Gangues Da Madrugada - Pixação.dissertação
Gangues Da Madrugada - Pixação.dissertação
Gangues Da Madrugada - Pixação.dissertação
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO BRASILEIRA
Fortaleza
2011
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Fortaleza
2011
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2. CDD 751.7309220981310904
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Prof. Dr. Jos Gerardo Vasconcelos (orientador)
______________________________________________________
Prof. Dra. Cellina Rodrigues Muniz (UFRN) (coorientadora)
______________________________________________________
Prof. Dr. Joo Ernani Furtado Filho (UFC)
______________________________________________________
Prof. Dr. Jos Rogrio Santana (UFC)
6
Agradecimentos
Algumas vezes ao combinar encontros formais e informais com amantes da pichao fortalezense,
ouvia e percebia, sem querer ouvir ou perceber, reclames e xingamentos vindos de companheiras(os)
ou pais que acabavam gerando brigas pelo envolvimento de tais com o movimento da pichao. Isso
coisa de vagabundo, de quem no tem o que fazer e que merecem peia ou cadeia, diziam eles.
Outras vezes percebia compreenso e at certo apoio pela paixo pela pichao de seus queridos, essa
sim sentia mais conforto para ouvir, dava at prazer perceber tais posturas. Ento, agradeo a sempre
compreenso, apoio dedicado e envolvido de Adalcy Azevedo, querida, estimada e me de minha
maior paixo Yasmin Santiago, minha linda e inquieta filha.
Agradeo tambm o apoio e pacincia de meu orientador Jos Gerardo Vasconcelos e minha
coorientadora Cellina Muniz. Ambos, estimados doutores, professores e pesquisadores errantes do
errtico.
So incontveis os pichadores que cooperaram para a escrita desta dissertao, caso fosse nomear
todos que estimo, correria o risco de faltar muitos em minha lista, ento para no ser injusto com
alguns, agradeo a todos os pichadores e amantes da pichao dedicados e comprometidos de corpo e
alma com o movimento do charpi.
Agradeo os divertidos e prazerosos momentos com a turma da hora do almoo no ptio da cantina da
Gina. Almoos pagos ao final do ms, s vezes, dois, trs meses... Mas, com certeza, pagos! Agradeo
a todos eles: Gina, Pereira, Ramon, Gilmala, Zez Arago, Bicudinha, Alfiere, Suziane, Valmir, Dona
Elem, Valdir.
noite; eis que se eleva mais alto a voz das fontes fervilhantes. E
minha alma tambm uma fonte fervilhante.
noite; eis que se despertam todas as canes dos amorosos, e
minha alma tambm o canto de um amante.
Uma sede est em mim, insaciada e insacivel, que busca erguer a
voz. Um desejo de amor vive em mim, um desejo que fala a
linguagem do amor.
(Friedrich Nietzsche)
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RESUMO
ABSTRACT
This present study shows and analyzes certain cultural and educational practices built with
gang graffiti movement in Fortaleza city, Cear, Brazil, in 80s and 90s decades. These bold
and lawless social people are present and written with a spray and blood, full of vivacity
and learning in the city. This research, infected by passion and bias, is against the prejudiced
views and moralists who treat these guys as thugs and criminals, who deserve hated purge.
With reflections from authors such as Nietzsche and Foucault, about power
and pedigree, Maffesoli about hordes and emotional; Certeau, the appropriations, tricks
and gimmicks in the city, its possible to take a look at this intriguing and
challenging movement. Who are these taggers? How do they act? How are cultural and
educational practices? What are the conflicts? What are the motivations, even life-
threatening, leading the graffiti to mark their features stained glass windows in the city? There
are many disturbing questions about this social group that are answered in this experiences
and experiences intense study, perceived in many interviews and conversations with those
guys, and also support in journals pages that deal constantly writing these taggers
write strength in thin walls, bridges, canopies, signs and buildings, considering the city
itself as a text, latent and living document of ownership and belonging on part of this social
group fully of emotion and action.
Key-words: Taggers, gangs; experience; passion; cultural and educational practices; city.
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LISTA DE ILUSTRAES
SUMRIO
1
Os pichadores cearenses se utilizam de uma lngua com as silabas ao contrrio do uso formal, tala ento
significa lata, pichar charpi (que tambm o nome da pichao codnome que o pichador escreve), polcia -
cialipo.
2
A palavra pichar teve origem do piche. Era um material difcil de ser removido e muito utilizado na Idade
Mdia por padres que utilizavam-no para pichar as paredes dos conventos de outras ordens que no lhes eram
simpticas. Da o termo pichao (GITAHY, 1999). comum os pichadores tambm escreverem pixar com x,
muitas vezes para economizar o spray, agilizar o tempo da ao e firmar tambm uma linguagem que est para
alm das normas ortogrficas, mas aqui no texto usarei a forma de escrever a palavra pichar com ch a moda
formal e como escrevem muitos pichadores do perodo que se inicia a pichao em Fortaleza.
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percebendo um uso romntico-potico por parte dos primeiros pichadores, utilizo e agarro a
poesia e a terminologia gangue, usada no perodo que pretendo estudar.
Essa terminologia gangue, usada entre os pichadores fortalezenses para denominar
seus grupos sofre forte influncia na divulgao constante em revistas e filmes, como o
conhecido e apresentado na TV aberta brasileira na dcada de 1980 Warriors, os selvagens
da noite (1979), direo de Walter Hill, que mostrava aes na madrugada das gangues e
grafiteiros3 dos Estados Unidos, principalmente dos bairros negros como South Bronx que
tambm usavam a terminologia gangs para se autodeterminar.
Pode-se dizer que a gangue uma conceituao criada pela ideia de desvio, tendo
em vista a expresso juvenil nos guetos de Chicago, de forma mais marcante, a
partir dos anos 50. De outro modo, verifica-se que alguns agrupamentos juvenis
auto-instituem-se gangue. (DIGENES, 1998, p. 114).
Fazendo parte de uma gangue, o pichador tem que seguir vrias normas e regras
construdas e estabelecidas entre sua gangue e entre todas as gangues de pichadores, dentre
algumas, destaco a que cada integrante deve comparecer s reunies de sua gangue, alm de
pichar muito e bem alto, divulgando suas marcas e gangues nos muros e alturas da cidade.
Essas gangues tm intensas formas de sociabilidade, que consiste em eleger qual picha mais a
cidade, numa proposta de disputa. Existindo, assim, uma hierarquizao entre elas, baseada
em integrantes que se destacam em sua ousadia ou por tais turmas resistirem ao tempo e
consolidaram respeito entre os pares.
Esses pichadores vo, em pouco tempo, pichar os mais diversos e difceis lugares
da cidade, procurando assim integrar gangues destacadas entre os pichadores para assim
conquistarem respeito, tornando-se considerados e conhecidos. Seriam somente a busca da
fama, reconhecimento e visibilidade social as razes deles se interessarem em pichar? A
formao e organizao das gangues de pichadores incluram uma grande porcentagem de
sujeitos, principalmente, mas no exclusivamente de jovens.4 Tal como atesta a manchete do
3
A palavra grafite aqui usada por no ser existir a palavra pichao na lngua inglesa. A palavra grafite ou
GRAFFITI vem do italiano GRAFFITI; que em sua origem latina (GRAFFIO) designava um instrumento
cortante utilizado para gravar letras em placas de cera que precederam o papiro e o papel. Em sua vertente grega,
temos a palavra GRAPHEIN, que significa escrever e desenhar. J SGRAFFITO, ou ENTAILHE, um termo que
designou um procedimento nobre da decorao mural renascentista. Hoje o termo GRAFITE est ligado ao
trabalho artstico com tintas, principalmente o spray, em imagens que muitas vezes so coloridas ou em
mensagens de cunho crtico (GITAHY, 1999).
4
muito comum de imediato se relacionar o movimento de pichadores aos jovens, mas ressalto que em
Fortaleza essa caracterstica no geral, encontrando-se nessa cidade pichadores de vrias faixas etrias (se
que faixa etria determina o que ser jovem), pais e at avs de famlia (se que ser pai ou av exclui a
juventude) fazem parte desse movimento. Por isso no utilizarei, pelo menos no constantemente, esse conceito
to dinmico, impreciso e indeterminado.
17
jornal O Povo de 12 de maro de 1991: Juizado de menores autua quatro grafiteiros por dia.
Fica evidente a quantidade de envolvidos nas gangues de pichadores, das quais, assumo, fiz
parte.
Em minha empreitada de pesquisador sentia uma enorme necessidade de
envolvimento com os pesquisados, nada de neutralidade, imparcialidade ou distanciamento,
pelo contrrio, me considero e sou considerado de dentro do movimento da pichao.
Apaixonado, amante convicto, assim como muitos outros sujeitos se assumem do movimento
da pichao. Pesquisador particip(ativo) e vivedor desse mundo. Por isso escrevo em primeira
pessoa, assumindo de corpo e alma minha paixo e dissertao.
Creio que nenhum trabalho surge do acaso, mas sim da prpria vida, de alguma das
suas circunstncias. A escolha do tema sempre um processo que surge de nossas
experincias, preocupaes e paixes e que nos leva busca, nos pe em
movimento. (ADAD, 2006, p.126).
5
A esttica que me refiro est relacionada forma das letras, termos e expresses lingusticas, modo de se vestir,
se cumprimentar etc.
18
estarem pichando suas paredes! Quantos outros foram presos nas ruas! Quantos outros
tiveram suas vidas ceifadas!
Partindo dessas primeiras percepes, acredito ser necessrio apresentao e
anlise desse movimento que balana e rabisca a cidade. Uma relao que transforma vidas,
apropriando-se da cidade de forma criativa e intensa. Uma pedagogia em que a indisciplina e
a malandragem se fazem presentes entre grupos de pichadores, que escrevem sua linguagem
no espao urbano.
Este trabalho tem entre seus objetivos conhecer, compreender e analisar como
essas gangues de pichadores surgem, como agem e expressam-se. Como se d sua
comunicao com seus diferentes cdigos, signos e normas. Como se desenvolvem os
discursos e como so tratados e travados os conflitos existentes e como se constri uma
dinmica que constri saberes que tem o drible, a astcia, a velocidade, o destemor e a
criatividade como elementos essenciais de sua constituio.
Os apaches constituem uma microssociedade com sua geografia, sua hierarquia, sua
linguagem, seu cdigo. Eles reivindicam abertamente o direito a diferena e
retomam a tradio dos submundos. Eles desfiam o jarre, a gria, essa lngua dos
malfeitores a que diariamente acrescentam novas expresses, as vezes tipicamente
pitorescas, e que todo dia modificam de modo a poder conversar despistando a
rinifle (A polcia). (PERROT, 1992, p.322).
destinados a temtica e pesquisa nas diversas reas das cincias humanas sobre a atuao de
outros grupos urbanos rebeldes e marginalizados. Entre muitos possveis estudos, destaco os
escritos da pesquisadora das gangues de Fortaleza Gloria Digenes (1998), a pesquisadora
referncia em reflexes sobre os grupos denominados de gangues que atuam em Fortaleza,
sendo contemplados tambm, em seu trabalho, grupos de pichadores.
Entendendo ser a pichao um movimento intrigante, diferenciado, que incomoda as
verdades absolutas dos moralistas, meu pensamento indicava que deveria prestigiar reflexes
de algum filsofo que desconstrusse as verdades absolutas, queria estabelecer leituras com
um pensador das diferenas, ento, ningum melhor que Friedrich Nietzsche (2006, 2007,
2008, 2009), suas crticas a moral crist, suas reflexes sobre a vida e desejos como vontade
de potncia e seus estudos sobre genealogia esto presentes nesta dissertao.
Quando associo genealogia e Nietzsche, de imediato sou remetido aos estudos de
Michel Foucault (2008, 2010). Este trabalho est amparado nas reflexes de Foucault, em sua
perspectiva de Histria como jogo de foras e seus estudos sobre os excludos e
marginalizados, pois sobre eles caem os olhos vigilantes e punitivos.
Filio-me tambm a quem considero o pesquisador dos grupos tribais e errantes
da contemporaneidade: Michel Maffesoli (1996, 2001, 2006) e seus estudos sobre a
importncia das relaes afetuosas e emotivas na formao e manuteno de grupos tribais
transgressores.
Percebendo o movimento da pichao como uma ao que demanda saberes,
criatividades, apropriaes, tticas, estratgias, astcias que fazem o cotidiano das cidades,
estabelecendo dilogos com os escritos de Michel De Certeau (2008).
Acredito que, com os estudos genealgicos de Nietzsche, seu conceito de vontade de
potncia e suas reflexes sobre a moral e a vida; de Foucault e sua compreenso de Histria
como jogo de fora e seus estudos dos excludos e marginalizados; de Maffesoli e suas
reflexes sobre a importncia das emoes e sentimentos afetivos no entendimento das tribos
errantes e o cotidiano das tticas, astcias e apropriaes praticadas nas cidades apresentadas
nos estudos de Michel De Certeau possvel lanar um olhar sobre as prticas culturais e
educativas dos pichadores de Fortaleza.
20
Dentre tantos pichadores, destaco que alguns picham desde finais de 1980 at
hoje, num verdadeiro vcio rebelde.6 So tantos anos de atuao e envolvimento que alguns
pichadores passam a ser referncia para outros pichadores fortalezenses, como confirma essa
dedicatria que um pichador faz para SLAYER, O ETERNO referindo-se aos muitos anos de
atuao do afamado pichador lder da EDT (Esprito das Trevas).
6
Afirmao escrita por pichadores de forma legvel nos muros e alturas de Fortaleza, como querendo ter uma
justificativa para a prtica da pichao.
21
A proposta do vereador Klinger Mota que est preparando projeto de lei proibindo a
venda de sprays a menores, e mesmo os maiores s adquirirem o produto mediante
comprovao da idade. Seria uma forma de evitar as pichaes que emporcalham a
cidade, tornando deprimente o seu aspecto [...] Tambm j se fala que alguns
proprietrios de imveis recm-pintados estariam orientando seus vigilantes a
expulsarem, a bala, se for preciso, essa molecada. Na Tibrcio Cavalcante, em
um muro branco, o dono da casa deixou um recado aos grafiteiros, chamando-os de
sujos, porcos e dbeis mentais. A sociedade revida a agresso. (O Povo, 11 de maro
de 1991, p. 12A).
2 MEMRIAS DE UM PICHADOR
7
Cf. glossrio. S usarei as aspas nesse primeiro charpi, pois, esse termo vai aparecer constantemente nesta
dissertao.
24
Portanto, inicio este texto com a contemplao de uma das possibilidades dessas
vozes serem ouvidas e percebidas, representada na foto 3, que corresponde a um charpi de
minha prpria autoria, tendo esse feito sido realizado numa provvel madrugada de 1992, em
uma grande avenida fortalezense, e que, passados dezenove anos, insiste em permanecer sem
ser pintada, espera de uma provvel convocao para reflexes futuras, instigando o autor
ao seu reencontro em busca de novos dilogos.
Entendo ser de fundamental importncia, para um melhor entendimento dos
caminhos que trilhei at chegar a esta pesquisa, partir de uma anamnese em relao a essa
imagem e meu envolvimento com o tema de minha pesquisa. Exerccio este, para espanto de
muitos, ousado, transgressor, e por que no dizer audacioso, de escrever uma autobiogrfica
das reminiscncias de minhas prprias vivncias no meu trajeto como integrante das gangues
de pichadores de Fortaleza nos incios de 1990. No consigo desprezar essas informaes que
esto cravadas em meu corpo, que aqui considero importantes, numa valorizao da categoria
experincia de um vivedor e pesquisador que vive o universo dos seus pesquisados, numa
preocupao em resgatar a noo de experincia e, consequentemente, resgatar uma
concepo de histria aberta, plural e carregada de humanidade. (VASCONCELOS, 2010, p.
108). Muitas vezes, envolvimentos afetivos em pesquisas so negligenciados, usam a
desculpa antiga e ultrapassada de neutralidade das paixes ou imparcialidade cientfica.
Medos e receios ainda circulam em atrevimentos metodolgicos, pois:
aspectos. Entendo tambm que essa metodologia no tarefa to simples, pois reconheo
individualidades e particularidades de cada trajetria. Mas, reafirmo, para no deixar dvidas,
haver grande coincidncia de falas e aspectos em depoimentos sobre a trajetria de muitos
pichadores.
Quando tinha quatorze anos de idade, isso por volta de 1989, comecei a prestar
ateno em algumas novas inscries (at ento indecifrveis para mim) estampadas com tinta
spray nos muros do bairro fortalezense onde residia e tambm alertado por ouvir lamentos e
queixas de um tio-av que constantemente tinha o muro de sua casa como alvo de alguns dos
autores de tais inscries. Dizia ele, indignado, que iria esperar armado na madrugada, na
esperana de surpreender os pichadores.
Percebi que tais inscries tambm se encontravam espalhadas por diversos locais
da cidade e a impulsionadora curiosidade aumentava em relao a tais pichaes, a ponto de
querer compreender e tentar decifrar tais cdigos que se espalhavam por todos os bairros por
onde costumava passar. O que era aquilo? Quem seriam seus autores? Por que pichavam?
Seriam do bairro onde eu morava? Onde esses sujeitos moravam? Que cdigos e smbolos
seriam aqueles? Sabia que era uma onda nova na cidade, pois at ento s observava
pichaes em recados de enamorados, frases e palavras de ordem poltico-partidrias e de
poucos nomes prprios em letras legveis. Criava, assim, um interesse em saber algo sobre
essa ao de pichar com smbolos incomuns, vasculhando, investigando, tentando saber quem
poderiam ser aqueles autores. Na busca, fui informado por um amigo, a quem chamarei G,
que um de seus irmos poderia ser um desses pichadores. Na tentativa de me aproximar,
decidi, como um xereta investigativo, frequentar mais a casa de G e l tentar estabelecer
dilogo com o provvel pichador. G demonstrava tambm o mesmo interesse por tal ao e
conversvamos constantemente sobre o assunto. At que resolvemos que tambm poderamos
ser pichadores, em nossa mente era s nos cotizarmos e comprarmos uma lata de spray, sair
por a na calada da noite e picharmos! Era o que erroneamente pensvamos, e logo as
primeiras interrogaes e obstculos surgiram. O que picharamos? Quais nomes? Ou seriam
desenhos? A que horas iramos pichar? No sabamos de nada! Mesmo assim resolvemos sair
para tal empreitada, samos para pichar por volta de vinte e trs horas (horrio j tarde do
permitido por nossos pais na poca). Nervoso e apreensivo bolei um nome com letras
26
legveis: Sony. Se fosse o meu primeiro nome seria muito denunciador, alm da pouca
habilidade que tinha em manusear a escrita com o spray. G nem nome tinha, dizia ele que na
hora sairia alguma coisa, tornando-se agente do improviso. E foi isso que aconteceu,
pichamos o muro respectivamente com os nomes Sony e Papa, resolvendo com muita
inexperincia e nervosismo incrementar escrevendo palavres e obscenidades, alm de pichar
prximo a pichaes j existentes, chegando inclusive a pichar sobre algumas. No sabamos,
mas tnhamos cometido dois erros graves perante as regras dos pichadores: escrever
gratuitamente obscenidades/palavres e ainda ter atropelado a pichao de outro. Isso foi
revelado pelo prprio irmo de G que se apresentou como um pichador de nome Levado. Ele
e mais quatro jovens tambm pichadores, entre eles uma mulher, nos repreenderam e
ameaaram por termos quebrado tais regras. Foi esse comeo infeliz que levou Levado a
querer nos iniciar na pichao. Levado nos revelou algumas regras e cdigos, entre elas, a de
que tnhamos que criar um codinome, um apelido, um charpi, teramos que criar um alfabeto
com uma letra estilizada, exclusiva; nem o codinome nem as letras poderiam ser semelhantes
com outras que j existiam. Levado foi indicando nomes e posso dizer que no foi tarefa fcil
escolher um apelido/codinome, pois, percebi que em Fortaleza, poca, j existia um nmero
elevado de pichadores, chegando a ser relatado por Digenes (1998, p. 152) como um modo
homogeneizado de prtica juvenil. Foi quando me ocorreu um codinome que segundo
Levado no existia: Mutreta. Iria pichar com esse codinome, nascia ento o Mutreta. Nascia o
outro que estava em mim e queria sair, ser nmade, errante, aventureiro, numa vida mltipla,
vivida em um mesmo corpo, diferente do que sugere todo um pensamento monotesta cristo,
que prope, ou melhor, impe uma s maneira de vivenciar a vida, como devendo exercer
uma s funo, cumprindo uma vocao nica. Prefiro pensar como Maffesoli e assumir o
politesmo de que nos fala o autor, num sentimento que leva a vida a ser vivida de variadas
formas, de vrias intensidades. O estudante, o trabalhador, o responsvel durante o dia, e o
mesmo sujeito, o aventureiro, o transgressor, o irresponsvel ou pichador das madrugadas.
Facetas mltiplas que esto em todos ns, e a qualquer momento nos so reveladas para que
possamos, em alguma brecha, sair de ordens impostas e estabelecidas.
Levado fez, ento, um esboo de alfabeto a ser adotado pelo Mutreta para que
treinasse e desenvolvesse a fim de que o novo iniciado pudesse meter seu nome mais
elaborado e estilizado. Levado assumia assim o papel de iniciador, como um professor que
ensina a escrever as primeiras letras e palavras, que apresenta algumas prticas e normas,
muito comum em relatos com diversos pichadores esses iniciadores. Eu, ento, me transformo
em Mutreta, e junto com o G, ou melhor, o Papa, nos aprofundamos mais nas prticas
culturais e educativas que os grupos de pichadores fortalezenses constroem e reconstroem. A
atravessar essas prticas, h a norma dos grupos de que deveramos nos associar em uma
gangue de pichadores.
Para formar uma gangue de pichador no h muito mistrio, preciso apenas se
associar a outros sujeitos dispostos a pichar, formando assim uma irmandade clandestina onde
todos ajudariam a divulgar o nome da gangue. Meu colega e eu fundamos, ento, nossa
prpria gangue e sua sigla era A.G. (Anjos do Grafite), pois em nenhuma gangue formada,
que j atuasse e fosse conhecida entre os pichadores seramos bem-vindos ou convidados, por
sermos iniciantes e desconhecidos. No incio, s pichava no entorno do meu bairro e no to
de madrugada, era identificado na linguagem dos pichadores como um pio.
E sendo um pio que se comea como pichador, e muitos no vo sair dessa
condio, pichando somente nos arredores de sua prpria casa, em espaos de pouco
movimento de transeunte, como mostra o revelador e informativo relato de Pango8, sobre o
incio de sua trajetria em momentos comuns a de muitos outros pichadores.
O meu primeiro nome era Vavo da V.M. (Vndalos da Madrugada), era uma
gangue a, e o lder era o Pavo. Vavo era meio que chupao de Pavo,
parecia com o dele. Ento ns encontramos o Carlin e pedimos para ele bolar
uma letra bem legal, pois ele sabia umas letras do Rio de Janeiro, isso por volta de
1989, eu via muito o Carlin e o Rape, nos j tnhamos amizade com eles, todos
andavam de skate pelas reas, eles moravam perto de ns, eles nos condomnios e
eu da favela, a eu disse, ei chapa da pra bolar um estilo de letras bem massa?
A ele bolou um alfabeto e me deu. Ai eu comecei a divulgar Vavo, a eu tinha
um medo enorme, pegava na lata todo se tremendo, normal de quem estava
comeando, eu era o mais medroso, a galera metia os nomes nas avenidas e eu
queria meter o nome nos capins, a a galera dizia que s quem ia ver meus
nomes era os ratos e morcegos, s queria meter o nome dentro dos matos, eu
no podia ver um carro que me escondia, eu dizia pro Pavo que esse negcio de
pichao no era pra mim, eu era um pio mesmo de carteirinha. A eu fui
perdendo o medo vendo o Pavo fazendo os prdios, escalando pelos combobos
onde tinha o nome do Sucata, o Pavo se garantia. Ento a V.M. comeou a
detonar, mas no chegava nem perto das gangues mais antigas como a F.G.
8
Considero Pango como um pichador nato, com certeza um dos mais experientes do Brasil que tenho
conhecimento. Esse pichador fortalezense comeou a pichar em 1989 e passados mais de vinte anos se mantm
na atividade, detonando seu charpi nos muros, alturas e prdios de Fortaleza at os dias de hoje. Pango
bastante conhecido e considerado entre os pichadores fortalezenses.
28
ainda mais, me apaixonei perdidamente pelo mundo da pichao, era uma instigante vontade
de potncia que florescia em minha pessoa.
G.U. Gerao Urbana, uma das gangues mais expressivas do final dos anos 80 e
incio dos 90, que teve no seu cast feras como Ramon, Wagner, Falco, Seco,
Coest, Canhoto, Mutreta, dentre outros. (NEGO, acesso Orkut, 02/01/2010).
30
Fazia, ento, parte da G.U. Senti-me o mximo, bastante orgulhoso por fazer parte
de tal gangue. Nessa poca, a vontade de pichar e os conflitos em casa aumentaram, e em
mesmas propores aumentaram minha reputao de pichador, amado e odiado na rua e na
escola. Transformei-me em um pichador famoso, mais experiente a ponto de tambm estar
incentivando, inspirando e ensinando outros a picharem. Andava em todos os locais de
encontros de pichadores, em todos os dias da semana, gazeando aulas, (per)correndo a cidade,
conhecendo e aprendendo com vivncias em muitas praas e avenidas fortalezense e com cem
novas amizades, muitos namoricos, diverses, transgresses, baladas (principalmente nos
bailes funk), conflitos, rodadas em viaturas policiais, escaladas de alturas, oraes em
cima de marquises, com a polcia ou vigias embaixo, coragem, medos, aventuras, e uma
graduao no meio-do-mundo, graduando-se nas artes e manhas das ruas dessa Fortaleza
cidade, j to selvagem e bela. (CALIXTO, 2007, p. 109).
No meio das socializaes que envolviam o movimento da pichao, muitas vezes
era reconhecido e respeitado. Era o que muitos pichadores procuram: a fama. O que me
levava, inclusive, a assinar meu autgrafo, ou melhor, meu charpi, em dezenas de
agendas por todos os cantos que frequentava, prtica bastante difundida entre os amantes das
pichaes, como mostra o relato de Pango:
O que fico mais admirado eu ter pego tanta fama, nunca imaginei, srio mesmo!
Eu nunca imaginei! Eu no sou ator de novela, talvez seja at visto por parte da
populao como um bandido, a fama impressionante, onde eu ando, criana
nascendo hoje me v na rua e diz: olha o Pango! O Pango quem esse cara? Isso
me impressiona, a fama que eu tenho e de ser conhecido na cidade todinha, nesse
tempo no tinha internet, hoje mais fcil, mas naquele tempo pra pessoa se
divulgar era osso, eu tive esse privilgio de ter sido divulgado antes da internet.
Conheo muita gente, muita gente vem aqui, me ver, para eu assinar agendas, gente
de todo canto de Fortaleza, gente como o Falco que eu tenho maior carinho.
(PANGO, entrevista em 14 de maro de 2010).
Era muita fama, a gente ficava conhecido. Era respeitado e tinha moral, alm,
claro, de conseguir as gatinhas com mais facilidade. Tinha pichador que era feio
que doa, mas por meter seu charpi nas alturas as gatinhas gostavam e queriam
conhecer ns; todo mundo queria nos conhecer e pediam pra gente assinar nas
agendas deles nas praas. (RABECO, entrevista em 06 de dezembro de 2009).
de fogo (de quantos no escapei!), ser pintado com o prprio spray (at por minha me!),
suspenses e expulses de escolas, quedas, prises, punies e preconceitos os mais diversos.
Vivenciei esse vcio rebelde, dos quatorze aos dezoito anos, idade que muitos pichadores
param, ou como preferem, se aposentam, por ser a punio mais rgida para quem maior
de idade, no sendo a regra, muitos outros pichadores mesmo em maioridade continuavam a
pichar num verdadeiro vcio, existindo assim pichadores e gangues que atuam
ininterruptamente h mais de 20 anos em Fortaleza.
Pensei estar ento aposentado, no queria mais nem saber de pichao! Mas no
conseguia me distanciar tanto, a pichao est em minha vida, atrelada no meu corpo e s
minhas memrias, que dribla e escapa faculdade mental importantssima: o esquecimento.
Foi deixar emergir a vida, a paixo que h em mim. Querer estud-los, compreend-
los, vivenci-los foi seguir o caminho derrubando mitos dos sistemas estereotipados,
repressores e falsos em que vivemos, pela via da desconstruo das verdades j
ditas; recuperar o que os sistemas no abrigam: mais que o sujo, o imundo; mais que
o proibido, o interdito; mais que o violento, o terrvel na difcil liberdade de
recompor o mundo, reinventando tudo ao abdicar da limpeza, da piedade, da beleza.
Cria, portanto, um corpo capaz de estranhar e se deixar afetar tambm pelas
turbulncias e multiplicidade da vida. Outra lgica, quem sabe, capaz de nos levar
construo de novas epistemologias, de novas estticas e novas ticas. (ADAD,
2006, p. 129-130).
Seja bem vindo Naigleison, ou melhor, Mutreta, voc remanescente dos primeiros
e melhores perodos da pichao, espero que voc possa contribuir com suas
lembranas daquelas primeiras galeras de todos os tempos ... Bem vindo, quero
aqui, como criador dessa comunidade, dar as boas vindas a Ramon, Mutreta e Kite,
que vieram abrilhantar essa comunidade e colaborar com suas lembranas daquele
primeiro perodo da pichao pela cidade. J h algum tempo participo apenas
como expectador, mas, no poderia deixar de registrar o ingresso dessa rapaziada.
At agora, junto com Russo, so sem dvida nossos membros mais ilustres. Sejam
bem vindos, utilizem esse espao para divertimento e resgate do passado, sejam fieis
as suas lembranas. (REBELDE, acesso Orkut, 03 de fevereiro de 2010).
S faltava isso para a volta do Mutreta. Voltei. Assim como escrevem muitos
pichadores quando voltam a pichar aps terem dado um tempo. E por mais incrvel que
possa parecer, muitos outros ex-pichadores voltaram realmente a pichar, graas
possibilidade de reencontros e estmulos que o Orkut proporcionou. Eu tambm voltei, no
somente na condio de assumir ser mais um amante participante do movimento da pichao,
mas como um pesquisador que se atreve a aventurar-se em reflexes sobre o universo dos
pichadores fortalezenses.
37
3 GENEALOGIA DA PICHAO
Ao iniciar a construo deste texto, confesso ter ficado deprimido com certa
carncia de nimo. Com a impacincia que to minha, veio cabea uma ideia para curar
essa aflio e sair da mesmice desse momento. Talvez uma ao ousada transgressora fosse o
que faltava em minha vida. Uma vontade de potncia por rebeldia fervilhava em meu corpo,
como aquele que o povo odeia, com o dio do co ao lobo, o esprito livre, o inimigo das
algemas, o descrente que apavora as florestas. (NIETZSCHE, 2008, p. 141). Selecionei
algumas talas que tinha em casa, surgindo uma incontrolvel necessidade de usar essas
invenes aperfeioadas do ps-Segunda Guerra Mundial. O meu corpo pedia para eu meter
um nome, meu charpi e/ou fazer um grafite.
Era o Eu pesquisador que vivenciava a pesquisa e o Mutreta querendo ser visvel,
ser vivo e da ativa no meio da pichao fortalezense. Todos ns participamos ativamente da
histria no jogo da fora e da vida que necessita de jogadores, aspectos prprios do fazer
genealgico, os sentimentos, as angstias, as escolhas, as aes e
tudo que diz respeito ao corpo, a alimentao, o clima, o solo. Sobre o corpo se
encontra o estigma dos tempos passados do mesmo modo que dele nascem os
desejos, os fortalecimentos e os erros; nele tambm eles se atuam e de repente se
exprimem, mas nele tambm eles se destacam, entram em luta, se apagam uns aos
outros e continuam seu insupervel conflito. (FOUCAULT, 2010, p. 22).
admitindo que s se faz a Histria participando de seu prprio jogo, que no se pode
escrever a Histria como um espectador, torcendo na arquibancada, sendo um
historiador atleta e no um historiador assistente; se perceber que s se escreve a
Histria suando a camisa, no a olhando de um binculo de um camarote
refrigerado. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 168).
Ao lado do meu charpi coloquei uma dedicatria para o meu (des)orientador Dr.
G. Essa prtica bastante difundida entre os pichadores, que alm de escreverem frases com
letras legveis, colocam essas dedicatrias para amigos(as), familiares, outros pichadores(as)
de diferentes ou mesma gangue. Endeream tambm s namoradas(os), muitas vezes
acompanhando um desenho de corao, sendo esses tipos de dedicatrias muito presentes na
cidade de Fortaleza, das quais apresento algumas:
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eles mesmos afirmavam) no se tratava das garatujas e coisa feia que eu pesquisava e
com que me envolvia.
Muitas coisas que um povo chama boas, eram para outro vergonhosas e
desprezveis; eis aqui que eu achei. Vi muitas vezes chamar de ms coisas que, em
outros lugares, adornavam com o manto de prpura das honras. (NIETZSCHE,
2008, p. 86).
Garanti que faria uma arte. A autorizao veio como uma surpresa. O espao
permitido situava-se na mesma altura da pichao que acabara de fazer do outro lado do
muro. Adorei tal acaso. Fiz uma pichao do lado de fora que nunca seria permitida se no
fosse minha cara de lata e, do lado interno, fiz um grafite permitido e reconhecido como
arte pelos gestores da instituio. Um nas costas da outra. Lado de dentro e lado de fora. O
feio e o belo. Mas como definir, medir, calcular a intensidade do belo e do feio?
Essa ao foi como uma necessidade intensiva do meu corpo. provvel que tal
sentimento possa residir no corpo de muitos outros pichadores e grafiteiros que afirmam que
pichao/grafite do sangue, t na veia, d na cabea e vai e ningum segura, no
importando leis punitivas ou moralismos. paixo!
42
9
Fazer murais corresponde o ato dos componentes de uma determinada gangue reunirem seus membros para
que todos metam seus charpis, smbolos da gangue e desenhos em um nico muro, que costuma ser de grandes
propores e muitas vezes previamente pintados de branco pelos prprios pichadores, com ou sem autorizao.
No momento de executarem esses murais, costumam confraternizar a unio e formao da gangue, muitas fotos
e filmagens so realizadas.
43
Foto 12
Fonte: Jornal Tribuna do Cear, 14 de novembro de 1990.
Ao final da dcada de 1980 e incio de 1990 ocorre uma emergncia das aes de
pichao e grafite, ocasionando uma maior visualizao e divulgao dessas expresses em
Fortaleza, perodo que se estruturam e comeam atuar as primeiras gangues de pichadores
fortalezenses. A mdia, nesse perodo, fazia uma misturada e mesmo uso em relao s duas
terminologias, comeavam um texto com o nome de pichao utilizando tambm grafiteiros
para falar da ao de pichadores, que eram constantemente pautas de reportagens e denncias.
Eles varam as madrugadas em Fortaleza com tubos com tinta spray na mo,
pichando muros e objetos. So os grafiteiros que agem em grupos que denominam
de gangs. Usam uma gria criada no calor das incurses noturnas, que traduz parte
do sentimento de revolta contra a ordem estabelecida. (O Povo, 21 de setembro de
1990, p. 10A).
patamar. Pichar e grafitar sem permisso crime, de acordo com a Lei No 9605 de Legislao
Ambiental promulgada em 12 de setembro de 1998. A referida lei leva em conta o atentado
contra o patrimnio privado e pblico.
A imprensa tem clamado inutilmente, o povo, por todos os meios, tem reclamado
providncias, no se trata, na realidade, de um fenmeno insupervel. Basta para
coibir o abuso, a ao conjunta das autoridades. A polcia, principalmente. Os
rapazes tm de ser contidos. (O Povo, 12 de maio de 1991, p. 11A).
Para Gitahy (1999) elas tm suas primeiras aparies nas pinturas rupestres das
paredes das cavernas da antiguidade, passando por tmulos dos faras do antigo Egito,
pinturas romanas encontradas em Pompia, nos grafismos dos primeiros cristos em
catacumbas de Roma, nos pintores muralistas mexicanos do sculo XX que expunham suas
artes pela cidade.
Na Idade Mdia os padres utilizavam o piche como material para realizar
pichaes (da o termo pichao). Revolucionrios e rebeldes de todo o mundo se utilizavam
da pichao em seus fins de ataque, crticas e divulgao de seus ideais, a exemplo temos a
revolta dos estudantes de Paris em maio de 1968, quando o spray teve papel importantssimo
na comunicao de suas ideias. Em vrios momentos da histria, o homem se utilizou tambm
de pichaes para exibir declaraes para afetos e desafetos ou registrar nomes e codinomes
de seus autores, em letras legveis ou enigmticas.
O estilo de pichao que me proponho a estudar, diz respeito quele que ganha o
nome de charpi e tem sua letra estilizada. Essa letra muitas vezes mudada, enrolada
criativamente e/ou se utilizando de desenhos. Isso se justifica para escapar ao olho vigilante e
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punitivo dos transeuntes que atravessam a cidade. Escapar dos olhares vigilantes e punitivos
de que fala Foucault (2010) e cujos autores se associam em grupos que vo se autodenominar
gangues de pichadores. Quase sempre estampando ao lado dos seus charpis as siglas de sua
gangue.
A explicao mais divulgada e conhecida que essa vertente de pichao surge
em Nova York na dcada de 1960 e difunde-se para todos os grandes centros urbanos do
mundo. Para Viana (2007):
arte feitas e assinadas muitas vezes com letras estilizadas parecidas com os charpis que os
pichadores se utilizam.
Observam-se tambm pichaes que utilizam imagens de desenhos que
representam o charpi do pichador, so os chamados grapichos (GITAHY, 1999, p. 30), como
uma forma hbrida entre pichao e grafite. Para exemplificar, cito o charpi do Jr. Caveira,
pichador que fundou por volta de 1988 a A.B. (Abandonados do Bairro), que acoplava o
desenho de um crnio em suas letras estilizadas. Alm de detonar a sigla de sua gangue, a
A.B. criou a prtica entre algumas gangues em Fortaleza de numerar seus componentes: o
cabea o nmero 01 ou 1, muito presente essa numerao ao lado de charpis, justamente
para indicar liderana.
curioso observar que o fenmeno das gangues juvenis parece obedecer, em nvel
nacional, uma certa cronologia. Um levantamento realizado sobre as gangues de
Belm indica que a motivao mais evidente para a sua formao a pichao. A
atividade do roubo inicia-se devido a necessidade de aquisio dos sprays para a
grafitagem e, posteriormente se intensifica com a necessidade de ficar nos pano.
(DIGENES, 1998, p. 152).
Uma coisa que eu no gosto t roubando, nem se envolvendo com essas gangues
que so violentas, isso eu posso me orgulhar, com ns aqui da S.A. (Sujando e
Anarquizando) no tm esse jogo no. Graas a Deus nosso negcio s pichar
mesmo, somos da paz, eu e o Agulha tivemos a oportunidade de entrar em um
prdio que tinha seis bicicletas, se fossemos ladres no tinha ficando uma,
oportunidade, o que no falta. Depois a gente fica recordando. Tem hora que a
gente bonzinho, mas tem hora que somos uns demnios. (PANGO, entrevista em
14 de maro de 2010).
Fonte 16 A Melhor Ns
Fonte: Arquivo pessoal, 2010.
Muitos entendem ser a pichao vertente do grafite, sendo a pichao uma forma
primitiva que no evoluiu (PEREIRA, 2008, p. 33). No decorrer do tempo essas expresses
foram se distanciando, tornando-se antagnicas. A mdia, pesquisadores e opinio pblica no
faziam a mesma confuso de outrora no uso da mesma nomenclatura. Hoje, o grafite
reivindicado, considerado e cristalizado como arte, h tempos invadiu galerias e museus.
visto muitas vezes, com o discurso do poder pblico e de ONGs, como sendo inclusive uma
possvel alternativa no combate a pichao, numa tentativa de converter saberes,
criatividade e agilidades dos pichadores para uma expresso na esfera da arte, possibilitando,
assim, tirar os jovens da criminalidade e das gangues. Essa constatao se faz to atual, que
no decorrer da escrita deste texto, os dinamismos desses movimentos se fazem presentes e
uma nova lei acaba de ser sancionada na diferenciao entre pichao e grafite,
descriminalizando e classificando o grafite como arte em detrimento a pichao que continua
criminalizada e passvel de punio. As lojas especializadas em tintas no podem mais vender
sprays a menores de dezoito anos de idade e, no rtulo do produto em questo, deve haver a
indicao que pichao crime.
A lei da proibio nas vendas de sprays no novidade em Fortaleza, em maro
de 1991 foi aprovada uma lei na cmera dos vereadores, sancionada pelo ento prefeito Juraci
Magalhes regulamentando a venda de sprays. O fato que a lei regulamentando a vendas de
sprays mais uma que passa em branco na memria dos fortalezenses. Melhor dizendo, passa
51
em negro, vermelho, azul, de todas as cores que as gangues utilizam para rabiscar as paredes.
(O POVO, 22/11/1991, p. 3D).
Seria ento a diferenciao entre grafite e pichao que uma arte e outra no? E
como se explica a frase clebre divulgada entre os pichadores nos murais de variadas cidades
brasileiras: pichar arte correr faz parte! Ou o nome de gangues como Rebeldes da Arte
Proibida, Arte Condenada, Artistas dos Muros, entre outras. Isso no seria uma reivindicao
por parte de alguns pichadores que a pichao tambm seja classificada como arte?
Espordicas discusses se pichao arte tambm se fazem presentes entre a opinio pblica,
mdia ou em raros convites para os pichadores participarem de exposio em galerias ou
museus. Muitas vezes utilizam-se as expresses artistas marginais, artistas do crime que
tambm so temas de anlises por pesquisadores como Oliveira (2009) que intitulou sua
dissertao sobre os pichadores cariocas e paulistas em: PiXao: Arte e Pedagogia do
Crime. No pretendo me atrever nesse vis se a pichao arte ou no, entendo ser plausvel
o raciocnio de Maffesoli (1996) em pensar a vida como obra de arte, nesse sentido os dribles,
astcias, aprendizados e vivncias intensas dos corpos em sua arte-manhas da vida so
manifestaes artsticas, ou como diz Oliveira (2009) obras de arteiros.
Como afirmei, a tarefa de tentar diferenciar, enquadrar ou classificar as expresses
pichao e grafite no das mais fceis. O certo que essas expresses se cruzam,
assemelham-se e distanciam-se. Em vrios momentos, confraternizam e em outros so
totalmente antagnicas. O dinamismo dessas expresses no permite enquadramentos
simplrios. Uma no melhor que a outra, mesmo muitos afirmarem que pichao uma
vertente arcaica, feia, suja e que no evoluiu do grafite que embeleza e permite que
jovens se recuperem com a possibilidade de abandonar as gangues e a marginalidade, no
toa muitos grafiteiros so ex-pichadores que abandonaram suas antigas aes e migraram
para a esfera da arte urbana, marginal ou como querem enquadrar constantemente o
grafite.
Compreendo o difundido discurso dos formadores de morais, que todo pichador
deveria linear e progressivamente tornar-se um grafiteiro errneo e falso moralista, despreza
o conhecimento da multiplicidade, pluralidade dos sujeitos e movimentos sociais. Estes
52
Inicialmente, pichava meu nome Renato, o Iron pichava Dnis e o Baleia era o
nico que pichava seu prprio apelido, isso somente de giz de cera. Lembro-me de
uma vez que pichei com o Dnis as caixas da empresa de telefonia na Av. Baro de
Studart, prximo Coelce, ele de um lado pichou o nome Dnis, e do outro lado,
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pichei Renato. Nessa poca, a minha comunidade nos criticou muito por isso, ento
resolvemos pichar com apelidos. Quando comecei a pichar, Pirado, Pois e toda a
galera da DR j eram famosos no colgio em frente minha casa, o Joaquim Albano.
A FG surgiu em 1988, nesse perodo, j estvamos muito conhecidos no meio da
galera da pichao, mas de forma individual. O Baleia estudava no colgio So
Jos (Centro), onde conheceu a galera dos outros bairros. Atravs dos contatos do
Baleia, conhecemos o Rape (RM), mas nesse momento a pichao utilizava o A de
Anarquia e as letras da galera da Quadra j eram muito conhecidas, por isso
ratifico que no foi o Rape que iniciou a pichao em Fortaleza, porque a
influncia do Rio de Janeiro atravs do Rape veio depois. Na Feirinha da
Gentilndia, o Rape convidou todo mundo para pichar R.M., mas resolvemos fundar
nossa prpria organizao, entretanto essas organizaes foram criadas a partir da
influncia do Rape, assim como outro estilo de letras e a lngua do pichador. Baleia
aprovava quem entrava na F.G. dos seus contatos no colgio So Jos; Iron trouxe
muita gente do colgio Brasil e eu decidia outras solicitaes. (RAPOSO F.G.
entrevista em 03 de dezembro de 2009).
10
Raposo nome conhecido entre os pichadores fortalezenses, muito pelo fato de ter formado uma das mais
conhecidas gangues do incio de 1990 (F.G. Feras dos Grafiteiros e P.C.M. Pichadores Contra o Mundo),
proporcionando que esse pichador sempre fosse convidado a conceder entrevistas imprensa sobre o movimento
da pichao.
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mais a cidade, de picharem com mais ousadia escalando marquises e alturas dos prdios e a
lngua das slabas invertidas que os pichadores vo se apropriar. Segundo Rape, essa lngua
tem origem do bairro carioca do Catete onde era utilizada por estudantes contrrios ao regime
militar, tendo assim a denominao de lngua do TTK, afirmao que se assemelha a
constatao da pesquisa realizada por Oliveira (2009, p. 160) sobre os pichadores cariocas.
Em Fortaleza, essa forma de linguagem ganha o nome de lngua do cru (Cf. glossrio O
Povo, 18 de julho de 1990, p. 1B) e que vai originar a denominao charpi (s vezes escrita
com X) que utilizada no s em Fortaleza, mas em diversas cidades brasileiras.
A fama de Rape como iniciador da pichao fortalezense bastante conhecida no
meio dos pichadores, chegando ao ponto de influenciar o surgimento de falsrios que se
identificavam como o prprio, inclusive com aparies no Youtube e assinando perfeitamente
o charpi desse afamado pichador. Depois de buscas, especulaes e debates em torno do
paradeiro desse protagonista da pichao de Fortaleza, o verdadeiro Rape foi localizado
(graas aos debates nas comunidades do Orkut), hoje em dia adepto de uma conservadora
igreja protestante e reside em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Em breve passagem a
Fortaleza (devido ao falecimento de Rol, seu tio, tambm ex-pichador) gentil e prontamente
fez questo de conceder uma entrevista em 28/12/2009 para alguns amantes da histria da
pichao, entre eles eu, Fuga R.M., Pirata R.M., Carioca E.R., Kakinho G.U.P e Raposo
F.G. Nessa entrevista Rape relata seu trajeto inicial como pichador de Fortaleza, sugerindo a
suspeita que a memria dos pichadores insiste em ratificar.
Tudo comeou por volta de 1986, nesse tempo quando eu cheguei do Rio a
Fortaleza, devido minha me mandar eu pra c, pra casa da minha av que morava
aqui, que l no Rio eu dava muito trabalho pra minha me, a quando eu dava
trabalho aqui minha av me mandava de volta, e ficou nessa por uns dois anos, a
na ltima vez que eu vim pra c, eu conversando com uma prima minha, ela me deu
uma ideia: por que tu no ensina as pessoas daqui a gostar do que tu gosta? Eu
disse pra ela que no suportava Fortaleza, os caras no gostavam do que eu
gostava, no tinha amigos aqui, aquela coisa de jovem, muita adrenalina, no
entanto com essa ideia da minha prima eu disse: isso a! Ento entrei em contato
com os caras da minha rua, comecei a falar com eles a respeito da pichao, como
que era, como a gente fazia no Rio, comecei a dar uns nomes pra eles, tu bota
esse nome aqui, tu bota esse nome, voc assim, a foi, comeou assim, e eu me
lembro que no comeo a R.M. (Rebeldes da Madrugada) tinha seis componentes, foi
Rape, Rol, Ira, Maligno, Choque, Demo e bem depois o Mak, era o mascote (por
ser na poca o mais jovem), esses seis eram da mesma rua que eu morava na casa
de minha av, foi a que surgiu a R.M., eu j vinha com esse conceito do Rio, todo
pichador tem que ter uma gangue e sigla, ento foi a que eu criei a R.M. Quando
nos comeamos a pichar, eu achei muito fraco, mal saamos, foi quando minha
me me chamou de volta pro Rio e l eu resolvi criar outra gangue com a sigla E.R.
(Esquadro Rebelde), eu dizia que no ia assinar com R.M. achando ela fraca, no
tinha vingado, ningum pichou. Foi ento que meu tio, o Rol, me ligou e disse que
os malucos de Fortaleza estavam pichando, nessa poca eu passei pouco tempo no
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Rio, e minha me me mandou de volta pra Fortaleza, quando eu voltei notei que as
pessoas estavam querendo sair, tinham poucos, mais os que tinham estavam
querendo ser famosos, serem conhecidos como pichador. (RAPE, entrevista em 28
de dezembro de 2009).
escolas, hospitais, igrejas, carros, nibus e at em cavalos soltos transeuntes nas madrugadas,
nada escapa da ao. (O povo, 12/07/1991, p. 6A).
Grafiteiros picham contra burguesia. Um dos garotos dessa tribo urbana afirma,
com ar grave, que pichar um ato de protesto contra essa burguesia que quer tomar
conta de Fortaleza. Ns que estamos tomando a cidade, avisa Mak-RM, ou
Mak da gang Rebeldes da Madrugada. (O Povo, 21 de setembro de 1990, p. 10A).
Para se ter uma ideia, alguns grafiteiros confidenciaram que o barato agora
pichar carro de luxo, tudo contra a burguesia. Os smbolos iconogrficos chegaram
at mesmo ao prdio do Hospital da Polcia Militar. (O Povo, 09 de agosto de 1990,
p. 10A).
Foto 18 ns!
Fonte: Arquivo pessoal, 2010.
tem que ter coragem para ao e numa incontrolvel pulso de curiosidade aventureira que
requer a pesquisa parti nesse itinerrio.
A primeira ao foi fazer uma consulta na internet e as comunidades do Orkut,
vasculhando por quaisquer informaes sobre encontros ou reunies, principalmente de gangues
como a E.D.T. (Espritos das Trevas) ou S.A. (Sujando e Anarquizando) respectivamente gangues
do Slayer e Pango. Por observar h muitos anos seus charpis sempre renovados nos murais da
cidade, percebia que eram pichadores da ativa h bastante tempo, os quais, inclusive, conheci no
comeo da dcada de 1990 e muito me admirava os seus tantos anos de picha (ao). Com certeza,
pichadores que picham h mais de vinte anos, como estes, teriam muitos relatos e histrias para
contar, sendo de grande interesse entrevistar tais personagens. Ao pesquisar no Google sobre o
nome de Slayer, Esprito das Trevas imediatamente surgiram na tela notcias, das quais uma chegou
a chocar-me bastante: notas de Lamentos pelo seu recente falecimento. Acabara de saber que um
dos meus possveis entrevistados no estava mais entre ns. Slayer um nome muito conhecido em
Fortaleza, no s no meio dos pichadores, mas por muitas pessoas fora desse circuito, sendo
inclusive personagem em matria de revistas e seu nome muito reconhecido nos locais onde
comento acerca de minha pesquisa. Seu charpi bem legvel, facilitando sua leitura mesmo por
pessoas fora do movimento da pichao, o que contribui para sua fama, alm do tempo que
detonou e transgrediu nessa cidade, construindo-se em torno de sua personalidade uma lenda
urbana.
Sabendo que iria frequentar muitas outras reunies entendi, por precauo (para
evitar possveis conflitos com a polcia), que deveria ter uma declarao da faculdade que
comprovasse se tratar de uma pesquisa de mestrado, a fim de que, em eventual abordagem
policial, fazer-me conhecido pesquisador. Para no denunciar que meu alvo era grupo de
pichadores, solicitei que o documento a ser redigido fosse relacionado a grupos urbanos. Por
habilidades e astcias dos pichadores de esquivar-se desses conflitos, junto com uma carga de
vista grossa dos policiais, felizmente nunca precisei usar de tal artifcio.
Percebi que a ida a essas reunies na atualidade permitia adentrar mais no mundo
da pichao, favorecendo rever e conhecer pichadores de destaque, abrir meu leque de
conhecimento e amizades, estabelecer mais contatos, agendar possveis entrevistas alm de
uma carga extra de empolgao para ir em frente com essa pesquisa das prticas culturais e
educativas dos pichadores fortalezenses.
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Existiam feirinhas em quase todos os dias da semana, entre as mais citadas esto a
de tera-feira na praa da Gentilndia, quinta-feira na praa do jornal O Povo, sexta-feira na
praa da Cidade dos Funcionrios, Sbado na praa da Treze de Maio e domingo na praa da
Aerolndia.
Alm dos momentos de encontro nas feirinhas noturnas nas praas, os pichadores
antigos apontam as manhs e tardes de segunda a sexta-feira na praa da Igreja do Corao de
Jesus, no Centro da cidade. O local era ponto de passagem que facilitava o encontro em
horrios de intervalos do trabalho ou ento gazeando, saindo ou indo para aula. Nesse espao
tambm se poderiam comprar talas ao menor preo, trazidas na mochila ao final da tarde
por pichadores que provavelmente trabalhavam em lojas de venda de sprays.
Outro espao muito citado de encontros era o estacionamento do shopping
Iguatemi aos sbados noite. Antes do fechamento do shopping, os pichadores migravam
para a feirinha da Treze de Maio, praa/feirinha que dificilmente deixa de ser lembrada em
entrevistas. So citadas muitas outras praas e lugares movimentados da cidade, intensamente
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Pelos relatos, esses encontros eram intensos e dirios, muito forte na memria
de antigos pichadores, principalmente por ser rememorado um momento de uma juventude
ativa, rebelde, com intensos riscos e emoes, rica de amizades, aventuras e andanas por
toda a cidade, sendo comuns relatos como do Falco, afirmando que quase no paravam em
casa. Diuturnamente percorrendo pontos diversos da cidade, era ato facilitador para a
locomoo o hbito de no pagar passagem do transporte coletivo, pois os pichadores tinham
a prtica de fazer traseira.
iniciarem os primeiros dilogos, convocarem dias 11, horrios e locais. Mas, destaco que
todos os membros teriam papel decisivo nos encaminhamentos, na verdade , trata-se de
um sistema hierrquico orgnico, que torna cada um indispensvel na vida do grupo.
Alis, essa reversibilidade que assegura o dinamismo constante do conjunto.
(MAFFESOLI, 2006, p. 145).
A reunio da G.D.R. costumava ser na praa da Treze de Maio, tinha uma feirinha
l, se encontrvamos e depois se isolvamos numa calada onde s ficava a gente,
s os G.D.R. e l a gente conversava sobre o movimento da pichao, quem estava
se garantindo que a gente poderia chamar pra G.D.R., sobre os cortes, onde
aqueles que estavam mais parados ou iam ser aposentados ou cortados.
(RAMON, entrevista em 18 de setembro de 2010).
11
Essas reunies costumavam ser mensais ou em caso de convocaes ordinrias, como na entrada de novos
membros, a expulso de algum membro, a escolha dos novos cabeas, entre outras pautas relevantes para a
gangue.
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pichadores se aposentariam, quais seriam os novos cabeas, quem seria cortado de sua
gangue caso no estar pichando ou por ter feito algo em desacordo com a postura tica de
cada uma delas. Expulsei um cara que ao lado da pichao colocou viva a maconha, por
que no colocar viva a educao, viva ao esporte, viva nossas queridas. (POIS , entrevista
em 10 de dezembro de 2009).
Essas reunies serviam tambm para que todos os pichadores da gangue, que
eram quase sempre de diferentes bairros, se conhecessem e ficassem amigos numa
solidariedade muito intensa, em que as mximas um por todos e todos por um ou o que
desse para um dava para todos eram ressaltadas, tornando cada um responsvel por todos e
por cada um [...] proximidade, sentimento de participao em um todo, responsabilidade, eis
a algumas caractersticas essenciais em ao dos grupos que Maffesoli vai denominar
grupo-seita (MAFFESOLI, 2006, p. 145).
Foto 23 Momento de uma reunio. Essa imagem uma relquia e pode ser encontrada em
comunidades de pichadores do Orkut. Segundo relato de Pango e Fuga, que esto presentes nessa
imagem, essa foto foi captada em uma tarde na praa da Treze de Maio, provavelmente registrada em
1992, ao final de uma reunio, em que pode ser percebido ao centro, uma camisa branca aberta
estampada com o nome da gangue Gerao Urbana.
Fonte: Arquivo Fuga, 2009.
espao de tempo e numa maior extenso possvel. Que os seus membros ajudassem na
competio estabelecida entre as gangues para reconhecerem qual pichava mais a cidade. A
divulgao do charpi e nome da gangue era fundamental.
E depois o tempo foi passando e eu fui apagando pichao da minha vida, apaguei
geral, no olhava mais pichao, mas sempre me recordando dos amigos e sempre
ficava me perguntando o que ter acontecido com o Sucata? O que aconteceu com o
Falco? O que aconteceu com toda aquela galera? Foi a que dezoito anos
parado surgiu a ideia de se fazer esses encontros onde o Fuga foi fundamental,
foi ele que me ligou e comeou a falar de pichao, que s quem viveu aquele
tempo sabia dessas particularidades e isso me despertou a curiosidade de saber dos
meus amigos, que vivemos tanto tempo juntos, foi a partir da que tivemos a ideia de
organizarmos esses reencontros, um conhecia fulano e foi convidando e a coisa foi
ficando grande, a internet foi fundamental, onde a gente pode ter o contato com
muitas pessoas e assim foi dando certo os reencontros. Eu me senti muito feliz, v a
galera toda, homens formados, pais de famlia, dezoito anos que eu no via essa
galera e ainda acabei conhecendo pichadores mais antigos que eu, que no tive o
privilgio de conhecer na poca, por, exemplo o Raposo, que era um cara que eu
admirava e que nunca tinha visto ele pessoalmente, o Caveira tambm e reencontrei
vrios amigos. (RAMON, entrevista em 18 de setembro de 2010).
Sapato Redley, carteira da OP, blusa frouxa, calo pequeno; assim garotos andam
pela madrugada, andam com muito medo. Latidos de cachorro so os sons que
ouvem e os acompanham durante toda a madrugada. s vezes eles andam sozinhos,
e em casa, seus pais, principalmente suas mes esto orando por sua segurana,
por que nunca em momento algum conseguimos esconder de nossos pais o que
estvamos fazendo; no concordavam, mas continuavam orando e orando por nossa
segurana. Que Deus proteja nossos filhos! Nossos olhares eram atentos as
marquises e como alcan-las. O Jet, quando cheio normalmente dentro do
calo ficava camuflado, mas quando j esvaziando fazia um barulhinho na
caminhada; o medo da noite nos deixava atentos e acordados, de repente, um
cidado, tambm com medo da noite atravessava nossa caminhada, mas tudo bem,
todos tem medo da noite. Enfim, hora da ao, o grande momento, hora que todos
subiam juntos, realizarmos o que queramos desde o incio da caminhada. Agora
era esperar a surpresa da descida, a dificuldade de raciocnio, descamos de
qualquer maneira, as vezes sem cautela, por que o medo da noite chegava ao pice,
no sabamos o que nos esperava embaixo, desa vez, tudo bem!
Passos rpidos na calada, como se nada tivesse acontecido, entrvamos na
primeira esquina, ah! Samos da mira. Mas a avenida era o nosso foco, por isso
retornvamos logo. O medo tambm nos impulsionava para algo cada vez maior,
ento chegava o grande momento, o prdio que ningum havia escalado, o
perigo era muito grande, mas precisvamos subir. Arranho nos joelhos da descida
anterior sangrava, mas no doa muito. Mais uma vez, pichamos em um lugar
indito; mas desta vez, havia algum j esperando embaixo; ento com o poder de
um ilusionista conseguamos sumir, num piscar de olhos o medo da noite nos fazia
desaparecer.
Chegvamos em casa, ainda ofegantes; ento podamos ouvir a respirao de alvio
de nossos pais. Eles sobreviveram! (RAPOSO, texto postado na comunidade do
Orkut: Pichao 80/90 fortal-ce. Acesso, 05/12/2009. (grifos meus).
Conseguem camuflar-se como um camaleo, escalam os prdios numa rapidez silenciosa que
necessita fora e presteza de dar inveja a muitos alpinistas ou atletas, e sem utilizarem
nenhum artifcio de segurana, so os verdadeiros homens-aranha. Ao amanhecer, o Estado,
os donos de casas e prdios pichados ficam a se lamentar por nada terem visto ou escutado a
ao ousada e transgressora, amaldioam, xingam, punem e ameaam tirar a vida caso
surpreendam os pichadores, num dio de um co raivoso.
Quando eu pichava andava demais, percorria meia Fortaleza nas madrugadas, era
cho, parecia um doido! Eu pegava os nibus s para ficar rodando, filmando os
meus charpis e dos outros espalhados pela cidade. Observava as ruas, avenidas, o
movimento ao redor, tambm observava possveis cantos de meter meus nomes,
canto que ningum tinha metido, descia pela traseira dos nibus, quando via
um prdio doido, passava por ele umas dez vezes, vendo, pesquisando como
subir, se rolasse sujeira como que eu ia escapar, lembro que pichei muito
prdio doido nesses esquemas, prdio que ningum tinha subido. (PUGA,
entrevista em 12 de outubro de 2010).
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muita fama, muita amizade gente que eu no sei nem quem . Gente que nunca vi
e diz que me conhece, gente me reconhece por todo canto de Fortaleza, bairro que
eu nunca nem fui gente fala comigo, me cumprimenta e fala no meu nome.
(FALCO, entrevista em 18 de setembro de 2010).
Eu conheo Fortaleza na palma da minha mo, tive o privilegio de pichar ela toda.
Com certeza, a pichao contribuiu para que eu conhea toda a cidade, so muitos
anos de noites andando por ela toda. Quantos bairros j fui para festas e na volta
pichei? So praticamente todos! Fazer amizades com os caras, quando eu saa para
pichar, por exemplo, os caras que moravam em umas reas que a gente no
conhecamos levavam ns para sairmos para l e o cara que no conhece onde
eu moro eu que levo, fica mais limpeza, os caras j conhecem os esquemas e
eu era mais cauteloso, eu sabia chegar num cara do bairro e eu saa naquele
bairro, com certeza eu conheo a cidade todinha. (PANGO, entrevista em 14 de
maro de 2010).
Pichadores Contra o Mundo, Pichadores Mutantes, Artistas dos Muros, Feras do Xarpi, entre
outras.
Os componentes das gangues de pichadores prezam pela criatividade, elegem os
charpis, letras, alturas, nomes de gangues, escapadas mais criativas e bem boladas. At
mesmo o nmero de quantos componentes deve ter uma gangue arquitetado, como a R.M.
que sempre foi composta por dezenove componentes, nmero exato das letras que formam
Rebeldes da Madrugada.
Assim como manusear o spray necessita de habilidade e rapidez, os pichadores
necessitam desenvolver velocidade de ao, criao, raciocnio e resoluo de problemas.
Velozes criatividades! Transformam seus prprios corpos em motor (mquina de assalto),
isto , produtor de velocidade. (VIRILIO, 1996, p. 19). Em centsimo de segundos, num
piscar de olhos metem seus charpis, estabelecem estratgias de fuga, escaladas e at mesmo
mentiras bem estruturadas so criadas com velocidade e segurana para que consigam escapar
em momentos de serem pegos em flagrante delito. Para Nietzsche, as mentiras exigem
criao, inveno, astcia:
Por que, na maior parte das vezes, na vida cotidiana os homens dizem a verdade?
Certamente, no porque um deus proibiu a mentira. Mas primeiramente porque
mais cmodo, pois a mentira exige inveno, dissimulao e memria. (Por isso
Swift diz: Aquele que conta uma mentira raramente percebe o pesado fardo que
toma sobre si; deve, com efeito, para manter uma mentira, inventar outras vinte.)
Em seguida, porque em circunstncias simples vantajoso falar francamente:
quero isso, fiz aquilo e assim por diante; portanto, porque a via da obrigao e da
autoridade mais segura que a da astcia. (NIETZSCHE, 2006, p. 77).
Fui pegar um prdio com o Ruge, passei um tempo s tomando mastruz com leite,
provocando sangue, os homens desceram a gente do dcimo segundo andar na
sola, as escadas era cheia de canas, cassetete, chute, peia e o azar foi que
eu escorreguei, o cana bem grando me puxou pelo p e eu ca, e era cana
demais, era chute nas costelas, na cara, cortou meu beio no meio, meus olhos todo
roxo parecia um urso panda, todo inchado, tanto que na delegacia o delegado disse
foi assim: Libera esses caras a que se no vai dar foguete pra ns, vocs quase
mataram os caras! Manda esses caras pra casa. Foi peia! Isso foi em 1995, por
a, passei mais de uma semana de molho s tomando mastruz com leite, rapaz eu
fiquei com trauma, no podia ver uma viatura que saa correndo, vou parar, isso
no d pra mim no, a galera chegava em minha casa e eu pedia era para eles
irem embora, no queria nem saber desse papo de pichao, fechava as portas, o
porto, num podia ver ningum com papo de charpi que eu ficava cabreiro,
doido, passei quase um ano parado. Passei tambm trs dias na delegacia de
Messejana, fomos para o terminal da Messejana de madrugada e a cavalaria pegou
ns, os outros de menor foram liberados, eu como era maior fui pra delegacia,
tomei um banho de tinta, a cavalaria despejou a tinta vermelha em mim, tanta tinta
que eu parecia o satans, a compadre cheguei na delegacia e os presos, os
canas, todos rindo da minha cara, os canas arranjaram uma gasolina l para
ver se tiravam tanta tinta e lavaram minha cabea. Gelado gasolina, cara! E os
canas se abriram, puta que pariu, o comdia. Eu achei muito bom os caras
fazerem isso contigo! Os caras diziam l fazendo hora com a minha cara. E l tinha
um homicida, gente fina o cara, dividia a comida dele para ns, as bolachas, um
cara dez anos. (PANGO, entrevista em 14 de maro de 2010).
Os pichadores em suas sadas arriscam suas vidas nos perigos e alturas nas
madrugadas, ao mesmo tempo que jogam com suas vidas, buscam a vitalidade, estar vivo e
ativo. O medo de uma queda, de uma certeza caso sejam surpreendidos que, possivelmente
sero presos, agredidos, pintados com seus prprios sprays e at mesmo assassinados nas
madrugadas, exige dos pichadores que desenvolvam suas percepes e sentidos na selva
citadina. Seus corpos sentem e respiram os ares e movimentos da cidade. pura contradio,
aspectos da errncia tribal. Concomitantemente que os membros tribais esto atentos,
conectados a vrias tecnologias como a velocidade nas mudanas da internet ou robtica, os
sujeitos no conseguem se distanciar de suas origens, do primitivo, do arcaico, do instinto
animal. o que Maffesoli chama de:
Entrar no movimento fcil, mas se garantir que eu quero ver, diz Lenhador, 17,
lder do grupo Filhos das Trevas, (F.D.T.), sem estudar em protesto pelas greves e
devido as reformas dentro da escola[...]. Garantia para eles significa aquele que
picha mais e sobretudo, em pontos mais altos. Eu perguntei matando minha
curiosidade e de companheiros da redao: como vocs picham em lugares to
altos? Com escadas ou sobem de que maneira? No, nada de escada. Fazemos uma
escada humana, at encontrarmos um ponto de apoio. Por isso, que a gente chama
de se garantir refora Jota, 17, grupo grafiteiros da madrugada (G.M.). (O Povo, 24
de novembro de 1991, p. 2B).
Uma fuga muito doida foi na Joo Pessoa, e conto por est vivo aqui e agora, tava
eu e o finado Pavo, ns tava l subindo um prdio por uma escadinha l, e o nego
metendo charpi e um cara da janela do outro lado puxou o cano, e sem
mentira nenhuma, deu um tiro que onde bateu a bala na parede pegou poeira nos
meus olhos, na mesma hora eu pulei e o cara continuou metendo bala, foi um
milagre de Deus termos escapado, bala finou na minha cabea. Eu sempre
comentava esse acontecido com o Pavo. A eu cego por causa da poeira, sa no
pinote por cima das casas, pulando e o cara metendo bala, descarregou cinco
balas, Deus me defenda! O cara botou mesmo pra esbagaar, pra matar mesmo!
Essa at hoje eu tenho na memria. Nunca tive sorte nessa Joo Pessoa, at pouco
tempo atrs andei levando umas cacetadas l. Furei minhas mos nos pega ladro,
avenida que eu tenho azar. E tambm j levei uma queda de uma janela num
prdio na Aguanambi, que eu segurando nas venezianas da janela e ouvi um pivete
81
dizer que tinha gente l, o pai fechou a janela e meus dedos vieram juntos, diz a
que eu ca do terceiro andar, me levaram pra assistncia l e eu todo arrebentado,
essa a tambm faz parte da histria. (PANGO, entrevista em 14 de maro de 2010).
Certa vez no ano de 1993, Eu, Fred, Dik, Loro, Faisca, Flinston, Coisa e outros
GUP samos pra fazer o Centro, fomos pela Jos Bastos, e bem em frente ao
Giganto onde costumvamos ir para os sons que embalavam os fins de semana.
L tem um prdio com um muro enorme, demos a primeira parada l, pra,
detonar, fazer os famosos murais da GUP. Como ramos muitos, os jets
eram divididos, pichvamos todos ao mesmo tempo quando de repente escutamos os
estampidos de bala, vimos que quem atirava era algum de um taxi, rapidamente
samos correndo disparado, que foram muitos tiros. Mais na frente o Fred, nos
avisa que tinha sido baleado, mesmo correndo, ele foi ficando pra trs, e at que
paramos todos, e vimos que a coisa era sria, ele tinha sido acertado bem no meio
das costas, e perdia muito sangue, a situao foi ficando cada vez pior, pois eramos
muito jovens e estvamos todos muito nervosos, no sabamos o que fazer, foi ento
que o Loro e outro, que no me recordo o nome agora, foi atrs de ligar para uma
ambulncia, e ns ficamos com o Fred esperando socorro. Por sorte, uma
ambulncia ia passando na Jos Bastos e eles pararam, da ento, pegaram ele e
levaram para o IJF, acompanhado de seu Irmo Dik e do Flisnton e ns voltamos
pra casa em orao pedindo por ele. Para finalizar, ele passou cerca de 10 dias
internado, e a bala atingiu um centmetro ao lado da coluna cervical. Por muito
pouco ele no ficou paraltico. Ainda hoje a bala continua alojada prxima de sua
clavcula... Esse sufoco que passamos o que nos faz pensar que quem picha, est
sujeito a passar por momentos como esses. Dia Inesquecvel!!!! (KAKINHO,
postado na comunidade do Orkut: pichao 80/90 fortal-ce em 31 de dezembro de
2009).
As subidas dos prdios, quase sempre escalados pelo lado de fora e tendo apenas
auxlio em apoios como grades, muros, postes, buracos na parede, janelas, cabos de para-raios
e outros artifcios que favoream a escalada o grande momento do xtase, da emoo e da
adrenalina. Os pichadores superam o medo, exercitam seu poder, fora e habilidades tteis. A
nsia quanto mais nas alturas meterem seu charpi e de preferncia em grandes avenidas
melhor, se o canto for indito, isso , que ningum tenha escalado e pichado, melhor
ainda. Caso existam outros charpis o ideal, quando possvel, picharem sempre mais alto dos
que j existem. Superam-se e superam seus pares, o que traz mais fama e ibope para o
pichador. Metem seu charpi de cabea para baixo no topo dos prdios, usam tbuas em
cima dos pregos e grampos dos muros, quebram cercas eltricas, fazem escadas improvisadas,
utilizam os prprios corpos, usam variadas e criativas artimanhas para realizar suas vontades.
A primeira vez que o cara pega um prdio uma coisa que d assim, d uma
suadeira, uma dor de barriga, se o cara for mole ele se caga nas calas. Vou lhe
dizer, at hoje eu sinto isso a, a sensao de voc pegar um prdio um papoco!
o medo de o cara pular, levar um tiro, ser que vai rodar, ser que vai dar
certo, tudo o cara pensa na hora. O prdio mais massa que eu peguei at hoje foi
pela T.S. (Terroristas do Subrbio), eu, Saco, Cachorro, e o Pateta, em frente ao
terminal do Papicu, ns entramos pelo terreno baldio e subimos pelo ombro do
finado Saco, subindo com pega ladro, botamos uma tbua em cima dos pegas
ladres, nesse tempo no tinha cerca eltrica, um esquemo louco mesmo, ficou
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de rochedo, foi o prdio mais massa que eu peguei at hoje, que pena que eles
pintaram mas at hoje quando passo por ele eu me lembro. (PANGO, entrevista em
14 de maro de 2010).
Dentre tantos saberes, o saber ser gil, dos movimentos que, combinados, podem
encontrar o tempo adequado para a defesa ou ataque; os segredos da vida cotidiana:
dobrar uma esquina ou entrar pela porta de um bar. (VASCONCELOS, 2003, p.
318-319).
Alguns dos leitores(as) desta dissertao podem at pensar que eu posso estar
exagerando em relao aos pichadores, mas como explicitado, no resta dvida que esse
grupo social citadino constri e se apropria de saberes com maestria, provam isso
cotidianamente. Diariamente picham os muros e alturas, se fazem presentes e pertencentes
cidade. Sabem tanto de seus saberes e poderes que chegam ao ponto de debochar dos olhares
vigilantes punitivos: Nem ronda d jeito.
prticas culturais desse grupo. To velozes, que muitas vezes estando concluindo um texto,
novos dados, aspectos, imagens e narrativas me chegavam ao olhar e ouvidos, dando a
impresso que poderiam facilmente mudar a minha escrita e percepo. Priorizei, em minhas
apresentaes e reflexes, muitas dessas prticas que foram construdas e estabelecidas na
formao das primeiras gangues de pichadores e que se conservam e so respeitadas at hoje
entre as centenas de famlias de pichadores atuais. Gangues que tomam de assalto a
cidade de Fortaleza em suas aes de ousadia que destroam os controles dos corpos,
driblando e debochando com criatividade e vivacidade as exaustivas vigilncias dessa
fortaleza comunal que continua sendo um campo de armadilhas estendida ao adversrio, mas
este ltimo muda uma vez mais a natureza, passando a ser doravante um inimigo social.
(VIRILIO, 1996, p. 25).
Nesta pesquisa entendi ser importante, informativo e desafiador narrar meu trajeto
em memrias como sujeito participativo e atuante no mundo da pichao. No consegui
desprezar essas informaes que esto mais do que pichadas, esto cravadas em meu corpo,
como um muro de pedra, por isso mesmo os pichadores preferem pichar, difceis de ser
pintadas ou lavadas. Essa memria individual, ou melhor, essas memrias individuais tm
muitos traos comuns na memria coletiva dos pichadores, o que me levou a introduzir em
meus estudos possveis trajetrias, cdigos, normas, regras e marcas da cultura desse grupo,
desconstruindo preconceitos sobre o movimento do charpi. Apresentei os pichadores como
sujeitos mltiplos, oriundos de variadas classes sociais e faixas etrias, diferentemente do que
supem muitos que afirmam que pichao ao de uma meninada inconsequente e rebelde
das periferias. Mltiplas tambm so as motivaes da adeso de sujeitos nas gangues de
pichadores. A busca da fama, da visibilidade social (mesmo que subterrnea), da rebeldia, da
aventura logo destacada, mas no so as nicas, muitas outras motivaes so percebidas,
como a vontade de conhecer gente, amizades, a cidade, a ousadia, o desafio, a superao, o
amor e o prprio desejo de vontade de potncia. Desejos e sentimentos que explicam o risco
dos pichadores em ariscarem suas vidas nas madrugadas vigiadas e punitivas para
vivenciarem uma vida intensa que o movimento da pichao proporciona.
Encarei uma genealogia da pichao, atrevendo-me a uma discusso delicada,
dedicada sobre as marcas, trajetrias, emergncias e embates na Histria sobre a pichao.
Meu corpo foi contaminado de interpretaes sobre variadas problemticas, entre estas
destaquei aproximaes e distanciamentos pertinentes entre os movimentos muito executados
e divulgados em Fortaleza e variadas regies do mundo e que ainda confundidos da pichao
85
e grafite. Destaquei nessa genealogia a forte ligao entre pichao e as escolas, numa forma
inicial de rebeldia, dribles e negao por parte dos alunos a ordens impostas pelo poder dos
ditos professores, com suas regras, normas e limites decadentes. Muito mais contagiante e
desafiador, ao meu modo de ver, que deveramos pensar como Nietzsche em uma
transvalorao dos valores, extrapolando com criatividade, ao e emoo os supostos
limites em uma superao humana contnua.
Apontei variados espaos e momentos de socializao que os pichadores
estabeleceram em suas relaes afetuosas na cidade. Afetos e sentimentos que so ressaltados
no envolvimento das gangues de pichadores, seus membros destacam, valorizam e celebram
as centenas de amizades conquistadas no movimento da pichao. As sensibilidades tcteis e
emocionais so intensificadas na busca da adrenalina na veia, desencadeada na procura de
desafio, superao e por que no dizer, um instante de vida clandestina, que todos ns
desejamos ou entramos em algum momento nas brechas da vida. No sejamos hipcritas! Ou
preferiramos viver ininterruptamente uma vida montona, aptica, sem emoes e aes?
Essa busca por intensidades na vida faz a vida ser intensamente vivida.
Apresentei e analisei saberes e prticas educativas construdas e apropriadas com
o movimento da pichao, em que a criatividade, o olhar observador e atento, o andar e
conhecer a cidade, a ao, o fazer, a emoo, as astcias, os dribles e a intensidade das
percepes so bem presentes. Aspectos que todas as prticas educativas e pedaggicas
deveriam levar em conta em detrimento de uma educao falso moralista, castradora, aptica,
sem emoo, que no valoriza as aes e percepes diversas nas experincias e convivncias
na selva de pedra.
So tantas as perguntas e afirmaes empregadas por pessoas que estabeleo
conversao sobre o tema pichao. Essas afirmaes so quase sempre de repdio, desprezo,
preconceito. Muitas vezes, os pichadores so logo tachados de vndalos e destruidores do
Patrimnio pblico. Um Patrimnio pblico que, muitas vezes no lhes diz respeito, que
imposto a muitas foras pelo poder. Poder que impem maneiras de viver e conviver, que
castra, pune e agride os atrevidos moradores da cidade que ousem em vivncias e riscos. Um
poder que critica e forma opinies, e que, ao mesmo tempo, no conserva e destri os nossos
verdadeiros Patrimnios com muito mais velocidade e facilidade que muitos pichadores
unidos. o jogo de foras.
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O grande jogo da histria ser de quem se apoderar das regras, de quem tomar o
lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarar para pervert-las, utiliz-las ao
inverso e volt-las contra aqueles que as tinham impostos; de quem, se introduzindo
no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-
se-o dominados por suas prprias regras. (FOUCAULT, 2010, p. 26).
GLOSSRIO
ENCARAR - se atrever
ENTURMADOS conhecidos; agrupados
ESCALADAS DE ALTURAS - subir em marquises e prdios
ESCALAR - escalando um prdio
ESCAPADAS fugas
ESQUEMAS criar estratgias que venham a facilitar as aes
ESTILIZADO - mudado o seu modo original
EXTRAPOLAR o mesmo que detonar
FAMLIA denominao dado hoje em dia aos grupos de pichadores, outrora gangues, hoje
famlia
FAZENDO pichando; sair para pichar
FAZER ALTURA pichar em lugares altos
FAZER TRASEIRA - fazer traseira na gria o ato de saltar pela porta traseira do transporte
coletivo para no ter que pagar a passagem
FILHO DE PAPAIZINHO pessoa de classe social mais abastada
FILMANDO - olhando atentamente o ambiente percebendo todo o movimento; pesquisando
FIM DE TALA quando a tinta do spray est prestes a acabar
FINOU - passou perto
FOGUETE - encrenca, confuso
HOMENS - polcia
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METER NOME - meter nome, na linguagem dos pichadores pichar nos muros ou em
qualquer suporte o seu charpi
MORRER extino de uma gangue
MURAL o ato de reunir os componentes de uma mesma gangue para que todos metam
seus charpis num nico muro, que costuma ser de grandes propores e muitas vezes
previamente pintados de branco pelos prprios pichadores, com ou sem autorizao.
Esses murais so referncia e reconhecidos como os murais de uma determinada gangue
MUVUCA enxame; galera; muita gente
PALA - um termo utilizado quando algum sujeito se mostra suspeito; dando na vista; dando
bandeira
PALUDO - aquele que se acha o tal
90
SAIR; SADAS - incurses pela cidade com o intuito de pichar; normalmente um pichador
que mora e conhece uma determinada rea da cidade serve de guia para outros
que no a conhece. Essas sadas tm a finalidade de executar pichaes e depois h uma troca
nos papis
SAIR NA ABA ser convidado para meter nomes utilizando o spray financiado por outro
pichador
SIGLA - so as letras iniciais do nome de uma determinada gangue
SOLA; PEIA - pisa; surra
SONS festas; embalos; biles funk
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12 de maro de 19991
12 de maio de 1991
11 de julho de 1991
12 de julho de 1991
09 de agosto de 1991
22 de novembro de 1991
24 de novembro de 1991
25 de novembro de 1991
95
21 de dezembro de 1991
22 de dezembro de 1991
03 de janeiro de 1992
12 de janeiro de 1993
17 de agosto de 1994
06 de maro de 1999
08 de abril de 1999
Revista:
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