A Gravura No Brasil No Século XX

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A gravura no Brasil no sculo XX

Marcus de Lontra Costa

A disciplina e os compromissos com o ensino que acompanham a tcnica da gravura fazem dela
um verdadeiro celeiro de propostas conceituais e pesquisas estticas algumas vezes desprezadas
pelo olhar apressado. A gravura uma tcnica intimista que exige tempo e dedicao; a beleza de
suas imagens revela-se lentamente, como um pequeno universo que aos poucos nos invade e seduz.

"Pierrot", 1914, Gravura em Metal. Carlos Oswald.

Aps a atividade pioneira de Carlos Oswald, a gravura moderna surge na dcada de 20, atravs da
via expressionista, com as obras de Lasar Segall e, posteriormente, de Oswaldo Goeldi. Segall
sempre pautou seu tema em torno da figura humana. Sempre comprometido com o drama da
existncia humana, realizou imagens contundentes e de grande fora trgica. Goeldi, por outro lado,
invadiu a angstia intrnseca do ser humano. A solido, a noite, os rejeitados, os animais entoam
uma estranha cano nostlgica e natural. Em meio ao trpico, ao delrio, exuberncia, Goeldi faz
do exerccio da xilogravura uma revelao dos aspectos sombrios do ser humano.
"A tarde", xilogravura, Oswaldo Goeldi.

Nos anos 30, uma poca de grande turbulncia poltica, tanto nacional quanto internacional, a
gravura caracteriza-se como principal tcnica para os artistas interessados na veiculao de imagens
denunciadoras da opresso.

"Espanha", xilogravura, Livio Abramo.

Ao contrrio dos pintores, os artistas gravadores no abandonaram suas relaes com a ilustrao. A
grande maioria das imagens produzidas pela gravura tem como tema o homem, o seu tempo, a sua
luta, a sua vida. Por essa ligao com a poltica e com a literatura, a gravura sempre trabalhou como
uma espcie de sntese entre a palavra e a imagem. Num pas sem tradio visual como o Brasil, a
gravura foi e de extrema importncia: ela aproxima a literatura das artes plsticas, ela recusa essa
espcie de pedantismo pseudo-intelectualizado que faz da arte prisioneira das teorias filosficas e a
recoloca na vida diria e cotidiana das pessoas. A gravura fala da gravura, fala da arte, mas no se
envergonha de falar sobre o seu pas, sobre o homem, sobre a realidade. A gravura a arte da luta. A
presena de artistas estrangeiros, em especial da alem Kate Kollwitz, acaba por definir o perfil
esttico e conceitual da gravura moderna brasileira. Destaca-se nesse momento Lvio Abramo, em
especial com a srie Espanha, realizada entre 1936 e 1939, e que sintetiza a formao desse artista
que soube reunir e criar imagens de grande contundncia aliando-as a um ritmo construtivo de
profundo rigor e beleza. Em Abramo no existem concesses: a simplicidade de suas composies
o caminho para revelar uma obra de grande densidade e sofisticao, em especial na xilogravura.

"Mulheres errantes", 1919, xilogravura. Lasar Segall.

Com o agravamento da situao poltica (ascenso do nazi-fascismo na Europa e a implantao do


Estado Novo entre ns), a arte moderna acentua seus componentes polticos. o momento do
surgimento de Portinari, sntese dessa relao. A exploso da Segunda Guerra Mundial fez chegar
ao Brasil diversos artistas que aqui buscavam refgio das perseguies raciais e polticas. No
mbito da gravura destaca-se o nome de Axl Lescoschek que realizou inmeras ilustraes,
conforme anota Roberto Pontual (em texto publicado no site de gravura brasileira em maio de
2001), "xilogravuras de pequena dimenso onde se fundem expressionismo, surrealismo e realismo,
e nas quais se pode encontrar curioso paralelo com as gravuras que acompanham os nossos livretos
de cordel" (muito difundido no norte e nordeste, so pequenas estrias publicadas em papis
simples, sendo a capa ilustrada com xilogravuras cotidiano, lendas, poltica, folclore, so alguns
dos temas trabalhados). Nesta poca surgem nomes de destaque ainda hoje na arte brasileira: Fayga
Ostrower, Edith Behring, Renina Katz, Almir Mavignier e Ivan Serpa.
"sem ttulo", Gravura de Edith Bhering.

Sobre a gravura brasileira dos anos 40, Renina Katz sintetizou em depoimento a Roberto Pontual
(jornal do Brasil, 23/12/77): "Os anos 40 levam muito em conta as artes grficas. A pintura e a
escultura ainda prevaleciam como representantes da grande arte (...). A gravura no tinha prestgio
bastante. Artistas de peso como Goeldi, Lvio Abramo e Carlos Oswald no sensibilizavam o
pblico e os colecionadores. A coragem dos mestres gravadores em insistir na formao de uma
gerao, em poca to hostil, pode ser considerada ato de bravura e de f." Cita-se aqui, ainda, a
presena no Brasil entre 1942 e 1947, de Maria Helena Vieira da Silva. Em torno dela passou-se a
reunir um grupo de artistas que acabaria por lanar as bases da abstrao entre ns.

"sem ttulo", gravura, Renina Katz.

A dcada de 40, marcada pela guerra, constituiu-se numa espcie de laboratrio de formao dos
grandes acontecimentos artsticos que caracterizaram a dcada seguinte e que ainda hoje marca o
mais rico perodo da arte moderna no Brasil. A forte influncia expressionista no Rio Grande do Sul
justifica a ao de Carlos Scliar e Iber Camargo, artistas maiores na arte brasileira. Tambm o
paranaense Poty Lazzarotto, com imagens da vida urbana cotidiana acrescida de um certo lirismo e
que ministrou cursos de gravura em diversas capitais do Brasil, ajudando assim a expandir as aes
da tcnica.

"Estrutura em movimento", gravura em metal, Iber Camargo.

Com o final da Segunda Grande Guerra, as vanguardas abstratas retomam seu lugar de destaque no
cenrio artstico. No Brasil, a burguesia d incio a um processo de modernizao do circuito
artstico. A criao dos Museus de Arte Moderna de So Paulo e do Rio de Janeiro fundamental
nesse processo. Atravs deles e da Bienal de So Paulo, cuja inaugurao em 1951 reuniu obras que
sintetizam todo o movimento modernista, deu-se incio a grande disputa que pautou a dcada de 50:
os movimentos abstracionistas versus a arte realista, de carter poltico e social. Nesse embate a
gravura teve um importante papel. O artista gravador perseguia a profissionalizao e desenvolvia
trabalhos junto imprensa, propaganda, ao mercado editorial. Os custos inerentes tcnica faziam
dele um ser mais preocupado com aspectos cotidianos do que com discusses que seduziam adeptos
do concretismo, quase todos pintores ou escultores. A gravura uma tcnica artesanal; um
trabalho complexo. Para ser um gravador indispensvel dominar todo o processo, que envolve
vrias etapas e nenhuma pode ser eliminada. Em outras palavras: no pode haver um gravador
aficcionado, gravador de "domingos", que ocasionalmente realize umas gravuras em suas horas
livres. Pelas prprias imposies da tcnica, o gravador est obrigado a profissionalizar-se ou, pelo
menos, a dedicar-se ao trabalho durante perodos longos e contnuos. O mundo que vivia a
excitao provocada pelo final da guerra tambm enfrentava a realidade da Guerra Fria entre "as
naes democrticas e os pases da Cortina de Ferro", conforme frisou Churchill em 1948. Surge a
bomba atmica. Na defesa da paz, diversos artistas organizaram-se em defesa da vida. No Brasil, os
gravadores fiis s suas tradies e s suas origens expressionistas criaram obras de grande
qualidade esttica, pautadas pelo rigor da tcnica do desenho e permeadas de humanismo,
retratando tanto valores universais quanto situaes do cotidiano do trabalhador brasileiro. O
objetivo era valorizar os aspectos nacionalistas, democratizar o acesso informaes artsticas e
conscientizar a populao sobre os perigos de um mundo dominado por um sistema econmico que,
em nome de uma suposta modernidade, mantinha dois teros da populao do planeta na mais
ampla misria. A sntese dessa filosofia foi a criao dos Clubes de Gravura de Bag e Porto
Alegre, que se espalharam por todo o pas. Diversos artistas utilizavam-se da gravura para
desenvolver um amplo trabalho cujo resultado ultrapassava os limites estreitos do meio artstico.
Sob a liderana de Carlos Scliar, recm chegado da Europa, os clubes de gravura formam um
instrumento eficaz da ao e divulgao da arte no Brasil. Nome como os de Glauco Rodrigues,
Danbio Gonalves, Glnio Bianchetti, no Rio Grande do Sul, e Renina Katz em So Paulo,
tornaram-se conhecidos nacionalmente graas eficcia das suas aes. Durante a dcada de 50, o
Rio de Janeiro destacou-se como principal centro gerador da produo de gravura em nosso pas. A
presena de Oswald Goeldi, Iber Camargo e Lvio Abramo na ento capital federal serviu como
fator aglutinador. Diversos gravadores vieram para temporadas de estudos no Rio.

"A criao: ado e eva", xilogravura, Gilvan Samico.


importante notar que, a partir dos anos 50, a gravura de origem expressionista, originria do sul e
sudeste, passa a dialogar com a produo nordestina, de forte influncia popular, em especial as
xilogravuras de literatura de cordel. Destaca-se Gilvan Samico por sua capacidade de sintetizar o
esprito de construo modernista com a cultura tradicional nordestina. Suas gravuras constituem
um dos mais significativos exemplos da arte brasileira, sua produo atemporal e recusa
fronteiras. Ela mergulha na mstica, na simbologia, na religiosidade popular. Cada gravura de
Samico uma demonstrao da capacidade da arte de comentar o universal sem abandonar o
individual. Na Segunda metade da dcada de 50, a produo de gravura em So Paulo passou a se
destacar, graas a Lvio Abramo, Renina Katz e Marcelo Grassmann. Este ltimo, com uma obra de
profunda dramaticidade, povoada por homens e animais que atuam como verdadeiros arqutipos
das foras antagnicas, da Vida e da Morte. Nesse momento ainda, a gravura amplia suas aes:
alm dos compromissos com a ilustrao, com a denncia, com o papel social da arte, ela passa a
buscar uma integrao com a arquitetura, com a ambientao, com o espao de convvio. Esse o
caso de Maria Bonomi que desenvolveu na xilogravura imagens de grandes dimenses de
extraordinria beleza que se destacam no cenrio da arte moderna do Brasil.

"5823", xilogravura, 1958. Fayga Ostrower.

A valorizao da gravura brasileira nos anos 50 deve-se principalmente Fayga Ostrower, pioneira
da abstrao. preciso tcnica, Fayga sempre soube aliar uma profunda compreenso do espao
moderno. Suas manchas de cor articula-se para a criao de um discurso extremamente sofisticado
onde as formas dialogam orientadas por uma slida base terica. O ateli de Gravura do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro marca o momento ureo da gravura brasileira: final da dcada de
50 e incio dos anos 60. Johnny Friedlander, que j havia sido professor de Arthur Luiz Piza, Flvio
Shir, Edith Behring e Srvulo Esmeraldo em Paris, transfere-se para o Rio de Janeiro. Foi a
primeira experincia de oficina planejada para a gravura e graas a ela que a gravura em metal
atinge sua maturidade, equiparando-se em nvel tcnico e experimental com a xilogravura, cujo
principal centro passa a ser o Estdio Gravura, comandado por Abramo e Bonomi em So Paulo.
No Rio, Rossini Perez, Roberto De Lamonica e Anna Letycia destacam-se como jovens
professores.

"Tatus", gravura em metal, 1961. Anna Letycia.

Com a influncia da Pop Art no Brasil a gravura passa a merecer destaque ainda maior. As imagens
impressas constituem elemento fundamental para o conceito Pop. O destaque nesse momento
Anna Bella Geiger, aluna de Fayga Ostrower, que d continuidade s pesquisas e mergulha numa
fase orgnica para, posteriormente, dentro dos postulados de superao do movimento
neoconcretista, fazer da sua ao resultado da experimentao baseada no conceito e no na prtica
artesanal. Ana Bella soube dessacralizar a gravura e a sua influncia ainda visvel hoje nos jovens
gravadores do Rio de Janeiro.

"sem ttulo", 1966, xilogravura. Anna Bella Geiger.


Nesse momento, a litografia, tcnica usual para impresso de rtulos comerciais durante o sculo
XX, e a serigrafia, ideal para estamparia, passam a adquirir a aura artstica graas ao trabalho do
sergrafo Dionsio Del Santo e aos trabalhos de Darel Valena com a litografia, tcnica que iria
desenvolver-se em So Paulo com a presena de Octvio Pereira.

Ilustrao para poema, gravura, Darel.

Para alguns artistas, somente a xilo e o metal constituem tcnicas de gravura, j que as matrizes so
entalhadas e os sulcos causados pelas goivas, pela ponta-seca ou pela ao de cidos corrosivos
fazem com que a impresso se d atravs do negativo e da inverso. Tanto a litografia quanto o silk-
screen e mais ainda, a monotipia so, na verdade, grafias sobre o suporte. Nos anos 70, os jovens
artistas direcionavam suas pesquisas para a descoberta de suportes no tradicionais. As tcnicas de
reproduo foram incorporadas ao mercado de arte, interessado to somente em editar imagens de
artistas consagrados, viabilizando a sua aquisio por um preo mais acessvel. Num pas sem
tradio deu-se o domnio da malandragem: imagens de baixa qualidade e sem nenhum valor
artstico passaram a seduzir uma pequena burguesia enriquecida interessada em adquirir somente as
assinaturas. Uma grande parte da produo de gravura desse perodo nada mais que cpia mal
feita de imagens pictricas. Os verdadeiros artistas gravadores refugiam-se em pequenos ncleos de
resistncia e se dedicam ao ensino da tcnica para as novas geraes. o caso de Evandro Carlos
Jardim em So Paulo e de Anna Letycia no Rio de Janeiro, que determinaram os pilares da nova
produo da gravura surgida no final da dcada de 70 e incio da de 80.

"Estras irregulares sobre o vidro fantasia brilhante", Evandro Carlos Jardim.

Nos anos 80 a valorizao das aes artesanais fez da gravura uma importante tcnica de veiculao
de imagens. J a partir da dcada de 90, a produo da gravura foi variada e se espalhou por todo o
pas.

http://www.opapeldaarte.com.br/historia-da-gravura-no-brasil/

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