TELLES, Sofia. Lúcio Costa - Monumentalidade e Intimismo
TELLES, Sofia. Lúcio Costa - Monumentalidade e Intimismo
TELLES, Sofia. Lúcio Costa - Monumentalidade e Intimismo
Sophia S. Telles2
1
Texto publicado na revista Novos Estudos CEBRAP (Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento), em 25 de ou-
tubro de 1989
2
Sophia Silva Telles coordenadora Departamento de Fundamentos Tericos da FAU-USP, Campinas e professora
de Histria da Arquitetura.
3
Estes artigos esto reunidos nas seguintes publicaes: Lcio Costa: Sobre Arquitetura, Porto Alegre, Centro de Es-
tudantes Universitrios de Arquitetura, 1962 (indicado nas notas subseqentes pela abreviatura AS), e Lcio Costa:
Obra Escrita, pesquisa e notas introdutrias do arquiteto Alberto F. Xavier, Braslia, Universidade de Braslia, Institu-
to de Artes e Arquitetura, Departamento de Arquitetura, 1966-70, mimeo (indicado nas notas subseqentes pela abre-
viatura OE).
4
Por ocasio do concurso, Lcio Costa abre mo do primeiro prmio, em favor do projeto de Niemeyer, que conside-
rou o melhor. A soluo foi um projeto conjunto, marcadamente sob a linha de Niemeyer. No mesmo ano, Lcio se
afasta da direo do projeto do Ministrio da Educao e Cultura (MEC), passando a Niemeyer a chefia dos traba-
lhos. Cf. Coutinho, J.C.C., Nota biogrfica, in SA; Costa, L. "Pavilho do Brasil em NY", 1938, in SA; e Costa, L.,
"Relato Pessoal", Mdulo n 44, jan. 1976, entre outros depoimentos.
5
Cf. Katinsky, jlio Roberto, "Lcio Costa'', aula na FAU-USP, 1968, publicada na Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, 1972, pp. 33-55.
6
SA, pp, 125-27 192-93,
2
7
SA, p. 239 (1952)
8
SA, p, 242 (1952)
9
SA, p. 185 (1951). Cf. ainda o artigo ''Notas sobre a Evoluo do Mobilirio Luso-Brasileiro", 1939, in SA.
10
SA, p. 227 (1952).
11
SA, p. 250 (1952).
3
uma sntese formal poderosa que destri a literalidade das referncias, ao sub-
jug-las operao abstrata de seu partido (figura 1).
Em Lcio, ao contrrio, a tentativa de recuperar os valores do passado
acaba por configurar nos prprios procedimentos construtivos o lugar de uma
outra unidade, mais problemtica. Ao longo de seus textos, ele faz uma sutil
diferena quanto ao carter da fruio esttica, ao transformar a emoo pls-
tica nas palavras "sentimento" ou "intuio potica", quanto escolha deste ou
daquele elemento, escolha essa que a "essncia mesmo da Arquitetura". Para
Lcio, "se a arquitetura fundamentalmente Arte, no o menos fundamen-
talmente construo. pois, a rigor, construo concebida com inteno pls-
tica". Tal inteno no atua "de uma forma abstrata, mas condicionada sem-
pre... (pela) conscincia do sentido verdadeiro dessa preciosa experincia a-
cumulada..."15. Talvez por isso, por ter buscado constituir uma tradio, o ar-
quiteto brasileiro no poder distanciar-se totalmente da prtica acadmica da
arquitetura, onde a qualidade dos vrios agenciamentos - os tcnico-
funcionais e os histricos - que deve fazer aflorar, ao fim, a sensibilidade do
artista, na inteno do projeto. Se a emoo esttica, em Corbusier, provm do
julgamento da bela proporo, o sentimento antes uma disposio imediata,
um contato direto com o mundo sensvel. Em Lcio, a "complexidade utilit-
ria e lrica'' parece ordenada pela presena perene da natureza e pela memria
da paisagem colonial. Retira assim da arte o papel ativo de configuradora do
espao moderno - que reserva mais racionalidade tcnica - para deposit-lo
numa sensibilidade contemplativa. arte caberia o sentimento e a intuio de
integrar a cultura do passado nova.
A grande diferena entre os dois arquitetos refere-se posio de onde
partem. Para Corbusier, a defesa do mundo tcnico uma estratgia que faz
de sua obra uma ttica ofensiva. Em Lcio, h uma ambigidade, na medida
em que a arte e o artista, embora devam se identificar com um projeto civiliza-
trio, ocupam uma posio defensiva ante as relaes sociais engendradas pe-
la era moderna. importante ressaltar, entretanto, ainda a referncia a Corbu-
sier e sua viso virgiliana da casa de campo, a reminiscncia, em seus proje-
tos, dos urbanistas utpicos do sculo XIX e a defesa insistente da vida sim-
ples e frugal, mesmo em suas monumentais "Units d'Habitation". De certa
maneira, a identidade forte entre ambos diz respeito ateno com o lugar do
indivduo numa sociedade de massa.
Mais de uma vez, Lcio define a soluo da arquitetura moderna para
a moradia, em termos igualmente individuais para as grandes massas de po-
pulao, ao descrever as vantagens da concentrao em altura, com reas m-
nimas por morador, desde que se preservem os servios comuns e se obte-
nham grandes extenses de rea arborizada, "a fim de assegurar a todos os
moradores perspectiva desafogada e a benfica sensao de isolamento...". Os
edifcios, grandes blocos isolados, capazes de liberar grandes reas de terreno,
garantiriam "maior desafogo visual e, como conseqncia, maior sensao de
intimidade"16. No defende assim a existncia do espao privado, idia exces-
sivamente burguesa para as inclinaes socializantes da arquitetura moderna,
mas a garantia da vista desimpedida que isola o indivduo do apertado contato
com a multido. Em Lcio, as objetividades tcnicas e funcionais parecem
15
AS, p. 113 (1945)
16
AS, pp. 233 e 231 (1952)
5
17
OE, parte 4, "O Arranha-Cu e o Rio de Janeiro", p. 4 (1929).
18
Cf. a relao de Lcio Costa com Rodrigo Mello Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Mrio de
Andrade, entre outros, junto ao Ministrio de Educao e Cultura, especialmente na gesto Capanema. A partir de
1947, Costa trabalha no Servio de Estudos e Tombamentos do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, de cuja di-
retoria faz parte desde ento. Cf. ainda o episdio da direo da Escola Nacional de Belas Artes (1930-31), para a
qual foi indicado por Rodrigo M-F- de Andrade e nomeado pelo ministro Francisco Campos (documentao in OE) e
o episdio do concurso para o edifcio do MEC, anulado pela insistncia de Lcio Costa em convidar Corbusier para
orientar o projeto (documentado em OE e SA).
6
19
SA, p. 248 (1952).
20
SA, p. 222 (1952). " Os artistas possudos de paixo criadora e capazes no s de eletrizar multides como os cam-
pees olmpicos e os acrobatas de circo, mas de comov-las com as suas obras (...) esse, tantas vezes, o caminho
mais curto para o corao das massas...".
21
SA, p. 223 (1952). "A arte moderna considerada por determinada crtica de lastro popular como arte reacionria,
patrocinada pela plutocracia capitalista com propsitos diversionistas a fim de -afastar os intelectuais da causa do po-
vo (...) - a arte moderna... tem por funo, do ponto de vista restrito da aplicao social, dar vazo natural aos anseios
legtimos da livre escolha e fantasia individual ou coletiva da massa proletria, oprimida pela rudeza e monotonia do
trabalho mecanizado imposto pelas tcnicas modernas de produo. "
22
SA, p. 221 (1952). ''A aplicao social desses novos conceitos de arte como forma ativa de evaso e reabilitao
psicolgica individual e coletiva, e visando, como esporte, o recreio desinteressado da massa annima, do proletaria-
do nas suas horas de lazer, proporcionaria, ento, arte moderna... precisamente o que lhe falta, e que no , tal como
geralmente se pretende, sentido popular, mas raiz popular, o que muito diferente."
7
23
Cobog, combog ou combog, nome que se d, principalmente no Norte do Brasil, ao tijolo furado ou ao elemen-
to vazado feito de cimento. Parece filiar-se aos tijolos perfurados de origem norte-africana- Cf. Corona & Lemos, Di-
cionrio de Arquiretura Brasileira, SP, Edart, 1972.
8
24
Quanto sugesto do uso do azulejo feita por Corbusier, Lcio escreve: "No obstante a sua ndole universal, j se
podem observar manifestaes 'nativas' da Arquitetura Moderna...". "No somente porque a conselho do prprio Cor-
busier... mas principalmente porque a prpria personalidade nacional se expresse... preservando assim o que h de
impondervel mas genuno e irredutvel na ndole diferenciaria de cada povo". In SA, p. 243 (1952).
25
SA, p. 92 (1937).
26
Pedrosa, Mrio. ''Dos Murais de Portinari aos Espaos de Braslia", So Paulo, Perspectiva, 1981, p. 332.
27
Muxarabi: anteparo perfurado colocado na rente de uma janela ou ao final de um balco, com o fito de se obter
sombra. Influncia rabe na arquitetura ibrica, transplantada vara o Brasil colonial. C . Corona & Lemos, op, cit. O
dicionrio no se refere ao carter de proteo em relao ao exterior, inteno presente desde a colnia, de influncia
rabe.
28
Mrio Pedrosa nota a ateno especial s paredes e fachadas ''ainda que rebaixadas a papel secundrio na montagem
das estruturas", op. cit., p.330.
9
mento ou da repetio desse perfil estrutural (figura 8). Em obras mais recen-
tes, a partir de Braslia, o contorno do corpo do edifcio se converte ele mes-
mo em um perfil, em um simples desenho que acaba por sublimar o interior
pela transparncia virtual da matria, pintada freqentemente de branco. Da
em diante, as aberturas so anuladas ou quase dissolvidas nas superfcies de
vidro, que se recolhem atrs dos grandes arcos.
No momento, cabe lembrar que o partido corbusieriano de dar s aber-
turas um tratamento eminentemente plstico responde necessidade de rea-
firmar o prisma geomtrico, constante ao longo de sua obra (figura 9). No
Brasil, o volume cedera lugar linha horizontal das grandes coberturas, que
a marca da chamada "Escola Paulista''29, a partir dos anos 60. Nela, se defen-
der o carter tcnico das construes, pela simplificao e economia do par- Fig. 9
tido, aliado idia da pr-fabricao. Os espaos devero entretanto assumir a
conotao poltico-ideolgica dos lugares completamente abertos, para o uso
coletivo e democrtico. A estrutura desenhada como uma grande marquise,
soluo evidentemente de exterior, dissolve, finalmente, o valor das aberturas
(figura 10).
Voltando a Lcio Costa, observamos que o hotel de Friburgo expressa
de outra maneira a idia de integrao dos elementos tradicionais e modernos,
mas em sentido inverso ao dos edifcios do Parque Guinle. A planta segue
uma disposio moderna, mas o processo construtivo utilizasse materiais tra- Fig. 10
dicionais: pilotis e vigamentos de madeira e gradil de trelia na varanda supe-
rior. O projeto suporta, entretanto, um grande pano envidraado no trreo, so-
luo que refora, pela transparncia, o sentido moderno dos pilares, liberando
o solo para a vista e para os espaos comuns -, mas ao mesmo tempo mantm
o carter de proteo da trelia, que resguarda a intimidade dos quartos.
Ambos os projetos - Parque Guinle e hotel de Friburgo - atestam a
qualidade dos dois procedimentos, pela ateno dada escala. Fosse o cobog
um simples detalhe, no primeiro, a soluo seria tmida e correria o risco de se
tornar decorativa. No hotel, caso o pano de vidro se reduzisse a algumas aber-
turas ele se transformaria em elemento estranho ao partido rstico do edifcio.
Dos projetos conhecidos, o Parque Guinle o que mais se aproxima da sntese
corbusieriana, pela atualizao delicadssima do brise e do cobog. J o hotel
o exemplo claro da integrao, da justaposio de elementos que desejam
manter a integridade das referncias. Se no primeiro o tratamento da fachada
essencial para definir a geometria do edifcio, no segundo, a associao dos
vrios procedimentos dissolve), de certa maneira, a ateno forma. Esse pe-
queno hotel de montanha no deixa de carregar uma atitude mais literria, a-
brasileirado pela varanda e cujos detalhes construtivos so o seu maior encan-
to.
O hotel de Niemeyer em Ouro Preto entretanto um indicador da difi-
culdade desses duplos agenciamentos. Construdo em concreto e alvenaria,
segue a disposio colonial das varandas protegidas por trelias, organizadas
porm para proteger apartamentos duplex. Se Lcio resolve com mestria a a-
dequao de uma referncia vernacular a um raciocnio moderno, o hotel de
Ouro Preto padece de uma indeciso frente ao ambiente histrico em que se
encontra. O projeto seguramente representou para Niemeyer um constrangi-
mento difcil de superar. O partido colonial que deveria seguir para no rom-
per a malha da cidade era por demais estranho ao seu prprio raciocnio. Em
29
Expresso corrente para designar o grupo de arquitetos que trabalha sob a influncia de Vilanova Artigas.
10
* * *
(...) a manuteno da campina verde com seu ar buclico atual infunde respei-
to e dignidade paisagem". O projeto prev o uso rarefeito do solo, a fim de
manter seu aspecto agreste, as grandes distncias entre as torres de habitao
(1 quilmetro) e as casas sempre defendidas da viso, "com cintas de vegeta-
o em torno, assim como cercas vivas... "35.
Em Braslia, cujo projeto de 1957, Lcio segue, em seus pressupos-
tos gerais, a orientao de Corbusier quanto diviso funcional da cidade por
reas de atividade e quanto nfase no sistema de circulao. Entretanto, em
vrios depoimentos sobre a nova capital torna-se evidente que a inteno do
partido segue uma ordenao por escalas, que no responde apenas densida-
de de habitantes, mas forma de tratamento da paisagem. Como dir em outro
depoimento, tratava-se de "tcnica rodoviria" "tcnica paisagstica"36. Em
um artigo de 1960, faz o sumrio do plano: no Centro Cvico, ''a inteno ar-
quitetnica de severa dignidade, prevalecendo, em conseqncia, o seu car-
ter monumental"; o Eixo Rodovirio-Residencial, "depois do enquadramento
arborizado, ter feio recolhida e ntima, conquanto mantenha, por suas pro-
pores e tratamento arquitetnico, a compostura urbana que se impe''; no
que se refere ao cruzamento dos dois eixos - a Plataforma Comercial -, "o es-
pao foi deliberadamente concentrado e a atmosfera ser acolhedora e greg-
ria''37.
No depoimento comisso do Distrito Federal, em 1963, comenta a
maneira pela qual surge o plano de Braslia, a partir da soluo das escalas: a
escala "coletiva, monumental, foi conseguida graas generosa largueza de
espao'', e a cotidiana, "a escala do Welfare", resolvida com a criao das su-
perquadras: ''Esta idia surgiu porque havia necessidade de conciliar a escala
monumental com a cotidiana, sem que houvesse uma quebra de ritmo...". As
superquadras foram "imaginadas com o enquadramento verde (...). De modo
que esses grandes quadrados, geometricamente definidos, entrariam em har-
monia com a escala monumental38. Como explicar no relatrio do Plano Pi-
loto (1957), "as quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente defini-
das, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas,
mas sem calamento de qualquer espcie, nem meios-fios'' resguardando "o
contedo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amorteci-
do na paisagem39.
Tanto em Monlevade quanto na Barra da Tijuca, Lcio descreve o tra-
tamento paisagstico no sentido de dissolver a rea residencial, no apenas ao
nvel da viso, mas tambm em seu carter propriamente urbano, defendendo
o tratamento rstico das ruas e caladas, que deseja ver quase abolidas. Parece
interpretar em sentido "buclico", para usar sua expresso, um tema caro ao
urbanismo de Corbusier, a eliminao da rua corredor, aliada idia da sepa-
rao entre a via de pedestres e a de automveis. O carter ntimo que quer
conferir escala residencial adquire contudo um sentido diverso do projeto
35
OE, Anexo, "Plano Piloto para a Urbanizao da Baixada Compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Ser-
nambetiba e Jacarepagu", 1969 "...o que atraia irresistivelmente ali, e ainda agora at certo ponto atrai, o ar lavado
e agreste; o tamanho - as praias e dunas parecem no ter fim; e aquela sensao inusitada e se estar num mundo into-
cado, primevo. Assim, o primeiro impulso, instintivo, h de ser sempre o de impedir que se laa l o que for (...) o
problema consiste ento em encontrar a frmula que permita conciliar a urbanizao (...) com a salvaguarda (...) des-
sas peculiaridades que importa preservar". s p.
36
SA, p. 278 (1957).
37
SA, p. 306 (1961).
38
OE, Parte 4, "Depoimento Comisso do Distrito Federal", 1963, pp. 4, 5, 6.
39
SA, pp. 278 c 273 (1957).
13
42
Pedrosa, Mrio, op. cit., p. 35'.
43
Idem, p. 309.
44
SA, p. 307 (1959).
45
OE, Anexo, "O Urbanista Defende sua Capital'' (publicado primeiramente na revista Architecture, Formes, Functi-
ons, n 14, 1968, s/p).
46
SA, p. 322 (1960).
47
SA, p. 268 (1957).
15
pelo gramado que deve organizar a feio do Mall tradicional, parecem dis-
solver entretanto a perspectiva barroca. So paralelas que no se encontram ao
fim, na interseco de um grande edifcio. Ao contrrio, seu ponto de fuga pa-
rece perder-se para alm da esplanada, na paisagem que se estende por toda a
volta da cidade. Esse terraplano construdo na cota virtual do horizonte e a de-
ciso de deslocar a catedral para no impedir a vista do Eixo Monumental a-
cabam por reafirmar a imagem que Lcio d dessa cidade: "area e rodovi-
ria'', em pleno serto, que confere ao Centro Cvico muito menos a afirmao
da tcnica, sinal de progresso em um pas novo, do que o carter emblemtico
de seu isolamento diante desse "cerrado deserto e exposto a um cu imenso,
como em pleno mar"48.
Na verdade, propriamente a natureza que se mostra como a reiterada
dimenso originria, sempre inaugural. E essa presena que finalmente con-
figura o sentido prprio do Monumento. Seu desenho a linha do horizonte,
que, por ser imanente superfcie ainda virgem, por pertencer a esse mundo
em eterna alvorada, nega qualquer movimento, qualquer ponto de fuga. A li-
nha do horizonte perde assim a dimenso da profundidade. a marca da su-
perfcie e sua medida. O horizonte circular de Braslia parece abrir no o es-
pao da paisagem, mas recolher o lugar da natureza como o fundo latente da
cultura.
Desse momento em diante, a civilizao tcnica dever se constituir
numa alteridade problemtica para o projeto da arquitetura. Em Lcio, a razo
se mover retrospectivamente, na procura da transparncia da origem. H
mesmo um certo rousseauismo que talvez herdou de Corbusier. Mas impedir
a viso prospectiva no sentido da histria. A racionalidade s poder manter-
se em suspenso, forada a se dobrar sobre si mesma, sob a histria de seus Fig. 12
prprios procedimentos. De um lado, sob as ordens do clculo, nas formas de
Niemeyer, e de outro, sob os desgnios da poltica, na tcnica militante de Ar-
tigas. Mas entre arte e tcnica, abre-se uma distncia. Em Niemeyer, o dese-
nho sublima a resistncia da matria e se constri na figura, de um perfil sem
interior (figura 12). Em Artigas, o esforo da tcnica faz "cantar os pontos de
apoio''47 no vazio, no espao entre duas linhas: as grandes lajes que querem
chegar ao cho, e a superfcie que se ala na continuidade das rampas (figura
13). Na herana de Lcio Costa, o projeto de Paulo Mendes da Rocha retoma
em So Paulo a unidade tensa da modernidade. Seu desenho faz emergir a na-
tureza na presena da cultura, e contm os desgnios da poltica sob a inteno
Fig. 13
da arte. Talvez o seu projeto seja a sntese propriamente moderna. Em pleno
centro urbano, dissolve a viso contemplativa na forma reflexiva de um nti-
mo horizonte.
* * *
48
OE, Anexo, idem op.cit. (1968).