Literatrura Comparada e Estudos Culturais

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LITERATURA COMPARADA HOJE: estudar literatura brasileira

estudar literatura comparada?


Edgar Czar Nolasco1
Tanto a literatura comparada quanto os estudos culturais e mais
especificamente a crtica cultural no se definem mais como campos
disciplinares definidos e estveis. Teorias sin disciplina [...] poderia ser uma
das sadas para a complexa discusso sobre o campo disciplinar
contemporneo.
Eneida Maria de Souza. Tempo de ps-crtica, p. 151.

Se a assertiva do mestre Antonio Candido procede, e quanto a isso parece


haver um consenso crtico, ento podemos dizer, por conseguinte, que a questo
da dependncia cultural foi e continua sendo, pelo menos em parte, uma pedra no
meio do caminho da crtica brasileira.
Como a literatura comparada sempre esteve atrelada a uma inter-relao
entre literaturas e culturas, interessa-nos indagar de que forma ela contribuiu para
a resoluo da problemtica da dependncia no Brasil e, ao mesmo tempo,
sinalizar o papel e importncia da disciplina no sculo XXI, no contexto da crtica
brasileira.
Para tanto, talvez convenha-nos comear por lembrar de uma conceituao
do que se entendeu por literatura comparada no sculo XX. Ficamos com a
definio proposta por Pichois e Rousseau, no livro A literatura comparada
(1967), que, de acordo com Leyla Perrone-Moiss, funciona como uma sntese
de muitas outras anteriores:

Edgar Czar Nolasco professor da UFMS.

A literatura comparada a arte metdica, pela busca de ligaes de analogia, de


parentesco e de influncia, de aproximar a literatura dos outros domnios da expresso
ou do conhecimento, ou ento os fatos e os textos literrios entre eles, distantes ou no
no tempo e no espao, contanto que eles pertenam a vrias lnguas ou vrias culturas
participando de uma mesma tradio, a fim de melhor descrev-los, compreend-los e
apreci-los.2

Com base na passagem acima, mas pensando objetivamente na prtica da


literatura comparada no Brasil, podemos dizer que os estudos comparados
contriburam, a seu modo, para a questo da dependncia cultural, uma vez que
esta considerada como derivao do atraso e da falta de desenvolvimento
econmico.3 Tornam-se ainda mais prximos os estudos comparados e os da
dependncia cultural quando se constata que ambos partem da discusso em torno
da influncia, palavra esta que est na origem da prpria literatura comparada.
Antonio Candido, no ensaio Literatura e subdesenvolvimento, onde discute com
propriedade sobre a problemtica da dependncia cultural no Brasil e na Amrica
Latina, j advertia: um problema que vem rondando este ensaio e lucra em ser
discutido luz da dependncia causada pelo atraso cultural o das influncias de
vrio tipo, boas e ms, inevitveis e desnecessrias.4
Convm abrirmos um parntese aqui para reiterar que questes como
dependncia cultural e influncia(origem), por exemplo, podem estar mesmo
completamente resolvidas tanto no plano da cultura quanto no plano artstico,
quando se pensa no contexto cultural brasileiro. Alis, e bom que se diga, a
crtica subseqente s dcadas de 50 e 60 no fez outra coisa seno gastar tinta e
papel na resoluo e compreenso dessas questes culturais, entre outras. A forma
meio cronolgica como os crticos e seus respectivos ensaios forem aparecendo
neste texto testemunha a preocupao crescente em torno do assunto, destacandose, por conseguinte, o tpico da dependncia cultural. Se hoje, incio do sculo
XXI, voltamos nessa pgina da crtica que, no s aparentemente, est bem
resolvida, porque entendemos que muitas das convices, suspeitas e afirmaes
crticas feitas ali, a exemplo do que diz Antonio Candido em A formao da
literatura brasileira, servem-nos para formular outras perguntas a respeito do
2

Apud PERRONE-MOISS. Flores da escrivaninha, p. 92.

CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 156.

CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 151.

papel e lugar da literatura brasileira/comparada no mundo contemporneo. Nesse


sentido, tinha razo o crtico que dissera que a crtica cresce por digresso. Nosso
desvio se resume em pontuar (conforme este breve ensaio permite) o que a crtica
j disse sobre o assunto aqui em pauta (que se resume na assertiva de Candido de
que estudar literatura brasileira estudar literatura comparada, considerando
que lemos a imbricado a questo da dependncia cultural brasileira) para, como j
sinalizamos, no s sabermos o lugar da literatura brasileira/comparada, mas qual
a melhor forma de articul-la criticamente dentro do contexto cultural ( e poltico)
vigente.
Justifica-se a relao comparativista entre a literatura brasileira/comparada e
a dependncia cultural o que Candido dizia j no prefcio de Formao da
Literatura Brasileira, a nossa literatura galho secundrio da portuguesa,5 e em
Literatura e subdesenvolvimento, as nossas literaturas latino-americanas [...]
so basicamente galhos das metropolitanas,6 para voltarmos a uma sntese
conclusiva tambm encontrada no Prefcio: comparada s grandes, a nossa
literatura pobre e fraca. Mas ela, no outra, que nos exprime.7 escusado
dizer que tudo isso j foi revisado criticamente e at mesmo virado do avesso,
como fizeram, por exemplo, os ensaios crticos de Silviano Santiago e Roberto
Schwarz, aos quais chegaremos depois. Coube aos ensaios subseqentes aos
desses dois crticos o papel no s de estender o que ambos propuseram, mesmo
que por diferentes vertentes, como tambm, e principalmente, avanar aquela
leitura inicial (a de Candido, entre outras) no tocante ao seu carter dialtico,
binrio par excellence. Nesse particular, registre-se que os ensaios de Santiago e
de Schwarz encontram-se a meio caminho do fogo cruzado do dualismo, podendo
ser justificado pelo contexto crtico-cultural e o fato de os ensaios serem datados
historicamente. Logo, e considerando que aquela visada dualista j foi resolvida
pela crtica mais contempornea (Souza, Gomes, Cunha, entre outros), alis, a
que se centra o forte da crtica de depois de 90 no Brasil, destacamos e voltamos
s proposies de Candido por entendermos que sobressaem dali perguntas que
podem mediar os debates atuais envoltos literatura comparada hoje.
5

CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 9.

CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 151.

CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 10.

Se a literatura comparada, como queriam Pichois e Rosseau, a arte


metdica, pela busca de laos de analogia, de parentesco e de influncia, ao
pensarmos hoje o mundo arbreo de Candido, podemos nos perguntar: at que
ponto os estudos comparados brasileiro e latino-americano contriburam para
desfazer aquele rano histrico-crtico subalterno que dormitava na melhor crtica
da poca? Se comparada s grandes literaturas, a nossa literatura era pobre e
fraca, como afirmava o crtico brasileiro, e se mesmo assim era ela que nos
exprimia como nao, ento tambm podemos nos perguntar agora como a
literatura comparada ajudou-nos a compreender o atraso cultural implcito na fala
de Candido e a resolver o descompasso subalterno de uma visada comparatista
presa aos parentescos e s influncias? Ressalvadas todas as diferenas que
possam haver, hoje podemos dizer que no acreditamos mais sequer na
possibilidade de a literatura brasileira nos exprimir, isto , representar sua nao,
posto que, de l para c, as diferenas sociais e culturais grassaram em
propores inimaginveis por todos os cantos do pas. Alis, fica explcito na
Formao um conceito de literatura que no corresponderia mais s diferenas em
todos os sentidos que pululam dentro da sociedade injusta e sumariamente
excludente que impera no pas. Nesse sentido, s vezes temos a impresso de que
a disciplina literatura comparada corroborou o problema na medida que no
deixou de primar por conceitos estticos elitistas e hegemnicos, como o prprio
conceito de texto. Queremos entender que no se passou um cinqentenrio em
vo, desde as afirmativas do mestre Candido; e a crtica subseqente tratou de
avanar com relao s suas lies, como j dissemos. Mas o que no se pode
mais hoje repetir exausto toda a crtica anterior como se ela servisse em sua
integralidade para pensar o tempo presente. Voltar a ela, rediscutir sua lio
primeira, pode ser uma forma de manter aquela crtica em ao. Repetir por
repetir, puro e simplesmente, pode contribuir para o seu letal esquecimento. O
mesmo, entendemos, vale para comparar hoje: comparar por comparar pode no
passar de uma ao incua e estril. Agora quando se compara em todos os
sentidos possveis, respeitando as diferenas e os contextos, inclusive no modo de
tomar os textos crticos do passado, comparar uma ao poltica do crtico.
O conceito de literatura comparada aqui destacado encontra respaldo nas
afirmaes de Antonio Candido. Quando o crtico brasileiro frisa que nossa
literatura ramo da portuguesa, no deixa de prend-la a uma mesma tradio
literria. Instaura-se a a idia de parentesco, influncia, semelhana e filiao,
conforme se l no conceito destacado. Nesse sentido, concordamos com Tania

Franco Carvalhal que discorda da definio de Pichois e Rousseau que no leva


em conta as diferenas. Diz Carvalhal: ao aproximar elementos parecidos ou
idnticos e s lidando com eles, o comparativista perde de vista a determinao da
peculiaridade de cada autor ou texto e os procedimentos criativos que
caracterizam a interao entre eles.8 Lembramos que, em Uma literatura
empenhada, Candido reiterava que o problema da autonomia, da definio do
momento e motivos que distinguiam a literatura brasileira da portuguesa era algo
superado.9 Exatamente a nesse ponto, ele volta a repetir que nossa literatura
ramo da portuguesa, fala em no negar a dvida aos pais e chega a pensar na
expresso literatura comum para pensar as duas literaturas. Bem, da sobressai
uma primeira questo: se estudar literatura brasileira estudar literatura
comparada, logo estudar literatura brasileira equivale a no negar a dvida? Numa
perspectiva comparatista, no negar a dvida corresponde a detectar as
semelhanas ou as diferenas entre as literaturas? Todavia cabe-nos uma outra
pergunta: o mundo da floresta tropical dos galhos, ramos e jardim das Musas no
emaranha a relao das comparaes, pondo sempre numa segunda ordem aquela
literatura que veio depois? curioso observar que quando Candido diz que sua
ateno se volta para o incio de uma literatura propriamente dita, diz tambm
que elas (a portuguesa e a brasileira) se unem to intimamente, a ponto de ele usar
a expresso literatura comum. Ressalvadas as diferenas, podemos dizer que o
termo literatura comum pode ser comparado ao termo literatura geral de
Goethe, j que este termo, segundo Wellek e Warren, indica um tempo em que
todas as literaturas se tornariam uma. o ideal da unificao de todas as
literaturas em uma grande sntese, em que cada nao desempenharia a sua parte
em um concerto universal.10 Tambm no deixa de lembrar a idia de literatura
geral de Paul Van Tieghen, para quem literatura geral era diferente de
literatura comparada, ficando esta ao estudo das inter-relaes entre duas ou
mais literaturas.11 O termo de Candido fica muito prximo tambm do que
postularam Wellek e Warren, que no viam uma distino vlida quando o
8

CARVALHAL. Literatura comparada, p. 31.

Cf CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 28.

10

WELLEK & WARREN. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literrios, p. 50.

11

Cf WELLEK & WARREN. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literrios, p. 51.

assunto era influncia literria. Cuidadoso quanto ao problema das influncias e a


crtica, Candido advertia que nunca se sabe se as influncias apontadas so
significativas ou principais, pois h sempre as que no se manifestam
visivelmente, sem contar as possveis fontes ignoradas (autores desconhecidos,
sugestes fugazes), que por vezes sobrelevam as mais evidentes.12 E conclua:
todos sabem que cada gerao descobre e inventa o seu Gngora, o seu Stendhal,
o seu Dostoievski.13 Wellek e Warren, no balano que fazem entre literatura
geral e literatura comparada, optam apenas por literatura, j que evidente a
falsidade da idia de uma literatura nacional fechada em si mesma. Aqui, de
nosso ponto de vista, reside toda a lio do comparatista Antonio Candido.
Ressalvadas as diferenas, vemos uma aproximao entre o termo literatura
comum de Candido e o termo cultura comum ou cultura em comum, de
Raymond Williams, que faz toda a diferena no modo do crtico gals no s
propor os Estudos Culturais, como tambm no modo de ler criticamente tais
estudos na cultura. Nesse sentido, o que diz Maria Elisa Cevasco esclarecedor:
uma cultura em comum seria aquela continuamente redefinida pela prtica de todos os
seus membros, e no uma na qual o que tem valor cultural produzido por poucos e
vivido passivamente pela maioria. Trata-se de uma viso de cultura inseparvel de uma
viso de mudana social radical e que exige uma tica de responsabilidade comum,
participao democrtica de todos em todos os nveis da vida social e acesso igualitrio
s formas e meios de criao cultural.14

Numa perspectiva comparativista, o que estamos apenas postulando aqui


seria o fato de que, em sendo o livro Formao da literatura brasileira um livro
de crtica, mas escrito do ponto de vista histrico,15 esse livro de Candido poder
ser lido, por conseguinte, como um livro sobre a cultura e a sociedade brasileiras,
podendo, inclusive, ser pensada a rubrica Formao da cultura brasileira.
Parafraseando o prprio Candido, no final do primeiro captulo Literatura como
sistema, diramos que seu livro constitui uma histria dos brasileiros no seu

12

CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 36.

13

CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 37.

14

CEVASCO. Dez lies sobre estudos culturais, p. 139.

15

CANDIDO. Formao da literatura brasileira, p. 24.

desejo de ter uma cultura.16 Se considerarmos, hoje, que em Formao da


literatura brasileira, Candido faz uma revisitao crtica da prpria crtica
brasileira, e se considerarmos tambm que a literatura comparada no se prende
mais ideia de linhagem, influncia e parentescos, ento podemos dizer que os
estudos comparados contriburam significativamente para a realizao do desejo
do povo brasileiro quanto a ter uma literatura e uma cultura prprias. Nesse
sentido, talvez a melhor contribuio crtica de Candido estivesse mesmo no
mtodo empregado por ele de rediscutir a prpria crtica brasileira. No temos
dvida de que essa lio foi aprendida e apreendida devidamente pela crtica
brasileira subseqente.
Esse pelo menos foi o caso dos crticos Silviano Santiago e Roberto
Schwarz, quando pensamos, sobretudo, nas dcadas de 70 e 80 da crtica
brasileira. Reiteramos que, como estamos pensando a questo da dependncia
cultural pelo vis da literatura comparada, ou seja, at que ponto essa disciplina de
fato contribuiu para a resoluo de tal problemtica, vamos nos valer to-somente
dos ensaios, desses dois crticos, que mais desenvolveram aquela proposio de
Candido e que, ao mesmo tempo, mais foram relidos e discutidos pela crtica
subseqentes a eles. Trata-se dos ensaios O entre-lugar do discurso latinoamericano (1978) e Apesar de dependente, universal (1982), de Silviano
Santiago; e As idias fora do lugar (1977) e Nacional por subtrao (1987),
de Roberto Schwarz. Passados mais de trinta anos da publicao do primeiro
ensaio de Santiago, podemos dizer hoje que ele naquele momento contribua
significativamente para subverter as antinomias da prpria literatura comparada
tradicional. E o faz ali quando se pergunta sobre o papel do intelectual latinoamericano, mas sobretudo pela reviso crtica total dos conceitos de fontes e de
influncias que, no por acaso, esto na gnese da prpria literatura comparada.
Perguntava o crtico h trinta anos: qual seria pois o papel do intelectual hoje em
face das relaes entre duas naes que participam de uma mesma cultura, a
ocidental, mas na situao em que uma mantm o poder econmico sobre a
outra?17 A lio crtica do prprio Silviano, legada a todos nesses ltimos trinta

16

Sobre a aproximao Candido e Willams, ver CEVASCO. Dez lies sobre estudos culturais,
principalmente a dcima lio: Estudos culturais no Brasil, p. 173-188.
17

SANTIAGO. Uma literatura nos trpicos, p. 17.

anos, elaborou parte da resposta cabvel.18 Podemos dizer que no tocante ao poder
econmico o pas no leva mais tanta desvantagem como dantes, podendo agora
caminhar com as prprias pernas. Nesse sentido, foi preciso que surgisse uma
crise mundial para que o Brasil mostrasse o Brasil aos brasileiros. Eram duas
naes, no dizer de Santiago, e continuam duas naes, mas com culturas prprias
e diferentes. Agora, e a talvez esteja o maior legado do crtico, resta-nos ler a
nossa cultura em toda sua heterogeneidade e especificidades locais, porque,
mesmo que quisssemos, no poderamos mais ser bairristas e nem provincianos,
a no ser que no tivssemos aprendido como se deveria a lio. A outra pergunta
que o crtico fazia era: como o crtico deve apresentar hoje o complexo sistema
de obras explicado at o presente por um mtodo tradicional e reacionrio cuja
nica originalidade o estudo das fontes e das influncias?19 Nem precisava ser
comparativista para ver que a o crtico chamava s falas a prpria literatura
comparada, ou melhor, seu mtodo disciplinar reacionrio, posto que totalizante,
elitista e quase sempre excludente. Porque, nas prticas comparativistas, as
literaturas subdesenvolvidas vinham sempre depois, a reboque, inclusive nos
manuais de ensino. O problema que isso era a norma, ou melhor, nica
condio. Ao decretar a falncia do mtodo crtico tradicional preso ao estudo das
fontes e das influncias naquela poca, Santiago no deixa de dar prosseguimento
ao mtodo crtico j iniciado por Antonio Candido desde, pelo menos, Formao
da literatura brasileira, como salientamos. Interessa-nos falar desse mtodo
porque vemos esboar-se nele a prpria prtica da literatura comparada como
disciplina, o que s vem comprovar que ela no passaria mesmo de um mtodo de
comparao. Assim, pensando nesse mtodo que destruiria de vez as fontes e as
18

Em nota recente (2002) segunda edio do livro Nas malhas da letra, S. Santiago faz o
seguinte comentrio sobre Uma literatura nos trpicos: Uma literatura nos trpicos viveu de
certa euforia narcisista, decorrente da teoria da dependncia econmica aplicada ao conhecimento
e desenvolvimento das artes e das culturas nacionais do Terceiro Mundo. A euforia que sustenta os
ensaios mais densos do livro, em particular O entre-lugar do discurso latino-americano e Ea,
autor de Madame Bovary, foi perdendo o vigor nas duas ltimas dcadas e praticamente se
apagou com o sculo. Hoje pareceria um livro datado, se o novo milnio no nos tivesse trazido
questes que ali forma expostas e discutidas. No seu estertor, os novos tempos se alimentam de
idias que foram por ele corrodas.(SANTIAGO. Nota segunda edio. In: Nas malhas da letra,
p. 9).
19

SANTIAGO. Uma literatura nos trpicos, p. 17.

influncias, talvez restasse-nos perguntar como procedeu a literatura comparada


quando teve que abrir mo daquilo que a sustentou por anos a fio? E mais: ser
que ela abriu mo em sua integralidade, quando se trata de pases
subdesenvolvidos como o nosso? Responder a perguntas dessa natureza equivale
hoje a nos perguntar sobre o papel, lugar e at mesmo importncia da disciplina de
literatura comparada neste incio de sculo. Quando atribumos a responsabilidade
da resposta da pergunta de Silviano literatura comparada, por no queremos
ver em tal pergunta uma nica sada possvel para a problemtica da dependncia
cultural. Entendemos que, naquele momento histrico, o crtico deveria ser
enftico, at mesmo quando se perguntava, e que suas contribuies crticas
trouxeram mudanas no modo de ler a questo da dependncia cultural brasileira
que at hoje no foram totalmente aferidas pela crtica subsequente, mas tambm
pensamos que no devemos tomar partido, como tem feito, grosso modo, a crtica
brasileira contempornea, por entendermos que, agindo assim, simplificamos o
prprio mtodo crtico que o presente exige. Na verdade vemos esse tomar partido
mais como uma questo subalterna interna malresolvida dela, talvez ainda por no
ter conseguido se desvencilhar totalmente do rano da discusso dualista fonte x
influncia, cpia x modelo, semelhana x diferena, interno x externo, particular x
universal, marxista x no-marxista, sociolgico x antropolgico etc. Entre outras
perguntas, o crtico Silviano Santiago faz mais estas duas em seqncia: poderse-ia surpreender a originalidade de uma obra de arte se se institui como nica
medida as dvidas contradas pelo artista junto ao modelo que teve necessidade de
importar da metrpole? Ou seria mais interessante assinalar os elementos da obra
que marcam sua diferena?20 Numa perspectiva comparativista, visvel que o
crtico a declarava a falncia do mtodo crtico comparatista vigente poca, por
estar preso ao modelo original, objetividade, ao conhecimento enciclopdico e
ainda a uma verdade cientfica. Avanando em uma possvel resposta, diramos
que o entrelugar foi a sada encontrada pelo crtico para o impasse que residia na
comparao entre modelo e cpia. Mas a questo para a qual queremos chamar a
ateno outra: ao mesmo tempo em que Santiago critica o modelo como nica
medida para medir a originalidade de uma obra de arte, prope a diferena
como nico valor crtico.21 Se, naquele momento, a assertiva do crtico era de que
20

SANTIAGO. Uma literatura nos trpicos, p. 17.

21

Ver SANTIAGO. Uma literatura nos trpicos, p. 19.

a diferena era o nico valor crtico, de l para c a nova crtica se consolidou a tal
ponto que j podemos dizer que tanto no Brasil quanto na Amrica Latina a
diferena seria um dos valores que ainda devem se fazer presente na crtica
contempornea(?), mas no , de forma alguma, o valor que deva prevalecer no
discurso crtico. E isso se deu graas a leituras como a do prprio Santiago, bem
como aos trabalhos efetuados pela literatura comparada.
Silviano Santiago dizia, h mais de trinta anos, que a literatura latinoamericana propunha um texto e abria o campo terico onde seria preciso se
inspirar durante a elaborao do discurso crtico de que ela seria o objeto. Hoje,
j sabemos que o campo terico latino-americano se consolidou sobre diferentes
abordagens tericas, visando no privilegiar nenhuma delas, e que o discurso
crtico, por conseguinte, est mais do que elaborado, e o reconhecimento
internacional da literatura latino-americana a prova mais cabal de tal elaborao.
O discurso crtico latino-americano deste sculo XXI rejeita qualquer discurso
pseudocrtico, ou seja, aquele discurso erigido aqui e que no trate da literatura e
da cultura latino-americanas em suas especificidades sociais, estticas, polticas e
culturais. Esse discurso, por sua vez, critica todo e qualquer discurso dualista,
assim como qualquer discurso crtico que se queira hegemnico (nico),
propondo, por conseguinte, rediscutir o prprio conceito de literatura nos dias
atuais (literatura comparada?) que se cristalizou na Amrica Latina. Na esteira do
que dizia Santiago no final de seu ensaio, conclumos que o ritual antropfago da
literatura latino-americana (literatura comparada?), da cultura, j se consolidou
aqui, restando agora ao crtico de hoje ver o que daquele ritual ainda nos serve
para pensar melhor os conceitos latino-americanos.
Apesar de Silviano no ter mencionado uma vez sequer a palavra
dependncia no ensaio O entre-lugar do discurso latino-americano, podemos
dizer que em Apesar de dependente, universal o crtico d continuidade a sua
reflexo iniciada naquele ensaio.22 Como se v, diferentemente daquele, nesse
ensaio desde o ttulo o autor j sinaliza tratar-se da questo da dependncia.
Podemos dizer que se em O entre-lugar do discurso latino-americano o crtico
afastava de vez as fontes e as influncias para melhor ler o particular em sua
diferena; agora em Apesar de dependente, universal ele universaliza o
22

Lembramos que o subttulo do livro Uma literatura nos trpicos Ensaios de dependncia
cultural.

particular (a Amrica Latina) de dentro para fora (do entrelugar). Se no primeiro


ensaio negava mais o modelo, agora o reconhece sem medo de mencionar
criticamente a dependncia cultural que tambm constitui a cpia (Amrica
Latina), mesmo que seja a custo de ultrapass-la. Para usar uma palavra
empregada por Santiago em seu primeiro ensaio, e que depois se torna do campo
dos estudos comparados, diramos que a Amrica latina contaminou o Universal
do outro.
Como o que continua a nos interessar a aproximao comparativista que
os ensaios mantm com a literatura comparada, nesse segundo ensaio de Silviano
vamos nos ater to-somente nas passagens que aludem diretamente disciplina,
apesar de entendermos que agora o crtico entra literalmente pela porta da frente
da literatura comparada, uma vez que se vale dela para articular sua reflexo ao
mesmo tempo em que questiona as categorias e discute o objeto da disciplina. Nas
duas partes iniciais de seu ensaio Apesar de dependente, universal,23 Santiago
trata das descobertas martimas, chega descoberta do Novo Mundo, da Amrica
Latina, para mostrar-nos o drama do intelectual brasileiro e latino-americano no
tocante sua constituio (nossa inteligncia?), j que nenhum discurso
disciplinar o poder fazer sozinho.24 Discutindo a separao entre discurso
histrico e discurso antropolgico, explica-nos Santiago: pela Histria
universal, somos explicados e destrudos, porque vivemos uma fico desde que
fizeram da histria europia a nossa estria. Pela Antropologia, somos
constitudos e no somos explicados, j que o que superstio para a Histria,
constitui a realidade concreta do nosso passado.25 Enfim, o crtico j estava
mostrando ali que nossa constituio s poderia dar-se por fora de qualquer
23

Em nota recente (2002) segunda edio do livro Nas malhas da letra, S. Santiago faz o
seguinte comentrio sobre Vale quanto pesa: Vale quanto pesa tentou conviver criticamente no
s com os descalabros e impasses criados pela represso e a censura s artes, decorrente do regime
implantado pela ditadura militar, como tambm com a emergncia brutal dos problemas por que
passou o artista no momento em que a economia brasileira tornava-se por opo dos dirigentes do
pas uma economia de mercado. O nome do sabonete da minha infncia servia de metfora para
que se perguntasse qual era o peso e o valor da arte no momento em que a crtica perdia sentido e o
consumidor se alava condio de rbitro todo-poderoso. (SANTIAGO. Nota segunda edio.
In: SANTIAGO. Nas malhas da letra, p. 9).
24

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 17.

25

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 17-18 (grifos do autor).

visada dualista, isto , disciplinar, e o faz pela aluso direta ao seu conceito de
entrelugar: preciso buscar a explicao de nossa constituio (vale dizer
da nossa inteligncia) atravs de um entrelugar,(...).26 Para sair dessa perspectiva
disciplinar e chegar a uma perspectiva histrico-antropolgica, ou seja, nodisciplinar, Santiago faz um desvio, cujo objetivo central para a perspectiva
comparativista que estamos buscando aqui: est servindo ele [o desvio] para
justificar o questionamento das categorias fortes que servem de alicerce para a
literatura comparada.27 As categorias discutidas por Santiago a so as fontes e as
influncias, por serem de fundo lgico e complementar para a compreenso dos
produtos dominante e dominado, exercitando, assim, exausto uma prtica
disciplinar. Para a reviso de tais categorias, Silviano prope uma fora e um
movimento paradoxal, que por sua vez daro incio a um processo ttico e
desconstrutor da literatura comparada, quando as obras em contraste escapam a
um solo histrico e cultural homogneo.28 Pondo tal prtica paradoxal e
suplementar da crtica em ao, Santiago d nfase diferena que o texto
dependente consegue inaugurar, mostrando, por conseguinte, que o texto
descolonizado da cultura dominada acaba por ser mais rico, por conter em si
uma representao do texto dominante e uma resposta a esta representao no
prprio nvel da fabulao. interessante observar que a o crtico estaria
completamente fora de uma visada etnocntrica, assim como j estaria se valendo
do processo ttico e desconstrutor empreendido literatura comparada que no
deixa de sustentar a leitura do crtico. Tambm justifica e explica o trocadilho do
ttulo do ensaio dependente e universal, posto que o dominado vela a presena
(representao) do dominante.
Alm das categorias, Silviano detm-se na caracterizao do objeto da
literatura comparada. Para ele, o objeto tem de ser duplo, constitudo que por
obras literrias geradas em contextos nacionais diferentes que so, no entanto,
analisadas contrastivamente com o fim de ampliar tanto o horizonte limitado do
conhecimento artstico, quanto a viso crtica das literaturas nacionais.29 Essa
26

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 18.

27

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 19.

28

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 22.

29

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 19.

abordagem do objeto por Silviano, perfeita por sinal naquele momento, servia
muito bem para comparar a literatura, a cultura europia, entretanto no era to
simples quando se tinha em discusso a literatura latino-americana: a situao da
literatura latino-americana, ou da brasileira em particular, com relao literatura
europia ontem e literatura americana do norte hoje, j no apresenta um terreno
to tranqilo,30 conclua o crtico. Como se v, a reflexo de Silviano encontra-se
totalmente dentro dos postulados da literatura comparada naquele momento, o que
foi sumamente enriquecedor para a prpria crtica brasileira que passou a ficar
mais atenta em suas comparaes crticas entre literaturas perifricas e da
metrpole.31 Se tais comparaes mereciam cuidado, por outro lado Silviano
afirma que a perspectiva correta para se estudar as literaturas nacionais latinoamericanas a da literatura comparada no h dvida.32 Nesse momento de seu
ensaio, Santiago menciona Antonio Candido, cuja passagem do crtico j foi por
ns transcrita no incio deste ensaio mas que vale a pena relembr-la: [...].
Comparada s grandes, a nossa literatura pobre e fraca. Mas ela, no outra, que
nos exprime.33 Tais assertivas merecem, hoje, algumas desconfianas, afinal tal
crtica (Candido, Santiago) no se tornou lio por acaso, nem o tempo se passou
em vo: ser que a perspectiva comparativista ainda seria a correta para se estudar
as literaturas nacionais latino-americanas? Felizmente ou infelizmente no temos
mais esta certeza, e pela simples razo do fato de no se saber mais o lugar e papel
da disciplina literatura comparada no Brasil, na Amrica latina e no mundo(?).
Cabe-nos, inclusive, uma pergunta: ser que essa disciplina, de carter
aparentemente to indisciplinar mas totalmente disciplinar (etnocntrica), ainda
existe (no Brasil)? Hoje, depois de quase trinta anos do ensaio de Santiago,
podemos dizer que a nossa literatura, mesmo quando comparada s grandes, no
mais nem pobre nem fraca, mas j no podemos dizer que ela continuaria a nos
exprimir como afirmara Candido e como ainda reforava Santiago. Reforando a
30

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 20.

31

Tania Franco Carvalhal, em seu pequeno mas fundamental livro Literatura comparada, mais
especificamente no Captulo 5: Literatura comparada e dependncia cultural, mostra a
importncia que os dois ensaios de Santiago tiveram para a discusso em torno dos estudos
comparados no pas.
32

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 20. (grifo do autor)

33

Apud SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 20.

perspectiva comparativista de Candido, Santiago observava que colocar o


pensamento brasileiro comparativamente, isto , dentro das contingncias
econmico-sociais e poltico-culturais que o constituram, evitar qualquer trao
do dispensvel ufanismo.34 Podemos dizer que hoje uma certa dose de ufanismo
no faz mal a nenhuma nao, nem muito menos a nenhuma cultura; e que o
pensamento brasileiro e latino-americano devem ser interpretados atravessados
por todas as contingncias levantadas por Santiago, mas sua interpretao no
pode mais estar presa to-somente a uma perspectiva comparativista . No por
acaso o prprio crtico cobrava cuidado com o mtodo empregado, com a
abordagem dos objetos: com a estratgia de leitura dos textos afins.35 Cabe-nos
aqui mais uma indagao: se a literatura comparada no passa de um mtodo,
como j demos a entender atrs, e se a questo do mtodo, por sua vez, inerente
s leituras crticas brasileiras, resta-nos perguntar, ento, qual seria hoje o mtodo
da disciplina de literatura comparada? Teria ela ainda um mtodo auto-suficiente
como outrora, pelo menos no Brasil? Ou seu mtodo, se ainda existe, encontra-se
disseminado nos mtodos das demais disciplinas, como a dos estudos culturais?
Ou os estudos culturais no seriam uma disciplina, nem muito menos teriam um
mtodo? Parece-nos que nos dias atuais uma disciplina constituir-se com um
mtodo prprio (disciplinar) significa carimbar seu passaporte para o seu
ultrapassamento? Parece-nos tambm que uma das formas de a disciplina de
literatura comparada no se extinguir de vez seria a de ela falar de um lugar antidisciplinar por excelncia, isto , um lugar do qual ela prope rever seu prprio
mtodo em direo a um sem disciplina/sem comparao. Como se no bastasse,
a disciplina traz em seu nome um certo dualismo (comparao). Se h quase trinta
anos, Santiago reiterava que o objeto deveria ser duplo para no se incorrer em
leituras binrias, neste sculo podemos reivindicar um objeto triplo, porque,
assim, teramos no mnimo trs culturas, trs naes, trs lnguas, trs produes
etc e incorreramos em menos chance de pr em prtica uma leitura
comparativista menos disciplinar talvez.

34

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 20. Lembramos ao leitor que na Entrevista que fecha o livro
Vale quanto pesa, S. Santiago discute questes importantes desenvolvidas no ensaio que abre o
livro (Apesar de dependente, universal).
35

SANTIAGO. Vale quanto pesa, p. 20.

Lendo pelo avesso o ttulo do ensaio de Santiago, Apesar de dependente,


universal, poderamos, depois desses quase trinta anos de lio, pensar na
rplica: Apesar de universal, particular: hoje o universal s para lembrar a
todos que todo e qualquer universal no passa da soma nunca aleatria do
particular.
Oposta s perspectivas desenvolvidas com propriedade por Silviano
Santiago nos ensaios aqui discutidos, mas nem por isso menos importante para a
crtica brasileira (comparada), a idia que Roberto Schwarz desenvolve no
ensaio As ideais fora do lugar, de mais de trinta anos. Na verdade, no temos
sequer receio em afirmar que esse ensaio, dentro do rol de ensaios que abordaram
a questo da dependncia cultural brasileira, foi o primeiro a enfrentar o problema
com toda a seriedade crtica que o assunto demandava, mesmo que para isso tenha
corrido sob o fio de um dualismo perigoso, dialtico por excelncia, e de uma
leitura muito marcada historicamente. O certo que todos os estudos comparados
feitos no Brasil depois de 70 passaram por esse ensaio de Schwarz, mesmo
quando fosse para com ele discordar. O crtico pode no ter tido ali uma
preocupao comparativista, mas sua abordagem era de natureza comparativista e,
se no bastasse, a temtica da dependncia cultural brasileira estava na pauta das
discusses crticas brasileiras.
Para ficarmos no campo semntico da comparao, detemo-nos em algumas
passagens do ensaio de Schwarz, principalmente naquelas que melhor nos
levariam a pensar numa dependncia de idias importadas, posto que partilhamos
da idia de que as idias, para bem ou para mal, sempre foram mesmo importadas
por aqui, servindo, por conseguinte, de base para todo e qualquer julgamento
crtico que aqui se fazia. O problema que quase sempre foram usadas
acriticamente, inclusive, e mais principalmente pela prpria crtica. Schwarz fala
em trs classes de populao no Brasil: o latifundirio, o escravo e o homem
livre, na verdade dependente.36 Dessas classes, obviamente interessa ao crtico a
dependente, j que os homens livres no so nem proprietrios nem
proletrios, seu acesso vida social e a seus bens depende materialmente do favor,
indireto ou direto, de um grande.37 Comparativamente e constrastivamente,
36

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 16.

37

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 16.

Schwarz mostra que enquanto a modernizao europia est centrada na


autonomia do indivduo, aqui no Brasil a poltica do favor, atrasada, defende a
dependncia pessoal e a remunerao de servios pessoais. Enfim, na passagem o
crtico mostra que o homem livre esta amarrado a uma estrutura social arcaica
que no propunha um Estado moderno. Como se v, as contradies sociais,
polticas e culturais eram grandes no pas. Coube a Roberto Schwarz mostrar que
as idias importadas quase sempre encontravam-se fora do lugar por aqui.
Devemos dizer que, independente do momento histrico no qual o crtico
escreveu seu ensaio, no vemos nenhum problema, como assim o viu parte da
crtica brasileira, por o seu ensaio as idias fora do lugar estar baseado na
ideologia sociolgica marxista. Alis, como facilmente perceptvel hoje, naquele
momento histrico as tendncias crticas estavam sempre mais propensas a pender
ora para o lado histrico e sociolgico, ora para o lado histrico e antropolgico, e
vice-versa. Se o fundo era histrico, os demais vieses crticos, indistintamente,
sempre deveriam ter sidos bem-vindos. Pelo que se v ainda hoje na crtica
brasileira, isso no aconteceu, e quem pagou o pato foi a prpria crtica brasileira.
(A celeuma crtica existente entre os dois crticos aqui em destaque ilustra o que
estamos propondo. O problema que a crtica subseqente a deles acabou
tomando partido; o que no deixa de mostrar um certo rano de atraso crtico que
teima em resistir dentro da crtica brasileira.) Na seqncia de seu ensaio,
Schwarz mostra que o favor a nossa mediao quase universal, de que ele
pratica a dependncia da pessoa, e conclui: adotadas as idias e razes europias,
elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificao, nominalmente
objetiva, para o momento de arbtrio que da natureza do favor. 38 Virando do
avesso a histria da dependncia que sempre reinou por esses trpicos, quase
sempre equivocadamente, e tendo sempre por trs um certo desejo de
autenticidade, Schwarz mostra que nas revistas, nos costumes, nas casas, nos
smbolos nacionais, nos pronunciamentos de revoluo, na teoria e onde mais for,
[...] sempre o desacordo entre a representao e o que, pensando bem, sabemos ser
o seu contexto.39 Por conta desse desajuste de idias importadas e sua recepo
num pas completamente diferente da Europa socialmente, Schwarz mostrou, por
todo seu ensaio, o mal-estar, o descompasso, o torcicolo cultural no qual o nosso
38

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 18.

39

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 25.

pas perifrico se encontrava aqui naquele momento. Passadas mais de trs


dcadas da publicao do ensaio de Schwarz, vemos hoje que ele tinha razo em
demonstrar tal preocupao, porque aquela prtica de enaltecer o que era de fora,
pela simples alegao de que era melhor valorativamente falando, perdurou por
muito tempo tanto na crtica brasileira, quanto nas instituies todas e, como se
no bastasse, no cerne da cultura brasileira. Sobre isso, afirmava o crtico: ao
longo de sua reproduo social, incansavelmente o Brasil pe e repe idias
europias, sempre em sentido imprprio.40 Enfim, Schwarz mostrou que no
Brasil daquela poca as idias estavam fora do centro, em relao ao seu uso
europeu.41 O propsito do crtico era mostrar que as ideias estavam fora do lugar,
porque, como o emissor se identificava com a cultura do outro, no havia uma
adequao entre tais ideias copiadas, nem muito menos uma adequao
socioeconmica. Como j dissemos, o crtico mostra um descompasso social,
cultural existente no sculo dezenove. O problema quando constatamos que
aquele problema atravessou todo o sculo vinte, pelo menos por aqui nesse
arrabalde latino-americano. Resta-nos saber se neste sculo XXI ainda faz sentido
falar em dependncia cultural, ou econmica, pela tica de uma disciplina que
esta condenada ao desaparecimento como a literatura comparada. Alis, ser que
tal questo ainda interessaria a alguma disciplina ou mtodo crtico?
Podemos dizer que desde As idias fora do lugar, alis ensaio que serve
de introduo ao livro como um todo, Roberto Schwarz disseca com desafio uma
questo que poderia ser problemtica poca e que no por acaso encontra-se
subintitulando seu livro, Forma literria e processo social nos incios do romance
brasileiro, e a descreve com preciso mostrando os torcicolos que o pas ditava
ao gnero importado e ao literato inteligente. O que o crtico no percebeu
poca, do nosso ponto de vista de hoje bom que se diga, foi que novas ideias
crticas e filosficas do sculo XX comeavam a aportar por aqui e sem estarem
mais fora do lugar, e ele, por estar acostumado a to-somente uma forma de ver o
homem, a sociedade, o mundo e suas relaes, no soube tirar proveito daquelas
tendncias filosficas e crticas que, com certeza, s teriam enriquecido sua viso
de literato inteligente que sempre fora.
40

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 29.

41

SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 30.

No ensaio Nacional por subtrao Roberto Schwarz retoma questes que


j estavam presentes em As idias fora do lugar. Comea afirmando que
brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experincia do carter
postio, inautntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa afirmao tem sido um
dado formador de nossa reflexo crtica desde os tempos da independncia. Ela pode ser
e foi interpretada de muitas maneiras, por romnticos, naturalistas, modernistas,
esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas etc, o que faz supor que corresponda a um
problema durvel e de fundo.42

Na perspectiva comparativista, essa afirmao do crtico nos lembra a


questo do mtodo, que sempre atravessou, como vimos, a crtica brasileira, pelo
menos desde Antonio Candido. Queremos pensar que os adjetivos pejorativos
postio, inautntico e imitado caem feito uma luva quando temos em discusso a
prtica da crtica brasileira. Parece ser fato inconteste mesmo que a crtica aqui foi
ao sabor do vento do que era pensado na Europa, como se essa fosse a nica
condio de se fazer crtica por essas bandas latinas. O problema que vemos, por
mais contraditrio que possa parecer, que Schwarz critica tal mtodo copista e
ao mesmo tempo, ressalvadas as diferenas, se pega preso pelo mesmo mtodo
sistemtico. Tentemos explicar com mais uma passagem do ensaio:
nos vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao trnsito da crtica por
impressionismo, historiografia positivista, nem criticism americano, estilstica,
marxismo, fenomenologia, estruturalismo, ps-estruturalismo e agora teorias da
recepo. A lista impressionante e atesta o esforo de atualizao e
desprovincianizao em nossa universidade. Mas fcil observar que s raramente a
passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de
um projeto; no geral ela se deve ao prestgio americano ou europeu da doutrina
seguinte. Resulta a impresso decepcionante da mudana sem necessidade
interna, e por isso mesmo sem proveito. O gosto pela novidade terminolgica e
doutrinria prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo,
agora no plano acadmico, do carter imitativo de nossa vida cultural. 43

Ou seja, o crtico se vale de sua prpria vivncia e experincia profissional


para constatar que tal prtica imitativa sempre ocorrera dentro do pas. Como
crtico brasileiro, fica-nos a pergunta de como ele conseguira driblar tal prtica,
que se tornara natural na cultura brasileira, dentro da universidade? E mais: se isso
42

SCHWARZ. Que horas so ?, p. 29.

43

SCHWARZ. Que horas so?, p. 30.

sempre ocorrera aqui, como o crtico conseguiu se valer de um aparato tericocrtico que passasse ileso dessa prtica to manifesta na cultura? E mais: at onde
que seu recorte crtico no estava, naquele contexto dos anos 80, contaminado por
aquela confluncia de teorias que migravam de forma avassaladora entre os
mundos, principalmente em direo aos perifricos? Ser que no seria mais
interessante, mesmo que mais difcil, pensar a experincia do postio, do
inautntico, do imitado, j considerando as teorias da dcada de 80 que se
dedicam a questes dessas naturezas? Pensando especificamente na crtica
brasileira, no temos como no concordar com Schwarz, posto que tal crtica
encontra-se acostumada ao vcio imitativo se a compararmos com crticas de fora.
A diferena, hoje, talvez se d porque, se antes, at a dcada de 80, a referncia
ainda era a crtica europia e a norte-americana, cada vez mais nossa crtica
voltou-se para a latino-americana, ou pensada em espanhol, ou pensada por latinos
em ingls (dos Estados Unidos). Na verdade, nossa crtica, por no dar conta de se
resolver internamente, talvez por sofrer de um rano subalternista, estaria
condenada a buscar anuncia de uma crtica pensada em lngua hegemnica, como
se este fator fosse ainda decisivo para um julgamento crtico nos dias atuais.
Seguindo seu raciocnio que se d em torno do mal-estar intelectual que
o assunto discutido em Nacional por subtrao, Schwarz critica a filosofia
francesa recente (Foucault e Derrida) por defender, segundo ele, que o anterior
prima sobre o posterior, o modelo sobre a imitao, o central sobre o perifrico.44
Nessa linha filosfica, de atrasados passaramos a adiantados, de desvio a
paradigma, de inferiores a superiores [...] isto porque os pases que vivem na
humilhao da cpia explcita e inevitvel esto mais preparados que a metrpole
para abrir mo das iluses da origem primeira.45 Na verdade, toda essa discusso,
entre o que defende Schwarz e o que defendem outros crticos brasileiros na
esteira da reflexo filosfica francesa, d-se, sem sobra de dvida, porque a crtica
brasileira constri-se enquanto tal assentada num dualismo exagerado do qual
nenhum dos crticos dessa poca (at dcada de noventa) consegue romper
totalmente para ler as produes culturais, nem muito menos a cultura brasileira.
Se para eles, essa era sua condio, inclusive imposta pelo contexto, para a crtica
de depois de noventa a condio exigida esta bem posta: qualquer olhar crtico
44

SCHWARZ. Que horas so?, p. 35.

45

SCHWARZ. Que horas so?, p. 36.

que ainda fique preso a essa visada dualista, ou sequer preocupado com questes
atinentes dependncia cultural brasileira, est to-somente repetindo aquela lio
magistralmente arquitetada por seus precursores crticos. Exemplo desse
dualismo, alis presente em todos os ensaios at aqui discutidos, inclusive desde
os ttulos, encontra-se nesta passagem de Nacional por subtrao: [...] em lugar
da almejada europeizao ou americanizao da Amrica Latina, assistiramos
latino-americanizao das culturas centrais.46 No estamos dizendo com isso que
o crtico concorda com o que escreve, mas tambm no deixa de sinalizar que se
trata ou de uma condio ou de outra, como se s uma dessas formas fosse a
melhor para se compreender a dependncia cultural aqui instalada. Nessa parte de
seu ensaio, Schwarz menciona o ensaio O entre-lugar do discurso latinoamericano, de Silviano Santiago, por ns antes discutido, e um outro de Haroldo
de Campos, ambos os ensaios embasados pela filosofia francesa e severamente
criticados pelo autor de Nacional por subtrao. Se Schwarz critica a vertente da
crtica brasileira de perspectiva filosfica francesa, por esta criticar a perspectiva
marxista, e se aquela critica a vertente da qual Schwarz faz parte por ser de
extrao marxista, ento s nos resta dizer que ambas as vertentes precisam ser
revistas neste sculo que se inicia (sob pena de algum crtico contemporneo
menos desavisado ainda pensar que ser ou no-ser marxista poderia render
alguma crtica.).
Se, por um lado, a crtica contempornea resolveu de vez todo e qualquer
dualismo que ainda poderia existir dentro da crtica brasileira, por outro, podemos
dizer que subsiste em seu interior um rano que no deixa de lembrar um certo
atraso crtico. Trata-se, como j sinalizamos antes, de um certo partidarismo
explcito da crtica estabelecido entre as duas vertentes crticas que se
sobressaram no Brasil, cujos representantes maiores so, de um lado, Silviano
Santiago e, de outro, Roberto Schwarz. Fecharemos este ensaio abrindo-o para
essa discusso que acabou se impondo no cerne da crtica contempornea,
causando, pelo menos em parte, uma certa dualidade no ensino da crtica na
universidade.
Eneida Leal Cunha, em seu ensaio Leituras de dependncia cultural,
sintetiza muito bem as posies que diferenciam o pensamento crtico de Silviano
46

SCHWARZ. Que horas so?, p. 36.

Santiago do de Roberto Schwarz, situando-as dentro de suas respectivas linhagens


e preferncias analticas:
o confronto entre os ensaios Apesar de Dependente, Universal e Nacional por
Subtrao, alm de pr em cena sistemas interpretativos divergentes ou vertentes do
pensamento ocidental, expe o esboo de duas linhagens de intelectuais brasileiros e
dois modos de ler e avaliar as formaes de identidade e a experincia da dependncia
cultural. Ponto nuclear de uma dessas famlias de avaliadores da literatura e da cultura
no Brasil, a qual pertence Roberto Schwarz, pode ser identificado na ascendncia
ilustrada da Formao de Antonio Candido e no interesse comum quase excludente
pela produo literria datada a partir de 1850, ou, dito mais largamente, pela produo
moderna e ps-colonial. As leituras de Silviano Santiago vm-se empreendendo da
histria cultural, desde a dcada de 70. Em contrapartida, operam inverses, reverses e
deslocamentos de nfases, pondo o foco, reincidentemente, em produes coloniais
como a carta de pero Vaz de Caminha, articulando-as produo modernista e
contempornea.47

Mesmo tomando partido do que defende Silviano Santiago, Eneida Cunha


mostra com preciso as diferenas que ancoram as duas leituras crticas, para
concluir que a incompatibilidade entre as duas interpretaes da dependncia
cultural brasileira est na forma como ambas as vertentes concebem a produo
dos valores e dos sentidos: para Schwarz, e para o pensamento de extrao
marxista, valores e sentidos fazem parte da superestrutura ideolgica, so
produtos da determinao histrica, da determinao econmica e infra-estrutural
dos interesses de classe,48 enquanto nas reflexes de Santiago e, em grande
parte, dos filsofos da descolonizao com quem dialoga esto assimiladas as
matrizes do corte epistemolgico que produz a crtica perspectiva marxista e
funcional da interpretao de Schwarz.49
Tambm Eneida Maria de Souza, no ensaio O discurso crtico brasileiro,
principalmente na parte O mal-estar da dependncia e a alegria antropofgica,
esquadrinha, por meio dos ensaios de Santiago e Schwarz, os posicionamentos
crticos que os diferenciam. Em ordem cronolgica, comea pelo ensaio As
ideias fora do lugar (1977), onde reitera que o crtico se baseia na ideologia
sociolgica marxista, voltada para o questionamento das contradies provocadas
47

CUNHA. Leituras de dependncia cultural, p. 134.

48

CUNHA. Leituras de dependncia cultural, p. 132.

49

CUNHA. Leituras de dependncia cultural, p. 132.

pela modernizao nos pases perifricos,50 passa para o ensaio de Santiago, O


entre-lugar do discurso latino-americano (1972), no qual o crtico subverte as
antigas antinomias e hierarquias prprias do discurso colonizado e ocidental,51
diz que em Apesar de dependente, universal Santiago confirma a sua posio
diante da perspectiva marxista de Schwarz,52 conclui, por fim, que Schwarz em
Nacional por subtrao (1987) reacende a polmica entre o seu pensamento
terico e o de Santiago e Haroldo de Campos, ao se posicionar de forma distinta
quanto s redefinies dos conceitos de nacionalidade e de dependncia
cultural.53 Mesmo sendo escusado dizer que Souza partilha das idias defendidas
por Silviano, vale a pena transcrever esta passagem: no caso da concepo do
entre-lugar, no se trata de uma abstrao fora do lugar, mas de uma posio
que visa representar a cultura brasileira entre outras, retirando novos objetos
tericos das obras ensasticas e ficcionais.54 Por todo seu ensaio, Souza mostra
com pertinncia crtica todas as diferenas existentes entre os posicionamentos
crticos de Santiago e de Schwarz. Alis, o ttulo da parte na qual Souza discute os
textos de ambos, O mal-estar da dependncia e a alegria antropolgica, j
sinaliza o lugar de cada posio crtica, reiterando as dualidades das duas
vertentes, alm de demandar um certo posicionamento da prpria crtica brasileira
contempornea. Na seqncia, Souza discute o ensaio Da existncia precria: o
sistema intelectual no Brasil (1981) de Luiz Costa Lima. O argumento exposto
por Costa Lima volta-se para questes ligadas dependncia cultural brasileira,
quando, segundo Souza, considera ser a desorganizao e a ausncia de mtodo
no pensamento de um povo o grande fator para se consolidar a condio de
dominado diante de outras culturas:
E do ponto de vista do sistema intelectual, o pior do autoritarismo que ele acostuma a
intelligentsia ao pensamento impositivo, que no precisa demonstrar, pois lhe basta
apontar, mostrar com o dedo, a verdade. No caso das naes econmicas e
culturalmente perifricas, como a nossa, esta conseqncia ainda se torna mais intensa,

50

SOUZA. Crtica cult, p. 52.

51

SOUZA. Crtica cult, p. 52.

52

SOUZA. Crtica cult, p. 53.

53

SOUZA. Crtica cult, p. 54.

54

SOUZA. Crtica cult, p. 52-53.

porque o seu horror teorizao prpria as deixa duradouramente sujeitas teorizao


alheia.55

Meio pelo avesso do que diz Costa Lima, mas pensando nas argumentaes
terica e crtica prprias, isto , feitas dentro do Brasil na contemporaneidade,
percebemos que s vezes os partidarismos (somados s intrigas domsticas), que
no deixam de apresentar laivos de um certo rano de autoritarismo escolstico,
pr-direcionam os julgamentos crticos possveis de serem feitos da prpria crtica
brasileira. Querelas entre intelectuais, posicionamentos ideolgicos contrrios, ser
ou no ser marxista por exemplo, formas diferentes de interpretar uma cultura e
suas respectivas manifestaes culturais, so bem-vindos e podem contribuir
definitivamente com a prpria crtica, desde que essa crtica saiba articular-se de
forma que no sonegue qualquer informao ou abalizamento crtico que so
respaldados pela prpria histria pregressa da crtica. Ilustra o que estamos
dizendo, de nosso ponto de vista, o que acontece no livro Dez lies sobre estudos
culturais, de autoria de Maria Eliza Cevasco. Nele, a autora detm-se, na ltima
lio, nos estudos culturais no Brasil. Reconhece que a data oficial de tais
estudos no Brasil se deu em 1998, ano em que a Associao Brasileira de
Literatura Comparada, Abralic, que rene professores e pesquisadores da rea,
escolheu para seu congresso bianual o tema Literatura Comparada = Estudos
Culturais?56 Cita o presidente da associao daquele binio, o crtico cultural
Ral Antelo, passa em revista todos, digamos, formadores da cultura brasileira
para deter-se no tambm crtico cultural Roberto Schwarz, discpulo uspiano.
Como discpula desse crtico, privilegia sua vertente, calcada na produtividade de
um modo de ler dialtico, e passa a exemplificar tal modelo dessa tradio de
crtica cultural brasileira com uma leitura comparativista cultural entre as obras
Dom casmurro (1899), de Machado de Assis, e Minha vida de menina (1942), de
Helena Morley, que no recorte feito por Cevasco soa meio forada. Mas a questo
que se impe na leitura de Cevasco sobre a lio Estudos culturais no Brasil
de outra ordem: a que lugar Cevasco delegou ao crtico Silviano Santiago no rol
dos crticos brasileiros que, pelo menos desde a dcada de 70, vem se dedicando
aos estudos de crtica cultural, como j sinalizava o subttulo de Uma literatura
nos trpicos: ensaios sobre dependncia cultural? Em se tratando de crtica,
55

Apud SOUZA. Crtica cult, p. 55.

56

CEVASCO. Dez lies sobre estudos culturais, p. 173.

recortes so feitos, predilees intelectuais so relevadas, relaes interpessoais


alteram qualquer julgamento, relaes entre academias, mestres e discpulos tm
sua histria, mas apesar de tudo isso as lies crticas no podem sofrer leses de
natureza particular e pessoal, porque quem sempre sai em desvantagem so os
estudantes de cincias humanas e demais interessados no debate cultural
contemporneo,57 para ficar apenas com aqueles cujas Dez lies so dedicadas.
Por fim, Tania Franco Carvalhal, no ensaio Vinte e cinco anos de crtica
literria no Brasil notas para um balano, discute o contexto brasileiro no qual
os ensaios por ns aqui privilegiados fazem parte. Comea seu ensaio dizendo que
voltar vinte e cinco anos atrs significa lanar uma olhar retrospectivo sobre os
anos oitenta, certamente uma das dcadas mais representativas da crtica literria
no Brasil. Esse momento no s catalisaria tendncias recorrentes anteriores,
prprias a nossos estudos literrios, como tambm seria portador do que estava
por vir.58 Na seqncia, a comparatista rastreia o que havia sido feito na crtica
precedente aos anos 80 para, num momento seguinte, constatar que os anos
noventa caracterizaram-se, certamente, por uma crtica atenta a essas orientaes,
do pensamento de Michel Foucault a Gilles Deleuze, de Jean-Franois Lyotard a
Jacques Derrida.59 Apesar de entendermos que Carvalhal tem razo em afirmar
que os tericos franceses obtiveram, no Brasil, um sucesso to grande quanto nos
Estados Unidos, queremos lembrar que tais tericos foram tambm rechaados
por parte da crtica brasileira, obviamente valendo-se de outros tericos, a
exemplo da vertente crtica defendida por Schwarz, como j mostramos. Entre as
duas dcadas, Carvalhal lembra-nos da criao da Associao Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC) no mbito de um Seminrio Latino-americano
(1986), tornando-se um meio de comunicao privilegiado entre os
pesquisadores brasileiros e aqueles dos diversos pases da Amrica Latina,
contribuindo para a fundao de associaes coirms em diferentes lugares.60
Tania Carvalhal constata que, entre as manifestaes universitrias dos 80 para os
90, ocorre uma retomada dos estudos culturais, entre outras direes, que orienta a
57

CEVASCO. Dez lies sobre estudos culturais, p. 7.

58

Apud SANTOS. Literatura e prticas culturais, p. 41.

59

Apud SANTOS. Literatura e prticas culturais, p. 47.

60

Apud SANTOS. Literatura e prticas culturais, p. 46.

reflexo crtica naquele momento. Apesar disso, Carvalhal meio reticente com
relao aos estudos culturais:
o debate sobre os Cultural Studies fez emergir o risco de ver desaparecer a abordagem
literria, alm de evidenciar o perigo de que especialistas em literatura voltem-se para
outros campos sem a dupla competncia indispensvel aos estudos interdisciplinares.
Mais do que defender a especificidade da literatura ou tentar evitar a reduo de nosso
campo de trabalho, ameaas que pesam mais em outros lugares do que no Brasil
mesmo, preciso salientar que se atribui aos estudos culturais uma liberdade de ao
que, na realidade, no existe. Em contrapartida, procurando, por vezes, afastar a
literatura, interrogar seu lugar dentre as prticas simblicas e culturais e minimizar sua
funo esttica, os Estudos Culturais distanciam-se do comparatismo, que sempre
pressupe que a literatura permanea como um dos termos da comparao. 61

Por tudo o que discutimos at aqui, principalmente quando se tem em pauta


aquela antiga afirmao de Candido, no por acaso repetida num congresso da
Abralic, de que estudar literatura brasileira estudar literatura comparada,
podemos, neste sculo que se inicia, afirmar que os estudos culturais, bem como
demais estudos, no fizeram emergir o risco de desaparecer a abordagem literria,
como apregoaram alguns crticos que pensaram que o lugar disciplinar, como o da
literatura comparada por exemplo, era imutvel, apesar de defenderem uma
perspectiva comparativista interdisciplinar. O perigo do qual fala Carvalhal tornase ultrapassado j naquele contexto, posto que os especialistas em literatura foram
orientados no sentido de trabalhar a prpria literatura numa perspectiva histrica,
cultural, inter, trans e multidisciplinar. Alis, no por acaso, essa foi a grande
direo para a qual se mirou a literatura comparada no decorrer de todo o sculo
XX. O que Carvalhal faz, apesar de no assumir, sair em defesa da
especificidade da literatura, com medo de que esta perca terreno para os estudos
culturais, como assim agiram vrios outros crticos disciplinaristas. Quando
Carvalhal afirma que foi atribuda aos estudos culturais uma liberdade de ao que
no existe, vemos que quem perde com tal prerrogativa so os estudos
comparados que se fecham em sua perspectiva disciplinar com receio das novas
liberdades de ao crticas culturais que se impem com a chegada do novo
sculo. Resta-nos perguntar onde, ou em que momento, os estudos culturais
procuraram afastar a literatura, interrogar seu lugar e minimizar sua funo
esttica, como adverte Carvalhal, se eles nascem dos prprios estudos literrios?
61

Apud SANTOS. Literatura e prticas culturais, p. 47.

Se, na perspectiva comparativista disciplinar, sempre pressupe-se que a


literatura permanea como um dos termos da comparao, ento passou da hora
do comparatista compreender que o outro termo pode ser o dos estudos culturais,
j que estes nunca se preocuparam mesmo com o comparatismo, mas, sim, com a
liberdade de ao cultural.
A literatura comparada de ontem nos ajudou a entender os estudos culturais
de hoje; e os estudos culturais de hoje nos ajudam a compreender a literatura
comparada de ontem. Se estudar literatura brasileira era estudar literatura
comparada, ento podemos dizer que estudar estudos culturais hoje equivale ainda
a estudar literatura brasileira numa perspectiva comparativista, j que ambas as
disciplinas esto atravessadas por graus de dependncia histrico-culturais.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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