Profilaxia Psicomotora Hospitalar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

Profilaxia Psicomotora Hospitalar: Projeto Brincar Viver

- Complexificando a hospitalizao: Estabelecendo referenciais e instrumentalizando a


ao na infncia e adolescncia
(capitulo 20 do livro:Psicomotricidade Clnica. Mattos, C. (org), SP:Lovise, 2000)

Eduardo Costa1 & Henriete Mello2

O Olhar do observador em muitos momentos, braos que acolhem,


uma boca que sorri, pernas que acompanham,
uma criatura que estende a mo
Perez-Sanchez

A Profilaxia Psicomotora Hospitalar um conceito que se solidificou no decorrer


da caminhada do Projeto Brincar Viver, atravs de estudos, constataes e
depoimentos: dos sujeitos hospitalizados, pais, equipe mdica e profissionais ligados
psicomotricidade e ao contexto multiprofissional do projeto.
Tal abordagem no clssica, exceto no que h de preventivo em cada
interveno em psicomotricidade, especialmente na Educao Psicomotora, que vem
sofrendo avanos fantsticos. A Profilaxia consiste em um campo que antecede a
Educao, a Reeducao ou a Terapia, envolvendo a atuao nos primrdios da vida,
ainda na estada intra-uterina com a possibilidade de prever e identificar necessidades, que
sem o conhecimento dos discursos do corpo, passam desapercebidas. Outro foco possvel
para esta prtica a creche e suas vicissitudes. Antes que se possa pensar em estimular,
preciso oferecer um espao favorvel, um ambiente saudvel como nos diz
Winnicott, que decorre da anlise dos dilogos tnico-emocionais realizados neste espao
e de como atendem s necessidades da criana.
A profilaxia, tambm faz aliana com a clnica, podendo se instaurar num
contexto de cura, como no hospital, contudo, se ocupando das bases da espiral, ou seja,
das capacidades de ser e fazer. Um olhar/escuta para que o indivduo possa expressar-se,
a partir de suas possibilidades e desejos. Apreender o mundo e a realidade e, assim,
relacionar-se melhor com ela.

- O que o Projeto Brincar Viver?

1
Psicomotricista, titulado pela SBP; Terapeuta Corporal e Fonoaudilogo; Mestre em Cincias: Sade da
Criana - IFF/FIOCRUZ - M.S. Docente das Ps-graduaes em Psicomotricidade - UERJ, UNESA e
UVA. Coordenador do Projeto de Profilaxia Psicomotora Hospitalar: Brincar Viver - UERJ/HUPE &
INCA.
2
Psicomotricista, Psicopedagoga; Mestre em Educao - UERJ. Docente da Faculdade de Educao -
UERJ e das Ps-graduaes em Psicomotricidade da UERJ, UNESA, UVA e UCB. Coordenadora do
Projeto de Profilaxia Psicomotora Hospitalar: Brincar Viver - UERJ/HUPE & INCA.
2

O projeto Brincar Viver uma iniciativa da Faculdade de Educao da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Trata-se de um projeto de assistncia,
pesquisa e ensino, que age a partir da interface Sade/Educao, atravs da Profilaxia
Psicomotora Hospitalar, com bebs, crianas, adolescentes e seus familiares, assim como
com as equipes da instituio de sade.
Cabe refletir mais um pouco sobre os termos que compe o objetivo do trabalho:
PROFILAXIA PSICOMOTORA HOSPITALAR.
No olhar profiltico, podemos ter trs focos: Primrio, Secundrio ou Tercirio. O
primeiro, atravs da recepo do casal grvido, em suas angstias e questes sobre esse
novo lugar, que faz rever todas as relaes primitivas, preparando o terreno para a
chegada do beb, considerando as experincias fetais; o segundo, que nos mostra um
caminho para, a partir das bases de um crescimento e desenvolvimento harmnicos,
evitar a formao de sintomas, desde o nascimento. E o terceiro, que diz respeito a
manuteno e aprimoramento de possibilidades, j limitadas por alguma sintomatologia
ou risco, prevenindo sua deteriorao e a excluso, ainda maior, do sujeito. No hospital
atuamos na interface do foco secundrio e tercirio.
Por que Psicomotora?
Temos por princpio que o humano, em sua construo como sujeito, registra
tonicamente, as experincias vividas em suas interaes consigo, com o meio e os outros.
a partir de sua organizao psicotnica, psicomotora, que o indivduo estrutura as
estratgias de existir e agir no mundo (Lapierre). Isso nos permite dizer que o
desenvolvimento global do sujeito uma evoluo psicomotora, ou seja, se d atravs de
mltiplas conexes entre corpo, psiquismo, sociedade, ecologia, economia, geografia,
dentre muitos outros fios de sua complexidade, processo este, manifesto atravs do
movimento corporal.
Qual o sentido de atuar no hospital?
Esse lugar, em razo das enormes limitaes que impe para o manejo da doena,
despossui o hospitalizado de sua subjetividade, atravessando sua corporeidade e trazendo
uma dupla funo, de conteno e limitao de sua espiral de desenvolvimento. preciso
estar saudvel para agir, contudo necessrio agir para permanecer ou tornar-se saudvel.
Se o hospital no oferece sustentao (holding) e cuidados (handling), restaurando a
autonomia e potncia do sujeito, as conseqncias podem ser desastrosas, por isso,
atravs do olhar psicomotor neste espao, auxilia-se a equipe transdisciplinar a
compreender melhor os discursos no-verbais.
A iniciativa do projeto parte da premissa de que, atravs das estratgias ldicas e
da interveno pelo toque, possa-se prevenir atrasos no desenvolvimento e distores na
personalidade do sujeito hospitalizado, oferecendo a ele um espao de ao e
transformao de si e do espao hospitalar, assim como de seus integrantes.
Esse Envelopamento, a possibilidade de ser acolhido em suas angstias e
medos, leva a criana/adolescente hospitalizado, sua famlia e equipe, a uma
harmonizao de iniciativas e percepes, facilitando a melhora clnica, assim como
prevenindo alteraes substanciais do equilbrio psicossomtico.
Esta proposta tem como referncias principais:

A dissertao de mestrado em sade da criana IFF / FIOCRUZ - M.S.:


Relaes Psicomotoras do Beb Hospitalizado, fruto de pesquisa realizada nas
3

enfermarias peditricas do Instituto Fernandes Figueira (IFF) - Campo do


Projeto Psicoprofiltico Sade & Brincar, com bebs de 0 a 24 meses, pelo
Prof. Eduardo Costa;
As pesquisas de dissertao de mestrado em educao, sobre as relaes
Psicopedaggicas da criana, baseadas na teoria de desenvolvimento de Henri
Wallon, realizadas pela Prof. Henriete C. Sousa e Mello.

Dentre vrias constataes, absorvidas da prtica cotidiana, pode-se ressaltar:

As atividades ldicas so compatveis com as enfermarias peditricas, assim


como com outras instalaes do hospital;
A implantao de um setting ldico contribui para minimizar o potencial
traumtico das mudanas no ciclo vital, decorrentes da hospitalizao;
O Brincar, em si mesmo, e o toque, so capazes de reverter quadros especficos
habitualmente desencadeados pela hospitalizao, como depresso, apatia ou
agitao psicomotora, ritmias, anorexia, dentre outros;
O Brincar promove a comunicao entre acompanhantes, crianas e staff das
enfermarias, criando um espao de possibilidades e de reviso das relaes,
para todos.
A transformao e adaptao dos espaos do leito, da enfermaria e do prprio
hospital, atravs do uso da cor, texturas e volumes, auxilia na recuperao da
criana/adolescente hospitalizado e previne distores em seu
desenvolvimento.
As estratgias psicomotoras, especialmente aquelas relacionadas ao
olhar/toque e ao dilogo tnico-emocional, favorecem o resgate da
subjetividade do beb e da criana no-verbal em suas
manifestaes/discursos.
A alterao tnica desencadeada pelo olhar/toque facilita a interao e
explanao do desejo da pessoa/sujeito hospitalizado (criana e adolescente)
fazendo com que ele se aproprie e possa intervir na sua realidade.
O olhar e o toque do outro que se coloca em disponibilidade para a
criana/adolescente atua nas reaes de prestance (alteraes tnicas
oriundas da presena de estranhos ou do novo), facilitando a aceitao pelo
sujeito hospitalizado das aes do entorno, fortalecendo sua considerao
positiva de si e do outro.

Desde agosto de 1998, o projeto Brincar Viver vem realizando intervenes


sistemticas no Hospital Universitrio Pedro Ernesto e, a partir de agosto de 1999, a
convite do Instituto Nacional do Cncer, desenvolve atividades em suas enfermarias
peditricas, onde possvel verificar, mais uma vez, a abrangncia e eficcia das
estratgias em Profilaxia Psicomotora Hospitalar.
As atividades acontecem duas vezes por semana, abrindo um espao de
acolhimento tanto no setting ldico (lugar destinado ao brincar), que recebe o grupo de
crianas e adolescentes que podem se distanciar do quarto, quanto a ida aos leitos e o
acompanhamento mais particularizado, numa relao mais prxima dos responsveis e
acompanhantes.
4

Semanalmente a equipe se rene para superviso e estudos de caso, atualizando


conceitos e revendo estratgias para a ao profiltica.

Como objetivo geral, o projeto preconiza:

Contribuir para a construo de um olhar/escuta transdisciplinar, onde a


pessoa hospitalizada seja vista como singularidade complexa em seu
contexto scio-econmico-cultural, sendo capaz de comunicar-se de modo
verbal e no verbal, expressando, a todo momento, seus desejos e
necessidades. Este movimento, traz como conseqncia, a reviso dos
conceitos de Sade e Doena luz do Pensamento Complexo e aes mais
coerentes com as necessidades prprias e especficas do humano.

Como objetivos especficos, visa:

Promover nas enfermarias peditricas, sistematicamente, assim como,


eventualmente, em todo o hospital, atividades ldicas com bebs, crianas e
adolescentes, a fim de facilitar a expresso emocional e a elaborao psquica
da situao de hospitalizao;

Facilitar a espiral do desenvolvimento e prevenir os transtornos psicomotores,


atravs do brincar e do tocar;

Favorecer as interaes entre pacientes, familiares e staff das enfermarias;

Auxiliar na adaptao dos espaos e instrumentos utilizados com a criana


hospitalizada, em benefcio de suas possibilidades de compreenso e harmonia
psicomotora.

Sendo o Brincar uma linguagem natural a todas as crianas, previsto e assegurado


pelo Estatuto da Criana e do Adolescente, como direito inalienvel, justifica-se a
necessidade da implantao deste projeto, ou similares, em todas as enfermarias
peditricas, auxiliando o menor hospitalizado em seu percurso de internao e suas
elaboraes.
Desde a criao do projeto, vislumbram-se variados efeitos, todos, na direo da
retomada do lugar de prazer e de expresso do sujeito sobre a ferida narcsica e a
fragilidade psicomotora, promovidas pelo adoecimento e que so, ao mesmo tempo, suas
causas, num ciclo vicioso.
O Brincar, quebrando este ciclo, resgata a capacidade do sujeito de sentir-se vivo,
disposto a lutar em prol de algo, que no jogo, j se concretizou no instante de se
constituir, visto que a prpria ao do brincar j interativa: o encontro, o vnculo, de
que o prprio termo Brincar nos fala (Santa Roza). No exato momento em que nos
sentimos acompanhados em nossos trajetos, atendidos em nossas necessidades mais
essenciais, de sustentao e afeto, na aceitao das diferenas e das direes do viver de
5

cada um, progredimos no sentido de nossa unidade e de nossa singularidade, e podemos


nos apropriar de nossos desejos e aes.
Se a doena a expresso de um certo acordo entre o inconsciente e a realidade,
no sentido de poder suport-la, a possibilidade de contar a histria do adoecimento,
atravs do brincar, do drama, do grafismo, da palavra, enfim, de todas as possibilidades
de manifestao, oportuniza uma reorganizao somatopsquica, fundamental cura.
A trajetria de vida, interrompida pela doena, traz ao sujeito a necessidade de
tornar-se inteiro, saudvel novamente, para o encontro que justifique a sua existncia.
Os conflitos e rupturas no desenvolvimento fsico e psquico, evidenciados pela
doena e hospitalizao, trazem consigo o que se pode chamar de "sndrome da falta de
sentido", manifestada pela depresso (apatia ao meio em que vive), expresses e gestos
carregados de agresso e a extrema dependncia do outro. Destituda da coragem de
viver, a pessoa gravemente enferma sente tambm alterado o exerccio de seu poder de
escolha, a sua autonomia.
Ora, conservar este homem no seu status humano, "simultaneamente criativo e
original, concreto e livre", reafirmando a sua histria particular e nica o desafio a que
se impe este agente psicomotor.
Cada homem em sua estruturao biolgica e social passa por crises de
conscincia a diversos nveis. Os conflitos implicam sucessivas tomadas de conscincia
em nvel emocional e cognitivo.
a busca da felicidade de que nos fala Victor Emil Frankl, a busca de uma razo
para ser feliz, mesmo na adversidade, atravs da realizao concreta do significado
potencial inerente e latente numa situao dada.
preciso resgatar e transformar os sentimentos e a presena da dor, culpa e
morte, com a humildade e o reconhecimento de nossas prprias fronteiras:

1) A Dor
S a busca do sentido da vida por parte da pessoa, lhe d a capacidade de suportar
o sofrimento. O brincar, o toque e a escuta ajudam a criana e o jovem no resgate deste
sentido, em atividades representativas de seus desejos e experincias. A elaborao e a
percepo do que pode ser feito, traz criana/jovem as suas prprias respostas, o seu
modo original de lidar com a realidade. um fator de conscincia, de escolhas, de
atitudes. E essas descobertas no se limitam ao sujeito, mas so igualmente contagiantes
para quem ama, quem cuida. Tem-se como exemplo, a descoberta pela me da vida e da
sade no filho.

"Roseane (7a Talassemia) est no leito, ambas as mos esto inchadas, vermelhas e doloridas;
ela quase no as movimenta com medo de sentir dor. Conversamos um pouquinho sobre o fato
e noto que seus ps esto empurrando as barras da cama. Comento ento, que parece que seus
ps tambm esto quietinhos e, vagarosamente, fao minha mo ir at eles. De repente,
Roseane levanta as pernas. Eu rio do susto e digo que seus ps estavam s fazendo de conta que
dormiam. Novamente seus ps se paralizam e eu torno a perguntar se eles agora esto
dormindo e, novamente, Roseane, levanta as pernas bem alto e sorri. A partir da, o jogo se
repete e mais tarde ela insere uma bola de gs. Roseane, que antes no se mexia com medo da
dor, agora est transformada, seus olhos brilham e todo o seu corpo pulsa de alegria. 3

3
Psicloga Maira Ruiz - Sub-coordenadora do Projeto Brincar Viver - HUPE/UERJ: Excertos de
relatrios de atuao.
6

2) A Culpa
Sentimos culpa quando no nos apercebemos das multi-origens de um fato: na
doena, fatores biolgicos, psicolgicos e/ou sociolgicos, pelos quais nos
responsabilizamos. No caso da criana/jovem enferma, a culpa tem uma seta de duas
pontas: os pais e ela prpria. O compartilhar atravs do toque, da palavra e do olhar
(envelopamento), traz o sentimento de compreenso e ajuda na superao do sofrimento e
no caminho para o encontro da transformao e auto-mudanas de atitudes e projetos.

"Mariana (7a Leucemia) est no leito sem se mover ou falar devido uma reao ao
quimioterpico. Sua boca est cheia de feridas o que a impede de falar, sua me de vez em
quando, coloca uma gaze mida em seus lbios, pois ela prpria no consegue molh-los, seu
cabelo est cada vez mais ralo e seu corpo est coberto de hematomas. Ela est deitada meio
sonolenta e choramingando de dor. Como era seu aniversrio, levamos um bolo de massinha,
copos e garrafinhas de brinquedo, bolas de gs e alguns presentes para comemorar. Mariana
pareceu gostar. Ela colocou sua mo na minha e seus olhos pareciam mais atentos, observando
o bolo, os presentes, etc. Percebi seu polegar levantado e perguntei se ela estava conversando
conosco, novamente o polegar se fez notar e, a partir da, nossa comunicao se incrementou
com ela pedindo para que abrssemos seus presentes e, brincando de comer o bolo e
refrigerante." 3

3) A Morte
A presena da morte em processo e evidncia em si mesmo e no outro faz do
Hospital um lugar constatador da transitoriedade da vida, mas tambm lugar concreto da
valorizao da vida, dos feitos e das possibilidades. Da construo de sonhos. O
investimento na fantasia, atravs de histrias espontneas, da imaginao, sublinha os
valores morais, tipicamente humanos, que trazem de novo o sentido da vida, com o
incentivo aes responsveis, sobre si mesmo e o outro.

Pensar estas questes, implica, para o agente psicomotor, em se perceber como


"cuidador", no dizer de Leonardo Boff, possibilitando ao outro assumir seus prprios
caminhos, crescer, amadurecer, encontrar-se consigo mesmo, romper o casulo da solido.
No se trata mais de privilegiar a corrente psi ou a corrente organicista, mas a
constatao da complexidade humana e da simultaneidade dos acontecimentos que retro-
interagem entre si (Morin). Uma espiral interminvel, um fractal que se multiplica e
desvela a pluralidade e multiplicidade do homem. Simultaneamente social, motor,
psquico, econmico, religioso... este ser vive emitindo discurso em suas falas e silncios,
gestos e paralisias. E as leituras so possveis. Assim pode-se facilitar, atravs do brincar
e do toque - instrumentos privilegiados de interveno do projeto, alm do olhar e da
palavra, que sempre esto presentes, e so de fundamental importncia, o resgate da
unidade de prazer no sujeito hospitalizado.
Tais leituras, agidas no brincar, favorecem a apropriao da criana de seu
encontro fantasmtico, oportunizando uma resoluo a partir do prprio encontro no
brincar e de sua expresso. Como nos recorda Winnicott, o brincar sempre teraputico,
no tiremos dele o que lhe peculiar.
7

Levando em considerao que toda interveno tem limites, os resultados so


animadores, quando so respeitados alguns conceitos bsicos, que a Profilaxia
Psicomotora Hospitalar vem ressaltar.
A Observao, como alerta Esther Bick, em sua metodologia de observao de
bebs para a formao do psicanalista, sempre a principal base para as interaes,
especialmente aquelas que visam auxiliar o outro em sua travessia por regio to inspita
como o hospital. Reaprendendo a observar no lugar de intervir freneticamente, passa-se a
respeitar a ao espontnea do outro, ou seja, lhe devolvido o lugar de sujeito de suas
prprias manifestaes, lhe dando crdito em seus apelos e reclamaes, muitas vezes
totalmente no-verbais.
Quando citada a atividade espontnea, muitos inquirem a respeito dos limites da
interveno, do enquadre, da funo do agente profiltico brincante, como
denominado no projeto, especialmente intrigados com o laissez faire da equipe em
relao s crianas. Obviamente, no se trata de um simples deixar fazer, mas um
proporcionar um espao de ao/transformao, como nos fala Aucouturier. O Ato,
enquanto elemento fundador e instrumento do psiquismo, ainda no foi suficientemente
explorado e indagado, contudo, j existem pesquisas suficientes para referenciar a
compreenso de sua importncia para o humano em sua sobrevivncia e evoluo
singular e social. Resgatar o ato-poder, como nos diz Mendel, abrir espao para que o
desejo se torne movimento, e, por fim ato. Ato que transmuta tristeza em alegria, dio em
harmonia, dor em sorriso. Ao que transborda de existncia, e reafirma a vida a partir da
confirmao do instante, de um novo possvel.
Para permitir tal apropriao preciso romper com a tendncia que recai sobre
a equipe das instituies, que se ocupam do sofrimento humano, uma ciso, que leva os
profissionais, a partir da angstia de morte, a vrios mecanismos de defesa, que acabam
por negar as necessidades afetivas do sujeito hospitalizado, bloqueando sua resposta
emptica e fazendo com que lide com a criana de forma mecnica e distanciada,
reduzindo a assistncia ao nvel puramente fsico.
A oportunidade de participar de relaes intermediadas pelo brincar e o tocar,
leva o staff a encontrar novos modos de organizar suas angstias, sem que haja a
necessidade de um resfriamento na relao de ajuda. Tal processo converge com o
movimento de humanizao do hospital, se que esse termo venha a ser o mais exato
para o que se pretende, abrindo para a convivncia e a interdependncia entre todos que
habitam o espao hospitalar (equipe de sade, doentes e familiares).
Para realizar tal intento, se torna imprescindvel a formao de uma equipe de
agentes profilticos brincantes, multiprofissional, sintonizada com o conceito de
transdisciplinaridade, tendo como eixo terico-tcnico a Profilaxia Psicomotora
Hospitalar. Algumas habilidades devem ser desenvolvidas ao longo do exerccio de
agente profiltico, especialmente o desafio constante de compreender as estratgias
necessrias na relao de ajuda, para auxiliar e acompanhar o outro em seus processos de
transformao.
Cabe ressaltar do que se trata quando evocamos o termo transdisciplinaridade. A
busca da religao das disciplinas, aponta para a unidade mltipla que o ser humano,
visando ultrapassar as divises estanques das especialidades, a despeito de respeitar e
conservar suas especificidades, beneficiando o indivduo em busca de auxlio.
8

Para este efeito, cumpre como em qualquer prtica, estabelecer competncias que
dem conta de explicitar as aes e intervenes deste profissional que se diz agente
profiltico brincante; procura de uma identidade que o distinga de outros agentes
nesse mesmo espao.
O ofcio de brincar foi, por muito tempo, assimilado lembrana de
crianas/adolescentes sadios. Como despertar a infncia no adulto prematuro que a
doena fez surgir?
A prpria idia de estar em um hospital disponvel para brincar desperta ainda
pouco interesse para aqueles que pensam que este lugar foi feito para curar ou lamentar e
que todas as situaes devem servir para esses intentos.
Os grupos que se formam, atrados pelo brincar nos hospitais, precisam de
referenciais para avaliar os seus fazeres e afazeres. Neste sentido as competncias surgem
como vias de acesso, fio condutor para uma ao coerente e que nos faz distinguir de
outros profissionais (e no-profissionais) voluntrios, por ter uma unidade, embora no
pretenda dar conta de todas as competncias possveis no ato de permitir o toque, o olhar,
o brincar, contextualizando e favorecendo a transformao da tonicidade do sujeito .
Utiliza-se o referencial de competncias adotado por Philippe Perrenoud em
relao ao ofcio do professor e as novas tendncias polticas e filosficas em sade e
educao. Acentua-se aquelas hoje julgadas prioritrias para o papel do agente profiltico
brincante com a sua formao contnua e interao com a equipe de sade, de forma
transdisciplinar.
A cada competncia principal associam-se competncias mais especficas, que
poderiam, cada uma delas, ser desmembrada em outras tantas, visto que possvel propor
outros reagrupamentos. desejvel a ampliao das competncias e at mesmo a criao
de outras, pois isso significa reflexo, trabalho de conscincia sobre si mesmo e
construo de novos caminhos, o que remete formao contnua deste agente
psicomotor. a forma de estar preparado para a prestao de contas junto a ao
profissional, que ali vivenciada.
Por ltimo, para que as competncias cumpram realmente sua funo necessrio
compartilhar seus referenciais com outros profissionais, auxiliando assim a uma viso
clara da filosofia psicomotora no contexto hospitalar e a construo de uma identidade
coletiva, atravs de aes coerentes e interligadas.
9

Competncias Bsicas: Competncias Especficas:

1- Organizar e acompanhar situaes a) Reconhecer formas diferentes de


ldicas no setting e leitos: utilizao de objetos, espao e tempo,
numa proposta ldica;
b) Reconhecer, valorizando
positivamente, as representaes da
criana/jovem enfermo atravs do
brincar e do toque;
c) Acompanhar seqncias ldicas.

2- Criar organizao de trabalho e dos a) Administrar a heterogeneidade das


dispositivos ldicos (objetos brincantes - crianas/jovens enfermos no mbito
passveis de serem ou de se do setting ldico;
transformarem em brinquedos): b) Ampliar o setting ldico para outros
espaos da enfermaria (leitos,
corredores, etc.);
c) Fornecer apoio integrado a
criana/jovem enfermo, portadores
de grandes dificuldades e/ou
impossibilidades motoras e
perceptivas;
d) Desenvolver a cooperao entre as
crianas/jovens enfermos durante
diversas manifestaes ldicas.

a) Estabelecer a relao terica e


3 - Envolver as crianas/jovens enfermas
prtica das bases da profilaxia
em situaes de ludicidade e ao:
psicomotora hospitalar e a atividade
ldica;
b) Observar e avaliar a criana/jovem
enfermo.

4 - Trabalhar em Equipe a) Suscitar o desejo de brincar,


explicitando a relao ldico-
hospitalar e familiar na
criana/jovem enfermo;
b) Elaborar em equipe, projetos de
ocupao ldica da enfermaria
peditrica, com base em
10

b) Elaborar em equipe, projetos de


ocupao ldica da enfermaria
peditrica, a partir de conceitos
universais ao grupo sobre as bases
da profilaxia psicomotora em Sade e
Educao.

a) Administrar os recursos do setting


5 - Participar da Administrao dos ldico e enfermaria, visando o
recursos materiais e humanos enriquecimento da atividade ldica e
disponveis no setting ldico e momentos privilegiados ao toque na
enfermaria criana/jovem enfermo.

a) Dirigir e/ou participar de reunies de


informao e debates sobre o projeto
Brincar Viver;
6 - Informar e envolver o staff da b) Fazer e/ou responder a entrevistas
enfermaria peditrica e pais acerca do projeto Brincar Viver;
c) Envolver o staff e pais na
construo e afirmao do brincar na
criana/jovem enfermo.
d) Acompanhar, quando necessrio ou
solicitado, a criana/jovem enfermo
em procedimentos dolorosos
(punes, exames, etc.), atravs do
toque e/ou da palavra

a) Explorar as potencialidades ldicas


7 - Utilizar novas tecnologias
de ferramentas multimdia no setting
ldico;

8 - Posicionar-se ante as questes ticas


a) Perceber, repensar e transformar os
preconceitos, as discriminaes e as
inerentes ao Agente Profiltico
representaes sociais sobre o
Brincante
brincar e o tocar;
b) Analisar a relao do brincar, a
autoridade e a comunicao no
setting ldico e nas enfermarias
peditricas;
c) Desenvolver senso de ludicidade,
responsabilidade e solidariedade em
equipe.
11

a) Saber referir-se as suas prprias


prticas ldicas, (oralmente ou por
9 - Compromissar-se com a sua prpria escrito);
formao de Agente Profiltico b) Estabelecer programa pessoal de
Brincante estudo a partir de sua prtica
corporal;
c) Envolver-se em tarefas diferenciadas
que envolvam o brincar e o toque
(mltiplas experincias);
d) Acolher a formao de outros colegas
Agentes Profilticos Brincantes,
participando e transformando o
prprio saber.

Referncias Bibliogrficas:

AUCOUTURIER, B., 1996. A Psicomotricidade, um conceito de maturao, de


prticas, um sistema de atitudes - Marburg:[mmeo].
_________________, 1997. Apostila da Formao em Prtica de Ajuda Psicomotora
grupo I mdulo II. Rio de Janeiro: Espao Nctar [mmeo].
BOFF, L., 1999. Saber Cuidar: tica do humano - compaixo pela terra. Petrpolis:
Vozes.
COSTA, E., 1998. Relaes Psicomotoras do Beb Hospitalizado: Dissertao de mestrado
- Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira/Fundao Oswaldo Cruz [mmeo].
FRANKL, V., 1990. A questo do sentido em psicoterapia So Paulo: Papirus editora.
LAPIERRE, A. & LAPIERRE, A., 1982. El adulto frente al nio de 0 a 3 aos -
Barcelona: Editorial Cientfico - mdica.
12

_____________ , 1997. Psicanlise e Anlise Corporal da Relao - Semelhanas e


Diferenas - So Paulo: Editora Lovise.
LOVISARO, M., 1999. Educao Psicomotora na Pr-Escola: Guia Prtico de Preveno
das Dificuldades da Aprendizagem - Rio de Janeiro: Moderno.
MELLO, H., 1986. Psicologia e Pedagogia: Implicaes Pedaggicas na Teoria de Henri
Wallon - Dissertao de Mestrado - Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro [mmeo].
MENDEL, G.,1993. La psychanalyse revisite - Paris XIII: Ed. La Dcouverte.
MORIN, E., 1989. Novas Fronteiras da Cincia. In: Idias Contemporneas - Entrevistas
do Le Monde - So Paulo: Editora tica.
_________, 1990. Cincia com Conscincia - Portugal: Publicaes Europa-Amrica.
PERRENOUD, P., 2000. Novas competncias para ensinar - Porto Alegre: Artes Mdicas.
SANTA ROZA, E., 1993. Quando brincar dizer: a experincia psicanaltica na infncia
- Rio de janeiro: Relume Dumar.
_______________& REIS, E., 1997. Da anlise na infncia ao infantil na anlise - Rio de
Janeiro: Contra Capa.
WALLON, H., 1964. Les origines du caractre chez l'enfant. In: Le prludes du sentiment
de personnalit - Paris: Press Universitaires de France.
WINNICOTT, D. W., 1975, O Brincar e a Realidade - Rio de Janeiro: Imago.
__________________ 1990. O ambiente e os processos de maturao: estudos sobre a
teoria do desenvolvimento emocional - Porto Alegre: Artes Mdicas.

Você também pode gostar