DISSERTAÇÃO - Sanitarismo e Planejamento Urbano

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 174

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE TECNOLOGIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

SANITARISMO E
PLANEJAMENTO URBANO:

ANA CAROLINE DE CARVALHO LOPES DANTAS

DISSERTAO DE MESTRADO

REA DE CONCENTRAO:
FORMA URBANA E HABITAO

ORIENTADORA:
PROF. Dr. ANGELA FERREIRA

Natal, outubro de 2003


ANA CAROLINE DE CARVALHO LOPES DANTAS

SANITARISMO E PLANEJAMENTO URBANO:


A trajetria das propostas urbansticas para Natal entre 1935 e 1969

Dissertao apresentada ao Programa de


Ps-Graduao em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte como parte dos
requisitos para a obteno do ttulo de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo

rea de concentrao:
Forma Urbana e Habitao

Orientadora:
Angela Lucia de A. Ferreira

Natal/RN
2003
SANITARISMO E PLANEJAMENTO URBANO:
A trajetria das propostas urbansticas para Natal entre 1935 e 1969

ANA CAROLINE DE CARVALHO LOPES DANTAS

BANCA EXAMINADORA

_________________________________
Angela Lucia de Arajo Ferreira

_________________________________
Angela Souza

_________________________________
Maria Dulce Picano Bentes Sobrinha

Dissertao defendida em 31/10/2003.


Todo ser humano tem conscincia do passado [...]
em virtude de viver com pessoas mais velhas.
Provavelmente todas as sociedades que interessam
ao historiador tenham [sic] um passado, pois mesmo
as colnias mais inovadoras so povoadas por
pessoas oriundas de alguma sociedade que j conta
com uma longa histria. Ser membro de uma
sociedade humana situar-se em relao ao passado
[...], ainda que apenas para rejeit-lo. O passado ,
portanto, uma dimenso permanente da conscincia
humana, um componente inevitvel das instituies,
valores e outros padres da sociedade humana.

Eric Hobsbawm
AGRADECIMENTOS

Ao final de cada etapa cumprida, o melhor poder olhar para trs e ver que as
dificuldades no importa a dimenso ou a intensidade , vo se diluindo em meio ao
xito de mais uma conquista, tornando-se ofuscadas pelo sentimento de misso cumprida.
O que fica marcado na memria, certamente, so os bons momentos vividos ao longo do
caminho percorrido e, particularmente, todas aquelas pessoas que participaram direta ou
indiretamente da concretizao desse objetivo. So muitos os agradecimentos, no apenas
pelas contribuies tericas e conceituais de importncia imensurvel , mas por cada
palavra de encorajamento e apoio, por cada momento de alegria e descontrao, pelos
gestos de carinho e mesmo pela companhia despretenciosa. Por isso, sintam-se todos parte
dessa vitria.
Primeiramente, agradeo a Deus, luz que me ilumina o caminho e me ajuda a
viver, fora maior que permanece ao meu lado, segurando a minha mo e, muitas vezes,
me carregando nos braos pelos caminhos da vida.
A todos aqueles que fizeram e fazem parte do Grupo de Pesquisa Histria da
Cidade e do Urbanismo, cujo trabalho de levantamento exaustivo nos arquivos e nas fontes
de dados consistiram na principal base de dados para a realizao desta dissertao. Aos
atuais bolsistas Kaliane, Jnior, Hlio e Aline, em especial a Alenuska, anjo da guarda de
todos ns, sempre com um sorriso no rosto e pronta a ajudar. Aos pesquisadores George,
pela importante contribuio nos encaminhamentos do trabalho e Anna Rachel, por estar
sempre alerta s novas informaes, partilhando-as prontamente, e, sobretudo, pela
companhia maravilhosa ao longo dos anos da pesquisa e pela eterna amizade.
coordenadora, professora, orientadora e amiga, Angela Ferreira, que, dentre incontveis
contribuies, a principal responsvel por me introduzir e me conduzir pelos caminhos
do conhecimento e da academia; obrigada pela pacincia, pelos ensinamentos e pela sua
amizade.
minha famlia, instituio maior e mais slida da minha vida, gestora do meu
carter e dos meus princpios, e principal incentivadora. Ao meu pai, Altemiles, minha
me, Dulciana e ao meu irmo, Andr, agradeo pela companhia, pelo amor, pelo apoio
muitas vezes silenciado e, sobretudo, pelo exemplo. Em especial minha mainha
querida, fortaleza que me transmite ao mesmo tempo a garra e a serenidade, impulsionando
e encorajando a superao dos obstculos e permanecendo ao meu lado em todos os
momentos, vibrando comigo a cada vitria.
Ao meu namorado, Leandro, presena to especial na minha vida, por participar
intensamente, mesmo distncia, das hesitaes e dos xitos, pelo incentivo incondicional
em todos os momentos, pelo amor, carinho e pelos inmeros momentos felizes que
passamos, blsamo na hora da dificuldade.
s minhas vrias famlias. Aos Carvalho Lopes Dantas, minhas avs, meus tios,
primos e agregados, por me mostrarem a cada dia exemplos de vida e o valor da nossa
unio. Em particular s minhas avs Maria e Zefinha, aos tios Denise e Tuta, e aos primos
Joo Lus e Isabel, pelo lugar que ocupam na minha vida desde sempre. Aos Gurgel Leite,
pelo apoio e pela acolhida maravilhosa, proporcionando-me desfrutar de importantes e
inesquecveis momentos. Aos Ponte Dias, famlia escolhida, pela amizade e pelo carinho
com que me acolheram.
s minhas scias maravilhosas, e, sobretudo, amigas do peito, Ticiana e Aninha,
pela alegria e alto astral constante, amenizando os ossos do ofcio e tornando o meu dia-
a-dia, certamente, mais feliz. Em especial a Tici, pelo apoio e pela ajuda na minha
ausncia.
A todos os colegas e professores do mestrado, pelas contribuies tericas e lies
de vida que me foram passadas. Em especial a Alex, companheiro nessa luta, pela ajuda e
solicitude nos momentos de maior necessidade, e aos professores Maria Cristina de Morais
e Marcelo Tinoco, amigos e orientadores do estgio docente, que proporcionaram e
coordenaram a minha primeira experincia em sala de aula.
s professoras Dinah Tinoco e Dulce Bentes, pelas importantes contribuies
sugeridas na avaliao do projeto de pesquisa e na banca de qualificao, e pelo incentivo
dado ao trabalho.
Ao CNPq, pela concesso de bolsa nos dois anos do Mestrado.
Enfim, a todos aqueles que amenizaram, de alguma forma, as angstias e dvidas
que surgiram ao longo dessa trajetria, o meu muito obrigada.
RESUMO

O Escritrio Saturnino de Brito, criado em 1920 sob a orientao sanitarista do


engenheiro Saturnino de Brito, registra uma vasta atuao por todo o territrio nacional,
mesmo aps o falecimento do fundador, em 1929, momento em que assumiu a presidncia
o tambm engenheiro Saturnino de Brito Filho, comprometido em continuar a obra do seu
pai e em assegurar os seus princpios administrativos, tcnicos e urbansticos, at o incio
da dcada de 1980, quando do fim daquela instituio. A escassez de estudos tericos
acerca desse Escritrio, aliada ao vulto das contribuies que prestou em inmeras cidades,
orientou o enfoque deste estudo para a sua atuao em Natal, onde permaneceu entre 1935
e 1969, projetando, executando e administrando obras de saneamento e os servios a ela
associados, perpassando por diversos contextos polticos, econmicos, sociais, culturais e
urbansticos periodizados, no trabalho, em trs momentos. Pretende-se, portanto, analisar
como o Escritrio Saturnino de Brito se comportou e se adaptou s mudanas conjunturais
que se desenrolaram em cada um desses momentos, e, mais especificamente, observar as
formas de interveno adotadas os princpios, os instrumentos e a abrangncia ,
visando, assim, verificar a transio do iderio urbanstico sanitarista para o planejamento
urbano como estratgia desenvolvimentista em mbito local.
ABSTRACT

The Escritrio Saturnino de Brito (Saturnino de Brito Office), created in 1920


under the sanitaristic guidance of the engineer Saturnino de Brito, has a vast record of
works throughout the whole national territory, even after the death of its founder, in 1929
at which point his son, and also engineer, Saturnino de Brito Filho, assumed the head of
the company , with a compromise to continue his fathers work and assure his
administrative, technical and urbanistic principles up until the early 1980s, when that
institution came to an end. The scarcity of theorical studies about this Office, alongside the
importance of the contributions it made in countless cities, oriented the focus of this study
on its performance in Natal, where it remained from 1935 to 1969, designing, executing
and managing sanitationist works and the services associated with them and going through
several political, economical, social, cultural and urbanistic contexts periodicized in this
work into three moments. Thus, it is intended to analyze how the Saturnino de Brito Office
behaved and adapted itself to the conjunctural changes that unfolded into each of these
moments, and more specifically, to observe the forms of intervention adopted the
principles, the instruments and the scope aiming to verify the transition of the sanitaristic
set of urbanistic ideas into the urban planning as a development strategy on a local level.
SUMRIO

Lista de Figuras 07

Lista de Quadros 10

Lista de Siglas 11

INTRODUO 13

PARTE I 31
Do Urbanismo ao Planejamento Urbano: aspectos terico-conceituais

Captulo 1 - Teoria e prtica urbanstica no Brasil (1930 1970) 32

Captulo 2 - Escritrio Saturnino de Brito: Sanitarismo e Planejamento Urbano 51

PARTE II 72
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal

Captulo 3 Primeiro Momento: As idias urbansticas orientando o crescimento da 73


cidade (1935 1939)

Captulo 4 Segundo Momento: Os problemas urbanos definindo as aes sobre a 122


cidade (1940 1960)

Captulo 5 Terceiro Momento: A institucionalizao do planejamento visando o 172


desenvolvimento urbano (1961 -1969)

CONSIDERAES FINAIS 224

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 232

ANEXOS 244

Anexo 01 Modelo de ficha para a coleta de dados empricos nos jornais locais 245

Anexo 02 Informaes acerca dos entrevistados 246


7

LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Engenheiro Saturnino de Brito 54

Figura 02: Planta do saneamento de Santos 57

Figura 03: Saturnino de Brito Filho 63

Figura 04: Mapa que ilustra as cidades em que o Escritrio atuou 65

Figura 05: Bairro Cidade Nova, 1904 78

Figura 06: Plano Geral de Obras de Saneamento de Natal - Blueprint, 1924 79

Figura 07: Plano Geral Sistematizao de Natal, 1929 80

Figura 08: Foto area de Natal, 1936 87

Figura 09: Plano Geral de Obras, 1936 93

Figura 10: Reservatrio R.1 97

Figura 11: Reservatrio R.2 98

Figura 12: Reservatrio R.3 100

Figura 13: Caixa em Torre situada em Petrpolis 100

Figura 14: Estao depuradora projeto 102

Figura 15: Estao depuradora foto 103

Figura 16: Avenida do C.G.1 104

Figura 17: Escadaria na Avenida do C.G.1 105

Figura 18: Estao Elevatria do D.5 107

Figura 19: Edifcio Sede da Repartio de Saneamento 110

Figura 20: Estao de Ferro Central do RN 111

Figura 21: Aeroporto e estao de passageiros 113

Figura 22: Perspectiva do Grande Hotel 114

Figura 23: Bairro Residencial 116


8

Figura 24: Detalhe rua fundo-de-saco 119

Figura 25: Base area norte-americana dcada de 1940 128

Figura 26: Vista area Lagoa Manoel Felipe e Quartel do Exrcito, dcada de 130
1940

Figura 27: Construo do Coletor C.1, dcada de 1940 141

Figura 28: Abastecimento dgua de Natal, reviso, 1952 142

Figura 29: Reservatrio R.4-T 142

Figura 30: Reservatrio R.2-T 143

Figura 31: Abastecimento dgua de Mossor 148

Figura 32: Abastecimento dgua de Caic 148

Figura 33: Barraces que funcionavam como escolas 153

Figura 34: Praia de Areia Preta 156

Figura 35: Vista area de Ponta Negra 156

Figura 36: Projeto do Hotel 157

Figura 37: Projeto do Palcio das Secretarias 157

Figura 38: Vista area do bairro do Tirol em 1951 160

Figura 39: Vila Ferroviria planta utilizada pelo Escritrio Saturnino de Brito 162

Figura 40: Barraco em que funcionavam as escolinhas de alfabetizao 182

Figura 41: Cidade da Esperana 189

Figura 42: Estao Rodoviria Presidente Kennedy 189

Figura 43: Hotel Internacional dos Reis Magos 191

Figura 44: Hotel Internacional dos Reis Magos noite 192

Figura 45: Reviso do abastecimento dgua de Natal, 1961 210

Figura 46: Ampliao do Reservatrio R.1 211

Figura 47: Ampliao do Reservatrio R.3 212


9

Figura 48: Ampliao da rede dgua do bairro da Ribeira 213

Figura 49: Abastecimento dgua dos bairros de Morro Branco e Nova 214
Descoberta

Figura 50: Construo do Coletor Geral C.G.3 215

Figura 51: Cidade Campestre do Jiqui abastecimento dgua 216

Figura 52: Cidade Campestre do Jiqui usina 216

Figura 53: Cidade Campestre do Jiqui estao de tratamento 217

Figura 54: Cidade Campestre do Jiqui loteamento 219


10

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Arquivos, fontes e documentos histricos catalogados 24


Quadro 2: Relao dos assuntos e dos respectivos sub-assuntos que orientam a 28
coleta de dados empricos
Quadro 3: Programas englobados no Plano de Investimentos do Governo e os 199
respectivos volumes de investimento (em percentual e em valor
absoluto)
11

LISTA DE SIGLAS

Laboratrio Hidrotcnico Saturnino de Brito HIDROESB

Escritrio Saturnino de Brito ESB


FEBRAE
Federao Brasileira de Associaes de Engenheiros
UPADI
Unin Pan-Americana de Associaciones de Inginieros
Departamento de Saneamento do Estado DSE

Comisso de Saneamento de Natal CSN

Repartio de Saneamento de Natal RSN

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas IFOCS


CAERN
Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande do Norte
CIAMs
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna
RPAA
Regional Planning American Association
Departamento do Urbanismo DU

Caixa de Aposentadoria e Penses dos Servios Pblicos do Estado CAP

Banco Interamericano de Desenvolvimento BID

Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste SUDENE

Assessoria Municipal de Planejamento AMPLA

Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura CREA


DAE
Departamento de guas e Esgotos
Banco do Nordeste do Brasil BNB

Plano Estratgico de Desenvolvimento PED


PAC
Plano de Ao Concentrada
Banco Nacional de Habitao BNH
SERFHAU
Servio Federal de Habitao e Urbanizao
USAID
United States Agency for International Development
(Aliana para o Progresso)
Comisso Estadual de Desenvolvimento CED

Conselho Estadual de Desenvolvimento CED

Comisso de Estudos para a Amrica Latina CEPAL


FDES
Fundo de Desenvolvimento Econmico e Social
Companhia de Servios Eltricos do Rio Grande do Norte COSERN
12

Companhia Telefnica do Rio Grande do Norte TELERN

Companhia de guas e Solos do Rio Grande do Norte CASOL


FUNDHAP
Fundao da Habitao Popular
Instituto de Previdncia do Estado IPE

Superintendncia de Hotis e Turismo SUTUR

Planejamento e Assessoria Administrativa Ltda. PLANASA

Assessoria de Planejamento, Coordenao e Controle APCC

Cooperativa Habitacional COHAB

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas DNOCS


PLANASA
Plano Nacional de Saneamento
Companhia de Fomento Econmico do Rio Grande do Norte COFERN

Secretaria Municipal de Planejamento SEMPLA


CAERN
Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande do Norte
INTRODUO 14

Dos encaminhamentos da pesquisa: justificativa, questes,


hipteses, objetivos e estrutura do trabalho

Nessa transio de sculo e de milnio, emerge, em meio a uma suposta crise da


era do que foi chamado otimismo ilimitado no futuro,1 a valorizao do passado,
revelando uma mudana nos valores e atitudes sociais e retratando uma nova relao entre
o homem e o espao que ele habita seja na escala mundial, at o mbito regional e local.
Esse novo contexto corrobora o surgimento de uma srie de reflexes e estudos voltados
para o passado que, ao colocarem o tempo como a categoria de anlise fundamental para
a compreenso do perodo atual (ABREU, 1998, p. 2), buscam interpretar os fatos
histricos, remetendo-os atualidade.
No Brasil, diferentemente do que ocorreu nos pases centrais onde o legado
histrico faz parte do presente e inspira o futuro , dissociou-se o passado da idia de
inovao e progresso, da esperana em um futuro melhor, negando e desconsiderando os
vestgios histricos (ABREU, 1998). Recentemente, no entanto, esse quadro vem sofrendo
modificaes substanciais. Alm das polticas de revitalizao, preservao, recuperao e
restaurao de paisagens urbanas caractersticas de perodos anteriores, institudas pelas
administraes locais e estaduais em inmeras cidades do pas, ressalta-se a diversidade de
pesquisas, livros e trabalhos desenvolvidos que tm a histria e o registro da memria das
cidades brasileiras como enfoque central. Nesse sentido, pode-se destacar as obras de
Leme (1999), Ribeiro e Pechman (1996); Dak e Schiffer (1999); Bresciani (2001), entre
outros, alm dos artigos publicados nos anais dos Seminrios de Histria da Cidade e do
Urbanismo promovido a cada dois anos pela ANPUR2 , que acabam por sistematizar
uma coletnea de estudos de casos, de diferentes autores, tratando das obras e dos seus
idealizadores, bem como do pensamento vigente em determinados perodos, nas vrias

1
Como afirma Le Goff (1990, p. 14), essa crise desencadeou-se a partir de inmeros acontecimentos
ocorridos ao longo do sculo XX, pois, apesar da revoluo tecnolgica e cientfica, intensificaram-se
tambm as guerras, as fomes, os holocaustos que, pensava-se, faziam parte do passado, aliados agora
capacidade de auto-destruio, aos problemas ecolgicos em escala mundial etc., decepcionando
sobremaneira a sociedade contempornea e estimulando a revalorizao do que j foi realizado pelos seus
antecedentes.
2
Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.
INTRODUO 15

cidades brasileiras. Embora o enfoque metodolgico varie entre anlises, narrativas e


estudos comparativos, as obras vm enfatizar a importncia deste tema na atualidade.
consensual entre a vasta historiografia brasileira o fato de que a questo da
higiene inicialmente evidenciada pela necessidade de combater as epidemias , durante
um longo perodo ocupou o cerne do processo de configurao das cidades brasileiras,
determinando, alm de modificaes fsicas no traado urbano, novas relaes, novas
formas de sociabilidade e novos hbitos de vida, a criao, dentro das esferas
administrativas, de instituies e leis voltadas ao espao urbano. A preocupao com a
higienizao originou, portanto, novas estruturas administrativas e novos instrumentos de
interveno, fiscalizao e represso sobre o uso e a ocupao do espao pblico e privado
das cidades. Afirmava-se, assim, a preponderncia da ao pblica, organizando e
sistematizando os meios tcnicos e racionais de interveno sobre o espao urbano.
Os (novos) problemas urbanos, evidenciados principalmente quando as
epidemias prorrompiam e faziam grande nmero de vtimas, exigiram no
somente a formulao de novas palavras, saberes e campos de conhecimento
para se tornar compreensveis, mas a reformulao ou mesmo a criao de
rgos tcnico-administrativos que pudessem enfrent-los. Superando as velhas
estruturas herdadas da legislao administrativa e urbana portuguesa, esses
rgos foram no somente campo de atuao, mas esferas privilegiadas de
legitimao de categorias profissionais que arrogariam para si a capacidade de
conduzir o processo de modernizao do pas (FERREIRA et. al., 2003c).

Inmeros estudos tm se centrado no ... meio social, poltico, cultural e


profissional dos reformadores, identificando [...] os grupos profissionais, suas trajetrias
individuais e as instituies polticas mobilizadas (RIBEIRO, 1996, p. 17), porm, a
questo da institucionalizao do planejamento urbano e os fatores a ela agregados, como
a formao de um corpo de urbanistas permanente nas esferas administrativas e a
legitimao do planejamento e do urbanismo como instrumentos de ao governamental,
embora estudados, ainda no foram suficientemente contemplados pela historiografia
urbana brasileira.
Dentre aqueles estudos citados primeiramente especialmente dos que tratam dos
reformadores, destacam-se vrias iniciativas de sistematizao e de anlises acerca da
vasta atuao do engenheiro Saturnino de Brito por todo o Brasil, as quais ressaltam a
importncia do seu legado sanitarista para a consolidao do urbanismo moderno
brasileiro. Destarte, todavia registra-se a ausncia de anlises ou pesquisas direcionadas
INTRODUO 16

produo do Escritrio Saturnino de Brito que, fundado por ele em 1920, atuou em mais
de cem cidades em todas as regies do Brasil sob a presidncia de Saturnino de Brito
Filho, continuador da obra do pai aps o seu falecimento em 1929.
Em Natal, o Escritrio permaneceu por mais de trinta anos, projetando,
executando e administrando as obras de saneamento, e assumindo, por vezes, a
responsabilidade de gerenciar o crescimento fsico da cidade. Essa atuao, que teve incio
com a elaborao do Plano Geral de Obras na segunda metade da dcada de 1930
conhecido e amplamente mencionado pela historiografia local , teve a sua continuidade
assegurada ao longo das dcadas de 1940, 1950 e 1960, fato que no foi levado em
considerao pelos autores que abordaram esse perodo da histria de Natal. Entretanto,
registre-se os estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do
Urbanismo,3 os quais foram sistematizados no livro Uma cidade s e bela: a trajetria do
saneamento em Natal (1850 1969), em vias de publicao, que retoma o processo
histrico de constituio urbana da cidade a partir das aes higienizadoras e saneadoras
do final do sculo XIX at a dcada de 1960. As anlises contidas nesse livro sugerem
que, ao passo que na dcada de 1930, com a elaborao do Plano Geral de Obras, o
Escritrio detinha o poder de antecipar e orientar o crescimento fsico da cidade,
projetando-o em funo da melhor soluo do seu saneamento, a partir da dcada de 1940,
Natal passou a apresentar uma crescente urbanizao e inmeros problemas urbanos4, o
que, dentre outros fatores, o levou a participar do processo de legitimao do
planejamento urbano como instrumento de ao do Estado sobre as cidades. Cabe
destacar, entretanto, que, embora se reconhea a relevncia dessa obra no sentido de
iniciar essa discusso, observa-se que algumas questes no foram suficientemente
contempladas, instigando o aprofundamento tanto das anlises sobre a atuao do
Escritrio em Natal, entre 1935 e 1969, como do prprio processo de urbanizao da
cidade nesse perodo. Entre as vrias questes levantadas a partir do citado trabalho,

3
Mais informaes acerca do trabalho desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do
Urbanismo sero fornecidas no item a seguir, Dos caminhos percorridos.
4
Cabe ressaltar, aqui, que esses problemas urbanos nem sempre refletem as suas caractersticas essenciais,
mas so formulados a partir das necessidades estratgicas do poder pblico e da ideologia das elites
dominantes, como se ver ao longo deste trabalho.
INTRODUO 17

algumas citadas a seguir nortearam tanto o estudo realizado, cujos resultados so aqui
apresentados, como a prpria estrutura desta dissertao.
1. De que forma o Escritrio Saturnino de Brito, continuador do iderio
sanitarista de Saturnino de Brito, apreendeu e incorporou, em sua atuao em Natal, os
novos conceitos e prticas urbansticas que emergiram no pas, a partir da dcada de 1930,
e os traduziram em seus projetos e obras ao longo de sua trajetria de mais de trinta anos
nesta cidade?
2. Como o Escritrio se comportou frente ao novo contexto marcado pelas altas
taxas de crescimento demogrfico e de rpida expanso da cidade, pela consolidao dos
problemas urbanos e pela emergncia de novos agentes que se firmaram no processo de
produo e gerenciamento do solo urbano?
3. De que maneira a institucionalizao do planejamento na esfera administrativa
estadual, na dcada de 1960, influenciou a atuao do Escritrio Saturnino de Brito?
Essas indagaes suscitaram a definio de alguns pressupostos iniciais de suma
importncia para o encaminhamento da discusso que este trabalho se prope a realizar.
Na historiografia brasileira, encontram-se opinies divergentes acerca da idia de
transio do urbanismo para o planejamento urbano. Tais divergncias remetem-se tanto a
aspectos temporais como locais. Contudo, de acordo com alguns autores que se mostram
concordantes, no Brasil cuja maior influncia no campo das anlises das questes
urbanas veio da Frana , pode-se observar que as duas terminologias, juntamente com os
princpios e os modos de interveno imbricados, marcam, de uma forma geral, dois
momentos distintos. Um primeiro momento, entre fins do sculo XIX e incio do sculo
XX, foi marcado pelas intervenes urbansticas que, inicialmente pontuais, passam a
planos mais complexos. A partir de meados do sculo XX, identifica-se um segundo
momento, quando alguns elementos conjunturais fizeram emergir e se consolidar como
papel do Governo o planejamento urbano, incorporando novas questes na teoria e na
prtica relativas ao espao urbano. Neste quadro, a atuao do Escritrio Saturnino de
Brito em Natal sugere a contnua atualizao, ao longo dos anos, s teorias e s prticas de
interveno sobre o espao urbano, perpassando o urbanismo e o planejamento urbano,
sem se desvincular, todavia, dos princpios sanitaristas que orientaram a sua criao e a
INTRODUO 18

sua trajetria nas vrias cidades brasileiras.5 O Plano Geral de Obras, elaborado entre 1935
e 1939 pode ser citado como marco de uma mudana de postura do Escritrio, ao aliar os
princpios sanitaristas a novos elementos do nascente movimento modernista em
arquitetura e urbanismo, incorporando projetos arquitetnicos de estilo moderno e uma
proposta de expanso para a cidade, que primava pela criao de um bairro residencial
baseado nos conceitos de unidade de vizinhana e na trama de Radburn (MIRANDA,
1999) desenvolvida nos Estados Unidos em 1929.
As conseqncias da instalao das bases norte-americana e brasileiras em Natal
durante a II Guerra Mundial, materializaram-se inicialmente em um intenso crescimento
populacional e de atividades urbanas que, a partir da segunda metade da dcada de 1940,
exacerbaram a carncia de infra-estrutura e fizeram emergir os chamados problemas
urbanos. Nesse momento, a implantao e os servios de saneamento atravessaram uma
grave crise, em funo, dentre outros fatores, da ineficcia dos instrumentos urbansticos
existentes, que relegavam o crescimento da cidade ao dos produtores privados do solo,
culminando em uma ocupao acelerada e desordenada. No sentido de ordenar e gerenciar
a expanso urbana e, assim assegurar a eficcia das redes de gua e de esgotos, o
Escritrio sugeriu ao Governo Estadual a criao, em 1952, do Departamento de
Saneamento do Estado (DSE), rgo autrquico, que, alm da ampliao dos servios para
o interior do Rio Grande do Norte, ficaria responsvel pela anlise e aprovao dos
projetos para novos loteamentos e arruamentos da cidade, perfilando a atividade de
planejador urbano.
No entanto, na medida em que o planejamento, em sua vertente econmica, se
firma como tcnica de administrao pblica, institucionaliza-se na estrutura
administrativa local e delineia os rumos do planejamento urbano, a problemtica urbana
passa a ser interpretada e tratada a partir da perspectiva de um progresso econmico e,
mais especificamente, de preparao para a almejada industrializao. Nesse processo, o
saneamento conforme era visto pelo urbanismo sanitarista perde o seu lugar central
como orientador e norteador das aes pblicas destinadas ao espao fsico da cidade, fato
que limitou sobremaneira os propsitos e as atividades do Escritrio Saturnino de Brito.

5
Cabe ressaltar aqui que, embora se reconhea neste trabalho a relevncia da atuao do Escritrio
Saturnino de Brito em mais de cem cidades brasileiras, o objeto de estudo da pesquisa se concentra no
INTRODUO 19

Colocadas essas questes e hipteses, o presente estudo tem por principal


objetivo compreender, de forma mais aprofundada, a atuao do Escritrio Saturnino de
Brito em Natal entre os anos de 1935 e 1969, atravs da identificao e da anlise, no
decorrer dessa trajetria, das diversas teorias e experincias urbansticas e sua relao com
o processo de urbanizao e de institucionalizao do planejamento urbano da cidade.
Mais especificamente, pretende-se compreender os princpios que nortearam as atividades
do Escritrio na cidade ao longo do perodo em estudo; os diversos contextos histricos do
processo de urbanizao de Natal que delinearam as aes do Escritrio; as propostas de
interveno e gerenciamento do uso e ocupao do espao urbano que se desenrolaram
entre as dcadas de 1930 e 1960 em Natal, seus princpios, mtodos, agentes e aes
concretas; e o lugar do Escritrio e do urbanismo sanitarista na transio do urbanismo
para o planejamento urbano na prtica e no iderio urbanstico local. Dessa forma, busca-
se dar novos elementos para suprir a escassez de estudos acerca do Escritrio, de um modo
geral, e da sua permanncia em Natal, em particular, e contribuir para o debate proposto
pela literatura que envolve a relao urbanismo e planejamento urbano no Brasil.
A fim de contemplar tais objetivos e as questes iniciais, esta dissertao foi
estruturada em duas partes distintas. Na Parte I, Do Urbanismo ao Planejamento Urbano:
aspectos terico-conceituais, ser apresentada a trajetria do pensamento, dos conceitos e
das aes urbansticas desenvolvidos entre 1930 e 1970 no Brasil, que indicaram perodos
determinados, destacando o lugar e as contribuies do urbanismo sanitarista, sobretudo
no que se refere atuao do Escritrio Saturnino de Brito, nessa trajetria. Nesse sentido,
essa parte conta com dois captulos: Teoria e prtica urbanstica no Brasil (1930 1970)
(Captulo 1) e Escritrio Saturnino de Brito: Sanitarismo e Planejamento Urbano
(Captulo 2).
Na Parte II Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da
urbanizao de Natal, ser evidenciada a relao entre as prticas urbansticas
abordadas na Parte I , o processo de urbanizao da cidade e as posturas e procedimentos
adotados pelo Escritrio Saturnino de Brito, entre 1935 e 1969. A sistematizao e anlise
dos dados possibilitaram a identificao de uma periodizao em trs momentos, que
pontuaram a urbanizao da cidade ao longo do perodo em estudo. Em cada momento

estudo de caso de Natal.


INTRODUO 20

sero destacados: o contexto histrico, as formas de interveno sobre o espao fsico das
cidades, as instituies e instrumentos que viabilizavam e norteavam essas aes, e o lugar
e a participao do Escritrio na produo e no gerenciamento do espao urbano. A fim de
contemplar as anlises propostas, a Parte II contar com trs captulos: Primeiro
Momento: As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)
(Captulo 3), Segundo Momento: Os problemas urbanos definindo as aes sobre a
cidade (1940 1960) (Captulo 4) e Terceiro Momento: A institucionalizao do
planejamento visando o desenvolvimento urbano (1961 -1969) (Captulo 4).

Dos caminhos percorridos: procedimentos, conceitos bsicos,


fontes primrias e secundrias

Esta dissertao consiste em um desdobramento da pesquisa Modernizao e


configurao urbana: um estudo sobre as transformaes da cidade de Natal (1889
1945), desenvolvida, desde 1998, pelo Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do
Urbanismo, do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, do qual faz parte a autora. As anlises elaboradas pelo grupo vm sendo norteadas
por trs vertentes principais: as aes das elites e as transferncias, tradues e
ressonncias das idias urbansticas; a introduo de inovaes tcnicas e a estruturao
urbana; e as intervenes urbansticas e as transformaes no espao fsico da cidade.
Entretanto, estudos realizados acerca do saneamento6 considerado como uma
inovao tcnica que introduziu mudanas importantes na estrutura urbana, justificou
intervenes urbansticas e se constituiu em um meio para concretizar o iderio da elite
poltica e intelectual da poca , apontaram para a criao de rgos e para as mudanas
institucionais ocorridas entre 1935 a 1969. Esses rgos, vinculados administrao e
implantao dos servios de gua e esgotos e tendo frente o Escritrio Saturnino de
Brito, acabaram por influenciar a forma de gerenciamento da cidade, determinando,
tambm, implicaes urbansticas como restries com relao ocupao do solo urbano

6
Sistematizados no livro Uma Cidade S e Bela: a trajetria do saneamento de Natal (1850 1969),
citado anteriormente.
INTRODUO 21

em Natal, suscitando, ento, um novo eixo norteador, Instituies Pblicas e


Planejamento Urbano que, relacionado s trs vertentes iniciais da pesquisa, orientou a
elaborao desta dissertao.
No intuito de desenvolver e aprofundar as anlises acerca desse eixo norteador, e
ainda de corresponder aos objetivos estabelecidos e contemplar as questes apresentadas,
prestando assim as contribuies almejadas, o trabalho orientou-se sobre alguns
procedimentos de estudo, listados a seguir:
1. Reconhecimento e anlise dos conceitos de urbanismo e de planejamento
urbano, a partir de uma reviso bibliogrfica, identificando os momentos em que os
diversos contextos histricos, princpios, mtodos, agentes e formas de interveno
marcaram a disseminao de cada um desses campos disciplinares, a fim de ilustrar a
transio do urbanismo para o planejamento urbano.
2. Estudo acerca do chamado urbanismo sanitarista, retomando as idias e as
intervenes que caracterizaram essa prtica, a fim de fundamentar a anlise da atuao do
Escritrio Saturnino de Brito em Natal.
3. Verificao e anlise dos vrios elementos que caracterizaram os contextos
histricos por que passou Natal no perodo em estudo, visando estabelecer uma
periodizao baseada nas diferentes conjunturas econmicas, polticas, sociais e culturais e
que influenciaram diferentemente o processo de urbanizao de Natal e a atuao do
Escritrio.
4. Observao e estudo das diversas propostas e aes urbansticas que se
desenrolaram ao longo do perodo em estudo, analisando os seus princpios, mtodos,
agentes e formas de interveno, alm da repercusso na configurao urbana e no iderio
urbanstico local, no intuito de ilustrar a transio urbanismo/planejamento urbano nas
intervenes e no iderio urbanstico local.
5. Anlise da atuao do Escritrio Saturnino de Brito em Natal, entre 1935 e
1969, pontuando: os princpios que permitem identificar a vinculao ao urbanismo
sanitarista; as formas de atualizao s diversas condies histricas e aos novos
princpios urbansticos que emergiram ao longo do perodo; as formas de interveno
sobre o espao fsico da cidade e o respectivo poder de implementao e influncia sobre a
configurao urbana e no iderio urbanstico local.
INTRODUO 22

Para dar conta dessas anlises, contou-se com algumas tcnicas e instrumentos de
pesquisa, cujo inventrio e sistematizao podem contribuir para o embasamento e
operacionalizao de futuros estudos no mbito da histria urbana e urbanstica acerca da
cidade de Natal, bem como apontar para a importncia das fontes e dos acervos utilizados
para a reconstituio histrica no s do processo de configurao urbana, mas da prpria
evoluo da cidade com relao aos aspectos polticos, econmicos, sociais e culturais,
prestando-se, portanto, para o desenvolvimento de inmeros temas e objetos de estudo.
Cabe ressaltar que grande parte das informaes utilizadas neste trabalho foram
coletadas e sistematizadas pelo Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do Urbanismo,
que dispe, atualmente, de um vasto acervo que conta com publicaes, documentos
oficiais, fotografias, mapoteca, registro de entrevistas, alm de um banco de dados
informatizado (programa Word Access) contendo as informaes levantadas na pesquisa
emprica nos jornais locais alm de imagens e mapas digitalizados. Observa-se que, ao
mesmo tempo em que os estudos realizados e os dados obtidos pelo Grupo de Pesquisa
possibilitaram a elaborao desta dissertao, as anlises aqui desenvolvidas e a coleta de
material indito alimentaro o acervo documental e as pesquisas do Grupo, a partir da
descoberta de novas fontes e da indicao de caminhos para novas investigaes.

Reviso bibliogrfica

Essa etapa contou com um levantamento bibliogrfico cujo principal objetivo foi
fundamentar teoricamente o trabalho. Realizou-se um apanhado em meio produo da
historiografia urbana brasileira com enfoque nas definies, nos princpios e nas prticas
urbansticas que se desenvolveram ao longo do perodo em estudo no Brasil, no sentido de
compreender as definies de urbanismo e de planejamento urbano, e ainda, identificar a
passagem do primeiro para o segundo, a fim de nortear a periodizao proposta neste
trabalho e contribuir na elaborao da anlise de cada momento.
Como urbanismo, tomando por base a definio estabelecida por Adauto Cardoso
(1997), entende-se
... um saber com pretenses cientficas que emergiu no final do sculo XIX,
tendo como objeto a cidade como uma totalidade, que sistematizou e a
organizou num corpo nico e numa interveno sistemtica e coordenada de
INTRODUO 23

todos os saberes e prticas que j se debruavam sobre o urbano (CARDOSO,


1997, p. 13-14).

Cabe ressaltar o carter preventivo e controlador do urbanismo, ao tentar


antecipar as transformaes fsicas das cidades em funo do processo de urbanizao.
As intervenes caractersticas do urbanismo foram substitudas, em meados do
sculo XX pela prtica do planejamento urbano, entendido como o
... conjunto articulado de intervenes que se organiza no segundo ps-guerra, a
partir de um arcabouo de planificao territorial (regional e urbano) articulado
em torno de um sistema de planejamento coordenado pelo Estado central
(CARDOSO, 1997, p. 14).

O planejamento urbano se legitima como uma ... forma especfica de ao ou


de discurso , do Estado sobre o espao urbano, caracterizada por uma suposta viso geral
ou de conjunto (VILLAA, 1999, p. 181), munida das noes de ordem, racionalidade e
eficincia, e enxergando a cidade, antes de mais nada, como um ... organismo econmico
e social, gerido por um aparato poltico-institucional (VILLAA, 1999, p. 211-212).
Foram retomadas tambm publicaes e artigos acerca dos princpios e das obras
elaboradas por Saturnino de Brito, a fim de embasar a anlise da atuao do Escritrio
Saturnino de Brito e o estudo da sua trajetria em Natal. As leituras, juntamente com a
anlise de documentos e artigos escritos por Saturnino de Brito Filho, possibilitaram a
identificao do seu iderio e fundamentaram o conceito de urbanismo sanitarista que,
extrapolando a funo de introduzir as redes de guas e esgotos, previa a interveno e
ordenao do espao fsico a partir da racionalidade tcnica das redes e dos equipamentos
sanitrios, orientando-se, para tanto, na viso organicista da cidade e articulando as vrias
dimenses urbanas ambiental, esttica, viria etc. em funo do seu saneamento.
Recorreu-se, ainda, a publicaes da historiografia local, a fim de configurar os
diferentes quadros histricos polticos, econmicos, sociais e culturais que marcaram os
trs momentos do processo de urbanizao de Natal. Entendendo-se como urbanizao o
processo de crescimento fsico da cidade associado ao desenvolvimento econmico a
partir, sobretudo, da industrializao ou da preparao da cidade com este fim.
Processo que, em que se pesem seus atributos de carter adaptativo, constitui
essencialmente um processo de dominao, que tem no espao sua varivel
estratgica e que estabelece desde suas origens relaes de complementaridade
assimtrica entre diferentes reas e grupos sociais [...] apoiando-se, todavia,
INTRODUO 24

sempre, no controle e na organizao social do trabalho (SCHERER, 1995, p.


65).

Em paralelo, foram utilizados trabalhos anteriores apresentados em congressos


cientficos em co-autoria com outros pesquisadores, assim como teses, dissertaes,
monografias e relatrios tcnicos que tinham como referncia o processo de constituio
do espao urbano de Natal.

Pesquisa documental

Em virtude da escassez de fontes bibliogrficas que abordassem o processo


histrico de formao e configurao urbana da cidade de Natal, recorreu-se a uma
pesquisa emprica e levantamento de dados em algumas fontes primrias e secundrias
junto a arquivos pblicos e privados locais e arquivos situados em outros estados do pas,
de suma importncia para o trabalho, que, em grande parte, est contida no acervo
documental do Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do Urbanismo. Os arquivos e as
fontes de informao visitados e registrados, encontram-se sistematizados no quadro 1.

Quadro 1: Arquivos, fontes e documentos histricos catalogados.


Arquivos Pblicos Locais
Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande Jornais locais de publicao poca;
do Norte: documentos oficiais do Governo do Estado e
publicaes avulsas.
Arquivo do Municpio de Natal -
Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Jornais locais de publicao poca;
Norte: documentos oficiais do Governo do Estado e
publicaes avulsas.
Arquivo da Cria da Catedral de Nossa Jornal A Ordem
Senhora da Apresentao:
Fundao Jos Augusto: Imagens e fotografias da cidade de Natal
Biblioteca Central Zila Mamede: Jornais A Repblica (Microfilmado), Dirio de
Natal (Microfilmado) e Tribuna do Norte
(Microfilmado).
Arquivo da Cmara Municipal de Natal: Atas e relatrios de reunies e atos da Cmara
Municipal
Arquivo da Assemblia Legislativa do Rio -
Grande do Norte
Arquivos Privados Locais:
INTRODUO 25

Tribuna do Norte: Jornal Tribuna do Norte


Dirio de Natal: Jornal Dirio de Natal
Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande Relatrios tcnicos e material cartogrfico
do Norte:
Arquivos em outros Estados:
Fundao Biblioteca Nacional (RJ): Publicaes avulsas, Jornais locais.
Arquivo Nacional (RJ): Material cartogrfico
Laboratrio Hidrotcnico Saturnino de Brito Publicaes do Escritrio Saturnino de Brito;
(RJ): Relatrios tcnicos; Material cartogrfico.
Biblioteca do Clube de Engenharia (RJ): Revistas e Boletins de Engenharia; Obras
Completas de Saturnino de Brito; Publicaes
avulsas.
Arquivo Geral do Municpio de Vitria (ES)
Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo
Biblioteca Municipal Mrio de Andrade (SP)
Biblioteca da Companhia Pernambucana de Teses e Dissertaes acerca do Escritrio
Saneamento COMPESA (PE): Saturnino de Brito

Fonte: Elaborao prpria.


Nos arquivos foram catalogadas, consultadas e pesquisadas as fontes primrias
bsicas do trabalho, como os jornais de circulao local no perodo de referncia: Jornal A
Repblica, O Dirio de Natal, Tribuna do Norte, A Ordem, Folha da Tarde e Jornal de
Natal; algumas publicaes avulsas; os documentos oficiais: Mensagens de Governo e
Leis e decretos de Governo; os relatrios tcnicos das obras do Escritrio Saturnino de
Brito (1935, 1937, 1939, 1952, 1964 e 1965); revistas e boletins do Clube de Engenharia;
alm de um vasto material cartogrfico. No tratamento e na anlise dessas fontes foram
enfocadas as discusses, repercusses e crticas, por meio da divulgao sobre o que eram
e o que representavam as transformaes urbanas, permitindo mapear a maior parte dos
acontecimentos, e indicando outras fontes de pesquisa e referenciando pessoas e datas.
Dadas a ausncia de manuteno de alguns dos arquivos, as precrias condies
de armazenamento e conservao dos documentos, a falta de especializao dos
funcionrios, bem como o descaso por muito tempo dirigido s fontes historiogrficas da
cidade, grande parte das fontes pesquisadas no foram encontradas em sua totalidade,
existindo, portanto, algumas lacunas na continuidade do levantamento. Nesse sentido, o
Grupo de Pesquisa tem se preocupado com a organizao do seu acervo documental, a fim
de subsidiar no apenas os trabalhos internos, mas possibilitar o acesso por parte de
interessados na temtica da Histria Urbana.
INTRODUO 26

A fim de subsidiar e orientar futuras pesquisas historiogrficas sobre a cidade de


Natal e ou estudos que demandem a consulta dessas fontes histricas, foram relacionadas,
a seguir, maiores e mais detalhadas informaes sobre cada fonte pesquisada.

Documentos Oficiais do Governo do Estado:

Foram consultadas as Mensagens de Governo e as Leis e Decretos de Governo


referentes s dcadas de 1930, 1940, 1950 e 1960, disponveis no acervo do Grupo de
Histria da Cidade e do Urbanismo na forma de cpias xerogrficas, em processo de
digitalizao. Tais documentos, principalmente as Mensagens, revelam os acontecimentos
mais marcantes, os fatos de mais destaque que ocorreram no perodo de um ano. Cabe
ressaltar que registram, sobretudo, a tica da elite dominante, evidenciando as prioridades
e realizaes de cada governante. No trabalho de levantamento de dados empricos,
revelaram-se instrumentos de suma importncia, na medida em que a sua leitura permitiu
um mapeamento global das aes governamentais, orientando, assim, a pesquisa detalhada
nos jornais.
Com relao aos decretos, deles possvel extrair as informaes acerca da
legislao vigente, e, mais especificamente, de contratos, desapropriaes, regulamentos e
normalizaes. A anlise de tais informaes subsidiou sobremaneira a identificao do
contexto histrico, das relaes entre rgos pblicos e empresas privadas, dos hbitos da
populao, da abrangncia de ao do Estado, etc.

Relatrios Tcnicos de Obras do Escritrio Saturnino de Brito

Utilizou-se tambm dos relatrios do Escritrio Saturnino de Brito, datados de


1935, 1937, 1939, 1952 e 1965. De suma importncia para a realizao do trabalho,
trazem, de forma sistematizada e sob a tica do Escritrio, o detalhamento das obras
propostas e concretizadas, ressaltando a sua necessidade e importncia para o
desenvolvimento da cidade. A leitura desses relatrios, ao mesmo tempo em que permitiu
mapear as principais obras concretizadas e as propostas somente idealizadas durante a
atuao do Escritrio na cidade, corroborou, a partir da interpretao de suas prprias
INTRODUO 27

palavras, a identificao e anlise dos princpios sanitaristas que orientaram a sua


trajetria em Natal e no Brasil.

Material cartogrfico

Registre-se aqui a riqueza do material cartogrfico encontrado no Laboratrio


Hidrotcnico Saturnino de Brito (HIDROESB) que herdou todo o acervo de Saturnino
de Brito e do seu Escritrio. Foram adquiridas, pelo Grupo de Pesquisa, as plantas
originais das propostas do Escritrio durante todo o perodo em que esteve em Natal,
desde os projetos de 1935 a 1939, at as propostas para o loteamento do Jiqui, em 1965.
Esse material foi escaneado, copiado em papel sulfite, vegetal e polister, alm de
digitalizado, compondo, juntamente com um vasto material grfico e fotogrfico, em um
banco de imagens (programa Acdsee). A anlise dos projetos originais permitiu a
materializao e a visualizao das propostas, alm de revelar os estilos arquitetnicos, os
detalhes construtivos das obras e o impacto causado no espao urbano da cidade,
informaes que contribuem sobremaneira para a confirmao das hipteses do trabalho.

Jornais locais

Os jornais, pesquisados dia-a-dia durante o perodo de referncia deste trabalho,


consistiram nas principais e mais representativas fontes primrias consultadas. A fim de
sistematizar e direcionar o levantamento de informaes nessas fontes de anlise histrica
e, ao mesmo tempo, permitir a sua utilizao por inmeras pesquisas e estudos de
diferentes enfoques, foram pr-determinados assuntos e sub-assuntos (quadro 2) pelo
Grupo de Pesquisa, no sentido de obter um vasto contedo que corroborasse a
identificao e a caracterizao do contexto geral poltico, econmico, social e cultural,
alm do mapeamento dos principais acontecimentos e discusses da poca.

Quadro 2: Relao dos assuntos e dos respectivos sub-assuntos que orientam a coleta de dados
empricos
ASSUNTO SUB-ASSUNTO
Governo Municipal Obras; Prefeito; Relatos; Legislao; Finanas.

Governo Estadual Obras; Governador; Relatos; Legislao; Finanas.


INTRODUO 28

Plano Urbanstico Projeto; Princpios; Autor.

Reivindicaes Populares Transporte; Limpeza Pblica; Energia Eltrica; Saneamento.

Inovaes Tecnolgicas Saneamento; gua; Energia Eltrica; Transporte;


Melhoramentos no porto, telefone.

Contexto geral Culturais: personalidades, msica; cinema, teatro, artes.

Poltico: notcias de eleio, discusses.

Cientifico; Social; Venda de imveis; Agricultura;


Educao; Econmico; Higiene; Costumes; Dados
estatstico-populacionais, Cidade, Arquitetura; Calamidades;
Turismo; Sade Doenas e Epidemias; Patrimnio;
Industria; meio ambiente; segurana pblica, habitao.

Governo Federal

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Histria da Cidade e do Urbanismo.


Durante a leitura dos jornais, as matrias que se encaixaram em algum dos
assuntos de interesse foram catalogadas em fichas padronizadas (anexo 1), que visam
registrar as informaes sobre o levantamento (pesquisador, acervo, data), sobre as fontes
(ttulo do jornal, data, nmero de edio), e, finalmente, acerca das matrias catalogadas
(assunto, sub-assunto, ttulo, autor, resumo e/ou transcrio), de modo a facilitar a
consulta e o manuseio do material obtido. Com o objetivo de viabilizar e otimizar a
utilizao desse material, paralelamente coleta, as informaes foram introduzidas em
um banco de dados informatizado conforme citado anteriormente , cujos campos de
preenchimento correspondem aos das fichas modelo de registro das informaes.
Atualmente, esse banco de dados, alimentado constantemente, conta com mais de duas mil
fichas e atende a diversos trabalhos cientficos elaborados pelos componentes do grupo de
pesquisa.
Todos os jornais locais que circularam regularmente durante o perodo em estudo,
independentemente do seu posicionamento poltico-ideolgico, foram utilizados neste
estudo, quais sejam: Jornal A Repblica, Folha da Tarde, Jornal de Natal e Tribuna do
Norte, Jornal A Ordem e Dirio de Natal.
INTRODUO 29

Observa-se dentre os jornais, aqueles vinculados aos grupos dominantes, que


representam o principal veculo de publicao da atuao da elite poltica local, refletindo,
portanto, suas posturas, seus anseios e, principalmente, as necessidades e justificativas
atribudas a determinadas aes. Dentre esses jornais, destaca-se A Repblica, de grande
representatividade na imprensa local desde fins do sculo XIX, que, a partir da dcada de
1940, com o surgimento de outros peridicos e com a emergncia de uma nova elite
poltica, foi perdendo sua posio de destaque chegando, inclusive, a ser extinto entre os
anos de 1951 e 1955. Transmitindo, desde a sua fundao, informaes oficiais referentes
ao Governo do Estado, esse jornal se transformou, na dcada de 1960, em Dirio Oficial.
A leitura desses peridicos permitiu mapear a maior parte dos acontecimentos de
destaque na vida urbana, como planos urbansticos, introduo de inovaes tecnolgicas
no espao urbano saneamento, eletricidade, meios de comunicao etc , alm de fatos
polticos, sociais e culturais que permearam o contexto local poca. Cabe ressaltar que,
ao refletir a posio da elite dominante, esses jornais no apenas A Repblica
preocupavam-se mais em evidenciar a importncia e a necessidade das aes efetivadas,
sem, contudo, exprimir qualquer opinio crtica ou questionamentos propostos pela
oposio da poca. No entanto, tal fato no invalida a sua contribuio para a pesquisa,
dada a riqueza de informaes de que dispem, e, uma vez que, mesmo representando as
idias do poder constitudo, davam indcios, ao noticiar e emitir opinio acerca de um dada
questo, da posio ou da oposio dos demais grupos.

Pesquisa de campo

Uma etapa de grande significado contou com a realizao de entrevistas e


conversas informais com familiares dos principais personagens, com historiadores e com
profissionais ligados ao tema que, aliadas a fontes primrias especficas e complementares
referentes atuao do Escritrio em Natal, contriburam para retomar os ideais contidos
nos projetos e propostas, complementando os dados e indicando novos caminhos e fontes
de informaes. Tendo-se em vista a importncia e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade
dessa tcnica de pesquisa, justificou-se um breve aprofundamento acerca da introduo da
INTRODUO 30

histria oral como mtodo e como disciplina suas contribuies e os questionamentos


atuais acerca da sua legibilidade e confiabilidade.
Sabe-se que, atualmente, de acordo com autores especializados no tema, como
Alberti (1999); Prins (1992), sem deixar de mencionar a importante coletnea de Ferreira e
Amado (2001); consensual a emergncia, a consolidao e o sucesso da histria oral na
atualidade. No entanto, para alguns, trata-se de disciplina autnoma, e para outros, uma
tcnica de pesquisa que subsidia a histria, a antropologia e as cincias sociais aplicadas.
Com relao ao presente trabalho, a histria oral foi utilizada como recurso metodolgico,
no sentido de corroborar a identificao dos contextos econmico, poltico, social e
cultural do momento em estudo, alm de apontar algumas particularidades acerca do
Escritrio Saturnino de Brito e de aspectos tcnicos do saneamento objetivo que
determinou os roteiros das entrevistas realizadas tanto pelo Grupo de Pesquisa como
individualmente pela autora desta dissertao. Dentre os entrevistados, cujas informaes
detalhadas encontram-se no anexo 2, destacam-se Aluzio Alves, Lilian Dria, Lus
Marcelo Gomes Adeodato, Moacir Gomes da Costa, Moacyr Tavares Rolim e Saladino
Bentes Mangabeira Rocha.
As entrevistas, se utilizadas individualmente no trabalho, poderiam ter sua
validade questionada, em virtude de refletirem o ponto de vista particular do entrevistado,
podendo obscurecer e amenizar fatos importantes ou mesmo acentuar aspectos
secundrios para o estudo. No entanto, os depoimentos foram comparados e contrapostos
tanto entre si, como relacionados aos demais documentos empricos utilizados, de forma a
fundamentar e certificar a veracidade e o grau de intensidade das informaes obtidas.
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 33

Neste captulo, como o prprio nome sugere, sero abordadas as diversas teorias e
prticas urbansticas que se desenrolaram ao longo do perodo em estudo, ou seja, entre as
dcadas de 1930 e 1970. No desenvolvimento do estudo, foram identificados, a partir da
releitura de trabalhos j realizados pela historiografia urbana brasileira, trs momentos que
pontuam essa trajetria, por introduzirem novas formas de abordagem e novas solues
para os problemas da cidade. Em cada momento, sero analisados os contextos histricos,
as influncias e as formas de interveno sobre o espao urbano, pretendendo-se, assim,
ilustrar e ajudar a compreender a transio entre o urbanismo e o planejamento urbano no
Brasil.
No entanto, antes de trazer a discusso terica acerca da evoluo/transio do
urbanismo para o planejamento urbano, cabe discutir, brevemente, o momento de gnese
desses campos disciplinares como cincias modernas para entender seus fundamentos,
pressupostos, objetos e definies.

Acerca do surgimento do urbanismo

Diversos autores so consensuais em localizar a emergncia do urbanismo como


disciplina autnoma, que se arrogava cientfica e racional, no contexto de industrializao
e de exploso demogrfica nas cidades europias em meados do sculo XIX. Muito mais
do que uma disciplina, forjou-se como um campo disciplinar para o qual convergiram os
diversos estudos dos profissionais que vinham se esforando para entender e ordenar o
crescimento at ento nunca visto das cidades. O conhecimento e as formulaes de
mdicos higienistas, socilogos, gegrafos e demgrafos somaram-se aos avanos tcnicos
da engenharia e de uma arte urbana renovada para configurar esse emergente campo
disciplinar que tinha como objetivo controlar o crescimento e a transformao dos
assentamentos urbanos de forma cientfica e totalizante, regulamentar o uso do solo
urbano, pr distines claras entre os mbitos pblico e privado e, por fim, resolver os
crescentes conflitos sociais por meio de um projeto de organizao tcnica da cidade
(CALABI, 2000, p.09-16).
Com a Revoluo Industrial e o conseqente surgimento de uma sociedade
urbana, emergiram tambm distintas terminologias e designaes, a fim de dar conta da

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 34

soluo dos problemas oriundos da nova, diversa e complexa realidade que se formou
naquele momento. Se havia preocupaes sistematizadas, inclusive em tratados, com a
configurao e o desenho das cidades, anteriormente elaborados preocupaes que se
materializavam, via de regra, em conjuntos de normas de composio arquitetnica, de
cunho essencialmente esttico, funcional e construtivo , no se pode confundi-las com
essa nova disciplina, oriunda do conjunto de transformaes sociais, polticas, econmicas,
mas tambm da ruptura epistemolgica que seria a base formativa da cincia (social)
moderna.
Como afirmou Gaston Bardet, um dos principais nomes do urbanismo moderno
francs no sculo XX e que atuou no Brasil no ps-segunda guerra:
O aparecimento do urbanismo entre as cincias, e dos urbanistas entre os
pesquisadores, foi, portanto a conseqncia de novos problemas colocados por
fenmenos cuja amplitude quase no conhecamos exemplo na histria.
necessrio no confundir as grandes realizaes da Arte Urbana, que resolveu
magistralmente problemas que no eram nem da mesma escala, nem da mesma
complexidade, nem da mesma substncia que os nossos, com as solues do
Urbanismo [...] (BARDET, 1990, p.09).

H, entretanto, alguns autores que no desconsideram a produo de estudos sobre


a cidade ainda no sculo XIX, que anteciparam o surgimento do urbanismo propriamente
dito, porm diferenciando-as sobremaneira das chamadas artes urbanas as quais ainda
no se propunham a explicar a cidade como fenmeno espacial (KOLSDORF, 1985).
Impulsionadas pela Revoluo Industrial, e incorporando um novo modo de pensar a
cidade, algumas investigaes buscavam explicaes para o ento processo de
urbanizao, gerando estudos que ecoam at a atualidade. Reside a o primeiro momento
de reflexo sobre a cidade industrial, o chamado pr-urbanismo (CHOAY 2000), ou o
utopismo (BENVOLO, 19677 apud KOLSDORF, 1985).
Mediante esse contexto de emergncia de uma nova realidade, marcada pela
expanso da sociedade industrial que promoveu a transformao dos meios de produo e
transporte e a ascenso de novas funes urbanas que proporcionam o rompimento de
velhos cenrios da cidade medieval e da cidade barroca, a produo caracterstica do pr-
urbanismo, imbuda de forte carter poltico, buscava por uma nova ordem visando
adaptao da cidade sociedade que a habitava. Apesar de no se materializarem em

7
BENVOLO, L. Orgenes de la Urbanistica Moderna. Buenos Aires: Ed. Tenke, 1967.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 35

propostas concretas, algumas teorias ento colocadas, como o progressismo, o culturalismo


e o marxismo cientfico, continuam no cerne de algumas reflexes e prticas atuais.
Apesar de incorporar, no seu processo de evoluo e consolidao, algumas das
bases dos modelos pr-urbanistas cujos contedos foram retomados e reavaliados , o
urbanismo surgiu diferindo do pr-urbanismo em dois pontos principais: era, tanto com
relao teoria quanto prtica, campo de atuao de profissionais especializados,
geralmente arquitetos; e, alm disso, no se inseria numa viso global de sociedade,
consistindo em um urbanismo despolitizado (CHOAY 2000). Como conseqncia, teve
suas idias aplicadas, e, ao invs de permanecerem na utopia, os seus tcnicos
desempenharam, sobretudo, uma atividade prtica. Atividade esta que deveria permitir ao
urbanista construir cidades em um ritmo intenso, correspondente ao novo contexto imposto
s cidades modernas, onde predominavam a velocidade, a novidade, a mudana e o
movimento. Disseminava-se, assim, a necessidade de fazer da cidade uma mquina de
produo eficiente, a partir de uma nova lgica produtivista que caracterizava a ordem
interna de cada fbrica. A organizao da cidade em seu conjunto e a lgica de suas
relaes internas passaram a ser consideradas imperativos.
Registra-se, portanto, o surgimento, entre fins do sculo XIX e incio do sculo
XX, de inmeras teorias sobre a cidade, as quais
pretendem, de uma forma mais ou menos velada, legitimar a propriedade
privada do solo urbano e a especulao sobre o mesmo, num momento histrico
de desenvolvimento do capitalismo, caracterizado, nessa sua fase superior,
[...], por uma urbanizao acelerada escala mundial (RAMON, 1977, p. 10).

Dentre essas teorias, destacam-se as elaboradas por Arturo Soria y Mata8 (1882),
Camilo Sitte9 (1898), Ebenezer Howard10 (1898) e Patrick Geddes11 (1910) considerados

8
Soria y Mata acreditava que a raiz dos males do mundo encontrava-se na forma das cidades, e pensava,
contudo, que a forma era produto natural da funo. Prope assim, uma Ciudad Lineal, composta por uma s
rua de 500 metros de largura, onde se localizavam os servios e a infra-estrutura, e cujos extremos poderiam
ser Cdis e So Petesburgo, ou Pequim e Bruxelas (RAMN, 1977).
9
Stdtebau, de Camilo Sitte, considerada por Choay (1985, p. 290), a primeira teoria significativa de
urbanismo publicada aps a Teora de Cerd, afastando-se do aspecto da comodidade para [...] situar-se
unicamente ao nvel da beleza. Tratava-se de [...] descobrir as leis de construo do belo objeto urbano,
definindo [...] as estruturas especficas que conferem a uma paisagem construda tridimensional suas
qualidades visuais e cenestsicas (CHOAY, 1985, p. 292).
10
Ebenezer Howard, em Tomorrow, a peaceful path to real reform, publicado em 1898, apresentava uma
viso abrangente da cidade e do urbanismo, apontando para a cidade-jardim como um modelo diferente de

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 36

[...] os primeiros a merecer o ttulo de urbanistas (RAMON, 1977, p. 10). Essas teorias
apresentam trs conjuntos de traos comuns: autodenominam-se discurso cientfico,
afirmando a sua [...] autonomia de um domnio prprio no vasto territrio, em
emergncia, das cincias humanas; opem duas imagens de cidade uma negativa e
outra positiva; e, por fim, relatam uma histria em que o heri o construtor (CHOAY,
1985, p. 266).
Franoise Choay (1996), retomando o surgimento do neologismo urbanismo na
obra paradigmtica de Cerd Teora general de la urbanizacin (1867),12 considera que,
desde a sua criao, a palavra serviu para designar dois procedimentos diferentes:
De um lado, urbanismo designa uma disciplina nova que se declara autnoma e
se quer cincia da concepo das cidades. Ela postula a possibilidade de um
domnio completo do fato urbano e elaborou, para este fim, teorias
classificveis em duas correntes: uma, dita progressista, visa ao progresso e
produtividade; a outra, dita culturalista, centra-se em objetivos humanistas. No
entanto, a despeito de suas diferenas, as teorias dessas duas correntes se
fundem sobre um procedimento idntico: anlise crtica da cidade existente e
elaborao a contrario de um modelo de cidade que poderia ser construda e
reproduzida ex nihilo. [...].
De outro lado, e ao mesmo tempo, urbanismo designa tambm um outro
procedimento, pragmtico e sem pretenso cientfica. Este j no visa,
sobretudo transformar a sociedade, mas procura, mais modestamente,
regularizar e organizar, com o mximo de eficcia, o crescimento e movimento
dos fluxos demogrficos, assim como a mutao da escala dos equipamentos e
das construes induzidas pela Revoluo Industrial (CHOAY, 1996, p. 10-11).

organizao social, econmica e territorial, que implicaria em um novo ambiente residencial, com baixa
densidade e dotado de grandes espaos verdes.
11
Patrick Geddes, em sua Cidades em evoluo, realiza uma exposio sistemtica de teorias sobre a cidade e
seus problemas, originando uma nova maneira de formul-los, sob enfoque essencialmente poltico
(RAMON, 1977). Assim, a contribuio de Geddes ao urbanismo foi embas-lo com firmeza no estudo da
realidade, trazendo a anlise detalhada das formas de assentamento dos sistemas econmicos locais em
relao s potencialidades e limitaes do meio ambiente. Essa postura o conduziu a abandonar os limites
convencionais da cidade e considerar, tambm, a regio natural (HALL, 1995). Amplia, assim o objeto
espacial do urbanismo desde a cidade ao mbito do territrio em que ela se insere, configurando o que hoje se
chama planejamento territorial e regional (DE LCIO, 1993).
12
Cerd no utilizou a palavra urbanismo, mas sim urbanizacin, dando-lhe dois significados precisos: um
que fala do processo social de produo do urbano e outro que j delimitava claramente o escopo, a
abrangncia e a cincia do que viria a ser chamado de urbanismo no incio do sculo XX. Nela, o
urbanismo designa, de um lado um grupo de construes postas em relao e em comunicao tais que os
habitantes possam se encontrar, se ajudar, se defender [...], ao mesmo tempo em que consiste em um
conjunto de conhecimentos, de princpios imutveis e de regras fixas que permitem organizar
cientificamente as construes dos homens (CHOAY, 1985, P. 267). Sua teoria atribui ao urbanismo a
associao do repouso e do movimento dos seres humanos isto , dos edifcios e das vias de comunicao.
Ressalta a, a estreita relao com a arquitetura, como campos indissociveis. Pretendendo dar um carter
cientfico nova cincia, recorre histria e biologia no diagnstico da cidade reduo do urbano ao
biolgico cidade como um corpo enfermo.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 37

Vale salientar que justamente nessa atividade prtica que reside a ascenso da
profisso do arquiteto, visto que, principalmente no urbanismo, essa categoria profissional
era a detentora do instrumento fundamental que permitiria visualizar o plano: o desenho.
Pois, se o urbanismo se pretendia cientfico, prevendo e estabelecendo o futuro da cidade,
o desenho seria o melhor meio mais eficiente para faz-lo, na medida em que permitiria a
um pblico leigo visualizar, antecipando a imagem urbana do futuro.
O termo planejamento, por sua vez, surge tambm em fins do sculo XIX e incio
do sculo XX, mais associado s prticas urbansticas desenvolvidas nos pases anglo-
saxes, e incorporando, de incio, um plano regulador e o regulamento da edificao, ou
seja, um instrumento grfico de ordenao espacial da expanso urbana e da estrutura
viria; e outro escrito, estabelecendo normatizaes para a edificao (DE LUCIO, 1993).
Entre 1875 e 1910 salen a la luz en Alemania una serie de tratados sobre la
ciudad y el planeamiento urbano que suponen la cristalizacin y primera
formulacin ordenada y rigorosa dos principios racionalizadores de la ciudad
industrial; los trabajos de Baumeister (1876), Stbben (1890) o Eberstadt
(1910), [...], estabelecen la primera aproximacin cientifista de la disciplina, al
analisar los fenmenos urbanos y sus relaciones y proponer metodos
coordinados de intervencin y tcnicas concretas (DE LUCIO, 1993, p. 81).

Esses tratadistas introduziram, tambm, a idia do zonning no processo de


planejamento, a partir do estabelecimento de usos, atividades ou tipologias edificatrias em
zonas especficas da cidade. Stbben, em particular, define cinco usos principais: comrcio
(incluindo a grande indstria), negcios, artesanato, residncia operria e residncias
burguesas, chegando a detalhar as condies de localizao de cada um deles. O zonning
consiste em um instrumento reincidente em inmeras prticas urbansticas que se
desenvolveram a partir de ento, afirmando-se como
[...] autntico instrumento de defensa de los valores del suelo y de
discriminacin social, al evitar reglamentariamente que la aparicin de usos,
tipologias y grupos sociales indeseables se interfieran y supongan uma amenaza
a la estabilidad funcional y social de determinados espacios urbanos (DE
LCIO, 1993, p. 84).

O zonning se confirma, ao longo dos anos, como meio para assegurar a


estabilidade e promoo dos valores do solo, e, a pesar de los cmbios posteriores y
introduccin de elementos que atenan estas caractersticas sus principios continuan
presentes em ls zonificaciones hasta hoy (FERREIRA, 1996, p. 464).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 38

Embora o surgimento do planejamento urbano seja remetido ao final do sculo


XIX, como uma tentativa de superao da crise macroestrutural do capitalismo, o
planejamento s se afirma no sculo XX, relacionado ao Estado de bem-estar social
(MANNHEIM, 194213 apud SCHERRER, 1995, p. 65).

Trs momentos da evoluo do urbanismo no Brasil: do


urbanismo sanitarista ao planejamento urbano

No Brasil, desde as primeiras intervenes higienistas, da segunda metade do


sculo XIX e incio do sculo XX, ao macroplanejamento das dcadas de 1970/80,
observa-se a influncia, ou mesmo a repetio, de padres urbansticos oriundos dos pases
centrais. No entanto, esses padres apresentam-se, de incio, despolitizados e
desvinculados do contexto social em que foram gestados. Diferentemente, como afirmam
Ribeiro e Cardoso (1996), do que ocorreu no primeiro mundo, os reformadores brasileiros
no incorporaram a questo social como cerne da problemtica urbana, mas giram, sim, em
torno de outros temas, principalmente daqueles referentes aos interesses das elites
dominantes, como a idia de modernizao e a construo da nacionalidade.
Na historiografia urbana brasileira, observa-se uma tentativa, por parte de vrios
autores, em periodizar a prtica urbanstica no pas, permeando desde a sua introduo at
a problemtica atual. o caso de Silveira e Vasconcellos (1984); Kohlsdorf (1985);
Ribeiro e Cardoso (1996); Villaa (1999); Dak e Schiffer (1999); Leme (1999, 2001),
alm dos inmeros estudos de casos especficos realizados em todo o pas e reunidos nos
anais dos Seminrios de Histria da Cidade e do Urbanismo e da ANPUR. Pretende-se,
aqui, no apenas trazer os principais aspectos dessas periodizaes que contribuem para
atingir os objetivos e elucidar as hipteses do presente trabalho , como confrontar os
termos utilizados para designar os diferentes momentos, contextos, princpios e mtodos
que permearam a evoluo do urbanismo no Brasil, alm de assinalar a passagem para o
chamado planejamento urbano.
Embora a periodizao da evoluo do urbanismo no Brasil apresente-se de forma
consensual entre a maior parte dos autores, as terminologias utilizadas para designar esse

13
MANNHEIM, K. Libertad Y Planificacin. Mxico: Fondo de Cultura, 1942.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 39

campo disciplinar so, de forma geral, utilizadas indiscriminadamente. Destaca-se,


entretanto, o estudo de Leme (2001) no sentido de identificar e atribuir as nomenclaturas
que predominam em cada momento histrico, as quais, de acordo com Villaa (1999),
representam as mudanas de metodologia e de contedo dos respectivos planos, refletindo
o meio encontrado pelas elites para renovar a ideologia dominante e consolidar a sua
hegemonia, revelando-se, portanto, como um importante instrumento para a anlise e
interpretao histrica da trajetria do urbanismo.
Villaa (1999) considera que o atual planejamento urbano, ou seja, a ao do
Estado no sentido da organizao do espao urbano, equivale ao que se chamava, nas
dcadas de 1930 e 1940, de urbanismo. A princpio, portanto, no haveria diferena entre
os dois termos, o que leva vrios autores a usarem, indistintamente, urbanismo e
planejamento urbano, embora abarquem arcos temporais amplos que do conta das
primeiras intervenes sistematizadas no final do sculo XIX aos superplanos dos anos
1960, ou o movimento pela reforma urbana dos anos 1980. J Souza (2002) reconhece que
a prtica do planejamento urbano no Brasil remete-se, erroneamente, ao urbanismo
(principalmente o urbanismo modernista, na figura central de Le Corbusier), restringindo-
se alada profissional do arquiteto-urbanista. Para o autor, Urbanismo e planejamento
no so, portanto, sinnimos, nem o primeiro esgota o segundo [...]. Diversamente do
planejamento urbano em geral, o Urbanismo pertence, de fato e de direito, essencialmente,
tradio do saber arquitetnico (SOUZA, 2002, p. 58). Os instrumentos do urbanismo
que consistem, principalmente, no zoneamento e nos ndices de densidade e ocupao do
espao vinculam-se, fortemente, dimenso fsica do planejamento urbano. No entanto,
considerando o planejamento uma atividade mais abrangente e de carter interdisciplinar, o
urbanismo , [...] to somente, uma entre as vrias modalidades de planejamento urbano
(SOUZA, 2002, p. 217). Rebeca Scherer (1995) aponta ainda para a vinculao do
planejamento urbano crise do capitalismo e ao Estado de bem-estar social,
concretizando-se, principalmente, no segundo ps-guerra, e diferindo do urbanismo pela
inteno em generalizar os direitos sociais. Isto , o planejamento urbano teoricamente
implicaria tambm em urbanismo para todos, urbanismo democrtico (SCHERER,
1995, p. 69).
Emerge a questo de que, apesar de se assemelharem em essncia, as
terminologias evidenciam uma evoluo e complementao do contexto, do

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 40

significado, da ideologia e dos propsitos do que se chamou, de incio, urbanismo, que


tinham, e ainda tm, a modernizao da cidade como principal objetivo.
Alguns autores da historiografia urbana brasileira tentaram periodizar a trajetria
das teorias e das prticas urbansticas ao longo do sculo XX, no Brasil. Maria Cristina
Leme (2001), a partir do estudo das terminologias que designaram o urbanismo desde o
seu surgimento, aponta trs momentos distintos: entre fins do sculo XIX e incio do
sculo XX, os Melhoramentos Urbanos; nas dcadas de 1920 a 1950, o Urbanismo
destacando tambm nesse momento o Urbanismo Modernista ; e, a partir da dcada de
1950, o Planejamento Urbano. J Flavio Villaa (1999), adota a periodizao em duas
fases. A primeira, entre 1875 e 1930, caracterizada pelo chamado Planejamento Fsico-
Territorial, englobando as obras de embelezamento e melhoramentos urbanos; e uma
segunda, a partir de 1930, denominada Planejamento Urbano Latu-Sensu, marcada pela
elaborao dos planos gerais e em seguida, pelos planos diretores. A seguir, ser analisado
cada momento, de acordo com a periodizao de Leme (2001), e incorporando as
consideraes de Villaa (1999), Ribeiro e Cardoso (1996) e Sousa (2002).
Sobre a passagem do urbanismo para o planejamento urbano, que se tenta
assinalar neste trabalho, Rebeca Scherer (1995) afirma:
Uma caracterstica essencial da modernidade era a transformao do urbanismo
em planejamento urbano, isto , uma ao sobre o urbano que se apoiava numa
suposio de igualdade no apenas de direitos polticos e civis, mas,
essencialmente e isto o que o distingue a generalizao dos direitos
sociais. Isto , o planejamento urbano teoricamente implicaria tambm em
urbanismo para todos, urbanismo democrtico (SCHERER, 1995, p. 69).

1 Momento: Melhoramento Urbano - a higiene como promotora do


progresso e da civilidade

O primeiro momento identificado que, de acordo com Leme (2001) e Villaa


(1999), estende-se do final do sculo XIX at 1930, caracterizado pela realizao de
inmeros planos de melhoramentos e embelezamento e expanso, imbudos da influncia
do renascentismo francs, e refletindo o monumentalismo burgus e a negao ao
colonialismo (Villaa, 1999). As cidades, nesse perodo, tornavam-se o espelho do sucesso
das polticas agroexportadoras que sustentavam a economia do Brasil, ocupando a funo
de centro decisrio, poltico e administrativo.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 41

Refletindo ainda um processo de urbanizao defasado historicamente com


relao s cidades europias, os centros urbanos brasileiros no apresentavam a
necessidade efetiva das intervenes corretivas e reformadoras justificadas,
originalmente, em nome da crescente densidade populacional e do progresso industrial. No
entanto, apelava-se para a superao das configuraes urbanas herdadas do perodo
colonial, tornando a cidade apta a centralizar as atividades econmicas e dotadas de um
novo desenho urbano que suportasse as novas funes e simbolizasse o desenvolvimento e
progresso econmico e a modernizao do pas.
Assim confirma-se o surgimento da primeira terminologia identificada por Leme
(2001), designada Melhoramento Urbano, referindo-se a uma ao planejada e pontual,
relacionada, sobretudo, a obras de saneamento, abertura de praas, alargamento e extenso
de vias. O combate s epidemias consolida-se, nesse momento, como principal justificativa
para as intervenes, fazendo-se to fortemente presente, de forma que os mdicos, ao
influrem decisivamente no mbito do espao urbano, caracterizaram-se como os primeiros
planejadores. No entanto, desprovida da racionalidade tcnica necessria implementao
e construo das obras, a atuao dos mdicos limitou-se a analisar a cidade,
diagnosticando seus problemas e indicando as possveis solues cabendo a
concretizao aos engenheiros.
Nesse momento firmaram-se algumas influncias que nortearam as operaes de
melhoramentos urbanos, como os princpios higienistas e as idias de Camillo Sitte. Os
problemas ento em vigor nas cidades europias como a questo da salubridade, do
embelezamento, e da necessidade de extenso dos limites urbanos influenciaram e
norteiam as propostas desenvolvidas no Brasil poca. Assim, os chamados
melhoramentos urbanos, tomando como base o processo de crescimento das cidades
europias, foram incorporando, aos poucos, a idia de previso na atividade de
planejamento das cidades, transpondo os conhecimentos urbansticos l aplicados a uma
realidade local totalmente distinta.
Observa-se, ainda, a dicotomia entre duas formas divergentes de concepo dos
traados da cidade: se por um lado as idias de Camillo Sitte sugeriam a preservao e a
valorizao dos traados irregulares histricos, por outro, a reforma de Haussmann para
Paris incentivava a prtica da tbula rasa e o delineamento de novos e planejados
traados, simtricos, em substituio antiga configurao colonial.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 42

A preocupao com a salubridade acabou por induzir a introduo de novos


espaos arborizados e livres na configurao fsica das cidades, considerados de suma
importncia para a sade da populao. No sentido de incorporar materialmente essa
preocupao, emergem inmeros programas de conservao dos parques existentes e obras
de reforma viria das reas centrais, que imprimiram novos cenrios, novos usos e novas
sociabilidades no espao urbano de vrias cidades do Brasil.
Assim, as operaes caracterizadas como melhoramentos urbanos compreendiam
desde a formao de comisses especializadas, e vinculadas ao poder pblico, para uma
ao planejada como as obras de introduo de saneamento , at a abertura de praas e
obras de remodelao do sistema virio.
No Brasil, esse modelo amparava-se na remodelao das reas urbanas centrais,
eleitas para constituir novos plos de prestgio e poder, e na conseqente
renovao da ocupao imobiliria. O saneamento dos centros urbanos, mote
dessas operaes, priorizava a eliminao das habitaes populares e demais
usos estigmatizados como inconvenientes e insalubres, substituindo-os por usos
comerciais, institucionais ou residenciais mais elitizados (CAMPOS, 2002, p.
135).

Essa elitizao das reas centrais era reforada pela imposio de inmeras
restries e regulamentaes, a partir da implementao dos cdigos de postura e as
conseqentes normatizaes do espao construdo. Dentro dos princpios higienistas e
visando salubridade das edificaes e do espao urbano, indicava-se as dimenses tanto
dos ambientes como das aberturas das habitaes, segregando os moradores que no
podiam arcar com as mesmas e forando-os a se deslocar para as periferias da cidade. A
materializao dessas prescries, a cargo das Comisses de Melhoramentos, aliadas s
obras de retificao do sistema virio, implicava em demolies, alargamento e correes
de alinhamento, ocasionando a substituio gradual de casas de baixo padro por prdios
de luxo, geralmente verticalizados.
Dessa forma, a realizao dos planos de melhoramentos e a efetivao das obras
neles apontadas consolidou a atividade do engenheiro, acarretando uma ampliao no
mercado da construo civil e, conseqentemente, um incremento no processo de
urbanizao de inmeras cidades.
De incio restritos ao mbito da administrao municipal, medida que se
difundiam por vrias cidades e mobilizavam um grande volume de capital, atingindo maior
ressonncia por todo o pas, os planos de melhoramentos urbanos passaram,

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 43

gradativamente, esfera do Governo Estadual, devido, principalmente, demanda de


maiores custos e de uma maior vultuosidade das obras.
Alm da concretizao efetiva das inmeras aes propostas nos planos de
melhoramentos, que imprimiram uma nova fisionomia nos principais centros urbanos e
capitais do Brasil, outra importante contribuio desse momento, como conseqncia dessa
ao sistematizada e contnua dos engenheiros na proviso das obras de melhoramentos,
em especial do saneamento, foi a formulao e consolidao do chamado urbanismo
sanitarista. Extrapolando a funo de introduzir as redes de guas e esgotos, a ao
concreta dessa vertente do urbanismo transformou o espao fsico de inmeras cidades,
modernizando o traado urbano a partir da racionalidade tcnica das redes e dos
equipamentos sanitrios.
O urbanismo sanitarista no Brasil teve, indubitavelmente, o engenheiro sanitarista
Saturnino de Brito como nome e autor mais produtivo e influente, mas, registre-se, no se
resume a ele basta citar apenas os engenheiros Henrique de Novaes e Theodoro
Sampaio14 e nem se extingue aps o seu falecimento em 1929. Dentro dos princpios
elaborados e defendidos por Saturnino de Brito conforme se ver mais adiante , foram
antecipados inmeros instrumentos das prticas urbansticas posteriores e, mesmo do
planejamento urbano integrado que sero detalhados posteriormente.
Foi sob a gide dos planos de melhoramentos que nasceu o planejamento
urbano (latu-sensu) brasileiro. [...].
Os planos eram elaborados, debatidos, contestados, adiados, apoiados,
recusados ou executados, revelando ser inegvel que o planejamento (tal como
concebido na poca) j se havia tornado uma atividade rotineira na
administrao urbana (VILLAA, 1999, p. 193 - 196).

2 Momento: A legitimao do urbanismo como cincia de interveno


sobre a cidade

14
Novaes foi prefeito de Vitria em duas ocasies (1916-1920 e em 1945) e, dentre sua vasta obra, vale citar
os planos elaborados para Vitria (1917 e 1931) e para Natal (1924), todos influenciados pelo esforo da
tradio do urbanismo sanitarista em pensar a cidade de forma abrangente, global (Ferreira et al., 2003a);
Sampaio atuou durante muitos anos em So Paulo, mas foi em Salvador onde elaborou um importante plano
de ampliao e modernizao das redes do saneamento da cidade em 1905 (Fernandes, Sampaio e Gomes,
1999).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 44

O momento imediatamente aps a I Guerra Mundial marcado pelos anseios de


modernizao e de formao de uma identidade nacional, que acabaram por impulsionar a
[...] construo do aparato da modernidade sobre o territrio nacional suas edificaes,
suas infra-estruturas, suas cidades (CAMPOS, 2002, p. 194). Trata-se de um momento de
crescimento e ascenso das cidades para o desenvolvimento da economia brasileira, pois,
at ento, predominava o ruralismo como representao da nacionalidade, ao mesmo
tempo em que as elites dominantes enxergavam as cidades como [...] lcus da desordem
social e poltica, da improdutividade econmica (RIBEIRO E CARDOSO, 1996, p. 58), e
a sua populao como classes perigosas. No entanto, com a ascenso do caf, a cidade
passa a ser referncia para a atuao poltica e econmica das classes privilegiadas,
passando tambm a ser alvo de inmeras intervenes na busca de uma nova imagem que
materializasse a nova condio da mesma elite e do Estado.
Assim,
Invocando a cincia e a tcnica, que vo ganhar legitimidade medida que a
cidade representada como uma disfuno do corpo urbano, os urbanistas como
grupo profissional componente dessa intelectualidade puderam dar solues aos
problemas urbanos, apelando unicamente para o seu arsenal tcnico-cientfico,
passando ao largo de qualquer arranjo poltico e fazendo tabula rasa dos
elementos reformistas contidos nas ideologias urbansticas que circulavam pelo
mundo e que aqui acabaram aportando. Esvaziadas do seu contedo reformista,
essas ideologias urbansticas so transformadas em competentes ferramentas,
aptas a remediar os distrbios urbanos (PECHMAN, 2002, p. 403).

Confirma-se, ento, a segunda terminologia, Urbanismo, que vai alm de uma


prtica profissional, consistindo em um campo disciplinar que engloba a arquitetura, a
engenharia e a sociologia, e que tinha a cidade como universo de interveno. Para Villaa
(1999), o urbanismo, no Brasil, est associado ao embelezamento, arquitetura e arte
urbana. Impulsionados por um ideal de modernizao no universal, os planos, ainda
pontuais, tendiam a mascarar a verdadeira realidade dos cenrios urbanos, afastando o [...]
populacho inculto das vistas da elite e dos estrangeiros (RIBEIRO E CARDOSO, 1996, p.
59), e caracterizando, pois, modelos excludentes que produzem um espao pblico para
usufruto exclusivo da elite.
A nova cincia viria fornecer os instrumentos para essa modernizao, dando
especial destaque s obras de remodelao dos portos e das reas centrais, de saneamento e
de criao de bairros residenciais destinados s camadas mais abastadas da populao.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 45

Ocorre a a transferncia de modelos e princpios urbansticos difundidos na Europa e


justificados pelo crescente processo de urbanizao e industrializao das cidades
europias que, desvinculadas do seu contexto original, chegam ao Brasil destitudas do
seu contexto, do seu teor ideolgico, da sua preocupao social e, sobretudo, da sua real
necessidade.
O urbanismo se legitimou como saber sobre a cidade, como saber tcnico-
cientfico, independentemente de fazer vir tona a questo da cidadania e do
direito cidade [...].
[...] o urbanismo que aqui aportou veio aleijado de sua parte mais nobre, [...],
aquela que implementava a cidadania e legitimava o direito do trabalhador
cidade.
Formou-se aqui um urbanismo disciplinador, normatizador, regulamentador,
que fazia cidades, mas no produz cidados (PECHMAN, 2002, p. 408 409).

Ao mesmo tempo em que o urbanismo pregava um modelo de cidade baseado nas


metrpoles europias, prenunciando e indicando o crescimento das cidades brasileiras, nos
meios intelectuais, em contrapartida, firmava-se o repdio ao crescimento urbano e a
defesa da revalorizao dos hbitos rurais. Essa posio anti-urbanista gerou inmeras
crticas e questionamentos acerca do urbanismo, e da prpria urbanizao (CAMPOS,
2002). Respondendo a essas crticas dos chamados ruralistas, a partir da dcada de 1920,
mais especificamente, buscando legitimar e expandir o alcance e o reconhecimento do
urbanismo como campo disciplinar e de atuao profissional, a imprensa passou a
incorporar vrias discusses e debates sobre a cincia urbana, levando populao os
princpios, objetivos, e, sobretudo, a necessidade no s do urbanismo, como do urbanista
e dos planos para a cidade. Antes restrito aos meios especializados, o urbanismo passa a
circular por todas as esferas da sociedade, arrogando-se cientfico e apoltico. As
discusses se ampliavam na proporo em que surgiam e se agravavam os problemas
urbanos, no s contemplando os equipamentos pblicos, a questo da moradia, o
saneamento e a circulao, mas incorporando, sobretudo, [...] uma concepo mais
conceitual e abstrata do sistema urbano em sua funcionalidade e racionalidade
(PECHMAN, 2002, p. 408).
Considerando a prtica urbanstica que antecede os anos 1960 como blueprint
planning, ou mesmo planejamento fsico-territorial, Souza (2002, p. 123) caracteriza-a
como [...] uma atividade de elaborao de planos de ordenamento espacial para a cidade
ideal, projetando-se uma imagem desejada em um futuro prximo, utilizando-se de um

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 46

conjunto de diretrizes regulatrias e preocupando-se, essencialmente, com o traado


urbanstico, com as densidades de ocupao e com o uso do solo. O Estado representava,
nesse momento, o principal e nico detentor dos poderes de implementao desses
planos.
O Plano de Pereira Passos para o Rio de Janeiro (1906) consiste no pice deste
perodo, no entanto, introduzindo uma mudana de prioridade na administrao urbana: a
infra-estrutura sobrepe o embelezamento; e as obras urbanas comeam a perder o carter
de visibilidade e notabilidade e voltam-se para a gerao de condies de produo e
reproduo do capital. Passa-se, assim, da cidade bela para a cidade eficiente, da
cidade do consumo para a cidade da produo. Em ambos, entretanto, o interesse
imobilirio estar sempre fortemente presente (VILLAA, 1999, p. 199).
Desenvolvidas principalmente por engenheiros, as intervenes desse momento
tratavam a cidade a partir de uma ordem tcnica, com a idia do plano como eixo central
nas discusses dos problemas urbanos. O processo de formulao e concepo desses
planos, partindo do diagnstico, passando pelo planejamento e culminando com a
interveno fsica, confirmavam esse enfoque tcnico-racional. No entanto, a partir da
emergncia do Movimento Moderno, principalmente com a Semana de Arte Moderna de
1922, uma nova vertente de urbanismo, que impunha o arquiteto como principal
interventor, passa a conviver com a atuao dos engenheiros, divergindo, porm, em
inmeros aspectos.
O urbanismo monumental influenciado pelo movimento modernista, desenvolvido
a partir da arquitetura e da relao entre espao construdo e espao livre, tinha por
principal objetivo o projeto de construo de novas cidades, fundamentada e amparada
pela introduo de tecnologia de ponta, e materializada em desenhos urbanos racionalistas,
tendo como figura central Le Corbusier. Ansiava, pois, por mudar a sociedade a partir das
transformaes urbanas, vinculando a modernizao da cidade aos preceitos de ordem e
higiene, de racionalidade e harmonia, tendo como eixo central a questo da velocidade.
Fortalece-se, tambm a partir do urbanismo modernista, a idia do zoneamento
que perdura durante as vrias modalidades de urbanismo e planejamento urbano, fazendo-
se presente at a atualidade. Considerado o instrumento de planejamento por excelncia
(SOUZA, 2002), surge, efetivamente, nas primeiras dcadas do sculo XX na Europa e nos
Estados Unidos, e atinge o seu pice no IV Congresso Internacional de Arquitetura

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 47

Moderna (CIAM) realizado em 1933, quando se disseminou a separao rgida das funes
bsicas do viver urbano trabalho, habitao, lazer e circulao.
Embora os urbanistas modernistas perseguissem o zoneamento funcional e o
considerassem como principal promotor do ordenamento da cidade, observa-se que a
defesa da separao de usos emergiu antes, fortemente influenciada, de incio, pelos
princpios higienistas, justificando-se em nome da higiene e da ordem e recorrendo a
imagens e metforas da cidade como [...] um organismo doente, carente da regenerao
a ser propiciada pela interveno revitalizadora (e salvadora) do saber urbanstico, capaz
de adaptar o espao urbano era da mquina (SOUZA, 2002, p. 254).
Apesar das inmeras crticas fundamentadas no seu carter segregador e
funcionalista, pretenciosamente neutro e tecnocrtico desvinculado dos reais
problemas sociais e promotor de um ideal de progresso e harmonia sociais a serem
alcanados a partir da reestruturao do espao urbano, o zoneamento consiste no principal
legado do urbanismo modernista que permanece at a atualidade ainda que suavizado
(SOUZA, 2002, p. 254).

3 Momento: Planejamento urbano como estratgia de desenvolvimento


econmico

O incio de uma nova fase iniciada na dcada de 1930 e marcada pela


tecnificao cientfica como base para a soluo dos problemas urbanos tem como
marcos o Plano de Avenidas de Prestes Maia para So Paulo, como o ltimo plano de
melhoramento e embelezamento e o plano de Alfred Agache para o Rio de Janeiro, como o
primeiro superplano.
Durante o Governo Federal de Getlio Vargas (1930 1950), pode-se observar,
de acordo com Ribeiro e Cardoso (1996), duas modificaes na questo social, que
acarretam um novo diagnstico: a primeira seria a consolidao de uma classe pobre vista
como obstculo modernizao e construo da nacionalidade; a segunda a emergncia
do Fordismo, imbudo de uma preocupao social e identificando as necessidades humanas
dentro do projeto nacional de Vargas. Acrescente-se, a, o aumento e consolidao da
conscientizao popular colocada por Villaa (1999), tambm como agente dificultador da

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 48

legitimizao e concretizao dos anseios das elites, principalmente no que se refere ao


espao urbano. Com uma viso de que a produtividade do trabalhador proporcional sua
qualidade de vida, desenvolvem-se inmeras polticas sociais voltadas, principalmente,
para o problema habitacional.
Carregadas de um carter antiurbanista, as propostas desse perodo, para Ribeiro e
Cardoso (1996), continuam a reproduzir o discurso higienista, evidenciando uma viso
organicista no diagnstico da cidade, e, sobretudo, firmando o controle social sobre o uso e
o crescimento do espao urbano, dentro dos ideais de embelezamento e monumentalidade.
Os planos, ao invs de influrem sobre as condies de vida da populao, acabaram por
impor normas que no seriam cumpridas, criando, assim, [...] um abismo entre a cidade
real e a cidade legal (RIBEIRO E CARDOSO, 1996, p. 65).
Para Villaa (1999), o Planejamento Urbano, terceira terminologia proposta por
Leme (2001), vem imbudo dos conceitos de ordem, racionalidade e eficincia,
incorporando, em decorrncia da complexidade dos problemas emergentes a partir do
processo de industrializao, novos temas, novos mtodos e novas categorias profissionais
que se destinam a estudar e planejar as cidades. Ou, como afirmam Ribeiro e Cardoso
(1996), no se trata mais da cidade, mas do urbano.
Sarah Feldman (1996) aponta, no seu estudo acerca do processo de
institucionalizao do planejamento e do zoneamento em So Paulo, que a partir da dcada
de 1940 observam-se trs vertentes de pensamento que influenciaram a atuao dos
urbanistas paulistanos, quais foram a de Prestes Maia, de Anhaia Mello e do Padre Lebret.
Prestes Maia revelava traos do urbanismo progressista15, defendendo a permanente
adequao da cidade s emergentes necessidades da sociedade, a partir do esgotamento das
suas potencialidades ainda intactas e de novos planos e novas obras. As idias de Anhaia
Mello, por sua vez, apresentavam-se de forma contrria s de Prestes Maia; refletindo
influncias culturalistas, apelava para a anti-metropolizao, ou seja, para o controle e
retrao do crescimento urbano como soluo dos problemas da cidade. O Padre Lebret
apresenta uma inovao com relao aos outros urbanistas, pois incorpora a questo social
como centro do debate urbanstico, primando por uma abordagem regional da cidade e pela

15
Definido por Franoise Choay.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 49

conteno do crescimento, baseando suas intervenes na teoria do desenvolvimento


harmnico e equilibrado.
Paralelamente, a cidade passou a ser vista como um negcio rentvel, revelando
outra matriz da urbanstica moderna a raiz especulativa (DE LCIO, 1993). Nessa
perspectiva, o urbanismo consistiria em um instrumento de suma importncia na atribuio
ordenada e estvel do espao, e da sua mais-valia. Utilizava-se, para tanto, de dois
instrumentos bsicos o plano de extenso e o zoneamento. O plano asseguraria a partilha
ordenada e equacionada entre os proprietrios do solo, enquanto que o zoneamento, ao
limitar a implantao de atividades indesejadas, converteu-se no instrumento bsico para
estabilizar os valores do solo.
Consolida-se, nesse momento, o incio de um [...] novo ciclo de transformaes
espaciais nas cidades que sucede ao ciclo de des-construo da cidade colonial, que
corresponde implantao de uma modernidade metropolitana (FELDMAN, 1996, p. 2).
Com o crescimento explosivo das cidades, o desenvolvimento econmico do pas
voltado para uma perspectiva de industrializao, e o conseqente surgimento de novos
problemas sociais e urbanos, emerge o planejamento urbano integrado propriamente dito
pregando que a cidade no poderia ser encarada apenas do ponto de vista fsico-
territorial, e que os problemas urbanos no deveriam se limitar alada da arquitetura e da
engenharia. Primando por uma interdisciplinaridade, a cidade passou a ser vista tambm
como um [...] organismo econmico e social, gerido por um aparato poltico-
institucional (VILLAA, 1999, p. 211-212).
Essa nova viso da cidade difere a prtica do planejamento urbano do urbanismo
como interveno puramente fsica. Para Souza (2002), no entanto, o planejamento e a
gesto urbanos devem ser reconhecidos como questes, sobretudo polticas,16 e no como
questes essencialmente tcnico-cientficas diferindo-se tambm nesse ponto do
urbanismo. O mesmo autor reafirma a interdisciplinaridade do planejamento urbano:
Quanto ao planejamento e gesto urbanos, eles so [...] cincia social aplicada,
e, como tal, devem ser interdisciplinares por excelncia. Mais ainda que a
anlise [...], a pesquisa social aplicada, com a qual se busca explicitamente
contribuir para a superao dos fenmenos tidos como problemticos e
negativos, demanda intensa e coordenada cooperao entre saberes disciplinares
variados (SOUZA, 2002, p. 100).

16
O autor faz uma ressalva de que, se o planejamento se desvincular de uma anlise crtica da realidade, ser
[...] simples pesquisa aplicada grosseiramente manipulada (SOUZA, 2002, p. 96).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
TEORIA E PRTICA URBANSTICA NO BRASIL (1930 1970) 50

Como conseqncia, surge o plano urbano representando uma ao de conjunto


que aborda os problemas urbanos na escala da cidade, da regio ou do pas, e que
contempla estudos histricos, pesquisas econmicas, propostas de reformulao e
expanso do sistema virio e de transporte, localizao de atividades econmicas e
proposta de legislao. Nesse momento, cabe ao planejador o papel de maestro de uma
equipe formada por gegrafos, economistas, socilogos, etc. Reside justamente na
totalidade e na abrangncia dos planos a sua principal deficincia na medida em que, ao
abordar uma vasta gama de problemas sociais, menores as possibilidades de oferecer uma
soluo capaz de atender a todos.
Assim, observa-se uma tendncia de no efetividade dos planos, passando-se [...]
do planejamento que era executado para o planejamento discurso (FELDMAN, 1996, p.
7). A autora atribui essa mudana a incapacidade da elite antes detentora e dominadora
do poder de intervir no espao urbano da cidade para o seu prprio usufruto, privilegiando
as operaes urbanas que a beneficiassem em lidar com os novos e amplos problemas
abordados nos planos, oriundos do acelerado processo de ocupao do solo e o
conseqente crescimento explosivo das cidades. Os planos no mais interferem na
configurao urbana das cidades.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 52

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Este captulo traz uma breve abordagem acerca da atuao do Escritrio Saturnino
de Brito (ESB), com nfase nos princpios e na ideologia que nortearam as propostas
elaboradas e implementadas ao longo de sua trajetria, remontando, para tanto, sua
fundao, pelo engenheiro Saturnino de Brito.
Essa abordagem tem por maior finalidade permitir a compreenso das
contribuies do Escritrio para a formao e consolidao do urbanismo no Brasil, alm
de possibilitar o entendimento da sua posio e da sua postura adotada em meio ao
processo de transio do urbanismo para o planejamento urbano. Pretende-se ainda, a partir
deste captulo, fundamentar a anlise da atuao do Escritrio Saturnino de Brito em Natal,
entre 1935 e 1969, perpassando pelos vrios momentos do processo de urbanizao da
cidade que sero estudados na Parte II deste trabalho.
Cabe ressaltar que, em virtude da ausncia de estudos e pesquisas destinadas
trajetria profissional do Escritrio, s suas propostas e obras idealizadas e concretizadas,
recorreu-se, para a elaborao deste captulo, a publicaes e artigos de Saturnino de Brito
Filho como diretor do Escritrio , nos meios tcnicos de divulgao, como a Revista do
Clube de Engenharia e congressos especializados.

Origens e princpios: Saturnino de Brito e a constituio do


urbanismo moderno no Brasil

A partir da proclamao da Repblica e, sobretudo, nas primeiras dcadas do


sculo XX no Brasil, consolida-se a afirmao do progresso e da civilizao como destinos
irrefutveis para a construo de uma nova sociedade. Discursos e paradigmas com
aspiraes tcnico-cientficas firmaram-se em diversos campos do saber com o intuito de
combater a desordem e os padres considerados arcaicos e limitados da ainda presente
ordem colonial. A cidade com a intensificao das epidemias, crescimento dos ndices
demogrficos, adensamento e a precariedade ou inexistncia de servios de infra-estrutura
passa, de fato, a ser tematizada. Os mdicos foram os que inicialmente a adotaram como

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 53

Sanitarismo e Planejamento Urbano

objeto de anlise e investigao, sendo o higienismo a expresso da primeira forma de


uma poltica urbana de enquadramento e controle da cidade (PECHMAN, 2002, p.389).
Uma nova lgica de salubridade foi imposta. A circulao transformou-se na
palavra de ordem e a engenharia sanitria emergiu como uma soluo tcnica aos
problemas de insalubridade urbana, em funo da ineficincia das medidas profilticas
divulgadas pelos mdicos (COSTA, 1997). As mudanas atingiram a estruturao fsica da
maioria das cidades brasileiras por meio da promoo de grandes obras de renovao dos
centros urbanos, implantao de redes de gua e de esgotos e criao de novos espaos,
privilegiados do ponto de vista da esttica e da salubridade.
Mais que do que justificativa para a reforma das cidades, a resoluo de
problemas tcnicos configurou-se como meio de insero e divulgao das teorias
urbansticas e, em alguns casos, de novos padres construtivos e arquitetnicos. Pouco a
pouco, os projetos e as realizaes da engenharia sanitria e a abordagem abrangente da
cidade por ela propagada materializaram e firmaram, no Brasil, no s o debate sobre a
urbanizao, como tambm a conseqente idia de planejamento urbano (ANDRADE,
1992).
Cabe enfatizar que o desenvolvimento dos sistemas e das redes tcnicas dos
servios urbanos no sculo XIX, principalmente a do saneamento, ajudaram a dar forma ao
aparato das cidades modernas, configurando, assim, as suas primeiras caractersticas
(MELOSI, 2000, p.06-07); no apenas pela possibilidade de expanso da malha urbana
provendo e estendendo os servios e as redes aonde houvesse consumidores , pela
introduo de novos hbitos cotidianos e valores ou pelas mudanas inseridas na habitao
do homem comum, mas principalmente pela concepo de reforma global de cidade.
[...] finalmente, a nossa engenharia j vem resolvendo os mais importantes
problemas da higiotcnica, saneando as nossas cidades, garantindo a vida,
poupando dores, estabelecendo o bem-estar, criando, em suma, a atmosfera
hgida da felicidade (BRASIL, 1944a, p. 10).

Assim, deve-se considerar que, para alm da funo tcnica, as obras vinculadas
s redes do saneamento materializaram, de certa forma, o sentido de moderno, de
progresso e de civilidade. Projetadas para ocupar lugares significativos da cidade,
introduzindo novas visualidades e mesmo novos marcos urbanos em meio configurao
da cidade tradicional, as estruturas de apoio do aparato tcnico do saneamento tornaram

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 54

Sanitarismo e Planejamento Urbano

visvel o que a princpio estava invisvel, tornaram palpvel e presente no cotidiano parte
das fabulaes do imaginrio moderno.
O urbanismo sanitarista
brasileiro que muitos afirmam, j
nasceu moderno tem, na figura do
engenheiro Saturnino de Brito
(Figura 01) o seu maior expoente. A
grande ressonncia e influncia de
suas obras e idias (concretizadas em
dezenas de cidades brasileiras desde
fins do sculo XIX) possibilitaram a
criao de uma morfologia urbana
original cujo elemento norteador e de
maior destaque era o saneamento.17

Figura 01: Engenheiro Saturnino de Brito.


Fonte: REVISTA D.A.E., 1964.

A viso organicista da cidade e a crena na Teoria dos Meios18 fundamentaram a


concepo abrangente de Brito acerca da problemtica do saneamento, cujo fim foi assim
descrito:
Determinar os modificadores ou as modificaes dos agentes mesolgicos que
podem restabelecer ou garantir a sade dos indivduos, a salubridade nas
cidades, e providenciar sobre a execuo das medidas corretivas e preventivas
que alcancem este objetivo (BRASIL, 1943a, p. 32).

17
Ao longo de sua trajetria profissional, entre os anos de 1887 e 1929, quando do seu falecimento,
Saturnino de Brito desempenhou as mais diversas atividades, desde estudos para estradas de ferro at projetos
de saneamento responsveis pelo seu renome. Sua contribuio para o desenvolvimento da engenharia
sanitria no Brasil fez-se tambm por intermdio da participao em inmeros eventos cientficos, nacionais
e internacionais, divulgando suas tcnicas e seus procedimentos projetuais. As diretrizes de trabalho e
administrao, bem como os relatrios completos de suas realizaes, encontram-se em suas Obras
Completas. Composta por vinte e trs volumes, a coleo foi publicada entre os anos de 1942 e 1943, por
iniciativa do engenheiro Loureno Baeta Neves, a partir de um projeto apresentado Cmara de Deputados
(ALVARENGA, 1979). Cabe destacar que parte dos seus escritos tericos e tcnicos j haviam sido editados
em francs e permanecem ainda inditos em lngua portuguesa, como o importante Notes sur le Trac
Sanitaire des Villes (Paris, 1916), tese apresentada Association Gnrale des Hygienistes et Techniciens
Municipaux de France, etc., da qual Brito era membro de honra (FERREIRA et al, 2003).
18
A Teoria dos Meios, como explicita o prprio Saturnino de Brito, compunha-se das [...] relaes
recprocas entre os seres vivos e os modificadores mesolgicos (BRASIL, 1943a, p. 32).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 55

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Esse objetivo nortearia toda a atuao do engenheiro, ao considerar a influncia de


todos os elementos que compem o meio fsico quais fossem o ar atmosfrico, os solos e
as guas, as edificaes pblicas e particulares, as ruas, praas, parques e jardins, o lixo, e
as redes de abastecimento dgua e de esgotamento sanitrio , sobre a sade da populao
e sobre a salubridade dos centros urbanos, justificando assim, seus planos gerais. Nesse
plano estaria inscrito o futuro das cidades, representando uma necessidade objetiva, como
ele mesmo afirmou, [...] que se impe ao tcnico de saneamento, obrigando-o a exercer
uma atividade que caberia ao arquiteto urbanista ou ao planejador urbano. Sobre tal
questo, acrescentava que instintivamente, compreende-se que mais vale fazer algo nesta
orientao orgnica do que nada fazer e deixar a expanso das cidades depender do acaso,
dos caprichos dos proprietrios e das administraes locais (BRITO19 apud ANDRADE,
1996, p.294), demonstrando claramente a sua preocupao antecipada com a ao
especulativa sobre o solo urbano e com a conivncia, o clientelismo e a omisso por parte
dos poderes pblicos.
Alm disso, influenciado pelas operaes urbansticas realizadas em escala
mundial como a planta de LEnfant para Chicago , Brito chegava a detalhar
minuciosamente o traado da cidade, estabelecendo legalmente formatos e dimenses de
vias, de quarteires, de lotes, alm das caractersticas dos passeios pblicos e das
edificaes. Revela-se a muito do carter normativo que vigorou durante as primeiras
dcadas do sculo XX no Brasil, que ansiava, sobretudo, superar a imagem e as estruturas
do perodo colonial, e que concorreria, portanto, para a almejada modernizao da
paisagem urbana.
Para o sucesso de suas intervenes, Saturnino de Brito pautava-se em um amplo
diagnstico do local de interveno que contemplava os vrios aspectos da cidade, como a
topografia sanitria, a geologia, o traado existente, a tendncia de expanso, o clima, a
salubridade, a infra-estrutura, os ndices demogrfico-populacionais etc., reservando
especial destaque higiene domiciliar, considerando-a de [...] um valor sanitrio superior
ao da higiene das ruas, e apontando que [...] a propaganda ou a educao do povo para

19
BRASIL. Ministrio da Educao e Sade. Instituto Nacional do Livro. (Org.). Notes sur l Trace
Sanitaire ds Villes. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. (Obras Completas de Saturnino de Brito, v.
20).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 56

Sanitarismo e Planejamento Urbano

pratic-la deve ser empreendida no sentido de viabilizar e assegurar a salubridade das


habitaes (BRASIL, 1943a, p. 10).
Refletindo influncias do Positivismo, acreditava na educao da populao e no
saneamento corretivo e preventivo para assegurar a higiene pblica e privada. Defendia,
portanto, a medicina como sacerdcio, e o mdico como [...] conselheiro das famlias e
dos governos, o curador das almas e dos corpos, o educador fsico e moral da criana, sob a
inspirao feminina (BRASIL, 1943a, p. 36), que levaria populao a educao
higinica e a propaganda do saneamento, influenciando diretamente e aconselhando cada
morador, ao penetrar [...] em todas as casas em que o sofrimento aparece, conhecendo os
defeitos de higiene que determinaram ou favoreceram o surto do mal [...]. Na concepo
de Saturnino de Brito, esses mdicos acabariam por [...] levar a cada lar a educao e
orientao cvica para a submisso, sem perda de altivez, s acertadas decises
administrativas (BRASIL, 1943a, p. 35). Tal postura pode remeter ao carter repressor e
invasor do higienismo doutrina que, afirmava, vinha tentando introduzir no Brasil, ao
repetir as lies e os conselhos das principais autoridades no assunto, propondo
modificaes para [...] ser mais facilmente aceita em nosso meio social, pelas nossas
municipalidades, por demais apegadas a preconceitos [...] (BRASIL, 1944b, p. 168).
Adotava tambm como premissa para elaborao e execuo de seus projetos a
preocupao com a eficincia e economia, por meio da comparao entre materiais e,
principalmente, da realizao de experincias que possibilitariam uma melhor
exeqibilidade e qualidade da obra, bem como, a adoo de propostas adaptadas s
condies locais. Muitos dos equipamentos sanitrios tornaram-se reveladores de novas
tcnicas construtivas, embora mantendo estilos e padres arquitetnicos historicistas.
Ademais, alm das propostas tcnicas de elaborao das redes, consideradas
principais no mbito de atuao dos rgos de saneamento, eram indicados nos planos, de
uma forma geral, intervenes e obras de melhoramento na cidade existente. Alargamentos
de vias e novos traados, aterro e aproveitamento de reas inundveis, criao de parques e
bosques e construo de articulaes virias foram algumas das aes empreendidas que
imprimiram, tambm na cidade real, mudanas significativas em busca de um inovador,
ordenado e salubre traado urbano. De responsabilidade do Governo Estadual, esses planos
gerais e de expanso viriam aglutinar, consolidar e materializar os princpios de Saturnino

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 57

Sanitarismo e Planejamento Urbano

de Brito, prevendo-se revises sistemticas e atualizaes em seu contedo no intervalo de


15 (quinze) anos.
Assumia, portanto, a funo de urbanista, apontando para a necessidade de
conciliar a prudncia do senso prtico com as aspiraes do esteta, as utilidades e o belo
efeito, evitando os exageros da fantasia (BRASIL, 1944c, p. 174). Tais princpios foram
aplicados cuidadosamente em suas propostas, sendo emblemtico o projeto de expanso e
saneamento de Santos (1905 a 1910 Figura 02), considerado por Carlos Andrade (1992,
p.137) a sua mais importante obra urbanstica construda.

Figura 02: Planta do saneamento de Santos. Fonte: BRASIL (1943b).

O traado regular definido pela presena marcante dos canais a cu aberto, com
passeios, passadios e avenidas arborizadas, ensejaram a criao de uma nova cidade
pautada, sobretudo, em um moderno uso do espao pblico. Os aparatos tcnicos do
saneamento antes ocultos e despercebidos alaram, de forma inovadora, concreta e,

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 58

Sanitarismo e Planejamento Urbano

especialmente, visvel, uma posio de destaque nessa paisagem. Reproduziram o nascente


vigor da tcnica, da ordem e da racionalidade, atribuindo-lhes, ao mesmo tempo e de forma
conciliadora, novas aplicaes e conceitos. A cidade que ento se pensou tcnica e s, se
afirmou igualmente bela, artstica e aprazvel.20
No intuito de assegurar e regularizar a concretizao e a manuteno dessa
paisagem s e bela, Saturnino de Brito defendia a promulgao e efetivao, por parte do
Governo do Estado, de instrumentos jurdicos que assegurassem a expanso racional da
cidade e privilegiassem o interesse pblico e a ingerncia do poder pblico na execuo
dos planos. Aps definidos os planos de expanso e de arruamento, ficavam proibidas as
modificaes no traado virio da cidade e a construo de edificaes, sem a consulta
prvia da sua influncia no pleno funcionamento das redes de gua e de esgotos. De forma
a perpetuar os mecanismos legais, Brito advertia para uma reviso constante da legislao,
assessorada por engenheiros e legisladores a exemplo do que era realizado em outros
pases , a fim de atualiz-la frente s novas necessidades polticas, econmicas e sociais
que se impusessem ao longo do tempo.
Assim, antecipando alguns dos instrumentos que foram adotados pelos planos
urbansticos caractersticos da dcada de 1960 em diante,21 Brito discorria amplamente
acerca das especificaes de materiais e dimenses do sistema virio, indicaes de uso e
ocupao do solo, preocupaes com o meio ambiente e com a paisagem natural do stio de
interveno, e ainda sugeria mtodos de cobrana e tributao pelo uso do solo urbano.
Sobre este ltimo aspecto, na tentativa de viabilizar a implementao das obras e efetivar a
normalizao das edificaes pode-se citar o caso da cidade de Santos como exemplar ,
Saturnino de Brito tentava conciliar os interesses pblicos aos particulares, apontando para
um futuro retorno financeiro a partir da valorizao dos imveis originada pelos novos

20
Alguns de seus contemporneos tambm trouxeram importantes contribuies para o campo da engenharia
sanitria brasileira. Theodoro Sampaio, com sua atuao em So Paulo e, principalmente, com a proposta de
ampliao da rede de abastecimento dgua e criao da rede de esgotos de Salvador, em 1905, foi um dos
que reforaram a construo de uma paisagem urbana particular consubstanciada por meio da tcnica e do
saneamento. J Henrique de Novaes, cuja atuao incluiu cidades como Vitria, So Paulo, Rio de Janeiro,
Juiz de Fora, Fortaleza e Natal era propagador do iderio de Saturnino de Brito, concebendo os equipamentos
sanitrios, em seus projetos especialmente os reservatrios de gua como marcos, atribuindo-lhes uma
[...] situao de destaque, tanto mais quanto convenientemente desenhadas so as obras de aformoseamento
urbano (NOVAES, 1924, p.1).
21
Os planos diretores, os cdigos de obras, as leis relativas ao meio ambiente etc. da atualidade trazem muito
do que foi proposto por Saturnino no incio do sculo XX.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 59

Sanitarismo e Planejamento Urbano

servios , e atribuindo, assim, aos proprietrios dos terrenos no permetro beneficiado


pelas obras de saneamento e embelezamento uma contribuio de melhoria (plus value)
proporcional ao lucro obtido (BRASIL, 1944b, p. 187). Afirmava:
As propostas legislativas que fiz, submetendo-as aos competentes, procuram,
mais que outra qualquer lei dos pases citados (monarquias e repblicas),
conciliar interesses, de modo que todos concorram para o benefcio coletivo, do
qual colhem a maior parte das vantagens justamente aqueles que tiverem os seus
terrenos valorizados (BRASIL, 1944b, P. 192).

A legislao que props de modo pioneiro para a cidade de Santos, que serviu
como base para as demais propostas urbansticas por ele desenvolvidas, trazia, inclusive,
sugestes de procedimentos administrativos que viabilizassem a concretizao de seus
princpios, reforando a importncia do papel do Estado na efetivao das leis e no papel
de indutor da realizao dos planos gerais e de expanso em todas as cidades. Saturnino de
Brito concedia ao poder pblico, portanto, o direito de desapropriao de prdios ou zonas
edificadas para sanear; de demolio e modificao das ruas de acordo com a eficincia
das redes de gua e de esgotos, reservando espaos para praas ou parques e loteando e
vendendo os terrenos a edificar. Dessa forma, modificava os instrumentos legais existentes
em funo do saneamento, [...] dando-lhe uma latitude antes desconhecida como
necessria (BRASIL, 1944b, p. 188).
Em sua publicao Le Trace Sanitaire des Villes22, Saturnino de Brito expunha
as prescries com relao ao traado de novos bairros, especificando:
Em cada talvegue se traar uma viela, ou rua, ou avenida, retificando e
canalizando o curso. As outras ruas sero retas ou curvas, de direo normal s
curvas de nvel para o mais fcil esgotamento das guas de chuva e de esgotos
das habitaes. As ruas para o trnsito fcil sero estudadas transversalmente a
estas ltimas procurando o declive estipulado para o movimento de autos e
carroas. Os quarteires sero alongados com comprimentos mximos de 250
metros e largura de 60 a 80 metros, porque os lotes daro frente apenas para as
ruas normais s curvas de nvel. Os lotes sero de largura mnima de 12 metros
e comprimentos de 30 a 40 metros. Separando os quarteires alongados podero
ser traadas vielas para pedestres. As vielas tero larguras de 3,5 a 5,0 metros,
as ruas de 9 a 15 metros, com caladas para pedestres de 1,5 e 3,0 m
respectivamente, e as avenidas com duas faixas de trnsito desde 18 at 40
metros (SAMPAIO, 1952, p.13).

22
Esse trabalho de Saturnino de Brito foi publicado pela primeira vez pela Impriemerie Choix, em Paris, no
ano de 1916. At hoje no foi traduzido para o portugus, e se encontra reproduzido no volume 20
dedicado ao Urbanismo das Obras Completas de Saturnino de Brito, publicadas em 1943 pela Imprensa
Nacional, conforme j citado.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 60

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Ainda de acordo com Geraldo Sampaio (1952), Saturnino de Brito determinava


ndices com relao ao uso e ocupao do solo, os quais deveriam se adaptar s
peculiaridades do local de interveno. De forma geral, prescrevia para os seus projetos de
parcelamento a seguinte distribuio de reas: as ruas deveriam ocupar 26% da rea; os
parques, playgrounds e equipamentos de uso pblico-institucional (Igreja e escola), 13%;
os lotes residenciais, entre casas e apartamentos, 56%; os lotes destinados ao comrcio,
incluindo a feira e o mercado, 5%.23
Outra preocupao evidenciada pelo engenheiro faz referncia preservao das
caractersticas ambientais das cidades, apelando para a valorizao do pitoresco natural,
dos bosques e da vegetao existente e dos horizontes naturais (o mar, as montanhas, os
vales dos rios), defendendo que estes ltimos no deveriam ser interceptados.24
Por fim, os planos gerais de Saturnino de Brito, ao destacarem os canais de
drenagem das guas pluviais como elementos estruturadores do espao urbano, aliando-os
aos demais aspectos da cidade, no s corroboravam a salubridade do meio fsico, mas
indicavam a previso do crescimento das cidades, objetivando e concretizando uma nova
paisagem urbana, palco de novas sociabilidades, limpa e ordenada, onde se destacavam os
equipamentos sanitrios.
As amplas avenidas-parques, a concepo de inspirao sitteana de evitar
longas ruas retas, os canais a cu aberto, o isolamento das edificaes no lote
(atendendo as demandas higinicas relativas insolao, iluminao e
ventilao), eram alguns dos princpios utilizados por essa corrente do
urbanismo, que romperia a contigidade do espao urbano colonial e, assim,
traduziria e conformaria a (sua viso de) cidade moderna (FERREIRA et al,
2003a).

23
Os ndices referentes distribuio do espao pblico em planos de loteamentos ou de arruamentos foram
institudos pela Lei Federal n 6766 de 1979 que determinava um mnimo de 35% de reas pblicas. Esses
ndices s foram consolidados em Natal com o Plano Diretor de 1984 (Lei n 3.175/84) que, utilizando como
base a citada Lei Federal, ampliou para 40% o percentual total mnimo destinado a reas pblicas (20% - vias
de circulao; 15% - reas verdes; 5% - usos institucionais) (FERREIRA et. al, 2003a).
24
Essa prescrio, em Natal, foi determinante para a realizao das propostas do Escritrio Saturnino de
Brito incorporadas no Plano Geral de Obras (1935 a 1939), que considerou a adequao dos projetos s
peculiaridades ambientais da cidade. A preocupao com os horizontes naturais consiste em uma
importante diretriz do Plano Diretor da cidade de Natal (Lei complementar n 7, de 5 de Agosto de 1994),
determinando o controle de gabarito nas reas circundantes ao Parque das Dunas e ao litoral.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 61

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Seus princpios que revelam influncias de teorias e propostas urbansticas ento


disseminadas na Europa, como as proposies de Camillo Sitte,25 as do movimento cidade-
jardim e as do nascente urbanismo moderno, a partir das formulaes e propostas de
membros da Societ Franaise des Urbanistes anteciparam inmeras experincias
urbansticas posteriores, como as de Lcio Costa ou de Attlio Correia Lima, por exemplo
(ANDRADE, 1992; MOREIRA, 1997), bem como dos superplanos da dcada de 1960 e
1970. Constata-se, dessa forma, a importante contribuio de Saturnino de Brito para a
constituio do urbanismo e do planejamento urbano brasileiro.
Torna-se vlido ressaltar, para fechar esse item, a ressonncia dos princpios
sanitaristas de Saturnino de Brito em outros pases, como Frana e Argentina. Tanto as
suas obras construdas quanto os seus escritos no Brasil, bem como a comunicao que
mantinha com Dr. Imbeaux, presidente da Association des Hyginistes et Tchniciens
Municipaux, em Paris, o renderam reconhecimento internacional embora nunca tenha
sado do Brasil , tornando-o, ainda em 1905, membro de honra daquela associao. O seu
livro Notes sur le Trac Sanitaire des Villes dedicado ao Dr. Imbeaux foi divulgado em
toda a Europa, merecendo o prmio do diploma de higiene e da meno de higiene.
Em 1926, como corolrio da importncia que alcanou na Frana, o Governo daquele pas
conferiu-lhe o grau de cavaleiro da Legio de Honra, na qualidade de savant et ami de la
France (BRITO FILHO, 1979). Essas passagens traduzem a consolidao e
reconhecimento do pioneirismo de Saturnino de Brito como promotor e impulsionador de
uma tcnica sanitria prpria, adequada aos problemas, s condies, s necessidades e ao
ambiente brasileiro.

Escritrio Saturnino de Brito: urbanismo sanitarista e


planejamento urbano

Consolidando a sua experincia profissional de mais de 30 anos, Saturnino de


Brito fundou, em 1920, o Escritrio de Engenharia Civil e Sanitria Francisco Saturnino de

25
O arquiteto austraco Camillo Sitte, que muito influenciou as formulaes tericas e as realizaes prticas
de Brito, autor de uma das obras fundamentais da vertente culturalista do urbanismo moderno: A
Construo de Cidades segundo seus Princpios Artsticos (1889; a edio brasileira de 1992).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 62

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Brito, com o objetivo de prestar servios de consultoria, projeto e construo de obras de


saneamento e engenharia hidrulica (ESCRITRIO..., [19--]), alm de administrao e
fiscalizao de obras.
O carter tcnico daquela instituio foi estabelecido em uma Circular de
Fundao, documento publicado na plaqueta em comemorao aos seus 40 anos de
existncia, que expunha, alm dos encargos e funes que interessavam e seriam
desempenhadas, as esferas de atuao que no condiziam com o perfil da instituio:
Encarrega-se de:
Pareceres sobre projetos e servios
Instrues e especificaes para execuo de trabalhos pblicos e particulares
Estudos de campo, plantas e projetos; desenhos e cpias
Direo e fiscalizao da execuo de trabalhos
Fiscalizao do fornecimento de materiais, no pas e no estrangeiro
Servir como consultor tcnico das reparties pblicas federais, estaduais ou
municipais e nas obras de interesse geral executadas por empresas nacionais e
estrangeiras.
No se encarrega de:
Construes por empreitada
Comrcio em geral
Representaes lucrativas de fornecedores ou fabricantes de materiais e
maquinismo
Animar ou explorar inventos privilegiados (ESCRITRIO..., [19--]).

Considerada uma das organizaes de carter puramente tcnico pioneiras no


Brasil (REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA, 1929), o Escritrio prestou, entre os
anos de 1920 e 1930 e sob a administrao do seu fundador, servios para inmeras
administraes pblicas, dentre as quais destacam-se: Governo do estado do Paran
(1920); Governo do estado do Rio Grande do Sul (1920 1929); Prefeitura Municipal de
Uberaba (1920); Governo do estado da Paraba (1922 1924); Prefeitura do Distrito
Federal (1922); Governo do estado de Sergipe (1923 1926); Prefeitura Municipal de So
Paulo (1924 1926); Governo do estado do Rio de Janeiro (1925 1929); Governo do
estado da Bahia (1926); Prefeitura Municipal de Poos de Caldas (1927); Prefeitura
Municipal de Pelotas (1927 1930); Governo do estado de Minas Gerais (1928).
O falecimento de Saturnino de Brito, em 1929, enquanto inspecionava as obras em
Pelotas, marcou a mudana da direo do Escritrio, ao assumir o engenheiro Francisco
Saturnino de Brito Filho (Figura 03), sem significar, no entanto, alteraes nos seus
procedimentos administrativos e tcnico-projetuais. Nesse momento, o nome da empresa
ento se redefiniu para Escritrio Saturnino de Brito.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 63

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Figura 03: Saturnino de Brito Filho. Fonte: REVISTA D.A.E (1964).

Brito Filho, formado em Engenharia Civil e de Minas, em 18 de junho de 1923


pela Escola de Ouro Preto, comprometeu-se em seguir os ideais que antes orientavam as
propostas de seu pai, pronunciando:
Queremos significar que a matria de sua vida constituir para ns o mais
poderoso estmulo para prosseguir na diretriz certa que fixou e prolongar
atravs do tempo a elevada iniciativa que tomou em benefcio do
aperfeioamento das nossas cidades e da sade de nossas populaes
(ESCRITRIO..., [19--]).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 64

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Alm dos procedimentos, foi mantida boa parte do corpo tcnico do Escritrio,
que incorporava importantes nomes da engenharia sanitria nacional, como Geraldo
Sampaio, Povoa de Brito, Francisco de Gouveia Moura, Henrique Batista, Floro Dria, Rui
Buarque, e Jos Fernal. Alm dos consultores Miguel Presgrave, Loureno Baeta Neves e
A. C. de Frana Meireles.
O acerto da incomparvel norma deixada por Saturnino de Brito e a
competncia e exemplar conduta deste pessoal tcnico conjugaram-se reta
viso das nossas administraes pblicas e das populaes em geral, para se
consubstanciarem nas numerosas realizaes de trabalho sob bases meramente
tcnicas que levamos a termo (ESCRITRIO..., [19--]).

frente do Escritrio, Brito Filho deu continuidade s obras de seu pai,


realizando vrios trabalhos junto s administraes estaduais e municipais, e atendeu, entre
as dcadas de 1930 e 1940, ao Governo do estado da Bahia (fins de 1929 1936); Governo
do estado de Pernambuco (1930 1931 e 1933 1936); Governo do estado do Rio de
Janeiro (1938 e 1940 em diante); Prefeitura Municipal de Poos de Caldas (1933 1936);
Governo do estado do Rio Grande do Norte (1934 1939, e 1939 em diante); Prefeitura
Municipal de Itabuna (1934 1937); Cia. Industrial Pira (1934 e 1940); Governo do
estado da Paraba (1936 1938); Governo Federal (1936 1937); Departamento das
Municipalidades de S. Paulo (1938 1939); Prefeitura Municipal de Macei (1938
1939); Prefeitura Municipal de Campo Grande (1938 1940); Governo do estado do Cear
(1939 em diante); Prefeitura Municipal de Petrpolis (1940); Cia. guas Termais de S.
Pedro, estado de S. Paulo (1939 em diante); Governo do estado do Amazonas (1941);
Governo do estado do Piau (1941); Prefeitura Municipal de Parnaba (1941); Prefeitura
Municipal de Campo Maior (1941); alm de outros trabalhos menores. (ESCRITRIO...,
[19--]).26
Registram-se ainda, a administrao dos servios frente da Comisso de
Saneamento de Macei (1947 e 1951); estudos para o abastecimento dgua de Guarabira
PB (1952); ampliao dos servios de abastecimento dgua de Aracaju (1957 1959);
ampliao das redes em Joo Pessoa PB (1967 1968); projetos de abastecimento dgua

26
A partir dos documentos at agora catalogados, no possvel identificar em quais cidades o Escritrio
elaborou planos gerais e de expanso, indicando a anlise dos projetos e propostas para outras cidades do
Brasil a serem desenvolvidas em futuros trabalhos.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 65

Sanitarismo e Planejamento Urbano

e administrao dos servios de Manaus AM (1968 1969); administrao dos servios


(dcadas de 1960 e 1970) (DRIA, [1976?], p.205).27

Figura 04: Mapa que ilustra as cidades em que o Escritrio atuou. Fonte: ESCRITRIO... [19--].

27
Cabe destacar que esses servios foram apenas os que Floro Dria estava envolvido. Certamente, muitas
outras cidades e estados foram contemplados pela atuao do Escritrio entre as dcadas de 1960 e 1970.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 66

Sanitarismo e Planejamento Urbano

Alm dos servios diretamente vinculados introduo e administrao das redes


de gua e de esgotos, o Escritrio atuava tambm como consultor e autor de projetos de
desenho urbano, como ilustra a proposta elaborada para a sede da Colnia Agrcola
Nacional de Gois, em 1944. O prprio Brito Filho, em artigo publicado na Revista do
Clube de Engenharia, retomou o projeto, ressaltando a obedincia aos critrios sanitaristas
tanto nas dimenses dos lotes como no traado das vias de acordo com os princpios
sanitrios, que, adaptando-se topografia do terreno, proporcionavam um fcil escoamento
das guas servidas e das contribuies pluviais (REVISTA DO CLUBE DE
ENGENHARIA, 1959).
Em paralelo elaborao e concretizao dos projetos e propostas de cunho
sanitaristas citadas anteriormente, Brito Filho, a exemplo do seu pai, preocupou-se em
difundir, defender e legitimar os seus princpios, prestando uma vasta contribuio para o
avano e especializao da engenharia brasileira, espelhando-se, para tanto, em suas
prprias obras construdas. Destacam-se a sua participao em inmeros congressos
nacionais e internacionais, a sua atuao frente de entidades profissionais ocupando os
cargos de Presidente e Vice-Presidente do Clube de Engenharia, ao mesmo tempo em que
presidia tambm a Engenharia Editora S.A. e o Servio de Atividades Culturais do Clube
de Engenharia; de Presidente da Federao Brasileira de Associaes de Engenheiros
(FEBRAE); de membro da Unin Pan-Americana de Associaciones de Inginieros28
(UPADI); alm da sua atividade docente como professor de Higiene e Saneamento das
Cidades na Escola Nacional de Engenharia.
Do seu pai, Saturnino de Brito Filho herdou o amor ao planejamento detalhado,
mincia descritiva, engenharia a servio do homem. Seus trabalhos so
numerosos. E a empresa que dirige, o Escritrio Saturnino de Brito, da maior
respeitabilidade nos planos nacional e internacional (REVISTA DO CLUBE
DE ENGENHARIA, 1976, p. 19).

A tese por ele apresentada, em 1941, ao Primeiro Congresso Brasileiro de


Urbanismo, por exemplo, remonta ao projeto de transformao e modernizao gestado
desde o final do sculo XIX pela gerao da qual o seu pai fez parte que falava no

28
Essa entidade, criada em 1949 no Rio de Janeiro, reunia associaes nacionais de engenheiros de 25 pases,
sendo 21 latino-americanos, visando, sobretudo, a promoo do intercmbio de conhecimentos na rea da
engenharia, promovendo conferncias, congressos e encontros anuais. Em 1976, Brito Filho coordenou a
XIV Conveno da UPADI, que ocorria simultaneamente ao VII Congresso Pan-Americano de Ensino da
Engenharia e II Exposio de Engenharia e Indstria, que tinham como tema A Engenharia e o
Desenvolvimento Integrado nos Pases da Amrica (REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA, 1976).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 67

Sanitarismo e Planejamento Urbano

somente das cidades brasileiras, mas do prprio pas, tendo como eixo as tcnicas do
saneamento e as diretrizes da sade pblica. Vinculando estritamente a higiene educao,
fez da metfora do corpo nacional sua justificativa. Em um pas de cidades insalubres e
povo doente, afirmava-se, o urbanismo sanitarista seria o meio para a introduo de
melhoramentos da qualidade de vida da populao. Assim, ao discursar sobre A
Higiotcnica e o Urbanismo, Brito Filho (1941) retomou os preceitos e reafirmou o lugar e
a importncia da abordagem abrangente sobre a cidade que marcara as formulaes do
urbanismo sanitarista, a qual estava filialmente ligado. Comeando pelo ttulo, que
recupera o tema da parte inicial do texto sobre os Esgotos da Cidade de Saturnino de
Brito29, essa reafirmao passou pelo vnculo estrito dos planos de urbanismo s
necessidades tcnicas das redes de saneamento, pela querela com os resultados da
evoluo pasteuriana que mudara o foco da atuao mdica do ambiente para o
indivduo , pela relao entre o chamado organismo-cidade e o organismo-indivduo ou
mesmo pelo reconhecimento da obra de seu pai como um conjunto de experincias
formativas do urbanismo no Brasil.
A atuao multifacetada de Brito Filho possibilitou a publicao de incontveis
artigos referentes no s engenharia sanitria em especial, mas estendendo-se, por vezes,
a assuntos mais abrangentes; ao mesmo tempo, permitiu a circulao do engenheiro por
diversos meios profissionais, alargando sua alada de ao e promovendo o Escritrio
Saturnino de Brito em mbito nacional e internacional. Proporcionou ainda a atualizao
de Brito Filho em meio s discusses contemporneas acerca no s da engenharia, mas
dos campos afins e dos aspectos tcnicos e culturais em geral. Como exemplo, pode-se
citar o artigo intitulado Novidades eletrnicas na operao dos servios tcnicos (BRITO
FILHO, 1956), onde discute e defende a utilizao do computador na otimizao de
inmeros servios a cargo da engenharia, a partir da programao de mquinas e do
clculo de problemas complexos, publicado na Revista do Clube de Engenharia, em 1956.
Essa atualizao refletiu-se no apenas na produo terica do engenheiro, mas
tambm nos seus procedimentos tcnico-projetuais e o caso de Natal exemplar ,
introduzindo, ao longo dos anos, inovaes tcnicas e elementos da arquitetura e do

29
A primeira parte desse texto intitula-se Os problemas da higiotecnia e contemporneo aos trabalhos de
Brito em Santos, na primeira dcada do sculo XX; foi republicado nas Obras Completas de Saturnino de
Brito (1943, p.13-36).

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 68

Sanitarismo e Planejamento Urbano

urbanismo moderno em suas propostas, sem perder, no entanto, o mote sanitarista como
eixo central de suas intervenes. Esse mote sanitarista e o carter reto impressos desde a
fundao do Escritrio continuaram a determinar a racionalidade e a eficincia tcnica das
obras, assim como os procedimentos administrativos caractersticos desde as primeiras
obras de Saturnino de Brito. O sistema de administrao contratada30 em detrimento dos
contratos por empreitada que se disseminavam pelo Brasil e que dispunham de uma maior
flexibilidade e conseqente aceitao por parte das administraes pblicas continuava
estabelecido nos decretos contratuais que, ressalte-se, eram redigidos pelo prprio
Escritrio, permanecendo inerente e intacto ao longo da atuao daquela instituio,
independente dos interesses polticos e econmicos locais que gradativamente se
consolidavam no contexto poltico nacional. Reafirma-se, ento, a f positiva na
neutralidade do saber tcnico posta em prtica em suas atuaes ao longo do pas e gestes
politicamente imparciais que certamente corroboraram a sua permanncia em inmeras
cidades brasileiras e em Natal, em particular, onde atuou durante mais de 30 anos,
perpassando por vrios contextos polticos e econmicos.
Floro Dria que dedicou 51 anos de vida profissional ao Escritrio Saturnino de
Brito, desempenhando a posio de Preposto em vrias cidades do Brasil, e chegando a
ocupar o cargo de Inspetor regional do Escritrio, assim resume a personalidade de
Saturnino de Brito Filho:
1) No aparentava ser o que era: um dos maiores engenheiros sanitaristas da
Amrica do Sul e alhures, reconhecido pelas maiores autoridades no assunto e
congressos internacionais. Elemento de destaque na Confederao Sul-
Americana de Engenheiros. Sua vida inteiramente dedicada Engenharia.
2) Continuador obrigatrio da grande obra iniciada pelo seu pai e patrono do
Escritrio Saturnino de Brito.
3) Foi um grande chefe que soube sempre apoiar integralmente os prepostos do
ESB, nos diversos estados do pas, dando-lhes cobertura na hora precisa,
sempre pronto a nos ouvir nos casos difceis que se apresentavam; chegando-se
sempre a um bom resultado. Possua conhecimentos jurdicos para discutir com
os elementos mais abalizados em matria de Direito, e grande cultura geral.

30
Em entrevista realizada em 09 de abril de 2001, o engenheiro Marcelo Adeodato, preposto do Escritrio
Saturnino de Brito em Natal durante a dcada de 60, afirmou que, pelo sistema de administrao contratada,
cabia ao Escritrio Saturnino de Brito a contratao e remunerao do pessoal tcnico, operrios e materiais
para os servios de estudos e projetos. Ao governo, alm das outras despesas com estudos, medies,
indenizaes, pessoal administrativo, caberia o pagamento ao Escritrio da quantia equivalente a 10% do
valor total dos servios incluindo a arrecadao proveniente.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 69

Sanitarismo e Planejamento Urbano

4) Quem o acusasse injustamente ou menosprezasse um seu projeto, aguardasse


a resposta altura e neste ponto ningum o excedia ao meu ver. Era fora de
srie (DRIA, [1976?], p.205).

Por outro lado, aponta para alguns aspectos controvertidos do seu chefe, assim o
definindo:
1) Na realidade, no era bom administrador. Era vaidoso, desconhecido,
vingativo e frio.
2) Aquecessvel aos que no contrariassem os seus pontos de vista. CAUIRA,
com aqueles que trabalhavam elevando cada dia o conceito do Escritrio.31
3) Mo aberta como relaes pblicas, para aqueles que futuramente pudessem
trazer-lhe vantagens, principalmente se fossem estrangeiros (DRIA, [1976?],
p.205 - 206).

O mau desempenho em matria de administrao, por parte de Brito Filho, a que


se refere Floro Dria foi confirmado pelo desencadeamento de uma sria crise financeira
enfrentada pelo Escritrio a partir do momento em que cessaram os contratos para a
administrao de reparties, em 1969, na medida em que a administrao do Escritrio
centralizou-se unicamente nas mos do Presidente, contrariando as expectativas de
aumento na arrecadao daquela instituio que passara a se dedicar unicamente
elaborao de projetos, atividade de maior rentabilidade, de acordo com Floro Dria.
Essa crise acabou por desencadear srios atritos no setor de projetos, acarretando,
em 1976, o afastamento de vrios funcionrios considerados de suma importncia para o
Escritrio, como Floro Dria e Geraldo Sampaio, este ltimo considerado [...] o eixo sob
o qual girou o Escritrio Saturnino de Brito durante 46 anos (DRIA, [1976?], p.205 -
206). O falecimento de Saturnino de Brito Filho, em agosto de 1978 no Rio de Janeiro,
somente apressou o fim da instituio, como pode-se comprovar a partir das palavras de
Floro Dria
Perdeu o Brasil, um grande engenheiro que dedicou toda a sua vida a
engenharia hidrulica e sanitria, levando consigo como programara em vida, o
Escritrio Saturnino de Brito. Excluiu os continuadores da grande obra do seu
pai e patrono do Escritrio, admirado e reverenciada a sua memria por todos
ns.
Nunca quis organizar uma equipe moa para continuar a obra de Saturnino de
Brito, preferindo sepult-la consigo, pela vaidade encoberta que sempre o
acompanhou (DRIA, [1976?], p.224).

31
Floro Dria enuncia inmeras situaes em que insinua uma certo lado mesquinho de Brito Filho,
principalmente com relao aos funcionrios do ESB.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 70

Sanitarismo e Planejamento Urbano

O Escritrio permaneceu ativo, sob a direo do engenheiro Luis Marcelo Gomes


Adeodato que tambm fora Preposto em Natal , resistindo somente at os primeiros
anos da dcada de 80, quando j se apresentavam sucateadas as suas instalaes. Nesse
momento, os acionistas resolveram, em Assemblia, vender os imveis pertencentes
sociedade em comandita por aes, rateando o capital arrecadado entre eles.
Termina, a, a trajetria do Escritrio Saturnino de Brito que, em mais de sessenta
anos de atividade, permaneceu nos meios tcnicos e intelectuais, repercutindo nacional e
internacionalmente, mesmo quando, considerava-se, a vertente sanitarista j havia findado.
Cabe registrar, portanto, que se a atuao e a importncia do engenheiro Saturnino de Brito
para a constituio do urbanismo moderno no Brasil j foi amplamente discutida no meio
acadmico brasileiro, o mesmo no pode ser dito sobre a trajetria do Escritrio fundado
por ele em 1920 que permaneceu em atividade por mais de 60 anos. Continuador e
atualizador da tradio do chamado urbanismo sanitarista de seu fundador, fato que, a
despeito da vasta atuao em dezenas de cidades de todas as regies brasileiras, o
Escritrio praticamente desaparece na historiografia urbanstica nacional. Mais ainda,
registra-se a escassez de discusses e estudos acerca da ressonncia ou da continuidade da
influncia dessa tradio na consolidao do urbanismo no Brasil no perodo posterior a
1930 ou, muito menos, na introduo ou passagem para o planejamento urbano. Frente
grande produo (terica e prtica) de Saturnino de Brito desde o final do sculo XIX at
1929, ano de seu falecimento, o desaparecimento sbito dessa vertente deveria causar
alguma estranheza e muitos questionamentos, pelo menos, na produo historiogrfica
nacional.
primeira vista um discurso conservador, fora do lugar, fin-de-sicle, com suas
palavras de ordem em torno da salubridade urbana e da metfora da cidade como corpo
so, sabe-se que tais teses no eram meras peas de retrica. frente do Escritrio, Brito
Filho dirigiu e coordenou os estudos e a elaborao dos projetos que resultariam na
consecuo das redes de saneamento de Natal na dcada de 1930 e de muitas outras
cidades, como Campina Grande-PB e Campo Grande-MT, nas dcadas seguintes. Os
argumentos de sua tese eram reflexes sobre a vasta prtica acumulada do Escritrio e
sobre os princpios tericos e filosficos que a animavam. Discutindo o Saneamento do
Recife, cujas projetos e obras foram coordenados por Saturnino de Brito na dcada de
1910, Brito Filho diria que, apesar da abordagem integral do problema urbano visto

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
ESCRITRIO SATURNINO DE BRITO 71

Sanitarismo e Planejamento Urbano

como um problema higinico , a cidade do Recife, mais de duas dcadas aps a


concluso das obras, ainda no era uma cidade saneada. Sem um plano geral de
melhoramentos e expanso conjugando todos os esforos, que incluam a reforma das
habitaes e a educao do povo em hbitos civilizados de higiene, a salubridade urbana
no podia ser alcanada (BRITO FILHO, 1941, p.04-10). Da se entende porque, mesmo
no contratado para tanto, o Escritrio props um Plano Geral de Obras para Natal que
abrangia propostas de novos edifcios, melhoramentos urbanos, ordenamento e expanso
da malha urbana existente, e os submetiam aos imperativos tcnicos da melhor soluo
para as redes do saneamento da cidade (FERREIRA et al., 2003b).
Alm disso, tomando o caso de Natal que ser analisado posteriormente no
trabalho como exemplo, pode-se inferir que a atuao do Escritrio Saturnino de Brito
perpassa pelos trs momentos que pontuaram o quadro de formao e consolidao do
urbanismo no Brasil. Em um primeiro momento, caracterizando as primeiras aes de
Saturnino de Brito, observa-se a concretizao de obras de melhoramentos urbanos,
restringindo-se ainda introduo do saneamento. Com a elaborao do seu projeto para
Santos, Brito antecipa as prticas urbansticas do segundo momento, j incorporando
preocupaes com a eficincia viria e com a expanso da cidade. No entanto, a introduo
do urbanismo tal e qual a segunda terminologia abordada no trabalho consolida-se com a
elaborao do Plano Geral de Obras para Natal, j fundamentado em um amplo diagnstico
e incorporando princpios do urbanismo moderno em paralelo s obras de saneamento.
Posteriormente, o Escritrio assume ainda, funes que perfilavam o planejamento urbano,
com a criao do Departamento de Saneamento do Estado (DSE) e a ampliao de sua
ao fiscalizao e ao controle do espao construdo da cidade. Tendo como mote central
o saneamento da cidade, o urbanismo sanitarista de Saturnino de Brito, pode-se afirmar,
vai ser adaptado e reformulado ao longo dos anos, de acordo com as modificaes nos
contextos polticos, econmicos, sociais e culturais, e sobretudo, tcnicos e urbansticos
que se firmam ao longo dos 60 anos de atuao do Escritrio.

PARTE I
Do Urbanismo Sanitarista ao Planejamento Urbano: aspectos terico conceituais
PRIMEIRO MOMENTO 74

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Esse momento, que compreende a segunda metade da dcada de 1930, marca o


arremate das aes higienizadoras sobre a cidade que se desenrolaram desde meados do
sculo XIX at a dcada de 1930, e que foram retomadas e incorporadas na concepo do
Plano Geral de Obras, elaborado e implementado pelo Escritrio Saturnino de Brito, entre
1935 e 1939. Ressaltando os princpios do Urbanismo Sanitarista e tendo o saneamento
como eixo norteador e elemento central das propostas de desenho urbano e da formulao
de instrumentos de regulao e ordenamento do crescimento da cidade, o Plano Geral de
Obras, ao introduzir, definitivamente, as redes de gua e esgotos na cidade, acabou por
coroar todo um momento em que as tentativas se davam no sentido de higienizar a cidade,
evidenciando a idealizao de uma cidade planejada e controlada, cujo processo de
urbanizao deveria ser antecipado e orientado, de acordo com a melhor soluo para as
redes sanitrias.
Assim, no intuito de melhor entender esse primeiro momento da urbanizao de
Natal definido pela periodizao adotada no trabalho , o presente captulo tenta retomar
as condies histricas que permitiram a elaborao e a concretizao do Plano Geral de
Obras, os princpios e as influncias impressos em sua concepo, as instituies
envolvidas, o teor das propostas e as possveis conseqncias para a configurao urbana
da cidade.
Para tanto, inicialmente ser analisado o contexto poltico e econmico nacional e
local, a fim de identificar a forma de interpretao dos problemas urbanos no momento e,
ao mesmo tempo, apontar os fatores que nortearam, permitiram e impulsionaram a
elaborao e implementao do Plano Geral de Obras. Feito isso, dar-se- incio anlise
dessa interveno, a partir do estudo das instituies que a viabilizaram e das balizas legais
que a direcionaram; do modo de apreenso e de reconhecimento das caractersticas e das
peculiaridades locais; e do detalhamento de cada projeto elaborado. Assim, pode-se
observar a vinculao do Plano ao iderio sanitarista do Escritrio Saturnino de Brito, bem
como as suas contribuies para o ordenamento espacial do crescimento de Natal.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 75

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Condies histricas: a higiene no cerne da problemtica


urbana
A Revoluo de 1930 e os anseios de higienizao da cidade

De uma forma geral, com a Revoluo de 1930, ocorreram inmeras


transformaes nas funes e na estrutura do Estado brasileiro, com a emergncia de novas
classes sociais urbanas e com a reestruturao das relaes entre Estado e sociedade. A
dcada de 1930 possibilitou, portanto, a criao das condies histricas para a
consolidao do Estado burgus, e do seu novo sistema de instituies polticas e
econmicas, alm da afirmao dos valores scio-culturais burgueses. Observa-se, ento, a
transio do Estado oligrquico caracteristicamente rural , para o Estado Burgus, de
carter eminentemente urbano, que acabou por impulsionar [...] a passagem de uma
estrutura econmico-social provinciana e rural para uma outra, urbano-industrial
(FERRARA, 2001, p. 285).
s cidades, foram atribudas novas funes, transformando-as em espao de
novas relaes sociais e econmicas, principalmente em virtude do incipiente processo de
industrializao que gerara um ambiente urbano mais complexo, e, sobretudo, mais
independente da cultura agrria. Os novos grupos sociais que emergiram a partir desse
processo a classe operria, a classe mdia e um empresariado industrial , imprimiram-se
na configurao urbana dos principais centros do Brasil, promovendo tambm o
surgimento de novos espaos.
E assim consolidou-se uma vitria importante, ainda que parcial, da cidade
sobre o campo. Pouco a pouco, as classes sociais de mentalidade e interesses
caracteristicamente urbanos impuseram-se por sobre a mentalidade e os
interesses enraizados na economia primria exportadora (IANNI, 1977, p. 22).

Observa-se que, ao passo em que a industrializao era um processo almejado


pelas elites polticas e econmicas, o processo de urbanizao era ainda indesejado, tendo-
se em vista que, com um maior contingente populacional concentrado nas grandes cidades,
os problemas urbanos, embora j existissem, passaram a representar desconforto e mesmo
perigo para as classes sociais urbanas, principalmente para as elites, comeando a ser
tematizados e debatidos. A cidade, por sua vez, configurou-se como alvo de anlises e de

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 76

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

intervenes reparadoras, dentro do programa de modernizao levado a cabo por Getlio


Vargas durante o Estado Novo.
No tratamento desses problemas urbanos, restrito principalmente ao tcnica e
corretiva do engenheiro sob a forma de planos urbanos que discutiam e definiam tais
problemas a partir de uma nova ordem tcnica baseada no diagnstico, no planejamento e
na interveno , predominavam ainda as influncias do higienismo, principalmente no
que se refere concepo de cidade adotada. A metfora organicista que norteou inmeras
propostas e planos urbansticos no incio do sculo XX e que, ressalte-se, continuou a
orientar a atuao do Escritrio Saturnino de Brito por toda a sua trajetria profissional,
implicava em estratgias de controle social fundamentadas em prticas de higiene
intimamente relacionadas com normas morais.
A analogia cidade x organismo vivo, ao prescrever a sade e o movimento como
essenciais vida humana, marcou um momento em que o urbanismo tinha como questes
centrais a higiene e a circulao, justificando assim, a realizao de inmeras obras de
saneamento e de reforma e ampliao do sistema virio como fundamentais para o
funcionamento da cidade (GUNN e CORREIA, 2001). Reconhecendo a importncia do
indivduo seus hbitos e prticas sociais para a eficincia das cidades, e considerando a
relao de interdependncia entre o organismo humano e o organismo urbano, o
saneamento se impunha como promotor de novos hbitos de higiene pessoal. Dessa forma,
a sade e a circulao se articulam como questes bsicas na problematizao da cidade;
como pontos cruciais do bom funcionamento do organismo urbano e dos organismos dos
seus habitantes (GUNN e CORREIA, 2001, p. 240).
Justificaram-se, a partir desses pressupostos, as inmeras obras de saneamento e
de estruturao do sistema virio e de transportes realizadas em vrias cidades do Brasil,
como introdutores da civilidade, imprimindo nos cenrios urbanos as condies de
salubridade, higiene e modernidade to almejadas no processo de afirmao de uma
identidade nacional.
Ressalte-se ainda que, nesse momento, a classe dominante brasileira ainda
dispunha de uma proposta urbana, baseada nos seus prprios interesses, que era
apresentada com antecedncia e, como forma de legitimao, debatida abertamente frente

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 77

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

populao. Assim, dotada de poder de liderana na esfera urbana para executar as


intervenes que julgasse necessrias, a elite estimulou a concretizao de obras que
privilegiavam reas especficas da cidade, como a remodelao do centro, principalmente
no que se refere reforma do sistema virio (VILLAA, 1999).
Consolidou-se, ento, um ideal de cidade s, salubre, moderna e, ao mesmo tempo
bela, adaptada s necessidades da elite e seus novos recursos tecnolgicos como, por
exemplo, o automvel. A implementao e a efetivao dos planos e projetos de
remodelao e reforma, introduo de infra-estrutura e extenso, bem como a legitimao
dos instrumentos legais estabelecidos nas intervenes, eram propiciadas, nesse momento,
pelas baixas densidades das cidades, permitindo o controle e a ingerncia por parte da
administrao pblica e das elites dominantes. Em paralelo, a classe proletria, que se
expandia a cada dia, permanecia margem do processo de urbanizao, segregadas nos
arrabaldes e na periferia, longe dos olhos do visitante e da elite, desprovidas de quaisquer
benefcios em meio s operaes urbansticas.

Natal, dcada de 1930: desenvolvimento econmico e obras de


saneamento

Antes de entrar na caracterizao do contexto local na dcada de 1930, fez-se


necessria uma breve abordagem acerca das intervenes elaboradas e realizadas em Natal
entre fins do sculo XIX e incio do sculo XX que traziam em suas concepes, de forma
direta ou indireta, a preocupao com a higiene e com a salubridade urbana. A partir dessa
abordagem, pretende-se melhor fundamentar no apenas a anlise das condies histricas
que condicionaram a contratao do Escritrio Saturnino de Brito, como tambm embasar
o estudo acerca do Plano Geral de Obras, na medida em que esse Plano retomou e
incorporou inmeros aspectos contidos nas propostas que o antecederam.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 78

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Antecedentes histricos: tentativas de higienizao da cidade nas primeiras dcadas do


sculo XX

Observa-se que, em Natal, o projeto modernizador das elites polticas e


econmicas culminou, desde a Proclamao da Repblica, em inmeras intervenes
urbansticas e iniciativas governamentais, como o caso das propostas de reforma
urbana realizadas durante a gesto da oligarquia Albuquerque Maranho (1892-1913); do
Plano Geral de Obras de Saneamento de Henrique de Novaes (1924); e do Plano Geral de
Sistematizao de Giacomo Palumbo (1929-1930) que se apresenta como a concretizao
das transformaes urbanas promovidas pelo prefeito Omar OGrady (1924-1930).
Em meio s inmeras aes concretizadas pela oligarquia Albuquerque Maranho
durante os vinte e um anos em que permaneceu no poder, destaca-se a primeira interveno
urbanstica sistematizada considerada pela historiografia local que previa, j de acordo
com os ditames da ordem higienista, um novo bairro para Natal, a Cidade Nova (1901-
1904 Figura 05).

Figura 05: Bairro Cidade Nova, 1904. Fonte: FERREIRA et.al (2003).

Formalizada pelo tcnico agrimensor Antnio Polidrelli, a proposta de desenho


urbano incorporava, tambm, preocupaes relativas questo sanitria, atravs da

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 79

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

introduo de melhoramentos na rea central, alm da expanso da cidade. O novo traado


ortogonal contrastava com a irregularidade da cidade colonial, estabelecendo os elementos
principais do sistema virio que viriam orientar, a partir do seu prolongamento, o futuro
crescimento de uma parte da cidade atual.
Posteriormente, em 1924, coube ao engenheiro Henrique de Novaes como chefe
da Comisso de Saneamento de Natal (CSN) criada naquele mesmo ano , elaborar os
projetos das redes de abastecimento dgua e de esgotos, alm de estudar e projetar a
ampliao da cidade, resultando no Plano Geral de Obras de Saneamento de Natal (Figura
06). Revelando a sua filiao ao urbanismo sanitarista e praticando o discurso das elites
administrativas, Novaes propunha a reforma e expanso da cidade existente, buscando
elevar Natal a um patamar de destaque no cenrio regional (FERREIRA et. al. 2003a).

Figura 06: Plano Geral de Obras de Saneamento de Natal - Blueprint, 1924. Fonte: Acervo HIDROESB.

Durante a gesto de Omar OGrady, na segunda metade da dcada de 1920,


tomou-se partido de uma srie de normatizaes especficas, buscando adequar Natal sua
posio de destaque no contexto de origem da aviao comercial. Utilizou-se, para tanto,
do urbanismo como forma de administrao da cidade, retomando os princpios norte-
americanos de gesto do espao urbano e revelando a prioridade aos atributos fsicos.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 80

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Tendo como norteador o automvel, promoveu-se a introduo de infra-estrutura bsica,


principalmente no que se refere eficincia do traado virio, alm da drenagem das guas
pluviais, da limpeza pblica e do embelezamento urbano.
Dentre as inmeras obras de modernizao do espao fsico de Natal realizadas
por Omar OGrady destaca-se a elaborao e efetivao parcial do Plano Geral de
Sistematizao de Natal (Figura 07), elaborado por Giacomo Palumbo. Aliando o
monumentalismo barroco da cole de Beaux Arts ao iderio norte-americano, o plano
visava expandir o traado poligonal do bairro Cidade Nova e implementar o zoning,
subdividindo e hierarquizando as reas da cidade de acordo com funes especficas.
Nesse sentido, confirmou a tendncia de bairro comercial na Ribeira, a de zona residencial
nos bairros de Petrpolis e Tirol, a de bairro operrio no Alecrim e a de zona
administrativa em um trecho que limitava a Cidade Alta e a Ribeira, e ainda indicou a
localizao de um bairro jardim na rea entre o Potengi e Oceano Atlntico (FERREIRA
et. al., 2003a). Alm disso, os mecanismos legais propostos durante a administrao de
OGrady (Lei n 04, de 1929), que regulamentavam a ocupao e extenso da cidade e
normatizavam as edificaes, atuaram como nica baliza legal referente produo do
espao urbano de Natal at a dcada de 1960, quando foram substitudos pelo Cdigo de
Obras do Municpio de Natal.

Figura 07: Plano Geral Sistematizao de Natal, 1929. Fonte: DANTAS (1998).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 81

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

No entanto, contrariando as expectativas contidas nas propostas urbansticas


dirigidas modernizao do espao fsico de Natal, a cidade chega dcada de 1930
apresentando um quadro de precariedade higinica e de sade pblica amplamente
divulgado e reclamado na imprensa local. Sofria, pois, com altos ndices de mortalidade,
agravados pela ausncia de sistemas eficazes de abastecimento dgua e de esgotos, de
programas de educao sanitria, e com a inadequao das habitaes aos preceitos
higienistas de ventilao e iluminao.

Instabilidade poltica e crescimento econmico (1930 1935)

Essa precria situao em que se encontrava Natal motivou a idealizao de


inmeras aes sobre o espao urbano, contradizendo o contexto poltico, ento marcado
por constantes turbulncias no cenrio poltico evidenciadas por uma alta rotatividade de
interventorias e de gestes bastante atribuladas e de pouca durao, que evidenciavam as
dificuldades de consolidao das novas foras polticas em mbito local naquele momento
(COSTA, 1995).32
No era risonha a situao com que se defrontava o novo Governo.
Encontrvamo-nos em um passado perodo em o qual as paixes polticas
conseguiam dividir fundamente os homens, gerando quadros difceis e
tormentosos, mais propcias s satisfaes de outra ordem que ao esforo
construtor e continuidade administrativa (GURJO e BRITO FILHO, 1991,
p.18).

Apesar da descontinuidade poltica e das mudanas por elas provocadas, no foi


interrompida a concretizao de inmeras obras pblicas especialmente ligadas infra-
estrutura em geral e ao saneamento em particular que foram iniciadas na dcada de 1920
e consolidadas nos anos 1930 (FERREIRA et al., 2000). Alm de atender os anseios das
elites dominantes, essa continuidade de aes destinadas ao urbano pode revelar, por outro
lado, uma preocupao e o reconhecimento, por parte do poder pblico, da importncia de
gerenciar e ordenar o crescimento da cidade, promovendo operaes de modernizao e

32
Por toda a dcada, a administrao do Rio Grande do Norte passou por seis interventorias, sendo quatro
delas at o ano de 1933.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 82

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

estruturao urbana que se demonstravam em sintonia com o que se realizava em mbito


nacional.
As iniciativas, tanto governamentais quanto privadas, continuavam a seguir as
propostas ditadas pelo Plano Geral de Sistematizao de Natal. Deram-se tambm
inmeras aes que visavam ampliar a infra-estrutura e os equipamentos urbanos, como a
construo da primeira vila operria, localizada no bairro do Alecrim; a construo do
hospital operrio, tambm no bairro do Alecrim; a realizao de obras de continuidade da
estrada de ferro central; a ampliao do mercado pblico; a construo da primeira
maternidade de Natal; a concluso dos trabalhos nas docas do porto de Natal; e inmeras
obras de calamento, alargamento e prolongamento de ruas, dentre outros.
A efetivao de tais propostas foi viabilizada, principalmente, pelo crescimento
econmico que o Rio Grande do Norte apresentou no incio dos anos 1930, a partir do
estabelecimento de polticas econmicas de incentivo produo do setor algodoeiro,
desenvolvidas pelo Interventor Mrio Cmara, atingindo a maior produo j registrada na
histria do estado, e cujos saldos oramentrios dirigiram-se, em parte, s operaes
urbanas. Essa situao financeira que dispunha o estado foi determinante na contratao do
Escritrio Saturnino de Brito em 1935 para chefiar a ento recriada Comisso de
Saneamento de Natal e executar os projetos das redes de gua e de esgotamento sanitrio
da cidade.
Embora o Escritrio tenha sido contratado ainda no governo de Mrio Cmara, o
incio das obras s se deu em Janeiro de 1936, quando j havia assumido como Governador
eleito, o mdico Raphael Fernandes Gurjo, juntamente com o Prefeito, engenheiro Gentil
Ferreira de Souza. A parceria mdico-engenheiro, que implicava na conscincia das causas
dos problemas urbanos e no conhecimento de suas solues, aliada ao movimento
comercial de Natal que se apresentava em situao privilegiada frente s exportaes
tendo em vista que muitos capitais novos procuravam este centro de atividade na prevista
certeza do seu florescimento e futuro (RIO GRANDE DO NORTE, 1936, p.57),
determinaram uma fase marcada pela construo de inmeras edificaes e remodelao
de outras, assim como pela introduo de importantes melhoramentos.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 83

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Grande porto de exportao de algodo, peles, couros, caroo de algodo, torta,


leo, acar, etc., Natal , inquestionavelmente, uma cidade que ressurge, se
expande e aformoseia.
Sua invejvel posio topogrfica, sua vegetao, suas dunas recobertas de
verdura, seus arrabaldes e praias pitorescos do-lhe, mui merecidamente, a fama
de formosa cidade.
O seu porto satisfaz, ao mesmo tempo, as exigncias das navegaes martima e
area.
Com os requisitos que j possui, a cidade progride com rapidez aprecivel e
faltam ainda dois empreendimentos valiosos para completar-lhe a aparelhagem
imprescindvel para um desenvolvimento mais veloz e assentado em bases
fortes: o servio de gua e esgotos e um bom hotel (RIO GRANDE DO
NORTE, 1936, p.57).

A re-criao da Comisso de Saneamento de Natal

Nesse sentido, o ento Governador do Estado Raphael Fernandes Gurjo, em


1936, muniu-se dos decretos 823, de 26 de Abril de 1935, e 844, de 20 de Maio de 1935,
criados ainda pelo Interventor Mrio Cmara, para reafirmar a criao da Comisso de
Saneamento de Natal e regulamentar a contratao do Escritrio Saturnino de Brito para a
elaborao das propostas e futura direo dos servios de abastecimento dgua e de
esgotamento sanitrio da cidade. A criao da CSN foi justificada pelo Governador:
A aglomerao urbana progredia, entretanto, a falta de soluo para os
problemas de seu abastecimento e esgotamento tornava-se cada vez mais grave.
Em 1935, esse retardamento era de ordem tal que exigia a elaborao de novos
projetos. Estes e a respectiva execuo foram contratados ao final do Governo
do ilustre Interventor Dr. Mrio Cmara (GURJO e BRITO FILHO, 1991, p.
17).

Retomando os objetivos de sua criao em 1924, a Comisso de Saneamento de


Natal foi novamente instituda pelo Decreto n. 823, de 26 de abril de 1935, visando:
a) Estudar, projetar e organizar todos os servios de abastecimento de guas e
esgotos sanitrios da Capital do Estado.
b) Administrar tecnicamente e dirigir a construo das novas obras de
saneamento, constantes dos projetos que forem aprovados pelo Governo.
c) Adquirir pelo custo real, por compra, concorrncia administrativa e contratos,
os materiais necessrios execuo dessas obras (RIO GRANDE DO NORTE,
1935, p. 50-51).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 84

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

A direo da CSN, como previsto no decreto de sua criao, ficaria a cargo de um


escritrio de engenharia especializado em servios de saneamento, cuja escolha coube ao
Governo do Estado. Assim, pelo Decreto n 844, de maio de 1935, foi firmado o contrato
sob a forma de administrao contratada com o Escritrio Saturnino de Brito, ficando
este responsvel pela administrao da referida Comisso e pela elaborao dos projetos e
construo das obras de abastecimento dgua, das redes de esgotos e dos demais servios
complementares ao saneamento da cidade. Algumas clusulas do decreto descreviam, de
forma criteriosa, como os projetos deveriam ser elaborados, os prazos de entrega, a
abrangncia da proposta e os princpios sanitrios sobre os quais se deveria pautar.
A princpio, a interpretao do decreto de criao permite inferir que as aes
sanitrias a cargo da Comisso de Saneamento de Natal apresentavam-se desvinculadas
das questes urbansticas. Entretanto, ao considerar o iderio sanitarista que norteou a
atuao do Escritrio Saturnino de Brito,33 observa-se que a preocupao com a
configurao e a articulao do espao urbano esteve presente em seus projetos,
afirmando-se "[...] sempre precrios o saneamento parcial e a higiene fragmentria, e
colocando-se [...] os problemas em funo do conjunto, nos complexos urbano e regional,
o que conduz logo a formular a higiotcnica e todos os sectores, integralmente (BRITO
FILHO, 1941, p.1). Essa preocupao fundamentaria o Plano Geral de Obras,
introduzindo, dessa forma, propostas de melhoramentos e de expanso para a cidade como
parte integrante do seu saneamento, como ser confirmado adiante.
Em 1937, porm, o Governo do Estado deu passos mais decisivos no sentido de
institucionalizar e consolidar os servios de saneamento na esfera pblica estadual, criando
a Repartio de Saneamento de Natal (RSN), por meio do Decreto n. 338, de 26 de
novembro de 1937. Estabeleceu-se, a, uma nova base institucional de domnio pblico,
mais slida e permanente. Essa repartio assumiu, gradativamente ao longo das dcadas
seguintes, o planejamento, a execuo e a administrao dos servios de saneamento do

33
Como visto no captulo 02, o engenheiro Saturnino de Brito, falecido em 1929, considerado expoente
mximo da vertente do urbanismo sanitarista pela sua atuao em inmeras cidades do Brasil, realizando
obras de saneamento e abastecimento dgua. O seu legado sanitarista foi continuado pelo Escritrio de
Engenharia Civil e Sanitria, fundado em 1920, o qual, aps o seu falecimento, sob a direo de Saturnino de
Brito Filho, passou a se denominar Escritrio Saturnino de Brito, conservando, alm do iderio, os princpios
contratuais e administrativos e o quadro de funcionrios.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 85

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

municpio, apresentando a composio tcnica e desempenhando as funes determinadas


na legislao que regeu a sua criao:
Art.1 - criada a Repartio de Saneamento de Natal, que ter a seu cargo a
manuteno dos servios de abastecimento dgua e de esgotos sanitrios da
capital, e arrecadao da respectiva renda.
Art.2 - A Repartio de Saneamento de Natal, ser dirigida por um engenheiro-
diretor, e ter o pessoal administrativo e tcnico que for necessrio, admitido
livremente pelo Governo do Estado dentre o pessoal da atual Comisso de
Saneamento, e cujas atribuies e remuneraes sero determinadas nos
regulamentos que se fizerem precisos para completa instalao e funcionamento
dos servios (RIO GRANDE DO NORTE, 1938, p.132).

O Regulamento da RSN, estabelecido pelo decreto n. 449, de 9 de maro de 1938,


regimentava desde a implantao, passando pela manuteno, arrecadao e gesto dos
servios sanitrios e, ao contrrio da Comisso de Saneamento de Natal, trouxe algumas
preocupaes com relao normalizao das edificaes e a tentativa de regular a
expanso do espao urbano de Natal a partir das redes de gua e de esgotos existentes e/ou
projetadas. Tais aspectos podem ser confirmados pela transcrio dos seguintes artigos:
Art. 58 A Repartio, por intermdio da seco de esgotos, far levantar as
plantas dos prdios existentes, para sobre elas projetar o servio sanitrio,
ficando o proprietrio obrigado a executar sua custa as modificaes indicadas
pela Repartio para a situao dos gabinetes respectivos em planta e altitude.
[...].
2 - [...] a planta compreender o grupo de habitaes existentes ou projetados,
[...], de modo que se possa julgar da vantagem da abertura de uma viela
sanitria para facilidade e economia dos servios dos esgotos.
[...]
Art. 88 Os projetos organizados pela Prefeitura para novas ruas e arrabaldes
tero a colaborao da Repartio de Saneamento, sendo observadas, de um
modo geral, as prescries da arte de traar as cidades, no ponto de vista
sanitrio, e, de um modo particular, os que devem ser atendidos para harmonia
entre o plano dos esgotos executados ou aprovados e o seu desenvolvimento
projetado (RIO GRANDE DO NORTE, 1939, p. 51 59).

Essas prescries caracterizaram o embrio das que apareceriam detalhadas


posteriormente no Regulamento do Departamento de Saneamento do Estado (DSE), em
1953. Observa-se, nesse momento, que o saneamento corroborou a emergncia de
preocupaes relativas normalizao e fiscalizao sobre o espao urbano. O Plano Geral
de Obras fruto da atuao do Escritrio Saturnino de Brito frente da Comisso e da
Repartio de Saneamento de Natal poderia simbolizar o incio do processo de ascenso
de uma ao planejada no trato das questes urbanas; ao mesmo tempo em que concretizou

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 86

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

todo o ideal de modernizao e higienizao da cidade, promulgado desde a metade do


sculo XIX (FERREIRA et. al., 2003a).

Plano Geral de Obras (1935 a 1939): o sanitarismo delineando o


crescimento e a configurao urbana de Natal

De acordo com os princpios sanitaristas, o saneamento de uma cidade deveria ser


pensado de maneira global, conciliando os projetos das redes de gua e de esgotos a outras
dimenses da cidade, como o sistema virio, os edifcios pblicos, as habitaes, sem
descurar dos aspectos estticos, sociais, econmicos, culturais, e, principalmente, tcnicos
das propostas. A higiene, associada a uma noo de progresso, nortearia as intervenes no
espao urbano da cidade, promovendo e estabelecendo desde a abertura de vias, at a
construo de espaos pblicos salubres e saudveis.
Munido desses ideais, o Escritrio props o Plano Geral de Obras que,
antecedendo as prticas do planejamento urbano que se consolidariam na dcada de 1960,
previu uma interveno global e integrada e tratou, primeiramente, de realizar um amplo
diagnstico da cidade, transformando todos os seus aspectos, fossem topogrficos, sociais,
econmicos etc., em dados cientficos. S assim, pde tornar palpvel e manipulvel a
realidade, sistematizando-a em um conjunto de leis, conceitos e informaes objetivas
(SEVCENKO, 1989).
Dessa forma, ao chegar em Natal para assinar o contrato com o Governo Estadual
e realizar o levantamento e os estudos preliminares para a elaborao do projeto de
saneamento da cidade, vindo pela linha regular do avio do Sindicato Condor, o diretor do
Escritrio, engenheiro Saturnino de Brito Filho, j iniciou o seu trabalho de investigao,
utilizando-se desse meio de transporte como instrumento de verificao do territrio. Esse
foi o ponto de partida para a elaborao, em 1935, do relatrio do escritrio, importante
documento que, ao caracterizar toda a cidade e sistematizar as informaes, estudos e
anlises, embasou a concepo do Plano Geral de Obras.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 87

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

A cidade sob a tica sanitarista: o diagnstico

As anlises realizadas a partir da viso area da cidade (Figura 08), apontaram as


caractersticas fisiogrficas de Natal, em particular, os seus limites (pelo rio Potengi, pelo
oceano Atlntico e pelo cordo de dunas fixas), como condio favorvel salubridade,
[...] porque reduzem os fundos da cidade arredores geralmente mal cuidados, si no
abandonados (ESCRITRIO...,1935, p. 1). Do ponto de vista altimtrico, a cidade podia
ser dividida em dois planos principais, o tabuleiro arenoso, onde ficava a maior parte da
cidade; e uma estreita faixa entre esse e o rio Potengi, que configurava a zona da Ribeira.
Na rea total, s havia uma depresso que cortava o tabuleiro: o vale do Baldo que, por sua
vez, apresentava dois pontos de acmulo de gua, formando a lagoa de Manoel Felipe e a
Lagoa Seca. As dunas que perlongavam a costa estavam consolidadas pela vegetao nelas
existente, o que despertava a ateno da municipalidade para a sua preservao,
assegurando, assim, que no se movessem ou invadissem a cidade.

Figura 08: Foto area de Natal, 1936. Fonte: ESCRITRIO... (1939).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 88

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

A rea urbana da cidade compreendia, naquele momento, os bairros da Cidade


Alta, Ribeira, Alecrim, Tirol e Petrpolis, alm de alguns povoados em suas proximidades
como Rocas, Passo da Ptria, Areia Preta e Quintas. O Relatrio de 1935 trazia as
caractersticas particulares de cada um dos bairros, indicando formas de interveno
especficas para as diferentes localidades. Assim, discutia uma melhor orientao para as
edificaes no bairro do Alecrim e zonas suburbana e rural, de modo a permitir a
circulao dos ventos dominantes, da mesma forma que apontou para uma especial ateno
a ser dirigida ao o trecho entre a orla do tabuleiro e a zona baixa, cujas condies
higinicas [...] no podem deixar de ser as piores possveis, em uma cidade sem esgotos.
o que se pode facilmente verificar caminhando da cidade para o Baldo ao longo das
Estradas de Ferro (ESCRITRIO..., 1935, p.2).
Os estudos anteriores, como o do gelogo norte-americano Ralph H. Soper,
forneceram conhecimentos acerca dos detalhes da formao do solo, apontando para a
necessidade de bem especificar o comportamento hidrogeolgico das diversas formaes
(ESCRITRIO...,1935), e evidenciando a necessidade de novas investigaes que melhor
orientariam os projetos de captaes subterrneas e que se constituiriam de importncia
excepcional para a realizao das propostas como os estudos do gelogo Glycon de
Paiva, do Departamento Nacional de Produo Mineral.
Associando o excelente estudo de Soper e a considervel experincia posterior
fornecida pelas perfuraes da Inspetoria de Obras Contra as Secas, e valendo-
se de suas observaes prprias, o gelogo Glycon de Paiva elaborou um
trabalho de grande valor [...] Em tal trabalho o gelogo Glycon apresenta a
coluna geolgica de Natal, e vrios cortes geolgicos, e uma planta geral.
Examina em seguida a competncia das diversas formaes da coluna, como
rochas reservatrios ou como lapas impermeveis, definindo os horizontes de
gua (ESCRITRIO..., 1935, p. 3).

A anlise mostrou que, apesar da situao topogrfica da maior parte da cidade


no ser muito favorvel salubridade, as condies geolgicas corrigiam essa deficincia,
na medida em que permitiam a absoro das guas acumuladas, mesmo nas depresses
fechadas. Tal aspecto foi ressaltado pelo Escritrio Saturnino de Brito (1935), ao afirmar
que era [...] graas a essa geologia que uma cidade sem esgotos e servindo-se de poos
consegue a salubridade de que goza (ESCRITRIO...,1935, p. 3-4). As dunas foram
apontadas como de suma importncia para o equilbrio ambiental da cidade, ressaltando a

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 89

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

riqueza da qualidade e quantidade da gua disponvel no lenol profundo nelas situado,


cuja captao consistiria na principal fonte do abastecimento da cidade.
No intuito de realizar uma operao corretiva, mas tambm de carter preventivo,
o Escritrio baseou-se nas estatsticas demogrfico-populacionais da cidade, estipulando a
populao que a cidade teria depois de decorridos dez anos da implantao do plano:
63.000 habitantes, nmero que seria o parmetro para a elaborao de todos os projetos.34
Estimou-se ainda que, mesmo aumentando a razo do crescimento, o projeto de
abastecimento dgua, que se daria a partir da captao das guas subterrneas, permitiria a
extenso dos servios gradativamente, medida que a demanda fosse acrescida. Por essa
razo, optou-se por no encarecer demasiadamente as obras naquele momento, sem que
fosse utilizada uma previso maior do que a indicada.
importante salientar ainda que o Escritrio, ao elaborar o Plano Geral de Obras,
retomou, incorporou e modificou as propostas e intervenes urbansticas anteriores
Cidade Nova (1901 1904), Plano geral de obras de Saneamento (1924) e Plano Geral de
Sistematizao (1929 1930). Com essa preocupao, conservou o traado reticulado da
Cidade Nova, referente aos bairros de Tirol e Petrpolis; o bairro operrio, a avenida do
saneamento e a estao elevatria do plano de 1924, bem como o esquema bsico do
sistema virio herdado do Plano Geral de Sistematizao, inclusive o bulevar de contorno e
o parque que compreendia a rea da Lagoa Manoel Felipe e o riacho do Baldo,35 como
enfatizou o prprio Escritrio no Relatrio de 1935:
Para orientar a sua expanso Natal j possui um plano de arruamento,
estabelecido em 1929 pelo arquiteto Palumbo. Este plano tem sido
rigorosamente mantido pelo atual Prefeito e de louvar tal continuidade. Torna-
se sempre prefervel possuir um plano, mesmo imperfeito, do que no se guiar
por norma alguma.
Salvo dois pontos, pensamos que melhor manter o plano, em sua essncia. Na
execuo dos alinhamentos, far-se-o adaptaes aos casos locais. O terreno do
tabuleiro sendo peneplano, deixa de ser criticvel o traado em xadrez rgido,
que o da cidade existente e que o plano conserva e prolonga. Do ponto de
vista sanitrio, o nico sulco importante a considerar na rea urbana o crrego

34
Essa estimativa baseava-se na taxa mdia de crescimento registrada nos anos anteriores, contudo, em
virtude do aumento demogrfico ocasionado pela II Guerra Mundial, ficou aqum dos nmeros verificados j
em 1943, que indicavam uma populao de 85.000 habitantes (MELO, 1993), conforme ser visto adiante.
35
A proposta de construo de um parque na Lagoa Manoel Felipe j havia sido elaborada pelo Engenheiro
Henrique de Novaes, em 1924, e incorporada no Plano Geral de Sistematizao, em 1929.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 90

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

do Baldo, com as lagoas Manoel Felipe e Seca. Este aspecto do problema


urbano foi atendido pelo plano, que para a depresso do Baldo previu avenidas
com canal ao centro. Entre a rua Cear Mirim, e avenidas Rodrigues Alves,
Alberto Maranho, Prudente de Morais, Alexandrino de Alencar e Olinto Meira,
fica o grande parque do projeto Palumbo, a ser mantido. (ESCRITRIO...,
1935, p.7).

Contudo, previu alterar o plano de 1929 na zona dos cmoros, entre as Rocas e
36
a costa, assim como na zona das estradas de ferro37. Na primeira, foram propostos um
Bairro Residencial e o aeroporto, que seria conectado aos aeroportos martimo e terrestre.
Com relao zona das estradas de ferro, o projeto de Palumbo previa uma avenida
litornea38 e uma outra avenida que abrigava o coletor geral da rede de esgoto, e era
destinada tambm ao trfego.
A planta topogrfica da cidade, elaborada pelo engenheiro Henrique de Novaes,
em 1924, foi a principal base utilizada, retificando-se apenas alguns pontos em que havia
discrepncia quanto aos nivelamentos. Ainda acerca dos projetos de Henrique de Novaes, o
Escritrio Saturnino de Brito (1935, p. 24) ponderou que [...] as obras no foram
executadas e hoje a cidade conta com 60 km de ruas, estando a previso futura de 1924 j
praticamente atingida pela populao presente. A latitude previsora tem forosamente de
ser outra, exigindo imperiosamente novos estudos. Apesar de considerar as anlises e as
propostas de Novaes, enveredou-se os projetos por outros caminhos, dando continuidade
proposta para a Lagoa Manoel Felipe, a localizao do bairro residencial na chamada zona
dos cmoros (onde o plano de Novaes havia sugerido e esboado um bairro operrio e o
plano de Palumbo um bairro-jardim), a concepo de uma avenida do saneamento para
abrigar os coletores e o aproveitamento do coreto da Praa Leo XII como estao
elevatria.
Com relao aos servios existentes, constatou-se que em 1935 a situao do
abastecimento dgua em Natal era crtica, disponibilizando gua apenas uma ou duas
horas por dia, com fraca presso, o que no permitia totalizar o volume mnimo para

36
O termo zona dos cmoros se refere ao terreno dunar situado nas proximidades do Forte dos Reis
Magos, atualmente, de propriedade do Exrcito.
37
Nas proximidades da atual comunidade do Passo da Ptria, situada s margens do rio Potengi.
38
Cuja construo foi adiada por tempo indeterminado, por necessitar do aterro e de um cais.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 91

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

atender s necessidades domsticas, ainda mesmo se aplicados os mais rigorosos


predicados de economia (ESCRITRIO...,1939, p.09). Frente a tal situao, resultado da
falta de investimentos pblicos no sistema de saneamento, as obras do Escritrio
apareciam como uma resposta demanda crescente da populao.
Toda a gua consumida em Natal provinha do subsolo desde 1907, quando foram
iniciados os servios de perfuraes dos poos. Ao longo dos anos, contrariando as
iniciativas e os planos elaborados no sentido de sanear a cidade, foram perfurados apenas
quinze poos tubulares no Oitizeiro (prximo ao Baldo), de baixo rendimento mecnico.
Alm desses poos, a cidade s contava com os pequenos abastecimentos da Balaustrada
39
e dos Padres (ESCRITRIO...,1935, p. 19). Outros numerosos poos, na maior parte
construdos pela Inspetoria de Obras Contra as Secas (IFOCS), facultavam um
abastecimento individual, por moinhos de vento e processos primitivos de extrao da gua
(ESCRITRIO...,1935, p. 19).
Nos equipamentos pblicos, como hospitais, colgios, cadeia, casas de sade,
orfanato, asilo de loucos e hospital de lzaros, ou seja, onde mais se requeria abundncia
no abastecimento dgua, apresentava-se a mesma carncia, refletindo uma situao cada
dia mais precria, reduzindo a um limite mnimo as construes na cidade, impedindo o
surto da indstria, e atrasando de maneira desoladora o progresso da capital, com o
encarecimento do custo da vida pelo preo exorbitante dos aluguis das casas
(ESCRITRIO...,1939, p. 9).
A qualidade da gua distribuda era um outro fator que contribua para agravar a
situao, considerando-se que determinava um acrscimo de males incalculvel, na medida
em que a captao se fazia na margem do crrego Baldo, infestado pelas impurezas da
cidade. Por se situar abaixo do nvel do crrego, o poo onde era feita a captao da cidade
drenava as guas contaminadas do Baldo; desse ponto, a gua era distribuda para a
populao, sem tratamento algum. Assim, Natal era vtima de seu servio de
abastecimento dgua, quer na quantidade, quer na sua qualidade (ESCRITRIO...,1939,
p. 10).

39
Que seriam, respectivamente, no bairro de Petrpolis e parte do bairro da Ribeira.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 92

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Com relao aos esgotos, o maior problema registrado era o destino das guas
residuais das habitaes, que eram levadas a fossas absorventes, cujo desempenho foi
assim descrito:
Na zona alta de areia se mantinham em enganadora serventia, contaminando o
subsolo, e na zona baixa, onde o lenol dgua est a pouco mais de um metro
da superfcie, obrigavam os proprietrios a uma multiplicao do numero de
fossas, quintais havendo que no mais permitiam a construo de novos
elementos. Por toda a parte situaes que atentavam contra a sade pblica, sem
respeito ou obedincia aos ditames da higiene (ESCRITRIO...,1939, p. 10).

Essa era, em linhas gerais, a situao de insalubridade em que se encontrava Natal


segundo a avaliao do ESB, fato que, por si s, j justificava o projeto e a execuo das
obras de saneamento e abastecimento dgua parte integrante do Plano Geral de Obras.

O saneamento renovando a arquitetura e orientando a expanso da


cidade

Baseando-se nesse conjunto de informaes e o aliando interpretao da cidade


como um organismo vivo,40 o Escritrio primou pelo bom funcionamento do sistema
circulatrio como essencial para o crescimento urbano fator que dependia,
principalmente, da eficincia dos sistemas que compunham o saneamento. Essa concepo,
ao condicionar a organizao do espao urbano questo do saneamento, proporcionou a
articulao das vrias partes da cidade e pensou sua reforma, expanso e embelezamento.
[...] um aspecto interessantssimo do saneamento de Natal [...] a orientao
urbanstica que os novos servios daro nossa Capital. No h dvida de que o
saneamento abriu tambm, para Natal, a perspectiva de renovao e
engrandecimento.
Em futuro prximo, a nossa cidade, que justamente se orgulha de ser o ninho
preferido de todos os avies que demandam do Atlntico Sul e a Amrica do
Norte, muito poder mostrar do seu progresso aos visitantes e tourists
(NATAL..., 1938, p.12).

Assim, foram incorporados os reincidentes anseios de modernizao manifestados


pelas elites locais, enxergando e promulgando a introduo do saneamento como

40
Fazendo-se a da analogia entre as redes de gua e de esgotos na cidade, e o sistema circulatrio no
organismo humano.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 93

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

promotora do crescimento e do progresso da cidade, pois, alm de possibilitar a atrao de


indstrias, como o prprio Escritrio Saturnino de Brito (1939) apontava, baratearia o
custo de vida da populao sem mencionar, claro, os inmeros outros benefcios que,
como apregoava o urbanismo sanitarista, uma rede de gua e de esgotos eficaz poderia
proporcionar, influenciando at mesmo na educao da populao e ensejando novos
hbitos de vida.
Tornando esta capital saneada e salubre, no realizais somente uma melhoria
real das condies sanitrias e no colocais apenas ao alcance da populao um
elemento imprescindvel sua existncia vital. Fazeis mais do que isto. Levais a
efeito um trabalho educativo e de alcance muito mais lato (GURJO e BRITO
FILHO, 1991, p. 22).

Nessa perspectiva,
foram retomados os
princpios que marcaram a
obra de Saturnino de Brito
para o qual a questo do
saneamento no se restringia
apenas ao aspecto sanitrio,
mas se ampliava para toda a
organizao do espao fsico,
articulando as vrias partes
da cidade e pensando a
reforma, expanso e
embelezamento do espao
urbano em funo da
racionalidade das redes de
gua e esgotos, chegando-se
concepo do Plano Geral
de Obras (Figura 09), que,
resumidamente, constou de:
Figura 09: Plano Geral de Obras, 1936.
Fonte: ESCRITRIO... (1939).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 94

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

a) anteprojeto de melhoramentos urbanos, compreendendo edifcios para o


Governo, aeroporto, bairro residencial, estao conjunta para as estadas de
ferro, avenidas na encosta do Tabuleiro;
b) projeto de abastecimento de gua cidade, para o presente e o futuro,
incluindo as captaes, reservatrios e distribuio;
c) projeto de esgotos sanitrios, compreendendo a rede coletora, tratamento e
descarga (ESCRITRIO..., 1939, p.13).

Cabe destacar que, no s para os estudos como para a implantao do Plano,


contou-se com o apoio das elites poltica e intelectual locais, que combinaram esforos,
tanto com relao administrao dos gastos pblicos, quanto na divulgao dos ideais
sanitaristas que regeram a operao, atravs da publicao de artigos no Jornal A
Repblica e nos demais peridicos locais. Alm disso, o Governo Federal41, sob a
Presidncia de Getlio Vargas, prestou importante colaborao,42 viabilizando a captao
de recursos financeiros para a elaborao das obras, assim testemunhada por Francisco
Saturnino de Brito Filho:
Apraz-nos recordar a contribuio do Governo da Repblica, sob a Presidncia
do eminente Dr. Getlio Vargas, concedendo a iseno e reduo de direitos
aduaneiros para grande parte dos materiais, apoiando o Governo do Estado na
operao financeira que permitiu ocorrer a parte das despesas, e finalmente,
cooperando, pela Inspetoria de Obras Contra as Secas, para a abertura de poos
tubulares, cooperao resultante de contrato entre o Estado e o importante
organismo administrativo sob a chefia egrgia de Luiz Vieira (GURJO e
BRITO FILHO, 1991, p.21).

Observe-se que, o Plano Geral de Obras, parcialmente executado,43 contou, alm


das propostas para as redes de gua e esgotos, com um plano de melhoramentos e expanso
para Natal o que ia alm do previsto na legislao que criara a Comisso de Saneamento
de Natal e estabelecia as funes do Escritrio Saturnino de Brito.

41
Cabe destacar que a ideologia e os princpios polticos de Getlio Vargas eram assegurados por Raphael
Fernandes, no Rio Grande do Norte e em Natal, fator que levava o Governador a manter estreitos vnculos
com o Presidente da Repblica, constituindo-se a sua gesto na mais duradoura do perodo intervencionista
no Brasil (1935 1943).
42
Colaborao esta imprescindvel, se observada a queda sofrida pela produo do algodo a partir de 1936,
fato que levou o Governo do Estado a recorrer a emprstimos e financiamentos pblicos, intermediados pelo
Governo Federal.
43
Das propostas indicadas, concretizaram-se apenas a rede de gua e parte dos esgotos sanitrios e o Edifcio
Sede da Repartio de Saneamento de Natal (RSN). O restante dos projetos excluindo-se os referentes aos
Melhoramentos Urbanos e a respectiva ampliao das redes foram implementados ao longo das dcadas
de 1940, 1950 e 1960, durante a permanncia do Escritrio Saturnino de Brito em Natal, gerindo e
administrando os servios de saneamento da cidade.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 95

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Abastecimento dgua

O projeto para a rede de abastecimento dgua foi orientado por inmeros critrios
tcnicos e urbansticos estabelecidos desde a fundao do Escritrio. Respeitando,
sobretudo, as condies ambientais locais, as propostas privilegiaram os aspectos da
economia, da exeqibilidade e aplicabilidade, da funcionalidade e eficincia, alm da
racionalidade tcnica caracterstica da obra de Saturnino de Brito. Propunha-se ainda, uma
legislao especfica de modo a assegurar o pleno funcionamento das redes aps a sua
implementao.
Dentro das preocupaes ambientais, o Escritrio procurou adaptar as solues
para o abastecimento dgua de Natal s suas condies geolgicas, apontando para a
riqueza do aqfero subterrneo e orientando os projetos para captao das guas profundas
do tabuleiro, que dispensava despesas onerosas com a construo de longas adutoras,
tratamento qumico e filtrao, culminando
a) no aprecivel barateamento da obra calculada em quantia superior a Mil
Contos;
b) no seu mais curto tempo de execuo;
c) na qualidade do lquido que excelente;
d) na ampliao gradativa do nmero de poos proporo que a cidade for se
desenvolvendo. (RIO GRANDE DO NORTE, 1936, p. 33).

De acordo com essa orientao, poder-se-ia, ainda, posteriormente, verificar a


tendncia de exausto do lenol fretico da cidade, permitindo-se prever, desde ento, a
adaptao de uma possvel adutora proveniente das lagoas do Jiqui e de Extremoz,
mananciais apontados para a futura ampliao do abastecimento dgua da cidade.44
Assim, Natal teria sempre fcil e garantido o seu suprimento de gua.
Fundamentado pelos estudos geolgicos de Glycon de Paiva, o Escritrio
estabeleceu as diretrizes para a captao de gua em Natal: a partir do lenol subterrneo e
com a utilizao de poos independentes, dispostos a distncias que variavam de 100 a 200
metros, dependendo do bairro. Como a captao era feita em encostas arenosas e nas

44
O Escritrio, dando continuidade sua atuao em Natal, props, entre as dcadas de 1950 e 1960, a
captao na Lagoa do Jiqui, elaborando o projeto completo para a sua incorporao no abastecimento dgua
da cidade. Os documentos encontram-se atualmente no Laboratrio Hidrotcnico Saturnino de Brito, no Rio
de Janeiro.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 96

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

margens da Lagoa Manoel Felipe, foi possvel adotar manilhas de barro nas canalizaes
de conexo, fator que baixou o custo do capital dispensado na obra.
Em suma, o projeto previu um volume de captao dgua capaz de atender a uma
populao superior a 200.000 habitantes, apontando como mananciais a serem explorados:
as dunas, a lagoa Manoel Felipe, a lagoa Nova, Petrpolis e Baldo, e ainda prevendo para o
futuro a captao de guas superficiais nas lagoas do Jiqui e de Extremoz e a ampliao
dos servios nas dunas e na lagoa Nova. Na Lagoa Manoel Felipe, em especial, cuja
topografia e conjunto de Lago se prestam admiravelmente para a construo de parque,
realizao sempre indicada em servios dessa natureza (ESCRITRIO..., 1939, p. 40), foi
pensado, juntamente com as obras que envolviam a perfurao de nove poos tubulares e a
construo das casas de poos e de bomba, o projeto urbanstico para um parque urbano,
incorporando os anseios j mencionados no Plano Geral de Obras de Saneamento de Natal,
de Henrique de Novaes e no Plano Geral de Sistematizao de Natal, de Palumbo e
OGrady.
Em meio aos elementos componentes do sistema de abastecimento dgua que
compreendia a captao, o armazenamento e o tratamento da gua nos reservatrios, a rede
de distribuio, as ligaes prediais e, nos bairros de baixa renda, chafarizes , destacam-se
os reservatrios como principal elemento de destaque na paisagem da cidade, ressaltando a
importncia dos servios de saneamento em meio configurao urbana.

Reservatrios

Outro fator condicionante das propostas do Escritrio Saturnino de Brito era a


preocupao com as questes ambientais. No caso de Natal, em virtude de grande parte do
abastecimento dgua provir do subsolo, apontou-se para a necessidade de manter sempre
alimentado o lenol fretico da cidade, preocupao essa que originou as propostas para os
parques urbanos ao redor dos reservatrios construdos R-1, R-2 e R-3. Os reservatrios,
ressalte-se, eram elementos tecnicamente indispensveis para o bom funcionamento da
rede de abastecimento de uma cidade, mantendo nesta a presso constante e praticamente
uniforme para cada ponto, servindo de reserva para casos de acidentes e, finalmente,

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 97

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

armazenando em perodo longo para distribuir em prazo curto (ESCRITRIO..., 1939, p.


57). Em Natal, alm dos trs reservatrios, tambm foi prevista uma caixa em torre todos
situados em terrenos de propriedade do estado.
O Reservatrio R.1 (Figura 10),45 com capacidade de 500m3, localizado na Cidade
Alta, foi construdo em concreto armado (grande parte de seu corpo principal e cobertura),
enterrado e com uma seo que permitia uma melhor distribuio das presses sobre o
terreno. Apenas o muro que circundava o terreno foi construdo em alvenaria de tijolo, com
argamassa de cimento. O R.1 era responsvel pela alimentao da zona baixa da cidade, e
recebia as guas oriundas do recalque do Baldo por uma linha de ferro fundido.

Figura 10: Reservatrio R.1. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

Privilegiando os aspectos da esttica e climatologia urbana, o Escritrio apontou


para a composio de um jardim com canteiros gramados, avenidas e bancos de concreto

45
Esse reservatrio existe at a atualidade, embora desativado, e localiza-se na esquina da Av. Deodoro com
a Manoel Dantas.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 98

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

armado, que, combinados com a vegetao existente, resultariam em um parque no terreno


do reservatrio R.1. Nesse complexo encontravam-se dispostos, alm do jardim, a casa do
guarda em alvenaria de tijolo com argamassa de cal e cimento, coberta de telhas canudo,
piso de taco e mosaicos, instalaes sanitrias e de luz, reboco externo a p de granito e
mica e o prprio reservatrio.
O Reservatrio R.2 (Figura 11),46 edificado em duas unidades no extremo da
Avenida Atlntica (atual Av. Getlio Vargas), era o alimentador dos bairros ocenicos da
Praia do Meio e Areia Preta, bem como da zona alta de Petrpolis. Apresentando as
mesmas caractersticas do R.1, variava apenas no volume de gua armazenada, de 320
metros cbicos. A casa de manobras era subterrnea e compreendia todas as instalaes
necessrias ao seu funcionamento.

Figura 11: Reservatrio R.2. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

46
Este reservatrio situava-se logo aps a subida da ladeira do Sol (em frente ao Novotel). Uma das unidades
ruiu e desabou na dcada de 70. A outra unidade foi transferida para dar lugar duplicao daquela via, no
ano de 1982, quando tambm foi construda uma praa sobre o terreno do R.2, que perdura at hoje.
Atualmente, o reservatrio encontra-se naquela mesma via, em frente ao Tribunal de Contas da Unio.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 99

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Situado numa posio privilegiada, o terreno adquirido para a construo do R.2


permitia uma viso panormica da orla martima. Esse aspecto, aliado preocupao
urbanstica do Escritrio Saturnino de Brito (que procurava tratar os equipamentos
necessrios ao saneamento da cidade como elementos que compunham o seu espao
urbano), levou construo de um pavilho em concreto armado de modo a criar
excelente logradouro pblico (ESCRITRIO..., 1939, p. 63). O pavilho era composto
por oito pra-soes de concreto armado em meio aos gramados, por gabinetes sanitrios,
servios de gua e luz, e cercado por um muro de arrimo.
O principal reservatrio da cidade, o R.3 (Figura 12),47 foi construdo no extremo
do bairro do Tirol, com capacidade de trs milhes de litros e dividido em duas cmaras.
Seguia o mesmo padro dos outros dois reservatrios, no entanto, em maiores propores.
Seu corpo apresentava concreto armado, na parte enterrada, e alvenaria de tijolo com
argamassa de cimento, nas reas externas. A cobertura, composta por abobadilhas de
concreto armado com juntas de dilatao. O terreno circundante foi transformado em
parque com grandes reas gramadas e avenidas, conservando-se a vegetao existente,
composta principalmente de coqueiros, o que veio tornar a paisagem extremamente
agradvel (ESCRITRIO..., 1939, p. 64).
O parque, cercado com estacas de concreto armado e arame liso, contava ainda
com a casa do guarda e uma caixa de concreto armado, com capacidade para 8 mil litros de
gua, destinada ao abastecimento do prprio complexo.
Em virtude de receber as guas captadas dos principais mananciais da cidade
Dunas, Manoel Felipe e Lagoa Nova o R.3 era considerado o principal alimentador de
Natal, e contava, para tal, com uma linha distribuidora apropriada, disposta de maneira a
permitir a continuidade do abastecimento em caso de ruptura de um dos troncos
distribuidores.

47
O R3 encontra-se no terreno ocupado hoje pela Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande do Norte
(CAERN), ainda em funcionamento. Ao longo dos anos, foi acrescido de ampliaes e novos equipamentos,
visando aumentar a sua capacidade. Em contrapartida, teve a sua rea bastante reduzida, tendo-se em vista
que na proposta do Escritrio se estendia at a Av. Alexandrino de Alencar.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 100

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 12: Reservatrio R.3. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

No intuito de atender
zona alta de Petrpolis, foi
indicada e efetivada a
construo de uma caixa em
torre de forma cilndrica e em
concreto armado48. A caixa,
que veio substituir uma antiga
j existente no local, (tida pelo
Escritrio Saturnino de Brito
como de ordinria construo),
era em concreto armado com
Figura 13: Caixa em Torre situada em Petrpolis.
acabamento externo em p de Fonte: ESCRITRIO... (1939).
granito e mica.

48
Essa caixa dgua situa-se ao lado do Tribunal de Contas da Unio, na atual Av. Getlio Vargas. Encontra-
se presentemente desativada, e em condies precrias de manuteno. Cabe ressaltar que nesse mesmo
terreno existe outra caixa em torre, construda ainda sob a responsabilidade do Escritrio Saturnino de Brito,
na dcada de 1960.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 101

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Apesar de se utilizar modelos considerados ultrapassados para a poca, retomando


os reservatrios enterrados propostos ainda por Saturnino de Brito,49 os projetos dos
parques refletem uma inteno em promover novos cenrios, novos usos e novas
sociabilidades nos espaos destinados ao saneamento da cidade. Dotados de um tratamento
esttico/ paisagstico que aliava a vegetao nativa existente, composta principalmente por
coqueiros, a um mobilirio urbano adequado, como iluminao pblica, pra-sois e bancos,
esses reservatrios consistiram no principal meio de ressaltar a importncia das obras de
esgotamento sanitrio e abastecimento d'gua, ao mesmo tempo em que originaram
espaos pblicos salubres, saudveis e arborizados.
Esses micro-territrios, incorporados ao conjunto urbano por meio do sistema
virio, constitudos por praas, parques e jardins, confluem para a constatao de que o
plano de expanso da cidade conformava-se a partir da sobreposio das obras de
saneamento bsico, localizando as principais reformas no ambiente construdo nos locais
destinados aos poos de captao de gua (e suas respectivas casas de bombas e de
guardas), aos reservatrios e s usinas elevatrias distritais.

Esgotamento Sanitrio

O sistema de esgotamento sanitrio projetado compreendia uma rede de 62


quilmetros de extenso, e atenderia, de incio, somente parte mais populosa da cidade
Cidade Alta e Ribeira (RIO GRANDE DO NORTE, 1936, p. 32). Um aspecto
interessante do projeto desse sistema para Natal, embora considerado por Brito Filho50
(1938, p. 78) como um desses muitos casos corriqueiros da tcnica sanitria, sem
segredos nem originalidades, resultou da comparao econmica entre a soluo de
depurar e lanar os esgotos no esturio do Potengi, prximo foz do riacho do Baldo, e o

49
Cabe destacar que, poca, em outras cidades do pas j eram construdos os reservatrios elevados, as
grandes caixas dgua em torre, de caractersticas modernas, como os exemplos de Luiz Nunes e Oscar
Niemeyer.
50
Em conferncia pronunciada na cidade de Natal, e registrada pela Revista Municipal de Engenharia do Rio
de Janeiro RJ, em janeiro de 1938.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 102

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

alvitre de emitir esses despejos para descarreg-los in natura no Oceano (BRITO FILHO,
1938, p. 74).51
No entanto, em face do programa de urbanizao e conseqentemente utilizao
das praias que emergiu em meados da dcada de 1930 e se consolidaria com os projetos
do Escritrio Saturnino de Brito52, o engenheiro colocava que no mais poderia ser
mantido o mesmo ponto de descarga, sendo necessrio prolongar o emissrio mais de
1.500 metros, para fazer a descarga prxima ao Forte dos Reis Magos (BRITO FILHO,
1938, p. 74). Alm disso, o custo dos materiais que seriam empreendidos na emisso dos
esgotos, bem mais onerosos na segunda metade da dcada de 1930, resultava em um
agravante para essa soluo.
Aps o levantamento do capital necessrio para a efetivao do lanamento in
natura dos efluentes nas proximidades do Forte, em comparao aos gastos com a
depurao dos esgotos no Baldo, concluiu-se que, pela vantagem econmica apresentada,
dever-se-ia adotar a segunda opo. Alm disso, a alternativa estava de acordo com os
ensinamentos de Saturnino de Brito, assim transcritos por Brito Filho (1938, p. 75): Todas
as vezes que se verifiquem ou prevejam condies prejudiciais, recorrer-se- depurao
(Figuras 14 -15).

Figura 14: Estao depuradora projeto.


Fonte: ESCRITRIO... (1939).

51
Os estudos de Henrique de Novaes realizados em 1924 previam o lanamento dos esgotos in natura no
local dos recifes, entre a Praia do Meio e a barra do Potengi, proposta que, para Brito Filho, era justificada na
poca em que foi elaborada.
52
Na medida em que o projeto do Escritrio previa a remodelao de toda a rea litornea, situando o bairro
residencial e o novo aeroporto para a cidade de Natal naquela rea.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 103

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 15: Estao depuradora foto. Fonte: Acervo CAERN.

Ainda de acordo com as orientaes do fundador do Escritrio, o sistema adotado


para a realizao do esgotamento sanitrio de Natal foi o separador absoluto, com tanques
de lavagens automticas em todas as cabeceiras dos coletores; poos de inspeo, visitas e
ventilao em todas as mudanas de grade e de rumo ou a distncias determinadas;
dimetros e declividades mnimas j estabelecidas pelos estudos realizados. A presena de
tais elementos acabaria por assegurar o pleno funcionamento da rede de esgotos.
A proposta previa a diviso da cidade em dezesseis distritos, sendo que trs desses
funcionariam com elevao mecnica e os demais por gravidade. Os despejos eram
levados ao tratamento por meio de trs coletores gerais (C.G.1, C.G.2 e C.G.3), e, aps
essa etapa, seguiam para a descarga final no esturio do rio Potengi.
Os servios inaugurados, cujas obras seguiram um rigoroso cronograma
constaram de: redes dos distritos D.1, D.2, D.3, D.5 e D.13; coletores gerais C.G.1 e
C.G.2; estao de elevao mecnica distrital do D.5; sifo do D.2; tnel; emissrio do
D.5; estao depuradora; emissrio geral; obras complementares da Avenida do C.G.1, e
Avenida do C.G.2. Sobre a estao depuradora localizada no Baldo, ressaltou-se o seu
vulto e a sua importncia para a cidade na imprensa local:
Quanto Estao Depuradora de Esgoto [...], situada um pouco abaixo do
Baldo, e nas proximidades da margem direita do Potengi, nada existe em todo o
pas que se lhe avantaje, como tcnica sanitria. preciso considerar que ha 3
obras de grande vulto e importncia a assinalar nesse servio: o tnel da Av.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 104

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Junqueira Ayres, Avenida do Contorno margem do Potengi e a mencionada


Estao Depuradora de Esgotos. Quanto a essa Estao ela principalmente
notvel por ser a primeira da Amrica do Sul, que utiliza em grande escala os
gases dos esgotos para gerar energia eltrica. Essa energia ser utilizada depois
de alguns meses de funcionamento dos esgotos, para acionar as mquinas ali
instaladas e iluminar o parque e os edifcios (UMA VISITA..., 1939, p.1).

No entanto, sero detalhados apenas os projetos das avenidas que abrigavam os


coletores de esgotos e das estaes elevatrias, por se configurarem como os elementos
mais significativos e de maior representatividade no espao fsico de Natal.

Avenidas do C.G.1 e do C.G.2

As avenidas na encosta, principais vias de integrao contidas na proposta na


medida em que circundavam perimetralmente a cidade surgiram a partir da necessidade
de conduzir os coletores gerais dos esgotos da rea urbana edificada sobre o Tabuleiro para
o ponto de Depurao do Baldo. No total, foram projetadas trs avenidas, com largura de
dez metros. A primeira seguia em extenso contnua desde Petrpolis at o Baldo
Avenida do C.G.1 (Figura 16 17); a segunda margeava o Baldo at a Avenida Hermes da
Fonseca Avenida do C.G.2; e finalmente, a terceira partia do Baldo acompanhando a
encosta do Rio Potengi Avenida do C.G.3. Apenas as duas primeiras foram construdas,
ficando a terceira para uma etapa posterior.

Figura 16: Avenida do C.G.1.


Fonte: Acervo CAERN.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 105

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 17: Escadaria no C.G.1.


Fonte: Acervo CAERN

Alm de sua principal funo de dar leito aos coletores gerais o Escritrio
afirmava, em seu relatrio de 1939, que as avenidas tambm possuam importante funo
urbanstica, embelezando a cidade, limitando higienicamente a orla do Tabuleiro, com a
destruio de numerosos casebres que ali existiam e foram derribados. Tambm coube s
avenidas melhorar o acesso cidade de Natal, articulando o seu comrcio ao interior do
estado pela estrada de automveis do Serid, sendo fcil para a desviar todo o trfego de
caminhes que se faz pelo centro da cidade (ESCRITRIO..., 1939, p. 21). A abertura
das avenidas, nos trechos construdos, representou um servio de vulto, pelo movimento
de terras, escavaes em piarra e canga e pelo cubo dos muros de arrimo e obras de arte,
construdas com pedra grantica (ESCRITRIO..., 1939, p. 22).

Estaes elevatrias

Valendo-se, de acordo com o iderio de Saturnino de Brito, do saneamento e do


embelezamento das cidades como os meios atravs dos quais seriam introduzidas
melhorias na qualidade de vida da populao, foi dirigido a cada equipamento que
compunha a rede sanitria como casas de guarda e de bombas e estaes elevatrias ,
um tratamento especfico, de modo a obter a visualidade e o destaque das obras em meio
paisagem urbana de Natal.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 106

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Apesar de conduzir suas obras entre a arte e a tcnica, no se pode deixar de


mencionar que o principal critrio aplicado s propostas era a exeqibilidade, que, aliada a
uma extrema racionalidade tcnica e econmica, culminou em uma repetio de padres
arquitetnicos que se adequavam a cada localidade, viabilizando sobremaneira a
concretizao efetiva de suas propostas em inmeras cidades, de norte a sul do pas. A
adoo dos padres tcnico-construtivos-formais, esboados por Saturnino de Brito desde
as suas primeiras obras de saneamento realizadas ainda em fins do sculo XIX, foi a
principal responsvel pelo distanciamento entre os modelos executados pelo Escritrio e as
propostas de outros equipamentos ligados ao saneamento ento desenvolvidas em mbito
nacional.
No entanto, observa-se que, embora filiados a estilos historicistas como o
ecletismo os equipamentos sanitrios foram, paulatinamente, sofrendo um processo de
simplificao construtiva, despojando-se da ornamentao demasiada e refletindo uma
regularidade e proporcionalidade dos planos, aspectos justificados em funo da eficincia
e da aplicabilidade das propostas.53 Atendendo a essas necessidades, pode-se afirmar que, a
exemplo do que ocorreu em outras cidades, as propostas do Escritrio para Natal
corresponderam, sobretudo, a uma [...] resposta tcnica varivel conforme o lugar,
adaptando-se s condies locais, e uma padronizao [...] das tcnicas e equipamentos de
saneamento urbano (ANDRADE, 1992, p. 204).
As estaes elevatrias e casas dos guardas e de bombas obedeciam a uma
estandardizao arquitetnica, tambm visualizada na adoo das tubulaes, poos e
peas sanitrias utilizadas nas vrias cidades do Brasil em que o Escritrio atuou. No
entanto, apesar de seguir a uma rgida padronizao, esses elementos da infra-estrutura
urbana tambm apresentavam preocupaes estticas, incorporando caractersticas distintas
que variavam desde a simetria, a volumes recortados e justapostos, a jogo de telhados,
utilizao de platibanda e cobertura em telha cermica de quatro guas.

53
Um fato que bem ilustra esse processo de racionalizao arquitetnica por que passaram as propostas de
Saturnino de Brito e do Escritrio a comparao entre uma estao elevatria localizada na cidade de Joo
Pessoa PB, datada da dcada de 1910, e os projetos executados em Natal. notria a simplificao
incorporada aos elementos da fachada, os quais apresentam-se quase que totalmente destitudos de adornos e
ornamentos.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 107

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Ressalte-se que o monumentalismo e a solenidade caractersticos do estilo ecltico


foram abjurados em funo da eficincia e economia da obra, buscando-se sempre uma
maior facilidade de manuteno e de manuseio desses equipamentos. Como exemplo mais
significativo desses elementos, tem-se a Estao Elevatria do D.5 (Figura 18) localizada
na Praa Jos da Penha, no bairro da Ribeira, cujo destaque, apesar de suas singelas
propores, foi obtido a partir da implantao no tecido urbano, inserindo-se em uma praa
de notvel visibilidade, cujo entorno foi agenciado de forma a privilegiar a utilizao e o
convvio por parte dos habitantes locais.

Figura 18: Estao Elevatria do D.5.


Fonte: ESCRITRIO... (1939)

O Plano de Melhoramentos

O plano de melhoramentos viria, de acordo com a postura sanitarista que orientou


a atuao do Escritrio Saturnino de Brito, complementar e assegurar o bom
funcionamento presente e futuro das obras de saneamento. No caso especfico de Natal, as
propostas procuraram suprir as principais carncias locais, indicando equipamentos de
suma importncia para o progresso social e econmico que, se concretizados, acabariam
por introduzir a to ansiada modernizao da cidade.54

54
Registre-se, aqui, uma outra forma de interpretao da justificativa para a elaborao do Plano Geral de
Obras. De acordo com Dulce Bentes Sobrinha (2001), as propostas contidas no plano de melhoramentos
podem-se inserir em uma perspectiva de preparao da cidade para a ecloso de uma possvel segunda
Guerra Mundial, no sentido de confirmar a posio estratgica de Natal na rota do sistema aerovirio
nacional e internacional, e ampliar a sua importncia em meio s conexes entre a Europa, a frica e as

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 108

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Ao contrrio das obras diretamente ligadas infra-estrutura do saneamento


caracterizadas anteriormente os projetos dos novos edifcios indicados no plano de
melhoramentos incorporaram alguns elementos do debate contemporneo da arquitetura
modernista. Contradizendo a postura conservadora associada a Saturnino de Brito Filho,55
foram introduzidas inovaes nas tcnicas construtivas, nos materiais empregados e,
principalmente, nos aspectos formais. Pode-se inferir, portanto, que essa modernizao
consistiria em uma estratgia para destacar os equipamentos projetados no cenrio urbano
da cidade marcado, at ento, por uma produo arquitetnica de estilo ainda ecltico.
Para a elaborao dos projetos do Edifcio Sede para a RSN, do Aeroporto e da
Estao Conjunta para as Estradas de Ferro, que fugiam alada do Escritrio de Brito ao
representarem uma vanguarda arquitetnica ainda em processo de afirmao e
consolidao no pas, foi contratado o Escritrio F.F. Saldanha Engenheiros e Arquitetos,
cujo titular, arquiteto Francisco Firmino Saldanha, havia se formado na Escola Nacional de
Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1931. Os seus projetos e obras revelam desde o incio as
experimentaes e o amadurecimento na composio formal e espacial vinculada
arquitetura modernista brasileira. No toa, foi um dos representantes brasileiros, ao lado
de Lcio Costa, Oscar Niemeyer, Jos de Souza Reis, dentre outros, nos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) (SCHERER, 1986). Alm dos projetos
em Natal, Saldanha foi autor dos edifcios-sede do Banco do Brasil em Joo Pessoa,
Fortaleza e Niteri, de propostas para habitao econmica (publicadas na revista A
Casa, na dcada de 1940), dentre vrios outros projetos (FERREIRA et. al., 2003a).
No que se refere ao Grande Hotel, apesar de incorporado no plano de
melhoramentos, conservou-se o projeto j elaborado e detalhado pelo arquiteto francs
George Munier, que se distanciava, com relao aos aspectos formais, das demais
propostas, refletindo caractersticas peculiares ao protomodernismo como se ver mais
adiante.

Amricas. Nessa perspectiva, seriam essenciais equipamentos como o Grande Hotel e o aeroporto projetos
englobados no plano do Escritrio Saturnino de Brito.
55
Essa postura de Brito Filho pode ser discutida tanto a partir da anlise de suas propostas como das
informaes obtidas na entrevista (realizada em 9 de abril de 2001) com o engenheiro civil Lus Marcelo
Gomes Adeodato.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 109

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Cabe considerar tambm que o Plano de Melhoramentos condizia com o


panorama arquitetnico geral no Brasil poca, que se apresentava oscilante entre a
vanguarda modernista e os estilos ainda remanescentes. A variedade de tendncias
arquitetnicas refletidas nas propostas pode ser atribuda, tambm, ausncia de
profissionais especializados em arquitetura no corpo tcnico permanente do Escritrio,
pois, ao recorrer contratao de profissionais autnomos e escritrios especializados para
a realizao desse servio, conciliou inovaes nas concepes formais dos profissionais
contratados aos padres j utilizados. Assim, pode-se identificar aspectos caractersticos de
trs estilos marcantes nas vrias propostas: o Ecletismo, o Modernismo, e a Modernidade
Pragmtica (ou Protomodernismo).

Edifcio Sede da Repartio de Saneamento

O Edifcio da Repartio de Saneamento56, projetado em dois pavimentos,


abrigava, no trreo, amplos sales onde se desenrolavam os servios burocrticos do
saneamento e o atendimento ao pblico; no andar superior, funcionava o setor tcnico. A
volumetria proposta apresenta interseo de planos e composio assimtrica das fachadas
acentuada pela disposio das esquadrias e dos acessos principais (Figura 19).
Observa-se a utilizao de inmeras inovaes quanto s tcnicas construtivas,
confirmadas, principalmente, a partir dos novos materiais empregados, como o
revestimento das paredes externas em p de mrmore e marmorite (acabamento j utilizado
em obras de outros centros urbanos), as grandes lminas em vidro que compunham a
fachada, e a laje plana em concreto armado impermeabilizado com camadas de feltro,
asfalto e piche, que formava um grande mirante com dois acessos laterais funcionando
como um teto-jardim.

56
A anlise deste exemplar baseou-se em estudos anteriores realizados pelo grupo de pesquisa, como Ferreira
et. al. 2000 e Dantas, 2000.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 110

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 19: Edifcio Sede da Repartio de Saneamento. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

Como nica proposta modernista construda do plano de melhoramentos, o


Edifcio sede da RSN representou um marco no quadro da arquitetura local da poca,
considerando-se que consistiu no primeiro exemplar eminentemente modernista da cidade
(FERREIRA et. al., 2003b). A utilizao de formas puras e de linhas simples, a ausncia
quase completa de elementos decorativos nas fachadas, a simplicidade racional e a
ortogonalidade presentes nas elevaes, a preocupao com o jogo de planos e volumes, os
novos materiais utilizados, e o terrao-jardim confirmaram o seu carter singular no
cenrio urbano de Natal.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 111

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Estao Conjunta para as Estradas de Ferro

No intuito de abrigar as estradas de ferro Central do Rio Grande do Norte e Great


Western, foi proposta a Estao Conjunta (Figura 20), de modo a minimizar as precrias
condies fsicas e de funcionamento em que se encontravam essas estradas,
racionalizando aquele servio. A concretizao da proposta demandaria a realizao de um
aterro em parte do rio Potengi originando um cais que, interligado ao porto de Natal,
promoveria o desvio da passagem dos trens, eliminando a sua circulao pela rua Chile
importante via de comrcio local e promovendo, conseqentemente, considervel
melhoria no fluxo virio do bairro da Ribeira.

Figura 20: Estao de Ferro Central do RN. Fonte: FERREIRA et.al (2003a).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 112

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Com relao s caractersticas formais, a exemplo do Edifcio da Repartio de


Saneamento, a proposta da Estao, tambm elaborada pelo Escritrio FF Saldanha,
apresentou inmeras aspectos que a caracterizam como filiada ao modernismo. Embora
sem acesso ao detalhamento do projeto arquitetnico57, o que poderia esclarecer maiores
informaes acerca dos materiais e dos detalhes construtivos, observa-se, a partir da
perspectiva volumtrica, que predominam as linhas puras e os volumes compactos, os
planos assimtricos compondo a fachada, demonstrando uma clara filiao racionalista.
Visualiza-se ainda a horizontalidade na disposio das aberturas (provavelmente em
vidro), que contrasta com a torre vertical lateral configurando um jogo de planos
volumtricos na fachada , bem como a utilizao de elemento vazado na fachada, em uma
composio de superfcies onde predominam os cheios sobre os vazios.

Aeroporto e Estao de Passageiros

A imagem de Natal como caes da Europa ou como sala de visitas do Brasil,


construda e enfatizada desde o final da dcada de 1920 como uma das justificativas
centrais para a modernizao da cidade, foi retomada pelo Escritrio para explicar a
importncia e a necessidade de um anteprojeto para o aeroporto (Figura 21). A
concretizao do projeto para esse equipamento, que contaria com as participaes do
Departamento de Aeronutica Civil, Governo do Estado ou Prefeitura, Servio do Porto e
Governo Federal, demandaria os seguintes servios: elevao dos recifes martimos; aterro
da rea entre esses recifes, o guia corrente da Limpa e a costa; construo da avenida beira-
mar passando no Forte dos Reis Magos, transformado em ponto de turismo regional;
reviso do projeto; e implantao do novo bairro residencial (FERREIRA et. al., 2003b).

57
Projeto esse que provavelmente nem chegou a ser finalizado em virtude dos escassos recursos financeiros
destinados execuo das propostas. A exigidade dos recursos s permitiu a construo das redes de gua e
de esgotos, os referidos equipamentos sanitrios e o Edifcio da Repartio de Saneamento, ficando as outras
propostas para um outro momento. Embora o Escritrio tenha permanecido em Natal at fins da dcada de
1960, os projetos contidos no plano de melhoramentos no foram executados, e, sequer mencionados.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 113

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 21: Aeroporto e estao de passageiros. Fonte: FERREIRA et.al (2003a).

Em parceria com o Departamento de Aeronutica Civil que ficou responsvel


pelo projeto das oficinas o escritrio F.F. Saldanha esboou o anteprojeto para a estao
de passageiros do aeroporto, apresentando traos da arquitetura modernista. As formas
puras, compondo um conjunto de prismas retangulares e curvos e fazendo aluso ao
formato de um avio, refletem os preceitos do modernismo em arquitetura ento vigentes.
Outros aspectos, como a laje plana de concreto armado, linhas predominantemente retas,
aberturas verticais, uso de elementos de argamassa armada e a torre como elemento
dominante na composio confirmam essa tendncia.
Um fator peculiar proposta diz respeito sua implantao na malha urbana da
cidade. Ao situ-lo junto ao j referido bairro residencial, evidenciou-se a preocupao em
incorporar a edificao malha urbana da cidade, conferindo-lhe imponncia e destaque na
paisagem citadina, ao contrrio do que se faz atualmente, quando os aeroportos so
afastados para a periferia da rea urbana ou mesmo para municpios vizinhos por motivos
de segurana em relao ao intenso trfego areo. Na mesma poca, e dispondo do mesmo
princpio, fora proposto e construdo o Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro,
inserido dentro do seu permetro urbano. Incorporados ao desenho da cidade, esses
aeroportos eram mais do que um local de chegada e partida, tornando-se o smbolo de uma
inovao tecnolgica para o momento, no caso, o avio (FERREIRA et. al., 2003a).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 114

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Grande Hotel

Contradizendo essa imagem de caes da Europa, Natal ainda no possua na


dcada de 1930 um hotel dentro dos padres de esttica e higiene vigentes. Embora h
muito j se dirigisse esforos construo do hotel, somente em 1935 foi adquirido o
terreno e encomendado o projeto ao arquiteto francs George Munier. Ocasionalmente,
integrou-se a proposta ao Plano Geral de Obras. O terreno, estrategicamente situado na
malha urbana da cidade, no centro da zona comercial e dos servios telegrficos, porturios
e bancrios, no cruzamento de duas artrias importantes no traado da cidade as
Avenidas Sachet e Tavares de Lira, sugerindo uma disposio poligonal da edificao,
ladeada por dois prismas retangulares que compuseram o conjunto do projeto (Figura 22).
O pavimento trreo abrangia 700 m2, constituindo-se de cinco quartos, salas de
bar e refeio, barbearia e salo de honra, administrao e chapelaria, rouparia e
adega, sala de controle eltrico, galeria de passeio, cozinha, copa e gabinetes
sanitrios. O primeiro pavimento compreendia um passeio externo, salas de
leitura e orquestra, dez quartos, despensa, rouparia e salas higinicas. J o
segundo e o terceiro pisos dispunham de duas salas de visita, oito apartamentos
de casal e oito de solteiros, quarenta quartos comuns e trs quartos auxiliares,
dois quartos de rouparia e dois de banhos quentes, alm da circulao de acesso
e instalaes sanitrias (FERREIRA et. al, 2003a).

Figura 22: Perspectiva do Grande Hotel. Fonte: Acervo HIDROESB

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 115

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Distante de vrias solues da arquitetura modernista, o Grande Hotel apresenta


ainda a predominncia do cheio sobre os vazios, um modo de insero no lote que ocupa
toda a testada, a simetria acentuada pelo volume superior central que representa a
tendncia de coroamento da edificao, e a ornamentao da fachada. A inovao ficou
por conta da utilizao do concreto armado, do revestimento em p de mrmore, do uso do
elevador e do terrao jardim superior.
importante destacar que, independentemente do partido e do estilo arquitetnico
adotado, as propostas do Escritrio para Natal vm reafirmar o papel da higiene e da
salubridade urbana na definio de uma nova paisagem, com a criao de espaos pblicos
que proporcionariam novos usos e novas sociabilidades, e com a arquitetura dos seus
equipamentos sanitrios, ora destacados no espao fsico da cidade.
Embora mantendo a forma, os materiais construtivos e a filiao esttica dos
equipamentos diretamente vinculados infra-estrutura do saneamento, retomando os
padres tcnicos e arquitetnicos desenvolvidos por Saturnino de Brito, o Escritrio, ao
contratar os projetos indicados no plano de melhoramentos com o escritrio F.F. Saldanha
Engenheiros e Arquiteto, promoveu, ainda que indiretamente, a introduo da arquitetura
moderna em Natal. Cabe questionar e aprofundar o estudo no sentido de constatar se reside
ou no a uma mudana de postura do Escritrio Saturnino de Brito, uma renovao nos
seus procedimentos e prticas de projeto que perpetuaria em suas obras realizadas a
posteriori; se essa flexibilidade da suposta rigidez e do conservadorismo atribudo a
Saturnino de Brito Filho permaneceram ao longo de sua atuao posterior, ou se ficaram
restritas ao caso especfico do Plano Geral de Obras para Natal.

O Plano de Expanso

Como forma de orientar o crescimento futuro da cidade, foi elaborada a proposta


de um bairro residencial, que ainda atenderia a dois objetivos: preencheria o vazio
existente entre o aeroporto proposto e o restante da cidade, e, ao ocupar o terreno dunar,
contribuiria ainda para a fixao das dunas, e, conseqentemente solucionaria o problema

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 116

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

da sua movimentao em direo ao rio Potengi, o que levava ao aterramento do seu leito e
dificultava o acesso dos navios ao porto.58
A proposta do bairro enquadrava-se nos princpios de Saturnino de Brito,
refletindo as preocupaes sanitaristas, econmico-administrativas e estticas que o
engenheiro unia em suas propostas. Constituindo para Sampaio (1952) um exemplo
significativo de concretizao dos princpios urbansticos de Saturnino de Brito, a proposta
determinava a ocupao de uma rea com 450.000 metros quadrados e ruas de 9 metros
que culminavam em pequenas praas e vielas pelos fundos dos lotes, as quais permitiam
a colocao das
canalizaes e a
serventia cmoda das
residncias, alm de
facilitar a circulao de
pedestres sem que fosse
preciso atravessar ruas de
trfego de veculos. As
faixas extremas,
marcadas em xadrez na
planta, foram reservadas
para o pequeno comrcio,
e, na zona central, foram
localizados os parques,
jardins, a escola e os
campos de esporte
(Figura 23).

Figura 23: Bairro Residencial.


Fonte: FERREIRA et.al (2003a).

58
Questo de suma importncia para a economia da cidade, tendo em vista que a maior parte da arrecadao
de rendas se devia ao movimento do Porto importaes e exportaes - naquele momento.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 117

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Em sua concepo e por seus aspectos fsicos, a proposta muito se aproxima da


concepo dos arquitetos Clarence Stein e Henry Wright para Radburn,59 tambm limitada
escala do bairro. Tais semelhanas se devem tanto forma do traado, quanto ao
zoneamento das atividades e distribuio dos equipamentos dentro do bairro,
principalmente no que se refere ocupao da rea central, onde se concentrariam os
equipamentos pblicos e comunitrios, originando um espao de convivncia dos
moradores. Estes tambm seriam privilegiados, do ponto de vista da circulao, pelo
traado virio adotado que ao mesmo tempo em que permitia o trfego de veculos,
protegia e desencorajava a penetrao dos automveis no interior da rea, utilizando-se das
avenidas perimetrais de circulao como os prprios limites do bairro.

A influncia das Cidades-Jardim: Radburn e Unidade de Vizinhana

A conhecida trama de Radburn, desenvolvida pelos arquitetos Clarence Stein e


Henry Wright,60 surge como uma das principais ressonncias, na Amrica, do ideal de
cidade-jardim preconizado por Howard,61 restringindo-se, no entanto, escala do bairro.
Esta concepo sofreu, ainda, as influncias de Clearence Perry, principalmente no que se
refere ao conceito de unidade de vizinhana.62 Ansiava-se por uma cidade que seria palco
de [...] uma grande renovao da confiana na vitalidade da vizinhana como unidade
poltica e moral (HALL, 1995, p. 143). Essa idia tentava retomar, atravs do
planejamento e desenho das cidades, as relaes sociais entre vizinhos que existiam nos
antigos bairros.

59
Essa vinculao foi sugerida, primeiramente, pelo arquiteto Joo Maurcio de Miranda, ao analisar a
evoluo urbana de Natal entre 1599 e 1979 (MIRANDA, 1999).
60
Clarence Stein e Henry Wright, assim como Lewis Mumford, faziam parte da Regional Planning American
Association (RPAA), e defendiam uma linha de pensamento que tinha no seu escopo a preocupao social,
associando o planejamento urbano a polticas habitacionais.
61
J mencionado anteriormente no trabalho.
62
Aos autores dos conceitos de unidade de vizinhana, afirma-se que mais interessavam as questes sociais e
a organizao funcional da cidade (dimenso quantitativa e extenso da unidade habitacional, o
posicionamento e distribuio dos equipamentos e percursos), do que propriamente as referncias dos
traados aos espaos e forma urbana (LAMAS, 1992).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 118

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Em Radburn, clara a subordinao a este ideal por parte dos seus pensadores e
concretizadores, de tal forma que Clarence Stein utiliza-se do conceito de unidade de
vizinhana, definindo-a como sendo uma
[...] rea residencial que deve fornecer locais de habitao para uma populao
que tem geralmente necessidade de uma escola elementar. A sua superfcie
depende da densidade utilizada. [...] A unidade de vizinhana deve ser
delimitada por todos os lados por vias suficientemente largas para permitir ao
trnsito passar pela unidade sem a atravessar. Deve incluir um sistema de
pequenos parques reas recreativas. Deve ser arranhado com um sistema
espacial de vias destinadas a facilitar a circulao no interior, desencorajando o
trnsito de passagem. (STEIN63 apud LAMAS, 1992, p. 317).

Ao conciliar o trfego de automveis proteo dos moradores dos seus perigos e


inconvenientes, proporcionava o isolamento da habitao e favorecia o aproveitamento
coletivo dos espaos livres centrais denominados the family neighborhood , onde se
localizariam os equipamentos pblicos, propiciando a convivncia entre os moradores e a
realizao das atividades comunitrias. Assim, como j afirmou Peter Hall (1995, p. 146),
as cidades inspiradas na trama de Radburn so [...] inquestionavelmente as mais
importantes contribuies norte-americanas para a tradio cidade-jardim.
O bairro residencial de Natal incorporou tais preocupaes com as relaes
comunitrias estabelecidas no conceito de unidade de vizinhana, visando, principalmente,
o bem-estar, e a convivncia entre seus moradores independentemente a que classe social
pertenciam, tendo-se em vista que, para Brito Filho, tanto poderia [...] oferecer magnfica
zona de residncia ou ento se destinar a substituir o bairro das Rocas, mudando para a a
populao dos casebres que o compem (ESCRITRIO..., 1939, p. 18).
Ao adotar as ruas fundo-de-saco, o Escritrio Saturnino de Brito conciliava o
iderio de cidade-jardim e os preceitos da unidade de vizinhana s condies sanitrias,
na medida em que o desenho das as ruas permitia uma maior facilidade no que se refere
implantao das redes de coleta dos esgotos e abastecimento dgua, alm de ser prevista a
declividade adequada do terreno.

63
STEIN, Clarence. Toward new towns for America.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 119

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

Figura 24: Detalhe rua fundo-de-saco.


Fonte: FERREIRA et. al. (2003).

O bairro residencial, como todo o Plano Geral de Obras, concorreria para


assegurar o crescimento ordenado da cidade, sem que os interesses particulares64
sobrepusessem o ideal de uma cidade salubre e ordenada. No entanto, o Plano Geral de
Obras no foi formalizado como lei, fator que provavelmente contribuiu para a no
implantao completa das propostas, ficando restrita a construo da rede de esgotos e do
sistema de abastecimento dgua.
Marco inicial da trajetria do Escritrio no Rio Grande do Norte, cuja atuao
perduraria at 1969, o estudo acerca do Plano Geral de Obras permite, ainda que
brevemente, investigar as ressonncias e permanncias, ainda na dcada de 1930, de vrios
fundamentos da cultura urbanstica gestada na segunda metade do sculo XIX; bem como
das tenses que pontuaram as formulaes sobre a modernizao da sociedade brasileira,
marcadas tambm pela dicotomia que opunha a cidade da desordem e da doena quela
outra, ideal, da ordem, civilidade e higiene. Ademais, possibilita ainda entrever o debate
sobre a renovao da arquitetura e do urbanismo brasileiros nesse perodo conturbado as
primeiras dcadas do sculo XX em que a busca por procedimentos econmicos e

64
Os interesses particulares, na viso do Escritrio Saturnino de Brito, eram os responsveis por tornar a
cidade insalubre e desordenada.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 120

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

construtivos racionais convivia com uma arquitetura de cunho historicista, por exemplo;
em que a luta pelo moderno em arquitetura encontrou mais um campo de legitimao,
ou, pelo menos, de disputa, nas reformas urbanas lideradas pelos epgonos do chamado
urbanismo sanitarista no Brasil (FERREIRA et al, 2003b).
A partir da elaborao do Plano Geral de Obras, a chamada maquinaria urbana
conformou e definiu o desenho da cidade, submetendo a sua estrutura urbana e o seu
crescimento futuro racionalidade do sistema de saneamento. Os elementos dessa
maquinaria no permaneciam escondidos na cidade subterrnea; foram pensados
tambm como partes do espao urbano que o configuravam e o embelezavam, quer nos
parques e locais de lazer em torno dos reservatrios e lagoas de captao, quer na
arquitetura dos edifcios de apoio ou na defesa enftica da necessidade de grandes reas
permeveis para renovao do aqfero subterrneo, isto , na defesa de grandes zonas
verdes, tanto no espao pblico (parques urbanos) como no espao privado (equilbrio da
relao lote-edifcio) (FERREIRA et al., 2003c).
Nesse sentido, visando destacar cada equipamento ligado ao saneamento, o plano
incorporou alguns elementos do debate contemporneo da arquitetura e do urbanismo
modernistas e o traduziu nos projetos e obras, mantendo submetida adequao dessas
renovaes aos condicionantes tcnicos dos sistemas, fosse para valoriz-los na
configurao do espao, como no caso do edifcio sede da Repartio de Saneamento de
Natal marco pioneiro da arquitetura modernista na paisagem urbana da cidade fosse
para otimizar a soluo tcnica, como na adoo da unidade de vizinhana para o novo
bairro residencial, cujas ruas em cul-de-sac se adequavam melhor a um sistema de
esgotamento semelhante ao que se conhece hoje como condominial (FERREIRA et al.,
2003a). Essa postura marcaria um momento de renovao dos procedimentos do Escritrio
Saturnino de Brito, inovando nos aspectos arquitetnicos e urbansticos.
Cabe ainda afirmar que, ao recuperar os projetos anteriores e incorporar as suas
diversas, e por vezes confrontantes, ideologias e princpios, ao mesmo tempo em que
focalizou a questo ambiental como central no projeto, o Plano Geral de Obras contribuiu
sobremaneira para a fomentar a discusso do papel do planejamento urbano e da relao
entre os interesses pblicos e privados na construo do espao urbano temtica

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
PRIMEIRO MOMENTO 121

As idias urbansticas orientando o crescimento da cidade (1935 1939)

fundamental na histria do planejamento no Brasil. Por outro lado, questiona-se, poderia a


inaugurao das obras de saneamento em 1939 marcar o fim da fase dos planos
urbansticos? Pode-se observar que se iniciou a um novo momento da histria da cidade,
caracterizado pelo surgimento e intensificao de um mercado imobilirio que se
consolidou, principalmente, a partir do crescimento populacional ocorrido com a II Guerra
Mundial na segunda metade da dcada de 1940, evidenciando a cidade como um negcio
rentvel, como se ver adiante.
A representao tcnica da cidade empreendida pela engenharia sanitria a reduz
ou a prospera, na medida em que estabelece um novo modo de conceb-la, de observ-la,
de geri-la e, principalmente, de planej-la? A paisagem criada pelo saneamento, com a
transformao de equipamentos tcnicos em logradouros pblicos, em parques e bosques
ou em espaos de reunio e diverso, no seria agradvel aos olhos dos habitantes? De
qualquer maneira, das invisveis estruturas subterrneas das redes e servios tcnicos
visibilidade dos equipamentos e edifcios de apoio, o saneamento, como mote principal da
atuao dos profissionais urbanistas, configurou a face moderna de muitas cidades
brasileiras no incio do sculo XX (FERREIRA et. al, 2003b).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 123

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

O segundo momento do processo de urbanizao de Natal identificado neste


trabalho compreende as dcadas de 1940 e 1950, marcadas por uma fase de intenso
crescimento fsico e populacional em que o que se considerava poca como problemas
urbanos eram os protagonistas, pois, ao se consolidarem e se agravarem progressivamente,
incutiram transformaes na realidade urbana e, sobretudo, nortearam e condicionaram as
intervenes sobre o espao fsico da cidade. Esses problemas urbanos, de acordo com
Pechman (2002) foram inventados a partir da introduo do higienismo, quando as
cidades entendido o seu carter urbano passaram a ser tematizadas e investigadas,
afigurando-se como objeto de interveno do saber mdico. Antes disso, ressalta o autor,
certamente havia aspectos nas cidades que poderiam ser interpretados como problemas,
entretanto, no deveriam ser encarados como problemas urbanos, em virtude da ausncia
de uma vida e de uma sociedade eminentemente urbanas. Aps a II Guerra Mundial, no
entanto, esses problemas urbanos se consolidaram, dando origem a novas formas de
interveno sobre o espao fsico, fazendo emergir, em mbito geral, o planejamento
urbano como forma de legitimao da ao poltica sobre o espao fsico das cidades.
Em mbito local, em funo do incipiente processo de urbanizao por que passou
Natal desde a sua fundao at as primeiras dcadas do sculo XX e da existncia de
planos urbansticos que nortearam e controlaram a sua expanso urbana e proveram os
elementos infra-estruturais bsicos desde o incio do sculo, as questes urbanas, at a
dcada de 1940, restringiram-se ao embelezamento, higienizao e modernizao da
estrutura viria. Entretanto, a partir da II Guerra Mundial e do espantoso crescimento por
que passou a cidade desde ento, esses problemas deixaram de ser pontuais e restritos a
algumas reas especficas (geralmente perifricas) ao mesmo tempo em que perderam o
seu carter setorial, alastrando-se por toda a extenso urbana e abrangendo os mais
diversos setores da realidade citadina. justamente nesse momento que foi geminada a
necessidade de uma interveno planejada sobre a cidade que contemplasse a soluo
desses problemas urbanos, o que culminaria, em um momento posterior, na adoo do
planejamento como forma de superao desse contexto de crise.
Observa-se que, na ausncia de instrumentos efetivos de previso, controle e
ordenamento da expanso da cidade por parte do poder pblico tendo-se em vista que os
existentes tornaram-se obsoletos frente nova configurao urbana de Natal e mediante os
novos problemas urbanos , o crescimento se deu de maneira aleatria, segundo os

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 124

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

interesses da produo privada do solo urbano e do crescente mercado imobilirio. Essa


falta de controle sobre o destino da cidade acarretou a disseminao e o agravamento de
precrias condies de higiene, habitabilidade, transporte e circulao, e, acima de tudo,
inmeras dificuldades no acesso terra e habitao, principalmente no que se refere
populao de baixa renda.
Assim, pode-se inferir que as dcadas de 1940 e 1950 assinalam, de modo geral,
no s a transio entre a era dos planos urbansticos e a institucionalizao do
planejamento urbano, como tambm marcam a passagem de uma cidade idealizada e
controlada pelos instrumentos urbansticos para o urbano, ao assumir um novo significado,
sendo interpretada como a [...] mobilidade horizontal vertical, que socialmente
legitimava o crescimento industrial, oferecia perspectivas individuais e mesmo de classe
aos que saam do campo em demanda das cidades [...] (LAMPARELLI, 1978, p. 105). A
cidade, ou o urbano, adquiria, portanto, uma escala regional desprovida dos seus limites
fsicos, tornando-se smbolo do desenvolvimento e do poderio financeiro do pas. Esse
momento antecede e cria as condies para a institucionalizao do planejamento urbano
que vai ocorrer efetivamente na dcada seguinte, como se ver no captulo 5.
A fim de dar conta e ajudar a compreender essa transio, este captulo estruturou-
se em trs partes. Em um momento inicial, foram identificados e analisados os problemas
urbanos, contrapostos ao contexto em que se inseriam e s possveis causas e
conseqncias da sua proliferao na cidade.
Na segunda parte, retomou-se a atuao do Escritrio Saturnino de Brito que, com
a criao do Departamento de Saneamento do Estado (DSE) em 1952, assumiria um
importante papel sobre o gerenciamento e ordenamento da expanso da cidade, atravs da
anlise e aprovao dos projetos de todos os novos loteamentos e arruamentos, em paralelo
proviso e administrao dos servios de saneamento.
Por fim, foi realizada uma exposio das realizaes administrativas de Djalma
Maranho, em sua primeira gesto municipal, entre 1956 e 1958, principalmente no que se
refere s aes sobre o espao urbano e s propostas de reforma na legislao urbanstica
as quais visavam remediar ou mesmo amenizar os problemas urbanos e que possivelmente
contriburam para com o processo de institucionalizao do planejamento urbano em Natal
e no Rio Grande do Norte.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 125

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Processo de urbanizao e problemas urbanos


O nacional-desenvolvimentismo e a urbanizao das cidades brasileiras

Com a queda do perodo ditatorial de Getlio Vargas em 1945 e o conseqente


processo de redemocratizao poltica, deu-se incio no Brasil a uma fase de
transformaes no mbito poltico-administrativo, ainda no adaptado democracia, ao
pluripartidarismo e aos movimentos populares (PONTUAL, 2001). Mais precisamente
aps 1954, com a morte de Getlio Vargas e a eleio de Juscelino Kubitschek, as
modificaes atingiram uma maior abrangncia, e, dentro da poltica nacional-
desenvolvimentista levada a cabo pelo novo Presidente da Repblica, emergiam as
necessidades de crescimento e modernizao das cidades, com vistas a subsidiar ao
processo de industrializao que se almejara.
Evidenciando um momento em que as preocupaes eram essencialmente
econmicas (PONTUAL, 2001), condio que ecoava no processo de urbanizao, tendo
em vista que a cidade refletia, sobretudo, os interesses econmicos das classes dominantes,
o papel da cidade foi adquirindo novas conotaes. Do ponto de vista do sistema
produtivo, por exemplo, a cidade atingiu um alto patamar de importncia, pois passou a ser
vista como a aglomerao das foras de trabalho, da infra-estrutura, das atividades
favorveis ao desenvolvimento scio-econmico, e, sobretudo, da acumulao de capital.
Por outro lado, do ponto de vista social, passou a ser evidenciada como o cenrio do
processo de organizao das classes trabalhadoras (COSTA, 1978).
Assim, como palco de inmeras relaes produtivas e sociais, a cidade se
expandiu no intuito de amparar e sustentar o processo de desenvolvimento nacional que
tinha a industrializao como sua fora motriz, principalmente aps a II Guerra Mundial ,
transformando-se em urbano. A priori, a consolidao do urbano fez emergir outras
questes no cenrio poltico e econmico, passando-se de uma concentrao de atividades
predominantemente rurais para uma economia urbana evidenciada pelo comrcio de terras
e pelo conseqente surgimento do mercado imobilirio.
Essa [...] hegemonia do processo econmico sobre a totalidade das condies de
vida da populao (COSTA, 1978, p. 85), culminou e ao mesmo tempo refletiu, dentre
outros fatores, a mercantilizao do espao que se conformou, principalmente, a partir dos

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 126

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

interesses de agentes privados em detrimento dos interesses coletivos ou do poder pblico,


acarretando conseqncias negativas na produo do espao urbano, como a precariedade
constante das condies de vida nas periferias urbanas; a impossibilidade de reverso do
dficit dos servios pblicos por parte das administraes pblicas; sem falar no prejuzo
ao meio ambiente (COSTA, 1978). Assim, da cidade idealizada e pensada pelos urbanistas
e propagada e custeada pelas elites dominantes onde o poder pblico detinha o controle,
a fiscalizao e a ordenao do espao urbano , passa-se ao urbano, a uma escala regional,
em que a iniciativa privada promove as principais transformaes fsicas, e onde os
emergentes problemas urbanos se acumulam, em total prejuzo dos interesses coletivos.
Assim, no sentido de atender a essas transformaes na cidade e no processo de
urbanizao, criaram-se, nesse momento, as condies histricas para a introduo e
institucionalizao do planejamento inicialmente na esfera econmica. No intuito de se
tornar uma atividade tcnica e consultiva permanente dentro dos rgos administrativos, o
planejamento urbano surgiu, de incio nas grandes cidades brasileiras, como orientador da
ao do Estado e da iniciativa privada nacional e estrangeira, pretendendo-se figurar como
provedor da segurana social, impedindo a disseminao do consumismo,
compatibilizando os interesses divergentes, garantindo liberdades constitucionais e os
valores democrticos, e, por fim, colocando o Brasil no mesmo plano das naes
desenvolvidas (PONTUAL, 2001, p. 126). Cabe mencionar aqui a interpretao do
planejamento como instrumento privilegiado na implantao dos direitos sociais, nos quais
se apiam os Estados Nacionais no segundo ps-guerra, em termos de legitimao poltica
(SCHERER, 1995).
Como atividade de profissionais especializados, o exerccio do planejamento
desvinculava o urbanismo da arquitetura e da engenharia, tendo a legislao como
principal estratgia de interveno do poder pblico no controle do processo de uso e
ocupao do solo urbano. Em So Paulo, a criao do Departamento do Urbanismo (DU)
em 1947, marcou o incio do processo de [...] formalizao, sistematizao e
institucionalizao do planejamento urbano (PONTUAL, 2001, p. 18), processo esse j
evidenciado em um grande nmero de cidades do Brasil poca.
O crescimento das cidades e o processo de urbanizao se proliferam em funo
das iniciativas nacional-desenvolvimentistas difundidas por Juscelino Kubitscheck a partir
de 1956 que atingiram seu apogeu com a inaugurao de Braslia a cidade

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 127

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

arquitetura, evidenciando a negao aos planos cientficos e, sobretudo, afigurando-se


como smbolo da prosperidade econmica e da superao do subdesenvolvimento
brasileiro.65

II Guerra Mundial, crescimento fsico e demogrfico e proliferao dos


problemas urbanos em Natal

Em mbito local, a dcada de 1940 marcou um intenso desenvolvimento e


crescimento urbano, econmico e social proporcionado, essencial e principalmente pelo
papel desempenhado por Natal no contexto da II Guerra Mundial. A posio geogrfica
estratgica da cidade, bem como a capacidade (ainda sub-aproveitada) do moderno sistema
de saneamento de que dispunha a cidade recm implantado pelo Escritrio Saturnino de
Brito , dentre outros fatores, viabilizaram a construo da maior base norte-americana
fora dos Estados Unidos, acarretando no s inmeras transformaes fsicas no espao
urbano da cidade, mas promovendo tambm um intenso progresso econmico e novos
hbitos de vida para a populao local (FERREIRA et. al., 2003a). De acordo com
historiadores locais, a cidade ganhou ares cosmopolitas, modernizando seu cenrio com
as novas construes, com a circulao de veculos e com um grande contingente
populacional. Vale salientar que, [...] essa cidade nova nascia de um processo de
modernizao de origem externa, que trazia exteriorizaes de modernidade ao mesmo
tempo em que preservava marcas do atraso; que produzia riquezas para alguns e mantinha
muitos excludos [...] (LIMA, 2001, p. 72), caracterizando, assim, um transitrio e
efmero quadro de falso progresso (CLEMENTINO, 1990).
O impacto imediato causado pelo acmulo de tropas a partir de 1942 (Figura 25),
associado a um aparente progresso econmico evidenciado por novas ofertas de emprego
e pela intensa circulao de capital, revelou-se no grande aumento populacional,
comprovado pelo mais alto ndice demogrfico do sculo XX. Em 1940, de acordo com os
resultados do censo realizados naquele ano e publicados no jornal A Repblica em 1942

65
Em mbito local, como se ver posteriormente, apesar do acelerado crescimento, e das suas conseqncias
para a configurao do espao fsico da cidade, incentivando, inclusive o surgimento de um mercado de
terras, o planejamento urbano tardou a se institucionalizar definitivamente na esfera administrativa local e
estadual o que, certamente, contribuiu para uma expanso desordenada e desprovida de infra-estrutura,
marcada pelos interesses lucrativos por parte da iniciativa privada, e pelo paternalismo do poder pblico para
com esse setor de atividades, e, sobretudo, para o agravamento dos problemas urbanos.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 128

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

(QUANTOS..., 1942, p. 12), Natal possua 54.000 habitantes, nmero que chegou, no
censo de 1950, a 103.215 habitantes ou seja, um crescimento de quase 100% em uma
dcada.

Figura 25: Base area norte-


americana dcada de 1940.
Fonte: Acervo em processo de
catalogao.

Desvelou-se, a, uma sria crise que abrangia desde o abastecimento de gneros


alimentcios, passando pelo dficit habitacional, pela carncia de equipamentos de infra-
estrutura bsica como escolas, hotis, hospitais, chegando at a problemas de segurana
pblica tudo isso aliado a uma incontrolvel inflao, na medida em que a atrao de um
grande nmero de imigrantes dentre militares e civis exacerbou, no apenas a carncia
na infra-estrutura, mas, sobretudo, a de abastecimento dgua (ESCRITRIO..., 1952, p.2).
No sentido de atenuar tal situao, logo que instaladas as bases norte-americanas
na cidade, mobilizaram-se esforos para dotar a cidade da infra-estrutura necessria s
demandas de milhares de novos habitantes, visando, sobretudo, transformar uma [...]
economia de paz, debilitada e desorganizada em uma economia de guerra capaz de atender
aos imperativos internos (LIMA, 2001, p. 70). Paralelamente, promoveu-se a criao de
novas frentes de trabalho no interior do estado e em outras regies, visando desviar parte
do fluxo imigratrio dirigido a Natal (FERREIRA, 1996).
Apesar das iniciativas do poder pblico, a incapacidade de Natal em absorver as
diversas atividades geradas por sua funo de sediar a base americana e comportar esse
novo contingente populacional revelou-se, efetivamente, a partir da indisponibilidade de
moradias. O grande nmero de despejos publicados com freqncia na imprensa local e

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 129

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

o acelerado aumento de preo dos aluguis, mostram o outro lado da febre das
construes que havia tomado a cidade nos anos 1940 (FERREIRA, 1996).
Nessa conjuntura, marcada pela emergncia da construo civil, pelo crescimento
e diversificao do comrcio frente aos novos hbitos de consumo e pelo incremento das
atividades de lazer, consolidavam-se, cada vez mais, as atividades eminentemente urbanas.
Assim, aliado criao de novos empregos, ao aumento dos salrios, melhoria da
qualidade de vida de parte da populao, e, sobretudo acumulao de capital nas mos de
comerciantes e proprietrios rurais, esse contexto de transformaes fsicas, econmicas,
sociais e culturais por que passava a cidade ressaltou o setor imobilirio como
investimento lucrativo, para onde convergiam os capitais provenientes do comrcio e do
setor agrrio.66
Alm disso, o grande nmero de imigrantes que procuravam por hospedagem em
penses, hotis e, sobretudo, por casas para alugar contrapondo-se precria oferta de
infra-estrutura e de moradia contriburam no s para impulsionar a construo de
habitaes confirmando o retorno financeiro que seria obtido com o mercado imobilirio
, como para inflacionar os preos cobrados pela locao de imveis, negligenciando a Lei
do Inquilinato (Lei de Arrendamentos Urbanos, 1942) que congelava o valor dos aluguis.
Desse modo, contrariando um cenrio nacional ento caracterizado pela retrao
do mercado imobilirio e pela crise no setor da construo fatores acarretados,
respectivamente, pela referida Lei de Arrendamentos Urbanos e pelo alto custo dos
materiais de construo , em Natal, observa-se um crescimento significativo do setor da
construo civil, bem como de empresas e comrcios ligados a essa atividade.
Oportunamente, o aumento dos preos dos materiais de construo foi incorporado ao
valor dos imveis, refletindo-se em uma alta inflao tanto na compra como na locao dos
mesmos, e aumentando ainda mais os lucros dos investidores.
Com a febre das construes, a paisagem urbana de Natal se transformava
rapidamente, incorporando novas, luxuosas e modernas edificaes, alm das vilas
militares. O Escritrio Saturnino de Brito referiu-se ao desenvolvimento da cidade,
expondo em relatrio elaborado em 1952:

66
De acordo com Ferreira (1996) tal fato deve-se ausncia de indstrias no Estado e na capital, atividade
que s teria incio por volta das dcadas de 1970 e 1980.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 130

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

[...] no s em nmero de habitantes cresceu a cidade, mas tambm se requintou


o tipo de edificao, conforme exemplificam os edifcios para as reparties do
Ministrio da Fazenda (4 andares), os da Caixa Econmica, do Banco do Brasil,
do Departamento de Educao, da prensa Joo Cmara, de novos Quartis do
Exrcito e da Fora Pblica, do restaurante do SAPS, do Hospital Psiquitrico,
alm de numerosos postos de lavagem de automveis, a maioria dos quais, na
zona baixa (ESCRITRIO..., 1952, p. 3).

Figura 26: Vista area Lagoa


Manoel Felipe e Quartel do
Exrcito, dcada de 1940.
Fonte: Acervo em processo de
catalogao.

Por outro lado, denunciava-se j em 1942, em artigo publicado no jornal A


Repblica, outra face da ao dos produtores imobilirios privados movidos pela
necessidade do retorno financeiro que transformavam indiscriminadamente e
desordenadamente a paisagem urbana de Natal. A nsia pelo lucro nesse setor de atividade,
considerava-se, modificava e empobrecia o cenrio urbano local com o surgimento de
edificaes de baixos padres construtivos e estticos inclusive em bairros considerados
nobres poca:
[...] Casas pegadas em grupos numerosos, l esto se apertando no
aproveitamento vital de um terreno pequeno. Repetio de outros ncleos de
casas de que a cidade est, infelizmente, cheia. Necessitamos, realmente, de
vilas, de casas baratas para muita gente pobre que no tem onde morar. Mas
aquele trecho no podia [...] ser destinado a esses arranjos de construo.
Petrpolis [...] est sendo levado na onda dos vcios de oportunismo econmico,
num flagrante erro de apropriao. [...] necessrio notar que o esprito que
promove a construo das casas baratas, s tem realmente a finalidade da
ambio em detrimento da esttica da cidade [...] (DANILO, 1942, p. 08).

Lus da Cmara Cascudo, evocando uma preocupao com a proteo dos


monumentos naturais de Natal amplamente mencionada em momentos anteriores ,

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 131

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

ilustra a ausncia, por parte do poder pblico, de aes efetivas no intuito de orientar,
fiscalizar e controlar a produo privada do solo urbano em Natal, alm de demonstrar
claramente a intensificao do mercado imobilirio evidenciada, principalmente, pela
intensa produo de habitaes.
A paisagem, por ela prpria, independente dos elementos da tradio, est
merecendo os cuidados e as defesas administrativas contra a mar da avidez
humana.
Se no existir uma barreira real, intransponvel e segura, no haver trecho de
paisagem, valorizando a viso da cidade do Natal, que resista ao desejo material
de transform-la em lotes-de-casas. Ou perspectiva deformada pelas
construes que interceptam o horizonte, cercando-nos com os muros cinzentos
dos edifcios incaractersticos e modernos. [...]
[...]
Um passeio pela cidade do Natal evidenciar uma cidade cujas paisagens
circunsjacentes esto desaparecendo. [...]
A Praa Carlos Gomes, com aquele restinho de mata do Baldo, deve ser
defendida logo. Amanh pode aparecer um camarada muito rico e transforma
aquele monumento natural em casas para alugar (CASCUDO, 1946, p. 3).

Pode-se afirmar ainda que esse quadro de desenvolvimento e progresso


econmico atingiu apenas uma parte da populao, proporcionando um grande acmulo
de capital nas mos de poucos comerciantes, e, sobretudo, ressaltando e acentuando as
desigualdades sociais j existentes, tendo em vista que os benefcios no abrangiam todas
as classes sociais e tampouco todos os bairros da cidade.
O problema da mendicncia em Natal, sempre foi uma constante preocupao
do poder publico. Vrias tentativas foram feitas para resolv-lo em definitivo,
mas dificuldades diversas vm burlando essas nobres intenes. [...] Nos
ltimos meses, em particular, a situao apresenta aspectos mais agravantes, em
face dos dolorosos efeitos de duas secas consecutivas e esmagadoras, que
trouxeram a Natal um grande nmero de desajustados sertanejos, e ainda pelas
conhecidas razes do nosso desenvolvimento, que atraram outros tantos dos
vizinhos estados (O PROBLEMA..., 1943a, p. 03).

Comprovando a superficialidade do clima de falso progresso, destacava-se


ainda a situao higinica em que se encontravam os bairros das Rocas, do Alecrim, do
Morro Branco e as localidades Canto do Mangue, Carrasco, Guarita, com suas [...] tristes
e sujas taperas, onde permaneciam visveis fezes sobre a terra e cacimbas ameaadoras,
caracterizando-se, portanto, como [...] focos potenciais de epidemias
(SANEAMENTO..., 1944, p. 04).
Com o fim da Guerra e a sada dos militares de Natal, e o conseqente declnio
das atividades de apoio direto ou indireto que dependiam da circulao de moeda gerada

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 132

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

pela presena norte-americana emergiu na cidade uma crise social e econmica


evidenciada, principalmente, pelo alto ndice de desemprego. Tal situao seria amenizada
pela permanncia de parte das bases militares brasileiras e pelos investimentos do Governo
Federal na cidade no perodo ps-guerra, o que afirmou a condio de Natal como cidade-
base militar. Destarte, a partir da segunda metade da dcada de 1950, so reincidentes na
imprensa local registros das precrias condies de vida de parte da populao, situao
agravada pelos longos perodos de estiagens que assolaram o Rio Grande do Norte e a
regio Nordeste como um todo, nesse momento.
O movimento migratrio provocado pelas secas, principalmente na segunda
metade da dcada de 1950, exacerbou a carncia de infra-estrutura da cidade, ao mesmo
tempo em que contribuiu sobremaneira para a expanso urbana de Natal, gerando novas
formas de ocupao do solo urbano. Um exemplo significativo reside no surgimento do
bairro de Nova Descoberta, que, gradativamente, foi crescendo e elevando seus padres
construtivos e, acarretando na substituio da forma de ocupao original.
Foram, assim surgindo novas casas, agora sob melhor orientao tcnica. Hoje,
j so centenas de casas, muitas de boa feitura, dispostas em ruas bem traadas.
Um metro de terreno est valendo muito dinheiro em Nova Descoberta. A falta
de luz eltrica no vem impedindo o seu crescimento, pois j existe uma linha
de nibus indo at l.
Casas comerciais, farmcias, escolas, esto funcionando, enquanto seu
permetro urbano vai aumentando.
[...]
Quando outros veres vierem, os sertanejos famintos no mais tero a acolhida
primitiva que lhes deu Nova Descoberta. De l, agora, sero banidos, tambm,
porque o bairro que fundaram na luta pela sobrevivncia no mais apresenta as
casas rsticas que edificaram (LOPES, 1957, p. 05).

Problemas urbanos e continuidade das aes saneadoras

Cabe aqui retomar a criao da Repartio de Saneamento de Natal (RSN) em


1937 fato marcante na trajetria do Escritrio Saturnino de Brito que estabeleceu novas
bases institucionais que fortaleceram a presena do Estado na gesto dos servios de gua e
esgotos no s na capital, como em todo o estado. A criao dessa Repartio, que assumiu

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 133

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

um carter mais poltico-administrativo,67 revela um vnculo estreito com o processo


nacional de centralizao do poder muito mais amplo, estabelecido com o Estado Novo
(1937-1945), que redirecionou o papel do Estado (FERREIRA et. al, 2003a).

Os primeiros anos da dcada de 1940 e as potencialidades dos servios de


saneamento de Natal

A ressonncia e o sucesso das grandes obras de saneamento inauguradas em


1939 continuaram a ecoar no incio dos anos 1940, servindo de modelo, de acordo com os
jornais locais, para outras cidades do pas. Freqentes eram as notcias e artigos nos
peridicos locais enaltecendo a vultuosidade, operosidade e a perfeio das redes de
abastecimento dgua e de esgotamento sanitrio implantadas e administradas pelo
Escritrio Saturnino de Brito. Passado um ano da inaugurao das obras, publicou-se:
Obra vultuosa [...], a mais relevante e a de maior significao de quantas tm
sido realizadas em nossa terra em benefcio da coletividade e em favor dos
nossos foros de cidade em constante progresso e aumento do nvel de
civilizao, conforto e bem estar material [...]. Durante esse espao de tempo
decorrido, vale ressaltar, nenhuma falha apresentaram os servios a que ns
estamos referindo. [...] Tudo vem atestar, assim, a excelncia do aparelhamento
utilizado, a competncia tcnica dos seus realizadores e a largueza de vistas do
plano delineado e objetivado, considerando [...] todas as possibilidades futuras
de desenvolvimento e densidade humana desta capital. [...] Imprescindvel [...] a
administrao operosa e produtiva dos aludidos servios, conduzindo-os de
maneira louvavelmente benfica e rtil [...] (H UM ANO..., 1940, p. 05).

Entretanto, o sistema era ainda sub-utilizado e apenas parte das edificaes havia
realizado as ligaes. Tal fato demonstra, por um lado, a ignorncia, por parte da
populao local, da real necessidade e das contribuies que o saneamento poderia trazer
para a melhoria das condies de vida, ao mesmo tempo em que ilustra o alto custo das
obras e a precariedade da mo-de-obra local evidenciada pela incapacidade de realizao
das obras necessrias ligao. Com relao a esse aspecto, a Repartio de Saneamento
tratou de instruir tecnicamente alguns funcionrios, a fim de capacit-los a execuo de tal

67
Vale ressaltar que a Repartio coexistia com a Comisso de Saneamento de Natal (CSN), que, por sua
vez, adquirira uma responsabilidade mais tcnico-executora, conforme visto no captulo 03. A empresa
responsvel, tanto pela Repartio, como pela Comisso de Saneamento era contratada por um prazo mximo
de quatro anos. Esse contrato foi sendo renovado ao longo das administraes, consolidando a permanncia
do Escritrio Saturnino de Brito at 1969.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 134

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

funo o que, de certa forma, no acarretou grandes resultados, tendo-se em vista a


recorrncia de artigos publicados nos jornais locais em que a Repartio apelava, no s
para a ligao das edificaes rede, como pela utilizao de mo-de-obra especializada
ou seja, dos aparelhadores do seu quadro tcnico que demandavam um alto custo a ser
arcado pelos proprietrios.
Nesse sentido, foi promulgado o decreto n 75, de 18 de dezembro de 1940,
tornando [...] obrigatria, a partir de janeiro de 1941, a ligao rede de exgotos da
Capital, para todos os prdios de valor locativo superior a 4:000$, e ressaltando o papel
dos proprietrios ao efetuar [...] a parte que lhes cabe no saneamento urbano para o
pleno funcionamento dos sistemas (RIO GRANDE DO NORTE, 1940, p. 155). O decreto
prescrevia ainda que, progressivamente, todos os prdios deveriam fazer suas ligaes,
pois delas e da situao sanitria observada e certificada pela Repartio de Saneamento,
dependeria a obteno do habite-se para as novas, reparadas ou reocupadas edificaes.
De maneira geral, ao longo dos primeiros anos da dcada de 1940, as aes
saneadoras realizadas no mbito da Repartio de Saneamento tiveram sua
continuidade assegurada pelo Escritrio Saturnino de Brito a partir de uma constante
preocupao em criar espaos saudveis e integrados paisagem. Esse cuidado norteou as
propostas de ampliao e manuteno dos servios, ao mesmo tempo em que corroborou o
embelezamento e a melhoria das reas beneficiadas pelo projeto de saneamento.
De acordo com os dados obtidos nos jornais locais e nas Mensagens de Governo,
em 1940, por exemplo, as vias que davam acesso s zonas de captao nas dunas
receberam ajardinamento e reflorestamento, visando construo de novos parques nessas
localidades. Os trabalhos para criao de um parque nos arredores da lagoa Manuel Felipe
proposta j apontada por Henrique de Novais, em 1924, e incorporada por Giacomo
Palumbo, em 1929 foram continuados por meio de estudos hidrogrficos para a
higienizao da lagoa e de projetos para sua arborizao (RIO GRANDE DO NORTE,
1941, p.67).
Os servios de ampliao das redes de gua e de esgotos primaram pela
implantao de novos ramais e novos coletores. No entanto, j comeava a se evidenciar
uma certa discrepncia quanto prioridade no atendimento e na efetivao desses dois
servios, privilegiando-se, notadamente, o abastecimento dgua. Foram acrescidas 346
penas dgua que, somadas s j instaladas, totalizaram 3.107 em toda a cidade. Nos

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 135

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

bairros pobres da cidade, cuja populao no tinha condies de custear a taxa de ligao
imposta pelo Governo, o abastecimento continuava a ser feito por meio de chafarizes, em
um nmero total de oito. J as instalaes domiciliares de esgotos, no apresentavam um
ndice satisfatrio de ampliao. Somente 338 prdios68, em toda a cidade, no ano de 1940,
possuam a ligao (RIO GRANDE DO NORTE, 1941, p.68).
Em relatrio apresentado ao Presidente da Repblica Getlio Vargas, o ento
Interventor Federal no Rio Grande do Norte, Raphael Fernandes Gurjo, apresentou alguns
trabalhos desenvolvidos na prpria capital visando baratear os novos servios de
saneamento. Fez referncia aos servios de manuteno e substituio das redes, incluindo
a produo de material e peas utilizados nas obras locais. As tarefas executadas e os
produtos fabricados, sob a responsabilidade da Repartio de Saneamento de Natal, foram
assim listados no relatrio:
MOLDAGEM: [...] peas de concreto para extenso da rede sanitria, estacas
de cimento armado, tampas de concreto, tubos e outras peas.
CARPINTARIA: [...] caixas para moldes, chafarizes de madeira, caixas de
madeira, escadas, cruzetas, armrios, etc.
FERRARIA: [...] peas de ferro batido necessrias aos servios, como sejam:
portes e grades de ferro, abraadeiras, cantoneiras, caixas de ferro e outras
peas.
SERRALAHARIA: [...] turbinas para os poos profundos, mancais, eixos e uma
grande variedade de peas. [...] tem tambm como encargo fazer todo o reparo,
montagem e conservao dos vrios aparelhos, mquinas e motores da
Repartio.
FUNDIO DE BRONZE: [...] Fabrica turbinas, buchas e mancais para as
bombas dos poos profundos [...].
FUNDIO DE FERRO: Fabricou centenas de peas de vrios tamanhos,
caixas para fundio, tampas, discos, flanges, etc. (RIO GRANDE DO NORTE,
1941, p.69-70).

Entre as atividades de assistncia social, havia, por parte da administrao


pblica, a preocupao em alojar os operrios da Repartio de Saneamento, levando em
conta a proposta de criao de uma vila que se denominaria Vila Operria Saneamento.69
O Interventor Rafael Fernandes, em seu Relatrio de Governo de 1940, descreveu a

68
Vale ressaltar que os dados estatsticos de 1934 j registravam um nmero de 4539 casas em Natal.
69
As informaes coletadas at o presente momento no confirmam a concretizao dessa vila. No entanto,
Saladino Rocha (em entrevista realizada no dia 08 de novembro de 2001) menciona que a preocupao com a
acomodao dos funcionrios do saneamento era evidente, havendo casas isoladas destinadas a motoristas e a
outros funcionrios da Repartio.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 136

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

proposta da citada vila, na qual interessante destacar a confirmao dos princpios


higienistas na morfologia urbana e nas edificaes:
Na rua Amaro Barreto existe excelente terreno de propriedade do Estado, no
qual pretendemos construir uma Vila Operria, especialmente destinada
habitao dos operrios do Saneamento, tambm zelosos e esforados
cooperadores no xito desse servio.
So 6.435 metros quadrados de terreno, cujo levantamento topogrfico, j
executado, permitiu plasmar um projeto para edificao de trinta casas.
[...]
H a observao das essenciais exigncias modernas sobre habitao operria,
entre as quais sobre-excedem as condies de arejamento, de luz e de higiene
domiciliar.
H um parque central com o aproveitamento da arborizao existente.
O projeto consigna, com grande acerto, as construes de prdios para uma
cooperativa de consumo e para uma escola.
de justia acentuar a segura direo que conduz os destinos da Repartio de
Saneamento, permitindo-lhe vida prpria e saldo em seus balanos (RIO
GRANDE DO NORTE, 1941, p.70).

A proposta da vila fazia parte de um projeto mais abrangente que visava promover
a aquisio de casa prpria por parte dos servidores pblicos. No entanto, o Governo do
Estado s deu passos mais decisivos para a concretizao dessa proposta em 1946,
autorizando, a partir do Decreto n 655, de 13 de dezembro, a doao de um terreno situado
rua Amaro Barreto, no bairro do Alecrim, Caixa de Aposentadoria e Penses dos
Servios Pblicos do Estado (CAP). Nesse terreno deveria ser construda a referida vila
operria, priorizando, com 50% das casas, os funcionrios da Repartio de Saneamento.
A situao favorvel e as potencialidades dos servios de saneamento, naquele
momento, foram corroboradas por um relatrio elaborado pelos americanos em 1941,
citado por Protsio de Melo (1993, p.29), no qual afirmava que a cidade era
adequadamente servida por um sistema moderno de saneamento. O plano que supria
Natal poca, capaz de atender a uma populao de 50 mil habitantes, era usado por
apenas 7 mil pessoas, fato justificado pelo alto custo da ligao (MELO, 1993, p.29). No
entanto, essas boas condies do servio de saneamento iriam mudar bruscamente, a partir
de 1942, com a instalao das bases area e terrestre, brasileiras e norte-americanas, em
Natal durante o perodo da II Guerra Mundial.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 137

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

O impacto da II Guerra e a 2 etapa das obras de saneamento

Ao exacerbar a previso dos ndices populacionais que orientaram o


dimensionamento das propostas do Plano Geral de Obras, o intenso processo de
urbanizao acarretado pela II Guerra Mundial evidenciou a incapacidade do Escritrio de
Brito, principalmente em virtude da ausncia de recursos financeiros, em manter e ampliar
os sistemas de guas e esgotos implantados em 1939.
As previses feitas naquela poca, entretanto, jamais poderiam ter o alcance do
grau de intenso progresso em que vivemos. Nem tampouco puderam os rgos
competentes imaginar que as conseqncias de uma guerra viessem at ns com
uma influencia to profunda em todos os ritmos das nossas atividades (O
PROBLEMA..., 1943b, p. 01).

O grande nmero de artigos tratando do problema do abastecimento dgua e das


redes sanitrias publicados nos peridicos locais demonstra que essas inesperadas
alteraes no contexto local no passaram despercebidas pelo Escritrio, que, frente da
ento Repartio de Saneamento de Natal, tentou se mostrar providente, propondo medidas
urgentes e paliativas, como a perfurao de novos poos em Lagoa Nova obra para a qual
j se haviam voltado recursos por parte da administrao local. No entanto, devido
dificuldade de aquisio dos tubos para a perfurao dos poos, esse servio no pde ser
executado. Ao Escritrio, nada restava fazer alm de apelar, por meio da imprensa local,
pela compreenso e colaborao da populao frente ao necessrio racionamento de gua:
[...] em face da circunstncia especial em que nos encontramos e da inexistncia
no comrcio do Pas, de alguns materiais indispensveis conservao e
reparaes de motores e bombas, fazemos um apelo populao em geral, para
que seja regrado o consumo desse precioso lquido, evitando desperdcio intil
que, apesar da rigorosa fiscalizao mantida pela Repartio, existe e de
maneira assustadora. H ainda a considerar o grande consumo para construes
de emergncia, etc., e mais o de uma elevada produo adventcia. [...]
[...] OU ECONOMIZA-SE GUA COMO ECONOMIZA-SE LUZ, OU
TEREMOS EM DIAS PRXIMOS GUA RACIONADA, EM HORAS
ALTERNADAS [...] (DRIA, 1942a, p. 01).

Essa crise nos servios de abastecimento dgua e de esgotamento sanitrio e o


descontentamento da populao tanto em relao prestao dos servios quanto no alto
preo da tributao cobrada, vm demonstrar, alm dos agravantes alheios ao do
Escritrio Saturnino de Brito, um aspecto negativo de suas propostas o alto custo de
implantao das redes de saneamento. Esse aspecto constituiu-se como principal motivo

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 138

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

para a falta de continuidade da ampliao e manuteno dos servios, tendo em vista que
devido vultuosidade de recursos mobilizados, impossibilitou a concesso de emprstimos
para a importao do material necessrio.
Alm disso, o avanado crescimento da cidade fugia ao controle do poder pblico
que sequer dispunha de uma legislao especfica que regulamentasse o uso e a ocupao
do solo , aumentando a incidncia dos interesses privados na configurao urbana de
Natal, fato que alm de contrariar sobremaneira os princpios do Escritrio Saturnino de
Brito acentuava a sua impossibilidade de ao e interveno no espao urbano da cidade,
permanecendo restrito prestao no momento ineficaz dos servios de gua e esgotos.
Em artigo publicado em peridico local, a Repartio de Saneamento tentou se justificar
pelas precrias condies em que se encontravam os referidos servios:
A Repartio de Saneamento de Natal acaba de divulgar uma nota sobre as
dificuldades do abastecimento dgua, esclarecendo aspectos que para o pblico
parecem s vezes indicativos de uma possvel falta de organizao, quando em
verdade expressam apenas um reflexo dos terrveis embaraos da hora em que
vivemos [...]. Ela procura levar ao conhecimento de todos as foras inalienveis,
irremovveis, que foraram a circunstncia em que nos encontramos [...]. Da
podemos apreciar as imensas dificuldades surgidas, tanto mais quanto a
ampliao dos trabalhos verificou-se na mesma poca em que ficamos na
impossibilidade de adquirirmos novos materiais para concertos ou reformas [...].
Estamos vivendo uma hora em que todas as atividades repontam sacrifcios e
abnegao em benefcio do bem estar coletivo, [...] ou em benefcio ainda, [...],
dos altos interesses nacionais. [...] uma economia no consumo dgua [...]
constitui um meio, um modo louvvel, de contribuir em beneficio dos interesses
nacionais e do bem estar coletivo (EM TORNO..., 1943, p. 03).

A fim de orientar a populao na conteno e economia de gua, a Repartio de


Saneamento publicou algumas medidas, como a determinao e o respeito aos limites de
consumo impostos a cada classe de edificaes anteriormente estabelecidos; a manuteno
adequada dos equipamentos particulares; a suspenso de lavagem de roupa em domiclio; o
fechamento das torneiras de jardins residenciais; a urgncia no conserto de vazamentos nos
encanamentos, nas torneiras e nas caixas de descarga (DORIA, 1942b, p. 07).
Os apelos e justificativas do Escritrio Saturnino de Brito eram constantes na
imprensa local, alm de encaminhados periodicamente ao Governo do Estado, de acordo o
relatrio datado de 1952, solicitando as providncias cabveis por parte da administrao
pblica. Apontou-se, ento, para a suplementao das captaes em Lagoa Nova como
uma possvel soluo que, naquele momento, remediaria a situao de precariedade do

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 139

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

abastecimento dgua da cidade. No entanto, em virtude da situao anormal do pas


aliada s dificuldades e [...] incompreenso de autoridades de que dependia tal
concesso (inclusive autoridades americanas), adiava-se [...] a satisfao das
necessidades que, ao ser obtida, j se tornava insuficiente, dada a marcha dos
acontecimentos e o ritmo acelerado do crescimento.70 O Escritrio ressaltou ainda que
mesmo quando o Governo concordava com certas despesas a incluir no oramento da
Repartio, eram elas depois sistematicamente cortadas no ajuste final da proposta
oramentria do Estado (ESCRITRIO..., 1952, p. 04).
Revela-se a que as solicitaes feitas tanto populao quanto administrao
local no estavam sendo atendidas, fato que no s agravava a ineficcia dos servios e
demandava por novos apelos por parte da Repartio de Saneamento, como desvelava que
a questo do saneamento que justificara inmeras obras de interveno sobre as cidades
desde o incio do sculo XX perdia progressivamente a sua relevncia e no mais
ocupava o cerne das iniciativas poltico-administrativas, como demonstra o artigo
publicado no jornal A Repblica:
Os primeiros pedidos feitos populao natalense [...] expunham todas as
dificuldades em que se achavam as autoridades competentes para a aquisio do
material indispensvel continuidade dos servios de abastecimento dgua. Os
antigos materiais, sujeitos ao de desgaste do tempo e funcionamento, por si
mesmos estavam a exigir reparos e substituies. [...] As grandes bases militares
que foram aqui estabelecidas, em construes de surpreendente amplitude,
exigiram um largo desdobramento dos trabalhos normais da Repartio de
Saneamento. [...]. E enquanto isso, os servios dgua se faziam com o mesmo
material [...] (O APELO..., 1944, p. 03).

Essa difcil situao em que se encontrava o abastecimento dgua de Natal que


ia de encontro ao iderio sanitarista do Escritrio Saturnino de Brito foi a possvel
determinante da visita de Saturnino de Brito Filho a Natal, em 1945, para a inspeo dos
servios. Ao lado de Floro Dria chefe da Repartio de Saneamento , o engenheiro
visitou todos os equipamentos e as instalaes existentes, fato que ecoou positivamente na
imprensa local.
Apesar desse contexto de crise por que passavam os servios de saneamento, o
Escritrio Saturnino de Brito continuou frente da RSN, privilegiado, de certa forma, pela

70
No relatrio de 1952, o Escritrio relembrou que as solicitaes feitas ao Governo do Estado em janeiro de
1945 se repetiram em setembro de 1946, dezembro de 1949 e agosto de 1950.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 140

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

legislao que regia a sua contratao. Isso porque o prazo contratual de quatro anos era
articulado de forma que o ltimo ano de cada contrato coincidia com o primeiro ano de
uma nova administrao estadual, permitindo uma avaliao dos servios por parte do
novo Governador.71 Assim, sempre ao trmino dos prazos contratuais, o Governo do
Estado emitia novos decretos concedendo licena para sua nova contratao. Esse sistema
possibilitou, no Rio Grande do Norte, uma continuidade dos projetos e das obras de
saneamento sob a responsabilidade do Escritrio, apesar das mudanas polticas ocorridas
aps 1945, com o fim do Estado Novo. O Decreto-lei n 749, de 24 de novembro de 1947,
por exemplo, re-autorizou a contratao do Escritrio para dirigir e administrar a
Repartio de Saneamento de Natal, mantendo as mesmas atribuies citadas em contratos
anteriores (FERREIRA et al, 2003a).
Frente demanda elevada e precariedade na oferta de servios e equipamentos
urbanos, props-se a elaborao de projetos para ampliao das redes de abastecimento
dgua e de esgotos e as conseqentes desapropriaes de terrenos na cidade para
implantao de novas instalaes. Assim, em 1951, no Governo de Jernimo Dix-Sept
Rosado Maia, o Escritrio Saturnino de Brito foi autorizado a elaborar propostas relativas
2 etapa do saneamento de Natal, ampliando seu raio de ao, nesse momento, aos
municpios de Mossor e Caic. A aprovao dos planos, o emprstimo para realizao
dos servios e o incio das obras foram efetivados durante o Governo de Slvio Piza
Pedroza, depois que esse assumiu a administrao do Estado, em 12 de julho desse mesmo
ano, em virtude da morte de Dix-Sept Rosado. Cabe destacar que, de acordo com Santos
(2002), essa se tratou da maior operao de emprstimo j realizada com o Banco do
Brasil, revelando a importncia dessas obras s populaes dos municpios envolvidos.
Iniciou-se, em abril de 1952, a construo dos projetos de saneamento referentes
2 etapa, dando-se prioridade execuo dos servios de abastecimento dgua, com uma
verba disponvel de Cr$ 12.700.000,00. A no realizao de obras de esgotamento sanitrio
foi assim justificada pelo escritrio: No que se refere aos esgotos fcil ver que dentro do
limite referido quase nada se torna possvel fazer, cabendo assim ao futuro expandir tal
servio (ESCRITRIO..., 1952, p.05). Em virtude dessas imposies, registram-se apenas
algumas breves ampliaes da rede de esgotos ao longo da dcada de 50, como a

71
Segundo o engenheiro civil Luiz Marcelo Gomes Adeodato, em entrevista concedida no dia 9 de abril de
2001.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 141

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

construo do coletor C.1 do distrito D.9 (Figura 27), na Av. Marechal Hermes da
Fonseca, e outras ampliaes da rede de esgotos existente.

Figura 27: Construo do Coletor


C.1, dcada de 1940.
Fonte: Acervo CAERN.

Nesse momento, o Escritrio volta a mencionar os servios de ampliao das


captaes em Lagoa Nova ainda no concretizados como possveis atenuadores das
precrias condies do abastecimento dgua, pronunciando as condies em que se
encontravam os servios naquela localidade:
Para se perceber a angstia de nossa administrao basta referir que a adutora
de Lagoa Nova possui dimetro de 450 mm, com capacidade para 6.000 m3 por
dia e o volume total ali captado nos poos apenas de 4.500 m3 dirios. Apesar
da situao poder se solucionar em grande parte com a instalao de dois novos
grupos motor-bomba e a perfurao de mais dois ou trs poos no nos foi
possvel obter os recursos para tal necessrios, no valor de Cr$ 1.340.000,00
(ESCRITRIO..., 1952, p. 04).

Nas propostas de extenso das redes, foram incorporadas duas outras zonas da
cidade72: a Zona 4, correspondente ao Alecrim (da Av. Alexandrino de Alencar at os
limites da Cidade Alta) e s Quintas; e a Zona 5 (Figura 28), parte do atual bairro de Lagoa
Nova, as quais deveriam contar com os reservatrios elevados R4T (Figura 29) e R5T,
respectivamente. Foi indicada tambm a construo de extenses para a Zona 3, na Av.
Presidente Sarmento, 10 de Novembro; o D.10 na rua Areia Preta, Trairi, entre outras; para
a zona R.2T (torre Figura 30), em algumas ruas do alto Juru, e para a Zona R.2,
seriam executadas as redes dos bairros das Rocas e Av. Circular (ESCRITRIO..., 1952,
p.20 -21).

72
O projeto de 1939 previa trs zonas para a cidade: Zona 1 (Ribeira), Zona 2 (Rocas e Santos Reis) e, por
fim, Zona 3 (Cidade Alta, Petrpolis, Tirol e Passo da Ptria).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 142

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Figura 28: Abastecimento dgua de Natal, reviso, 1952. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

Figura 29: Reservatrio R.4-T


Fonte: FERREIRA et.al. (2003a)

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 143

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Figura 30: Reservatrio R.2-T.


Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

Apontou-se para a construo das adutoras de Lagoa Nova a Carrasco, de Lagoa


Nova a Alecrim, de Manoel Felipe ao Baldo e a adutora do Rio Pitimb. (ESCRITRIO...,
1952, p.20 -21). Alm disso, previu-se a construo de uma Usina Eltrica para fornecer
eletricidade aos servios de Lagoa Nova e das Dunas; a perfurao de poos em Lagoa
Nova; a ampliao do distribuidor tronco da Av. Prudente de Morais; e o esquema de redes
de gua e de esgotos do bairro das Rocas, incluindo a Vila Ferroviria que ali se propunha
construir.
Apesar das inmeras propostas e obras realizadas pelo Escritrio Saturnino de
Brito a que se referia a 2 etapa das obras de saneamento, no se conseguiu atingir as
demandas fsicas e populacionais da cidade, que alcanava ndices de crescimento
demogrfico dentre os maiores do pas. Nem mesmo a vultuosidade das obras compensou

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 144

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

os anos em que o processo de urbanizao da cidade permaneceu revelia da interveno


do poder pblico, exacerbando as carncias de infra-estrutura e deixando a produo do
solo urbano a cargo da iniciativa privada. Assim, a crise nos servios de saneamento
continuava.

A criao do Departamento de Saneamento do Estado (DSE)


sanitarismo e planejamento urbano

A criao do Departamento de Saneamento do Estado (DSE), em 1952, insere-se


em um contexto marcado pela intensificao de discusses acerca das concepes
urbansticas nos meios especializados, bem como pela institucionalizao da profisso do
urbanista com o surgimento, a partir da dcada de 1940, em algumas cidades do pas, dos
Departamentos de Urbanismo. O planejamento se confirmava gradativamente como funo
de governo e como tcnica administrativa, difundindo-se a idia de plano geral para a
cidade e de racionalizao da mquina administrativa, a partir da criao dos grandes
departamentos, secretarias, conselhos tcnicos e institutos centrais. Processo esse que se
consolidaria, sobretudo, nas dcadas de 1950 e 1960, como se ver adiante.73
Em mbito local, a ausncia de um rgo de planejamento urbano na esfera
administrativa municipal e/ou estadual, contribuiu para o crescimento desordenado da
cidade, fato comprovado pela disseminao de inmeros loteamentos e conjuntos
habitacionais aprovados de maneira aleatria sem que fosse exigidos quaisquer critrios ou
diretrizes urbansticos, por vezes, promovidos pela prpria Prefeitura Municipal.74 Os
efeitos dessa negligncia por parte do poder pblico podem ser vistos at a atualidade,
tendo-se em vista que, a partir da, evidenciou-se a discrepncia entre o crescimento fsico

73
Feldman (1996) aponta que, no caso de So Paulo, com a criao do Departamento de Urbanismo na esfera
municipal em 1947, so introduzidas novas prticas que consolidam o seu perfil normativo e estruturam o
novo saber restrito ao corpo tcnico do setor. Os planos passam a englobar alguns aspectos peculiares
prtica urbanstica norte-americana das dcadas de 1920 e 1930 que encontram em Anhaia Mello o seu
principal propugnador no s em So Paulo como no Brasil.
74
Os loteamentos eram aprovados e legalizados, porm no cumpriam normas ou regulamentaes
urbansticas especficas, e, na maioria das vezes no dispunham de um projeto de desenho urbano
(FERREIRA, 1996), o que foi confirmado pelo arquiteto Moacir Gomes, em entrevista realizada em
08/08/2003.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 145

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

da cidade e a oferta de infra-estrutura; sem mencionar, ainda, as disfunes ambientais


causadas pela ocupao indevida de certas reas da cidade.
A gerncia e controle do crescimento urbano de Natal restringiram-se ao do
Departamento de Saneamento do Estado (DSE), que havia criado pelo Decreto n. 868, de
30 de dezembro de 1952, como resposta sugesto do prprio Escritrio Saturnino de
Brito,75 que apontou para a necessidade de transformar a Repartio de Saneamento de
Natal em uma autarquia (DRIA, [1976?], p.145). Esse Departamento, ao incorporar
outras cidades do estado do Rio Grande do Norte como Mossor e Caic que contariam
com financiamentos provenientes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e
da Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) , proporcionou a
ampliao da sua rea de abrangncia, e conseqentemente, do poder e da influncia do
Escritrio para todo o Estado. Passou-se, assim, de uma atuao municipal fragmentada
para uma ao articulada em mbito estadual, integrando as vrias comisses de
saneamento municipais (FERREIRA et. al., 2003c).
Alm disso, a transformao do rgo de administrao dos servios de
saneamento em uma autarquia estadual promoveu
[...] para os que conheceram a burocracia que cercava a ao da extinta RSN,
alguma vantagem, pois no era possvel a aplicao do saldo de sua arrecadao
em benefcio do prprio servio e com a nova organizao estar solucionando
o problema (EM FRANCO..., 1953, p. 01).

Ao DSE, caberia tambm a funo de coordenar de maneira mais efetiva as


modificaes nas habitaes e na estrutura urbana de Natal, afigurando-se como rgo de
planejamento urbano, que, dirigido pelo Escritrio Saturnino de Brito, manter-se-ia fiel aos
princpios sanitaristas herdados de Saturnino de Brito, ressaltando o saneamento como eixo
norteador das intervenes:
Art.106 Os projetos de arruamentos e ruas novas, a cargo da Prefeitura, sero
feitos de acordo com os esquemas gerais projetados para as redes e gua e
esgotos planejados.
1 - Nos casos no previstos em tais esquemas, nenhuma abertura ser feita
sem prvia aprovao do Departamento, a fim de se atenderem s condies dos
esgotos a estabelecer.
2 - Os projetos organizados pela Prefeitura, para novos arrabaldes, no
compreendidos nos esquemas gerais, tero a colaborao do Departamento,

75
Por intermdio de seu representante em Natal, o engenheiro Floro da Costa Dria, que passara a dirigir a
Comisso de Saneamento de Natal a partir de 2 de maio de 1952, e, posteriormente, assumiu a Repartio de
Saneamento de Natal, substituindo o engenheiro Carlos Kock de Carvalho (DRIA, [1976?]).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 146

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

sendo observadas, de um modo geral, as prescries da arte de traar as cidades,


do ponto de vista sanitria e, de modo particular, as requeridas pela harmonia,
entre o plano de esgotos executados ou aprovado o seu desenvolvimento projeto
Art.107 Os perfis das ruas, j esgotadas e por esgotar, no podem ser
modificados sem prvia consulta do DSE, a fim de serem atendidas as
condies de esgotos existentes e previstos.
[...]
Nenhum prdio novo ou reconstrudo poder ser habitado sem o certificado de
que j possui o servio de novas instalaes de gua e esgotos (RIO GRANDE
DO NORTE, 1952, p.233).

Compensando a desatualizao do obsoleto Cdigo de Obras existente, o DSE


propunha uma detalhada normalizao com relao s edificaes, privilegiando os
ambientes mais diretamente vinculados s instalaes sanitrias domiciliares. Prescrevia
normalizaes com relao ao piso, s reas mnimas, aos revestimentos de paredes, s
dimenses e especificaes das aberturas, ao p-direito e aos acessos e comunicao com
outros ambientes da edificao, apelando para o seu poder de fiscalizao:
Art. 84 As plantas para novas construes ou reconstrues de prdios
antigos, importando em demolies e construes de paredes, revestimento de
pisos e outras obras que possam interessar ao servio sanitrio, existente ou a
instalar, sero apresentadas pelos proprietrios ao DSE antes de ser submetidas
a aprovao da Prefeitura realizando o DSE as modificaes necessrias e
obrigatrias no plano apresentado com declaraes de que a planta pode ser
aprovada (RIO GRANDE DO NORTE, 1953, p. 28).

importante destacar que, enquanto em grande parte das cidades brasileiras


instituam-se os Departamentos de Urbanismo, em Natal este modelo de repartio s veio
se concretizar, em esfera municipal, em fins da dcada de 1960, sob a denominao de
Assessoria Municipal de Planejamento (AMPLA). A criao desses rgos especficos de
planejamento urbano e a sada do Escritrio Saturnino de Brito somente neste perodo
levam a crer que a questo do saneamento como norteadora das propostas urbansticas em
Natal perpetuou-se muito alm do que em outras cidades do Brasil, iniciando o processo de
institucionalizao de vrios instrumentos urbansticos na esfera administrativa estadual. O
Escritrio, reunindo as funes de idealizador, promotor e administrador dos servios de
gua e de esgotos, acabou por centralizar, nesse momento, a funo de planejador urbano.
Entretanto, mesmo aps a criao do DSE, os servios de saneamento e a
regulao do crescimento urbano de Natal a cargo daquele departamento continuaram
mergulhados em uma grave crise, fruto ainda do acelerado processo de urbanizao por
que passava a cidade e da falta de interesse por parte do poder pblico em intervir sobre a

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 147

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

ao do mercado imobilirio. Ainda se registravam problemas referentes presena de


tcnicos clandestinos que se diziam capazes de realizar a ligao das instalaes
domiciliares, precariedade dos chafarizes, alm das dificuldades de liberao das
importaes necessrias obteno do material necessrio ampliao das obras. A crise
nos sistemas abrangia grande parte dos bairros da cidade, como Rocas, Areia Preta,
Alecrim, Petrpolis etc, sendo evidenciada, constantemente, nos peridicos locais
principalmente nos de oposio, como o caso do artigo publicado na Tribuna do Norte:
[...] alegam os dirigentes do DSE que tudo decorre da deficincia do maquinrio
existente e, no faz muito, culpou-se a CEXIM porque no concedia licena
para importao do material necessrio ao re-aparelhamento do servio de
abastecimento da cidade.
[...] Mas justo que o cidado que cumpre religiosamente os seus deveres para
com o Estado sofra os vexames da ausncia do precioso lquido, apenas porque
h deficincia no Saneamento?
[...] nem sem gua deixar o natalense de pagar a bem pesada taxa do DSE.
[...] Quando a coisa ocorre como em Natal, o melhor vender carga dgua, no
lombo dos jumentos. Pelo menos a gente paga, mas v pelo que est pagando
(MACEDO, 1953, p. 04).

Como resposta s crticas, o DSE fez publicar uma circular justificando a situao
dos servios de gua e esgotos, na qual atestava uma taxa de eficincia 99% satisfatria, o
que foi, novamente, criticado pelos veculos de comunicao locais:
Pelo que diz o boletim, a eficcia do servio do DSE de 99%, se
considerarmos o total de casas abastecidas (8.880), e o de casas que ficaram
sem gua 89 em mdia, diariamente.
No queremos, absolutamente, duvidar da palavra do chefe do DSE, que, apesar
de engenheiro, apresentou-se com uma dialtica de advogado (WANDERLEY,
1953, p. 08).

Em paralelo, obras de vulto eram realizadas no interior do Estado; foram


realizadas obras de abastecimento dgua de Mossor e Caic (ambas inauguradas em
1953 Figuras 31 32), alm de aprovados os projetos para Angicos e Santana do Matos
(ABASTECIMENTO... 1953, p. 01). Em Mossor foram construdos dois reservatrios
elevados de capacidade de 500 m3, a rede de distribuio, quinze poos nas margens do rio
Mossor, alm de uma usina elevatria e estao de tratamento dgua. Em Caic, foram
construdas a rede de distribuio, usina, prefiltro, linha de recalque e decantadores, casa
de tratamento qumico, filtros e reservatrio de capacidade de 1 milho de litros dgua.
Nessa ltima cidade, em virtude da existncia do aude Itans, a concluso das obras
ocorreria mais rapidamente do que em Mossor. (PROVAVELMENTE..., 1953, p. 10).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 148

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Figura 31: Abastecimento dgua de Mossor. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

Figura 32: Abastecimento dgua de Caic. Fonte: FERREIRA et.al. (2003a).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 149

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Ao longo da dcada de 1950 o Escritrio permaneceu impossibilitado de realizar


uma operao global e preventiva no sentido de regularizar a situao das redes de
abastecimento dgua e esgotamento sanitrio de Natal assim como o fizera na dcada de
1930. Continuava, pois, a remediar o contexto de crise, realizando obras pontuais, e,
contradizendo, assim, todo o iderio sanitarista imbricado em suas propostas. Preo pago
em funo do desenvolvimento econmico e pelas altas taxas de crescimento fsico e
populacional da cidade os quais, de acordo com Saturnino de Brito, deveriam ser
controlados pelo poder pblico justamente o contrrio do que aconteceu em Natal.
Registraram-se, em 1955, algumas iniciativas tomadas no sentido de melhorar o
funcionamento das redes, dentre as quais se destacam a perfurao de nove poos novos,
alm da inaugurao de um grande reservatrio no bairro das Quintas (SERO..., 1955, p.
01). As aes assim repercutiram na imprensa local:
Dr. Floro Doria continua trabalhando em favor da instalao de novas bombas
que supriro suficientemente, as penas estanguidas distribudas nos diversos
ramais da cidade A situao calamitosa que era antes explicada com o aumento
da populao e o ajardinamento excessivo dos prdios residenciais foi agora
elucidada[...]
[...] com a instalao das bombas chegadas da Norte Amrica teremos, segundo
afirma o diretor do Saneamento [...] gua perene para todos os quadrantes da
cidade, depois do sacrifcio e das angstias de um prolongado perodo de frias
para os canos da serventia pblica (PARAGUASSU, 1955, p. 04).

No ano seguinte, voltam a reincidir as reclamaes referentes taxao e s ms


condies apresentadas pelos servios de saneamento, registrando-se, inclusive, um
aumento de 100% das taxas dgua e de esgotos, autorizado pelo Governador Dinarte
Mariz (O NATALENSE..., 1956, p. 01). E as crticas no paravam por a, chegando,
inclusive, a atingir pessoalmente o ento diretor do DSE, engenheiro Floro Dria
Toda vez que chegam navios estrangeiros ou petroleiros aparece a falta dgua
nas torneiras da cidade. que o Saneamento, irresponsavelmente, a vende a
essas embarcaes, deixando o pblico sem o precioso lquido como est
acontecendo agora.
[...]
Apesar de paga essa gua pelos contribuintes ela vendida pela segunda vez
para lucro do Saneamento (FALTA..., 1957, p. 01).

Esses poos permanecem entupidos com o real e criminoso consentimento do


dr. Floro Dria, Diretor da Repartio de Saneamento, uma vez conservados
como seria do dever da empresa contratante do servio de abastecimento dgua
dariam para suprir grande parte das necessidades da cidade, que continua

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 150

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

gritando ao ouvido do Saneamento, que insensvel e sadicamente assiste ao


clamor de toda uma populao que se ressente da falta absoluta dgua.
[...]
[...] O Saneamento no fornece gua para o povo se lavar, mas apenas para
molhar o sujo. E ainda por cima cobra uma taxa alta de um servio coletivo que
no existe e no cumpre por negligncia e irresponsabilidade (SADISMO...,
1957, p. 01).

Essas acusaes que tanto denegriam a imagem do Escritrio Saturnino de Brito


frente populao do Estado consistiram provavelmente no motivo que ocasionou a vinda
de Saturnino de Brito Filho a Natal, em 1957, chegando a prestar depoimento esclarecendo
os eventuais problemas por que passava o DSE (ESCLARECIMENTO..., 1957, p. 12). Na
ocasio, apontou para novas obras a serem realizadas, visando apaziguar os nimos da
imprensa e da populao, e sobretudo, melhorar a situao dos servios. Props, portanto, a
construo da rede de esgotos do bairro das Rocas, a perfurao de poos nas Quintas e em
Lagoa Seca, a extenso dos servios Ponta Negra, e a construo do coletor geral de
esgotos C.G.3 que se destinava ao saneamento do bairro do Alecrim. Tais obras,
aprovadas pelo Governador do Estado Dinarte Mariz em visita realizada junto a Brito Filho
e Floro Dria s obras de saneamento (O GOVERNADOR..., 1957, p. 08), contribuiriam
para amenizar o contexto de crise por que passava aquele Departamento.
Em 1959 foram dados passos mais decisivos, ampliando-se as redes de
abastecimento dgua em Natal, Mossor, Caic e Santana do Matos, a partir da
importao de 10 eletro-bombas, 10 bombas para poos profundos, 500 metros de vares
de ao para eixos, 100 metros de tubos de ao para perfurao de poos, alm de 2 bombas
para Estao de esgotos da Ribeira.
Com a aquisio deste material especializado, o Departamento de Saneamento
do Estado vem conseguindo cumprir sua misso, abastecimento
satisfatoriamente, tanto nossa capital, como as cidades de Mossor, Caic e
Santana do Matos (AMPLIADO..., 1959, p. 03).

As obras realizadas representavam apenas um paliativo frente s circunstncias de


dificuldade em relao construo, ampliao, manuteno e administrao dos
servios de gua e esgotos a cargo do DSE. Alm disso, observa-se que o saneamento, aos
poucos, foi perdendo espao para outras inovaes tecnolgicas que se fizeram mais
eficazes para a atrao de indstrias e para a valorizao do solo urbano da cidade, quais
fossem as melhorias no sistema virio, a modernizao do sistema de transporte, de
eletrificao e de telecomunicaes, alm da construo de habitaes. Cabe ressaltar, no

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 151

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

entanto, que em Natal, apesar da crise enfrentada pelo Escritrio Saturnino de Brito a partir
da II Guerra Mundial, as obras construdas correspondem a grande parte da rede existente
na atualidade, confirmando a importncia da permanncia daquela instituio na cidade e
no Estado, promovendo, ainda que em condies limitadas, a implantao desses servios
com qualidade e segurana.
Entretanto, a consolidao do mercado imobilirio na cidade76 contrariando o
contexto de agravamento dos problemas econmicos e sociais intensificada com o incio
do processo de fragmentao de grandes glebas e com o surgimento de um mercado de
terras e da intensa ocupao e valorizao do solo em Natal, coloca em xeque o controle e
a gesto do espao urbano e dos servios pblicos, pensados e desejados pelo Escritrio
por meio do DSE. Situao agravada tanto pelo aumento do poder do setor imobilirio na
ordenao fsica da cidade e na forma de definio do parcelamento e da trama viria,
como pela rapidez com que inmeros loteamentos foram projetados e registrados ao longo
das dcadas de 1950 e 1960.
H de se considerar, porm, que o DSE, embora limitado em sua atuao sobre o
gerenciamento da expanso urbana de Natal, trazia, em sua constituio, as preocupaes
ambientais, sociais e urbansticas que nortearam e fundamentaram o urbanismo sanitarista
desenvolvido por Saturnino de Brito no incio do sculo XX promotor de grandes obras e
inmeras modificaes que modernizaram o espao fsico de vrias cidades brasileiras.
Certamente, se dotado do devido poder de fiscalizao e interveno sobre a produo do
espao urbano de Natal, ao se inspirar na prtica sanitarista que norteou toda a sua atuao,
o Escritrio seria capaz de idealizar uma ocupao mais ordenada e menos prejudicial ao
equilbrio ambiental, alm de menos agressiva aos interesses pblicos e da sociedade em
geral.
No entanto, dentro desse contexto de emergncia do urbano e de consolidao do
planejamento, o saneamento vai perdendo paulatinamente, ao longo desse momento, o

76
Isso se d devido, entre outros fatores, transferncia de capital, tanto o agrrio-exportador quanto
comercial urbano, acumulado durante o perodo da guerra para o mercado e promoo do solo urbano. Essa
sucesso de fatos consolida-se a partir de 1946, quando comearam a ser registrados, nos cartrios de ofcio,
os primeiros loteamentos privados, tanto dentro do permetro urbano quanto nas reas suburbana e rural,
acentuando-se nas dcadas de 50 e 60. Nesse perodo (de 1946 a 1969), registraram-se 87,8% do total dos
222 parcelamentos realizados no municpio de Natal e inscritos no Registro de Imveis, ocupando uma
superfcie de 3.952,4 ha (71,3% da extenso parcelada at 1989) e em torno de 35% da rea atual edificvel
(FERREIRA, 1996, p.142).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 152

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

lugar central no contexto das intervenes urbanas, passando a coadjuvante do


desenvolvimento econmico das cidades; e a higiene no mais vista como propulsora do
progresso. O processo de industrializao passa ocupar o cerne das polticas pblicas,
justificando as reformas, ampliaes e a introduo de infra-estrutura nas cidades
brasileiras.

Problemas urbanos e os programas urbansticos de Djalma


Maranho

A 1 administrao municipal do Prefeito Djalma Maranho, entre os anos de


1956 e 1959, destacou-se das gestes da poca pelo empenho na concretizao de inmeras
obras que visavam o desenvolvimento no s fsico, como econmico, social e cultural da
cidade, implementando uma srie de aes dirigidas ao espao urbano. Cabe destacar que o
referido Prefeito se demonstrou atualizado com os procedimentos administrativos e com
preocupaes urbansticas ento em voga, chegando, pode-se inferir, mais prximo de uma
gesto participativa em que a populao tomava conhecimento diariamente das aes da
administrao local e expunha a sua opinio e as respectivas reivindicaes.
Observa-se que, aps a II Guerra, e o impulso causado na economia da cidade e
do Estado, emergiu um quadro de crise em que predominavam a inflao, a carncia de
infra-estrutura e a permanncia de mendigos (A CIDADE..., 1955, p. 01) situao que foi
agravada pelos extensos perodos de estiagem por que passou a regio Nordeste nos anos
de 1951, 1953, 1955 e 1958. Em virtude do intenso movimento migratrio ocasionado
pelas secas, Natal foi a cidade que mais cresceu em nmero de habitantes no ano de 1959,
porm, o preo desse crescimento era deveras alto, tendo-se em vista o alto ndice de
desemprego tanto na capital como por todo o interior do Rio Grande do Norte chegando
a atingir 300 mil flagelados (DESEMPREGO..., 1959, p. 01).
Esse aumento populacional inesperado, desacompanhado de aes efetivas de
introduo de infra-estrutura, de equipamentos e de programas assistenciais, promoveu um
crescimento desordenado, acarretando o surgimento de disfunes urbanas no cenrio da
cidade, como os assentamentos urbanos de Braslia Teimosa e Me Luiza, primeiros a se
caracterizarem como favelas. Ao mesmo tempo, o domnio dos produtores imobilirios

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 153

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

privados sobre a configurao do espao urbano se legitimava progressivamente, na


ausncia de qualquer dispositivo urbanstico legal por parte do poder pblico que
orientasse os projetos para os novos parcelamentos e loteamentos.
Evidenciando preocupaes com a questo urbana e reconhecendo os problemas
urbanos que assolavam Natal, Djalma Maranho elaborou inmeros programas que
acabaram por configurar uma ao sistematizada sobre o espao fsico da cidade. De cunho
eminentemente social caracterstica atribuda ao Prefeito , esses programas
vislumbraram os mais diversos aspectos da cidade, vinculando-os ao desenvolvimento
econmico e os ampliando at as reas perifricas, como se ver a seguir.
No entanto, antes de partir para a anlise das aes de Djalma Maranho,
preciso destacar a sua intensa preocupao com a erradicao do analfabetismo, que
proporcionou o surgimento de inmeras escolas espalhadas por toda a cidade, chegando-se,
no ano de 1957, ao nmero de 31 escolas construdas dentro do prazo de um ms (Figura
33). Essa iniciativa pioneira do Prefeito se consolidou na sua segunda administrao (entre
1960 e 1964), quando assumiu maiores propores e ficou conhecida como a campanha
De P no Cho Tambm se Aprende a Ler.
[...] importante que se diga, desde logo, que a Campanha significou, alm das
escolinhas e dos Acampamentos Escolares, a criao de bibliotecas populares,
de praas de cultura, do Centro de Formao de Professores, do Teatrinho do
Povo, da Galeria de Arte; significou a formao de crculos de leitura, a
realizao de encontros culturais, a reativao de grupos de danas folclricas, a
promoo de exposies de arte, a apresentao de peas teatrais, isto ,
redundou numa organizao cultural da cidade, onde o povo participava
efetivamente e no apenas assistia como mero espectador (GERMANO, 1982,
p. 103).

Figura 33: Barraces que funcionavam


como escolas.
Fonte: GERMANO (1982).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 154

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Anseios de industrializao

Apesar de a tendncia industrializao j ter se consolidado em mbito nacional,


fomentando, a partir da dcada de 1950, o desenvolvimento das grandes cidades
brasileiras, no Rio Grande do Norte, e particularmente em Natal, apesar dos anseios por
parte do poder pblico, esse processo no se concretizou. No entanto, confirmou-se como
justificativa para inmeras aes no espao fsico da cidade levadas a cabo por Djalma
Maranho, estimulando, ainda que indiretamente, a construo de habitaes, a introduo
de infra-estrutura e a expanso urbana de Natal. E, apesar de consistir em uma realidade
distante do contexto local poca, a industrializao era tema recorrente na imprensa, que
sempre apontava para novas perspectivas.
No campo industrial, o nosso Estado tem se postado margem da estrada, pela
ausncia total de meios e oportunidade para uma eficiente e proveitosa
aplicao de suas reservas e disponibilidades, no obstante contarmos com
inesgotveis recursos em matria prima, capazes de suprir as necessidades da
produo em alta escala.
[...] uma nova orientao est sendo traada pelos homens de viso, frente o
Governador Dinarte Mariz, no sentido de carrear a nossa regio, a maquinaria e
aparelhagem exigidas na instalao dos parques industriais.
J tempo de ingressarmos numa nova fase, ficando-nos como Estado desperto
para as alvoradas da civilizao e do progresso (INDUSTRIALIZAO...,
1956, p. 03).

A partir dos dados coletados at o presente momento, essas iniciativas no foram


efetivadas, e, apesar de vrias visitas e estudos de viabilizao realizados por industriais de
outras regies que intentaram investir no Estado, a indstria tardou a chegar. Em artigo de
Garibaldi Dantas, publicado no jornal A Repblica, pode-se verificar a situao em que se
encontrava a cidade com relao a esse aspecto:
[...] passada a animao dos dias de guerra, [...], Natal voltou a modorar, pois
lhe faltavam condies indispensveis sua transformao industrial
permanente [...].
Se os industriais de So Paulo, que hoje devem estar em visita a Natal souberem
captar as foras de trabalho que ali jazem, pouco aproveitadas; se as autoridades
federais derem ao brao humano esse potencial de energia eltrica que a
alavanca que se levanta as montanhas do futuro o sonho do meu pai acalentado
h cerca de cinco decnios, no precisar de muito para ser a mais esplndida
realidade (DANTAS..., 1957, p. 03).77

77
Em 1909, Garibaldi Dantas escrevera um artigo em que expunha suas perspectivas para Natal, aps
transcorridos 50 anos, prevendo, dentre outros aspectos, a consolidao da industrializao.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 155

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Contradizendo o contexto econmico da capital potiguar, era no interior do Estado


que girava o maior volume de capital, em virtude da explorao e comercializao dos
minrios radioativos chelita e tungstnio na cidade de Currais Novos. O Estado
figurava-se, em virtude dessa produo, como um dos grandes fornecedores desses
recursos para os Estados Unidos, ganhando destaque no cenrio econmico nacional e
internacional. No entanto, em fins da dcada de 1950, a comercializao da chelita
comeava a declinar, em virtude de uma reviravolta no comrcio internacional ocasionada
pela entrada da China no mercado norte-americano (EM PNICO..., 1957, p. 01).
Paralelamente, algumas indstrias de pequeno porte iam se instalando na cidade,
sem revelar, no entanto, uma tendncia consolidada. Dentre elas, destacam-se uma
indstria de mveis, localizada no Carrasco, e outra de lapidao de pedras preciosas
cuja inaugurao ecoou na imprensa local, confirmando um processo de evoluo social
em que [...] Natal apresenta [...] um cenrio de iniciativas na vida econmica [...] de um
magnfico progresso. A criao dessa ltima marcaria um contexto em que [...] o subsolo
no mais a riqueza desconhecida [...]. neste momento um campo de explorao intensa.
[...]. Natal conta com uma nova indstria que transforma a pedra bruta em belos
exemplares [...] (DANILO, 1946, p. 02).

Incentivo ao turismo

O reconhecimento das belezas naturais existentes e a ausncia de infra-estrutura


necessria para a implantao de indstrias apontaram outros caminhos para o
desenvolvimento econmico de Natal. Portanto, tratava-se de adaptar a cidade prtica do
turismo, embelezando-a e dotando-a dos equipamentos de infra-estrutura bsica
subsidirios quele setor econmico. Em 1956, Djalma Maranho tomou passos mais
decisivos e criou o Conselho Municipal de Turismo, promovendo, paralelamente, o I
Festival de Folclore em Natal ocasio em que foram atrados vrios visitantes,
concretizando a inteno do Prefeito (A CIDADE..., 1958, p. 03).
As atenes se voltaram, nesse momento, aos atrativos tursticos existentes, como
as belas praias e a paisagem natural j to admiradas (Figuras 34-35). O Prefeito Djalma
Maranho, portanto, levou a cabo a tarefa de modernizar a cidade e torn-la aprazvel e

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 156

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

propcia atividade turstica, promovendo inmeras aes de embelezamento do cenrio


urbano, bem como de dot-la de equipamentos necessrios ao desenvolvimento do
turismo.78
Natal, para surpresa de muita gente, uma das cidades do Brasil quem mais
cresce. [...]. Do ltimo censo pra c a cidade aumentou a populao em 50%. H
150 mil pessoas residentes na capital potiguar [...].
Alm de uma cidade-porto, Natal ao mesmo tempo, uma cidade-base militar.
Seu comrcio intenso, mas, no possui indstrias. Djalma Maranho entende
que o industrialismo tem contra si um fator negativo: tarifas altas de
eletricidade. [...].
O futuro de Natal est no turismo, nas suas belas praias, na sua paisagem que
tanta ateno despertaram no soldado que durante a ltima guerra, l estiveram
(NATAL..., 1956, p. 01).

Figura 34: Praia de Areia Preta


Fonte: CD Natal, 400 anos

Figura 35: Vista area de Ponta Negra


Fonte: CD Natal, 400 anos

78
Nesse momento, Ponta Negra j era apontada como um grande atrativo paisagstico, sendo alvo de
melhoramentos e da introduo de infra-estrutura bsica, como, por exemplo, luz eltrica. Registrou-se ainda,
na imprensa local, a necessidade de um plano urbanstico para aquela praia, no entanto, at o presente estgio
da pesquisa, a efetivao desta interveno no foi confirmada.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 157

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Assim, conjugando esforos com o Governo do Estado, a cargo de Dinarte Mariz,


realizaram-se as obras do Aeroporto Augusto Severo em duas etapas distintas, concluindo-
se a primeira em 1957, e inaugurando-se definitivamente j com o salo de passageiros e
um bar, em 1959. Alm do aeroporto, na tentativa de suprir uma permanente carncia da
cidade, foram realizados os projetos de um hotel de 15 (quinze) pavimentos e com 120
apartamentos (Figura 36), [...] obedecendo a um sistema funcional e racional de
construo, do Palcio das Secretarias de Governo, com 10 (dez) pavimentos (Figura 37),
e um plano contendo um novo traado urbanstico para Natal, [...] fazendo com que a
cidade se amplie dentro de um plano moderno com ruas amplas e ajardinadas dando uma
fisionomia agradvel cidade dos Santos Reis (CONSTRUO..., 1957, p. 04).

Figura 36: Projeto do Hotel


Fonte: CONSTRUO...
(1957)

Figura 37: Projeto do Palcio


das Secretarias
Fonte: CONSTRUO...
(1957)

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 158

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Divulgou-se ainda a inteno de construo da Via Costeira, importante eixo do


sistema virio da cidade atual, sobretudo pelos seus atrativos paisagsticos e pela sua
vinculao com a atividade turstica. Juvenal Lamartine, em artigo publicado no Jornal de
Natal, assim abordou essa idealizao:
O Sr. Djalma Maranho ilustre Prefeito de Natal, adotou um mtodo de
administrao altamente inteligente e democrtico, dando contas, ao povo de
Natal, por intermdio de uma das estaes difusoras desta capital, de seus
planos de servios e autorizando-o a reclamar da Prefeitura o que julgar
acertado fazer para o bem de nossa capital.
[...]
Queremos chamar, ainda, a ateno do Sr. Prefeito para [...] a construo da
avenida mais bela de qualquer cidade do Norte do Brasil. Esta avenida [...]
partindo de Areia Preta, se dirija em linha quase reta Ponta Negra, tendo o
Atlntico a leste e a bela cordilheira do morro no poente (LAMARTINE, 1956,
p. 04).

Obras de infra-estrutura

Dentro do propsito nacional de implantar e modernizar a infra-estrutura das


cidades com vistas industrializao, observa-se nesse momento uma inteno de expandir
a infra-estrutura existente na cidade para toda a rea urbana fato que, certamente,
contribuiu e impulsionou para a disseminao dos loteamentos que se intensificou ao longo
da dcada de 1950 , a partir da abertura de novas ruas e calamento do sistema virio
existente; da construo, reforma, melhoria e arborizao dos equipamentos de lazer, como
praas, parques infantis, quadras de esportes; da introduo de iluminao pblica em
todos os bairros da cidade inclusive nas reas mais afastadas; da construo de
equipamentos coletivos bsicos como mercados pblicos e cemitrios. Alm disso,
registra-se uma notria inteno em urbanizar os novos bairros que se consolidavam na
periferia da cidade, como a Praia do Forte, Me Luiza e Rocas, e das vilas de Parnamirim,
Ponta Negra, Redinha e Igap, onde seria privilegiada a construo de praas ajardinadas,
postos mdicos, postos de enfermagem, chafarizes, dentre outras propostas.
O programa de pavimentao viria elaborado e sustentado pela administrao de
Djalma Maranho, de grande ressonncia na imprensa local, foi apontado poca como
uma revoluo nos mtodos de trabalho da edilidade, promovendo o calamento de grande
parte das ruas da cidade, contando com a participao da populao, j que [...] o

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 159

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

proprietrio d a pedra e a Prefeitura d a mo-de-obra (PLANO..., 1956, p. 01). A


reviso da nomenclatura das ruas e a introduo de uma moderna sinalizao de trnsito
viriam complementar as obras de calamento.
Por fim, como coroamento do Plano Djalma Maranho como ficaram
conhecidas as iniciativas de pavimentao da cidade , foi encomendado ao historiador
Cmara Cascudo um livro sobre a histria das ruas, avenidas e praas de Natal
(ONOMSTICA..., 1956, p. 08). Cabe ressaltar que no s o sistema virio intra-urbano
era privilegiado nessa iniciativa, mas tambm a abertura e melhoria nas estradas
intermunicipais e interestaduais.79
Previu-se ainda a construo, reforma e regularizao dos passeios pblicos
(tambm contando com a participao da populao),80 a construo de abrigos, de parques
infantis, a ampliao e reforma das galerias de guas pluviais na Ribeira, a criao de uma
biblioteca pblica do Estado, de uma discoteca, de um museu de arte popular para Natal,
do Teatro Sandoval Wanderley, o asfaltamento do centro da cidade, um plano urbanstico
para Santos Reis81 dotando-o de uma proposta de desenho urbano e de infra-estrutura.
Outra obra de vulto foi a construo de um estdio municipal em Nova Descoberta (atual
Machado), em terreno pertencente viva Manoel Machado,82 tendo-se formado,
inclusive, uma Comisso Construtora, que teria assessorias tcnicas, administrativas,
financeira e de propaganda (DJALMA..., 1957, p. 06).
Esse momento marcado ainda pela consolidao de inovaes tecnolgicas de
suma importncia para o desenvolvimento da cidade em todos os aspectos, quais fossem o

79
Em 1957, j eram 55 (cinqenta e cinco) ruas pavimentadas e 34 (trinta e quatro) estradas de barro abertas,
alm de um supervit nas condies oramentrias municipais.
80
Inteno que seria concretizada na dcada de 1960.
81
A urbanizao da rea que hoje compreende o bairro de Santos Reis e a comunidades de Braslia Teimosa
e do Vietn um anseio reincidente desde o incio do sculo. O reconhecimento dos atributos fsicos e
paisagsticos do lugar, alm da sua proximidade ao centro da cidade, corroboraram, por parte do poder
pblico, inmeras tentativas de ocupao ordenada e planejada. Desde a proposta de um Bairro Operrio
de Henrique de Novaes (1924), do Bairro Jardim de Giacomo Palumbo (1929), do Bairro Residencial do
Escritrio Saturnino de Brito (1935), passando pelas iniciativas de Djalma Maranho e pela tentativa de
reurbanizao no Plano Serette (1968 como se ver adiante). No entanto, em virtude da no efetivao das
propostas, o crescimento do bairro se deu desprovido de uma diretriz norteadora, revelia das preocupaes
do poder pblico.
82
Cabe ressaltar que o procurador da proprietria, desportista Joo Cludio Machado a quem foi prestada
homenagem com a atribuio do seu nome ao estdio, prometeu uma doao do terreno, caso as obras fossem
iniciadas imediatamente.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 160

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

nibus, a ampliao do sistema de telefonia e a extenso da rede eltrica aspectos


vislumbrados pelas iniciativas do ento Prefeito.83 Tais inovaes possibilitavam tambm
um impulso disseminao de diversas outras atividades no cenrio urbano da cidade.
Favoreciam, dentre outros fatores, a criao e a consolidao de novos bairros
(Figura 38), a valorizao do solo urbano e a intensificao do mercado imobilirio;
subsidiavam a atividade turstica; alm de consistirem em atrativos para a instalao de
indstrias na cidade. Cabe ressaltar aqui que, assim como o saneamento o era nas primeiras
dcadas do sculo XX, a indstria se firma como a principal justificativa para as
intervenes no espao urbano.84

Figura 38: Vista area do


bairro do Tirol em 1951.
Fonte: CD Natal, 400 anos.

Como resultado das aes urbanas de Djalma Maranho, tem-se o exemplo de


Lagoa Seca, com seu casario moderno, abastecimento dgua, energia eltrica e
transporte coletivo, conforme descrito na imprensa local:
Cresce a galope, o bairro de Lagoa Seca, moderno Grupo Escolar, escolas
outras particulares e pblicas, estabelecimento do Orfanato Padre Joo Maria,
panificadoras em bonito estilo e asseio ntimo, feira permanente de animais,
vida noturna com footing, alm de outras novidades que o desenvolvimento
social propicia (LOPES, 1958, p. 02).

83
A ampliao da rede eltrica de Natal foi intensificada em fins da dcada de 1950 e incio dos anos 1960,
quando se conseguiu, atravs da Operao Nordeste efetivada pelo Governador do Estado Dinarte Mariz e
concluda por Aluzio Alves trazer para a cidade energia proveniente da hidreltrica de Paulo Afonso.
Antes disso, somente a iluminao era eltrica, e os demais equipamentos funcionavam base do gs.
84
Essa tendncia de industrializao, no entanto, contrariando as pretenses polticas, s veio ter incio na
dcada de 1980.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 161

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Programa habitacional

O dficit habitacional foi uma temtica bastante recorrente nas dcadas de 1940,
1950 e 1960, principalmente pelo alto crescimento demogrfico por que passaram as
cidades brasileiras, ocasionado em grande parte pelo processo de desruralizao da
economia e pela consolidao do urbano que atraa uma grande demanda de populao
operria para as cidades. Para alguns autores, como Cavalcanti (1978), a nfase dada a esse
problema consistia muito mais em uma estratgia governamental que tinha objetivos
alheios carncia de moradias em si, atuando, sim, no sentido de promover e impulsionar
o mercado da construo civil, a partir do investimento e da absoro de mo-de-obra
nesse setor.
Em Natal, esse problema fora exacerbado pelo intenso crescimento demogrfico
ocorrido durante a II Guerra Mundial, e pelo movimento migratrio de escoamento rural
provocado pelos perodos de estiagem ocorridos no Nordeste ao longo da dcada de 1950,
agravando mais ainda a situao da capital potiguar. No entanto, o processo de urbanizao
no acompanhou esse contingente de novos habitantes, de modo que se tornaram ainda
mais evidentes as carncias de infra-estrutura e, sobretudo, de habitaes.
De incio, as aes no sentido de dotar a cidade de moradia restringiam-se ainda a
alguns rgos isolados, como a Fundao da Casa Popular e as Caixas de Aposentadoria e
Penso, e Institutos de Previdncia.85
A Fundao da Casa Popular faz saber aos interessados, que continuam abertas,
na Prefeitura Municipal de Natal, [...] as inscries para venda de casas
populares do conjunto residencial construdo no Bairro das Quintas [...]. As
casas so em nmero de 74, todas dotadas de sala, dois quartos, cozinha,
banheiro, lavanderia e varanda, e possuindo ainda gua encanada e instalao
eltrica [...]. As casas sero entregues aos candidatos classificados, sem
necessidade de qualquer pagamento a ttulo de sinal ou entrada inicial, sendo as
mdicas prestaes mensais calculadas de acordo com a idade do interessado
[...] (FUNDAO..., 1948, p. 08).

[...] o I.A.P.T.E.C. concedeu uma verba de dois milhes de cruzeiros destinada


aquisio de casas j construdas ou de terrenos para construes para os
associados, tendo aquela entidade, por seu alvitre, concedido nova verba para
pequenos emprstimos aos segurados [...] (NOVAS..., 1948, p. 01).

85
Somente a partir da dcada de 1960, com a criao do BNH em 1964, a habitao passou a ocupar o cerne
da poltica urbana (CAVALCANTI, 1978).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 162

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Foi possvel registrar uma vasta produo de moradia, dentre as quais se


destacam: um conjunto residencial para os servidores areos e de telecomunicaes, no
Tirol (CASA..., 1953, p. 04); um complexo residencial no bairro do Tirol, com oito blocos
com doze e/ou dezesseis apartamentos, e de quarenta unidades residenciais, alm de
equipamentos pblicos como uma escola e um prdio para o servio social (VAI
CONSTRUIR..., 1953, p. 08); uma vila ferroviria no bairro das Rocas
(CONSTRUO..., 1953, p. 01 Figura 39); uma vila militar em Parnamirim, com trinta
residncias em estilo moderno (NOVAS..., 1956, p. 08); uma vila naval com quatrocentas
unidades habitacionais em Igap (VILA..., 1957, p. 12) etc. Registre-se a construo de
inmeras vilas militares, dentro da premissa da ocupao militar na cidade.

Figura 39: Vila Ferroviria planta utilizada pelo Escritrio Saturnino de Brito.
Fonte: FERREIRA et.al. (2003a)

Uma iniciativa de vulto poca consistiu na construo da Cidade Satlite, ou


Cidade do Funcionrio, que, acompanhando uma tendncia nacional de consolidao da
ocupao perifrica dos ncleos urbanos, situava-se distante do centro de Natal,
funcionando como uma cidade autnoma, de autoria do arquiteto Moacir Gomes da Costa,
cujo projeto foi bem caracterizado em artigo publicado no jornal A Repblica:
[...] Sendo uma cidade autnoma, h a necessidade da localizao no apenas
das casas residenciais, mas de Escolas, Mercado, comrcio local, jardins,
playgrounds, campos de esportes, igrejas, pronto socorro, creches. Tudo isso

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 163

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

ter a sua localizao adequada, a fim de que a cidade possa crescer amanh
com um plano de urbanizao.
[...]
A capacidade da cidade satlite est prevista para uns trinta mil habitantes.
Sero construdas cerca de mil e quinhentas casas, inicialmente. Para isso o
Governador assinar acordo com a Fundao da Casa Popular (PRIMEIROS...,
1957, p. 06).

Deve-se considerar que, apesar de proporcionar e impulsionar um crescimento


fsico e econmico da cidade acelerando, inclusive o incio do processo de
verticalizao,86 e possibilitando o rpido crescimento do setor da construo civil e o
contingente de mo-de-obra absorvido , a vasta produo habitacional, desprovida de uma
fiscalizao adequada por parte do poder pblico, gerou, por outro lado, a disseminao de
padres arquitetnicos caracterizados por uma baixa qualidade construtiva e por precrias
condies de conforto, conforme mencionado anteriormente. Essa negligncia por parte
da administrao municipal consistira justamente na estratgia governamental de que fala
Cavalcanti (1978) em seu estudo sobre o caso brasileiro, que tratava de proporcionar uma
maior abrangncia e uma maior liberdade de ao da construo civil, e, com isso,
desfrutar do crescimento econmico advindo desse setor.
Observa-se que a precariedade higinica, formal e construtiva das edificaes
construdas no passou despercebida pela populao local, apontando para a situao do
bairro das Quintas, em particular, onde
[...] um grupo de casas populares que foram construdas perto do matadouro
[...]. Algumas dessas casas esto desocupadas [...]. Ficam muito longe do centro
da cidade e no satisfazem as exigncias mnimas de uma famlia operria
(WANDERLEY, 1953, p. 06).

Cabe ressaltar que o problema da habitao no se restringia s capitais e aos


centros urbanos mais populosos, mas tambm ao interior dos Estados brasileiros.
Reconhecendo tal situao, o Governo Federal dirigiu esforos para a elaborao de uma
poltica nacional de incentivo interiorarizao da produo de moradias principalmente
na regio Nordeste, alegando:

86
O incentivo verticalizao por parte da produo habitacional verifica-se, em Natal, a partir da
construo de inmeros edifcios residenciais que, de incio, apresentavam-se com apenas trs ou quatro
pavimentos, e, gradativamente foram atingindo padres mais altos, como o edifcio de doze andares
construdo pela empresa Santa Lcia, na r. Princesa Isabel, dotado de garagem subterrnea e com setenta
apartamentos de trs tipos e tamanhos diversos.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 164

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Um dos problemas que mais afligem os agricultores nordestinos,


inegavelmente, o da crise de habitao [...]
Construdas [...] para proteger os seus moradores da chuva e do sol, no
atendem essas casas s mais elementares necessidades que se exige de uma
moderna habitao, [...]
A moderna poltica social procura conceder ajuda em todos os setores vitais a
sobrevivncia do homem do campo, e alguma coisa j foi iniciada nesse sentido,
esperando-se o maior proveito em benefcio dessa populao. [...]
[...] Nas grandes cidades e capitais esse aspecto em questo j foi abordado e
executado com relativo sucesso, sendo grande o nmero de casas populares
construdas e entregues [...]
Hoje, os benefcios dessa orientao esto sendo estendidos ao campo [...] Cabe
ao Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao esse novo planejamento [...].
Autorizou o Presidente da Repblica, a elaborao de um plano conjunto entre o
INIC e a Fundao da Casa Popular, [...] afim de serem construdas com a maior
brevidade [...] 3.000 casas destinadas a abrigar os que laboram nas atividades
agrcolas (CONSTRUES..., 1956, s/p).

Dentro dessa poltica, que tambm vislumbrava do Estado do Rio Grande do


Norte, foram construdas quinhentas casas populares nos vales do Assu e do Apodi. Em
cooperao com a Fundao da Casa Popular, e no intento de fixar o agricultor no interior
do Estado, o Servio de Assistncia Rural possibilitou a compra das residncias com
baixas prestaes mensais comprometendo-se a estender esse benefcio a outras zonas
rurais (SERO..., 1957, p. 01).

A proliferao dos loteamentos

A partir da dcada de 1940, como j visto, emergiu a possibilidade de novas


atividades econmicas que incluam a produo do espao construdo, consolidando-se a
partir do desenvolvimento da atividade imobiliria como investimento lucrativo que
recebia os recursos financeiros oriundos da industria, do comrcio e da produo agrcola.
Assim, ocorre a expanso de fundos previdencirios, das companhias de
capitalizao, das caixas econmicas e das empresas de seguros que oferecem
crdito imobilirio, emprstimos hipotecrios, e investem em construes, tanto
em grandes edifcios comerciais e residenciais para grupos ricos e abastados,
como em conjuntos populares e em terrenos. O capital incorporador se
consolida como nova frao de capital no processo de produo do ambiente
urbano (FELDMAN, 1996, p. 2).

Em mbito local, as vrias conseqncias deixadas pela ocupao norte-americana


durante a II Guerra Mundial abrangiam no apenas a criao de um setor de atividades

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 165

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

relacionado construo civil como o delineamento da estrutura e expanso fsica da


cidade, j que a instalao dos inmeros equipamentos militares corroborou a consolidao
de vias de circulao e de articulao de reas ainda pouco ocupadas. De acordo com
Ferreira (1996) a nova configurao fsica da cidade, aliada ao aumento da demanda por
moradias, transferncia do capital para o setor imobilirio, elevao da renda familiar,
existncia de terras improdutivas na periferia da cidade e pouca definio do permetro
urbano, impulsionou a expanso fsica de Natal nesse momento. Esses fatores, ainda
segundo Ferreira (1996), tornaram a obteno do solo a partir de aforamentos e a
fragmentao de grandes terrenos um investimento rentvel, consolidando assim, o
surgimento do mercado de terras e do parcelamento privado do solo. A partir de 1946,
comeam a ser registrados os primeiros loteamentos nos cartrios, processo que se
intensificou nas dcadas de 1950 e 1960.87
Contrariando as preocupaes ambientais e funcionais e comprovando o
crescimento deste setor econmico em Natal, eram comuns e recorrentes, nos jornais
locais, os anncios de editais de concorrncia para a construo de casas e de venda de
grandes terrenos nos quais se destacavam a rentabilidade do investimento e as qualidades
do terreno, como se pode observar:
Vendem-se, nesta capital, os seguintes terrenos: em Lagoa Seca, na Av.
Presidente Bandeira, servido por bonde e nibus um de mais de 7 hectares, com
uma grande casa de tijolo, cacimba dgua boa e permanente e mais de 100 ps
de coqueiros novos; outro no Tirol na Av. Marechal Hermes, junto e do lado do
Aero Clube, medindo 218 metros de frente por 100 de fundo, dando para a Av.
Afonso Pena; e outro na Av. Mipibu. Trata-se com o Dr. J. Lamartine, rua
Trairi n 558 (TIMO..., 1946, p. 05).

Cabe ressaltar que, no caso de Natal em particular, a emergncia do mercado


imobilirio gerou lucros no s para a iniciativa privada, mas tambm para os cofres
pblicos municipais j que grande parte das terras existentes na cidade pertencia ao
Municpio. Ento, observa-se que o momento de intensificao dos loteamentos em Natal
coincide com um perodo de grandes realizaes a cargo da administrao municipal, para
onde era revertida a arrecadao obtida pela venda e aforamento dos terrenos do municpio
como, por exemplo, a gesto de Djalma Maranho. No entanto, havia, por parte do

87
Ferreira (1996) coloca que, entre 1946 e 1969, registraram-se 87,8% do total dos 222 parcelamentos
realizados no municpio de Natal e inscritos no Registro de Imveis que compreendiam 71,3% da rea
parcelada at 1989.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 166

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Governo Federal, uma tentativa de desencorajamento da comercializao de reas foreiras


da Prefeitura, a partir da taxao de um imposto federal sobre a venda e aforamento dos
referidos terrenos, estabelecido pelo decreto-lei n 9330, datado de 1946. Tal imposto teve
grande ressonncia na cidade, tendo em vista que toda a rea urbana estava encravada em
terreno foreiro do Patrimnio Municipal, e que a taxao sobre sua comercializao em
muito atingiria os interesses financeiros dos polticos e do empresariado privado local (O
LUCRO..., 1953, p. 06).
Ao que se transparece a partir da imprensa local, essa lei foi, de certo modo,
negligenciada, chegando, em 1955, a se registrar uma grave denncia por parte do prprio
Prefeito Djalma Maranho contra o ento Governador do Estado Silvio Piza Pedroza,
acusando-o de apropriao indevida de vrias reas pertencentes Prefeitura, loteando-as e
fazendo uso das mesmas para o seu prprio usufruto e enriquecimento material.
[...] a nsia insacivel de multiplicar os seus milhes est montando um
imprio imobilirio, aambarcando terras por todos os meios. Tem a histria das
terras de Ponta Negra, as vastas reas do Carrasco e muitas outras. So
escndalos passados em julgado (MARANHO, 1955, p. 01).

Em paralelo, com o aval da Prefeitura, disseminaram-se loteamentos por toda a


extenso urbana e suburbana de Natal, ocasionando o surgimento e a consolidao de
inmeros novos bairros, desprovidos, no entanto, da infra-estrutura adequada. Vrios
foram os bairros surgidos, como, por exemplo, o Boa Sorte, situado alm do Tirol, que
contava no apenas com a ocupao residencial, mas abrigava inmeros servios
distribudos em pontos comerciais, farmcias, padarias, cinemas, clubes danantes e
agremiaes esportivas. A Vila Popular no atual bairro de Me Luza, tambm surgiu
nesse momento, quando, naquele local, [...] diversas famlias desta capital e do interior
esto adquirindo lotes de terrenos para edificao de casas residenciais (NASCE..., 1957,
p. 08).
vlido registrar que alguns loteamentos eram realizados e comercializados pela
prpria Prefeitura Municipal, como o que foi idealizado na Praia do Forte, cuja renda
obtida seria revertida para a urbanizao de Me Luiza, bem como para o plano de
pavimentao das ruas da cidade. Esse loteamento, caracterizando-se como uma entre
poucas excees, foi projetado por profissionais especializados, sendo dotado de vrios
equipamentos pblicos e com a previso de introduo de infra-estrutura bsica.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 167

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Assim que o Edil natalense j se encontra de posse do esboo do estudo,


concludo, de urbanizao da Praia do Forte, cuja planta inclui ruas de
penetrao, ruas de acesso, zonas de proteo, parque infantil, escolas
maternais, escola primria, quadras de esportes, parque de estacionamento,
centro comercial, igreja, comrcio auxiliar e lotes residenciais, alm de reas
arborizadas, como osis de verduras em meio s residncias.
A capela ter capacidade para duzentos fiis e o terreno est dividido em
duzentos e sessenta e sete lotes.
Pode-se adivinhar na Praia do Forte neste planejamento do Prefeito Djalma
Maranho que teve o estudo a cargo dos arquitetos Arialdo Pinto e Moacir
Gomes um bairro aristocrtico do futuro, e muito prximo (PRAIA..., 1956, p.
01). 88

Outro loteamento promovido pelo poder pblico foi o chamado Monte Carlos,
situado nas imediaes de Santos Reis, cujo anncio ressaltava a proximidade ao centro
urbano de Natal, e as facilidades advindas dessa localizao, alm da implantao
privilegiada, entre a cidade e o oceano:
[...] o novo loteamento que a Prefeitura acaba de abrir no aprazvel bairro de
Monte Carlos, prximo a Circular, vem solucionar o problema daqueles que,
falta de maiores recursos ainda no puderam possuir um terreno em local to
promissor como o que vem anunciado pela edilidade.
Este loteamento consta de cerca de cem terrenos bem situados, com duas
modalidades de aquisio, sendo uma vista, por vinte e um contos em mdia e
outra em forma de dez prestaes mensais, mediante uma entrada.
O novo loteamento localiza-se em rea de rpida valorizao, com vantagem de
ficar entre o mar e Petrpolis, com transporte perto a dez minutos da cidade
(MONTE..., 1957, p. 08).

Alm dos j citados, h ainda um loteamento no bairro das Quintas, destinado a


aforar aos servidores pblicos municipais terrenos para a construo da casa prpria
(OPORTUNIDADE..., 1958, p. 06), e o loteamento de Me Luiza, assim anunciado na
imprensa local:
Nasce uma Cidade entre Natal e Ponta Negra, Me Luiza / Cidade Satlite.
Plante dinheiro comprando seu lote! [...]
Informaes: Prefeitura
Mais uma iniciativa do PREFEITO DJALMA MARANHO (NASCE..., 1958,
p. 06).

88
Em entrevista realizada no dia 08/08/2003, o arquiteto Moacir Gomes da Costa afirmou que a proposta
urbanstica para o bairro da Praia do Forte restringiu-se elaborao do projeto para um centro esportivo e de
lazer.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 168

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Instrumentos urbansticos: reforma legislativa e o Conselho Municipal de


Urbanismo

Contrariando o acelerado processo de urbanizao e o crescimento fsico de Natal,


no houve, por parte da administrao pblica, aes efetivas no sentido de promover,
orientar e controlar a expanso da cidade, continuando-se, em plena dcada de 1950, a ter
como parmetros as indicaes urbansticas prescritas em 1929, quando da elaborao
Plano Geral de Sistematizao pelo arquiteto Giacomo Palumbo. Essa legislao, restrita a
prescries sobre o traado urbano e deveras desatualizada frente nova configurao
urbana de Natal, no mais atendia s necessidades locais, deixando ao acaso o intenso
processo de loteamentos na cidade, como se pode ver em artigo publicado na imprensa
local:
O Plano Palumbo tem sofrido algumas alteraes, pouco felizes e hoje, diante
do desenvolvimento que tomou a nossa cidade, incompleto, necessitando
prolong-lo em vrias direes sobretudo na de Parnamirim, para onde a cidade
ter forosamente, de se estender, assim como ampliado para a Redinha, [...],
afim de que desde j, as construes ali sejam orientadas de modo a no
prejudicar a sua beleza natural (LAMARTINE, 1956, p. 04).

Como resposta a esse problema e visando consolidar e efetivar a participao


pblica no desenvolvimento da cidade, em nome do bem-estar da populao, Djalma
Maranho incentivou, em 1956, a corroborar a criao de um Conselho Municipal de
Urbanismo. Tal Conselho, composto por profissionais especializados, atuaria como rgo
consultivo da administrao municipal, elaborando e regulamentando uma legislao que
privilegiasse os aspectos urbansticos da cidade, intentando consolidar uma identidade
urbanstica prpria e contando com a participao direta da populao.89
Compreendendo que somente com um trabalho sistematizado, de
aperfeioamento dos conhecimentos relativos cincia da organizao das
cidades, e que somente assim poder a municipalidade criar a atmosfera de que
necessita para a implantao dos princpios urbansticos e esclarecer a opinio
pblica nesse terreno, que o atual governador da cidade far funcionar o
Conselho Municipal de Urbanismo (SILVA, 1957, p. 5).

89
A atuao desse rgo, de acordo com a imprensa local, deveria ser pautada no iderio de Cidade-Jardim
propugnado por Ebenezer Howard, incorporando as questes sociais imbricadas na concepo da unidade de
vizinhana, na descentralizao urbana, no direito habitao, na existncia de espaos verdes etc.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 169

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

Essas intenes inserem-se no contexto geral por que passava o planejamento


urbano no Brasil, em que as iniciativas tendiam ao controle e ao desencorajamento do
processo de urbanizao, considerado, naquele momento, nocivo e principal responsvel
pelos problemas que assolavam a populao dos grandes e mdios centros urbanos.
Com relao normalizao da habitao, especificamente, Djalma Maranho
empreendeu esforos na tentativa de criar novas leis e revisar as existentes, propondo-se, e
contratando profissionais para esse fim, a reformular o cdigo de obras de Natal, a fim de
torn-lo condizente com as [...] necessidades do progresso arquitetnico de uma cidade
moderna como Natal, contribuindo para a melhoria do panorama arquitetnico local, em
que as edificaes
[...] no se enquadram em absoluto, nas normas arquitetnicas adotadas nos
grandes centros [...], o Prefeito Djalma Maranho, com o intuito de dotar a
cidade de Natal, com um Cdigo de Obras altura do seu progresso e ao mesmo
tempo evitar que mais tarde se reflitam em sua urbanizao os erros que hoje
ocorrem, designou uma comisso afim de elabor-lo na qual se sobressaem dois
nomes, o engenheiro Antnio Tejo e o arquiteto Arialdo Pinho (REUNIDOS...,
1956, p. 08).

[...] o novo cdigo surge tambm para reparar uma das maiores deficincias de
nossa Prefeitura: as construes sem licena. De agora em diante, [...] no se
poder mais construir em Natal, sem licena. Sem alvar de permisso da
edilidade e notificar a construo a mesma ser paralisada. [...] Com essa
exigncia, outros a acompanharo, como por exemplo, a construo s poder
ocupar 60% da rea do terreno; no tocante s vilas populares, apenas seis casas
os podem construir conjugadas, duas a duas. S assim [...]acabaremos com
verdadeiros cortios que criminosamente se levantam, em nossa terra
(SALVO..., 1955, p. 01).

Em virtude das infrutferas iniciativas de Djalma Maranho, a nica tentativa


efetiva de fiscalizao das edificaes partiu do Conselho Regional de Engenharia e
Arquitetura (CREA), que tratou de viabilizar anlises e as conseqentes intervenes sobre
as habitaes impondo modificaes e especificaes a serem obedecidas nos projetos,
bem como embargando os casos mais precrios. A iniciativa do CREA foi
automaticamente condenada e regulada pela administrao local, alegando que a populao
carente no tinha condies de arcar com as exigncias referentes aos padres construtivos.
Ultimamente vem o CREA multando ou embargando as pequenas construes
de proprietrios reconhecidamente pobres, que edificam a custa de muitos
sacrifcios, pequenas casas de residncia, que, antes no careciam de
fiscalizao daquele conselho por no se inclurem na sua legislao (O
PREFEITO..., 27/03/1958, p. 06).

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 170

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

A partir de ento, props-se a sistematizao do controle e da fiscalizao por


parte do poder pblico a partir de rgos tcnicos prprios, de modo a [...] evitar-se a
construo de [...] barraces arquitetnicos. Para os pobres que no podem contratar os
servios profissionais de um engenheiro, a Prefeitura designar um dos seus construtores
[...] (CASAS..., 1958, p. 06). No entanto, a efetivao dessa iniciativa no foi mencionada
na imprensa local, no podendo ser comprovada at o presente estgio do levantamento de
dados.
A no concretizao das tentativas de reforma legislativa, pode-se afirmar,
demonstra o fato de que, ao passo que anteriormente o poder pblico promovia
efetivamente as intervenes no espao fsico da cidade, destarte as intenes e
preocupaes em relao ao ordenamento e regulamentao da ocupao do solo e da
produo imobiliria, registra-se a ausncia de qualquer instrumento de fiscalizao e
controle da produo do solo , delegando aos interesses privados a funo de principais
norteadores e concretizadores da feio urbana da Natal de ento. Fator que foi agravado
pela ausncia de instituies de urbanismo na esfera da administrao municipal ou mesmo
estadual fato que j era realidade nas grandes cidades do pas , bem como inexistncia
de uma legislao especfica para esse fim.
Assim, como destaca Ferreira (1996)
Ante la omisin de la administracin local, aprovechando la ausencia de planos
urbansticos, el agente parcelador transforma terra rstica en urbana, promueve
la ocupacin desordenada del territorio urbano, pone una gran cantidad de suelo
en expectativa e acenta el proceso de valorizacin diferenciada del suelo
urbano (FERREIRA, 1996, p. 142).

A partir do exposto, pode-se concluir que, embora a historiografia local considere


o perodo compreendido entre a inaugurao das obras de saneamento em 1939 e a
elaborao do Plano Urbanstico e de Desenvolvimento de Natal em 196790 como um
perodo sem planos, h de se considerar alguns instrumentos e idealizaes no campo
urbanstico que orientaram, mesmo que parcialmente, o processo de urbanizao de Natal,
como a continuidade dada ao Plano Geral de Sistematizao de Natal, a criao do DSE e a
ampliao da atuao do Escritrio Saturnino de Brito para alm dos servios de
saneamento, e as iniciativas de Djalma Maranho em modernizar a cidade. Entretanto,

90
Que ser mencionado posteriormente no trabalho.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal
SEGUNDO MOMENTO 171

Os problemas urbanos definindo as aes sobre a cidade (1940 1960)

frente ao acelerado processo de crescimento da cidade e dos problemas urbanos que se


avolumavam abundantemente, prejudicando e limitando sobremaneira a efetivao das
aes, esse momento deixa a desejar no que se refere interveno do poder pblico no
sentido de prever e gerenciar a expanso da cidade, tratando-se de remediar uma situao
j consolidada.

PARTE II
Urbanismo e Planejamento Urbano em trs momentos da urbanizao de Natal

Você também pode gostar