Memorias de Adriano - Marguerite Yourcenar PDF
Memorias de Adriano - Marguerite Yourcenar PDF
Memorias de Adriano - Marguerite Yourcenar PDF
Sobre a obra:
Sobre ns:
Estive esta manh com meu mdico Hermgenes, recm-chegado Vila depois
de longa viagem atravs da sia. O exame deveria ser feito em jejum; por essa
razo havamos marcado a consulta para as primeiras horas da manh. Deitei-
me sobre um leito depois de me haver despojado do manto e da tnica. Poupo-te
detalhes que te seriam to desagradveis quanto a mim mesmo, omitindo a
descrio do corpo de um homem que avana em idade e prepara-se para
morrer de uma hidropisia do corao. Digamos somente que tossi, respirei e
retive o flego segundo as indicaes de Hermgenes, alarmado, a contragosto,
pelos rpidos progressos do meu mal e pronto a lanar no oprbrio o jovem Iolas,
que me assistiu em sua ausncia. difcil permanecer imperador na presena do
mdico, e mais difcil permanecer homem. O olho do prtico no via em mim
seno um amontoado de humores, triste amlgama de linfa e sangue. Esta
manh, pela primeira vez, ocorreu-me a idia de que meu corpo, este fiel
companheiro, este amigo mais fiel e mais meu conhecido do que minha prpria
alma, no seno um monstro sorrateiro que acabar por devorar seu prprio
dono. Paz Amo meu corpo. Ele me serviu muito e de muitas maneiras: no lhe
regatearei agora os cuidados necessrios. Mas j no creio como
Hermgenes pretende ainda nas maravilhosas virtudes das plantas, na
dosagem exata dos sais minerais que ele foi buscar no Oriente. Esse homem,
embora perspicaz, cumulou-me de vagas expresses de conforto, demasiado
banais para iludir a quem quer que seja. Ele sabe o quanto odeio esse gnero de
impostura, mas no impunemente que se exerce a medicina durante mais de
trinta anos! Perdo a esse bom servidor a tentativa de ocultar-me minha prpria
morte. Hermgenes um sbio e tambm bastante judicioso. Sua probidade
superior de qualquer outro mdico da corte. Tenho a fortuna de ser o mais
bem-tratado dos doentes. Mas nada pode ultrapassar os limites estabelecidos;
minhas pernas intumescidas j no me podem sustentar durante as longas
cerimnias romanas. Sufoco! Tenho sessenta anos!
Comer em excesso hbito romano. Eu, porm, fui sbrio por volpia.
Hermgenes nada teve que modificar em meu regime, a no ser talvez a
impacincia que me obrigava a devorar, no importa onde fosse e a qualquer
hora, a primeira iguaria servida, para saciar de uma s vez as exigncias da
fome. No seria prprio do homem rico, que s uma vez na vida conheceu uma
privao voluntria e disso no fez mais do que uma experincia a ttulo
provisrio, como um dos incidentes mais ou menos excitantes da guerra e da
viagem, vangloriar-se de no se exceder mesa. Embriagar-se em certos dias
de festa foi sempre a ambio, a alegria e o orgulho dos pobres. Agradava-me o
odor das carnes assadas e o rudo das marmitas raspadas nas festas do exrcito, e
o fato de que os banquetes do acampamento (ou o que num acampamento se
pode chamar de banquete) eram o que sempre deveriam ser: um alegre e
grosseiro contrapeso s privaes dos dias de trabalho. Tolerava bastante bem o
odor das frituras nas praas pblicas, no tempo das Saturnais. Entretanto, os
festins romanos causavam-me tanta repugnncia e tanto tdio que, acreditando
s vezes morrer no curso de uma explorao ou de uma expedio, dizia a mim
mesmo, para reconfortar-me: pelo menos, nunca mais jantarei! No me faas a
injustia de tomar-me por um vulgar renunciador: uma operao que tem lugar
duas ou trs vezes por dia, e cuja finalidade alimentar a vida, merece
certamente todas as nossas atenes. Comer um fruto fazer entrar em si
mesmo um belo objeto vivo, estranho, nutrido e favorecido, como ns, pela terra.
consumar um sacrifcio no qual ns nos preferimos ao objeto. Jamais
mastiguei a crosta do po das casernas sem maravilhar-me de que essa massa
pesada e grosseira pudesse transformar-se em sangue, calor e, talvez, em
coragem. Ah! por que o meu esprito, nos melhores momentos, s possui uma
pequena parte dos poderes assimiladores do meu corpo?
Por outro lado, a doena e a idade operam tambm seus prodgios e recebem do
sono outras formas de bno. Foi em Roma, h cerca de um ano, depois de um
dia particularmente exaustivo, que conheci uma dessas trguas em que o
esgotamento das foras operava os mesmos milagres, ou antes, outros milagres
semelhantes s reservas inesgotveis de outrora. S vou raramente cidade,
onde procuro cumprir, num s dia, o maior nmero possvel de obrigaes. O dia
fora desagradavelmente sobrecarregado: uma sesso do Senado seguira-se de
outra no tribunal e de uma discusso interminvel com um dos magistrados das
finanas, e, finalmente, de uma cerimnia religiosa impossvel de ser abreviada,
durante a qual a chuva caiu sem cessar. Eu prprio programara tantas atividades
diferentes sem intervalos, deixando entre elas o menor espao de tempo possvel
para as importunaes e bajulaes inteis. O regresso a cavalo foi um dos meus
ltimos trajetos no gnero. Cheguei Vila indisposto, doente, sentindo frio como
s se sente quando o sangue se recusa a circular nas artrias. Cler e Chbrias
desdobraram-se em cuidados, mas a prpria solicitude pode ser fatigante, ainda
quando sincera. Recolhido a meus aposentos, engoli algumas colheradas de um
caldo quente que eu mesmo preparei, no por suspeita como muitos pensam,
mas porque s assim poderia dar-me ao luxo de estar s. Deitei-me em seguida.
O sono parecia estar to distante de mim como a sade, a juventude e a fora.
Todavia, adormeci. Ao despertar, a ampulheta provou-me que eu mal havia
dormido uma hora. Um curto momento de adormecimento total na minha idade
torna-se o equivalente dos sonos que duravam outrora toda uma meia revoluo
dos astros. Meu tempo passou a medir-se por unidades infinitesimais. Uma nica
hora fora suficiente para operar o humilde e surpreendente prodgio: o calor do
sangue reaquecia-me as mos; meu corao e meus pulmes recomeavam a
funcionar com uma espcie de boa vontade. A vida corria como um manancial
no muito abundante, mas fiel. O sono, em curto espao de tempo, havia
reparado meus excessos de virtude com a mesma imparcialidade com que teria
reparado os do vcio. A divindade desse grande restaurador quer que seus efeitos
benficos se exeram sobre qualquer pessoa adormecida, da mesma forma que
a gua carregada de poderes curativos no se preocupa com a identidade de
quem a bebe na nascente.
Como toda gente, s disponho de trs meios para avaliar a existncia humana: o
estudo de si mesmo, o mais difcil e o mais perigoso, mas tambm o mais
fecundo dos mtodos; a observao dos homens, que tratam freqentemente de
ocultar-nos seus segredos ou de nos fazer crer que os tm; os livros, com os erros
peculiares de perspectiva que surgem entre suas linhas. Li quase tudo o que
nossos historiadores, poetas e narradores escreveram, embora estes ltimos
tenham reputao de frvolos. A todos devo talvez mais informaes do que as
recolhidas nas mais diversas situaes da minha prpria vida. A palavra escrita
ensinou-me a apreciar a voz humana, tanto quanto a grande imobilidade das
esttuas me levou a valorizar os gestos. Em compensao, e no decorrer dos
tempos, a vida me fez compreender os livros.
Marulino, meu av, acreditava nos astros. Esse velho alto, magro e encardido
pelos anos dedicava-me o mesmo grau de afeio sem ternura, sem sinais
exteriores, quase sem palavras, que votava aos animais da sua propriedade, sua
terra e sua coleo de pedras cadas do cu. Descendia de uma longa sucesso
de antepassados estabelecidos na Espanha desde a poca dos Cipies. Era, na
linha senatorial, o terceiro do nome: a nossa famlia at ento fora da ordem
eqestre. Tomara parte, alis modesta, nos negcios pblicos sob o reinado de
Tito. Esse provinciano desconhecia o grego e falava o latim com um sotaque
espanhol gutural que me transmitiu, e que foi motivo de riso mais tarde. Todavia,
seu esprito no era de todo inculto. Aps sua morte, foi encontrada em sua casa
uma arca cheia de instrumentos de matemtica e de livros nos quais ele no
tocava havia vinte anos. Possua conhecimentos em parte cientficos, em parte
camponeses, naquela mistura de preconceitos rgidos e de velha sabedoria que
caracterizaram Cato, o Velho. Mas Cato foi durante toda a vida o homem do
Senado romano e da guerra de Cartago, o perfeito representante da impiedosa
Roma da Repblica. A rudeza quase impenetrvel de Marulino remontava a mais
longe, a pocas mais antigas. Era o homem da tribo, a encarnao de um mundo
sagrado e quase terrvel, de que encontrei, por vezes, vestgios junto aos
necromantes etruscos. Andava sempre de cabea descoberta, costume que me
transmitiu e que me valeu muitas crticas. Seus ps, ressequidos como o couro,
dispensavam sandlias. Seu vesturio dos dias comuns pouco diferia das vestes
dos velhos mendigos e dos graves meeiros acocorados ao sol. Diziam-no
feiticeiro, e os aldees evitavam-lhe o olhar. Dispunha de singulares poderes
sobre os animais: vi sua velha cabea aproximar-se prudentemente,
amistosamente, de um ninho de vboras, e seus dedos nodosos executarem uma
espcie de dana diante de um lagarto. Costumava levar-me para observar o cu
durante as noites de vero, do alto de uma colina rida. Cansado de contar os
meteoros, eu adormecia dentro de um fosso. Quanto a ele, permanecia sentado,
de cabea erguida, girando imperceptivelmente com os astros. Devia conhecer
os sistemas de Filolau e de Hiparco, e tambm o de Aristarco de Samos, que
adotei mais tarde. Tais especulaes, entretanto, j no o interessavam mais. Os
astros eram para ele pontos inflamados, objetos como as pedras, ou os vagarosos
insetos dos quais ele retirava os pressgios, partes constituintes de um universo
mgico que abarcava tambm as volies dos deuses, a influncia dos demnios
e o quinho reservado aos homens. Ele construra o tema da minha natividade.
Certa noite, veio ter comigo, sacudiu-me para despertar-me e anunciou-me o
imprio do mundo com o mesmo laconismo resmungo com que teria anunciado
uma boa colheita ao pessoal da fazenda. Depois, tomado de desconfiana, foi
procurar um tio na pequena fogueira de sarmentos que mantinha acesa para
nos aquecer durante as horas mais frias. Aproximou-o da minha mo, lendo, na
minha palma cheia de menino de onze anos, no sei que confirmao das linhas
inscritas no cu. O mundo era para ele um s bloco; a mo confirmava os astros.
Sua mensagem perturbou-me menos do que se poderia crer: as crianas tudo
esperam. A seguir, creio que esqueceu sua prpria profecia, naquela indiferena
pelos acontecimentos presentes e futuros peculiar idade avanada. Uma
manh, encontraram-no no bosque de castanheiros, nos confins do nosso
domnio, completamente frio e bicado aqui e ali pelas aves de rapina. Antes de
morrer, tentara ensinar-me sua arte, mas sem sucesso. Minha curiosidade natural
saltava s concluses sem se preocupar com os detalhes complicados e um tanto
repugnantes da sua cincia. Conservei, porm, talvez em demasia, o gosto por
certas experincias perigosas. g
Meu pai, lio fer Adriano, era homem sobrecarregado de virtudes. Sua vida
passou-se em administraes inglrias; jamais teve voz ativa no Senado. Ao
contrrio do que acontece ordinariamente, seu governo na frica no o
enriqueceu. Em nossa casa, no nosso municpio espanhol de Itlica, ele se
consumia resolvendo conflitos locais. No tinha ambies, nem alegrias. Como
todos os homens que, de ano para ano, se apagam cada vez mais, entregou-se
com aplicao manaca aos pequenos misteres a que ficou reduzido. Eu prprio
conheci essas respeitveis tentaes da mincia e do escrpulo. A experincia
havia desenvolvido em meu pai um extraordinrio ceticismo a respeito do
prximo, no qual ele me inclua desde pequeno. Meus xitos, se os tivesse
presenciado, no o teriam absolutamente deslumbrado; o orgulho da famlia era
to forte que ningum poderia esperar que eu contribusse para lhe acrescentar
qualquer coisa. Tinha doze anos quando esse homem extremamente cansado nos
deixou. Minha me se instalou para o resto da sua vida numa austera viuvez. No
a revi depois do dia em que, chamado por meu tutor, parti para Roma. Conservo
do seu rosto alongado de espanhola, marcado por uma doura cheia de
melancolia, uma lembrana que o busto de cera da galeria dos antepassados
confirma. Como as filhas de Gades, tinha os ps pequenos calados em sandlias,
e o suave balano dos quadris, que caracteriza as bailarinas dessa regio,
reaparecia nessa jovem matrona irrepreensvel.
A conveno oficial exige que um imperador romano nasa em Roma, mas foi
em Itlica que nasci. Foi a esse pas seco e, no entanto, frtil que sobrepus mais
tarde muitas regies do mundo. A conveno tem a vantagem de provar que as
decises do esprito e da vontade transcendem as circunstncias. O verdadeiro
lugar de nascimento aquele em que lanamos pela primeira vez um olhar
inteligente sobre ns mesmos: minhas primeiras ptrias foram os livros. Em
menor escala, as escolas. As da Espanha ressentiam-se dos cios da provncia. A
escola de Terncio Escauro, em Roma, ensinava mediocremente os filsofos e os
poetas, mas nos preparava bastante bem para as vicissitudes da existncia
humana: os mestres exerciam sobre os discpulos uma tirania que eu me
envergonharia de impor aos homens. Cada qual, confinado dentro dos estreitos
limites do seu saber, desprezava os colegas, que, por sua vez, conheciam as
outras matrias de maneira igualmente limitada. Esses pedantes discutiam at
ficarem roucos. As que-relas de precedncia, as intrigas, as calnias
familiarizaram-me com o ambiente que encontraria mais tarde em todas as
sociedades em que vivi. No obstante, estimei alguns dos meus mestres. Gostava
das relaes estranhamente ntimas e singularmente indefinidas que existem
entre professores e alunos, como um canto de sereia no fundo de uma voz
trmula que, pela primeira vez, nos revela uma obra-prima, ou nos d a
conhecer uma idia nova. O maior sedutor no , afinal, Alcibades, mas
Scrates.
Os mtodos dos gramticos e dos retricos so, talvez, menos absurdos do que eu
imaginava na poca em que lhes estava sujeito. A gramtica, com sua mistura de
regras lgicas e de uso arbitrrio, prope ao esprito jovem um antegosto do que
lhe oferecero mais tarde as cincias da conduta humana, o direito ou a moral,
todos os sistemas, enfim, em que o homem codificou sua experincia instintiva.
Quanto aos exerccios de retrica, em que ramos sucessivamente Xerxes e
Temstocles, Otvio e Marco Antnio, arrebatavam-me, e eu me sentia um novo
Proteu. Tais exerccios ensinaram-me a penetrar alternadamente no pensamento
de cada homem e a compreender que cada um se decide, vive e morre segundo
suas prprias leis. A leitura dos poetas surtiu efeitos mais perturbadores ainda: no
estou certo de que a descoberta do amor seja necessariamente mais deliciosa do
que a da poesia. Esta me transformou: a iniciao morte no me levar mais
longe num outro mundo do que o crepsculo de Virglio. Mais tarde, preferi a
rudeza de nio, to prxima das origens sagradas da raa, ou a sbia amargura
de Lucrcio, ou a graa generosa de Homero, ou ainda a humilde parcimnia de
Hesodo. Apreciei, sobretudo, os mais complicados e os mais obscuros poetas que
obrigavam meu pensamento ginstica mais difcil, fossem mais recentes ou
mais antigos, desde que me franqueassem novos caminhos ou que me ajudassem
a encontrar as pistas perdidas. Naquela poca, porm, eu preferia, na arte dos
versos, aqueles que falavam mais diretamente aos sentidos, como o metal polido
de Horcio ou a brandura voluptuosa de Ovdio. Escauro desanimou-me ao
afirmar que eu nunca seria mais do que um poeta medocre: faltavam-me o dom
e a aplicao. Acreditei por muito tempo que ele se enganara: tenho em certo
lugar, sob chave, um ou dois volumes de versos de amor, na maior parte imitados
de Catulo. Mas agora me importa muito pouco que minhas produes pessoais
sejam detestveis ou no.
A despeito das lendas que me cercam, amei muito pouco a juventude, a minha
menos que qualquer outra. Considerada em si mesma, essa juventude to
elogiada aparece-me mais freqentemente como uma poca malpolida da
existncia, um perodo opaco e informe, frgil e fugidio. No preciso dizer que
encontrei certo nmero de deliciosas excees a essa regra, duas ou trs
admirveis, a mais pura das quais foste tu mesmo, Marco. Quanto a mim, era
aos vinte anos mais ou menos o que sou hoje, apenas sem a mesma consistncia.
Nem tudo em mim era mau, mas poderia s-lo: o bom ou o melhor
contrabalanavam o pior. No medito, sem corar, na minha ignorncia do
mundo, que acreditava conhecer, na minha impacincia, espcie de ambio
frvola e de grosseira avidez. Seria preciso confess-lo? No seio da vida estudiosa
de Atenas, onde at os prazeres eram desfrutados com sobriedade, sentia falta de
Roma, no por ela mesma, mas pela atmosfera do lugar onde se fazem e se
desfazem continuamente os negcios do mundo, onde se pode ouvir o rudo das
polias e das rodas de transmisso da mquina do poder. O reinado de Domiciano
chegava ao fim; meu primo Trajano, coberto de glria nas fronteiras do Reno,
transformava-se em grande homem popular; a tribo espanhola implantava-se em
Roma. Comparada a esse mundo de ao imediata, a bem-amada provncia
grega parecia modorrar numa poeira de idias j respiradas; a passividade
poltica dos helenos me parecia uma forma demasiado inferior de renncia. Era
inegvel meu apetite de poder, de riqueza, que entre ns freqentemente a
primeira forma de ambio e de glria, para dar esse nome belo e apaixonante
comicho de ouvir falar de ns mesmos. A isso se misturava confusamente o
sentimento de que Roma, inferior em tantas coisas, era superior na familiaridade
com as grandes aes que ela exigia dos seus cidados, pelo menos daqueles que
pertenciam ordem senatorial ou eqestre. Atingira o ponto em que a mais banal
discusso sobre a importao do trigo do Egito parecia ensinar-me mais sobre o
Estado que toda A Repblica, de Plato. J alguns anos antes, jovem romano
acostumado disciplina militar, eu acreditava compreender, melhor do que
meus professores, os soldados de Lenidas e os atletas de Pndaro. Abandonava
Atenas, seca e dourada, pela cidade onde os homens encapuzados em pesadas
togas lutam contra o vento de fevereiro, onde o luxo e o deboche so destitudos
de encanto, mas onde as decises mais insignificantes afetam a sorte de uma
parte do mundo; onde um jovem provinciano vido, mas no demasiadamente
obtuso, acreditando a princpio s obedecer a ambies bastante grosseiras,
deveria pouco a pouco perd-las ao realiz-las, aprendendo a adaptar-se s
medidas dos homens e das coisas, a comandar e, coisa finalmente um pouco
menos ftil, a servir.
Nem tudo era perfeito nesse advento de uma virtuosa classe mdia que se
firmava em razo de uma prxima mudana de regime. A honestidade poltica
ganhava a partida com a ajuda de estratagemas bastante ambguos. O Senado,
colocando aos poucos toda a administrao nas mos dos seus protegidos,
fechava o crculo em torno de Domiciano, j no fim de suas foras; os homens
novos, aos quais me ligavam laos de famlia, no eram talvez muito diferentes
daqueles que pretendiam substituir. Apenas, no estavam ainda corrompidos pelo
poder. Os primos e sobrinhos da provncia contavam, no mnimo, com postos
subalternos que eram solicitados a ocupar com integridade. Quanto a mim, fui
nomeado juiz no tribunal encarregado dos litgios entre herdeiros. Foi nesse posto
modesto que assisti aos ltimos lances do duelo de morte entre Domiciano e
Roma. O imperador havia perdido p na cidade, onde s se mantinha custa de
execues que lhe apressavam o fim. O exrcito inteiro tramava-lhe a morte. Eu
compreendia pouca coisa dessa esgrima, mais mortal do que a da arena.
Contentava-me em sentir pelo tirano em apuros o desprezo um tanto arrogante de
um discpulo dos filsofos. Aconselhado por Atiano, exerci meu cargo sem me
ocupar muito com a poltica.
Esse ano de trabalho diferiu pouco dos de estudo: o direito era-me desconhecido.
Tive a sorte de ter por colega no tribunal Nercio Prisco, que concordou em
instruir-me e que permaneceu meu conselheiro legal e meu amigo at o dia de
sua morte. Ele pertencia a esse rarssimo tipo de esprito que, conhecendo a
fundo uma especialidade, vendo-a por assim dizer de dentro e de um ponto de
vista inacessvel aos leigos, conserva, todavia, o senso do seu valor relativo na
ordem das coisas, medindo-o em termos humanos. Mais versado na rotina da lei
que nenhum outro dos seus contemporneos, nunca hesitava perante inovaes
teis. Foi graas a ele que, mais tarde, consegui realizar certas reformas. Outros
trabalhos impuseram-se. Tendo conservado meu sotaque provinciano, meu
primeiro discurso no tribunal suscitou o riso geral. Decidi-me ento a freqentar
os atores, escandalizando minha famlia. Minhas lies de elocuo foram,
durante longos meses, a mais rdua e a mais deliciosa de minhas tarefas, e o
segredo mais bem guardado de toda a minha vida. A prpria devassido tornou-
se um estudo nesses anos difceis; procurava imitar em tudo a juventude dourada
de Roma, o que, alis, jamais consegui completamente. Por covardia prpria da
idade, cuja temeridade exclusivamente fsica gasta em outros lugares, eu s
ousava confiar em mim pela metade e, na esperana de assemelhar-me aos
outros, embotava ou aguava minha natureza.
Era pouco estimado. Alis, no havia nenhuma razo especial para que o fosse.
Certos traos de minha personalidade, por exemplo o gosto das artes, que
passavam despercebidos no estudante de Atenas e que seriam geralmente aceitos
no imperador, prejudicavam o oficial e o magistrado nos primeiros estgios da
autoridade. Meu helenismo provocava sorrisos, tanto mais porque eu ora o exibia,
ora o dissimulava desastradamente. No Senado, cognominaram-me o estudante
grego. Comeava a criar minha lenda, reflexo cintilante e bizarro, inspirado em
parte por nossas aes, em parte pelo que o vulgo pensa delas. Os cnicos
litigantes mandavam-me as mulheres como suas delegadas, assim que sabiam de
uma intriga minha com a esposa de um senador, ou o prprio filho, quando eu
alardeava loucamente minha paixo por algum jovem. Dava-me prazer
confundir essa gente com minha indiferena. Mais lastimveis ainda eram
aqueles que, para agradar-me, falavam de literatura. A tcnica que tive de
desenvolver nesses postos medocres serviu-me mais tarde nas minhas
audincias imperiais. Dedicar-me inteiramente a cada pessoa durante a breve
durao da audincia, pr de lado tudo o que no fosse aquele banqueiro, aquele
veterano, aquela viva; conceder a pessoas to diversas, embora encerradas
naturalmente em seus estreitos limites, toda a ateno polida que dispensamos a
ns mesmos nos melhores momentos, e v-las aproveitar quase infalivelmente
essa oportunidade para incharem como a r da fbula; enfim, consagrar alguns
momentos para pensar seriamente em seus problemas ou em seus negcios. Era
ainda como o gabinete do mdico. Nessas audincias eu colocava a nu terrveis
dios antigos; uma verdadeira lepra de mentiras. Maridos contra mulheres, pais
contra filhos, colaterais contra todo mundo; o pouco respeito que nutro
pessoalmente pela instituio da famlia no resistiu muito a isso.
Eu lhe inspirava pouqussima confiana. Sendo meu primo, vinte e quatro anos
mais velho do que eu, aps a morte do meu pai tornou-se meu co-tutor.
Desempenhava suas obrigaes de famlia com uma seriedade provinciana;
estava to pronto a fazer o impossvel para promover-me, se me mostrasse
digno, quanto para me tratar com maior rigor do que a qualquer outro, se me
mostrasse incompetente. Tinha encarado as minhas loucuras de rapaz com
indignao que no era inteiramente injustificada, indignao que, de resto, no
se encontra em parte alguma, a no ser na famlia. Minhas dvidas o
escandalizavam, alis, muito mais do que meus desatinos. Outras particularidades
minhas o inquietavam: inculto, ele nutria pelos filsofos e literatos um respeito
tocante, mas uma coisa admirar de longe os grandes filsofos, e outra ter ao
seu lado um jovem primeiro-tenente demasiado impregnado de literatura.
Ignorando onde se situavam meus princpios, desconhecendo meus limites e
meus freios, supunha-me desprovido de fora interior e inclusive de recursos
contra mim mesmo. Ainda bem que eu jamais havia cometido o erro de
negligenciar o servio. Minha reputao de oficial o tranqilizava, se bem que
no fosse para ele mais do que um jovem tribuno cheio de futuro a quem se deve
vigiar de perto.
A primeira expedio contra os dcios foi desfechada no ano seguinte. Por gosto
e por poltica, sempre me opus ao partido da guerra, mas teria sido menos do que
um homem se esses grandes feitos de Trajano no me houvessem entusiasmado.
Vistos em conjunto e distncia, esses anos de guerra contam-se entre os mais
felizes de minha vida. Seu incio foi duro, ou assim me pareceu. S ocupei a
princpio postos secundrios; ainda no conquistara inteiramente a benevolncia
de Trajano. Mas, como eu conhecia o pas, sabia-me til. Quase sem dar por
isso, inverno aps inverno, acampamento aps acampamento, batalha aps
batalha, via crescer em mim objees poltica do imperador. Nessa poca no
tinha nem o dever nem o direito de fazer tais objees em voz alta. Alis, se as
fizesse, ningum me teria escutado. Colocado mais ou menos distncia, no
quinto ou talvez dcimo lugar, conhecia tanto melhor minhas tropas quanto mais
partilhava de suas vidas. Possua ainda certa liberdade de ao ou, antes, certo
desinteresse em relao prpria ao, difcil de ser mantido quando se chega
ao poder e depois dos trinta anos. Tinha vantagens bem pessoais: meu gosto por
aquele pas rude, minha paixo por todas as formas voluntrias, alis
intermitentes, de desprendimento e austeridade. Era talvez o nico dos jovens
oficiais a no lamentar estar longe de Roma. Quanto mais os anos de campanha
se prolongavam na lama e na neve, tanto maior era minha resistncia.
Certo nmero de aes brilhantes, que no teriam sido notadas num simples
soldado, deram-me fama em Roma e uma espcie de glria no exrcito. Porm,
a maior parte de minhas pretensas faanhas no passou de simples bravatas
inteis. Nelas descubro hoje, com alguma vergonha, um desejo baixo de agradar
a todo custo e de atrair a ateno sobre mim, tudo isso de mistura com a
exaltao quase sagrada de que te falava ainda h pouco. Foi assim que, num dia
de outono, atravessei a cavalo o Danbio engrossado pelas chuvas, carregado
com o pesado equipamento dos soldados batavos. Nesse feito de armas, se assim
se lhe pode chamar, minha montaria teve mais mrito do que eu. Contudo, esse
perodo de loucuras hericas ensinou-me a distinguir os diversos aspectos da
coragem. A bravura que eu teria desejado possuir devia ser fria, indiferente,
isenta de toda excitao fsica e impassvel como a equanimidade de um deus.
Esta, no posso vangloriar-me de jamais t-la atingido. A contrafao de que me
utilizei mais tarde no passava, nos meus dias maus, de uma forma cnica de
indiferena pela vida; nos bons, era apenas o sentimento do dever a que me
aferrava. Mas, por pouco que o perigo durasse, bem depressa o cinismo ou o
sentimento do dever cediam lugar a um delrio de intrepidez, espcie de estranho
orgasmo do homem unido a seu destino. Naquela idade, essa coragem
embriagadora persistia sem interrupes. Um ser brio de vida no prev a
morte; ela no existe; ele a nega em cada uma de suas atitudes. Se a recebe
provavelmente sem o saber; a morte para ele apenas um choque ou um
espasmo. Sorrio amargamente ao dizer a mim mesmo que, hoje, a cada dois
pensamentos, um consagrado a meu prprio fim, como se fossem necessrios
tantos preparativos para decidir este corpo gasto a enfrentar o inevitvel. Naquela
poca, ao contrrio, um homem jovem, que teria tanto a perder se no vivesse
alguns anos mais, alegremente arriscava todos os dias seu futuro.
Eu era, mais do que nunca, da famlia, e nela fui mais ou menos forado a viver.
Tudo, porm, me desagradava nesse ambiente, exceto o belo rosto de Plotina. Os
conterrneos espanhis e os primos da provncia abundavam mesa imperial, tal
como os reencontrei mais tarde nos jantares de minha mulher, durante minhas
raras permanncias em Roma. No direi que ento os achei envelhecidos
porque, j naquela poca, toda essa gente parecia centenria. Exalava-se deles
uma espessa circunspeco, espcie de prudncia ranosa. Quase toda a vida do
imperador fora passada no exrcito; ele conhecia Roma infinitamente menos do
que eu. Empenhava-se, porm, com incomparvel boa vontade em rodear-se de
tudo quanto a cidade lhe oferecia de melhor, ou que lhe apresentavam como tal.
O mundo oficial que o cercava compunha-se de homens admirveis em
decncia e honorabilidade, mas de cultura um tanto pesada e cuja filosofia
demasiado dbil no atingia o fundo das coisas. Jamais apreciei a afabilidade
afetada de Plnio. O sublime aprumo de Tcito parecia-me um ponto de vista de
republicano reacionrio, estagnado desde a poca da morte de Csar. Os
elementos no oficiais eram de grosseria repulsiva, o que me levou a evitar os
riscos dessa convivncia. Entretanto, mantive, para com essas pessoas to
diferentes, a polidez indispensvel. Fui deferente para com uns, malevel para
com outros, acanalhado se preciso, e sempre, mas no excessivamente, hbil.
Minha versatilidade era-me necessria; multiplicava-me por clculo, era
ondulante por jogo. Caminhava sobre a corda bamba. No era somente das aulas
de ator que eu precisava, mas das de um acrobata.
Reprovavam-me, nessa altura, alguns adultrios com jovens patrcias. Duas ou
trs dessas ligaes to criticadas duraram aproximadamente at o incio do meu
principado. Roma, to indulgente para com a devassido, jamais admitiu o amor
quando envolvia seus governantes. Marco Antnio e Tito souberam bem o que
significava isso! Minhas aventuras eram mais modestas, mas no vejo como, nos
nossos costumes, um homem a quem as cortess desagradavam profundamente,
e para quem o casamento j se tornara insuportvel, poderia encontrar outra
maneira de se familiarizar com o mundo variado das mulheres. Encabeados
pelo intolervel Serviano, meu idoso cunhado, que sendo trinta anos mais
velho do que eu exercia sobre mim os cuidados de preceptor e os de espio,
meus inimigos pretendiam que a ambio e a curiosidade desempenhavam papel
mais importante nos meus amores do que o prprio amor, que a intimidade com
as esposas me introduzia, pouco a pouco, nos segredos polticos dos maridos, e
que as confidencias das minhas amantes substituam para mim os relatrios da
polcia com os quais me deliciei mais tarde. certo que qualquer ligao um
tanto longa me proporcionava quase inevitavelmente a amizade de um esposo
gordo ou dbil, afetado ou tmido e, quase sempre, cego. Mas geralmente essas
amizades me proporcionavam tambm pouco prazer e nenhum proveito. Devo
inclusive confessar que certas informaes indiscretas das minhas amantes,
sussurradas no leito, acabavam por despertar em mim certa simpatia por aqueles
maridos to escarnecidos e to mal compreendidos. Essas ligaes, agradveis
quando as mulheres eram hbeis, tornavam-se perturbadoras quando eram belas.
Estudava as artes; familiarizava-me com as esttuas e aprendia a conhecer
melhor a Vnus de Cnido ou a Leda trmula sob o peso do cisne. Era o mundo de
Tibulo e de Proprcio: uma melancolia, um ardor um pouco artificial, mas
persistente como uma melodia maneira frgia; eram beijos sob escadas
secretas, echarpes esvoaantes sobre seios, partidas ao romper da aurora e
guirlandas de flores cadas no umbral das portas.
Ignorava quase tudo dessas mulheres; a parte que entregavam das suas vidas
cabia entre duas portas entreabertas. Seu amor, do qual falavam sem cessar,
parecia-me por vezes to leve como uma de suas guirlandas, como uma jia da
moda, um ornamento caro e frgil. Imaginava-as ataviando-se com sua paixo,
tal como usavam o carmim ou colocavam seus colares. Minha vida ntima no
lhes era menos misteriosa; no desejavam sequer conhec-la, preferindo
fantasi-la segundo a imaginao. Acabei por compreender que o esprito do
jogo exigia esses perptuos disfarces, esses excessos nas confidencias e nas
queixas, esse prazer ora aparente, ora dissimulado, esses encontros planejados
como os passos de uma dana. Mesmo nas disputas, esperavam de mim uma
rplica antecipadamente calculada, e a bela mulher desfeita em lgrimas torcia
as mos como num palco.
Tenho pensado freqentemente que os amantes apaixonados pelas mulheres se
prendem ao tempo e aos acessrios do culto tanto, pelo menos, quanto sua
prpria deusa. Deleitam-se com os dedos tintos pela hena vermelha, com os
perfumes na pele, com os mil artifcios que realam a beleza e, por vezes,
fabricam-na por completo. Esses ternos dolos diferem em tudo das grandes
fmeas brbaras ou das nossas camponesas pesadas e graves; nascem das
volutas douradas das nossas grandes cidades, dos cubculos dos tintureiros ou do
vapor mido das estufas, assim como Vnus das ondas dos mares gregos.
Dificilmente se poderia dissoci-las da doura febril de certas noites da
Antiquia, da excitao das manhs de Roma, dos nomes famosos que usavam,
do ambiente de luxo em que o maior requinte era mostrarem-se nuas, mas
jamais sem seus adereos. Eu teria ambicionado muito mais: queria a criatura
humana despojada de tudo, sozinha consigo mesma, como teria sido foroso que
estivesse algumas vezes na doena, ou depois da morte do primeiro filho recm-
nascido, ou frente a uma primeira ruga no espelho. Um homem que l, pensa ou
calcula, pertence espcie e no ao sexo; nos seus melhores momentos ele
escapa inclusive ao humano. No entanto, minhas amantes pareciam vangloriar-
se de s pensar como mulheres: o esprito ou a alma que eu buscava ainda no
era mais que um perfume.
Contudo, ali devia existir alguma coisa mais. Como uma personagem de comdia
que aguardasse o momento propcio dissimulado atrs de um reposteiro, eu
espreitava com curiosidade os rumores de um interior desconhecido, o som
peculiar das tagarelices femininas, a exploso de clera ou de risos, os
murmrios de uma intimidade, tudo o que cessava quando sabiam de minha
presena. As crianas, a eterna preocupao com o vesturio, os problemas de
dinheiro deviam reassumir na minha ausncia uma importncia que me
ocultavam; o prprio marido, to escarnecido, tornava-se essencial, talvez
amado. Comparava minhas amantes fisionomia desagradvel das mulheres da
minha famlia, as econmicas e as ambiciosas, incessantemente ocupadas na
apurao das contas domsticas, ou em supervisionar a limpeza dos bustos dos
antepassados; perguntava a mim mesmo se aquelas frias matronas, por sua vez,
estreitavam um amante em seus braos sob o cara-mancho do jardim, e se
minhas fceis beldades no esperariam apenas minha partida para
recomearem suas discusses com o mordomo. Bem ou mal, procurava juntar
aquelas duas faces do universo das mulheres.
Durou onze meses, e foi atroz. Continuo a acreditar que o aniquilamento dos
dcios foi, de certa maneira, justificado: nenhum chefe de Estado suporta
voluntariamente a existncia de um inimigo organizado instalado s suas portas.
Contudo, a derrocada do reino de Decbalo criara naquelas regies um vazio
onde os srmatas se precipitaram. Remanescentes de tropas, pequenos bandos
sados no se sabe de onde, infestavam o pas devastado por anos de guerra,
queimado e requeimado por ns, onde nossos efetivos insuficientes no tinham
pontos de apoio. Tais bandos pululavam como vermes no cadver de nossas
vitrias dcias. Nossos recentes xitos haviam solapado a disciplina: havia nos
postos avanados qualquer coisa da grosseira indiferena das festas romanas.
Certos tribunos mostravam uma confiana imbecil ante os riscos que corriam;
perigosamente isolados numa regio da qual a nica parte bem conhecida era
nossa antiga fronteira, contavam, para continuar a vencer, com nosso
armamento, que eu via diminuir dia a dia em conseqncia das perdas e do
prprio desgaste, e com reforos que eu no esperava ver chegar, sabendo que
todos os nossos recursos seriam dali em diante concentrados na sia.
Meu posto nas fronteiras me mostrara uma face da vitria que no figura na
Coluna de Trajano. Meu regresso administrao civil permitiu-me acumular
contra o partido militar documentos ainda mais decisivos do que todas as provas
reunidas no exrcito. Os quadros das legies e toda a guarda pretoriana so
exclusivamente formados por elementos italianos: aquelas guerras longnquas
drenavam as reservas de um pas que j era pobre de homens. Aqueles que no
morriam estavam to perdidos como os outros para a ptria propriamente dita,
visto que os foravam a estabelecer-se nas novas terras conquistadas. Mesmo na
provncia, o sistema de recrutamento provocou nessa poca distrbios srios.
Uma viagem Espanha, empreendida um pouco mais tarde para fiscalizar a
explorao das minas de cobre da minha famlia, revelou-me a desordem
introduzida pela guerra em todos os setores da economia: acabei por me
convencer que tinham fundamento os protestos dos homens de negcios com os
quais convivia em Roma. No tinha a ingenuidade de acreditar que dependeria
sempre de ns evitar todas as guerras; mas s as queria defensivas; idealizava um
exrcito preparado para manter a ordem nas fronteiras, retificadas se necessrio,
mas seguras. Qualquer novo acrscimo do vasto organismo imperial parecia-me
uma excrescncia doentia, um cncer, ou o edema de uma hidropisia de que
acabaramos por morrer.
Nenhum desses pontos de vista podia ser apresentado ao imperador. Ele havia
chegado a um certo momento da vida, varivel para cada homem, em que o ser
humano se abandona ao seu demnio ou ao seu gnio, e segue uma lei misteriosa
que lhe ordena destruir-se a si mesmo ou superar-se. No conjunto, a obra do seu
principado fora admirvel, mas os trabalhos de paz para os quais seus melhores
conselheiros o haviam engenhosamente inclinado, os grandes projetos dos
arquitetos e dos legistas do imprio, sempre contaram menos para ele do que
uma nica vitria. Um delrio de despesas se havia apossado desse homem, to
nobremente parcimonioso quando se tratava de suas necessidades pessoais. O
ouro brbaro, retirado do leito do Danbio, e os quinhentos mil lingotes de ouro do
rei Decbalo tinham sido suficientes para custear as liberalidades feitas ao povo,
as doaes militares de que eu tivera minha parte, o luxo insensato dos jogos e os
fundos iniciais necessrios s grandes aventuras da sia. Essas riquezas nocivas
iludiam o verdadeiro estado das finanas. Aquilo que vinha da guerra guerra
retornava.
Nesse nterim, morreu Licnio Sura. Era o mais liberal dos conselheiros privados
do imperador. Sua morte foi para ns uma batalha perdida. Ele sempre me dera
provas de uma solicitude paternal. Havia alguns anos que suas foras, muito
reduzidas pela doena, no lhe permitiam os longos trabalhos de ambio
pessoal, mas foram sempre suficientes para servir a um homem cujos objetivos
lhe pareciam sensatos. A conquista da Arbia foi empreendida contra seus sbios
conselhos; somente ele, se houvesse vivido, teria podido poupar ao Estado as
fadigas e as despesas gigantescas da campanha parta. Esse homem, consumido
pela febre, passava suas horas de insnia a discutir comigo planos que o
esgotavam, mas cujo xito lhe importava mais do que algumas migalhas
suplementares de existncia. Vivi sua cabeceira, antes e nos ltimos momentos
de sua administrao, algumas das futuras fases do meu reinado. As crticas do
moribundo poupavam o imperador, mas ele sentia que levava consigo o que
restava de sabedoria no regime. Se tivesse vivido dois ou trs anos mais, certos
processos tortuosos que marcaram minha ascenso ao poder talvez tivessem sido
evitados; teria conseguido persuadir o imperador a adotar-me mais cedo e
abertamente. Mas as ltimas palavras desse chefe de Estado que me legava sua
misso foram uma das minhas investiduras imperiais.
Durante esses poucos anos que precederam a grande crise, tomei uma deciso
que para sempre levou meus inimigos a considerar-me frvolo, e que foi, em
parte, calculada para essa finalidade com o objetivo de enfraquecer qualquer
ataque. Fui passar alguns meses na Grcia. A poltica, pelo menos em aparncia,
nada teve que ver com essa viagem. Tratava-se de uma excurso de prazer e
estudo: trouxe de l algumas taas esculpidas e livros que partilhei com Plotina.
Recebi todas as honras oficiais, mas, entre estas, a que aceitei com a mais pura
alegria foi ter sido nomeado arconte de Atenas. Concedi a mim prprio alguns
meses de trabalhos e prazeres fceis, passeios durante a primavera pelas colinas
cobertas de anmonas e o contato agradvel com a pureza do mrmore nu. Em
Queronia, aonde fui expressamente para comover-me com a evocao dos
antigos pares de amigos do Batalho Sagrado, hospedei-me por dois dias em casa
de Plutarco. Tive meu prprio Batalho Sagrado, exclusivamente meu, mas,
como me acontece freqentemente, minha vida emociona-me menos do que a
histria. Cacei na Arccia e orei em Delfos. Em Esparta, beira do Eurotas,
alguns pastores ensinaram-me uma ria de flauta muito antiga, um estranho
canto de pssaro. Prximo a Megara, houve uma boda camponesa que durou
toda a noite; meus companheiros e eu ousamos tomar parte nas danas, o que nos
teria sido proibido pelos pesados costumes de Roma.
Os vestgios dos nossos crimes eram visveis por toda parte: as muralhas de
Corinto destrudas por Mmio, bem como os espaos deixados vazios ao fundo
dos santurios I pelo rapto das esttuas, organizado durante a escandalosa viagem
de Nero. A Grcia empobrecida conservava uma atmosfera de graa pensativa,
de clara sutileza e de sbia voluptuosidade. Nada mudara desde a poca em que
o discpulo do retrico Iseu havia respirado pela primeira vez o odor do mel
quente, do sal e da resina. Em suma, nada mudara havia sculos. A areia das
palestras era to dourada quanto antes. Fdias e Scrates no mais as
freqentavam, mas os jovens que se exercitavam ali se assemelhavam ainda ao
delicioso Chrmidas. Parecia-me, s vezes, que o esprito grego no levara at
suas concluses extremas as premissas do seu prprio gnio: as colheitas estavam
por fazer; as espigas amadurecidas pelo sol e j ceifadas eram pouca coisa em
comparao com a promessa eleusina da semente escondida naquela bela terra.
Mesmo entre meus selvagens inimigos srmatas, encontrara vasos de contornos
purssimos, um espelho embelezado com uma imagem de Apoio, resplendores
gregos como um plido sol sobre a neve. Entrevia a possibilidade de helenizar os
brbaros, aticizar Roma e impor suavemente ao mundo a nica cultura que um
dia se separou do monstruoso, do informe, do esttico, e que inventou uma
definio do mtodo e uma teoria da poltica e da beleza. O leve desdm dos
gregos, que nunca deixei de sentir sob suas mais calorosas homenagens, no me
ofendia. Pelo contrrio, achava-o natural. Fossem quais fossem as virtudes que
me distinguiam deles, sabia que seria sempre menos sutil do que um marinheiro
de Egina, e menos sbio do que uma vendedora de ervas da Agora. Aceitava
sem irritao os obsquios um tanto altivos dessa raa orgulhosa; concedia a todo
um povo os privilgios que sempre concedi to facilmente aos objetos amados.
No entanto, para dar aos gregos o tempo de continuar e de completar sua obra,
seriam necessrios alguns sculos de paz vividos entre os calmos cios e a
prudente liberdade que s a paz proporciona. A Grcia contava conosco para
sermos seus guardies, j que nos pretendamos seus senhores. Prometi a mim
mesmo velar sobre o deus desarmado.
Havia um ano que eu ocupava meu posto de governador da Sria quando Trajano
reuniu-se a mim na Antiquia. Vinha observar os preparativos finais para a
expedio da Armnia que, em sua mente, preludiava o ataque contra os partos.
Plotina acompanhava-o como sempre, e tambm sua sobrinha Matdia, minha
indulgente sogra, que h anos fazia parte da sua comitiva na qualidade de
intendente. Celso, Palma e Nigrino, meus velhos inimigos, pertenciam ainda ao
Conselho e dominavam o estado-maior. Toda essa gente se reuniu no palcio
espera da entrada em campanha. As intrigas da corte recomearam com maior
intensidade. Cada qual fazia seu jogo antes que os dados da guerra fossem
lanados.
O homem que media com passos impacientes as imensas salas daquele palcio,
construdo outrora pelos selucidas, e que eu prprio (que aborrecimento!) havia
decorado em sua honra com inscries laudatrias e panplias dcias, j no era
mais o mesmo que me acolhera havia vinte anos no acampamento de Colnia.
Suas virtudes tinham envelhecido. Sua jovialidade um tanto pesada, que encobria
outrora uma verdadeira bondade, tornara-se rotina vulgar; sua firmeza
transformou-se em obstinao; sua inclinao para o imediato e o prtico
reduziu-se a uma total incapacidade de pensar. O terno respeito que ele
dispensava imperatriz, a afeio rabugenta que testemunhava sobrinha
Matdia transformavam-se numa dependncia senil para com essas mulheres.
Inexplicavelmente, porm, opunha resistncia cada vez maior aos conselhos
delas. Suas crises de fgado inquietavam Crton, o mdico, embora ele mesmo
no se preocupasse com isso. A seus prazeres sempre faltara arte; com a idade, o
nvel deles descera ainda mais, se isso fosse possvel. Pouco importava que,
terminado o dia, o imperador se entregasse libertinagem de caserna em
companhia dos jovens em quem encontrava atrativos ou beleza. Parecia, por
outro lado, bastante grave que ele suportasse mal o vinho de que abusava. Mas
grave ainda era que aquela corte de subalternos medocres, selecionados e
manobrados por ex-escravos desonestos, fosse autorizada a assistir a todas as
minhas conversas com ele, transmitindo-as em seguida a meus adversrios.
Durante o dia, s via o imperador nas reunies de estado-maior. Nessas reunies,
totalmente ocupadas com o planejamento dos detalhes de campanha, qualquer
tentativa de manifestar uma opinio livre era impossvel. Fora dali, ele evitava
todo e qualquer dilogo. O vinho inspirava a esse homem pouco sutil um arsenal
de artimanhas grosseiras. Sua antiga suscetibilidade desaparecera; insistia em
associar-me a seus prazeres: a algazarra, as gargalhadas, os gracejos mais
inspidos dos rapazes eram sempre bem recebidos, como outros tantos meios de
me fazer compreender que a hora no era apropriada para tratar de assuntos
srios. Ele espreitava o momento em que um copo a mais me perturbaria a
razo. Nessas ocasies, tudo girava minha volta naquela sala, onde as cabeas
de auroques dos trofus brbaros pareciam rir na minha cara. Os jarros de vinho
sucediam-se ininterruptamente; canes avinhadas ecoavam aqui e ali,
interrompidas somente pelo riso insolente e encantador de um jovem pajem;
apoiando na mesa a mo cada vez mais trmula, o imperador, emparedado
numa embriaguez talvez mais simulada do que real, perdido longe de tudo nas
estradas da sia, mergulhava gravemente em seus sonhos
Csar tinha razo ao preferir o primeiro lugar numa aldeia ao segundo em Roma.
No por ambio ou por glria v, mas porque o homem colocado em segundo
lugar s tem escolha entre os perigos da obedincia ou da revolta, ou ainda os do
compromisso, muito mais graves. Eu no era nem mesmo o segundo em Roma.
No momento de partir para uma expedio temerria, o imperador no me
designara ainda seu sucessor: cada passo frente dava uma chance aos chefes
do estado-maior. Aquele homem quase ingnuo parecia-me agora mais
complicado do que eu prprio. Somente seus acessos de mau humor me
tranqilizavam: o imperador mal-humorado me tratava como a um filho. Em
outros momentos, esperava ser afastado por Palma, ou suprimido por Quieto to
logo meus servios pudessem ser dispensados. No tinha poder algum: no
conseguia sequer obter uma audincia para os membros influentes do Sindrio da
Antiquia, que, tanto quanto ns, temiam as violncias dos agitadores judeus, e
que teriam esclarecido Trajano sobre as maquinaes dos seus correligionrios.
Meu amigo Latnio Alexandre, que descendia de uma das antigas famlias reais
da sia Menor e cujo nome e fortuna tinham grande peso, no foi mais ouvido
do que eu. Plnio, enviado para a Bitnia quatro anos antes, ali foi morto sem ter
tido tempo de informar o imperador sobre o exato estado de esprito do povo e
das finanas, supondo-se que seu incurvel otimismo lhe permitisse faz-lo. Os
relatrios secretos do mercador Opramoas, da cidade de Lcia, que conhecia a
fundo os negcios da sia, foram ridicularizados por Palma. Os ex-escravos se
aproveitavam das manhs de ressaca, aps as noites de bebedeira, para me
afastar dos aposentos imperiais: o ordenana do imperador, um tal Fdimo,
honesto, mas estpido e predisposto contra mim, recusou-me por duas vezes a
entrada. Em compensao, o cnsul Celso, meu inimigo, trancou-se uma noite
com Trajano para um concilibulo que durou horas, ao cabo do qual me senti
perdido. Procurei aliados onde pude; corrompi a peso de ouro antigos escravos
que, de bom grado, teria enviado s galeras; desci at o ponto de acariciar
horrveis cabeas encarapinhadas. O diamante de Nerva j no brilhava mais.
Foi ento que me apareceu o mais sbio dos meus gnios bons: Plotina. Conhecia
a imperatriz havia quase vinte anos. Provnhamos do mesmo meio e tnhamos
quase a mesma idade. Vira-a viver com serenidade uma existncia quase to
constrangida quanto a minha, e mais desprovida de futuro. Plotina apoiou-me nos
meus momentos mais difceis, sem parecer notar que o fazia. Mas foi durante os
maus dias da Antiquia que sua presena se me tornou indispensvel, como mais
tarde sua estima o continuou a ser sempre, e esta eu tive at sua morte. Habituei-
me presena daquela figura de vestes brancas, to simples quanto o podem ser
as de uma mulher. Acostumei-me igualmente a seus silncios, a suas palavras
ponderadas que nunca passavam de respostas, e sempre as mais claras possveis.
Sua aparncia no destoava absolutamente daquele palcio mais antigo do que
todo o esplendor de Roma: a filha de novos ricos era digna dos selucidas.
Estvamos quase sempre de acordo. Tnhamos, os dois, a paixo de ornamentar
e depois despojar nossa alma, de submeter nosso esprito a todas as pedras de
toque. Ela se inclinava para a filosofia epicurista, esse leito estreito, mas limpo,
sobre o qual estendi por vezes meu pensamento. O mistrio dos deuses, que me
perseguia, no a inquietava; tambm no tinha, como eu, o gosto apaixonado
pelos prazeres do corpo. Era casta por desprezo das coisas fceis, generosa mais
por determinao do que por natureza, desconfiada por prudncia, conquanto
pronta a aceitar tudo dos amigos, mesmo seus erros inevitveis. A amizade era
uma escolha na qual ela se empenhava por inteiro, entregando-se sem reservas,
como s conseguiu faz-lo no amor. Plotina conheceu-me melhor do que
ningum, porque s a ela permiti ver o que eu dissimulava cuidadosamente
diante dos outros: por exemplo, minhas covardias secretas. Agrada-me crer que,
por sua vez, ela nada me escondeu. A intimidade dos corpos, que jamais existiu
entre ns, foi compensada pelo contato dos nossos dois espritos, estreitamente
identificados entre si.
Por sua vez, a febre da rebelio diminua. Fora to violenta no Egito, que era
necessrio recrutar s pressas milcias camponesas enquanto se esperava por
nossas tropas de reforo. Encarreguei imediatamente meu amigo Mrcio Turbo
de ali restabelecer a ordem, o que ele fez com firmeza e sabedoria. Mas a ordem
nas ruas s me satisfazia pela metade; queria, se possvel, restabelec-la nos
espritos, ou melhor, faz-la reinar neles pela primeira vez. A permanncia por
uma semana em Pelusa foi inteiramente empregada no sentido de manter o fiel
da balana entre gregos e judeus, eternos incompatveis. No vi nada daquilo que
eu teria querido ver: nem as margens do Nilo, nem o Museu de Alexandria, nem
as esttuas dos templos. Tive tempo apenas para consagrar uma noite s
agradveis orgias de Canopo. Seis dias interminveis se passaram no barril
efervescente do tribunal, protegido contra o calor do exterior por longos
cortinados de ripas que estalavam com o vento. noite, enormes mosquitos
zumbiam em volta dos candeeiros. Tentei demonstrar aos gregos que nem
sempre eram eles os mais sbios; aos judeus, que no eram de modo algum os
mais puros. As canes satricas com as quais os helenos de baixa classe
perseguiam sem descanso seus adversrios no eram menos estpidas que as
grotescas imprecaes dos judeus. Aquelas raas, que viviam lado a lado sculos
a fio, no haviam tido, em nenhum momento, a curiosidade de se conhecerem,
nem a decncia de se aceitarem mutuamente. Os litigantes exaustos que
abandonavam o lugar tarde da noite encontravam-me novamente sentado no
meu banco, ao amanhecer, ocupado ainda em separar o amontoado de lixo dos
falsos testemunhos. Os cadveres apunhalados que me ofereciam como provas
eram muitas vezes de doentes mortos em seus leitos e roubados aos
embalsamadores. Mas cada hora de acalmia era uma vitria, embora precria
como o so todas; cada disputa arbitrada representava um precedente, um
empenho para o futuro. Importava-me muito pouco que o acordo obtido fosse
aparente, imposto de fora, provavelmente temporrio. Sabia que tanto o bem
como o mal so uma questo de rotina, que o temporrio se prolonga, que o
exterior se infiltra no interior, e que, com o decorrer do tempo, a mscara se
transforma na prpria face. J que o dio, a estupidez e a loucura surtem efeitos
duradouros, no vejo por que a lucidez, a justia e a benevolncia no surtam
tambm os seus. A ordem nas fronteiras no valeria nada se eu no persuadisse
aquele trapeiro judeu e aquele salsicheiro grego a conviverem tranqilamente
lado a lado.
A paz era minha meta, mas no absolutamente meu dolo; a prpria palavra
ideal me desagradaria por estar muito afastada da realidade. Havia pensado
levar at o extremo minha repulsa s conquistas, comeando por abandonar a
Dcia. T-lo-ia feito se pudesse, sem loucura, romper frontalmente com a
poltica do meu predecessor, mas era prefervel utilizar o mais prudentemente
possvel as vitrias anteriores ao meu reinado e j registradas pela histria. O
admirvel Jlio Basso, primeiro governador dessa provncia recm-organizada,
sucumbira, como quase me acontecera durante meu ano passado nas fronteiras
srmatas, morto pela misso inglria de pacificar sem esmorecer um pas
aparentemente submetido. Dei ordens para que em Roma lhe fizessem exquias
triunfais, reservadas normalmente aos imperadores. Essa homenagem a um
governador sacrificado obscuramente foi meu ltimo e discreto protesto contra a
poltica de conquistas: j no era obrigado a denunci-la em voz alta, desde que
estava em minhas mos o poder de elimin-la. Em contrapartida, uma represso
militar impunha-se na Mauritnia, onde os agentes de Lusio Quieto fomentavam
agitaes que no exigiam minha presena imediata. O mesmo sucedia na
Bretanha, onde os calednios tinham aproveitado a retirada das tropas, motivada
pela guerra da sia, para dizimar as guarnies insuficientes deixadas nas
fronteiras. Jlio Severo encarregou-se disso com a necessria urgncia, visto que
do restabelecimento da ordem dependia a longa viagem que eu devia
empreender. Contudo, decidi terminar eu prprio a guerra srmata que ficara em
suspenso, empregando o nmero de tropas indispensvel para pr fim, de uma
vez por todas, s depredaes dos brbaros. Recusava, nesse caso como em todos
os outros, sujeitar-me a um sistema. Aceitava a guerra como um meio de atingir
a paz, quando todas as negociaes que houvessem esgotado, tal como o mdico
se decide pelo cautrio depois de haver experimentado as plantas medicinais. As
coisas so de tal modo complicadas nos tratados entre os homens que meu
reinado pacfico teria, por sua vez, seus perodos de guerra, assim como a vida de
um grande capito tem, quer ele queira ou no, seus interldios de paz.
Antes de retornar ao norte para liquidar de vez o conflito srmata, revi Quieto. O
carniceiro de Cirene continuava temvel. Minha primeira deciso fora dissolver
suas colunas de batedores nmidas; permiti que ficasse com seu lugar no Senado,
seu posto no exrcito regular e aquele imenso domnio de areias ocidentais de
que podia fazer, a seu bel-prazer, um trampolim, ou um asilo. Convidou-me para
uma caada na Msia, em plena floresta, e maquinou astuciosamente um
acidente no qual, com um pouco menos de sorte ou de agilidade fsica, eu teria
certamente perdido a vida. Pareceu-me mais prudente aparentar nada suspeitar,
ter pacincia e esperar. Pouco tempo depois, na Mosia Inferior, no momento
em que a capitulao dos prncipes srmatas me permitiu prever meu regresso
Itlia em data bastante prxima, fui informado, por uma troca de despachos
cifrados com meu antigo tutor, que Quieto, tendo chegado precipitadamente a
Roma, se unira a Palma. Nossos inimigos fortificavam suas posies e
reorganizavam suas tropas. No estaramos seguros enquanto tivssemos contra
ns esses dois homens. Escrevi a Atiano ordenando-lhe que agisse rapidamente.
O velho amigo feriu como um raio. Exorbitou minhas ordens e desembaraou-
me, de um s golpe, de todos os inimigos declarados que me restavam. No
mesmo dia, com poucas horas de diferena, Celso foi executado em Baias,
Palma, em sua vila de Terracina. Nigrino, em Favencia, entrada de sua casa de
veraneio. Quieto pereceu em viagem, ao sair de um concilibulo com seus
cmplices, j com o p no estribo da carruagem que o conduziria cidade. Uma
onda de terror abateu-se sobre Roma. Serviano, meu velho cunhado, que
aparentemente se resignara com minha boa sorte, mas que espreitava meus
futuros passos em falso, deve ter sentido um estremecimento de alegria, que foi,
sem dvida, em toda a sua vida, o que conheceu de melhor em termos de
volpia. Todos os sinistros rumores que corriam a meu respeito voltaram a
merecer crdito.
Esperava-me a dois passos do porto, num dos quartos da estalagem voltada para
o Oriente onde outrora morrera Virglio. Veio, mancando, receber-me porta;
sofria de uma crise de gota. Mal ficamos a ss, explodi em censuras: um reinado
que eu queria moderado, exemplar, comeava por quatro execues das quais
apenas uma era indispensvel, considerando-se ainda que o executor
negligenciara perigosamente cercar tais atos com uma aparncia legal. Tamanho
abuso de fora ser-me-ia tanto mais reprovado quanto mais eu me aplicasse,
para o futuro, em ser clemente, escrupuloso ou justo; servir-se-iam disso para
provar que minhas supostas virtudes no passam de uma srie de mscaras. Com
esses argumentos seria fcil criar em torno do meu nome uma reputao de
tirano que me seguiria talvez at o fim da histria. Confessei-lhe meus temores:
no me sentia inteiramente isento de crueldade nem de outras taras humanas:
acreditava no lugar-comum que prescreve que o crime atrai o crime, e na
imagem do animal que j provou o gosto do sangue. Meu velho amigo, cuja
fidelidade me parecera inquebrantvel, comeava a emancipar-se.
Aproveitando-se das fraquezas que supusera ver em mim, e agindo sob o
pretexto de me servir, tratara de acertar contas pessoais com Nigrino e Palma.
Comprometia assim minha obra de pacificao, ao mesmo tempo que me
preparava o mais sombrio regresso a Roma.
Atiano havia sido o tutor a quem sempre se subtrai dinheiro, o conselheiro dos
dias difceis, o procurador fiel; entretanto, era a primeira vez que eu olhava com
ateno para aquele rosto de bochechas flcidas cuidadosamente barbeadas,
para aquelas mos deformadas, tranqilamente juntas sobre o casto da bengala
de bano. Conhecia bastante bem os diversos elementos da sua existncia de
homem prspero: a mulher que lhe era querida e cuja sade exigia cuidados; as
filhas casadas e os netos, para os quais nutria ambies a um tempo modestas e
obstinadas, como o haviam sido as suas prprias. Conhecia seu gosto pelos pratos
requintados; sua decidida predileo pelos camafeus gregos e por jovens
danarinas. Ele me colocara acima de tudo isso: durante trinta anos, sua primeira
preocupao fora proteger-me, depois servir-me. A mim, que at ento
acalentara idias, projetos ou, no mximo, uma futura imagem de mim mesmo,
esse devotamento banal de homem para homem parecia-me prodigioso,
insondvel. Ningum digno de tamanha dedicao, e, alis, at hoje isso
permanece inexplicvel para mim. Segui seu conselho: ele perdeu o posto. Seu
sorriso delicado era uma prova de que esperava ser tomado ao p da letra. Sabia
muito bem que nenhuma solicitude intempestiva para com um velho amigo me
impediria, em nenhuma hiptese, de adotar a atitude mais esclarecida; aquele
fino poltico no aprovaria que eu agisse diferentemente. No era necessrio,
porm, exagerar a extenso da sua desgraa: depois de alguns meses de eclipse
poltico, consegui faz-lo entrar para o Senado. Era a maior honra para^ mim
poder conceder quele homem a ordem eqestre. Ele teve uma velhice fcil de
rico cidado romano, garantida pela influncia que lhe proporcionava o
conhecimento perfeito das famlias e dos negcios. Fui muitas vezes hspede dele
em sua vila dos montes de Alba. No importa: como Alexandre na vspera de
uma batalha, eu tinha sacrificado ao Medo antes de entrar em Roma: acontece-
me incluir Atiano entre minhas vtimas humanas.
Atiano estava certo: o ouro virgem do respeito seria muito fraco sem uma certa
liga de medo. Aconteceu com o assassinato dos quatro consulares como com a
histria do testamento forjado: os espritos honestos e os coraes virtuosos
recusaram-se a considerar-me implicado; os cnicos supuseram o pior, mas em
compensao me admiraram mais por isso. Roma voltou calma no momento
em que ficou claro que meus rancores no iam mais alm; a alegria
experimentada por cada um ao se sentir tranqilizado fez com que depressa todos
se esquecessem dos mortos. Admiravam-se da minha brandura porque a
julgavam deliberada e voluntria, adotada cada manh em substituio a uma
violncia que me teria sido igualmente fcil. Louvavam minha simplicidade
porque suspeitavam haver nela um clculo.
Reencontrei meus parentes: sempre senti certa ternura por minha irm Paulina, e
o prprio Serviano me parecia menos odioso do que outrora. Minha sogra Matdia
trouxera do Oriente os primeiros sintomas de uma doena mortal. Esforcei-me
por distra-la dos seus sofrimentos por meio de festas frugais, em que bastava
uma gota de vinho para embriagar aquela matrona com ingenuidades de donzela.
A ausncia de minha mulher, que se refugiara no campo em um dos seus acessos
de mau humor, no diminua em coisa alguma as alegrias familiares. Entre todas
as pessoas com quem convivi, ela foi talvez aquela a quem jamais consegui
agradar: verdade que no me empenhei muito nesse sentido. Freqentei a
pequena casa onde a imperatriz viva se entregava aos prazeres austeros da
meditao e dos livros. Reencontrei o emocionante silncio de Pio tina. Ela
apagava-se suavemente; aquele jardim, aquelas salas claras tornavam-se cada
dia mais o recinto fechado de uma Musa, o templo de uma imperatriz j divina.
Sua amizade permanecia exigente, conquanto Plotina no tivesse seno
exigncias judiciosas.
Revi meus amigos; conheci o prazer sutil de retomar contato aps longas
ausncias, de reconsiderar meus julgamentos, e de v-los reconsiderarem os
seus. Vtor Vocnio, o companheiro das alegrias e dos trabalhos literrios de
outrora, tinha morrido. Encarreguei-me de compor sua orao fnebre; sorriram
ao ouvir-me mencionar entre as virtudes do morto uma castidade desmentida
pelos seus prprios poemas e pela presena, no funeral, de Tstilo, o jovem dos
caracis cor de mel, a quem Vtor chamava noutro tempo seu belo tormento.
Minha hipocrisia era menos grosseira do que parecia: todo prazer sentido com
gosto parece-me casto. Colocava Roma em ordem, tal como uma casa da qual o
proprietrio deseja poder ausentar-se sem que ela sofra com sua ausncia: novos
colaboradores foram testados; os adversrios reconciliados cearam no Palatino
com os amigos dos tempos difceis. Nercio Prisco delineava minha mesa seus
planos de legislao; o arquiteto Apolodoro nos explicava seus projetos; Cenio
Cmodo, riqussimo patrcio descendente de antiga famlia etrusca com sangue
real, grande conhecedor de vinhos e homens, acertava comigo os detalhes da
minha prxima manobra no Senado.
Seu filho, Lcio Cenio, ento com dezoito anos apenas, alegrava essas festas,
que eu queria austeras, com a graa risonha de jovem prncipe. Tinha j certas
manias absurdas e, ao mesmo tempo, deliciosas: a paixo de preparar iguarias
raras para seus amigos, o gosto requintado pelas decoraes florais, o amor louco
pelos jogos de azar e pelos disfarces. Marcial era seu Virglio: declamava aquelas
poesias lascivas com impudncia encantadora. Fiz-lhe promessas que mais tarde
me embaraaram muito; esse jovem fauno danante ocupou seis meses da
minha vida.
Muitas vezes perdi Lcio de vista e muitas vezes tornei a encontr-lo no decorrer
dos anos que se seguiram, a tal ponto que corro o risco de ter guardado dele uma
imagem feita de memrias superpostas que no correspondem, no conjunto, a
nenhuma fase da sua breve existncia. O rbitro um tanto insolente das
elegncias romanas, o orador iniciante, timidamente curvado sobre as
dificuldades do texto, exigindo minha opinio sobre uma passagem difcil, o
jovem oficial inquieto, torturando a barba pouco densa, o enfermo atormentado
pela tosse junto do qual velei at a agonia, s existiram muito mais tarde. A
imagem de Lcio adolescente ficou confinada nos mais secretos recantos da
memria: um rosto, um corpo, o alabastro de uma tez plida e rosada, o
equivalente exato de um epigrama amoroso de Calmaco e de algumas linhas
ntidas e nuas do poeta Estrato.
Antes, porm, cabia-me tomar uma ltima medida: dar a Trajano o triunfo que
obsedara seus sonhos de doente. O triunfo s assenta bem nos mortos. Aos vivos,
h sempre algum para censurar-lhes as fraquezas, como outrora reprovavam a
Csar a calvcie e os amores. Mas o morto tem direito a essa espcie de
consagrao na sepultura, algumas horas de pompa e brilho antes dos sculos de
glria e dos milnios de esquecimento. A boa fortuna de um morto acha-se ao
abrigo dos reveses; suas mesmas derrotas adquirem o esplendor de vitrias. O
ltimo triunfo de Trajano no comemorava seu xito mais ou menos duvidoso
sobre os partos, mas o honroso esforo de toda uma vida. Ns nos reunramos
para celebrar o melhor imperador que Roma conheceu depois da velhice de
Augusto: Trajano, o mais constante no trabalho, o mais honesto, o menos injusto.
Seus prprios defeitos no eram nada mais do que as particularidades que
concorrem para acentuar a semelhana do busto de mrmore com a face do ser
vivo. A alma do imperador subia ao cu levada pela espiral imvel da Coluna de
Trajano. Meu pai adotivo transformava-se em deus e iniciava sua participao
na srie de encarnaes guerreiras de Marte eterno, que vem perturbar o mundo
de sculo em sculo. De p na varanda do Pala tino, eu media minhas
diferenas; instrumentava-me para fins mais calmos. Comeava a sonhar com
uma soberania olmpica.
Roma j no cabe mais em Roma: a partir de agora deve decair ou igualar-se
metade do mundo. Esses telhados, esses terraos, essas ilhotas de casas, que o sol
poente doura com um rosa to belo, j no so, como no tempo dos nossos reis,
prudentemente cercados de muralhas; eu prprio reconstru boa parte delas ao
longo das florestas germnicas e nas extensas charnecas brets. Sempre que
avistei de longe, numa curva de qualquer estrada ensolarada, uma acrpole
grega e sua cidade perfeita como uma flor, ligada sua colina como o clice
sua haste, sentia que essa planta incomparvel era limitada pela sua prpria
perfeio, consumada num ponto do espao e num segmento do tempo. Sua
nica probabilidade de expanso, como a das plantas, era sua semente: o smen
das idias com que a Grcia fecundou o mundo. Roma, porm, mais pesada e
informe, mais vagamente estendida na sua plancie s margens do seu rio,
organizava-se em direo a um desenvolvimento mais amplo: a cidade tornara-
se o Estado. Bem quisera eu que o Estado se expandisse ainda mais,
transformando-se na prpria ordem do mundo, na prpria ordem das coisas. As
virtudes, antes suficientes pequena cidade das sete colinas, teriam de se tornar
flexveis, diversificar-se, para convirem a toda a Terra. Roma, que eu era o
primeiro a ousar qualificar de Eterna, assemelhar-se-ia cada vez mais s deusas-
mes dos cultos da sia: progenitora dos jovens e das colheitas, cerrando contra
o seio lees e colmias. Contudo, toda criao humana que aspira eternidade
deve adaptar-se ao ritmo instvel dos grandes objetos naturais e harmonizar-se
com o tempo dos astros. Nossa Roma j no a aldeia pastoral do velho
Evandro, grvida de um futuro que j , em parte, passado. A Roma
conquistadora da Repblica cumpriu seu papel; a louca capital dos primeiros
Csares tende, por si mesma, a tornar-se mais circunspecta; outras Roms viro
das quais mal posso imaginar a fisionomia, mas para cuja formao terei
contribudo. Visitando as cidades antigas, santas, mas acabadas, sem valor
presente para a raa humana, fazia a mim mesmo a promessa de evitar que
minha Roma tivesse o destino petrificado de uma Tebas, de uma Babilnia ou de
uma Tiro. Salvar-se-ia do seu destino de pedra; criaria para si, com a palavra
Estado, com a palavra cidadania, com a palavra Repblica, uma imortalidade
mais segura. Nos pases ainda incultos, s margens do Reno, do Danbio, ou do
mar dos Batavos, cada aldeia defendida por uma paliada de estacas me fazia
lembrar a cabana de canios, o monte de gravetos onde nossos gmeos romanos
dormiam saciados pelo leite da loba: essas futuras metrpoles iriam reproduzir
Roma. Aos corpos fsicos das naes e das raas, aos acidentes geogrficos, s
exigncias discordantes dos deuses ou dos antepassados, teramos para sempre
superposto, mas sem nada destruir, a unidade da conduta humana, o empirismo
de uma sbia experincia. Roma perpetuar-se-ia na mais insignificante das
cidades onde os magistrados se esforassem por verificar a balana dos
negociantes, por limpar e iluminar suas ruas, por se opor desordem, incria,
ao medo, injustia, e reinterpretar razoavelmente as leis. Assim, s sucumbiria
com a ltima cidade dos homens.
Humanitas, Felicitas, Libertas: essas belas palavras que figuram nas moedas do
meu reinado, no fui eu que- as inventei. Qualquer filsofo grego e quase todos
os romanos cultos tm, como eu, a mesma imagem do mundo. Colocado diante
de uma lei injusta porque excessivamente rigorosa, ouvi Trajano exclamar que a
execuo dela j no correspondia ao esprito da poca. A esse esprito da poca,
eu teria sido talvez o primeiro a subordinar conscientemente todos os meus atos, a
fazer dele qualquer coisa mais que o vago sonho de um filsofo, ou a aspirao
um tanto imprecisa de um bom prncipe. E agradecia aos deuses por me terem
concedido viver num tempo em que a tarefa que me coube consistia em
reorganizar prudentemente o mundo, e no em extrair do caos uma matria
ainda informe, ou em deitar-me sobre um cadver para tentar ressuscit-lo.
Felicitava-me pelo fato de que nosso passado tivesse sido bastante antigo para nos
fornecer exemplos, e no pesado demais para nos esmagar; felicitava-me
tambm pelo fato de que o desenvolvimento das nossas tcnicas tivesse atingido
tal ponto que facilitasse a higiene das cidades e a prosperidade dos povos sem os
excessos que ameaariam sobrecarregar o homem com aquisies inteis; que
nossas artes, rvores um tanto fatigadas pela abundncia dos seus dons, fossem
capazes ainda de produzir alguns frutos deliciosos. Alegrava-me que nossas
religies vagas e venerveis, decantadas de toda intransigncia ou de todo ritual
selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem
e da terra, sem contudo proibir as explicaes laicas dos fatos, numa viso
racional da conduta humana. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras,
Humanidade, Liberdade e Felicidade, no tivessem ainda sido desvalorizadas
pelo excesso de aplicaes ridculas.
Devo confessar que acredito pouco nas leis. Quando demasiado duras, so
transgredidas com razo. Quando muito complicadas, o engenho humano
encontra facilmente o meio de escapar por entre as malhas dessa rede frgil e
escorregadia. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que a piedade humana
tem de mais profundo; serve tambm de travesseiro inrcia dos juizes. As leis
mais antigas participam da selvageria que elas mesmas pretendem corrigir; as
mais venerveis so ainda um produto da fora. A maioria das nossas leis penais
s atingem, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; nossas leis civis
jamais sero bastante flexveis para se adaptar fluida variedade dos fatos.
Mudam menos rapidamente do que os costumes; perigosas quando estes as
ultrapassam, o so ainda mais quando pretendem preced-los. Contudo, desse
amontoado de inovaes perigosas que oferecem tantos riscos, ou de rotinas
obsoletas, surgem aqui e ali, como na medicina, algumas frmulas aproveitveis.
Os filsofos gregos ensinaram-nos a conhecer um pouco melhor a natureza
humana: nossos melhores juristas vm trabalhando h algumas geraes visando
ao bom senso. Eu mesmo efetuei algumas dessas reformas parciais, que so as
nicas duradouras. Toda lei muitas vezes transgredida m: cabe ao legislador
revog-la ou substitu-la antes que o desprezo por uma disposio insensata se
estenda a outras leis mais justas. Propus-me como meta uma anulao prudente
de leis suprfluas e a promulgao, com firmeza, de um pequeno grupo de
decises sbias. Parecia chegado o momento de reavaliar, no interesse da
humanidade, todas as prescries antigas.
Uma parte dos nossos males provm de que muitos homens so excessivamente
ricos, e outros, desesperadamente pobres. Por felicidade, certo equilbrio tende a
se estabelecer atualmente entre esses dois extremos: as fortunas colossais dos
imperadores e dos ex-escravos pertencem ao passado: Trimalcio e Nero esto
mortos. Mas, no que respeita a uma inteligente reformulao econmica do
mundo, tudo est por fazer. Ao chegar ao poder, renunciei s contribuies
voluntrias das cidades para o imperador, que no passam de um roubo
disfarado. Aconselho-te a renunciar a elas, por tua vez. A anulao completa
das dvidas dos particulares ao Estado era uma medida mais arriscada, porm
necessria para fazer tbua rasa depois de dez anos de economia de guerra. H
um sculo nossa moeda vem sendo perigosamente desvalorizada. , entretanto,
pela taxa das nossas peas de ouro que se avalia a eternidade de Roma: cabe-nos
restituir-lhes o valor e o peso solidamente calculados em coisas. Nossas terras so
cultivadas ao acaso: s os distritos privilegiados, o Egito, a frica, a Toscana e
alguns outros, souberam criar comunidades camponesas inteligentemente
exercitadas na cultura do trigo ou da uva. Uma das minhas preocupaes era
amparar essa classe e dela obter instrutores destinados a treinar as populaes
camponesas mais primitivas ou mais rotineiras e menos hbeis. Pus termo ao
escndalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietrios indiferentes
ao bem pblico: todo campo no cultivado durante cinco anos passava,
automaticamente, a pertencer ao lavrador disposto a faz-lo produzir. Medidas
semelhantes foram tomadas com relao s exploraes mineiras. A maior parte
dos nossos ricos faz enormes donativos ao Estado, s instituies pblicas, ao
prncipe. Muitos agem assim por interesse, alguns, por virtude; quase todos,
finalmente, ganham na transao. Teria preferido, porm, ver a generosidade
deles assumir outras formas que no fossem a da ostentao na esmola, ensinar-
lhes a aumentar sensatamente seus bens no interesse da comunidade, como s o
fizeram at o presente para enriquecer os filhos. Foi dentro desse esprito que eu
prprio tomei nas minhas mos a administrao do domnio imperial: ningum
tem o direito de tratar a terra como o a varo a sua arca de ouro.
Nossos comerciantes so, por vezes, nossos melhores gegrafos, nossos melhores
astrnomos, nossos mais sbios naturalistas. Nossos banqueiros podem colocar-se
entre nossos mais hbeis conhecedores de homens. Utilizava sua competncia;
lutava com todas as minhas foras contra a usurpao. O apoio dado aos
armadores decuplicou o intercmbio com as naes estrangeiras; consegui, dessa
maneira, aumentar com pouca despesa a custosa frota imperial. No tocante s
importaes do Oriente e da frica, a Itlia uma ilha e depende dos corretores
de trigo para sua subsistncia, desde que no ela prpria a fornec-lo; a nica
maneira de fazer face aos perigos dessa situao tratar esses indispensveis
homens de negcios como funcionrios vigiados de perto. Nossas velhas
provncias atingiram nos ltimos anos uma prosperidade passvel de ainda ser
aumentada, mas o que realmente importa que essa prosperidade sirva a todos,
e no somente ao banco de Herodes tico, ou ao pequeno especulador que
aambarca todo o azeite de uma aldeia grega. Nenhuma lei demasiadamente
dura para reduzir o nmero de intermedirios que abundam em nossas cidades:
raa obscena e obesa, que cochicha pelas tavernas, encostada a todos os balces,
pronta a solapar toda poltica que no lhe ^proporcione vantagens imediatas.
Uma distribuio judiciosa dos celeiros do Estado ajuda a conter a escandalosa
inflao dos preos em tempos de escassez, mas eu contava sobretudo com a
organizao dos prprios produtores, dos vinhateiros gauleses, dos pescadores do
Ponto Euxino, cuja cota miservel devorada pelos importadores de caviar e de
peixe salgado, que engordam custa dos trabalhos e dos perigos deles. Um dos
meus dias mais felizes foi aquele em que consegui persuadir um grupo de
marinheiros do Arquiplago a associar-se em corporao e a tratar diretamente
com os mercadores das cidades. Jamais me senti to prncipe e to til.
Em vinte anos de poder, passei doze sem domiclio fixo. Vivia, alternadamente,
nos palcios de mercadores da sia, nas tranqilas residncias gregas, nas
magnficas vilas providas de banhos e calefatores dos romanos residentes na
Glia, em cabanas, ou em propriedades rurais. A tenda leve, a arquitetura de lona
e cordas, era ainda a preferida. Os navios no eram menos variados que os
domiclios terrestres: possu o meu prprio, dotado de ginsio e biblioteca, mas
desconfiava demais de toda e qualquer estabilidade para me fixar em algum
domiclio, mesmo flutuante. O barco de recreio de um milionrio srio, os navios
de alto bordo da frota, ou o caque do pescador grego satisfaziam-me igualmente.
Meu nico luxo era a velocidade, e tudo o que a favorecesse: os melhores
cavalos, as carruagens com as melhores molas, as bagagens menos
embaraosas, o vesturio e os acessrios mais apropriados ao clima. O grande
recurso, no entanto, era, antes de tudo, o perfeito estado do corpo; uma marcha
forada de vinte lguas no era nada, uma noite de insnia era considerada
apenas como um convite a pensar. Poucos homens gostam, durante muito tempo,
de viagens, esse constante rompimento com todos os hbitos, essa quebra
contnua de todos os preconceitos. Quanto a mim, esforava-me por ter poucos
hbitos e no alimentar nenhum preconceito. Apreciava a profundeza deliciosa
dos leitos, mas no menos o contato e o cheiro da terra nua, as desigualdades de
cada segmento da circunferncia do mundo. Habituei-me variedade das
iguarias, aos cereais britnicos, ou melancia africana. Aconteceu-me certo dia
provar a caa semi-deteriorada que faz as delcias de certos povos germnicos.
Vomitei-a, mas a experincia foi tentada. Muito consciente das minhas
preferncias amorosas, mesmo nesse campo temia a rotina. Minha comitiva,
limitada ao indispensvel ou ao especial e delicioso, isolava-me pouco do resto do
mundo. Procurava manter livres meus movimentos e fcil minha aproximao.
As provncias, essas grandes unidades oficiais, cujos emblemas eu prprio havia
escolhido, a Britnia sobre o seu assento de rochedos ou a Dcia e seu alfanje,
dissociavam-se em florestas de que eu buscara a sombra, em poos onde eu
bebera, em indivduos encontrados ao acaso das paradas, em rostos conhecidos,
por vezes amados. Conhecia cada milha das nossas estradas, talvez o mais belo
dom que Roma fez terra. O momento inesquecvel, porm, era aquele em que
a estrada se detinha no flanco de uma montanha, onde se subia de fenda em
fenda, de bloco em bloco, para contemplar o nascer do sol do alto de um pico dos
Pireneus ou dos Alpes.
Trs meses antes da minha chegada, a Sexta Legio Vitoriosa fora transferida
para territrio britnico. Devia substituir ali a infeliz Nona Legio, desbaratada
pelos calednios durante a agitao que o terrvel contragolpe de nossa expedio
junto aos partos provocara na Bretanha. Duas medidas se impunham para
impedir a repetio desse desastre. Nossas tropas foram reforadas pela criao
de um corpo auxiliar nativo: em Eboracum, do alto de uma colina verde, vi
manobrar pela primeira vez esse exrcito britnico recm-formado. Ao mesmo
tempo, a construo de uma muralha, que cortava a ilha em duas na sua parte
mais estreita, serviu para proteger as regies frteis e policiadas do sul contra os
ataques das tribos do norte. Inspecionei pessoalmente uma boa parte desses
trabalhos, atacados ao mesmo tempo em diversos pontos num declive de oitenta
lguas: no espao bem delimitado que vai de uma costa a outra, tive a ocasio de
testar um sistema de defesa que se poderia em seguida aplicar em qualquer outro
lugar. Portanto, essa obra essencialmente militar favorecia a paz e desenvolvia a
prosperidade daquela parte da Bretanha. Aldeias nasciam, e um movimento de
afluxo produzia-se em direo s nossas fronteiras. Os operrios da Legio eram
secundados na sua tarefa por equipes nativas. A edificao da muralha era para
muitos montanheses, na vspera ainda insubmissos, a primeira prova irrefutvel
do poder protetor de Roma, tal como o dinheiro da jornada era a primeira moeda
romana que lhes passava pelas mos. Aquela muralha tornou-se o smbolo da
minha renncia poltica de conquistas: ao p do posto mais avanado mandei
erigir um templo ao deus Termo.
Detive-me por uma hora na Lcia a fim de decidir o mercador Opramoas, que j
demonstrara suas qualidades de mediador, a acompanhar-me at o territrio
parto. A falta de tempo impediu-o de se apresentar com o luxo habitual. Aquele
homem, amolecido pela opulncia, nem por isso deixava de ser um admirvel
companheiro de viagem, acostumado a todos os perigos do deserto.
A magnificncia dessas entrevistas com Osros foi apenas exterior. Coisa alguma
as diferenciava das negociaes entre dois vizinhos que se esforam por resolver
amigavelmente a questo de uma parede-meia. Estava envolvido com um
brbaro requintado, que falava o grego, nada estpido, no necessariamente mais
prfido do que eu, todavia vacilante o bastante para parecer pouco seguro.
Minhas curiosas disciplinas mentais ajudavam-me a captar aquele pensamento
fugidio: sentado em frente ao imperador parto, aprendia a prever e, pouco
depois, a orientar suas respostas. Entrava no seu jogo, imaginando-me o prprio
Osros a negociar com Adriano. Tenho horror aos debates inteis, em que cada
um sabe de antemo se ceder ou no ceder: a verdade em matria de
negcios agrada-me sobretudo como meio de simplificar ou de andar mais
depressa. Os partos temiam-nos; ns temamos os partos; dessa unio dos dois
medos nasceria a guerra. Os strapas incitavam essa guerra por interesse
pessoal: no tardei a aperceber-me de que Osros tinha seus Quietos e seus
Palmas. Farasmanes, o mais agitado daqueles prncipes semi-independentes
postados nas fronteiras, era mais perigoso para o imprio parto do que para ns.
Acusaram-me de ter neutralizado, pela concesso de subsdios, uma camarilha
de malfeitores sem energia, mas foi dinheiro bem empregado. Estava demasiado
seguro da superioridade das nossas foras para me embaraar com um amor-
prprio imbecil: estava decidido a fazer todas as concesses vazias que s dizem
respeito ao prestgio, mas nenhuma outra. O mais difcil foi persuadir Osros de
que, se eu fazia poucas promessas, era porque estava decidido a mant-las.
Contudo, acreditou-me ou procedeu como se me acreditasse. O acordo concludo
entre ns durante essa visita ainda perdura. So passados quinze anos e, de uma
parte e de outra, coisa alguma perturbou a paz das fronteiras. Conto contigo para
que esse estado de coisas continue depois de minha morte.
Uma noite, no pavilho imperial, durante uma festa dada em minha honra por
Osros, notei, entre as mulheres e os pajens de longos clios, um homem nu,
descarnado, completamente imvel, cujos olhos muito abertos pareciam ignorar
a confuso de pratos carregados de carnes, os acrobatas e danarinas. Falei-lhe
por intermdio do meu intrprete: no se dignou responder. Era um sbio. Mas
seus discpulos eram mais loquazes: os piedosos vagabundos vinham da ndia, e
seu mestre pertencia poderosa casta dos brmanes. Compreendi que suas
meditaes induziam-no a crer que o universo inteiro no mais que um
encadeamento de iluses e erros. A austeridade, a renncia e a morte eram, para
ele, o nico meio de escapar a esse encadeamento das coisas. Era o oposto do
nosso Herclito, que procurou alcanar atravs do mundo dos sentidos a esfera
do puro divino, o firmamento fixo e vazio com o qual sonhou Plato. Atravs da
inabilidade dos meus intrpretes, pressenti certas idias que no foram
completamente estranhas a alguns dos nossos sbios, mas que o indiano exprimia
de maneira mais nua e mais definitiva. Aquele brmane j atingira o estado no
qual, salvo o corpo, nada mais o separava do deus intangvel, sem substncia e
sem forma, ao qual desejava unir-se. Decidira queimar-se vivo no dia seguinte.
Osros convidou-me para essa solenidade. Uma fogueira de madeiras odorferas
foi preparada; o homem lanou-se nela e desapareceu sem um grito. Os
discpulos no manifestaram nenhum sinal de pesar: para eles, aquilo no era
uma cerimnia fnebre.
Foi por essa poca que comecei a sentir-me deus. No faas confuso: eu era
sempre, era mais que nunca o mesmo homem, nutrido com os frutos e os
animais da terra; devolvia ao solo os resduos desses alimentos e sacrificava ao
sono a cada revoluo dos astros, inquieto at a loucura quando faltava por muito
tempo a clida presena do amor. Minha fora, minha agilidade fsica ou mental
eram cuidadosamente sustentadas por uma ginstica toda humana. Mas o que
posso dizer a respeito de tudo isso, exceto que era divinamente vivido? As ousadas
experincias da juventude haviam terminado, assim como a sofreguido de viver
o tempo que passa. Aos quarenta e quatro anos, sentia-me sem impacincia,
seguro de mim, to perfeito quanto me permitia minha natureza. Eterno.
Compreende bem que se trata, neste caso, de uma concepo do intelecto: os
delrios, se preciso que lhes seja dado tal nome, vieram mais tarde. Eu era deus
simplesmente porque era homem. Os ttulos divinos que a Grcia me concedeu
depois s fizeram proclamar aquilo que, h muito tempo, eu tinha constatado por
mim mesmo. Creio que me teria sido possvel sentir-me deus at nas prises de
Domiciano, ou no fundo de uma mina. Se tenho a audcia de pretend-lo que
esse sentimento me parece apenas extraordinrio, mas de modo algum nico.
Outros alm de mim o experimentaram, e outros o experimentaro no futuro.
Disse que meus ttulos acrescentaram pouca coisa a essa espantosa certeza: em
contrapartida, ela era confirmada pelas mais simples rotinas do meu ofcio de
imperador. Se Jpiter o crebro do mundo, o homem encarregado de organizar
e de moderar os negcios humanos pode razoavelmente se considerar uma parte
desse crebro, que a tudo preside. A humanidade, com ou sem razo, quase
sempre concebeu seu deus em termos de Providncia; minhas funes
obrigavam-me a ser, para uma parte do gnero humano, essa providncia
encarnada. Quanto mais o Estado se desenvolve, encerrando os homens nas suas
malhas exatas e geladas, mais a confiana humana aspira a colocar no outro
extremo dessa imensa cadeia a imagem venerada de um homem protetor. Quer
eu o desejasse ou no, as populaes orientais do imprio tratavam-me como
deus. Mesmo no Ocidente, inclusive em Roma, onde s somos oficialmente
declarados divinos depois de mortos, a obscura piedade popular compraz-se cada
vez mais em nos deificar em vida. No tardou que o reconhecimento parto
erigisse templos ao imperador romano que havia instaurado e mantido a paz; tive
meu santurio em Vologsia, no seio daquele vasto mundo estrangeiro. Longe de
ver nessas demonstraes de adorao um perigo de alienao mental ou de
prepotncia para o homem que as aceita, descobri nelas um freio, a obrigao de
procurar assemelhar-me a um modelo eterno, de associar ao poder humano uma
parte de suma sapincia. Ser deus obriga, em suma, a possuir mais virtudes do
que as de um imperador.
Dezoito meses mais tarde, fiz-me iniciar junto a Elusis. A visita a Osros tinha
marcado, em certo sentido, uma mudana na minha vida. Em vez de voltar para
Roma, decidiria consagrar alguns anos s provncias gregas e orientais do
imprio: Atenas tornara-se cada vez mais minha ptria, o centro do meu
universo. Empenhava-me em agradar aos gregos e tambm em helenizar-me o
mximo possvel; essa iniciao, motivada em parte por consideraes polticas,
constituiu, entretanto, uma experincia religiosa sem igual.
Aqui convm mencionar um hbito que me atraiu, durante toda a minha vida, a
caminhos menos secretos que os de Elusis, mas que acabam por lhe serem
paralelos: quero falar do estudo dos astros. Fui sempre amigo dos astrnomos e
cliente dos astrlogos. A cincia destes ltimos incerta, falsa nos detalhes, talvez
verdadeira no todo: j que o homem, parcela do universo, comandado pelas
mesmas leis que presidem o cu, no absurdo procurar l em cima os temas
das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos xitos e dos nossos
erros. Jamais deixei, em todas as noites de outono, de saudar, ao sul do Aqurio, o
Escano celeste, o Dispensador sob cujo signo nasci. No me esquecia de
marcar cada uma das passagens de Jpiter e Vnus, que presidem minha vida,
nem de ponderar a influncia do perigoso Saturno. Mas, se a estranha refrao
do humano na abbada estelar preocupava com freqncia minhas horas de
viglia, interessava-me mais intensamente ainda pelas matemticas celestes,
pelas especulaes abstratas a que os grandes corpos inflamados do lugar.
Inclinava-me a acreditar, como alguns dos nossos sbios mais ousados, que a
Terra tambm tomava parte nessa marcha noturna e diurna de que as santas
procisses de Elusis so, quando muito, o simulacro humano. Num mundo onde
tudo no passa de um turbilho de foras, uma dana de tomos, onde tudo est
ao mesmo tempo em cima e embaixo, na periferia e no centro, era difcil
conceber a existncia de um globo imvel, de um ponto fixo que no fosse
simultaneamente mvel. Outras vezes, os clculos da precesso dos equincios,
estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria, tornavam-se uma obsesso em
minhas viglias noturnas: sob a forma de demonstraes e no mais de fbulas ou
smbolos, encontrava neles o mesmo mistrio eleusaco da passagem e do
regresso. A Espiga da Virgem j no se encontra mais, nos nossos dias, no
mesmo ponto em que a carta de Hiparco a assinalou, mas essa variao a
concluso de um ciclo, e o prprio deslocamento confirma as hipteses do
astrnomo. Lentamente, inelutavelmente, o firmamento voltar a ser o que era
no tempo de Hiparco, e ser novamente o que era no tempo de Adriano. A
desordem integrava-se ordem; a transformao fazia parte de um plano que o
astrnomo era capaz de captar por antecipao; o esprito humano revelava aqui
sua participao no universo pelo estabelecimento de teoremas exatos, tal como
em Elusis o faziam os gritos rituais e as danas. O homem que contempla e os
astros contemplados rolavam inexoravelmente em direo a seu fim, assinalado
em qualquer parte do cu. Cada instante dessa queda era um tempo de parada,
um ponto de referncia, um segmento de uma curva to slida quanto uma
cadeia de ouro. Cada deslizamento nos conduzia ao ponto que nos parece o centro
do mundo porque, por acaso, nele nos encontramos.
Foi na sia Menor que passei o vero seguinte ao meu encontro com Osros; fiz
alto na Bitnia para observar pessoalmente o corte das florestas do Estado. Na
Nicomdia, cidade clara, policiada e sria, instalei-me na casa do procurador da
provncia, Cneu Pompeu Prculo, antiga residncia do rei Nicomedes, repleta de
voluptuosas lembranas do jovem Jlio Csar. A brisa do Propntide ventilava as
salas frescas e sombrias. Prculo, homem de gosto, procurando agradar-me,
organizou algumas reunies literrias em minha honra. Sofistas de passagem,
pequenos grupos de estudantes e de amadores das belas-letras reuniam-se nos
jardins, beira de uma fonte consagrada a P. De quando em quando, um servo
mergulhava ali um jarro de argila porosa; os versos mais lmpidos pareciam
opacos, comparados quela gua pura.
Naquela noite leu-se uma pea bastante obscura de Lcrofon, que me agrada por
suas loucas justaposies de sons, aluses e imagens, e pelo seu complexo
sistema de reflexos e ecos. Um jovem, postado parte, escutava as difceis
estrofes com ateno ao mesmo tempo distrada e pensativa; pareceu-me a
figura de um pastor no fundo de um bosque, vagamente sensvel ao grito
indefinido de um pssaro. Ele no trouxera nem a tbua, nem o estilete. Sentado
beirada do tanque, tocava com os dedos a superfcie lisa da gua. Soube que
seu pai ocupara um modesto lugar na gesto dos grandes domnios imperiais.
Entregue muito jovem aos cuidados de um av, o estudante fora enviado para a
casa de um hspede dos seus pais, armador na Nicomdia que, aos olhos daquela
famlia pobre, parecia rico.
Retive-o a meu lado depois que todos partiram. Era pouco instrudo e ignorava
quase tudo, mas era ponderado e crdulo. Eu conhecia Claudipolis, sua cidade
natal: consegui faz-lo falar da sua casa paterna, na orla das grandes florestas de
pinheiros utilizados na construo dos mastros dos nossos navios. Ele disse amar a
msica vibrante do templo de tis, situado sobre a colina; amava tambm os
belos cavalos do seu pas e seus estranhos deuses. Tinha a voz um pouco velada e
pronunciava o grego com o sotaque da sia. Subitamente, sentindo-se ouvido, ou
talvez olhado, perturbou-se, corou e caiu num daqueles silncios obstinados com
os quais logo me habituei. Esboava-se entre ns uma grande intimidade.
Acompanhou-me dali por diante em todas as viagens. Alguns anos fabulosos
acabavam de comear.
Antnoo era grego: remontei, atravs das recordaes daquela famlia antiga e
obscura, at a poca dos primeiros colonos arcdios, s margens do Propntide.
A sia introduzira nesse sangue, um tanto acre, o efeito da gota de mel que turva
e ao mesmo tempo perfuma o vinho puro. Reencontrava nele as supersties de
um discpulo de Apolnio e a f monrquica de um sdito oriental do Grande Rei.
Sua presena era extraordinariamente silenciosa: seguiu-me como um animal ou
um gnio familiar. Possua infinita capacidade de alegria e indolncia, de
selvageria e confiana, semelhana de um cozinho novo. O belo galgo vido
de carcias e de ordens instalou-se em minha vida. Admirava sua indiferena,
quase altiva, por todas as coisas que no se referissem a seu prazer ou a seu culto.
Nele, essa indiferena substitua o desinteresse, o escrpulo e todas as virtudes
estudadas e austeras. Maravilhavam-me sua spera doura e o devotamento
sombrio em que engajava todo o seu ser. Entretanto, essa submisso no era
cega; suas plpebras, freqentemente abaixadas na aquiescncia ou no sonho,
erguiam-se e mostravam os olhos mais atentos do mundo, diretamente fitos em
mim. Sentia-me julgado. Mas era-o como um deus julgado por seu sdito fiel:
minhas asperezas, minhas crises de desconfiana (porque as tive mais tarde)
eram pacientemente, gravemente aceitas. Fui senhor absoluto apenas uma nica
vez, e de um nico ser.
Se eu nada disse ainda sobre beleza to definitiva, no se deve ver nessa omisso
a espcie de reticncia do homem irremediavelmente conquistado. que as
fisionomias que procuramos desesperadamente costumam escapar-nos: existem
apenas por um momento Revejo uma cabea inclinada sob a cabeleira
noturna, olhos que o prolongamento das plpebras fazem parecer oblquos, um
rosto jovem e amplo. O corpo delicado modificava-se sem cessar, tal uma
planta. Algumas dessas alteraes atribuem-se passagem do tempo. O menino
transformou-se; cresceu. Uma semana de indolncia bastava para amolec-lo;
uma tarde de caa restitua-lhe a firmeza e a agilidade atltica. Uma hora ao sol
o fazia passar da cor do jasmim do mel. As pernas um pouco pesadas de potro
alongaram-se; a face perdeu o leve arredondado da infncia, cavando-se
ligeiramente sob as mas salientes. Dilatado pelo ar, o trax do jovem corredor
dos estdios ganhou as curvas suaves e macias de um colo de bacante. O trejeito
amuado dos lbios revestiu-se de ardente amargura, de saciedade triste. Na
verdade, o rosto mudava como se, noite e dia, eu o tivesse incansavelmente
modelado.
Quando me detenho sobre esses anos, creio reencontrar a Idade de Ouro. Tudo
me parecia fcil: os esforos de outrora eram compensados por um bem-estar
quase divino. A viagem era um divertimento; prazer controlado, conhecido,
sabiamente preparado. O trabalho incessante era apenas uma forma de volpia.
Minha vida, onde tudo acontecia tarde o poder e tambm a felicidade ,
adquiria o esplendor de um pleno meio-dia, das horas ensolaradas da sesta,
quando todas as coisas esto banhadas por uma atmosfera dourada, desde os
objetos do quarto at o corpo estendido a nosso lado. A paixo total possui uma
espcie de inocncia; quase to frgil como qualquer outra: o resto da beleza
humana passava condio de espetculo, deixava de ser a caa de que eu fora
o caador. A aventura banalmente comeada enriquecia e ao mesmo tempo
simplificava minha vida: o futuro pouco me importava. Cessei de questionar os
orculos; as estrelas passaram a ser apenas admirveis desenhos na abbada do
cu. Jamais havia observado com tanta delcia a palidez da madrugada sobre o
horizonte das ilhas, a frescura das grutas consagradas s ninfas e freqentemente
visitadas pelas aves de arribao, o vo compacto das codornizes ao crepsculo.
Reli os poetas. Alguns pareceram-me melhores do que antes, a maior parte
pareceu-me pior. Escrevi versos que me pareceram menos insuficientes do que
de hbito.
Foi um belo inverno, rico em convvios amigveis: o opulento tico, cujo banco
financiava minhas obras edlicas, alis no sem tirar proveito disso, convidou-me
para seus jardins de Quefsia, onde vivia cercado de uma corte de
improvisadores e escritores em voga. Seu filho, o jovem Herodes, era um
conversador ao mesmo tempo arrebatado e sutil; tornou-se comensal
indispensvel s minhas ceias de Atenas. Nessa ocasio j perdera
completamente a timidez que o fazia interromper a conversao em minha
presena. Isso aconteceu quando a efebia ateniense enviou-o s fronteiras
srmatas para me felicitar pelo meu acesso ao poder supremo; agora sua
vaidade crescente parecia-me, quando muito, um agradvel ridculo. O retrico
Plemon, o grande homem da Laodicia, que rivalizava com Herodes em
eloqncia e sobretudo em riquezas, encantou-me com seu estilo asitico, amplo
e brilhante como as vagas do Pactolo: esse hbil colecionador de palavras vivia
como falava, com ostentao. Mas o reencontro mais precioso de todos foi o de
Arriano da Nicomdia, meu melhor amigo. Mais jovem do que eu cerca de doze
anos, ele j iniciara a bela carreira poltica e militar na qual continua a
empenhar-se e a servir. Sua experincia dos grandes negcios, seu conhecimento
de cavalos e ces e de todos os exerccios do corpo colocavam-no infinitamente
acima dos simples fazedores de frases. Em sua juventude, fora dominado por
uma dessas paixes do esprito sem as quais no existe talvez a verdadeira
sabedoria, nem a verdadeira grandeza: passara dois anos de sua vida em
Nicpolis, no piro, no pequeno quarto frio e nu onde Epiteto agonizava, e onde
assumiu o encargo de recolher e transcrever, palavra por palavra, os ltimos
propsitos do velho filsofo doente. Essa fase de entusiasmo o havia marcado:
conservava dela uma admirvel disciplina moral, uma espcie de candura grave.
Praticava em segredo certas austeridades de que ningum suspeitava. Mas o
longo aprendizado do dever estico no o petrificou numa atitude de falso sbio.
Era demasiado inteligente para no se aperceber de que existem extremos de
virtude e extremos de amor, e que seu mrito consiste precisamente na sua
raridade, no seu carter de obra-prima nica, de extraordinria perfeio. A
inteligncia serena e a honestidade integral de Xenofonte passaram a servir-lhe
de modelo. Escrevia a histria da sua terra, a Bi tinia. Eu havia colocado essa
provncia, mal administrada por longo tempo pelos procnsules, sob minha
jurisdio pessoal: Arriano aconselhou-me nos meus planos de reforma. Esse
leitor assduo dos dilogos socrticos no ignorava coisa alguma das reservas de
herosmo, devotamento e, por vezes, de sabedoria com que a Grcia soube
enobrecer a paixo pelo amigo. Sempre tratou meu jovem favorito com terna
deferncia. Os dois bitnios falavam o suave dialeto da Jnia, de desinncias
quase homricas, que, mais tarde, convenci Arriano a empregar em suas obras.
Atenas tinha nessa poca seu filsofo de vida frugal: Demnax levava uma
existncia exemplar, embora alegre, numa cabana da aldeia de Colono. Ele no
era Scrates; deste no tinha a sutileza nem o ardor, mas eu amava sua bonomia
zombeteira. O ator cmico Aristmenes, que interpretava com humor a velha
comdia tica, foi outro desses amigos de corao simples. Chamava-lhe minha
perdiz grega: baixo, gordo, alegre como uma criana ou um passarinho, conhecia
melhor do que ningum os ritos, a poesia e as receitas da cozinha antiga.
Divertiu-me e instruiu-me durante longo tempo. Por essa poca, Antnoo
afeioou-se muito ao filsofo Chbrias, platnico e entusiasta do orfismo, o mais
inocente dos homens, que dedicou ao menino uma fidelidade de co de guarda,
transferida mais tarde para mim. Onze anos de vida na corte no o mudaram:
sempre o mesmo ser cndido, dedicado, castamente ocupado pelos sonhos, cego
s intrigas e surdo aos rumores. Aborrece-me algumas vezes, mas s me
separarei dele por ocasio de morte.
Foi na Frgia, nos confins onde a Grcia e a sia se confundem, que tive, mais
tarde, a imagem mais completa e mais lcida da felicidade. Estvamos
acampados num lugar deserto e selvagem, junto ao tmulo de Alcibades, morto
ali por obra das maquinaes dos strapas. Mandei colocar sobre aquele tmulo,
negligenciado havia sculos, uma esttua de mrmore de Paros, a efgie desse
homem que foi um dos mais amados pela Grcia. Ordenei tambm que todos os
anos fossem celebrados ali certos ritos comemorativos; os habitantes da aldeia
juntaram-se ao pessoal da minha escolta para a primeira dessas cerimnias. Um
novilho foi sacrificado, e uma parte da carne, reservada para o festim da noite.
Houve uma corrida de cavalos improvisada na plancie, e danas nas quais o
bitnio tomou parte com graa esfuziante. Um pouco mais tarde, beira da
ltima fogueira, atirando para trs a bela cabea, ele cantou. Gosto de me
estender junto dos mortos para tomar minha medida: nessa noite comparei
minha vida do grande hedonista envelhecido que tombou naquele local varado
pelas setas, defendido por um jovem amigo e chorado por uma cortes de
Atenas. Na minha juventude, no pretendi igualar o prestgio desfrutado pelo
jovem Alcibades: minha multiplicidade igualava ou superava a dele. Havia
usufrudo tanto quanto ele, refletira mais longamente e trabalhara muito mais.
Possua, como ele, a estranha felicidade de ser amado. Alcibades a todos
seduziu, at mesmo Histria e, entretanto, deixou atrs de si pilhas de atenienses
mortos, abandonados nas estradas de Siracusa, alm de uma ptria vacilante e
deuses das encruzilhadas estupidamente mutilados por suas mos. Governei um
mundo infinitamente mais vasto do que aquele em que o ateniense viveu.
Mantive-o em paz e aparelhei-o como a um belo navio, preparado para uma
viagem que dever durar atravs dos sculos. Empenhei-me na luta para
enaltecer o lado divino do homem, sem, contudo, sacrificar-lhe o lado humano. A
felicidade foi a minha recompensa.
Havia Roma. A essa altura, porm, j no me sentia obrigado a manobrar, a
tranqilizar, a agradar. A obra do principado impunha-se; as portas do templo de
Jano, que se abrem em tempo de guerra, permaneciam fechadas. Os ideais
produziam seus frutos, e a prosperidade das provncias reflua para a metrpole.
J no recusava o ttulo de pai da ptria que me haviam proposto na poca do
meu advento.
Pio tina no existia mais. Durante uma temporada anterior na cidade, revira pela
ltima vez aquela mulher de sorriso um tanto cansado, a quem a nomenclatura
oficial dera o ttulo de minha me e que era bem mais: era minha nica amiga.
Desta vez, dela s encontrei uma pequena urna depositada sob a Coluna de
Trajano. Assisti pessoalmente s cerimnias da sua apoteose. Contrariamente ao
uso imperial, mantive o luto por um perodo de nove dias. Mas a morte mudava
pouca coisa nessa intimidade que havia anos dispensava a presena; a imperatriz
permaneceu o que sempre fora para mim: um esprito, um pensamento ao qual o
meu se unira.
Havia longo tempo eu preferia, aos comentrios ineptos dos filsofos sobre a
natureza divina, as fbulas referentes aos amores e s disputas dos deuses;
aceitava ser a imagem terrestre daquele Jpiter mais deus do que homem,
sustentculo do mundo, encarnao da justia, da ordem das coisas, amante dos
Ganimedes e das Europas, esposo negligente de uma Juno amarga. Meu esprito,
predisposto naquele dia a colocar todas as coisas sob uma luz sem sombras,
comparava a imperatriz quela deusa, em honra de quem, numa recente visita a
Argos, eu consagrara um pavo de ouro ornado de pedras preciosas. Teria podido
desembaraar-me, pelo divrcio, dessa mulher que eu no amava. Fosse eu um
homem comum, no teria hesitado em faz-lo. Mas Sabina incomodava-me
pouco, e nada em sua conduta justificava tamanho insulto pblico. Jovem esposa,
meu afastamento a perturbava, mas pouco a pouco, como seu tio, comeou a
irritar-se apenas com minhas dvidas. Agora, ela assistia s manifestaes de
uma paixo que se anunciava duradoura, sem sequer demonstrar perceb-la.
Como muitas mulheres pouco sensveis ao amor, ela mal compreendia seu poder.
Essa ignorncia exclua ao mesmo tempo a indulgncia e o cime. Inquietava-se
apenas quando seus ttulos ou sua segurana estavam ameaados, o que no era o
caso. Nada lhe restava da graa adolescente que, em outros dias, me interessara,
ainda que passageiramente. A espanhola, prematuramente envelhecida, era
grave e dura. Agradava-me que sua frieza a tivesse impedido de possuir
amantes; agradava-me tambm que soubesse usar com dignidade seus vus de
matrona, que eram quase os de viva. Comprazia-me que um perfil de
imperatriz figurasse nas moedas romanas, tendo no reverso uma inscrio
dedicada ora ao Pudor, ora Tranqilidade. Freqentemente me acontecia
pensar naquele casamento fictcio que, na noite das festas dedicadas a Elusis,
realizou-se entre a grande sacerdotisa e o hierofante, casamento que no uma
unio, nem mesmo um contato, mas um rito e, como tal, sagrado. Na noite que
se seguiu a essas celebraes, contemplei Roma arder do alto de um terrao. As
fogueiras da alegria equivaliam aos incndios ateados por Nero: eram quase to
terrveis quanto estes. Roma: o cadinho, mas tambm a fornalha e o metal em
ebulio; o malho, mas tambm a bigorna; a prova visvel das transformaes e
dos recomeos da histria, um dos lugares do mundo onde o homem ter vivido
mais intensamente. A conflagrao de Tria, de onde um fugitivo escapara
trazendo em sua companhia o velho pai, o jovem filho e seus deuses domsticos,
resultava naquela noite em grandes fogos festivos. Pensava tambm, com uma
espcie de terror sagrado, nas conflagraes do futuro. Os milhes de vidas
passadas, presentes e futuras, os novos edifcios nascidos dos edifcios antigos e
seguidos, eles prprios, de edifcios por nascer, pareciam-me suceder-se no
tempo como vagas. Por acaso, era a meus ps que, naquela noite, essas grandes
vagas vinham quebrar-se. Ponho de parte os momentos de delrio em que a
prpura imperial, estofo sagrado que eu to raramente consentia em usar, foi
lanado sobre os ombros da criatura que se transformara, para mim, no meu
Gnio. Quis, por um momento, observar o contraste entre o vermelho profundo e
o ouro plido de uma nuca, mas quis sobretudo obrigar minha Felicidade, minha
Fortuna, essas entidades incertas e vagas, a encarnar-se nessa forma to
terrestre, a adquirir o calor e o peso tranqilizador da carne. As slidas paredes
do Pala tino, que eu ocupava to poucas vezes, mas que acabava de reconstruir,
oscilavam como o costado de um barco; as cortinas afastadas para deixar entrar
a noite romana assemelhavam-se a bandeiras num mastro de navio, e os gritos
da multido soavam como o rudo do vento no cordame. O enorme escolho
entrevisto ao longe, na sombra, era a base gigantesca do meu tmulo em incio
de construo s margens do Tibre. Contudo, nessa noite, nada disso me inspirava
temor, nem v meditao sobre a brevidade da vida.
Imperceptivelmente, a luz mudou. Aps mais de dois anos, a passagem do tempo
era acentuada pelo desenvolvimento de uma juventude que se forma, que se
torna dourada, que sobe em direo ao seu znite: a voz grave habituara-se a dar
ordens aos pilotos e aos chefes das caadas; o passo do corredor alongara-se; as
pernas do cavaleiro dominavam mais habilmente a montaria. O estudante que
aprendera de cor, em Claudipolis, fragmentos de Homero, comeava a
apaixonar-se pela poesia voluptuosa e sbia, entusiasmava-se com certas
passagens de Plato. Meu jovem pastor transformava-se num jovem prncipe. J
no era aquele menino diligente que saltava do cavalo nas escalas para me
oferecer a gua das fontes recolhida na concha das mos. O doador conhecia
agora o imenso valor dos seu dons. Durante as caadas organizadas nos domnios
de Lcio, na Toscana, sentia prazer em misturar aquele rosto perfeito s
fisionomias pesadas e inquietas dos grandes dignitrios, aos perfis agudos dos
orientais, s carrancas macias dos monteiros brbaros, e em obrigar o bem-
amado a representar o difcil papel de amigo. Em Roma, as intrigas giravam em
torno daquela cabea jovem. Empregavam-se os mais vis esforos no sentido de
captar sua influncia, ou substitu-la por qualquer outra. A concentrao num
nico pensamento dotava o jovem de dezoito anos de um poder de indiferena
que falta aos mais sbios. Embora soubesse como desdenhar ou ignorar tudo isso,
a linda boca adquirira um vinco amargo que no escapava aos escultores.
Ofereo aqui aos moralistas uma ocasio fcil para triunfarem sobre mim. Meus
censores se preparam para provar que minha infelicidade conseqncia de um
desregramento, o resultado de um excesso. Torna-se-me difcil contradiz-los,
pois no vejo em que consiste o desregra-mento, nem onde se situa o excesso.
Esforo-me por reduzir meu crime, se crime houve, a propores justas: digo a
mim mesmo que o suicdio no raro, e que comum morrer aos vinte anos. A
morte de Antnoo s um problema e uma catstrofe para mim. Talvez esse
desastre fizesse parte integrante de um excesso de alegria, de um acrscimo de
experincia, de que eu no teria consentido privar a mim mesmo, nem a meu
companheiro de perigo. Meus prprios remorsos transformaram-se, pouco a
pouco, numa forma amarga de posse, um modo de convencer-me de que fui, at
o fim, o triste senhor do destino dele. Mas no ignoro que preciso contar com as
decises do belo desconhecido que existe, apesar de tudo, em cada ser que
amamos. Assumindo toda a culpa, reduzo o jovem amigo s propores de uma
esttua de cera, que eu teria modelado e depois esmagado entre minhas prprias
mos. No tenho o direito de depreciar a extraordinria obra-prima em que ele
transformou sua partida. imperioso que eu deixe a essa criana o mrito de sua
prpria morte.
Tive meus pressgios: como Marco Antnio antes da ltima batalha, ouvi,
durante a noite, afastar-se a msica da rendio dos deuses protetores que
partem Mas a ouvi sem lhe dar ateno. Sentia-me seguro como o cavaleiro
que um talism protege contra todas as quedas. Em Samsata, realizou-se sob
meus auspcios um congresso de pequenos reis do Oriente; durante as caadas na
montanha, Abgar, rei de Osroene, ensinou-me a arte da falcoaria; batidas
preparadas como cenas de teatro precipitaram em redes de prpura manadas
inteiras de antlopes; Antnoo agentava-se com todas as suas foras para conter
o mpeto de um casal de panteras atado a pesadas coleiras de ouro. Os ajustes
foram concludos sombra de todos esses esplendores; as negociaes foram-
me favorveis. Continuava a ser o jogador que sempre ganha. O inverno passou-
se no palcio da Antiquia, onde outrora eu pedira aos feiticeiros que me
esclarecessem o futuro. Mas o futuro, dali por diante, no podia trazer-me nada
que, pelo menos, passasse por um dom. Minhas vindimas estavam feitas; o mosto
da vida enchia a cuba. Havia cessado, verdade, de comandar meu prprio
destino, mas as disciplinas antes cuidadosamente elaboradas j no me pareciam
o primeiro estgio de uma vocao de homem; tinham-se transformado em
cadeias que o danarino se obriga a usar para saltar melhor quando delas se
separa. Em certos pontos, a austeridade persistia: continuava a proibir que
servissem o vinho antes da segunda viglia noturna; lembrava-me de ter visto,
sobre aquelas mesmas mesas de madeira polida, a mo trmula de Trajano. Mas
h outras espcies de embriaguez. Nenhuma sombra se delineava sobre meus
dias, nem a morte, nem a derrota, nem aquele revs mais sutil que infligimos a
ns mesmos, nem a idade que, entretanto, acabaria por chegar. Contudo, eu me
apressava, como se cada uma daquelas horas fosse a mais bela e a ltima.
Mas tinha muito mais empenho em consagrar caa os poucos dias que
precederiam a chegada dos meus hspedes. Em Palmira, Meles Agripa
proporcionou-nos algumas distraes no deserto: tnhamos ido at muito longe
para encontrar os lees. Dois anos antes, a frica me oferecera algumas belas
caadas grande fera: Antnoo, ainda muito jovem e inexperiente, no recebera
permisso para tomar parte nelas em primeiro plano. Tinha, para com ele,
covardias que nunca pensaria ter para comigo mesmo. Cedendo, como sempre
prometi-lhe o papel principal nessa caada ao leo. Passara o tempo de trat-lo
como criana, e sentia-me orgulhoso daquela jovem fora.
Uma espcie de festim foi improvisado. Deitado de bruos ante uma bandeja de
cobre, o jovem distribua entre ns, com suas prprias mos, pedaos de carneiro
cozido na brasa. Bebemos em sua honra o vinho da palmeira. Sua exaltao
crescia como um canto. Exagerava talvez o significado do socorro que eu lhe
havia prestado, esquecendo-se de que eu teria feito o mesmo por qualquer
caador em perigo; contudo, sentamo-nos de novo naquele mundo herico no
qual os amantes morrem um pelo outro. A gratido e o orgulho alternavam-se na
sua alegria como as estrofes de uma ode. Os negros fizeram maravilhas: noite,
a pele esfolada balanava-se sob as estrelas, suspensa em duas estacas entrada
da minha tenda. Apesar das substncias aromticas espalhadas por ali, o odor
selvagem perseguiu-nos durante toda a noite. Na manh seguinte, depois de uma
refeio frugal, deixamos o acampamento. No momento da partida, avistamos
num fosso o que restava da fera real da vspera: apenas uma carcaa vermelha
sob uma nuvem de moscas.
Aos vinte e seis anos, no perdera quase nada da beleza surpreendente que o
fazia ser aclamado nas ruas pela juventude de Roma. Continuava imprevisvel,
irnico e alegre. Seus caprichos de outrora transformavam-se em manias: no se
deslocava sem seu cozinheiro-chefe; seus jardineiros plantavam para ele,
mesmo a bordo, admirveis canteiros de flores raras. Levava consigo, por toda
parte, o leito cujo modelo ele prprio havia desenhado quatro colches
recheados por quatro espcies de substncias aromticas, sobre os quais se
deitava rodeado por jovens amantes como se fossem outras tantas almofadas.
Seus pajens, maquilados, empoados, vestidos ridiculamente como os Zfiros e o
Amor, conformavam-se como podiam com fantasias por vezes cruis: tive de
intervir para impedir que o pequeno Breas, em quem ele admirava a esbeltez,
se deixasse morrer de fome. Tudo isso era mais irritante do que agradvel.
Visitamos de comum acordo tudo quanto se visita em Alexandria: o Farol, o
Mausolu de Alexandre, o de Marco Antnio, onde Clepatra triunfa
eternamente sobre Otvia, sem esquecer os templos, as oficinas, as fbricas, e
at mesmo o bairro dos embalsamadores. Comprei a um bom escultor todo um
lote de Vnus, de Dianas e de Hermes destinados a Itlica, minha cidade natal,
que se propunha modernizar e ornamentar. O sacerdote do templo de Serpis
ofereceu-me um servio completo de opalina; enviei-o a Serviano, com quem
procurava manter relaes suportveis em ateno a minha irm Paulina.
Grandes projetos edlicos foram postos em prtica durante essas viagens bastante
fastidiosas.
Depois de haver feito o possvel para nos inquietar, a adivinha props-nos seus
servios: um desses sacrifcios mgicos, em que as feiticeiras do Egito so
especialistas, seria suficiente para que tudo fosse arranjado amigavelmente com
o destino. Minhas incurses pela magia fencia j me haviam feito compreender
que o horror dessas prticas proibidas tem menos a ver com aquilo que nos
mostram do que com aquilo que nos escondem: se no tivessem conhecimento
do meu dio aos sacrifcios humanos, ter-me-iam provavelmente aconselhado a
imolar um escravo. Contentaram-se em falar de um animal domstico.
Tanto quanto possvel, a vtima devia ter pertencido a mim: no podia tratar-se de
um co, animal que a superstio egpcia julga imundo; um pssaro teria sido
mais conveniente, mas no viajo com um viveiro. Meu jovem companheiro
props-me seu falco. As condies estariam, assim, preenchidas: a bela ave
fora presente meu, que a havia recebido do rei de Osroene. O menino
alimentava-a pela sua prpria mo; a ave era um dos raros bens a que era ligado.
A princpio, recusei; ele insistiu gravemente. Compreendi que atribua a tal
oferenda um significado extraordinrio. Aceitei, por ternura. Munido das
instrues as mais minuciosas, meu correio Mencrates partiu procura da ave
nos nossos aposentos do Serapeu. Mesmo a galope, a corrida levaria pelo menos
duas horas. No se podia pensar em pass-las naquele pardieiro imundo da
feiticeira. Lcio se queixava da umidade do barco. Flgon encontrou uma
soluo: instalamo-nos bem ou mal na casa de uma proxeneta, depois de t-la
feito desembaraar-se de seu pessoal. Lcio decidiu dormir; aproveitei o
intervalo para ditar alguns despachos, e Antnoo estendeu-se a meus ps. O
clamo de Flgon rangia sob a lmpada. Aproximava-se a ltima viglia da noite
quando Mencrates trouxe a ave, o guante, o capuz e a corrente.
Na noite anterior, Lcio convidou-me a cear no seu barco, aonde cheguei ao pr-
do-sol. Antnoo recusou-se a acompanhar-me. Deixei-o na minha cabine de
popa, estendido sobre sua pele de leo, absorto no jogo dos ossinhos em
companhia de Chbrias. Meia hora mais tarde, j noite fechada, ele mudou de
idia e mandou chamar um bote. Auxiliado por um s barqueiro, percorreu na
contracorrente a distncia bastante longa que nos separava dos outros barcos. Sua
entrada sob o toldo onde se realizava a ceia interrompeu os aplausos provocados
pelas contores de uma danarina. Ataviara-se com uma longa veste sria, fina
como a pele de um fruto, toda semeada de flores e de quimeras. Para remar
mais vontade, havia baixado a manga direita: o suor brilhava sobre seu peito
liso. Lcio atirou-lhe uma guirlanda, que ele apanhou no ar. Sua alegria esfuziante
no arrefeceu um s instante, estimulada apenas por uma nica taa de vinho
grego. Regressamos juntos a meu bote, movido por seis remadores. Lcio gritou-
nos um boa-noite seco e mordaz. A alegria selvagem de Antnoo persistiu.
Contudo, pela manh aconteceu-me tocar, por acaso, um rosto molhado de
lgrimas. Perguntei-lhe, cheio de impacincia, a razo do pranto; respondeu-me
humildemente, alegando cansao. Aceitei a mentira e tornei a adormecer. Sua
verdadeira agonia comeara naquele leito, ao meu lado.
S nos restava explorar a margem. Uma srie de reservatrios, que deviam ter
servido antigamente para cerimnias sagradas, comunicava-se com uma
enseada do rio. Sob o crepsculo que caa rapidamente, Chbrias avistou na
beirada do ltimo tanque uma veste dobrada e um par de sandlias. Desci os
degraus escorregadios: Antnoo estava deitado no fundo, j mergulhado no lodo
do rio. Com a ajuda de Chbrias consegui erguer o corpo que pesava,
subitamente, como pedra. Chbrias gritou pelos barqueiros, que improvisaram
uma maa de lona. Hermgenes, chamado s pressas, s pde constatar a morte.
Aquele corpo, antes to dcil, recusava-se a deixar-se reaquecer, reviver. Ns o
transportamos para bordo. Tudo desmoronava; tudo parecia extinguir-se. O Zeus
Olmpico, o Senhor de Tudo, o Salvador do Mundo vieram abaixo; de repente,
havia apenas um homem de cabelos grisalhos soluando no convs de um barco.
Dois dias mais tarde, Hermgenes conseguiu fazer-me pensar nos funerais. Os
ritos do sacrifcio que Antnoo escolhera para cercar sua morte mostravam-nos o
caminho a seguir: no por acaso, a hora e o dia do seu fim haviam coincidido
com a hora e o dia em que Osris descera a seu tmulo. Dirigi-me outra
margem, rumo a Hermpolis, procura dos embalsamadores. Vira seus colegas
trabalharem em Alexandria; sabia a quantos ultrajes o corpo seria submetido. O
fogo que grelha e carboniza a carne amada, e a terra onde apodrecem os mortos
ambos so horrveis. A travessia foi breve; acocorado a um canto da cabine de
popa, Eufrion ululava em voz baixa um lamento africano, fnebre e
desconhecido; o canto abafado e rouco quase me parecia meu prprio grito.
Transportamos o morto para uma sala muito bem lavada, que me lembrou a
clnica de Stiro; ajudei o modelador a untar o rosto antes de lhe aplicar a cera.
Todas as metforas voltavam a ter um sentido: tive aquele corao entre minhas
mos. Quando o deixei, o corpo vazio no era mais que um objeto preparatrio
nas mos do embalsamador, primeiro estgio de uma atroz obra-prima,
substncia preciosa tratada com sal e gelia de mirra, que o ar e o sol nunca mais
tocariam.
Ao regressar, visitei o templo junto do qual o sacrifcio fora consumado. Falei aos
sacerdotes: seu santurio seria restaurado e se tornaria um lugar de peregrinao
para todo o Egito; seu colgio, enriquecido, ampliado, se consagraria dali por
diante ao servio do meu deus. Mesmo nos momentos mais conturbados do nosso
relacionamento, jamais duvidei de que aquela juventude fosse divina. A Grcia e
a sia o venerariam nossa maneira, atravs da promoo de jogos, danas e
oferendas rituais aos ps de uma esttua branca e nua. O Egito, que presenciara
sua agonia, teria tambm sua parte na apoteose. Seria a mais sombria, a mais
secreta e a mais rdua; aquele pas desempenharia junto dele o papel eterno de
embalsamador. Durante sculos, sacerdotes de cabeas raspadas recitariam
litanias onde figuraria aquele nome, para eles sem valor, mas que para mim
encerrava o contedo de todas as coisas. Todos os anos, a barca sagrada
conduziria aquela efgie sobre o rio. No primeiro dia do ms de Atir, carpidores
desfilariam ao longo daquela margem que eu percorrera um dia. Cada hora tem
seu dever imediato, uma injuno que domina as outras: a daquele momento era
defender contra a morte o pouco que me restava. A meu pedido, Flgon reuniu s
margens do rio os arquitetos e os engenheiros da minha comitiva. Sustentado por
uma espcie de embriaguez lcida, levei-os ao longo das colinas pedregosas,
explicando meu plano: a construo de quarenta e cinco estdios de muralha.
Marquei na areia o lugar do arco do triunfo e o do tmulo. Antino ia nascer:
impor quela terra sinistra uma cidade totalmente grega, um bastio que
inspiraria respeito aos nmades da Eritria, um novo mercado na estrada da
ndia, seria uma forma de vencer a morte. Alexandre celebrara os funerais de
Hefstion atravs de devastaes e hecatombes. Parecia-me mais emocionante
oferecer ao favorito uma cidade onde seu culto estaria para sempre misturado ao
movimento da praa pblica, onde seu nome seria mencionado nas reunies
noturnas, quando os rapazes atirariam guirlandas de flores uns aos outros, hora
dos banquetes.
O Amor, o mais sbio dos deuses Mas o amor no era responsvel pela
negligncia, pelas crueldades, pela indiferena misturada paixo como a areia
se mistura ao ouro levado pelo rio, pela estpida cegueira de um homem
demasiado feliz e que envelhece. Como consegui sentir-me to grosseiramente
satisfeito? Antnoo estava morto. Longe de amar demasiado, como, sem dvida,
Serviano afirmava em Roma naquele momento, eu no havia amado o bastante
para obrigar aquela criana a viver. Chbrias, que, na sua qualidade de iniciado
rfico, considerava o suicdio um crime, insistia sobre o lado sacrificai daquele
fim. Eu prprio experimentava uma espcie de alegria horrvel em dizer a mim
mesmo que aquela morte era um dom. Mas era o nico a avaliar quanto
amargor fermenta no fundo da doura, quanto desespero se esconde na
abnegao, e quanto dio se mistura ao amor. Um ser insultado lanava-me
face essa prova de devotamento; uma criana, perplexa ante a possibilidade de
tudo perder, encontrara o meio de me associar a ela para sempre. Se pensou
proteger-me atravs de tal sacrifcio, deveria julgar-se bem pouco amado, para
no compreender que o pior dos males seria perd-lo.
Resisti. Lutei contra a dor, como se combate uma gangrena. Procurei recordar-
me das teimosias, das mentiras; disse a mim mesmo que ele teria mudado um
dia, engordaria, envelheceria. Tempo perdido: como um artfice consciencioso se
esgota copiando uma obra-prima, obstinava-me em exigir da memria uma
exatido insensata. Recriava aquele peito alto e abaulado como um escudo. Por
vezes, a imagem surgia por si mesma; sentia-me arrebatado por uma vaga de
doura; revia um pomar em Tbure, onde o efebo colhia os frutos do outono em
sua tnica arregaada maneira de corbelha. Faltava-me tudo ao mesmo tempo:
o companheiro das festas noturnas, o jovem que se sentava sobre os calcanhares
para ajudar Eufrion a endireitar as pregas da minha toga. A acreditar nos
sacerdotes, a sombra tambm sofria, lamentava o abrigo quente do prprio
corpo, visitava em prantos os lugares familiares, distante e to prxima,
momentaneamente muito frgil para me fazer sentir sua presena. Se isso fosse
verdade, minha surdez seria pior do que a prpria morte. Mas eu havia
compreendido bem o jovem vivo que, naquela manh, soluava a meu lado?
Uma noite, Chbrias chamou-me para me mostrar na constelao da guia uma
estrela at ento pouco visvel, que subitamente cintilava como uma gema e
pulsava como um corao. Tornou-se para mim a estrela dele, o sinal dele.
Consumia-me noite aps noite seguindo-lhe o curso; vi estranhas figuras nessa
parte do cu. Alguns julgaram que estivesse louco. Pouco me importava.
Os barcos nos levaram ao ponto do rio onde Antino comeava a ser edificada.
Eram menos numerosos do que na ida: Lcio, que eu vira muito pouco, retornara
a Roma, onde sua jovem mulher acabava de dar luz um filho. Sua partida
livrava-me de um bom nmero de curiosos e importunos. As obras comeadas
alteravam a forma da margem; o plano dos edifcios futuros esboava-se entre
os montes de terra removida; mas j no reconheci o lugar exato do sacrifcio.
Os embalsamadores entregaram sua obra: depositaram o delicado sarcfago de
cedro no interior de uma urna de prfiro, colocada de p na sala mais secreta do
templo. Aproximei-me timidamente do morto. Parecia vestido a carter: a dura
coifa egpcia cobria-lhe inteiramente os cabelos. As pernas envolvidas em
ataduras no eram mais do que um longo fardo branco, mas o perfil do jovem
falco no havia mudado; sobre as faces pintadas os clios projetavam uma
sombra que eu reconhecia muito bem. Antes de terminar o enfaixamento das
mos, quiseram que eu admirasse as unhas de ouro. Comearam as litanias:
atravs da boca dos sacerdotes, o morto declarava ter sido incessantemente
verdadeiro, perpetuamente casto, perpetuamente compassivo e justo,
vangloriando-se de virtudes que, se as tivesse praticado, o teriam afastado para
sempre dos vivos. O odor ranoso do incenso enchia a sala. Tentei dar a mim
mesmo, atravs da nvoa, a iluso do sorriso: o belo rosto imvel parecia tremer.
Assisti aos passes mgicos por meio dos quais os sacerdotes foram a alma do
morto a encarnar uma parcela de si mesma no interior de esttuas que
conservaro sua memria, obrigando-a a outras injunes, mais estranhas ainda.
Quando a cerimnia terminou, a mscara de ouro modelada sobre a cera
morturia foi recolocada no seu lugar, ajustando-se perfeitamente s feies. A
bela superfcie inaltervel no tardaria a absorver em si prpria suas
possibilidades de irradiao e calor; jazeria para sempre naquela urna
hermeticamente fechada, smbolo inerte da imortalidade. Puseram-lhe sobre o
peito um ramo de accias. A pesada tampa foi recolocada no lugar por uma
dzia de homens. Entretanto, eu continuava indeciso sobre a localizao do
tmulo. Lembrei-me de que, tendo ordenado que se realizassem em toda parte
festas de apoteose, jogos fnebres, cunhagem de moedas, esttuas nas praas
pblicas, fizera uma exceo quanto a Roma: temera aumentar a animosidade
que cerca, em maior ou menor grau, qualquer favorito estrangeiro. Disse a mim
mesmo que no estaria sempre l para proteger aquela sepultura. O monumento
que se deveria edificar s portas de Antino parecia-me tambm demasiado
pblico, pouco seguro. Decidi-me pela opinio dos sacerdotes. Indicaram-me no
flanco de uma montanha da cadeia arbica, distante cerca de trs lguas da
cidade, uma das cavernas outrora destinadas pelos reis do Egito a lhes servir de
poos funerrios. Uma junta de bois levou o sarcfago pela encosta. Com a
ajuda de cordas, fizeram-no deslizar ao longo dos corredores da mina.
Apoiaram-no em seguida contra uma parede de rocha. O menino de Claudipolis
descia ao sepulcro como um fara, como um Ptolomeu. Ns o deixamos s.
Entrava num tempo definitivo, sem ar, sem luz, sem estaes e sem fim,
comparado ao qual toda vida parece breve. Atingira a estabilidade, talvez a
calma absoluta. Milhares de sculos ainda ocultos no seio opaco do tempo
passariam sobre o tmulo sem devolver-lhe a vida, mas tambm sem nada
acrescentar sua morte, e sem impedir que ele houvesse existido. Hermgenes
deu-me o brao para auxiliar-me a subir at o ar livre. Foi quase uma alegria
reencontrar-me de novo com a superfcie, rever o frio cu azul entre dois lances
de rochas avermelhadas. O resto da viagem foi breve. Em Alexandria, a
imperatriz reembarcou para Roma.
Disciplina Augusta
Regressei Grcia por via terrestre. A viagem foi longa. Tinha motivos para
pensar que aquela seria minha ltima visita oficial ao Oriente, razo pela qual
punha o maior empenho em examinar tudo com meus prprios olhos. Vi a
Antiquia, onde me detive por algumas semanas, sob um novo aspecto. Estava
menos sensvel do que outrora ao prestgio dos teatros, das festas, aos prazeres
dos jardins de Dafne, ao rumor variegado das multides. Minha ateno
concentrou-se principalmente na eterna leviandade daquele povo maldizente e
trocista, que me lembrava o de Alexandria, a vaidade dos seus pretensos
exerccios intelectuais e a ostentao vulgar do luxo dos ricos. Entre os homens
importantes, pouqussimos apoiavam, no seu conjunto, meus programas de
trabalho e de reformas na sia. A maioria se contentava em aproveit-los para
suas cidades e, sobretudo, para si prprios. Por um momento, pensei aumentar a
importncia de Esmirna ou de Prgamo, em detrimento da arrogante capital da
Sria. Mas os defeitos da Antiquia so inerentes a todas as grandes cidades:
nenhuma metrpole est isenta deles. Meu desgosto pela vida urbana fez-me dar
maior ateno, se possvel, s reformas agrrias; ultimei a longa e complexa
reorganizao dos domnios imperiais da sia Menor. Lucrou o Estado, e
lucraram os camponeses. Na Trcia, quis visitar Andrinopla, para onde os
veteranos das campanhas dcias e srmatas haviam afludo atrados pelas
concesses de terras e pela reduo de impostos. Idntico plano seria posto em
execuo em Antino. Desde muito tempo, eu vinha concedendo anlogas
isenes aos mdicos e aos professores, na esperana de favorecer a estabilidade
e o desenvolvimento de uma classe mdia sria e culta. Conheo-lhe os defeitos,
mas dela depende a sobrevivncia do Estado.
Atenas continuava sendo minha etapa preferida; surpreendia-me que sua beleza
dependesse to pouco das minhas prprias lembranas e da lembrana de fatos
histricos. Essa cidade parecia renovar-se a cada manh. Nessa temporada,
hospedei-me em casa de Arriano. Iniciado, como eu, em Elusis, ele fora
adotado por uma das grandes famlias sacerdotais do territrio tico, a famlia
dos Kery kes, como eu prprio o fora pela dos Eumlpidas. Casara-se ali, e tinha
por esposa uma jovem ateniense, fina e altiva. Ambos cumularam-me
discretamente de atenes. Sua casa estava situada a dois passos da nova
biblioteca com que eu acabava de adotar Atenas, e onde tudo era propcio
meditao e ao repouso, que a antecede: cadeiras cmodas, aquecimento
adequado durante os invernos quase sempre rigorosos, escadas para facilitar o
acesso s galerias de livros, o alabastro e o ouro de um luxo moderado e calmo.
Uma ateno especial fora dispensada escolha e colocao das lamparinas.
Considerava da mxima importncia reunir e conservar os volumes antigos, mas
tambm encarregar escribas conscienciosos de tirar novas cpias de todos eles.
Essa maravilhosa empreitada no me parecia menos urgente do que o auxlio aos
veteranos, ou os subsdios s famlias proliferas e pobres. Dizia a mim mesmo
que bastariam algumas guerras e a misria delas resultante, acompanhadas de
um perodo de brutalidade e selvageria sob o domnio de alguns maus prncipes,
para que ficassem irremediavelmente destrudos os pensamentos chegados at
ns por meio desses frgeis objetos de fibras e tinta. Todo homem bastante
afortunado para se beneficiar mais ou menos desse legado de cultura parecia-me
encarregado de um fideicomisso para com o gnero humano.
Encontrei-me vrias vezes, nesse ano, com a sacerdotisa que outrora me iniciara
em Elusis, e cujo nome deve permanecer secreto. Nesses encontros foram
fixadas, uma a uma, as modalidades do culto a Antnoo. Os grandes smbolos
eleusinos continuavam a destilar para mim uma virtude calmante: o mundo
talvez no tenha nenhum sentido, mas se tem algum, este exprime-se em Elusis,
mais sabiamente e mais nobremente do que em qualquer outro lugar. Foi sob a
influncia dessa mulher que empreendi fazer das divises administrativas de
Antino, dos seus demos, das suas ruas, dos seus blocos urbanos, um plano do
mundo divino, ao mesmo tempo que uma imagem transfigurada da minha
prpria vida. Tudo entrava nesse plano, Hstia e Baco, os deuses domsticos e os
da orgia, as divindades celestes e as de alm-tmulo. Coloquei ali meus
antepassados imperiais, Trajano, Nerva, transformados em parte integrante
desse sistema de smbolos. Plotina tambm encontrava-se l; a boa Matdia
estava assimilada a Demter; minha prpria mulher, com quem eu entretinha
nessa poca relaes bastante cordiais, figurava no cortejo das pessoas divinas.
Alguns meses mais tarde, dei o nome de minha irm Paulina a um dos bairros de
Antino. Acabara por me desentender com a mulher de Serviano, mas Paulina
morta reencontrava nessa cidade da memria o seu lugar nico de irm. Esse
local triste tornava-se a paisagem ideal das reunies e das lembranas, os
Campos Elsios de uma vida, o lugar onde as contradies se resolvem, onde tudo
igualmente sagrado.
Foi por essa poca que Quadrato, bispo dos cristos, enviou-me uma apologia da
sua f. Tive por princpio manter a respeito dessa seita a linha de conduta
estritamente eqitativa que Trajano seguira nos seus melhores dias; acabava de
lembrar aos governadores das provncias que a proteo das leis estende-se a
todos os cidados, e que os difamadores dos cristos seriam punidos se fizessem
contra eles acusaes sem provas. Mas toda tolerncia concedida aos fanticos
os faz acreditar imediatamente que se trata de uma manifestao de simpatia
pela sua causa; custa-me crer que Quadrato esperasse fazer de mim um cristo;
em ltima anlise, quis provar-me a excelncia da sua doutrina e, sobretudo, sua
inocuidade relativamente ao Estado. Li sua obra; tive mesmo a curiosidade de
mandar recolher por Flgon informaes sobre a vida do jovem profeta
chamado Jesus, que fundou a seita e morreu vtima da intolerncia judaica h
cerca de cem anos. Consta que o jovem sbio deixou preceitos bastante
semelhantes aos de Orfeu, ao qual seus discpulos o comparam por vezes.
Atravs da prosa singularmente trivial de Quadrato, no deixei de apreciar o
encanto enternecedor daquelas virtudes de gente simples, sua doura, sua
ingenuidade, a dedicao recproca; tudo aquilo se parecia muito com as
confrarias que os escravos ou os pobres fundam um pouco por toda parte em
honra dos nossos deuses, nos subrbios populosos das cidades. No seio de um
mundo que, apesar de todos os nossos esforos, permanece duro e indiferente aos
sofrimentos e s esperanas dos homens, essas pequenas sociedades de
assistncia mtua oferecem aos desgraados um ponto de apoio e um reconforto.
Mas eu era sensvel tambm a certos perigos. A glorificao das virtudes da
criana e do escravo atuava em detrimento de qualidades mais viris e mais
lcidas; adivinhei, sob a inocncia contida e inspida, a feroz intransigncia do
sectrio em presena de formas de vida e de pensamento que no so as suas, o
orgulho insolente que o leva a preferir-se ao resto dos homens, com os olhos
voluntariamente enquadrados em antolhos. Cansei-me depressa dos argumentos
capciosos de Quadrato e das suas amostras de filosofia, inabilmente copiadas dos
escritos dos nossos sbios. Chbrias, sempre preocupado com a correo do culto
a ser oferecido a nossos deuses, inquietava-se com a propagao de seitas desse
gnero entre a populaa das grandes cidades; temia pelas nossas velhas religies,
que no impem ao homem o jugo de nenhum dogma, que se prestam a
interpretaes to variadas como a prpria natureza, e deixam os coraes
austeros inventar, se assim quiserem, uma moral mais elevada, sem submeter as
massas a preceitos excessivamente estritos, para no dar margem ao
constrangimento e hipocrisia. Arriano partilhava desses pontos de vista. Passei
toda uma noite a discutir com ele a injuno que consiste em amar ao prximo
como a si mesmo; demasiado contrria natureza humana para ser
sinceramente obedecida pelo homem comum, que sempre amar a si mesmo, e
no convm de modo algum ao sbio, que nunca ama particularmente a si
prprio.
Arriano valia muito mais. Eu gostava de conversar com ele sobre todas as coisas.
Ele conservava uma recordao fascinante e grave do bitnio; eu o via com
satisfao colocar esse amor, de que fora testemunha, na categoria das grandes
dedicaes recprocas de outrora; falvamos sobre isso de quando em quando,
conquanto, embora nenhuma mentira fosse pronunciada, eu tivesse por vezes a
impresso de sentir em nossas palavras uma certa falsidade: a verdade
desaparecia sob o sublime. Sentia-me quase decepcionado tambm a respeito de
Chbrias: ele nutrira por Antnoo o devotamento cego de um velho escravo por
um jovem senhor, mas, inteiramente ocupado com o culto do novo deus, parecia
quase haver perdido toda lembrana do vivente. Meu negro Eufrion, pelo
menos, observava as coisas mais de perto. Arriano e Chbrias eram-me
queridos, e eu no me sentia em nada superior a essas duas pessoas honestas;
contudo, parecia-me por momentos que eu era o nico homem esforando-se
por manter os olhos abertos.
Um aventureiro sado da escria do povo, um tal Simo, que se fazia chamar Bar
Kochba, o Filho da Estrela, representou nessa revoluo o papel de archote
embebido em betume, ou de espelho ardente. S posso julgar esse Simo pelo
que ouvi dizer; s o vi uma nica vez face a face, no dia em que um centurio
me trouxe sua cabea cortada. Mas estou disposto a reconhecer-lhe a parcela de
gnio que sempre necessria para que algum possa subir to depressa e to
alto nos negcios humanos; ningum se impe assim sem possuir, pelo menos,
alguma habilidade, mesmo grosseira. Os judeus moderados foram os primeiros a
acusar de fraude e impostura o pretenso Filho da Estrela; por mim, julgo que esse
esprito inculto era daqueles que acabam por acreditar em suas prprias
mentiras, e que, nele, o fanatismo igualava a velhacaria. Simo fez-se passar
pelo heri com quem o povo judeu conta h sculos para saciar suas ambies e
seus dios; o demagogo proclamou-se messias e rei de Israel. O antigo Akiba,
cuja cabea no andava bem, passeou pelas ruas de Jerusalm puxando o cavalo
do aventureiro pelas rdeas; o sumo sacerdote Eleazar reconsagrou o templo,
considerado profanado por alguns visitantes no circuncisos que ali entraram.
Montes de armas enterradas h quase vinte anos foram distribudas aos rebeldes
pelos agentes do Filho da Estrela; aconteceu o mesmo com peas defeituosas,
fabricadas h anos nos nossos arsenais com esse intuito, por operrios judeus, e
que nossa intendncia recusara. Grupos zelotes atacaram as guarnies romanas
isoladas e massacraram nossos soldados com requintes de furor que reavivaram
as piores recordaes da revolta judaica no tempo de Trajano; Jerusalm caiu
por fim nas mos dos insurrectos, e os bairros novos de lia Capitolina arderam
como uma s tocha. Os primeiros destacamentos da Vigsima Segunda Legio
Dejotariana, enviada do Egito a toda a pressa sob as ordens do legado da Sria,
Pblio Marcelo, foram derrotados por faces dez vezes superiores em nmero.
A revolta transformara-se em guerra, e guerra irremedivel.
Duas legies, a Dcima Segunda Fulminante e a Sexta Legio, a Legio de Ferro,
reforaram imediatamente os efetivos j aquartelados na Judia; alguns meses
mais tarde, Jlio Severo, que recentemente pacificava as regies montanhosas do
norte da Bretanha, tomou a direo das operaes militares; levava consigo
pequenos contingentes de auxiliares britnicos acostumados a combater em
terreno difcil. Nossas tropas, com equipamento pesado, nossos oficiais
habituados formao em quadrado ou em falange das batalhas campais,
tiveram dificuldade em se adaptar quela guerra de escaramuas e surpresas,
que mantinha em campo aberto tcnicas de rebelio. Simo, grande homem
sua maneira, dividira seus guerrilheiros em centenas de esquadras postadas nas
cristas das montanhas, emboscadas no fundo de cavernas e de caminhos
abandonados, escondidas em casas dos habitantes dos bairros mais populosos das
cidades; Severo compreendeu logo que o inimigo inacessvel podia ser
exterminado, mas no vencido; resignou-se a uma guerra de desgaste. Os
camponeses, fanatizados ou aterrorizados por Simo, fizeram, desde o incio,
causa comum com os zelotes: cada rochedo transformou-se num bastio; cada
vinhedo, numa trincheira; cada fazenda foi reduzida fome ou tomada de
assalto. Jerusalm s foi recapturada no decorrer do terceiro ano, quando os
ltimos esforos para as negociaes foram considerados inteis; o pouco que o
incndio de Tito poupara da cidade judaica foi destrudo. Severo disps-se,
durante muito tempo, a fechar os olhos flagrante cumplicidade das outras
grandes cidades; estas, tornadas as ltimas fortalezas do inimigo, foram mais
tarde atacadas e reconquistadas por sua vez, rua por rua, runa por runa. Nesses
tempos de provao, meu lugar era no acampamento das tropas e na Judia.
Tinha confiana absoluta nos meus dois lugares tenentes; mais uma razo para
que fosse at l partilhar a responsabilidade de decises que, de qualquer
maneira, se anunciavam atrozes. No fim do segundo vero de campanha, fiz,
com amargura, meus preparativos de viagem. Eufrion empacotou uma vez
mais o estojo dos meus objetos pessoais, um pouco deformado pelo uso,
executado havia muito tempo por um artfice de Esmirna, a caixa de livros e
mapas, a estatueta de marfim do gnio imperial, e sua lmpada de prata.
Desembarquei em Sdon no comeo do outono.
O exrcito meu mais antigo ofcio; nunca regressei a ele sem me sentir pago de
certos constrangimentos por outras tantas compensaes interiores; no lamento
haver passado os dois ltimos anos ativos da minha existncia partilhando com as
legies a aspereza e a desolao da campanha da Palestina. Voltei a ser o
homem vestido de couro e ferro, colocando de lado tudo o que no fosse o
imediato, sustentado pela simples rotina de uma vida dura, um pouco mais lento
do que outrora ao montar e ao descer do cavalo, um pouco mais taciturno, talvez
mais desconfiado, cercado como sempre pelas tropas, de um devotamento (s os
deuses sabem por qu) ao mesmo tempo fraterno e idolatra. Durante essa ltima
temporada no exrcito, tive um encontro inestimvel: tomei como ajudante de
campo um jovem tribuno chamado Cler, a quem me liguei estreitamente. Tu o
conheces; nunca mais me deixou. Admirava o belo rosto de Minerva sob o
capacete, mas os sentidos tiveram, em suma, uma parte to pequena nessa
afeio, que podem continuar assim enquanto eu estiver vivo. Recomendo-te
Cler: tem todas as qualidades que se podem desejar num oficial colocado em
segunda categoria; suas prprias virtudes o impediro sempre de se guindar
primeira. Encontrei uma vez mais, em circunstncias um pouco diferentes
daquelas to recentes ainda, um desses seres cujo destino dedicar-se, amar e
servir. Desde que o conheo, Cler no teve sequer um pensamento que no
fosse relacionado com meu bem-estar ou minha segurana; apio-me ainda
sobre esse ombro forte.
Natura dficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit. A natureza nos trai, a sorte
muda, um deus v do alto todas as coisas. Atormentava com o dedo o engaste de
um anel no qual, num dia de amargura, mandei gravar essas palavras tristes; ia
mais longe no desengano, talvez na blasfmia; acabava por achar natural, se no
justo, que devssemos perecer. Nossas letras esgotam-se; nossas artes
adormecem; Pancrates no Homero; Arriano no Xenofonte; quando tentei
imortalizar na pedra a forma de Antnoo, no encontrei Praxteles. Depois de
Aristteles e Arquimedes, nossas cincias estacionaram; nossos progressos
tcnicos no resistiriam ao desgaste de uma guerra prolongada; nossos prprios
goza-dores desgostam-se da felicidade. O abrandamento dos costumes, o avano
das idias no decorrer do ltimo sculo so obra de uma minoria de bons
espritos; a massa continua ignara, feroz quando pode, em todo caso egosta e
limitada, e h razes para apostar que permanecer sempre assim. Excesso de
procuradores e de publicanos vidos, excesso de senadores desconfiados, excesso
de centuries brutais comprometeram antecipadamente nossa obra. Nem aos
imprios nem aos homens ser dado o tempo necessrio para que aprendam
custa de seus prprios erros. Onde quer que um tecelo remende seu pano, onde
quer que o artista retoque sua obra-prima ainda imperfeita ou apenas danificada,
a natureza prefere repartir sem intermedirios a argila e o caos, e esse mesmo
esbanjamento o que denominamos a ordem das coisas.
Uma inscrio colocada sobre o lugar onde existira Jerusalm proibia aos judeus,
sob pena de morte, instalarem-se de novo naquele amontoado de escombros;
reproduzia, palavra por palavra, a frase recm-inscrita no frontispcio do templo,
e que interdizia a entrada aos no-circuncisos. Um dia por ano, o nono do ms de
Ab, os judeus tm o direito de vir chorar diante de um muro em runa. Os mais
piedosos recusaram-se a deixar a terra natal; estabeleceram-se o melhor que
puderam nas regies menos devastadas pela guerra; os mais fanticos
emigraram para o territrio parto; outros foram para a Antiquia, Alexandria,
Prgamo; os mais finos dirigiram-se para Roma, onde prosperaram. A Judia foi
riscada do mapa e, por minha ordem, passou a chamar-se Palestina. Durante os
quatro anos de guerra, cinqenta fortalezas e mais de novecentas cidades e
aldeias foram saqueadas e aniquiladas; o inimigo perdeu perto de seiscentos mil
homens; os combates, as febres endmicas, as epidemias custaram-nos mais de
noventa mil. A restaurao do pas seguiu-se imediatamente aos estragos da
guerra; lia Capitolina foi reconstruda, alis, em escala mais modesta; sempre
preciso recomear.
Censurei amargamente Trajano por haver tergiversado durante vinte anos antes
de tomar a resoluo de me adotar, e de s t-lo feito no leito de morte. Mas
haviam decorrido quase dezoito anos desde minha ascenso como imperador, e,
a despeito dos riscos de uma vida aventurosa, tinha, por minha vez, adiado para
mais tarde a escolha do meu sucessor. Mil rumores haviam corrido, quase todos
falsos; mil hipteses foram levantadas; mas o que era considerado meu segredo
no era mais que hesitao e dvida. Olhava minha volta: os funcionrios
honestos abundavam; nenhum, porm, dispunha da envergadura necessria.
Quarenta anos de integridade postulavam a favor de Mrcio Turbo, querido
companheiro de outrora, incomparvel prefeito do pretrio; mas tinha a minha
idade; era muito velho. Jlio Severo, excelente general, bom administrador da
Bretanha, compreendia pouca coisa dos complexos negcios do Oriente; Arriano
dera provas de todas as qualidades que se exigem de um homem de Estado, mas
era grego; e no era chegado o tempo de impor um imperador grego aos
preconceitos de Roma.
Via-o viver: minha opinio a seu respeito modificava-se sem cessar, o que s
acontece com os seres que nos tocam de perto; contentamo-nos em julgar os
outros por alto, e de uma vez por todas. Eu me inquietava s vezes com uma
insolncia estudada, uma aspereza, uma palavra fria e frvola; mais
freqentemente, deixava-me levar por aquele esprito, rpido e leve; uma
observao aguda parecia anunciar o futuro homem de Estado. Falei sobre o
assunto com Mrcio Turbo, que, terminado seu dia fatigante de prefeito do
pretrio, vinha todas as noites conversar sobre os assuntos correntes e jogar
comigo sua partida de dados. Reexaminvamos minuciosamente as
probabilidades que Lcio tinha de desempenhar convenientemente uma carreira
de imperador. Meus amigos admiravam-se de meus escrpulos; alguns,
encolhendo os ombros, aconselhavam-me a tomar o partido que me agradasse;
essa gente imagina que se pode legar a qualquer um a metade do mundo, tal
como lhe deixaramos uma casa de campo. Voltava a pensar no assunto durante
a noite: Lcio mal atingira a trintena: quem era Csar, aos trinta anos, seno um
filho de famlia crivado de dvidas e coberto de escndalos? Como nos maus dias
da Antiquia, antes da minha adoo por Trajano, pensava com um aperto no
corao que nada mais lento do que o verdadeiro nascimento de um homem:
eu prprio ultrapassara meu trigsimo ano na poca em que a campanha da
Pannia me abrira os olhos s responsabilidades do poder; Lcio amadurecido
parecia-me, por vezes, mais amadurecido do que eu naquela idade. Tomei uma
deciso brusca, logo depois de uma crise de sufocao mais grave que as
anteriores, e que veio lembrar que eu no tinha mais tempo a perder. Adotei
Lcio, que tomou o nome de lio Csar. Era ambicioso, mas com uma certa
indiferena, exigente sem ser vido. Habituado desde sempre a alcanar tudo,
recebeu minha deciso com desenvoltura. Cometi a imprudncia de dizer que
aquele prncipe louro ficaria admiravelmente belo sob a prpura; os mal-
intencionados apressaram-se em concluir que eu pagava com um imprio a
intimidade voluptuosa de outrora. No compreendiam absolutamente como
funciona o esprito de um chefe, por pouco que merea seu posto e seu ttulo. Se
tais consideraes tivessem desempenhado algum papel, Lcio no seria, alis, o
nico sobre o qual poderia recair minha escolha.
Agora, cada momento urgia. Mas tive todo o tempo para refletir cabeceira do
doente; meus planos estavam feitos. Notara no Senado um certo Antonino,
homem de uma cinqentena de anos, originrio de uma famlia provinciana,
aparentado de longe de Plotina. Impressionara-me pelas atenes ao mesmo
tempo deferentes e ternas com que cercava o sogro, velho frgil que se sentava a
seu lado; reli sua folha de servios; esse homem de bem mostrara-se, em todos
os postos que ocupara, funcionrio irreprochvel. Minha escolha fixou-se nele.
Quanto mais convivo com Antonino, mais minha estima por ele tende a
transformar-se em respeito. Esse homem simples possui uma virtude na qual eu
havia pensado muito pouco at ento, mesmo quando me acontecia pratic-la: a
bondade. No isento dos modestos defeitos de um justo; sua inteligncia,
aplicada ao cumprimento meticuloso das obrigaes cotidianas, preocupa-se
mais com o presente do que com o futuro; sua experincia do mundo limitada
por suas virtudes; suas viagens no foram alm de algumas misses oficiais, de
resto, bem desempenhadas. Conhece pouco as artes; s inova se forado pelas
circunstncias. As provncias, por exemplo, nunca representaro para ele as
imensas possibilidades de desenvolvimento que sempre representaram para
mim; continuar, mais do que ampliar, minha obra; mas ele o far bem; o
Estado ter nele servidor honesto e bom chefe.
Pela primeira vez, depois de longos dias, ao regressar a minha casa, senti vontade
de sorrir. Havia manobrado especialmente bem. Os partidrios de Serviano, os
conservadores hostis minha obra, no haviam capitulado; todas as minhas
atenes para com aquele grande corpo senatorial, antigo e obsoleto, no
compensavam, para eles, os dois ou trs golpes com que eu os atingira. No
hesitariam em aproveitar-se do momento da minha morte para tentar anular
meus atos. Mas meus piores inimigos no ousariam opor-se a seu mais ntegro
representante e ao filho de um dos seus membros mais respeitados. Minha
misso pblica estava cumprida: dali em diante, podia voltar para Tbure, entrar
nessa inatividade que a doena, experimentar meus sofrimentos, mergulhar no
que me restava de prazeres, retomar em paz meu dilogo interrompido com um
fantasma. Minha herana imperial estava a salvo nas mos do piedoso Antonino
e do grave Marco Aurlio; o prprio Lcio sobrevivera no filho. As coisas no
me pareciam mal arranjadas.
Patientia
Arriano escreve-me:
Na costa setentrional desse mar inspito, tocamos numa pequena ilha, bem
grande na fbula: a ilha de Aquiles. Tu o sabes: dizem que Ttis mandou criar seu
filho nessa ilhota perdida nas brumas; subia do fundo do mar e vinha todas as
noites conversar com o filho na praia. A ilha, hoje desabitada, s alimenta cabras.
Existe ainda um templo de Aquiles. As gaivotas, os alcatrazes e todas as aves do
mar a freqentam, e o movimento de suas asas, impregnadas de umidade
marinha, refresca continuamente o trio do santurio. Mas a ilha de Aquiles
tambm, como bvio, a ilha de Ptroclo, e os inumerveis ex-votos que
decoram as paredes do templo so dedicados tanto a Aquiles como a seu amigo,
porque, bem entendido, os que amam Aquiles estimam e veneram a memria de
Ptroclo. O prprio Aquiles aparece em sonhos aos navegantes que visitam essas
paragens: protege-os e adverte-os dos perigos do mar, como o fazem alis os
Discuros. E a sombra de Ptroclo aparece sempre ao lado de Aquiles.
Conto-te estas coisas porque julgo que vale a pena serem conhecidas, e porque
aqueles que as contaram para mim as conhecem diretamente, ou as ouviram de
testemunhas dignas de f Aquiles parece-me por vezes o maior dos homens,
pela coragem, pela fora de alma, pelos conhecimentos do esprito unidos
agilidade do corpo e por causa do ardente amor pelo jovem companheiro. Nele,
nada me parece maior do que o desespero que o levou a desprezar a vida e
desejar a morte, quando perdeu o bem-amado.
Desejava morrer, mas no queria sentir a asfixia; a doena acaba por nos fazer
desgostar da morte; passamos a desejar a cura o que uma maneira de
querer viver. Mas a fraqueza, o sofrimento, as mil misrias a que o corpo
submetido, depressa desencorajam o enfermo de tentar refazer o caminho de
volta; j no desejamos as trguas que so outras tantas armadilhas, as foras
vacilantes, os ardores quebrados, a eterna expectativa da prxima crise. Passei a
espreitar a mim mesmo: esta dor surda no peito no seria apenas um mal-estar
passageiro, o resultado de uma refeio apressada, ou deveria esperar da parte
do inimigo um novo assalto que, desta vez, no seria repelido? J no entrava no
Senado sem me dizer que a porta se fechara atrs de mim to definitivamente
como se eu tivesse sido esperado, como Csar, por cinqenta conjurados
armados de punhais. Durante as ceias em Tbure, receava cometer para com
meus convidados a indelicadeza de uma sbita partida. Temia morrer no banho,
ou entre braos jovens. Funes que no passado eram fceis, ou mesmo
agradveis, tornam-se humilhantes desde que passam a ser penosas; cansamo-
nos do vaso de prata oferecido todas as manhs ao exame do mdico. O mal
principal arrasta consigo todo um cortejo de aflies secundrias: meu ouvido
perdeu sua antiga acuidade; ontem ainda, fui forado a pedir a Flgon que me
repetisse uma frase inteira: envergonhei-me mais do que se estivesse cometendo
um crime. Os meses que se seguiram adoo de Antonino foram terrveis: a
temporada em Baias, o regresso a Roma e as negociaes que se seguiram
excederam o que me restava de foras. A obsesso da morte reapoderou-se de
mim, mas agora as causas eram visveis, confessveis; meu pior inimigo no
conseguiria sorrir diante delas. Nada mais me prendia: teriam compreendido que
o imperador, retirado em sua casa de campo depois de ter posto em ordem os
negcios do mundo, tomasse as medidas necessrias para facilitar seu fim. Mas a
solicitude dos meus amigos equivale a uma constante vigilncia: todo doente
um prisioneiro. J no sinto o vigor de que necessitaria para mergulhar a adaga
no local exato, marcado h tanto tempo, a tinta vermelha, sob o seio esquerdo.
Em suma, no teria feito mais que acrescentar ao mal presente uma repugnante
mistura de ataduras, esponjas ensangentadas, cirurgies que discutem ao p do
leito. Era necessrio preparar meu suicdio com as mesmas precaues do
assassino que planeja seu crime.
Como nos meus tempos felizes, julgam-me deus; continuam a dar-me esse ttulo
no prprio momento em que oferecem ao cu sacrifcios pela augusta sade. J
te disse quais as razes pelas quais essa crena to benfica no me parece
insensata. Uma velha cega veio a p da Pannia; empreendeu a viagem
exaustiva para me pedir que tocasse com o dedo suas pupilas extintas. Recobrou
a viso sob minhas mos, tal como seu fervor esperava. Sua f no imperador-
deus explica esse milagre. Outros prodgios se realizaram; h doentes que contam
ter-me visto em seus sonhos, como os peregrinos de Epidauro vem Esculpio
em sonhos; pretendem ter acordado curados ou, pelo menos, aliviados. No
sorrio ante o contraste entre meus poderes de taumaturgo e meu mal; aceito
esses novos privilgios com gravidade. A velha cega, caminhando do fundo de
uma provncia brbara procura do imperador, tornou-se para mim o que o
escravo de Tarragona fora outrora: o smbolo das populaes do imprio que
governei e servi. Sua imensa confiana me recompensa dos vinte anos de
trabalhos a que me dediquei com tanto entusiasmo. Flgon leu-me ultimamente a
obra de um judeu de Alexandria que me atribui poderes sobrenaturais; acolhi
sem ironia sua descrio do prncipe de cabelos grisalhos, que visto vagueando
em todas as estradas da terra, penetrando nos tesouros das minas, despertando as
foras geradoras do solo, estabelecendo por toda parte a prosperidade e a paz; do
iniciado que reedificou os lugares santos de todas as raas; do entendido em artes
mgicas; do vidente que ps uma criana no cu. Devo ter sido mais bem
compreendido por esse judeu entusiasta do que por muitos senadores e
procnsules. O adversrio reconquistado completa Arriano, enquanto me
surpreendo de me ter tornado para certos olhos, com o tempo, o que desejava
ser, e que esse triunfo seja causado por to pouca coisa. A velhice e a morte
prxima acrescentam daqui em diante sua majestade a esse prestgio; os homens
afastam-se religiosamente minha passagem; j no me comparam, como
antigamente, ao Zeus resplandecente e calmo, mas ao Marte Gradivo, deus das
longas campanhas e da austera disciplina, ao grave Numa inspirado pelos deuses.
Nos ltimos tempos, meu rosto plido e abatido, os olhos fixos, o grande corpo
ainda ereto por um esforo da vontade, lembram-lhes Pluto, o deus das
sombras. Apenas alguns ntimos, alguns amigos experimentados e queridos,
escapam ao terrvel contgio do respeito. O jovem advogado Fronto, magistrado
de futuro, que ser sem dvida um dos bons servidores do teu reinado, veio
discutir comigo uma representao a ser dirigida ao Senado; sua voz tremia; li
nos seus olhos a mesma reverncia mesclada de receio. As alegrias tranqilas da
amizade j no so para mim; adoram-me, veneram-me demais para me amar.
Fiz tudo o que me haviam recomendado. Esperei, por vezes orei. Audivi voces
divinas A tola Jlia Balbila acreditava ouvir, s primeiras claridades da aurora,
a voz misteriosa de Mmnon: escutei os sussurros da noite. Fiz as unes de mel e
leo de rosas que atraem as sombras; preparei a tigela de leite, o punhado de sal,
a gota de sangue, sustentculos da sua existncia de outrora. Estendi-me no
pavimento de mrmore do pequeno santurio. A claridade dos astros infiltrava-se
pelas fendas abertas na parede, lanando aqui e ali reflexos, inquietantes luzes
plidas. Lembrei-me das ordens murmuradas pelos sacerdotes ao ouvido do
morto, do itinerrio gravado no seu tmulo: E ele reconhecer o caminho E
os guardies da entrada deix-lo-o passar E por milhes de dias ele ir e vir
em torno daqueles que o amam Por vezes, com longos intervalos, julguei
sentir o afloramento de uma aproximao, um toque ligeiro como um bater de
clios, tpido como a palma da mo: E a sombra de Ptroclo aparece ao lado de
Aquiles Jamais saberei se aquele calor e aquela doura emanavam
simplesmente do mais profundo de mim, ltimos esforos de um homem em luta
contra a solido e o frio da noite. Mas a pergunta que formulamos, tambm
relativamente aos nossos amores vivos, cessou de me interessar hoje: pouco me
importa que os fantasmas evocados por mim venham do limbo da minha
memria, ou provenham de um outro mundo. Minha alma, se possuo uma,
feita da mesma substncia dos espectros; este corpo de mos inchadas, de unhas
lvidas, esta triste massa meio desfeita, este odre repleto de males, de desejos e
sonhos, no mais slido nem mais consistente do que uma sombra. Eu me
diferencio dos mortos unicamente pela faculdade de me sentir sufocar por alguns
momentos mais. Em certo sentido, sua existncia parece-me mais assegurada
que a minha. Antnoo e Plotina so, pelo menos, to reais quanto eu.
A meditao sobre a morte no nos ensina a morrer; no torna a sada mais fcil,
mas a facilidade j no o que procuro. Pequena figura desconfiada e
voluntariosa, teu sacrifcio no ter enriquecido minha vida, mas minha morte. A
aproximao da morte restabelece entre ns uma espcie de estreita
cumplicidade: os vivos que me cercam, os servidores dedicados, por vezes
importunos, jamais sabero at que ponto o mundo deixou de nos interessar.
Penso com desgosto nos negros smbolos dos tmulos egpcios: o seco
escaravelho, a mmia rgida, a r dos partos eternos. A acreditar nos sacerdotes,
deixei-te naquele lugar onde os elementos de um ser se despedaam como uma
veste usada da qual nos desembaraamos, naquela encruzilhada sinistra entre o
que existe eternamente, o que foi e o que ser. Pode ser, afinal, que essa gente
tenha razo, e que a morte seja feita da mesma matria fugidia e confusa que a
vida. Mas as teorias sobre a imortalidade me inspiram desconfiana; o sistema
das recompensas e dos castigos deixa frio um juiz prevenido sobre a dificuldade
de julgar. Por outro lado, acontece-me achar demasiado simples a soluo
contrria, o nada definitivo, a cavidade vazia onde ressoa o riso de Epicuro.
Observo meu fim: a srie de experincias feitas em mim prossegue o longo
estudo comeado na clnica de Stiro. At o presente, as modificaes so to
exteriores como aquelas a que o tempo e as intempries submetem os
monumentos, sem lhes alterarem nem a matria, nem a arquitetura: creio, por
vezes, perceber e tocar atravs das fendas a base indestrutvel, a matria eterna.
Sou o que era; morro sem mudar. primeira vista, o menino robusto dos jardins
de Espanha, depois o oficial ambicioso que regressava sua tenda sacudindo os
flocos de neve acumulados no ombro, parecem to destrudos como eu o serei,
quando tiver passado pela fogueira; mas esto l; sou inseparvel deles. O
homem que chorava sobre o peito de um morto continua a gemer num recanto
de mim, a despeito da calma mais ou menos humana de que j participo. O
viajante encerrado dentro do enfermo, para sempre sedentrio, interessa-se pela
morte porque ela representa uma partida. Esta fora, que eu fui, parece ainda
capaz de impulsionar muitas outras vidas, de erguer mundos. Se, por milagre,
alguns sculos viessem juntar-se aos poucos dias que me restam, voltaria a fazer
as mesmas coisas, inclusive cometeria os mesmos erros. Freqentaria os
mesmos Olimpos e os mesmos Infernos. Uma tal constatao excelente
argumento a favor da utilidade da morte, conquanto me inspire ao mesmo tempo
dvidas sobre a sua total eficcia.
Durante certos perodos da minha vida, anotei meus sonhos; discutia sua
significao com os sacerdotes, com os filsofos e com os astrlogos. A
faculdade de sonhar, amortecida h alguns anos, foi-me restituda durante estes
meses de agonia; os incidentes do estado de viglia parecem-me menos reais,
algumas vezes menos significativos do que aqueles sonhos. Se o mundo larvar e
espectral, onde o trivial e o absurdo se multiplicam ainda mais abundantemente
do que na terra, nos oferece uma idia das condies da alma separada do corpo,
passarei sem dvida minha eternidade a lamentar o delicioso comando dos
sentidos e as perspectivas reajustadas da razo humana. Contudo, mergulho com
certa doura nas vs regies dos sonhos; possuo ali, por um instante, alguns
segredos que depressa me escapam; mas bebo nas nascentes. H dias, estava no
osis de Amon, na noite da caa ao leo. Sentia-me alegre, e tudo se passou
como nos tempos em que era forte: o leo ferido caiu, depois ergueu-se;
precipitei-me para acabar com ele. Desta vez, porm, meu cavalo empinou-se e
lanou-me por terra; a horrvel massa sangrenta rolou sobre mim; suas garras
rasgaram meu peito; voltei a mim no meu quarto de Tbure, pedindo socorro.
Mais recentemente ainda, revi meu pai, no qual, todavia, penso raramente.
Estava deitado no seu leito de doente, numa pea da nossa casa da Itlica, que
deixei logo depois da sua morte. Tinha sobre a mesa um pequeno frasco,
contendo uma poo sedativa de que lhe supliquei que me desse uma dose.
Acordei sem que ele tivesse tido tempo de me responder. Admiro-me de que a
maioria dos homens tenha tanto medo dos espectros, eles, que aceitam to
facilmente falar com os mortos nos seus sonhos.
Minha pacincia produz seus frutos; sofro menos, a vida torna a ser quase doce.
J no discuto com os mdicos; seus remdios idiotas mataram-me, mas sua
presuno, seu pedantismo hipcrita obra nossa; mentiriam menos se no
tivssemos tanto medo de sofrer. Faltam-me as foras para os acessos de clera
de outrora: sei de fonte segura que Platrio Nepo, a quem muito amei, abusou da
minha confiana. No procurei confudi-lo, nem o puni. O futuro do mundo j
no me inquieta; j no me esforo por calcular, com angstia, a durao mais
ou menos longa da paz romana; entrego-a aos deuses. No que tenha adquirido
maior confiana na justia, que no a nossa; nem mais f na sabedoria do
homem; a verdade justamente o contrrio. A vida atroz, ns o sabemos. Mas
precisamente porque espero pouca coisa da condio humana, os perodos de
felicidade, os progressos parciais, os esforos para recomear e para continuar
parecem-me to prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de
males, fracassos, incria e erros. As catstrofes e as runas viro; a desordem
triunfar; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltar a reinar. A paz
instalar-se- de novo entre dois perodos de guerra; as palavras liberdade,
humanidade e justia recuperaro aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.
Nossos livros no sero todos destrudos; nossas esttuas quebradas sero
restauradas; outras cpulas e outros frontes nascero dos nossos frontes e das
nossas cpulas; alguns homens pensaro, trabalharo e sentiro como ns: ouso
contar com esses continua-dores colocados, com intervalos irregulares, ao longo
dos sculos, nessa intermitente imortalidade. Se os brbaros se apoderarem
alguma vez do imprio do mundo, sero forados a adotar alguns dos nossos
mtodos; acabaro por se parecer conosco. Chbrias preocupa-se com a idia de
ver um dia o pastforo de Mitra ou o bispo de Cristo instalarem-se em Roma, e a
substiturem o sumo pontfice. Se por desgraa esse dia chegar, meu sucessor na
colina Vaticana ter deixado de ser o chefe de um crculo de adeptos ou de um
bando de sectrios para se tornar, por sua vez, uma das figuras representativas da
autoridade universal. Herdar nossos palcios e nossos arquivos; diferir de ns
menos do que poder parecer. Aceito com calma essas vicissitudes da Roma
eterna.
Trouxeram-me para Baias; o trajeto foi penoso sob o calor de julho, mas respiro
melhor beira-mar. As ondas fazem na praia seu murmrio de seda amarrotada
e de carcia; desfruto ainda de longos entardeceres rosados. J no seguro as
tabuinhas de anotaes, exceto para ocupar minhas mos, que se agitam
independentemente da minha vontade. Ordenei que fossem chamar Antonino;
um correio partiu a toda a pressa para Roma. Rudo dos cascos de Borstenes,
galope do cavaleiro trcio O pequeno grupo dos meus ntimos est reunido
minha cabeceira. Chbrias faz-me pena; as lgrimas assentam mal s rugas dos
velhos. O belo rosto de Cler permanece, como sempre, estranhamente calmo;
procura cuidar-me sem deixar transparecer nada que possa aumentar a
inquietao ou a fadiga do doente. Mas Diotimo solua, com a cabea enterrada
nas almofadas. Assegurei seu futuro. Ele no ama a Itlia; poder realizar seu
sonho de retornar a Gadara e abrir ali com um amigo uma escola de eloqncia.
Nada tem a perder com minha morte. Entretanto, o frgil ombro agita-se
convulsivamente sob as dobras da tnica; sinto sob meus dedos lgrimas
deliciosas. Adriano ter sido humanamente amado, at o fim.
filho de Trajano
neto de Nerva
sumo pontfice
do poder tribuncio
pai da ptria
Sabina
A Lcio lo Csar
Este livro foi concebido, depois escrito, no todo e em parte, sob diversas formas,
em 1924 e 1929, dos vinte aos vinte e cinco anos. Todos esses manuscritos foram
destrudos, e mereciam s-lo.
Durante muito tempo imaginei a obra sob a forma de uma srie de dilogos, em
que todas as vozes do tempo se fizessem ouvir. Contudo, por mais que tentasse, o
detalhe sobrepujava o conjunto; as partes comprometiam o equilbrio do todo; a
voz de Adriano perdia-se, abafada por todos aqueles gritos. No conseguia
organizar o mundo visto e ouvido por um homem.
Tomar uma vida conhecida, acabada, fixada (tanto quanto possa s-lo) pela
histria, de modo a abranger com um nico olhar a curva inteira; mais ainda,
escolher o momento em que o homem que viveu essa existncia a avalia, a
examina, e por um instante chega a ser capaz de julg-la. Fazer de modo que ele
se encontre perante a sua prpria vida na mesma posio que ns.
Experincias com o tempo: dezoito dias, dezoito meses, dezoito anos, dezoito
sculos. Sobrevivncia imvel de esttuas que, como a cabea de Antnoo
Mondragona, no Louvre, vivem ainda no interior desse tempo morto. O mesmo
problema considerado em termos de geraes humanas; uma cadeia de duas
dzias de mos descarnadas, no mais que vinte e cinco velhos, bastaria para
estabelecer um contato ininterrupto entre Adriano e ns.
Em 1937, durante uma primeira temporada nos Estados Unidos, fiz para este
livro algumas leituras na biblioteca da Universidade de Yale; escrevi a visita ao
mdico e a passagem sobre a renncia aos exerccios fsicos. Esses fragmentos
subsistem, remanejados, na verso atual.
Em todo caso, eu era demasiado jovem. Existem livros que no devemos ousar
escrever antes de termos ultrapassado os quarenta anos. Antes dessa idade,
corremos o risco de desconhecer a existncia das grandes fronteiras naturais que
separam de pessoa para pessoa, de sculo para sculo, a infinita variedade de
seres, ou, pelo contrrio, de dar exagerada importncia s simples divises
administrativas, s formalidades da alfndega, ou s guaritas do corpo de guarda.
Foram-me precisos todos esses anos para aprender a calcular exatamente as
distncias entre o imperador e mim.
Deixei de trabalhar neste livro (exceto durante alguns dias em Paris) entre 1937 e
1939.
Em outubro de 1939, o manuscrito foi deixado na Europa com a maior parte das
notas; levei, entretanto, para os Estados Unidos alguns resumos feitos
anteriormente em Yale, um mapa do Imprio Romano por ocasio da morte de
Trajano, que me acompanhava h anos, e o perfil de Antnoo do Museu
Arqueolgico de Florena, comprado ali mesmo em 1926, e que jovem, grave
e doce.
Projeto abandonado de 1939 a 1948. Pensava nele por vezes, mas com
desnimo, quase com indiferena, como em algo impossvel. E quase me
envergonhava de ter algum dia tentado semelhante coisa.
Por volta de 1941, descobri, por acaso, numa loja em Nova York, quatro gravuras
de Piranesi, que G. e eu compramos. Uma delas, uma vista da Vila Adriana, que
me era desconhecida at ento, representa a capela de Canopo, de onde foram
retirados no sculo XVII o Antnoo de estilo egpcio e as esttuas de sacerdotisas
em basalto que se vem hoje no Vaticano. Estrutura arredondada, aberta como
um crnio rachado, de onde pendem tufos de mato como mechas de cabelos. O
gnio quase medinico de Piranesi pressentiu a a alucinao, os longos caminhos
da memria, a arquitetura trgica de um mundo interior. Durante muitos anos,
contemplei essa gravura quase todos os dias, sem dedicar um s pensamento a
meus projetos de outrora, aos quais julgava haver renunciado. Tais so os
curiosos desvios daquilo a que chamamos esquecimento.
Repito a mim mesma que tudo quanto narro aqui desmentido pelo que no
narro; estas notas procuram apenas preencher uma lacuna. No importa o que eu
fazia durante esses anos difceis, nem os pensamentos, nem os trabalhos, nem as
angstias, nem as alegrias, nem a imensa repercusso dos acontecimentos
exteriores, nem a constante provao de ns prprios na pedra de toque dos fatos.
Deixo passar em silncio as experincias da enfermidade, em silncio ficam
outras experincias mais secretas, levadas umas pelas outras, e a permanente
presena ou procura do amor.
No importa: era necessria talvez esta soluo de continuidade, esta fratura, esta
noite da alma que tantos de ns experimentamos nessa poca, cada um a seu
modo, e freqentemente de forma bem mais trgica e mais definitiva do que eu,
para me obrigar a tentar preencher no somente a distncia que me separava de
Adriano, mas sobretudo aquela que me separava de mim prpria.
Utilidade de tudo o que cada um faz para si mesmo, sem inteno de tirar
proveito. Durante esses anos de desenraizamento, continuei a leitura dos autores
antigos: os volumes de capa vermelha ou verde da edio Loeb-Heinemann
tornaram-se uma ptria para mim. Uma das melhores maneiras de recriar o
pensamento de um homem: reconstituir sua biblioteca. Durante anos,
antecipadamente e sem o saber, trabalhei assim para prover de novo as estantes
de Tbure. S me restava imaginar as mos inchadas do doente sobre os
manuscritos desenrolados sobre a mesa.
Refazer por dentro aquilo que os arquelogos do sculo XIX fizeram por fora.
Naquela noite reabri dois volumes dentre os que acabavam de me ser entregues,
destroos de uma biblioteca dispersa. Eram Don Cssio na bela impresso de
Henry Estienne, e um tomo de uma edio qualquer da Histria augusta, as duas
principais fontes da vida de Adriano, comprados na poca em que me propunha
escrever este livro.
Uma nica figura histrica tentara-me com insistncia quase igual: Ornar
Khay y am, poeta-astrnomo. Mas a vida de Khay y am a do contemplativo, e
do contemplativo puro: o mundo da ao foi-lhe excessivamente estranho. Alm
disso, eu no conhecia a Prsia e no sabia sua lngua.
Parti para Taos, no Novo Mxico. Levava comigo as folhas em branco sobre as
quais tencionava recomear este livro: nadador que se lana gua sem saber se
atingir a outra margem. Pela noite adentro, trabalhei entre Nova York e
Chicago, encerrada em minha cabine do vago-leito como num hipogeu. Depois,
durante todo o dia seguinte, no restaurante de uma estao de Chicago, onde
esperava um trem bloqueado por uma tempestade de neve. Em seguida, de novo,
at a madrugada, sozinha no carro panormico do expresso de Santa F, cercada
pelos picos negros das montanhas do Colorado e pelo eterno desenho dos astros.
Passo o mais rapidamente possvel sobre trs anos de pesquisas, que interessam
apenas aos especialistas, e sobre a elaborao de um mtodo de delrio que s
interessa aos insensatos. Esta ltima palavra concede ainda ao romantismo o
maior lugar: falemos antes de uma participao constante - e a mais clarividente
possvel naquilo que foi.
Aqueles que incluem o romance histrico numa categoria parte esquecem que
o romancista nunca faz mais que interpretar, com a ajuda dos processos do seu
tempo, um certo nmero de fatos passados, de lembranas conscientes ou no,
pessoais ou no, tecidos do mesmo material que a histria. Tanto como Guerra e
paz, a obra de Proust a reconstituio de um passado perdido. O romance
histrico de 1830 mescla, certo, o melodrama e o folhetim de capa e espada;
no mais do que a sublime Duquesa de Langeais ou a espantosa Jovem dos olhos
de ouro. Flaubert reconstri laboriosamente o palcio de Amlcar com a ajuda de
centenas de pequenos detalhes; procede da mesma maneira com Yonville. No
nosso tempo, o romance histrico, ou o que, por comodidade, se admite designar
como tal, s pode ser imerso num tempo reencontrado, tomada de posse de um
mundo interior.
O que Hcuba para ele?, pergunta a si prprio Hamlet perante o ator ambulante
que chora por Hcuba. E eis Hamlet obrigado a reconhecer que o comediante
que chora lgrimas verdadeiras conseguiu estabelecer com a morte trs vezes
milenria uma comunicao mais profunda do que ele prprio com seu pai
sepultado na vspera, e cujo infortnio ele no sente to completamente a ponto
de ving-lo sem demora.
A clarividncia atribuda por mim a Adriano era apenas, alis, uma forma de
valorizar o elemento quase faustiano da personagem, tal como se revela, por
exemplo, nos Cantos siblinos, nos escritos de lio Aristides ou no retrato de
Adriano envelhecido, traado por Fronto. Com ou sem razo, atribuam-se
quele moribundo virtudes quase sobre-humanas.
(As linhas escritas acima foram publicadas pela primeira vez h seis anos; nesse
meio tempo, o baixo-relevo de Antoniano foi adquirido por um banqueiro romano,
Arturo Osio, homem curioso, que teria interessado Stendhal ou Balzac. Osio nutre
por um belo objeto a mesma solicitude que dispensa aos animais, que mantm em
liberdade em sua propriedade a dois passos de Roma, e s rvores, que plantou
aos milhares nos seus domnios de Orbetello. Rara virtude: Os italianos detestam
as rvores, j dizia Stendhal em 1828 e o que diria hoje, quando os
especuladores de Roma matam com injees de gua quente os belssimos
pinheiros guarda-sol, to protegidos pelos regulamentos urbanos, que os
estorvam na construo de suas termiteiras? Luxo raro tambm: so poucos os
homens ricos que animam suas florestas e seus prados com animais em liberdade,
no pelo prazer da caa, mas pelo de reconstruir uma espcie de admirvel den!
O amor pelas esttuas antigas, esses grandes objetos tranqilos, ao mesmo tempo
durveis e frgeis, quase igualmente raro entre os colecionadores da nossa
poca, agitada e sem futuro. Sob a orientao de especialistas, o novo proprietrio
do baixo-relevo de Antoniano acaba de submet-lo s mais delicadas limpezas,
feitas por mos hbeis; uma lenta e leve frico com a ponta dos dedos
desembaraou o mrmore de suas manchas e crostas, devolvendo pedra o suave
brilho do alabastro e do marfim.)
Nota de 1949. Quanto mais tento traar um retrato fiel, mais me afasto do livro e
do homem que poderiam agradar. Apenas alguns amantes do destino humano
compreendero.
O romance devora hoje todas as formas; somos quase forados a faz-las passar
por ele. Este estudo sobre o destino de um homem que se chamou Adriano teria
sido uma tragdia no sculo XVII; e, na Renascena, um ensaio.
Este livro a condensao de uma obra enorme, elaborada s para mim. Adquiri
o hbito de escrever todas as noites, quase automaticamente, o resultado das
longas vises artificialmente provocadas, em que eu me instalava na intimidade
de um outro tempo. As menores palavras, os menores gestos, as gradaes mais
imperceptveis eram anotados; cenas que o livro, tal como ele , resume em duas
linhas, passavam-se nessas notas em todos os seus detalhes, como em cmara
lenta. Reunidos uns aos outros, essas espcies de relatrios teriam dado um
volume de alguns milhares de pginas. Contudo, todas as manhs eu queimava o
trabalho da noite. Escrevi assim um grande nmero de meditaes demasiado
obscuras, e algumas descries bastante obscenas.
O sculo II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o sculo dos ltimos
homens livres. Pelo que nos diz respeito, j estamos talvez muito distantes desse
tempo.
Este livro no dedicado a ningum. Deveria t-lo sido a G. F., e t-lo-ia sido se
no houvesse uma espcie de impudor em colocar uma dedicatria pessoal
numa obra em que eu desejava justamente apagar-me. Mas a mais longa
dedicatria ainda uma maneira incompleta e banal de honrar uma amizade to
pouco comum. Quando tento definir este bem que desde alguns anos me
concedido, digo comigo mesma que um tal privilgio, por mais raro que seja,
no pode, todavia, ser nico; que, na aventura de um livro levado a bom termo,
ou numa vida feliz de escritor, deve haver por vezes, um pouco na sombra,
algum que no deixa passar a frase inexata ou fraca que por fadiga gostaramos
de manter; algum que relera vinte vezes conosco, se necessrio, uma pgina
sobre a qual temos alguma dvida; algum que alcance para ns nas estantes das
bibliotecas os grossos volumes onde poderamos encontrar uma indicao til, e
se obstina em consult-los ainda no momento em que o cansao nos ter levado a
fech-lo; algum que nos ampara, nos aprova, por vezes nos combate; algum
que partilha conosco, com igual fervor, as alegrias da arte e as alegrias da vida,
seus trabalhos jamais tediosos e jamais fceis; algum que no nossa sombra,
nem mesmo nosso complemento, mas ele prprio; algum que nos deixa
divinamente livres e, contudo, nos obriga a ser plenamente aquilo que ns somos.
[2]
Hospes comesque .
Ontem, na Vila, pensei nos milhares de vidas silenciosas, furtivas como as dos
animais, irrefletidas como as das plantas, bomios do tempo de Piranesi,
saqueadores de runas, mendigos, pastores, camponeses alojados bem ou mal
num canto dos escombros, que se sucederam aqui, entre Adriano e ns. Na orla
de uma plantao de oliveira, num antigo corredor meio desobstrudo, G. e eu
nos encontramos ante o leito de canios de um pastor, o cabide improvisado para
seu capote, fixado entre dois blocos de cimento romano, as cinzas de sua fogueira
mal-apagada. Sensao de intimidade humilde, quase semelhante quela que se
experimenta no Louvre, depois de fechar, hora em que os leitos de campanha
dos guardas surgem entre as esttuas.
(Nada a mudar em 1958 nas linhas precedentes; o cabide do pastor, alm do seu
leito, esta l ainda. G. e eu fizemos novamente uma parada sobre a relva do
Tempe, entre as violetas, no momento sagrado em que tudo recomea, a despeito
das ameaas que o homem dos nossos dias faz pesar sobre si mesmo em toda
parte. Entretanto, a Vila sofreu uma insidiosa mudana. Incompleta, verdade:
no se altera to depressa um conjunto que os sculos destruram e formaram
lentamente. Mas, por um erro raro na Itlia, terieosos embelezamentos vieram
juntar-se s pesquisas e consolidaes necessrias. Oliveiras foram cortadas para
dar lugar a um indiscreto estacionamento de automveis e a um quiosque-bar,
gnero parque de exposies, que transformam a nobre solido do pcile numa
paisagem de praa mediocremente ajardinada; uma fonte de cimento mata a sede
dos passantes atravs de uma intil carranca de gesso que se pretende antiga;
outra carranca, mais intil ainda, ornamenta o muro de uma grande piscina,
decorada agora com uma flotilha de patos. Copiaram, tambm em gesso, algumas
esttuas bastante vulgares de jardim greco-romano, recolhidas aqui em
escavaes recentes, e que no mereciam nem esse excesso de honra nem essa
indignidade; tais rplicas, nessa feia matria inchada e flcida, colocadas um
pouco ao acaso sobre pedestais, do ao melanclico Canopo a aparncia de um
recanto de estdio para reconstituio filmada da vida dos Csares. Nada mais
frgil que o equilbrio dos belos lugares. Nossas fantasias de interpretao deixam
intactos os prprios textos, que sobrevivem a nossos comentrios; mas a menor
restaurao imprudente infligida s pedras, a menor estrada asfaltada cortando um
campo onde a relva crescia em paz h sculos criam para sempre o irreparvel. A
beleza afasta-se; a autenticidade, tambm.)
No. Uma vez mais, revisitei a Vila e seus pavilhes feitos para a intimidade e o
repouso, e seus vestgios de um luxo sem ostentao, to pouco imperial quanto
possvel, de rico amador que se esfora por unir as delcias da arte s douras
campestres; procurei no Panteo o lugar exato onde, numa manh de 21 de abril,
pousou uma mancha de sol; refiz, ao longo dos corredores do Mausolu, o
caminho fnebre tantas vezes palmilhado por Chbrias, Cler e Diotimo, amigos
dos derradeiros dias. Deixei, porm, de sentir a presena imediata desses seres,
desses fatos, sua atualidade: conservam-se prximos de mim, mas ultrapassados,
nem mais nem menos que as recordaes de minha prpria vida. Nosso
comrcio com outrem s tem um tempo; cessa uma vez obtida a satisfao,
aprendida a lio, prestado o servio, concluda a obra. Tudo o que fui capaz de
dizer foi dito; o que eu podia aprender foi aprendido. Ocupemo-nos, por um
tempo, de outros trabalhos.
Nota
Servimo-nos deles para evocar a corte de Tbure nos ltimos anos do reinado:
Chbrias representa o crculo de filsofos platnicos ou esticos que cercavam o
imperador; Cler (que no se deve confundir com o Cler mencionado por
Filostrato e Aristides, que foi secretrio ab epistulis grcis), o elemento militar; e
Diotimo, o grupo dos ernenos imperiais. Esses trs nomes histricos serviram,
portanto, de ponto de partida para a inveno parcial de trs personagens. O
mdico Iolas, pelo contrrio, personagem real de quem a histria no nos deu o
nome; no nos diz igualmente que tenha sido originrio de Alexandria. O ex-
escravo Onsimo existiu, mas no sabemos se ele ocupou junto a Adriano a
funo de intermedirio; o nome Crescncio, secretrio de Serviano, autntico,
mas a histria no nos revela que tenha trado seu amo. O mercador Opramoas
real, mas nada prova que tenha acompanhado Adriano na viagem pelo Eufrates.
A mulher de Adriano personagem histrica, mas no sabemos se era, como o
diz aqui Adriano, fina e altiva. Somente alguns comparsas, o escravo Eufrion,
os atores Olimpo e Btilo, o mdico Leotquides, o jovem tribuno britnico e o
guia Assar so totalmente inventados. As duas feiticeiras, a da ilha de Bretanha e
a de Canopo, personagens fictcias, resumem o mundo dos astrlogos e
praticantes das cincias ocultas de que Adriano se cercava de bom grado. O
nome de Aretia provm de um poema autntico de Adriano (Ins. gr., XIV
1089), mas o correio Mencrates encontrado na Carta do rei Fermes ao
imperador Adriano, texto inteiramente lendrio, de que a histria propriamente
dita no se poderia servir, mas que pode ter aproveitado esse detalhe de outros
documentos hoje perdidos. Os nomes de Benedita e de Tedoto, plidos
fantasmas amorosos que atravessam os Pensamentos de Marco Aurlio, foram
mudados, por motivos de estilo, em Vernica e Teodoro. Finalmente, os nomes
gregos e latinos gravados na base do Colosso de Mmnon, em Tebas, so, na sua
maior parte, copiados de Letronne, Recueil des ins-criptions grecques et latines
de 1gypte, 1848; a personagem, imaginria, de um certo Eumnio, que teria
estado naqueles lugares seis sculos antes de Adriano, tem por fim medir, para
ns e para o prprio Adriano, o tempo decorrido entre os primeiros visitantes
gregos do Egito, contemporneos de Herdoto, e os visitantes romanos de uma
manh do sculo II.
Anotamos rapidamente que as duas fontes principais do assunto que nos ocupa
so o historiador grego Don Cssio, que escreveu o captulo de sua Histria
romana consagrado a Adriano cerca de quarenta anos aps a morte do
imperador, e o cronista latino Espartiano, que redigiu pouco mais de um sculo
mais tarde sua Vita Hadriani, um dos textos mais slidos da Histria augusta, e sua
Vita lii Csesaris, obra mais ligeira, que apresenta uma imagem muito lgica do
filho adotivo de Adriano, superficial apenas porque a personagem o era. Esses
dois autores basearam-se em documentos desaparecidos mais tarde, entre outros
as Memrias publicadas por Adriano sob o nome do seu ex-escravo Flgon, e
uma coletnea de cartas do imperador compiladas por este ltimo. Nem Don
nem Espartiano so grandes historiadores, ou grandes bigrafos; contudo,
precisamente por sua falta de arte e, at certo ponto, de sistema, esto
significativamente mais prximos dos fatos vividos. Inclusive, as pesquisas
modernas tm confirmado freqentemente e de modo surpreendente o que eles
disseram. em grande parte sobre esse acervo de pequenos fatos que se baseia a
interpretao que se acabou de ler. Mencionamos tambm, sem, de resto,
tentarmos ser completos, alguns detalhes coligidos nas Vidas de Antonino e de
Marco Aurlio, por Jlio Capitolino; e algumas frases tiradas de Aurlio Vtor e
do autor do Eptome, que j tem uma concepo legendria da vida de Adriano,
mas cujo estilo, repleto de esplendor, se coloca numa categoria parte. As
notcias histricas do Dicionrio de Suidas forneceram dois fatos pouco
conhecidos: a Consolao, dirigida a Adriano por Numnio, e as msicas
fnebres compostas por Mesomedes por ocasio da morte de Antnoo.
Outras vezes, foi aos monumentos figurados e s inscries que recorremos para
reproduzir em mincias fatos no registrados pelos historiadores antigos. Certos
apontamentos sobre a selvageria das guerras dcias e srmatas, prisioneiros
queimados vivos, conselheiros do rei Decbalo que se envenenam no dia da
capitulao, provm dos baixos-relevos da Coluna de Trajano (W. Frohner, La
Co-lonne Trajane, 1865, e LA. Richmond, Trajans army on Trajans Column,
1935); uma grande parte dos acontecimentos das viagens inspirada nas moedas
do reinado. Os poemas de Jlia Balbilla gravados na perna do Colosso de
Mmnon servem de ponto de partida narrativa da visita a Tebas (Cagnat,
Inscrip. gr. ad. res romanas pertinentes, 1186-7); a preciso relativa ao dia do
nascimento de Antnoo devida inscrio do colgio de artfices e escravos de
Lanuvium, que em 133 tomou Antnoo como protetor (Corp. ins. Lat. XIV, 2112),
preciso contestada por Mommsen, conquanto aceita por eruditos menos hiper-
crticos; algumas frases dadas como inscritas no tmulo do favorito foram tiradas
do grande texto hieroglfico do Obelisco de Pncio, que relata seus funerais e
descreve as cerimnias do seu culto. (A. Erman, Obelisken rmischer Zeit, 1896,
e O. Marucchi, Gli obelischi egiziani di Roma, 1898). Quanto ao relato das honras
divinas prestadas a Antnoo, e ao carter fsico e psicolgico deste, o testemunho
das inscries, dos monumentos figurados e das moedas ultrapassa bastante a
histria escrita.
Mencionamos aqui, para o leitor que se interessa mais especialmente por esse
lugar nico que a Vila Adriana, que os nomes das suas diferentes partes,
enumeradas por Adriano na presente obra e que ainda hoje se mantm, provm
igualmente de indicaes de Espartiano, indicaes que as escavaes ali
realizadas tm, at agora, confirmado e completado, mais que invalidado.
Acrescentamos que nosso conhecimento do estado primitivo dessa bela runa,
entre Adriano e ns, provm de toda uma srie de documentos escritos ou
gravados desde a Renascena, os mais preciosos dos quais so talvez o Rapport
dirigido pelo arquiteto Ligrio ao cardeal dEste em 1538, as admirveis gravuras
dedicadas a essa runa por Piranesi por volta de 1781, e, quanto a detalhes, os
desenhos do cidado Ponce (Arabesques antiques des bains de Livie et de Ia Villa
Adriana, Paris, 1789), que conservam a imagem dos estuques hoje destrudos.
So ainda essenciais os trabalhos mais recentes de Gaston Boissier, em
Promenades archologiques, 1880, de H. Weinnefeld, Die Villa des Hadrian bei
Tivoli, Berlim, 1895, e de Pierre Gusman, La Villa Impriale de Tibur, 1904. Ver
tambm, mais prxima de ns, a obra de R. Paribeni, La Villa delVimperatore
Adriano, 1930, e o importante trabalho de H. Khler, Hadrian und seine Villa bei
Tivoli, 1950. Os mosaicos dos muros da Vila, aos quais Adriano faz aluses aqui,
so aqueles das xedras, das paredes que enquadram os nichos das ninfas, muito
freqentes nas vilas da Campna do sculo I e que provavelmente
ornamentaram tambm os pavilhes do palcio de Tbure, aqueles que, segundo
numerosos testemunhos, revestiam a base das abbadas (sabemos por Piranesi
que as abbadas de Canopo eram brancas), ou ainda as dos emblemas, dos
quadros e mosaicos que era comum incrustar nos muros. Para todos esses
detalhes e para os realces de ouro que por vezes figuram sobre os mosaicos
desde a poca antonina, ver, alm de Gusman, j citado, o artigo de P. Gauckler,
em Daremberg e Saglio, Dictionnaire des antiquits grecques et romaines, III, 2,
Musivum Opus.
Uma inscrio antiga encontrada no prprio local (Ins. gr. ad rest. rom. pert., I,
1142) revela-nos a existncia de uma estrada aberta por Adriano, conquanto o
traado exato do seu percurso parea jamais haver sido reconstitudo; as
distncias indicadas por Adriano nesta obra so apenas aproximadas. Finalmente,
uma frase da inscrio de Antino, atribuda aqui ao prprio imperador, foi tirada
da narrativa de sieur Lucas, viajante francs que visitou Antino no princpio do
sculo XVIII.
A autora e sua obra
Aos dezessete anos, escreveu sua primeira obra, Le jardin des chimres
(poesias), ao qual se seguiu Les dieux ne sont pas morts, trs anos depois.
Estava preparada para o primeiro sucesso e escndalo: Alexis ou o tratado do
vo combate (1929), cujo tema era o homossexualismo.
[1]
Pequena alma, terna e flutuante, / Hspede e companheira de meu corpo, /
Vais descer aos lugares / Plidos, duros, nus, / Onde ters de renunciar aos jogos
de outrora P. lio Adriano, Imp. (N. da T.)
[2]
Hspede e companheiro. Em latim no original. (N. da T.)
[3]
A mesma observao aplica-se naturalmente a muitas obras mencionadas
aqui. Nunca ser demais afirmar que um livro raro, esgotado, encontrado apenas
nas estantes de algumas bibliotecas, ou um artigo aparecido num nmero antigo
de uma publicao erudita, totalmente inacessvel para a grande maioria dos
leitores. Em noventa e nove por cento dos casos, o leitor desejoso de se instruir,
mas com falta de tempo e de algumas tcnicas familiares com que s o erudito
profissional esta familiarizado, mantm-se, queira ou no, tributrio de obras de
vulgarizao escolhidas um pouco ao acaso, e as melhores das quais, quase
nunca reimpressas, se tornam por sua vez dificlimas de encontrar. Aquilo a que
chamamos a nossa cultura , mais do que se julga, uma cultura a portas
fechadas. (N. da A.)