outro,
atendido. Foi um alvio sair daquele silncio, daquela palidez azulada, reencontrar
as ruas de Atenas onde se acendiam os candeeiros e presenciar a familiaridade
do povo humilde, o som dos gritos no ar poeirento do anoitecer. O rosto jovem,
que brevemente embelezaria tantas moedas do mundo grego, comeava a ser
para a multido uma presena amiga, um smbolo.

No amava menos; amava mais. Todavia, o peso do amor, como o peso de um


brao ternamente pousado sobre um peito, tornava-se pouco a pouco mais difcil
de suportar. Os comparsas reapareceram: lembro-me do jovem forte e esbelto
que me acompanhou durante uma temporada em Mileto, mas ao qual renunciei.
Revejo aquela noite em Sardes, em que o poeta Estrato nos levou para conhecer
vrias casas de prostituio, cercados de conquistas duvidosas. Esse Estrato, que
preferira minha corte a obscura liberdade das tavernas da sia, era homem
fino e mordaz, vido de provar a inanidade de tudo o que no fosse o prazer,
talvez para se desculpar de, por ele, haver sacrificado tudo o mais. E houve a
noite de Esmirna, quando forcei o objeto amado a suportar a presena de uma
cortes. O menino fazia do amor uma idia que permanecia austera, porque
exclusiva. Sua repugnncia levou-o nusea. Depois, habituou-se. Aquelas vs
tentativas tm sua explicao no gosto pelo deboche; alm disso, havia a
esperana de criar uma intimidade nova, na qual o companheiro de prazer no
deixaria de ser o bem-amado e o amigo; o desejo de instruir o outro, de fazer sua
juventude passar por experincias idnticas s da minha; por fim, a inteno,
talvez a mais inconfessada, de rebaix-lo pouco a pouco ao nvel dos prazeres
vulgares que no obrigam a qualquer compromisso.

Havia um componente de angstia na necessidade de ultrajar a ternura sombria


que ameaava perturbar minha vida. No curso de uma viagem Trade,
visitamos a plancie do Escamandro sob um cu verde de catstrofe: a inundao
cujos estragos eu viera verificar havia transformado em pequenas ilhas os
tmulos das sepulturas antigas. Recolhi-me por alguns momentos junto ao de
Heitor; Antnoo foi sonhar sobre a sepultura de Ptroclo. No jovem servo que me
acompanhava, eu no soube reconhecer o mulo do companheiro de Aquiles.
Ridicularizei as fidelidades apaixonadas que florescem sobretudo nos livros; o
belo jovem, insultado, corou at a raiz dos cabelos. A franqueza era a nica
virtude que eu cultivava cada vez mais: compreendi que, para ns, as disciplinas
hericas com que a Grcia cercou a ligao de um homem maduro a um
companheiro mais jovem no passam, muitas vezes, de afetao hipcrita. Mais
sensvel do que julgava ser aos preconceitos de Roma, lembrava-me de que tais
preconceitos admitem o prazer, mas vem no amor uma mania vergonhosa. Em
conseqncia, fui novamente dominado pelo desejo violento de no depender
exclusivamente de ser algum. Irritava-me com as singularidades prprias da
juventude e, como tais, inseparveis do ser que eu escolhera para amar. E acabei
por reencontrar naquela paixo diferente tudo o que me havia irritado em minhas
amantes romanas: os perfumes, a afetao, o luxo frio dos adereos retomaram
seu lugar em minha vida. Por sua vez, introduziram-se naquele corao sombrio
temores injustificados: vi-o inquietar-se por completar em breve dezenove anos.
Caprichos perigosos, cleras que agitavam naquela fronte os anis de Medusa,
alternavam-se com uma melancolia que se assemelhava ao entorpecimento,
com uma doura cada vez mais estilhaada. Certo dia, aconteceu-me bater-lhe:
lembrar-me-ei sempre do seu olhar assombrado. No entanto, o dolo esbofeteado
permanecia dolo, e os sacrifcios expiatrios comeavam.

Todos os Mistrios da sia vinham reforar a voluptuosa desordem das suas


msicas estridentes. O tempo de Elusis havia passado. As iniciaes nos cultos
secretos ou extravagantes, prticas mais toleradas do que permitidas, e que o
legislador presente dentro de mim olhava com desconfiana, convinham quele
momento da vida em que a dana se transforma em vertigem, em que o canto se
resolve num grito. Na ilha de Samotrcia, eu fora iniciado nos Mistrios dos
Cabiras, antigos e obscenos, sagrados como a carne e o sangue. As serpentes,
fartas de leite do antro de Trofnio, esfregaram-se nos meus artelhos; as festas
trcias de Orfeu deram lugar aos ritos selvagens da fraternidade. O homem de
Estado, que proibira sob as penas mais severas todas as formas de mutilao,
concordou em assistir s orgias da Deusa Sria: vi o espantoso turbilhonamento
das danas ensangentadas. Fascinado como um cabrito na presena de um
rptil, meu jovem companheiro contemplava com terror aqueles homens, que
preferiam dar s exigncias da idade e do sexo uma resposta to definitiva como
a da morte, e talvez mais atroz. O cmulo do horror foi atingido durante uma
temporada em Palmira, onde o mercador rabe Meles Agripa nos hospedou
durante trs semanas em meio a um luxo esplndido e brbaro. Certo dia, depois
de beber, Meles, grande dignitrio do culto mitraco que levava muito pouco a
srio seus deveres de pastforo, convidou Antnoo para participar do tauroblio.
O jovem sabia que outrora eu me submetera a uma cerimnia do mesmo
gnero, razo pela qual ofereceu-se com entusiasmo. No julguei dever opor-me
a essa fantasia, para cujo cumprimento se exige apenas um mnimo de
purificao e abstinncia. Aceitei servir, eu mesmo, como aclito, secundado por
Marco lpio Castoras, meu secretrio para a lngua rabe. hora combinada,
descemos ao subterrneo sagrado: o bitnio deitou-se para receber a asperso
sangrenta. Quando vi emergir do fosso o corpo estriado de vermelho, a cabeleira
empastada por uma lama viscosa, o rosto coberto de manchas que no podiam
ser lavadas, e que era preciso deixar desvanecer por si mesmas, a repugnncia e
o horror por esses cultos subterrneos e obscuros cerraram-me a garganta.
Alguns dias mais tarde, mandei proibir s tropas acantonadas em meso o acesso
ao negro templo de Mitra.

Tive meus pressgios: como Marco Antnio antes da ltima batalha, ouvi,
durante a noite, afastar-se a msica da rendio dos deuses protetores que
partem Mas a ouvi sem lhe dar ateno. Sentia-me seguro como o cavaleiro
que um talism protege contra todas as quedas. Em Samsata, realizou-se sob
meus auspcios um congresso de pequenos reis do Oriente; durante as caadas na
montanha, Abgar, rei de Osroene, ensinou-me a arte da falcoaria; batidas
preparadas como cenas de teatro precipitaram em redes de prpura manadas
inteiras de antlopes; Antnoo agentava-se com todas as suas foras para conter
o mpeto de um casal de panteras atado a pesadas coleiras de ouro. Os ajustes
foram concludos sombra de todos esses esplendores; as negociaes foram-
me favorveis. Continuava a ser o jogador que sempre ganha. O inverno passou-
se no palcio da Antiquia, onde outrora eu pedira aos feiticeiros que me
esclarecessem o futuro. Mas o futuro, dali por diante, no podia trazer-me nada
que, pelo menos, passasse por um dom. Minhas vindimas estavam feitas; o mosto
da vida enchia a cuba. Havia cessado, verdade, de comandar meu prprio
destino, mas as disciplinas antes cuidadosamente elaboradas j no me pareciam
o primeiro estgio de uma vocao de homem; tinham-se transformado em
cadeias que o danarino se obriga a usar para saltar melhor quando delas se
separa. Em certos pontos, a austeridade persistia: continuava a proibir que
servissem o vinho antes da segunda viglia noturna; lembrava-me de ter visto,
sobre aquelas mesmas mesas de madeira polida, a mo trmula de Trajano. Mas
h outras espcies de embriaguez. Nenhuma sombra se delineava sobre meus
dias, nem a morte, nem a derrota, nem aquele revs mais sutil que infligimos a
ns mesmos, nem a idade que, entretanto, acabaria por chegar. Contudo, eu me
apressava, como se cada uma daquelas horas fosse a mais bela e a ltima.

Minhas freqentes temporadas na sia Menor me haviam posto em contato com


um pequeno grupo de sbios, seriamente empenhados no conhecimento das artes
mgicas. Cada sculo tem suas audcias: os melhores espritos do nosso,
cansados de uma filosofia que tende cada vez mais s declamaes escolares,
comprazem-se em acercar-se das fronteiras interditas ao homem. Em Tiro, Flon
de Biblos, que me revelara certos segredos da velha magia fencia, acompanhou-
me Antiquia. Numnio dava ali aos mitos de Plato sobre a natureza da alma
uma interpretao que permanecia tmida, mas que teria levado longe um
esprito mais audacioso do que o dele. Seus discpulos invocaram os demnios:
esse foi um jogo como qualquer outro. Estranhas figuras, que pareciam feitas da
prpria substncia dos meus sonhos, apareceram-me na fumaa do estoraque,
oscilaram, desvaneceram-se, deixando-me apenas a sensao de uma
semelhana com um rosto conhecido e vivo. Tudo isso no passava de habilidade
de saltimbanco. Nesse caso, o saltimbanco conhecia bem seu ofcio. Voltei ao
estudo da anatomia, iniciado superficialmente em minha juventude, agora sem a
finalidade de examinar seriamente a estrutura do corpo. Dominava-me a
curiosidade sobre as regies intermedirias onde a alma e a carne se fundem,
onde o sonho corresponde realidade e, por vezes, a ultrapassa, onde a vida e a
morte permutam seus atributos e suas mscaras. Meu mdico Hermgenes,
apesar de desaprovar tais experincias, ps-me em contato com um pequeno
nmero de praticantes que trabalhavam nesse campo. Tentei com eles localizar a
sede da alma, descobrir os vnculos que a ligam ao corpo e medir o tempo que
ela leva para se separar dele. Alguns animais foram sacrificados nessas
pesquisas. O cirurgio Stiro levou-me sua clnica para assistir a algumas
agonias. Sonhvamos muito alto: no ser a alma apenas o supremo confim do
corpo, frgil manifestao da dor e do prazer de existir? Ou, ao contrrio, ser
mais antiga do que esse corpo modelado sua imagem e que, bem ou mal, lhe
serve momentaneamente de instrumento? possvel cham-la no interior da
carne, restabelecer entre elas a unio estreita, a combusto a que chamamos
vida? Se as almas possuem identidade prpria, podem elas permutar-se, ir de um
ser a outro como o pedao de um fruto ou o gole de vinho que dois amantes
passam um ao outro num beijo? Todos os sbios mudam de opinio sobre esses
assuntos vinte vezes por ano; em mim, o ceticismo debatia-se entre a vontade de
saber e o entusiasmo pela ironia. Mas estava convencido de que nossa
inteligncia s deixa filtrar at ns um magro resduo dos fatos: interessava-me
cada vez mais pelo mundo obscuro da sensao, espcie de noite negra onde
cintilam e rodopiam sis ofuscantes. Por essa mesma poca, Flgon, que
colecionava crnicas de fantasmas, contou-nos uma noite a histria da Noiva de
Corinto, cuja autenticidade ele garantia. Essa aventura, na qual o amor
reconduzia uma alma de volta Terra e lhe restitua temporariamente um corpo,
comoveu-nos a todos, s que em nveis diferentes. Muitos tentaram uma
experincia anloga: Stiro esforou-se por evocar seu mestre Aspsio, com
quem fizera um daqueles pactos jamais mantidos, segundo os quais os que
morrem prometem regressar para esclarecer os vivos. Antnoo fez-me uma
promessa do mesmo gnero, que eu tomei superficialmente, no tendo nenhuma
razo para acreditar que aquela criana no me sobrevivesse. Flon tentou
chamar por sua mulher morta. De minha parte, permiti que o nome de meu pai e
de minha me fossem pronunciados, mas uma espcie de pudor impediu-me de
evocar Plotina. Nenhuma dessas tentativas logrou xito. Estranhas portas, no
entanto, tinham sido abertas.

Poucos dias antes de partir da Antiquia, fui sacrificar, como antigamente, no


cume do monte Cssio. A subida realizou-se noite. Como para o Etna, levei
comigo um pequeno nmero de amigos de passo firme. Meu objetivo no era
somente cumprir um rito propiciatrio naquele santurio mais sagrado que
qualquer outro: queria rever l de cima o fenmeno da aurora, prodgio dirio
que jamais contemplei sem um grito secreto de alegria. altura do cimo, o sol
faz reluzir os ornatos de cobre do templo, os rostos iluminados sorriem em plena
claridade, enquanto as plancies da sia e do mar esto mergulhadas na sombra.
Por alguns instantes ainda, o homem que ora no alto da montanha o nico
beneficirio da manh. Tudo foi preparado para o sacrifcio. Subimos a cavalo
inicialmente, depois a p, ao longo de sendas perigosas, debruadas de giestas e
lentiscos que reconhecamos noite pelos seus perfumes peculiares. O ar estava
pesado; a primavera queimava, como o vero de outras regies. Pela primeira
vez, durante uma subida montanha, faltou-me flego; tive de apoiar-me, por
um momento, no ombro do meu preferido. A uma centena de passos do cume,
desencadeou-se uma tempestade prevista algum tempo antes por Hermgenes,
entendido em meteorologia. Os sacerdotes saram para nos receber ao claro dos
relmpagos; o pequeno grupo, encharcado at os ossos, comprimiu-se em torno
do altar preparado para o sacrifcio. Este ia realizar-se quando um raio, estalando
sobre ns, matou ao mesmo tempo o sacrificador e a vtima. Passado o primeiro
momento de estupefao, Hermgenes inclinou-se com curiosidade de mdico
sobre o grupo fulminado; Chbrias e o gro-sacerdote clamavam de admirao:
o homem e o gamo sacrificados pela espada divina uniam-se eternidade do
meu Gnio; aquelas vidas substitudas prolongariam a minha. Antnoo, agarrado
ao meu brao, tremia, no de terror, como ento supus, mas sob o peso de um
pensamento que vim a compreender muito mais tarde. Angustiado pelo receio de
decair, isto , de envelhecer, devia ter prometido a si prprio, havia muito tempo,
morrer ao primeiro sinal de declnio, ou talvez muito antes. Hoje chego a crer
que essa promessa, que tantos de ns fazemos sem, contudo, mant-la,
remontava a muito tempo atrs, poca da Nicomdia e do nosso encontro
beira da fonte. Ela explicava sua indolncia, seu ardor no prazer, sua tristeza e
sua total indiferena por qualquer plano de futuro. Mas era importante tambm
que aquela partida no tivesse o ar de uma revolta, e que no inclusse nenhuma
queixa. O raio do monte Cssio indicou-lhe uma sada: a morte poderia tornar-se
uma ltima forma de servir, um ltimo dom, o nico a prevalecer. A claridade da
aurora foi quase nada em comparao ao sorriso que iluminou aquele rosto
perturbado. Alguns dias mais tarde, revi esse mesmo sorriso, apenas mais velado,
mais ambguo: durante a ceia, Plemon, que se ocupava com a quiromancia,
quis examinar a mo do jovem, a palma onde uma surpreendente chuva de
estrelas assustava a mim prprio. O menino retirou a mo, fechando-a com um
gesto suave, quase pudico. Pretendia guardar o segredo dos seus planos e do seu
fim.
Fizemos escala em Jerusalm. Pretendia estudar no local o plano de uma cidade
nova, que me propunha construir no prprio lugar da cidade judaica destruda por
Tito. A boa administrao da Judia e os progressos do comrcio do Oriente
necessitavam, naquela encruzilhada de estradas, do desenvolvimento de uma
grande metrpole. Vislumbrei a capital nos moldes romanos habituais: lia
Capitolina teria templos, mercados, banhos pblicos e seu santurio da Vnus
romana. Meu gosto recente pelos cultos apaixonados e ternos levou-me a
escolher no monte Moriah a gruta mais propcia celebrao das Adnias. Esses
projetos indignaram a populao judaica: aqueles deserdados preferiam suas
runas a uma grande cidade onde lhes seriam oferecidas todas as vantagens do
ganho, do saber e do prazer. Os operrios encarregados de iniciar a demolio
das muralhas arruinadas foram molestados pela multido. No dei importncia a
isso: Fido quila, que devia brevemente empregar seu gnio de organizador na
construo de Antino, ps-se ao trabalho em Jerusalm. Recusei-me a ver,
sobre aquele amontoado de runas, o crescimento rpido do dio. Um ms mais
tarde, chegamos a Pelusa. Dediquei-me a reerguer ali a sepultura de Pompeu.
Quanto mais me aprofundava nos negcios do Oriente, mais admirava o gnio
poltico desse eterno vencido do grande Jlio. Pompeu, que se esforou por
colocar em ordem o mundo incerto da sia, parecia-me, por vezes, ter
trabalhado mais efetivamente a favor de Roma que o prprio Csar. Esses
trabalhos de reconstruo foram uma de minhas ltimas oferendas aos mortos da
histria: muito em breve ver-me-ia obrigado a me ocupar de outros tmulos.

A chegada a Alexandria foi discreta. A entrada triunfal fora adiada at a vinda da


imperatriz. Haviam persuadido minha mulher, que viajava pouco, a passar o
inverno no clima mais ameno do Egito; Lcio, mal refeito de uma tosse
persistente, devia experimentar, o mesmo remdio. Reuniu-se uma flotilha de
barcos para a viagem no Nilo, cujo programa inclua uma srie de inspees
oficiais, festas e banquetes que prometiam ser to fatigantes quanto os de uma
temporada no Palatino. Eu mesmo havia organizado tudo aquilo: o luxo, o
prestgio de uma corte no deixavam de ter valor poltico naquele velho pas,
habituado aos faustos reais.

Mas tinha muito mais empenho em consagrar caa os poucos dias que
precederiam a chegada dos meus hspedes. Em Palmira, Meles Agripa
proporcionou-nos algumas distraes no deserto: tnhamos ido at muito longe
para encontrar os lees. Dois anos antes, a frica me oferecera algumas belas
caadas grande fera: Antnoo, ainda muito jovem e inexperiente, no recebera
permisso para tomar parte nelas em primeiro plano. Tinha, para com ele,
covardias que nunca pensaria ter para comigo mesmo. Cedendo, como sempre
prometi-lhe o papel principal nessa caada ao leo. Passara o tempo de trat-lo
como criana, e sentia-me orgulhoso daquela jovem fora.

Partimos para o osis de Amon, a alguns dias de marcha de Alexandria, o


mesmo onde Alexandre conheceu outrora, atravs da boca dos sacerdotes, o
segredo da sua origem divina. Os nativos tinham assinalado naquelas paragens a
presena de um leo particularmente perigoso, que vinha atacando
freqentemente. noite, beira da fogueira do acampamento, comparvamos
alegremente nossas futuras proezas s de Hrcules. Os primeiros dias apenas nos
trouxeram algumas gazelas. Mas desta vez ns, Antnoo e eu, nos postamos perto
de um charco arenoso, todo invadido pelos canios. Dizia-se que o leo vinha
beber ali hora do crepsculo. Os negros foram encarregados de for-lo a vir
em nossa direo por meio de uma zoada de bzios, cmbalos e gritos. O restante
de nossa escolta foi deixado distncia. O ar estava denso e calmo; no era nem
mesmo necessrio ocupar-nos com a direo do vento. Passava quando muito da
dcima hora, porque Antnoo me chamou a ateno para os nenfares
vermelhos, ainda completamente abertos, na superfcie do pntano. Sbito, houve
um estremecimento de canios esmagados, e a fera real apareceu. Voltou para
ns a cabea terrivelmente bela, uma das faces mais divinas que o perigo pode
assumir. Postado um pouco atrs, no tive tempo de deter o menino, que impeliu
imprudentemente o cavalo e atirou a lana, depois os dois dardos, com arte, mas
demasiado prximo. Com o pescoo trespassado, a fera rolou, batendo no solo
com a cauda. A areia revolvida impedia-nos de distinguir qualquer coisa alm de
uma massa confusa que rugia. O leo ergueu-se, enfim, e reuniu suas foras
para atirar-se sobre o cavalo e o cavaleiro desarmado. Havia previsto esse risco;
por sorte, o animal de Antnoo no se mexeu: nossos cavalos eram
admiravelmente adestrados para tal tipo de esporte. Interpus meu cavalo,
expondo o flanco direito: tinha o hbito desses exerccios, e no me foi muito
difcil liquidar o leo, j ferido de morte. Caiu pela segunda vez; o focinho
mergulhou no lodo, e um fio de sangue negro correu sobre a gua. O enorme
gato cor de deserto, mel e sol expirou com uma majestade mais que humana.
Antnoo lanou-se do cavalo coberto de espuma, e que tremia, ainda. Nossos
companheiros juntaram-se a ns, e os negros arrastaram para o acampamento a
imensa vtima morta.

Uma espcie de festim foi improvisado. Deitado de bruos ante uma bandeja de
cobre, o jovem distribua entre ns, com suas prprias mos, pedaos de carneiro
cozido na brasa. Bebemos em sua honra o vinho da palmeira. Sua exaltao
crescia como um canto. Exagerava talvez o significado do socorro que eu lhe
havia prestado, esquecendo-se de que eu teria feito o mesmo por qualquer
caador em perigo; contudo, sentamo-nos de novo naquele mundo herico no
qual os amantes morrem um pelo outro. A gratido e o orgulho alternavam-se na
sua alegria como as estrofes de uma ode. Os negros fizeram maravilhas: noite,
a pele esfolada balanava-se sob as estrelas, suspensa em duas estacas entrada
da minha tenda. Apesar das substncias aromticas espalhadas por ali, o odor
selvagem perseguiu-nos durante toda a noite. Na manh seguinte, depois de uma
refeio frugal, deixamos o acampamento. No momento da partida, avistamos
num fosso o que restava da fera real da vspera: apenas uma carcaa vermelha
sob uma nuvem de moscas.

Regressamos a Alexandria alguns dias mais tarde. O poeta Pancrates organizou


em minha honra uma festa no Museu; tinham reunido numa sala de msica uma
coleo de instrumentos preciosos: viam-se velhas liras dricas, mais pesadas e
menos complicadas do que as nossas, ao lado de ctaras recurvas da Prsia e do
Egito, de flautas frgias agudas como vozes de eunucos, e de delicadas flautas
indianas cujo nome ignoro. Um etope fez ressoar longamente as cabaas
africanas. Uma mulher, cuja beleza um pouco fria me teria seduzido se eu no
houvesse decidido simplificar minha vida, reduzindo-a ao que era para mim o
essencial, tocou uma harpa triangular, de som muito triste. Mesomedes de Creta,
meu msico favorito, acompanhou em rgo hidrulico o recitativo do seu
poema A Esfinge, obra inquietante, sinuosa, fugidia como areia ao vento. A
sala de concertos dava para um ptio interno: nenfares abriam-se sobre a gua
de um tanque, iluminados pela luz violenta de uma tarde de agosto. Durante um
intervalo, Pancrates quis que admirssemos de perto aquelas flores de uma
variedade rara, vermelhas como sangue, que s floresciam no fim do vero.
Reconhecemos imediatamente nossos nenfares escarlates do pntano de Amon.
Pancrates inflamou-se ante a imagem do animal selvagem, ferido de morte, a
expirar entre as flores. Props-me colocar em versos esse episdio de caa: o
sangue do leo seria considerado o elemento que havia colorido os lrios das
guas. A frmula no era nova: entretanto, encomendei-lhe o poema. Esse
Pancrates, que tinha tudo de um poeta da corte, comps imediatamente alguns
versos agradveis em honra de Antnoo: a rosa, o jacinto, a celidnia eram neles
sacrificados s corolas rubras que teriam, no futuro, o nome do preferido.
Ordenou-se a um escravo que entrasse no tanque a fim de colher uma braada
de nenfares. O jovem, habituado a toda sorte de homenagens, aceitou
gravemente as flores de cera, de caules flexveis e moles. Quando a noite
desceu, elas se fecharam como plpebras cansadas.
Nesse nterim, a imperatriz chegou. A longa travessia a fatigara. Tornava-se
frgil sem deixar de ser dura. Seus relacionamentos polticos j no me
aborreciam como na poca em que ela, totalmente, encorajara Suetnio. Agora
cercava-se apenas de inofensivas mulheres de letras. A confidente do momento,
uma certa Jlia Balbila, compunha bastante bem os versos gregos. A imperatriz e
seu squito instalaram-se no Liceu, de onde saam pouco. Lcio, pelo contrrio,
estava, como sempre, vido de prazeres, inclusive os da inteligncia e dos olhos.

Aos vinte e seis anos, no perdera quase nada da beleza surpreendente que o
fazia ser aclamado nas ruas pela juventude de Roma. Continuava imprevisvel,
irnico e alegre. Seus caprichos de outrora transformavam-se em manias: no se
deslocava sem seu cozinheiro-chefe; seus jardineiros plantavam para ele,
mesmo a bordo, admirveis canteiros de flores raras. Levava consigo, por toda
parte, o leito cujo modelo ele prprio havia desenhado quatro colches
recheados por quatro espcies de substncias aromticas, sobre os quais se
deitava rodeado por jovens amantes como se fossem outras tantas almofadas.
Seus pajens, maquilados, empoados, vestidos ridiculamente como os Zfiros e o
Amor, conformavam-se como podiam com fantasias por vezes cruis: tive de
intervir para impedir que o pequeno Breas, em quem ele admirava a esbeltez,
se deixasse morrer de fome. Tudo isso era mais irritante do que agradvel.
Visitamos de comum acordo tudo quanto se visita em Alexandria: o Farol, o
Mausolu de Alexandre, o de Marco Antnio, onde Clepatra triunfa
eternamente sobre Otvia, sem esquecer os templos, as oficinas, as fbricas, e
at mesmo o bairro dos embalsamadores. Comprei a um bom escultor todo um
lote de Vnus, de Dianas e de Hermes destinados a Itlica, minha cidade natal,
que se propunha modernizar e ornamentar. O sacerdote do templo de Serpis
ofereceu-me um servio completo de opalina; enviei-o a Serviano, com quem
procurava manter relaes suportveis em ateno a minha irm Paulina.
Grandes projetos edlicos foram postos em prtica durante essas viagens bastante
fastidiosas.

Em Alexandria, as religies so to variadas quanto os negcios: a qualidade do


produto a mais duvidosa. Os cristos, principalmente, distinguem-se por uma
abundncia de seitas no mnimo inteis. Dois charlates, Valentim e Basilides,
intrigavam-se mutuamente, vigiados de perto pela polcia romana. A escria do
povo egpcio aproveitava cada observncia ritual para se lanar, de cacete na
mo, sobre os estrangeiros. A morte do boi pis provoca mais tumultos em
Alexandria do que uma sucesso imperial em Roma. As pessoas elegantes
mudavam ali de deus como em outros lugares as gentes mudam de mdicos,
alis sem maior xito. O ouro, porm, seu nico dolo: no vi em parte alguma
solicitadores mais impudentes. Inscries pomposas foram exibidas um pouco
por toda parte para celebrar meus benefcios, mas minha recusa em liberar a
populao de uma taxa que ela se achava em condies de pagar no tardou a
tornar-me malquisto pelo povaru. Os dois jovens que me acompanhavam
foram insultados vrias vezes; censuravam a Lcio o luxo, excessivo, alis; a
Antnoo, a origem obscura, a respeito da qual corriam histrias absurdas; a
ambos, uma suposta ascendncia sobre mim. Essa ltima afirmativa era ridcula:
Lcio, que julgava os negcios pblicos com surpreendente perspiccia, no
exercia, entretanto, nenhuma influncia poltica; Antnoo no pretendia exerc-
la. O jovem patrcio, que conhecia o mundo, limitava-se a rir dos insultos. Mas
Antnoo sofria.

O judeus, orientados pelos seus correligionrios da Judia, azedavam o melhor


que podiam aquela massa, j por demais azeda. A Sinagoga de Jerusalm
elegeu-me seu membro mais venerado; Akiba, um velho quase nonagenrio e
que no conhecia o idioma grego, recebeu a misso de decidir-me a renunciar a
vrios projetos, j em vias de realizao, em Jerusalm. Assistido por um
intrprete, mantive com ele vrias conferncias, que foram, de sua parte, apenas
um pretexto para o monlogo. Em menos de uma hora, senti-me capaz de definir
exatamente seu pensamento, talvez at de subscrev-lo. Ele no fez o mesmo
esforo para compreender-me. Aquele fantico nem admitia que fosse possvel
discutir a partir de outras premissas que no as suas. Eu oferecia quele povo
desprezado um lugar na comunidade romana: Jerusalm, na pessoa de Akiba,
manifestava sua vontade de permanecer at o fim a fortaleza de uma raa e de
um deus isolados do gnero humano. Esse pensamento exaltado era manifestado
com sutileza exaustiva: tive de suportar um longo arrazoado, sabiamente
concatenado para demonstrar a superioridade de Israel. Ao cabo de oito dias, o
obstinado negociador compreendeu, afinal, que perderia seu tempo, e anunciou
sua partida. Odeio a derrota, at mesmo a de outrem; ela me comove sobretudo
quando o vencido um velho. A ignorncia de Akiba, sua recusa em aceitar tudo
o que no fossem seus livros santos e seu povo, conferiam-lhe uma espcie de
estreita inocncia. Mas era difcil comover-se ante aquele sectrio empedernido.
A longevidade parecia hav-lo despojado de toda flexibilidade humana: o corpo
descarnado e o esprito ressequido eram dotados do incrvel vigor de um
gafanhoto. Parece-me que morreu mais tarde, como heri dedicado causa do
seu povo, ou antes, sua lei: cada um zela por seus prprios deuses.

As distraes de Alexandria comeavam a esgotar-se. Flgon, que conhecia em


toda parte as curiosidades locais, desde a alcoviteira at o hermafrodita clebre,
props levar-nos casa de uma feiticeira. Essa intermediria do invisvel
habitava em Canopo. Fomos visit-la durante a noite, de barco, ao longo do canal
de guas pesadas. O trajeto foi melanclico. Uma hostilidade sombria reinava,
como sempre, entre os dois jovens: a intimidade a que eu os forava aumentava
sua averso recproca. Lcio ocultava a sua sob uma condescendncia trocista;
meu jovem grego fechava-se numa das suas crises de humor sombrio. Eu
prprio estava bastante cansado: alguns dias antes, regressando de uma
caminhada sob o sol forte, sofrer uma ligeira sncope, de que Antnoo e meu
criado negro Eufrion haviam sido as nicas testemunhas. Ficaram terrivelmente
alarmados, mas obriguei-os a guardar silncio.

Canopo no passa de um cenrio: a casa da feiticeira situava-se na parte mais


srdida dessa cidade do prazer. Desembarcamos sobre um estrado em runas. A
feiticeira esperava-nos no interior, munida dos estranhos utenslios do seu ofcio.
Parecia competente; nada tinha das necromantes de teatro. Sequer era velha.

Suas predies foram sinistras. Desde algum tempo, os orculos s me


anunciavam, aonde quer que fosse, desgostos de toda espcie, perturbaes
polticas, intrigas palacianas, doenas graves. Acredito hoje que influncias
humanas falavam atravs dessas bocas da sombra, algumas vezes para prevenir-
me, freqentemente para atemorizar-me. A situao verdadeira de uma parte do
Oriente exprimia-se mais claramente ali do que atravs dos relatrios dos nossos
procnsules. Acolhi as supostas revelaes com calma. Meu respeito pelo mundo
invisvel no ia ao ponto de fazer-me confiar em disparates divinos: dez anos
antes, pouco depois de minha ascenso como imperador, ordenei que fosse
encarcerado o orculo de Dafne, perto da Antiquia, que me predisse o poder.
Receava que dissesse a mesma coisa ao primeiro pretendente que lhe
aparecesse. Mas sempre desagradvel ouvir falar de coisas tristes.

Depois de haver feito o possvel para nos inquietar, a adivinha props-nos seus
servios: um desses sacrifcios mgicos, em que as feiticeiras do Egito so
especialistas, seria suficiente para que tudo fosse arranjado amigavelmente com
o destino. Minhas incurses pela magia fencia j me haviam feito compreender
que o horror dessas prticas proibidas tem menos a ver com aquilo que nos
mostram do que com aquilo que nos escondem: se no tivessem conhecimento
do meu dio aos sacrifcios humanos, ter-me-iam provavelmente aconselhado a
imolar um escravo. Contentaram-se em falar de um animal domstico.

Tanto quanto possvel, a vtima devia ter pertencido a mim: no podia tratar-se de
um co, animal que a superstio egpcia julga imundo; um pssaro teria sido
mais conveniente, mas no viajo com um viveiro. Meu jovem companheiro
props-me seu falco. As condies estariam, assim, preenchidas: a bela ave
fora presente meu, que a havia recebido do rei de Osroene. O menino
alimentava-a pela sua prpria mo; a ave era um dos raros bens a que era ligado.
A princpio, recusei; ele insistiu gravemente. Compreendi que atribua a tal
oferenda um significado extraordinrio. Aceitei, por ternura. Munido das
instrues as mais minuciosas, meu correio Mencrates partiu procura da ave
nos nossos aposentos do Serapeu. Mesmo a galope, a corrida levaria pelo menos
duas horas. No se podia pensar em pass-las naquele pardieiro imundo da
feiticeira. Lcio se queixava da umidade do barco. Flgon encontrou uma
soluo: instalamo-nos bem ou mal na casa de uma proxeneta, depois de t-la
feito desembaraar-se de seu pessoal. Lcio decidiu dormir; aproveitei o
intervalo para ditar alguns despachos, e Antnoo estendeu-se a meus ps. O
clamo de Flgon rangia sob a lmpada. Aproximava-se a ltima viglia da noite
quando Mencrates trouxe a ave, o guante, o capuz e a corrente.

Retornamos ao tugrio da feiticeira. Antnoo tirou o capuz do falco, acariciou-


lhe longamente a cabea sonolenta e selvagem e entregou-o feiticeira, que
iniciou uma srie de passes de magia. Fascinada, a ave readormeceu. Era
importante que a vtima no se debatesse e que a morte parecesse voluntria.
Coberta ritualmente de mel e essncia de rosas, a ave inerte foi depositada no
fundo de uma cuba cheia de gua do Nilo. A criatura afogada assimilava-se a
Osris levado pela corrente do rio. Os anos terrestres do falco acrescentar-se-
iam aos meus no momento em que a pequena alma solar se unisse ao gnio do
homem pelo qual fora sacrificada. Esse gnio invisvel poderia, dali por diante,
aparecer-me e servir-me sob aquela forma. As longas manipulaes que se
seguiram no foram mais interessantes do que uma preparao culinria. Lcio
bocejava. As cerimnias imitaram at o fim os funerais humanos: as fumigaes
e as salmodias arrastaram-se at o amanhecer. A ave foi encerrada num caixo,
cheio de substncias aromticas, que a feiticeira enterrou diante de ns beira do
canal, num cemitrio abandonado. Em seguida, a mulher acocorou-se sob uma
rvore para contar uma a uma as peas de ouro da sua paga, entregues por
Flgon.

Regressamos ao barco. Soprava um vento singularmente frio. Sentado perto de


mim, Lcio puxava com a ponta dos dedos delgados as mantas de algodo
bordado. Por polidez, continuvamos animadamente a trocar impresses acerca
dos negcios e escndalos romanos. Antnoo, deitado no fundo do barco, apoiara
a cabea sobre meus joelhos e fingia dormir para se isolar daquela conversao,
que no o inclua. Minha mo deslizou na sua nuca, sob os cabelos. Nos
momentos mais vazios ou mais ternos, eu tinha, assim, a sensao do contato
com grandes objetos naturais, a densidade das florestas, o dorso musculoso das
panteras, a pulsao regular das fontes. Mas nenhuma carcia atinge a alma. O
sol brilhava quando chegamos ao Serapeu; os vendedores de melancia
apregoavam sua mercadoria pelas ruas. Dormi at a hora da sesso do Conselho
local, a que assisti. Soube mais tarde que Antnoo aproveitara-se daquela
ausncia para persuadir Chbrias a acompanh-lo a Canopo. E voltou casa da
feiticeira.
Era o primeiro dia do ms de Atir, no segundo ano da duocentsima vigsima
sexta Olimpada Aniversrio da morte de Osris, deus das agonias: em todas as
aldeias, ao longo do rio, ressoavam havia trs dias agudas lamentaes. Meus
hspedes romanos, menos acostumados que eu aos mistrios do Oriente,
demonstravam certa curiosidade pelas cerimnias daquela raa diferente. A
mim, pelo contrrio, irritavam-me. Mandara atracar meu barco a alguma
distncia dos outros, longe de qualquer lugar habitado: todavia, um templo
faranico meio abandonado erguia-se nas proximidades da margem. Esse
templo tinha ainda seu colgio de sacerdotes; no escapei inteiramente ao som
das lamentaes.

Na noite anterior, Lcio convidou-me a cear no seu barco, aonde cheguei ao pr-
do-sol. Antnoo recusou-se a acompanhar-me. Deixei-o na minha cabine de
popa, estendido sobre sua pele de leo, absorto no jogo dos ossinhos em
companhia de Chbrias. Meia hora mais tarde, j noite fechada, ele mudou de
idia e mandou chamar um bote. Auxiliado por um s barqueiro, percorreu na
contracorrente a distncia bastante longa que nos separava dos outros barcos. Sua
entrada sob o toldo onde se realizava a ceia interrompeu os aplausos provocados
pelas contores de uma danarina. Ataviara-se com uma longa veste sria, fina
como a pele de um fruto, toda semeada de flores e de quimeras. Para remar
mais vontade, havia baixado a manga direita: o suor brilhava sobre seu peito
liso. Lcio atirou-lhe uma guirlanda, que ele apanhou no ar. Sua alegria esfuziante
no arrefeceu um s instante, estimulada apenas por uma nica taa de vinho
grego. Regressamos juntos a meu bote, movido por seis remadores. Lcio gritou-
nos um boa-noite seco e mordaz. A alegria selvagem de Antnoo persistiu.
Contudo, pela manh aconteceu-me tocar, por acaso, um rosto molhado de
lgrimas. Perguntei-lhe, cheio de impacincia, a razo do pranto; respondeu-me
humildemente, alegando cansao. Aceitei a mentira e tornei a adormecer. Sua
verdadeira agonia comeara naquele leito, ao meu lado.

O correio de Roma acabava de chegar, e o dia se passou entre a leitura e o


despacho da correspondncia. Como de costume, Antnoo ia e vinha
silenciosamente na pea: no saberia dizer o momento exato em que o belo galgo
saiu da minha vida. Por volta da dcima segunda hora, Chbrias entrou, agitado.
Contrariamente a todas as regras, o jovem deixara o barco sem explicar o
motivo e a durao de sua ausncia: duas horas, pelo menos, haviam decorrido
desde sua partida. Chbrias recordava-se de estranhas frases ditas na vspera e
de uma recomendao a meu respeito, feita naquela mesma manh.
Comunicou-me seus temores. Descemos apressadamente at a margem. O
velho preceptor dirigiu-se instintivamente capela situada beira do rio, pequeno
edifcio isolado que fazia parte das dependncias do templo, e que Antnoo
visitara em sua companhia. Sobre a mesa de oferendas, as cinzas de um
sacrifcio ainda estavam mornas. Chbrias mergulhou os dedos nelas e retirou,
quase intato, um anel de cabelos cortados.

S nos restava explorar a margem. Uma srie de reservatrios, que deviam ter
servido antigamente para cerimnias sagradas, comunicava-se com uma
enseada do rio. Sob o crepsculo que caa rapidamente, Chbrias avistou na
beirada do ltimo tanque uma veste dobrada e um par de sandlias. Desci os
degraus escorregadios: Antnoo estava deitado no fundo, j mergulhado no lodo
do rio. Com a ajuda de Chbrias consegui erguer o corpo que pesava,
subitamente, como pedra. Chbrias gritou pelos barqueiros, que improvisaram
uma maa de lona. Hermgenes, chamado s pressas, s pde constatar a morte.
Aquele corpo, antes to dcil, recusava-se a deixar-se reaquecer, reviver. Ns o
transportamos para bordo. Tudo desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus
Olmpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo vieram abaixo; de repente,
havia apenas um homem de cabelos grisalhos soluando no convs de um barco.

Dois dias mais tarde, Hermgenes conseguiu fazer-me pensar nos funerais. Os
ritos do sacrifcio que Antnoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o
caminho a seguir: no por acaso, a hora e o dia do seu fim haviam coincidido
com a hora e o dia em que Osris descera a seu tmulo. Dirigi-me outra
margem, rumo a Hermpolis, procura dos embalsamadores. Vira seus colegas
trabalharem em Alexandria; sabia a quantos ultrajes o corpo seria submetido. O
fogo que grelha e carboniza a carne amada, e a terra onde apodrecem os mortos
ambos so horrveis. A travessia foi breve; acocorado a um canto da cabine de
popa, Eufrion ululava em voz baixa um lamento africano, fnebre e
desconhecido; o canto abafado e rouco quase me parecia meu prprio grito.
Transportamos o morto para uma sala muito bem lavada, que me lembrou a
clnica de Stiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera.
Todas as metforas voltavam a ter um sentido: tive aquele corao entre minhas
mos. Quando o deixei, o corpo vazio no era mais que um objeto preparatrio
nas mos do embalsamador, primeiro estgio de uma atroz obra-prima,
substncia preciosa tratada com sal e gelia de mirra, que o ar e o sol nunca mais
tocariam.

Ao regressar, visitei o templo junto do qual o sacrifcio fora consumado. Falei aos
sacerdotes: seu santurio seria restaurado e se tornaria um lugar de peregrinao
para todo o Egito; seu colgio, enriquecido, ampliado, se consagraria dali por
diante ao servio do meu deus. Mesmo nos momentos mais conturbados do nosso
relacionamento, jamais duvidei de que aquela juventude fosse divina. A Grcia e
a sia o venerariam nossa maneira, atravs da promoo de jogos, danas e
oferendas rituais aos ps de uma esttua branca e nua. O Egito, que presenciara
sua agonia, teria tambm sua parte na apoteose. Seria a mais sombria, a mais
secreta e a mais rdua; aquele pas desempenharia junto dele o papel eterno de
embalsamador. Durante sculos, sacerdotes de cabeas raspadas recitariam
litanias onde figuraria aquele nome, para eles sem valor, mas que para mim
encerrava o contedo de todas as coisas. Todos os anos, a barca sagrada
conduziria aquela efgie sobre o rio. No primeiro dia do ms de Atir, carpidores
desfilariam ao longo daquela margem que eu percorrera um dia. Cada hora tem
seu dever imediato, uma injuno que domina as outras: a daquele momento era
defender contra a morte o pouco que me restava. A meu pedido, Flgon reuniu s
margens do rio os arquitetos e os engenheiros da minha comitiva. Sustentado por
uma espcie de embriaguez lcida, levei-os ao longo das colinas pedregosas,
explicando meu plano: a construo de quarenta e cinco estdios de muralha.
Marquei na areia o lugar do arco do triunfo e o do tmulo. Antino ia nascer:
impor quela terra sinistra uma cidade totalmente grega, um bastio que
inspiraria respeito aos nmades da Eritria, um novo mercado na estrada da
ndia, seria uma forma de vencer a morte. Alexandre celebrara os funerais de
Hefstion atravs de devastaes e hecatombes. Parecia-me mais emocionante
oferecer ao favorito uma cidade onde seu culto estaria para sempre misturado ao
movimento da praa pblica, onde seu nome seria mencionado nas reunies
noturnas, quando os rapazes atirariam guirlandas de flores uns aos outros, hora
dos banquetes.

Mas havia um ponto em que meu pensamento hesitava. Parecia-me impossvel


abandonar o corpo amado em solo estrangeiro. Tal como um homem que
reserva alojamento em vrias hospedarias ao mesmo tempo, inseguro quanto
etapa seguinte, mandei erguer para ele um monumento em Roma, s margens
do Tibre, junto a meu tmulo; pensei igualmente nas capelas egpcias que, por
capricho, fizera edificar na Vila e que, sbito, se mostravam tragicamente teis.
O dia dos funerais foi marcado: teriam, lugar ao cabo dos dois meses exigidos
pelos embalsamadores. Encarreguei Mesomedes de compor os coros fnebres.
Era noite alta quando voltei a bordo. Hermgenes preparou-me uma poo para
dormir.
Continuamos a subir o rio, mas a mim me parecia navegar sobre o Estige. Nos
campos de prisioneiros, s margens do Danbio, eu vira outrora alguns
miserveis, deitados junto a um muro no qual batiam a cabea incansavelmente,
num movimento selvagem, insensato e doce, repetindo sem cessar o mesmo
nome. Nos subterrneos do Coliseu mostraram-me lees que definhavam porque
haviam sido privados da companhia do co com o qual estavam acostumados a
viver. Procurava coordenar meus pensamentos: Antnoo estava morto. Quando
criana, eu gritara sobre o cadver de Marulino picado pelas gralhas, como uiva
noite um animal privado de razo. Meu pai morrera, mas um rfo de doze
anos s se d conta da desordem da casa, do pranto de sua me e do seu prprio
medo; ele nada soubera da extrema angstia que o agonizante teria suportado.
Minha me morrera muito mais tarde, na poca da minha misso na Pannia, de
cuja data j nem me lembrava. Trajano no passara de um doente de quem
cumpria providenciar o testamento. No vi morrer Plotina. Atiano havia morrido;
era um velho. Durante as guerras dcias, perdera alguns companheiros que
julgava amar ardentemente, mas ramos jovens, e a vida e a morte eram
igualmente inebriantes e fceis. Antnoo estava morto. Lembrava-me dos
lugares-comuns freqentemente ouvidos: morre-se em qualquer idade; aqueles
que morrem jovens so amados pelos deuses. Eu mesmo participara desse
infame abuso de palavras; falara em morrer de sono, em morrer de desgosto.
Usara a palavra agonia, a palavra luto, a palavra perda. Antnoo estava morto.

O Amor, o mais sbio dos deuses Mas o amor no era responsvel pela
negligncia, pelas crueldades, pela indiferena misturada paixo como a areia
se mistura ao ouro levado pelo rio, pela estpida cegueira de um homem
demasiado feliz e que envelhece. Como consegui sentir-me to grosseiramente
satisfeito? Antnoo estava morto. Longe de amar demasiado, como, sem dvida,
Serviano afirmava em Roma naquele momento, eu no havia amado o bastante
para obrigar aquela criana a viver. Chbrias, que, na sua qualidade de iniciado
rfico, considerava o suicdio um crime, insistia sobre o lado sacrificai daquele
fim. Eu prprio experimentava uma espcie de alegria horrvel em dizer a mim
mesmo que aquela morte era um dom. Mas era o nico a avaliar quanto
amargor fermenta no fundo da doura, quanto desespero se esconde na
abnegao, e quanto dio se mistura ao amor. Um ser insultado lanava-me
face essa prova de devotamento; uma criana, perplexa ante a possibilidade de
tudo perder, encontrara o meio de me associar a ela para sempre. Se pensou
proteger-me atravs de tal sacrifcio, deveria julgar-se bem pouco amado, para
no compreender que o pior dos males seria perd-lo.

As lgrimas secaram. Os dignitrios que se aproximavam de mim no se


sentiam mais obrigados a desviar o olhar do meu rosto, como se fosse obsceno
chorar. Recomearam as visitas s fazendas modelo e aos canais de irrigao; a
maneira de empregar as horas pouco importava. Mil rumores j corriam pelo
mundo a respeito do meu desastre; nos prprios barcos que acompanhavam o
meu, circulavam narrativas atrozes para minha vergonha. Deixei falarem: a
verdade no era daquelas que podem ser gritadas. As mentiras mais maliciosas
eram exatas sua maneira; acusavam-me de hav-lo sacrificado e, em certo
sentido, eu o fizera. Hermgenes, que me repetia fielmente os ecos do exterior,
transmitiu-me algumas mensagens da imperatriz. Mostrou-se discreta: todos ns
quase sempre o somos em presena da morte. Essa compaixo baseava-se,
entretanto, num mal-entendido: as pessoas dispunham-se a lamentar-me,
contanto que eu me consolasse rapidamente. Eu prprio me acreditava quase
tranqilo e, por sentir-me assim, envergonhava-me. No sabia ainda que a dor
contm em si estranhos labirintos, que eu no terminara de percorrer.

Todos se esforavam por distrair-me. Alguns dias depois da chegada a Tebas,


soube que a imperatriz e sua comitiva haviam ido por duas vezes at o Colosso de
Mmnon, na esperana de ouvir o misterioso rudo emitido pela pedra s
primeiras claridades da aurora, fenmeno clebre, a que todos os viajantes
desejavam assistir. O prodgio no se produziu; imaginavam supersticiosamente
que s se realizaria em minha presena. Concordei em acompanhar as mulheres
no dia seguinte; todos os meios eram bons para diminuir a interminvel durao
das noites de outono. Naquela manh, pela undcima hora, Eufrion entrou em
meus aposentos para reavivar o candeeiro. Passou-se as vestes, ajudando-me a
enverg-las. Sa para o convs; o cu, ainda completamente negro, era
verdadeiramente o cu de bronze dos poemas de Homero, indiferente s alegrias
e sentimentos dos homens. Haviam decorrido mais de vinte dias daquele
acontecimento. Tomei lugar no bote: a viagem foi curta, mas no se passou sem
os gritos e o medo das mulheres.

Desembarcamos no longe do Colosso. Uma faixa de um tom rosa desbotado


estendeu-se no Oriente. Mais um dia comeava. O som misterioso produziu-se
por trs vezes: um rudo semelhante ao estalo da corda de um arco. A
inesgotvel Jlia Balbila comps ali mesmo uma srie de poemas. As mulheres
empreenderam a visita aos templos; acompanhei-as por um momento ao longo
das paredes crivadas de hierglifos montonos. Estava fatigado daquelas figuras
colossais de reis todos idnticos, sentados lado a lado, apoiando diante de si os ps
longos e chatos; blocos de mrmore inertes, nos quais no est presente nada
daquilo que, para ns, constitui a vida: nem a dor, nem a voluptuosidade, nem o
movimento, que libera os membros, nem a reflexo, que comanda o mundo em
torno de uma cabea inclinada. Os sacerdotes que me guiavam pareciam quase
to mal-informados como eu acerca daquelas vidas extintas; de quando em
quando, levantava-se uma discusso a respeito de um nome. Sabia-se vagamente
que cada um daqueles monarcas herdara um trono, governara seu povo, gerara
um sucessor: nada mais restava. Essas dinastias obscuras remontavam a uma
poca anterior a Roma, anterior a Atenas, anterior ao dia em que Aquiles morreu
sob as muralhas de Tria, anterior ao ciclo astronmico de cinco mil anos
calculados por Mmnon para Jlio Csar. Sentindo-me cansado, despedi os
sacerdotes; repousei por algum tempo sombra do Colosso antes de voltar ao
barco. Suas pernas estavam cobertas, at os joelhos, de inscries gregas
traadas por viajantes: nomes, datas, uma prece, um certo Srvio Suave, um
certo Eumnio que haviam estado naquele mesmo lugar seis sculos antes de
mim, um certo Pnion que havia visitado Tebas seis meses antes Seis meses
antes Veio-me uma fantasia que no me ocorrera desde a poca em que,
criana ainda, inscrevia meu nome na casca dos castanheiros num domnio da
Espanha: o imperador que se recusava a mandar gravar suas denominaes e
seus ttulos nos monumentos por ele construdos tomou sua adaga e gravou sobre
a pedra dura algumas letras gregas, uma forma abreviada e familiar do seu
nome: APIANO. Era ainda colocar-me em oposio ao tempo: um nome, um
resumo de vida de que ningum computaria os inumerveis elementos, uma
marca deixada por um homem perdido na sucesso dos sculos. De repente,
lembrei-me de que estvamos no vigsimo stimo dia do ms de Atir, no quinto
dia antes das calendas de dezembro. Era o aniversrio de Antnoo: o menino, se
vivesse, completaria nesse dia vinte anos.

Regressei a bordo; a chaga, fechada muito depressa, voltou a abrir-se. Gritei,


com o rosto enterrado numa almofada que Eufrion colocara discretamente sob
minha cabea. O cadver e. eu partimos deriva, levados em sentido contrrio
por duas correntes do tempo. O quinto dia antes das calendas de dezembro, o
primeiro do ms de Atir: cada instante que passava enterrava aquele corpo no
lodo, encerrava aquele fim. Eu tornava a subir a encosta escorregadia; servia-me
das unhas para exumar o dia morto. Flgon, sentado diante do umbral da porta, s
se lembrava do movimento na cabine de popa quando uma rstia de luz o
incomodava a cada vez que uma mo empurrava o batente. Como um homem
acusado de um crime, eu examinava o emprego das minhas horas naquele dia:
um ditado, uma resposta ao Senado de feso. Qual o grupo de palavras ditas ou
escritas que teria correspondido ao momento da agonia? Reconstitua a flexo da
pequena ponte sob seus passos apressados, a margem rida, o lajedo plano; a
adaga que apara um anel de cabelos junto fronte; o corpo inclinado; a perna
que se dobra para permitir que a mo desate a sandlia; um jeito nico de
entreabrir os lbios fechando os olhos. Teria sido necessria ao bom nadador uma
resoluo desesperada para se deixar asfixiar naquela lama negra. Tentei viver
em pensamento essa revoluo pela qual todos passaremos, o corao que
renuncia, o crebro que se submete, os pulmes que cessam de aspirar a vida.
Passarei por uma convulso anloga; morreria um dia. Mas cada agonia
diferente; todos os meus esforos para imaginar a dele resultavam apenas em
uma falsificao sem nenhum valor: ele morrera sozinho.

Resisti. Lutei contra a dor, como se combate uma gangrena. Procurei recordar-
me das teimosias, das mentiras; disse a mim mesmo que ele teria mudado um
dia, engordaria, envelheceria. Tempo perdido: como um artfice consciencioso se
esgota copiando uma obra-prima, obstinava-me em exigir da memria uma
exatido insensata. Recriava aquele peito alto e abaulado como um escudo. Por
vezes, a imagem surgia por si mesma; sentia-me arrebatado por uma vaga de
doura; revia um pomar em Tbure, onde o efebo colhia os frutos do outono em
sua tnica arregaada maneira de corbelha. Faltava-me tudo ao mesmo tempo:
o companheiro das festas noturnas, o jovem que se sentava sobre os calcanhares
para ajudar Eufrion a endireitar as pregas da minha toga. A acreditar nos
sacerdotes, a sombra tambm sofria, lamentava o abrigo quente do prprio
corpo, visitava em prantos os lugares familiares, distante e to prxima,
momentaneamente muito frgil para me fazer sentir sua presena. Se isso fosse
verdade, minha surdez seria pior do que a prpria morte. Mas eu havia
compreendido bem o jovem vivo que, naquela manh, soluava a meu lado?
Uma noite, Chbrias chamou-me para me mostrar na constelao da guia uma
estrela at ento pouco visvel, que subitamente cintilava como uma gema e
pulsava como um corao. Tornou-se para mim a estrela dele, o sinal dele.
Consumia-me noite aps noite seguindo-lhe o curso; vi estranhas figuras nessa
parte do cu. Alguns julgaram que estivesse louco. Pouco me importava.

A morte hedionda, e a vida, tambm. A fundao de Antino no passava de


um passatempo irrisrio: uma cidade a mais, um abrigo oferecido s fraudes dos
mercadores, ao peculato dos funcionrios, prostituio, desordem, aos
covardes que choram seus mortos para depois esquec-los. A apoteose era v: as
honrarias pblicas serviam apenas para fazer do menino um pretexto para
baixezas ou ironias, um objeto pstumo de concupiscncia ou escndalo, uma
dessas lendas meio apodrecidas que atravancam os recantos da histria. Meu luto
era apenas uma forma de transborda-mento, de deboche grosseiro: continuava a
ser aquele que aproveita, aquele que desfruta, aquele que tudo experimenta: o
bem-amado doava-me sua morte. Um homem frustrado chorava sobre si
mesmo. As idias tumultuavam; as palavras tornavam-se sem sentido; as vozes
soavam como o rudo seco dos gafanhotos no deserto, ou zumbiam como moscas
sobre um monte de dejetos. Nossos barcos, de velas enfunadas como peitos de
pombas, veiculavam a intriga e a mentira; a estupidez e a ignorncia
estampavam-se em todas as frontes humanas. A morte penetrava em toda parte
sob a forma de decrepitude e podrido: a parte estragada do fruto maduro
demais; o rasgo imperceptvel na extremidade inferior de uma tapearia; a
carcaa de um animal sobre um talude; as pstulas de uma face; a marca do
aoite nas costas de um marinheiro. Minhas mos pareciam-me sempre um
pouco sujas. hora do banho, estendendo as pernas aos escravos para a
depilao, olhava com desgosto o corpo slido, a mquina quase indestrutvel que
digeria, caminhava, conseguia dormir e que, um dia ou outro, voltaria a
acostumar-se s rotinas do amor. S conseguia tolerar a presena de alguns
servos que se lembravam do morto e que, sua maneira, o haviam amado. Meu
luto encontrava eco na dor um tanto simplria do massagista, ou do velho negro
encarregado dos candeeiros. Mas seu desgosto no os impedia de rir baixinho
entre eles, aproveitando o ar fresco das margens. Certa manh, apoiado
amurada, avistei na parte reservada s cozinhas um escravo que limpava um
desses frangos que o Egito choca aos milhares em fornos sem higiene; ele pegou
com as mos na massa viscosa das entranhas e atirou-as na gua. S tive tempo
de voltar a cabea para vomitar. Ao fazer escala em File, durante uma festa que
o governador nos ofereceu, uma criana de trs anos, negra como o bronze, filha
de um porteiro nbio, introduziu-se nas galerias do primeiro andar para admirar
as danas. Caiu ao rs-do-cho. Fizeram o possvel para esconder o incidente,
enquanto o porteiro continha os soluos para no perturbar os convidados do seu
senhor. Fizeram-no sair com o cadver pela entrada de servio. Apesar de tudo,
pude entrever seus ombros, que se elevavam e abaixavam convulsivamente,
como sob os golpes do chicote. Tomei a mim o sentimento dessa dor de pai, tal
como havia sofrido a de Hrcules, a de Alexandre e a de Plato, quando
choravam seus amigos mortos. Mandei entregar algumas moedas de ouro ao
miservel, porque j no se podia fazer mais nada. Dois dias depois, voltei a v-
lo; catava seus piolhos, tranqilamente estendido ao sol, atravessado na soleira da
porta.

As mensagens afluram: Pancrates enviou-me seu poema, finalmente terminado:


no passava de um medocre cento de hexmetros homricos, mas o nome que
figurava nele, quase a cada linha, tornava-o mais comovente para mim do que
muitas obras-primas. Numnio mandou-me uma Consolao segundo as
regras. Passei uma noite lendo-a; no lhe faltava um nico lugar-comum. Essas
fracas defesas levantadas pelo homem contra a morte baseavam-se em duas
linhas de raciocnio: a primeira consistia em apresentar a morte como um mal
inevitvel; em nos lembrar que nem a beleza, nem a juventude, nem o amor
escapam podrido; em nos provar, enfim, que a vida e seu cortejo de males
so ainda mais horrveis do que a prpria morte, e que mais vale morrer que
envelhecer. Servem-se dessas verdades para nos inclinar resignao; mas elas
justificam sobretudo o desespero. A segunda linha de argumentos contradiz a
primeira, mas nossos filsofos no se preocupam em examinar muito de perto
esse detalhe; j no se tratava de nos resignarmos morte, mas de neg-la. S a
alma contava; apresentavam arrogantemente como fato indiscutvel a
imortalidade daquela entidade vaga que nunca vimos funcionar na ausncia do
corpo, antes de lhe provarem a existncia. No me sentia to convencido a esse
respeito; j que o sorriso, o olhar, a voz, essas realidades imponderveis tinham
sido aniquiladas, por que no a alma? Esta no me parecia necessariamente mais
imaterial do que o calor do corpo. Ns nos afastvamos dos despojos onde essa
alma j no habitava: era, porm, a nica coisa que me restava, minha nica
prova de que aquele ser vivo existira. A imortalidade da raa deveria em tese
suavizar a morte do homem: importava-me muito pouco que geraes de bitnios
se sucedessem at o final dos tempos s margens do Sangrio. Falavam em
glria, belo nome, que dilata o corao, mas esforavam-se por estabelecer
entre ela e a imortalidade uma confuso mentirosa, como se os vestgios de um
ser fossem a mesma coisa que sua presena. Mostravam-me um deus
resplandecente no lugar do cadver: esse deus fora feito por mim; acreditava
nele minha maneira, mas o destino pstumo, mesmo o mais luminoso no fundo
das esferas estelares, no compensa a brevidade da vida. O deus no substitua o
ser vivo que eu perdera. Indignava-me a obstinao do homem no sentido de
desprezar fatos em proveito de hipteses, de no reconhecer seus sonhos apenas
como sonhos. Compreendia de maneira diferente minhas obrigaes de
sobrevivente. Essa morte teria sido intil se eu no tivesse tido a coragem de
olh-la face a face, de me ligar s realidades do frio, do silncio, do sangue
coagulado, dos membros inertes que o homem recobre to depressa de terra e
hipocrisia. Preferia tatear no escuro, sem o auxlio de candeeiros fracos. Sentia
que minha volta as pessoas comeavam a se preocupar com uma dor to
prolongada; alis, a violncia da dor escandalizava mais do que sua prpria
causa. Se me tivesse entregue s mesmas lamentaes pela morte de um irmo,
ou de um filho, ter-me-iam igualmente censurado por chorar como uma mulher.
A memria da maior parte dos homens um cemitrio abandonado, onde jazem,
sem honras, os mortos que eles deixaram de amar. Toda dor prolongada um
insulto ao seu desejo de esquecer.

Os barcos nos levaram ao ponto do rio onde Antino comeava a ser edificada.
Eram menos numerosos do que na ida: Lcio, que eu vira muito pouco, retornara
a Roma, onde sua jovem mulher acabava de dar luz um filho. Sua partida
livrava-me de um bom nmero de curiosos e importunos. As obras comeadas
alteravam a forma da margem; o plano dos edifcios futuros esboava-se entre
os montes de terra removida; mas j no reconheci o lugar exato do sacrifcio.
Os embalsamadores entregaram sua obra: depositaram o delicado sarcfago de
cedro no interior de uma urna de prfiro, colocada de p na sala mais secreta do
templo. Aproximei-me timidamente do morto. Parecia vestido a carter: a dura
coifa egpcia cobria-lhe inteiramente os cabelos. As pernas envolvidas em
ataduras no eram mais do que um longo fardo branco, mas o perfil do jovem
falco no havia mudado; sobre as faces pintadas os clios projetavam uma
sombra que eu reconhecia muito bem. Antes de terminar o enfaixamento das
mos, quiseram que eu admirasse as unhas de ouro. Comearam as litanias:
atravs da boca dos sacerdotes, o morto declarava ter sido incessantemente
verdadeiro, perpetuamente casto, perpetuamente compassivo e justo,
vangloriando-se de virtudes que, se as tivesse praticado, o teriam afastado para
sempre dos vivos. O odor ranoso do incenso enchia a sala. Tentei dar a mim
mesmo, atravs da nvoa, a iluso do sorriso: o belo rosto imvel parecia tremer.
Assisti aos passes mgicos por meio dos quais os sacerdotes foram a alma do
morto a encarnar uma parcela de si mesma no interior de esttuas que
conservaro sua memria, obrigando-a a outras injunes, mais estranhas ainda.
Quando a cerimnia terminou, a mscara de ouro modelada sobre a cera
morturia foi recolocada no seu lugar, ajustando-se perfeitamente s feies. A
bela superfcie inaltervel no tardaria a absorver em si prpria suas
possibilidades de irradiao e calor; jazeria para sempre naquela urna
hermeticamente fechada, smbolo inerte da imortalidade. Puseram-lhe sobre o
peito um ramo de accias. A pesada tampa foi recolocada no lugar por uma
dzia de homens. Entretanto, eu continuava indeciso sobre a localizao do
tmulo. Lembrei-me de que, tendo ordenado que se realizassem em toda parte
festas de apoteose, jogos fnebres, cunhagem de moedas, esttuas nas praas
pblicas, fizera uma exceo quanto a Roma: temera aumentar a animosidade
que cerca, em maior ou menor grau, qualquer favorito estrangeiro. Disse a mim
mesmo que no estaria sempre l para proteger aquela sepultura. O monumento
que se deveria edificar s portas de Antino parecia-me tambm demasiado
pblico, pouco seguro. Decidi-me pela opinio dos sacerdotes. Indicaram-me no
flanco de uma montanha da cadeia arbica, distante cerca de trs lguas da
cidade, uma das cavernas outrora destinadas pelos reis do Egito a lhes servir de
poos funerrios. Uma junta de bois levou o sarcfago pela encosta. Com a
ajuda de cordas, fizeram-no deslizar ao longo dos corredores da mina.
Apoiaram-no em seguida contra uma parede de rocha. O menino de Claudipolis
descia ao sepulcro como um fara, como um Ptolomeu. Ns o deixamos s.
Entrava num tempo definitivo, sem ar, sem luz, sem estaes e sem fim,
comparado ao qual toda vida parece breve. Atingira a estabilidade, talvez a
calma absoluta. Milhares de sculos ainda ocultos no seio opaco do tempo
passariam sobre o tmulo sem devolver-lhe a vida, mas tambm sem nada
acrescentar sua morte, e sem impedir que ele houvesse existido. Hermgenes
deu-me o brao para auxiliar-me a subir at o ar livre. Foi quase uma alegria
reencontrar-me de novo com a superfcie, rever o frio cu azul entre dois lances
de rochas avermelhadas. O resto da viagem foi breve. Em Alexandria, a
imperatriz reembarcou para Roma.
Disciplina Augusta

Regressei Grcia por via terrestre. A viagem foi longa. Tinha motivos para
pensar que aquela seria minha ltima visita oficial ao Oriente, razo pela qual
punha o maior empenho em examinar tudo com meus prprios olhos. Vi a
Antiquia, onde me detive por algumas semanas, sob um novo aspecto. Estava
menos sensvel do que outrora ao prestgio dos teatros, das festas, aos prazeres
dos jardins de Dafne, ao rumor variegado das multides. Minha ateno
concentrou-se principalmente na eterna leviandade daquele povo maldizente e
trocista, que me lembrava o de Alexandria, a vaidade dos seus pretensos
exerccios intelectuais e a ostentao vulgar do luxo dos ricos. Entre os homens
importantes, pouqussimos apoiavam, no seu conjunto, meus programas de
trabalho e de reformas na sia. A maioria se contentava em aproveit-los para
suas cidades e, sobretudo, para si prprios. Por um momento, pensei aumentar a
importncia de Esmirna ou de Prgamo, em detrimento da arrogante capital da
Sria. Mas os defeitos da Antiquia so inerentes a todas as grandes cidades:
nenhuma metrpole est isenta deles. Meu desgosto pela vida urbana fez-me dar
maior ateno, se possvel, s reformas agrrias; ultimei a longa e complexa
reorganizao dos domnios imperiais da sia Menor. Lucrou o Estado, e
lucraram os camponeses. Na Trcia, quis visitar Andrinopla, para onde os
veteranos das campanhas dcias e srmatas haviam afludo atrados pelas
concesses de terras e pela reduo de impostos. Idntico plano seria posto em
execuo em Antino. Desde muito tempo, eu vinha concedendo anlogas
isenes aos mdicos e aos professores, na esperana de favorecer a estabilidade
e o desenvolvimento de uma classe mdia sria e culta. Conheo-lhe os defeitos,
mas dela depende a sobrevivncia do Estado.

Atenas continuava sendo minha etapa preferida; surpreendia-me que sua beleza
dependesse to pouco das minhas prprias lembranas e da lembrana de fatos
histricos. Essa cidade parecia renovar-se a cada manh. Nessa temporada,
hospedei-me em casa de Arriano. Iniciado, como eu, em Elusis, ele fora
adotado por uma das grandes famlias sacerdotais do territrio tico, a famlia
dos Kery kes, como eu prprio o fora pela dos Eumlpidas. Casara-se ali, e tinha
por esposa uma jovem ateniense, fina e altiva. Ambos cumularam-me
discretamente de atenes. Sua casa estava situada a dois passos da nova
biblioteca com que eu acabava de adotar Atenas, e onde tudo era propcio
meditao e ao repouso, que a antecede: cadeiras cmodas, aquecimento
adequado durante os invernos quase sempre rigorosos, escadas para facilitar o
acesso s galerias de livros, o alabastro e o ouro de um luxo moderado e calmo.
Uma ateno especial fora dispensada escolha e colocao das lamparinas.
Considerava da mxima importncia reunir e conservar os volumes antigos, mas
tambm encarregar escribas conscienciosos de tirar novas cpias de todos eles.
Essa maravilhosa empreitada no me parecia menos urgente do que o auxlio aos
veteranos, ou os subsdios s famlias proliferas e pobres. Dizia a mim mesmo
que bastariam algumas guerras e a misria delas resultante, acompanhadas de
um perodo de brutalidade e selvageria sob o domnio de alguns maus prncipes,
para que ficassem irremediavelmente destrudos os pensamentos chegados at
ns por meio desses frgeis objetos de fibras e tinta. Todo homem bastante
afortunado para se beneficiar mais ou menos desse legado de cultura parecia-me
encarregado de um fideicomisso para com o gnero humano.

Li muito durante esse perodo. Estimulara Flgon a compor, sob o ttulo de


Olimpadas, uma srie de crnicas que continuariam as Helnicas de Xenofonte,
e que terminariam no meu reinado: plano audacioso, no qual se faria da imensa
histria de Roma uma simples seqncia da histria da Grcia. O estilo de Flgon
enfadonho e seco, mas s a circunstncia de reunir e estabelecer certos fatos
bastaria para justificar a obra. Esse projeto inspirou-me o desejo de reler as
obras dos historiadores antigos: sua obra, comentada por minha experincia
pessoal, encheu-me de idias sombrias; a energia e a boa vontade de cada
homem de Estado pareciam muito pouca coisa perante esse desenrolar fortuito e
fatal, essa torrente de ocorrncias demasiado confusas para serem previstas,
dirigidas ou julgadas. Os poetas tambm me ocuparam: gostava de arrancar a
um passado longnquo aquelas vozes plenas e puras. Tornei-me amigo de Tegnis,
o aristocrata, o exilado, o observador sem iluses e sem indulgncia dos negcios
humanos, sempre pronto a denunciar os erros e as faltas que qualificamos como
nossos males. Esse homem to lcido saboreara as delcias pungentes do amor;
apesar das suspeitas, dos cimes, dos agravos recprocos, sua ligao com Cirno
prolongou-se at a velhice de um, e a idade madura do outro: a imortalidade que
ele prometia ao jovem de Megara era mais do que uma palavra v, uma vez que
tal lembrana me atingia a uma distncia de mais de seis sculos. Mas, entre os
poetas antigos, foi Antmaco quem mais me conquistou: apreciava-lhe o estilo
obscuro e denso, as frases amplas e, entretanto, extremamente condensadas,
como grandes taas de bronze cheias de um vinho pesado. Preferia sua narrativa
do priplo de Jaso s Argonuticas, mais movimentadas, de Apolnio: Antmaco
compreendeu melhor o mistrio dos horizontes e das viagens, e a sombra
projetada pelo homem efmero sobre as paisagens eternas. Chorara
apaixonadamente sua mulher Ldia; dera o nome da morta a um longo poema
onde cabiam todas as lendas da dor e do luto. Essa Ldia, que eu talvez nunca
tivesse notado quando viva, tornava-se-me figura familiar, mais querida do que
muitas personagens femininas da minha vida. Esses poemas, quase esquecidos,
devolviam-me pouco a pouco minha confiana na imortalidade. Revisei minhas
prprias obras: os versos de amor, as peas de circunstncia, a ode memria de
Plotina. Talvez um dia algum desejasse ler tudo aquilo. Um grupo de versos
obscenos me fez hesitar, mas terminei por inclu-los. Os homens mais honestos os
escrevem, conquanto faam deles um jogo; teria preferido que os meus fossem
outra coisa, a imagem exata de uma verdade nua. Nesse campo, porm, como
em qualquer outro, os lugares-comuns nos aprisionam: comeava a
compreender que a audcia do esprito no basta, por si s, para nos livrarmos
deles, e que o poeta s triunfa das rotinas e impe s palavras seu pensamento
graas a esforos to prolongados e to assduos como minhas obras de
imperador. De minha parte, s podia pretender alguns raros sucessos de amador:
j seria muito se, de toda essa tralha, subsistissem dois ou trs versos. Entretanto,
nessa poca, esboava uma obra bastante ambiciosa, metade em prosa, metade
em verso, em que pretendia fazer entrar ao mesmo tempo a seriedade e a ironia,
os fatos curiosos observados no decorrer da minha vida, meditaes e alguns
sonhos; tudo isso seria ligado pelo mais delicado dos fios; teria sido uma espcie
de Satrico mais acerbo. Nessa obra, teria exposto uma filosofia que se tornara a
minha, a idia heracltica da mudana e do regresso. Contudo, coloquei de parte
esse projeto demasiado vasto.

Encontrei-me vrias vezes, nesse ano, com a sacerdotisa que outrora me iniciara
em Elusis, e cujo nome deve permanecer secreto. Nesses encontros foram
fixadas, uma a uma, as modalidades do culto a Antnoo. Os grandes smbolos
eleusinos continuavam a destilar para mim uma virtude calmante: o mundo
talvez no tenha nenhum sentido, mas se tem algum, este exprime-se em Elusis,
mais sabiamente e mais nobremente do que em qualquer outro lugar. Foi sob a
influncia dessa mulher que empreendi fazer das divises administrativas de
Antino, dos seus demos, das suas ruas, dos seus blocos urbanos, um plano do
mundo divino, ao mesmo tempo que uma imagem transfigurada da minha
prpria vida. Tudo entrava nesse plano, Hstia e Baco, os deuses domsticos e os
da orgia, as divindades celestes e as de alm-tmulo. Coloquei ali meus
antepassados imperiais, Trajano, Nerva, transformados em parte integrante
desse sistema de smbolos. Plotina tambm encontrava-se l; a boa Matdia
estava assimilada a Demter; minha prpria mulher, com quem eu entretinha
nessa poca relaes bastante cordiais, figurava no cortejo das pessoas divinas.
Alguns meses mais tarde, dei o nome de minha irm Paulina a um dos bairros de
Antino. Acabara por me desentender com a mulher de Serviano, mas Paulina
morta reencontrava nessa cidade da memria o seu lugar nico de irm. Esse
local triste tornava-se a paisagem ideal das reunies e das lembranas, os
Campos Elsios de uma vida, o lugar onde as contradies se resolvem, onde tudo
igualmente sagrado.

De p diante de uma janela da casa de Arriano, por uma noite semeada de


astros, pensava na frase que os sacerdotes egpcios haviam mandado gravar
sobre o atade de Antnoo: Obedeceu a uma ordem do cu. Era possvel que o
cu nos impusesse suas determinaes, e que os melhores entre ns as ouvissem
l onde os outros homens s percebem um silncio esmagador? A sacerdotisa
eleusiana e Chbrias assim acreditavam. Teria querido dar-lhes razo. Revia em
pensamento aquela palma da mo alisada pela morte, tal como a vira pela ltima
vez na manh do embalsamamento; as linhas que me inquietaram outrora
haviam desaparecido, como acontece nas tabuinhas de cera de onde se apaga
uma ordem cumprida. Mas essas altas afirmaes iluminam sem aquecer, como
a luz das estrelas, enquanto a noite em volta ainda mais escura. Se, em qualquer
parte, o sacrifcio de Antnoo tivesse pesado a meu favor numa balana divina, os
resultados do atroz dom de si mesmo ainda no se haviam manifestado: esses
benefcios no eram nem os da vida, nem os da imortalidade. Ousava apenas
procurar um nome para eles. Por vezes, mas muito raramente, uma fraca
claridade palpitava friamente no horizonte do meu cu; contudo, no embelezava
nem meu mundo, nem a mim mesmo: continuava a sentir-me mais destrudo do
que salvo.

Foi por essa poca que Quadrato, bispo dos cristos, enviou-me uma apologia da
sua f. Tive por princpio manter a respeito dessa seita a linha de conduta
estritamente eqitativa que Trajano seguira nos seus melhores dias; acabava de
lembrar aos governadores das provncias que a proteo das leis estende-se a
todos os cidados, e que os difamadores dos cristos seriam punidos se fizessem
contra eles acusaes sem provas. Mas toda tolerncia concedida aos fanticos
os faz acreditar imediatamente que se trata de uma manifestao de simpatia
pela sua causa; custa-me crer que Quadrato esperasse fazer de mim um cristo;
em ltima anlise, quis provar-me a excelncia da sua doutrina e, sobretudo, sua
inocuidade relativamente ao Estado. Li sua obra; tive mesmo a curiosidade de
mandar recolher por Flgon informaes sobre a vida do jovem profeta
chamado Jesus, que fundou a seita e morreu vtima da intolerncia judaica h
cerca de cem anos. Consta que o jovem sbio deixou preceitos bastante
semelhantes aos de Orfeu, ao qual seus discpulos o comparam por vezes.
Atravs da prosa singularmente trivial de Quadrato, no deixei de apreciar o
encanto enternecedor daquelas virtudes de gente simples, sua doura, sua
ingenuidade, a dedicao recproca; tudo aquilo se parecia muito com as
confrarias que os escravos ou os pobres fundam um pouco por toda parte em
honra dos nossos deuses, nos subrbios populosos das cidades. No seio de um
mundo que, apesar de todos os nossos esforos, permanece duro e indiferente aos
sofrimentos e s esperanas dos homens, essas pequenas sociedades de
assistncia mtua oferecem aos desgraados um ponto de apoio e um reconforto.
Mas eu era sensvel tambm a certos perigos. A glorificao das virtudes da
criana e do escravo atuava em detrimento de qualidades mais viris e mais
lcidas; adivinhei, sob a inocncia contida e inspida, a feroz intransigncia do
sectrio em presena de formas de vida e de pensamento que no so as suas, o
orgulho insolente que o leva a preferir-se ao resto dos homens, com os olhos
voluntariamente enquadrados em antolhos. Cansei-me depressa dos argumentos
capciosos de Quadrato e das suas amostras de filosofia, inabilmente copiadas dos
escritos dos nossos sbios. Chbrias, sempre preocupado com a correo do culto
a ser oferecido a nossos deuses, inquietava-se com a propagao de seitas desse
gnero entre a populaa das grandes cidades; temia pelas nossas velhas religies,
que no impem ao homem o jugo de nenhum dogma, que se prestam a
interpretaes to variadas como a prpria natureza, e deixam os coraes
austeros inventar, se assim quiserem, uma moral mais elevada, sem submeter as
massas a preceitos excessivamente estritos, para no dar margem ao
constrangimento e hipocrisia. Arriano partilhava desses pontos de vista. Passei
toda uma noite a discutir com ele a injuno que consiste em amar ao prximo
como a si mesmo; demasiado contrria natureza humana para ser
sinceramente obedecida pelo homem comum, que sempre amar a si mesmo, e
no convm de modo algum ao sbio, que nunca ama particularmente a si
prprio.

Em inmeros pontos, alis, o pensamento dos nossos filsofos parecia-me


tambm limitado, confuso, ou estril. Trs quartos dos nossos exerccios
intelectuais no passam de orna tos no vazio; perguntava a mim mesmo se essa
vacuidade crescente seria proveniente de uma diminuio da inteligncia ou de
um declnio do carter; fosse como fosse, a mediocridade do esprito era
acompanhada, quase por toda parte, por uma espantosa baixeza de alma. Tinha
encarregado Herodes tico de fiscalizar a construo de uma rede de aquedutos
na Trade; aproveitou-se disso para dissipar vergonhosamente as rendas pblicas;
chamado a prestar contas, mandou responder com insolncia que era bastante
rico para cobrir os dficits; aquela riqueza j era um escndalo. Seu pai, morto
havia pouco tempo, arranjara as coisas para deserd-lo discretamente,
multiplicando as liberalidades aos cidados de Atenas; Herodes recusou-se
terminantemente a cumprir os legados paternos; disso resultou um processo que
dura ainda. Em Esmirna, Plemon, outrora meu amigo ntimo, permitiu-se pr
porta afora uma delegao de senadores romanos que haviam acreditado poder
contar com sua hospitalidade. Teu pai, Antonino, o mais doce dos seres, zangou-
se; o homem de Estado e o sofista acabaram por passar s vias de fato; aquele
pugilato, indigno de um futuro imperador, era-o ainda mais de um filsofo grego.
Favorino, ano vido que eu cumulara de dinheiro e honrarias, espalhava por
toda parte ditos espirituosos sobre minha pessoa. As trinta legies sob meu
comando eram, segundo ele, meus nicos argumentos vlidos nos torneios
filosficos, nos quais eu tinha a vaidade de me comprazer, enquanto ele tratava
de deixar a ltima palavra ao imperador. Isso implicava acusar-me, ao mesmo
tempo, de presuno e estupidez; implicava sobretudo orgulhar-se de uma
estranha covardia. Mas os pedantes sempre se irritam quando os outros
conhecem to bem quanto eles o seu mesquinho ofcio; tudo servia de pretexto s
suas observaes maldosas; eu mandara incluir no programa das escolas as obras
excessivamente negligenciadas de Hesodo e nio; os espritos rotineiros
atriburam-me imediatamente a inteno de destronar Homero e o lmpido
Virglio, que, entretanto, eu citava constantemente. No havia nada a fazer com
esse tipo de gente.

Arriano valia muito mais. Eu gostava de conversar com ele sobre todas as coisas.
Ele conservava uma recordao fascinante e grave do bitnio; eu o via com
satisfao colocar esse amor, de que fora testemunha, na categoria das grandes
dedicaes recprocas de outrora; falvamos sobre isso de quando em quando,
conquanto, embora nenhuma mentira fosse pronunciada, eu tivesse por vezes a
impresso de sentir em nossas palavras uma certa falsidade: a verdade
desaparecia sob o sublime. Sentia-me quase decepcionado tambm a respeito de
Chbrias: ele nutrira por Antnoo o devotamento cego de um velho escravo por
um jovem senhor, mas, inteiramente ocupado com o culto do novo deus, parecia
quase haver perdido toda lembrana do vivente. Meu negro Eufrion, pelo
menos, observava as coisas mais de perto. Arriano e Chbrias eram-me
queridos, e eu no me sentia em nada superior a essas duas pessoas honestas;
contudo, parecia-me por momentos que eu era o nico homem esforando-se
por manter os olhos abertos.

Sim, Atenas continuava bela, e eu no lamentava ter imposto as disciplinas


gregas minha vida. Tudo o que em ns humano, ordenado e lcido provm
delas. Mas acontecia-me dizer a mim mesmo que a seriedade um tanto pesada
de Roma, seu sentido de continuidade, seu gosto pelo concreto, haviam sido
necessrios para transformar em realidade o que permanecia na Grcia um
admirvel conceito do esprito, um belo impulso da alma. Plato escreveu A
Repblica e glorificou a idia de Justo; ns, porm, instrudos por nossos prprios
erros, nos esforvamos penosamente por fazer do Estado uma mquina apta a
servir os homens, correndo o menor risco de esmag-los. A palavra filantropia
grega, mas ns, o legista Slvio Juliano e eu, somos os que trabalham para
modificar a miservel condio do escravo. A assiduidade, a previdncia, a
ateno ao pormenor para corrigir a audcia da viso de conjunto, foram para
mim virtudes aprendidas em Roma. Bem no fundo de mim, acontecia-me
reencontrar as grandes paisagens melanclicas de Virglio e seus crepsculos
velados de lgrimas; penetrava mais longe ainda: encontrava a escaldante tristeza
da Espanha e sua rida violncia; pensava nas gotas de sangue celta, ibero,
pnico talvez, que deveria ter-se infiltrado nas veias dos colonos romanos de
Itlica; lembrava-me de que meu pai fora apelidado o Africano. A Grcia
ajudara-me a avaliar os elementos que no eram gregos. Acontecia o mesmo
com Antnoo; eu fizera dele a prpria imagem daquele pas apaixonado pela
beleza, de que ele seria talvez o ltimo deus. Entretanto, a Prsia requintada e a
Trcia selvagem se haviam aliado na Bi tinia aos pastores da Arcdia antiga:
aquele perfil delicadamente curvo lembrava o dos pajens de Osros; o rosto
largo, de mas salientes, era o mesmo dos cavaleiros trcios que galopam nas
margens do Bsforo, e que se expandem noite em cantos roucos e tristes.
Nenhuma frmula era bastante completa para conter tudo.

Terminei nesse ano a reviso da Constituio ateniense, comeada muito antes.


Tentei restaurar ali, na medida do possvel, as velhas leis democrticas de
Clstenes. A reduo do nmero de funcionrios aliviava os encargos do Estado;
levantei obstculos ao arrendamento dos impostos, sistema desastroso,
infelizmente ainda empregado aqui e ali pelas administraes locais. Algumas
fundaes universitrias, estabelecidas pela mesma poca, ajudaram Atenas a
tornar-se novamente um importante centro de estudos. Os amantes do belo que,
antes de mim, tinham afludo a essa cidade, haviam-se contentado em admirar
seus monumentos sem se preocupar com a penria crescente dos seus habitantes.
Eu, pelo contrrio, tudo fizera para multiplicar os recursos daquela terra pobre.
Um dos grandes projetos do meu reinado concretizou-se pouco tempo antes da
minha partida: o estabelecimento de embaixadas anuais, por cujo intermdio se
tratariam dali em diante, em Atenas, os negcios do mundo grego, o que restituiu
cidade modesta e perfeita sua categoria de metrpole. Esse plano s tomou
corpo depois de espinhosas negociaes com as cidades ciumentas da
supremacia de Atenas, ou que alimentavam contra ela rancores seculares e
obsoletos; pouco a pouco, porm, a razo e at o entusiasmo venceram. A
primeira dessas assemblias coincidiu com a abertura do Olimpo ao culto
pblico; esse templo tornava-se para sempre o smbolo de uma Grcia renovada.

Nessa ocasio, realizou-se no Teatro de Dioniso uma srie de espetculos


particularmente bem-sucedidos: ocupei ali um lugar apenas um pouco mais
elevado ao lado do hierofante; o sacerdote de Antnoo tinha, a partir de ento, seu
lugar entre os notveis e o clero. Mandei ampliar o palco do teatro; novos baixos-
relevos o decoravam; num deles, meu jovem bitnio recebia das deusas eleusinas
uma espcie de direito de cidado eterno. Organizei no estdio panatenaico,
transformado por algumas horas em floresta da fbula, uma caada na qual
figurava um milhar de animais selvagens, fazendo reviver, pelo breve espao de
uma festa, a cidade agreste e esquiva de Hiplito, servidor de Diana e Teseu,
companheiro de Hrcules. Poucos dias depois, deixei Atenas, aonde nunca mais
voltei.
A administrao da Itlia, entregue durante sculos ao arbtrio dos pretores,
nunca fora definitivamente codificada. O Edito perptuo, que a regula de uma
vez por todas, data dessa poca da minha vida; havia anos eu me correspondia
com Slvio Juliano sobre essas reformas; meu regresso a Roma ativou sua
concluso. No se tratava de tirar s cidades italianas suas liberdades civis; pelo
contrrio, tnhamos tudo a ganhar, ali como em qualquer outra parte, em no
impor pela fora uma unidade fictcia; admiro-me mesmo de que aqueles
municpios, muitos dos quais eram mais antigos do que Roma, se mostrassem to
prontos a renunciar a seus costumes, em geral bastante judiciosos, para se
assimilarem em tudo capital. Meu objetivo era simplesmente diminuir essa
massa de contradies e de abusos que terminam por fazer dos tribunais um
matagal onde as pessoas honestas no ousam aventurar-se, e onde proliferam os
bandidos. Esses trabalhos obrigaram-me a numerosos deslocamentos no interior
da pennsula. Passei vrias temporadas em Baias, na antiga vila de Ccero, por
mim comprada no comeo do meu principado; interessava-me pela provncia de
Campnia, que me lembrava a Grcia. beira do Adritico, na pequena cidade
de dria, de onde, h perto de quatro sculos, meus antepassados emigraram
para a Espanha, fui honrado com as mais altas funes municipais; prximo
quele mar tempestuoso de que uso o nome, encontrei as urnas familiares num
columbrio em runas. Pensava ali naqueles homens de quem to pouco sabia,
mas dos quais descendo, e cuja raa terminava em mim.

Em Roma, ocupavam-se em ampliar meu colossal mausolu, cujos planos


Decriano havia habilmente remanejado, e no qual trabalham ainda hoje. O Egito
inspira-me galerias circulares, as rampas que deslizam para as salas
subterrneas. Eu concebera a idia de um palcio da morte que no seria
reservado para mim, ou para meus sucessores imediatos, mas aonde viriam
repousar os imperadores futuros, separados de ns pelas perspectivas de sculos;
prncipes ainda por nascer teriam, assim, seu lugar determinado no tmulo.
Dediquei-me tambm ornamentao do cenotfio erigido no Campo de Marte
em memria de Antnoo, para o qual um barco chato, vindo de Alexandria, j
desembarcara obeliscos e esfinges. Um novo projeto absorveu-me durante muito
tempo, e ainda no deixou de faz-lo: o Odeon, biblioteca modelo, provida de
salas para cursos e conferncias, que seria em Roma um centro de cultura grega.
Nela empreguei menos esplendor do que na nova biblioteca de feso, construda
trs ou quatro anos antes, e menos elegncia amvel do que na de Atenas. Conto
fazer dessa fundao o mulo, se no o igual, do Museu de Alexandria; seu
desenvolvimento futuro caber a ti. Trabalhando para isso, penso freqentemente
na bela inscrio que Plotina mandou colocar no limiar da biblioteca instalada
por sua determinao em pleno Frum de Trajano: Hospital da Alma. A Vila
estava suficientemente adiantada para que eu pudesse transportar para l minhas
colees, meus instrumentos de msica e alguns milhares de livros comprados
um pouco por toda parte, no decorrer das minhas viagens. Ofereci ali uma srie
de festas nas quais tudo estava organizado cuidadosamente, desde os cardpios
das refeies at a lista, bastante reduzida, dos convidados. Empenhava-me para
que tudo se harmonizasse com a beleza tranqila dos jardins e das salas; os frutos
deviam ser to delicados como os concertos, e a ordem dos servios, to perfeita
como a cinzeladura das pratas. Interessei-me, pela primeira vez, pela escolha dos
alimentos; ordenei que as ostras viessem de Lucrino e que os lagostins fossem
retirados dos rios gauleses. Por averso afetada negligncia que caracteriza
com demasiada freqncia a mesa imperial, estabeleci como regra que cada
iguaria me fosse apresentada antes de ser servida, mesmo ao mais insignificante
dos meus convivas; insistia em verificar eu prprio as contas dos cozinheiros e
dos fornecedores; lembrava-me por vezes de que meu av fora avaro. O
pequeno teatro grego da Vila e o teatro latino, pouco mais vasto, no estavam
ainda, nem um nem outro, terminados; apesar disso, fiz representar neles
algumas peas. Por minha ordem, representaram-se tragdias e pantomimas,
dramas musicais e farsas populares. Agradava-me sobretudo a sutil ginstica das
danas; descobri em mim um fraco pelas danarinas com crtalos, que me
lembravam o pas de Gades e os primeiros espetculos a que assisti em criana.
Gostava do rudo seco, dos braos erguidos, do enrolar e desenrolar de vus; da
danarina que deixa de ser mulher para se transformar ora em nuvem, ora em
pssaro, ora numa vaga ou num trirreme. Nutri, inclusive, por uma dessas
criaturas um interesse bastante passageiro. Os canis e as coudelarias no foram
descurados durante minhas ausncias; reencontrei o plo rijo dos ces, a veste
sedosa dos cavalos, o belo grupo dos pajens. Organizei algumas caadas na
mbria, beira do lago Trasimeno ou, mais perto de Roma, nas florestas de
Alba. O prazer retomara seu lugar em minha vida; meu secretrio Onsimo
servia-me de substitutivo. Sabia quando era preciso evitar certas semelhanas,
ou, pelo contrrio, procur-las. Mas esse amante apressado e distrado no foi
absolutamente amado. Encontrava aqui e ali um ser mais terno ou mais fino que
os outros, algum que valia a pena ouvir falar, talvez tornar a ver. Essas fortunas
eram raras, decerto por minha culpa. Contentava-me de ordinrio em apaziguar
ou enganar minha fome. Em outros momentos, acontecia-me experimentar por
esses jogos uma indiferena de velho.

Nas horas de insnia, percorria os corredores da Vila a grandes passos, errando


de sala em sala, perturbando muitas vezes um artfice que colocava um mosaico;
examinava um Stiro de Praxteles; parava diante das efgies do morto. Cada sala
e cada prtico tinham a sua. Protegia com a mo a chama de meu candeeiro;
aflorava com o dedo o peito de pedra. Tais confrontaes complicavam o
trabalho da memria; afastava como um reposteiro a brancura de Paros ou do
Pentlico; remontava, bem ou mal, dos contornos imobilizados forma viva, do
mrmore duro carne. Prosseguia em minha ronda: a esttua interrogada
voltava a afundar-se na noite; meu candeeiro revelava-me, a alguns passos de
mim, outra imagem; aquelas grandes figuras brancas pouco diferiam de
fantasmas. Pensava amargamente nos passes com que os sacerdotes egpcios
haviam atrado a alma do morto ao interior dos simulacros de madeira que
utilizam para seu culto; eu fizera como eles; enfeitiara pedras que, por sua vez,
me enfeitiavam; no escapariam mais quele silncio, quela frieza, dali em
diante mais prximos de mim do que o calor e a voz dos vivos; olhava com
rancor essa face perigosa de sorriso fugidio. Mas algumas horas mais tarde,
estendido sobre meu leito, decidia encomendar a Ppias de Afrodsias uma nova
esttua; exigia um modelo mais exato das faces, no ponto onde se aprofundam
insensivelmente sob as tmporas, uma inclinao mais suave do pescoo sobre o
ombro; faria substituir as coroas de pmpanos ou os laos de pedras preciosas
pelo esplendor nico dos anis de cabelo sem orna tos. No me esquecia de
mandar cavar interiormente os baixos-relevos ou os bustos, para lhes diminuir o
peso e tornar seu transporte mais fcil. As imagens mais parecidas com o
original acompanharam-me por toda parte; j no me importava que fossem
belas ou no.

Minha vida era aparentemente ponderada; dedicava-me mais firmemente do


que nunca ao meu ofcio de imperador; introduzia no desempenho das minhas
funes talvez mais discernimento, e pelo menos tanto ardor quanto antigamente.
Perdera um pouco do meu gosto pelas idias e pelos encontros novos, e tambm
um pouco da agilidade de esprito que me permitia associar-me ao pensamento
de ou trem, tirar proveito dele ao mesmo tempo que o julgava. Minha
curiosidade, na qual vira, at pouco tempo antes, a fora do meu pensamento,
um dos fundamentos do meu mtodo, passou a exercer-se apenas em
pormenores fteis; abria cartas destinadas aos meus amigos, que se ofendiam
com isso; o olhar de relance sobre seus amores e suas disputas domsticas
divertia-me por um momento. Nessa atitude havia, de resto, uma parte de
suspeita: fui durante alguns dias dominado pelo medo do veneno, medo atroz, que
observara outrora no olhar de Trajano enfermo, e que um prncipe no ousa
confessar porque parece grotesco enquanto o desfecho ainda no o justificou. Tal
obsesso causa espanto num homem mergulhado na meditao da morte, mas
no pretendo ser mais coerente do que qualquer outro. Furores secretos e
impacincias ferozes dominavam-me ante as mais insignificantes tolices, as mais
vulgares baixezas, uma repugnncia da qual no me exclua. Juvenal ousou
insultar em uma das Stiras o mimo Paris, que me agradava. Estava cansado
desse poeta ftuo e impertinente; no apreciava seu desprezo grosseiro pelo
Oriente e pela Grcia, seu afetado gosto pela pretensa simplicidade dos nossos
pais e a mistura de descries detalhadas do vcio e de declamaes virtuosas,
que lisonjeia os sentidos do leitor ao mesmo tempo que lhe tranqiliza a
hipocrisia. Contudo, como homem de letras, tinha direito a certa considerao;
mandei cham-lo a Tbure para lhe comunicar sua sentena de exlio. Aquele
contestador do luxo e dos prazeres de Roma poderia, dali em diante, estudar
diretamente os costumes da provncia; seus insultos ao belo Paris haviam
determinado o fim de sua prpria pea. Por essa mesma poca, Favorino
instalou-se no seu confortvel exlio de Quios, onde eu prprio gostaria bastante
de morar, mas de onde sua voz amarga no podia atingir-me. Foi tambm por
esse tempo que mandei expulsar ignominiosamente de uma sala de banquete um
mercador de sabedoria, um cnico deslavado que se lamentava de morrer de
fome, como se aquela espcie merecesse outra coisa; experimentei verdadeiro
prazer em ver esse falador curvar-se em dois pelo medo, retirar-se perseguido
pelo ladrido dos ces e pelos risos zombeteiros dos pajens: j no me curvava
mais ante a canalha filosfica e pretensamente culta.

As mais leves decepes na vida poltica exasperavam-me, exatamente como


me sucedia na Vila com a menor desigualdade de um pavimento, o menor pingo
de cera sobre o mrmore de uma mesa, o menor defeito de um objeto que se
desejaria sem imperfeies e sem ndoas. Um relatrio de Arriano, recm-
nomeado governador da Capadcia, me ps em guarda contra Farasmanes, que
continuava, no seu pequeno reino nas costas do mar Cspio, a fazer o jogo duplo
que to caro nos custara no tempo de Trajano. Esse reizinho empurrava
sorrateiramente para nossas fronteiras hordas de alanos brbaros; suas questes
com a Armnia comprometiam a paz no Oriente. Convocado a Roma, recusou-
se a comparecer, assim como j se recusara a assistir conferncia de
Samsata quatro anos antes. guisa de desculpas, enviou-me um presente de
trezentos trajes de ouro, vestes reais que ordenei fossem usadas na arena pelos
criminosos lanados s feras. Esse ato irrefletido satisfez-me como o gesto de um
homem que se coca at sangrar.

Tinha um secretrio, personagem medocre que eu conservava porque conhecia


a fundo as rotinas da chancelaria, mas que me impacientava por sua recusa em
tentar novos mtodos, por sua mania de argumentar interminavelmente sobre
pormenores inteis. Esse tolo irritou-me certo dia mais do que de costume;
levantei a mo para lhe bater; desgraadamente, segurava um estilete que lhe
vazou o olho direito. Jamais esquecerei o urro de dor, o brao desajeitadamente
dobrado para aparar o golpe, a face crispada de onde corria sangue. Mandei
imediatamente procurar Hermgenes, que lhe prestou os primeiros socorros; o
oculista Capito foi consultado em seguida. Tudo em vo; o olho estava perdido.
Alguns dias mais tarde, o homem voltou ao trabalho; usava uma venda sobre o
olho. Mandei cham-lo; pedi-lhe humildemente que fixasse a compensao que
lhe era devida. Com um sorriso mau, respondeu-me que me pedia outro olho
direito. Mas acabou por aceitar uma penso. Conservei-o a meu servio; sua
presena serve-me de advertncia, talvez de castigo. No quis cegar esse
miservel. Tampouco quis que o menino que me amava morresse aos vinte anos!
A questo judaica ia de mal a pior. Em Jerusalm, as obras concluam-se, apesar
da oposio violenta dos agrupamentos zelotes. Certo nmero de erros foram
cometidos, reparveis em si mesmos, mas de que os promotores de distrbios
souberam aproveitar-se imediatamente. A Dcima Legio Expedicionria tem
por emblema um javali; a insgnia foi colocada, como costume, nos portes da
cidade; a populao, pouco habituada a simulacros pintados ou esculpidos, de que
tem sido privada h sculos por uma superstio bastante prejudicial ao
progresso das artes, tomou a imagem pela de um porco, e viu no fato sem maior
importncia um insulto aos costumes de Israel. As festas do ano-novo judeu,
celebradas com grande reforo de trombetas e chifres de carneiro, provocavam
a cada ano rixas sangrentas; nossas autoridades proibiram a leitura pblica de
determinada narrativa lendria, consagrada s proezas de uma herona judia que,
sob um nome falso, se teria tornado a concubina de um rei persa, e teria
mandado massacrar selvagemente os inimigos do povo desprezado e perseguido
a que ela pertencia. Os rabinos conseguiram ler durante a noite aquilo que o
governador Tineu Rufo lhes proibira ler durante o dia; aquela histria cruel, em
que persas e judeus rivalizavam em atrocidades, excitava at a loucura o furor
nacionalista dos zelotes. Por fim, o mesmo Tineu Rufo, homem alis judicioso, e
que no deixava de se interessar pelas fbulas e tradies de Israel, decidiu
estender tambm circunciso, prtica judaica, as severas penalidades da lei
que eu promulgara recentemente contra a castrao, e que visava sobretudo as
sevcias perpetradas em jovens escravos com fins lucrativos ou simplesmente de
devassido. Ele esperava obliterar assim um dos sinais pelos quais Israel pretende
distinguir-se do resto do gnero humano. Entretanto, quando recebi a
comunicao, a medida pareceu-me pouco perigosa, pois muitos judeus
esclarecidos e ricos que se encontram em Alexandria e em Roma haviam
cessado de submeter os filhos a uma prtica que os torna ridculos nos banhos
pblicos e nos ginsios, procurando eles prprios dissimular seus estigmas.
Ignorava a que ponto esses banqueiros, colecionadores de vasos de mirra,
diferiam do verdadeiro Israel. J disse: nada de tudo isso era irreparvel, mas
no sucedia o mesmo com o dio, o desprezo recproco e o rancor. Em princpio,
o judasmo tem seu lugar entre as religies do imprio; de fato, Israel recusa-se,
h sculos, a ser apenas um povo entre os povos, possuindo um deus entre os
deuses. Os dcios, mesmo os mais selvagens, no ignoram que seu Zalmxis se
chama Jpiter em Roma; o Baal pnico do monte Cssio identificado sem
dificuldade com o Pai que tem na mo a Vitria e do qual nasceu a Sabedoria; os
egpcios, alis to orgulhosos das suas fbulas dez vezes seculares, concordam
em ver em Osris um Baco sobrecarregado com atributos fnebres; o violento
Mitra sabe-se irmo de Apoio. Nenhum povo, salvo Israel, tem a arrogncia de
encerrar toda a verdade nos limites estreitos de uma nica concepo divina,
insultando assim a multiplicidade do Deus que tudo contm; nenhum outro deus
inspirou a seus adoradores o desprezo e o dio por aqueles que rezam em altares
diferentes. Era mais uma razo para que eu desejasse fazer de Jerusalm uma
cidade como as outras, onde muitas raas e muitos cultos poderiam coexistir em
paz; esquecia-me completamente de que, em todo combate entre o fanatismo e o
senso comum, este ltimo raramente o vencedor. A abertura de escolas onde se
ensinavam as letras gregas escandalizou o clero da velha cidade; o rabino Joshua,
homem agradvel e instrudo, com quem eu conversara muito em Atenas, mas
que se esforava para que seu povo lhe perdoasse a cultura estrangeira e as
relaes conosco, ordenou a seus discpulos que no se aplicassem queles
estudos profanos, a no ser que encontrassem um modo de lhes consagrar uma
hora que no pertencesse nem ao dia nem noite, j que a lei judaica deve ser
estudada noite e dia. Ismael, membro importante do Sindrio, e que passava por
ter aderido causa de Roma, preferiu deixar morrer o sobrinho Ben Dama a
aceitar os servios do cirurgio grego que Tineu Rufo lhe havia enviado.
Enquanto em Tbure ainda procurvamos encontrar meios de conciliar os
espritos sem parecer ceder s exigncias dos fanticos, o pior dominou no
Oriente; uma ao inesperada dos zelotes triunfou em Jerusalm.

Um aventureiro sado da escria do povo, um tal Simo, que se fazia chamar Bar
Kochba, o Filho da Estrela, representou nessa revoluo o papel de archote
embebido em betume, ou de espelho ardente. S posso julgar esse Simo pelo
que ouvi dizer; s o vi uma nica vez face a face, no dia em que um centurio
me trouxe sua cabea cortada. Mas estou disposto a reconhecer-lhe a parcela de
gnio que sempre necessria para que algum possa subir to depressa e to
alto nos negcios humanos; ningum se impe assim sem possuir, pelo menos,
alguma habilidade, mesmo grosseira. Os judeus moderados foram os primeiros a
acusar de fraude e impostura o pretenso Filho da Estrela; por mim, julgo que esse
esprito inculto era daqueles que acabam por acreditar em suas prprias
mentiras, e que, nele, o fanatismo igualava a velhacaria. Simo fez-se passar
pelo heri com quem o povo judeu conta h sculos para saciar suas ambies e
seus dios; o demagogo proclamou-se messias e rei de Israel. O antigo Akiba,
cuja cabea no andava bem, passeou pelas ruas de Jerusalm puxando o cavalo
do aventureiro pelas rdeas; o sumo sacerdote Eleazar reconsagrou o templo,
considerado profanado por alguns visitantes no circuncisos que ali entraram.
Montes de armas enterradas h quase vinte anos foram distribudas aos rebeldes
pelos agentes do Filho da Estrela; aconteceu o mesmo com peas defeituosas,
fabricadas h anos nos nossos arsenais com esse intuito, por operrios judeus, e
que nossa intendncia recusara. Grupos zelotes atacaram as guarnies romanas
isoladas e massacraram nossos soldados com requintes de furor que reavivaram
as piores recordaes da revolta judaica no tempo de Trajano; Jerusalm caiu
por fim nas mos dos insurrectos, e os bairros novos de lia Capitolina arderam
como uma s tocha. Os primeiros destacamentos da Vigsima Segunda Legio
Dejotariana, enviada do Egito a toda a pressa sob as ordens do legado da Sria,
Pblio Marcelo, foram derrotados por faces dez vezes superiores em nmero.
A revolta transformara-se em guerra, e guerra irremedivel.
Duas legies, a Dcima Segunda Fulminante e a Sexta Legio, a Legio de Ferro,
reforaram imediatamente os efetivos j aquartelados na Judia; alguns meses
mais tarde, Jlio Severo, que recentemente pacificava as regies montanhosas do
norte da Bretanha, tomou a direo das operaes militares; levava consigo
pequenos contingentes de auxiliares britnicos acostumados a combater em
terreno difcil. Nossas tropas, com equipamento pesado, nossos oficiais
habituados formao em quadrado ou em falange das batalhas campais,
tiveram dificuldade em se adaptar quela guerra de escaramuas e surpresas,
que mantinha em campo aberto tcnicas de rebelio. Simo, grande homem
sua maneira, dividira seus guerrilheiros em centenas de esquadras postadas nas
cristas das montanhas, emboscadas no fundo de cavernas e de caminhos
abandonados, escondidas em casas dos habitantes dos bairros mais populosos das
cidades; Severo compreendeu logo que o inimigo inacessvel podia ser
exterminado, mas no vencido; resignou-se a uma guerra de desgaste. Os
camponeses, fanatizados ou aterrorizados por Simo, fizeram, desde o incio,
causa comum com os zelotes: cada rochedo transformou-se num bastio; cada
vinhedo, numa trincheira; cada fazenda foi reduzida fome ou tomada de
assalto. Jerusalm s foi recapturada no decorrer do terceiro ano, quando os
ltimos esforos para as negociaes foram considerados inteis; o pouco que o
incndio de Tito poupara da cidade judaica foi destrudo. Severo disps-se,
durante muito tempo, a fechar os olhos flagrante cumplicidade das outras
grandes cidades; estas, tornadas as ltimas fortalezas do inimigo, foram mais
tarde atacadas e reconquistadas por sua vez, rua por rua, runa por runa. Nesses
tempos de provao, meu lugar era no acampamento das tropas e na Judia.
Tinha confiana absoluta nos meus dois lugares tenentes; mais uma razo para
que fosse at l partilhar a responsabilidade de decises que, de qualquer
maneira, se anunciavam atrozes. No fim do segundo vero de campanha, fiz,
com amargura, meus preparativos de viagem. Eufrion empacotou uma vez
mais o estojo dos meus objetos pessoais, um pouco deformado pelo uso,
executado havia muito tempo por um artfice de Esmirna, a caixa de livros e
mapas, a estatueta de marfim do gnio imperial, e sua lmpada de prata.
Desembarquei em Sdon no comeo do outono.

O exrcito meu mais antigo ofcio; nunca regressei a ele sem me sentir pago de
certos constrangimentos por outras tantas compensaes interiores; no lamento
haver passado os dois ltimos anos ativos da minha existncia partilhando com as
legies a aspereza e a desolao da campanha da Palestina. Voltei a ser o
homem vestido de couro e ferro, colocando de lado tudo o que no fosse o
imediato, sustentado pela simples rotina de uma vida dura, um pouco mais lento
do que outrora ao montar e ao descer do cavalo, um pouco mais taciturno, talvez
mais desconfiado, cercado como sempre pelas tropas, de um devotamento (s os
deuses sabem por qu) ao mesmo tempo fraterno e idolatra. Durante essa ltima
temporada no exrcito, tive um encontro inestimvel: tomei como ajudante de
campo um jovem tribuno chamado Cler, a quem me liguei estreitamente. Tu o
conheces; nunca mais me deixou. Admirava o belo rosto de Minerva sob o
capacete, mas os sentidos tiveram, em suma, uma parte to pequena nessa
afeio, que podem continuar assim enquanto eu estiver vivo. Recomendo-te
Cler: tem todas as qualidades que se podem desejar num oficial colocado em
segunda categoria; suas prprias virtudes o impediro sempre de se guindar
primeira. Encontrei uma vez mais, em circunstncias um pouco diferentes
daquelas to recentes ainda, um desses seres cujo destino dedicar-se, amar e
servir. Desde que o conheo, Cler no teve sequer um pensamento que no
fosse relacionado com meu bem-estar ou minha segurana; apio-me ainda
sobre esse ombro forte.

Na primavera do terceiro ano de campanha, o exrcito sitiou a cidade de Bethar,


ninho de guia onde Simo e seus sequazes resistiram durante quase um ano
lenta tortura da fome, da sede e do desespero, e onde o Filho da Estrela viu
morrerem, um a um, seus fiis, sem concordar em render-se. Nosso exrcito
sofria quase tanto quanto os rebeldes. Estes, ao retirarem-se, haviam queimado
os pomares, devastado os campos, degolado o rebanho e poludo os poos,
atirando neles nossos mortos. Esses mtodos de selvageria eram horrveis,
aplicados naquela terra naturalmente rida, corroda at os ossos por longos
sculos de loucuras e furores. O vero foi quente e doentio; a febre e a disenteria
dizimaram nossas tropas; uma disciplina admirvel continuava, porm, a reinar
nas legies, foradas ao mesmo tempo inao e ao estado de alerta; o exrcito
atormentado e doente era mantido por uma espcie de raiva silenciosa que se
transmitia a mim. Meu corpo j no suportava to bem como antigamente as
fadigas de uma campanha, os dias trridos, as noites sufocantes ou geladas, o
vento duro e a poeira spera: acontecia-me deixar na marmita o toucinho e as
lentilhas ordinariamente cozidas no acampamento; ficava com fome. Atacou-me
uma tosse feia que se prolongou por todo o vero, e eu no era o nico. Em
minha correspondncia com o Senado, suprimi a frmula que figura
obrigatoriamente no alto dos comunicados oficiais: O imperador e o exrcito
esto bem. O imperador e o exrcito estavam, ao contrrio, perigosamente
cansados. noite, aps a ltima conversao com Severo, a ltima audincia de
desertores, o ltimo correio de Roma, a ltima mensagem de Pblio Marcelo,
encarregado de limpar os arredores de Jerusalm, ou de Rufo, ocupado em
reorganizar Gaza, Eufrion media parcimoniosamente a gua do meu banho
numa cuba de tecido alcatroado; eu me deitava sobre o leito e tentava pensar.

No o nego: a guerra da Judia foi um dos meus fracassos. Os crimes de Simo e


a loucura de Akiba no eram obra minha, mas acusava-me de ter sido cego em
Jerusalm, distrado em Alexandria, impaciente em Roma. No soubera
encontrar as palavras que teriam prevenido ou pelo menos retardado o acesso de
furor do povo; no soubera ser ao mesmo tempo bastante brando ou bastante
firme. No tnhamos, sem dvida, razo para estarmos inquietos, menos ainda
desesperados; a decepo e o erro de clculo no incidiam apenas sobre nossas
relaes com Israel: por toda parte, alis, colhamos naqueles tempos de crise o
fruto de dezesseis anos de generosidade no Oriente. Simo acreditara poder
apostar numa revolta do mundo rabe idntica quela que marcara os ltimos
anos sombrios do reinado de Trajano; mais ainda, ousara contar com a ajuda dos
partos. Enganou-se, e esse erro de clculo causava sua morte lenta na cidade
sitiada de Bethar; as tribos rabes no se mantinham solidrias com as
comunidades judaicas; os partos permaneciam fiis aos tratados. As prprias
sinagogas das grandes cidades srias se mostravam indecisas ou tbias; as mais
fervorosas se contentavam em enviar secretamente algum dinheiro aos zelotes; a
populao judaica de Alexandria, apesar de muito turbulenta, mantinha-se
calma; o abscesso judeu estava localizado na rida regio que se estende entre o
Jordo e o mar; podia-se sem perigo cauterizar ou amputar esse dedo doente.
Contudo, num certo sentido, os maus dias que haviam precedido imediatamente
meu reinado pareciam recomear. Quieto outrora incendiara Cirene, executara
os notveis da Laodicia, retomara dessa em runas O correio da noite
acabava de me informar que nos havamos restabelecido sobre o monte de
pedras desmoronadas que eu chamava lia Capitolina, e a que os judeus
chamavam ainda Jerusalm; tnhamos incendiado scalon; fora foroso
executar em massa os rebeldes de Gaza Se dezesseis anos de reinado de um
prncipe apaixonadamente pacifista haviam resultado na campanha da Palestina,
as probabilidades de paz no mundo evidenciavam-se medocres no futuro.

Soerguia-me apoiado no cotovelo, mal acomodado sobre meu estreito leito de


campanha. Por certo, pelo menos alguns judeus haviam escapado
contaminao zelote: mesmo em Jerusalm, fariseus escarravam passagem de
Akiba e chamavam de velho louco esse fantico, que lanava ao vento as slidas
vantagens da paz romana, gritando-lhe que o capim lhe cresceria na boca antes
que se visse sobre a terra a vitria de Israel. Mas eu preferia ainda os falsos
profetas a esses homens da ordem que nos desprezavam, contando conosco para
proteger das exaes de Simo seu ouro depositado nos bancos srios e suas
propriedades na Galilia. Pensava nos desertores que, algumas horas antes, se
haviam sentado sob aquela tenda, humildes, conciliantes, servis, mas arranjando
sempre uma maneira de virar as costas imagem do meu gnio. Nosso melhor
agente, Elias ben Abay ad, que desempenhava a favor de Roma o papel de
informante e espio, era justamente desprezado nos dois campos; tratava-se,
porm, do homem mais inteligente do grupo, esprito liberal, corao doente,
torturado entre o amor por seu povo e seu gosto pelas nossas letras e por ns;
alis, no fundo, ele tambm s pensava em Israel. Josu ben Kisma, que pregava
a pacificao, no passava de um Akiba mais tmido ou mais hipcrita; mesmo
no rabino Joshua, que foi por muito tempo meu conselheiro nos negcios
judaicos, eu tinha percebido, sob a complacncia e o desejo de agradar, as
diferenas irreconciliveis, o ponto onde dois pensamentos de espcies opostas s
se encontram para se combater. Nossos territrios se estendiam por centenas de
lguas, milhares de estdios alm do seco horizonte de colinas, mas o rochedo de
Bethar era nossa fronteira; podamos destruir as muralhas macias da cidadela
onde Simo consumava freneticamente seu suicdio; no podamos, porm,
impedir aquela raa de nos dizer no.

Um mosquito zunia; Eufrion, que envelhecia, descuidara-se de fechar


rigorosamente os delicados cortinados de gaze; livros e mapas espalhados pelo
cho estalavam, agitados pelo vento baixo que penetrava sob a parede de pano.
Sentado no leito, enfiava meus coturnos e procurava, s apalpadelas, minha
tnica, meu cinturo e minha adaga; s ento saa para respirar o ar da noite.
Percorria as grandes ruas regulares do acampamento, desertas quela hora
tardia, iluminadas como as das cidades; sentinelas saudavam-me solenemente ao
passar; caminhando ao longo do alojamento que servia de hospital, respirava o
odor nauseante dos doentes de disenteria. Caminhava em direo barreira de
terra que nos separava do precipcio e do inimigo. Uma sentinela percorria a
passos regulares o caminho da ronda, perigosamente delineado sob a claridade
da lua. Reconhecia naquele vaivm o movimento de uma das engrenagens da
imensa mquina de que eu era o eixo; comovia-me por um momento o
espetculo desse vulto solitrio, dessa flama breve ardendo no peito de um
homem no centro de um mundo em perigo. Uma flecha assobiava no ar, apenas
um pouco mais importuna que o mosquito que me incomodara na minha tenda.
Parado, apoiava os braos sobre os sacos de areia da muralha de proteo.

Atribuem-me, h alguns anos, estranhas clarividncias, segredos sublimes.


Enganam-se. Nada sei. Mas verdade que, durante as noites de Bethar, vi diante
dos meus olhos passarem inquietantes fantasmas. As perspectivas que, do alto
dessas colinas desnudas, se abriam para o esprito eram menos majestosas que as
do Janculo, menos douradas que as do Snion; eram o inverso e o nadir daquelas.
Dizia a mim mesmo que era totalmente vo esperar, para Roma e para Atenas, a
eternidade que no concedida nem aos homens, nem s coisas, e que os mais
sbios dentre ns negam aos prprios deuses. As formas sbias e complicadas da
vida, as civilizaes perfeitamente vontade nos seus requintes de arte e
felicidade, essas liberdades do esprito que se informa e julga, dependiam de
probabilidades inumerveis e raras, de condies quase impossveis de reunir e
que no devamos esperar que durassem. Destruiramos Simo; Arriano saberia
proteger a Armnia das invases lanas. Mas outras hordas viriam, outros falsos
profetas. Nossos frgeis esforos por melhorar a condio humana seriam
apenas distraidamente continuados pelos nossos sucessores; pelo contrrio, a
semente do erro e da runa contida no prprio bem cresceria monstruosamente
ao longo dos sculos. O mundo, cansado de ns, procuraria outros senhores; o que
parecera sbio pareceria inspido, e abominvel o que nos tinha parecido belo.
Como o iniciado mitraco, a raa humana tem talvez necessidade do banho de
sangue e da passagem peridica pelos poos fnebres. Via o retorno dos cdigos
selvagens, dos deuses implacveis, do despotismo incontestado dos prncipes
brbaros e do mundo fragmentado em Estados inimigos, eternamente vtima da
insegurana. Outras sentinelas ameaadas pelas flechas iriam e viriam na ronda
das cidadelas futuras; o jogo estpido, obsceno e cruel continuaria, e a espcie,
ao envelhecer, acrescentar-lhe-ia novos requintes de horror. Nossa poca, cujas
deficincias e taras conheo melhor que ningum, seria talvez um dia
considerada, por contraste, como uma das idades de ouro da humanidade.

Natura dficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit. A natureza nos trai, a sorte
muda, um deus v do alto todas as coisas. Atormentava com o dedo o engaste de
um anel no qual, num dia de amargura, mandei gravar essas palavras tristes; ia
mais longe no desengano, talvez na blasfmia; acabava por achar natural, se no
justo, que devssemos perecer. Nossas letras esgotam-se; nossas artes
adormecem; Pancrates no Homero; Arriano no Xenofonte; quando tentei
imortalizar na pedra a forma de Antnoo, no encontrei Praxteles. Depois de
Aristteles e Arquimedes, nossas cincias estacionaram; nossos progressos
tcnicos no resistiriam ao desgaste de uma guerra prolongada; nossos prprios
goza-dores desgostam-se da felicidade. O abrandamento dos costumes, o avano
das idias no decorrer do ltimo sculo so obra de uma minoria de bons
espritos; a massa continua ignara, feroz quando pode, em todo caso egosta e
limitada, e h razes para apostar que permanecer sempre assim. Excesso de
procuradores e de publicanos vidos, excesso de senadores desconfiados, excesso
de centuries brutais comprometeram antecipadamente nossa obra. Nem aos
imprios nem aos homens ser dado o tempo necessrio para que aprendam
custa de seus prprios erros. Onde quer que um tecelo remende seu pano, onde
quer que o artista retoque sua obra-prima ainda imperfeita ou apenas danificada,
a natureza prefere repartir sem intermedirios a argila e o caos, e esse mesmo
esbanjamento o que denominamos a ordem das coisas.

Erguia a cabea; movimentava-me para me desentorpecer. No alto da cidadela


de Simo, vagos clares avermelhavam o cu: manifestaes inexplicveis da
vida noturna do inimigo. O vento soprava do Egito; um turbilho de poeira passou
como um espectro; os perfis achatados das colinas lembravam-me a cadeia
rabe sob a lua. Eu voltava para dentro lentamente, cobrindo a boca com a ponta
da minha capa, irritado contra mim mesmo por ter consagrado a meditaes
vazias sobre o futuro uma noite que teria podido empregar para preparar a
jornada seguinte, ou simplesmente para dormir. O desmoronamento de Roma, se
algum dia se produzisse, caberia a meus sucessores; naquele ano 887 da Era
Romana, minha misso consistia em sufocar a rebelio na Judia e reconduzir do
Oriente, sem perdas demasiadas, um exrcito doente. Ao atravessar a esplanada,
escorregava por vezes no sangue de um rebelde executado na vspera. Deitava-
me ainda vestido sobre o leito; duas horas mais tarde, era acordado pelos clarins
da alvorada.
Durante toda a minha vida mantive bom entendimento com meu corpo; contei
implicitamente com sua docilidade, com sua fora. Essa estreita aliana
comeava a dissolver-se; meu corpo j no se identificava com minha vontade,
com meu esprito e com aquilo que forosamente, inabilmente, devo chamar
minha alma. O companheiro inteligente de outros dias j no passava de um
escravo que executa de m vontade sua tarefa. Meu corpo temia-me; sentia
continuamente no peito a presena obscura do medo, uma opresso que no era
ainda a dor, mas o primeiro passo em sua direo. Havia adquirido, de longa
data, o hbito da insnia, mas o sono agora era pior do que sua ausncia; mal
adormecia, tinha horrveis pesadelos que me despertavam. Era sujeito a dores de
cabea que Hermgenes atribua ao calor do clima e ao peso do capacete;
noite, depois de extremo cansao, sentava-me como se casse. Levantar-me para
receber Rufo ou Severo era um esforo para o qual me preparava muito tempo
antes; os cotovelos pesavam sobre os braos da cadeira; as coxas tremiam como
as de um corredor estafado. O menor gesto transformava-se em cansao, e
desses cansaos era feita a vida.

Um acidente quase ridculo, uma indisposio infantil, revelou a doena que se


escondia sob a fadiga atroz. Durante uma sesso do estado-maior, verti sangue
pelo nariz, coisa com a qual me preocupei muito pouco no incio. O sangra-
mento persistiu durante a refeio da tarde; acordei no correr d noite ensopado
de sangue. Chamei Cler, que dormia sob a tenda vizinha; ele, por sua vez,
alertou Hermgenes, mas o horrvel fluxo morno continuou. As mos cuidadosas
do jovem oficial enxugavam o lquido que me cobria todo o rosto; ao amanhecer,
tive vmitos, como sucede em Roma aos condenados morte que abrem as
veias no banho. Aqueceram o melhor que puderam, com a ajuda de cobertores e
efuses quentes, este corpo que gelava. Para estancar o fluxo de sangue,
Hermgenes prescreveu a neve; no havia neve no acampamento; custa de mil
dificuldades, Cler conseguiu faz-la vir dos pncaros de Hermon. Soube mais
tarde que em certo momento desesperaram de salvar-me; eu prprio s me
sentia ligado vida pelo mais delgado dos fios, to imperceptvel quanto o pulso,
demasiado rpido, que consternava meu mdico. Todavia, a inexplicvel
hemorragia cessou; levantei-me e tentei viver como de costume. No consegui.
Uma noite em que, mal refeito, tentei imprudentemente dar um breve passeio a
cavalo, tive uma segunda advertncia, ainda mais sria que a primeira. No
espao de um segundo, senti as batidas do meu corao precipitarem-se, depois
espaarem-se, interromperem-se, cessarem; julguei cair como uma pedra
dentro de no sei que poo negro, que sem dvida a morte. Se era realmente
ela, enganam-se aqueles que a pretendem silenciosa: era levado por cataratas,
ensurdecido como um mergulhador pelo estrondo das guas. Contudo, no atingi
o fundo; voltei superfcie. Sufocava. Toda a minha fora naquele momento, que
julguei o ltimo, concentrara-se em minha mo crispada no brao de Cler, de
p ao meu lado: mostrou-me mais tarde as marcas dos meus dedos no seu
ombro. Sucede com essa breve agonia o mesmo que com todas as experincias
do corpo: inexprimvel e, queira-se ou no, permanece segredo do homem que
a viveu. Atravessei depois crises semelhantes, jamais idnticas. Certamente, no
ser possvel suportar duas vezes esse terror e essa noite sem morrer.
Hermgenes acabou por diagnosticar um princpio de hidropsia do corao; foi
foroso submeter-me s determinaes que me eram impostas por esse mal,
transformado subitamente em meu senhor, consentir num longo perodo de
inao, e mesmo de repouso, limitar por algum tempo as perspectivas da minha
vida no enquadramento de um leito. Sentia uma espcie de vergonha dessa
doena toda interior, quase invisvel, sem febre, sem abscessos, sem dores nas
entranhas, que tem por sintomas uma respirao um pouco mais rouca e a
marca lvida deixada no p inchado pela correia da sandlia.

Um silncio desusado estabeleceu-se em torno de minha tenda; o acampamento


de Bethar parecia transformado, todo ele, num quarto de doente. O azeite
aromtico que ardia aos ps do meu gnio tornava ainda mais pesado o ar
confinado naquela gaiola de pano; o rudo de forja das minhas artrias fazia-me
pensar vagamente na ilha dos Tits ao cair da noite. Em outros momentos o rudo
insuportvel transformava-se no som de um galope sobre a terra fofa; este
esprito, to cuidadosamente mantido sob controle durante quase cinqenta anos,
evadia-se; este grande corpo flutuava deriva; aceitava ser o homem cansado
que conta distraidamente as estrelas e os losangos do seu cobertor; via na sombra
a mancha branca de um busto; do fundo de um abismo de mais de meio sculo,
subia uma cantilena em honra de pona, deusa dos cavalos, contada outrora em
voz baixa por minha ama espanhola, grande mulher taciturna que me parecia
uma das Parcas. Os dias, depois as noites, pareciam medidos pelas gotas escuras
que Hermgenes contava, uma a uma, numa taa de vidro.

noite, reunia as minhas foras para ouvir o relatrio de Rufo: a guerra


aproximava-se do fim; Akiba, que, desde o incio da hostilidade, se retirara
aparentemente dos negcios pblicos, dedicava-se ao ensino de direito rabnico
na pequena cidade de Usfa, na Galilia; essa sala de aula transformara-se no
centro da resistncia zelote; mensagens secretas eram decifradas e transmitidas
aos partidrios de Simo por mos nonagenrias; foi preciso mandar fora,
para suas casas, os estudantes fanatizados que cercavam o velho. Aps longa
hesitao, Rufo decidiu proibir como insidioso o estudo da lei judaica; alguns dias
mais tarde, Akiba, que transgredira o decreto, foi preso e condenado morte.
Outros nove doutores da lei, a alma do partido zelote, morreram com ele.
Aprovei todas essas medidas com um sinal de cabea. Akiba e seus fiis
morreram, persuadidos at o fim de que eram os nicos inocentes, os nicos
justos; nenhum deles sequer pensou em aceitar sua parte de responsabilidade nas
desgraas que oprimiam seu povo. Seriam dignos de inveja, se fosse possvel
invejar os cegos. No recuso a esses dez exaltados o ttulo de heris; em todo
caso, no eram sbios.
Trs meses mais tarde, por uma fria manh de fevereiro, sentado no alto de uma
colina, encostado ao tronco de uma figueira desguarnecida de folhas, assisti ao
assalto que precedeu de algumas horas a capitulao de Bethar; vi sarem, um a
um, os ltimos defensores da fortaleza, lvidos, descarnados, horrendos,
conquanto belos, como tudo o que indomvel. No fim do mesmo ms, fiz-me
transportar ao lugar chamado Poo de Abrao, onde os rebeldes, encontrados
com armas na mo nos aglomerados urbanos, foram reunidos e vendidos em
leilo; crianas insolentes, j ferozes, deformadas por convices implacveis,
vangloriavam-se em voz alta de terem causado a morte de dezenas de
legionrios; velhos encerrados num sonho de sonmbulo, matronas de carnes
moles, e outras solenes e taciturnas, como a Grande Me dos cultos do Oriente,
desfilaram sob o olhar frio dos mercadores de escravos; essa multido passou na
minha frente como uma nuvem de poeira. Josu ben Kisma, chefe dos
chamados moderados, que lamentavelmente fracassara no papel de pacificador,
sucumbiu nessa mesma poca em conseqncia de uma longa enfermidade;
morreu proclamando seus votos pela guerra estrangeira e pela vitria dos partos
contra ns. Por outro lado, os judeus cristianizados, que no havamos
incomodado, e que conservavam seu dio pelo resto do povo hebreu por ter
perseguido seu profeta, viram em ns o instrumento da clera divina. A longa
srie de delrios e mal-entendidos continuava.

Uma inscrio colocada sobre o lugar onde existira Jerusalm proibia aos judeus,
sob pena de morte, instalarem-se de novo naquele amontoado de escombros;
reproduzia, palavra por palavra, a frase recm-inscrita no frontispcio do templo,
e que interdizia a entrada aos no-circuncisos. Um dia por ano, o nono do ms de
Ab, os judeus tm o direito de vir chorar diante de um muro em runa. Os mais
piedosos recusaram-se a deixar a terra natal; estabeleceram-se o melhor que
puderam nas regies menos devastadas pela guerra; os mais fanticos
emigraram para o territrio parto; outros foram para a Antiquia, Alexandria,
Prgamo; os mais finos dirigiram-se para Roma, onde prosperaram. A Judia foi
riscada do mapa e, por minha ordem, passou a chamar-se Palestina. Durante os
quatro anos de guerra, cinqenta fortalezas e mais de novecentas cidades e
aldeias foram saqueadas e aniquiladas; o inimigo perdeu perto de seiscentos mil
homens; os combates, as febres endmicas, as epidemias custaram-nos mais de
noventa mil. A restaurao do pas seguiu-se imediatamente aos estragos da
guerra; lia Capitolina foi reconstruda, alis, em escala mais modesta; sempre
preciso recomear.

Descansei algum tempo em Sdon, onde um mercador grego me emprestou sua


casa e seus jardins. Em maro, os ptios internos j estavam inteiramente
floridos de rosas. Eu recuperara as foras: encontrava at mesmo surpreendentes
recursos neste corpo, antes prostrado pela violncia da primeira crise. Nada
compreendemos da doena enquanto no reconhecemos sua estranha
semelhana com a guerra e o amor: seus compromissos, suas simulaes, suas
exigncias, esse bizarro e nico amlgama produzido pela mistura de um
temperamento e de um mal. Estava melhor, mas, para enganar meu corpo, para
impor-lhe minhas vontades, ou para ceder prudentemente s suas, empregava
tanta arte quanto outrora para ampliar e disciplinar meu universo, para construir
minha personalidade e embelezar minha vida. Recomecei, com moderao, os
exerccios de ginstica; meu mdico voltou a permitir que montasse a cavalo,
mas s como meio de transporte; renunciei aos perigosos exerccios eqestres de
antigamente. Durante qualquer trabalho, qualquer prazer, trabalho e prazer j
no eram o essencial; meu primeiro cuidado era realiz-los sem fadiga. Meus
amigos maravilhavam-se com esse restabelecimento, aparentemente to
completo; esforavam-se por acreditar que a doena se devera apenas aos
esforos excessivos despendidos naqueles anos de guerra, e que no voltaria a
manifestar-se. Eu a julgava diferentemente: pensava nos grandes pinheiros das
florestas da Bitnia, que o lenhador, ao passar, marca com um entalhe, para
voltar na estao seguinte e abat-los. No fim da primavera, embarquei para a
Itlia num navio de alto bordo da frota; levei comigo Cler, tornado
indispensvel, e Diotimo de Gadara, jovem grego de nascimento servil,
encontrado em Sdon, e que era belo. A rota do regresso atravessava o
arquiplago; contemplava, provavelmente pela ltima vez na vida, os saltos dos
golfinhos sobre a gua azul; passei a seguir, sem pensar em pressgios sobre o
futuro, o longo vo regular das aves migradoras, que s vezes, para descansar,
descem amigavelmente ao convs do navio; saboreava o odor de sal e sol na pele
humana, o perfume de lentisco e terebinto das ilhas onde desejaramos viver, e
onde sabemos antecipadamente que jamais nos deteremos. Diotimo recebeu a
perfeita instruo literria que se d geralmente, para lhes aumentar o valor, aos
jovens escravos dotados de graas corporais. Ao crepsculo, deitado na popa, sob
um toldo de prpura, ouvia-o ler para mim os poetas do seu pas, at que a noite
apagasse, igualmente, as linhas que descreviam a incerteza trgica da vida
humana e as que falam de pombas, guirlandas de rosas e lbios beijados. O mar
exalava um bafo mido; as estrelas subiam, uma a uma, para seu lugar fixo; o
navio, inclinado pelo vento, singrava em direo ao Ocidente, colorido ainda por
uma ltima faixa vermelha; atrs de ns estendia-se um sulco fosforescente, logo
recoberto pela massa negra das vagas. De mim para mim, dizia que apenas dois
assuntos importantes esperavam-me em Roma: um, a escolha do meu sucessor,
que interessava a todo o Imprio; o outro, minha prpria morte, que s dizia
respeito a mim mesmo.
Roma preparou em minha honra uma festa triunfal que acabei decidindo aceitar.
J no lutava contra esses costumes, ao mesmo tempo venerveis e vos; tudo o
que coloca em destaque o esforo do homem, ainda que s por um dia, parecia-
me salutar perante um mundo to pronto ao esquecimento. No se tratava
somente da represso rebelio judaica; num sentido mais profundo, e s
conhecido por mim, eu triunfara. Associei quelas honras o nome de Arriano.
Ele acabava de infligir s hordas brbaras uma srie de derrotas que as repelira,
por muito tempo, para o centro obscuro da sia, de onde haviam acreditado
poder sair. A Armnia estava salva: o leitor de Xenofonte revelava-se seu mulo;
no estava extinta a raa dos letrados que sabem, quando necessrio, comandar e
combater. Nessa noite, de volta minha casa de Tbure, foi com o corao
cansado, mas tranqilo, que tomei das mos de Diotimo o vinho e o incenso do
sacrifcio dirio ao meu gnio.

Como simples particular, comecei a comprar e a lig-los de ponta a ponta, com a


tenacidade paciente de um campons que aumenta suas vinhas, os terrenos que
se estendiam no sop dos montes Sabinos, beira da gua corrente. Entre duas
viagens imperiais, acampara naquelas pequenas florestas invadidas pelos
pedreiros e pelos arquitetos, e cujas rvores um jovem imbudo de todas as
supersties da sia suplicava piedosamente que fossem poupadas. No regresso
da minha grande viagem ao Oriente, entreguei-me a uma espcie de frenesi em
arrematar o imenso cenrio de uma pea, de que faltava apenas o quarto e
ltimo ato. Voltava ali desta vez para terminar meus dias o mais decentemente
possvel. Na Vila, tudo fora planificado para facilitar o trabalho, tanto quanto o
prazer: a chancelaria, as salas de audincias, o tribunal onde eu julgava em
ltima instncia os assuntos difceis, poupavam-me fatigantes idas e vindas entre
Tbure e Roma. Dei a cada um desses edifcios nomes que evocavam a Grcia: o
Pcile, a Academia, o Pritaneu. Bem sabia que esse pequeno vale plantado de
oliveiras no era o do Tempe, mas chegara idade em que cada lugar belo
lembra outro mais belo ainda, em que cada prazer se agrava pela lembrana dos
prazeres passados. Aceitava entregar-me a essa nostalgia que a melancolia do
desejo. Cheguei mesmo a dar a um canto particularmente sombrio do parque o
nome de Estige; a um prado semeado de anmonas chamei Campos Elsios,
preparando-me assim para aquele outro mundo, cujos tormentos se assemelham
aos nossos, mas cujas alegrias nebulosas no valem as nossas alegrias. Sobretudo,
mandei construir para mim, bem no corao desse retiro, um outro mais
afastado ainda, uma ilhota de mrmore no centro de um lago rodeado de
colunatas, um quarto secreto com uma ponte giratria, to leve que posso faz-la
rodar no seu encaixe com um toque da mo. Essa ponte liga o quarto margem,
ou antes, separa-o dela. Para esse pavilho mandei transportar duas ou trs
esttuas preferidas e o pequeno busto de Augusto menino, que Suetnio me
ofereceu no tempo em que fomos amigos. Era a esse refgio que me dirigia
hora da sesta para dormir, sonhar, ler. Meu co, deitado de travs no limiar da
porta, estendia diante de si as patas; um reflexo brincava sobre o mrmore;
Diotimo, para refrescar-se, apoiava a face na superfcie lisa da bacia da fonte.
Eu pensava no meu sucessor.

No tenho filhos, e no o lamento. Por certo, nos momentos de lassido e


fraqueza quando renegamos a ns prprios, acusei-me s vezes de no ter
procriado um filho que seria minha continuao. Mas esse pesar to vo baseia-
se em duas hipteses igualmente duvidosas: a de que um filho seria
necessariamente nosso prolongamento, e a de que essa estranha combinao do
bem e do mal, esse conjunto de particularidades nfimas e bizarras que constitui
uma pessoa, mereceria ser prolongado. Utilizei o melhor que pude minhas
virtudes; tirei partido dos meus vcios; no alimento, porm, especial empenho
em legar-me a algum. No , alis, pelo sangue que se estabelece a verdadeira
continuidade humana: Csar o herdeiro direto de Alexandre, e no o dbil filho
nascido de uma princesa persa numa cidadela da sia; e Epaminondas,
morrendo sem posteridade, orgulhava-se, com justa razo, de ter por filhos suas
vitrias. A maior parte dos homens que tomaram parte importante na histria
tm rebentos medocres, ou piores do que isso: parecem esgotar em si os dotes de
uma raa. A ternura do pai est quase sempre em conflito com os interesses do
chefe. E ainda que assim no fosse, esse filho de imperador seria alm disso
obrigado a sofrer as desvantagens de uma educao principesca, a pior de todas
para um futuro prncipe. Felizmente, na medida em que nosso Estado soube
instituir uma regra de sucesso imperial, a adoo essa regra: reconheo a a
sabedoria de Roma. Conheo os perigos da escolha e seus possveis erros; no
ignoro que a cegueira no exclusiva da afeio paterna; mas essa deciso a que
a inteligncia preside, ou da qual pelo menos toma parte, me parecer sempre
infinitamente superior aos obscuros desgnios do acaso e da grosseira natureza. O
imprio para o mais digno: belo que um homem, que deu provas da sua
competncia na administrao dos negcios do mundo, escolha seu substituto, e
que essa deciso de to pesadas conseqncias seja, ao mesmo tempo, seu
verdadeiro privilgio e seu ltimo servio prestado ao Estado. Contudo, essa
escolha to importante parecia-me, mais do que nunca, difcil.

Censurei amargamente Trajano por haver tergiversado durante vinte anos antes
de tomar a resoluo de me adotar, e de s t-lo feito no leito de morte. Mas
haviam decorrido quase dezoito anos desde minha ascenso como imperador, e,
a despeito dos riscos de uma vida aventurosa, tinha, por minha vez, adiado para
mais tarde a escolha do meu sucessor. Mil rumores haviam corrido, quase todos
falsos; mil hipteses foram levantadas; mas o que era considerado meu segredo
no era mais que hesitao e dvida. Olhava minha volta: os funcionrios
honestos abundavam; nenhum, porm, dispunha da envergadura necessria.
Quarenta anos de integridade postulavam a favor de Mrcio Turbo, querido
companheiro de outrora, incomparvel prefeito do pretrio; mas tinha a minha
idade; era muito velho. Jlio Severo, excelente general, bom administrador da
Bretanha, compreendia pouca coisa dos complexos negcios do Oriente; Arriano
dera provas de todas as qualidades que se exigem de um homem de Estado, mas
era grego; e no era chegado o tempo de impor um imperador grego aos
preconceitos de Roma.

Serviano vivia ainda: essa longevidade representava, da sua parte, o efeito de um


longo clculo, de uma forma obstinada de espera. Esperava havia sessenta anos.
No tempo de Nerva, a adoo de Trajano o encorajara e desiludira ao mesmo
tempo; esperava coisa melhor; mas a subida ao poder desse primo
constantemente ocupado com o exrcito parecia, pelo menos, assegurar-lhe um
lugar considervel no Estado, o segundo, talvez: nisso tambm ele se enganava:
no obteve mais que uma parcela demasiado insignificante de honras. Na poca
em que encarregou seus escravos de me atacarem no desvio de uma floresta de
alamos, s margens do rio Mosela, ele esperava ainda. O duelo de morte, travado
naquela manh entre o homem jovem e o qinquagenrio, continuara durante
vinte anos; irritara contra mim o esprito do senhor, exagerara minhas
extravagncias, tirara proveito dos meus menores erros. Semelhante inimigo
excelente professor de prudncia: em suma, Serviano ensinara-me bastante.
Depois da minha ascenso ao poder, mostrou suficiente sagacidade para parecer
aceitar o inevitvel; lavou as mos no que dizia respeito conspirao dos quatro
consulares; eu preferi no notar as manchas nos seus dedos, ainda sujos. Por sua
vez, contentou-se em protestar em voz baixa e em se escandalizar apenas em
segredo. Mantido no Senado pelo pequeno e poderoso partido dos conservadores
inamovveis, que minhas reformas incomodavam, instalara-se confortavelmente
no papel de crtico silencioso do reinado. Pouco a pouco, afastara-me de minha
irm Paulina. E s tivera dela uma filha, casada com um certo Salinator, homem
bem-nascido, que elevei dignidade consular, mas que a tsica arrebatou ainda
jovem. Minha sobrinha sobreviveu-lhe pouco tempo; seu nico filho, Fusco, foi
instrudo contra mim por seu pernicioso av. Mas o rancor entre ns conservava
as aparncias: eu no lhe regateava sua parte nas funes pblicas, evitando,
porm, figurar a seu lado nas cerimnias em que sua idade avanada lhe teria
dado precedncia sobre o imperador. A cada regresso a Roma, eu aceitava, por
decncia, assistir a uma daquelas refeies de famlia nas quais nos mantemos
sempre em guarda; trocvamos cartas; as suas no eram desprovidas de esprito.
Porm, com o tempo, desgostei-me dessa inspida impostura; a possibilidade de
atirar fora todas as mscaras uma das raras vantagens que o envelhecimento
me d; recusei-me a assistir aos funerais de Paulina. No acampamento de
Bethar, nas piores horas de misria corporal e desencorajamento, a suprema
amargura foi dizer a mim mesmo que Serviano atingiria sua meta, e por minha
culpa; o octogenrio, to parcimonioso das suas foras, se arranjaria para
sobreviver a um doente de cinqenta e sete anos; se eu morresse intestado, ele
saberia obter, ao mesmo tempo, os sufrgios dos descontentes e a aprovao dos
que acreditariam permanecer fiis a mim, elegendo meu cunhado; aproveitar-
se-ia do tnue parentesco para solapar minha obra. Para me acalmar, dizia a
mim mesmo que o imprio poderia encontrar piores senhores; Serviano, em
suma, no era destitudo de virtudes; o prprio Fusco, estpido como era, seria
talvez um dia digno de reinar. No entanto, toda a energia que me restava
recusava-se a aceitar semelhante mentira, e eu desejava viver para esmagar
essa vbora.

Em meu regresso a Roma, reencontrei Lcio. Em outros dias, havia assumido


para com ele certos compromissos que, de ordinrio, as pessoas no se
preocupam em manter, mas eu mantivera. No verdade, porm, que lhe
tivesse prometido a prpura imperial; essas coisas no se fazem. Durante
aproximadamente quinze anos, tinha pago suas dvidas, abafara seus escndalos,
respondera prontamente s suas cartas, deliciosas, alis, e que terminavam
sempre por pedidos de dinheiro para ele prprio ou de adiantamentos para seus
protegidos. Estava demasiado associado minha vida para que pudesse exclu-lo
dela, se assim tivesse querido; mas nunca pretendi faz-lo. Sua conversa era
fascinante; o jovem, considerado frvolo, lera mais e melhor do que os homens
de letras cuja profisso era essa. Seu gosto era requintado em todas as coisas,
quer se tratasse de seres, de objetos, de costumes, ou da maneira mais correta de
enunciar um verso grego. No Senado onde o consideravam hbil, conquistara
reputao de orador: seus discursos, ao mesmo tempo claros e floreados, logo
estavam servindo de modelos para os professores de eloqncia. Nomeara-o
pretor, depois, cnsul: desempenhou essas funes a contento. Alguns anos antes,
eu arranjara seu casamento com a filha de Nigrino, um dos consulares
executados no incio do meu reinado; essa unio tornou-se smbolo da minha
poltica de apaziguamento. Foi apenas moderadamente feliz: a jovem esposa
lamentava-se de ser negligenciada; contudo teve dele trs filhos, um dos quais,
varo. s suas queixas quase contnuas, ele respondia, com polidez gelada, que o
casamento feito pela famlia e no por ns prprios, e que um contrato to srio
no se ajusta aos jogos descuidosos do amor. Seu complicado sistema exigia
amantes para a ostentao, e escravas fceis para a voluptuosidade. Matou-se de
prazer, mas como um artista se mata ao realizar uma obra-prima: no me cabe
censur-lo.

Via-o viver: minha opinio a seu respeito modificava-se sem cessar, o que s
acontece com os seres que nos tocam de perto; contentamo-nos em julgar os
outros por alto, e de uma vez por todas. Eu me inquietava s vezes com uma
insolncia estudada, uma aspereza, uma palavra fria e frvola; mais
freqentemente, deixava-me levar por aquele esprito, rpido e leve; uma
observao aguda parecia anunciar o futuro homem de Estado. Falei sobre o
assunto com Mrcio Turbo, que, terminado seu dia fatigante de prefeito do
pretrio, vinha todas as noites conversar sobre os assuntos correntes e jogar
comigo sua partida de dados. Reexaminvamos minuciosamente as
probabilidades que Lcio tinha de desempenhar convenientemente uma carreira
de imperador. Meus amigos admiravam-se de meus escrpulos; alguns,
encolhendo os ombros, aconselhavam-me a tomar o partido que me agradasse;
essa gente imagina que se pode legar a qualquer um a metade do mundo, tal
como lhe deixaramos uma casa de campo. Voltava a pensar no assunto durante
a noite: Lcio mal atingira a trintena: quem era Csar, aos trinta anos, seno um
filho de famlia crivado de dvidas e coberto de escndalos? Como nos maus dias
da Antiquia, antes da minha adoo por Trajano, pensava com um aperto no
corao que nada mais lento do que o verdadeiro nascimento de um homem:
eu prprio ultrapassara meu trigsimo ano na poca em que a campanha da
Pannia me abrira os olhos s responsabilidades do poder; Lcio amadurecido
parecia-me, por vezes, mais amadurecido do que eu naquela idade. Tomei uma
deciso brusca, logo depois de uma crise de sufocao mais grave que as
anteriores, e que veio lembrar que eu no tinha mais tempo a perder. Adotei
Lcio, que tomou o nome de lio Csar. Era ambicioso, mas com uma certa
indiferena, exigente sem ser vido. Habituado desde sempre a alcanar tudo,
recebeu minha deciso com desenvoltura. Cometi a imprudncia de dizer que
aquele prncipe louro ficaria admiravelmente belo sob a prpura; os mal-
intencionados apressaram-se em concluir que eu pagava com um imprio a
intimidade voluptuosa de outrora. No compreendiam absolutamente como
funciona o esprito de um chefe, por pouco que merea seu posto e seu ttulo. Se
tais consideraes tivessem desempenhado algum papel, Lcio no seria, alis, o
nico sobre o qual poderia recair minha escolha.

Minha mulher acabava de expirar em sua residncia do Palatino, que continuara


a preferir a Tbure e onde vivera cercada de uma pequena corte de amigos e
parentes espanhis, os nicos que contavam para ela. As atenes, as
convenincias, as fracas veleidades de entendimento haviam cessado pouco a
pouco entre ns, deixando a nu a antipatia, a irritao, o rancor e, de sua parte, o
dio. Visitei-a nos ltimos tempos; a doena azedara ainda mais seu carter
spero e rabugento; essa entrevista foi-lhe ocasio de recriminaes violentas
que a aliviaram, e que ela teve a indiscrio de fazer diante de testemunhas.
Felicitou-se por morrer sem filhos; por certo, meus filhos seriam parecidos
comigo; teria nutrido por eles a mesma averso que sentia pelo pai. Essa frase,
onde transparece tanto rancor, a nica prova de amor que ela me deu. Minha
Sabina: remexi em algumas lembranas tolerveis que sempre restam de um
ser, quando nos damos ao trabalho de procur-las; lembrei-me de um cesto de
frutos que ela me enviara por ocasio do meu aniversrio, aps uma discusso.
Ao passar de liteira pelas ruas estreitas de Tbure, diante da modesta casa de
recreio que pertenceu a minha sogra Matdia, evocava com amargura as noites
de um longnquo vero, em que tentara em vo sentir algum prazer junto
jovem esposa, fria e dura. A morte de minha mulher impressionou-me menos do
que a da boa Aretia, governanta da Vila, arrebatada no mesmo inverno por um
acesso de febre. O mal a que a imperatriz sucumbiu, mediocremente
diagnosticado pelos mdicos, causou-lhe, nos ltimos momentos, dores atrozes
nas entranhas, e com base nisso me acusaram de t-la envenenado. Esse rumor
insensato encontrou crdito fcil. Desnecessrio dizer que to suprfluo crime
jamais me tentou.

O falecimento de minha mulher talvez tenha impelido Serviano a arriscar tudo: a


influncia de que ela gozava em Roma era uma slida aquisio dele; com ela,
desmoronava-se um dos seus apoios mais respeitados. Alm disso, acabava de
entrar no seu nonagsimo ano; tambm ele no tinha muito tempo a perder.
Havia alguns meses que se esforava por atrair sua casa pequenos grupos de
oficiais da guarda pretoriana; ousou algumas vezes explorar o respeito
supersticioso que a idade avanada inspira para se fazer tratar, entre quatro
paredes, por imperador. Eu tinha reforado recentemente a polcia secreta
militar, instituio repugnante, concordo, mas que os acontecimentos provaram
til. Eu no ignorava nada dos seus concilibulos, pseudo-secretos, em que o
velho Urso ensinava a seu neto a arte das conjuras. A nomeao de Lcio no
surpreendeu o ancio; havia muito ele tomava minhas incertezas quanto a esse
assunto como uma deciso bem-dissimulada; mas aproveitou para agir no
momento em que o ato de adoo era ainda matria controversa em Roma. Seu
secretrio, Crescncio, cansado de quarenta anos de fidelidade mal-retribuda,
divulgou o plano, a data do golpe, o lugar e o nome dos cmplices. A imaginao
dos meus inimigos no se preocupara em inovar: copiavam simplesmente o
atentado outrora premeditado por Nigrino e Quieto; eu seria abatido durante uma
cerimnia religiosa no Capitlio; meu filho adotivo cairia comigo.

Tomei minhas precaues na mesma noite: nosso inimigo j vivera demais;


deixaria a Lcio uma herana livre de perigos. Por volta da dcima segunda
hora, numa madrugada cinzenta de fevereiro, um tribuno portador de uma
sentena de morte para Serviano e seu neto apresentou-se em casa do meu
cunhado; tinha instrues para esperar no vestbulo que a ordem de que era
portador fosse cumprida. Serviano mandou chamar seu mdico; tudo se passou
de maneira conveniente. Antes de morrer, desejou-me uma morte lenta, em
meio aos tormentos de um mal incurvel, sem ter como ele o privilgio de uma
agonia rpida. Seu voto j foi atendido.

No ordenei essa dupla execuo com alegria; no me causou depois qualquer


pena e, ainda menos, remorso. Uma velha conta acabava de ser encerrada. Foi
tudo. A idade jamais me pareceu uma desculpa para a malignidade humana;
nela eu veria antes uma circunstncia agravante. A sentena de Akiba e dos seus
aclitos fizeram hesitar por mais tempo: velho por velho, preferia o fantico ao
conspirador. Quanto a Fusco, por medocre que pudesse ser, e por muito que seu
odioso av o houvesse afastado de mim, era neto de Paulina. Mas digam o que
disserem, os laos de sangue so muito frgeis quando nenhuma afeio os
refora; fcil observar isso entre os particulares, quando tratam dos mais
insignificantes negcios de heranas. Apiedava-me um pouco mais da extrema
juventude de Fusco; tinha apenas dezoito anos. Mas o interesse do Estado exigia
esse desfecho, que o velho Urso tinha, por capricho, tornado inevitvel. De resto,
eu estava muito prximo do meu prprio fim para perder tempo com meditaes
sobre essas duas mortes.

Durante alguns dias, Mrcio Turbo redobrou a vigilncia: os amigos de Serviano


poderiam tentar ving-lo. Mas no aconteceu nada, nem atentado, nem sedio,
nem rumores. Eu j no era o recm-chegado que tentava colocar do seu lado a
opinio pblica, depois da execuo de quatro consulares; dezenove anos de
justia decidiam a meu favor; meus inimigos eram execrados em bloco; a
multido aprovava que me tivesse desembaraado de um traidor. Fusco foi
lamentado sem, contudo, ser julgado inocente. O Senado, bem sei, no me
perdoava por ter, uma vez mais, atingido um dos seus membros; mas calava-se e
calar-se- at minha morte. Como outrora, tambm, uma dose de clemncia
mitigou depressa a dose de rigor; nenhum partidrio de Serviano foi perturbado.
A nica exceo a essa regra foi o eminente Apolodoro, rancoroso depositrio
dos segredos do meu cunhado, e que com ele morreu. Esse homem de talento
fora o arquiteto favorito do meu predecessor; removera com arte os grandes
blocos de mrmore da Coluna de Trajano. No gostvamos um do outro; em
outros tempos, ridicularizara meus desajeitados trabalhos de amador, minhas
conscienciosas naturezas-mortas de abboras; por minha vez, critiquei suas obras
com uma presuno de jovem. Mais tarde, ele denegriu as minhas; ignorava tudo
dos belos tempos da arte grega; voltado para uma logstica inspida, censurava-
me por ter povoado nossos templos com esttuas colossais que, se se
levantassem, quebrariam com a cabea as abbadas dos seus santurios: crtica
estpida, que mais fere Fdias que a mim. Os deuses, porm, no se levantavam;
no se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos
recompensar, nem para nos punir. E no se levantaram naquela noite para salvar
Apolodoro.
Na primavera, a sade de Lcio comeou a inspirar-me srios cuidados. Uma
manh, em Tbure, descemos aps o banho palestra onde Cler se exercitava
em companhia de outros jovens; um deles props uma dessas provas nas quais
cada participante corre armado unicamente com um escudo e uma lana; Lcio
esquivou-se, como de hbito, mas cedeu por fim aos nossos gracejos amigveis.
Ao equipar-se, queixou-se do peso do escudo de bronze; comparado com a slida
beleza de Cler, aquele corpo delicado parecia realmente frgil. Ao cabo de
alguns passos, parou, sufocado, expectorando sangue. O incidente no teve
maiores conseqncias; ele se refez sem dificuldade. Mas eu estava alarmado;
deveria ter-me tranqilizado menos apressadamente. Opunha aos primeiros
sintomas da doena de Lcio a confiana obtusa de um homem por muitos anos
robusto, a f implcita nas reservas inesgotveis da juventude, no bom
funcionamento do corpo. verdade que ele prprio tambm se enganava; uma
dbil flama o sustentava; sua vivacidade o iludia, tanto quanto a ns. Passei meus
anos de juventude em viagens, nos acampamentos, nas Unhas avanadas;
apreciei por mim mesmo as virtudes de uma vida rude, o efeito salutar das
regies secas ou geladas. Decidi nomear Lcio governador daquela mesma
Pannia, onde eu fizera minha primeira experincia de chefe. A situao nessa
fronteira era menos crtica que outrora; sua funo limitava-se aos calmos
trabalhos de administrador civil, ou a inspees militares sem perigo. Esse pas
difcil o arrancaria da inrcia da vida de Roma; aprenderia a conhecer melhor o
imenso mundo que a cidade governa, e do qual depende. Ele temia os climas
brbaros, e no compreendia que se pudesse gozar a vida longe de Roma.
Aceitou, entretanto, com a complacncia que usava quando queria agradar-me.

Durante todo o vero, li cuidadosamente seus relatrios oficiais e os outros, mais


secretos, de Domcio Rogato, homem de confiana, que coloquei ao seu lado na
qualidade de secretrio encarregado de vigi-lo. Os relatrios satisfizeram-me:
Lcio, na Pannia, soube dar provas da seriedade que eu exigia dele, de que se
teria talvez descuidado depois da minha morte. Saiu-se, inclusive, brilhantemente
numa srie de combates de cavalaria nos postos avanados. Na provncia, como
em qualquer outro lugar, ele conseguia agradar: sua secura um tanto arrogante
no o prejudicava; pelo menos, no seria um desses prncipes complacentes
governado por um grupo de intrigantes. No comeo do outono, ele apanhou um
resfriado. Depressa o consideraram curado, mas a tosse voltou; a febre persistiu
e instalou-se para ficar. Uma melhora passageira resultou apenas numa sbita
recada na primavera seguinte. Os boletins dos mdicos aterraram-me; a posta
pblica que eu acabava de instalar, com as suas mudas de cavalos e carruagens
em territrios imensos, parecia funcionar apenas para me trazer mais depressa, a
cada manh, notcias do doente. No me perdoava por ter sido desumano para
com ele, com receio de ser ou parecer fcil. To logo se sentiu suficientemente
restabelecido para suportar a viagem, providenciei para que voltasse Itlia.

Acompanhado pelo velho Rufo feso, especialista em tsica, fui eu prprio


esperar no porto de Baias o meu frgil lio Csar. O clima de Tbure, melhor que
o de Roma, no , entretanto, ameno o bastante para pulmes atingidos; decidi
faz-lo passar o fim do outono naquela regio, mais segura. O navio ancorou em
pleno golfo; uma pequena embarcao trouxe terra o doente e seu mdico. Seu
rosto srio parecia ainda mais magro sob a barba rala com que cobria as faces,
na inteno de se parecer comigo. Mas os olhos haviam guardado o duro brilho
de pedra preciosa. A primeira palavra que pronunciou foi para me lembrar que
vinha somente por minha ordem; sua administrao fora irrepreensvel;
obedecera-me em tudo. Comportava-se como um estudante que justifica o
emprego do seu dia. Instalei-o na vila de Ccero, onde ele passara outrora, em
minha companhia, uma temporada dos seus dezoito anos. Teve a elegncia de
nunca mencionar aquela poca. Os primeiros dias pareceram uma vitria sobre
o mal; o regresso Itlia j era, por si mesmo, um remdio; nessa fase do ano,
este pas todo prpura e rosa. Mas as chuvas comearam; um vento mido
soprava do mar cinzento; a velha casa, construda no tempo da Repblica, no
tinha o conforto mais moderno da Vila de Tbure; observava Lcio aquecendo
melancolicamente no braseiro seus longos dedos carregados de anis.
Hermgenes regressou pouco depois do Oriente, para onde eu o enviara a fim de
renovar e completar sua proviso de medicamentos: experimentou em Lcio os
efeitos de uma lama impregnada de sais minerais poderosos; tais aplicaes
passavam por curar tudo. Mas no beneficiaram mais aos seus pulmes do que
s minhas artrias.

A doena punha a descoberto as piores facetas de seu carter seco e superficial.


A mulher visitou-o; como sempre, a entrevista terminou em palavras amargas.
Ela no voltou mais. Levaram-lhe o filho, um lindo menino de sete anos,
desdentado e risonho; olhou-o com indiferena. Informava-se com avidez das
notcias polticas de Roma; interessava-se por elas como jogador, no como
homem de Estado. Entretanto, sua frivolidade era uma forma de coragem;
despertava de longas tardes de sofrimento ou de torpor para se entregar por
completo a uma das suas brilhantes conversaes de outrora; o rosto molhado de
suor ainda sabia sorrir; o corpo descarnado erguia-se com graa para acolher o
mdico. Seria at o fim um prncipe de marfim e ouro.

noite, no podendo dormir, instalava-me no quarto do doente; Cler, que


gostava pouco de Lcio, mas que me demasiado fiel para recusar-se a servir
com solicitude os que me so caros, dispunha-se a velar ao meu lado. Uma
respirao ofegante subia dos cobertores. Invadia-me uma amargura profunda
como o mar: ele nunca me amara; nossas relaes transformaram-se
rapidamente num relacionamento entre filho dissipador e pai complacente; sua
vida escoara-se sem grandes projetos, sem pensamentos graves, sem paixes
ardentes; ele dilapidara seus anos como um prdigo joga fora moedas de ouro.
Compreendi que me apoiara a um muro em runas: pensava com clera nas
enormes somas despendidas com sua adoo, nos trezentos milhes de sestrcios
distribudos aos soldados. Em certo sentido, minha triste sina me seguia: havia
satisfeito meu velho desejo de dar a Lcio tudo quanto se pode dar; mas o Estado
no sofreria com isso; no me arriscaria a ser desonrado por aquela escolha.
Bem no fundo de mim, comecei a temer que ele melhorasse; se por acaso se
agentasse ainda por alguns anos, eu no poderia legar o imprio quela sombra.
Sem jamais formular uma s pergunta, ele parecia penetrar no meu pensamento
quanto a esse ponto; seus olhos seguiam ansiosamente meus menores gestos;
tinha-o nomeado cnsul pela segunda vez; ele preocupava-se por no poder
desempenhar suas funes; a angstia de me desagradar agravou-lhe o estado.
Tu Marcellus eris Repetia para mim mesmo os versos de Virglio
consagrados ao sobrinho de Augusto, ele tambm destinado ao imprio, e que a
morte detivera a meio caminho. Manibus date lilia plenis... Purpureos spargam
flores O amante das flores s receberia de mim inanes ramos fnebres.

Julgou-se melhor; quis regressar a Roma. Os mdicos, que agora s discutiam


entre si o tempo que lhe restava a viver, aconselharam-me a fazer-lhe a vontade;
levei-o por pequenas etapas at a Vila. Sua apresentao ao Senado na qualidade
de herdeiro do Imprio devia realizar-se na sesso que se seguiria quase
imediatamente ao ano-novo; o uso exigia que ele me dirigisse nessa ocasio um
discurso de agradecimento; essa pea de eloqncia preocupava-o havia meses;
lamos juntos as passagens difceis. Trabalhava nela durante uma manh das
calendas de janeiro, quando lhe sobreveio sbita expectorao de sangue; sentiu
uma vertigem; apoiou-se ao encosto da cadeira e fechou os olhos: a morte no
passou de um atordoamento para aquele ser frvolo. Era o dia de ano-novo: para
no interromper os festejos pblicos e os regozijos privados, impedi que
divulgassem imediatamente a notcia do seu fim. S foi oficialmente anunciada
no dia seguinte. Lcio foi enterrado discretamente, nos jardins da sua famlia. Na
vspera da cerimnia, o Senado enviou-me uma delegao encarregada de me
apresentar as condolncias e oferecer a Lcio as honras divinas a que tinha
direito na qualidade de filho adotivo do imperador. Mas recusei: aquele processo
de sucesso j custara muito dinheiro ao Estado. Limitar-me-ia a mandar
construir em sua memria algumas capelas fnebres e erigir-lhe esttuas aqui e
ali, nos diferentes lugares onde vivera: o pobre Lcio no era um deus.

Agora, cada momento urgia. Mas tive todo o tempo para refletir cabeceira do
doente; meus planos estavam feitos. Notara no Senado um certo Antonino,
homem de uma cinqentena de anos, originrio de uma famlia provinciana,
aparentado de longe de Plotina. Impressionara-me pelas atenes ao mesmo
tempo deferentes e ternas com que cercava o sogro, velho frgil que se sentava a
seu lado; reli sua folha de servios; esse homem de bem mostrara-se, em todos
os postos que ocupara, funcionrio irreprochvel. Minha escolha fixou-se nele.
Quanto mais convivo com Antonino, mais minha estima por ele tende a
transformar-se em respeito. Esse homem simples possui uma virtude na qual eu
havia pensado muito pouco at ento, mesmo quando me acontecia pratic-la: a
bondade. No isento dos modestos defeitos de um justo; sua inteligncia,
aplicada ao cumprimento meticuloso das obrigaes cotidianas, preocupa-se
mais com o presente do que com o futuro; sua experincia do mundo limitada
por suas virtudes; suas viagens no foram alm de algumas misses oficiais, de
resto, bem desempenhadas. Conhece pouco as artes; s inova se forado pelas
circunstncias. As provncias, por exemplo, nunca representaro para ele as
imensas possibilidades de desenvolvimento que sempre representaram para
mim; continuar, mais do que ampliar, minha obra; mas ele o far bem; o
Estado ter nele servidor honesto e bom chefe.

Contudo, o espao de uma gerao parecia-me pequeno quando s trata de


consolidar a segurana do mundo; desejava, se possvel, prolongar at mais longe
essa prudente linha adotiva, preparando para o imprio outra muda na estrada do
Tempo. A cada regresso a Roma, nunca deixei de ir saudar meus velhos amigos,
os Veros, espanhis como eu, uma das famlias mais liberais da alta magistratura.
Conheci-te desde o bero, pequeno nio Vero, que, por minha iniciativa, te
chamas Marco Aurlio. Durante um dos anos mais solares da minha vida, na
poca assinalada pela construo do Panteo, providenciei por amizade pelos
teus tua eleio para o Sacro Colgio dos Irmos Arvais, a que preside o
imperador, e que perpetua piedosamente nossos velhos costumes religiosos
romanos; dei-te a mo durante o sacrifcio que se realizou naquele ano, s
margens do Tibre; observei com ternura divertida teu comportamento de criana
de cinco anos, assustada pelos grunhidos do porco imolado, mas esforando-se
como podia para imitar a atitude dos adultos. Preocupei-me com a educao do
menino excepcionalmente ajuizado, ajudei teu pai a escolher para ti os melhores
mestres. Vero, o Verssimo: brincava com teu nome; tu s talvez o nico ser que
jamais me mentiu. Eu te vi lendo com paixo os escritos dos filsofos, vestindo-te
de l grosseira, dormindo sobre o leito duro, submetendo teu corpo um pouco
franzino a todas as mortificaes dos esticos. H excesso em tudo isso, mas o
excesso virtude aos dezessete anos. Pergunto-me, por vezes, que escolho far
naufragar tanta virtude, porque naufragamos sempre: ser uma esposa, um filho
muito amado, enfim, uma dessas armadilhas legtimas que aprisionam os
coraes timoratos e puros? Sero simplesmente a idade, a doena, o cansao, o
desengano que nos dizem que, se tudo vo, a virtude tambm o ? Imagino, em
lugar do teu rosto cndido de adolescente, tua fisionomia cansada de velho. Sinto
que tua firmeza to bem-educada esconde muita doura e talvez fraqueza;
adivinho em ti a presena de um gnio que no forosamente o do homem de
Estado; contudo, o mundo ser certamente beneficiado para sempre por te haver
visto associado ao poder supremo. Tomei todas as providncias necessrias para
que fosses adotado por Antonino; sob esse novo nome, que usars um dia na lista
dos imperadores, sers, a partir de ento, meu neto. Creio dar aos homens a
nica probabilidade que podero ter algum dia de realizar o sonho de Plato: ver
reinar sobre eles um filsofo de corao puro. Aceitaste as honras com
repugnncia: tua posio te obriga a viver no palcio; Tbure, este lugar onde
reno at o fim tudo o que a vida tem de douras, inquieta tua jovem virtude;
vejo-te vaguear gravemente nas alamedas entrelaadas de rosas; observo-te,
com um sorriso, quando te vejo atrado pelos belos objetos de carne postados
tua passagem; hesitas entre Vernica e Teodoro, mas rapidamente renuncias a
ambos em favor da austeridade, esse puro fantasma. No me escondeste teu
melanclico desdm pelos esplendores que duram pouco, por esta corte que se
dispersar depois da minha morte. No me amas absolutamente; tua afeio
filial dedicada antes a Antonino; adivinhas em mim uma sabedoria contrria
que te ensinam teus mestres, e vs no meu abandono aos sentidos um sistema de
vida oposto severidade do teu e que, entretanto, lhe paralelo. No importa:
no indispensvel que me compreendas. H mais de uma sabedoria, e todas
so igualmente necessrias ao mundo. No h mal em que se alternem.

Oito dias depois da morte de Lcio, fiz-me conduzir em liteira ao Senado.


Solicitei permisso para entrar assim na sala das deliberaes e pronunciar
minha mensagem deitado, apoiado a uma pilha de almofadas. Cansa-me falar:
pedi aos senadores que formassem um crculo estreito minha volta, para no
ser forado a levantar a voz. Fiz o elogio de Lcio; essas poucas linhas
substituram no programa da sesso o discurso que ele deveria ter feito no
mesmo dia. Anunciei em seguida minha deciso: nomeei Antonino; pronunciei
teu nome. Tinha contado com a adeso mais unnime, e a obtive. Manifestei
uma ltima vontade, que foi aceita como as outras: pedi que Antonino adotasse
tambm o filho de Lcio, que teria assim, como irmo, Marco Aurlio.
Governareis juntos. Conto contigo para teres com ele as atenes de um irmo
mais velho. Quero que o Estado conserve alguma coisa de Lcio.

Pela primeira vez, depois de longos dias, ao regressar a minha casa, senti vontade
de sorrir. Havia manobrado especialmente bem. Os partidrios de Serviano, os
conservadores hostis minha obra, no haviam capitulado; todas as minhas
atenes para com aquele grande corpo senatorial, antigo e obsoleto, no
compensavam, para eles, os dois ou trs golpes com que eu os atingira. No
hesitariam em aproveitar-se do momento da minha morte para tentar anular
meus atos. Mas meus piores inimigos no ousariam opor-se a seu mais ntegro
representante e ao filho de um dos seus membros mais respeitados. Minha
misso pblica estava cumprida: dali em diante, podia voltar para Tbure, entrar
nessa inatividade que a doena, experimentar meus sofrimentos, mergulhar no
que me restava de prazeres, retomar em paz meu dilogo interrompido com um
fantasma. Minha herana imperial estava a salvo nas mos do piedoso Antonino
e do grave Marco Aurlio; o prprio Lcio sobrevivera no filho. As coisas no
me pareciam mal arranjadas.
Patientia

Arriano escreve-me:

Conforme as ordens recebidas, terminei a circunavegao do ponto Euxino.


Fechamos o crculo em Sinope, cujos habitantes te sero para sempre
reconhecidos pelos grandes trabalhos de reconstruo e alargamento do porto,
conduzidos a bom xito sob tua fiscalizao, h alguns anos A propsito,
erigiram-te uma esttua que no nem muito semelhante, nem muito bela:
envia-lhes uma outra, de mrmore branco Mais a leste, no sem emoo,
abrangi com o olhar esse mesmo ponto Euxino, do alto das colinas de onde nosso
Xenofonte o avistou outrora pela primeira vez, e de onde tu mesmo o
contemplaste, no h muito

Inspecionei as guarnies costeiras: seus comandantes merecem os maiores


elogios pela excelente disciplina, pelo emprego dos mais novos mtodos de
treinamento e pela boa qualidade da engenharia Por toda a regio selvagem e
ainda pouco conhecida das costas, ordenei que fossem feitas novas sondagens,
retificando, onde necessrio, as indicaes dos navegadores que me
precederam

Percorremos a Clquida. Sabendo o quanto te interessas pelas narrativas dos


antigos poetas, interroguei os habitantes acerca dos encantamentos de Media e
das faanhas de Jaso. Mas parece que ignoram essas histrias

Na costa setentrional desse mar inspito, tocamos numa pequena ilha, bem
grande na fbula: a ilha de Aquiles. Tu o sabes: dizem que Ttis mandou criar seu
filho nessa ilhota perdida nas brumas; subia do fundo do mar e vinha todas as
noites conversar com o filho na praia. A ilha, hoje desabitada, s alimenta cabras.
Existe ainda um templo de Aquiles. As gaivotas, os alcatrazes e todas as aves do
mar a freqentam, e o movimento de suas asas, impregnadas de umidade
marinha, refresca continuamente o trio do santurio. Mas a ilha de Aquiles
tambm, como bvio, a ilha de Ptroclo, e os inumerveis ex-votos que
decoram as paredes do templo so dedicados tanto a Aquiles como a seu amigo,
porque, bem entendido, os que amam Aquiles estimam e veneram a memria de
Ptroclo. O prprio Aquiles aparece em sonhos aos navegantes que visitam essas
paragens: protege-os e adverte-os dos perigos do mar, como o fazem alis os
Discuros. E a sombra de Ptroclo aparece sempre ao lado de Aquiles.

Conto-te estas coisas porque julgo que vale a pena serem conhecidas, e porque
aqueles que as contaram para mim as conhecem diretamente, ou as ouviram de
testemunhas dignas de f Aquiles parece-me por vezes o maior dos homens,
pela coragem, pela fora de alma, pelos conhecimentos do esprito unidos
agilidade do corpo e por causa do ardente amor pelo jovem companheiro. Nele,
nada me parece maior do que o desespero que o levou a desprezar a vida e
desejar a morte, quando perdeu o bem-amado.

Deixo cair sobre os joelhos o volumoso relatrio do governador da Pequena


Armnia, chefe da esquadra. Arriano, como sempre, trabalhou
satisfatoriamente. Mas, desta vez, fez mais: ofereceu-me um dom necessrio
para morrer em paz. Enviou-me uma imagem da minha vida tal como eu a
desejaria. Arriano sabe que o que conta no figurar nas biografias oficiais, e
no ser inscrito nos tmulos. Sabe igualmente que a passagem do tempo s faz
adicionar mais uma vertigem desgraa. Vista por ele, a aventura da minha
existncia adquire um sentido, organiza-se como num poema; a nica ternura
desprende-se do remorso, da impacincia, das manias tristes como tantas
fumaas, tantas poeiras. A dor decanta-se, o desespero torna-se puro. Arriano
abre-me o profundo empreo dos heris e dos amigos: no me julga demasiado
indigno disso. Meu quarto secreto no centro do pequeno lago da Vila no refgio
suficientemente ntimo: nele, arrasto este corpo envelhecido; nele, sofro. Meu
passado, sem dvida, prope-me aqui e ali refgios, onde pelo menos escapo a
uma parte das misrias do presente: a plancie nevada s margens do Danbio, os
jardins da Nicomdia, Claudipolis dourada pela colheita do aafro em flor,
todas as ruas de Atenas, um osis onde os nenfares flutuam sobre o lodo, o
deserto srio claridade das estrelas no regresso ao acampamento de Osros.
Mas esses lugares to caros esto associados, com demasiada freqncia, s
premissas de um erro, de uma decepo, de certo fracasso conhecido somente
de mim mesmo: nos meus maus momentos, todos os meus caminhos de homem
feliz parecem conduzir ao Egito, a um quarto de Baias, ou Palestina. H mais
ainda: a fadiga do meu corpo comunica-se minha memria; a imagem das
escadas da Acrpole quase insuportvel para um homem que se sente sufocado
ao subir os degraus do jardim; o sol de julho sobre a plancie de Lambessa
prostra-me hoje, como se eu expusesse ali minha cabea descoberta. Arriano
oferece-me coisa melhor. Em Tbure, em pleno maio ardente, ouo nas praias da
ilha de Aquiles o longo queixume das vagas; aspiro seu ar puro e frio; vagueio
sem esforo no trio do templo banhado pela umidade marinha; avisto
Ptroclo Aquele lugar, que jamais verei, torna-se minha morada secreta, meu
supremo refgio. Estarei l certamente no momento da minha morte.

Dei outrora ao filsofo Eufrates a permisso do suicdio. Nada me parecia mais


simples: um homem tem o direito de decidir a partir de que momento a sua vida
deixa de ser til. No sabia ento que a morte pode tornar-se objeto de um
desejo cego, de uma fome to grande como a do amor. No previ as noites em
que enrolaria meu cinturo em torno da adaga, para me obrigar a pensar duas
vezes antes de us-la. Arriano foi o nico a penetrar no segredo desse combate
sem glria contra o vazio, a aridez, o cansao, o tdio de existir que conduz ao
desejo de morrer. J no havia cura para mim: a velha febre derrubou-me vrias
vezes; tremia antecipadamente, como um doente advertido da prxima crise.
Todos os pretextos me pareciam bons para afastar a hora da luta noturna: o
trabalho, as conversas prolongadas loucamente at a madrugada; os beijos, os
livros. Convencionou-se que um imperador no se suicida, a menos que a isso
seja forado por razes de Estado; o prprio Marco Antnio teve a justificativa
de uma batalha perdida. E meu severo Arriano admiraria menos esse desespero
trazido do Egito se eu no tivesse triunfado sobre o mesmo. Meu prprio cdigo
proibia aos soldados a sada voluntria que concedia aos sbios; no me sentia
com mais liberdade para desertar do que qualquer legionrio. Mas sei o que
significa aflorar voluptuosamente com a mo a estopa de uma corda ou o gume
de uma lmina. Acabei por fazer do meu desejo mortal uma barreira contra ele
mesmo: a constante possibilidade do suicdio ajudava-me a suportar menos
impacientemente a existncia, da mesma forma que a presena, ao alcance da
mo, de uma poo sedativa acalma o homem sujeito insnia. Por uma ntima
contradio, a obsesso da morte cessou de se impor ao meu esprito s quando
os primeiros sintomas da doena vieram distrair-me dela. Recomecei a
interessar-me por esta vida que me abandonava. Nos jardins de Sdon, quis
apaixonadamente usufruir do meu corpo alguns anos mais.

Desejava morrer, mas no queria sentir a asfixia; a doena acaba por nos fazer
desgostar da morte; passamos a desejar a cura o que uma maneira de
querer viver. Mas a fraqueza, o sofrimento, as mil misrias a que o corpo
submetido, depressa desencorajam o enfermo de tentar refazer o caminho de
volta; j no desejamos as trguas que so outras tantas armadilhas, as foras
vacilantes, os ardores quebrados, a eterna expectativa da prxima crise. Passei a
espreitar a mim mesmo: esta dor surda no peito no seria apenas um mal-estar
passageiro, o resultado de uma refeio apressada, ou deveria esperar da parte
do inimigo um novo assalto que, desta vez, no seria repelido? J no entrava no
Senado sem me dizer que a porta se fechara atrs de mim to definitivamente
como se eu tivesse sido esperado, como Csar, por cinqenta conjurados
armados de punhais. Durante as ceias em Tbure, receava cometer para com
meus convidados a indelicadeza de uma sbita partida. Temia morrer no banho,
ou entre braos jovens. Funes que no passado eram fceis, ou mesmo
agradveis, tornam-se humilhantes desde que passam a ser penosas; cansamo-
nos do vaso de prata oferecido todas as manhs ao exame do mdico. O mal
principal arrasta consigo todo um cortejo de aflies secundrias: meu ouvido
perdeu sua antiga acuidade; ontem ainda, fui forado a pedir a Flgon que me
repetisse uma frase inteira: envergonhei-me mais do que se estivesse cometendo
um crime. Os meses que se seguiram adoo de Antonino foram terrveis: a
temporada em Baias, o regresso a Roma e as negociaes que se seguiram
excederam o que me restava de foras. A obsesso da morte reapoderou-se de
mim, mas agora as causas eram visveis, confessveis; meu pior inimigo no
conseguiria sorrir diante delas. Nada mais me prendia: teriam compreendido que
o imperador, retirado em sua casa de campo depois de ter posto em ordem os
negcios do mundo, tomasse as medidas necessrias para facilitar seu fim. Mas a
solicitude dos meus amigos equivale a uma constante vigilncia: todo doente
um prisioneiro. J no sinto o vigor de que necessitaria para mergulhar a adaga
no local exato, marcado h tanto tempo, a tinta vermelha, sob o seio esquerdo.
Em suma, no teria feito mais que acrescentar ao mal presente uma repugnante
mistura de ataduras, esponjas ensangentadas, cirurgies que discutem ao p do
leito. Era necessrio preparar meu suicdio com as mesmas precaues do
assassino que planeja seu crime.

Pensei inicialmente no meu chefe de caadas, Mastor, o srmata belo e bruto,


que me segue h anos com uma dedicao de co de guarda, e a quem
costumam encarregar algumas vezes de velar noite minha porta. Aproveitei-
me de um momento de solido para cham-lo e explicar-lhe o que esperava
dele: a princpio, no me compreendeu. Sbito, a luz se fez; o espanto enfeou
ainda mais sua carranca loura. Julga-me imortal; v os mdicos entrarem noite e
dia no meu quarto; ouve-me gemer durante as punes, sem que sua f seja
abalada. Era para ele como se o senhor dos deuses, decidido a submet-lo
prova, descesse do Olimpo para exigir-lhe que o matasse. Arrancou-me das
mos seu gldio, de que me apoderara, e fugiu gemendo e gritando. Foi
encontrado ao fundo do parque, divagando sob as estrelas, murmurando coisas
ininteligveis no seu jargo brbaro. Acalmaram o melhor que puderam aquela
fera enlouquecida; ningum me tornou a falar sobre o incidente. No dia seguinte,
porm, notei que Cler havia substitudo por um clamo de canio o estilete de
metal que estava sobre a mesa de trabalho, ao lado do meu leito.

Procurei um aliado melhor. Depositava confiana irrestrita em Iolas, jovem


mdico de Alexandria, que Hermgenes escolhera para substitu-lo no vero
passado, durante sua ausncia. Costumvamos conversar: agradava-me debater
com ele as mltiplas hipteses provveis sobre a natureza e a origem das coisas.
Amava seu esprito intrpido, sonhador, e o fogo sombrio dos seus olhos cercados
por profundas olheiras. Sabia que ele havia encontrado no palcio de Alexandria
a frmula de venenos extraordinariamente sutis, combinados em outros tempos
pelos qumicos de Clepatra. O exame dos candidatos ctedra de medicina, que
acabo de fundar no Odeon, serviu-me de pretexto para afastar Hermgenes
durante algumas horas, proporcionando-me assim a oportunidade de uma
conversa secreta com Iolas. Bastou uma palavra para que me compreendesse.
Lamentava-me, e s podia dar-me razo. Mas seu juramento hipocrtico o
proibia de administrar a um doente uma droga nociva sob qualquer pretexto.
Recusou, inflexvel na sua honra de mdico. Insisti, exigi, empreguei todos os
meios para tentar comov-lo ou corromp-lo. Foi o ltimo homem a quem
supliquei alguma coisa. Vencido, prometeu-me enfim buscar a dose de veneno.
Esperei-o inutilmente at o anoitecer. Era noite alta quando vieram dizer-me que
acabavam de encontr-lo morto em seu laboratrio, com um pequeno frasco de
vidro entre as mos. Aquele corao, isento de qualquer compromisso,
encontrara o meio de permanecer fiel a seu juramento sem nada me recusar.
No dia seguinte, Antonino fez-se anunciar; o amigo sincero mal continha as
lgrimas. A idia de que um homem a quem ele estava habituado a amar e
venerar como um pai sofria, a ponto de procurar a morte, era-lhe insuportvel.
Parecia-lhe ter faltado s suas obrigaes de bom filho. Prometia-me unir seus
esforos aos dos que me rodeavam para me tratar, para me aliviar dos meus
males, para tornar-me a vida mais doce e mais fcil at o fim, para curar-me,
talvez. Contava comigo para continuar a gui-lo e a instru-lo pelo maior tempo
possvel; sentir-se-ia responsvel perante o imprio pelo resto dos meus dias. Sei
o pouco que valem esses pobres protestos, essas ingnuas promessas: no entanto,
propiciavam-me alvio e reconforto. As simples palavras de Antonino
convenceram-me; retomarei posse de mim mesmo antes de morrer. A morte de
Iolas, fiel ao dever de mdico, exorta-me a conformar-me at o fim com as
convenincias do meu ofcio de imperador. Patientia: falei ontem com Domcio
Rogato, nomeado procurador das moedas e encarregado de presidir a uma nova
cunhagem; escolhi esta legenda, que ser a minha ltima determinao. Minha
morte parecia-me a mais pessoal das minhas decises, meu supremo reduto de
homem livre; enganava-me. A f de milhes de Mastores no deve ser abalada;
outros Iolas no sero colocados prova. Compreendi que, ao pequeno grupo de
amigos devotados que me cercam, o suicdio pareceria prova de indiferena, de
ingratido, talvez. No quero legar sua amizade a imagem desagradvel de um
supliciado incapaz de suportar uma tortura a mais. Outras consideraes
ocuparam meu pensamento lentamente, durante a noite que se seguiu morte de
Iolas. A existncia me deu muito ou, pelo menos, eu soube obter muito dela.
Neste momento, como nos meus tempos felizes, e por razes absolutamente
contrrias, parece-me que a vida nada mais tem a oferecer-me, mas no estou
certo de no ter nada mais a aprender sobre ela. Escutarei suas instrues
secretas at o fim. Confiei toda a minha vida na sabedoria do meu corpo;
procurei desfrutar com discernimento as sensaes que este amigo me
proporcionava: devo a mim mesmo a obrigao de apreciar tambm as ltimas.
J no recuso esta agonia programada para mim, este fim lentamente elaborado
no fundo das minhas artrias, herdado talvez de um antepassado, nascido do meu
temperamento, preparado pouco a pouco por cada um dos meus atos ao longo da
vida. A hora da impacincia passou. No ponto em que me encontro, o desespero
seria de to mau gosto quanto a esperana. Renunciei a insultar minha prpria
morte.
Tudo est por fazer. Meus domnios africanos, herdados da minha sogra Matdia,
devem constituir um modelo de explorao agrcola; os camponeses da aldeia de
Borstenes, fundada na Trcia em memria de um bom cavalo, tm direito a um
auxlio depois de um inverno penoso. necessrio, ao contrrio, recusar subsdios
aos ricos cultivadores do vale do Nilo, sempre prontos a se aproveitarem da
solicitude do imperador. Jlio Vestino, prefeito dos Estudos, envia-me seu
relatrio sobre a abertura das escolas pblicas de gramtica. Acabo de terminar
a reforma do cdigo comercial de Palmira: tudo est previsto, desde o imposto
das prostitutas at a licena das caravanas. Acha-se reunido neste momento um
congresso de mdicos e de magistrados encarregados de estabelecer os limites
mximos da gravidez, colocando assim um ponto final srie de interminveis
reivindicaes legais. Os casos de bigamia multiplicam-se nas colnias militares;
esforo-me o possvel por persuadir os veteranos a no fazerem mau uso das
novas leis que lhes permitem o casamento, e a desposar prudentemente uma s
mulher de cada vez. Em Atenas, constri-se um Panteo maneira de Roma.
Componho a inscrio que ser gravada em suas paredes; enumero a, a ttulo de
exemplos e de compromissos com o futuro, os servios prestados por mim s
cidades gregas e aos povos brbaros. Quanto aos servios prestados a Roma,
falam por si. Continua a luta contra a violncia judiciria: fui obrigado a
admoestar o governador da Cilcia, que condenou morte por suplcio os ladres
de gado da sua provncia, como se no bastasse a morte simples para punir um
homem e desembaraar-se dele. O estado e as municipalidades abusavam das
condenaes e trabalhos forados a fim de obter mo-de-obra barata; proibi essa
prtica tanto para os escravos como para os homens livres; convm, no entanto,
fiscalizar o cumprimento dessa proibio, a fim de que esse detestvel sistema
no se restabelea sob outros nomes. Praticam-se ainda sacrifcios de crianas
em certos pontos do territrio da antiga Cartago; urge proibir aos padres de Baal a
alegria de atiar suas fogueiras. Na sia Menor, os direitos dos herdeiros dos
selucidas foram vergonhosamente lesados por nossos tribunais civis, sempre
mal dispostos com relao aos antigos prncipes; reparei essa longa injustia. Na
Grcia, o processo de Herodes tico ainda continua. A caixa dos despachos de
Flgon, suas raspadeiras de pedra-pomes e os bastes de cera vermelha ficaro
comigo at o fim.

Como nos meus tempos felizes, julgam-me deus; continuam a dar-me esse ttulo
no prprio momento em que oferecem ao cu sacrifcios pela augusta sade. J
te disse quais as razes pelas quais essa crena to benfica no me parece
insensata. Uma velha cega veio a p da Pannia; empreendeu a viagem
exaustiva para me pedir que tocasse com o dedo suas pupilas extintas. Recobrou
a viso sob minhas mos, tal como seu fervor esperava. Sua f no imperador-
deus explica esse milagre. Outros prodgios se realizaram; h doentes que contam
ter-me visto em seus sonhos, como os peregrinos de Epidauro vem Esculpio
em sonhos; pretendem ter acordado curados ou, pelo menos, aliviados. No
sorrio ante o contraste entre meus poderes de taumaturgo e meu mal; aceito
esses novos privilgios com gravidade. A velha cega, caminhando do fundo de
uma provncia brbara procura do imperador, tornou-se para mim o que o
escravo de Tarragona fora outrora: o smbolo das populaes do imprio que
governei e servi. Sua imensa confiana me recompensa dos vinte anos de
trabalhos a que me dediquei com tanto entusiasmo. Flgon leu-me ultimamente a
obra de um judeu de Alexandria que me atribui poderes sobrenaturais; acolhi
sem ironia sua descrio do prncipe de cabelos grisalhos, que visto vagueando
em todas as estradas da terra, penetrando nos tesouros das minas, despertando as
foras geradoras do solo, estabelecendo por toda parte a prosperidade e a paz; do
iniciado que reedificou os lugares santos de todas as raas; do entendido em artes
mgicas; do vidente que ps uma criana no cu. Devo ter sido mais bem
compreendido por esse judeu entusiasta do que por muitos senadores e
procnsules. O adversrio reconquistado completa Arriano, enquanto me
surpreendo de me ter tornado para certos olhos, com o tempo, o que desejava
ser, e que esse triunfo seja causado por to pouca coisa. A velhice e a morte
prxima acrescentam daqui em diante sua majestade a esse prestgio; os homens
afastam-se religiosamente minha passagem; j no me comparam, como
antigamente, ao Zeus resplandecente e calmo, mas ao Marte Gradivo, deus das
longas campanhas e da austera disciplina, ao grave Numa inspirado pelos deuses.
Nos ltimos tempos, meu rosto plido e abatido, os olhos fixos, o grande corpo
ainda ereto por um esforo da vontade, lembram-lhes Pluto, o deus das
sombras. Apenas alguns ntimos, alguns amigos experimentados e queridos,
escapam ao terrvel contgio do respeito. O jovem advogado Fronto, magistrado
de futuro, que ser sem dvida um dos bons servidores do teu reinado, veio
discutir comigo uma representao a ser dirigida ao Senado; sua voz tremia; li
nos seus olhos a mesma reverncia mesclada de receio. As alegrias tranqilas da
amizade j no so para mim; adoram-me, veneram-me demais para me amar.

Coube-me um destino anlogo ao de certos jardineiros: tudo o que tentei


implantar na imaginao dos homens criou razes. O culto de Antnoo parecia a
mais louca das minhas empresas, o transbordamento de uma dor que s a mim
dizia respeito. Contudo, nossa poca vida de deuses; prefere os mais ardentes,
os mais tristes, aqueles que misturam ao vinho da vida o mel amargo do alm-
tmulo. Em Delfos, o menino transformou-se em Hermes, guardio do limiar,
senhor das passagens obscuras que levam morada das sombras. Elusis, onde
sua idade e sua qualidade de estrangeiro lhe haviam proibido outrora ser iniciado
a meu lado, fez dele o jovem Baco dos mistrios, prncipe das regies limtrofes
entre os sentidos e a alma. A Arcdia ancestral o associa a P e a Diana,
divindades dos bosques; os camponeses de Tbure assimilam-no ao doce Aristeu,
rei das abelhas. Na sia, os devotos reencontram nele seus ternos deuses,
quebrados pelo outono ou devorados pelo vero. Na orla dos pases brbaros, o
companheiro das minhas caadas e das minhas viagens tomou o aspecto do
cavaleiro trcio, do misterioso andante que cavalga nas saras claridade do
luar, levando as almas numa dobra do seu manto. Tudo isso podia ser apenas
uma excrescncia do culto oficial, a lisonja dos povos ou a subservincia dos
sacerdotes vidos de subsdios. Mas a jovem figura escapa-me; cede s
aspiraes dos coraes simples: por uma dessas renovaes inerentes natureza
de todas as coisas, o efebo melanclico e delicioso tornou-se, para a piedade
popular, o amparo dos fracos e dos pobres, o consolador das crianas mortas. A
imagem das moedas da Bitnia, o perfil do rapaz de quinze anos, de anelados
cabelos flutuantes, de sorriso maravilhado e crdulo, que conservou por to
pouco tempo, pendurada ao pescoo dos recm-nascidos como um amuleto;
nos cemitrios das aldeias, colocam-na sobre os pequenos tmulos.
Recentemente, pensando em meu prprio fim, como um comandante
despreocupado com a sua prpria segurana, mas receoso pelos passageiros e
pela carga do navio, dizia a mim mesmo, amargamente, que essa lembrana
desapareceria comigo. O jovem ser, cuidadosamente embalsamado no fundo da
minha memria, parecia-me destinado a perecer uma segunda vez. Esse temor,
justificado, alis, acalmou-se em parte; compensei como pude essa morte
precoce; uma imagem, um reflexo, um frgil eco sobreviver pelo menos
durante alguns sculos. No se pode fazer nada melhor em matria de
imortalidade. Revi Fido quila, governador de Antino, a caminho do seu novo
posto em Sarmizegetusa. Descreveu-me os ritos anuais celebrados nas margens
do Nilo em honra do deus morto, os peregrinos vindos aos milhares das regies
do norte e do sul, as oferendas de cerveja e cereal, e as preces. A cada trs anos,
realizam-se em Antino jogos comemorativos de aniversrio, assim como em
Alexandria, na Mantinia, e na minha amada Atenas. Essas festas trienais
renovar-se-o neste outono, mas j no espero viver at este nono regresso do
ms de Atir. muito importante que cada detalhe dessas solenidades seja
regulado com antecedncia. O orculo do morto funciona na cmara secreta do
templo faranico, reconstrudo por minha ordem; os sacerdotes distribuem
diariamente algumas centenas de respostas, preparadas para satisfazer todas as
perguntas formuladas pela esperana ou pela angstia humana. Censuram-me
por ter eu prprio composto vrias dessas respostas. A mim, isso no me parecia
falta de respeito para com meu deus, nem falta de compaixo para com a
mulher do soldado, que pergunta se o marido voltar vivo de uma guarnio da
Palestina, para com o enfermo vido de reconforto, para com o mercador cujos
navios jogam sobre as vagas do mar Vermelho, ou ainda para com o casal que
desejaria um filho. Quando muito, prolongava dessa forma os jogos de
logogrifos, as charadas versificadas com as quais, juntos, nos entretnhamos por
vezes. Espantaram-se igualmente de que eu permitisse instalar aqui, na Vila, ao
redor da capela de Canopo, onde seu culto celebrado moda egpcia, pavilhes
de prazer do bairro de Alexandria que tem esse nome; admiram-se igualmente
das facilidades e distraes que ofereo aos meus hspedes, e nas quais me
acontece tomar parte. Ele prprio havia adquirido o hbito dessas coisas. E no
podemos encerrar-nos durante anos num pensamento nico sem deixar entrar
nele, pouco a pouco, todas as rotinas de uma vida.

Fiz tudo o que me haviam recomendado. Esperei, por vezes orei. Audivi voces
divinas A tola Jlia Balbila acreditava ouvir, s primeiras claridades da aurora,
a voz misteriosa de Mmnon: escutei os sussurros da noite. Fiz as unes de mel e
leo de rosas que atraem as sombras; preparei a tigela de leite, o punhado de sal,
a gota de sangue, sustentculos da sua existncia de outrora. Estendi-me no
pavimento de mrmore do pequeno santurio. A claridade dos astros infiltrava-se
pelas fendas abertas na parede, lanando aqui e ali reflexos, inquietantes luzes
plidas. Lembrei-me das ordens murmuradas pelos sacerdotes ao ouvido do
morto, do itinerrio gravado no seu tmulo: E ele reconhecer o caminho E
os guardies da entrada deix-lo-o passar E por milhes de dias ele ir e vir
em torno daqueles que o amam Por vezes, com longos intervalos, julguei
sentir o afloramento de uma aproximao, um toque ligeiro como um bater de
clios, tpido como a palma da mo: E a sombra de Ptroclo aparece ao lado de
Aquiles Jamais saberei se aquele calor e aquela doura emanavam
simplesmente do mais profundo de mim, ltimos esforos de um homem em luta
contra a solido e o frio da noite. Mas a pergunta que formulamos, tambm
relativamente aos nossos amores vivos, cessou de me interessar hoje: pouco me
importa que os fantasmas evocados por mim venham do limbo da minha
memria, ou provenham de um outro mundo. Minha alma, se possuo uma,
feita da mesma substncia dos espectros; este corpo de mos inchadas, de unhas
lvidas, esta triste massa meio desfeita, este odre repleto de males, de desejos e
sonhos, no mais slido nem mais consistente do que uma sombra. Eu me
diferencio dos mortos unicamente pela faculdade de me sentir sufocar por alguns
momentos mais. Em certo sentido, sua existncia parece-me mais assegurada
que a minha. Antnoo e Plotina so, pelo menos, to reais quanto eu.

A meditao sobre a morte no nos ensina a morrer; no torna a sada mais fcil,
mas a facilidade j no o que procuro. Pequena figura desconfiada e
voluntariosa, teu sacrifcio no ter enriquecido minha vida, mas minha morte. A
aproximao da morte restabelece entre ns uma espcie de estreita
cumplicidade: os vivos que me cercam, os servidores dedicados, por vezes
importunos, jamais sabero at que ponto o mundo deixou de nos interessar.
Penso com desgosto nos negros smbolos dos tmulos egpcios: o seco
escaravelho, a mmia rgida, a r dos partos eternos. A acreditar nos sacerdotes,
deixei-te naquele lugar onde os elementos de um ser se despedaam como uma
veste usada da qual nos desembaraamos, naquela encruzilhada sinistra entre o
que existe eternamente, o que foi e o que ser. Pode ser, afinal, que essa gente
tenha razo, e que a morte seja feita da mesma matria fugidia e confusa que a
vida. Mas as teorias sobre a imortalidade me inspiram desconfiana; o sistema
das recompensas e dos castigos deixa frio um juiz prevenido sobre a dificuldade
de julgar. Por outro lado, acontece-me achar demasiado simples a soluo
contrria, o nada definitivo, a cavidade vazia onde ressoa o riso de Epicuro.
Observo meu fim: a srie de experincias feitas em mim prossegue o longo
estudo comeado na clnica de Stiro. At o presente, as modificaes so to
exteriores como aquelas a que o tempo e as intempries submetem os
monumentos, sem lhes alterarem nem a matria, nem a arquitetura: creio, por
vezes, perceber e tocar atravs das fendas a base indestrutvel, a matria eterna.
Sou o que era; morro sem mudar. primeira vista, o menino robusto dos jardins
de Espanha, depois o oficial ambicioso que regressava sua tenda sacudindo os
flocos de neve acumulados no ombro, parecem to destrudos como eu o serei,
quando tiver passado pela fogueira; mas esto l; sou inseparvel deles. O
homem que chorava sobre o peito de um morto continua a gemer num recanto
de mim, a despeito da calma mais ou menos humana de que j participo. O
viajante encerrado dentro do enfermo, para sempre sedentrio, interessa-se pela
morte porque ela representa uma partida. Esta fora, que eu fui, parece ainda
capaz de impulsionar muitas outras vidas, de erguer mundos. Se, por milagre,
alguns sculos viessem juntar-se aos poucos dias que me restam, voltaria a fazer
as mesmas coisas, inclusive cometeria os mesmos erros. Freqentaria os
mesmos Olimpos e os mesmos Infernos. Uma tal constatao excelente
argumento a favor da utilidade da morte, conquanto me inspire ao mesmo tempo
dvidas sobre a sua total eficcia.

Durante certos perodos da minha vida, anotei meus sonhos; discutia sua
significao com os sacerdotes, com os filsofos e com os astrlogos. A
faculdade de sonhar, amortecida h alguns anos, foi-me restituda durante estes
meses de agonia; os incidentes do estado de viglia parecem-me menos reais,
algumas vezes menos significativos do que aqueles sonhos. Se o mundo larvar e
espectral, onde o trivial e o absurdo se multiplicam ainda mais abundantemente
do que na terra, nos oferece uma idia das condies da alma separada do corpo,
passarei sem dvida minha eternidade a lamentar o delicioso comando dos
sentidos e as perspectivas reajustadas da razo humana. Contudo, mergulho com
certa doura nas vs regies dos sonhos; possuo ali, por um instante, alguns
segredos que depressa me escapam; mas bebo nas nascentes. H dias, estava no
osis de Amon, na noite da caa ao leo. Sentia-me alegre, e tudo se passou
como nos tempos em que era forte: o leo ferido caiu, depois ergueu-se;
precipitei-me para acabar com ele. Desta vez, porm, meu cavalo empinou-se e
lanou-me por terra; a horrvel massa sangrenta rolou sobre mim; suas garras
rasgaram meu peito; voltei a mim no meu quarto de Tbure, pedindo socorro.
Mais recentemente ainda, revi meu pai, no qual, todavia, penso raramente.
Estava deitado no seu leito de doente, numa pea da nossa casa da Itlica, que
deixei logo depois da sua morte. Tinha sobre a mesa um pequeno frasco,
contendo uma poo sedativa de que lhe supliquei que me desse uma dose.
Acordei sem que ele tivesse tido tempo de me responder. Admiro-me de que a
maioria dos homens tenha tanto medo dos espectros, eles, que aceitam to
facilmente falar com os mortos nos seus sonhos.

Os pressgios tambm se multiplicam: daqui por diante, tudo me parece uma


ordem, um sinal. Acabo de deixar cair e partir-se uma pedra preciosa engastada
num anel; meu perfil fora talhado nela por um artfice grego. Os augures
acenam gravemente com a cabea; quanto a mim, apenas lamento a perda
dessa pura obra-prima. Acontece-me, s vezes, falar de mim no passado: ao
discutir no Senado certos fatos acontecidos aps a morte de Lcio, equivoquei-
me e fui apanhado vrias vezes mencionando essas circunstncias como se
tivessem ocorrido depois da minha prpria morte. H alguns meses, no dia do
meu aniversrio, ao subir em liteira as escadas do Capitlio, encontrei-me face a
face com um homem de luto que chorava; vi empalidecer meu velho Chbrias.
Nessa poca, eu saa ainda; continuava a exercer pessoalmente minhas funes
de sumo pontfice, de irmo arval, celebrando eu prprio os antigos ritos da
religio romana, que acabei por preferir maior parte dos cultos estrangeiros.
Estava de p diante do altar, prestes a acender a chama; oferecia aos deuses um
sacrifcio por Antonino. De repente, a ponta da minha toga, que me cobria a
fronte, deslizou e recaiu sobre meus ombros, deixando-me a cabea descoberta;
passava assim da categoria de sacrificador de vtima. Na verdade, chegada a
minha vez.

Minha pacincia produz seus frutos; sofro menos, a vida torna a ser quase doce.
J no discuto com os mdicos; seus remdios idiotas mataram-me, mas sua
presuno, seu pedantismo hipcrita obra nossa; mentiriam menos se no
tivssemos tanto medo de sofrer. Faltam-me as foras para os acessos de clera
de outrora: sei de fonte segura que Platrio Nepo, a quem muito amei, abusou da
minha confiana. No procurei confudi-lo, nem o puni. O futuro do mundo j
no me inquieta; j no me esforo por calcular, com angstia, a durao mais
ou menos longa da paz romana; entrego-a aos deuses. No que tenha adquirido
maior confiana na justia, que no a nossa; nem mais f na sabedoria do
homem; a verdade justamente o contrrio. A vida atroz, ns o sabemos. Mas
precisamente porque espero pouca coisa da condio humana, os perodos de
felicidade, os progressos parciais, os esforos para recomear e para continuar
parecem-me to prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de
males, fracassos, incria e erros. As catstrofes e as runas viro; a desordem
triunfar; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltar a reinar. A paz
instalar-se- de novo entre dois perodos de guerra; as palavras liberdade,
humanidade e justia recuperaro aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.
Nossos livros no sero todos destrudos; nossas esttuas quebradas sero
restauradas; outras cpulas e outros frontes nascero dos nossos frontes e das
nossas cpulas; alguns homens pensaro, trabalharo e sentiro como ns: ouso
contar com esses continua-dores colocados, com intervalos irregulares, ao longo
dos sculos, nessa intermitente imortalidade. Se os brbaros se apoderarem
alguma vez do imprio do mundo, sero forados a adotar alguns dos nossos
mtodos; acabaro por se parecer conosco. Chbrias preocupa-se com a idia de
ver um dia o pastforo de Mitra ou o bispo de Cristo instalarem-se em Roma, e a
substiturem o sumo pontfice. Se por desgraa esse dia chegar, meu sucessor na
colina Vaticana ter deixado de ser o chefe de um crculo de adeptos ou de um
bando de sectrios para se tornar, por sua vez, uma das figuras representativas da
autoridade universal. Herdar nossos palcios e nossos arquivos; diferir de ns
menos do que poder parecer. Aceito com calma essas vicissitudes da Roma
eterna.

Os medicamentos j no surtem efeito; o edema das pernas aumenta; adormeo


sentado, de preferncia a deitado. Uma das vantagens da morte ser estar de
novo estendido sobre um leito. Cabe-me agora consolar Antonino. Lembro-lhe
que a morte parece-me h bastante tempo a soluo mais elegante do meu
problema; como sempre, meus votos realizam-se enfim, mas de forma mais
lenta e mais indireta do que julguei. Felicito-me pelo fato de meu mal ter deixado
intacta minha lucidez, at o fim; alegro-me de no ter de me submeter prova
da idade avanada, de no estar destinado a conhecer o endurecimento, a rigidez,
a secura, a atroz ausncia de desejos. Se meus clculos no falham, minha me
faleceu pouco mais ou menos na idade em que me encontro hoje; minha vida j
ultrapassou em durao uma vez e meia a vida do meu pai, morto aos quarenta
anos. Tudo est pronto. A guia encarregada de levar at os deuses a alma do
imperador est reservada para a cerimnia fnebre. Meu mausolu, no alto do
qual se plantam neste momento os ciprestes destinados a formar em pleno cu
uma pirmide negra, ficar concludo a tempo para o traslado das minhas cinzas
ainda quentes. Solicitei a Antonino que, em seguida, mande transportar Sabina
para l; negligenciei em lhe prestar, quando morreu, as honras divinas que,
afinal, lhe so devidas; conveniente que esse esquecimento seja reparado.
Desejaria tambm que os restos de lio Csar fossem colocados a meu lado.

Trouxeram-me para Baias; o trajeto foi penoso sob o calor de julho, mas respiro
melhor beira-mar. As ondas fazem na praia seu murmrio de seda amarrotada
e de carcia; desfruto ainda de longos entardeceres rosados. J no seguro as
tabuinhas de anotaes, exceto para ocupar minhas mos, que se agitam
independentemente da minha vontade. Ordenei que fossem chamar Antonino;
um correio partiu a toda a pressa para Roma. Rudo dos cascos de Borstenes,
galope do cavaleiro trcio O pequeno grupo dos meus ntimos est reunido
minha cabeceira. Chbrias faz-me pena; as lgrimas assentam mal s rugas dos
velhos. O belo rosto de Cler permanece, como sempre, estranhamente calmo;
procura cuidar-me sem deixar transparecer nada que possa aumentar a
inquietao ou a fadiga do doente. Mas Diotimo solua, com a cabea enterrada
nas almofadas. Assegurei seu futuro. Ele no ama a Itlia; poder realizar seu
sonho de retornar a Gadara e abrir ali com um amigo uma escola de eloqncia.
Nada tem a perder com minha morte. Entretanto, o frgil ombro agita-se
convulsivamente sob as dobras da tnica; sinto sob meus dedos lgrimas
deliciosas. Adriano ter sido humanamente amado, at o fim.

Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que


foste hspede, vais descer queles lugares plidos, duros e nus, onde deveras
renunciar aos jogos de outrora. Por um momento, contemplemos juntos ainda os
lugares familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos
Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos
AO DIVINO ADRIANO AUGUSTO

filho de Trajano

conquistador dos partos

neto de Nerva

sumo pontfice

investido pela XXII.a vez

do poder tribuncio

trs vezes cnsul duas vezes triunfante

pai da ptria

e sua divina esposa

Sabina

Antonino seu filho

A Lcio lo Csar

filho do divino Adriano

duas vezes cnsul


Caderno de notas das Memrias de Adriano

Este livro foi concebido, depois escrito, no todo e em parte, sob diversas formas,
em 1924 e 1929, dos vinte aos vinte e cinco anos. Todos esses manuscritos foram
destrudos, e mereciam s-lo.

Reencontrei num volume da correspondncia de Flaubert, muito lido e sublinhado


por mim por volta de 1927, esta frase inesquecvel: Uma vez que os deuses no
mais existiam, e o Cristo no existia ainda, houve, de Ccero a Marco Aurlio, um
momento nico em que s existiu o homem. Grande parte de minha vida ia
passar-se tentando definir, depois descrever, esse homem solitrio e, no entanto,
ligado a tudo.

Trabalhos recomendados em 1934; longas pesquisas; umas quinze pginas


escritas e consideradas definitivas; projeto retomado e abandonado vrias vezes
entre 1934 e 1937.

Durante muito tempo imaginei a obra sob a forma de uma srie de dilogos, em
que todas as vozes do tempo se fizessem ouvir. Contudo, por mais que tentasse, o
detalhe sobrepujava o conjunto; as partes comprometiam o equilbrio do todo; a
voz de Adriano perdia-se, abafada por todos aqueles gritos. No conseguia
organizar o mundo visto e ouvido por um homem.

A nica frase que subsiste da redao de 1934: Comeo a discernir o perfil de


minha morte. Como o pintor instalado diante de um horizonte desloca sem
cessar o seu cavalete, ora para a direita, ora para a esquerda, eu tinha afinal
encontrado o ponto de vista do livro.

Tomar uma vida conhecida, acabada, fixada (tanto quanto possa s-lo) pela
histria, de modo a abranger com um nico olhar a curva inteira; mais ainda,
escolher o momento em que o homem que viveu essa existncia a avalia, a
examina, e por um instante chega a ser capaz de julg-la. Fazer de modo que ele
se encontre perante a sua prpria vida na mesma posio que ns.

Experincias com o tempo: dezoito dias, dezoito meses, dezoito anos, dezoito
sculos. Sobrevivncia imvel de esttuas que, como a cabea de Antnoo
Mondragona, no Louvre, vivem ainda no interior desse tempo morto. O mesmo
problema considerado em termos de geraes humanas; uma cadeia de duas
dzias de mos descarnadas, no mais que vinte e cinco velhos, bastaria para
estabelecer um contato ininterrupto entre Adriano e ns.

Em 1937, durante uma primeira temporada nos Estados Unidos, fiz para este
livro algumas leituras na biblioteca da Universidade de Yale; escrevi a visita ao
mdico e a passagem sobre a renncia aos exerccios fsicos. Esses fragmentos
subsistem, remanejados, na verso atual.

Em todo caso, eu era demasiado jovem. Existem livros que no devemos ousar
escrever antes de termos ultrapassado os quarenta anos. Antes dessa idade,
corremos o risco de desconhecer a existncia das grandes fronteiras naturais que
separam de pessoa para pessoa, de sculo para sculo, a infinita variedade de
seres, ou, pelo contrrio, de dar exagerada importncia s simples divises
administrativas, s formalidades da alfndega, ou s guaritas do corpo de guarda.
Foram-me precisos todos esses anos para aprender a calcular exatamente as
distncias entre o imperador e mim.

Deixei de trabalhar neste livro (exceto durante alguns dias em Paris) entre 1937 e
1939.

Encontro-me com a lembrana de T. E. Lawrence, que retraa na sia Menor a


de Adriano. Mas o pano de fundo de Adriano no o deserto, so as colinas de
Atenas. Quanto mais pensava nisso, mais a aventura de um homem que recusa
(sobretudo recusa a si mesmo) fazia-me desejar apresentar atravs de Adriano o
ponto de vista do homem que s renuncia aqui para aceitar mais adiante. claro,
de resto, que esse ascetismo e esse hedonismo so, em muitos pontos,
permutveis.

Em outubro de 1939, o manuscrito foi deixado na Europa com a maior parte das
notas; levei, entretanto, para os Estados Unidos alguns resumos feitos
anteriormente em Yale, um mapa do Imprio Romano por ocasio da morte de
Trajano, que me acompanhava h anos, e o perfil de Antnoo do Museu
Arqueolgico de Florena, comprado ali mesmo em 1926, e que jovem, grave
e doce.

Projeto abandonado de 1939 a 1948. Pensava nele por vezes, mas com
desnimo, quase com indiferena, como em algo impossvel. E quase me
envergonhava de ter algum dia tentado semelhante coisa.

Mergulho no desespero de um escritor que no escreve.

Nas piores horas de desencorajamento e de inrcia, ia rever, no belo Museu de


Hartford (Connecticut), uma tela romana de Canaletto, o Vanteao, tons escuros e
dourados recortando-se no cu azul de um fim de tarde de vero. Ao sair, sentia-
me sempre tranqila e reanimada.

Por volta de 1941, descobri, por acaso, numa loja em Nova York, quatro gravuras
de Piranesi, que G. e eu compramos. Uma delas, uma vista da Vila Adriana, que
me era desconhecida at ento, representa a capela de Canopo, de onde foram
retirados no sculo XVII o Antnoo de estilo egpcio e as esttuas de sacerdotisas
em basalto que se vem hoje no Vaticano. Estrutura arredondada, aberta como
um crnio rachado, de onde pendem tufos de mato como mechas de cabelos. O
gnio quase medinico de Piranesi pressentiu a a alucinao, os longos caminhos
da memria, a arquitetura trgica de um mundo interior. Durante muitos anos,
contemplei essa gravura quase todos os dias, sem dedicar um s pensamento a
meus projetos de outrora, aos quais julgava haver renunciado. Tais so os
curiosos desvios daquilo a que chamamos esquecimento.

Na primavera de 1947, arrumando papis, queimei as notas tomadas em Yale:


pareciam ter-se tornado definitivamente inteis.

Entretanto, o nome de Adriano figura num ensaio sobre o mito da Grcia,


redigido por mim em 1943 e publicado por Caillois nas Lettres Franaises de
Buenos Aires. Em 1945, a imagem de Antnoo afogado, levada de certo modo
pela corrente do esquecimento, volta superfcie num ensaio indito, Cantique
de lme libre, escrito s vsperas de uma enfermidade grave.

Repito a mim mesma que tudo quanto narro aqui desmentido pelo que no
narro; estas notas procuram apenas preencher uma lacuna. No importa o que eu
fazia durante esses anos difceis, nem os pensamentos, nem os trabalhos, nem as
angstias, nem as alegrias, nem a imensa repercusso dos acontecimentos
exteriores, nem a constante provao de ns prprios na pedra de toque dos fatos.
Deixo passar em silncio as experincias da enfermidade, em silncio ficam
outras experincias mais secretas, levadas umas pelas outras, e a permanente
presena ou procura do amor.

No importa: era necessria talvez esta soluo de continuidade, esta fratura, esta
noite da alma que tantos de ns experimentamos nessa poca, cada um a seu
modo, e freqentemente de forma bem mais trgica e mais definitiva do que eu,
para me obrigar a tentar preencher no somente a distncia que me separava de
Adriano, mas sobretudo aquela que me separava de mim prpria.

Utilidade de tudo o que cada um faz para si mesmo, sem inteno de tirar
proveito. Durante esses anos de desenraizamento, continuei a leitura dos autores
antigos: os volumes de capa vermelha ou verde da edio Loeb-Heinemann
tornaram-se uma ptria para mim. Uma das melhores maneiras de recriar o
pensamento de um homem: reconstituir sua biblioteca. Durante anos,
antecipadamente e sem o saber, trabalhei assim para prover de novo as estantes
de Tbure. S me restava imaginar as mos inchadas do doente sobre os
manuscritos desenrolados sobre a mesa.

Refazer por dentro aquilo que os arquelogos do sculo XIX fizeram por fora.

Em dezembro de 1948, recebi da Sua, onde eu a havia deixado em depsito


durante a guerra, uma mala cheia de papis de famlia e de cartas velhas de dez
anos. Sentei-me junto da lareira para concluir essa espcie de horrvel inventrio
feito aps a morte: passei assim, sozinha, muitos seres. Desatava maos de
cartas; relia, antes de destru-lo, aquele acmulo de correspondncia com
pessoas j esquecidas e que, por sua vez, me haviam esquecido, umas vivas
ainda, outras mortas. Alguns desses escritos datavam de uma gerao anterior
minha; os prprios nomes no me diziam nada. Lanava mecanicamente ao fogo
aquela troca de pensamentos mortos com Maries, Franois, Pauis desaparecidos.
Desdobrei quatro ou cinco folhas datilografadas; o papel estava amarelecido.
Comecei a ler: Meu caro Marco Marco De que amigo, de qual amante,
de qual parente afastado se tratava? No me lembrava desse nome. Foram
necessrios alguns momentos para que me recordasse de que Marco se referia
ali a Marco Aurlio, e de que eu tinha diante dos olhos um fragmento do
manuscrito perdido. Desde aquele momento, a questo era reescrever o livro,
custasse o que custasse.

Naquela noite reabri dois volumes dentre os que acabavam de me ser entregues,
destroos de uma biblioteca dispersa. Eram Don Cssio na bela impresso de
Henry Estienne, e um tomo de uma edio qualquer da Histria augusta, as duas
principais fontes da vida de Adriano, comprados na poca em que me propunha
escrever este livro.

Tudo quanto o mundo e eu havamos atravessado neste intervalo enriquecia


aquelas crnicas de um tempo j cumprido, projetava sobre aquela existncia
imperial outras luzes, outras sombras. Pouco antes, tinha pensado sobretudo no
homem de letras, no viajante, no poeta, no amante; nada disso se desvanecia,
mas via pela primeira vez desenhar-se com extrema nitidez, entre todas aquelas
figuras, a mais oficial e, ao mesmo tempo, a mais secreta: a do imperador. Ter
vivido num mundo que se desfazia ensinava-me a importncia do Prncipe.

Senti prazer em fazer e refazer o retrato de um homem quase sbio.

Uma nica figura histrica tentara-me com insistncia quase igual: Ornar
Khay y am, poeta-astrnomo. Mas a vida de Khay y am a do contemplativo, e
do contemplativo puro: o mundo da ao foi-lhe excessivamente estranho. Alm
disso, eu no conhecia a Prsia e no sabia sua lngua.

Impossibilidade tambm de tomar como personagem central uma figura


feminina, de escolher, por exemplo, como eixo de minha narrativa Plotina, em
lugar de Adriano. A vida das mulheres demasiado limitada, ou demasiado
secreta. Basta que uma mulher narre sua histria, e a primeira censura que lhe
ser feita a de deixar de ser mulher. J bastante difcil colocar qualquer
verdade na boca de um homem.

Parti para Taos, no Novo Mxico. Levava comigo as folhas em branco sobre as
quais tencionava recomear este livro: nadador que se lana gua sem saber se
atingir a outra margem. Pela noite adentro, trabalhei entre Nova York e
Chicago, encerrada em minha cabine do vago-leito como num hipogeu. Depois,
durante todo o dia seguinte, no restaurante de uma estao de Chicago, onde
esperava um trem bloqueado por uma tempestade de neve. Em seguida, de novo,
at a madrugada, sozinha no carro panormico do expresso de Santa F, cercada
pelos picos negros das montanhas do Colorado e pelo eterno desenho dos astros.

As passagens sobre a alimentao, o amor, o sono e o conhecimento do homem


foram escritas assim, de um s jato. No me lembro de um dia mais ardente,
nem de noites mais lcidas.

Passo o mais rapidamente possvel sobre trs anos de pesquisas, que interessam
apenas aos especialistas, e sobre a elaborao de um mtodo de delrio que s
interessa aos insensatos. Esta ltima palavra concede ainda ao romantismo o
maior lugar: falemos antes de uma participao constante - e a mais clarividente
possvel naquilo que foi.

Um p na erudio, outro na magia, ou, mais exatamente e sem metfora, nesta


magia simptica que consiste em nos transportarmos em pensamento ao interior
de algum.

O retrato de uma voz. Se optei por escrever estas Memrias de Adriano na


primeira pessoa, foi com o fito de eliminar o mximo possvel qualquer
intermedirio, inclusive eu. Adriano podia falar de sua vida mais firmemente e
mais sutilmente do que eu.

Aqueles que incluem o romance histrico numa categoria parte esquecem que
o romancista nunca faz mais que interpretar, com a ajuda dos processos do seu
tempo, um certo nmero de fatos passados, de lembranas conscientes ou no,
pessoais ou no, tecidos do mesmo material que a histria. Tanto como Guerra e
paz, a obra de Proust a reconstituio de um passado perdido. O romance
histrico de 1830 mescla, certo, o melodrama e o folhetim de capa e espada;
no mais do que a sublime Duquesa de Langeais ou a espantosa Jovem dos olhos
de ouro. Flaubert reconstri laboriosamente o palcio de Amlcar com a ajuda de
centenas de pequenos detalhes; procede da mesma maneira com Yonville. No
nosso tempo, o romance histrico, ou o que, por comodidade, se admite designar
como tal, s pode ser imerso num tempo reencontrado, tomada de posse de um
mundo interior.

O tempo aqui no interfere. Surpreende-me sempre que meus contemporneos,


que julgam haver conquistado e transformado o espao, ignorem que se pode
reduzir vontade a distncia dos sculos.

Tudo nos escapa, e todos, e ns mesmos. A vida de meu pai me mais


desconhecida que a de Adriano. Minha prpria existncia, se eu quisesse
escrev-la, seria reconstituda por mim pelo exterior, penosamente, como a de
outra pessoa; teria de recorrer a cartas, a lembranas de outrem, para fixar essas
memrias flutuantes. No passam nunca de paredes desmoronadas, cortinas de
sombra. Tentarei fazer com que as lacunas de nossos textos, no que se refere
vida de Adriano, coincidam com o que teriam sido os seus prprios
esquecimentos.
O que no significa, como se diz exageradamente, que a verdade histrica seja
sempre e em tudo inacessvel. Acontece com essa verdade o mesmo que com
todas as outras: enganamo-nos mais ou menos.

As regras do jogo: tudo aprender, tudo ler, informar-se de tudo e,


simultaneamente, adaptar ao objetivo a ser atingido os Exerccios de Incio de
Loy ola, ou o mtodo do asceta hindu que se esgota, durante anos, para visualizar
um pouco mais exatamente a imagem que ele criou sob suas plpebras fechadas.
Perseguir, atravs de milhares de registros, a atualidade dos fatos; tentar restituir
a mobilidade, a leveza do ser vivo a essas faces de pedra. Quando dois textos,
duas afirmativas, duas idias se opem, procurar concili-los, de preferncia a
anular um pelo outro; ver neles duas facetas diferentes, dois estados sucessivos do
mesmo fato, uma realidade convincente porque complexa, humana porque
mltipla. Trabalhar lendo um texto do sculo II com olhos, alma e sentidos do
sculo II; deixar-se mergulhar nessa gua-me que so os fatos contemporneos;
afastar, se possvel, todas as idias, todos os sentimentos acumulados por
camadas sucessivas entre essas pessoas e ns. Servir-se, entretanto, mas
prudentemente, e unicamente a ttulo de estudos preparatrios, das possibilidades
de aproximao e reconstituio das novas perspectivas elaboradas pouco a
pouco por tantos sculos, ou dos acontecimentos que nos separam desse texto,
desse fato, desse homem; utiliz-los de certo modo, como outras tantas balizas no
caminho de regresso a um ponto especial do tempo. Interditar a si mesmo as
sombras projetadas; no permitir que um hlito se espalhe sobre o ao do
espelho; aproveitar somente o que h de mais duradouro, de mais essencial em
ns, nas emoes dos sentidos ou nas operaes do esprito, como ponto de
contato com aqueles homens que, como ns, comeram azeitonas, beberam
vinho, besuntaram os dedos com mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva
que cega, ou procuraram no vero a sombra de um pltano, e gozaram, e
pensaram, e envelheceram, e morreram.

Submeti vrias vezes ao diagnstico dos mdicos as breves passagens das


crnicas que se referem enfermidade de Adriano. No muito diferentes, em
ltima anlise, das descries de morte em Balzac.

Utilizar, para melhor compreend-la, o incio de uma molstia do corao.

O que Hcuba para ele?, pergunta a si prprio Hamlet perante o ator ambulante
que chora por Hcuba. E eis Hamlet obrigado a reconhecer que o comediante
que chora lgrimas verdadeiras conseguiu estabelecer com a morte trs vezes
milenria uma comunicao mais profunda do que ele prprio com seu pai
sepultado na vspera, e cujo infortnio ele no sente to completamente a ponto
de ving-lo sem demora.

A substncia, a estrutura humana no mudam absolutamente. Nada de mais


estvel do que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendo, ou a forma de um
dedo do p. H, porm, pocas em que o calado deforma menos. No sculo de
que falo, estamos ainda muito prximos da livre verdade do p nu.

Atribuindo a Adriano pontos de vista sobre o futuro, mantinha-me no domnio do


plausvel, com a condio, no entanto, de que esses prognsticos permanecessem
vagos. Em geral, o analista imparcial dos negcios humanos equivoca-se muito
pouco acerca da marcha posterior dos acontecimentos; por outro lado, acumula
erros quando se trata de prever o rumo que tomaro os detalhes e os desvios.
Napoleo, em Santa Helena, anunciava que um sculo depois de sua morte a
Europa seria revolucionria ou cossaca; colocava muito bem os dois termos do
problema; no podia imagin-los sobrepondo-os um ao outro. Mas, no conjunto,
somente por orgulho, por ignorncia grosseira, por covardia, que nos recusamos
a ver, no presente, os lineamentos das pocas que viro. Os sbios livres do
mundo antigo pensavam como ns em termos de fsica, ou de fisiologia
universal: encaravam o fim do homem e a morte do globo terrestre. Plutarco e
Marco Aurlio no ignoravam que os deuses e as civilizaes passam e morrem.
No somos os nicos a olhar face a face um futuro inexorvel.

Se este homem no tivesse mantido a paz do mundo e renovado a economia do


imprio, suas felicidades e seus infortnios me interessariam menos.

Nunca ser excessivo o trabalho apaixonante de comparar os textos. O poema do


trofu de caa de Tspias, consagrado por Adriano ao Amor e Vnus Uraniana
sobre as colinas do Hlicon, beira da fronte de Narciso, do outono do ano
124; o imperador passou, na mesma poca, pela Mantinia, onde Pausnias nos
informa que ele fez reconstruir o tmulo de Epaminondas e ali gravou um
poema. A inscrio da Mantinia permanece desaparecida, mas o gesto de
Adriano s assume talvez todo o seu significado quando posto em relevo diante de
uma passagem das Mordia de Plutarco, que nos diz que Epaminondas foi
sepultado naquele lugar entre dois jovens amigos, mortos a seu lado. Se
aceitamos para o encontro de Antnoo e do imperador a data da estadia na sia
Menor de 123-124 de todo modo a mais plausvel e a mais confirmada pelas
descobertas dos icongrafos , esses dois poemas fariam parte do que se
poderia chamar o ciclo de Antnoo, inspirados ambos por aquela mesma
Grcia amorosa e herica que Arriano evocou mais tarde, depois da morte do
favorito, quando comparou o jovem a Ptroclo.

A clarividncia atribuda por mim a Adriano era apenas, alis, uma forma de
valorizar o elemento quase faustiano da personagem, tal como se revela, por
exemplo, nos Cantos siblinos, nos escritos de lio Aristides ou no retrato de
Adriano envelhecido, traado por Fronto. Com ou sem razo, atribuam-se
quele moribundo virtudes quase sobre-humanas.

Um certo nmero de seres cujo retrato gostaramos de desenvolver: Plotina,


Sabina, Arriano, Suetnio. Mas Adriano s podia v-los obliquamente. O prprio
Antnoo s pode ser visto por refrao, atravs das lembranas do imperador, isto
, com uma mincia apaixonada, e alguns enganos.
Tudo o que se pode dizer do temperamento de Antnoo est inscrito na menor das
suas imagens. Eager and impassionated tenderness, sullen effeminacy: Shelley,
com a admirvel candura dos poetas, diz em seis palavras o essencial, ao passo
que os crticos de arte e os historiadores do sculo XIX sabiam apenas derramar-
se em declamaes virtuosas, ou idealizar em falso e de forma vaga.

Retratos de Antnoo: so abundantes e vo do incomparvel ao medocre. Apesar


das variaes, devidas arte do escultor ou idade do modelo, diferena entre
os retratos executados em honra do morto, todos perturbam pelo inacreditvel
realismo da figura, sempre imediatamente reconhecvel, conquanto to
diversamente interpretada, e pelo exemplo, nico na Antigidade, de
sobrevivncia e de multiplicao na pedra de uma face que no foi nem a de um
homem de Estado, nem a de um filsofo, mas simplesmente a de algum muito
amado. Entre tais imagens, as duas mais belas so as menos conhecidas: so
tambm as nicas que nos revelam o nome de um escultor. Uma o baixo-
relevo assinado por Antoniano de Afrodsias, encontrado h uns cinqenta anos
nos terrenos de um instituto agronmico, os Fundi Rustici, em cuja sala de
administrao est hoje colocado. Como nenhum guia de Roma lhe assinala a
existncia na cidade j atravancada de esttuas, os turistas a ignoram. A obra de
Antoniano foi esculpida num mrmore italiano; foi, portanto, certamente
executada na Itlia, sem dvida em Roma, pelo artista instalado na Vila ou trazida
por Adriano de alguma de suas viagens. de uma delicadeza infinita. A
folhagem de uma videira emoldura com os mais leves arabescos o jovem rosto,
melanclico e inclinado: pensa-se irresistivelmente nas vindimas da vida breve,
na atmosfera perfumada por todos os frutos de um entardecer de outono. A obra
traz as marcas dos anos passados num poro durante a ltima guerra: a brancura
do mrmore desapareceu temporariamente sob as manchas terrosas; trs dedos
da mo esquerda esto quebrados. Assim sofrem os deuses com as loucuras dos
homens.

(As linhas escritas acima foram publicadas pela primeira vez h seis anos; nesse
meio tempo, o baixo-relevo de Antoniano foi adquirido por um banqueiro romano,
Arturo Osio, homem curioso, que teria interessado Stendhal ou Balzac. Osio nutre
por um belo objeto a mesma solicitude que dispensa aos animais, que mantm em
liberdade em sua propriedade a dois passos de Roma, e s rvores, que plantou
aos milhares nos seus domnios de Orbetello. Rara virtude: Os italianos detestam
as rvores, j dizia Stendhal em 1828 e o que diria hoje, quando os
especuladores de Roma matam com injees de gua quente os belssimos
pinheiros guarda-sol, to protegidos pelos regulamentos urbanos, que os
estorvam na construo de suas termiteiras? Luxo raro tambm: so poucos os
homens ricos que animam suas florestas e seus prados com animais em liberdade,
no pelo prazer da caa, mas pelo de reconstruir uma espcie de admirvel den!
O amor pelas esttuas antigas, esses grandes objetos tranqilos, ao mesmo tempo
durveis e frgeis, quase igualmente raro entre os colecionadores da nossa
poca, agitada e sem futuro. Sob a orientao de especialistas, o novo proprietrio
do baixo-relevo de Antoniano acaba de submet-lo s mais delicadas limpezas,
feitas por mos hbeis; uma lenta e leve frico com a ponta dos dedos
desembaraou o mrmore de suas manchas e crostas, devolvendo pedra o suave
brilho do alabastro e do marfim.)

A segunda dessas obras-primas a clebre sardnica que leva o nome Gema


Marlborough, porque pertence a essa coleo hoje dispersa; esse belo entalhe
parecia extraviado ou soterrado h mais de trinta anos. Um leilo em Londres
trouxe-o de novo luz em janeiro de 1952; o gosto esclarecido do grande
colecionador Giorgio Sangiorgi trouxe-o para Roma. Fiquei devendo sua
benevolncia ver e tocar essa pea nica. L-se no rebordo uma assinatura
incompleta, que se supe no sem razo ser de Antoniano de Afrodsias. O artista
encerrou com tamanha mestria o perfil primoroso no quadro estreito de uma
sardnica, que aquele pedao de pedra ficou sendo, tanto quanto uma esttua ou
um baixo-relevo, o testemunho de uma grande arte perdida. As propores da
obra fazem esquecer as dimenses do objeto. Na poca bizantina, o reverso da
obra-prima foi moldado numa ganga do mais puro ouro. Assim passou de
colecionador desconhecido a colecionador desconhecido at Veneza, onde .sua
presena assinalada numa grande coleo no sculo XVIII; o clebre
antiqurio Gavin Hamilton comprou-a e levou-a para a Inglaterra, de onde volta
agora a seu ponto de partida, que foi Roma. De todos os objetos ainda hoje
presentes na face da Terra, o nico de que se pode presumir com relativa
certeza ter estado muitas vezes nas mos de Adriano.

H que penetrar nos recessos de um assunto para descobrir as coisas mais


simples e do mais amplo interesse literrio. Foi somente ao estudar Flgon, o
secretrio de Adriano, que vim a saber que se deve a essa personagem esquecida
a primeira e uma das mais belas dentre as grandes histrias de espectros, essa
sombria e voluptuosa Noiva de Corinto, na qual se inspiraram Goethe e o Anatole
France das Noites corntias. Flgon, alis, anotava com a mesma tinta, e com a
mesma curiosidade desordenada por tudo o que ultrapassa os limites humanos,
absurdas histrias de monstros de duas cabeas e de hermafroditas que
concebem e do luz. Tal era, pelo menos em certos dias, o assunto das
conversas mesa imperial.

Aqueles que teriam preferido um Dirio de Adriano s Memrias de Adriano


esquecem que o homem de ao raramente mantm um dirio: quase sempre
mais tarde, do fundo de um perodo de inatividade, que ele recorda, anota e, na
maioria das vezes, se surpreende.

Na falta de qualquer outro documento, a carta de Arriano ao imperador Adriano


acerca do priplo do mar Negro seria suficiente para recriar em suas grandes
linhas esta figura imperial; minuciosa exatido do chefe que tudo quer saber;
interesse pelos trabalhos da paz e da guerra; gosto pelas esttuas verossmeis e
bem-feitas; paixo pelos poemas e lendas de outrora. E o mundo, raro em
qualquer tempo, que desaparecer completamente depois de Marco Aurlio, e
no qual, por mais sutis que sejam as gradaes da deferncia e do respeito, o
letrado e o administrador se dirigem ainda ao prncipe como a um amigo. Tudo,
porm, est ali: melanclico retorno ao ideal da Grcia antiga; discreta aluso
aos amores perdidos e s consolaes msticas procuradas pelo sobrevivente;
obsesso pelos pases desconhecidos e pelos climas brbaros. A evocao, to
profundamente pr-romntica, das regies desertas habitadas por aves martimas
faz pensar no admirvel vaso encontrado na Vila Adriana e exposto hoje no
Museu das Termas, no qual, na brancura do mrmore, abre as asas e voa em
plena solido um bando de garas selvagens.

Nota de 1949. Quanto mais tento traar um retrato fiel, mais me afasto do livro e
do homem que poderiam agradar. Apenas alguns amantes do destino humano
compreendero.

O romance devora hoje todas as formas; somos quase forados a faz-las passar
por ele. Este estudo sobre o destino de um homem que se chamou Adriano teria
sido uma tragdia no sculo XVII; e, na Renascena, um ensaio.

Este livro a condensao de uma obra enorme, elaborada s para mim. Adquiri
o hbito de escrever todas as noites, quase automaticamente, o resultado das
longas vises artificialmente provocadas, em que eu me instalava na intimidade
de um outro tempo. As menores palavras, os menores gestos, as gradaes mais
imperceptveis eram anotados; cenas que o livro, tal como ele , resume em duas
linhas, passavam-se nessas notas em todos os seus detalhes, como em cmara
lenta. Reunidos uns aos outros, essas espcies de relatrios teriam dado um
volume de alguns milhares de pginas. Contudo, todas as manhs eu queimava o
trabalho da noite. Escrevi assim um grande nmero de meditaes demasiado
obscuras, e algumas descries bastante obscenas.

O homem apaixonado pela verdade ou, no mnimo, pela exatido


freqentemente o mais capaz de perceber, como Pilatos, que a verdade no
pura. E, por isso mesmo, misturada a afirmaes as mais incisivas, a hesitaes,
sinuosidades, subterfgios e desvios de que um esprito convencional no seria
capaz. Em certos momentos, alis pouco numerosos, aconteceu-me sentir que o
imperador mentia. Era preciso ento deix-lo mentir, como, de resto, todos ns.

Ignorncia daqueles que dizem: Adriano voc. Ignorncia talvez to grande


como a daqueles que se espantam de ter sido escolhido um assunto to remoto e
to estranho. O feiticeiro que golpeia a si mesmo no momento de evocar as
sombras sabe que elas s obedecero a seu apelo porque lhe sorvem o sangue.
Sabe tambm, ou deveria saber, que as vozes que lhe falam so mais sbias e
mais dignas de ateno do que seus prprios gritos.

Bem depressa compreendi que escrevia a vida de um grande homem. Desse


momento em diante, imps-se maior respeito pela verdade, maior ateno e, de
minha parte, maior silncio.
Em certo sentido, toda vida, quando narrada, exemplar; escrevemos para
atacar ou para defender um sistema do mundo, para definir um mtodo que nos
prprio. E no menos verdade que pela idealizao ou pela crtica mordaz a
todo custo, pelo detalhe fortemente exagerado ou prudentemente omitido,
desqualificam-se quase todos os bigrafos: o homem construdo substitui o
homem compreendido. Nunca perder de vista o grfico de uma vida humana,
que no se compe, digam o que disserem, de uma horizontal e de duas
perpendiculares, mas de trs linhas sinuosas, prolongadas at o infinito,
incessantemente reaproximadas e que divergem sem cessar: o que o homem
julgou ser, o que ele quis ser, e o que ele foi.

Faamos o que fizermos, reconstrumos sempre o monumento nossa maneira.


Mas j muito utilizar unicamente pedras autnticas.

Todo ser que viveu a aventura humana sou eu.

O sculo II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o sculo dos ltimos
homens livres. Pelo que nos diz respeito, j estamos talvez muito distantes desse
tempo.

A 26 de dezembro de 1950, por uma noite gelada, na orla do Atlntico, no silncio


quase polar da ilha dos Montes Desertos, nos Estados Unidos, tentei reviver o
calor, a sufocao de um dia de julho do ano 138 em Baias, o peso do lenol
sobre as pernas trpegas e cansadas, o rudo quase imperceptvel do mar sem
mar chegando, de um lado e de outro, at um homem ocupado com os sons de
sua prpria agonia. Tentei ir at a ltima gota de gua, a ltima agonia, a
derradeira imagem. Ao imperador s lhe resta morrer.

Este livro no dedicado a ningum. Deveria t-lo sido a G. F., e t-lo-ia sido se
no houvesse uma espcie de impudor em colocar uma dedicatria pessoal
numa obra em que eu desejava justamente apagar-me. Mas a mais longa
dedicatria ainda uma maneira incompleta e banal de honrar uma amizade to
pouco comum. Quando tento definir este bem que desde alguns anos me
concedido, digo comigo mesma que um tal privilgio, por mais raro que seja,
no pode, todavia, ser nico; que, na aventura de um livro levado a bom termo,
ou numa vida feliz de escritor, deve haver por vezes, um pouco na sombra,
algum que no deixa passar a frase inexata ou fraca que por fadiga gostaramos
de manter; algum que relera vinte vezes conosco, se necessrio, uma pgina
sobre a qual temos alguma dvida; algum que alcance para ns nas estantes das
bibliotecas os grossos volumes onde poderamos encontrar uma indicao til, e
se obstina em consult-los ainda no momento em que o cansao nos ter levado a
fech-lo; algum que nos ampara, nos aprova, por vezes nos combate; algum
que partilha conosco, com igual fervor, as alegrias da arte e as alegrias da vida,
seus trabalhos jamais tediosos e jamais fceis; algum que no nossa sombra,
nem mesmo nosso complemento, mas ele prprio; algum que nos deixa
divinamente livres e, contudo, nos obriga a ser plenamente aquilo que ns somos.
[2]
Hospes comesque .

Soube, em dezembro de 1951, da morte bastante recente do historiador alemo


Wilhelm Weber, e, em abril de 1952, da do erudito Paul Graindor, cujos
trabalhos me foram muito teis. Conversei, um desses dias, com duas pessoas, G.
B. e J. F., que conheceram em Roma o gravador Pierre Gusman, na poca em
que ele se ocupava em desenhar com paixo os stios da Vila. Sentimento de
pertencer a uma espcie de Gens lia, de fazer parte da multido dos secretrios
do grande homem, de participar dessa espcie de rendio da guarda imperial
cumprida pelos humanistas e poetas, revezando-se em torno de uma grande
lembrana. Forma-se assim atravs do tempo (e, certamente, sucede o mesmo
com os especialistas em Napoleo, com os que amam Dante) um crculo de
espritos, unidos pelas mesmas simpatias ou preocupados com os mesmos
problemas.

Os Blzios e os Vdios existem, e seu gordo primo Baslio ainda est de p.


Aconteceu-me uma vez, e no mais que uma vez, encontrar-me perante essa
mistura de insultos e zombarias de caserna, de citaes truncadas ou deformadas
com arte para que nossas frases digam disparates que elas no dizem, de
argumentos capciosos, apoiados em asseres ao mesmo tempo bastante vagas e
bastante peremptrias para merecerem crdito do leitor que nutre respeito pelo
homem munido de diplomas, leitor que no tem tempo, nem desejo de ir, ele
prprio, informar-se na fonte. Tudo isso caracteriza um certo gnero e uma certa
espcie, felizmente raros. Em compensao, quanta boa vontade de tantos
eruditos, que, em nossa poca de especializao furiosa, podiam desdenhar em
bloco todo esforo literrio de reconstruo do passado, suscetvel de parecer
invadir o campo deles! Entretanto, foi elevado o nmero dos que, entre eles,
quiseram espontaneamente incomodar-se para retificar um erro, confirmar um
detalhe, sustentar uma hiptese, facilitar uma nova pesquisa, razo pela qual no
posso deixar de dirigir aqui um agradecimento amigo a esses leitores benvolos.
Todo livro reeditado deve alguma coisa s pessoas honestas que o leram.

Fazer o melhor possvel. Refazer. Retocar, ainda imperceptivelmente, esse


retoque. a mim mesmo que corrijo ao retocar minhas obras, dizia Yeats.

Ontem, na Vila, pensei nos milhares de vidas silenciosas, furtivas como as dos
animais, irrefletidas como as das plantas, bomios do tempo de Piranesi,
saqueadores de runas, mendigos, pastores, camponeses alojados bem ou mal
num canto dos escombros, que se sucederam aqui, entre Adriano e ns. Na orla
de uma plantao de oliveira, num antigo corredor meio desobstrudo, G. e eu
nos encontramos ante o leito de canios de um pastor, o cabide improvisado para
seu capote, fixado entre dois blocos de cimento romano, as cinzas de sua fogueira
mal-apagada. Sensao de intimidade humilde, quase semelhante quela que se
experimenta no Louvre, depois de fechar, hora em que os leitos de campanha
dos guardas surgem entre as esttuas.
(Nada a mudar em 1958 nas linhas precedentes; o cabide do pastor, alm do seu
leito, esta l ainda. G. e eu fizemos novamente uma parada sobre a relva do
Tempe, entre as violetas, no momento sagrado em que tudo recomea, a despeito
das ameaas que o homem dos nossos dias faz pesar sobre si mesmo em toda
parte. Entretanto, a Vila sofreu uma insidiosa mudana. Incompleta, verdade:
no se altera to depressa um conjunto que os sculos destruram e formaram
lentamente. Mas, por um erro raro na Itlia, terieosos embelezamentos vieram
juntar-se s pesquisas e consolidaes necessrias. Oliveiras foram cortadas para
dar lugar a um indiscreto estacionamento de automveis e a um quiosque-bar,
gnero parque de exposies, que transformam a nobre solido do pcile numa
paisagem de praa mediocremente ajardinada; uma fonte de cimento mata a sede
dos passantes atravs de uma intil carranca de gesso que se pretende antiga;
outra carranca, mais intil ainda, ornamenta o muro de uma grande piscina,
decorada agora com uma flotilha de patos. Copiaram, tambm em gesso, algumas
esttuas bastante vulgares de jardim greco-romano, recolhidas aqui em
escavaes recentes, e que no mereciam nem esse excesso de honra nem essa
indignidade; tais rplicas, nessa feia matria inchada e flcida, colocadas um
pouco ao acaso sobre pedestais, do ao melanclico Canopo a aparncia de um
recanto de estdio para reconstituio filmada da vida dos Csares. Nada mais
frgil que o equilbrio dos belos lugares. Nossas fantasias de interpretao deixam
intactos os prprios textos, que sobrevivem a nossos comentrios; mas a menor
restaurao imprudente infligida s pedras, a menor estrada asfaltada cortando um
campo onde a relva crescia em paz h sculos criam para sempre o irreparvel. A
beleza afasta-se; a autenticidade, tambm.)

Lugares escolhidos para neles vivermos, residncias invisveis que construmos


para ns margem do tempo. Habitei Tbure e morrerei talvez ali, como
Adriano na ilha de Aquiles.

No. Uma vez mais, revisitei a Vila e seus pavilhes feitos para a intimidade e o
repouso, e seus vestgios de um luxo sem ostentao, to pouco imperial quanto
possvel, de rico amador que se esfora por unir as delcias da arte s douras
campestres; procurei no Panteo o lugar exato onde, numa manh de 21 de abril,
pousou uma mancha de sol; refiz, ao longo dos corredores do Mausolu, o
caminho fnebre tantas vezes palmilhado por Chbrias, Cler e Diotimo, amigos
dos derradeiros dias. Deixei, porm, de sentir a presena imediata desses seres,
desses fatos, sua atualidade: conservam-se prximos de mim, mas ultrapassados,
nem mais nem menos que as recordaes de minha prpria vida. Nosso
comrcio com outrem s tem um tempo; cessa uma vez obtida a satisfao,
aprendida a lio, prestado o servio, concluda a obra. Tudo o que fui capaz de
dizer foi dito; o que eu podia aprender foi aprendido. Ocupemo-nos, por um
tempo, de outros trabalhos.
Nota

Uma reconstituio deste gnero, isto , feita na primeira pessoa e colocada na


boca do homem que se pretendia apresentar, abrange dois aspectos simultneos:
o romance e a poesia; poderia, portanto, dispensar peas justificativas; contudo,
seu valor humano fortemente aumentado pela fidelidade aos fatos. O leitor
encontrar adiante uma relao dos principais textos sobre os quais a autora se
baseou para construir o livro. Respaldando assim uma obra de ordem literria,
no fez mais, de resto, que conformar-se com o costume de Racine que, nos
prefcios das suas tragdias, enumera cuidadosamente suas fontes. Contudo,
primeiramente, e para responder s questes mais instantes, seguimos tambm o
exemplo de Racine indicando certos pontos, pouco numerosos alis, em vista dos
quais a histria foi acrescida ou prudentemente modificada.

A personagem Marulino histrica, mas sua caracterstica principal, o dom


divinatrio, foi tomada de emprstimo a um tio, e no a um av de Adriano; as
circunstncias de sua morte so imaginrias. Uma inscrio nos informa que o
sofista Iseu foi um dos mestres do jovem Adriano, mas no h certeza de que o
estudante tenha feito, como foi dito aqui, a viagem a Atenas. Galo real, mas o
detalhe relativo ao malogro final dessa personagem foi criado para acentuar um
dos traos do carter de Adriano mais freqentemente mencionado: o rancor. O
episdio da iniciao mitraca foi inventado: naquela poca, esse culto j estava
em voga nos exrcitos; possvel, mas no est provado que Adriano, jovem
oficial, tivesse a fantasia de se fazer iniciar nesse culto. Sucede, naturalmente, o
mesmo com o tauroblio ao qual Antnoo se submete em Palmira: Meles Agripa,
Castoras e, no episdio precedente, Turbo, so evidentemente personagens reais;
sua participao nos ritos de iniciao inventada em todos os detalhes. Seguiu-
se, nessas duas cenas, a tradio que diz que o banho de sangue fazia parte do
ritual de Mitra, bem como do ritual da deusa sria, do qual certos eruditos o
consideram exclusivo, sendo ainda psicologicamente possveis essas
transposies de um culto ao outro, numa poca em que as religies de salvao
se contaminavam com a atmosfera de curiosidade, de ceticismo e de vago
fervor que foi a do sculo II. O encontro com o gimnosofista no , no que se
refere a Adriano, fornecido pela histria; foram utilizados textos dos sculos I e II
que descrevem episdios do mesmo gnero. Todos os detalhes relativos a Atiano
so exatos, salvo uma ou duas aluses sua vida privada, de que no sabemos
nada. O captulo sobre as amantes totalmente baseado em duas linhas de
Espartiano (XI, 7) sobre o assunto; criando aqui e ali onde era preciso,
esforamo-nos por nos restringir s generalidades mais plausveis.

Pompeu Prculo foi realmente governador da Bi tinia; apenas no certo que o


tenha sido em 123-124, quando da passagem do imperador. Estrato de Sardes,
poeta ertico e compilador do dcimo segundo livro da Antologia, vivia
provavelmente no tempo de Adriano; nada prova que ele tenha convivido com o
imperador, mas me pareceu tentador promover o encontro desses dois homens.
A visita de Lcio a Alexandria, em 130, foi deduzida (como j fez tambm
Gregorovius) de um texto freqentemente contestado, a Carta de Adriano a
Serviano, e a passagem que diz respeito a Lcio no torna obrigatria, de forma
alguma, tal interpretao. As probabilidades de sua presena no Egito so mais
do que incertas; os pormenores relativos a Lcio durante esse perodo so, pelo
contrrio, extrados quase todos da sua biografia escrita por Espartiano, Vita JElii
Caesaris. A histria do sacrifcio de Antnoo tradicional (Don, LXIX, 11;
Espartiano, XIV, 7); o detalhe das operaes de feitiaria inspirado nas
frmulas dos papiros mgicos do Egito, mas os incidentes da noite em Canopo
so inventados. O episdio da criana que caiu de um balco durante uma festa,
situado aqui durante a escala de Adriano em File, extrado de um relatrio dos
Papiros de Oxirrinco, e passou-se na realidade cerca de quarenta anos depois da
viagem de Adriano ao Egito. A associao da execuo de Apolodoro conjura
de Serviano no passa de uma hiptese, talvez defensvel.

Chbrias, Cler, Diotimo so inmeras vezes mencionados por Marco Aurlio, o


qual, entretanto, s indica seus nomes e sua fidelidade apaixonada memria de
Adriano.

Servimo-nos deles para evocar a corte de Tbure nos ltimos anos do reinado:
Chbrias representa o crculo de filsofos platnicos ou esticos que cercavam o
imperador; Cler (que no se deve confundir com o Cler mencionado por
Filostrato e Aristides, que foi secretrio ab epistulis grcis), o elemento militar; e
Diotimo, o grupo dos ernenos imperiais. Esses trs nomes histricos serviram,
portanto, de ponto de partida para a inveno parcial de trs personagens. O
mdico Iolas, pelo contrrio, personagem real de quem a histria no nos deu o
nome; no nos diz igualmente que tenha sido originrio de Alexandria. O ex-
escravo Onsimo existiu, mas no sabemos se ele ocupou junto a Adriano a
funo de intermedirio; o nome Crescncio, secretrio de Serviano, autntico,
mas a histria no nos revela que tenha trado seu amo. O mercador Opramoas
real, mas nada prova que tenha acompanhado Adriano na viagem pelo Eufrates.
A mulher de Adriano personagem histrica, mas no sabemos se era, como o
diz aqui Adriano, fina e altiva. Somente alguns comparsas, o escravo Eufrion,
os atores Olimpo e Btilo, o mdico Leotquides, o jovem tribuno britnico e o
guia Assar so totalmente inventados. As duas feiticeiras, a da ilha de Bretanha e
a de Canopo, personagens fictcias, resumem o mundo dos astrlogos e
praticantes das cincias ocultas de que Adriano se cercava de bom grado. O
nome de Aretia provm de um poema autntico de Adriano (Ins. gr., XIV
1089), mas o correio Mencrates encontrado na Carta do rei Fermes ao
imperador Adriano, texto inteiramente lendrio, de que a histria propriamente
dita no se poderia servir, mas que pode ter aproveitado esse detalhe de outros
documentos hoje perdidos. Os nomes de Benedita e de Tedoto, plidos
fantasmas amorosos que atravessam os Pensamentos de Marco Aurlio, foram
mudados, por motivos de estilo, em Vernica e Teodoro. Finalmente, os nomes
gregos e latinos gravados na base do Colosso de Mmnon, em Tebas, so, na sua
maior parte, copiados de Letronne, Recueil des ins-criptions grecques et latines
de 1gypte, 1848; a personagem, imaginria, de um certo Eumnio, que teria
estado naqueles lugares seis sculos antes de Adriano, tem por fim medir, para
ns e para o prprio Adriano, o tempo decorrido entre os primeiros visitantes
gregos do Egito, contemporneos de Herdoto, e os visitantes romanos de uma
manh do sculo II.

O breve esboo do meio familiar de Antnoo no histrico, mas tem em conta


as condies sociais que prevaleciam nessa poca na Bitnia. Sobre certos pontos
controvertidos como o afastamento de Suetnio, a origem livre ou servil de
Antnoo, a participao ativa de Adriano na guerra da Palestina, a data da
apoteose de Sabina e do enterro de lio Csar no Castelo de Santo ngelo , foi
preciso escolher entre as hipteses dos historiadores; esforamo-nos no sentido de
que as decises a serem tomadas s o fossem por boas razes. Em outros casos
como a adoo de Adriano por Trajano e a morte de Antnoo , procurou-se
deixar pairar sobre a narrativa uma incerteza que, antes de ser a da histria, foi,
sem dvida, a incerteza da prpria vida.

Anotamos rapidamente que as duas fontes principais do assunto que nos ocupa
so o historiador grego Don Cssio, que escreveu o captulo de sua Histria
romana consagrado a Adriano cerca de quarenta anos aps a morte do
imperador, e o cronista latino Espartiano, que redigiu pouco mais de um sculo
mais tarde sua Vita Hadriani, um dos textos mais slidos da Histria augusta, e sua
Vita lii Csesaris, obra mais ligeira, que apresenta uma imagem muito lgica do
filho adotivo de Adriano, superficial apenas porque a personagem o era. Esses
dois autores basearam-se em documentos desaparecidos mais tarde, entre outros
as Memrias publicadas por Adriano sob o nome do seu ex-escravo Flgon, e
uma coletnea de cartas do imperador compiladas por este ltimo. Nem Don
nem Espartiano so grandes historiadores, ou grandes bigrafos; contudo,
precisamente por sua falta de arte e, at certo ponto, de sistema, esto
significativamente mais prximos dos fatos vividos. Inclusive, as pesquisas
modernas tm confirmado freqentemente e de modo surpreendente o que eles
disseram. em grande parte sobre esse acervo de pequenos fatos que se baseia a
interpretao que se acabou de ler. Mencionamos tambm, sem, de resto,
tentarmos ser completos, alguns detalhes coligidos nas Vidas de Antonino e de
Marco Aurlio, por Jlio Capitolino; e algumas frases tiradas de Aurlio Vtor e
do autor do Eptome, que j tem uma concepo legendria da vida de Adriano,
mas cujo estilo, repleto de esplendor, se coloca numa categoria parte. As
notcias histricas do Dicionrio de Suidas forneceram dois fatos pouco
conhecidos: a Consolao, dirigida a Adriano por Numnio, e as msicas
fnebres compostas por Mesomedes por ocasio da morte de Antnoo.

Resta um certo nmero de obras autnticas do prprio Adriano que utilizamos:


correspondncia administrativa, fragmentos de discursos e de relatrios oficiais,
como a clebre Mensagem de Lambessa, conservados em geral por inscries;
decises legais transmitidas por jurisconsultos; poemas mencionados por autores
da poca, tais como o notvel Animula vagula blandula, ou encontrados nos
monumentos onde figuravam a ttulo de inscries votivas, como o poema ao
Amor e Afrodite Uraniana, gravado na parede do templo de Tspias (Kaibel,
Epigr. Gr., 811). As trs cartas de Adriano referentes sua vida pessoal (Carta a
Matdia, Carta a Serviano, Carta dirigida pelo imperador agonizante a Antonino)
so de autenticidade discutvel; no obstante as trs tm, ao mximo, a marca do
homem a quem so atribudas; algumas indicaes fornecidas por elas foram
utilizadas neste livro.

Recordamos aqui que as inmeras menes de Adriano ou do seu crculo ntimo,


dispersas por todos os escritores dos sculos II e III, completam as indicaes das
crnicas e preenchem-lhes as lacunas. Foi assim, para citar apenas alguns
exemplos, que o episdio das caadas na Lbia nasceu inteiro de um fragmento
do poema de Pancrates, As caadas de Adriano e de Antnoo, encontrado no Egito
e publicado em 1911 na coleo dos Papiros de Oxirrinco; que Atenia, Aulb
Glio e Filostrato forneceram numerosos detalhes sobre os sofistas e os poetas da
corte imperial; ou que Plnio, o Jovem, e Marcial acrescentaram alguns traos
imagem um tanto desvanecida de um Vocnio, ou de um Licnio Sura. A
descrio da dor de Adriano por ocasio da morte de Antnoo inspira-se nos
historiadores de seu reinado, mas tambm em certas passagens dos padres da
Igreja, reprovadora, sem dvida, mas por vezes mais humanas nesse ponto e,
sobretudo, mais variadas do que nos comprazemos em dizer. Algumas passagens
da Carta de Arriano ao imperador Adriano por ocasio do priplo do mar Negro,
que contm aluses ao mesmo assunto, foram incorporadas presente obra,
concordando a autora com a opinio dos eruditos que acreditam, de forma geral,
na autenticidade daquele texto. O Panegrico de Roma do sofista lio Aristides,
obra de estilo nitidamente adrinico, forneceu algumas linhas ao esboo do
Estado ideal traado aqui pelo imperador. Alguns detalhes histricos misturados,
no Talmude, a um vasto material lendrio vm juntar-se, para a guerra da

Palestina, narrativa da Histria eclesistica de Eusbio. A meno do exlio de


Favorino provm de um fragmento de um manuscrito seu publicado em 1931
pela Biblioteca do Vaticano (Studi e testi, LIII); o atroz episdio do secretrio cujo
olho foi vazado extrado de um tratado de Galiano, mdico de Marco Aurlio; a
imagem de Adriano agonizante inspira-se no trgico retrato do imperador
envelhecido feito por Marco Cornlio Fronto.

Outras vezes, foi aos monumentos figurados e s inscries que recorremos para
reproduzir em mincias fatos no registrados pelos historiadores antigos. Certos
apontamentos sobre a selvageria das guerras dcias e srmatas, prisioneiros
queimados vivos, conselheiros do rei Decbalo que se envenenam no dia da
capitulao, provm dos baixos-relevos da Coluna de Trajano (W. Frohner, La
Co-lonne Trajane, 1865, e LA. Richmond, Trajans army on Trajans Column,
1935); uma grande parte dos acontecimentos das viagens inspirada nas moedas
do reinado. Os poemas de Jlia Balbilla gravados na perna do Colosso de
Mmnon servem de ponto de partida narrativa da visita a Tebas (Cagnat,
Inscrip. gr. ad. res romanas pertinentes, 1186-7); a preciso relativa ao dia do
nascimento de Antnoo devida inscrio do colgio de artfices e escravos de
Lanuvium, que em 133 tomou Antnoo como protetor (Corp. ins. Lat. XIV, 2112),
preciso contestada por Mommsen, conquanto aceita por eruditos menos hiper-
crticos; algumas frases dadas como inscritas no tmulo do favorito foram tiradas
do grande texto hieroglfico do Obelisco de Pncio, que relata seus funerais e
descreve as cerimnias do seu culto. (A. Erman, Obelisken rmischer Zeit, 1896,
e O. Marucchi, Gli obelischi egiziani di Roma, 1898). Quanto ao relato das honras
divinas prestadas a Antnoo, e ao carter fsico e psicolgico deste, o testemunho
das inscries, dos monumentos figurados e das moedas ultrapassa bastante a
histria escrita.

No existe at hoje uma boa biografia de Adriano qual se possa remeter o


leitor; a nica obra do gnero que merece meno, e tambm a mais antiga, a
de Gregorovius, publicada em 1851, no de todo desprovida de vida e de cor,
mas fraca em tudo o que se refere a Adriano administrador e prncipe, e obsoleta
em grande parte. Da mesma forma, os brilhantes esboos de um Gibbon ou de
um Renan envelheceram. A obra mais recente de B.W. Henderson, The life and
principate of the emperor Hadrian, publicada em 1923, superficial apesar da
extenso, no oferece mais que uma imagem incompleta do pensamento de
Adriano e dos problemas de seu tempo, e utiliza insuficientemente as fontes. Mas,
se ficou por fazer uma biografia definitiva de Adriano, em compensao
abundam os resumos inteligentes e os slidos estudos de detalhe, e em muitos
pontos a erudio moderna renovou a histria do seu reinado e da sua
administrao. Para no citar mais que algumas obras recentes, ou quase, na
maior parte toV das de primeira plana, e mais ou menos acessveis,
mencionamos, em lngua francesa, os captulos consagrados^ a Adriano em Le
Haut-Empire Romain, de Lon Homo, 1933, e em UEmpire Romain, de E.
Albertini, 1936; a anlise das campanhas partas de Trajano e da poltica pacifista
de Adriano na Histoire de 1Asie, de Ren Grousset, 1921, seguida de perto na
descrio da campanha parta; o estudo sobre a obra literria de Adriano em Les
empereurs et les lettres latines, de Henri Bardon, 1944; as obras de Paul Graindor,
Athnes sous Hadrien, 1934; de Louis Perret, La titulature impriale dHadrien,
1929; e de Bernard dOrgeval, Uempereur Hadrien, son ozuvre lgislative et
administrative, 1950. Os trabalhos mais profundos sobre o reinado e a
personalidade de Adriano continuam sendo, todavia, os da escola alem; J. Drr,
Die Reisen des Kaisers Hadrian, Viena, 1881; J. Plew, Quellenuntersuchungen zur
Geschichte des Kaisers Hadrian, Estrasburgo, 1890; E. Kornemann, Kaiser
Hadrian und das letzte gr os se His-toriker von Rom, Leipzig, 1905, e sobretudo a
breve e admirvel obra de Wilhelm Weber, Untersucbungen zur Geschichte des
Kaisers Hadrianus, Leipzig, 1907, e o substancial ensaio, mais fcil de ser
consultado, que publicou em 1936 na coleo Cambridge Ancient History, vol. XI,
The imperial peace, pp. 294-324. Em lngua inglesa, veja-se principalmente o
importante captulo consagrado s reformas sociais e financeiras de Adriano na
grande obra de M. Rostovtzeff, Social and economic history of the Roman Em-
pire, 1926; os preciosos estudos de R. H. Lacey, The eques-trian officials of Trajan
and Hadrian: their careers, with some notes on Hadrians reforms, 1917; de Paul
Alexan-der, Letters and speeches of the emperor Hadrien, 1938; de W. D. Gray, A
study of the life Hadrian prior to his accession, Northampton, 1919; de F.
Pringsheim, The legal policy and reforms of Hadrian, no Journ. of Roman Stu-dies,
XXIV, 1934. Sobre a estadia de Adriano nas ilhas

Britnicas e a construo da muralha na fronteira da Esccia, consultar


especialmente a obra clssica de J. C. Bruce, The handbook to the Roman Wall,
edio revista por H. G. Collingwood em 1933, e, do mesmo Collingwood, em
colaborao com J. N. L. My res, Roman Britain and the English settlements, 2.a
ed., 1937.

Para a numismtica do reinado (com exceo das moedas de Antnoo, abaixo


mencionadas), vejam-se sobretudo os trabalhos relativamente recentes de H.
Mattingly e E. A. Sy denham, The Roman imperial coinage, II, 1926; e de P. L.
Strack, Untersuchungen zur romischen Reichs-prgung des zweiten Jahrhunderts,
II, -1933.

Sobre a personalidade de Trajano e suas guerras, veja-se R. Paribeni, Optimus


princeps, 1927; R. P. Long-den, Nerva and Trajan, e The wars of Trajan, em Cam-
bridge ancient history, XI, 1936; M. Durry, Le rgne de Trajan daprs les
monnaies, Rev. His., LVII, 1932, e W. Weber, Traian und Hadrian, 1923. Sobre
lio Csar, A. S. L. Farquharson, On the names of JElius Ceesar, Clas-sical
Quarterly, II, 1908, e J. Carcopino, Uhrdit dynas-tique chez les Antonins, 1950,
cujas hipteses foram afastadas como pouco convincentes, a favor da
interpretao literal dos textos. Sobre o caso dos quatro consulares, ver
principalmente A. von Premerstein, Das Attentat der Kon-sulare auf Hadrian im
Jahre 118, em Klio, 1908; J. Carcopino, Lucius Quietus, Uhomme de Qtvrnyn, em
Istros, 1934. Sobre os gregos que cercavam Adriano, ver particularmente A. von
Premerstein, C. Julius Quadratus Bas-sus, em Sitz. Bayr. Akad. d. Wiss, 1934; P.
Graindor, Un milliardaire antique, Hrode Atticus et sa famille, Cairo, 1930; L.
Boulanger, Mlius Aristide et Ia sophistique dans Ia province dAsie au lie. sicle
de notre re, nas publicaes da Bibliothque des coles Franaises dAthnes et
de Rome, 1923; K. Horna, Die Hymnen des Mesomedes, Leipzig, 1928;
Martellotti, Mesomede, publicaes da Scuola di Filologia Clssica, Roma, 1929,
H. C. Puech, Numnius dApame, em Mlanges Bidez, Bruxelas, 1934. Sobre a
guerra judaica, W. D. Gray, The foundation of Mlia Capitolina and the chronology
of the Jewish War under Hadrian, American Journal of Semitic Language, and
Literature, 1923; A. L. Sachar, A history of the jews, 1950; e S. Lieberman, Greek
in jewish Palestine, 1942. Algumas descobertas arqueolgicas feitas em Israel
durante os ltimos anos, relativas revolta de Bar Kochba, enriqueceram em
certos detalhes o nosso conhecimento da guerra da Palestina; a maior parte
dessas descobertas, realizadas depois de 1951, no puderam ser utilizadas na
presente obra.
A iconografia de Antnoo e, de maneira mais acidental, a histria da personagem,
no cessaram de interessar os arquelogos e os estetas, sobretudo em pases de
lngua germnica, desde que em 1764 Winckelmann deu coleo de retratos de
Antnoo, ou pelo menos a seus principais retratos conhecidos naquela poca, um
lugar importante na Histria da arte antiga. A maior parte desses trabalhos, que
datam do fim do sculo XVIII e mesmo do sculo XIX, no tm hoje, no que
nos diz respeito, nenhum interesse alm da mera curiosidade: a obra de L.
Dietrichson, Antinos, Cristinia, 1884, de um idealismo demasiado confuso,
continua, no entanto, digna de ateno pelo cuidado com que o autor reuniu a
quase totalidade das aluses antigas sobre o favorito de Adriano; o lado
iconogrfico, no menos cuidadoso, representa hoje, porm, um ponto de vista e
mtodo ultrapassados. O pequeno livro de F. Laban, Der Gemtsausdrck des
Antinos, Berlim, 1891, percorre as teorias estticas em moda na Alemanha da
poca, mas no enriquece em nada a iconografia propriamente dita do jovem
bitnio. O artigo singularmente penetrante, embora em estilo um tanto antiquado,
consagrado a Antnoo por J. A. Sy monds nos seus Sketches in Italy and Greece,
Londres, 1900, conserva grande interesse, assim como uma nota do mesmo
autor, sobre o mesmo assunto, em seu notvel e rarssimo ensaio sobre a inverso
na Antigidade, A problem in Greek ethics (dez exemplares fora do mercado,
1883, reimpressos cem exemplares em 1901). A obra mais recente de E. Holm,
Das Bildnis des Antinos, Leipzig, 1933, tem, pelo contrrio, os defeitos tpicos da
dissertao acadmica puramente rotineira, no acrescentando ao assunto nem
informaes, nem pontos de vista novos. Para os monumentos figurados de
Antnoo, com exceo da numismtica, o melhor texto, relativamente recente,
o estudo publicado por Pirro Marconi, Un saggio sulVarte delVet Adrianea:
Antinoo, no volume XXIX dos Monumenti antichi, R. Accademia dei Lincei,
Roma, 1923, estudo alis pouco acessvel ao grande pblico, pelo fato de que os
numerosos tomos dessa coleo s so encontrados completos em muito poucas
[3]
das grandes bibliotecas . O ensaio de Marconi, demasiado medocre sob o
ponto de vista da discusso esttica, estabelece, em compensao, um grande
progresso na iconografia, apesar de tudo ainda incompleta, do assunto, e pe
termo, por sua preciso, s nebulosas fantasias elaboradas em torno da
personagem de Antnoo at mesmo pelos melhores crticos romnticos. Vejam-
se tambm os breves estudos consagrados iconografia de Antnoo nas obras
gerais que tratam da arte grega, ou greco-romana, tais como as de G.
Rodenwaldt, Propylen-Kunstgeschichte, III, 2, 1930; E. Strong, Art in ancient
Rome, 2.a ed., Londres, 1929; Robert West, Rmische Portrt-Plastik, II,
Munique, 1941; e C. Seltman, Aproach to Greek art, Londres, 1948. As notas de
R. Lanciani e C. L. Visconti, Bullettino Commu-nale di Roma, 1886, os ensaios de
G. Rizzo, Antinoo-Sil-vano, em Ausonia, 1908, de S. Reinach, Les ttes des
mdaillons de VArc de Constantin, na Rev. Arch., srie IV, XV, 1910, de P.
Gauckler, Le sanctuaire syrien du Janicule, 1912, de H. Bills, Ein Jagddenkmal
des Kaisers Hadrian, em Jahr. d. arch. Inst., XXXIV, 1919, e de R. Bartoccini, Le
Terme di Lepcis, em frica Italiana, devem ser citados entre muitos outros acerca
dos retratos de Antnoo identificados ou descobertos no fim do sculo XIX e no
sculo XX, e acerca das circunstncias, por vezes curiosas, da sua descoberta.

No que diz respeito numismtica da personagem, o melhor trabalho, segundo os


numismatas mais qualificados que se ocupam hoje desse assunto, continua a ser
a indispensvel publicao intitulada Numismatique dAntinoos, no Journ. Int. d
Archologie Numismatique, XVI, p. 33-70, 1914, por G. Blum, jovem erudito
morto durante a guerra de 1914, e que deixou tambm alguns estudos
iconogrficos consagrados ao favorito de Adriano. Para as moedas de Antnoo
cunhadas na sia Menor, consulte-se especialmente E. Babelon e T. Reinach,
Recueil general des monnaies grecques dAsie-Mineure, I-IV, 1904-1912, e I, 2.a
edio, 1925; para suas moedas cunhadas em Alexandria, ver J. Vogt, Die
alexandrinischen Mnzen, 1924; e para algumas das suas moedas cunhadas na
Grcia, C. Seltman, Greek sculpture and some festival coins, em Hesperia (Journ.
of Amer. School of Classical Studies at Athens), XVII, 1948.

Relativamente s circunstncias to obscuras da morte de Antnoo, ver W.


Weber, Drei Untersuchungen zur gyptisch-iechischen Religion, Heidelberg,
1911. O livro de P. Graindor, j citado, Athnes sous Hadrien, contm (p. 13)
interessante aluso ao mesmo assunto. O problema da situao exata do tmulo
de Antnoo nunca foi esclarecido, apesar dos argumentos de C. Hlsen, Das Grab
des Antinos, em Mitt. d. deutsch. arch. Inst., Rm. Abt. XI, 1896, e em Berl. Phil.
Wochenschr., 15 de maro de 1919, e das opinies contrrias de H. Kahler sobre
o assunto em sua obra, mencionada mais abaixo, sobre a Vila Adriana.
Assinalamos ainda que o admirvel tratado de P. Festugire sobre La valeur
religieuse des papyrus magiques, publicado em 1932, e sobretudo sua anlise do
sacrifcio de Esis, da morte por imerso e da divinizao conferida por esse
modo vtima, sem conter qualquer referncia histria do favorito de Adriano,
nem por isso esclarecem menos as prticas que at ento s conhecamos por
uma tradio literria desvitalizada, e permitem arrancar essa lenda de
dedicao voluntria ao armazm dos acessrios trgico-picos, para coloc-la
no quadro bastante preciso de uma tradio oculta.

Quase todas as obras gerais que se ocupam da arte greco-romana conferem um


grande lugar arte adrinica; algumas dentre elas foram mencionadas no
pargrafo consagrado s efgies de Antnoo; para uma iconografia mais ou
menos completa de Adriano, de Trajano, das princesas de suas famlias, e de
lio Csar, deve-se consultar a obra j citada de Robert West, Rmische Portrt-
Plastik, e, entre muitos outros, os livros de P. Graindor, Bustes et statues-portraits
de Vgypte romaine, Cairo, s. d., e de F. Poulsen, Greek and Roman portraits in
English country houses, Londres, 1923, que contm um certo nmero de retratos
de Adriano e dos que o rodeavam, mais ou menos conhecidos e raramente
reproduzidos. Sobre a durao da poca adrinica em geral, e sobretudo para as
relaes entre os motivos empregados pelos cinzeladores e os gravadores e as
diretrizes polticas e culturais do reinado, merece meno especial a belssima
obra de Jocely n Toy n-bee, The hadrianic school, a chapter in the history of Greek
art, Cambridge, 1934.
As aluses s obras de arte encomendadas por Adriano, ou pertencentes s suas
colees, s tinham de figurar nesta narrativa na medida em que acrescentassem
um trao fisionomia de Adriano antiqurio, amador das artes ou amante
preocupado em imortalizar um rosto amado. A descrio das efgies de Antnoo,
mandadas fazer pelo imperador, e a prpria imagem do favorito vivo,
apresentada repetidamente no curso da presente obra, so naturalmente
inspiradas nos retratos do jovem bitnio, encontrados em sua maioria na Vila
Adriana, que existem ainda hoje e que passamos a conhecer pelos nomes dos
grandes colecionadores italianos dos sculos XVII e XVIII, nomes que Adriano
evidentemente no teria pensado em dar-lhes. A atribuio ao escultor Aristias
da pequena cabea que se encontra atualmente no Museu Nacional, em Roma,
uma hiptese de Pirro Marconi, num ensaio citado acima; a atribuio a Ppias,
outro escultor da poca adrinica, do Antnoo Farnese do Museu de Npoles, no
passa de simples conjetura da autora. Finalmente, a hiptese que pretende que
uma efgie de Antnoo, hoje impossvel de ser identificada com certeza, teria
ornado os baixo-relevos adrinicos do Teatro de Dioniso, em Atenas, tirada de
uma obra j citada de P. Graindor. A propsito de um detalhe, a provenincia das
trs ou quatro belas esttuas greco-romanas ou helensticas encontradas na
Itlica, ptria de Adriano, que ele deixou ainda criana e antes da idade em que
viria a se interessar pelas artes, a autora adotou a opinio que classifica essas
obras uma das quais, pelo menos, parece sada de uma oficina alexandrina,
com mrmores gregos datando do fim do sculo I ou do princpio do sculo II
como uma doao do prprio imperador sua cidade natal.

As mesmas observaes gerais aplicam-se meno dos monumentos erigidos


por Adriano, cuja descrio excessivamente documentada teria transformado
este volume num manual disfarado, e particularmente descrio da Vila
Adriana: homem de gosto, o imperador no apreciaria impor a seus leitores o
inventrio completo de sua propriedade. Nossas informaes sobre as grandes
construes de Adriano, tanto em Roma como nas diferentes partes do imprio,
ns as recolhemos atravs do seu bigrafo Espartiano, da Descrio da Grcia de
Pausnias, quanto aos monumentos edificados na Grcia, ou de cronistas mais
tardios, como Malalas, que insiste especialmente nos monumentos construdos ou
restaurados por Adriano na sia Menor. Foi por Procpio que ficamos sabendo
que a parte superior do Mausolu de Adriano era decorada por inmeras
esttuas, que serviram de projteis aos romanos na poca do cerco de Alarico;
foi pela breve descrio de um viajante alemo do sculo VIII, O annimo de
Einsiedeln, que nos foi possvel conservar uma imagem do que era, no princpio
da Idade Mdia, o Mausolu j fortificado desde a poca de Aureliano, mas
ainda no transformado em Castelo de Santo ngelo. A essas aluses e a essas
nomenclaturas, os arquelogos e os epigrafistas acrescentaram depois as suas
descobertas. Para dar apenas um exemplo destas ltimas, lembremos pelo
menos que foi em data relativamente recente, e graas s marcas da fbrica de
tijolos que serviram para edificar o monumento, que a honra da construo ,ou
da reconstruo total do Panteo foi atribuda a Adriano, durante muito tempo
considerado apenas o seu restaurador. Sobre a arquitetura adrinica, remetemos
o leitor maior parte das obras gerais sobre a arte greco-romana citadas acima,
e em particular de E. Strong, Art in ancient Rome, como tambm a C. Schultess,
Bauten des Kaisers Hadrianus, Hamburgo, 1898, e, para o Panteo, a G. Beltrani,
II Panteone, Roma, 1898, e a G. Rosi, Bollettino delia Comm. Ar. Comm., LIX, p.
227, 1931; para o Mausolu de Adriano, M. Borgatti, Castel S. ngelo, Roma,
1890; S. R. Pierce, The Mauso-leum of Hadrian and Pons JElius, no Journ. of
Rom. Stud., XV, 1925. Para as construes de Adriano em Atenas, alm da obra
vrias vezes citada de P. Graindor, Athnes sous Hadrien, 1934, recordamos
tambm o excelente captulo de Fougres, no seu Athnes, 1914, que, apesar de
antigo e modificado em alguns pontos pelas pesquisas mais recentes, contm
ainda o essencial.

Mencionamos aqui, para o leitor que se interessa mais especialmente por esse
lugar nico que a Vila Adriana, que os nomes das suas diferentes partes,
enumeradas por Adriano na presente obra e que ainda hoje se mantm, provm
igualmente de indicaes de Espartiano, indicaes que as escavaes ali
realizadas tm, at agora, confirmado e completado, mais que invalidado.
Acrescentamos que nosso conhecimento do estado primitivo dessa bela runa,
entre Adriano e ns, provm de toda uma srie de documentos escritos ou
gravados desde a Renascena, os mais preciosos dos quais so talvez o Rapport
dirigido pelo arquiteto Ligrio ao cardeal dEste em 1538, as admirveis gravuras
dedicadas a essa runa por Piranesi por volta de 1781, e, quanto a detalhes, os
desenhos do cidado Ponce (Arabesques antiques des bains de Livie et de Ia Villa
Adriana, Paris, 1789), que conservam a imagem dos estuques hoje destrudos.
So ainda essenciais os trabalhos mais recentes de Gaston Boissier, em
Promenades archologiques, 1880, de H. Weinnefeld, Die Villa des Hadrian bei
Tivoli, Berlim, 1895, e de Pierre Gusman, La Villa Impriale de Tibur, 1904. Ver
tambm, mais prxima de ns, a obra de R. Paribeni, La Villa delVimperatore
Adriano, 1930, e o importante trabalho de H. Khler, Hadrian und seine Villa bei
Tivoli, 1950. Os mosaicos dos muros da Vila, aos quais Adriano faz aluses aqui,
so aqueles das xedras, das paredes que enquadram os nichos das ninfas, muito
freqentes nas vilas da Campna do sculo I e que provavelmente
ornamentaram tambm os pavilhes do palcio de Tbure, aqueles que, segundo
numerosos testemunhos, revestiam a base das abbadas (sabemos por Piranesi
que as abbadas de Canopo eram brancas), ou ainda as dos emblemas, dos
quadros e mosaicos que era comum incrustar nos muros. Para todos esses
detalhes e para os realces de ouro que por vezes figuram sobre os mosaicos
desde a poca antonina, ver, alm de Gusman, j citado, o artigo de P. Gauckler,
em Daremberg e Saglio, Dictionnaire des antiquits grecques et romaines, III, 2,
Musivum Opus.

Aos que se interessam pelo episdio da fundao de Antino, lembramos aqui


que as runas da cidade fundada por Adriano em honra do seu favorito estavam
ainda de p no comeo do sculo XIX, quando Jomard desenhou as gravuras da
monumental Description de 1pygte, iniciada sob encomenda de Napoleo, e
que contm impressionantes imagens desse conjunto de runas hoje destrudas.
Cerca de meados do sculo XIX, um industrial egpcio transformou em cal esses
vestgios e empregou-os na construo de fbricas de acar nos arredores. O
arquelogo francs Albert Gay et trabalhou com ardor, mas, segundo parece,
com pouco mtodo, nesse lugar devastado, e as informaes contidas nos artigos
publicados por ele entre 1896 e 1914 so ainda, falta de coisa melhor,
extremamente teis. Os papiros recolhidos nos locais onde se erguiam Antino e
Oxirrinco, e publicados entre 1901 e nossos dias, no nos trouxeram nenhum
novo detalhe sobre a arquitetura da cidade adrinica ou sobre o culto do favorito;
um deles, porm, forneceu-nos uma lista bastante completa das divises
administrativas e religiosas da cidade, evidentemente estabelecidas pelo prprio
Adriano, e que testemunham uma forte influncia do ritual eleusaco no esprito
do seu autor. Ver sobre o assunto a obra citada mais acima de Wilhelm Weber,
Drei Untersuchungen zur gyptisch-griechischen Religion, como tambm E.
Khn, Antinoopolis, ein Beitrag zur Geschichte des Hellenismus im romischen
gypten, Gttingen, 1913, e B. Kbler, Antinopolis, Leipzig, 1914. O breve artigo
de M. J. Johnson, Antino and, its papyri, no Journ. of Egyp. Arch., I, 1914, d
excelente resumo da topografia da cidade de Adriano.

Uma inscrio antiga encontrada no prprio local (Ins. gr. ad rest. rom. pert., I,
1142) revela-nos a existncia de uma estrada aberta por Adriano, conquanto o
traado exato do seu percurso parea jamais haver sido reconstitudo; as
distncias indicadas por Adriano nesta obra so apenas aproximadas. Finalmente,
uma frase da inscrio de Antino, atribuda aqui ao prprio imperador, foi tirada
da narrativa de sieur Lucas, viajante francs que visitou Antino no princpio do
sculo XVIII.
A autora e sua obra

Ilha de Northeast Harbour, junto ao litoral do Estado do Maine, perto da fronteira


dos Estados Unidos com o Canad. Ali, isolada do mundo, vive e escreve
Marguerite Yourcenar, escrava dos pssaros e dos esquilos, submissa ordem
das coisas e da natureza. Octogenria mas incansvel, tem sempre um novo
romance a ser lanado, e diz: No acredito que a criatividade acabe aos
quarenta, acho que ela existe enquanto h vida.

Primeira mulher a ingressar, em 1980, na Academia Francesa (entidade fundada


em 1635), aquela que os franceses chamam a grande dama da literatura
lembrou, na ocasio, as muitas mulheres que, antes dela, em todos esses sculos,
mereceram e no receberam tal honraria.

Filha de me belga e pai francs, nascida em Bruxelas no ano de 1903,


Marguerite Yourcenar (anagrama de seu sobrenome verdadeiro, Cray encour)
costuma citar os trs fatores que se conjugaram em sua carreira literria: o
talento, alguma sorte e o sentido do momento, da oportunidade. Porm, no
tudo. Apesar de nunca ter freqentado colgios ou universidades, h a cultura e a
erudio excepcionais, a exatido descritiva, o detalhe em comunho com a
realidade da poca e das pessoas. simples leitura de qualquer um de seus
livros, tudo isso vem tona, chamem-se eles Memrias de Adriano ou A obra
em negro, Golpe de misericrdia ou Denrio do sonho, todos j publicados
no Brasil.

Educada pelo pai a me morreu de parto , Marguerite comeou a se


interessar desde criana pela cultura grega, aprendeu vrias lnguas da
Antigidade e decidiu tornar-se arqueloga. Na Itlia, na China, no Japo,
continuou o aprendizado das velhas civilizaes, fixando os cenrios de seus
futuros livros. Alm dos cenrios, a prpria idia mestra de muitos deles, escritos
dezenas de anos depois, datam de sua juventude.

Aos dezessete anos, escreveu sua primeira obra, Le jardin des chimres
(poesias), ao qual se seguiu Les dieux ne sont pas morts, trs anos depois.
Estava preparada para o primeiro sucesso e escndalo: Alexis ou o tratado do
vo combate (1929), cujo tema era o homossexualismo.

A seguir vieram La nouvelle Eury dice (1931) e La mort conduit Vattelage


(do mesmo ano), Denrio do sonho (1934), Contos orientais (1938), Golpe
de misericrdia (1939), Memrias de Adriano (1951) e A obra em negro
(1968), dois marcantes sucessos que lhe valeram, respectivamente, os prmios
Hlne-Varesco e Fmina. Alm desses romances e novelas, escreveu ensaios,
peas teatrais e memrias, sem contar os novos poemas Les charits
dAlcippe, de 1956 e as tradues de Virgnia Woolf e Henry James.
Do romance tradicional, onde j exibia seu estilo claro e rigoroso, a escritora
evoluiu para o romance histrico, ainda que se recuse a definir Memrias de
Adriano, sua obra mais conhecida, como um livro apenas histrico. De fato, ao
mergulhar na Antigidade, em busca do imperador Adriano e de suas certezas j
no fim da vida, a escritora no deixou de interpretar o que seria, para ela, a
figura do velho imperador.

Eu desconfio do romance histrico, declarou. Sempre que escrevemos,


interpretamos. No fundo, creio que sempre quis dar uma viso do passado
aproximada do presente. Ou antes, comparada, superposta viso do presente. O
que importa contar a histria de uma vida humana. Realmente, Marguerite
Yourcenar escreve contra o esquecimento e a favor da frgil felicidade, sempre
ameaada por fantasmas.

[1]
Pequena alma, terna e flutuante, / Hspede e companheira de meu corpo, /
Vais descer aos lugares / Plidos, duros, nus, / Onde ters de renunciar aos jogos
de outrora P. lio Adriano, Imp. (N. da T.)
[2]
Hspede e companheiro. Em latim no original. (N. da T.)
[3]
A mesma observao aplica-se naturalmente a muitas obras mencionadas
aqui. Nunca ser demais afirmar que um livro raro, esgotado, encontrado apenas
nas estantes de algumas bibliotecas, ou um artigo aparecido num nmero antigo
de uma publicao erudita, totalmente inacessvel para a grande maioria dos
leitores. Em noventa e nove por cento dos casos, o leitor desejoso de se instruir,
mas com falta de tempo e de algumas tcnicas familiares com que s o erudito
profissional esta familiarizado, mantm-se, queira ou no, tributrio de obras de
vulgarizao escolhidas um pouco ao acaso, e as melhores das quais, quase
nunca reimpressas, se tornam por sua vez dificlimas de encontrar. Aquilo a que
chamamos a nossa cultura , mais do que se julga, uma cultura a portas
fechadas. (N. da A.)

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