Os Mistérios Da Morte e Da Reencarnação (AMORC, Português)

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S P / it/ ip pc ejca/n/M

Os Mistrios da Morte
e da Reencarnao

Philippe Deschamps

CO O RD E N AO E SUPERVISO
Charles Vega Parucker, F. R. C.
Grande Mestre

BIBLIOTECA RO SACRUZ
ORDEM ROSACRUZ, AM O RC
GRAN DE LO JA D A JU R ISD IO DE
LN G U A P O R T U G U E SA

Edio autorizada por:

\sfe DDFFUSION
V ROS1CRLC1ENNE
Chteau dOm onville
2 7 110 Le Tremblay
France

Os Mistrios da Morte
e da Reencarnao
In troduo........................................................................................................ 7
Culturas e religies ante os mistrios da m o rte...................................... 13
A alma im ortal?.......................................................................................... 87
Traduzida da verso francesa de setembro 1999
Reencarnao, uma das mais velhas teorias do m un do .............. ....... 137
Ia Edio em Lngua Portuguesa
setembro 2003

A morte na histria ocidental................................................................... 183


A experincia de morte im in en te............................................................195
O acompanhamento de a g o n iz a n te s ..................................................... 21 7
O lu to ............................................................................................................ 239

ISBN - 8 5 -3 17 -0 17 1-6
O contato com os m o rto s..........................................................................267
Todos os direitos reservados pela
ORDEM R O SACRUZ, AM O RC
GRAN DE LO JA D A JURISD IO
DE LN G U A P O R T U G U E SA

Causas e antdotos do medo da m o rte ................................................... 277


Breve tratado da a lm a ................................................................................ 287
A morte: comparaes com o sono e o nascim ento............................ 299
O suicidio.....................................................................................................325

Proibida a reproduo em parte ou no todo


Smbolos da alma e da m orte................................................................... 331
Composto, revisado e impresso na
Grande Loja da Jurisdio de Lngua Portuguesa
Rua Nicargua, 2620 CEP 82515-260
Caixa Postal 4450 CEP 82501-970
Curitiba / PR
Tel.: (0**41) 35 1-3000 - Fax: (0**41) 351-3065
www.amorc.org.br

O destino da a lm a .......................................................................................339
C onclu so.....................................................................................................343
B ibliografia...................................................................................................351
Biblioteca R osacruz................................................................................... 355

_!v nw cio
H alguns anos, grande parte dos livros editados sobre o
tema da morte ressaltava que esta havia se tornado assunto
tabu por excelncia nas sociedades modernas. Seus autores
explicavam que nossa sociedade do materialismo triunfante
exaltava a vida, a fora e a sade, que as pessoas en
fraquecidas ou deficientes eram afastadas dela, que os velhos
eram cada vez mais isolados em asilos e que morria-se cada
vez menos em casa e mais no hospital. Nos crculos mdicos
da poca, o doente era cercado de mil meios tcnicos cujo
nico objetivo consistia em perpetuar a vida. A morte no
era mais aceita, tornara-se sinnimo de fracasso; fracasso
para a vida, fracasso para o corpo mdico, e a ceifeira metia
medo.
Apesar de continuar vlido em muitos casos ou cir
cunstncias, hoje esse fato precisa ser diferenciado. Unidades
de tratamentos paliativos, para ajudar os doentes terminais,
foram criadas. Graas ao de mdicos e psiclogos de pases
anglo-saxes, depois de toda a Europa, a noo de acom
panhamento do paciente terminal veio luz do dia. As
experincias de morte iminente, relatadas por milhes de
testemunhos, obrigam nosso mundo a reconsiderar seu ponto
de vista sobre a morte ou, pelo menos, sobre suas fronteiras.
Regularmente, nos ltimos vinte anos, o assunto tem aparecido
nos jornais, por vias indiretas. E s lembrar-se dos debates sobre
a eutansia, das reflexes sobre o aumento da taxa de suicdios,
dos conflitos em torno do aborto, do surgimento dos
tratamentos paliativos...

Tudo isso poderia fazer crer que o homem e a mulher


modernos finalmente esto reconciliados com sua morte e que
ousam encar-la. As aparncias, porm, so enganosas. A
transformao veio de uma pequena elite do mundo mdico,
mas o modo como a imprensa aborda o assunto superficial.
Nenhuma verdadeira pesquisa profunda jamais foi empre
endida pelo grande pblico, e isto lamentvel. A escatologia,
a cincia da morte e dos fins ltimos, um daqueles temas que
no deveriam ser delegados a uma outra pessoa, por mais sbia
que fosse. Nenhuma sociedade deveria se poupar de uma
reflexo profunda acerca do assunto, levado ao nvel das
individualidades. Se as seitas proliferam tanto hoje em dia,
por causa da pobreza e mesmo ausncia de respostas quanto
ao sentido da vida.
O ser humano tem necessidade de dar significado quilo
que ele vive. Se no se sente ajudado nessa busca, ele vai
procurar as respostas no importa onde, mesmo custa de
grandes riscos. E evidente, at mesmo aps uma anlise
superficial, que as respostas para os mistrios da morte
condicionam o significado dado a cada vida. Se a morte no
tem nenhum sentido, ento, a vida tambm no possui sentido
nenhum, e vice-versa. A evoluo do esprito humano, no
momento em que este ganha profundidade e altura, cedo ou
tarde passa por essa meditao. Trata-se de uma questo de
amadurecimento.
Este livro se prope a ser uma baliza para aqueles que no
sabem por onde comear sua busca do sentido da grande
viagem. Sem ser exaustivo, ele procura agrupar conhecimentos
atuais, sintetizando-os e explicando-os luz da filosofia
Rosacruz.

Ao se abordar pela primeira vez o tema do falecimento, logo


se percebe, com surpresa, que ele se assemelha roca daquela
fiandeira mgica, de onde se puxa um fio que nunca chega ao
fim. Suas ramificaes so bem numerosas e tocam praticamente
todas as reas da vida. A medicina, a economia, a filosofia, a
fsica, a prpria arte, so interpeladas, bem como muitas outras.
Sob sua influncia, todo um trabalho pde ser empreendido na
msica. Algumas das mais belas peas musicais foram, com efeito,
requiem e outros stabat mater. Mozart estava familiarizado
(alguns diriam obcecado) com a idia da passagem; ele legou ao
mundo um dos mais belos requiem , que foi terminado por outro
compositor, aps sua morte.
Mais que outras questes, a morte insinuou-se sutilmente
no corao de todos os campos da atividade humana, enquanto
o ser humano se recusava a reconhec-la. Estaria fora de
questo apresentar tudo neste livro; para isso, seria preciso uma
E nciclopdia da m orte, que ainda est por ser feita. No
obstante, o mtodo utilizado foi o de observar o maior nmero
possvel de campos em que a morte se sinalizava. Tratava-se
de compreend-la melhor, esclarec-la, at mesmo acostumarse com ela. Ao leitor, cabe fazer a sn tese intuitiva, sem a qual
no h conhecimento verdadeiro. Para compreender a morte,
deve-se, em primeiro lugar, partir para a descoberta de
diferentes culturas e aperceber-se de que, apesar das
divergncias, elas possuem inmeros pontos comuns.
Ser que se pode efetivamente abordar o assunto sem se
levantar uma reflexo sobre a noo da imortalidade, to
freqentemente aceita como um postulado? A reencarnao
uma doutrina compartilhada por mais da metade da populao
do globo. Pode ela significar um fator importante de
compreenso da vida e, por extenso, da felicidade?

Se as atitudes do ser humano face morte evoluram no


curso dos sculos, os principios bsicos de suas reaes
psicolgicas so geralmente os mesmos. Conhec-los nos ajuda
a dominar melhor nossas prprias emoes diante do evento,
quando ele fustiga ns mesmos ou outrem. E para esses pontos
e muitos outros que este livro tentar propor algumas respostas.
No se trata aqui de assumir uma posio dogmtica, mas
simplesmente de dar o que pensar e expor questes motivadas
por conhecimentos e fatos exatos. A morte no faz parte das
nossas categorias habituais de conhecimentos. Logo, no pode
ser abordada da mesma maneira que qualquer outro assunto
acadmico. E preciso proceder diferentemente e tambm
recorrer tanto s faculdades da imaginao humana como s
suas dimenses racionais e intuitivas. Por esses motivos, esto
reunidos aqui os aspectos rituais ou simblicos e elementos
mais objetivos ou psicolgicos.
Para abordar o tema da morte, na forma como explicaram
os ocultistas de antigamente, preciso querer se lanar a ele;
ousar faz-lo, pois a busca repleta de armadilhas; saber, mas
isto vem do buscar e do aceitar jogar fora antigos preconceitos;
depois, calar-se, pois os frutos das descobertas so inco
municveis. A sntese s pode ser pessoal, como uma convico
adquirida custa de uma busca tenaz. Esse processo, alis,
no deixa inclume seu autor. Forosamente, haver para ele
um antes e um depois; assim como para a maioria dos que,
algum dia, perderam um ente querido pela primeira vez.
Se a velha ceifeira fascina cada mais vez nossa poca (como
Ankpu, o Velho Homem-Morte, da Bretanha), porque nossas
sociedades vivem uma transformao sem precedente. Essa

morte simblica das coletividades acompanhada de dificuldades


ainda maiores para os indivduos. Cada pessoa, ento,
questiona-se frente ao desconhecido amanh. Sutilmente, a
humanidade volta a ganhar conscincia de sua mortalidade
(pela qual poder, pela primeira vez, tornar-se responsvel),
aps os delrios cientficos do sculo 19. A tendncia natural ,
portanto, questionar a morte. Longe de constituir um sintoma
de fatalismo ou de medo do futuro, trata-se de uma prova de
maturidade, que s precisa ser generalizada. Confrontado com
a realidade daquela que no mais oculta, o ser humano
geralmente volta a situar suas ambies num quadro mais
modesto que, em si mesmo, portador de futuro. Assim, ele
ganha conscincia daquilo que um poema de Paul Fort
descreve to bem:
Na terra, devem os nos amar.
Enquanto vivos, devem os nos amar.
No con fies em cem itrios.
Antes deles, devem os nos amar.
Teu p e m eu p
Sero sem entes de ventos.
Em todos os tempos e lugares, os msticos sempre tiveram
maior alcance nesse gnero de reflexo. A particularidade do
presente trabalho consiste, entre outros, em demonstrar que
os espiritualistas do mundo conheciam e codificaram, h
muitssimo tempo, o que a cincia parece estar redescobrindo
aps dois sculos de ocultao.

(u i/ iiaj

e ze//tej

an te o) m htezioj d a m oiie
Ao se estudar as crenas dos povos em relao morte, ficase imediatamente espantado com a diversidade das atitudes.
No se morre na ndia como no Ocidente, e os ritos e
convices que cercam um falecimento mostram-se to
diferentes quanto a ndole de cada uma das naes que lhes
deram origem. Conhecer as prticas e as idias de um povo
sobre o assunto significa desvendar uma parte de sua alma.
Mas poderamos nos perguntar: Por que explorar um mosaico
de culturas para compreender o incompreensvel?
que, atravs da aparente multiplicidade, existe, parado
xalmente, certo nmero de pontos comuns que se repetem
como um leitm otif. "Onde hfum aa, h fo go , diz o provrbio
popular. Pode-se, portanto, apostar no seguinte: se vrias
tradies diferentes concordam num determinado nmero de
detalhes, ento, certamente elas refletem uma verdade sutil ou
uma corrente de pensamento subterrneo que as engloba todas.
Poderamos igualmente estabelecer um a priori que nos levaria
bem longe: mesmo as diferenas de crenas, como a
reencarnao dos orientais ou o Julgamento Final das religies
monotestas, longe de serem irreconciliveis, poderiam at ser
complementares. Uma passagem do Coro explica que cada
povo recebeu, em sua histria, um profeta enviado pela
Divindade. Se isso se mostrasse exato, ento as divergncias
entre as culturas corresponderiam no mais que a uma
diferena de acento, colocado em tal ou qual aspecto de um

conhecimento muito mais amplo. Claro est que essa


particularidade levaria em conta a mentalidade, a cultura e
at a prpria terra dos povos aos quais fosse direcionada.
Assim, atravs dos pontos comuns e das divergncias
comparadas e depois sintetizadas, o observador poderia ter
uma idia intuitiva dos verdadeiros mistrios que o aguardam
no alm. Nenhuma cultura ou religio pode ter a pretenso
de possuir, sozinha, o conhecimento total do assunto. Se um
dia a histria da torre de Babel foi narrada, talvez o tenha
sido porque o futuro da humanidade passe forosamente por
uma aproximao voluntria, compreensiva e respeitosa das
diferentes crenas locais. a esse exerccio que este captulo
o convida.
O nico conselho que se poderia dar pode ser expresso
assim: o leitor poderia imbuir-se de cada tradio, uma a uma,
e, em seguida, deixar seu subconsciente fazer o trabalho de
sntese. Assim, dessa diversidade brotar a unidade de uma
concepo que ser totalmente pessoal. Essa sntese intuitiva,
bem mais til que um dogma recebido de fora, permitir-lhe-
ento, por uma melhor compreenso da morte, equilibrar sua
vida para que ela tenha mais luz, otimismo e alegria.
Desde logo, podemos classificar as culturas em trs grupos.
Essa classificao, atribuda a Isola Pisani, parece ser a mais
simples e a mais rica de significados. Comecemos pelo
sobrevivencialismo. E a concepo segundo a qual o ser
humano, aps sua morte, sobrevive num mundo paralelo. Os
celtas, como tambm as tribos da frica, da Indonsia e da
Amrica, aderem ou aderiam a essa crena. O culto dos
ancestrais geralmente formulado a partir de conceitos
sobrevivencialistas.

Em seguida, vem o imortalismo. Segundo essa idia, a alma


seria imortal, num estado intraduzvel e completamente diferente
da vida na terra. E o credo das religies monotestas que pregam
o Julgamento Final, depois do qual a alma se une ao seu Deus.
Finalmente, vm as doutrinas reencarnacionistas, s quais esto
ligadas as religies orientais, alguns grupos animistas e grande
maioria dos esoterismos dos cinco continentes.
Essa separao das culturas em trs grupos fechados foi aqui
intencionalmente exagerada a fim de facilitar a orientao do
buscador em meio aparente selva das convices. Na realidade,
as trs concepes muitas vezes coexistem dentro da mesma
tradio. E assim que o isl descreve o paraso em termos
sobrevivencialistas (uma vida de felicidade em meio a todos os
objetos amados); j a esperana de vida do ser humano, aps o
julgamento, descrita em linguagem imortalista. Por fim, o
esoterismo muulmano recorre doutrina da reencarnao.
Pode-se ainda acrescentar que, em certos aspectos, algumas
crenas religiosas assemelham-se mais ao materialismo do que
idia de imortalidade. Os primeiros hebreus, por exemplo,
ensinavam que o corpo e a alma esto indissoluvelmente unidos
e que o desaparecimento de um provoca o do outro. Isso no
a mesma coisa que a posio materialista segundo a qual a alma
o produto terico das reaes fsico-qumicas do crebro?
De acordo com essa opinio, com a morte do crebro, a alma
desaparece concomitantemente.
Dentro de uma mesma religio, pde-se igualmente observar
a evoluo das idias no curso da Histria. Que h de comum,
por exemplo, entre as crenas judaicas modernas e as do incio
do Antigo Testamento, a Torah hebraica?

O judasmo
Para abordar a concepo judaica da morte, til debruarse sobre os textos da Torah (a lei judaica) e do Antigo
Testamento. No obstante os israelitas de hoje aderirem
claramente noo da imortalidade da alma, nem sempre foi
assim de m aneira to clara. Alm disso, m uitas vezes
esquecemos que no existe apenas um judasm o, mas
judaismos, assim como tambm existem divises dentro do
cristianismo. Esse um dos motivos pelos quais devemos ter
prudncia ao analisarmos concepes religiosas. Conforme as
correntes ou os interlocutores, podemos nos defrontar com
diferentes sutilezas de idias.
Ao longo de toda a histria do povo judeu, a questo
da morte foi considerada secundria (conforme eles
mesmos confessam). O importante, dentro da comunidade
judaica, a vida, que deve ser aproveitada ao mximo:
segundo alguns judeus, o ser humano est na terra para
cumprir a lei divina e render graas ao Criador. Sua misso
cessa com a morte. Mesmo que hoje o pensamento judeu
im agine que a personalidade, aps a passagem, una-se
Alma Universal, os textos abordando a questo do alm
no sao tantos assim.
Alguns estudiosos, alis, explicam que os saduceus da poca
do Cristo (dos quais fazia parte o sacerdote Caifs) no
acreditavam na imortalidade da alma. Para eles, o ser humano
est na terra para cumprir os desgnios divinos e a morte pe
fim sua funo. O historiador judeu Flavius Josefo assim se
expressou, por volta de 50 d.C.: "A opinio dos saduceus de
que as almas m orrem com os corpos; que a nica coisa que som os
obrigados afa z er observar a lei, e que uma ao virtuosa jam ais
renunciar, sabiamente, queles que n-la ensinam .

Mas a posio dos saduceus era a de uma elite pensante


que se tornou a elite social da comunidade. No se sabe ao
certo se eles fizeram muitos rivais no meio do povo, que aspirava
a um outro futuro. Os saduceus reclamavam do sacerdote
Sadoque, sacerdote do rei Davi, e cuja famlia manteve o
sacerdcio no tempo de Salomo. J mesmo no Eclesiastes,
que se supe ter sido escrito pelo prprio Salomo (mas, mais
provavelmente, obra de um mestre de sabedoria), encontramse aluses a essa crena. "Vaidade das vaidades, nos diz o
Eclesiastes, "tudo vaidade e p ersegu i o de v en to . O ser
humano estaria na terra para comer, beber e trabalhar; tudo o
mais seria, segundo o autor, perseguio de ven to , e a morte
viria encerrar o baile. "Nunca mais eles tom aro parte em tudo
que fe ito sob o so l.
Outros textos fazem da morte o desaparecimento completo
do ser humano: "E neste m esm o dia seus anseios p erecem (Salmo
146,4); "No so os m ortos que celebram o Eterno, nem nenhum
dos que descem ao lugar do siln cio (Salmo 115, 17). Trata-se
de uma viso que exclui toda possibilidade de imortalidade
para o ser humano. Somente mais tarde, foi que apareceu a
tese da ressurreio no final dos tempos. E mais adiante, no
Eclesistico: "D, recebe e ilude tua alma, porque, no Hades, ela
no h de encontrar delcias. Toda carne en velh ece com o uma
vestim enta; pois assim a lei eterna: certam ente morrers. Na
folh a gem de uma rvore frondosa, folh a s caem e folh a s brotam,
assim tam bm as gera es de carne e sangue: um a morre, outra
nasce. Toda obra corruptvel desaparece, e seu autor se voltar
contra ela . Que outro modo melhor de enaltecer a vida e fazer
da morte uma inimiga?
Naqueles tempos, a exemplo dos povos da Antiguidade,
alguns hebreus acreditavam, vale dizer que de maneira um

tanto nebulosa, que os mortos vagavam num lugar de trevas


situado embaixo da terra, chamado cheol. A geena, que se
tornou sinnimo de fogo do inferno, era um vale situado a
certa distancia de Jerusalm, o vale de H innom, onde eram
jogados os cadveres incinerados. E difcil saber se o ch eol, que
se sucedia morte, era considerado um lugar ou simplesmente
um sinnimo para o nada. Aqui no estamos num terreno muito
cientfico. Contudo, parece que essa idia e a da geena foram
algumas das origens do inferno cristo, a outra origem sendo
provavelmente egpcia.
O pensamento judaico, como todo pensamento religioso,
esconde outras sutilezas, e pouco a pouco revelou-se a espera
de um messias (messias significa ungido de Deus, como o
Christos grego) que iria julgar os vivos e os mortos. Concepo,
alis, muito mais sustentada por movimentos ortodoxos, do
tipo L ubavich. Os fariseus, na poca de Jess, foram os
portadores dessa esperana messinica. Segundo o historiador
judeu Flavius Josefo, eles representavam, com os saduceus e
os essnios, uma das trs correntes judaicas, na poca de Jess.
Um conflito importante ops saduceus e fariseus com relao
ressurreio. Um saduceu disse a Gehiha B. Pesica: Ai de
vs, crim inosos fariseus], que dizeis que os m ortos retornaro]
pois, uma vez que os vivos m orrem , revivero os m ortos? Ai de
vs, crim inosos fsaduceus], respondeu ele, que declarais que os
m ortos no viveio, pois, uma vez que os que no existiam ganham
nascim ento, quanto mais ainda os que j viveram !"
Ao contrrio do que geralmente costumamos acreditar, a
ressurreio no sinnimo de imortalidade. Os antigos
hebreus no aderiam a essa crena e o alm no questionado
no Antigo Testamento. Muito mais tarde, sob influncia dos

gregos e dos neoplatnicos, foi que a noo de imortalidade


deitou razes. Entre os filsofos judeus mais tardios, a tnica
foi igualm ente colocada mais na im ortalidade que na
ressurreio. Maimnidas, no sculo 12, fez da imortalidade
da alma um parmetro supremo. Mas desde o segundo sculo
antes de nossa era, havia duas correntes de pensamento no
judasmo: a primeira, entre os judeus alexandrinos, impre
gnados de filosofia grega, defendia a imortalidade da alma; a
segunda, entre os judeus da Palestina, afirmava a ressurreio
dos corpos.
A primeira tradio, a exemplo de Plato, apoiava-se na
dualidade do ser humano: uma alma encarnada num corpo,
do qual podia se separar, prosseguindo numa existncia
autnoma. A segunda baseava-se numa interpretao
fragmentria da frase bblica: D eusfez o hom em do p da terra,
insuflou em suas narinas o sopro de vida e o hom em tornou-se
um servivente". A interpretao palestina dessa frase (retomada
hoje no cristianismo) faz do ser humano, ser vivente, um
todo indissocivel. A morte do corpo corresponde, ento, ao
seu completo desaparecimento (inclusive a alm a) e a
ressurreio, a uma nova criao decretada por Deus. Se o
homem desaparece em sua totalidade, ele s pode renascer
nessa mesma totalidade no dualista, de onde a idia de uma
ressurreio de corpos.
A menos que essa concepo fosse uma perverso de idias
esotricas mais profundas, ensinadas somente aos iniciados.
Perverso acarretada por iniciados que no alcanaram a meta
de suas iniciaes. Para a Enciclopdia Judaica, no h dvida
de que: A crena na im ortalidade da alma veio aos ju deu s a partir
do contato com o pensam ento grego e, mais especialm ente, atravs
da filosofia de Plato, seu principal representante

Sabemos tambm que a tradio da Cabala judaica (a lei


oral e oculta do judaismo) faz referencia possibilidade de
reencarnao da alma humana. Urna das sees do Zohar, a
biblia dos cabalistas, denomina-se Livro da Transmigrao das
Almas". Explica ele que enquanto a alma humana no tiver
desenvolvido toda sua perfeio, cujos germes ela contm,
dever recomear vrias existncias, at que sua condio
permita-lhe retornar a Deus. Outras correntes judaicas aderem
ou aderiram a essa doutrina. Por exemplo, ohassidismo, nascido
no sculo 18 e do qual alguns grupos sobrevivem ainda nos
Estados Unidos.
H tambm uma crena popular de que crianas que
morrem com pouca idade so reencarnaes de almas mortas
prematuramente (por acidente ou assassinato, por exemplo) e
que no tiveram tempo de terminar seu perodo de existncia
terrena. Assim, elas precisam voltar por um curto perodo a
este mundo, a fim de que seu mandato seja plenamente
cumprido.
Quanto ao contato com os mortos, condenado pelo
judasmo, ainda que a possibilidade dessa comunicao seja
admitida. Sobre essa questo, um dos raros textos do Antigo
Testamento baseia-se no contato realizado pelo rei Sal e o
profeta Samuel, por intermdio da feiticeira de En-Dor, que
praticava a necromancia ou invocao dos mortos. No
obstante, no curso desse episdio fantstico, mencionado em
Samuel 28, 3, conta-se que Saul havia banido do pas os
necromantes e os adivinhos. No Deuteronmio 18, 9,
encontramos a seguinte passagem: Que no haja em vossa casa
ningum que exera a fu n o de adivinho, astrlogo, m gico,
bruxo, encantador, invocador de fantasm as e espritos, consultador

de mortos. Pois quem quer que fa a isso uma abom inao para
Yahv...". Para Isaas, consultar os mortos uma absurdidade:
Se vos disserem: consultai os que invocam os m ortos e os que
predizem o futuro, os que provocam assobios e suspiros, respondei:
Um p ovo acaso no consultar seu D eus? D irigir-se- aos m ortos
em fa v o r dos vivos?". Tratava-se de uma posio lgica para
um povo cujas concepes acerca da imortalidade estavam
longe de serem claras.

O cristianismo
Para apresentar a posio do cristianismo, o melhor consiste
em citar o catecismo oficial da Igreja Catlica, que se exprime
sem ambigidade sobre a questo: A m o rte o fim da
peregrinao terrena do ser humano, do tem po da graa e da
m isericrdia que Deus lhe oferece para realizar sua vida terrena
segundo o desgnio divino e para decidir seu destino supremo.
Quando chega ao fim o curso suprem o de nossa vida terrena, no
voltam os mais a outras vidas terrenas. Os seres hum anos m orrem
som ente uma nica vez. No existe reencarnao aps a morte".
Segundo este ponto de vista a m orte a conseqncia do pecado
origin al". Antes desse famoso pecado, em bora o ser hum ano
possusse natureza mortal, Deus o destinara a no morrer. A morte,
portanto, era contrria aos desgnios de Deus criador, e entrou no
m undo com o conseqncia do pecado". E a essa frase acrescentase um comentrio que toma uma dimenso toda especial em
nossa poca moderna: A m orte corporal, da qual o ser hum ano
teria sido poupado se no tivesse pecado, , assim, seu ltim o
inim igo a ser vencido".
Assim, a originalidade da posio crist reside nessa idia
que alega que a morte no existia no estado de den. Ela foi a

conseqncia da Queda do ser humano. Embora essa idia


seja de difcil concepo para nossa mentalidade moderna, um
aprofundamento pode nos trazer algumas luzes novas.
A interpretao crist da histria da Queda do ser humano
e do aparecimento da morte estritamente literal. Baseia-se
no texto da Gnese 2, 17: Quando com eres do fru to da rvore
do con h ecim en to do bem e do mal, m orrers. Deve-se crer,
ento, que antes da australopiteca L u de existia na Terra um
ser humano imortal? E bem mais fcil admitir que esse texto
faia de uma tomada de conscincia do fenmeno morte, num
dado momento da evoluo humana.

E que o ser humano rompeu seus laos com o mundo


natural e sua conscincia se individualizou o suficiente para
que a morte representasse a n ega o d e sua p erson a lid a d e.
No isso, ao mesmo tempo, uma queda e uma evoluo sem
precedente? Ao invs de explicarmos que a morte foi uma
conseqncia da Queda, podemos entender que a conscincia
da morte e a conscincia do bem e do mal representam as
conseqncias da perda do estado de inocncia do animal. Essa
ruptura ocorreu provavelmente h vrias dezenas de milhares
de anos, e a conscincia da morte tornou-se um dos produtos
dessa evoluo. Toda moeda tem sempre duas faces. O ser
humano, portanto, merece o qualificativosapiens tambm por
saber que mortal. Alguns antroplogos consideraram que os
primordios da civilizao coincidiram com a tomada de
conscincia da morte e com a utilizao de ritos acompanhando
infalivelmente essa conscientizao. Esses mesmos pesqui
sadores concluram, ento, que toda civilizao que negasse,
escondesse ou se desinteressasse pelo assunto apresentaria, por
isto, sinais de barbrie e de d eca d n cia inevitvel.

A posio da Igreja Catlica quanto escatologia tomou


forma definida e quase clara por volta do sculo 13, na poca e
sob a direo do Papa Benedito XII, chamado de o cardeal
branco antes de sua eleio para esse posto. Isso no significa,
claro, que antes desse perodo a Igreja no tivesse idias sobre
a questo. Foi nessa poca, porm, que o dogma se estabeleceu
de maneira duradoura. As idias de inferno e paraso que
aguardavam as almas aps seu julgamento, foi acrescentada a
do purgatrio. Para a Igreja de hoje: "a principal pena do inferno
consiste na eterna separao de Deus, o nico no qual o ser humano
p od e ter a vida e a felicid a d e para as quais e le fo i criado e s quais
ele aspira", enquanto que a noo de cu supe uma vida
perfeita de comunho e amor com a Santssima Trindade.
Podemos facilmente considerar que a noo de purgatrio
foi introduzida sob a presso de pensadores e do povo, os quais
decidiram que no compreendiam mais essa justia divina. Uma
justia impunha aos errantes ou pecadores finitos uma sano
eterna. Ento, os prelados im aginaram um perodo de
purificao que operaria em prol das almas impuras mas
suscetveis de redeno, a fim de que fossem preparadas para
o julgamento final redentor. Pelo menos, isso o que afirmam
alguns historiadores modernos, como J. le Goff. Mas a verdade
que a idia do purgatrio estava no ar h muito mais tempo.
Santo Agostinho j afirmava sua existncia, ainda que seu
pensamento no fosse nem claro nem exato. Do mesmo modo,
Orgenes, no sculo 3, exps a existncia de uma purificao
pelo fogo. A Igreja soube, a partir do sculo 12, limpar e clarear
essa idia, a fim de que a noo de justia divina ficasse
preservada no pensamento das massas.
Na verdade, a doutrina crist, em matria de escatologia,
esteve longe de ser estvel e unificada ao longo dos sculos.

Delicadezas de linguagem ou de concepo foram surgindo


atravs da Histria. Por exemplo, a respeito da ressurreio
dos corpos. Seguindo as epstolas de Paulo, a Igreja ensina
que, no fim dos tempos, as almas consideradas dignas assistiro
a uma ressurreio de seus corpos carnais. Uma das passagens
do Smbolo dos Apstolos (o principal artigo da f crist,
adotado nos concilios de Nice e Constantinopla) alude a essa
crena. Sem dvida alguma, a Igreja, nessa poca, ensinava o
renascimento do corpo, em carne e osso, aps sua putrefao
no seio da terra-me. Segundo telogos modernos, essa noo
da ressurreio do corpo carnal presumiria a crena na
preservao da individualidade humana na presena divina.
Eles a opem idia budista do Nirvana, que corresponde a
uma fuso na qual o ser humano perde sua identidade prpria.
Mas isso pouca importncia tem para o estudante imparcial.
Ele observa que, tanto num caso como noutro, o estado descrito
ultrapassa grandemente toda e qualquer tentativa de descrio
humana. A natureza da suprema e derradeira experincia
escatolgica representa, de fato, o mistrio dos mistrios.
K curioso notar que, alguns milhares de anos antes da era
crist, uma outra civilizao aderiu a essa idia de renascimento
material do ser humano. O Egito embalsamava os cadveres
de seus grandes governantes. Acreditava-se ento que a mmia
poderia ser reanimada pelo sopro de vida, aps 3000 anos
passados na manso da morte. Teria sido por causa dessa
similitude nos conceitos que o cristianismo pde se impor mais
tarde no Egito, num terreno j preparado para a nova religio?
No entanto, desde o comeo da Igreja, um de seus Pais - e
no um de seus ministros - argiu contra a idia da ressurreio
do corpo. Orgenes, no sculo 3, numa concepo mais

prxima dos neoplatnicos com os quais estudou, ensinou,


por sua vez, a sobrevivncia de um corpo espiritual ou de um
corpo glorioso. Nesse sentido, ele fez eco fortemente s palavras
de So Paulo: Assim d'se a ressurreio dos mortos. Somos
sem ea d os co rru p tv eis, elev a m o -n o s in co rru p tv eis; som os
sem eados desprezveis, elevam o-n os gloriosos; som os sem eados
fracos, eleva m o-n os fo rtes; som os sem eados corpos psquicos,
elevam o-n os corpos espirituais. Se h um corpo psquico, h um
corpo espiritual. O prim eiro hom em , tirado do solo, terreno; o
segundo hom em vem do cu. Eu os declaro irmos: A carne e o
sangue no podem herdar, do reino d e Deus, nem a corrupti
bilidade da incorruptibilidade. I Corintios 15, 42-45. Alis,
ser que devemos acreditar na ressurreio dos corpos carnais?
O mundo cientfico nos prova hoje que o mundo material (e,
portanto, a carne) so iluses decorrentes das limitaes
inerentes aos nossos cinco sentidos fsicos. Sabemos, por
exemplo, que um tomo, longe de apresentar a opacidade que
percebemos, na verdade formado de imensos espaos vazios.
Se a carne renasce, como descrevem as religies monotestas,
isto significa que as iluses renascem tambm com ela. E se as
iluses no renascerem, ento porque todo nosso mundo
ser transformado e o termo carne no ter mais razo de
ser, no sentido como o entendemos habitualmente.
Mas a singularidade de Orgenes no cessa a. Ele escreveu,
por exemplo, que a alma preexistente sua manifestao
terrena (o que no um conceito bvio para os telogos, que
no sabem determinar se a alma ou no criada no nascimento
da criana), e que depois da conflagrao do nosso mundo, no
fim dos tempos, outros mundos se sucedero. Explica ele que
irem os todos para o paraso\em outras palavras, que at mesmo
os demnios sero salvos. Mas isso no tudo. A exem plo de

outros Padres da Igreja primitiva, como So Justino, Clemente


de Alexandria ou Sinsio (em seu tratado sobre os sonhos), a
Histria atribui-lhe uma crena na reencarnao. Eis a traduo
de um trecho do "Tratado dos Princpios de Orgenes: Os corpos
possuem apenas im portncia secundria e aparecem de tem pos a
tem pos em resposta s con d ies variveis das criaturas racionais.
As que necessitam de corpos se revestem deles e, ao contrrio,
quando as almas cadas se elevam e se tornam melhores, seus corpos
so outra vez aniquilados. Assim, elas desaparecem e aparecem
incessantem ente. Por tudo isso, Orgenes foi um dos primeiros
homens realmente msticos a propor oficialmente uma
interpretao alegrica dos grandes textos sagrados. Sua
filosofia foi condenada pelo II Concilio de Constantinopla, no
ano 553.
Ao menos nisso que se acredita geralmente, pois no h
nenhuma prova indiscutvel de que o Papa Viglio, que presidia
a Igreja nessa poca, tenha dado sua aprovao a essa
condenao. Ele estava em conflito com o imperador bizantino
Justiniano, que estava tentando fazer do cristianismo uma
religio de estado. O Papa Viglio havia protestado ento contra
a convocao do Concilio de Constantinopla. Em todo caso,
foi depois dessa poca que o mundo cristo passou a ignorar a
reencarnao.
Entretanto, depois dessa poca, outros eclesisticos cristos
se pronunciaram a favor da reencarnao. O Cardeal Mercier,
por exemplo, escreveu em 1923 que as idias de reencarnao e
m etem psicose ou transm igrao das alm as p odem ter sentidos
diferentes: ou bem significam uma srie de existncias sucessivas,
a tra vs das q u ais a a lm a co n serv a a c o n s ci n cia d e sua
personalidade e qual est destinado um fim determ inado; ou

ento um a seq n cia d e vidas repetidas sem fim determ inado,


d u ra n te a q u a l a alm a no gu a rd a a co n scin cia d e sua
personalidade, ou seja, um a sucesso in defin ida de existncias
qu e a alm a atravessa, sem gu arda r a con scin cia d e sua in d i
vid u alid ad e. Por fim, concluiu: No que con cern e a prim eira
dessas hipteses no vem os q u e a razo deva n ecessariam en te
t-la co m o fa lsa ou im p ossvel.
Na verdade, uma tradio oral porm tenaz, visto que
perdura at nossos dias, explica que os primeiros cristos
aderiram sem dificuldade idia da reencarnao. J vimos
que essa crena era comum entre muitos judeus da poca
do Cristo. Seria mero acaso o fato de o Novo Testamento
refletir isso complacentemente em um dilogo envolvendo
o Cristo e seus discpulos? (Mt 16, 13-18). Por que, em vez
de se contentar em dar razo a Pedro quando ele deu sua
compreenso da verdadeira identidade de Jesus, este no
aproveitou a oportunidade para fustigar as crenas de ento
referentes suposta reencarnao de profetas?
Mas voltemos questo da ressurreio dos corpos. A
Igreja atual coloca a tnica numa posio mais espiritualista,
visto que hoje ela ensina que o corpo no qual o ser humano
est destinado a ressuscitar no fim dos tempos ser seu corpo
transfigurado em um corpo de glria ou corpo espiritual.
Em outras palavras, a antiga atitude relativa a uma
imortalidade do homem dentro do mundo material est
sendo progressivamente abandonada por uma posio mais
espiritual. Contudo, resta uma ambigidade mantida e no
claram ente resolvida em relao s duas concepes:
ressurreio com um corpo espiritual ou com um corpo
carnal.

Associado ao tema da ressurreio, difcil esquecer o


do Julgamento Final, revelado no Apocalipse de So Joo
(a palavra A pocalipse significa Revelao). Aqui, vemos
surgir a figura central do Cristo que, acredita-se, julgar os
mortos quando de seu advento ou parusia. Nessa ocasio,
est escrito que a morte e o Hades sero julgados e
destrudos como resultado da lgica inversa, que v a morte
aparecer no mundo em razo do pecado. Nesse Julgamento,
vemos irromper toda uma pliade de temas simblicos. Os
mortos sero examinados segundo suas obras, gravadas no
livro da vida. Os que forem considerados injustos sero
lanados num lago de fogo, o que corresponde a uma
segunda morte. Curiosamente, o grande juiz dos mortos, a
segunda morte na aniquilao, o lago de fogo e o triunfo do
ser humano sobre a morte so temas que se encontram...
no Livro dos Mortos dos egpcios antigos! Do mesmo modo,
o livro, na qualidade de memria das aes, um smbolo
encontrado sob diversas formas em muitas tradies, e que
h de falar m uito elo qen tem en te aos verdadeiros
buscadores.
Podemos nos guardar de fazer sincretismo primrio.
Entretanto, aqui seria preciso complicar as tradies e se
concentrar demais nos detalhes para no se perceber o elo
evidente que as une em suas linhas principais. Um elo que
certamente no deve nada ao acaso. O medo do sincretismo
muitas vezes subentende a angstia, muito legtima, em relao
a um totalitarismo que, longe de desenvolver o conhecimento,
tornar-se-ia um pensamento nico. Mas a verdadeira sntese,
que seria o reflexo de uma religio universal, deve preconizar
a tolerancia e o direito de cada indivduo de exprimir sua
prpria compreenso de determinadas leis gerais. ento que

o sincretismo aproximaria os seres humanos numa compre


enso superior, ao invs de negar ou de nivelar suas
particularidades.
O Cristo Salvador e Redentor da religio crist intervm
igualmente no mago de algumas crenas antigas. Com efeito,
os cristos, at a Idade Mdia, acreditavam que, antes da vinda
do Salvador, at mesmo as almas dos santos teriam domiclio
no inferno aps a morte. Tratava-se, todavia, de uma zona
superior do inferno, denominada limbos ou seio de Abrao .
Nesse lugar obscuro, separado do resto dos infernos, as almas
dos justos gozavam do repouso, mas aguardavam a vinda da
luz. Uma lenda crist explica que durante os trs dias de sua
Paixo, o Cristo desceu at esse lugar para libertar os justos,
que aguardavam sua vinda. Tambm aqui a mensagem fica
clara: o ser humano no pode salvar a si mesmo completamente.
Somente o Deus Salvador veio, h dois mil anos, tirar a raa
humana de sua situao perdida. Mais tarde, por ocasio da
grande conjuno, o prprio mal e a prpria morte sero
erradicados.
Em geral, o cristo tem medo da morte. Conseqncia do
pecado, ela representa para ele uma inimiga implacvel que
ser vencida somente no fim dos tempos. O ser humano no e,
em si mesmo, imortal, mas reviver graas interveno divina.
Um telogo, o professor Olafsson, assim se expressou numa
revista judaico-crist: O ser hum ano no um ser com posto corpo, alma e espirito mas, sim, um ser form a n d o um todo,
[ ...] assim sendo, no m om ento da m orte, a alma deixa de existir
[...]. Na morte, a pessoa inteira que morre". Trata-se, para ele,
de uma primeira morte; mais adiante, porm, ele evoca o

grande julgamento que dever preceder a ressurreio ou a


aniquilao: % segunda m orte p erm a n en te, o fiim definitivo
da vida no tem po da suprem a elim inao do m al no universo"
Agora podemos entender por que motivo o cristo teme a
morte. Ela corresponde ao desaparecimento completo de sua
existencia, seguido de um perodo de vazio cuja coroao ser
um julgamento. Esse ver os bons se elevarem a um paraso e
os maus serem ou lanados no inferno ou aniquilados. Raras
so as pessoas que podem afirmar sua santidade no momento
da grande partida.
Em contrapartida, os judeus no temem a morte. Os de
hoje aceitam a idia da imortalidade da alma e no fazem da
morte uma inimiga, mas uma necessidade inerente aos ciclos
naturais. Para eles, no haver um tempo em que a morte ser
abolida. Pessoalmente, no creio nisso; existe um ciclo b iolgico
que nos perm ite pensar que isso durar assim p or todos os tem pos ",
confidencia o dirigente de uma sociedade cultural israelita. Por
conseguinte, a morte compreendida pelo mundo judeu como
uma lei natural.
Paradoxalmente, as religies monotestas no aceitam
oficialm ente a idia da reencarnao, mas fazem da
conservao da individualidade inteira o tema central de sua
ressurreio. O budismo, por sua vez, ensina a iluso do ego
e seu desaparecimento, ao mesmo tempo em que afirma a
idia da reencarnao. H ou no h contradies flagrantes
no mago de cada corrente de pensamento? No haveria uma
posio capaz de realizar a sntese dessas concepes, na
forma de um mistrio que transcende a compreenso
humana?

O Isl e a morte
A concepo clssica da morte, entre os muulmanos, de
fato diametralmente oposta do mundo judeu. Enquanto esse
ltimo glorifica a vida, fazendo de sua suspenso uma fatalidade
decidida por Deus, o muulmano, sem chegar a louvar o suicdio,
v na morte um propsito desejvel. Os textos do Coro incitam
o combatente do Djihad, a Guerra Santa, a morrer por sua f:
E no digais, dos que so assassinados na senda de Al, que eles
esto mortos. Ao contrrio, eles esto vivos, mas vs sois inconscientes
disto. Coro 2,154. A eles, o paraso onde sero acolhidos: uNesse
dia, os com panheiros do jardim se deleitaro no trabalho, com suas
esposas purificadas (as huris de grandes olhos negros), sombra,
recostados em divs. L, no deleite a que aspiram ... tero por
morada jardins onde correm riachos. E os farem os fica r sob uma
copa sombrosa. E tero ju n to a si belas de olhos grandes (as huris),
de olhar casto, semelhante ao branco bem preservado do ovo. Faremos
circular entre eles uma taa de gua retirada de uma fo n te alva,
saborosa de b eber... , etc.
A compreenso da morte, pelo mundo muulmano, pode
ser comparada de Plato (o que, alis, provavelmente explica
a facilidade com que os sufis se assenhoraram das doutrinas
platnicas). O ser humano vive em exlio na terra, tendo perdido
o contato com Deus. Sua vida deve constituir um exemplo de
submisso Divindade (uma das interpretaes da palavra isl
submisso). Somente depois da morte, graas a uma
reconciliao, ele ter novamente acesso viso do Altssimo,
numa paz inefvel. Assim, a morte seria uma espcie de
libertao cheia de promessas para o muulmano. A ela,
sucede-se um julgamento no dia da retribuio. Existe aqui
uma visvel distino em relao ao cristianismo. A medida com
que o mortal julgado no pesa diretamente as virtudes que

ele praticou durante sua vida. No se trata aqui de moral


crist. Na realidade, ser considerado digno do paraso aquele
que aceitou a mensagem do Coro. A adeso f to
importante que, segundo a palavra do profeta, Deus con ced e
o paraso a todo m orto atrs do qual se alinhem trs fileira s
para a p r e c e . No se faz referencia ao seu modo de vida. No
entanto, trata-se de uma diferena superficial, pois, as
entrelinhas, o Coro contm efetivamente um cdigo de vida
moral.
Em seguida ao julgamento final, assim como no cristianismo
mas de m aneira mais direta, faz-se referencia a urna
ressurreio do corpo ou a urna eterna estada no inferno. Devese reconhecer que, embora o texto possa ser interpretado
tambm de maneira simblica (como a maioria dos textos
sagrados), a fora das imagens conseguiu nutrir por muito
tempo a f simples dos beduinos e dos rabes no renascimento
de seu prprio corpo fsico. A surata 75 do Coro assim exprime
a ressurreio:
3. Pensa o ser hum ano que nunca reunirem os seus ossos?
4. Ah, sim l S om os ca p a z es d e c o lo c a r n o lu g a r as
extremidades de seus dedos.
24. E, nesse dia, haver vises assombrosas,
25. Que aguardam catstrofes p or sofrer.
40. No Ele (Al) capaz de fa z er reviver os m ortos?
Mas, ainda aqui, pode-se perguntar se o texto no deve
ser visto como uma alegoria. Nesse caso, ele poderia
descrever a ressurreio do ser humano espiritual, no sentido
com que Orgenes, um dos Pais da Igreja Catlica, o
entendia.

Existem algumas crenas difundidas no mundo rabemuulmano. Por exemplo, a que explica que o morto, enterrado
conforme os preceitos do Coro, aguarda que Azrel (o anjo da
morte) venha conduzi-lo, pela mo direita ou pelos cabelos, at
o paraso de Al. Azrel tido tambm como aquele que separa
a alma do corpo daquele que acaba de morrer. Chegando ao seu
destino, dois anjos visitam o recm-chegado e o interrogam acerca
de questes relativas aos principais artigos de f do muulmano.
por isso que os vivos recitam, depois do enterro, certos textos
que lhe sugerem as respostas a serem dadas.
A atitude do moribundo pouco antes de sua partida muito
importante no isl. Vrias frases atribudas ao profeta referemse atitude necessria: "Que qualquer um de vs m on a som ente
tendo boa opinio de Deus. Lembrai aos vossos moribundos, em
seus ltim os m om entos /a frm u la da f]. Al o nico Deus.
Aquele cujas ltim as palavras fo rem Al o nico D eus ir para
o paraso.
Depois de morto, o corpo da pessoa lavado, em seguida
envolvido em trs peas de tecido, de preferncia branco.
Depois, enterrado sobre seu lado direito (nos pases rabes),
com o rosto voltado para a qibla (a meta), representada pela
Kaaba ou Pedra Negra de Meca. Preces para o morto podem
ento ser feitas, mesmo na ausncia do corpo.
claro que no isl, como em muitas outras religies, existem
correntes mais esotricas. Movimentos, como o sufismo, aceitam
de bom grado a doutrina das reencarnaes sucessivas. Um
pensamento atribudo a Maom possui informaes ricas de
implicaes: R ecebi do m en sageiro d e D eus dois tipos de
conhecim ento. Ensinei um deles, mas se eu houvesse lhes ensinado

o outro, ter-lhes-ia calado a voz. A respeito disso, alis, algumas


suratas do Coro do estranhamente o que pensar, anda que
no constituam provas irrefutveis: Como podeis renegar Al,
urna vez que Ele vos deu a vida quando reis mortos, depois Ele
vosfa r m orrer e depois Ele vosfa r reviver e, p orfim , retornareis
a E le 2, 28. No vistes os que saram de suas m oradas (h
milhares delas) p or m edo da m orte? Depois Al lhes disse: Morrei.
Aps o qu, Ele os d evo lveu vida. Sim, Al d eten tor da
m isericrdia para com as gentes; mas a maioria delas no grata
2, 243.
Os sbios sufis apresentam-se como detentores de fato do
conhecim ento esotrico evocado pelo profeta. Desse
conhecimento, algum as luzes, como raios fulgurantes,
perpassam, de tempos em tempos, o Coro. Um outro
movimento semelhante ao isl tambm defende a idia da
reencarnao. Os drusos do Lbano ensinam que a alma, aps
sua transmigrao, reencarna-se imediatamente. Acreditam
tambm que, entre eles, nascem somente almas de antigos
drusos que morreram.
Vale dizer que a viso da reencarnao do esoterismo
muulmano totalmente diferente daquela do budismo.
Enquanto o budismo v no renascimento uma maldio que o
ser humano lana contra si mesmo, o isl esotrico v nele uma
nova chance para a alma chegar perfeio. Entretanto, mais
uma vez, para alm das divergncias de viso, a concluso da
histria, tanto para o sufi como para o budista, a mesma, ou
seja, o fim das encarnaes quando a mestria alcanada. Alis,
possvel que a diferena de anlise tenha uma relao direta
com o carter dos dois fundadores dessas religies. Maom
era um guerreiro, abocanhava a vida com todos os dentes (teve

nove esposas). Ao passo que Sidarta Sakyamuni era, segundo


a lenda, filho de um rei, muito protegido na infncia, que
conheceu tarde a morte, a velhice e a misria dos homens. Essa
experincia o marcou para sempre. No podemos ser parcos
na compreenso da personalidade dos grandes fundadores de
religio. O ensinamento deles foi forosamente tingido por sua
educao, sua cultura e sua psicologia prpria, bem como as
de seu povo. Seus discursos, relativamente ao verdadeiro cerne
de sua doutrina, so como a casca que envolve a polpa da noz;
nada mais so que o invlucro. Alguns devotos s se interessam
pela casca, ao passo que os mais clarividentes aspiram a comer
apenas a polpa viva.
Existe ainda um assunto interessante a ser abordado. Trata
se da viagem, quase miraculosa, que o profeta Maom teria
feito, certa noite, pela graa do Altssimo, entre a mesquita AlHaram de Meca e a mesquita Al-Aqsa de Jerusalm. Esse
milagre est narrado na Sira, a biografia oficial do profeta. A
Sira foi composta no sculo 8 por Ibn Ishaq, um letrado que
consagrou sua vida pesquisa das tradies relativas ao profeta.
A histria relata que, por um meio miraculoso, o profeta foi
transportado a Jerusalm. Chegando ao local que se tornou a
mesquita de Jerusalm, Maom subiu ao cu por uma escada,
conduzido pelo anjo Gabriel. Se os exegetas no concordam
entre si sobre os detalhes dessa experincia, a um s tempo
viagem fabulosa e ascenso celestial, os telogos muulmanos
vem nela uma viagem da alma rumo a Deus e um modelo
escatolgico. So as seguintes as etapas da ascenso: Maom
sobe uma escada, a mesma que se estende para o moribundo
no instante de sua morte. Chega diante de um portal, chamado
Grade dos sobreviventes, que guardado pelo anjo Ismael,
enquanto Gabriel lhe serve de guia durante toda sua elevao.

Maom chega, ento, ao primeiro cu, onde todos os anjos lhe


sorriem, exceto Malik, o guardio do inferno. Esse primeiro cu
contm, na verdade, o inferno. O profeta assiste, ento, aos
sofrimentos terrveis que se desenrolam ante seus olhos. Ele
encontra Ado, o primeiro homem, que julga seus descendentes.
Depois, Maom entra no segundo cu e encontra os doispnm os
de Jesus e o apstolo Joo. No terceiro cu, ele v Jos, filho de
Jac, e, no quarto cu, Idris. No seguinte, um homem barbudo,
de cabelos brancos, aborda-o: trata-se de Aaro, irmo de Moiss.
O prprio Moiss, ele encontra n o sexto cu e, no stimo, Abrao
pega sua mo e o conduz ao paraso.
Essa ascenso , de fato, muito til para ilustrar o tema de
que nos ocupamos. Como em m uitas tradies, nela
encontramos um condutor, Gabriel; um guardio, Ismael; e
um guardio dos infernos, Malik. Encontramos igualmente
um juiz, que encarnado aqui por Ado, o primeiro homem.
Cada uma dessas personagens representa, na verdade, um dado
personificado da experincia. Na surata 17 do Coro, versculo
44, AlIsra, a viagem noturna, alude a essa ascenso aos sete
cus: Os sete cus e a terra e os que nela se encontram celebram
Sua gl ria . O versculo 21 tambm faz aluso a uma espcie
de hierarquia das almas depois da morte: Vede co m o
fa vo recem o s algum as mais que a outras. E, no alm, h classes
mais elevadas e mais privilegiadas. Isso lembra aquela frase do
Cristo: Na casa de m eu Pai h m uitas m oradas, Joo 14,2.
Todos esses dados parecem ser um leitm otive, que, mais
adiante, veremos que aparece em grande nmero de culturas.
Se os telogos muulmanos viram na ascenso do profeta uma
prefigurao do destino das almas dos mortos, Ibn Arabi, um
dos sufis mais clebres do sculo 8, interpretou-a como o
modelo da emancipao da alma, a qual precede sua unio

mstica com Deus. Para ele, trata-se, portanto, de uma


experincia espiritual. Veremos, alis, que sempre muito difcil
desemaranhar as descries das experincias ligadas s diversas
escatologias e a codificao de experincias msticas. Umas e
outras muitas vezes so parecidas. Ibn Arabi, em R evelaes,
pe em cena um filsofo e um mstico que fazem, juntos, a
viagem para o cu. O primeiro pra no stimo cu, enquanto o
mstico admitido aos mistrios divinos. Segundo essa histria,
haveria, portanto, outros nveis de experincias, superiores ao
stimo cu. Do m esm o m od o, p od era m os concluir da que a
ascenso da alma aps a morte aconteceria atravs de um
nmero superior a sete nveis.

O Egito antigo
Uma vez que as religies monotestas modernas foram
abordadas, convm agora nos debruarmos sobre as culturas
mais antigas, comeando pelo Egito antigo. O Egito foi um
dos principais beros da civilizao, embora no tenha sido o
nico. A Sumria e a ndia podem igualmente reivindicar uma
antiguidade e uma influncia fundamental. Alguns estudiosos
afirmaram que os prprios gregos teriam tirado sua inspirao
mitolgica nos grandes mitos do Egito antigo. Deve-se
reconhecer, alis, que alguns deuses gregos possuem prottipos
egpcios. O deus grego Hermes, por exemplo, tem seu
equivalente em seu primo prximo, o egpcio Toth, tanto que,
quando da helenizao do Egito, a partir do sculo 4 antes de
Jesus Cristo, os dois eram um s.
O Egito enfrentava a morte no sem um certo medo, mas
com a certeza da vitria. Isso constitui, de fato, a originalidade
dessa cultura. Grande parte das atividades polticas, sociais e
religiosas desse povo girava em torno do tema da morte. O

Egito fazia da conquista do alm um verdadeiro empre


endimento. Inicialmente, o privilgio de dominara morte era
exclusivo dos faras, considerados representantes de Deus na
terra. Depois, a partir do fim do Antigo Imprio, essa prtica
se democratizou. O Egito apresentou uma das primeiras
tentativas de balizar o percurso da alma depois da morte.
Tratava-se de delimitar a morte, de fazer triunfar a vida sobre
a morte. Nas tumbas, junto aos corpos mumificados, os
egiptlogos encontraram grande nmero de exemplares do
famoso Livro dos M ortos. Segundo a crena, esse livro indica
ao viajante do alm as frmulas que lhe permitem triunfar nas
provas que o aguardam antes de atingir a imortalidade. A
primeira noite depois da morte conduz o morto rumo luz da
manh, aps uma jornada que, a exemplo do priplo noturno
do deus R, tem a durao de doze horas. O livro um conjunto
ilustrado de frmulas de poder e de cenas cujo objetivo
permitir ao interessado evitar aquilo que ele temia acima de
tudo: a segunda morte. Nessa espcie de drama ritualstico, o
morto se v confrontado por vises. Um a um, ele se identifica
aos deuses ou ao seu prprio medo de desaparecer, aludindo,
assim, dualidade do ser humano.
Primeiramente, a alma cruza o portal da morte que leva ao
alm. E, ento, ofuscada pela plena luz do dia . Notem aqui
que o lugar da luz do dia , paradoxalmente, o alm. A
propsito, o verdadeiro nome do Livro dos Mortos Sada
para a Luz do Dia. Do mesmo modo, o deus Osfris, soberano
desse mundo, porta o ttulo de Sol dos Mortos, como se a
esfera realmente desejvel para o homem fosse esse reino. A
alma, ao retomar sua conscincia, sente uma atrao irresistvel
por seu corpo, para o qual se volta. Entretanto, as entidades a
afastam do tmulo. Ela vai, ento, atravessar uma regio de

trevas, que a leva, depois de mltiplas peripcias (dentre as


quais um combate com a serpente do mal, Apfis), at diante
de Osris, o deus bom e perpetuamente regenerado, que triunfa
eternamente sobre a morte. A morada do rei do mundo inferior
A m enti ou Pas do Ocidente. Nesse pas, encontra-se tambm
o Duat. Um lago de fogo e os campos de fogo que cor
respondem ao inferno esto situados nele.
Ali, o morto glorifica Osris, do qual emana um poder
extraordinrio de redeno e salvao. /Osris o deus
sacrificado e desmembrado, cuja esposa, Isis, reuniu suas
partes espalhadas, dando-lhe assim acesso imortalidade.
Trata-se de uma espcie de prefigurao do Cristo. Em
seguida, o morto comparece ante o tribunal de Osris, na
presena de doze dos principais deuses do panteo egpcio.
Na ordem de distribuio, so eles: Anbis, o deus com cabea
de chacal, guardio do portal e guia dos mortos; Hrus, com
cabea de falco, cujo olho o nico que pode contemplar a
luz diretamente; Isis, esposa de Osris, e Nftis, sua irm; em
seguida, Toth, o deus com cabea de bis, deus dos escribas e
da sabedoria; Maat, deusa da verdade-justia, com seu
emblema, a pluma de avestruz... Quarenta e dois juizes
assistem ento clebre pesagem do corao do morto. A
estrela desse tribunal (como o leitor j deve ter adivinhado)
incontestavelmente Osris, diante do qual ergue-se a balana
da justia. No topo de seu eixo, zelando, v-se um smio,
emblema de Toth.
Agora, deixe sua imaginao transport-lo ao Egito antigo,
a fim de interpretar os smbolos. A pesagem do corao realiza
se na presena de Maat, que representa a lei, a verdade
universal e a norma divina. Em outras palavras, a conscincia

do morto (uma vez que o corao era tido como a sede da


conscincia moral) v-se confrontada com as leis e a ordem
universais. Um recipiente, no qual se encontra o corao ou Ab,
colocado num dos pratos da balana. No outro est a pluma
de avestruz, smbolo de Maat. O corao deve ser mais leve que
urna pluma. No o que se diz da pessoa que possui uma
conscincia tranqila, que ela tem o corao leve? Toth faz as
vezes de escrivo; ele vai anotar os resultados do julgamento. Se
o morto julgado digno, ele consuma a unio mstica com Osris,
identificando-se assim com o deus. Deve tambm pronunciar a
confisso negativa de Maat e seus 42 preceitos.
A partir desse momento, uma nova vida, feita de liberdade
absoluta, comea para ele. Ele percorre o cu, a terra e o mundo
inferior, realiza uma viagem em companhia das estrelas, pode
se transformar vontade em diversos animais ou plantas, e se
unir aos deuses. A viagem se efetua a bordo da barca do sol.
No caso em que sua culpabilidade fique estabelecida, ai dele!,
pois devorado por Babai, o devorador, um monstro com
cabea de crocodilo, corpo de leo e parte traseira de
hipoptamo. Em seguida, lanado no nada, sofrendo a
segunda morte.
Os egpcios antigos acreditavam que o Livro dos Mortos
lhes fora ditado por Toth. Na verdade, ele contm numerosas
e extraordinrias verdades esotricas, intencionalmente veladas
aos profanos. O morto declama, por exemplo, a seguinte
invocao, tida como capaz de atrair para si a assistncia dos
grandes deuses:
Eu sou o Ontem, Eu sou o Hoje, Eu sou o Amanh. Atravs
de m eus m uitos nascim entos, Eu perm a n eo jo v em e vigoroso.
Eu sou a Alma Divina e misteriosa que, outrora, criou os deuses

e cuja essncia oculta nutre as divindades do Duat, do Amenti e


do Cu. Eu sou o govern a n te do Oriente, Senhor das duas fa ces
divinas. M eu esp len d or ilu m in a tod o ser ressuscitado que,
enquanto passa no reino dos m ortos p or transfonnaes sucessivas,
busca penosam ente seu cam inho atravs da regio das trevas.
Em verdade, eu sou Rl
E, em contrapartida, R eu!"
Alguns autores acham que esse livro descreve iniciaes.
Aqui se acha o elo sutil que une, desde a mais remota
Antiguidade, a escatologia e a iniciao, tanto que a morte foi
denominada A Grande Iniciao. Por ocasio de sua descoberta
pelos egiptlogos, o carter quase irracional desse livro levouos a consider-lo como um sinal da esquizofrenia de seus
autores. E verdade que a abundncia de suas imagens,
simultaneamente mgicas e mitolgicas, consegue chocar a
mentalidade racionalista. De fato, ele funciona quase como um
sonho; a maior prova disso que o morto assume, no drama,
vrias caractersticas diferentes e contraditrias. Ele descreve,
portanto, um outro modo de se apreender a verdade, pela
face oculta do real. No se poderia ver, alis, em todos os
personagens e deuses do drama as diversas faces da mesma
pessoa falecida?
Cada deus ou neter representa um grande princpio ou uma
grande fora do universo material ou espiritual. Sugeriria o
Livro que o morto, depois da passagem, une-se a essas grandes
foras, num casamento csmico?
A morte, para os egpcios, consistia na separao de trs
partes principais constituintes do ser humano: o B a ,

representado na forma de um pssaro e que pode ser


comparado nossa alma; o K a, considerado como o duplo do
morto; e o K hat, que representa o corpo psquico. De dia, Ba
assume diversas aparncias e, noite, retorna ao tmulo. As
supersties levaram o povo a crer que Ka, cuja tumba era
chamada de a casa de K a , precisava ser alimentado. Mas a
verdade um pouco mais complicada que isso. Entre Ka e Ba,
existe Khaibit, sombra e substrato dos desejos elementares, das
paixes animais, dos vcios... (a lixeira do inconsciente dos
psicanalistas). Em razo de seu estado negativo, Khaibit corre
o risco de ser destruido, devorado no alm. Ele se manifesta
sob a forma de um fantasma, o involucro ou a concha vazia
dos cabalistas.
Acima
de Ba, a alma, vem o espirito santificado {IafyJm ou
y
K hu). E o atributo do iniciado que habita os campos da paz na
companhia dos deuses, longe dos lugares de perdio. Mais
acima ainda, est Sahu ou o corpo glorioso. Redeno da matria
e do corpo material do morto, ele representa o supra-sumo da
espiritualizao do falecido. E assim seria a estrutura
escalonada do ser humano. Os egpcios, todavia, mencionavam
ainda dois princpios muito importantes: o nome mgico ou
Ren e o poder mgico ou Sekjiem. Esquecer o nome significava
meter-se em apuros no alm. Conhecer o nome de um espirito
ou de um deus significava ter poder sobre ele.
Iakhu, Sahu e Ren no correm o risco da segunda morte,
pois residem no amago de Osris. Vale observar que o espirito
santificado constitui o produto da purificao ritualstica do
falecido. Em outras palavras, de sua conduta moral e reta.
Assim sendo, para o egpcio de ento, determinadas partes de
seu ser estavam sujeitas segunda morte ou aniquilao,

enquanto outras estavam destinadas imortalidade. Aqui,


estamos bem longe dos conceitos atuais relativos passagem,
que implicam o desaparecimento do ser humano total. Assim,
comparemos essas concepes com as idias relativas ao
Julgamento Final nas religies monotestas. O Apocalipse de
Joo fala de um julgamento separando os bons dos maus, os
justos dos mpios, etc. Se, em lugar de dividir a humanidade
em dois campos, considerssemos a possibilidade de o bem e o
mal pertencer a uma mesma e nica pessoa, ento a escatologia
tomaria uma forma totalmente diferente. A morte corres
ponderia ento purificao de um mesmo ser, separao do
joio e do trigo nele mesmo. Para garantir a eternidade ao morto,
os egpcios utilizavam conhecimentos quase mgicos ou
tcnicos. Acreditava-se, por exemplo, que algumas conjunes
astrais contribuam para rejuvenescer o fara, dando-lhe acesso
a uma relativa imortalidade.
A prtica do embalsamamento visava conservar o corpo, em
vista de sua possvel ressurreio. Uma outra razo tinha origem
na seguinte crena: para preservar o Ka, devia-se conservar
ileso o cadver. Antes de sepultar o cadver, era preciso
embalsam-lo, pois acreditava-se que somente um corpo
preparado podia ter acesso s moradas e t e r n a s O corpo era
primeiro lavado e uma pequena inciso feita no abdmen
permitia retirar as vsceras. A massa cerebral era extrada com
a ajuda de um gancho introduzido pelas narinas. A caixa
craniana era, ento, preenchida com resina lquida. Em seguida,
o corpo ficava macerando em natro durante sessenta dias, e
depois os embalsamadores untavam-no com preciosas
substncias odorferas base de ervas e resinas. Por ltimo,
envolviam-no em bandagens de linho. Na hora de colocar o
corpo no tmulo, realizava-se o ritual chamado abertura da

b o ca , que permitia ao morto alimentar-se no alm, mas


principalmente recuperar o alento e a fala que davam-lhe a
chance de alcanar a felicidade eterna. O papiro contendo o
texto do Livro dos Mortos era, ento, colocado entre suas mos.
O historiador grego Herdoto explicou que a origem da
crena na reencarnao, que pode ser atribuda a alguns gregos
(pitagricos, platonianos, rficos, etc.), estava no Egito. Alguns
estudiosos acham que a f na ressurreio dos
corpos surgiu

3000 anos depois da crena na reencarnao. E preciso admitir,


porm, que as pesquisas atuais dos egiptlogos no permitem
confirmar essas afirmaes. Com relao a esses aspectos,
portanto, temos de nos contentar com a tradio oral e aguardar
confirmaes futuras.

A Grcia antiga
As convices dos gregos acerca da morte desenvolveramse em duas, seno vrias etapas, cujo ponto de juno est
situado aproximadamente no sculo 5 a.C. Por volta de 1.450
a.C., a Grcia foi invadida por um povo ariano vindo dos
planaltos asiticos vizinhos ao mar Negro: os helenos. Desse
tronco comum, vieram os aqueus, os eolianos, depois os dricos.
Esses povos tinham em comum o culto dos ancestrais e do
fogo sagrado, que tambm encontrado entre seus primos, os
arianos da ndia vdica. Suas primeiras crenas eram que a
alma permanecia perto do corpo, aps a morte. Ela permanecia
ligada sepultura e nenhuma idia de um vasto mundo
subterrneo havia ainda germinado na mente deles. Os
ancestrais, chamados de dem nios pelos gregos, depois, lares,
penates ou m anes pelos romanos, tinham de ser nutridos por
seus descendentes. Alimentados no de forma simblica, mas

efetivamente, porque a famlia derramava leite e vinho no solo.


s vezes, cavava-se um buraco ao lado do tmulo para fazer
com que o alimento chegasse at o falecido. Acreditava-se,
portanto, que a alma ficava contida na sepultura. Se porventura
uma vtima era imolada, sua carne era queimada a fim de que
nenhum ser vivo se banqueteasse com ela.
Uma das punies mais terrveis infligidas aos criminosos
consistia na privao da sepultura. O povo acreditava que a
alma, assim privada de um lugar fixo, perambulava a esmo,
aspirando em vo ao repouso, sob a forma de uma larva ou de
um fantasma. No usufrua dos alimentos e das oferendas, e
se tornava malfeitora. Os espritos chamados lares eram
considerados deuses. Aquele que tivesse vivido de maneira
correta era considerado benfeitor, mas o esprito que fora
malfeitor na terra continuava perturbador sob a terra. Rendei
aos deuses manes o que lhes d evid o;, diz o romano Ccero,
eles so hom ens que deixaram a vida; tenham -nos com o seres
divinos
Os antepassados no deviam ser negligenciados, porque
podiam se vingar e atormentar os vivos. O culto dos ancestrais
corresponde provavelmente mais antiga religio do planeta,
visto que o encontramos quase que em todos os continentes,
embora com algumas variantes. Quando o ser humano
primitivo pensa na morte, ele a v segundo aquilo que seus
cinco sentidos lhe ditam. Ele associa a alma quilo que ele v:
o corpo. Da ele considerar sua segunda existncia como
estando ligada do corpo. Muitas vezes ele a associa, mais
exatamente, aos elementos imperecveis do corpo: os ossos,
como, por exemplo, no xamanismo. Logo, a alma aqui
considerada como semi-material.

Do mesmo modo, ao tomar consciencia da morte e de urna


possibilidade de imortalidade, a criana muitas vezes associa
esta ltima ao local da sepultura. A prtica atual de ir aos
cemitrios e a necessidade de encontrar-se com os mortos num
lugar fisicamente circunscrito representam uma sobrevivncia
desse culto dos mortos. Na Grcia, somente mais tarde, com o
desenvolvimento da conscincia e a contribuio de iniciados
como Orfeu, a noo de uma dimenso invisvel da existncia
tomou forma no pensamento humano.
O culto dos mortos entre os primeiros gregos, assim como
entre os arianos da ndia vdica, estava ligado ao culto do fogo.
Vesta, Hstia e Agni tornaram-se a personificao do altar do
fogo sagrado. Tratava-se de uma sobrevivncia provvel e
idealizada do respeito quase religioso que o ser humano prhistrico devotava ao fogo vital, civilizador e, finalmente, moral.
O fogo da lareira simbolizava a presena dos ancestrais. Na
E neida, Heitor diz a Eneu que vai dar a ele os penates
(ancestrais) troianos. Na realidade, ele entrega-lhe o fogo da
lareira. Em outros momentos, ao invocar esses deuses, Eneu os
chama indiscriminadamente de penates, lares ou Vesta. O
gramtico latino, Servius, explica que havia um costume muito
antigo de guardar os mortos dentro das casas e que foi desse
costume que os lares e os penates passaram a ser cultuados nas
lareiras. As geraes mais antigas dos arianos, segundo Fustel
de Coulanges, no tiraram seus deuses da natureza fsica exterior,
mas do prprio ser humano (ou seja, dos ancestrais). Foi somente
bem mais tarde que Zeus, Brahma e Indra passaram a ser
adorados como divindades externas ao ser humano.
Na Odissia, atravs da narrativa da invocao dos mortos,
feita por Ulisses, encontramos um exemplo das crenas

interm edirias entre o primitivo culto dos mortos e a


emergncia da idia de um reino subterrneo. Ao partirem do
reino de Circe, a feiticeira, Ulisses e seus marinheiros precisam
viajar at as portas do inferno, para ali invocar a sombra do
divino Tirsias. Circe indica-lhes o caminho a ser seguido, na
forma de uma sucesso de passagens iniciticas: para chegarem
ao Hades, precisam atravessar vrios rios e outras fronteiras
mticas Aqueronte, Pirilegeton, Stix, Ccito (em alguns
textos, trata-se do Letes). Ali, tm de cavar um buraco e fazer
trs libaes, de vinho, leite e gua, enquanto invocam os
mortos. So aconselhados a sacrificar uma vaca, um carneiro e
uma ovelha negra. Ento, da terra saem as sombras, atradas
pelo cheiro do sangue. E lhes pedem funerais e uma sepultura
como a de Elpenor, velho companheiro de Ulisses. Aquiles
chama esses habitantes de povo extinto. Numa outra
passagem, Circe os chama de cabeas sem foras. Por sua
vez, Tirsias chama o Hades de lugar sem doura. E todos
os mortos atormentam Ulisses no tocante ao destino dos vivos,
como se o ignorassem. Adormecidos, parecem ter fome de
informaes sobre os que vivem sob o sol. Dentre os mortos, o
iniciado Hrcules possui posio especial. Ulisses se dirige
sua sombra, enquanto o verdadeiro Hrcules est feliz na
morada dos imortais. Vemos aqui a distino entre a alma e a
sombra, semelhana das crenas egpcias.
Hrcules, respondendo s perguntas de Ulisses, recordalhe o ltimo dos trabalhos que Oristeu lhe impusera: a captura
de Crbero, o terrvel guardio das portas do mundo
subterrneo. Crbero um co de trs cabeas. Para dominlo, Hrcules primeiro teve de participar nos mistrios de
Eleusis, a fim de se purificar. Em seguida, escoltado ao Trtaro
por Hermes e Atenas, ele se defrontou com Caronte, o

barqueiro, que o ajudou a cruzar o Stix. Depois de vrias


peripcias, encontrou-se com Persfone e Hades, os senhores
do lugar. Sob a orientao de Hades, Hrcules conseguiu enfim
capturar Crbero, usando apenas as mos nuas. Assim,
conseguiu atravessar novamente o Stix, arrastando consigo os
despojos do guardio. O dcimo segundo trabalho de Hrcules
corresponde a um mito que, como aquele do Livro dos Mortos
egpcio, transmite um mapa simblico do reino subterrneo e
das criaturas que o povoam. Pode tambm descrever uma
fase precisa da iniciao do prottipo do iniciado que Hrcules
representa.
Foi provavelmente graas ao despertar da conscincia
humana, de sua maior compreenso da alma, que as idias
relativas a um reino invisvel e mais vasto apareceram na histria.
Um imprio sombrio e vago, situado sob a terra, cedeu lugar a
noes morais orientadas por uma justia cuja sano tanto podia
ser o paraso ou campos elseos, como o trtaro ou rebo.
As mitologias gregas e romanas narram a viagem ao Hades,
empreendida por vrios heris. Alm de Ulisses e Hrcules,
Eneu, Psiqu, Dionisio e Orfeu tambm tentaram a terrvel
aventura, e, em cada narrativa, uma lio passada ao leitor.
No mito de Orfeu, por exemplo, o heri parte em busca de sua
jovem esposa, Eurdice, morta pela mordida de uma serpente.
Mas Hades (palavra cujo homnimo significa, de modo
eloqente, in visvel) impe, como condio para a restituio
de Eurdice, que Orfeu, seguido de sua amada, em momento
algum olhasse para trs a fim de v-la, enquanto no estivesse
de volta ao mundo da luz. O infeliz, porm, no consegue
resistir tentao e ousa contemplar aquilo que proibido aos
vivos; e perde Eurdice para sempre.

Como no relacionar essa alegoria com a desventura da


mulher de Lot, cuja histria o Antigo Testamento hebreu nos
conta ? Quando destruiu Sodoma e Gomorra, Deus salvou Lot
e os seus. Uma nica proibio: no olhar para trs durante a
fuga, para ver a destruio das cidades. A esposa de Lot
quebrou o tabu, ousou espiar o poder divino em plena ao e
foi, ento, irremediavelmente transformada em coluna de sal.
Alguns escritores, dentre os quais o romano Viglio,
deixaram-nos uma descrio exata das crenas dos gregos
acerca do reino dos mortos. O imprio era governado por
Hades ou Pluto (que significa o rico), cuja cabea era coberta
por um capacete capaz de tornar invisvel quem o usasse. Pluto
roubou sua companheira, Persfone, de sua me, Demter,
deusa das colheitas. Seus domnios compunham-se de vrias
regies, dentre as quais o Trtaro e o rebo. Descia-se at ele
por uma estreita passagem que levava confluncia do Ccito,
rio das lamentaes, e do Aqueronte, rio das aflies. Um
barqueiro, Caronte, levava as almas dos falecidos at a outra
margem. Por esse servio, cobrava um preo: dentro da boca,
sob a lngua, deviam trazer uma moeda, o bolo, e as almas em
questo tinham de ter sido sepultadas. Caronte, o velho
barqueiro imortal e avaro, as conduzia, ento, at o portal do
Trtaro, guardado por Crbero, o co de trs cabeas. O
molosso deixava entrar qualquer um, mas nunca deixava
ningum sair. E tambm interditava o acesso aos vivos. Em
sua chegada no invisvel, as almas se confrontavam com trs
juizes: Eaque, Radamante e Minos. Os trs pronunciavam a
sentena, condenando as almas aos tormentos ou dando-lhes
acesso aos Campos Elseos. Os heris que foram recebidos vivos
no invisvel, antes de retornarem luz do sol, tinham de se
banhar nas guas do rio Letes, o rio do esquecimento. Aquele

que bebia ou se banhava no lquido maravilhoso era invadido


pelo torpor do esquecimento desse mundo espiritual. Mais
tarde, Plato, dissertando sobre a reencarnao, usou essa
passagem do mito para explicar o esquecim ento das
encarnaes passadas.

entanto, reporta a interveno do iniciado Orfeu, oito sculos


antes. Foi ele quem preparou o terreno para essas idias mais
tardias, que evoluram sombra das antigas escolas de mistrios.
No obstante, cinco sculos antes de Jesus Cristo, comeou a
surgir a idia da natureza imaterial ou espiritual.

O Trtaro e o rebro eram povoados, alm das almas dos


mortos, por certo nmero de habitantes mticos. As Furias ou
Erneas, executoras da justia, puniam os culpados. Tanatos, a
morte, e seu irmo Hipnos, o sono, habitavam o reino de onde
os sonhos ascendiam at os homens. Os gregos j sabiam
diferenciar entre os sonhos ditos iniciticos e os outros. Para
eles, os primeiros, verdicos, passavam pela porta de chifre, ao
passo que os outros, mensageiros, usavam a de marfim. Cronos,
o destronado pai de Zeus, governava os Campos Elseos. Esses
constituam o local de todas as delicias, de onde os habitantes
podiam escolher renascer na terra. No longe dali, ficavam as
Ilhas Venturosas. A elas s tinham acesso os que, nascidos trs
vezes, mereceram por trs vezes os Campos Elseos.

O poder dos filsofos aos poucos se imps na cidade. Um


dos que melhor desenvolveu o problema da morte foi, sem
dvida, Plato. O tema situa-se num ponto central de sua obra,
na qual ele aborda os problemas do suicida, da pena de morte,
da recompensa post-m ortem , do julgamento das almas, da
reencarnao... Plato, para se exprimir, lana mo do mito,
como o de Er, soldado deixado para morrer durante doze dias
(livro 10 da R epblica). Ele pe em cena os dilogos e faz
uso do raciocnio filosfico, como em P hedo\ para abordar o
problema da alma e de seu destino final. Para ele, a meditao
sobre a morte, a prpria morte e o preparar-se para morrer
constituem a misso central do filsofo: Todos aqueles que, no
sentido correto do termo, vinculam -se filosofia [no tm ] outras
ocupaes seno m orrer e serem m ortos (P hedo). No obstante,
Plato, pelos lbios de Scrates, declara-se contra o suicdio e
cita uma frase dos mistrios: Ns, humanos, estamos numa
espcie de crech e e no tem os o direito de nos liberar p or ns
mesmos, nem de evadirm o-nos d ela .

Neste ponto, pode ser til fazer uma comparao entre os


mitos gregos e os egpcios. Neles, encontramos sempre um
condutor-guardio do reino: Anbis, com cabea de chacal, e
s vezes Toth, com cabea de bis, no Egito; a dupla CaronteCrbero, na Grcia. Algumas vezes, aparece a figura de Hermes
como psicopompo ou guia das almas. Nos dois casos, a alma
julgada e enviada ou para o inferno ou para um lugar de
delcias. Assistimos aqui ao despertar da conscincia moral nos
seres humanos. Os especialistas concordam em aceitar que foi
por volta do sculo 5 a.C. que ocorreu, na Grcia, uma oscilao
entre o culto dos mortos, as noes de reino subterrneo e as
idias mais sutis que acabamos de comentar. A Tradio, no

Mais adiante, Plato oferece uma definio filosfica para a


morte: ela nada mais que a separao da alma e do corpo.
Para ele, o corpo contribui para o obscurecimento do
verdadeiro conhecimento. Desse raciocnio decorre que esse
conhecimento fica inacessvel ao homem, por causa da unio
do corpo com a alma no curso da vida. E a ele s retorna depois
da morte. E por isso que o verdadeiro filsofo platnico, que
faz tudo que lhe possvel para alcanar a sabedoria,

emancipando-se da escravido e da priso do corpo, ri da morte.


Na verdade, a morte pode realizar suas mais caras esperanas.
Essa grande iniciadora dar-lhe- acesso ao pensamento puro,
ao mundo do belo, do bom e do bem, sem ciso ("P hedo). A
morte corresponde, portanto, a uma purificao do pensa
mento, no sentido dado pela tradio rfica.
Em sua demonstrao da imortalidade da alma, Plato
desenvolveu o tema da reencarnao: "Existe uma velha tradio
a que j fiz em os m en o: que, daqui, as almas so levadas para
baixo (para o Hades) e que de l que, uma vez mais, elas vm
para c, nascendo a partir dos que morreram . Justifica ele, assim,
a imortalidade e o nascimento a partir dos contrrios. Dos vivos
vm os mortos e dos mortos os vivos, do mesmo modo que o
belo vem do feio e o grande do pequeno. Habilmente, ele
compara o viver ao estar acordado, e o estar morto ao estar
dormindo. Com isso, Plato ope a morte, na qualidade de
estado, vida. Ele no a concebe como uma passagem, em
cujo caso ele a teria oposto ao nascimento. Para ele, o inverso
do nascimento reside no ato de morrer. E acrescenta: Se os
vivos produzem os mortos, logo, destes devem nascer outros homens,
sob pena de que, no fim , tudo se congelasse na in rcia . Em
seguida, aborda o destino da alma aps o falecimento. Aquela
que, em vida, sentiu-se atrada pelo invisvel e pelos valores
elevados da vida encaminha-se para aquilo que lhe corres
ponde, para o que divin o, im perectvel, sbio, para a m eta onde,
um a vez alcanada, p od e ela enfim ser fe liz . Inversamente, a
alma que foi corrompida na terra e cultivou somente o gosto
pela matria, o luxo e as posses, ao ponto de nada mais ter
como verdadeiro, fica retida na terra e vaga junto aos tmulos.
E puxada para trs, para o lugar visvel, por medo da regio
invisvel do Hades.

Neste ponto, tentador abrir um parntese: na aurora da


humanidade, os seres humanos acreditavam que as almas
moravam sob a terra, junto aos tmulos. Ao ler Plato, poderse-ia perguntar se o nvel baixo da conscincia de ento, que
impedia de imaginar dimenses mais sutis, no obrigaria as
almas a ficarem, depois da passagem, em contato com o nico
mundo que elas adoravam: a terra e o corpo que haviam usado.
Semelhante atrai semelhante.
E Plato prossegue: quando as almas renascem, so atradas
para corpos cujos hbitos tm formas correspondentes s suas
afinidades formas de asnos, lobos, falces e, para outras,
formas de abelhas, de formigas; para as melhores, formas
humanas; e, finalmente, de deuses, para as mais puras. No
Bardo Thdol, o Livro dos Mortos tibetano, tambm h uma
referncia a seis possibilidades de reencarnao segundo a
existncia vivida: ser infernal, ser vido ou passional, animal,
demnio, humano e deus.
difcil determinar se Plato ensina positivamente a
metempsicose (o retorno da alma em um corpo animal) ou se
ele se contenta em comparar as qualidades humanas s
qualidades animais. Essa comparao entre humano e animal
era freqente nas tribos qualificadas de primitivas, da frica
ou da Amrica. Cada tribo tinha seu animal totem, smbolo da
alma daquela sociedade. Muitas vezes, o prprio indivduo
ocultava um ser interior que podia ser representado por um
animal que aparecia para ele em sonhos. Plato, por exemplo,
compara o indivduo que pratica a temperana e a justia apenas
por um hbito desprovido de qualquer reflexo filosfica, a
uma abelha ou a uma formiga, em funo de sua caracterstica
de inseto altamente socializado.

Quando Plato discorre sobre o devenir da alma aps a


morte, segundo aquilo que lhe era caro durante sua estada na
terra, ser que devemos tomar ao p da letra suas descries?
No final de P hedo\ aps sua descrio dos mundos do alm,
considerados como terra superior e mundo subterrneo, ele
acrescenta uma valiosa, porm discreta, informao: "Sem
dvida, nada conviria m elhor ao ser que reflete do que querer,
com toda sua fora , que tudo isso seja m esm o com o lhe expus.
Assim, longe de ser levada a lugares especficos depois da morte,
no seria a alma confrontada com suas prprias tendncias?
Livre do corpo e seus sentidos, nenhuma outra influncia
externa poderia distra-la de seus prprios impulsos. Disso
decorre que a alma inclinada ao materialismo ou luxria seria
confrontada com a tortura que lhe acarretaria essa atrao
centrada no eu e nos desejos. Esses no poderiam mais ser
satisfeitos por intermdio do corpo.
Inversamente, a alma orientada para a sabedoria, a virtude
e a espiritualidade, que, para serem satisfeitas, nada mais exigem
que uma imaginao inspirada, poderia se elevar s esferas
etreas, sem que nenhum obstculo se opusesse sua ascenso.
A um mundo sombrio e fechado sobre si mesmo, opor-se-ia o
infinito do firmamento cheio de estrelas. Uma condio
centrada no medo, na inveja, na possessividade, no dio, no
pessimismo, veria sua anttese na alegria, no otimismo, no amor,
na aspirao, no ilimitado. Veremos que o Bardo Thdol ou
Livro dos Mortos tibetano aproxima-se dessas noes atravs
de um subterfgio mitolgico.
Nos mitos gregos, uma das regies do Hades denomina-se
rebo. Esse setor corresponde tradicionalmente ao cone de

sombra que a Terra gera atrs de si. Projeo de sua prpria


sombra em sua jornada ao redor do Sol, esse cone tido como
representando um lugar de frias para as almas presas terra.
Entretanto, devemos ver nele propriamente um lugar ou, antes,
uma condio, um estado da alma? A definio do rebo traz
em si mesma a resposta. O cone de sombra da Terra corresponde
quele lugar que se desloca junto com o planeta e que nunca
v a luz do Sol; o local do eclipse da Lua, da Besta de mil
sortilgios. Descreve a condio espiritual dos que rejeitam a
luz ou sofrem a sua privao. Assim, a alma, aps sua passagem,
sofreria as conseqncias das escolhas feitas na existncia, at
que o vu das iluses e dos hbitos de ao e pensamento fossem
retirados, quando ento ela atingiria a percepo de sua
verdadeira natureza. L, explica Plato, "cada qual [obtm ] do
Ser proporcionalm ente ao seu m rito.
Em "P hedo\ ele intensifica sua exposio acerca da
escatologia, pondo em cena Scrates, que acabara de ser
condenado a tomar cicuta. Por meio de seu costumeiro
procedimento do dilogo entre o mestre ilustre e seus discpulos,
ele expe suas idias sobre a alma, sua origem e seus fins ltimos.
Ao trmino desse discurso, narra a execuo e a morte
dignssima e plena de mestria desse guia extraordinrio. Plato
parece dizer ali ao seu leitor: O que te f o i exposto acerca da
m orte f o i a reflexo de um hom em que se sabia condenado. Ele se
apresentou sem m edo ante o portal suprem o. Mestre na vida,
ensinou a imortalidade da alma epartiu com serenidade, consoante
suas convices. Podes, portanto, con flar em suas palavras.
Da mesma forma, procedendo por aluses, ele coroa sua
obra principal, a "R epblica", com um mito escatolgico. A
"R ep blica descreve as convices do filsofo acerca da

constituio de uma sociedade ideal. Ao trmino de uma longa


exposio, ele aborda mais uma vez o tema da morte para talar
da lei do julgamento post-m ortem das almas. Subentende ele
que a meta que as sociedades fixam para si mesmas e a
orientao das vidas humanas dependem do sentido que os
seres humanos do morte. Nenhuma coletividade pode
desenvolver um futuro durvel se a alma no julgada em vista
de valores ou leis transcendentes.
o civismo que fundamenta toda realizao humana, do
ponto de vista laico, e so as virtudes morais que do o sopro
de vida ao civismo. Aquele que dita o direito no pode
eternamente esquecer a moral, sob pena de se tornar arbitrrio.
Se o jurista se contenta com uma leitura puramente jurdica
da lei, a lei humana, no se satisfar com ela a longo termo.
Aquilo que subentende toda moral tem sua fonte na certeza
de que os atos e os pensamentos humanos so pesados em
vista de uma justia imnente. Por esse motivo, Plato conclui
sua "Repblica com o mito de Er. Alm disso, ele introduz a
histria por uma dissertao sobre as recompensas que as
sociedades reservam aos justos e os castigos prometidos aos
perversos. Depois acrescenta: Eles no so nada, nem p or seu
nm ero nem p or sua grandeza, em com parao com aquilo que,
depois da m orte, aguarda o ju sto e o injusto . Como se o direito
csmico legitimasse o princpio do direito humano.
Entre outros filsofos gregos, tambm Pitgoras foi
sensibilizado pelo tema. Longe de consider-lo como imprprio
ou como a obsesso de uma conscincia mrbida, ele
aconselhava aos seus discpulos o exame cotidiano da
conscincia. Ele os incitava a considerarem, antes de dormirem,
que cada dia podia ser o ltimo e como era importante fazerem

um acordo consigo mesmos, para um exame da jornada que


findava. Ele foi um dos primeiros a estabelecer uma distino
entre a alma e o corpo, e a descrever o priplo desta atravs da
morte, passando por uma purificao que a leva a se reunir
sua famlia espiritual.
Mas para ele, a morte fsica representava o menor dos males.
Outra coisa era a morte espiritual. Quando acontecia de um
nefito de sua escola de Crotona deixar a comunidade, ou
quando um deles traa um segredo do ensinamento do mestre,
os outros discpulos faziam um tmulo no interior do
estabelecimento, como se a pessoa em questo tivesse morrido.
O mestre dizia: Ele est mais m orto que os mortos, posto que
retom ou vida funesta; seu corpo cam inha entre os homens, mas
sua alma est m orta; ch orem o-la .
Mais tarde, por volta de 100 anos antes de Cristo, Ccero, o
romano platnico, discpulo de Posidonius, um pitagrico,
discorreu amplamente sobre o tema. Foi ele quem declarou
que filoso fa r ap ren d er a m orrer. Para ele, filosofar consistia
em liberar a alma dos prazeres, dos afazeres pblicos e privados,
e de tudo o que sinnimo de atividade. Assegurava ele que
separar a alma do corpo significava, em ltima instncia,
aprender a morrer. Numa obra onde retoma e adapta as idias
de Plato, ele narra a lenda de Cleobis e Bito, filhos de uma
sacerdotisa argiana. Todo ano, ela devia ir at um santurio
para participar num sacrifcio. Num certo ano, porque a parelha
que a transportaria estava demorando a chegar, seus dois filhos
fizeram as vezes dos cavalos, atrelando-se, eles prprios,
carruagem. A sacerdotisa chegou, sem problema, ao santurio,
graas ao esforo deles. Rogou, ento, deusa uma recompensa
para seus filhos, em razo da devoo de que haviam dado

prova. Pediu que lhes fosse concedida a maior felicidade que


um ser humano pode receber de um deus. Depois de sua
participao no festim, na companhia de sua me, Cleobis e
Bito foram se deitar. Pela manh, foram encontrados
mortos...

As Crenas Celtas
No obstante os celtas e seus druidas no terem colocado
por escrito suas doutrinas sobre a morte, suas idias eram
conhecidas por todos. A alma imortal, a vida humana continua
depois da morte, e a alma simplesmente muda de invlucro.
Os mortos vivem uma outra vida no corao de um universo
diferente, e tanto assim acreditavam nisto que, segundo os
romanos, os celtas levavam para os infernos ate regisUos de
com rcio e cobranas de dividas . Os celtas e os gauleses eram
famosos por seu desprezo pela morte, nenhum vazio se
assomando no horizonte de sua passagem na terra. Para eles, a
vida do outro lado do espelho era venturosa, sem inferno nem
purgatrio. O outro mundo correspondia a um universo
paralelo, o Sid, termo que significa paz. Situava-se simbo
licamente no extremo ocidente, numa ilha oceanica, la onde o
sol se pe. Mas imaginava-se tambm que a ilha estava situada
no norte do mundo, sendo a mtica Avalon, o Pas das Mas.
O paraso celta denominava-se TirNa Nog ou Terra da Eterna
Juventude. O Sid, mundo perfeito, era geralmente descrito em
termos que lembram o paraso dos muulmanos. Tudo nele
eternamente belo, venturoso, encantador, isento de doenas e
pecados. Nele, o leite, a cerveja e o hidromel correm livremente,
e jovens mulheres acolhem os que chegam. A barca de pedra
transporta os mortos, como o lendrio Rei Arthur. Elas os fazem
atravessar o oceano, fronteira misteriosa entre os dois mundos.

Como a lendria Atlntida, que alguns escritores afirmam ter


sido a origem do culto celta, Avalon uma ilha situada alm do
oceano. E o Monte Branco ou G wenva, em breto.
A Gnese, na forma concebida pelos celtas, fazia aparecer
quatro nveis do ser, atravs dos quais progrediam as almas em
sua evoluo. O mais elevado, Keugan ou Crculo da Divindade;
crculo vazio, infinito, eterno e nico, no qual nem os vivos
nem os mortos podem evoluir, mas Deus somente. No mais
baixo, ou seja, no comeo de toda existncia, achava-se Anwn,
o estado da descida no abismo, fonte das almas antes do incio
de sua ascenso. Depois, a evoluo prosseguia em Abred, do
qual fazia parte nosso mundo. Por fim, vinha o Mundo Branco
ou Crculo de Gwended. Este ltimo constitua a meta suprema
da existncia humana.
Alguns escritores declaram, abusivamente, que os celtas
acreditavam na reencarnao. Parece, contudo, que a questo
seja um pouco mais sutil que isso. Os celtas pensavam, de fato,
que o ser humano, aps a morte, ocupava um outro corpo ou
o seu prprio corpo, mas num outro mundo paralelo, que no
tinha nada a ver com um reino de sombras. Sua viso era
decididamente otimista. Jlio Csar, como escreveu em sua
Guerra dos Gauleses, achava que eles tiravam sua coragem
dessa convico. Essa doutrina bem pode ser chamada de
m etensomatose, termo que, na prtica, mais aplicvel na lngua
moderna. O fato, porm, que a linguagem acerca da morte e
seus conceitos est singularmente empobrecida em nosso
sculo. Mais um sinal de visvel repulsa.
O escritor romano Lucano, dirigindo-se aos druidas,
escreveu-lhes: C onvosco aprendem os que o destino do esprito

hum ano no o tm ulo nem o reino das sombras. O m esm o


esprito, em um outro m undo, anim a um corp o e, se vossos
ensinam entos so exatos, a m orte o m eio para uma longa vida e
no o fim " .
No h aqui nenhuma questo de reencarnao num corpo
fsico presente na terra, mas, sim, uma espcie de transmigrao
da alma para algum outro lugar. No limite extremo, essa crena
se aproxima do cristianismo e da noo de ressurreio num
corpo glorioso, num reino transfigurado. Isso explicaria por
que as convices crists puderam coabitar to facilmente na
Irlanda ou na Bretanha com os antigos costumes celtas. Nos
textos irlandeses antigos, praticamente no h nenhuma
meno reencarnao. No entanto, justo acrescentar, mais
uma vez, que muitos autores acreditam que as crenas celtas
sejam parecidas com as dos pitagricos.
Na Bretanha de hoje sobrevive um antigo costume: o da
macieira. A rvore, cujos galhos esto cheios de mas,
representa simbolicamente, no Dia de Todos os Santos, a
imortalidade. Ela lembra aos vivos os desaparecidos do ano.
Evoca tambm a Ilha de Avalon (Ilha das Mas), e o fruto
cortado perpendicularmente ao seu eixo faz aparecer um
pentagrama, smbolo do conhecimento. Um dos smbolos da
Franco-Maonaria o pentagrama com a letra G no centro,
que significa gnose ou conhecimento. A macieira parece sugerir
aqui que o verdadeiro conhecimento s pode ser alcanado no
alm.
Entre os celtas antigos, todo ano, por volta de 1Q de
novembro, data do ano novo, as alias cobertas, os tmulos e

os dolmens coloridos tornavam-se os pontos de contatos


privilegiados entre os dois mundos. Heranas de uma
antiqssima civilizao do neoltico (os Thuata de Danann),
esses monumentos esto sempre relacionados aos mistrios da
morte e do nascimento. Usados como locais de sepultura para
os grandes chefes, provavelmente eram tambm locais de
iniciao. No obstante os arquelogos terem encontrado
tumbas de dirigentes celtas, tudo indica, conforme testemunhos
da poca, que eles incineravam os corpos.
A festa do Ia de novembro ou Saman, entre os celtas, outro
exemplo do ecletismo ou da capacidade de absoro de
tradies antigas de que o cristianismo nos d prova. Com
efeito, foi essa festa celta que deu origem ao nosso Dia de Todos
os Santos e, em seguida, tambm ao Dia dos Mortos. Os anglosaxes, mais fiis idia original, criaram o H allow een, dia em
que os vivos se fantasiam de esqueletos, bruxas e outros
monstros do gnero.
Na verdade, o que se percebe que a maioria das culturas da
Terra instituiu um dia simblico no qual os tabus relativos morte
podem cair por terra. Os vivos ficam to lado a lado com os
mortos que, mesmo em nossos dias, fazem-se comemoraes
bem floridas que acontecem nos cemitrios, durante um dia e
uma noite. Isso particularmente notvel no Mxico. Em alguns
lares, servem-se refeies aos mortos, mas o caminho que eles
vo percorrer, dentro das casas, previamente delimitado atravs
de flores, a fim de que as raias do racional no sejam transpostas.
A Festa de Saman, entre os celtas, deu origem ao Todos-os-Santos
cristo, no sculo 9. At hoje, nessa data, a cerimnia do leilo
das macieiras, em Plougastel Daoulas, simboliza o ponto de
contato entre os dois mundos.

Havia uma lenda sobre D agda, um dos principais deuses


do panteo celta. Via de regra, as lendas transmitem uma
sabedoria e um conhecimento dificilmente transmissveis de
outro modo. O Dagda tinha trs filhos, um dos quais chamado
Oengus. Um dia, ele decidiu repartir o mundo subterrneo
entre seus filhos e ele mesmo, mas esqueceu-se de Oengus na
hora da partilha. Este, aflito com a injustia da situao - mas
ardiloso, o velhaco - pediu um favor ao seu pai. Solicitou que
ele lhe emprestasse sua prpria parte do reino durante um dia
e uma noite, justamente durante o perodo de Saman.
Inconsciente do artifcio que o faria perder o seu bem, o Dagda
aceitou o acordo. Mas chegou o dia em que ele desejou
recuperar suas posses e foi ter com o filho. Estupefato, recebeu
uma negativa. Oengus lembrou-lhe que na noite de Saman,
perodo em que os vivos ficam lado a lado com os mortos, no
reino onde as sombras disputam com a luz, o tempo, a
ampulheta de Saturno, pra. Uma noite e um dia tornam-se,
ento, iguais eternidade. O Dagda, por causa de sua
ignorncia e de sua ingenuidade, nunca mais recuperou o seu
bem. Essa lenda nos oferece um precioso tesouro que pertence,
porm, a um outro mundo.

O Bardo Thdol
Seria possvel escrever um livro sobre o tema da morte sem
evocar, ainda que brevemente, o Bardo Thdol, traduzido
como Livro dos Mortos tibetano? Esse tesouro de texto foi
descoberto no sculo 14. o reflexo de um ensinamento mais
antigo, atribudo aos mestres do budismo chins presentes no
Tibete por volta do sculo 8. Trata-se de um livro cuja finalidade
ser lido ao ouvido do morto, a fim de gui-lo em seu priplo
atravs da morte. O objetivo declarado dessa tentativa visa

libertaro ser da cadeia das existncias sucessivas ou, pelo menos,


orientar o esprito para a vida seguinte, da melhor maneira
possvel. O ncleo do texto dirige-se principalmente aos
monges que seguem o darma ou ensinamento do Buda. Mas
os anexos servem para guiar igualmente os laicos.
Entretanto, como explicam os prprios lamas, o ttulo da
obra no apresenta de modo algum a palavra morto. A
traduo mais correta seria: a Liberao do estado intermedirio
atravs do ouvir; o termo bardo significando estado
intermedirio de conscincia. O objetivo perseguido consiste,
portanto, assim como o Livro dos Mortos egpcio, mas com
um mtodo diferente, em orientar o morto para uma libertao
pelo reconhecimento da resplandecente luz da verdade. O
Bardo Thdol escolhe o momento privilegiado da morte para
propor a obteno dessa libertao, mas no faz uma oposio
entre a vida e a morte. Para a filosofia budista, nascimento e
morte ocorrem para ns de maneira contnua. Existem diversos
Bardos e o da morte apenas um deles. Como explica o lama
Govinda: "Ele no u m guia dos mortos, mas, sim, de todo aquele
que quer ven cer a m orte m etam orfoseando seu processo num ato
de libertao
Mas a comparao com o Livro dos Mortos egpcio cessa
aqui. Se, por um lado, os egpcios vem na morte o momento
de um encontro com os neter ou princpios divinos, concebidos
literalmente como fatos, os tibetanos, por sua vez, crem-se
confrontados com as iluses e as potencialidades de seu prprio
inconsciente. Assim expressa-se o texto: N obrefilho, no temas
quando ela se apresentar; porque s um corpo-m ente, produto de
tuas tendncias inconscientes, no podes m orrer realmente, m esm o
que te m atem ou te fa a m em pedaos".

Na verdade, embora o budismo seja inegavelmente uma


religio, uma vez que desenvolve formas externas comuns a
todas as religies (escrituras sagradas, um enviado especial,
uma doutrina), ele recorre a concepes que se aproximam
muito da psicologia. O Bardo Thdol no foge regra, visto
que se interessa, em primeiro lugar, pelos contedos da
conscincia humana. Isso ele o faz nos termos do budismo
mahayana (grande veculo). Em outras palavras, as tendncias
inconscientes so visualizadas aqui em formas macrocsmicas,
simbolizadas por divindades bondosas ou colricas. Mais
simplesmente, a obra divide-se em trs partes ou estados
intermedirios que descrevem a experincia post-m ortem . A
palavra trespassado faz aluso a esses trs passos que o morto
deve cumprir.
1) Ele ajuda a reconhecer a essncia luminosa do esprito.
Quando cessa a respirao externa e o alento de vida aflui no
canal central, aparece ento a luz do conhecimento supremo,
chamada de corpo de vacuidade ou darma \aya. Essa luz est
vinculada a shunyata, o vazio ou natureza profunda do ser. E a
mais elevada experincia do Buda ou Ser desperto. Se o morto
reconhecer essa luz fundamental como sendo a natureza
suprema de seu ser, a qual transcende as iluses, obter a
liberao. Caso contrrio, assistir a uma experincia de um
nvel inferior.
O texto recorre a formulaes bem diferentes e eloqentes
para descrever a passagem. Elas traduzem uma concepo,
em vrios planos, do ser humano cuja conscincia emerge aos
poucos: A gora, eis o sinal de que o elem ento terra se transforma
no elem ento gua; o elem ento gua, em elem ento fo g o ; o elem ento
fogo, em elem ento ar; e o ele 7nento ar, em cojisancia . A intervalos

regulares, o lama lembra ao indivduo que ele est morto,


partindo do princpio de que ele pode estar completamente
perdido e desvairado, vendo-se confrontado com sua nova
provao. Face a uma conscincia fragmentada e desmembrada,
ele lembra-lhe a necessidade de vigilncia e ateno redobradas.
A contece muitas vezes de se estar angustiado no m om ento da morte,
a despeito de com o possa ter sido a prtica da m editao.
Na realidade, a luz perfeita se decompe em trs princpios:
masculino, feminino e mediano, que so a verdade em si, o
co n h ecim en to no obstru d o e o co rp o d e va cu id a d e que
corresponde unio dos dois primeiros. Detalhes relativos
fisiologa da passagem so dados aqui e ali no Livro: depois da
parada da respirao externa, resta ainda um alento sutil no
corpo, que pode subsistir por trs dias e meio, ao longo do
primeiro estado intermedirio. Durante esse perodo, a mente
mergulha no esquecimento. No obstante, aquele que l o Livro
persiste na tentativa de fazer o morto reconhecer a luz.
O mais curioso que os tibetanos afirmam que o morto
ouve aquilo que lido para ele e que, apesar de ele perder a
conscincia, as informaes coletadas cedo ou tarde voltaro
sua memria, como acontece no caso dos sonhos. Hoje, a
cincia moderna de fato admite que o ltimo sentido que se
retira, quando uma pessoa morre, a audio. Do mesmo
modo, aconselha-se os familiares a conversarem com as vtimas
em coma, uma vez que, embora aparentemente sem cons
cincia, comatosos reanimados costumam relatar tudo o que
ouviram.
Diversas tradies que no so orientais explicam, como os
Tibetanos, que a separao entre a aJma e o corpo pode levar

de meia hora (o tempo de consumo de uma refeio, segundo


o Bardo Thdol) a trs dias. Uma imagem simples permite
explicar como um alento sutil pode continuar presente no corpo
depois da morte clnica: basta imaginar urna jarra. Depois de
esvaziada, sempre ficam algumas gotinhas do precioso lquido,
que vo se evaporando lentamente.
Sabemos hoje que num corpo abandonado pela alma resta
uma espcie de energia vital que continua atuando e que faz
unhas e cabelos crescerem. Os jivaros da Amrica do Sul,
famosos encolhedores de cabeas, sabem muito bem que nas
cabeas encolhidas continuam crescendo cabelos por vrios
anos, como se uma energia vital, parecida com a das plantas,
continuasse a atuar na cabea reduzida. A observao lcida e
objetiva de um cadver mostra bem que a vitalidade retira-se
gradualmente. Primeiro, a tonalidade rosada da pele desaparece,
conforme o caso, em algumas horas. Em seguida, o tnus vai
enfraquecendo e os traos vo ficando cada vez mais fundos.
Esses sinais externos manifestam a retrao gradual da energia
vital, cujas formas mais arcaicas continuaro mantendo algumas
funes em atividade.
Pode-se observar que as modalidades da atividade do ser
vivo, do ponto de vista da decomposio, vo sendo atingidos
em funo de seu lugar no plano da evoluo. As primeiras a
desaparecerem so as fases superiores da conscincia. Em
seguida, vem o aspecto animal, composto de msculos, rgos
e carnes. S depois se decompem os aspectos mais visveis
(unhas, cabelos, etc.), que so os vestgios do estgio de
evoluo da planta. Por fim, os ltimos aspectos que conservam
sua integridade so os elementos minerais, ou seja, os ossos e
os dentes.

Ao longo dos dias em que o esprito se separa do corpo,


muitas tradies explicam que o morto fica vagando junto ao
cadver, ele v e ouve seus entes queridos se lamentando, mas
que estes no podem v-lo nem ouvi-lo. Entretanto, esse
sofrimento dos familiares atrai o esprito para a terra. E por
esse motivo que os tibetanos desaconselham os parentes a
chorarem seus mortos.
2.
Se, no curso do primeiro estado intermedirio do
momento da morte, a luz no compreendida em sua
verdadeira natureza, surge ento o segundo estgio inter
medirio, chamado de a verdade em si. Nele, o morto se
confronta com a percepo de suas prprias tendncias latentes.
Em sntese, o Livro diz o seguinte: "N obre filh o, v as vises
que se apresentam a ti; elas so a p ro je o d e teus prprios
pensam entos, p recon ceito s e fantasm as. Elas m anifestam teu
prprio carma, que corresponde ao con ju n to dos pensamentos,
palavras e atos que manifestaste na terra. R econhece que essas vises
vm de ti, e obters a liberao. E essas vises, tesouros do
budismo mahayana, manifestam-se primeiro sob a forma de
sete divindades benignas ou pacficas, seguidas de sete
divindades violentas. Sua descrio carregada de terror,
sangue, violncia ou, ao contrrio, de beleza, compaixo,
doura. O interessado v luzes e ouve sons, ou percebe raios
luminosos que podem lhe parecer aterradores. Os trs
princpios de verdade, conhecimento e corpo de vacuidade,
supracitados, no deixam de lembrar certos aspectos da cabala
hebraica.
Aspectos puramente psicolgicos do indivduo, as sete
divindades opostas representam a projeo de estados de
conscincia positivos e negativos. Mas a sabedoria aqui implcita

revela algo muito mais vasto, ligando o homem ao infinito por


intermdio de deuses que esto dentro e fora dele. O professor
C. G. Jung, em seu comentrio sobre esse livro, captou
perfeitamente seu contedo psicolgico: O Bardo T hdol
con tm um a filosofia que se dirige aos seres hum anos e no aos
deuses nem a seres prim itivos. Sua filosofia a quintessncia da
psicologia crtica budista e, neste sentido, pode-se dizer que ela
um a reflexo extrema".
Em suma, que que se passa depois da morte? A intuio
nos indica que ela se refere apenas o corpo e que alguns aspectos
da conscincia subsistem. Contudo, na ausncia do suporte
m aterial, com o qu essa conscincia sutil poderia ser
confrontada seno consigo mesma? O Bardo Thdol descreve,
portanto, certos aspectos da conscincia, desconhecidos dos
materialistas. To vasta quanto o universo, sua fonte shunyata,
palavra traduzida como vazio. Trata-se de um vazio rico de
imensas potencialidades, simbolizadas pelas divindades
benignas e violentas. Tal o pano de fundo com que o ser
humano se confronta em sua morte, e o Bardo Thdol explica:
Todas essas formas so iluses; procura ver alm delas, busca
o absoluto, realiza a unio entre o observado e o observador, seno
sers atrado por um mundo semelhante s tuas prprias
aspiraes, para uma nova encarnao de sofrimento.
3.
Caso a compreenso no seja alcanada, vem o terceiro
estado intermedirio, denominado devenir". Nele, o esprito
vai em busca de um corpo; mas ele dotado de poderes
paranormais que permitem que ele se transporte para onde
seus desejos esto. Assim como acontece nas tradies grega,
egpcia, monotestas, ele passa por um julgamento no tribunal
de Yama, a morte. O gnio bom do morto conta os seixos

brancos, que representam seus atos positivos, enquanto seu


gnio mau conta os pretos. Quando tudo est qualificado,
Yama desencadeado, mas tambm ele iluso. O morto,
ento, atrado, como nos mitos platnicos, para os reinos
correspondentes natureza de suas aes.
H seis possibilidades de reencarnao segundo o budismo
tibetano, a cada uma das quais corresponde uma lu
minosidade: a terna luminosidade branca dos deuses, a
vermelha dos tits, a azul dos humanos, a verde dos animais,
a amarela dos espritos vidos e a cinzenta do mundo dos
infernos. O Livro d explicaes de como evitar a encarnao
humana ou, pelo menos, como evitar a encarnao num reino
inferior.
Mas, neste ponto, uma legtim a interrogao parece
merecer surgir. O texto aparentemente muda de estilo. Seriam
as passagens referentes a encarnaes nos reinos inferiores
acrscimos posteriores ou a deturpao de uma mensagem
mais elevada? Que chance de obter a liberao teria um
esprito humano encarnado, por exemplo, num cachorro?
Um outro animal de sua espcie iria ler para ele o Bardo
Thdol no momento de sua morte, a fim de ajud-lo? No
seria apenas um modo de o clero dominar as conscincias,
suscitando nelas o medo e fazendo total abstrao do princpio
de evoluo, patente em toda a Criao?
O Bardo Thdol um livro que se l ao ouvido do cadver,
enquanto for possvel. Mas essa leitura deve ser feita durante
quarenta e nove dias. Um lama, ento, senta-se no lugar onde
a pessoa costumava se sentar ou dormir, e invoca seu esprito
por meio de uma frmula sagrada. A constituio do livro

seria o resultado de testemunhos dados por lamas passando


pela morte, que teriam transmitido sua experiencia a outros
monges, por telepatia.
A filosofa tibetana adm ite seis bardos ou estados
intermedirios, sendo que somente os tres ltimos so
vivenciados por ocasio do falecimento. So eles: o estado
intermedirio do reino da existencia, o do sonho, o da fronteira
da meditao profunda, o estado intermedirio da morte, o da
verdade em si e o do devenir. Assim so descritas todas as
fronteiras com que se defronta o ser humano no curso de seu
interldio consciente. Vemos aqui por que o sono irmo da
morte, por que a prtica da meditao prepara para a boa
morte, como o nascimento e a morte representam dois portais
opostos do mesmo mundo. Observar um deles significa, sem
dvida alguma, obter informaes sobre o outro.
A morte representa um tema familiar para o monge tibetano,
uma vez que, segundo o Dalai Lama, ele pratica diariamente
uma meditao sobre ela. Mircea Elade reporta igualmente
que a m editao sobre a im agem d e seu prprio esqueleto ou
diversos ex ercidos na presena de cadveres, esqueletos e crnios
d esem p en h a m um p a p el im p o rta n te". Trata-se de tomar
conscincia da impermanncia e da fragilidade de toda
encarnao. Romper com o ciclo das existncias dirigidas pelo
carma e retirar o vu de Maya, a iluso da vida csmica, so os
eternos objetivos do budismo tntrico que se pratica (ou se
praticava) no Tibete.
Os tibetanos possuem conhecimentos muito exatos no que
concerne aos sinais externos da passagem: aproximao da
morte, a pessoa percebe o peso de seu corpo mais fortemente

do que o habitual, sente ressecamento na boca e nos lbios, o


calor abandona seu corpo e o esprito se ensombrece
progressivamente. Quando a vitalidade vai embora, o esprito
entra numa luz branca parecida com o nascer do sol. Em
seguida, a obscuridade envolve a conscincia que se desvanece.
A respirao externa cessa. Assim como determinadas fases
alqumicas, a conscincia passa aqui do negro ao branco e
depois ao vermelho, antes de mergulhar num sono relativo que
precede os trs passos entrevistos anteriormente.
Mas a prpria atitude do cadver ensina os observadores.
Os calores que deixam o corpo comeando pelas pernas e
retirando-se para a regio do corao, so o sinal de uma morte
serena. Se o moribundo fica crispado, empedernido, os calores
do corpo deixam primeiro a cabea e a parte superior do corpo,
antes de ir para o corao, e isto indubitavelmente, segundo
os tibetanos, o sinal de um falecimento infeliz. Esses sinais
permitem, inclusive, prever se a encarnao seguinte ser
favorvel ou no.
Alexandra David Neel, em suas anotaes de viagem, relata
que os tibetanos (ao menos os do incio do sculo 20) prestam
m u ito pouca ateno ao cadver. Os ricos, que podem pagar o
preo da madeira, so queimados sentados sobre ela. Algumas
partes do corpo podem ser guardadas, como os crnios. Serviro
depois como copos, que os monges usaro para beber nas
cerimnias ou mesmo como utenslios de baixelas para os iogues
das seitas tntricas. Os pobres, que no dispem de meios, so
jogados aos lobos ou s aves de rapina. Danas em honra de
Shiva podem ser realizadas usando-se esqueletos. Tudo isso
descreve a impermanncia de todas as coisas sob o sol. A roda
das existncias prossegue na insensatez dos seres humanos que

investem na busca de mil quimeras. Esse almeja a fortuna, aquele


a conquista, aquele outro o amor de um outro ser humano. Que
importa esta existncia, aos olhos de uma outra realidade? O
budismo explica que tudo isso a caa de iluses do indivduo
que se compraz na sensao. Aquele que deixou de ser tolo situa
se, como um observador, acima das sensaes.
Todas essas imagens da morte mostram ao leitor ocidental
que os tibetanos tm um ponto de vista diferente do nosso. Sua
vida e sua psicologia no se desenvolvem a partir das mesmas
condies. E a prpria Alexandra David Neel relativiza esses
costumes, cujo verdadeiro significado alguns tibetanos conhecem
apenas bem pouco: Uma noite, para satisfazer e com prazer a um
am igo tibetano, degustei dois dedos de cerveja de m ilho servida num
crnio, guisa de com un ho tntrica e de brinde ao gra n d e
Padmasambhava, mas no transform ei isto num hbito. Tudo isso
to p ueril em seu ingnuo esforo para parecer terrvel!
a

A ndia
Assim como na Grcia, as concepes indianas acerca da
morte evoluram ao longo da Histria. Os Vedas, textos dos
primeiros arianos, faziam pouqussima referncia ao tema.
Entretanto, sabemos que suas idias eram bastante parecidas
s do culto dos ancestrais. Mesmo hoje, as prticas relativas ao
uso do fogo sagrado continuam tradicionalmente em atividade.
Por ocasio do falecimento do Mahatma Gandhi, por exemplo,
a chama que acendeu sua pira funerria foi acesa no fogo do
seu prprio fogo. Mas as concepes mais elevadas da ndia
podem ser descobertas nos Upanishads, textos compostos entre
o sexto e o quarto sculo antes de Cristo. Mais prximo ainda
do pensamento indiano atual, o Bhagavad-Gita contm algumas

informaes valiosas. Comearemos, porm, citando algumas


passagens do Mahabharata, epopia particularmente popular
na ndia.
Depois da morte de seus cem filhos durante o combate
contra os heris Pandavas, o rei Dhritarashtra consolado por
um sbio, nos seguintes termos:
"O que criado acaba sendo destrudo, o que se eleva volta a
cair.
A unio traz a separao, a vida traz a m orte.
H eris e covardes, todos esto destinados morte.
Quando a hora vem, no se escapa a ela.
No com eo, as criaturas so no-existentes,
Em seguida, passam a existir,
Depois do qu, retom am no-existncia.
E isso motivo para te afligires? Acaso a aflio levar-te- aos mortos?
A m orte no odeia, no ama, no poupa nem m esm o os deuses.
A vida uma caravana cujo destino a morte.
No fiq u es aflito pela m orte dos heris,
As escrituras destinaram -nos ao paraso.
O tem po no poupa ningum . O tem po cria,
O tem po destri, nada perdura exceto o prprio tempo.
O corpo com o uma casa, diz o sbio: ele se deteriora.
Uma s coisa eterna. Da mesma form a com o o hom em
Tira um a roupa velha ou nova e veste uma outra,
O atman se desfaz de um corpo e tom a um outro.
E o carm a que traz a alegria ou a tristeza.
Quer desejem os ou no,
Vivemos segundo nosso carma.
Alguns m orrem ao nascer, outros, no prim eiro dia,
Alguns ao cabo de quinze dias...

Alguns joven s, outros adultos, outros velhos.


Seu carm a determ ina tudo. Assim o m undo feito .
De que adianta a fligir-se?
Aqui, vemos apontar as doutrinas fundamentais da ndia: a
doutrina de atm an , a alma individual mas inseparvel de
Brahman, a Alma Csmica; a idia da reencarnao, da qual o
budismo se apoderou mais tarde, com algumas modificaes;
e, finalmente, a doutrina do carma, a justia universal que
sanciona os atos bons ou maus do ser humano durante sua
vida.

reinam odores nauseantes, cadveres em decomposio,


espritos sugando sangue. Um verdadeiro inferno, sim
plesmente. Ento, Yudhishthira, invadido pela compaixo
(certa vez ele se recusou a livrar-se de um cachorro),
anuncia que prefere ficar nesse lugar para reconfortar seus
irmos. Como que por milagre, o vu da iluso se dissipa;
sua extrema compaixo, o esquecimento de si mesmo, abrelhe a porta do paraso. Ento, os deuses e mesmo seus irmos
e parentes surgem diante dele, resplandecentes de luz.
Explicam-lhe que seus atos bons propiciaram-lhe o acesso
imortalidade.

Segundo a filosofia indiana, dois pssaros (a alma suprema


e a alma individual), sem pre unidos e de nom es iguais, m oram
na m esm a rvore (o corpo); um (a alma individual) desfruta os
d oces fru to s da figu eira ; o outro (a alma universal) contem pla
com o um a testem unha (wetaswatara Upanishad) H tambm
o ego transitrio em perptua transformao, ojiv a , que uma
emanao da alma individual. Na morte, a alma vai para um
paraso ou para um lugar sombrio. "Sem sol, assim so os m undos
en voltos em cega s trevas, para onde, partidos daqui, vo todos os
que assassinam sua a lm a . (Isha Upanishad)
No que concerne o paraso, o M ahabharata pe em cena a
chegada de um dos cinco heris Pandavas, Yudhishthira, a esse
lugar de imortalidade. Mas antes de sua admisso, so-lhe
apresentadas as iluses. Primeiro, seu principal e nico inimigo
lhe mostrado, o qual, para grande escndalo de Yudhishthira,
havia sido, ao que parece, admitido nesse reino de delcias.
Mas nosso heri no se deixa impressionar; insiste em ver seus
prprios irmos. E, ento, levado a um lugar sombrio onde

Os sbios da ndia sempre se debruaram sobre a questo


da morte. A Katha Upanishad explica que a reflexo sobre a
morte constitui um sum m um bonum . A Nachif^tas, que o
interroga sobre a questo dos fins derradeiros do ser humano,
Yama, o deus da morte, primeiro se recusa a responder,
advertindo que a natureza da resposta sutil. Depois, diante
da insistncia do buscador, explica que h uma diferena entre
o que bom e o que agradvel. O ser humano terreno busca
to-somente o agradvel, perseguindo a satisfao dos sentidos.
Ele, Nachiktas, escolhera o que bom, uma vez que estava
vido de cincia. Ensinou-lhe, ento, que a alma dotada de
cincia no morre nem nasce; no morta nem mesmo quando
o corpo morto. No momento da passagem, as almas supremas
e inferiores recebem a recompensa de suas
obras e entram na
a
caverna, a morada da alma suprema. E o lugar das trevas ou
da luz do sol.
Mas especifica-se que aquele q u e com preen d eu a natureza
d e Brahman, qu e desprovido d e sentido, d e form a , e d e tato; que
no dim inui, que eterno, que desprovido d e sabor e d e odor,

que no tem nem com eo nem f i m . .. escapa boca da morte".


Inversamente, aquele que desprovido de sabedoria no chega
meta, mas desce novamente ao mundo.
. O triunfo da morte, segundo os Upanhishad, reside no medo
que ela inspira. Mas a vitria sobre ela e a obteno da
imortalidade dependem do conhecimento da natureza real da
alma. "C onhecim ento e ignorncia, aquele que con h ece essas duas
coisas ao m esm o tem po, pela ignorncia transpe a morte, p elo
con hecim en to desfruta da im ortalidade". A morte o produto
da distino que o esprito faz entre as coisas. "Para o hindu, o
que est aqui est tam bm l, e o que est l est tam bm aqui.
Vai da m orte m orte aquele que v a diferena". A morte
considerada como o resultado da Criao, em sua dualidade.
Numa espcie de gnese, explica-se: Ele fo rm o u um desejo:
fa a -se um outro eu -m esm o Atravs de seu esprito, ele criou a
palavra; ele criou a unio, isto , o devorador, a m orte". Da
semente da morte brota o tempo.
No Brhihda Aranyaka Upanishad, um combate ope os
deuses aos demnios. Os primeiros pedem ajuda palavra,
respirao, ao olho, ao ouvido e ao esprito. A cada vez, os
demnios os pervertem, fazendo aparecer o pecado na ao
dos deuses, ou seja, a paiavra m, os odores e as cores
desagradveis, as idias falsas... Ento os deuses pedem socorro
vida. Ela triunfa sobre os demnios e dissipa o pecado dos
deuses. Esse pecado a morte, e a vida, que triunfou sobre a
morte, salva a palavra e a transforma em fogo; depois, salva o
olfato e o transmuta em vento. Prossegue com o olho, que se
torna sol. O ouvido transforma-se em regies (o espao?) e o
esprito, a lua. Como no cristianismo, morte e pecado esto
aqui interrelacionados.

Em outros textos, explica-se que, quando o pai est


morrendo, ele instrui seu filho a propsito da natureza de
Brahman. Depois, quando o pai sai do mundo, ele entra na
vida de seu filho. A vida do filho d continuidade do pai e,
por isto, o pai no deve ser visto como morto. Assim, para os
textos sagrados da ndia, triunfar sobre a morte unir seu
esprito ao ilimitado, sobrepujar o egosmo e compreender que
a essncia da vida universal e sem fim.
O Bhagavad-Gita, um dos mais comentados textos da ndia,
tambm fornece informaes valiosas sobre a compreenso desse
povo. Ele pe em cena o dilogo entre o guerreiro Arjuna, um dos
heris do Mahabharata, e o condutor de sua carruagem, o divino
Krishna, encarnao do deus Vishnu. Num dado momento do
dilogo, Arjuna pede ao seu instrutor para lhe mostrar sua forma
divina, aquela sob a qual nenhum ser humano jamais o
contemplara. Krishna, ento, mostra-lhe uma forma feita de
doura, amor, compaixo e luz. Essa sua forma de criador e de
reconciliador, a qual terrfica e fascmaAtjuna. Depois, mostra-lhe
sua face sombria: a do destruidor. Essa a face do esprito do
tempo, o destruidor dos mundos, a morte. Mas aqui a sabedoria
da ndia rapidamente pressentiu que esse aparente horror
representava a forma de corroborar um desgnio mais vasto. Ele
o destruidor que destri os destruidores: o mal, a ignorncia, que
incessantemente estendem seus vus de trevas. A esse respeito,
Sri Aurobindo, o grande mstico indiano, assim comentou o
Bhagavad-Gita: O nom e e a presena do Divino tm qualquer coisa
que verte no corao do mundo o contentam ento e a alegria. E o
sentido profundo que tem os disso que nosfaz ver, na fa ce sombria de
Kali, a fa ce da Me, e perceber, no mago da destruio, os braos
protetores do amigo das criaturas; no mago do mal, a pura e inaltervel
bondade; no mago da morte, o mestre da imortalidade".

O Bhagavad-Gita divide a humanidade em trs grandes


grupos, cujos membros so governados por determinadas
tendncias chamadas sativa, rajas e tamas. Sattva corresponde
busca do conhecimento e da iluminao; rajas, inclinao aos
desejos que levam a perder-se na ao; tamas tem a ver com a
ignorancia, a negligncia e a iluso. Depois da morte, cada uma
dessas tendncias corresponde a um determinado apego que
levar o ser humano a se reencarnar. Se, na hora da dissoluo,
o ser humano tem sattva dominando sua consciencia, ele volta
ao mundo sem mcula dos que contemplam os princpios
supremos. Se rajas predomina, ele se reencarna entre seres
obcecados pela ao, pela agitao, pela ganncia. Quando tamas
o plo de interesse, ele retorna num ambiente cercado de
obscuridade. Mas se a alma eleva-se acima desses trs modos de
existncia, ela se liberta de toda sujeio ao nascimento e morte.
No passa mais pelas vicissitudes do tempo, da velhice e da
doena, e atinge a imortalidade.
Ao lado dos conhecimentos filosficos desse povo, existem
costumes que mostram o pouco apego que eles sentem pelo
corpo abandonado pela alma. A prtica da incinerao e
moeda corrente nas margens do Ganges e em outros pontos
do pas. Mas a cidade de Benares, cortada por esse rio tido
como particularmente sagrado, o lugar preferido para
terminar uma vida. Multides de idosos e doentes de ambos
os sexos vo para l a fim de esperar a morte, por dias a fio...
ou mesmo anos, com o objetivo de morrer ali, naquele ambiente
santo. Enquanto o comum dos mortais queimado nas
plataformas crematrias, os seres considerados santos ou os
recm-nascidos tm o corpo jogado, intacto, no prprio rio.
No raro ver ali cachorros agindo como chacais e se lanando
sobre os cadveres que chegam perto das margens.

Ali, a morte no escondida, ela faz parte do cotidiano. Os


cortejos atravessam as cidades, acompanhados pelo ritmo de
tamborins. As plataformas crematrias servem a todo mundo, a
tumba provisria, mas guirlandas de flores so colocadas ao
redor de bastes de madeira; flores, claro, como smbolos de
imortalidade. Antes de ser incinerado, o corpo lavado e depois
envolvido com seu.ozn ou com seu dhotti. Em seguida, coberto
por um vu azul, para os homens, e vermelho, para as mulheres.
Aps a cremao, as cinzas so jogadas no rio. A imerso na
corrente do rio traz uma promessa de imortalidade. o melhor
meio de entregar o corpo natureza. De vez em quando, pouco
antes da incinerao, o crnio do defunto quebrado a fim de
permitir que, segundo a crena, a alma escape.
No Ocidente h uma fascinao pelo corpo. O ser humano
est integrado ao seu corpo. Eis o porqu de, nos ritos
funerrios, cuidar-se tanto desse invlucro. No Egito,
embalsamava-se o corpo, futuro suporte de uma esperada
eternidade. Nos Estados Unidos, hoje, assiste-se a um
ressurgimento dessa prtica, mas chegando-se ao ponto de
expor o corpo, embalsamado e maquilado, sentado numa
poltrona, fumando um cigarro! E preciso conservar, da
pessoa, tudo o que se possa, pelo maior tempo possvel. Na
Europa, a profisso de tanatopraticante relativamente
recente. Quando a questo tornar apresentvel aos
familiares um corpo desfigurado por um acidente, no h o
que criticar; trata-se de compaixo. O corpo sem vida e
acidentado torna-se muitas vezes sinnimo de deformidade
insuportvel. Mas, aos poucos, a profisso tende a se desviar
para a prtica comercial do embalsamamento sistemtico.
Contudo, embora seja difcil colocar-se acima de sua cultura,
convem observar, com lucidez, que nossas reaes de rejeio

face a um corpo morto representam os frutos da semelhana


que estabelecemos entre esse corpo e o individuo. Para ns, o
corpo a pessoa.
No extremo oposto, a ndia negligencia esse mesmo corpo,
j que ele no passa de uma concha vazia que pode ser jogada
como pasto para animais. A alma, ou seja, a realidade do ser
humano, alou vo. Embora o Egito embalsamasse seus reis
mortos, no h nenhuma certeza de que os iniciados antigos
aceitassem esse procedimento. A posio dualista de Plato,
que foi iniciado no Egito, provavelmente proibia todo excesso
de culto ao corpo morto. Demonstrar venerao pelo corpo,
pela tumba e por todas as formas materiais que pertenceram
ao defunto eqivaleria no a negar sua morte, mas a considerar
o desaparecimento das formas materiais como um fim total e
definitivo. A esse desaparecimento, a experincia mostra que
as sociedades procuram se opor, mantendo as formas em bom
estado, pelo mximo de tempo possvel.
H, no entanto, um caso em que o objeto material pode ser
til; quando ele permite manter viva a memria da pessoa.
As comemoraes anuais, as fotografias, os objetos de
recordao, preenchem assim uma funo de imortalidade na
memria dos vivos. Tudo depende da compreenso das pessoas
envolvidas e de sua atitude mental. E possvel ligar-se a um
objeto tanto como se ele fosse o prprio morto ou simplesmente
como representando uma imagem dele. Em cada um dos casos,
a atitude assume um carter diferente, gerando conseqncias
diferentes.
Ainda na ndia, uma outra cultura reserva um final diferente
para o corpo. Os parsis, sobreviventes da antiga religio de

Zoroastro, constrem as torres do silncio. Nesses


monumentos a cu aberto, os corpos ficam expostos avidez
dos pssaros de rapina e agresso dos elementos. Quando
um doente falece, um de seus amigos vai buscar um cachorro.
Quanto mais perto do corpo o animal chega, considera-se que
mais o morto se aproxima da felicidade; ao passo que se ele se
mantm afastado, isto visto como um pressgio desfavorvel.
Como no Egito antigo ou na Grcia antiga, o co continua
sendo um smbolo associado morte. Nessa religio do fogo, o
inferno no considerado como uma fornalha, mas, sim, como
um lugar mido e sombrio.

Crenas
e ritos africanos
/^

A Africa hoje uma terra onde todas as concepes da morte


coabitam. As idias de sobrevivncia, im ortalidade e
reencarnao expressam-se ali das mais diversas maneiras. Mas
no que diz respeito a esse continente, til ser prudente ao se
apresentar seus costumes. Tanto pior para o esprito de
exotismo, mas os prprios africanos explicam que as prticas,
hoje, perderam muito de sua fora. A sociedade consumista
ocidental est causando ali devastaes que provocam uma
espcie de aculturao selvagem. Tudo o que se segue
corresponde a casos ideais de culturas.
O culto dos ancestrais o ponto comum das maioria das
etnias animistas. Alis, algumas prticas africanas muito
interessantes podem nos dar algumas informaes sobre as dos
Pais da Europa, os gregos e os romanos, na poca em que estes
compartilhavam o culto dos manes. Sabemos, por exemplo,
que o ancestral grego tinha de ser alimentado e mimado, sob
pena de vir perturbar os vivos e lhes trazer a morte ou a doena.

Do mesmo modo, entre os bantos africanos, o chefe da familia


enterrado na casa e um tubo liga a superficie do solo sua
boca. A familia pode, assim, fazer chegar at ele bebidas,
comidas e at pitadas de tabaco... Atualmente, o ato de nutrir
tornou-se uma prtica simblica na Asia, onde a familia coloca
um pratinho guarnecido sobre o altar dos ancestrais, mas
originalmente essa ao era real, como se constata na Africa.
No culto dos ancestrais, o morto considerado como
fazendo parte de um mundo paralelo ao nosso. Para os fa n gs
do Gabo, os que cometeram o mal vo "errando na noite,
sofrendo e chorando, pois sero encerrados no Otolane, a morada
m alvola onde s se vem m i s r ia s J os bons, ficam nas cidades
e voltam para junto daqueles que conheceram e amaram,
inspirando-lhes sonhos agradveis e aconselhando-os.
Ensinam como viver por mais tempo, como se tornar rico, ter
esposas fiis e muitos filhos.
Os vivos precisam conquistar as boas graas dos m ortos,
para no sofrerem a desagradvel irrupo desse universo em
suas prprias vidas. O duplo do morto temido; por isto,
costuma-se cortar seus membros ou decepar sua cabea, para
impedi-lo de vir assombrar os vivos. Em certos casos, ele
enterrado longe da cidade e rituais mgicos so realizados para
mant-lo distncia. No apenas a frica procura se proteger
da sombra dos mortos; os chineses, que so muito supers
ticiosos, explodem bombas, por ocasio de um falecimento, para
afastar os maus espritos.
Apesar de desconfiar da sombra, o africano recorre de bom
grado ao ancestral em caso de problema. Uma vez que Deus
considerado como estando muito distante do mundo e dos

interesses humanos, preciso, ento, dirigir-se a inter


medirios. Os ancestrais esto l para cumprir essa funo
mais prxima do humano. Essa necessidade de medio
encontrada por todo o planeta. As elevadas concepes de
Deus ou as filosofias em geral no satisfazem as populaes,
que reclamam elementos mais compreensveis, que tenham
relao com seu cotidiano e suas necessidades afetivas. O
culto dos santos no isl chiita ou no catolicismo traz Deus
para mais perto do ser humano. Muitas pessoas preferem
orar Virgem Maria, que lhes parece mais humana do que o
Cristo, envolto em sua supra-humanidade. A necessidade de
relacionamento com o ancestral pode ser considerada desse
modo, o que no exclui uma possvel comunho verdadeira.
Na frica, o luto feito em branco e alguns chegam at a
cobrir o corpo com uma argila branca, para simbolizar o
mundo luminoso a que pertencem os ancestrais. Entre os
bantos, interrompe-se toda atividade sexual durante esse
perodo. G ritos, danas e cerimnias sucedem-se por vrios
dias, afirmando o contra-ataque das foras da vida morte.
Ela sinnimo de corrupo, de pecado. Um ritual de
purificao perm itir, ento, que os casais se unam
novamente, algumas semanas depois do falecimento. Nessa
ocasio, a muiher pega a semente do homem em suas mos e
a usa para limpar o pecado. A morte como que suspendeu o
direito vida. Por esse rito, o poder soberano da reproduo
restabelecido, a vida pode continuar por tudo e contra tudo.
Constata-se aqui a evidente ligao entre Eros e Tanatos,
pressentida no campo da astrologia, como tambm na
psicanlise. H uma relao dialtica sutil entre as foras da
gerao e as da destruio, representadas simbolicamente por
esses ritos.

A origem da morte, segundo as etnias, viria de uma


desobediencia s ordens do Deus supremo. Entre os doges, a
morte tornou-se fato quando o homem adquiriu a palavra
articulada. Assim, com o incio da civilizao e o acesso
progressivo autoconscincia e linguagem articulada que
lhe concomitante, a conscincia da morte tornou-se fato para
o ser humano. Mas os doges explicam tambm que o ser
humano o reflexo do universo, e vice-versa. Podemos, ento,
estabelecer uma relao entre a palavra humana e a Palavra
macrocsmica, o Verbo de So Joo. A morte o produto da
palavra, ou seja, o produto do ato criador. No pode haver
criao sem a dimenso do tempo, que permite seu desenrolar.
No mito grego, Cronos, o tempo, o pai dos deuses. Ele
apresenta o incmodo hbito de devorar seus filhos,
semelhana do tempo, que o responsvel pela morte das
criaturas. Um de seus filhos, Zeus, vai depois destronar seu
pai e lana-lo nas regies inferiores. Acontece que, no mito, os
deuses ou o reino espiritual so preservados da morte, que
pode causar estragos somente na terra. A imortalidade
possvel, pois o tempo no mais atua sobre a Palavra primordial.
Esse mundo de foras invisveis irrompe na vida dos
africanos, na ocasio de um falecimento, por intermdio das
sociedades mascaradas. Danas e rituais so ento conduzidos
por homens pertencentes s sociedades secretas africanas. Esses
indivduos ocultam sua identidade, que deve permanecer
desconhecida, sob mscaras. Essas simbolizam o morto, os
ancestrais e as foras espirituais da natureza... seus jogos tm
por objetivo ajudar o morto a ser vitorioso em sua passagem.
De enorme importncia em todo o continente africano, esse
emprego da m scara est presente tambm em todo o
continente americano, entre os ndios. A prpria Europa antiga
usava a mscara para estabelecer essa relao entre os dois

mundos, dos quais a morte e o nascimento representam os


pontos de passagem. A com m edia deli 'arte italiana, de certo
modo foi a distante herdeira dessas prticas.
Por razes financeiras ou ritualsticas (se alguns objetos do
ritual desaparecem, necessrio obte-los ou fabric-los de
novo), os funerais podem ter lugar vrios anos aps o
falecimento do indivduo. Um boneco representando sua figura
ento exposto aos olhos de todos. Durante oito dias, proibido
pronunciar o nome da pessoa. O nome est associado
individualidade. No Egito antigo, esquecer o Ren ou nome
mgico era sinnimo de estar correndo perigo; analogamente,
a perda do nome, para o africano, provoca a perda do fluxo
vital. Essa importncia ligada ao nome parece sugerir que a
morte corresponde a uma transformao da individualidade.
Muitas outras culturas poderiam ser apresentadas. Mas os
pontos principais foram abordados, alguns, alis, por
intermdio de uma nica cultura, uma vez que so comuns a
vrias. A tabela que se segue apresenta alguns dos pontos mais
evidentes, sem, todavia, pretender esgotar os assunto.

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Tabela comparativa das diversas correntes

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sua fon te, jubilosa, e a beleza representa a expresso visvel
desse j b ilo secreto
Quando a questo da imortalidade do ser humano
abordada em pblico, a reao que observamos na maior parte
do tempo consiste ou em ceticismo total ou numa crena na
imortalidade, aliada a um materialismo indubitvel. Cada um
se aferra sobrevivncia de seu ser de acordo com a concepo
que dele tem no plano material. O pblico em geral muitas
vezes imagina que sua conscincia terrena ser conservada.
Na realidade, essa necessidade ou essa certeza no se baseia
num conhecimento real sobre o ser humano. Ante a pergunta:
Que voc realmente?, a maioria no sabe o que responder.
O sbios antigos sabiam to bem o valor desse conhecimento,
que formularam esta frase: "C onhece a ti m esm o e conhecers o
universo e os deuses
Quando uma pessoa aborda a questo da imortalidade,
geralmente deseja ter certeza dela, sem se interrogar sobre o
qu realmente imortal, ou ento prefere neg-la. Os sbios
budistas, por sua vez, explicam que o ego uma iluso; disto
decorre grande parte de sua compreenso do fenmeno da
morte.
A compreenso da morte ou da imortalidade depende da
idia que fazemos daquilo que permanece imortal, isto , do
eu humano. O homem se aferra ao seu eu humano, sem se dar
conta de que ele , antes de mais nada, evanescente. Um
exemplo pode ilustrar a fugacidade desse ego.

Uma pessoa pode ter uma viso negativa a respeito de uma


outra porque esta outra, acredita ela, fez-lhe algum mal. Todas
as suas decises e declaraes sobre esse oponente sero, ento,
marcadas por esse ponto de vista desfavorvel. Mas no dia em
que a relao com seu oponente evoluir, porque ento, de novo
segundo o que ela acredita, ele lhe fez algo de bom, os discursos
e as atitudes mudaro diametralmente. Onde est o eu
verdadeiro nesse caso? Nossos pensamentos so constan
temente influenciados por nossas emoes. Se, por um motivo
ou outro, a emoo muda, o pensamento pode mudar tambm.
Que acontece, ento, com a suposta rocha que somos?
Acreditamos, na maioria dos casos, que somos unificados,
quando, na verdade, freqentemente no passamos de
marionetes nas mos de emoes contraditrias e mutveis.
Assim sendo, podemos nos perguntar: afinal, que significa a
imortalidade?
Longe dos olhos, longe do corao, diz o ditado popular.
Se conhecemos uma pessoa, o conceito que temos a seu
respeito quase sempre em funo do fato de ela nos valorizar
ou preencher nossas necessidades afetivas, ou, ao contrrio,
nos frustrar. Mas se passamos um longo tempo longe dela,
guardamos na memria outros aspectos de sua personalidade,
pelos quais no nos interessvamos ento. Nosso ponto de vista
pode assim mudar. Qual o eu que muda constantemente
sem que nos demos conta? Qual a personalidade que , na
verdade, o joguete dos afetos do momento e dos eventos que a
afetam? O eu comporta-se muitas vezes como um camaleo.
Na realidade, o ego, como elemento imutvel, no existe. Ele
apenas representa uma sucesso de instantes de conscincia
em perptua transformao. Isso significa, em outras palavras,
que ele possui uma natureza essencialmente mortal.

certo que quando alguma coisa se transforma, no novo


acaba um dia no restando mais nada do antigo. O adulto que
voc hoje formou-se a partir do beb de antigamente, mas
no existe mais nada desse beb em voc agora. Essa infncia
morreu talvez dezenas de vezes em voc, antes de se transformar
nisso que voc hoje. O elemento fundamental que d a iluso
de uma continuidade de conscincia a memria. Recordome de como eu era aos dez anos, logo, eu existia nessa poca.
No entanto, cabe perguntar: Que que existia?. Quando
uma pessoa se lembra de sua infncia, na maioria das vezes ela
faz isto a partir daquilo em que se tornou, no a partir daquilo
que ela era naquela poca. A prova disso que raramente vemos
homens de sessenta anos se pondo a brincar, como os meninos,
de soldadinhos. O estado de esprito mudou, a conscincia
no mais a mesma. Falta o lado emocional. Mesmo que uma
mulher consiga se lembrar do tempo em que brincava com
bonecas, ela no consegue voltar a sentir de maneira to intensa
as emoes da menina que ela foi. Se consegue, por que no
brinca mais com bonecas? A verdade que o corao no est
mais ali; aquela menina est morta nela e ningum pode
ressuscit-la. O que chamamos de saudade dos tempos antigos
corresponde a uma cerimnia de recordao de todas as pessoas
que j morreram em ns. A memria nos d a iluso de que
somos hoje aquilo que fomos ontem, e que seremos amanh o
mesmo que somos hoje; numa palavra, a mesma pessoa. Mas
basta que acontea um acidente seguido de perda de memria
para que a vtima tenha a impresso de estar morta. Quando
lhe so mostradas fotos dela mesma, datando de alguns meses
antes, ela as trata como se tratassem de fotos de um estranho.
Perder acesso memria de nosso passado o mesmo que
morrer isto o que nos ensina esse tipo de acidentados. Mas
para pessoas sadias, que nunca sofreram nenhum acidente, a

memoria d a iluso de que, desde o nascimento at o suposto


fim, elas nunca experimentaram a morte. Isso falso e macula
nossa compreenso das coisas. Certamente, podemos presumir
que um indivduo seja o mesmo ao longo dos anos, porque
sua ao manifesta certa continuidade. Entretanto, conseguimos
realmente recordar tudo o que sentimos, do ponto de vista
fsico, intelectual, emocional e qualquer outro, por exemplo,
h dez anos? De modo algum. Conseguimos conservar as
linhas principais, nosso inconsciente ficou impregnado por
aqueles instantes, mas sempre faltar s nossas lembranas algo
que nos permita dizer: eu sou. E que, na verdade, cada
instante dos mirades de anos-luz que nos precederam nico.
A permanencia no deste mundo. Se compreendermos que,
no curso de nossa vida, de fato vivenciamos vrias mortes
progressivas, ento, no teremos mais nenhum motivo para
temer a cessao das funes do corpo fsico e a decorrente
transio da alma.
A esse respeito, Leslie D. Weatherhead, pastor e escritor
britnico, morto em 1976, assim se expressou: Voc William
Tompkjns, p o r exemplo. M uito bem . Voc o W illianzinhoTompkjns-de-nariz-escorrendo, que f o i punido porque ch egou
atrasado na escola. Quer continuar m antendo sua identidade com
ele? Voc o Will Tompkjns que escreveu aqueles versos tem os e os
deslizou para as mos daquela m ocinha de dezesseis anos, de tranas
louras. Quer se identificar com ele? Voc o William Tompkins
que f o i despedido p orqu e no f o i capaz de explicar a origem do
dinheiro que v o c recebeu em n om e da sociedade. Voc vai fic a r
frustrado se ele sum ir do seu sentim ento de identidade? Voc o
W. Tompkjns que sofre de reumatismo articular, que tem a audio
fraca, a vista turva e um corpo que se tom ou um fardo. Faa essa
experincia: Repita, em voz alta, uma centena de vezes, "William

Tompkjns. .. William Tompkins... ". Im agine cem m il anjos ao seu


redor fazen do a mesm a coisa. E m esm o im portante que toda a
personalidade d e Tompkins se p erp etu e p o r cem , mil, dez mil,
cem m il anos? Uma vez e sem pre W. T.l 11 Nossa verdadeira
identidade nunca ser perdida, o ouro puro do ego subsistir,
purificado e fortifica d o" .
Mas por que essa acentuao posta na separatividade?!!
Intencionalmente, no uso nem mesmo as palavras morte
fsica para descrever o fenmeno, porque nosso prprio corpo
perde a maioria de suas clulas a cada sete anos, graas ao
processo do metabolismo. Isso significa que, fisicamente,
morremos regularmente de sete em sete anos. As raras clulas
que sobrevivem durante toda nossa vida so as do crebro. Esse
fenmeno talvez seja o que nos d a iluso de uma imortalidade
relativa, durante nossos sessenta ou mais anos de existncia.
Para sintetizar o que acabamos de expor, vale salientar que,
no curso de uma vida, morremos psicolgica e fisicamente
vrias vezes, de forma progressiva. A cessao das funes vitais
representam, de fato, apenas uma transformao a mais e, de
modo algum, A Morte nica, da qual tanto se fala. O grande
erro do mundo ocidental materialista consiste em contrapor
esse fim ao resto da existncia. No entanto, tudo o que
expusemos at agora demonstra largamente que esse evento
no representa mais que uma metamorfose complementar e
que a diferena est somente na sustentao, pelo crebro, de
uma memria superficial ao longo da vida.
Outro elemento: uma teoria sedutora e profunda explica
que nossa compreenso da imortalidade depende da forma
como nos situamos no mago da Criao. Ou nos apegamos

idia de que somos, em primeiro lugar e sobretudo, um ser


independente do resto da Criao, ou aceitamos a evidencia
que nos torna um produto do universo. Voc pode se imbuir
do pensamento segundo o qual a vida se exprime atravs do
ser hum ano e que se serve dele para expressar suas
potencialidades. Sua verdadeira funo consiste, nesse caso,
em servir de canal para essa vida universal que o transcende e
que constitui a essncia de seu ser. O ego, nesse esquema,
representa to-somente um meio para assegurar a expresso
dessa vida no tempo e garantir-lhe um modo especial para que
ela tome conscincia de si mesma. Visto como um fim em si
mesmo, ele se torna uma iluso. J demonstramos que ele de
fato mortal nesta presente existncia. E com mais forte razo
ainda, mortal quando da cessao das funes vitais.
No obstante, se uma pessoa se identifica com aquilo que
ela verdadeiramente, isto , uma forma de expresso da
Grande Vida ou Alma Universal, ento ela se torna imortal.
Na verdade, desde sempre ela foi imortal, sem o saber
realmente. E imortal no exato momento presente, a cada
instante. A nica coisa que aconteceu foi uma mudana de
ponto de vista a respeito de si mesma e da vida em geral. Ao
fazer isso, simplesmente mudou seu estado de ser e sua
compreenso, e isto tudo. A partir da, ela pode usufruir uma
espcie de paz, com a certeza de que no precisa esperar a
morte para se tornar imortal, mas que j . E to admirvel
que tantas tcnicas orientais acentuem a necessidade de se dar
toda ateno ao momento presente, o eterno presente?
Muitas pessoas vem nas idias sobre reencarnao apenas
um meio de manter de p o seu eu. Querem saber se vo
reencarnar junto aos seres que j amaram numa vida anterior.

Do mesmo modo, esse pblico interpreta os contatos com os


mortos como se existisse um possvel dilogo com eles, idnticos
aos que podemos manter aqui na terra. As descries do alm
tambm costumam recorrer a cenas terrenas, como o caso do
Coro. Tudo isso demonstra efetivamente que os homens se
apegam desesperadamente ao seu modo de conceber a vida
centrada no ego. No queremos ou no podemos ampliar
nossos pontos de vista, abandonar nossas idias preconcebidas.
Ainda no conseguimos sentir em ns a presena de uma Alma
Universal, que, sozinha, confere a condio de im ortal.
As pessoas preferem se apegar sua famlia, seu ambiente,
seu estado de conscincia limitado. E elas morrero, porque
se apegam ao que impermanente. E, no entanto, uma parte
de seu ser to imortal quanto o de qualquer mstico ou sbio.
O despertar da conscincia, de acordo com os escritos de
grandes msticos, visa ancorar a conscincia no imutvel, na
eternidade e na abertura da personalidade ao infinito.
Logo, bem possvel que a questo da imortalidade dependa
da concepo que se tenha da alma. Uma opinio acertada
sobre isso pode dar acesso ao infinito. Um sentimento de
participao na eternidade resultar em indizvel paz e alegria.
Ao passo que uma idia falsa pode levar caa de quimeras, ao
longo de um caminho tortuoso e cheio de espinhos.
Tomemos um exemplo simples, cujo modelo j fora usado
pelo filsofo romano Ccero. Imaginemos, como Descartes, uma
pessoa que comea a procurar a sede da alma. A exemplo de
Plato, ela pode primeiro conceber a alma como uma idia
arquetpica, evoluindo no reino da abstrao. Ou ento, tentar
demonstrar que um rgo do corpo constitui sua sede. Essa

poderia ser o corao ou o plexo solar ou, ainda, na opinio de


Descartes, a glndula pineal. Parece que a humanidade tem
sido muito imaginativa nessa esfera. Os iafares da Nova Gui
acham que a alma est situada no sangue, enquanto o Avesta
dos zoroastrianos revela uma ligao entre a alma e os ossos.
Os Upanishads hindus explicam o seguinte: A alma, q u em a is
sutil que aquilo que sutil, m aior que aquilo que grande, est
in stalada na ca v id a d e do ser v iv o (cavidade esta que
tradicionalmente considerada como sendo o corao). Aquele
que isento de desejos e angustias contem pla, pela tranqilidade
dos seus sentidos, a m ajestade da alm a.
Mas, ento, que feito dessa alma quando, com a morte,
o corpo desaparece? Sem dvida, ela estaria destinada a
desaparecer com seu companheiro. De fato, toda concepo
que faz da alma o resultado de um processo fsico-qumico
condena-a a ser m ortal. O mesmo ocorre quando se
considera que ela est vinculada a uma parte do corpo ou a
qualquer corpo que seja. A mesma coisa, ainda, ao se
im agin-la como passvel de evoluir. Tudo que evolui
transforma-se, mas transformao tambm significa morte.
Por conseguinte, tudo que evolui morre proporo que se
desenvolve. Se a alma qualificada de imortal, no pode
ser outra coisa seno p erfeita .
H grande diferena entre o fato de considerar que
determinadas partes do corpo possam servir de intermedirias
entre o mundo da alma e o da matria, e a crena que situa a
sede da alma
no corpo. Veremos o porqu disso nos prximos

captulos. E possvel sermos imortais aqui e agora, e que tudo


dependa da nossa conscientizao e da nossa identidade com
tal ou qual princpio.

Para os neoplatnicos, assim como para os indianos, existe


apenas uma nica alma no todo da Criao, qual poderamos
dar o nome de alm a do m u n do. Nesse princpio nico
participariam todos os seres vivos, qualquer que fosse sua
posio na escala de evoluo. Os neoplatnicos consideravam
que a alma do mundo ocuparia a posio intermediria entre
o mundo sensvel e o mundo inteligvel. Segundo Plato, ela
representaria o princpio nico automotor, isto , capaz de se
mover por si mesmo. Como indica o discurso de Hermes a
Asclpio, justamente ela que faz mover
todas as criaturas,
A
que dela recebem vida e conscincia. E por isso que no se
pode situar a alma em nenhuma parte do corpo. Mais que
qualquer onda eletromagntica, ela penetra e interpenetra tudo.
Nenhuma barreira de chumbo pode opor-lhe obstculo, pois
ela pertence a uma outra dimenso. Os Antigos acreditavam
que ela seria transportada pelas asas do ar. Outros insinuavam
que ela seria como um fogo penetrando todas as coisas. Na
verdade, sabemos que a vida vem, entre outras coisas, do calor
e da respirao. Tudo que vive respira. Sabemos tambm que
seres vivos extremamente surpreendentes se desenvolvem a
milhares de metros de profundidade, nas regies abissais
ocenicas, perto de inesperadas fontes de calor. Havia, porm,
um sutilssimo tesouro oculto no pensamento dos Antigos...
O ar, como tambm o calor, um bem comum a todas as
criaturas. Assim, do mesmo modo, a alma deve ser um tesouro
comum totalidade da Criao. De sua unicidade e de sua
perfeio depende sua imortalidade. A definio deA tm an,
segundo os U panishads (livros sagrados dos hindus),
exatamente aquilo que escapa a toda limitao de tempo,
espao e causalidade. Poderamos, ento, especular sobre sua
possvel natureza vibratria, gnea ou qualquer outra; mas,

neste caso, parece que traaramos uma rota falsa. O verdadeiro


espiritualista no procura dar forma e textura (por mais sutis
que sejam) a um princpio invisvel, intangvel e mesmo
inacessvel compreenso estritamente intelectual. Em outras
palavras, pode-se menos definir a natureza da alma do que
seus efeitos.
Enunciemos agora um postulado que tentaremos de
monstrar da seguinte forma: devido sua unicidade, a alma
perfeita, imortal e constitui a essncia de todas as coisas. Dessa
idia decorre que tudo que vive nas guas, caminha na terra
ou voa nos ares recebe sua parte de imortalidade. Os animais
no tm nenhuma conscincia da morte, porque permanecem
indissociveis de sua essncia imortal. A centelha de vida que
os interpenetra e os faz moverem-se segue seu caminho depois
do desaparecimento dos veculos que a transportaram e que
manifestaram alguns de seus atributos. Mas para o ser humano,
essa energia tornou-se fato secundrio. Ele preferiu substitula por seu prprio eu individualizado. Assim, ele se tornou
mortal, pois esse eu, aparentemente autnomo, sofre perptuas
mutaes.
O budismo teravada, aquele que o Buda ensinava, chamado
tambm de budismo do pequeno veculo ou hinayana, explica
o seguinte: o ego, o eu humano, uma iluso. Representa,
sobretudo, uma sucesso de instantes de conscincia. Por
analogia, ele como um rio. O rio, em si mesmo ou tomado
em seu todo, uma miragem. Na realidade, ele somente a
sucesso de uma multido de partculas de gua. Assim
tambm, segundo os budistas, o eu no passa de um agregado
de vrios princpios em perptuo movimento. O que parece
real no rio a corrente que vai sempre na mesma direo visvel,

at que um obstculo desvie seu curso. Essa opinio referente


ao eu explica a causa da crena geral de que o budismo ensina
a inexistncia da alma (a doutrina dean atm am ), ao contrrio
das crenas da ndia. Repetidas vezes os discpulos do Buda
questionaram seu mestre, tentando saber se o carma do homem
pessoal ou impessoal. Todas as vezes, Gautama elucidou a
questo explicando que conhecer a resposta no contribuiria
para libertar o homem da iluso do ser. Para ele, mais vale
meditar sobre o nascimento, a morte, a vida, a velhice, e sobre
as causas e os efeitos dos acontecimentos felizes ou no.
Dito de outro modo, mais vale tentar libertar-se do desejo e
de todas as coisas que prendem o ser. Isso melhor do que
tentar solucionar uma questo que, ao longo da Histria, ops
e continua opondo as religies entre si, e mesmo os diversos
sistemas de humanismo. A frmula tudo se transforma
expressa o lema budista, que v o mundo como um calei
doscpio incessantemente mutvel.
Pode aquele que se identifica com algo que varia
constantemente ser imortal? No seria a imortalidade, ao
contrrio, o ancoramento da conscincia no cerne de um
princpio imutvel? O pensamento budista teve, na Grcia,
um equivalente contemporneo: Herclito de Efeso dissolvia
toda existncia nas ondas do devenir. Inversamente, para
Parmnides, o ser eterno e imutvel existia s. Foi preciso
esperar a chegada do mestre Plato para conciliar essas duas
concepes. Mas, segundo o pensamento budista, a pessoa que
s vive no nvel de seu ego transitrio j est morta, ainda que
as aparncias paream provar o contrrio.
Por que o mestre Jesus chamou os mestres da sinagoga de
sepulcros caiados? Teria sido porque, como um delinqente

qualquer, ele quis simplesmente insult-los? Seguramente, no!


O que ele fez foi revelar uma elevada e sutil verdade espiritual.
Aquelas pessoas ligadas a poderes, posses, bajulaes, j
estavam mortas e no sabiam. Assim como eles, todos
possumos, dentro de ns, uma parte de nosso ser que est
morta, porque nossos valores so os de um mundo em mutao.
Porque damos mais importncia ao nosso eu do que misso
que ele deveria cumprir.
Um mestre do passado explicou, certa vez, que o reino
humano, cujo hbito de se apresentar como o pice do
universo, representa um relativo ponto de morte no mago de
um universo de vida. De fato, o universo inteiro vive ao nosso
redor, com suas mirades de expresses diferentes, mas no
nos apercebemos disso. Levei dez anos para compreender o
que esse autor quis dizer com isso e ainda no estou certo de
j ter abarcado todo seu significado.
Cada um de ns poderia fazer a seguinte pergunta: seria
esse eu, que acredito ser e ao qual me apego, o alfa e o mega
de todos os valores? Se respondo afirmativamente, torno-me
efetivamente mortal. Mas se considero esse ser transitrio uma
parcela til, mas secundria, de um todo bem mais vasto, este,
sim, imortal, posso ento, neste exato momento, participar dessa
imortalidade. Eis uma das concepes mais esotricas que
existem da imortalidade.
H outras que apelam totalmente a uma ampliao do
campo da conscincia, at mesmo a uma renncia ao eu. O
escritor judeu Elie Wiesel falou do dever da m em ria, referindose ao sustento da necessria recordao dos mrtires
do
^
holocausto cometido na ltima guerra mundial. E fcil

compreender que uma das condies da imortalidade pode


estar na lembrana que os descendentes mantenham de seus
falecidos ancestrais. Enquanto houver algum para se lembrar
do passado, ele conservar um pouco de sua imortalidade.
O culto dos ancestrais, entre os gregos antigos e os povos
animistas, tm uma parcela de sua origem nesse pensamento.
Enquanto nossos filhos se lembrarem de ns, seremos imortais
na conscincia deles. Cada um de ns sabe isso vagamente. E
por isso que, segundo os psiclogos, um dos pesares mais difceis
de assumir aquele que advm da perda de um filho. A
progenitura representa, tcitamente, uma promessa de
imortalidade. Os Ancies de Israel sabiam isso perfeitamente,
eles que davam tanta ateno linhagem. Sou o filho de meu
pai, e ele, o filho de fulano, e assim por diante, diziam os
hebreus. O mais importante para o povo do Exodo no era
tanto a sobrevivncia do indivduo quanto a da coletividade.
No Antigo Testamento, os filhos de Israel at mesmo pagam
pelas faltas cometidas por seus pais. O patriarca dessa nao,
Jac, toma, ele prprio, o nome da ptria inteira.
Entre os muulmanos, o termo/4, muitas vezes acoplado
ao nome de famlia, significa pai d e .... O qualificativoIbn,
tambm muito usado, como no caso do famoso sufi Ibn Arabi,
traduz-se como filho d e .... Isso sugere que a imortalidade
reside mais na continuidade e na obra da humanidade coletiva,
que sucede a si mesma atravs de sua descendncia. Parece,
no entanto, que as idias defendidas nessa questo diferem
segundo as culturas. Para os muulmanos ou os catlicos
modernos, a morte individual vista muitas vezes como uma
catstrofe. Entre os vietnamitas, mais ntimos da natureza, a
onipotncia universal da vida primordial. Se tem os filhos,

a lg o d e ns p er m a n ece para se m p r e , diz um provrbio


compartilhado por eles, pois possuem, mais que ns, o
sentimento de serem parte de um todo vivo, com todas as
transformaes das quais ele a sede. \bltaremos a essa questo
quando tratarmos do acompanhamento dos agonizantes. Os
psiclogos e os clnicos gerais, com efeito, perceberam os
agonizantes conseguem partirem paz mais facilmente se esto
conscientes de que deixaram seus negcios em ordem e
transmitiram aos filhos que os sucedero tudo o que estes
precisam saber.
O filho representa, verdade, a primeira obra, a primeira
criao de um ser humano, mas suas outras produes tambm
lhe conferem uma parcela de imortalidade. No se costuma
dizer que os criadores se imortalizam em suas artes? Frank
Sinatra, por exemplo, no renasce um pouco toda vez que um
ouvinte se entusiasma com uma de suas canes? V ictorH ugo
no passou posteridade graas sua obra monumental? O
prprio termo imortais, pelo qual os membros de uma
Academia de Letras so qualificados, no mais eloqente que
qualquer discurso? Ccero comentou, em sua poca, o epitfio
do poeta romano Enius, conhecido de cor por todos os
habitantes da antiga capital: Contemplai, cidados, essa bela
im agem do velho Enius, f o i ele quem celebrou os grandes feito s
de vossos pais: No choreis p or m im ... afinal, estou vivo, porque
vo de boca em b o ca ...
O ingls Francis Bacon, que, segundo algumas hipteses,
pode ter sido o suposto autor das peas de Shakespeare, via no
conhecimento um meio de a lca n a r uma form a de imor
talidade: A im ortalidade tam bm buscada na form a o de uma
fa m ilia , que no cessarem os d e enobrecer, na con stru o de

edificaes e m onum entos fam osos, e ela , de fato, o pice de


todos os desejos humanos. Mas vem os tam bm quo mais durveis
so os m on u m en tos do g n io e do con h ecim en to, do qu e os
construdos p ela m os do hom em . O reflexo do con hecim en to de
um hom em p erm a n ece intacto em seus livros, ao abrigo das
vicissitu d es do tem po, e p o d e ex perim en tar um a p erp tu a
renovao. M esmo aqueles, entre os filsofos, que fora m os mais
profundam ente ligados aos sentidos e negavam a imortalidade,
adm itiram , todavia, q u e as a es do esprito hum ano, no
requerendo o exerccio dos rgos do corpo, podiam continuar a
subsistir depois da morte, quais sejam, as do entendim ento e no
as das afeies; e que o con h ecim en to lhes parecia uma coisa
incorruptvel e im ortal.
Notemos, de passagem, que muitos grandes homens e
mulheres, aps sua morte, adquirem, na conscincia das
massas, uma dimenso que no existia qu an d o estavam vivos.
Em casos extremos, eles se transformam em totem de uma nao
ou de um povo. Sua personalidade torna-se um guia quase
fantasmagrico para uma coletividade. Tornada imortal, essa
personalidade emblemtica enriquecida pelas aspiraes e
anseios das milhares de pessoas que porventura se identifiquem
com ela ou projetem nela suas prprias frustraes.
Por sua vez, a civilizao do Egito antigo, em sua tentativa
de colonizao do alm, imortaizou-se atravs de suas obras
monumentais e por intermdio do conhecimento que legou
ao mundo. Quantos sbios, quantos filsofos gregos, com efeito,
no foram estudar sombra de suas pirmides? O prprio rei
MausoJe, simples auxiliar do imprio persa, no sculo 4 a.C.,
consciente de que no passaria posteridade graas s suas
obras polticas, mandou erigir o mais magnfico monumento

funerrio que o mundo jamais teve. Assim, o Mausolu,


conhecido c o m o um a das sete maravilhas do mundo, tornou o
seu autor clebre para os tempos futuros. O cnico Digenes,
alis, esca rn eca dessa v pretenso imortalidade.
Quanto questo das obras legadas posteridade, pessoas
que vm observando agonizantes salientam como partem mais
facilmente em paz os que tm o sen tim en to de terem feito de
sua vida uma boa obra. Aqui, as clssicas crenas acerca da
im ortalidade to r n a m -s e quase secundrias. O melhor
passaporte para o outro lado o sentimento de ter cumprido a
obra ou a misso de sua vida. Ento, o ser humano pode
repousar por uns tempos junto de seus pais, antes de passar
para uma misso mais elevada.
O professor Carl Gustavjung, n o livro "M emria, S onhose
Reflexes, explica que o inconsciente do homem representa
tambm o reino dos mortos. Supondo que haja uma continuao
no alm , no poderam os con ceb er outro m odo de existncia
q u e no a psquica, um a vez qu e a vida da psique no precisa
nem de espao nem de tem po. A existncia psquica e sobretudo as
im agens interiores de que nos ocupam os agora fo rn ecem a matria
de todas as especulaes m ticas sobre uma vida no alm, e esta,
represento-a com o um a m archa progressiva atravs do m undo das
imagens. Assim, a psique poderia ser a existncia na qual est
situado o a lm ou pas dos m ortos. O in consciente e o pas
dos m ortos seriam, nessa perspectiva, sinnim os.
Que sabemos sobre a conscincia humana? Bem pouca coisa,
na verdade. Povos inteiros pretenderam conversar com seus
mortos por intermdio dos sonhos. Isso significa dizer que a
conscincia humana no se limita ao aspecto objetivo da

existncia. A psicanlise, no sculo 20, revelou s massas o


mundo do inconsciente humano (ou tornou-o admissvel ao
nosso pensamento estritamente positivista?). No entanto, h
sculos, algumas pessoas conhecem e fazem uso dessa dimenso
oculta da psique. Para esses sbios, como os Rosacruzes do
passado, a conscincia objetiva to-somente o lado visvel de
uma rvore cujas razes ou galhos se enterram ou se estendem
dentro de um campo infinito de conscincia. Jung, afastandose da rota traada por Freud, pressentiu vagamente a existncia
desse campo de conscincia transcendente. Chamou-o
inconsciente coletivo. Para ele, os mortos no desaparecem,
pois sua conscincia tem sua base nesse inconsciente coletivo.
Por conseguinte, uma parte de nossos ancestrais viveria em
ns de um modo invisvel. Seriam os, portanto, n um certo
sentido, os fru tos dos que dorm em .
Se os dados de uma determinada psicologia pleiteiam em
favor da im ortalidade, co m o acabou de ser demonstrado, a
medicina e, mais particularmente, a gentica tambm do sua
contribuio nesse cam po. S abem os h o je q u e as informaes
genticas transmitidas pela dupla hlice do DNA (o cdigo
gentico que co n tm nossas caractersticas fsicas e m entais)
so passadas de pai para filho. De certo modo, a frase bblica,
Os erros dos pais sero transmitidos aos seus filhos, a t a stim a
gera o, est sendo verificada pela cincia. Conhecemos a
origem g en tica d e algumas doenas hereditrias. Elas nos
ensinam que algumas de nossas caractersticas so transmitidas
de uma gerao outra. Teriam elas feito algum pacto de
imortalidade?
.
A imortalidade material representa um dos velhos sonhos
da humanidade. Na China, h alguns sculos, um imperador

enviou homens para explorar o mundo procura dos imortais.


Os alquimistas ocidentais sonhavam co m a pedra filosofal que
poderia lhes conferir a imortalidade, na forma do chamado
elixir da lon ga vida. Hoje, porm, graas contribuio dos
conhecimentos biolgicos, esse sonho meio maluco est a um
passo de se realizar. A partir de uma clula tirada de um ser
vivo, o doutor Jeckyll pode reproduzir infinitas vezes o
mesmo ser vivo. Chama-se a isso clonagem. Ergue-se, ento,
infalivelmente, a pergunta: com qual imortalidade voc sonha,
a do corpo ou a da alma? Da resposta a essa pergunta provm
todo o valor dado ao ser humano, vida e verdadeira
liberdade. por isso que esse tema suscita tantas reflexes em
nossas comisses de tica.
Mas isso ainda no tudo. Fsicos, como o francs Jean
Charon, esto considerando a possibilidade de uma
memria dentro do eltron, memria esta que poderia
conservar a experincia pela qual passou esse eltron ao
longo de suas diversas formas de manifestao dentro da
m atria viva ou inerte. Assim, outra possibilidade de
imortalidade material poderia muito bem ser evidenciada
pela cincia moderna.
Um esforo de sntese permite compreender que, de fato,
h mltiplas maneiras de se considerar a imortalidade. Queira
o leitor notar que o ponto comum de todas as concepes que
viro a seguir reside na memria s quais elas recorrem, embora
sob formas diferentes. A imortalidade, portanto, pode ser
considerada de um ponto de vista individual, contanto que se
admita ou que se ponha em evidncia a existncia de uma
memria imaterial que conservaria as caractersticas da
personalidade morta. Ela pode ser imaginada, n u m sen tid o

mais coletivo, por meio do inconsciente coletivo de Jung. A


memria das clulas, dos tomos ou do DNA tambm pode
dar o que pensar em matria de imortalidade.
As obras gravadas no papel ou na pedra representam, por
sua vez, a memria do pensamento de seu autor, e contribuem
para sua eternidade. D-se o mesmo com a progenitura, que,
por seu dever de memria, mantm viva a lembrana dos
antigos. Por ltimo, as cerimnias, as tumbas, os sinais externos
da vida dos mortos, contribuem igualmente para a imortalidade.
Evidentemente, aqui estamos bem longe das idias egostas
de uma vida eterna centrada na individualidade. H ainda uma
ltima e sutil idia que pode orientar nossas concepes nessa
esfera. Muitos sistemas de moral e tica baseiam-se na noo
de que a virtude representa um fator de imortalidade. A virtude,
nesse sentido, constitui um meio de harmonizar o indivduo
com as idias eternas do bem, do belo e da verdade. Aqui esto
reunidos os grandes temas platnicos. Aquele que pratica a
virtude pressentida no interior de sua conscincia une-se quilo
que mais vasto que ele. Ele ancora seu ser no mago de valores
eternos e verdadeiramente portadores de futuro; ao passo que
a ausncia de virtude leva apenas ao caos. Sua conscincia
experimenta, ento, um sentimento de im ortalidade e
plenitude. Esse ser servir tambm de exemplo e de guia para
outros, em sua prpria esfera de vida. Estender, assim, suas
faculdades, por contgio, tanto no tempo como no espao.
Agora que algu m as c o n c e p e s da imortalidade foram
abordadas, convm voltarmos nossa primeira pergunta: A
alma imortal? Pergunta aparentemente nica, m as que, na
verdade, esconde duas. Por um lado, ser que existe, sim ou
no, um princpio mais ou menos visvel a que se poderia

chamar alma; por outro, seria esse principio dotado da


faculdade da imortalidade? O mundo cientfico em geral evita
responder essas duas perguntas. Prefere recolher-se a uma
reserva prudente, ao mesmo tempo em que no as responde
negativamente. Para a ciencia, esse principio chamado alma,
que no se enquadra nas categorias que ela analisa habi
tualmente (isto , o campo do mensurvel), deve ser sabiamente
deixado de lado. Se existe de todo um conluio tcito entre
cincia e religio para manter a ignorncia sobre alguma coisa,
esta coisa o campo da alma. A primeira ignora o assunto,
enquanto a segunda o isola no campo da f. Para o sacerdcio,
a alma assunto de crena religiosa indemonstrvel. Segundo
ele, a alma existe porque Deus, atravs das escrituras sagradas,
disse que sim, e ponto final. Querer demonstrar a existncia
da alma graas observao seria, para uns e outros, uma
demncia. Contudo, no haveria realmente nenhum argu
mento demonstrvel e sustentvel, capaz de provar a qualquer
mente racional a existncia dessa grande fora eterna? A
sabedoria tibetana ensina que a pessoa cuja f no est enraizada
na razo com o um curso de gua que p od e ser conduzido para
qualquer lu ga r. De fato, toda f no ancorada na razo como
um raminho de palha aoitado pelos ventos de uma cincia
ctica. Ela no consegue resistir dvida gerada por uma mente
presa s suas categorias habituais de percepo.
A alma no pode ser medida, mas prova sua existncia por
meio de seus efeitos, inumerveis para olhos realmente abertos.
Ela representa o prprio fundamento de toda existncia, sem
o qual nem mesmo aquele que a nega teria qualquer alento de
vida. Sem a alma, as galxias, as estrelas e os planetas jamais
teriam vindo luz. As incessantes rondas que fazem girar
universo aps universo no teriam tido nenhuma razo de se

manifestar. Vejamos agora em que medida podemos afirmar


que a alma e sua im ortalidade representam A causa
importante, atrs da qual todas as outras se enfileiram. E, para
isto, laamos uma pequena viagem ao lado dos filsofos da
Grcia antiga. Um desses filsofos, Pitgoras, ensinou que No
princpio, D eusgeom etrizou. Com essa frmula, ele quis dizer
que o mundo dos fenmenos regido por um conjunto de leis
e princpios acessveis razo, que os gregos denominavam
Logos. O filsofo moderno Michel Serres viu nessa idia do
Logos (palavra que significa discurso ou lei) a origem da
marcha racionalizante da cincia. O apstolo Joo, no comeo
de seu Evangelho, faz eco a essa idia, com a frase: No com eo
era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era D eus. O
Verbo de So Joo o mesmo L ogos dos gregos; por isto,
podemos nos perguntar, hoje em dia, quem tem o direito de
reivindicar, se gregos ou judeus, a paternidade do conceito.
Tudo isso significa, na verdade, que esse mundo de princpios
ou leis universais (que Pitgoras afirmou ser regido pelo
nmero) presume, para sua origem, uma grande inteligncia
organizadora. Essa grande inteligncia pode ser comparada a
purusha, o ser ou a alma dos hindus, em oposio a pratyiti, o
devenir. Assim, a ordem patente do universo e da multiplicidade
de fenmenos no seria obra do acaso, mas dessa vasta
inteligncia ou de uma alma que se poderia qualificar de
universal e que imutvel e perfeita em sua essncia. Sem
dvida, o ponto em questo no demonstrar atravs de
instrumentos cientficos a existncia dessa alma de natureza
sutil demais para ser mensurada. A razo, porm, nos incita a
tomar essa hiptese por quase certa, por ser a nica que pode
explicar a inteligibilidade do universo. Dessa alma, portanto,
emanou o mundo, graas a um conjunto de leis ou princpios,
chamados por nomes diversos em funo das culturas.

Queiramos ou no, estejamos conscientes ou no, o fato


que o edifcio da cincia, cuja meta pr em evidncia os
axiomas e leis da fonte da Criao, fundamenta-se nessa
concepo. Sua origem acha-se na Grcia, e os primeiros
estudiosos muulmanos foram seus herdeiros tardios, antes
de transmitirem-na ao Ocidente cristo. A esse respeito,
o

fsico Albert Einstein assim se expressou em 1922: E fa to


que a con vic o aparentada do sentim ento religioso de que o
m undo racional ou, ao m enos, in teligvel est na base de todo
trabalho cien tfico com algum a elaborao. Essa con vic o,
profu n da m en te sentida, de um a razo superior que se m anifesta
no m undo da experincia, con stitu i m inha con cep o d e D eus.
Em 1930, declarou num artigo: Um contem porneo afirm ou,
com razo, que os pesquisadores sinceros so, em nossa poca, de
m odo g era l m aterialista, os n icos h om en s p ro fu n d a m en te
religiosos.
De fato, o cientista moderno, no plano de fundo de seus
prprios trabalhos, o nico depositrio dessa concepo do
mundo. Ele pesquisa, com efeito, a origem dos fenmenos,
buscando represent-los sob formas de equaes matemticas,
de representaes grficas ou geomtricas. Alguns pes
quisadores vo at mais longe e acalentam o sonho de
descobrir a grande equao, a fora ou energia nica que
poderia explicar a origem do universo inteiro. Chamam a isso
a gra n d e u n ifica o . A grande unificao o sonho atual dos
fsicos, que buscam a unidade das quatro grandes foras
subjacentes a todos os fenmenos naturais, as quais so: a
fora de atrao, de Newton, que rege o movimento dos
corpos celestes; as foras de interao fortes e fracas, que
regem as relaes entre as partculas fundamentais dos
tomos; e a fora eletromagntica.

Seguramente, o materialismo nega a preexistncia de um


mundo de princpios ou de uma alma inteligente. Ele afirma
que as leis da natureza representam necessidades inerentes
matria. Se extrapolssemos esse ponto de vista, isto seria o
mesmo que considerar que a lei da gravitao universal fosse
uma conseqncia do fato de uma ma ter, um dia, cado na
cabea de Newton, e no a causa dessa queda. Isso significaria
que as leis so as conseqncias da simples existncia da
matria e dos fenmenos, e no suas causas. Todas as leis
existentes na Criao seriam, portanto, intrnsecas ao primeiro
aglomerado dessa alguma coisa que precedeu o hipottico
B ig-B ang. Im aginar as leis sem a m atria seria, por
conseguinte, uma absurdidade. Nessa tica, parece, porm,
bem difcil explicar como a imutabilidade das leis pode dar
nascimento multiplicidade dos fenmenos. Parece tambm
difcil compreender como uma inteligncia humana pode, a
partir de um conhecimento totalmente abstrato das leis
naturais, comandar ou mesmo recriar um mundo, afirmando,
com isto, a superioridade da mente sobre a m atria.
Inversamente, a simples constatao de fenmenos, sem tirar
da as leis subjacentes, no permite absolutamente nada. Se
seguirmos o ponto de vista m aterialista, chegaremos
concluso absurda de que a vontade um produto da ao, e
no o inverso. A liberdade humana estaria singularmente
amputada. Do mesmo modo, fazendo falar o smbolo da roda,
acabaremos concluindo que o que faz girar a roda com
regularidade apenas a sua periferia, e no o seu centro ou
ncleo.
Por conseguinte, podemos enunciar essa nossa hiptese, que,
mesmo repousando unicamente na f, no menos razovel.
Essa conjetura adquire, por isso mesmo, o carter de uma

gnose: a pirmide simblica do universo presume, em seu topo,


uma vontade motriz ou urna alma eterna como origem dos
fenmenos transitorios.
Os poucos elementos precedentes visaram mostrar a
existencia soberana de urna inteligencia universal denominada
alma. Entretanto, eles ainda so insuficientes para permitir
considerar sua imortalidade. E necessrio, portanto, para
vermos com clareza, que nos voltemos para as intuies da
ciencia, das quais o qumico Lavoisier foi o porta-voz, no sculo
18. Lavoisier fez com que se tornasse conhecida do mundo,
desde aquela poca, a seguinte idia: Nada se perde, nada se
cria, tudo se transforma". O aspecto fundamental dessa idia
faz com que ela seja ensinada hoje em todas as nossas escolas.
No entanto, raramente explicado que essa foi uma noo
descoberta intuitivamente j desde os sculos 4 e 3 a.C., pelo
filsofo Epicuro, que, por sua vez, foi discpulo de Demcrito.
Epicuro parte do principio de que nada nasce do nada e que o
universo formado de tomos no tem origem nem fim. Nada
se p erd e... significa, em termos mais filosficos, que tudo
eterno em essncia, ao passo que as substncias esto em
perptua transformao. A velhice e a m orte s poupam os deuses;
tudo o m ais est sujeito aos golp es vitoriosos do tem p o , diz
Sfocles em dipo.
Sem dvida, Lavoisier, que se fez eco de Epicuro, queria
deixar claro apenas uma coisa: a matria e seus componentes,
embora possam mudar de forma, permanecem eternos em seu
aspecto mais ntimo. Mais tarde, a fsica moderna ps em
evidncia, graas a Einstein, a possibilidade da converso da
matria em energia e o sacrossanto princpio da conservao
da energia.

Tudo estaria dito e ns estaramos isolados no reino da


matria se, segundo uma arraigada tradio que remonta
a uns milhares de anos, os maiores pensadores do Egito
antigo no houvessem vislumbrado a seguinte lei: O que
est em cim a co m o o q u e est em baix o. Essa frmula
pode ser lida na Tbua de Esmeralda, um texto filosfico
hermtico cuja origem os historiadores fazem remontar
ao sculo 3 d.C. Uma histria mais tradicional atribui esse
texto ao sbio Hermes Trismegistus. A frase corresponde
importante lei da analogia, que tem guiado muitos
pensadores metafsicos ao longo dos sculos. O q u e est
em cim a co m o o q u e est em baix o significa que aquilo
que vlido no que tange a eternidade da dupla matriaenergia vale tambm, com mais forte razo, para a essncia
invisvel da Alma ou da Inteligncia Universal. Em outras
palavras, o que se aplica essncia da matria, segundo a
doutrina de Lavoisier, aplica-se igualmente alma ou aos
princpios cuja existncia alguns filsofos gregos nos
fizeram perceber. Vemo-nos confrontados aqui com uma
deciso fundamental para o ser humano. O pensamento
m aterialista parte do postulado (que um ato de f)
segundo o qual o universo percebido pelos sentidos fsicos
ou pelos instrumentos cientficos, atuais ou por virem
(in strum en tos estes que, ali s, correspondem sim
plesmente aos prolongamentos de nossos sentidos fsicos)
o nico que existe. O pensamento espiritualista, por sua
vez, sem negar as realidades do mundo objetivo, considera
que nenhum argum ento racional ou cientfico pode
demonstrar a inexistncia do mundo dos princpios. Esse
pensamento chega mesmo a afirm ar que impossvel
explicar nosso mundo e os mistrios da vida e da morte
fazendo-se abstrao desse mundo invisvel.

Vejamos de novo a frmula Nada se perde, nada se cria, tudo


se transforma Analisemos mais particularmente a parte que diz
nada se cria, aprofundando nosso raciocnio. Isso significa, na
verdade, que a essncia de todas as coisas nunca teve comeo,
que incriada. Isso pressupe, ento, que todas as coisas e os
fenmenos visveis ou invisveis so eternamente preexistentes
na Grande Inteligncia do Universo. So potencialmente
preexistentes, antes de serem manifestados no mundo tangvel.
Por analogia, poderamos usar a imagem de um CD, que contm
simultaneamente todas as informaes musicais em seu pequeno
volume, antes de permitir sua manifestao sonora tangvel para
deleite de um ouvinte. Podemos tambm demonstrar que aquilo
que nunca teve comeo tambm no pode ter fim. Com efeito, o
que no criado tambm no pode ser destrudo. Naquilo que
tem existncia eterna, o tempo no pe suas garras.
Uma outra frmula famosa atribuda a Herclito de feso,
que viveu entre o sexto e o quinto sculo antes de nossa era. Em
essncia, diz o seguinte: Nada , tudo se tom a". Isso descreve o
que se passa realmente no nvel do mundo manifesto. Tudo est
em perptua transformao. No exato momento em que
pensamos que uma coisa isso ou aquilo, ela j se transformou
em outra coisa qualquer. Os tomos esto em perptua vibrao;
no h dois instantes idnticos nem duas situaes espaciais
estritamente idnticas. Isso significa que nada pode pretender
ao estado de ser no mundo da forma. Os fenmenos inces
santemente mutveis no pertencem ao ser. Assim, o ser, que
essencialmente imutvel, no pode ser considerado como
pertencendo matria. A matria no , tende a vir a ser. O que
realmente a alma, e aqui podemos nos fazer a seguinte
pergunta: que existe de comum entre o ser e o objeto, entre o
mundo e a alma?

At o momento desenvolvemos argumentos, sobretudo


filosficos, pleiteando em favor da eternidade da alma. No
entanto, a observao da natureza, de um determinado
ngulo, pode completar essa demonstrao. Vamos fixar
nossa ateno exclusivamente no mundo vivo, uma vez que
nessa esfera a influncia da alma se faz sentir de maneira
nitidamente mais patente. O mundo vivo d provas de
animao e inteligncia, alm de direcionamento de sua
prpria energia. Uma vontade invisvel parece desabrochar
ali, conduzindo, cientemente ou s cegas, as formas de vida
no caminho da evoluo. Os seres vivos, quaisquer que
sejam, manifestam igualmente determinado nmero de
tendncias latentes. Uma ilustrao dessas tendncias , por
exemplo, a vontade irreprimvel de conservar a vida. Outra
tendncia, tam bm irresistv el, visa a evoluo e a
complexidade dos organismos vivos. Corolrio dessa
complexidade, certa inclinao para a associao evidente
entre os animais monocelulares, na gnese da evoluo.
Assim, desde sua origem no oceano primitivo, a vida,
inicialmente manifestada pelos primeiros aminocidos, no
parou de querer ser mais e melhor. Desejando experimentar
uma qualidade de ser mais e mais sutil, os primeiros animais
celulares, impelidos por esse desejo, associaram-se para
formar organismos mais complexos, origem dos rgos dos
animais superiores. Em termos mais poticos, vemos que o
amor ou a necessidade de unio das clulas j estava
presente desde as origens da vida. Designa-se pelo nome de
instintos o conjunto dessas tendncias. Instintos de
conservao, de evoluo, de associao... Aqui, natu
ralmente, nada mais fao que apresentar dicas para reflexo,
e espero que outros com mais informaes que eu explorem

esse campo infinito de conhecimentos, mesmo que essa tese


parea deixar de lado as indispensveis contribuies de
Darwin ou Lamarck.
A questo que nos preocupa aqui : qual a verdadeira
origem dos instintos? A resposta do darwinismo foi: os
instintos representam o resultado de uma educao dos reinos
vivos, seguindo-se ou em reao presso do meio em que se
desenvolvem. Mas, para comear, podemos nos fazer a
seguinte pergunta: por que o ser vivo se desenvolve e
m anifesta, a p r io r i, as caractersticas de crescimento,
assimilao e reproduo? Como pode a presso do ambiente
estar na origem do instinto de sobrevivncia, desse instinto
que provavelmente impeliu a primeira clula viva, nascida
no oceano primitivo, a lutar para conservar sua vida,
justamente contra esse ambiente que tendia a destrui-la?
Onde se encontra, na matria mineral, a fonte de tal impulso?
Acreditar que o ambiente possa ter engendrado uma reao,
sem admitir uma tendncia inata, no seria tomar o meio pela
causa? Imaginar que a matria possa se organizar espon
taneamente, para produzir uma inteligncia semelhante a de
um computador, esquecer que por trs de um computador
h sempre um ser humano. Na verdade, no difcil
pressentir que os instintos bsicos representem um produto
inato da Alma Universal. A menos que eles no constituam
de fato o resultado do dilogo estabelecido entre essa Alma e
as formas vivas. Por intermdio dos instintos e da vida ou
energia vital, essa alma estruturaria a matria em formas
sempre mais evoludas, capazes de demonstrar faculdades
cada vez mais voluntrias. Graas a esse processo, as
faculdades mais nobres da alma exteriorizam-se pouco a
pouco em nosso mundo.

Existe um debate que h muitssimo tempo vem opondo


filsofos e cientistas. Trata-se de saber se uma essncia como a
vida poderia ter outra origem que no a material. Para a crena
materialista, a vida apenas a conseqncia de uma organizao
fsico-qumica especial da matria. Essa teria se tornado
orgnica e, portanto, capaz de mover a si mesma. A faculdade
da conscincia decorreria igualmente dessa organizao,
impulsionada aos altos pncaros da evoluo.
No h efetivamente nenhuma prova objetiva de que seja
assim ou o contrrio. Poderamos, alis, nos perguntar: por
qual milagre uma matria concebida como inerte poderia
produzir a conscincia intencional? O debate no nem um
pouco insignificante. Da resposta obtida ou escolhida
depender um determinado conceito da morte.
O sculo 19 assistiu a essa discusso de um ngulo
ligeiramente diferente. A idia da gerao espontnea de
pequenos organismos a partir de uma energia vital foi destruda
pelo biologista Louis Pasteur, que tornou evidente o papel dos
micrbios na gnese das doenas. Desapareceu, assim, o sonho
dos adeptos da gerao espontnea da vida. No outro extremo,
o sculo 20 dedicou-se a produzir vida em laboratrio a partir
apenas da utilizao de blocos de matria. Nos Estados Unidos,
em 1952, certa experincia foi realizada. Um pesquisador
tentou gerar vida a partir do que ele pensava ser as condies
ideais existentes na terra, h uns bilhes de anos. Usou, ento,
gua e uma mistura de gases contendo, entre outros, o metano.
Nesse ambiente confinado, em primeiro lugar ele simulou
relmpagos, atravs da produo de arcos eltricos. Para
surpresa sua, viu aparecerem aminocidos, constituintes
primrios da vida. Contudo, conforme os prprios cientistas

confessaram, no houve surgimento da vida, pois, para isto,


necessrio um cdigo gentico, constitudo pelo material
portador de informaes hiper-organizadas, que o DNA.
Em outras palavras, para que haja vida, preciso um tipo de
inteligncia, veiculada pelo DNA.
A esse respeito, o professor Daniel Cohn, que dirige o
programa francs de pesquisa sobre o genoma humano,
explicou que, no incio de seus estudos sobre o assunto, ele
professava o atesmo, mas quanto mais descobria a com
plexidade inacreditvel da organizao desenvolvida dentro
das clulas humanas, mais a hiptese de uma Inteligncia
Divina tornava-se plausvel para ele. Invocar o acaso ou a
seleo natural, a p riori cega, parecia-lhe desmedido para
explicar a extraordinria organizao do genoma humano.
Mas voltemos s tentativas de criao da vida. Desde 1952,
outras tentativas foram feitas, com resultados infrutferos.
Mesmo que um dia se anunciasse que um laboratrio
conseguiu fazer a sntese da vida, isto no provaria abso
lutamente que essa en ergia ten h a sido criada, mas, quando
muito, que as condies m ateriais, fsicas, qum icas,
eletromagnticas, etc., foram reunidas de tal modo que a vida
pde se manifestar dentro de receptculos. Alm disso, a
dificuldade da maioria dos modernos estudos da vida vem
do fato de que, cada vez que o ser humano quer observ-la a
partir de seu interior, ele se v obrigado a destrui-la.
No que concerne o debate sobre a presena ou no da
vida, na qualidade de fenmeno que existe junto matria,
convm observar que o pensamento cientfico atual utiliza
atalhos abusivos de raciocnio. Tomemos o exemplo da

memria. A experincia da neurologia leva nosso mundo a


concluir que a sede da memria est situada totalmente no
crebro. Leses acidentais ou provocadas (em animais)
produziram em suas vtimas perdas de memria passageiras
ou irremediveis. Tudo se passaria, ento, como se o dano
causado s clulas ou aos centros nervosos afetasse
simultaneamente a capacidade de recordao das lembranas.
Concluiu-se da que a memria de determinado assunto se
situaria num local especfico do crebro, ligado a esse assunto,
como numa gigantesca biblioteca. Hoje, com o progresso das
pesquisas, admite-se, porm, que todo o conjunto, e no mais
apenas uma parte dos neurnios do crebro ou at mesmo
do corpo, est implicado no processo de memorizao.
Contudo, a concluso tcita dessas experincias que o
conjunto da memria precisa ter um suporte fsico, como no
caso de uma memria eletrnica (estocada em circuitos
integrados ou CDs).
E bem esse o caso de determinadas reas daquilo que se
denomina memrias de curto, mdio ou longo termo. Mas essas
experincias no permitem demonstrar que o desenvolvimento
de uma vida, naquilo que ela possui de mais emotivo e mais
sutil, deva forosamente inserir-se num substrato material.
Admitir que uma estrutura material seja necessria para a
manifestao de um fenmeno no significa, automaticamente,
que essa matria visvel represente o alfa e o mega de tudo o
que existe. Princpios como a alma ou a memria (veremos
depois que esto ligadas) podem ser, com toda liberdade e
independncia, ao mesmo tempo em que precisam de um
mediador fsico para se manifestarem. Precisamos aprender a
diferenciar entre o ser e sua manifestao, sem que um exclua
forosamente o outro.

Quando se lesa uma parte do cerebro, o que se faz somente


atacar o mediador que liga a sede da memoria sua expresso
inteligvel ou sua tomada de conscincia. Por analogia,
destruir algum dos componentes eletrnicos de um televisor
diminuir parte da qualidade da imagem recebida. Todavia, as
ondas enviadas pela emissora ou pelo satlite continuaro
inalteradas.
Mas fiquem todos tranqilos, promover a certeza da
existncia da alma, como modo de explicao de alguns
fenmenos, no significa inserir um termo obscurantista nas
pesquisas cientficas. A cincia deve estudar a organizao
natural, e s pode fazer isto tendo toda liberdade. O estudo da
matria, alis, talvez at acabe ajudando a compreender melhor
a alma. Mas a tica, a responsabilidade e a objetividade
cientficas no permitem hoje (e provavelmente jamais
permitiro) negar os fenmenos invisveis. Os maiores
biologistas da atualidade no hesitam mais em reconhecer que
a descoberta do cdigo gentico contido no DNA no
suficiente para explicar o conjunto dos fenmenos chamados
u i yy u
a.

vida e conscincia
.
De fato, o nico instrumento cientfico capaz de sondar
o mundo das essncias o prprio ser humano e suas
experincias interiores; de fato, o ser humano um produto
(at onde chega nosso conhecimento atual mais avanado)
desse mundo das essncias. Sem elhante com preen d e sem e
lhan te, como diz uma velha frmula alqumica.
O desenvolvimento extraordinrio da informtica leva
muitas pessoas a acreditarem que a inteligncia artificial est a
um passo de igualar, quem sabe, at superar a do homem. Em

conseqncia, segundo a lei do menor esforo, no pre


cisaramos mais invocar a inteligncia da vida para explicar a
inteligncia humana, uma vez que uma inteligncia estri
tamente material pode fazer isto igualmente bem. A derrota
retumbante do jogador de xadrez Gary Kasparov para um
computador foi largamente comentada e veio apoiar essa idia.
Isso esquecer um pouco rpido demais que por trs do
computador esto os seres humanos. Kasparov, alis, revoltouse contra essa derrota, argumentando que os engenheiros
corrigiam todo o tempo os clculos da mquina, medida que
o grande mestre do xadrez a colocava em dificuldades. Em
outras palavras, Kasparov no jogou contra um simples
computador inerte, mas contra engenheiros que somavam sua
inteligncia ao poder de clculo da mquina.
Na realidade, nenhuma inteligncia mineral at agora jamais
superou a inteligncia e a criatividade biolgicas desenvolvidas
pelo ser humano. O computador no tem alma, poder-se-ia
dizer, ou, se a tem, indiretamente a de seus criadores. Todas
essas digresses pela memria e pela informtica parecem estar
nos afastando do nosso assunto. No entanto, elas nos autorizam
a pensar livremente que, em nosso mundo cientficotecnolgico, existe uma inteligncia contida numa vida e numa
memria que so independentes da matria e que, portanto,
sua imortalidade continua sendo imaginvel.
Todo o problema da reflexo atual sobre a vida vem do fato
de nosso mundo coloc-la em oposio matria, como se uma
pudesse se manifestar sem a outra. Recusamo-nos a considerar
que uma relao dialtica possa uni-las, uma se sobressaindo
outra. Paradoxalmente, Pasteur, que combateu a idia da
gerao espontnea, escreveu o seguinte, numa de suas

anotaes: Quem nos garante que o progresso incessante da cincia


no obrigar os cientistas de daqui a um sculo, m il anos ou dez
m il anos, a afirm arem que a vida sem pre existiu e no a m atria?
Passamos da matria vida porqu e nossa inteligncia atual, to
acanhada em relao ao que ser a inteligncia dos naturalistas
do fu tu ro, nos diz que no se p od e com preen der as coisas de outro
m odo. Quem m e garante que daqui a m il anos no se acreditar
ser im possvel no passar da vida m atria?. Quanto a ns,
pensamos que uma inteligncia realmente prudente e isenta
de preconceitos materialistas no pode racionalmente descartar
a hiptese dessa vida preexistente.
A lio que poderamos tirar da questo da gerao
espontnea de todo original: a vida no pode nascer
espontaneamente, numa forma conhecida, dentro de uma
massa de matria no preparada. Foram precisos milhes de
anos para que essa vida estruturasse pouco a pouco a matria,
a fim de que esta se tornasse um suporte vlido para a expresso
daquela. As formas mais evoludas da vida s so transmitidas,
portanto, pela presena de clulas j existentes e muito bem
estruturadas geneticamente. Entretanto, no que concerne uma
viso espiritual da existncia, milhes de anos no representam
nada. Mas recriar artificialmente uma organizao material que
apresente certa vitalidade no suficiente para provar que essa
energia seja o resultado exclusivo dessa organizao da matria.
Para compreender o surgimento da vida, necessrio ter em
mente a relao dualista que ela mantm continuamente com
a matria, e a isto somar a interveno das leis de evoluo, do
tempo e, por que no, de alguns acidentes certamente no
devidos ao acaso.
A observao do mundo natural, alis, provavelmente
poderia nos fornecer muitas outras informaes acerca da

existncia a priori da vida. Como responder pergunta: por


que a natureza apresenta uma capacidade criadora to
extraordinria? Os naturalistas sabem perfeitamente, por
exemplo, que essa vida aparentemente to frgil d provas de
uma capacidade surpreendente de renascer em seguida queda
de uma mnima chuva nos desertos mais ridos. A luz dos
nossos conhecimentos atuais, o ser humano representaria a
forma de vida mais organizada que existe. Constituiria, acredita
se, o pice da evoluo. A anlise do ser humano, de suas
particularidades e faculdades tambm pode pr em evidncia
a existncia da alma.
A primeira e certamente a mais evidente das caractersticas
humanas est em sua autoconscincia. Em outras palavras, o
ser humano desenvolve uma personalidade ou um eu. Isso
significa, em outros termos, que no estgio humano a evoluo
pode assumir carter consciente e voluntrio, indepen
dentemente da presso do meio ambiente. O ser humano busca
e quer evoluir por si e para si, do ponto de vista psicolgico.
Atravs dele, a conscincia, que um conceito totalmente
abstrato, buscaria se aperfeioar. Dissemos antes que, segundo
as teorias materialistas, as leis naturais seriam o resultado de
uma necessidade inerente matria. Isso parece significar que
a matria seria, ao mesmo tempo, a causa e a conseqncia de
suas leis, independentemente da interveno de uma
inteligncia externa ou transcendente. Acontece, porm, que
o ser humano, pice da evoluo, pode, no s hoje como h
muito tempo, constituir essa inteligncia exterior. O ser humano
causativo, isto , pode livremente decidir acionar foras e leis
naturais que, at certo ponto, submetem a matria sua
vontade. Como explicar que a necessidade ou a matria inerte
tenha podido criar tal inteligncia livre, capaz de se tornar

mestre dela? Atravs do ser hum ano, a conscincia,


supostamente produzida por arranjos complexos da matria,
buscaria se desenvolver por si mesma. De novo, onde que se
encontra no mundo mineral a origem desse impulso? Nossa
compreenso cientfica atual no pode responder a essa
interrogao, a no ser (e isto colocaria em questo muitas
coisas, fazendo desaparecer uma certa concepo da natureza,
herdada da cincia do sculo 19) que se considerasse a matria
como um ser vivo e consciente, capaz de apresentar uma
inteligncia. O inerte no pode produzir conscincia, mas a
inteligncia, ao organizar o inerte, pode gerar conscincia
objetiva.
fato pragmtico que um ser humano colocado num
ambiente desconhecido tentar estruturar aquilo que ele
percebe, para dar-lhe um sentido. Para isso, ele partir do
conhecido: sua experincia atual. Tentar, ento, comparar
aquilo que ele percebe como novo com aquilo que ele j
conhece. Assim, ele far nascer nele a centelha de compreenso
dessas novas experincias. Essa tendncia irresistvel no ser
humano. O que chamamos inteligncia pode, alis, ser
definida, entre outras coisas, por essa faculdade de adaptao
que transporta o desconhecido ao conhecido. Em ltima anlise
e de modo extremo, pode-se remontar essa tendncia ao seu
instinto de conservao. O ser humano sente necessidade de
compreender seu ambiente, a fim de domin-lo e assegurar
sua sobrevivncia.
Os antroplogos preferem muitas vezes situar os primordios
da civilizao h mais ou menos cem mil anos. De fato,
constataram que foi por volta dessa poca que o ser humano
comeou a enterrar seus mortos. Nesse mesmo perodo, ele

considerou pela primeira vez a noo de uma alma imortal.


Nossa civilizao materialista explica que a vontade humana
de considerar a sobrevivncia da alma um produto do medo
da morte ou, ento, que trata-se da considerao e da
interpretao, pela conscincia, do instinto de sobrevivncia.
Que a conscincia leve em considerao o instinto de
sobrevivncia, isto parece, por si mesmo, evidente. Contudo,
recordemos a pergunta feita anteriormente: qual a origem
do instinto de sobrevivncia? No a matria inerte, com certeza,
mas, sim, a Alma Universal. Por conseguinte, se o ser humano
possui a intuio irreprimvel da sobrevivncia de sua alma,
esta vem-lhe justamente da existncia dessa alma imortal.
Que dizer, ento, do impulso sentido pelo mestre Leonardo
Da Vinci, de pintar a Gioconda? Alguns filsofos gregos, dentre
eles Plato, seguidos dos neoplatnicos, explicavam que o ser
humano possua, em seu foro ntimo, de maneira mais ou
menos difusa, uma idia do belo, de bem, do justo e do
verdadeiro. Plato acrescentou que seria perfeitamente possvel
imaginar que as noes de perfeio, provenientes do mundo
arquetpico das idias eternas, foram-lhe transmitidas por
intermdio da Grande Alma do Universo. Ele a considerava,
portanto, como um intermedirio entre o mundo material da
transformao e aquele outro imutvel, dos arqutipos.
Scrates, mestre de Plato, por sua vez, ensinou a existncia
de um conhecimento inato no ser humano, do qual ele poderia
se lembrar sob determinadas condies. Ele foi o divulgador
da m aiutica ou arte de fazer a alma parir atravs de um
questionamento corretamente conduzido. A palavra m aiutica
formada de m aia, termo grego antigo que significava
pequena me ou pequeno pai. Um dos nomes freqen
temente utilizados para designar a Alma Universal a Me

Universal. Segundo aqueles grandes filsofos, um ideal de


perfeio de conhecimento dormita no homem. A busca desse
ideal, seja ele material, intelectual, emocional ou espiritual,
compe o fermento da evoluo humana. E poderamos
acrescentar que todas as tendencias que impelem o ser humano
para os elevados valores da vida (amor, arte, fraternidade, etc.)
vm de sua alma.
inegvel que o ser humano, face existncia material,
capaz de demonstrar certo livre-arbtrio. Essa capacidade s
pode lhe ser insuflada pelo mundo espiritual. A liberdade da
alma se contrape necessidade de leis do mundo material.
Fonte dessas leis, ela s pode ser maior que elas. Toda a vida
humana constitui uma luta contra a necessidade. O advento
da tecnologia nos permite compreender que essa luta deveria
passar por um estgio de dominio, em vez de destruio da
natureza material. De fato, muitas tradies e filosofias
concordam em explicar que, por suas faculdades e poderes, o
ser humano representa uma imagem da Grande Inteligncia
Universal que est na origem do mundo.
Um dos smbolos mais antigos usados para descrever o elo
e a relao existentes no ser humano entre sua alma e seu corpo,
ou entre os mundos espiritual e material, a cruz. O brao
horizontal da cruz descreve, por sua relao com a linha do
horizonte terrestre, o mundo da matria. O brao vertical, pelo
fato de sugerir a idia de descida, representa a alma que se
infunde na matria, para nela estabelecer uma relao dialtica.
A barra horizontal ou material regida pelos princpios de
evoluo, transformao e multiplicidade de formas e estados.
A morte, que, em ltima anlise, representa uma transformao,
pertence-lhe portanto. Note-se, lanando mo de um outro

smbolo, que a serpente do texto bblico da Gnese um animal


que rasteja horizontalmente, o corpo em contato com o cho.
O mais ardiloso de todos os animais dos campos est
qualificado no mito? O ser humano, por sua vez, desenvolve o
estgio vertical. Sua relao para com ambos ilustra o
simbolismo da cruz.
O rptil representa a necessidade de leis no mundo material,
enquanto o ser humano encarna seu velho inimigo, a liberdade.
Eis porqu, no mito bblico, a serpente sentenciou a queda de
Ado. Eles representam duas ordens distintas. Um o sujeito,
o outro, o objeto. Boa parte da histria das sociedades foi
baseada nessa dualidade, nessa luta ou numa busca perptua
de equilbrio entre esses dois princpios, o da necessidade ou
totalitarismo sufocante e o da liberdade que dirige o ser humano
para o progresso. O brao vertical da alma fornece as idias de
perfeio e infinito.
A essa altura, podemos dar uma nova definio ao termo
milagre. Ele representa a irrupo da liberdade no mundo
da necessidade. Nesse sentido, todo processo vivo torna-se um
milagre. No precisamos evocar Lourdes, Mejugorje ou, ainda,
manifestaes extraordinrias e inexplicveis. O milagre se
encarna todo dia diante de nossos olhos, na medida em que
vivemos num mundo mesclado de liberdade e necessidade.
Compreender isso resolver, de um s golpe, o problema da
morte.
A viso materialista da vida transforma o ser humano num
produto bioqumico do acaso e do nada. Nesse terreno,
nenhum humanitarismo coerente, portador de futuro, pode
realmente se desenvolver. Ela torna o ser humano uma simples

mquina que pode ser explorada e destruda. Pior ainda, faz


da poesia um produto de reaes estritamente fsicas. Mais
espao, por favor, para uma concepo mais sutil ou sensvel
do ser humano e da Criao! Passe a emoo pelas Foras
Caudinas da anlise intelectual e materialista, e voc a aniquila
irremediavelmente. Dizer no existe alma im ortal", o mesmo
que declarar que no h liberdade possvel; encerrar a vida
no absurdo e na ausncia de sentido, e, por fim, afirmar que
no existe mais o prprio ente humano!. Sustentar a existncia
da alma significa propor um acordo entre a liberdade e a
necessidade. Um sentido para nossa existncia torna-se, ento,
possvel. E por isso que a evidncia da imortalidade da alma
a nica portadora de um futuro sempre a construir.
No simbolismo da cruz, o ponto de cruzamento dos dois
braos descreve um princpio que evolutivo como o mundo
material e, ao mesmo tempo, perfeito e imutvel como o mundo
espiritual. De fato, a relao entre a alma e a matria, a alma e
o corpo, gera um principio que afetado simultaneamente pelos
mundos espiritual e material. Parece que todo processo vivo
situa-se no ponto central de urna cruz desse tipo. Na tradio
islmica, o ofcio de tecelo, com suas
tramas, simboliza a
/
estrutura e o movimento do universo. E atravs dos seres vivos,
todavia, que a ao da alma dentro da matria torna-se mais
evidente. Essa idia sugere a presena de um mundo invisvel,
o duplo ou a matriz do mundo visvel. Por conseguinte, a morte
do corpo, representado pelo pote de cermica do oleiro, no
significa, ip sofacto, o desaparecimento do molde que o formou.
Existe um verdadeiro enigma em torno identidade
verdadeira do ser humano, o qual pode influenciar nossa
compreenso da morte. Esse mistrio pode ser assim expresso:

existe um eu humano? Vimos que o budismo oficial responde


negativamente a essa questo fundamental, apoiando-se, como
Hraclito, no fato de que nada , tudo se torna. Algumas pessoas
sentem-se atradas pelo budismo, por acreditarem (um tanto
apressadamente) que ele desenvolve uma viso muito prxima
da filosofia do materialismo, uma vez que nega a existncia do
Ser Absoluto que Deus. O filsofo Andr Comte-Sponville,
por exemplo, diz que a filosofia indiana smkliya, considerada
como a fonte do budismo, expe o mesmo princpio de
inexistncia do ser.
Plato, por sua vez, numa sntese superior, realizou a
unidade entre a idia de um ser supremo e imutvel e a de um
mundo em transformao. Para ele, portanto, h lugar para
que o ser humano participe no Ser.
Na filosofia do isl esotrico, encontramos idias parecidas.
Para o sufi, o ser humano no nada e absolutamente no existe.
No entanto, admite-se o mistrio da existncia humana, o qual
se est inteiramente nestes versos de Djall-od-Dtn Rmi:
s nada e teu nada m elhor que a existncia.
Ests atrelado na perda e tua perda um ganho.
Se fo res aniquilado, ser-te- dado a existncia.
Se te diminures, tom ar-te-s m aior que o mundo.
Sers depois mostrado a ti mesmo, sem ti.
Maravilhosas frmulas para reconciliar o ser e o devenir,
numa sntese que ultrapassa o entendimento. Isso, alis, talvez
explique a prudncia extraordinria do Buda, que sempre se
recusou a indicar a soluo do problema relativo impes
soalidade ou no do carma.

Mas voltemos nossa alma imortal. At aqui, foram


desenvolvidos elementos em favor da existncia eterna de um
princpio nico, que foi qualificado de Alma Universal, do qual
emana uma grande fora de vida. No entanto, o leitor certamente
h de convir que o que realmente interessa aos habitantes deste
planeta a possibilidade de uma sobrevivncia de seu eu, de sua
individualidade. Seja poderoso ou miservel, o indivduo quer
saber se as tribulaes que ele viveu neste mundo possuem um
sentido em relao a um destino mais vasto. Vamos, ento,
examinar agora a questo da sobrevivncia do eu.
Salientamos, em primeiro lugar, que o ser humano
consciente de si mesmo. E justamente devido a essa conscincia
de si mesmo, que diferente daquela que os outros possam
ter dele, que ele desenvolve uma verdadeira personalidade. A
emergncia da autoconscincia na corrente da evoluo das
espcies constitui, de fato, uma ruptura em relao ao passado,
mesmo que se possa dizer, de alguns animais superiores, que
eles tenham desenvolvido uma autoconscincia embrionria.
A esse respeito, note-se que 99% dos genomas so comuns a
humanos e macacos. O 1% restante representa, en tre outras
coisas, a conscincia de si, de Deus, da verdade e da morte.
C onsciente d e si m esm o, isto, para o ser humano, significa que
nele a evoluo adquiriu carter radicalmente diferente. O ser
humano pode aceitar ou rejeitar a ao de fazer evoluir sua
prpria personalidade, multiplicando ou no os instrumentos
favorveis ao fenmeno evolutivo. Quanto a isso, ele dotado
de livre-arbtrio. A evoluo representa nele um fator
consciente, ao passo que nos outros reinos essa conscincia de
evoluir, tanto individual como coletivamente, no existe ou
existe em baixo grau. Nos reinos qualificados de inferiores, a
evoluo parece mesmo ser sofrida.

No h evoluo sem memria. O que hoje aprendido


armazenado e serve de base para compreender ou adaptar-se
a experincias futuras. No mundo material vivo, conhecemos
essa memria que conserva a experincia evolutiva adquirida.
A gentica chama essa memria de hereditariedade e explica
que a hereditariedade de caractersticas fsicas ou mentais
transmitida pelo cdigo do DNA. Essa codificao est inserida
no ncleo de todas as clulas vivas.
Vimos antes que nada nos impedia de considerar a existncia
autnoma de uma memria capaz de conservar a experincia
adquirida durante toda uma vida. Em outras palavras,
possvel imaginar a sobrevivncia de um indivduo depois da
morte? Por que pensar, por exemplo, que o conhecimento e a
maestria adquiridos voluntariamente por determinada pessoa,
ao longo de sua vida, sejam perdidos, sendo que a natureza
tomou o cuidado de conservar a experincia do campo material
atravs de uma memria gentica? Por que a experincia
acumulada por meios mais sutis, mais espirituais, seria perdida?
Se a regra do menor esforo mostra-se verdadeira na natureza,
por que esta teria tido o cuidado de produzir uma conscincia
to evoluda quanto a do ser humano, se fosse para faze-la
desaparecer ao cabo de uns oitenta anos?
Se no admitimos a sobrevivncia da personalidade humana,
fica difcil justificar esse desperdcio de uma natureza que
produz uma criatura cuja principal caracterstica desenvolver
uma personalidade imperfeita, passvel de evoluo e
aperfeioamento. Parece evidente, ao observarmos hones
tamente a ns mesmos e aos nossos concidados, que, numa
nica existncia, a personalidade fica bem longe de ter
manifestado o desenvolvimento mximo de todas as suas

qualidades latentes. Se a pessoa desaparece com a morte, fica


difcil compreender por que o universo dotou-se desse meio
de autoconhecimento que o ser humano. Afinal de contas, o
universo se reflete na conscincia humana. Quanto mais o
indivduo cresce em conhecimento, sabedoria e maestria, mais
o reflexo se aproxima de seu molde, ainda que, ao longo do
progresso, cresa tambm nosso sentimento de ignorncia.
Se a experincia de uma personalidade e esta mesma
personalidade desaparecerem sem estarem terminadas, ser
que podemos realmente ter a esperana de que o ser humano
se torne, um dia, como no caso dos msticos mais evoludos, o
instrumento atravs do qual o universo ser consciente de si
mesmo? O esprito da poesia nos deixa pressentir: o universo
mira-se no pensamento dos entes despertos. O sonho
prometeico da humanidade tcitam en te o d e acender o fo g o
do conhecimento. Todos os talentos da humana natureza de
hoje no preenchem esse vasto e brilhante destino. Arte, cincia,
religio, mstica, poesia, meditao, no esgotam a totalidade
do contedo do real e do imaginrio que se tornar o real de
amanh.
No que diz respeito existncia de uma memria capaz de
conservar a experincia plena de uma pessoa, as tradies
orientais, bem como o esoterismo ocidental, aludem existncia
de arquivos que correspondem a uma espcie de Memria
Universal. Essa memria reteria, por toda eternidade, a
experincia adquirida pelos indivduos. Ela constituiria um
quinto elemento, chamado akasha, em snscrito, sendo os
quatro outros a terra, a gua, o ar e o fogo. Note-se, de
passagem, que a maioria das religies ou tradies aludem, de
maneira simblica ou velada, a essa memria. A pesagem do

corao no Egito, por exemplo, acontece na presena do deus


Toth, o deus da escrita. Thot era o Senhor da Voz, o Mestre da
Palavra e, sobretudo, o inventor da escrita. Sobre esse ltimo
atributo, diz ele num mito: "Ela representa a mais n otvel de
minhas idias. Ela perm itir, aos egpcios, adquirir e conservar
uma cincia incom parvel. Graas a ela, eles podero guardar a
lem brana de todas as coisas. A escrita elim inar a ignorncia e
com p en sa r a fa lta d e m em ria " . Desse modo, pode-se
estabelecer o elo entre o livro, a escrita e a memria. Fazer com
que Toth intervenha na pesagem do corao , portanto, uma
forma de explicar, pelo smbolo, que a evoluo da alma ocorre
perante a Memria Universal.
Tomar o exemplo isolado do Egito no significaria grande
coisa se uma religio mais atual no utilizasse, ela prpria, uma
imagem similar. No Apocalipse de Joo tambm se fala de livros
e, especificamente, do livro da vida" (Joo 19, 11). E cada
alma ju lga da segundo o con te do desses livros", os quais,
naturalmente, ela mesma escreveu. E aquele que no est
inserido no livro da vida lanado num lago de fogo" . Que
representam esses misteriosos livros seno a memria das
experincias e dos atos de cada um? Na verdade, a maioria das
tradies alude a um deus escriba, que anotaria a histria de
cada pessoa. Na ndia, o deus Ganesha, com cabea de elefante,
escreve o texto da grande epopia ou Mahabharata, ditada pelo
vidente Vyasa. Seria graas a essa memria imaterial que as
personalidades seriam conservadas, antes de renascerem para
um novo ciclo de evoluo. Essa interpretao seria muito
cmoda, pois provaria que o ser humano evolui atravs de
sucessivas vidas de experincias e provas. Esse pensamento
coincidiria tambm com a idia que geralmente se tem da
justia. Explicaria, ainda, porque as crianas que nascem hoje

esto cada vez mais rpidas em sua adaptao s condies


sempre cambiantes do mundo moderno. Elas do mesmo a
impresso de possurem um conhecimento adquirido
anteriormente.
Nessa questo de memria e conhecimento passado, um
professor da universidade de Charlottesville, Virgnia/EUA,
estudou as lembranas de vidas anteriores relatadas por crianas
bem pequenas. Esse psiquiatra, Ian Stevenson, estudou, de
1961 at o presente, mais de 14.000 casos de reminiscncias
surpreendentes, em todo o mundo. Para ele, se as recordaes
de existncias anteriores no provam cem por cento a doutrina
da reencarnao, essa idia, velha como o mundo, constitui ao
menos a melhor explicao do fenmeno. Disse ele: "Todos os
casos que pud e estudar exaustivam ente sugerem o fen m en o da
reencarnao. E trago, no m nim o, aprova de que entre algum as
crianas h elem entos de sua estrutura psicolgica que certam ente
no fora m adquiridos em sua vida atual e que tam bm no podem
ser im putados a nenhum fa to r hereditrio.
Se essa idia de reencarnao um fato, isto significa que a
evoluo, que conduziu a primeira clula viva at o ser humano,
no pra neste estgio, mas pode tomar outras vias para se
realizar. O ser humano pode escolher evoluir de modo
independente de seu ambiente fsico, mesmo que ele tenha
oitenta anos de idade. Nada se perde, nada se cria, e todo
trabalho de uma vida, mesmo feito numa idade bem avanada,
produzir frutos mais tarde. Que perspectivas imensas se abrem
assim
Inversamente, se, a exemplo de alguns budistas, no
acreditamos na existncia da alma, mas somente na de um

carma ou de uma sucesso de causas e efeitos, mesmo assim


podemos notar que, nessa sucesso de aes, a existncia de
efeitos j est contida potencialmente na causa primeira. Isso,
portanto, significa que o conjunto das possibilidades passadas,
presentes e futuras est latente e eterno na lei que rege essa
seqncia de causas e efeitos. Em outras palavras, tudo est
em tudo, eternamente, sem que tenhamos necessidade de
invocar uma memria, no sentido clssico do termo.
Apresentar uma apologia da imortalidade da alma no
coisa fcil. A argumentao poder parecer insuficiente ao leitor
preocupado em obter provas tangveis e absolutas. Na verdade,
muito difcil provar de maneira filosfica a existncia da alma
e sua imortalidade. Se fosse fcil, o debate j estaria encerrado
h milhares de anos. A razo dessa incerteza vem do fato de
que, para obter informaes sobre essa esfera, seria preciso que
o pesquisador se comportasse como um peixe que pe a cabea
para fora da gua a fim de admirar o que se passa no outro
mundo, na terra. O pesquisador precisaria mudar de lgica e
de ponto de vista; precisaria aceitar sair daquilo que lhe
costumeiro. Os pioneiros, na maioria dos campos, muitas vezes
so considerados como marginais, porque incomodam as
ideologias comumente aceitas, sem verdadeira anlise. Ousar
imitar os egpcios antigos e ir conquistar o alm, como quem
parte para a conquista de Marte... eis um desafio que faz
tremer nossos contemporneos. No entanto, no existe
nenhuma outra soluo, se queremos aprender a domar a
morte. Em relao a esse assunto, existem os mesmos tabus
que existiam na era vitoriana em relao sexualidade. A
propsito, note que os astrlogos associam o signo de escorpio
ao sexo e morte, assim como Freud acreditou poder associar
Eros a Tanatos. No entanto, para atingirmos a idade adulta,

necessrio questionarmos nossos tabus relativos morte. A


nica atitude vlida face ao assunto a do caminho do meio.
Nem fascinao nem repulsa, mas adaptao inteligente, s
isto. Um ponto de vista como esse deixa bem para trs o estado
de resignao e se ope categoricamente promoo do suicdio.
Repetindo, provar a imortalidade por meio de argumentos
filosficos difcil. E preciso salientar, no entanto, que provar
o contrrio impossvel. A questo da gerao espontnea e as
diversas pesquisas de criao da vida mostram: impossvel
demonstrar que a energia vital corresponde a um mero produto
da matria.
Na verdade, grande parte do comportamento coletivo da
humanidade reflexo de uma crena implcita na imortalidade
da alma: de onde vm nossas idias de justia, fraternidade e
altrusmo? Por que defender o interesse coletivo antes ou junto
ao seu prprio, caso se acredite que o ser humano vem do
acaso e retorna ao nada? Por que construir civilizaes ou
produzir obras de arte, se apenas a necessidade cega dirige o
mundo? Ser que devemos, ento, fazendo eco ao Eclesistico,
entoar o canto niilista: Vaidade das vaidades, tudo vaidade e
perseguio de ven to }
A orientao moral das sociedades, para alm mesmo dos
dogmas, repousa na idia de que h um propsito sublime
para o ser humano. A humanidade, coletiva e s vezes
inconscientemente, est sempre em busca de sentido e
liberdade. Para progredir, ela tem necessidade de se sentir livre
e de conceber um universo inteligente, criativo e por que
no? imprevisvel. Precisa sentir o ser sua volta e imaginar
que o universo concebido segundo o que ela cr ser a sua
imagem. O acaso traz consigo a liberdade, mas apresenta

somente o no-sentido. A necessidade, por sua vez, pode ser


concebida como inteligente, mas destri a liberdade e o amor.
A esperana de que existe um futuro para o ser humano baseiase nessas idias. Negar a alma conduz ao niilismo e ao caos. E
por isso, entre outras coisas, que, em nossas sociedades de
consumo e materialismo, mais e mais pessoas se sentem
desnorteadas e infelizes. No tendo mais um objetivo
transcendente a ser alcanado, elas perderam sua orientao
ou no sabem mais a qual santo se devotar. No sabendo mais
de onde vm nem para onde vo, no sabem mais nem mesmo
quem so. Salvo se sua lucidez as fizer responder a charada
materialista: voc veio do nada por acaso e vai voltar ao nada
por necessidade, adivinhe quem voc?
Foi certamente por causa dessa compreenso e consciente
do risco corrido pela humanidade, que Montesquieu, no sculo
18, apresentou a imortalidade da alma mais como uma
necessidade que uma certeza. Para ele, essa necessidade faziase to imperativa que no era nem um pouco permitido duvidar
dela. Depois acrescentou: Quando a im ortalidade da alma fo r
um equivoco, fica r ei m uito desolado de no acreditar nela". E
concluiu com as seguintes palavras: Busco a im ortalidade e
ela est em m im mesmo. Minha alma, expande-te! Precipita-te
na im ensido, penetra no Grande Ser!". Vale lembrar, neste
contexto, a frase lcida de Andr Malraux: O sculo 21 ser
espiritual, ou no ser"...
Para encerrar este captulo, esclarecemos que a compreenso
do fen m en o da alma e sua imortalidade sempre uma questo
de convico interior. Todavia, isso pode resultar do despertar
de certas faculdades superiores do ser humano. Para utilizar
uma imagem, pode-se dizer que essas faculdades correspondem
a alguma coisa parecida com o despertar do senso artstico, ou

seja, quilo que o indivduo capaz de produzir de melhor no


nvel emocional. Acima do senso artstico, h uma faculdade
ainda mais sutil, mais espiritual. E esse meio de conhecimento
que pode nos informar de tudo quanto se refira ao reino da
alma. Aqui no mais uma questo de f, mas da cultura
deliberada de um instrumento de investigao suplementar para
o ser humano. Todo o objeto da busca do bem empreendida
pelos msticos, em especial os msticos Rosacruzes, consiste em
permitir que esse sentido se expresse neles.
Num campo mais prximo do paranormal, Mircea Elade
estudou os xams, sacerdotes feiticeiros da Sibria, sia central
e outras regies do mundo. Observa ele que o aprendiz de
xam, para se tornar mestre e receber a iluminao que o
tornar curandeiro e vidente, d eve viven ciar a experincia da
m orte, durante 3 dias e trs noites, e da ressurreio m stica.
Ento, nada mais lhe oculto e ele pode ver o que se passa a
grande distncia. Supe-se mesmo que ele seja capaz de ver as
almas, "quer tenham sido levadas para o alto ou para baixo, no
pas dos mortos". Na vasta categoria dos xams da Antiguidade,
Scrates est numa boa posio graas referncia ao seu
Daimon, mas quem mais nos interessa aqui o sbio Apolgio
de Tilanta. Ele teria respondido a um jovem imprudente que,
depois de sua morte, invocou sua alma para obter informaes
sobre a imortalidade. Falcrates, em sua biografia de Apolgio,
relata-nos a seguinte resposta, supostamente do alm-tmulo:
A alm a imortal, no vossa, mas da Providncia. Quando o
corpo consum ido, tal com o um cavalo veloz que salta a barreira,
a alma se lana e se precipita nos espaos etreos, cheia de desdm
pela triste e rude escravido que sofreu. Mas que te im portam
essas coisas? Tu as conhecers quando no mais fores. Enquanto
ests entre os vivos, p or que tentar desvendar esses mistrios?"

/leencazaat?, um a /ai m a
n/Ao) eo z iaj c/o /m im />, una
convico unweua//nm e cf/unc/it/a
Na mente do pblico ocidental, a palavra reencarnao
muitas vezes remonta ao Oriente e seus misteriosos aromas.
No entanto, se correto constatar que mais de dois bilhes de
habitantes da terra so acalentados pelas doutrinas budistas
ou hindus, que ensinam a multiplicidade de existncias, nem
por isto m en os verdade que o resto d o planeta conhece ou
conheceu esse conceito desde a noite dos tempos. No prprio
continente europeu, muitos grupos o transmitiram secre
tamente.
Originalmente, a idia de reencarnao decorreu prova
velmente da observao 'dos fenmenos naturais, pelos
Antigos. No Livro dos Mortos dos egpcios, por exemplo, o
morto (que podia ser o fara) geralmente se identifica com
o deus-sol R. Na ndia, no Egito ou em qualquer outra
parte, que coisa melhor que o retorno dirio do Sol no
levante para dar ao ser humano a idia de um mesmo destino
sua alma? A reapario regular da vestimenta floral da
terra no representa a mais bela evocao do ciclo das
encarnaes? Mesmo a data do solstcio de inverno, que no
Hemisfrio Norte coincide com o N atal, marca o to
esperado triunfo anual do sol, em pleno corao da frieza e
das trevas invernis.

Os egpcios antigos formularam a idia segundo a qual "o


que est em cim a com o o que est em baixo, e vice-versa. A
Tbua de Esmeralda, texto cuja primeira apresentao
conhecida data do sculo 3 d.C., apresenta o testemunho
escrito desse princpio. Segundo essa concepo, a fim de obter
informaes sobre o mundo invisvel, o ser humano deve
proceder primeiro a uma observao do mundo visvel. A
doutrina da reencarnao corresponde, portanto, trans
posio, para o reino da alma, da lei universal dos ciclos naturais
e csmicos, cuja existncia qualquer um pode verificar.
Os egiptlogos modernos ainda no conseguiram fornecer
a prova de que essa crena existia entre os antigos egpcios. E
apenas uma tradio tenaz que afirma que eles eram partidrios
dela. Alguns estudiosos explicam que eles acreditavam na
ressurreio do corpo, a qual devia acontecer ao termo de 3000
anos. No seria preciso ir mais longe para encontrar a origem
da prtica do embalsamamento. Foi da que veio a idia de que
eles eram partidrios da idia da reencarnao. Na realidade,
seu conhecimento apresentava uma dupla face. A oficial, do
sacerdcio de Amon, era exibida s claras. Mas havia tambm
um conhecimento esotrico, uma sabedoria secreta reservada
a uns poucos iniciados. Nela que se abria o verdadeiro conceito
de vidas sucessivas.
Mais tarde, filsofos gregos, como Plato e Pitgoras, foram
estudar sombra das pirm ides. Herdoto, o grande
historiador grego, afirmou que foi dos egpcios que eles
colheram suas idias sobre a reencarnao e a transmigrao.
Disse ele: "Foram os egpcios os prim eiros a dizer que a alma
humana im ortal e que, no exato m om ento em que o corpo morre,
ela vai se alojar num outro ser vivo que nasa naquele instante;

que, aps ter habitado, sucessivam ente, em todas as espcies


terrestres, [ ...] ela p en etra de n ovo num corpo hum ano, no
m om ento de seu nascimento, depois de um a m igrao de trs m il
anos. Os gregos, tanto os antigos com o os modernos, tom aram sua
essa teoria, apresentando-a com o de sua prpria autoria.
Plato, por exemplo, conta sob forma mtica, no livro dez
de sua R epblica, a histria de Er de Panflia. Er um jovem
soldado que, aps uma batalha, fica morto por dez dias e depois
retorna conscincia. Ao despertar, narra a experincia que
ele viveu no alm da morte. Descreve o julgamento das almas e
seu retorno em corpos animais, para uns, e humanos, para
outros. Mas so as almas que fazem essa escolha; porm, antes
de tomarem um corpo, devem se banhar nas guas do rio Letes,
o rio do esquecimento. Na mitologia grega, esse rio separa o
alm da vida terrena. E dessa maneira que Plato, precursor
de muitos escritores, explica a sbita amnsia das nossas
existncias passadas. No mito, ele evoca tambm a possibilidade
de reencarnao das almas animais. Num outro texto, P hedo,
Plato nos entrega suas reflexes acerca do destino da alma
aps a morte, e novamente fala da reencarnao: Se elas voltam
em sua mesma form a hum ana, explica ele, do nascim ento a
pessoas de boa con duta.
Para explicar a lei da reencarnao, ele recorre ao princpio
da dualidade. Trata-se de um modo mais filosfico de abordar
o tema, ao passo que outros povos preferem consider-lo a
partir da observao da natureza. Para Plato, a natureza de
uma coisa s pode lhe ser conferida atravs da relao com o
seu contrrio. Por exemplo, a luz no existe sem as trevas, o
pequeno s faz sentido diante do grande, etc. Um produz o
outro, e vice-versa. Se essa concepo vlida na categoria do

sentido, tambm o na das coisas sutis. Assim, para Plato, a


vida no existe sem a morte, a vida vem da morte e a morte, da
vida. No reino da matria, constatamos esse fato. O hmus,
produto da decomposio das folhas, constitui o terreno ideal
das florestas. Do mesmo modo, Plato explica que as almas
dos vivos so almas mortas que tomaram um novo corpo, assim
como os mortos provm dos vivos.
Outro grande filsofo grego, Pitgoras, professava, por sua
vez, a doutrina da metempsicose, isto , a crena segundo a
qual a alma humana pode voltar vida num corpo animal. Os
pitagricos muitas vezes so acusados dessa opinio grosseira.
Muitos estudiosos afirmam que sua prtica do vegetarianismo
provinha dessa crena. Entretanto, Hiroclos, um neoplatnico
do sculo 5 d.C., insurgiu-se contra essa interpretao imatura
do pensamento do grande sbio. Comentando os "Versos de
Ouro dos pitagricos, disse: S em preperm anecendo com o alma
de um ser humano, a alma (humana) vai se tom ar um deus ou
um animal, segundo tenha adquirido a virtude ou o vcio. Por
natureza, ela no nem um nem outro, e so m en te seu estado de
ser que a tom a sem elhante ao prim eiro ou ao segu n d o. Antes de
mais nada, ele explicava que o ser humano est situado no meio
entre os mundos superior e inferior. Por causa do uso de seu
livre-arbtrio, ele pode assumir interiorm ente as caractersticas
de um ou de outro mundo. Chama-nos a ateno, aqui, a
semelhana com as idias tibetanas do Livro dos Mortos ou
Bardo Thdol. Nessa obra, explica-se que o ser pode se
reencarnar como homem, demnio, animal ou deus.
No h em nossa lngua um termo especfico que marque
definitivamente a diferena entre reencarnao num corpo
animal ou num corpo humano. Reencarnao e metempsicose

so utilizados indiferentemente, no sentido de renascimento


num co rp o qualquer. Com muita freqncia, a metempsicose
animal usada no intuito de ridicularizar a idia do retorno
num corpo humano. E preciso, portanto, imaginar novas
definies que faam da reencarnao a migrao da alma de
um corpo para um outro do mesmo reino.
Para se chegar compreenso das obras de Plato ou Pitgoras,
convm lembrar que, a exemplo dos mestres daqueles tempos,
eles exprimiram seus pensamentos sob forma de alegorias. No
fim das contas, nada evidencia que eles no nutrissem noes muito
mais sutis do que as que decidiram dar ao mundo. A respeito do
prprio Pitgoras, conta a lenda que ele teve a experincia da
recordao de suas vidas anteriores, quando de uma visita a
Heraum de Argolis. Nessa ocasio, ele identificou o escudo de
Euforbe como tendo sido seu, antes mesmo de ter visto a inscrio
que ele continha. Isso faz supor que Pitgoras fora Euforbe,
guerreiro morto diante dos muros de Tria.
Em Elusis, nas celebraes dos mistrios, o mito de
Demter era representado nas iniciaes secretas. Plato,
segundo consta, era um iniciado dessa escola, onde a revelao
ilcita dos arcanos condenava morte os culpados. A deusa
Demter, personificao da natureza e das colheitas, tinha uma
filha, Core, bela como o sol. Um dia, Hades, deus dos infernos
e irmo de Zeus, apaixonou-se perdidamente pela jovem.
Enquanto ela estava colhendo flores, ele decidiu rapt-la e levla para viver entre as sombras que povoavam seu reino
subterrneo. De repente, a terra se abriu sob os ps da
adolescente, dando passagem terrvel carruagem de Hades,
puxada por seus cavalos infernais. Num piscar de olhos e num
barulho ensurdecedor, ele arrastou consigo a apavorada Core.

Algum tempo depois, Demter se deu conta do desapa


recimento de sua filha. Em prantos, ela peregrinou pela terra
durante nove dias e nove noites, numa procura que se mostrou
infrutfera. Interrogou todos os seres fantsticos e at mesmo
os outros deuses do Olimpo, que ficaram em silncio, temendo
sofrer as represlias de Hades. Ento, Demter, senhora da
fecundidade da natureza, tornou a terra estril, declarando
que s lhe devolveria seu poder de produzir frutos se sua filha
lhe fosse devolvida. Diante da iminncia de um caos na ordem
da Criao, Zeus e os outros deuses intervieram junto a Hades,
com a seguinte mensagem: Ou devolves Core, ou estamos todos
perdidos!. E ele respondeu a Demter: S recuperars tua filh a
se ela atnda no tiver provado do alim ento dos m ortos. E como
achasse que assim era, ele se disps a devolver a jovem sua
me. Nesse momento, porm, Ascalafos, um jardineiro do
Hades, afirmou ter visto Core comer sete gros de uma rom
do pomar infernal. Entretanto, era preciso encontrar um modo
de fazer um acordo entre o apaixonado repelido e a me, coisa
que aconteceu depois de longas discusses. Core passaria trs
meses do ano no Trtaro, com o nome de Persfone, a rainha
dos infernos, esposa de Hades. Os nove meses restantes, viveria
com sua me, na superfcie.

encarnaes, bem como o perodo vivido alternadamente


na terra e no invisvel. Descreve tambm os laos que unem
o ser humano e a natureza, o ser humano e os deuses. Aqui,
Core representa a alma humana, filha da Alma Universal
encarnada por Demter. Persfone passa um quarto do
tempo num reino inferior, destitudo de luz, ao passo que
vive os outros trs quartos em estreita harmonia com sua
me. Se compararmos os doze meses do ano a um ciclo
completo de encarnao e se os multiplicarmos por doze,
obteremos cento e quarenta e quatro. Os nove meses
restantes podem, ento, ser comparados, segundo esse
mesmo princpio, ao nmero cento e oito. Esse valor
representa relativamente bem uma durao de vida na terra,
que, embora acima da mdia, no assim to raro. Em
relao a cento e quarenta e quatro, restam trinta e seis anos
a serem passados no invisvel. 108, 144, 36: esses valores
simblicos, cujos dois primeiros so muito utilizados nas
tradies orientais e no esoterismo ocidental, tm em comum
o fato de poderem ser reduzidos a nove, que marca
excelentemente a noo de ciclo. A histria de Demter e
sua filha representa, portanto, de maneira alegrica, a lei
das reencarnaes comparada dos grandes ciclos.

Esse mito foi interpretado, na maioria das vezes, como a


representao do ritmo das estaes. Persfone simbolizaria a
germinao na primavera e Demter, a colheita no fim do ms
de agosto, no signo astrolgico da Virgem. O frio e as trevas
do Trtaro, por sua vez, representariam o perodo invernal.
Mas os mistrios de Elusis, cuja chave teria sido dada aos
homens pela prpria Demter, encerram uma outra inter
pretao - esotrica - para a histria do rapto. Todo o drama
tem por funo descrever o priplo da alma atravs das

Um outro povo da Antiguidade conhecia muito bem a noo


de reencarnao. Os judeus da Palestina admitem duas fontes
em suas doutrinas: a Torah escrita (os cinco primeiros livros do
Antigo Testamento) e a Torah oral (a lei oral). Essa ltima,
remontando a Moiss, foi transmitida de boca em boca por
intermdio dos rabinos cabalistas. O rabi Isaac Loria, no sculo
16, ensinava a metempsicose ou migrao das almas, mas
igualmente a impregnao de duas almas num mesmo corpo,
em circunstncias excepcionais. Os cabalistas geralmente

aceitam a doutrina das encarnaes sucessivas, e a Bblia relata


que o prprio Moiss tinha sido iniciado aos mais altos
conhecimentos do Egito. Deve-se ver aqui uma relao entre
esses dois fatos?

Filho do hom em tam bm de sofrer p or causa d eles} Ento, os


discpulos compreenderam que essas palavras eram para Joo
Batista. Como explicar, sem distorcer o texto, que Jesus no
estivesse falando da reencarnao de Elias em Joo Batista?

Por volta do ano 50 d.C., o historiador judeu Flvio Josefo


explicou, em seu livro Histria Antiga dos Ju d eu s, que essa
crena era muito difundida na Palestina, na poca de Jesus.
Afirma ele que na seita dos Fariseus, tam bm aceito que as
alm as so im ortais; que as dos ju stos passam, depois desta vida,
para outros corpos, e que as dos maus sofrem torm entos que duram
eternam ente'. Uma passagem do Evangelho de Mateus faz eco
a esse fenmeno. A pergunta, "Que dizem de m im ?, feita por
Jesus a seus discpulos, estes no hesitam em responder: Para
uns, s Jo o Batista, para outros, Elias; para outros, ainda,
Jerem ias ou um dos profetas". Representaria Jesus, para uma
parte do povo hebreu, a reencarnao de um dos sbios antigos?
E por que, em vez de corrigir o possvel erro, ele se contenta
em responder: Mas, para vocs, quem sou eu?".

Ao leitor atento, no parecer surpreendente que alguns


dos primeiros cristos possam ter sido adeptos da reencarnao,
se lembrar que estes eram, antes de mais nada, judeus
convertidos ao cristianismo. Foi somente a partir do sculo 6
de nossa era, no segundo co n cilio de Constantinopla, que essa
idia foi condenada oficialmente pela Igreja. Esse concilio, eixo
de articulao na histria da cristandade, viu a condenao de
um dos principais Pais da Igreja: Orgenes. Orgenes ensinava
a idia da preexistncia da alma e da multiplicidade dos
mundos; idia cara aos neoplatnicos, para os quais ele pendia.
Uma traduo de um texto de Orgenes, feita por So Jernimo,
faz transparecer sua convico: Os que tm necessidade do corpo
revestem~se de um e, ao contrrio, quando almas cadas se elevam
e s e tom am melhores, seu corpo d e novo aniquilado. Assim, elas
desaparecem e reaparecem incessantem ente".

At hoje, os judeus continuam aceitando essa idia. O


movimento do hassidismo, que existe desde o sculo 18, afirma
sua crena na reencarnao. Segundo uma crena persistente
entre muitos judeus, crianas que morrem com baixa idade
so a reencarnao de pessoas que deixaram este mundo
prematuramente. A tradio esotrica ocidental afirma que os
primeiros cristos tambm estavam familiarizados com essa
doutrina. Como compreender, no contexto da poca, relatado
por Flvio Josefo, esta frase de Jesus e seu comentrio em
Mateus 17,9-13: Sim, Elias dever vir e colocar tudo em ordem ;
em verdade, eu vos digo, Elias j veio e eles no o reconheceram ,
mas o trataram com o bem entenderam . Do m esm o m odo, ter o

O origenismo (que j mencionamos num captulo


precedente) foi condenado pelo imperador Justiniano, que
convocou o co n cilio contra a von ta d e d o Papa Virgilio. Todo o
ceticismo de nossa civilizao ocidental, em relao ao tema
das vidas sucessivas, remonta poca em que esse cutelo caiu.
Teria a idia incomodado o imperador da poca, que, contra a
opinio do Papa, queria fazer do cristianismo uma religio de
Estado? Foi esse mesmo imperador, alis, que fechou, em 529,
a escola de Atenas, ltimo reduto do neoplatonismo no
Ocidente. De l, os mestres neoplatnicos fugiram para a Prsia
e transmitiram suas doutrinas ao esoterismo muulmano.

Nossa investigao deve, ento, prosseguir na esfera do isl.


Uma das trs grandes correntes islmicas foi influenciada pela
filosofia neoplatnica. Respeitadssimos no mundo rabe, os
sufis so em geral considerados como mediadores entre os
sunitas da Meca e os xiitas iranianos. Um de seus maiores
representantes, Djalal-od-Din Rmi, expressou-se claramente,
no sculo 13, sobre a reencarnao: "Como o segundo estgio
sem pre f o i m elhor que o prim eiro, morre, pois, alegrem en te e
rejubila-te idia de tom ar uma form a nova e m elhor [...]. Como
o sol, som ente quando fiz eres teu ocaso, nascers novam ente em
todo esplendor, no oriente".
Os su fis consideram-se detentores do conhecimento
esotrico do isl, mas os druzas do Lbano tambm professam
a mesma f. Para eles, um druza corresponde geralmente
reencarnao de um outro druza que morrera. Afirmam que
todas as almas foram criadas pela Inteligncia Universal, que
o nmero de seres humanos sempre o mesmo, e que as almas
passam por diferentes corpos. Abaixo, apresentamos o texto
de uma profisso de f druza, expresso numa seqncia de
perguntas e respostas.
P: Q uejulgam ento Hamza (o enviado divino para os druzas,
que apareceu na terra no ano 400 da hgira ou era maometana)
exercer sobre os indivduos de diferentes seitas e religies?
R: Cair sobre eles com o gl d io e com rigor, e fa r todos
perecerem .
P: Que acontecer depois que todos p erecerem ?
R: Eles voltaro ao tnundo, renascendo uma segunda vez, pela
reencarnao; em seguida, ele os ju lga r com o bem lhe aprouver.

Mais adiante, encontramos uma afirmao bastante


surpreendente:
P: Quantas vezes Hamza apareceu e quais fora m seus nom es?
R: Ele apareceu em todas as revolues, desde Ado at o profeta
Maom, sete vezes ao todo. No tem po de Ado, cham ou-se Schatnil;
no de No, Pitgoras; no de Abrao, seu n om e f o i Davi; cham ouse Schoaib no tem po de Moiss; no tem po de Jesus, ele f o i o
verdadeiro messias e seu n om e f o i Eleazar...
Mais adiante ainda:
P: Como se realiza a reencarnao ou transm igrao da alma
num corpo?
R: Sem pre que m orre um indivduo, um outro nasce; assim
que o m undo existe.
Essa idia, porm, no defendida apenas por algumas
correntes das tradies monotestas. Na frica, est bem
implantada nos povos animistas. Entre os iorubas da Africa
ocidental, por exemplo, algumas crianas, tidas como pais que
voltaram terra, recebem o sobrenome B abatund, para os
meninos, e Ietund, para as meninas. Esses termos podem ser
traduzidos como Pai (ou Me) que voltou. Em Gana, o
sobrenome Abadio significa Ele voltou. Os bam baras
consideram que Dya cN i, dois componentes da alma, podem
reencarnar no corpo de um recm-nascido. Uma superstio
talvez tenha criado a seguinte prtica, que os iniciados das
autnticas sociedades secretas africanas rejeitam: fazer um corte
ou estigma qualquer no corpo do morto, para depois tentar
constatar se o mesmo pode ser reconhecido no corpo de um
recm-nascido.

A frica no o nico continente cujo culto da natureza


recorre reencarnao. Certos amerndios, e mesmo os
esquims, acreditam poder recordar suas vidas passadas. Na
Europa, desde a Idade Mdia, parece ser mais difcil encontrar
escritores que professem abertamente o princpio das vidas
sucessivas. Os ctaros, herdeiros de correntes gnsticas, como
tambm os b ogom iles, acreditavam nele. Entretanto, face
inquisio reinante, era perigoso divulgar suas crenas.
Contudo, no dizer nada sobre alguma coisa no significa que
no se seja partidrio dela.
Como compreender que o conde de Saint-Germain tenha,
em pleno sculo 18, deixado correr, to indulgentemente, o
boato de que ele tinha 500 anos de vida? Essa histria
inacreditvel no estaria escondendo alguma outra coisa? Como
explicar tambm essa declarao de Cagliostro, feita no decorrer
do seu processo: No sou de nenhum a poca nem de nenhum
lugar; fora do tem po e do espao, m eu ser espiritual vive sua eterna
existncia, e, se estendo m eu esprito a um m odo de existncia
afastado desse que percebeis, tom o -m e aquilo que desejo [.../.
Eis a m inha infncia, m inha ju ven tu de, tal com o vosso esprito
inquieto e ansioso de palavras a reclam am ; mas que ela tenha
durado mais anos ou m enos anos, que tenha se passado no pas de
vossos pais ou em outras regies, que vos im porta isto?".
Ainda no sculo 18, impossvel resistir tentao de
reproduzir o famoso epitfio de Benjamn Franklin: A quijaz
Benjam n Franklin, tipgrafo, com o a capa de um livro velho, as
pginas arrancadas, abandonado aos verm es; com o ttulo e os
dourados esm aecidos. A obra no se perder, pois, co m o ele
acreditava, reaparecer mais uma vez, numa edio nova e mais
requintada, revisada e corrigida p elo autor".

Um pouco mais perto de ns, o doutor C. G. Jung,


psicanalista to famoso quanto Freud, manifestou-se a esse
respeito. Apesar de nenhuma experincia comprovadora t-lo
levado a concluir a seu favor, sua primeira atitude ctica foi
modificada graas a uma srie de sonhos. Neles, como mostra
no livro Memria, Sonhos e Reflexes, ele observou o processo
de reencarnao de uma pessoa morta, que ele havia conhecido.
Explica que, estudando certos aspectos daqueles sonhos, seria
possvel demonstrar de modo emprico a realidade da
reencarnao, e isto com uma probabilidade nada negligencivel. Desde o incio do sculo 19, vrias pessoas se
manifestaram no Ocidente a favor dessa convico. Pessoas
como, por exemplo, Walt Whitman, o filsofo Emerson, Kant,
Hegel, Victor H ugo...
Corolrio da idia de renascimento, as noes de carma e
darma tambm tiveram um equivalente no Ocidente. Carma
ou krm, palavra snscrita que significa ao, representa a
noo de justia ou lei de causa e efeito. J a palavra darm a,
antes de representar o ensinamento do Buda, pode ser
traduzida como lei universal. Essas duas noes esto
indissociavelmente ligadas reencarnao. De fato, todo seu
sentido como instrumento de evoluo est em que ela atue
no mbito da lei universal que, no caso, m a n ifesta-se atravs
da lei de compensao ou de justia.
O Egito antigo conhecia muito bem esses dois princpios,
visto que a pesagem do corao, representada no Livro dos
Mortos, pe em cena a balana da justia, na qual colocada
a pluma de M aat, deusa da verdade e da lei universal. O
prprio Plato, em toda sua obra, fala de uma justia universal
que visa o aperfeioamento e a evoluo da alma humana.

Ao justo, o ato justo e a justa compensao. A cada um, suas


aes e suas compensaes. No exatamente assim o princpio
do carma?
Existem diferentes pontos de vista no que se refere durao
dos ciclos de encarnao. Para os egpcios, 3.000 anos
separariam duas vidas. Plato, em Phedo", fala de 10.000 anos,
j na "Repblica", cita uma jornada de 1.000 anos. Os tibetanos,
no Bardo Thdol, estimam que a espera no outro mundo varie
de 0 a 49 dias. A primeira constatao que salta aos olhos em
relao a esses nmeros reside em sua natureza simblica.
H. Spencer Lewis, Imperator da Ordem Rosacruz,
AMORC, no comeo do sculo 20, alude a um ritmo de 144
anos, valor mdio entre dois nascimentos. Se por acaso esse
valor causa surpresa, convm ressaltar que a medicina afirma
hoje que o homem estaria geneticamente programado para viver
entre 130 e 140 anos. 144 corresponde de fato a um nmero
importante na tradio ocidental. O Apocalipse de Joo referese a ele, e at as tradies chinesas o tm como um nmero
nefasto, smbolo de morte. Louis-Claude de Saint-Martin,
filsofo do sculo 18, afirma que esse nmero baseia-se nas
dimenses ternrias, quaternrias e setenrias da essncia
sagrada do ser humano, sobre as quais deve se elevar a
Jerusalm celeste da paz.
Enfim, de qualquer ngulo que a abordemos, o que
percebemos que a doutrina da reencarnao se imps em
todo o planeta. De norte a sul, do oriente ao ocidente, ela guia
e ilumina muitos povos. Na Europa, hoje, indivduos e
movimentos filosficos, como a AMORC, mantm acesa a
chama. Parece, portanto, que, longe de ser apangio dos povos
orientais apenas, ela representa um valor universal.

Abordemos o tema, porm, na forma como defendido pelos


orientais. O budismo e o hindusmo tm concepes divergentes
acerca da reencarnao. Por fortes razes, a idia popular da
reencarnao, no Ocidente, est a anos-luz da abordagem feita
pelas grandes tradies autnticas. Em que consiste o problema?
O problema est nas diferenas de conceitos oponentes sobre a
natureza do eu, ou seja, sobre a natureza daquilo que reencarna.
Vimos que a ndia admite a presena, no ser humano, de uma
alma universal ou atinan. J o budismo, acentua a doutrina do
anatnam, que afirma no existir nenhum eu, nenhuma alma no
ser humano. Alguns budistas chegam mesmo a negar a existncia
de uma Alma Universal, ao passo que, no Ocidente, o valor
absoluto o do indivduo.
Mais exatamente, o budismo thcravada do sudeste asitico
(Ceilo, Camboja, Tailndia, etc.) corresponde ao pequeno
veculo ou hinayana. Esse o que mais se aproxima dos
conceitos originais do Buda. Poderia ser denominado budismo
ortodoxo, em oposio ao que se desenvolveu na China, no
Tibete e no Japo. Essa expresso religiosa compara o eu do
indivduo a um rio: o rio, em si, no existe; corresponde apenas
a um conjunto de gotinhas de gua que se sucedem numa
corrente, at que alguma coisa desvie seu curso. Assim tambm,
o eu, como unidade, no passaria de uma iluso. Cor
responderia simplesmente a uma seqncia de instantes de
conscincia, mantidos de maneira coerente pela memria.
Essa imagem, que defendida igualmente pelos tibetanos,
baseia-se no ensinamento do Buda, que explicou que o eu
constitui o produto de cinco coisas agregadas: a forma, a
sensao, a percepo-concepo, o instinto e a conscincia.
Certo dia, o mestre interrogou seus monges:

Que pensais, monges, a form a eterna ou p erecvel?


Perecvel, Senhor!
Que perecvel, o sofrim ento ou a alegria?
O sofritnento, Senhorl
Ento, o que p erecvel, cheio de sofrim ento e sujeito
transformao, deduz-se que seja eu, m eu prprio ser?
No, Senhorl
E, dessa forma, o guia espiritual prosseguiu explorando,
um a um, todos os cinco agregados, mostrando a imper
manencia e a ausncia de realidade estvel de cada um deles.
A concluso conduz doutrina de anatm am nenhum eu,
nenhuma alma individual. O eu representa, portanto, uma
iluso e, pela doutrina do budismo, ningum reencarna.
Somente as tendncias, os hbitos, como um carro sem freio e
toda velocidade, reencarnam. Em outras palavras, o que nasce
de novo o carma, uma srie de potencialidades herdadas do
passado, que vo processar sua energia (que quase se poderia
chamar de cintica) no presente e no futuro.
Buda nunca quis se pronunciar sobre a natureza pessoal
ou impessoal do carma. Tanto quanto no quis se pronunciar
sobre a natureza ltima do eu. Hoje, o budismo retoma a
posio do filsofo da Antiguidade grega, Herclito essa no
, portanto, uma questo desconhecida. Para essa religio, tudo
est em perptua transformao. O universo anlogo a um
rio: nada , tudo se torna. Por conseguinte, no existe nem o
grande nem o pequeno eu esttico; apenas um processo, uma
sucesso de causas e efeitos existentes. E a doutrina da
impermanncia. A meta do budista consiste em se libertar dessa

roda cega de causas e efeitos, da roda das encarnaes, para


atingir um estado de no-ao, no nirvana.
O prprio Dalai Lama tem plena conscincia da dificuldade
de sustentar uma tese como essa, visto ter declarado que
ensin-la a pessoas despreparadas poderia lev-las ao niilismo.
De fato, como compreender o sofrimento de uma pessoa aqui
e agora, se seu futuro consiste num aniquilamento? A mente
moderna perguntaria: para que serve tudo isso, ento?
A questo, alis, no to simples assim. A um jornalista
que o questionou a respeito de sua futura encarnao, o Dalai
Lama respondeu, para espanto da platia presente, que sua
futura encarnao era uma criana j viva e que estava sendo
preparada para sua funo. Estaria ele se referindo ao fato de
que, como lder espiritual, ele sempre considerado, no Tibete,
como a manifestao do bodhisattva da compaixo, Cherenzi\
ou teria querido ressaltar para o Ocidente a impessoalidade da
noo de reencarnao dos cinco agregados? Na qualidade de
Cherenzi, nada impede que outra pessoa possa receber o influxo
espiritual, depois da morte do veculo anterior. Mas, pela
concepo de anatman, nada impede tambm que duas pessoas
muito ntim as, do ponto de vista de suas tendncias
inconscientes e de seu carma, sejam consideradas uma nica e
mesma entidade.
Para complicar ainda mais as coisas, h uma crena budista
segundo a qual os agregados que constituem uma dada
personalidade podem reencarnar separadamente, em corpos
diferentes. Assim, uma pessoa pode herdar as tendncias fsicas
do morto; outra, suas inclinaes intelectuais; uma outra ainda,
ser a depositria de sua compreenso espiritual.

A posio do Buda situa-se no lado oposto em relao dos


brmanes hindus, que sustentam o princpio da reencarnao
o atinan, a alma individual. No impossvel que sua doutrina,
considerada pelos indianos como uma traio, tenha
contribudo para fazer evoluir a dos brmanes. Nos Upanishads,
contemporneos de Gautama, vemos de fato aparecer a noo
de que a natureza essencial de atm an, longe de ser individual,
um componente do Universal, de B rahm an, a Alma do
Universo. A quele que m edita repetidam ente sobre as trs letras
do n om e sagrado, sobre a Alma Universal, transportado para a
luz, para o sol. Assim com o a serpente desveste-se de sua pele, ele
se desveste do pecado. E elevado, p elos mantras do Sama-Veda, ao
m undo de Brahma. L, ele a alma que m aior que a som a total
das alm as individuais e que infunde todos os corpos. Isso o que
ensinam os dois versos que d evem estar sem pre na m em oria ".
Assim, o Buda, que se recusou a falar sobre a natureza da
alma humana, talvez visasse direcionar os seres humanos para
noes mais impessoais ou universais. Sua ao, assim como a
do Cristo, visava regenerar a religio que a tinha precedido
diretamente e da qual era filha.
No Ocidente, o indivduo tido como o valor supremo da
existencia. A morte considerada nada menos que um drama.
A reencarnao, revisada, corrigida, emendada, absorvida e
digerida pelo Ocidente, torna-se o meio ideal para o eu
egocntrico imaginar sua apaziguadora sobrevivncia. A morte
do ego vivida como urna segunda morte, aps a do corpo.
Diante disso, a verdade que o desenrolar do budismo no
Ocidente nada mais que um modismo superficial, na medida
que suas verdadeiras doutrinas no so levada em conta. A
chave reside numa diferena de atitude interior, psicolgica
ou mental. O eu individual considerado pelo Ocidente como

um tesouro, enquanto a luz do Oriente coloca a vida, como


corrente impessoal, acima de tudo. A sntese corresponde
doutrina de Plotino e a dos iniciados de todas as pocas. As
almas individuais so segmentos inseparveis do Ser eterno e
universal. No existem almas, mas, sim, uma nica Alma,
desempenhando bilhes e bilhes de papis diferentes,
encarnando bilhes de dramas ditos individuais, manifestando
seus atributos atravs dos mundos e das criaturas, em formas
cada vez mais superiores.
Com a morte, o indivduo funde-se sua Me Universal,
da mesma forma como as cores se fundem na luz solar. Acaso
as cores perdem sua identidade na luz branca? Se a alma
individual conserva sua identidade, esta s pode ser concebida
como um componente inseparvel da Alma Universal.
Os verdadeiros iniciados buscaram sempre se colocar acima
das divergncias das culturas, realizando uma sntese sutil. Toda
luz vem do Oriente e adquire sentido no Ocidente. A Tradio
dos Rosacruzes designa a morte pelo termo transio"'. Essa
palavra indica a passagem de um estado para outro. Nesse termo
esto contidos transitrio e trnsito. Isso desdobra um
sentido de intermdio, de mudana, de transformao. Sua
origem latina significa ao
de passar, passagem gradual de
/
um estado para outro. E a palavra ocidental que mais se
aproxima da palavra tibetana bardo\ estado intermedirio.
Podemos, ento, explicar que o eu, a conscincia, muda de
estado, e compreender por que os cultos so to divergentes
em relao a uma transformao to impalpvel.
A crena dos budistas que a existncia aparente acaba se
fundindo na vacuidade, ao passo que, para as tradies
ocidentais, a personalidade transfigurada conserva sempre sua

identidade. Na realidade, raros so os seres que sabem


verdadeiramente o que aguarda a personalidade humana aps
sua jornada de milhes de anos. Quer seja uma fuso com perda
de identidade ou de uma alquimia sutil em que a alma humana
, a um tempo, unida a Deus e distinta dele, estas so palavras
incapazes de descrever a natureza da experincia suprema.
Somente um sentimento interior, advindo de uma longa busca
que transcende as faculdades do crebro, pode dar acesso a
algumas informaes. Teria a alma a possibilidade de se fundir
com seu Criador, para alm do bem e do mal, para alm de
toda forma, num vazio etreo? Talvez ela possa manter a
capacidade de voltar a descer, para reen con tra r sua identidade
numa relao dual, frente a frente com o Indizvel. Graas a
isso, ela teria a possibilidade de cantar lou vores sua fonte no
Ser eterno. Entretanto, a nica certeza que temos e que
ultrapassa as divergncias de linguagem que, quaisquer que
sejam os mestres espirituais, seus ensinamentos encerram uma
promessa de libertao das limitaes e do mal. Todos eles falam
de uma felicidade suprema. E essa promessa que constitui a
chave e o guia da evoluo, bem como a soluo da verdadeira
doutrina da reencarnao.
Corolrio dessa doutrina, o princpio do carma d-lhe
sentido. Um no pode ficar sem o outro, e a reen carn a o seria
esvaziada de sua substncia e de sua razo de ser se uma lei
especfica no canalizasse seu processo. Muitos dos escritores
que se expressaram sobre o assunto no estavam enganados
em seu raciocnio. Eles fundam entaram sua a rgu m en ta o na
idia de uma justia universal. A maioria das religies e filosofias
baseiam seu sistema nessa mesma concepo de justia.
Observando as crianas, fcil constatar que essa noo de
justia exprime-se de maneira inata no ser humano. Basta notar

a reao escandalizada de uma delas diante de algo que


considera uma injustia. A justia possui u m valor universal
sobre o qual esto fundadas nossas prprias sociedades. Em
funo da mxima, "O que est em cim a com o o que est em
baixo", os seres humanos sempre pensaram que a Divindade
reina sobre o mundo graas sua justia espiritual im nente.
O carma uma expresso particular dessa justia. Como
acreditar, co n ceb en d o -se D eus co m o o arqutipo do justo, que
uma nica vida de atos bons ou de erros possa receber como
san o um a etern id a d e d e sofrim en to ou, ao con trrio, de
felicidade? Como acreditar no paraso ou no inferno eternos,
en sin am en to oficial das religies monotestas, ao m esm o tempo
em que essas mesmas religies nos dizem que Deus amor?
Orgenes foi mais co er en te ao afirmar que vamos todos para o
paraso. Mas, nesse caso, onde ficam os princpios morais?
A reencarnao e o carma correspondem a leis cujos efeitos
residem no fato de que cada ao traz em si sua conseqncia
exatamente proporcional. O resultado poder se fazer sentir na
vida presente ou numa vida futura, tendo em vista a educao
da personalidade. Tomemos uma imagem: quando uma criana
se queima, aprende uma lio sobre a natureza do fogo e da
reao de suas clulas quando expostas a este elemento. Da
mesma forma, as conseqncias dos pensamentos, palavras e
atos humanos nos ensinam sobre sua natureza lcita ou ilcita,
positiva ou negativa, em relao s leis universais. E tido como
lcito tudo aquilo que favorece a evoluo da pessoa e do seu
ambiente. O ilcito tudo aquilo que bloqueia o desenvolvimento.
Assim, a reencarnao, concebida dessa maneira, representa uma
oportunidade de evoluo para o ser humano, que se v
confrontado com as leis do carma. So essas leis que balizam e
iluminam seu caminho.

Em matria de educao infantil, o bom senso diz que, para


evoluir em perfeito equilbrio, ela tem necessidade de ser
confrontada com um quadro claramente definido, justo e
estvel. Explorando o permitido e o proibido em relao a esse
quadro que, inicialmente, pde ser negocivel, ela constri aos
poucos os valores que edificaro sua personalidade. O que
muitas vezes se esquece que o adulto se confronta com as
leis universais da mesma maneira que a criana diante das leis
paternais. O carma representa uma lei imutvel, estvel,
impessoal e no-arbitrria. E nesse sentido que ela ilumina a
vida e se torna a prova evidente da Misericrdia Divina. O ser
humano, portanto, responsvel por seu futuro, cuja vinda
ele pode preparar atravs de suas escolhas presentes, e que ele
deseja que seja o melhor possvel, para se libertar de toda
dependncia.
Como j dissemos, a idia do carma foi conhecida tambm
em outros lugares, alm do Extremo Oriente. A psicostasia
egpcia, a famosa pesagem do corao, simboliza o carma de
maneira bastante exata. No o crebro nem o corpo do morto
que pesado, mas seu corao ou ab. Em outras palavras, o
que Thot, o sbio, avaliava no era tanto os atos mas as intenes.
Essas eram comparadas com a pluma de Maat, a verdade e a
lei universais. Essa lei, leve como uma pluma, feita de
harmonia, por isto se diz que bastam poucas coisas para romper
seu sutil equilbrio.
Plato, no mito de Er, descreve ainda mais claramente o
princpio do carma. Ele apresenta o futuro das almas que so
levadas a renascer. Explica, ento, que esse futuro depende
das escolhas feitas pelas almas, pouco antes de seu retorno
terra. Mas especifica que "o espetculo das almas escolhendo sua

condio, segundo Er, valia a pena ser visto, pois era digno de
pena, ridculo e estranho. Na verdade, elas faziam suas escolhas,
na m aior parte do tem po, de acordo com os hbitos da vida
anterior.
E as escolhas quase sempre dependiam de suas atraes e
averses. Plato explica, alm disso, que o filsofo tinha mais
chances que os outros de escolher certo, devido ao discer
nimento adquirido. A escolha no se faz de maneira livre e
voluntria, pois o passado, para muitos, interfere nela, como
acontece na doutrina do carma.
Uma vez feita a escolha, as almas tinham de passar pelo
turbilho do fuso da necessidade, representado pela
configurao do astros, a fim de cumprirem o destino das
existncias escolhidas. Na verdade, Plato apresenta a
retribuio, a compensao ou a justia, de duas maneiras. A
primeira, na ocasio do julgamento da alma, que decide quanto
a sua permanncia no cu ou no Trtaro, por mil anos. A
segunda, em seqncia escolha no fortuita da vida futura.
E acrescenta: A responsabilidade daquele que escolhe; Deus
no o responsvel.
Um argumento importante, relativo reencarnao, e
geralmente evocado : se j vivemos vrias existncias, por que
no nos lembramos delas? A ausncia de recordao leva a
crer que a reencarnao constitui uma quimera. Entretanto,
longe de advogar contra ela, o esquecimento representa um
trunfo para a evoluo da personalidade humana. A primeira
explicao para a amnsia j foi evocada: mitolgica. Cada
alma que volta do outro mundo, segundo o gregos antigos,
banha-se nas guas do Letes, o rio do esquecimento. Mas o

outro mundo tambm pode ser o do sonhos. assim to fcil,


depois que acordamos, recordarmos nossa vida noturna, com
suas milhares de imagens onricas e imprecisas?
Poderamos igualm ente nos perguntar sobre o qu
realmente se reencarna. Em muitas culturas, acredita-se que,
depois da morte, a alma passa por uma espcie de purificao.
O trigo separado do joio. Purificao - isto significa supresso
de uma parte da antiga experincia de vida. Em outras palavras,
a reencarnao no seria completa. Do mesmo modo, quando
uma pessoa morre, as lembranas de sua vida passada voltam
sua conscincia. No tudo, com certeza! Somente aquelas que
m arcaram profundam ente a personalidade, porque os
acontecimentos que foram sua fonte geraram um poderoso
impacto emocional. Analogam ente, s transm igram as
informaes que marcaram fortemente a personalidade e
contriburam para sua moldagem. Os agregados dos tibetanos,
que constituem o eu, s formam um todo homogneo no
momento da encarnao. Nada prova que as leis universais
conservem todo o conjunto idntico s encarnaes prece
dentes. Se o fio condutor se conserva, preciso ainda que ele
sirva a algum desgnio csmico, seno h uma chance de que
partes consideradas estreis sofram a segunda morte.
Esquecemos, verdade; e, para muitos, isto leva a supor
que no existimos antes desta vida. Ento, enquanto l este
livro, participe deste pequeno jogo:
Tente lembrar um acontecimento que voc viveu quando
era criana... depois, faa uma pausa.
Feito? Voc era um menino ou uma menina, alegre ou
triste, e a experincia foi agradvel ou desagradvel ou, ainda,
neutra.

Agora, faa um esforo. Concentre-se e ... tente lembrar


o que voc fez na vspera desse acontecimento.
E difcil, no ? Talvez mesmo impossvel. E por causa disso,
devemos concluir, ento, que voc no existia?
Da mesma forma, por razes bem precisas, cinqenta por
cento das pessoas so incapazes de recordar acontecimentos
vividos antes da idade de trs anos. No entanto, sua me
provavelmente lembra-se muito bem de voc com essa idade.
Alguns elementos mostram nossa capacidade para esquecer.
Nosso crebro, por intermdio dos cinco sentidos fsicos,
constantemente bombardeado por milhares de informaes.
Se todos esses estmulos no fossem selecionados e apenas uns
poucos memorizados, correramos o risco de ficar loucos,
esmagados por essa imensa quantidade de dados. Todavia, os
estudos do inconsciente, graas hipnose ou aos sonhos,
mostram que muitas informaes so armazenadas em nossa
conscincia, num nvel subliminal. Mas existe uma barreira.
Trata-se de uma segurana, para garantir que a atividade de
viglia seja eficaz. Sabemos que esses dados ficam disponveis
nas camadas profundas da conscincia, mas no facilmente
acessveis. A mesma coisa vale para nveis ainda mais ocultos,
no que concerne as personalidades de encarnaes passadas.
Alguns elementos de bom senso ajudam a compreender a
lgica do esquecimento. Em toda vida humana normalmente
constituda e suficientemente lcida para no ignorar a si
mesma, surgem perodos nada interessantes que preferiramos
esquecer. Uma pequena covardia aqui, uma maldadezinha ali,
uma tendncia inconfessvel acol... coisas muito humanas e

que constituem o que a psicologia profunda, seguindo os passos


dos grandes mitos, denomina "sombra. Diz certo provrbio
que o sbio sabe esquecer seu passado, porque ningum
perfeito. Ele pratica a "m em oriapura no que lhe diz respeito.
Ai est voc, calmamente instalado em sua honesta vida de
pessoa tranqila. Imagine agora que, de repente, recordaes
de um passado infernal venham sua lembrana. Suponha
que, em alguma vida anterior, voc foi um crim in o so , e que
todo o remorso dessa condio, revivido com clareza e
intensidade, aflu sua conscincia... Voc no acha que
mesmo muito sbio manter um compartimento estanque entre
vidas diferentes?
Na verdade, o esquecimento assim feito constitui outra prova
da Misericrdia Divina. Ela sabe passar uma esponja sobre o
passado consciente, a fim de salvaguardar as condies da
evoluo espiritual da humanidade. Esse relativo esquecimento
corresponde a uma espcie de catarse. Embora as tendncias
mais profundas continuem sempre ativas, sua ao no mais
intervm diretamente no nvel da conscincia objetiva.
No raro encontrar pessoas que, ao envelhecer, perdem
toda capacidade de se auto-analisarem, de se questionarem.
Esto travadas em seus hbitos ou mesmo preconceitos. Sua
viso do mundo, m ais cedo ou m ais tarde, acaba se
esclerosando, fossilizando-se num estado imutvel. Que
aconteceria ento se, de encarnao em encarnao, o ser
humano tivesse de reproduzir sempre os mesmos esquemas
conscientes e estticos? A imortalidade material, segundo
nosso atual modo de pensar, constituiria a verdadeira morte,
a morte de fato. Mas a morte que provoca medo, essa de que
o ser humano padece no corpo no final de sua jornada na

terra, longe de ser negativa, representa a condio sine qua


non de uma catarse no nvel das atitudes que deixaram de ser
portadoras de futuro.
/

E preciso morrer para continuar crescendo. A est a chave


que, a duras penas, ousamos reconhecer. Nesse sentido, o
banho nas guas do esquecimento possibilita certa continuidade
entre as encarnaes, sem que estas se tornem sinnimo de
impasse e esterilidade. Por extenso, pode-se considerar que,
se uma pessoa se dispe a ter outras vivncias, a modificar seus
pontos de vista sobre a vida, a se abrir a outras culturas, ela
tem maior chance de viver mais longamente, porque o projeto
da vida que se expressa atravs dela fica favorecido. Ela evolui,
permite que as capacidades latentes de seu ser exteriorizem
cada vez melhor seu talento. Para isso, o ser necessita de um
veculo preparado, disponvel e malevel.
Inversamente, a pessoa que se fecha em seus hbitos j est
cavando sua futura cova. A vida e o ser provavelmente a
abandonaro mais rpido; no por punio, mas por seguirem
um destino engendrado aqui pela preguia humana. Uma
pessoa pode ser velha aos trinta anos, enquanto nos olhos de
alguns velhos brilha a chama da eterna juventude. O ponto
supremo que explica o esquecimento est no simples fato de
que, se nos lembrssemos perfeitamente de nossas vidas
passadas, provavelmente passaramos o tempo simplesmente
contemplando o on tem , negligenciando a vida presente.
Esquecemos nossas vidas anteriores; esta uma evidncia
que ningum ousa negar. No entanto, as lembranas esto
sempre l, presentes em algum recndito de nossa conscincia.
As vezes, uma impresso de j sei isto pode nos assaltar

durante uma viagem ou numa situao nova com que nos


defrontamos. Esse fenmeno pode ser explicado pela repentina
reminiscncia de uma encarnao antiga, mas tambm pela
capacidade que o inconsciente tem de perceber um acon
tecimento de modo mais rpido do que a conscincia objetiva.
Uma mesma manifestao poderia ser percebida primeiro por
uma fase mais profunda da conscincia e s depois pela
conscincia objetiva, o que provocaria a impresso de j sei isto.
Sonhos perturbadores sobre lugares distantes ou sobre um
passado misterioso podem igualmente nos assaltar. Alguns
grandes avatares, como o Buda ou Pitgoras, falaram de suas
antigas encarnaes, dando inmeros detalhes.
Como explicar certos talentos afluindo repentinamente na
vida de um indivduo praticamente despreparado? Eis a
histria real de M. Esse homem, inicialmente, um sujeito
totalmente comum, empregado de uma grande empresa. Um
dia, ele encontra um conselheiro que, atravs de um
procedimento especial, revela que ele possui um dom muito
desenvolvido para a escultura, herdado de uma vida muito
antiga. Essa pessoa, que exercia forte influncia sobre sua vida,
aconselha-o a se lanar num estudo de entalhe de pedras; o
que ele faz com toda confiana. Ele nunca havia esculpido em
toda sua vida. No fim do estgio de estudos para adultos, de
quatro meses, seu instrutor fica cheio de inveja do talento de
seu aluno, que se revelou numa velocidade alucinante. Mas a
aventura no acaba aqui, e M. decide bater s portas da
associao dos artesos da Frana, a elite. Fato rarssimo, ao
mostrar suas habilidades, os associados pedem-lhe que crie
uma obra-prima em sua arte, por meio da qual poder ser aceito
como Mestre talhador de pedra. Depois de apenas quatro

meses de estudos (fato incrvel), sem passar pela escola da


associao, M. consegue cumprir o desafio e se torna Mestre
talhador de pedra, aos quarenta anos. Conhecendo o rigor da
associao dos artesos da Frana e sabendo que a nica
informao que M. possua no comeo era que ele trazia oculto
um dom herdado de uma vida passada, isto d o que pensar...
Como explicar o caso de Mozart, que, aos quatros anos,
apresentou seu primeiro concerto em pblico? Conhecemos
igualmente o caso de certas crianas autistas, que, incapazes
de se comunicarem normalmente, desenvolveram capacidades
extraordinrias. Uma delas pintava, desde a infncia, to bem
quanto mestres que treinaram toda sua vida; uma outra
interpretava com mos de virtuose trechos de msica dos mais
rduos, sendo que nunca havia aprendido msica.
Foi o caso do jovem negro americano, Tom Blind. No sculo
19, aos quatro anos de idade, ele foi notado pelo homem de
quem seu pai era escravo, numa fazenda na Gergia, EUA.
Esse senhor, verdadeiro melomanaco, constatando seu dom
de pianista espontneo, fez com que ele tomasse aulas. No
demorou muito para que o professor desistisse: Tom tocava
melhor que ele, quando nem mesmo sabia ler uma partitura.
Aos sete anos, j havia se apresentado na maioria das grandes
cidades dos Estados Unidos. Aos quinze, era capaz de tocar
de memria milhares de obras dos grandes mestres da msica
clssica. Era capaz de reproduzir um concerto inteiro, aps
t-lo escutado uma nica vez. E, no entanto... Tom era cego e
deficiente mental de nascena. Provavelmente ele seria
qualificado hoje como autista. A cincia atual ainda incapaz
de explicar proezas assim, que se exprimem por intermdio de
um ser considerado dbil. Para ns, existe uma explicao
evidente que possui uma palavra: reencarnao.

Um dos indcios que permitem considerar essa soluo


que o jovem em questo era totalmente fechado em si mesmo.
Em outras palavras, vivia em estreitssimo contato com seu
mundo interior, situao que ocorria em detrimento da
comunicao externa. Em casos assim, a criana est, portanto,
permanentemente numa relao com seu subconsciente, que
representa a memria das vidas anteriores. No importa que o
autista no saiba isso, o resultado se expressa por si mesmo
atravs do dom inexplicvel. A explicao simples, a de um
crebro desequilibrado, no suficiente, j que aquela criana
tocava piano com a sensibilidade e a criatividade de um
verdadeiro mestre da msica, coisa que nenhuma mquina,
desarranjada ou no, capaz de fazer.
Mas existem outros testemunhos, ainda mais claros em
lembranas. O professor Stevenson estudou quatorze mil casos
espalhados pelo mundo. Como bom cientista, teve o cuidado
de descartar todo excesso ou fraude. Eis o caso do jovem turco
Emrullah Turkan, nascido em 1949. Aos dois anos, disse aos
seus pais que tinha lembranas de uma antiga vida e que, na
verdade, chamava-se Cheikh M aruf Cinco anos mais tarde, o
pai de Emrullah, que era fazendeiro, emprega um casal de
agricultores que dizem ter conhecido Cheikh Maruf, morto
em 1948. A pedido do pai, o casai tenta desmascarar a criana
fazendo-lhe diversas perguntas. Como se chamava a esposa
de Cheikh Maruf? Quantos filhos ele tinha? Todas as respostas
dadas pela criana foram corretas e cheias de detalhes. Ele
forneceu o nome dos quinze filhos e disse que sua mulher
tinha uma pinta na face direita. Mais tarde, quando estava no
servio militar, Emrullah explicou a um oficial, estupefato, que
ele j havia servido sob suas ordens, h muito tempo, quando
se chamava Cheikh Maruf. D escreveu-lhe ento suas

campanhas, os perigos enfrentados... O Doutor Doksat,


professor da clnica psiquitrica de Istambul, foi posto a par
do caso e confrontou o jovem Emrullah com um dos filhos de
Cheikh MarufJ que era deputado no parlam en to. M esm o
ignorando a quem iria encontrar, Emrullah, to logo avistou o
deputado, reconheceu-o como sendo um de seus filhos,
chamou-o pelo nome e evocou lembranas
ntimas de famlia,
*
que ningum tinha como saber. E interessante notar que o
jovem Emrullah conservou memrias exatas, dos sete at os
vinte anos, sendo que, segundo o Doutor Stevenson, que
reportou essa histria, a durao mdia das recordaes no
ultrapassa os sete anos de idade. Via de regra, as crianas
esquecem suas encarnaes anteriores por volta dos dez anos.
Um outro caso estudado pelo professor Stevenson foi o de
William Georges Junior. William G eorges era um jovem ndio
tlingite. Os tlingites habitam o sudeste do Alaska e acreditam
na reencarnao (mais uma prova da extenso mundial dessa
convico), que constitui uma caracterstica fundamental de
seus costumes religiosos e sociais. William Georges Junior,
nascido em 5 de maio de 1950, seria, por certos detalhes
conhecidos, a reencarnao de seu av William Georges Snior.
Este ltimo, pouco antes de sua morte no mar, em agosto de
1949, tinha anunciado ao seu filho que, se a reencarnao fosse
um fenmeno real, ele renasceria no corpo de um de seus
futuros filhos; ou seja, renasceria no corpo de um neto seu.
William G eorges S n ior a crescen to u ainda que esse neto
apresentaria os mesmos sinais de nascena que ele tinha. Pouco
tempo depois de seu desaparecimento, num barco, sua nora,
Sra. Reginald Georges, ficou grvida e certo dia sonhou que
dava lu z... ao seu sogro. A criana, nascida mais tarde,
apresentava, como anunciado, marcas no ombro esquerdo e

na parte interna do antebrao esquerdo. A criana s comeou


a falar bem tarde, aos trs ou quatro anos. Seu comportamento
era estranhamente parecido com o do seu av. Manifestava os
mesmos gostos e averses. Depois de um acidente esportivo,
passou a mancar, com o p direito voltado para dentro, o que
lhe emprestava o caminhar tpico do av. Chamava seus
familiares segundo os laos de parentesco existentes entre eles
e William Georges Snior. Por exemplo, chamava sua tia-av
de irm e considerava seus tios e tias como filhos dele.
Reconhecia pessoas e lugares. O fenmeno mais marcante
aconteceu entre quatro e cinco anos, quando reconheceu como
sendo seu um relgio que pertencera ao seu ancestral. Antes
dessa poca, ningum havia lhe mostrado ou sequer falado do
objeto. Sua me estava apenas lhe mostrando, certo dia, as jias
da famlia, que ficavam guardadas em seu quarto. A criana
reconheceu o relgio espontaneamente, em meio aos objetos,
e o reclamou para si obstinadamente, at a idade adulta. Vrias
testemunhas puderam atestar essa histria intrigante.
Trata-se de um valioso testemunho sugerindo a reencarnao.
Nele, encontramos um caso de identificao atravs de sinais
corporais, uma anunciao por meio de um sonho, o reconhe
cimento de lugares e laos de parentesco. Finalmente, como o
caso de alguns lamas tibetanos, o reconhecimento de objetos. A
prtica no Tibete, quando se procura um tulfyu (mestre espiritual
reencarnado) consiste, de fato, em apresentar a algumas crianas
os objetos que pertenceram ao mesmo. As crianas podem ser
escolhidas graas a sonhos, vises, estudos astrolgicos,... Se uma
delas reconhece trs objetos do falecido como sendo seus,
considerada como sua reencarnao. Foi assim com o atual dcimo
quarto Dalai Lama, que reconheceu o rosrio, o tambor e a bengala
de sua anterior dcima terceira vida.

No caso de William Georges e das coisas que permitiram


identific-lo, Stevenson considerou a hiptese de transmisso
de caractersticas hereditrias. Isso, porm, no exclui
totalmente a noo de reencarnao, na medida em que William
foi o nico dos dez filhos da famlia a apresentar os sinais
preditos pelo av.
Entretanto, o Doutor Stevenson, com toda prudncia cientfica,
escreveu um livro intitulado "20 Casos Sugerindo a Reencarnao ".
Ele no escreveu "provando", mas somente "sugerindo", j que, na
realidade, nenhum desses testemunhos prova a reencarnao num
sentido estritamente cientfico. Se a autenticidade dos
testemunhos no pode ser posta em dvida, deve-se, contudo,
admitir que sua interpretao pode ser discutvel.
Do ponto de vista cientfico, a reencarnao no a nica
coisa que pode ser evocada quando uma pessoa relata um
passado supostamente vivido. Pode-se verificar que os lugares
descritos so bem reais e que a pessoa nunca pisou ali antes,
que os nomes de pessoas e laos familiares evocados refletem
efetivamente uma poca distante, etc. Mas, para explicar o
fenmeno da harmonizao com o passado, da telepatia, um
contato com o inconsciente coletivo ou com almas desen
carnadas, da reencarnao, etc. podem ser indistintamente
considerados, sem que seja possvel escolher apenas uma dentre
todas as explicaes possveis.
Em suma, lembremos que, mesmo que a cincia possa
esclarecer alguns de seus aspectos, a reencarnao no tanto
uma questo de provas cientficas quanto de compreenso
filosfica e convico interior. Quem efetivamente consegue
se lembrar sabe a verdade, e isto lhe basta; mesmo que no
possa apresentar provas definitivas da sua memria.

A nica coisa que a honestidade intelectual probe negar


a veracidade dos testemunhos colhidos, quando estes realmente
so comprovados em relao a lugares, pocas e pessoas
envolvidas. No caso Bridey Murphy, por exemplo, a pessoa,
Ruth Simn, uma jovem americana do sculo 20, de trinta anos,
hipnotizada por um psiclogo, relata uma experincia muito
singular. Numa vida anterior, relatou, ela se chamava Bridey
Murphy e vivia na Irlanda, em 1806. Ele deu o nome de seus
pais, descreveu sua casa, deu a data de seu falecimento e traou
o mapa da Irlanda daquela poca. Mais tarde, uma averiguao
independente foi realizada, para verificar suas afirmaes, por
juristas, bibliotecrios e pessoas que no conheciam o psiclogo
nem o assunto. Embora nem tudo tenha podido ser verificado,
nomes, lugares e costumes revelaram-se exatos.
Mas aqui poderamos nos perguntar por que os testemunhos
relativos a vidas passadas so obviamente mais numerosos no
Oriente do que no Ocidente. A razo simples e tem suas
razes na cultura dessas regies. No Oriente, a reencarnao
sempre foi mais facilmente admitida e tem grande influncia
na psicologia humana. No Ocidente, se uma criancinha se
expressasse nos seguintes termos: "Quando eu era grande, eu
era indiano" ou Eu trabalhava embaixo da terra, juntando pedras
pretas m uito sujas", ningum lhe daria ouvidos. Se persistisse,
os que a cercam considerariam sua imaginao como sendo
transbordante. Se continuasse persistindo, seus pais se
inquietariam quanto ao seu equilbrio mental e a mandariam
calar a boca.
Ainda que as lembranas de antigas encarnaes, segundo
o professor Stevenson, possam ser vividas entre as idades de
dois e dez anos apenas, a criana, confrontada com a hostilidade

de seu ambiente, acaba sempre se convencendo de que as


lembranas vagas que ela percebe so miragens de sua
imaginao; depois, pouco a pouco, ela as esquece.
Pode ser perigoso forar as portas do inconsciente. Confiar
se a mos inexperientes j gerou mais desordens mentais do
que curas, em muitos casos. Se a natureza previu uma barreira
entre passado e presente, certamente h uma boa razo. A
emergncia brusca do ontem no hoje como misturar gua no
vinho, talvez pior. Somente mtodos suaves, que respeitem a
personalidade e a integridade de cada indivduo, so vlidos.
Para isso, no preciso que o estudante se coloque disposio
de um outro operador que no ele mesmo. O passado s se
revela se possuir alguma utilidade no sentido de favorecer a
evoluo da pessoa. A curiosidade, o modismo ou o fenmeno
extico no tem vez no que concerne as leis espirituais.
Agora, seria justo questionarmos as razes da reencarnao.
Como j foi explicado, a idia primordial da reencarnao a
de que existe uma justia imnente que foi, alis, pressentida
pela maioria das religies e das filosofias da terra. Se admitirmos
que a alma se manifesta somente uma vez, ir ela eternamente,
como explicam as religies monotestas, para o interno ou o
paraso? Seria possvel que uma nica vida destrutiva ou
construtiva, aos olhos das leis naturais, levasse a uma eternidade
de sofrimentos ou, ao contrrio, a uma perpetuao de
felicidade? Nosso senso inato de justia nos inclina a pensar
que o destino humano no assim to simples. A idia
primordial da reencarnao a de que a personalidade-alma
perfectvel e que conserva, aps a morte, uma enorme
potencialidade de evoluo. Voltando terra, ela pode
compensar seus erros passados e usufruir as alegrias geradas

por suas antigas consecues. Do mesmo modo, confrontada


com o principio do carma, ela vai tecer a trama de suas vidas
futuras. Essa doutrina, portanto, torna o ser humano o nico
responsvel por aquilo que ele vive, aos olhos dos principios
do universo. Na verdade, ela ressalta seu sentimento de
dignidade e confere-lhe um lugar importante na marcha da
Criao. Aqui no h um Deus vaidoso ou vingador a se invocar,
nem um diabo chifrudo e terrvel controlando os seres humanos
como marionetes. E tambm no h um universo cego, sem
propsito nem sentido. Somente o homem responsvel por
seu futuro, graas ao seu conhecimento das leis justas da
Criao.

nos e observando nossos concidados, logo nos damos conta


de que, em uma nica vida, estamos longe de atingir o nvel de
evoluo de pessoas como Mahatma Gandhi, Albert Einstein
e outros. No entanto, possumos o mesmo veculo fsico. Em
outras palavras, ns estaramos em nosso corpo como
aprendizes ao volante de uma Ferrari, ao passo que eles seriam
pilotos experientes.

Ao longo da Histria, outras explicaes foram dadas para


a necessidade da reencarnao. Evocou-se o fato de que a alma
no poderia ficar eternamente na presena da luz perfeita,
devido a suas imperfeies. Foi dito que, cedo ou tarde, ela
sentiria a necessidade de experincias tangveis. Sentiria
saudade da terra, de um mundo feito de carne e sangue.
Outros, ainda, explicaram que no era a saudade da terra que
motivaria o retorno da alma, mas a lei da necessidade; numa
palavra, carma.

Como compreender, ento, que a Criao tenha preparado


esse veculo fsico, perfeitamente adaptado para permitir o
desenvolvimento, a um altssimo nvel, da alma que ele encerra?
Se a ferramenta no progressivamente explorada pelas
personalidades, por que, podemos perguntar, a natureza a teria
criado? Que absurdo isso seria! A experincia prova que uma
nica vida no basta para explorarmos todas as potencialidades
colocadas nossa disposio pelo corpo e o mundo fsico. O
tempo destruidor exerce sua ao desde o nascimento e impede
que o trabalho do ser seja feito at o fim. E a que a reencarnao
adquire todo seu sentido. Trata-se de uma sutil alquimia
espiritual. Ela considera a alma como uma matria bruta que
deve evoluir at o ouro mais puro e perfeito. O ouro j est
oculto no grosseiro, basta revel-lo aos poucos.

Sabemos hoje que, embora as clulas do crebro morram a


partir dos vinte anos, elas tm a capacidade de compensar o
envelhecimento criando mais e mais conexes umas com as
outras. O crebro, portanto, possui uma geometria flexvel e
evolutiva que lhe permite disfarar os estragos do tempo. E o
nico rgo do corpo que consegue apresentar essa capacidade.
Constatando essa capacidade de adaptao do crebro, vemos
que o veculo fsico do ser humano est perfeitamente adaptado
hoje para abrigar almas de nveis muito elevados. Observando-

Outras razes explicam a necessidade de reencarnaes.


Uma delas diz que a alma, para aperfeioar sua prpria
natureza, para exteriorizar sua vontade e suas diversas
faculdades, precisa da experincia do mundo. Se admitimos
que a natureza humana possui uma potencialidade quase
infinita de expresso e criatividade (que sentimos con
fusam ente), percebemos paralelam ente que uma vida
circunscrita a um determinado sculo e um determinado meio
ou cultura no representa uma suficiente oportunidade de

desenvolvimento da alma. Na medida em que ela faz vrias


estadas na terra, isto explica as diferenas fundamentais que
existem entre os seres humanos, alguns dos quais esto
provavelmente mais avanados que outros em conhecimento
inato e em sabedoria. E, alis, apoiando-se nessa bagagem de
nascena que todos os seres humanos possuem, em maior ou
menor grau, que Plato baseou sua argumentao a respeito
da reencarnao. A capacidade humana de relembrar, de que
falou o filsofo, presume a presena em ns desse patrimnio
anterior.
Poderamos supor que a alma continue a evoluir no outro
mundo, sem a necessidade de voltar terra, mas isto seria
negligenciar o fato de que a evoluo requer uma dimenso
feita de dualidade para se afirmar. O sujeito tem de se
confrontar com os objetos, o eu com o no-eu, a vontade com
a resistncia, antes de finalmente chegar a tomar conscincia
da unidade de todas as coisas. S o mundo material apresenta
essas condies.
Poderamos igualmente imaginar que a evoluo da alma
contente-se com o progresso coletivo e histrico da huma
nidade, sem, contudo, exigir uma reencarnao de indivduos.
Em outros termos, poderamos considerar que o crescimento
dos conhecimentos humanos, que fecundaro as inteligncias
de amanh, seria suficiente para cumprir os desgnios da Alma
Universal. Isso, porm, seria negligenciar o fato de que, se a
evoluo individual acompanha ou mesmo se nutre dos
progressos coletivos, no pode estar subordinada a eles. A
coletividade humana, no sentido material do termo, no a
priori um ser consciente de si mesmo ou do universo. Somente
os indivduos, por seu processo voluntrio, podem se elevar

at um nvel de compreenso infinita. por isso que a evoluo


deve se produzir no nvel do indivduo consciente, at a
perfeio. Somente o mltiplo pode concretizar a unidade. Vale
ressaltar que o termo evoluo no , alis, o melhor, j que
no se trata tanto de fazer crescer alguma coisa, mas, sim,
manifestar cada vez mais uma perfeio latente.
Quando as pessoas, superando os preconceitos habituais,
aceitam abordar de maneira imparcial a idia da reencarnao,
ocorre-lhes uma pergunta perfeitamente justa. Essa pergunta,
que vem a seguir, denota, porm, uma espcie de inquietude.
Mas, ento, se a alma realmente reencarna, tem de faze-lo
eternamente, sem um objetivo final, como um crculo sem fim,
reproduzindo sempre os mesmos dramas? Para essas pessoas,
trata-se de perguntar qual o propsito das encarnaes, e o
fazem de maneira muito lcida.
Bem conscientes do que est em jogo, os budistas
consideram a reencarnao no como uma vantagem, mas
como uma maldio que a alma conjura contra ela mesma. O
Buda ensinou a realidade do sofrimento. Para ele, tudo
sofrimento. Mesmo o ato de respirar sofrimento, ainda que
no tenhamos conscincia disto. Disso decorre que o budismo
ensina a possibilidade do fim do sofrimento pela cessao da
roda de samsara ou crculo das encarnaes. Pela prtica do
caminho do meio dos oito preceitos, o ser se libera progres
sivamente de todo apego e das conseqncias negativas de seu
carma. Ele alcana ento o nirvana, que a cessao do
sofrimento. No estando mais apegado, ele tem a experincia
de shunyata, o vazio ou a ausncia de existncia inerente s
coisas e aos seres. Shunyata corresponde realidade ltima que
se oculta atrs dos fenmenos aparentes. Por isso, o ser no
precisa mais reencarnar.

Se o budismo eleva ao mais alto grau o ideal do anacoreta,


urna casta da India, por outro lado, admira entusiasticamente
o do guerreiro. Assim, a meta e o meio de alcan-lo so
formulados porcada um deles de forma ligeiramente diferente.
O Bhagavad-G ita, o livro mais estimados pelos hindus, afirma
que retirar-se do mundo no o melhor meio de se chegar ao
fim das encarnaes. A via da ao superior outra: Realiza
a ao tal com o te prescrevi, pois a ao superior inao; m esm o
tua vida fsica no saberia se m anter sem ao". Entretanto, o
discpulo convidado a realizar a ao sem apego. Ou seja, ele
se situaria como observador no identificado aos prprios atos.
E dessa forma que, liberto da ao, ele se emancipa do carma.
No sendo mais, como indivduo, uma causa eficiente, ele no
tem mais necessidade de reencarnar. Ele atinge mokfisa, o estado
daquele que se libertou da iluso. Assim, sem apego, realiza
sem pre a obra que d eve ser feita . Pois, fazen d o a obra sem apego,
o ser hum ano atinge o S uprem o. Como um eco, respondemlhe essas frases de Lao Ts, o sbio chins:
Sem cruzar a porta, con h ecer o universo;
sem olhar pela janela, en trever a vida do cu.
Assim o sbio con h ece sem ter de se mover,
com preen de sem ter de ver,
realiza sem ter de agir.
O universo se conquista p elo no-agir.
Agir sem agir, ir ao encontro sem se unir,
saborear sem degustar.
Assim o sbio que busca o grande
con segu e se tom ar grande.
O Ocidente, por sua vez, aborda a questo a partir de uma
diferena sutil. Mas que ningum se engane, no se trata de

uma divergncia, mas de uma forma complementar de resolver


a questo. Para o ocidental, a reencarnao no concebida
inicialmente como uma maldio, mas como uma opor
tunidade para a alma de se aperfeioar e de cantar as glrias de
seu Criador. O sufi Ibn Arabi aponta, como termo da obra
humana, a unio do amor, do amante com o ser amado. Outro
grande mestre do sufismo, Djall-od-Dn Rmi, tambm afirma
o amor ao Divino como valioso meio: Pelo am or a Deus, no
podes ser derrotado. Como podes no ter alma, se te tom ars a
Alma. Primeiro, vieste do cu para a terra; no fim , partirs da
terra para o cu .
Em sua magistral obra M asnavi, ele descreve a evoluo
progressiva da alma: Mineral, m orrietom ei-m eplan ta;p la n ta ,
m orri e nasci animal; animal, m orri e m e fiz hom em . Por que
haveria eu de ter m edo? Alguma vez f u i dim inudo pela m orte?
No obstante, um a vez mais, m orrerei com o hom em para m e
eleva r aos anjos bem -aven tu rad os; mas, m esm o esse estado
angelical, precisarei deixar. .."
O estado que marca o fim das encarnaes foi descrito por
todos os grandes msticos em termos simblicos. Uns falam de
unio; outros, de casamento; outros ainda, de esquecimento
do eu. E assim que mil imagens se sucedem:
Pela unio do Sol e da Lua, o casam ento ser consum ado.
A gran de conjuno m arcar o sinal do fim dos tempos, a
submisso perfeita do cordeiro ao pastor.
A luz brilhar sem em pecilho, expulsando as trevas.
O ouro e o diam ante ocultos se revelaro em seu esplendor, e a
filh a reconhecer sua me.
O vu que encobria o abismo se rasgar, deixando a descoberto
a verdade suprema.

A cnana-rei, armada com seu poderoso cetro, precipitar no


lago de fo g o os ltim os servidores do mal.
H aver danas e ranger de dentes, contudo, som ente a alegria
in efvel e incondicionada reinar nos coraes.
Quando os hom ens aprenderem a lngua dos pssaros, quando
a sensvel gazela se deitar em paz entre as patas do leo,
quando Maia, a iluso, no tiver mais fio s para tecer sua
trama,
o am or fecu n d a r os coraes.
Ento, o m oinho da necessidade suspender sua rotao, e a
goela escancarada da m orte se fech a r para sempre.
Qualquer doutrina filosfica prova seu valor quando capaz
de tornar seus adeptos mais felizes. Muitas vezes, consideramos
a reflexo filosfica como um passatempo intelectual, o que
significa negar seu valor pragmtico. No entanto, no que
concerne a reencarnao, muitos pensadores se debruaram
sobre qual seria seu papel no cotidiano, e voc ver que ele
merece ser levado em considerao.
Em primeiro lugar, um dos principais atrativos da
reencarnao vem do fato de que ela fornece ao ser humano
uma compreenso da vida baseada numa verdadeira justia e
aponta sua responsabilidade perante seu futuro. O futuro
considerado como sendo vasto e tendente perfeio. Ele
tecido a partir de pensamentos, intenes, discursos e atividades
do passado e do presente; no como produto da deciso
arbitrria de um Deus, mas como resultado de uma
confrontao clara com leis estveis, seno imutveis. Assim,
relacionando-se com a idia de sua reencarnao, a perso
nalidade pode ser edificada na luz e na responsabilidade.
Ningum duvida que a dignidade, a retido e o equilbrio
psicolgico do indivduo saiam fortalecidos.

O adepto da reencarnao s muito raramente se deixaria


arrastar ao estado de dvida to formidavelmente descrito no
livro de J, do Antigo Testamento. J o justo escandalizou-se
do fato de que, tendo servido a seu Deus durante toda sua
vida, parecia que Ele o havia abandonado naquele momento.
Desiludido, ele constata que neste mundo os criminosos muitas
vezes ficam sem punio, enquanto muitos inocentes sofrem
provaes cujo motivo no compreendem. J 21, 7: "P orq u e
os maus continuam vivos, en velh ecem e aum entam seu pod er?
Sua posteridade se fortifica diante deles e sua descendncia subsiste
ante seus olhos. A paz de sua casa no tem o que temer, os rigores
de Deus os p ou p a m ... .
J pe em dvida e maldiz seu Senhor, como muitas pessoas
afirmam hoje que, se existe mesmo um Deus, ento no devia
haver guerras e a felicidade devia reinar indistintamente. Quem
adere idia da reencarnao fica definitivamente vacinado
contra essa tentativa de imputar a um longnquo Deus a
responsabilidade da injustia e da violncia humana. O adepto
da reencarnao sabe que h leis naturais e espirituais e que
ele colher con form e sem ear. Para ele, o universo portador
de um sentido que, cedo ou tarde, conduz felicidade e ao
amor desabrochados. Mas eis que no livro de J intervm Elias,
o sbio que vem tirar do erro o desesperado. J 34, 10: Q uese
afaste de Deus o mal; de Shadda, a injustia! Pois Ele d ao
h o m em segu n d o suas obras, trata cada q u al segu n d o sua
c o n d u t a . J 36,6: Ele no deixa viver o mau, m asfazjustia
aos pobres; Ele no abandona o ju sto de viso. Com os reis em
seus tronos, Ele os instala para reinarem para sempre, e eles so
exaltados. Mas se Ele os ata com correntes, eles fica m presos nos
laos da aflio. Ele lhes revela seus atos, os pecados de orgulho
que com etera m ... . Mas antes desse discurso, Elias acentua a

misericordia e a idia de reencarnao: Pequei e perverti o certo:


Ele no m e pagou na mesma m oeda. Ele isentou m inha alma de
passar p elo fosso (a segunda m orte) e fa z minha vida usufruir da
luz. Tudo isso Deus faz, duas vezes, trs vezes p elo hom em , a fim
de extirpar do fosso sua alma e fa z er brilhar sobre ele a luz dos
vivos" J 33, 26. Assim, a co m p en sa o d os erros e d os acertos
pode acontecer numa vida posterior.
O segundo aspecto prtico da reencarnao expressa-se no
fato de incitar o ser humano a aprender durante toda sua vida,
at a idade avanada e mesmo at seu ltimo suspiro. Nela, ele
no concebido simplesmente como um produtor-consumidor,
mas se torna uma matria em evoluo atravs dos ciclos de
vida. E to espantoso que no Ocidente (que em sua maioria
aposta numa nica existncia) as pessoas acima dos quarenta
anos sejam consideradas como acabadas? Quarenta anos, a
idade da maturidade, quando o indivduo deveria consumar
os frutos de tudo o que aprendeu antes. A partir dessa idade,
nossas sociedades geralmente acham que a pessoa pode apenas
regredir. Podemos, porm, nos perguntar se isso no passaria
de uma poderosa auto-sugesto que as massas fariam nelas
mesmas, com todos os efeitos devastadores que conhecemos.
Inversamente, entre as pessoas que apostam na reencar
nao corretamente compreendida, no raro encontrar
aquelas que iniciam estudos aos cinqenta anos ou mais. Elas
esto convictas de que todo trabalho iniciado hoje dar frutos
amanh, de um modo ou outro.
Existe um argumento muitas vezes evocado e oposto
reencarnao, o qual se costuma usar aps uma observao
superficial da ndia. Esse argumento diz que aderir a essa idia

seria intil, porque acreditaramos poder deixar para amanh


o que poderia ser feito hoje mesmo. Trata-se aqui de uma falsa
interpretao do princpio, que tambm de uma cegueira
total no que concerne as condies de vida no universo
estritamente material.
A reencarnao assenta-se no princpio da evoluo da
Criao. Todas as observaes cientficas, histricas e
psicolgicas pleiteiam em favor dessa evoluo. Assim, elas
deixam claro que as leis do universo operam para favorecer
esse desenvolvimento. O provrbio popular explica que tudo
que estagna, regride e o que no avana, recua, pois a lei do
universo se exprime pela mudana rumo ao sum m um bonum .
A respeito do possvel impacto psicolgico da educao
reencarnacionista, uma antroploga, Margaret Mead, estudou
o caso de dois povos: os balinais e os manus. O primeiro acredita
na reencarnao da alma numa mesma famlia, enquanto o
segundo considera que, depois da morte, o ser humano
sobrevive, sob a aparncia de um fantasma, por um perodo
muito breve, depois do qu se ele degenera em formas de nvel
mais ou menos baixo, at chegar de um verme ou de uma
alga. Margaret Mead observou, ento, a evoluo desses dois
povos a partir da maturidade. Notou, como particularmente
surpreendente, o fato de que entre os balinais o indivduo pode
continuar aprendendo at a id a d e avanada. As pessoas
permanecem jovens, belas e risonhas por muito mais tempo
do que em nossas regies. Inversamente, entre os m anus, o
intelecto e o corpo enfraquecem a partir dos quarenta anos.
Ento, Margaret Mead colocou a seguinte pergunta: "Poderia
a relao que existe entre aprendizagem e teoria do nascim ento e
da im ortalidade constituir um fa to r-ch a ve? .

Cranston e Head, que reportam esse estudo no livro


intitulado Livro da Reencarnao", tambm fazem e c o ao estudo
de um psiquiatra da Marinha nacional americana, o qual se
desenrolou durante a Segunda Guerra M undial. Essa
informao foi publicada pela revista Times. Esse psiquiatra
descobriu que o equilbrio mental da maioria dos habitantes
da ilha de Okinawa (situada no norte do arquiplago nipnico)
superior ao da mdia das outras populaes. Esse povo
acredita que o esprito volta terra depois de sete geraes e se
encarna num indivduo que se parece fortemente com sua
antiga encarnao. Em seguida a um terrvel bombardeio, o
psiquiatra notou que, de cada cinco habitantes da ilha, apenas
um ficava mentalmente desequilibrado, ao passo que,
submetidos a condies semelhantes, soldados americanos e
japoneses foram levados ao suicdio ou ao asilo psiquitrico.
Ele explica que a estrutura mental da criana de Okinawa
to segura e forte, desde os cinco anos de idade, que pode
enfrentar as piores catstrofes. D eve-se v er a a influncia da
educao reencarnacionista?

yy /noite n a
/ lito iia o c/ en ial
A m orte a verdadeira meta fin a l de nossa vida; depois de alguns
anos, estou to fam iliarizado com essa verdade, essa maravilhosa
am iga do ser humano, que sua im agem no apenas nada tem de
assustadora, mas, ao contrrio, m esm o m u ito ca lm a n te e
confortadora."
W A. Mozart

H vrias dezenas de milhares de anos, o ser humano,


tomando conscincia de si mesmo, simultaneamente tomou
conscincia de sua morte. Desse fenmeno fundamental para
a evoluo humana, decorreram algumas crenas relativas
sua sobrevivncia. As primeiras convices assumiram a forma
do sobrevivencialismo, freqentemente ligado a uma f
animista. Em outras palavras, o primitivo achava que o morto
continuaria a viver sob uma forma invisvel, quer num mundo
paralelo, quer sob a terra ou, ainda, em nosso prprio mundo.
Foi apenas bem mais tarde que a noo de um reino
espiritual se imprimiu no pensamento humano. Paralelamente
s primeiras crenas, enterrava-se, queimava-se, imergia-se ou
jogava-se aos animais o cadver. Alimentos, armas, bens
materiais ou humanos (escravos, famlia, j ias...) acom
panhavam-nos em sua viagem. Eram enterrados ou queimados
junto com ele.
AJternadamente, na Histria, as tumbas e outras sepulturas
situaram-se em locais afastados dos vivos ou, ao contrrio,

prximos aos mesmos, conforme o medo que estes sentiam ou


no em relao aos mortos. Viu-se aparecer a preocupao em
relao sobrevivncia do eu e do outro. Depois, os nomes
fizeram seu florescimento nos tmulos. A familiaridade com a
morte evoluiu igualmente no curso da Histria. Festas foram
organizadas em cemitrios que, em outras pocas, ficavam
abandonados.
Mas por que desenvolver uma tal reflexo sobre as diferentes
atitudes dos seres humanos ante a morte? Muito simplesmente
porque, na maioria dos casos, qualquer que seja nossa cultura,
se no so frutos de uma reflexo profunda e pessoal, nossos
ritos e crenas transformam-se quase sempre em preconceitos.
A morte representa um tema cercado de um respeito quase
supersticioso, que a torna intocvel. Muito freqentemente,
querer pr em causa um costume implica o risco de se passar
por sacrlego. Essa atitude conservacionista an iq u ila
regularmente toda reflexo em torno do assunto ou quanto ao
sentido a ser dado aos nossos ritos.
Uma meditao sobre as posies assumidas pelo ser
humano no curso da Histria permite tomar conscincia de
sua relatividade. Aps uma viagem ao espao das crenas, uma
outra, no tempo, ajuda a compreender as ligaes que existem
entre a evoluo das sociedades e a de seus costumes, quer
sejam laicas ou religiosas. Aqui, nada neutro e poder-se-ia
facilmente afirmar: D iz-me quais so tuas crenas em term os
de ontologia e te direi para onde vais. Inversam ente, fa la -m e de
tua sociedade, de teus hbitos de consum o, etc., e adivinharei teus
costum es e cerim n ias.
No se trata de destruir as convices do presente, mas de
se conscientizar do fato de que outros puderam defender

pontos de vista diferentes e igualmente vlidos. Assim, quando


se sabe contemplar seus prprios costumes com objetividade,
pode-se extrair deles o sentido mais profundo, num primeiro
momento, e depois super-los, para se chegar a verdades mais
amplas que transcendem o tempo e o espao de todos os ritos.
E a esse jogo que este captulo o convida. Comearemos
apresentando a pr-histria do tema, depois examinaremos as
diversas atitudes vividas apenas no Ocidente. Essa amostragem
deve ser suficiente para alimentar uma boa reflexo.
Os primeiros ritos morturios de que temos prova
remontam ao paleoltico superior, desde a poca do homem
de Cro-Magnon. Os antroplogos descobriram tumbas e
ossaturas, acompanhadas de jias e objetos diversos. Ainda que
antes desse tempo provavelmente tenha existido um culto dos
crnios, alguns dos quais sofreram trepanao, os sinais de uma
venerao organizada so menos evidentes. A primeira religio
da terra foi, sem dvida, o culto dos mortos. A atitude dos
vivos diante dos agonizantes sempre foi composta de certa
ambigidade. O respeito ladeia o medo dos fantasmas, a
esperana muitas vezes acompanha a angstia do ps-vida.
No perodo ariano da Grcia, por volta de 1300 a.C., os
corpos podiam ser at mesmo enterrados em casa. Com o
avano da civilizao, passou-se a enterr-los fora das cidades.
Os cemitrios ainda no existiam e as tumbas, como no caso
da Via Apia em Roma, eram arranjadas por alinhamentos. Na
verdade, enterrava-se onde dava, desde que isso fosse feito fora
da cidade, pois os mortos suscitavam medo. Alm disso, apenas
as pessoas importantes usufruam de uma tumba. Nessa poca,
os epitfios floresceram nos tmulos, com o nome das pessoas
gravados neles. A preocupao com a identidade individual
aps a morte era bem real.

Somente a partir dos sculos 2 e 3 d.C., comearam a


surgir os embries dos cemitrios organizados, sempre fora
das cidades. Uma arquitetura de sarcfagos, pedras e fossas
com cobertura fez sua apario, e as pessoas comuns
comearam a usufruir deles com o incio da era crist. Por
volta do sculo 5, a prtica da inumao tomou o lugar da
mais usual, a da incinerao. Alis, datando desse perodo
de transio, foram encontrados esqueletos encerrados em
nforas, em lugar das cinzas habituais.
No cemitrio rural, os tmulos eram orientados. Um dos
meios usados hoje pelos arquelogos para datar um
cemitrio consiste em observar a orientao dos tmulos.
Norte-sul, no perodo galo-romano; leste-oeste no perodo
merovngio. Os primeiros cristos adotaram a orientao
para Jerusalm, enquanto os muulmanos at hoje voltam
o rosto para a Meca ou K ibla. Mais que um destino a ser
atingido, essa posio parece sugerir que mesmo na morte
o ser humano no perde sua orientao e que esta possui
um sentido ou meta.
Por volta do sculo 5, desfez-se a preocupao da
conservao da identidade da pessoa, na morte. O retrato e o
nome do morto colocados no tmulo foram desaparecendo
gradualmente (embora alguns casos tenham se conservado),
para reaparecerem cinco sculos mais tarde. Mrtires e santos
esto enterrados em alguns desses primeiros cemitrios. Perto
deles, igrejas foram construdas para lhes render culto. Essas
igrejas aos poucos tornaram-se, elas prprias, locais de
sepultamento, porque os fiis queriam ser enterrados ad
san ctos, isto , na companhia dos santos. Um novo tipo de
cemitrio, ento, organizou-se ao redor da igreja.

Em torno do sculo 11, a morada final fixou-se ao redor


de igrejas, os velhos tabus envolvendo a morte caram por
terra, as tumbas fizeram sua apario dentro das cidades e o
cemitrio perdurou nessa forma at o sculo 18. Esse
cemitrio medieval no tem nada a ver com o que conhecemos
hoje; Tratava-se de um local pblico, onde se praticava o
comrcio, as pessoas marcavam encontros, s vezes at
moravam l. At hoje ainda existe no Cairo, Egito, um
cemitrio que pode dar uma boa idia do velho recinto
medieval. Na Tunsia, at alguns atrs, as pessoas iam aos
cemitrios para fazer piqueniques. Os vivos viviam, por assim
dizer, numa verdadeira promiscuidade com os mortos. Nesses
locais, podia-se dar festas, banquetes, fazer encontros
amorosos, praticar o comrcio... Ainda hoje, no Mxico, em
certos perodos do ano, festas multicoloridas so dadas ali. O
Ocidente, entre os sculos 11 e 18, domesticou a morte, apesar
de tem-la. Para o homem da Idade Mdia, ela fazia parte de
suas preocupaes costumeiras.
Nessa poca, a antiga ordenao do espao desapareceu, os
corpos confiados .igreja eram enterrados em qualquer local,
desordenadamente. O local importava menos que a proteo
dos religiosos. No entanto, no que concerne as pessoas
importantes, a preocupao da identidade retida pela
autoconscincia voltou tona. Aos poucos, os tmulos viram
reflorescer os epitfios. A representao fsica da pessoa ganhou
fora na forma jacente. Os nomes voltaram a ser gravados nos
tmulos. No sculo 12, curiosamente, a palavra morte
personificou-se: a Morte tornou-se a Dama da Foice,
representada nas danas macabras. Preocupava-se ento muito
mais com a questo da conservao da identidade aps a morte.
A segunda face dessa preocupao traduziu-se no medo dos

mortos-vivos. Uma iluminura do perodo medieval, O encontro


de trs m ortos e trs vivos", mostra trs cavaleiros prximos a
um cemitrio, apavorados pela viso de trs cadveres saindo
dos tmulos.
Como nas velhas crenas de nossos antepassados, os
indivduos mortos tornaram-se novamente suscetveis de
perturbar os vivos. As representaes de danas macabras e da
Dama da Foice sucederam-se numerosamente. Nessas imagens,
as personagens aparecem, duas a duas, numa ronda infernal.
Um homem (ou uma mulher) estupidificado arrastado por
um morto-vivo, do qual pedaos de carne podem ser vistos.
Trata-se aqui de representar a igualdade dos homens diante
da morte (nela, prelados e nobres ficam lado a lado com artesos
e gente simples do povo) e a decrepitude do corpo, como
tambm a sobrevivncia do indivduo.
Essa foi tambm a poca do surgimento dos testamentos,
pelos quais o indivduo transmitia uma parte de si mesmo
posteridade, estando o eu estendido, sem dvida, s posses. A
preocupao com a boa morte surgiu ento. A A ve M aria",
cujo ltimo verso diz Orai p or ns pecadores, agora e na hora de
nossa m o rte" , surgiu igualm ente nessa poca. Sobre o
testamento, a Histria antiga conhecia essa prtica de
transmisso de um patrimnio. Entretanto, a ele somava-se a
transmisso de um influxo espiritual. Na Grcia, o culto da
lareira e dos ancestrais era transmitido de pai para filho. Esse
ltimo tornava-se, ento, o sacerdote do culto domstico. No
Antigo Testamento, Jac transfere ao seu irmo Esa a bno
que seu pai Isaac teria dirigido ao seu filho primognito, pouco
antes de morrer. Essa bno fazia dele o favorito do Divino,
em suas terras e entre sua gente.

O historiador Philippe Aris adotou diversos parmetros


de anlise da evoluo dos comportamentos humanos ante a
morte. O primeiro implica a tomada de conscincia do eu. Em
funo do valor atribudo ao ego, no curso da Histria (dado
basicamente varivel), as concepes da morte variam.
O segundo parmetro diz respeito atitude da humanidade
ante a natureza e os fenmenos. A morte e a sexualidade
representam fenmenos naturais aceitos de maneiras diversas.
Uma a uma, as culturas foram tentando dom-los ou tornlos diablicos, ou simplesmente ignor-los, em consonncia
com a atitude geral que o ser humano foi assumindo perante a
totalidade do meio natural. Por exemplo, a era industrial
freqentemente colocou-se em oposio natureza, que
precisava ser domada. Assim sendo, a morte, ltimo fenmeno
indomvel, foi ento afastada das preocupaes do homem
moderno.
Outros acontecimentos externos a ele epidemias, fomes,
guerras e catstrofes naturais tambm transformaram suas
atitudes e sua compreenso do fenmeno. Ao menos, o que
explica o historiador Michel Vovelle, que cita testemunhos bem
do comeo do sculo 17, numa poca em que a expectativa de
vida era relativamente curta: Mortal, pensa que, sob a cobertura
de uma cmara morturia, h um corpo com ido p or vermes, sem
carne, sem nervos, cujos ossos mostra despojam-se, desconjuntamse, perdem suas articulaes. Ali uma das mos cai podre, acol
os olhos revirados destilam hum or vtreo, e os diversos m sculos
servem , aos verm es vorazes, de ordinrio repasto. ..".A imagem
certamente repugnante, mas fazia parte do cotidiano daqueles
homens e mulheres que se confrontavam diariamente com a
morte, nas epidemias e na misria.

O terceiro parmetro de anlise implica as crenas ou


convices sobre a imortalidade da alma. O modelo cristo
da Idade Mdia era que as almas dormiam, espera do
Julgamento Final. A propsito, a verdadeira definio
etimolgica da palavra cemitrio traduz-se por dormitrio.
Considerava-se, porm, que esse sono podia ser intranqilo
por causa dos erros passados, e que os maus podiam voltar
para implicar com os vivos. Convinha, ento, canalizar esse
retorno e exorciz-lo por ocasio de determinados festejos,
como o carnaval.
O ltimo mtodo de compreenso diz respeito noo de
bem e mal relativa morte. O cristianismo considera-a como
um resultado do pecado original. Pecado, mal e morte, no
sentido de infelicidade, so sinnimos, mas no para os judeus,
por exemplo. Para os epicurianos e os estoicos, a morte, pelo
contrrio, correspondia a uma submisso, de natureza boa.
A esses quatro parmetros superpe-se uma evoluo
histrica das mentalidades. At o sculo 11, a morte era
concebida em seus aspectos coletivos; o ser humano era ento
considerado como um elemento de uma corrente vital. A partir
do sculo 11, surgiu a noo de individualidade, que perdurou
at o final do sculo 18. Com o advento do Iluminismo e, depois,
da sociedade burguesa do sculo 19, a morte alheia adquiriu
dimenso mais importante. A famlia e a noo de espao
privado tomaram a dianteira sobre a antiga comunidade e o
individualismo da Idade Mdia. O romantismo tendia a fazer
da morte algo muito belo.
No livro '"Atala", de 1801, Chateaubriand assim se expressa:
"No inicio da noite, transportamos seus preciosos restos a t uma

abertura da gruta, que dava para o norte. O erem ita os havia


enrolado num a pea de Imho da Europa, tecido p or sua me: era
o nico bem que lhe restara de sua ptria e, aps tanto tempo,
estava destinado ao seu prprio tm ulo. Atala f o i deitada sobre
um canteiro de mimosas das montanhas; seus ps, sua cabea, seus
om bros e parte de seus seios estavam descobertos. Em seus cabelos,
via-se uma flo r de m agnolia descolorida [ ...] a mesma que eu
havia depositado no leito da virgem , para tom -la fecu n da . Seus
lbios, com o um boto de rosa colhido h duas manhs, pareciam
m u rchar e sorrir. Em suas fa ces, d e esplendorosa brancura,
distinguiam -se umas veias azuis. [ ...] Ela parecia encantada p elo
anjo da m elancolia e p elo duplo sono da inocncia e do tm ulo.
Nunca eu havia visto nada mais celestial. Quem quer que ignorasse
que essa jo v em donzela houvesse usufrudo da luz poderia tom ala pela esttua da virgindade adorm ecida.
a primeira tentativa de ocultao do assunto, num quadro
primordialmente fantasmagrico. A morte alheia gerava
tambm o desejo de estabelecer contato com ele, no
transcendente desconhecido. O sculo 19 viu nascer, assim, o
espiritismo.
No sculo 20, a noo do mal perdeu todo sentido, a relao
com a natureza selvagem no representava mais um problema,
porque, graas tecnologia e a medicina, ela foi banida ou
domada (ao menos, o que se cr). As noes de imortalidade
foram sendo progressivamente negadas, como restos de uma
infantilidade passada que se recusava a aceitar morte em sua
realidade. Os comportamentos diante dela foram ento
invertidos: ela foi banida da sociedade e entrincheirada nos
hospitais que, a duras penas, a aceitavam (hoje, 70% das pessoas
morrem em hospitais).

Antigamente, a morte se fazia anunciar. No raro (e isto


sabemos graas s aes familiares da poca), sentindo-se perto
de partir, a pessoa convocava sua famlia e lhe comunicava sua
ltima vontade. Tinha-se ento a necessidade de morrer com
a conscincia limpa. Partir sem estar pronto dava medo. A
partida de uma pessoa envolvia tambm toda a coletividade.
Hoje, a maioria das pessoas prefere partir rapidamente, quase
brutalm ente. A morte anunciada considerada uma
calamidade. Ela se tornou tambm um assunto absolutamente
privado. Do mesmo modo, os tempos no so mais chegados
aos grandes cortejos fnebres ou s representaes da morte.
Adornos, danas macabras, jacentes, carpideiras, epitfios e
outros apelos meditao tornaram-se extremamente raros. A
morte no d mais sinais.
No sculo 17, a arte de se preparar para morrer era
freqentemente lembrada e praticada, como aconselhavam os
antigos pitagricos: "Por uma sbia anteviso, preparai-vos para
a morte, de m edo que ela vos surpreenda: m orrei antes de vossa
morte, m orrei para o mundo, m orrei para todas as criaturas, entrai
num estado em que possais dizer com o So Paulo: quotidie
m orior" (m orro todos os dias). A arte de m o r r e r santam ente to
im portante que, para consegui-la uma vez, preciso apreender
toda a vida, porque asfaltas que com etem os nesse m om ento so
irremediveis". Jacques Nouet: R ecolhe-te, afim de te preparares
para a m orte, 1684.
O sculo 18 e suas luzes assistiram a uma primeira tentativa
de eliminar a morte. Voltaire ridicularizou as antigas prticas e
as velhas pompas, em seu A deus Vida". Fazendo piadas sobre
a morte, os prprios padres negavam a imortalidade da alma.
O Marqus de Sade apresentou-a c o m o sendo um nada. A

matria que era ento considerada eterna. Em meio a essa


concerto, Montesquieu apresentou a imortalidade da alma
antes como uma necessidade que uma verdade: "Quando a
im ortalidade da alma f o r um erro, fica r ei m uito desolado de no
acreditar nela". Os que chamamos de filsofos do iluminismo,
como Louis-Claude de Saint-Martin ou Joseph de Maistre,
reagiram contra esse baixo materialismo.
Desde o final do sculo 18, assistimos a um refluxo dos
cemitrios, fora ou na periferia das cidades. Por exemplo, o
cemitrio de Pre Lachaise, em Paris, situou-se por algum
tempo fora dos muros, at que a metrpole o abarcou. O
cientificismo do sculo 20 progressivamente rejeitou a morte,
um dos ltimos desafios incontornveis a se erguer perante a
onipotente cincia. Quando uma pessoa falece num hospital,
isto se torna sin n im o de fracasso para todo o corpo mdico.
A sada do corpo feita da maneira mais discreta possvel, s
vezes at secretamente. Certa enfermeira de repente percebeu
que, em dez anos de servio, ela nunca tinha ficado ciente de
por onde os corpos passavam para deixarem o hospital.
Os mortos deixam de ter direito de cidadania e, segundo os
socilogos, deixam de ter funo social. Os sinais que lembram
a morte - mausolus, jacentes, adornos, fanal dos mortos, etc.
- esto cada vez mais discretos, porque sua produo est
parada. Nas mdias, as imagens s mostram as mortes de
estrangeiros. As dos nossos, dos que fazem parte da famlia
nacional, dos que nos tocam de perto, so cuidadosamente
veladas. O historiador P Aris chama a isso "a grande inverso
Um pesado siln cio , escreveu ele, estende-se, assim, sobre a
morte. Quando ele se rompe, com o algum as vezes na Amrica do
Norte, hoje, para reduzira m orte insignificncia de um evento

qualquer, do qual se fin g e fa la r com indiferena. Nos dois casos, o


resultado o m esm o: nem o indivduo nem a com unidade tem
su ficiente consistncia para recon h ecer a m orte.

<y? experincia
de nw ie /nmrnte

Felizmente, h umas trs dcadas, um vento de lucidez


comeou a soprar na civilizao, atravs do meio mdico. As
longas agonias do cncer e o surgimento da AIDS vm
favorecendo esse processo. Entretanto, a mudana de
mentalidade ainda no tocou todas as camadas da sociedade.
Quando a tomada de conscincia se generalizar, pode-se apostar
que nossas sociedades sairo da transformadas e mais
maduras...

Vejo-Te coroado e, com Tua ?nassa e Teu disco, d ifcil de


discernir, porque s, etn toda parte m inha volta, uma massa
luminosa de energia, um incndio ili?nitado, um Incom ensurvel
brilho, com o o do Sol, estrepitoso com o o fo g o [ ...]

Armado do poder que a cincia lhe confere, o ser humano


enfim se reconciliar com a natureza, pela aceitao de sua
prpria m ortalidade. A morte, fenmeno reconhecido
socialmente e no mais rejeitado, convidar o indivduo e as
sociedades a se questionarem sobre seu futuro, porm, sobre
bases totalmente novas.

Contemplo-Te, sem fim nem m eio nem com eo, de fo ra


i infinita e braos inum erveis; Teus olhos so sis e luas, tens um
sem blante de fo g o ofuscante e consom es eternam ente o universo
inteiro nas cham as de Tua energia.
Bhagavad-Gita

H umas duas dcadas, fiq u ei gravem en te doente depois de ter


tomado uns remdios, e tenho certeza deque, naquele m omento, eu
quase m oni. (Quem fala a Sra. O.) Sentindo vertigens, deite-m e
na cama, em m eu quarto, e perdi a conscincia. No fim de alguns
instantes, (no posso dizer com preciso quanto tem po foi), voltei
conscincia, mas, para m eu profundo horror, vi m eu corpo deitado
na cama, com o se eu estivesse flu tuan do acim a e separada dele.
Ah, d evo explicar que m e senti perfeitam en te bem nesse novo
estado indefinvel. Eu sabia que estava m orrendo e, no entanto,
no sentia medo. Estava com pletam ente serena. Depois, senti uma
espcie de oscilao etn minha conscincia e m e vi indo para um
tn el m uito escuro, ou melhor, era o tn el que vinha na minha
direo. B em no com eo desse tnel, com ecei a perceber um ponto
de luz verm elha que com eou a crescer cada vez mais e se tom ar

mais brilhante, a t invadir totalm ente m eu ca?npo de conscincia.


De repente, tom ei a perder a conscincia, caindo num outro buraco
escuro. Algum tem po depois, acordei penosam ente em m eu corpo
fsico, com m eu m arido ao m eu lado, tentando desesperadam ente
m e reanimar.
Quando a Sra. O. me relatou sua histria, vinte anos j
haviam se passado e ela se lembrava dela como um acon
tecimento marcante que tivesse acontecido ontem. Zeloso da
honestidade intelectual e da verdade, perguntei-lhe ento se
aquela experincia no podia ter sido um sonho. Para ela, a
hiptese do sonho devia ser excluda. Ele no tem a mesma
textura que esse tipo de fenmeno. Durante um sonho,
ningum nunca v seu corpo fsico (ou muito raramente, j
que a experincia prova que toda regra tem sua exceo), no
se tem conscincia desse desdobramento. Para a Sra. O., a
separao entre o ser fsico e o ser espiritual era uma coisa to
bvia e real quanto qualquer acontecimento cotidiano,
percebido no estado de viglia. Acrescentamos que essa pessoa
nunca tinha estudado nada de esoterismo, cuja existncia ela
quase que ignorava, que sua aventura se desenrolou numa
poca em que ainda no se falava, na Europa, sobre histrias
de estados vizinhos morte, e que ela no estava predisposta a
passar por isso.
O que provocara a situao foi a iminncia da morte,
causada pela ingesto de medicamentos. Os americanos
chamaram esse estado de conscincia singular de Near Death
Experience (NDE), ou Experincia de Morte Iminente
(EMI). Vrias investigaes realizadas em todo o mundo
revelaram que milhes de pessoas j vivenciaram esse fenmeno
surpreendente. S nos Estados Unidos, o instituto de pesquisa
Gallup contou oito milhes.

Como a Sra. O., que o marido achou que estava louca


quando contou a ele sua histria, a maioria das pessoas que
passam por essa experincia, no Ocidente, guardou para si
mesma a perturbadora narrativa dessa viagem a uma outra
dimenso da conscincia. Preferiram se calar, para evitar serem
tratadas como loucas ou mentirosas, at q u e... mdicos,
enfermeiros, psiquiatras, comearam a levar a srio esses
testemunhos que voltavam vrias e vrias vezes sob formas
muito parecidas, nos lbios dos que haviam tocado a morte.
Mas vejamos mais claramente do que se trata. De uns trinta
anos para c, o progresso da medicina no parou de se acelerar.
Graas utilizao da qumica medicamentosa, da cirurgia de
ponta, da eletrnica... os mdicos esto sendo capazes de fazer
pesquisas com as pessoas que chegaram perto das fronteiras
do alm. Muitas vezes, quando o corao e o crebro no do
mais sinais de atividade nos aparelhos registradores, quando
os mdicos que cuidam delas as declaram mortas, essas pessoas,
contra toda expectativa, voltam vida. Em alguns casos, tudo
que receberam foi simplesmente, por exemplo, uma descarga
de desfibrilador cardaco, que acionou novamente toda a
mecnica vital. Para espanto dos que lhes prestam assistncia,
cerca de quarenta por cento desses viajantes de um outro
mundo se pem a contar uma histria extraordinria, que se
desenrola em cinco etapas.
1. Enquanto se encontram numa mesa de operao ou
cados por terra depois de um acidente ou, ainda, em qualquer
outra situao gravemente traumatizante para a vida, essas
pessoas sentem que esto deixando nosso mundo e indo para
um reino totalmente diferente. A situao, para elas, sempre
muito agradvel e elas no sofrem nada, mesmo que seu corpo

fsico esteja numa condio dolorosa, doente ou acidentado.


De forma surpreendente, ao regressarem, no tm mais medo
da morte, sentem-se totalmente confiantes e tranqilas.
2. De repente, para seu espanto, na segunda fase da
experincia, elas percebem nitidamente seu corpo fsico estirado
sob elas ou ao seu lado. Vivenciam, assim, a experincia ntima
da dualidade de sua natureza, a mente fica separada do corpo.
Essas pessoas provam a veracidade da situao recordando fatos
concretos que perceberam enquanto estavam nesse estado
singular. Descrevem aos mdicos que cuidaram delas, por
exemplo, cada um dos gestos e atos que eles fizeram para
reanim-las. De acordo com esses testemunhos, parece que
nesse estado a mente pode se deslocar instantaneamente para
outros lugares. Uma pessoa acidentada, que estava pela
primeira vez naquele hospital onde estava sendo tratada, psse a descrever, s suas espantadas enfermeiras, os quartos e
outros locais do estabelecimento, onde ela nunca tinha pisado.
Entretanto, ela visitara aqueles locais desconhecidos durante
sua experincia. Aps prudentes averiguaes, suas declaraes
se revelaram exatas.
3. Depois da viagem da mente, separada do corpo, pelo
mundo material, h uma mudana da conscincia para uma
outra dimenso. Um tnel sombrio se apresenta diante das
pessoas e elas entram nele a uma velocidade vertiginosa. Tudo
se passa como se elas atingissem ento uma outra dimenso do
universo. A sada do tnel, os narradores explicam que foram
recebidos por algo que eles entenderam ser criaturas que vieram
acolh-los. Mas aqui os testemunhos adquirem uma natureza
excessivamente simblica, formulada incorretamente nos
conceitos limitados do nosso mundo.

o caso da aventura do Dr. Philip Simpson, relatado por P


van Eersel no livro A Fonte Escura'. Seres aproximaram-se de
m im . .. Eles no eram cbicos com o eu, mas esfricos. Queriatn
que eu m e tom asse com o eles, e uma onda de terror m e engolfou.
Gritei: Vo emboraI" O mais espantoso tem a t/er com a natureza
do que os tom ava tem veis. A coisa quase inexprimvel. A nica
palavra que p od e traduzir vagam ente o que elas m e inspiravam
ironia. Aquelas esferas em anavam para m im algu m a coisa
zombeteira. Finalmente, sem desaparecerem, ficaram a uma certa
distncia. Constatei, ento, que eu estava numa paisagem rida e
fechada, com o as terras no fu n d o de um canyon, em p len o deserto.
Por ltim o, m eu cu b o im plodiu e f u i parar em m eu leito no
hospital. Com m uito custo despertei, e uma espcie de luz difusa
encheu minha cabea. R evi toda a cena. De repente, p erceb i que
m e en ga n ara to ta lm en te: em n en h u m m o m en to a qu elas
en tid a des estranhas quiseram m e fa z er mal. Ao contrrio,
revendo-os em minha mem ria, m e d ei conta de que elas tinham
sido, na verdade, extrem am ente bem intencionadas. Apenas um
pouquinho divertidas com o m eu medo. Foi esse divertim ento"
que eu no con segu i suportar. Apesar de estar con scien te das
aparncias totalm ente fantasiosas do m eu relato, tenho a dizer
aqui que essa b reve e fu lg u ra n te experincia alterou m inha
concepo do m u n do.
4. Na quarta etapa, as pessoas contam que perceberam uma
luz imensa ou um palcio de cristal bruto. Explicam que
daquela onda luminosa irradiava um amor incomensurvei.
16% dos que relatam uma EMI atingem essa quarta fase.
Apenas 10% vo alm.
5. E esse alm a entrada na luz, uma fuso que, segundo
elas, imprime um xtase indizvel. Luz sobre luz, amor, alegria,

sentimento de infinito e eternidade, experincia mstica ou


notica, conhecimento absoluto. Todos esses termos repre
sentam esforos infrutferos para revestir de palavras algo que
se vive primordialmente no nvel da emoo.
A maioria que alcana esse patamar sai dele perma
nentemente transformada. Toda dificuldade que resta a essas
pessoas traduzir esse novo conhecimento em atos ligados ao
concreto cotidiano. Ao voltarem dessa viagem, algumas delas
at recriminam os mdicos por terem-nas trazido de volta.
Tendo gozado de um instante de eternidade, retomam contato
com um corpo limitado, pesado e com todas as contingncias
materiais. Elas prefeririam continuar naquele novo lugar.
Outras tm a convico de que, l de cima, receberam a
ordem de voltar a este mundo.
Neste ponto, vale notar que, longe de constiturem um novo
mito, como pretendem alguns escritores, as EMI sempre foram
vividas pelos seres humanos. A extraordinria vitalidade das
religies e msticas diversas vm, alis, desse fato. Na verdade,
as pessoas saem dessa experincia no com uma simples f,
mas com um conhecimento ou gnose inabalvel, que elas
buscam compartilhar. O mito de Er, descrito por Plato, se
no representa uma EMI (at prova em contrrio, nenhuma
EMI pode durar doze horas, nem mesmo mais que alguns
minutos, sem se transformar em morte de fato), com certeza
tira sua fora das narrativas reais vividas naquela poca.
H tambm outras experincias que se assemelham s EMI,
sem serem de fato. Assim, certa mulher que narrou sua aventura
nos mesmos termos de uma EMI (sentimento de amor
incondicional, eternidade, expanso da conscincia...) explicou

depois que a alterao de conscincia aconteceu enquanto ela


passeava num jardim, extasiando-se com a beleza das flores
que via. Pessoas que sofrem um coma tambm podem dar esse
tipo de testemunho. Assim, uma jovem que, depois de um
acidente de carro, ficou seis meses em coma profundo relatou,
ao sair dele: "De todo esse tem po, que no p u d e m edir porque,
quando acordei, parecia que o acidente tinha acontecido na vspera,
no m e lem bro de absolutamente nada. Ah, sim !... s tenho certeza
de uma coisa. Antes de recuperar a conscincia, algum m e deu
uma escolha: partir definitivam ente ou voltar .
H dois elementos fundamentais no que diz respeito s
EMI que fizeram a comunidade cientfica pender a seu favor.
0 primeiro reside nos relatos de percepes extra-sensoriais.
Por algum tempo, pde-se acreditar que durante a incons
cincia aparente, o subconsciente das pessoas pode, por
intermdio dos sentidos fsicos, perceber eventos que se
desenrolam nas imediaes. Lembremos que a audio o
ltimo sentido que permanece ativo na morte, na perda de
conscincia ou no sono. Essas explicaes, porm, so muito
fracas para justificar percepes verificveis e verificadas de
acontecimentos que ocorrem em lugares distantes. A Histria
relata um caso vivido pelo sbio Apolnio de Tiana, no sculo
1 d.C., no momento do assassinato do imperador Domiciano,
a centenas de quilmetros dali. Filstrato conta que, entregue
a um discurso, Apolnio estancou, com o quem p erd e o f i o de
seu discurso, lanou ao solo um olhar apavorado, deu trs passos
fren te egritou : A taque o Urano, ataquei. Dizem que ele viu no
a im agem do fa to com o num espelho, mas o prprio fa to em toda
sua realidade. Os efesianos fora m tom ados d e espanto. Apolnio
se deteve, assim com o algum que tenta ver a concluso de um
a co n tecim en to duvidoso. Por fim , g rito u : Tende coragem ,

efesianos/O Tirano f o i m orto hoje. O que estou dizen do... hoje?l


Por Minerva!, ele acaba de ser m orto neste exato instante, enquanto
m e in terrom p i. Podia Apolonio estar em dois lugares ao
mesmo tempo? Segundo seus proprios testem unhos,
verificados por membros do corpo mdico, as pessoas que
passam por uma EMI, a exemplo de Apolnio, tambm
parecem perceber eventos distncia.
O segundo e mais importante fenmeno que se levou
em conta, se, por um lado, aparentemente menos espetacular,
por outro, apresenta carter mais profundo e prtico. Seu
sentido tambm infinitamente mais eloqente para o mstico
sincero, que se recusa a deixar-se levar pelo meramente
espetacular. Quanto mais longe as vtimas vo na experincia
(at a quinta fase), mais regeneradas elas retornam, tanto do
ponto de vista fsico quanto mental, emocional e espiritual.
Pessoas totalmente egostas, que toda a vida sempre foram
centradas na satisfao de seus interesses pessoais, passam
espontaneamente a se interessar e a amar o prximo. Outras,
cuja vida no tinha outro sentido seno o consumismo e a busca
de prazeres, de repente passam a ter aspiraes mais elevadas.
Outras, ainda, descobrem nelas mesmas dons de cura ou uma
vontade de reorientar sua vida para a manuteno da sade
fsica ou mental. Tudo isso constitui, inegavelmente, sinais de
uma expanso da conscincia. Essas pessoas parecem ter
experimentado uma verdadeira converso. Converso essa que
se traduz por um crescente amor vida e s pessoas, bem como
por um maior servio prestado ao prximo e, por mais
paradoxal que parea, pela abolio de todo o medo da morte.
Vale acrescentar que, para elas, a idia do suicdio s para
ver torna-se um completo absurdo. Da a frase enigmtica de

m ocidental que passou pela EMI aps uma tentativa de


suicdio Quando se est l em cima, a gen te com preen de o que
realm ente o suicdio significa; a, ento, acreditem -m e, a gen te
realm ente no tem a m enor vontade de fa z er isso de n o v o .
Pessoalmente, posso atestar sem quebrar nenhum segredo,
que indivduos que viveram uma EMI encetaram estudos
espirituais que, em alguns casos, conduziram-nos aos portais
da Rosacruz. Por vontade prpria, desejavam compreender,
atravs da sabedoria Rosacruz, a natureza daquilo que viveram
de maneira to emocionante. O ponto comum de todas essas
vidas transformadas exprime-se por uma grande alegria, um
crescente otimismo frente vida e uma abertura mais ampla
em relao s outras pessoas.
Mas h ainda outra coisa no que tange sua regenerao fsica.
Algumas delas parecem rejuvenescer. Leses graves saram mais
rapidamente. Vtimas de cncer em fase terminal, que a
medicina tinha condenado a um brevssimo desfecho, vm suas
metstases regredirem relativamente e o desfecho fatal adiado
em seis meses ou mesmo um ano. Se ainda no chegamos a
declaraes como: paralticos andam, cego s vem e surdos
passam a o u vir, no estamos muito longe disto, tanto do ponto
de vista fsico como psicolgico ou espiritual.
O meio mdico est se questionando sobre a transformao
psicolgica radical efetuada em to pouco tempo. Nenhuma
lei psicolgica conhecida pode, em tais condies, explicar essa
transformao. Logo, alguma coisa acontece, a um tempo
profunda, prtica e real, que a cincia no consegue explicar
por suas anlises habituais. Os mdicos que querem se manter
objetivos ficam to contra a parede, que um deles, um psiquiatra

alemo que estudou o assunto profundamente, declarou: Se


as experincias de m orte im inente no dem onstram de maneira
absoluta o principio da sobrevivncia da alma depois da morte, os
que hoje ainda se recusam a adm itir essa sobrevivncia no tiraram
as m elhores cartas". Vale ressaltar, alis, que as EMI no so
mortes provisrias, mas unicamente estados prximos da morte.
Tirar concluses sobre a experincia da morte a partir de uma
EMI seria um pouco abusivo. Embora seja vlido apreender o
desconhecido a partir do conhecido, essa extrapolao, para
chegar condio de conhecimento verdadeiro, necessitaria
de uma verificao objetiva. Se tivesse ocorrido morte nesses
casos, as ltimas ligaes que unem o ser humano vida teriam
se rompido. Ningum teria podido fazer uma reanimao. As
nicas informaes que se pode tirar da dizem respeito aos
estados da conscincia na proximidade da morte.
Para compreender o evento, o fato que cada um tenta
adaptar as EMI aos seus prprios parmetros analticos. Um
v nela um modelo psicanaltico, outro a interpreta como
reaes psicoqumicas do crebro... em todos os casos, as EMI
no deixam ningum indiferente; tanto que o governo francs
teve de chamar ateno para os termos da lei: A m orte definitiva
de um a pessoa p od e ser declarada som ente aps m edidas tomadas
p or eletroencefalogram a, efetuadas duas vezes, com m eia hora de
intervalo".

qumico seria produzir uma ltima sensao agradvel, antes


de se mergulhar... no nada. Se, por um lado, no h razo
para negar essa explicao, por outro, vale observar que ela
sozinha no basta para justificar as transformaes psicolgicas
das pessoas e muito menos suas percepes distncia.
Acrescentemos, porm, que isso absolutamente no entra em
contradio com a noo de descorporificao real. Os msticos
que seguem a via da alquimia espiritual aceitam a idia de
associar um fenmeno fsico a um evento de natureza espiritual.
A mxima hermtica, O que est em cim a com o o que est em
baixo, e o que est em baixo c o m o o que est em cim a ", implica
que um fenmeno fsico pode ser o reflexo ou o indcio de um
fato espiritual, assim como a ponta do iceberg indica a presena
de um volume imerso duas vezes maior. O fato de que o amor,
por exemplo, possa ser medido ou refletido por secrees das
nossas glndulas endocrinas (tanto que j se pde falar em
molcula do amor) no impede que ele constitua uma emoo
real e muito prtica, sem a qual a vida com nossos congneres
se transformaria num inferno. Entretanto, o papel dos
neurotransmissores na gnese de uma EMI ou quaisquer
outras experincias semelhantes nunca foi comprovado pela
cincia; at hoje, isso no passa de uma hiptese. Para encerrar,
vale acrescentar que nunca se viu um restabelecimento ou
regenerao to espetacular, tanto do ponto de vista fsico
quanto psquico, pelo uso de medicamentos clssicos.

O modelo psicoqumico explica que as sensaes de


descorporificao, a viso da luz, a passagem no tnel, os sons
ouvidos, etc., so resultados de uma experincia alucinatria.
Segundo essa verso, o crebro, na iminncia da morte, sofreria
uma gigantesca descarga de drogas, secretando alucingenos
em forma de neurotransmissores. A funo desse orgasmo

Na mesma ordem de coisas, existe uma teoria chamada trs


crebros. Segundo essa idia, na medida de sua evoluo, a
natureza teria dotado os seres vivos de estruturas cognitivas
cada vez mais complexas. Assim sendo, o ser humano de hoje
possuiria um crebro composto de trs crebros superpostos.
O crebro superior ou neo-crtex; o crebro mdio,

correspondente ao rinencfalo ou sistema lm b ico; e o cerebro


inferior ou reptiliano, formado pelo hipotlamo, que, por sua
vez, est ligado glndula pituitria.
Cientistas puseram em evidncia reaes semelhantes aos
estados de conscincia mstica, que se enquadram igualmente
na linguagem das EMI, pela estimulao artificial de cada uma
dessas partes do crebro. Durante a excitao do rinencfalo
por meio de eletrodos, os pacientes experim entaram
sentimentos de amor universal. Durante a estimulao do
hipotlamo, descrio de luz e sensao de fuso no grande
Todo foram relatadas. No demorou para que uma interessante
teoria da transio viesse tona. Assim, ao morrer, a pessoa
assistiria a uma desativao progressiva de cada um de seus
crebros, comeando pelo neo-crtex. No nvel da conscincia,
ela faria, ento, o caminho inverso da evoluo, at chegar aos
nveis de conscincia mais primitivos. Tratar-se-ia, portanto,
de um retorno s origens da evoluo. Isso explicaria as
experincias da descorporificao, do tnel, da luz, do amor
universal e da fuso na luz.
R Dewavrin, por sua vez, desenvolveu um explicao
psicodinmica. Frente irrupo do medo da morte, o
inconsciente dissocia o corpo e a autoconscincia, o q u e, segundo
ele, gera a impresso de desligam ento corporal. Da mesma form a,
ele dilata o tem po e isola o ambiente, que ento parece distante. E
uma verdadeira fu g a espao-tem poral o que se produz; p or esse
processo, a realidade da m orte lanada fora da conscincia .
Segundo ele, a percepo do ser de luz representa um
arqutipo da vida... Essa interpretao pura e simplesmente
nega o fenmeno, para lev-lo ao nvel do fantasma
reconfortante, sem se apoiar em nenhum fato.

Existem ainda outras teorias para explicar as EMI. Uma


delas a de Rgis Dutheil, o pesquisador francs, autor do
livro O H om em Supra-lum inoso. Ele autor de uma teoria
matemtica muito respeitada, segundo a qual existiriam
partculas muito especiais, os tquions, capazes de ultrapassar
a velocidade da luz (barreira supostamente intransponvel at
ento). O Instituto de Fsica de Colnia observou alguns que
ultrapassam de trs a quatro vezes a velocidade da luz, e
resultados similares foram obtidos depois na Frana e nos
Estados Unidos. Segundo Rgis Dutheil, cujos trabalhos so
at agora hipteses revolucionrias ainda a serem confirmadas,
existiriam, portanto, dois mundos. Um sub-luminoso e o outro,
um alhures supra-luminoso. O termo alhures foi dado por
Einstein, que havia previsto sua existncia.
Assim, a teoria da relatividade, estendida a essas novas
concepes, consideraria o universo segundo trs sees. Uma
seo sub-luminosa, reino do mundo da dualidade, da
causalidade e do tempo; um mundo supra-luminoso ou campo
taquinico, reino da inseparabilidade e da simultaneidade, para
alm do tempo. Por ltimo, a barreira da luz, participante dos
dois mundos simultaneamente.
Como deixar de ver aqui uma ligao (como um piscar de
olhos) com o primeiro captulo da Gnese: No com eo, a terra
era inform e e vazia e o espirito de Deus pairava sobre as guas...
Depois, Deus disse: Fiat lux! (Faa-se a lu z !)... e esse f o i o
prim eiro dia. Em seguida, Ele criou o universo, as estrelas, os
vegetais, os animais e, p or ltim o, o h o m em . No comeo, teria
havido, portanto, um mundo supra-luminoso de onde emanou
a luz e, depois, o mundo que conhecemos.

E Rgis Dutheil procurou comparar os testemunhos de


pessoas que passaram por uma EMI ao seu "cam po taquinico.
De fato, todas falam do cruzamento de uma barreira de luz e de
uma acelerao sbita e vertiginosa da experincia; depois, de
uma sensao de chegar ao corao de um mundo sem espao
nem tempo, gerando nelas a impresso de terem se tornado
onipresentes. Essa viagem no seria, portanto, do corpo, mas da
conscincia, uma experincia notica (relativa conscincia) de
algum tipo. Assim, o mundo supra-luminoso seria o habitculo
de todas as conscincias e, de acordo com o prprio Rgis
Dutheil, o campo da Conscincia pura de onde proviriam e para
onde voltariam as conscincias individuais, aps a morte do
corpo. Nesse campo, a ordem e a informao aumentariam sem
parar, merecendo, em suma, o qualificativo de inteligncia. Mas,
vamos com calm a... O prprio pesquisador acrescentou: Sou
o prim eiro a dizer que m eu m odelo provavelm ente falso e, de
qualquer m odo, ser superado um dia. Ele to-som ente um
esquema provisrio, destinado a nos ajudar a faz er avanar nossas
idias sobre a conscincia".
Mas, parte o lado interessante das muitas histrias sobre o
assunto que, alis, pode ser abordado por outros livros, as EMI
possuem um carter de fato interessante para os msticos e, em
especial, para os Rosacruzes. Seu interesse reside principalmente
no fato de que elas vm confirmar aquilo que o estudante aprende
gradualmente sobre as fases iniciticas atravessadas pelo adepto
na senda da evoluo espiritual.
As etapas de uma EMI ou NDE Near Deal Experience de
fato correspondem muito fielmente s diferentes fases da
iniciao. A necessria separao do iniciando em relao aos
preconceitos do mundo, a fim de atingir uma nova conscincia,
pode ser comparada separao entre o ser fsico e o ser espiritual

numa NDE. O acesso ao reino da conscincia s pode ser obtido


atravs da separao dos elementos mais pesados da existncia,
ou seja, o corpo fsico. A admisso, pela meditao, aos estudos
de certos mistrios equivale passagem no tnel, fronteira entre
dois mundos. Nas NDE, outras personagens tambm assistem
o iniciando em sua viagem a uma outra dimenso. Da mesma
forma, o iniciando nunca est s em sua busca de mais luz. A
passagem no tnel pode ser comparada tambm noite negra
da alma, qual muitos msticos cristos se referiram. Escuro, o
tnel o forosamente e, para alguns, at mesmo assustador.
Tal como a gruta do eremita, ele o local onde a alma se prepara
e se despoja gradualmente de suas antigas escrias e impurezas.
Nosso mundo parece estar descobrindo as NDE. Os msticos,
os iniciados e os sbios de todos os tempos conheceram-nas no
smbolo e, algumas vezes, na experincia direta da conscincia;
em todos os casos, em sua carne e em sua alma.
A revelao preside, no iniciando, o acesso a um conhecimento
superior. Aqui, os maiores mistrios lhe so revelados. Mas, acaso
h mistrio maior que o do amor? E esse conhecimento que os
experimentadores de NDE percebem no mais profundo de seu
corao, tanto que chegam a rejeitar os esforos desesperados dos
mdicos que tentam traze-los de volta vida. Por quem e trouxeram
de volta?\ lamentam alguns, Eu estava bem l em cima, era to
b elo... no preciso de vocs... deixem-me em paz!". Mas h um
outro mistrio que essa gente percebe, como uma revelao, e este
o da unidade, na qual aqueles que vo mais longe esquecem-se
de si mesmos por algum tempo, como numa aura de luz inefvel,
at chegarem regenerao e converso.
Todos esses termos empregados ao se falar das EMI so
conceitos que podem ser assinalados tambm numa via de

alquimia espiritual. Assim conta uma mulher que deu luz


um de seus filhos atravs de cesariana: Foi uma em ergncia,
numa sala de operao no aquecida; fazia m uito frio, e lem brom e de ter esperado o sono anestsico com im pacincia, pois eu
estava sofrendo. De repente, abri os olhos; um sentim ento de
felicid a d e inexprim vel m e invadiu, igual ao de um pssaro a
quem devolveram a liberdade. Pensei: Estou entrando em mimV*
Eu estava n u m t n el im en so, vaporoso, co m u m a agu da
conscincia de m im mesma; estava m e deslocando velocidade da
luz!(1) e m e dirigia a um a maravilhosa claridade, da qual m e
aproxim ei num a felicid a d e total, banhada no am or divino que
con hecim en to perfeito, alegria pura e am or p u ro . Eu estava no
m undo do esprito, sem corpo, mas mais viva do nunca. De repente,
senti que havia uma discusso a m eu respeito, m eu trabalho ainda
no estava term inado; eu precisava m e reintegrar ao m eu corpo
hum ano. Supliquei em vo que m e deixassem seguir em fren te,
mas, com m uito amor, f u i mandada de volta. Entrei de novo no
m eu corpo fsico, p elo m eio do m eu crnio; aquele corpo m e
parecia m insculo, eu tinha de m e acostum ar a ele outra vez, na
dor. Depois, sobressaltei-me, ou vi um b eb que chorava. Era o
m eu filh o ; eu tinha de viver p or am or a e le .
Essa pessoa acrescentou que depois desse acontecimento
ela adquiriu uma aguda intuio e que algum as coisas se
m odificaram do pon to d e vista b iolgico. De fato, vrias dcadas
mais tarde, aos sessenta anos de idade, ela ainda menstruava,
o que era incompreensvel para os mdicos. Ela atribua isso
sua experincia de um dia numa outra dimenso, como uma
pedra misteriosa assinalada em seu caminho.

(1)A fam osa velocidade da luz. (Nota do Autor)

Finalmente, ao final de uma EMI, h sempre o retorno a


um corpo que, apesar de relativamente regenerado, muitas
vezes continua doloroso ou enfermo. Em todo caso, de acordo
com os prprios experimentadores, a sensao no tem carter
agradvel. A reintegrao se realiza, na verdade, numa
dimenso grosseira, em vista da experincia vivida.
Pouco antes do retorno, algumas pessoas explicam que viram
toda sua vida passar ante sua conscincia, como que numa tela
de cinema. Ao que parece, com a aproximao da morte, todos
ns nos encontraramos ante essa constante, relatada pelos
agonizantes. Uma necessidade da mente de fato impele a
pessoa a fazer um ltimo balano. Isso pode acontecer num
piscar de olhos, mas sempre com extraordinria acuidade.
Lembranas esquecidas voltam superfcie; a conscincia
demonstra, ento, uma aguda percepo. Tudo se passa como
se a memria da pessoa, antes de passar a uma outra dimenso,
fosse rebobinada, como uma fita cassete, a fim de conservar
melhor suas preciosas informaes.
Sabemos que a alma, depois da morte, faz um balano de
sua vida. Podemos deduzir isso, racionalmente, a partir dos
testemunhos das pessoas que vivenciaram uma EMI e dos
agonizantes. Na momento de partir, tudo se passa, como
pensavam sabiamente os pitagricos, como no momento do
sono. Em sua sabedoria, eles consideravam que no h sono
bom se a alma no est em paz. Para eles, essa paz s poderia
ser obtida atravs de um balano do dia que passou: No
perm itas que o d oce sono se insinue sob teus olhos, antes de teres
examinado cada uma de tuas aes do dia. Que faltas co m eti?
Que fiz eu ? Que deixei de fa z er e que deveria ter fe ito ? Comea
pela prim eira e p ercorre todas as tuas aes. Em seguida, se

descobnres que com etestes algum a falta, repreenda-te; mas se


a gistes bem , a leg r a -te". Na iminncia da morte, uma lei
psicolgica implica que o indivduo acha-se exatamente nessa
mesma disposio de esprito.
Mas voltemos questo do retorno. Toda a dificuldade, para
as pessoas envolvidas, reside na necessidade de traduzir em
aes concretas a revelao que receberam em outro plano.
Para o observador, um dos meios de saber se uma EMI foi
realmente vivida, ou se tudo no seria apenas uma fantasia,
consiste justamente em observar as transformaes do
comportamento da pessoa em questo. E inegvel que a
experincia da dualidade corpo-alma ou a da luz e do amor
inefveis no deixa ningum inclume. Cedo ou tarde, uma
alegria de viver contagiosa acaba transparecendo, bem como a
vontade de ir ao encontro das outras pessoas... Um
conhecimento obtido pelas vias espirituais, se vlido, vai se
traduzir infalivelmente em fatos objetivos, muitas vezes voltados
ao servio voluntrio. E a lei do retorno, vivida tambm pelo
iniciado armado do privilgio de uma iniciao simblica.
Vale acrescentar aqui um ponto que os espiritualistas
conhecem bem. Existem EMI de diversas naturezas. Uma vez
chegados ao outro plano, alguns passam o tempo considerando
a idia da morte. A experincia pode adquirir carter
essencialmente simblico, como no caso do Dr. Simpson, j
citado. H registros, porm, de uma minoria de EMI de carter
negativo e desagradvel. Por se tratar de uma experincia notica
(termo emprestado de Teilhard de Chardin), presume-se que
ela dependa, em primeiro lugar, do estado de conscincia da
pessoa. Nessa esfera, percebemos somente aquilo que estamos
prontos a perceber. Uma parte da experincia, assim como

ocorre em muitas meditaes, corresponde a uma projeo dos


contedos da conscincia. A exemplo do esprito de um texto
do Bardo Thdol, o Livro dos Mortos tibetano, poderamos
dizer ao experimentador: Contempla as vises que se apresentam
a ti: so a p rojeo de teus prprios pensamentos, precon ceitos e
fantasmas. R econhece que essas vises vm de ti e te libertars
delas".
A natureza da EMI, portanto, ser sempre formulada com
termos ligados cultura e s imagens familiares pessoa. Podese at apostar que a descorporificao no seja forosamente
uma separao entre o ser espiritual e o ser fsico, que o tnel
no seja um tnel, que a luz seja algo intraduzvel. A intimidade
da experincia torna-a incomunicvel em sua natureza
profunda, ainda que os milhares de testemunhos recolhidos
concordem de maneira surpreendente. Ento, como explicar
as experincias de NDE e a conscientizao de fenmenos
extracorporais?
1. Podemos, num primeiro tempo, partir do princpio de
que, em seguida a uma comoo, alguma coisa sai do corpo e
vai perceber um fenmeno situado em outro lugar. Em vrias
tradies, essa coisa conhecida: denomina-se corpo
psquico, corpo astral, perisprito, etc. Tratar-se-ia de uma
oculta dimenso do ser humano, uma emanao da vida que
nele circula e que estaria ligada ao seu corpo fsico. A essa,
somamos as experincias de bilocao, aquelas dos xams da
Amrica e da sia do Norte...
2. A exemplo dos cientistas cticos, poderamos imaginar
que, no momento da morte, o crebro se saturaria de
neurotransmissores, um sistema de segurana que, ante a

iminncia da morte, permitiria conscincia viver um ltimo


momento agradvel... mas ilusrio. Isso muito interessante,
mas no basta para explicar o fato de que pessoas em estado de
inconscincia aparente tenham podido perceber cenas que se
situavam bem fora dos limites de seu corpo e mesmo do local
em que se encontravam. Sem nunca terem visitado fisicamente
os lugares que, aps voltarem conscincia, descreveram
detalhadam ente, essas pessoas relataram eventos que
ocorreram distncia.
3.
Enfim, a terceira hiptese, que no forosamente a mais
simples, mas a mais sutil, constitui um ponto intermedirio
entre as duas precedentes. Admitamos que, no todo da Criao,
exista uma Grande Conscincia Universal que onipresente,
onisciente, etc. No precisaramos mais invocar nenhuma
experincia de sada do corpo. O verdadeiro fenmeno que
interviria, ento, seria o de uma harmonizao momentnea
entre essa Grande Conscincia Universal e a conscincia
individual da pessoa em situao crtica.
Pessoalmente, conheci o caso de um amigo que, de repente,
vivia essa experincia subitamente, enquanto estava sentado
ou dormindo calmamente. Dava-lhe a sensao de que tudo o
que estava afastado parecia ser percebido como prximo, e o
que estava prximo se tornava afastado. Os mdicos disseram
simplesmente que ele estava com o crebro cansado, quando
provavelmente tratava-se de uma experincia psquica.
Se essa hiptese se mostrasse vlida em experincias como
as de NDE, dois tipos de conscincias interagiriam: a Grande
Conscincia Universal e a do crebro. As informaes de uma
verteriam para as da outra por intermdio de determinados

centros, cuja existncia os Rosacruzes conhecem h sculos.


Da mesma forma, note que, durante esses fenmenos, a alma,
no sentido de princpio animador e fonte de vida, no sai
efetivamente do corpo. Se assim fosse, a morte ocorreria
irremediavelmente. Poderamos, porm, nos perguntar se, no
instante da morte, um outro princpio, diferente da conscincia
da alma, pudesse talvez desenvolver uma existncia autnoma.
Em funo de determinadas leis, que a Tradio Rosacruz
conhece, aquilo a que chamamos autoconscincia ou
personalidade, na qualidade de expresso manifesta e ativa no
mundo, a resultante da relao estabelecida entre a alma
princpio universal e o corpo. A morte corresponde
separao de ambos. Temos, ento, o direito de nos perguntar
sobre o devenir da autoconscincia quando seu sinnimo, isto
, o relacionamento entre a alma e o corpo desaparece.
Tudo o que sabemos que a conscientizao de um
fenmeno extracorporal produz-se por ocasio de uma
experincia de morte iminente. Mas essa mesma experincia j
foi vivida igualmente em outras situaes. O Padre Pio, por
exemplo, j foi visto em dois lugares ao mesmo tempo. A
Histria relata tambm que os antigos mestres Rosacruzes
conseguiam essas mesmas proezas. Durante as guerras,
institutos de pesquisas psquicas de todo o mundo conseguiram
colher testemunhos de mes que afirmavam ter visto e ouvido
seus filhos lhes falarem, enquanto estes se achavam feridos a
centenas e at milhares de quilmetros de distncia.
Os xams,
/
mas tambm muitos msticos, como os iogues da ndia, dizem
poder exercer essa faculdade, sem precisarem sofrer um
acidente, um coma ou uma doena. Um dos termos utilizados
para designar o fenmeno bilocao. Nele, o indivduo no
se contenta apenas em perceber o que se passa a quilmetros

dele; uma parte de seu ser se cristaliza nesse lugar distante e


pode at ser observado. Assim, as explicaes dadas acima para
justificar essas manifestaes so apenas hipteses prticas. A
explicao verdadeira talvez seja muito mais complexa, ou
requeira uma combinao de todas essas interpretaes.

(9 aco/zipa/i/uv/u/i/o
c/e agorriza/iej

Resta uma pergunta: por que as NDE existem hoje?


Lembre-se, as NDE ou EMI no datam de ontem.
justamente a evoluo sem precedente das tcnicas mdicas
que tm produzido todos esses retornos antecipados. O que
foi anunciado antigamente est se desenrolando ante nossos
olhos. Hoje, a cincia que preside a evoluo da humanidade
e constitui o novo mbito de seu desenvolvimento. As
manipulaes genticas e a clonagem impem ao ser humano
uma reflexo sobre a tica e sobre sua prpria natureza. A
informtica o obriga a reformular seu lugar no universo
produtivo. E a medicina abre para ele as portas da morte; ou,
pelo menos, obriga-o a se questionar a respeito dela. Seja como
for, pessoas testemunharam e seus testemunhos constituram
a fonte de numerosas pesquisas, que pem em xeque muitas
idias estabelecidas.

A companhar, eis um termo cujo sentido recente traduz a


melhor compaixo que nosso mundo capaz de demonstrar
ante algum que est morrendo. Trata-se do ltimo ato de amor
de algum que, segurando por um tempo a mo de um ser s
portas da passagem, s vai solt-la quando o outro tiver partido.
Gesto gratuito por excelncia, porque sem lucro no plano
terreno, ele inicia tanto os que partem quanto os que ficam.
Acompanhar a palavra mais exata, pois o ser de partida est
sempre um passo frente de seu companheiro ou companheira
dos ltimos dias. Gesto de humildade, ao silenciosa, ele apela
qualidade de uma presena que, por sua natureza, ajuda o
agonizante a levar a termo sua transmutao. Nada de
discursos; no se trata de convencer do contrrio a quem tem
medo ou, ao incrdulo, de que existe alguma coisa depois. A
importncia ou a urgncia do momento faz com que as certezas
do acompanhante pesem bem pouco ante o inelutvel com que
se defronta o ser que parte. Assim, o acompanhante precisa
aprender a se calar, para ser mais intensamente no amor e no
respeito ao outro.
Mas mudemos de tom e falemos tecnicamente, porque um
pouco disto necessrio se queremos que o corao se expresse
sem as suas iluses. H trs ou quatro tipos de acompanhamento.
O primeiro, e mais conhecido, o praticado nas unidades
de tratamentos paliativos. um produto da ciencia, na medida

em que esta est sabendo, cada vez melhor, analisar as


condies de uma enfermidade e fixar os sinais da aproximao
do inevitvel. O cncer em fase terminal, a aids e outras doenas
confrontam a medicina com a sua impotncia natural, e
possvel dizer se uma pessoa tem ou no chances de sobreviver.
Nos casos em que a resposta negativa, convm, ento, auxililos. Enquanto na Idade Mdia podia-se tranqilamente falar
da morte, depois do sculo 18 e da era industrial ela foi relegada
ao nvel dos assuntos que prefervel evitar. Foi apenas h umas
quatro dcadas, graas a pessoas como Elisabeth Kbler-Ross,
que se passou a ousar encar-la. Resta, porm, um longo
caminho a ser percorrido. Por ora, e isto j fato, as unidades
de tratamentos paliativos tm por misso oficial acompanhar
os seres at o grande portal.
A segunda forma de acompanhamento, menos conhecida,
foi praticada no curso de nossa Histria passada. Consiste no
em esperar a chegada do fim para se pensar no assunto, mas
num convite a que se faa um exame regular do sentido do fim
derradeiro do ser humano. Assim, quando o dia da transio
se apresenta, a pessoa j est preparada.
O terceiro mtodo de acompanhamento diz respeito a todos
os ritos, meditaes, preces, etc., que ajudam na libertao dessa
borboleta que a alma da pessoa. Se o primeiro mtodo pode
ser qualificado de p re-m ortem , este atuapost-m ortem .
H, enfim, um quarto acompanhamento, que est longe de
ser intil: o que feito pela famlia ou por amigos daquele que
vai morrer ou que j est morrendo.
Voltemos agora primeira forma. Elisabeth Kbler-Ross foi
quem conseguiu, pela primeira vez, formular em termos de

psicologia as fases de conscincia que a pessoa desenvolve, via


de regra, quando fica sabendo ou pressente que est
condenada.
Que que normalmente acontece ao descobrirmos que uma
pessoa, atingida por uma doena grave, vai nos deixar? Todo
mundo se revolta. A famlia, os amigos e, obviamente e com
mais forte razo, o prprio interessado. Mas antes dessa revolta
mais ou menos bvia, h uma reao geral de estupefao e
embotamento. "Ele (ou e la ) ... morrer, com o possvel? Era to
sorridente e to forte!" Se ele (ou ela) morrer, ento a m orte vai
faz er uma irrupo em minha vida, o que im pensvel e sinnim o
de desm oronam ento de todo um m undo". Essa fase importante
chama-se de?iegao. A pessoa no admite a possibilidade da
morte. A morte parece-lhe enorme demais, totalmente em
contradio com tudo aquilo que a pessoa foi at ento. O
inconsciente nega a morte; ele est programado para a vida.
Sua inteligncia dedutiva recebeu a misso de assegurar, custe
o que custar, a sobrevivncia do indivduo.
O Dr. Freud ps em evidncia, desde o comeo do sculo
20, a incompatibilidade entre a morte e o inconsciente.
Deduziu, ento, muito precipitadamente, que os sonhos nos
quais uma pessoa aflita v seu prprio cadver no passam de
uma brincadeira do inconsciente, significando, assim, sua
negao e sua incompreenso do fenmeno morte . De fato,
todos ns acreditamos que somos imortais, e vivemos como se
isso fosse fato evidente.
A denegao pode assumir formas totalmente diferentes.
Uma pessoa atacada de uma doena incurvel repete
incessantemente: Mas o que q u e est acontecendo com igo, logo

eu, que Jiunca fiq u ei d oen te?. Uma outra se recusa a ouvir a
verdade sobre seu estado. Embora no caiba a todo mundo
tornar-se psiclogo encarregado de desenredar situaes como
essas, o fato que ter uma compreenso do que est em vias
de acontecer pode ajudar a pessoa a viver esses acontecimentos.
A morte para todos, agonizante e familiares, uma espcie de
iniciao. Cada um sai dela mais ou menos duradouramente
transformado. Compreender ou conhecer as diferentes fases
dessa iniciao contribui para atenuar suas etapas de crise, e
at mesmo triunfar sobre elas. Seria prejudicial deixar
totalmente a cargo dos especialistas a questo da morte e do
acompanhamento. O conjunto da sociedade deve se sentir
implicado ou envolvido, sob pena de estagnar num estgio
infantil de desenvolvimento espiritual.
O segundo estgio que sucede a denegao manifesta-se
numa reao de clera. E o perodo em que se questiona Deus.
"Por que eu e no os outros? Por que ju sto a gora ?... A revolta
aumenta e cada um acaba levando sua parte. "Esses m dicos
que so incapazes d e m e cu ra r.. . ", a famlia que decididamente
no consegue entender nada da gravidade da situao, os
padres e todas as crenas inteis que de nada servem quando
se tem de dar o primeiro passo rumo ao desconhecido, esses
filhos que tomam uma atitude compassiva e escondem a
verdade, quando, na maioria das vezes, o doente sabe
perfeitamente onde que ele est...
E a recusa. No, eu no quero morrer, nem m e fa lem disso.
O prprio Deus pode ser incriminado e uma certa agressividade
em relao sociedade dos saudveis vem na seqncia. Na
verdade, cada indivduo reage nessa hora com sua psicologia e
sua histria particular. Alguns no se revoltam, enquanto outros

permanecem definitivamente nesse estgio de recusa crispada


que torna os mortos hediondos. Entretanto, a maioria dos seres
possui em si os recursos para superar esse estgio. Segundo as
prprias palavras de alguns agonizantes, a morte no precisaria
ser assim to terrvel. a recusa que gera a dor para todos
(acompanhantes e doente).
Enfermeiras conseguiram recolher as ultimas palavras de
pessoas que partiram e que se exprimiram no instante do
ltimo suspiro. Dizem elas: bem com o contam : a luz, a
msica, o am or e tudo o mais. E m aravilhoso! .
B. perdeu sua me no hospital. Alguns anos antes, seu irmo
mais velho morrera num acidente. Quando a me de B. deu o
seu ltimo suspiro, uma enfermeira estava presente e relatou o
que viu acontecer com essa senhora. Nos ltimos instantes, a
velha senhora estava sentada, os olhos voltados numa direo
especfica do quarto onde se achava, como se estivesse vendo
algum. Depois, pronunciou as seguintes palavras: E voc,
L uc... (Luc era o nome de seu primeiro filho, coisa que a
enfermeira no sabia) Voc veio m e buscar, que b o m . Em
seguida, o corpo da velha senhora tombou, para no mais se
levantar.
O Dr. Osis, psiclogo, intrigado com essas cenas repetidas
de pessoas que, no momento da passagem, comportam-se
como se algum tivesse ido busc-las, tentou saber se tratavase de alucinaes, de projees de desejos mais ou menos
conscientes, de alterao da conscincia ou outros sinais devidos
a um crebro deficiente. Sem rodeios, armado de seus testes,
seus interrogatrios e sua tcnica de psicologo, concluiu que
no se trata de nada disso. Por alguns detalhes, ele pde

descartar a explicao alucinatria. Pelo exemplo, pelo fato de


uma alucinao ser sempre o reflexo de um conflito ou um
desejo latente, que ela vem ento preencher. As vises de
personagens, aproximao da morte, no tm nada a ver com
esse tipo de desejo, porque parecem animadas de certa
autonomia independente do visionrio. Para ele, tudo se passa
como se essas pessoas conversassem realmente com uma
personalidade invisvel aos olhos dos demais. As investigaes
foram realizadas entre pessoas de culturas diferentes. Se
difcil concluir de modo definitivo, de um ponto de vista
cientfico, pela veracidade do fenmeno, o fato que essa
mesma cincia continua incapaz de explic-lo. Para ns, parece,
contudo, que algumas portas da percepo se abrem no
momento da morte.
A Histria relata o falecimento de Jacob Boehme, filsofo
do sculo 17. No meio da noite, Boehme chamou seu filho
Tobias e perguntou se ele estava ouvindo aquela msica
magnfica que enchia a casa. A despeito de seu filho ter
respondido negativamente, ele pediu-lhe para abrir todas as
portas, a fim de poder ouvir melhor os cantos harmoniosos.
Terminou dando seu adeus sua famlia, pronunciando estas
palavras: E agora, vou ao p a r a s o Depois, fechou os olhos
para sempre.
O terceiro estgio que todo acompanhante (ou sim
plesmente todo ser de compaixo) deve conhecer corresponde
a uma espcie de negociao. O indivduo exauriu sua clera e
comea a admitir o inevitvel. Ento, um tipo de jogo
inconsciente comea a ser jogado. A pessoa pode, por exemplo,
tentar fazer um trato com seu mdico. Certa mulher disse que
seu filho iria se casar dentro de alguns meses. Ento, perguntou

ao seu mdico se ele no poderia ajud-la a agentar at l,


graas s suas drogas e remdios. Constatando o desejo e os
olhos brilhantes da senhora, o mdico aceitou. A cincia
fornecia-lhe os meios e a vontade da paciente parecia forjada
em ao. Ela ganharia alguns meses... ao preo do sofrimento.
Mas no dia do casamento, l estava ela, de p, para abraar sua
nora. Alguns dias depois, foi procurar seu mdico e agradeceu
a ele, mas o jogo recomeou. Seu segundo filho estava a um
passo de se casar tambm. Mas a velha senhora, no fim de suas
foras, j no tinha tempo de esperar at l... A concluso
desse acontecimento real que o ser humano, confrontado
com a morte, pode ganhar algum tempo, se quiser. Ele pode
jogar por algum tempo uma espcie de pquer, mas a aposta
ser paga em termos de sofrimento. De maneira diferente, ele
mesmo pode organizar sua partida, depois de pr tudo em
ordem.
Uma mulher esquim sentiu a proximidade de sua morte.
Assim, convocou, para determinada data, um amigo seu, um
padre que ela adorava. No dia fixado, pediu ao seu amigo para
que fosse buscar um de seus filhos, de modo a que ele estivesse
presente na hora de sua partida. Seus desejos cumpridos, ela
morreu em seis horas, depois de ter assistido a uma cerimonia
religiosa. Essa mulher queria decididamente rever seu filho
antes de partir, o qual ela no via h muitos anos.
Um homem doente estava convicto de que, aos olhos de
sua esposa, ele era um fracassado e que sua prpria morte
representaria, para ela, seu ltimo disparate. Nos dois casos,
foi preciso que os acompanhantes encontrassem, no primeiro
caso, o filho para convid-lo a ir ver sua me, e, no segundo, a
esposa para exort-la a explicar ao seu marido o quanto ela o

amava. Enquanto o desejo do agonizante, muitas vezes


inconsciente, no for atendido, no haver separao ou, ento,
depois de uma forte negociao implcita, essa separao poder
ser dolorosa. O papel de qualquer pessoa que queira ajudar
consiste em compreender e resolver a situao, o que requer
muito tato e no to fcil.

papis (e no o menor) do testamento que a pessoa redigia


consistia em ajudar a pr seus assuntos em ordem e permitir
que ela sentisse que seu papel na terra estava cumprido. Podia,
ento, partir em paz. Pedir a um condenado morte que
expresse seu ltimo desejo, oferecendo-lhe um ltimo cigarro,
uma cena caricatural que esconde princpios mais profundos.

A negociao pode assumir formas muito sutis. Um doente


toma seus remdios escrupulosamente, nos horrios deter
minados, com gestos quase manacos, como se fosse uma questo
de conjurar a sorte atravs desse ritual. Um outro sente que lhe
falta fazer alguma coisa em sua vida ou que precisa resolver um
conflito familiar. Para partir em paz, o ideal no est nessa ou
naquela crena religiosa. O problema sempre muito mais
profundo que uma simples cultura superficial. J se pde ver
padres, que falaram do Reino de Deus a vida toda, ficarem
paralisados de angstia e completamente desarmados no
momento de passar para o outro lado do espelho. A experincia
cotidiana dos acompanhantes mostra que os que tm o
sentimento de terem vivido bem sua vida aqui na terra passam
pelo evento mais facilmente e em paz. Tudo se desenrola como
se cada pessoa houvesse recebido uma misso de vida e como se
o sentimento de misso cumprida fosse o melhor passaporte para
o alm. Ante o umbral ou com uma idade avanada, as pessoas
em geral tendem a analisar seu passado. Antes da hora, fazem
uma espcie de balano inconsciente. Portanto, bom, ante o
limiar, ajudar uma pessoa convidando-a a falar de sua vida e dos
atos praticados, e valorizar suas atividades.

Um velho lenhador no queria morrer. De fato, ele levou


seis meses para compreender que o inevitvel estava chegando
para ele. Na vspera de sua morte, aconteceu uma coisa que
mostrou sua famlia que ele a havia finalmente admitido. Essa
aceitao, com certeza, ajudou-o a fazer sua transmutao. O
indcio foi muito simples: o velho lenhador indicou um nome,
o da pessoa a quem ele legara suas madeiras e os terrenos que
ele explorava, e que ele tanto adorava.

O outro aspecto do perodo de negociao consiste em que


a pessoa, antes de admitir a idia da passagem, sinta-se em paz
consigo mesma, os outros e o mundo. No sculo 17, um dos

Outra forma de negociao implica os familiares. Ante o


umbral, a pessoa muitas vezes tende a ficar inquieta quanto ao
futuro de seus descendentes. Alguns filhos, alias, no hesitam
em dizer: No quero que v o c morra; sem voc, no vou saber
v iv e r . Sem uma aceitao de fachada por parte da famlia, o
trabalho no facilitado. Um homem, que perdera sua filha
de quinze anos por causa de uma doena incurvel, contou
que, at o fim, os parentes haviam mantido a menina na
ignorncia do desenlace fatal de sua doena. Esse pai contou
que, at o ltimo momento, sua filha parecia feliz. Nem por
um instante, ele considerou que sua filha podia perfeitamente
conhecer seu real estado e que ela pudesse ter fingido felicidade
para evitar que sua famlia sofresse. Aqui, no se sabe mais
quem negocia com quem. A mais dramatica situao, difcil
de resolver, aquela em que um filho deficiente vai ser deixado.
A paz fica difcil de ser obtida, na medida em que o agonizante
angustia-se com o destino do filho.

Voc descobre que a negociao pode levar a retardar a


data de uma partida. A situao inversa existe igualmente.
De fato, num casal, no raro assistir partida de um, depois
de o outro j ter feito o mesmo alguns meses antes. O livre arbtrio existe igualmente nesse sentido. Como bem disse
Jacques Brel em sua msica Os Velhos, quando um dos dois
se vai, o mundo pode se tornar o inferno para o outro, com o
sentimento de que no resta mais nada que valha a pena ser
feito nesta terra.
Outra forma de comportamento que se poderia associar
negociao aquela em que as foras de vida tentam ficar por
cima mais uma vez. Uma mulher vai, ento, quererse perfumar,
se maquiar, se fazer bela e atraente; um homem vai aplicar,
uma ltima vez, seus talentos de seduo sobre as enfermeiras.
Aqui se pode realmente falar do elo que une Eros e Tanatos.
As pessoas ao redor s vezes percebem e compreendem o jogo,
s vezes no; reminiscncia do velho medo de ser devorado
pela morte. Foi esse o caso de um jovem pastor, relatado por
Louis Vincent Thomas. Diante de uma jovem mulher
totalmente cheia de metstases, esse homem de Deus falavalhe, sangue frio, de imortalidade. Ento, ela o interrompeu,
para dizer-lhe que o amava. Assustado, o pastor fugiu.
O quarto estgio corresponde a uma depresso. Passadas a
revolta e a negociao, o agonizante sente uma imensa solido.
E ento que todo calor dos que o cercam deve intervir e, em
todos os casos, a que a arte de quem cuida requer o mximo
de delicadeza. A pessoa, sobretudo nos casos de cncer, est
em conflito com seu prprio corpo. A imagem que ela conserva
de si mesma est desvalorizada. Um simples carinho pode
contribuir para reconcili-la com seu corpo geralmente

emaciado, o qual, com o passar do tempo, tornou-se pesado


de suportar. Algumas palavras de valorizao para quem no
se aceita mais podem restituir-lhe a confiana.
Durante esse perodo, percebe-se o quanto o silncio
valioso. s vezes, algumas pessoas dizem que gostariam de
ajudar, mas, segundo elas, no se sentem capazes porque no
saberiam encontrar as palavras certas para expressar o consolo.
Mas quem disse que preciso falar? Vivemos numa civilizao
de ao, de rudos, de agitao. Temos de ser barulhentos para
nos sentirmos vivos. No dizer nada representa muito
freqentemente um incmodo. Assim, temos medo do olhar
do outro no expresso em palavras. No entanto, em harmonia
consigo mesmo, basta simplesmente que a pessoa se cale, para
ser mais intensamente e tornar tudo mais simples.
As relaes com aqueles que esto chegando s portas da
morte so geralmente mais despojadas. Muitas vezes s uma
questo de dizer: Estou aqui com v o c. M esmo que eu no diga
nada, viverem os ju n tos esses momentos. Podemos conversar, se voc
quiser, seno, vam os usufruir em siln cio a presena um do outro,
pois um grande prazer estar com v o c ... Aqui, naturalmente,
preciso vencer suas prprias angstias e pensar primeiro e
sobretudo no outro.
O quinto estgio por que passa o agonizante, quando sua
psicologia e seu ambiente o permitem, corresponde aceitao
do inevitvel. Para alguns deles, a aceitao pode at mesmo
tomar a forma da paz interior de quem compreendeu o que
est em jogo. Nesse estgio, muitas vezes acontece de assistirse a uma relativa melhora no nvel
da energia da pessoa. Trata
se da ltima comoo de vida. E como se a natureza, em sua

imensa sabedoria, houvesse previsto essa comoo, pois,


segundo os prprios mdicos, preciso energia para poder
morrer. Algum as vezes, os mdicos chegam mesmo a
administrar um tonico fortificante para que a pessoa possa
partir nas melhores condies.
Nem todo mundo consegue perfazer esses cinco estgios.
Alguns permanecem centrados no primeiro, o da denegao;
outros chegam at o da negociao. s vezes, a ordem dos
estgios pode ser mudada ou o ciclo pode se repetir. Uma paz
relativa se instala, mas depois, de repente, ocorre um brusco
retorno da raiva. Nada absolutamente previsvel nesse campo,
principalmente porque as pessoas volta interferem fortemente
atravs de sua relao com o agonizante. A prpria famlia
enfrenta as cinco passagens, especialmente quando se v
confrontada com seus prprios problemas, no caso de uma
longa agonia. As situaes conflituosas que opem o doente
aos membros de sua fam lia tambm tm um papel a
desempenharem sua possvel aceitao ou recusa. Um parente
pode se recusar a aceitar a idia da partida do outro e, assim,
complicar as modalidades. O agonizante sofre ao ver os outros
sofrendo. O acompanhante, ou simplesmente o amigo, tem
uma funo a cumprir aqui, tentando obter pelo menos uma
aceitao de fachada por parte da famlia.
Os problemas de herana no ajudam as coisas e podem
contribuir para uma negociao plenamente legtima... Na
verdade, h uma multido de casos diferentes, cabendo ao olhar
observador perceber e compreender com a sensibilidade do
corao. No pode haver dogmas em matria de acom
panhamento, como, alis, em nenhuma outra relao humana
realmente autntica.

A essa altura, poderamos tentar responder a pergunta


tantas vezes feita: deve-se dizer a verdade ao doente? De fato,
quem no conhece ou no quer conhecer o desfecho lgico
de seu estado ficar preso ao estgio da denegao ou ao da
raiva. Ser que se deve, ento, impor-lhe a realidade de sua
morte prxima ou, ao contrrio, como se fazia antigamente,
pr-se no lugar dele e mante-lo na ignorancia? Afinal, como
se costuma acreditar, guardar silncio evitaria ao doente o
sofrimento proporcionado pela conscincia lcida do
desfecho fatal. Os partidrios da verdade sem disfarces se
insurgem contra essa atitude que retira toda dignidade ao
doente e que sobretudo veta-lhe a oportunidade de ter em
seus ltimos momentos a chance de um desenvolvimento
importante em sua personalidade. A lucidez versus um
procedimento que se diz misericordioso... qual se deve
escolher?
A esse dilema aparente, os concidados franceses j
responderam, em forte maioria, que preferem ouvir a verdade,
custe o que custar. Quando interrogados, respondem que
preferem saber, a fim de poderem viver esses dias claramente,
desenganados. Para eles, trata-se de uma questo de dignidade.
Sentir-se humano e informado, e no apenas paciente, eis o
que exige a maioria das pessoas hoje.
Podemos acrescentar que, uma vez atingido determinado
grau de certeza quanto ao desfecho de uma doena, manter a
pessoa na ignorncia pode ser prejudicial pra ela. Afirmar,
contra toda expectativa, que: Voc vai sair dessa, os m dicos
ainda tm algum as cartas na manga \ o mesmo que alimentar
na pessoa uma negociao inconsciente que poderia perdurar.
Na verdade, a maioria das pessoas sente por si mesma o que

est acontecendo, as crianas igualmente ou at mais que os


adultos. O sentimento de que se vai morrer pode ser intuitivo
ou ser revelado atravs de sonhos. O fato de no se ousar dizer
a verdade, de agir como se, enquanto o interessado sabe muito
bem o que est havendo, cultiva um erro coletivo. O doente
pode, da mesma forma, sofrer com o silncio reinante,
perturbado apenas por olhares que dizem muito. A sua prpria
necessidade de transmutao, eis que ele tem de somar o
sentimento de perder toda dignidade, porque os outros sabem
aquilo que tentam esconder dele prprio. Ento, todo mundo
se pe a disfarar, a comear pelo prprio doente: Olhem,
hoje estou bem m elh or... estou m uito fe liz . Ele no quer que
ningum sofra sua volta. Bando de tolos, quando a urgncia
da hora exigiria que se ousasse encar-la de frente. Frente
frente com a morte, a vida adquire toda sua relevncia, toda
sua intensidade.
Mas ser que preciso, como afirmam os partidrios mais
firmes, dizer absolutamente a verdade, mesmo que o outro se
recuse a ouvi-la e diga isto em alto e bom tom?
Mareei, engenheiro de telecomunicaes, foi acometido de
um cncer. Ele se arrastou durante meses, violentamente
agredido por seu mal. Um dia, seu mdico o auscultou e, de
repente, disse-lhe a verdade nua e crua: ele atingira agora a
fase terminal da afeco; a cincia no podia fazer mais nada
por ele. Dentro de alguns meses, estaria morto. Dois dias depois
desse anncio, a enfermeira de planto encontrou Mareei em
seu leito, morto. A polcia concluiu que fora suicdio. Mareei
no queria ouvir a verdade. Sua estrutura psicolgica
provavelmente no lhe permitia assumi-la; ele preferiu encurtar
sua estada no mundo.

O caso desse engenheiro raro. Entretanto, sem chegar a


cometer o ato irreparvel, algumas pessoas caem em depresso
profunda, o que prefervel evitar. No bom dizer toda a
verdade de uma s vez, em geral basta simplesmente proceder
por meio de sugestes e questionamentos sutis. E ento, com o
ficaram seus problem as de sade, os m dicos lhe explicaram tudo?
J pediu para eles lhe darem o progn stico? Alguma vez v o c j
pensou na m o rte? ...
Questionar um doente sobre sua atitude face a morte
proporcionar, a partir de suas respostas, informaes acerca
do dilogo que se deve ter com ele sobre seu real estado. Em
80% dos casos, a verdade ser amplamente preferida; em 20%,
ser melhor ser prudente e deixar que se desenvolva e
amadurea o que tiver de ser. Nesta, como em muitas outras
reas, as posies extremas so sempre perigosas. Est claro,
segundo o que afirma a maioria dos interessados, que a
preferncia pende para o lado da verdade ou, pelo menos, da
informao com a mxima transparncia possvel.
Acompanhar tambm no ir contra as convices das
pessoas, nem mesmo pensar em convenc-las. Consiste
simplesmente (e j muito) em trilhar uma parte do caminho
com eles, dando-lhes, se possvel, uma qualidade de contato,
de calor, at mesmo de cumplicidade. As flores desabrocham
graas ao calor do sol, as almas evoluem graas ao calor de seus
semelhantes. A primeira virtude a se desenvolver aqui a
capacidade de ouvir... sem fazer comentrios.
Vale ressaltar aqui que, no quadro dos trabalhos desen
volvidos na Universidade Rosacruz Internacional, associada a
esse movimento de espiritualidade profunda que a Ordem

Rosacruz, AMORC, as cinco fases precedentes correspondem


a uma espcie de iniciao. Mvalimu Imara escreveu: "O ato de
m orrer a ltim a etapa do crescim en to. Trata-se, assim, de
lembrar que, diante da morte, defrontamo-nos tambm com
uma escolha. Podemos, como na Idade Mdia, consider-la
uma oportunidade de coroar uma vida inteira e, desta maneira,
dar-lhe um sentido por meio de um ato consciente do instante
vivido. Podemos, ao contrrio, sofrer a situao ou at mesmo
fugir. Confrontadas com a AIDS e o prazo derradeiro que
despontava no horizonte, algumas pessoas conseguiram, em
alguns meses, realizar um processo de desenvolvimento interior
infinitamente superior a tudo que haviam vivido ao longo de
todos os anos anteriores.
Mais precisamente ainda, os cinco estgios, que so
compostos de denegao, raiva, negociao, depresso e
aceitao, correspondem a um processo de despojamento
progressivo da pessoa. A denegao e a raiva, por exemplo,
refletem a reao de um ego terreno que no quer deixar de
ser. Como meio humano de desenvolvimento e distino, ele
tambm tem seus reflexos de sobrevivncia. Assim como o corpo
desenvolve reaes de salvaguarda, o eu, diante da perspectiva
de seu desaparecimento ou de sua transmutao provisria,
pinoteia. Primeiro, ele age como se fosse eterno, depois se
revolta, negocia e, por fim, se deprecia. O que vlido no plano
fsico das clulas tem sua contraparte no campo psicolgico.
A aceitao final traduz a profunda compreenso do
indivduo do fato de que ele no representa somente um ego
provisrio. O ser humano um algo mais que muitos
agonizantes devem perceber confusamente, mesmo que isto
seja incompreensvel para o intelecto. por essa razo que a
morte pode representar um tipo de iniciao.

A velha arte da alquimia mostra bem, em sua linguagem


singular, esse processo de despojamento e de crescimento
contnuo. A obra em negro ou nigredo est associada morte
ou noite saturnina. Nela, a matria-prima sofre uma putrefao
e uma calcinao, em preludio a sua transformao em um
estado superior. Claro que, neste caso, a matria-prima a
prpria alma que, confrontada com seu futuro, vai sofrer uma
transmutao sem precedente. Seguramente, no foi toa que
C. G. Jung viu nos smbolos alqumicos uma representao
daquilo a que ele chamou processo de individuao.
O ttulo deste captulo "Oacompanhamento de agonizantes.
No entanto, poderamos nos perguntar se intervir nos ltimos
meses de vida suficiente. A essa pergunta, a maioria das
organizaes tradicionais e espirituais j responderam,
explicando que a preparao para o bem morrer deve comear
quando o indivduo jovem e saudvel.
Nossa civilizao positivista excluiu do campo da ao diria
toda reflexo sobre a morte. Qualquer um que se dedicasse a
uma meditao di,ria sobre o assunto seria suspeito de ter mente
mrbida e mals. Agimos como se a vida e a morte fossem
irreconciliveis, ao passo que a mnima anlise superficial
demonstra que uma se nutre da outra, at mesmo que uma
tem sua fonte viva na outra. E possvel pensar, por exemplo,
no desenvolvimento do corpo, fazendo-se abstrao do
metabolismo que assiste a contnua troca das clulas gastas por
novas?
A menos que se comporte como uma inteligncia artificial,
estritamente dedutiva e que nunca se pergunta sobre os motivos
de seus atos, o ser humano sente necessidade de uma analise

indutiva que o leve s causas e razes primeiras de sua


existencia. As perguntas: Qual minha o rigem ? e Q ualser
m eu fim ? " fazem parte das interrogaes fundamentais sem
as quais o ser humano se perde no ativismo e na agitao
estreis. Ao se familiarizar com a idia de sua morte, ele acha
seu lugar dentro do universo imenso. Ele pesa o valor de suas
realizaes e de seus problemas, dos quais grande parte resulta
de seus estados de conscincia. O nascimento e o desen
volvimento, associados morte, podem servir de semente ou
de referncia, permitindo relativizar tanto as dificuldades como
as glrias em meio s quais evolumos. Mas h mais. Acostumarse a considerar que cada dia pode ser o ltimo familiariza o eu
com a idia de sua futura viagem. Isso contribui para manter,
sem dramatizaes, uma reflexo sobre a ontologia, a cincia
do ser e seu devenir. No apenas no se trata mais de um
processo mrbido, mas, como explica o professor Louis
Vincent Thomas: E absolutam ente correto dizer que se amamos
a vida mas no am am os a morte, porq u e no am am os realm ente
a vid a .
O interesse de uma concentrao na morte encerra, na
verdade, um paradoxo raramente reconhecido: isto traz alvio,
sabor e alegria verdadeira vida. Meditando regularmente sobre
sua prpria morte, o indivduo se despoja progressivamente
dos aspectos mais agressivos do ego. Ele enceta, bem cedo, um
processo de desapego. Mircea Elade relata que, no xamanismo
esquim, existe um tipo de iniciao pela qual o aprendiz,
instrudo pelo mestre, passa horas e horas em solido. Depois,
deve passar pela experincia da morte e da ressurreio msticas.
Ele cai morto e permanece inanimado por trs dias e trs
noites, durante os quais devorado por um enorme urso
branco. Ento, diz-lhe o mestre, o urso devorar toda sua

ca m e e o transformar num esqueleto, e v o c morrer. Mas reaver


sua carne, despertar e suas vestes voaro at v o c . O aprendiz
xam penetra assim nos mistrios de sua prpria morte e essa
tomada de conscincia far dele o intermedirio privilegiado
entre os homens e as foras invisveis da Criao.
Tambm em nossos pases ocidentais, certa familiaridade
com a morte era aconselhada antigamente. O pregador jesuta
Bourdaloue escreveu, no sculo 17: A lguma vez fizestes sobre
ela, cristos, no digo toda a reflexo necessria, mas algum a
reflexo? Agora mesmo, em que vos fa lo da m orte, pensais na
m orte ou pensais bem dela? Pensais nela atentam ente? Pensais
cristm ente? Pensais eficazm ente? Mas se no pensais nela, em
que pensais? E se no pensais nela presentemente, quando pensareis
ou quem haver de pensar p or vs? Feliz daquele que no espera
para pensar nela quando no hou ver mais tem po de fa z e-lo ; feliz
daquele que nela pensa em vida! assim que a morte, castigo do
pecado, ser para ns o remdio. Ela entrou no m undo p elo pecado;
mas se a considerarm os com o os santos, ela nos fa r entrar, com o
eles, pela graa, na eternidade venturosa que desejo para vs...
At agora, abordamos o tema do acompanhamento antes
da morte. Esse assunto habitualmente tratado pela psicologia
e pela medicina modernas, eventualmente pela filosofia. Em
seguida morte de uma pessoa, existe igualmente uma
possibilidade de acompanhamento ou de ajuda espiritual, feito
pelas civilizaes tradicionais e, sob forma intemporal, pelas
ordens esotricas.
O objetivo de determinadas cerimnias, como entre os doges
da frica, convidar a alma do morto a se elevar e deixar este
mundo. Os cantos, as danas e os ritos criam condies

favorveis a essa elevao. O ambiente dessas prticas se


exprime no efeito que produzem tanto no falecido como nos
vivos. Nesse sentido, elas favorecem o processo de luto da
fam lia atravs do estabelecimento, por algum tempo, de uma
relao simblica (e, em alguns casos, real) entre os dois
mundos.
No Tibete, para acompanhar o processo, o lama l ao ouvido
do morto o texto do Bardo Thdol. Quando no possvel
fazer a leitura na presena do corpo, ele toma o lugar do corpo
da pessoa e continua seu trabalho espiritual. No isl, os fiis
lembram ao morto os principais artigos de sua f, que ele tem
de conhecer para responder a um exame post-m ortem . Uma
histria relata que, na morte do Negus da Etipia, seu amigo, o
profeta Maom, fez uma prece pela paz de sua alma. Por causa
da distncia que separava a Arbia da Etipia, essa prece foi
repetida durante vrios dias aps o falecimento do Negus. Essa
prtica de preces e invocaes pela paz dos que partem possui
carter quase universal.
Antigamente, os cristos mandavam rezar missas durante
quarenta dias e, depois, uma um ano aps o falecimento. De
fato, na medida em que a alma da pessoa fica presente de trs
a sete dias nos locais onde viveu, os vivos podem favorecer sua
partida graas sua atitude mental. E bvio, porm, que uma
pessoa totalmente deprimida no momento da morte de um
ente prximo fica impossibilitada de ajud-lo, mesmo que
desejasse faze-lo. O sofrimento extremo pode vir da
incapacidade de suportar a ausncia ou do ceticismo em relao
imortalidade. A pessoa que, no mais ntimo de seu ser, no
tem absoluta convico da imortalidade da alma no pode
pretender auxiliar ningum, num plano em cuja existncia ela

no acredita. De maneira ligeiramente diferente, a pessoa que


sofre pela ausncia do morto tende a ret-lo, em vez de ajudlo. Os ritos e as atitudes externas no fazem nada. S a inteno
secreta conta. E mbora o lu to seja um a realidade inevitvel, a
melhor atitude poderia ser expressa em poucas palavras, assim:
V para onde d eve ir, pen etre na luz e na paz, voc, que rom peu
os vnculos com este m undo".
At hoje em algumas regies, como era costume antigamente,
faz-se o velrio do morto, cujo objetivo, s vezes mal
compreendido, consiste em criar em torno da pessoa um
ambiente harmonioso e enviar-lhe pensamentos de amor e
encorajamento. Em todo caso, longe de ser uma prtica
mrbida, o velrio deve servir a esse propsito. Segundo as
culturas, ele pode ser acompanhado de cantos e salmos, cujos
efeito s calm a n tes sob re as conscincias so bem conhecidos.
Via de regra, uma vela mantida acesa por um ou dois dias (o
tempo que durar o velrio). Durante esse perodo, entre alguns
camponeses, o costume antigo requer que todos os pndulos
dos relgios da casa sejam parados e os espelhos, cobertos; que
um ramo de alecrim seja colocado na sala do velrio e uma
jarra de gua, junto ao leito.
Cada um desses sinais altam ente significativos foi
interpretado de diversas maneiras. As supersties explicam
que os espelhos so cobertos para que a alma do morto no
fique angustiada por no ver sua imagem refletida. O recipiente
com gua permitiria que a alma se lave antes de partir. A
suspenso do tempo simbolizada pela parada dos relgios.
Um tempo que no tem mais nenhuma razo de ser no alm,
reino do eterno presente. O espelho coberto representa a
transio da autoconscincia para um outro estado. A gua

manifesta a idia da purificao da alma na ocasio da morte, e


a vela, sua imortalidade. As flores que tambm so colocadas
na sala mostram o futuro florescimento da alm a, sua
imortalidade e sua regenerao, ou seu retorno cclico a este
mundo. Seu perfume se espalha no ambiente como a alma em
sua onipresena. Seu murchar lembra a impermanencia de
todas as coisas neste mundo.
Resta, enfim, apresentar uma ltima forma de acom
panhamento, mais mstico, que transcende toda manifestao
externa. Consiste em utilizar o poder criador do pensamento,
de acordo com tcnicas de meditao. tambm possvel emitir
foras reconfortantes ao morto. Mas aqui poderamos fazer a
seguinte pergunta: sempre possvel ajud-lo desta forma? Se
representamos o mundo como uma hierarquia que tem sua
fonte no centro do Divino e que forma diversos planos at
chegar ao plano terreno, simples compreender intuitivamente
que os antepassados fiquem simbolicamente em alguma parte
entre o ser humano e Deus. Se, para eles, o perodo crtico
situa-se nos primeiros dias aps a morte, em seguida eles
devem passar a uma condio que ultrapassa as limitaes
terrenas.
Ao longo desse primeiro perodo, feito de claro-escuro, a
famlia terrena pode contribuir para a elevao dessa alma em
devenir, porque ela est ento participando simultaneamente
dos dois mundos. Uma vez passada essa fronteira, podemos
considerar que o inferior no pode mais ajudar o superior, ao
passo que o contrrio poderia acontecer. Disso decorre,
naturalmente, que o acompanhamento aps a morte s tem
razo de ser durante os trs ou sete dias que se seguem ao
ltimo suspiro.

(9 ito
Ele (ou ela) partiu para sempre, no posso mais m e com unicar
nem rir com ele {ou com ela) com o antes. .. Ele (ou ela) no pode
mais m e consolar ou p reen ch er em m im uma insatisfao. Sua
presena deixou de ser, com o se todo um m undo desm oronasse...
Procuro minha respirao, ele (ou ela) deixou com o que um grande
vazio em mim, o vazio do am or insaciado. Ele (ou ela) podia ser
o am igo (ou a amiga), o pai (ou a me), o esposo (ou a esposa), o
filh o (ou a filha). Ouem quer ele (ou ela) fosse, a cum plicidade,
o lao afetivo, consciente ou no, parece rom pido p or essa partida.
Terei de m e habituar nova situao, reconstruir um m undo sem
sua presena patente, apesar de que ele (ou ela) form asse boa parte
de m eu prprio m undo interior.
A esse perodo de desordem interior, de habituao e de
readaptao vida, que tem de continuar apesar de tudo,
chamamos luto, do latim luctu, que significa dor ou aflio
pela morte de algum. Os povos da terra o expressam de formas
aparentemente muito diferentes, at radicalmente diferentes.
Mas, antes de mais nada, num livro decididamente vinculado
espiritualidade, convm explicar uma coisa fundamental. Se
consideramos o ser humano segundo sua dupla natureza,
exterior e interior, percebemos que o luto coisa unicamente
da primeira. Quem sente uma carncia relativa separao?
Quem no pode mais se comunicar? Quem, enfim, est, por
sua vez, sujeito morte e transformao? O ser exterior, fsico,
material, claro! Limitado s percepes dos cinco sentidos,
ele no consegue conceber outras formas de existncia. Privado

da direo da dimenso espiritual, a morte representa para ele


um desastre irrem edivel, uma catstrofe csmica. O
desaparecimento do outro no manifesta apenas o fim de urna
relao afetiva, mas aponta-lhe sua prpria partida da terra. E
de espantar, ento,yque algumas manifestaes de sofrimento
,t
sejam histricas? E a no aceitao que gera o sofrimento, a
oposio rgida de um eu exterior exclusivamente entregue a si
mesmo.
O ser interior, por sua vez, no teme a morte. Evoluindo
perpetuamente no corao da luz eterna, ele est sempre em
contato com a Realidade Suprema. Nada de ausencia de
comunicao para quem est a todo instante em comunho
com todas as criaturas visveis e invisveis. Nada de carencia
afetiva numa esfera em que o Amor Divino abarca e transcende
todo amor das criaturas. Em suma, o problema do luto
definitivamente no se aplica aos dominios do eu interior. Disso
decorre que o iniciado saber elevar-se sobre o sofrimento do
luto, mesmo estando ainda ligado e relativamente sujeito ao
processo psicolgico do ser fsico.
Numa formulao totalm ente diferente, mas cujas
concluses convergem, o professor Sigmund Freud mostrou
que o inconsciente desconhece a morte. Nos sonhos, ele faz
o morto aparecer, para a pessoa em luto, rejuvenescido e com
roupa de festa, como quem diz: Veja s, ele est bem vivo,
jo v em e con ten te. Para m im , o inconsciente, a m orte no existe,
os m ortos guardam sua eternidade em m im . Um homem disse
o seguinte sobre o perodo posterior morte de seu pai: Nos
anos segu intes sua m orte, tive m uitos sonhos com m eu pai.
Ele saa de seu tm ulo, usando suas roupas costum eiras, chegava
em casa e eu fica v a m uito fe liz d e rev-lo. Ele dizia: Ah, com o

tive m ed o !, e eu espanava a terra que havia fica d o sobre seus


o m b r o s " . Se comparamos essas inform aes com as
declaraes de C. G. Jung, outro grande psiclogo que
explicou que o inconsciente o reino dos mortos, ento
podemos ter certeza de que o ser interior concebe tosomente a eternidade.

O luto do ser fsico


Se no se pode realmente falar do luto no que concerne a
dimenso espiritual do ser humano, este captulo no tem,
ento, nenhuma razo de ser. Isso, se no fosse o fato de ser
necessrio (at vital, em alguns casos) compreender o processo
de luto pelo qual deve passar o homem fsico.
Possumos hoje certa soma de conhecimentos em matria
de psicologia, os quais levam a crer que o luto seja um processo
necessrio ao equilbrio da pessoa que sofreu uma perda. A
sabedoria popular no usa a expresso estar de luto (por
alguma coisa), quando o desejo ou a expectativa de realizar
alguma coisa (uma viagem, uma festa, um projeto, etc.) morre?
Isso bem pode sugerir que o luto consiste em admitir separar
se do objeto de seus desejos.
Quando uma pessoa sofre um acidente cujas conseqncias
acabam na amputao de um membro (um brao ou uma
perna), a prtica prova que essa pessoa passa por um perodo
de depresso, nos dias ou meses que se seguem a essa perda.
Os mdicos falam do necessrio trabalho que o luto pela parte
amputada demanda. A vtima ter de aprender a viver sem
aquela parte de seu corpo e reconstruir uma vida adaptada a
essa ausncia.

No se diz que o pai, a irm, o filho, etc., so os membros


de uma famlia? Se a observao de um periodo de luto
necessrio e til quando da perda de um brao ou de urna
perna, ento, por analogia, a perda de um parente prximo
implica uma atitude bastante parecida.
Eis aqui um outro exemplo: os psiclogos h muito tempo
vm observando o estado mental de mes que acabam de trazer
um filho ao mundo. Eles notaram que, as semanas ou mesmo
nos meses seguintes ao parto, algumas mulheres passam por
um periodo depressivo. Aqui tambm, podemos levantar a
hiptese de um trabalho de luto. O feto, que foi valentemente
carregado durante nove meses, representa uma parte do corpo
da me. Foi ela que o nutriu. Ele extraa sua vida do sangue e
da respirao de sua me. O nascimento da criana corres
ponde, para ela, perda de uma parte fsica de si mesma, a
qual, no sentido prprio do termo, deixa um vazio. Via de regra,
o perodo depressivo no dura muito, mas h alguns casos
excepcionais nos quais a mulher, extremamente fragilizada,
chega a suicidar-se. Na verdade, nesta questo como em muitas
outras, o ambiente fundamental na orientao da natureza
da experincia.
Temos aqui exemplos de separaes fsicas comparveis ao
luto que parecem sugerir a necessidade de levarmos em
considerao esse processo. Conseqncias negativas, que se
seguem sua no consumao aps a morte de algum
prximo, orientam no sentido das mesmas concluses. Eis um
exemplo real: uma mulher h anos consultava um mdico aps
outro, porque as glndulas lacrimais no umedeciam mais seus
olhos suficientemente. Quando a medicina aloptica se provou
impotente, ela foi consultar um psiclogo. Graas anlise, o

psiclogo acabou desconfiando da existncia de um luto mal


resolvido. Um dia, a mulher perdeu seu animal de estimao.
Sofreu ento, com uma intensidade desproporcional, a perda
daquele pequeno companheiro e se ps a chorar como uma
fonte inesgotvel. Surpresa, reencontrou o dom das lgrimas,
perdido h tantos anos. O psiclogo conseguiu faze-la
lembrar que, na ocasio da morte de seu pai, ela tinha
reprimido as lgrimas e refreado toda manifestao de luto.
O terapeuta estabeleceu, ento, um relao de causa e efeito
entre a doena e esse luto mal resolvido. Ele viu na reao
extrema diante da perda do animal um substituto da perda
do pai. Concluiu, assim, que a cura da paciente s podia ser
alcanada pela resoluo do luto pelo pai, transferido para o
do animal de estimao. Trata-se aqui de um exemplo entre
milhares que parecem sugerir que o luto representa uma
energia psquica que perigoso negar ou reprimir.
Na verdade, numa grande parte da Terra, os povos
imaginaram ritos cujo objetivo consistia em facilitar a elevao
do morto. Alm disso, esses ritos podiam acompanhar o
processo de luto dos que ficavam. Segundo Alexandra David
Neel, os tibetanos desaconselham os vivos a chorarem os que
partiram para o outro plano. Eles explicam que o morto,
constatando o sofrimento que sua partida causou nos
membros de sua famlia, tendem a ficar em contato com eles,
em vez de se libertarem dos vnculos da terra. Nessa mesma
cultura, os cadveres das pessoas do povo eram antigamente
abandonados na montanha, a fim de que os lobos e os rapaces
os devorassem. Longe de mim a idia de ju lgar tais
comportamentos. Trata-se apenas de salientar que cada
cultura definiu seus prprios ritos, s vezes diametralmente
opostos aos de outros povos.

Nos pases norte-africanos, por exemplo, de bom tom


que mulheres carpideiras acompanhem o morto at sua
ltima morada terrena. Trata-se de mostrar o quanto era
importante para a familia e o grupo social aquela pessoa que
partiu.
A cultura ocidental pratica o luto h milenios. Seria fonte
de desequilibrio para a pessoa no outro plano, quer se goste
ou no desse costume, agir como se ela no existisse mais. Ns
no somos tibetanos. No entanto, necessrio insistir
veementemente no fato de que luto e lgrimas no so, ipso
fa cto , sinnimos de sofrimento. O indivduo esclarecido convive
com os processos inerentes ao seu ser fsico, mas no
prisioneiro deles. Ele no rejeita o processo de transio da
alma, que implica o desaparecimento do corpo fsico. E a
negao que gera a dor. Para usar uma imagem: o ser interior
observa de cima as reaes do ser exterior, mas no participa
nelas forosamente.

Alguns ritos de luto e seus significados


No Ocidente, onde a morte representa normalmente o
oposto da vida, a pessoa em luto veste-se de negro, o que j
no acontece na China, por exemplo, onde os habitantes se
vestem de branco. Entre os judeus ortodoxos de hoje, a prtica
consiste em rasgar uma ponta da camisa, smbolo do corte do
vnculo familiar que unia o morto e os que esto de luto por
ele. Essa ao, alis, tem origem na prtica dos hebreus do
Antigo Testamento, que rasgavam suas vestes. Entre os judeus,
muitas prticas bem diferentes so utilizadas, como aquela de
acender uma vela cabeceira do leito do morto, durante sete
dias. Quando algum morre, trs perodos de luto so

respeitados. O primeiro dura sete dias; o segundo, trinta e um;


o terceiro termina aps um ano do falecimento. Durante o
primeiro perodo, o praticante judeu no come carne, no bebe
vinho, no trabalha e no se diverte. Ele reconhece que o Eterno
deu e retomou, e o crente aceita a separao. A comunidade
compartilha dessa dor indo casa da famlia enlutada, para
recitar salmos e consol-la. Ao contrrio dos ritos cristos, o
caixo nunca entra na sinagoga e os ofcios regulares no so
alterados. No momento do enterro, o vivo ou a viva recita a
prece Kaddish. Na verdade, ela recitada durante todo o tempo
do luto. No dia do aniversrio do falecimento, um ofcio
religioso realizado no cemitrio.
H um determinado nmero de costumes que, tendo o
morto como destinatrio, tem por misso ajudar os vivos a
realizar sua prpria transmutao. Na maioria das culturas,
efetua-se uma toalete, embora inicialmente fosse apenas uma
prtica necessria manuteno da higiene do corpo. Em
alguns casos, a toalete feita por pessoas especializadas nessa
funo. No isl, obrigatrio banhar o corpo trs vezes. O
primeiro banho deve ser feito com uma mistura de gua e folhas
de bagas; o segundo, com uma mistura de gua e cnfora; o
terceiro, com gua pura. O vivo ou a viva pode executar os
banhos. Assim, Ali, genro do Profeta Maom, banhou, ele
prprio, sua esposa.
Em outras culturas, costuma-se vestir o cadver com suas
melhores roupas, maqui-lo e at mesmo, como na ndia, cobrilo de flores. O propsito de todas essas aes consiste em
apresentar o morto numa atitude jovial e bela que evoque a
imortalidade. Como vimos antes, hoje em dia, nos Estados
Unidos, no raras vezes o corpo embalsamado e igualmente

maquiado, visando ocultar a morte. Mais que isso, no se trata


mais de sugerir a imortalidade, mas de negar a morte. Em outras
partes, os cantos, as salmodias e as msicas, quando utilizados,
servem tanto para convidar o morto a se elevar s esferas etreas
quanto para amenizar a tristeza dos que ficam.
Os psiclogos conseguiram pr em evidncia o fato de que
no ver o corpo do morto pode representar, para a famlia,
uma dificuldade em reconhecer a morte. Assim, crianas que
perderam os pais num acidente de avio sofreram as seqelas
psicolgicas muitos anos mais tarde. Os corpos dos pais nunca
puderam ser encontrados. Para essas crianas, a ausncia dos
pais era algo irreal e sem vnculo com seu desaparecimento. A
morte ficou no campo do fenmeno terico, capaz de deixar a
porta aberta a todos os fantasmas possveis. Em alguns casos
de catstrofes areas ocorridas em pases estrangeiros, as
autoridades locais chegaram a financiar a viagem dos parentes
para que eles vissem com seus prprios olhos os escombros do
avio. Todo esse ritual visava ajudar o processo de luto.
Em alguns pases, como a ndia, o morto transportado
em caixo aberto ou sobre esteira, vista de todos. Na Idade
Mdia, procedia-se da mesma maneira na Europa. No raro,
cruzava-se com uma procisso indo para o cemitrio. Ela
acompanhava o corpo de uma pessoa, vista de todos. Em
outras palavras, a morte no era ocultada. Todo mundo podia,
portanto, entregar-se a uma meditao sobre a impermanncia
das coisas, ao cruzar com um daqueles cortejos.
Por que que hoje no se permite que uma criana veja,
por exemplo, o corpo de seu av, quando ela manifesta esse
desejo? Muitos testemunhos de adultos falam das frustraes

que sentiram, quando crianas, por terem sido impedidas de


ver o cadver. Inversamente, outros reclamam de terem sido
obrigados a ver uma coisa que lhes dava medo. Alguns diro
que a experincia pode ser cruel. A esses, respondo que
numerosas experincias provam que ocultar a morte no facilita
o luto nem a compreenso da criana. Ela pode, inclusive,
conservar as seqelas disso por muitos e muitos anos. Na
verdade, na maioria dos casos, a criana sofre silenciosamente
quando lhe ocultam a realidade. O silncio dos adultos a
emparedam dentro de seu prprio luto. Para ela, a morte
representa uma noo muito mais vaga do que para o adulto.
Em conseqncia, muito difcil para ela separar-se do ser
amado quando lhe impedem todo contato com o morto. Ao
passo que, bem preparada (isto , deixada de fora das angstias
dos adultos), a viso do morto pode ajud-la em seu
amadurecimento. Com a condio, claro, de que a deixem
escolher ver ou no. Mais uma vez, da atitude do ambiente
depender, via de regra, a reao da pessoa em questo. A
prtica mostra, com efeito, que, diante da morte, o ser humano
se apoia geralmente na presena da coletividade, que a ajuda a
suportar a provao. A outra face dessa moeda que essa
mesma coletividade tem um peso suplementar que pode
influenciaros comportamentos individuais.
Voltemos questo da viso do corpo. Hoje, em que
ocultamos a morte nos pases ditos civilizados, imaginar um
cortejo fnebre acompanhando um caixo aberto, com o corpo
do defunto vista de todos, seria considerado indecente.
Preferimos viver o fenmeno por procurao, nas telas da
televiso. Jornalistas, guisa de sensaes fortes, no hesitam
em filmar pessoas morrendo, no prprio local dos acidentes.
A televiso se deleita com imagens de chacinas. Mas isso uma

apresentao da morte, a um tempo, disfarada e apelando ao


voyeurismo do telespectador. Essa, sim, uma morte muito
catlica, que pode ser mostrada sem que ningum levante
as verdadeiras questes. Cruzar com um caixo aberto, na
esquina de uma rua, eis o que levaria o ser humano s suas
autnticas interrogaes. Por que a vida, se devo acabar entre
quatro pranchas de madeira? Mas poucas pessoas querem se
questionar sobre tais assuntos, numa poca em que o ativismo
predomina. Preferimos nos deixar entorpecer pela ao
desenfreada. A verdadeira preguia do Ocidente manifesta-se
da seguinte maneira: agir incessantemente do lado de fora, a
fim de evitar uma interiorizao meditativa sobre o sentido
ltimo da vida. Vivemos um perodo de tabu da morte. A viso
crua de um cadver considerada obscena (salvo na televiso).
No que se refere a esse assunto, preferimos nos comportar
como as avestruzes. At quando, o cortejo banalizado?
Assim tambm, as manifestaes de luto esto ficando cada
vez mais discretas e se tornando sinnimo de tradies
ultrapassadas. No entanto, antigamente na Europa (e ainda
hoje, algumas vezes), mandava-se celebrar uma missa no oitavo
dia, no quadragsimo dia e no primeiro aniversrio de
falecimento da pessoa. Observava-se tambm um perodo de
quarenta dias de luto, durante o qual a famlia vestia-se de
preto. O numero quarenta representa um ciclo completo de
afastamento, purificao e preparao, antes de se reintegrar
luz. A mulher muulmana tem a obrigao de observar o luto
por seu marido at quatro meses e dez dias. Na frica negra,
durante o perodo dos quarenta dias, o vivo ou a viva era at
mesmo proibido de falar. H um profundo esprito presidindo
a essas prticas: observar um perodo de adaptao nova
situao e mandar um sinal sociedade circundante a fim de

que ela deixe a pessoa em paz ou ento que compartilhe do


seu processo. Freqentemente, porm, o esprito vivificante
foi substitudo pela letra morta e essas
prticas tornaram-se

obrigaes cujo sentido se perdeu. E to espantoso que nosso


sculo rejeite as manifestaes de luto? Em alguns pases, como
tambm na Frana do sculo 19, as regras a serem respeitadas
eram to estritas que quem encurtasse seu luto tornava-se
suspeito de falta de respeito. J quem o prolongasse demais
era tido como marginal, mrbido ou mesmo agressivo para com
a coletividade. Por sua vez, as mulheres que voltavam a se casar
rapidamente eram tachadas de vivas alegres, de pouca
virtude.
Um exemplo da rigidez de algumas prticas. Um africano,
que no ia ao seu pas h muitos anos, foi at l por ocasio do
falecimento de seu pai. Para seu grande desespero, no pde
falar com sua me nessa poca, pois ela tinha de observar a lei
do silncio por um longo tempo. Ele teve de fazer novamente
a longa viagem Europa-frica alguns meses mais tarde, para
finalmente poder conversar com sua me. Segundo sua
declarao, a situao fora verdadeira e horrivelmente
frustrante. A est uma aplicao estpida e dogmtica de uma
prtica cuja nobreza de esprito inquestionvel.
Mas ser que devemos rejeitar as tradies? Certamente
que no, pois elas tm algo a nos ensinar. O luto representa
um perodo em que aquele que fica vai poder interiorizar a
presena do morto, a fim de faze-lo passar do mundo externo
material ao seu mundo interno subconsciente. Os mortos vivem
e tm um a parcela de eternidade em ns". Mas, para que esse
processo possa se realizar, o vivo deve admitir o desapa
recimento fsico e a sobrevivncia, pelo menos, na memria.

Trata-se de uma espcie de alquimia sutil. A pessoa que perdeu


um pai precisa se tornar seu prprio pai. Em outras palavras, a
dimenso paterna deve se exprimir nela mesma. H um filme
excelente que ilustra esse fenmeno, A Histna Sem Fim, que
a histria de um menino que perdeu sua me e cujo mundo
interior psicolgico desmorona, devorado pelo nada. Fantasia
(o nome desse mundo) s consegue se salvar quando o menino
d o nome de sua me im peratriz, que representa a
personagem principal. O filme, baseado num romance, bem
mais rico que isso, mas, em sntese, o que ele descreve, de modo
bem simblico, um processo de luto. A criana s consegue
conservar seu equilbrio quando assimila sua prpria me a
uma personagem que representa uma dimenso fundamental
da psique. Talvez seja muito interessante comparar essa
alquimia a determinados ritos morturios antropofgicos. Entre
alguns povos da Nova Guin, por exemplo, come-se o crebro
do morto, com a idia de assimilar suas caractersticas. Na
Amrica do Sul, o povo dos arvaques reduz a p os ossos de
seus chefes. Em seguida a essa operao, as mulheres e os
guerreiros da tribo fazem uma infuso com o p e tomam a
beberagem, guardando assim em suas entranhas aqueles que
foram, em vida, o objeto de sua afeio.
Para o mstico, a idia de que os m ortos vivem e tm uma
p a rcela d e etern id a d e em n s representa uma realidade.
Realmente, quem pode dizer que nosso campo de conscincia
se limite s percepes recebidas por nossos cinco sentidos e
aos pensamentos elaborados dentro de nosso crebro,
qualificado de superior? A conscincia objetiva, a psicanlise
j demonstrou que representa somente uma pequena parte da
nossa conscincia real. E teve de lutar muito, no incio do sculo
20, para fazer com que essa idia revolucionria fosse admitida.

No entanto, h milnios, os msticos foram mais longe ainda.


Afirmaram, e continuam afirmando, que a conscincia humana
no passa de uma nfima parcela de uma conscincia
infinitamente mais vasta, que interpenetra todos os seres vivos.
A conscincia objetiva , na verdade, apenas uma das muitas
formas de expresso dessa Conscincia. E sua ponta visvel e, de
algum modo, consciente de si mesma. Ora, esse imenso campo
de conscincia universal constitui, a um tempo, o local de
elaborao do futuro e a memria do passado, fundidos num
eterno presente. Em outras palavras, determinados nveis da
conscincia humana teriam acesso tanto ao passado como ao
futuro. A conscincia do morto se incorpora a esse campo de
conscincia mais vasto. Ou seja, os vivos esto a todo instante
em contato com os mortos, sem o saberem. Ns acreditamos
que somos ns mesmos a todo instante, afetados unicamente
pelos eventos do mundo objetivo. Em parte, isso falso. Um
pouco de humildade nos ajuda a perceber que podemos ser
afetados por outros nveis de manifestao, cuja existncia nem
sempre percebemos claramente. A conscincia do indivduo est
a todo instante se relacionando com a de toda a coletividade
viva, mas tambm com a dos que esto dorm indo. Isso no
significa que sejamos marionetes dessas foras, mas sim
plesmente que elas fazem parte dos elementos que se apresentam
nossa conscincia, assim como toda e qualquer informao
objetiva, que podemos ou no levar em considerao.
O processo de luto, nesse quadro que acabamos de
apresentar, duplo. Prim eiram ente, consiste em uma
habituao ao desaparecimento do ser fsico do morto e dos
contatos afetivos que o uniam ao enlutado. Em segundo lugar,
a questo admitir a passagem do morto para um plano de
conscincia diferente, no qual participam mortos e vivos, ainda

que num plano subliminal. Por conseguinte, "os mortos tm uma


parcela de eternidade em n s. Os psiclogos, via de regra,
ocupam-se apenas da primeira parte do luto, em casos de
situaes patolgicas. A segunda parte, at o presente, recebe o
acompanhamento e o apoio dos rituais religiosos ou es
piritualistas. Devemos admitir que, nos dias atuais, mais e mais
pessoas negligenciam ou mesmo negam essa segunda fase.
Poderia isso explicar o tabu que hoje envolve a morte? Sem o
reconhecer, nossa sociedade est sofrendo de um luto insatisfeito
- o luto por milhes de homens e mulheres mortos nas guerras
ou de velhice e doenas. Um luto no resolvido completamente
se rejeitamos a idia de uma existncia post-m ortem . Um dos
sinais de luto patolgico consiste em negar a morte. No
justamente isso que sonha em fazer nossa sociedade, a ponto de
os mais extremistas pensarem em congelar seus corpos na
esperana de que a cincia v ressuscit-los um dia?
Costuma-se dizer que perder um parente torna o indivduo
adulto. Isso quer dizer que a criana que h dentro de todo
homem ou mulher deve procurar em si mesma a fora de viver
por seus prprios meios. Ela deve se tornar o pai, a me e toda
a santa famlia. Nesse sentido, o primeiro luto por um parente
constitui uma espcie de iniciao, na medida em que faz a
morte entrar bruscamente no campo da conscincia. O evento
coloca cruelmente o ser humano frente a frente com a realidade
que dificilmente ele conseguiria continuar negando. Da em
diante, passa a existir, para o enlutado, um antes e um depois
da separao que geralmente no o deixa inclume, mesmo
nos casos em que a harmonia tenha prevalecido.
Da parte de alguns povos animistas, encontramos prticas
complementares em numerosas regies da terra. Elas
conservam uma funo de auxiliar no luto. Quando uma pessoa

acaba de morrer, costuma-se observar uma srie de cerimnias


bastante codificadas e de preces. Sacrifcios de animais so
realizados em honra do morto, em funo de seu nvel social.
Os membros da tribo podem tambm levar-lhe alimentos.
Trata-se de entrar em acordo com ele, atravs dessas aes, e
cair em suas boas graas. No caso de o protocolo sofrer algum
impedimento, esses povos temem que o morto se transforme
em demnio, venha assombrar os vivos e lhes traga doenas e
at a morte. Tudo isso diz respeito ao primeiro degrau das
crenas sobre a sobrevivncia da alma e a possvel inter-relao
entre os dois mundos. Contudo, podemos tirar da um
ensinamento mais sutil referente ao processo do luto.
Se fica uma controvrsia afetiva entre a famlia e aquele que
parte, essa pendncia pode perseguir o vivo por um longo
perodo, gerando remorsos, tristeza e frustraes. Quando
algum tem de partir (e os acompanhantes bem o sabem), existe
um interesse recproco em acertar velhas contas, no sentido
positivo. Caso contrrio, o morto pode se transformar num
demnio psicolgico para quem fica. Certa mulher declarou:
"Minha descoberta do principio de reencam ao m e ajudou m uito
quando m eu filh o morreu. Mas eu conservo um arrependim ento
[que a fazia sofrer visivelmente]: que ele tenha partido num
m om en to em que estvam os em co n flito . No momento da
partida, preciso que a famlia honre a memria do falecido e
cumpra as cerimnias honorficas, a fim de que no subsista
nenhum sentimento de ter esquecido alguma coisa. S se
morre uma vez, diz o provrbio popular. Razo de sobra para
que tudo seja consumado e que se parta em harmonia. Uma
nica chance dada para que as coisas sejam feitas
corretamente. Seno, a separao acontece como dois velhos
amigos que se separam sem dizer o quanto se amam.

Uma outra funo dos sinais que cercam o luto consiste em


restabelecer a harmonia onde a morte rompe a ordem das
coisas. A morte, para o ser fsico, marca a ruptura de todos os
vnculos e a intruso do relativo caos na conscincia dos vivos.
O luto, por seus ritos prprios, tende a reinstalar pouco a pouco
a ordem. Depois do enterro, em geral a famlia se rene para
uma refeio ritual. O falecimento de uma pessoa tende a cortar
o apetite e imobiliza os vivos na prpria atitude dos mortos.
Pelo alimento, demonstra-se que a vida deve continuar e reaver
seus direitos. Alimentar-se uma das funes primordiais, que
conserva a pessoa em vida e chama-a para a realidade fsica e
cotidiana. Quando a refeio feita em conjunto, o indivduo
posto ante seus deveres sociais, reforando os laos que unem
a coletividade confrontada com a morte de um dos seus.
No momento da divulgao de um falecimento, a pessoa
que recebe a notcia pode passar por diversas fases de
conscientizao, anlogas quelas pelas quais passa a pessoa
ao saber que est condenada. Primeiramente, todo seu ser se
orienta para uma denegao do acontecido: "O qu? No
possvel fu la n o ter m orrid o!. Receber a notcia da morte de
uma outra pessoa significa considerar a sua prpria. Mas como,
se todo mundo acha que seu ser fsico imortal! E de espantar,
ento, que a primeira reao seja tingida de incredulidade?
Mas, em seguida, podem vir a rejeio e a clera. Ento, Deus
e todos os santos da terra sero amaldioados, e s vezes at o
prprio morto que to covardemente nos abandonou. E ento
que a morte catica pode assumir toda sua dimenso, caso a
rejeio e o sofrimento que a acompanham adquiram uma
intensidade insuportvel. Em casos extremos, algumas pessoas
chegaram at mesmo a cair em coma profundo por vrias
semanas, a fim de esquecer sua dor cortando os circuitos.

No obstante, o papel dos ritos de luto consiste em reconciliar


familiares e amigos com a vida, e a experincia demonstra que
o falecimento de uma pessoa pode at ajudar os que ficam a
obterem certa paz.
O estgio seguinte v a emergncia de um tipo de depresso.
Os prantos ajudam ento a exprimir a emoo e o vazio interior.
Mas, como na maioria das depresses, o estado emocional se
torna instvel e verstil, com mergulhos no sofrimento seguidos
de relativas calmaras ou mesmo euforias efmeras. Perda de
apetite ou mesmo anorexia pode acompanhar o fenmeno, e o
sono se torna de m qualidade. A obsesso pelo morto pode
fazer emergirem sonhos; o inconsciente indicando ao
sonhador sua compreenso pessoal da morte. Em alguns casos,
a pessoa pode desenvolver um sentimento de culpa: "Porque
eu no estava l na hora em isso a con teceu ? Com certeza, eu
poderia ter a ju dado!. Assim confessou uma mulher, anos
depois da morte de sua me: "Eu m e culpo p o r t-la deixado
partir num hospital, to sozinha!. Na pior hiptese, a seguinte
idia pode assaltar o enlutado: "Por que f o i ele (ou ela) quem
partiu, p orq u e no eu ? . A culpabilidade pode resultar tambm
de relaes ambguas, baseadas em amor e dio simultneos
pelo agonizante. O tempo e a verbalizao do sofrimento
permitem o desapego necessrio ao retorno normalidade e
evacuao das energias psquicas negativas acumuladas. O
emprego de pensamentos positivos, apoiados no reconhe
cimento de suas prprias imperfeies (no caso de se ter tido
pensamentos de raiva em relao ao morto), um recurso que
no deve ser negligenciado.
Um dos lutos mais difceis de assumir , sem dvida, o da
criana falecida. Insuportvel, porque a criana representa uma
dupla promessa. Primeiro, a de v-la crescer, conversar com

seus pais e realizar a obra que constituir sua vida. Depois,


uma promessa de imortalidade para seus pais. O filho
representa em geral uma ddiva que os pais do ao mundo.
No incomum, alis, v-lo seguir as pegadas de seus genitores,
contribuindo assim para uma forma de imortalidade. Quando
a progenitura, carne de nossa carne, desaparece... nada mais
resta. A frustrao total; o sentimento de injustia absoluta;
o esvaecimento da vida, flagrante. Ao longo de diversas
conferncias, tive a chance de encontrar vrias mulheres que
perderam um filho. Nenhuma me pareceu ter ficado inclume.
Ningum est verdadeiramente preparado para esse tipo
de provao, pois num pas em paz (No Oriente Mdio, em
contrapartida, famlias inteiras foram dizimadas pela guerra)
via de regra so os avs que partem primeiro. O falecimento
de um descendente representa uma inverso da ordem
normal das coisas. Quando um ancio abandona o navio para
ir nadar nas guas celestes, sempre possvel invocar a
fatalidade e a sucesso natural dos eventos da vida. Aqui,
nenhuma fatalidade desponta no horizonte e as pessoas podem,
ento, revoltar-se vontade.
J que tocamos na questo dos ancies, talvez seja til notar
que, em muitos lugares do globo, as pessoas
ainda mantm, na
/
intimidade do lar, um altar dos ancestrais. E o caso, em especial,
do Japo e da China. Os japoneses usam o pequeno altar
budista, que abriga os retratos dos ltimos falecidos e o livrinho
onde est escrito os nomes de todos os ancestrais falecidos.
Parentes e amigos vo ali saudar essas almas, para as quais
contam-se os ltimos acontecimentos que envolveram a famlia.
Em alguns restaurantes vietnamitas, pequenos altares com
oferendas so dedicados aos ancestrais. Ali se acham tambm
as fotos dos avs.

Essa prtica remonta, na verdade, aos antigos arianos, que


praticavam o culto dos manes (os manes eram as almas dos
ancestrais), cujo sacerdote do lar era o primognito da famlia.
Naquela poca, os mortos despertavam medo. Era preciso,
ento, cativ-los. Essa religio dos ancestrais, porm, visava
tambm vincular os vivos a uma longa linhagem. Assim, graas
aos sacerdotes dos manes, a famlia podia se sentir um produto
dos que haviam partido. Uma grande cadeia de solidariedade
unia ento os vivos e os mortos.
No representaria a forma atual de pesquisa genealgica
uma necessidade inconsciente de vinculao do indivduo aos
seus ancestrais e, por meio deles, a Deus? Hoje, alguns velhos
lbuns de fotos da famlia preenchem uma relativa funo de
altar dos ancestrais.
Pode ser til conservar em casa um local consagrado
memria dos ascendentes: isto ajuda no processo do luto. Aqui
vo, ento, algumas dicas para se construir esse altar:
Arrume uma mesinha redonda ou quadrada, com mais
ou menos quarenta centmetros de lado (conforme voc
preferir o smbolo ou a forma do crculo ou do quadrado).
Coloque sobre ela suas fotos preferidas de seus parentes
falecidos.
Coloque tambm um castial com uma vela, que voc
acender em uma ou mais ocasies especficas do ano (no Dia
dos Mortos, se voc cristo).
Voc pode ainda acrescentar objetos especiais que
pertenceram a eles, flores e smbolos religiosos de sua escolha.

Voc poder se dirigir a esse local, que foi consagrado


por sua atitude de respeito, toda vez que sentir necessidade. E
voc que dar a esse local todo seu valor. Nunca deixe ningum
profan-lo. Essa prtica pode ajudar muito na ocasio de um
luto.
No raras vezes, as pessoas vo aos cemitrios para conversar
com a pessoa ausente (mas fazem isso mesmo?). Sem o saber,
esto aplicando a uma velha prtica milenar, datando da poca
em que se acreditava que as almas evoluam embaixo da terra.
Mas o cemitrio muitas vezes fica numa cidade distante,
principalmente no caso em que a famlia tenha se mudado para
outro pas. O altar dos ancestrais, por sua vez, tem a vantagem
de ficar no lar, ao alcance da mo. Sua presena ou sua
confeco pode ajudar no trabalho do luto, mas algumas
tcnicas de visualizao criativa podem igualmente contribuir
para minimizar o drama de um falecimento difcil.
Uma pessoa confessou que, depois da morte de seu pai,
no parava de pensar nele, at chegar obsesso. Foi-lhe ento
aconselhada a imaginar, durante vrias noites seguidas, seu pai
se elevando numa grande luz, e a se despedir dele. Aos poucos,
os pensamentos obsessivos desapareceram, dando lugar s
atividades cotidianas.
Com toda certeza, o luto de uma pessoa que no cr na
sobrevivncia da alma, de qualquer forma que seja, ser sempre
mais duro de viver. Para ela, a morte significa a ruptura
definitiva de uma comunicao e de uma presena. Nunca
m ais torna-se, ento, sinnimo de vazio insondvel e de
angstia. Assim, tudo o que puder coloc-la em contato com o
cotidiano ser vital para ela, tanto que alguns estudiosos

consideraram a instaurao de rituais laicos, cujas formas


poderiam se basear nas grandes leis da psicologia. Mas, na
verdade, para essa pessoa, o retorno s contingncias da vida
que vai anestesiar o sofrimento. Quanto mais identificamos as
pessoas com seu corpo fsico e as reaes fisicoqumicas de seu
crebro, mais completo torna-se para ns o seu desaparecimento.
Parece que as mulheres atravessam melhor que os homens
os processos de luto, porque elas falam mais espontaneamente.
O homem tambm engole mais suas lgrimas, porque em geral,
desde a mais tenra infncia, ele aprende que homem que
homem no chora. No entanto, hoje sabemos que o riso, a
verbalizao, a raiva e as lgrimas so alguns dos meios de
expurgar uma energia psquica que, sem isto, tomaria carter
destrutivo. Ento, chore o quanto quiser, escondido ou s
claras. A Dra. Elisabeth Kbler-Ross, para ajudar a solucionar
situaes de luto no resolvido, dava uma almofada a cada
participante de seus seminrios, para que ele descarregasse sua
violncia no pobre objeto, socando-o. Isso, no fim, desembocava
nos gritos e nas lgrimas.
Uma psicloga, que cuidava de uma unidade de tratamentos
paliativos, disse que s vezes tinha a impresso de que se poderia
afogar nas lgrimas dos que ficavam. A cascata de lgrimas
podia dar a sensao de ser inesgotvel, mas, na verdade,
segundo ela, havia sempre um fim para as lgrimas aliviadoras.
Os que sofrem sem possibilidade momentnea de consolo so
os que se recusam a chorar, mesmo sentindo necessidade. O
choro representa uma funo psicolgica de descarga. Seria
to tolo querer passar sem ele quanto privar-se de rir. Isso faz
lembrar o famoso debate: Jesus ria?. Debate que, no caso do
pranto, no teria razo de ser, visto que a passagem do Novo

Testamento sobre a ressurreio de Lzaro mostra Jesus


chorando a sina de seu amigo, que ele vai ressuscitar alguns
instantes depois.
Contrariamente a uma idia muito difundida, proibido,
no isl, anunciar um falecimento bradando pelas ruas e s
portas das mesquitas, e se derramar em lamentaes. A
propsito, no se deve confundir a cultura rabe com a
muulmana. O prprio Maom assim se expressou: A m orte
sofre gritos e lam entaes que o vivo sola por causa dla [ ...] A
m orte chorada em voz alta recebe um castigo equivalente. Numa
outra ocasio, acrescentou: Separo-m e de toda m ulher que solta
gritos, arranca os cabelos ou rasga as vestes. Um pouco de
dignidade, que diabo! E preciso que se diga que, na poca do
profeta, o povo tinha urna forma um tanto escandalosa de
manifestar sua dor. Algumas pessoas urravam, rasgavam as
roupas, rolavam pela terra e cobriam o rosto com terra ou cinzas.
Outras chegavam at a ficar sem comer por um longo tempo,
proferindo queixas dirigidas a Deus.

tronco comum e geral (se bem que no exaustivo) dos costumes


imaginados pelo ser humano, no curso dos milnios. Podemos
facilmente deduzir da que, se encontramos essas constantes
to amplamente difundidas, porque provavelmente possuem
um sentido. Poderia significar tambm que elas so teis a todo
homem e a toda mulher no processo de amadurecimento de
seu ser, ao se confrontarem com o falecimento de um ente
querido.
1. A primeira atitude de luto consiste em observar um tempo
de habituao ausncia do outro e ao cultivo de sua memria.
Esse perodo varia, segundo os povos, de vinte e quatro horas
a trs anos. Alguns casos extremos podem durar toda a vida.
2. Esse tempo algumas vezes acompanhado da ao que
consiste em raspar os cabelos e a barba ou, ao contrrio, deixlos crescer, bem como s unhas.
3. Uma roupa especial, preta ou branca, indica comu
nidade que a pessoa est de luto; em alguns casos, usam-se
roupas velhas. Em alguns pases orientais, proibia-se
antigamente o uso da seda. Em culturas mais tribais, costume
pintar uma parte do rosto ou do corpo.

No entanto, o muulmano no efetivamente proibido de


chorar. Quando seu filho morreu, Maom declarou: Os olhos
vertem lgrimas, o corao est pesado, mas nada dizem os que
ofenda Deus. Estamos m uito aflitos com tua perda, Ibrahim l.
E por ocasio da perda de sua neta, respondeu assim aos
companheiros que o repreenderam por chorar: Estas so as
lgrim as da com paixo que Deus coloco u no corao de seus
servidores. Deus se com padece dos que tm com paixo.

4. Um perodo de jejum pode ser observado; assim, o vivo


se associa, por algum tempo, ao morto, pela suspenso de uma
importante atividade vital. Contudo, enormes banquetes
podem se seguir a esse jejum ou, na ausncia deste, encerrar
as solenidades funerrias.
'

Agora possvel apresentar uma espcie de sntese dos


diferentes ritos de luto que podem ser encontrados por todo o
planeta, com infinitas variantes. O que se segue representa o

5. Cerimnias so realizadas mais ou menos repetidamente,


em perodos determinados (aps trs dias, sete dias, quarenta
dias, um ano, etc.).

6. Via de regra, a comunidade participa dos rituais,


principalmente no caso de falecimento de pessoas importantes,
quando toda a coletividade fica de luto. Os enterros catlicos
antigos contavam com a participao de uma importante
personagem eclesistica. Nos pases ortodoxos e rabes, usavase o servio das carpideiras.
7. Em datas regulares, festas so dedicadas comemorao
da memoria dos mortos. Trata-se a, de maneira mais ampla,
do culto dos mortos. O nosso Dia de Todos os Santos,
seguido do Dia dos Mortos, representa essa prtica. Se, por
um lado, a morte se tornou assunto tabu nas sociedades
modernas, por outro, nenhuma coletividade consegue esconder
totalmente o fenmeno. Sempre haver um perodo especial
do ano durante o qual o contato entre os dois mundos ser
tolerado (ainda que considerado irracional). Nessa poca, alis,
os anglo-saxes festejam o H alloween. Uma bela oportunidade
de ver pessoas fantasiadas de esqueletos perambulando pelas
ruas. Na realidade, o Dia de Todos os Santos e o H alloween
tm origem na festa celta de Samain, de que j falamos. O ano
novo dos celtas caa no dia Ia de novembro, e a noite
representava um perodo durante o qual o mundo dos vivos e
o dos mortos podiam se comunicar.
Se a religiosidade parece estar em baixa na era moderna (82%
dos franceses disseram-se catlicos, em 1989, mas apenas 12%
deles disseram ser praticantes), parece que o culto dos mortos
conserva um valor inabalvel. Para se convencer, basta lembrar
os escndalos que se seguiram s diversas profanaes de
tmulos, em Carpentras e outros lugares. O esprito religioso,
que comeou provavelmente com o culto dos mortos, conserva,
portanto, este culto como um ltimo baluarte na era moderna.

8. Outro ponto comum, no que tange o luto, consiste em


erigir um monumento concreto em memria do morto. Esse
tanto pode ser o tmulo como a foto colocada no altar budista.
9. E, claro, h as diversas manifestaes do sofrimento,
mais ou menos reprimidas segundo as culturas. Os judeus,
por exemplo, recusam-se a ocultar essas emoes fundamentais,
enquanto os tibetanos so mais inclinados a abaf-las.
Em nove pontos, ficamos diante da grande maioria das
prticas relativas ao luto. Sem sombra de dvida, as variantes
so inumerveis. Mas com um pouco de perspiccia, possvel
inseri-las quase sistematicamente num desses nove pontos.
Tambm verdade que algumas sociedades suprimem algum
desses aspectos (entre ns, o luto no causa nenhuma reao
na pele...), enquanto outras os incrementam. At a metade
do sculo 20, quando um homem morria na ndia, sua viva
tinha de se jogar sobre a pira onde o cadver estava se
queimando.
A essa altura, poderamos nos fazer a seguinte pergunta: se
a alma possui o dom da imortalidade, poderia aquele que
passou para o outro lado do espelho ajudar os vivos em seu
perodo de luto? H. Spencer Lewis aborda o assunto no livro
As Manses da A lma. Explica ele que o morto, por alguns
dias, permanece junto a seu corpo e assiste s cenas do luto da
famlia. A nica coisa que ele pode fazer ento enviar ondas
de conforto aos seus entes queridos. Os vivos recebem
impresses sob forma de intuies ou de pensamentos, que
eles acham que so seus, mas que so inspirados pelo morto.
Essas afirmaes de um grande iniciado poderiam, talvez,
suscitar riso nos livres pensadores. No , porm, incomum

encontrar pessoas muito racionais contando que, na ocasio


em que perderam um amigo, ao entrarem na sala onde o corpo
estava, sentiram ali uma poderosa presena, que eles atriburam
ao amigo falecido. Vivos e vivas tambm costumam contar
que sentiram, por alguns dias, a presena de seu cnjuge junto
a eles.
C.
G. Jung, em sua autobiografia, relata sua prpria
experincia: "Naquela noite, no conseguia dorm ir epensava na
m orte sbita de um am igo que tinha sido enterrado na vspera...
De repente, tive o sentim ento de que ele estava em m eu quarto.
Tive a impresso de que ele estava ao p da m inha cam a e m e
pedia para acom panh-lo. Segui-o em imaginao. Ele m e levou,
ento, para fo ra da casa... a t chegarm os casa dele. Ele m e fe z
entrar em seu escritrio. In dicou-m e o segundo volu m e de uma
srie de cinco, encadernados em verm elho, que se achavam no alto
d e um a estan te em sua b ib lioteca . D epois disso, a viso se
esvaneceu.
Esse evento p areceu -m e to estranho, que, na manh seguinte,
f u i a t a casa da viva de m eu am igo e p ed i-lh e que m e deixasse
entrar na biblioteca dele, para uma averiguao. Realmente, l
estavam, no alto da estante, os cin co volum es encadernados em
verm elho. Subi no tam borete para ler os ttulos. O ttulo do
segundo volu m e de Zola era: "O Voto de uma M orta. O ttulo
era m uito significativo em relao ao que se passara.
Claro que para ser totalmente, seno imparcial, ao menos
objetivo, bom explicar que a ortodoxia, em matria de
psicologia, rejeita toda possibilidade de contato com os mortos.
(Esse, alis, foi o pomo da discrdia entre Jung e Freud). Para
eles, sonho ou sensao de presena de um morto so produtos

da obsesso de uma conscincia que exterioriza seus desejos,


at a alucinao. A realidade est longe de ser simples nessa
rea, como em tantas outras. Uma prova? A histria relata que
uma das canes de Dante Allighieri (autor de A Divina
C om dia) foi encontrada por seu filho, graas a um sonho.
Nele, ele viu seu pai indicando-lhe um quadro atrs do qual
ele prprio havia escondido o texto, antes de morrer. Arquivos
de criminologia tambm reportam histrias em que o assassino
foi apontado por sua vtima durante um sonho ou de uma viso
intencional, recebido por um parente.

Luto e simbolismo astrolgico


O tema da morte expressa-se na astrologia atravs de trs
signos: peixes, cncer e escorpio (todos signos de gua). O
tema do luto, por sua vez, tem uma relao com os signos de
cncer e peixes. Cncer est relacionado ao passado, histria,
ancestralidade. Encerra, portanto, o culto dos ancestrais e a
memria. Ocupando a posio mais baixa do Zodaco, cncer
simboliza a tumba, to associada ao dilogo com os mortos e
interiorizao no recolhimento. Domiclio da Lua (seu local
de predileo), ele representa a iluso do luto. Os reflexos da
Lua, grandes ilusionistas, iluminam a noite com seus raios
enganadores. Da mesma maneira, o luto representa a iluso
de uma conscincia objetiva (a Lua) que cr na separao. Ela
fica entregue sua prpria ignorncia sobre o que a morte
realmente significa. A memria que acompanha a lembrana
tambm simbolizada por este signo.
J o signo de peixes, associado dcima segunda casa do
Zodaco, representa a dor e a provao da separao, quando
o luto tarda a se desfazer. Pode tambm representar o estado

psquico da pessoa enlutada, instvel e emocionalmente


fragilizado pelo acontecido. As lgrimas, lquido salgado como
o oceano onde nadam os peixes, fazem parte do simbolismo
deste signo.

(9

contato com

oj

/t w z I o j

O contato com os mortos um grande problema que muitas


vezes ops ocultistas e espritas. Os primeiros, seguros de sua
cincia, alegam que os segundos, contentando-se com fatos
desordenados, correm o risco de enganar a si mesmos. Todo
mundo conhece, hoje, o aparato espirita: das mesas que giram,
interveno de um mdium, psicografia, manifestaes de
ectoplasmas, aos aparelhos eletrnicos (gravadores, televisores)
que fizeram sua apario mais recentemente, em substituio
aos mdiuns a modernidade obriga...
O fenmeno esprita surgiu no sculo 19, nos Estados Unidos,
em pleno perodo do vo do romantismo. Quando o ser humano
toma conscincia da morte alheia, sente necessidade de
estabelecer um contato com ele ou ela, aps sua partida da o
espiritismo. De l, o movimento propagou-se por toda Europa,
e muitos estudiosos da Sociedade Real da Inglaterra, como
tambm da Frana e dos Estados Unidos, debruaram-se sobre
a questo. Citamos, de memria, Sir Oliver Lodge, o coronel de
Rochas, Camille Flammarion, o professor Newbold, William
James, um dos pais do pragmatismo...
Se as tentativas de contato com os mortos sempre existiram,
o sculo 19 assistiu ao seu desenvolvimento em grande escala.
Hoje, curiosamente, h duas correntes espritas que, por
lgica, deveriam se excluir mutuamente. Uma adepta da
doutrina das reencarnaes sucessivas; a outra, no.
Poderamos questionar qual a razo dessa divergncia de
opinies, se a informao, afinal, vem realmente dos prprios

mortos. que, na verdade, a questo no se deixa abordar


assim to facilmente, e presume que se tenha respondido a
mais que uma simples pergunta: Podem os mortos realmente
falar com os vivos? Qual o estado da alma depois da morte?
De qual natureza a conscincia se reveste depois da passagem?
Sabemos hoje que 90% das manifestaes de espritos so
coisas de charlates que querem somente abusar do pblico,
por dinheiro. Alguns mdiuns famosos, como Edouard Kelley
e seu parceiro, John Dee, no final do sculo 16, depois de terem
produzido uns tantos fenmenos surpreendentes, foram pegos
depois em plena trapaa. E para se ver o quanto o terreno
minado. Entretanto, restam 10% de fenmenos autnticos at
hoje inexplicados. Temos, ento, o direito de perguntar: em
que consistem realmente esses fenmenos?
A questo do espiritism o delicada. A experincia
demonstra que, a partir do momento em que se toca nas
possibilidades de contato com nossos entes queridos falecidos,
as reaes adquirem postura passional. A ento, a vontade da
pessoa vai se contentar mais em fazer perguntas do que em
questionar opinies que, alis, pertencem mais ao campo do
emocional que do racional.
Comecemos lembrando-nos da aventura de Ulisses, narrada
por Homero na "litada. Na passagem da invocao dos mortos,
ele fala de "cabeas sem fo r a s. As sombras tambm parecem
ignorar a peregrinao dos vivos. Assim, a me de Ulisses, uma
das sombras invocadas, fica feliz ao saber que seu filho ainda
vive, como se esta informao no tivesse chegado at ela antes.
Do mesmo modo, testemunhos colhidos de pessoas que
afirmam ter feito contatos deixam transparecer que as almas

parecem singularmente voltadas para o passado. Aqui est


um relato surpreendente, de uma mulher que afirmava ter
tido vrios contatos com os mortos: J lia era um a velha
am iga de m inha me, um a am izade de lon ga data. No sei
dizer com o se esta b eleceu o con ta to en tre ns. No creio qu e
tenha sido eu, p orq u e nunca p en sei nela e no tinha nenhum a
cu riosid ad e nem interesse; f o i ela qu e se im ps a m im . Ela
estava preocu p ad a e chorosa; p ed iu -m e para qu e eu entrasse
em con ta to com sua nora (viva) e qu e fo sse recuperar, em seu
ja rd im , p er to d e um a caban a, um p a c o te q u e ela tin ha
en terra d o , em b ru lh a d o em a lgu m a coisa branca. Caixa,
dinheiro, jias, cabana e local, tudo m e f o i bem in dicado; eu
d everia recu p era r essas coisas. Co?no recu p era r essas coisas?
C omo resolver esse p roblem a ? V ao en con tro dos vivos e digalhes q u e sua m orta lhes transm ite um a m en sagem ; eles vo n r
na sua cara e vo tach-la d e louca. Mas tam bm p ossvel
qu e o atrativo do ga n h o os fa a irem p rocu ra r nesse lo ca l.
Mas s q u e o p rob lem a no f o i esse. A m eu ver, m esm o se
inventssem os aparelhos para contatar os m ortos, isto no daria
em nada. Os con h ecim en tos qu e os m ortos possuem so os que
eles tinham ao partir, e param a, no avanam mais. Para
eles, h algu m a coisa d e estagnao, p ois J lia ignorava que
seu terreno tinha sido vendido, que p erten cia agora a um a outra
pessoa e que era im possvel ir a t l sem im ensas com plicaes.
Assim, segundo esse testemunho e muitos outros, tudo
indica que os mortos existem em estado esttico, no estado de
sua ltima obsesso. Parecem saber apenas do passado, como
se existissem em forma de memria. Para eles, o tempo parece
ter parado e os assuntos dos vivos lhes so desconhecidos. Mas
tratar-se-iam realmente de pessoas mortas ou de uma simples
vibrao planando na atmosfera ambiente?

Veja este outro testemunho, de uma pessoa contatada por


uma senhora falecida havia alguns anos: Vi a casa dela, tal
com o era antes de sua morte. Eu via tudo aquilo e ela m e falava;
estava preocupada com uns papis que ela tinha escondido sob o
telhado de um a cocheira, atrs da casa. O curioso nesta histria
que a cocheira no existia mais, um trator tinha sido passado l e
tinha nivelado tudo. Isso f o i fe ito depois de sua m orte; logo, ela
ignorava a coisa toda.
O esprita invoca, na maioria dos casos, a interveno dos
mortos para explicar certas manifestaes paranormais. No
uma concluso um tanto precipitada, em vista do que outras
cincias conseguiram verificar? Aqui vo algumas pistas para
reflexo, que podemos indicar ao leitor imparcial e em busca
da verdade.
Que dizer das casas ditas assombradas, por exemplo? A
experincia provou que o pensamento dos seres vivos pode
impregnar tanto um lugar, que uma pessoa sensvel pode,
depois de anos, captar as cenas que se desenrolaram ali.
Sabemos tambm que a emoo humana, em momentos de
violncias intensas ou de traumatismos, capaz de carregar
uma casa de vibraes desagradveis, at mesmo, e sobretudo,
inconscientemente. A origem das manifestaes de espritos
causadores de rudos ou p oltergeist situa-se quase sempre
nas emoes desgovernadas de deficientes mentais. Anos depois
da morte de uma pessoa, nada impede que as ltimas obsesses
que ela tinha pouco antes de seu falecimento impregnem por
muito tempo o lugar de suas perambulaes. Trata-se de um
fenmeno psquico que nada tem a ver com a suposta presena
de um morto. O testem unho que se segue pode ser
interpretado dessa maneira.

Vivi numa casa durante trs anos. Muito antes da minha chegada,
havia no m eu quarto uma presena. Barulhos nas paredes, armnos
habitados, todo m undo fech a va as portas instintivamente. Passos de
uma pessoa subindo escadas de madeira, quando, na verdade, elas
eram de cim ento coberto com tecido de tapete. D eslocamentos de
objetos... Cada manifestao importante precedia um acontecimento
marcante de nossa vida. Manifestao m uito fo r te antes da nossa
mudana, quando estvam osprocurando outra casa. Na ocasio da
assinatura do contrato da que tnhamos escolhido, tudo cessou. Mais
nenhum a presena fo i sentida, desde a assinatura at a mudana .
E que dizer da apario de fantasmas (fenmeno bem mais
raro do que nossos espectros poderiam nos levar a crer, e
percebidos somente por pessoas muito sensveis psi
quicamente)? A alma, por definio, corresponde a um
princpio totalmente abstrato, que no tem nada a ver com a
m atria. Dessa lei decorre que os ocultistas de vrias
civilizaes consideraram que deveria existir um mediador
sutil entre a alma e o corpo. Ele permitiria alma agir e, assim,
animar seu invlucro material, no curso de uma vida. Com a
morte, esse intermedirio, til unicamente durante a vida
material, no teria mais, portanto, nenhuma razo de ser.
Sendo um princpio composto, assim como o corpo fsico,
ele vai pouco a pouco se desagregando, para retornar matriz
de onde saiu. O fantasma, quando percebido (no com os
olhos, mas atravs de um sentido sutil), corresponde, ento,
simplesmente a uma concha vazia, a cuja existncia os
cabalistas fazem referncia, e que est em vias de de
composio (provavelmente mais lenta, alis, que a do corpo
fsico). Isso no tem nada a ver com a alma de um morto.
Em todos os casos de interveno com manifestaes
materiais (pancadas, aparies), eventualmente poderamos

pensar tratar-se de mortos recentes que ainda con serva ssem


alguns meios de ao na terra. Mas, depois de certo tempo, a
alma no volta mais terra; ela rompeu as amarras. O astrnomo
Camille Flammarion, que estudou essas manifestaes, extraiu
delas esta concluso, entre outras: A sapariese m anifestaes
so relativam ente freq en tes nas horas que se seguem im edia
tam ente ao fa lecim en to . Seu nm ero dim inui m edida que se
vai afastando daquele m om ento, e atenua-se a cada dia que passa.
As lendas populares muitas vezes im aginaram esses
fantasmas em form a de grandes lenis brancos, arrastando
correntes. Tomo de outra pessoa a interpretao to potica
dessas co r ren tes. Elas seriam o smbolo do apego desses
fantasmas s vibraes mais baixas da energia psquica, to
baixas que dizemos que eles esto presos terra.
Podemos tambm questionar o perigo de uma invocao
dos mortos. Afinal, o que chamado ou contatado? Ao lermos
os escritos espritas, temos de admitir que, quando personagens
famosos so invocados, seus discursos parecem-se mais com
uma conversa no balco do bar da esquina do que com a idia
que fazemos do discurso de tal sumidade. O segundo elemento
que conseguimos perceber que pessoas sob efeito de lcool
ou de drogas parecem ter a curiosa capacidade de interagir
com a experincia.
Relatrios de pesquisas psquicas fazem pouco caso dos
conhecimentos transmitidos atravs de um mdium. Ora,
acontece que, na sala, h sempre apenas uma pessoa que est
ao par dos fatos relatados, enquanto o assim chamado mdium
os ignora. Disso se deduz geralmente a interveno de um
morto, algum prximo pessoa em questo. Contudo, no
caso de contato atravs da conscincia de um mdium, antes

de inferirmos a presena de um morto, poderamos n os


perguntar se a no se trataria de um fenmeno de telepatia.
Enfim, o ltimo tema que d o que pensar, e que menos
conhecido do grande pblico, est nas informaes trans
mitidas por pessoas mortas, admitindo-se que esse contato
realmente exista. Ns admitimos o fato de ser possvel a uma
pessoa viva elevar-se at a alma de uma pessoa morta para obter
informaes dela (isto no a mesma coisa que a teoria esprita,
segundo a qual os prprios mortos que descem at nosso
plano terreno). A experincia apresentada por institutos de
pesquisas psquicas prova que os mortos referem-se, via de
regra, apenas a acontecimentos de seu passado terreno.
Curiosamente, eles nada dizem sobre sua experincia no alm
e nem sobre uma projeo no futuro. Eles parecem mesmo
totalmente ignorantes do que se passa na terra, no presente.
Veja esse um testemunho relatado por Maeterlinck, no livro
"A M orte". O Dr. Hodgson fora um cientista, membro da
Sociedade Americana de Estudos Psquicos. Aps sua morte,
seus colegas tentaram, claro, estabelecer contato com ele. Ao
longo de vrias sesses, ele respondeu a vrias perguntas mais
ou menos ntimas, e suas respostas pareciam perfeitamente
corretas. De repente, William James, eminente pesquisador,
perguntou-lhe: "Hodgson, o qu e v o c tem a nos dizer sobre a
outra vida?" O contato, ento, mostrou-se vacilante em suas
respostas: No um a vaga fantasia, mas um a realidade
"Hodgson", insistiu a esposa de William James, vo c vive com o
ns, com o as pessoas?" - Que f o i qu e ela disse?", respondeu o
esprito, parecendo no ter compreendido a pergunta. - Voc
vive com o ns?", repetiu William James. - Vocs a usam roupas,
moram em casas?", acrescentou sua esposa. Sim, casas, sim;
mas no roupas. No, que absurdo! Esperem um pouco, tenho de

ir agora. Mas v o c vai voltar? Sim . Ele f o i tom ar


f le g o , disse um outro esprito, chamado Rector, que interveio
de repente.
Em suma, nada de muito convincente. Por que tanta
ignorncia acerca do alm? Outras pessoas j conseguiram
fazer os mortos falarem sobre o assunto. Mas as respostas
parecem-se mais com descries de coisas terrenas que
qualquer pessoa viva pode fazer. Disso poderamos inferir que
a experincia no outro plano mais semelhante a um sono que
a um estado de conscincia ativo. Os que esto l em cima
desconhecem o que esto fazendo os daqui de baixo. Enfim,
poderamos considerar que as personalidades desencarnadas
deixam de passar por experincias novas e que existem apenas
como memria.
Maeterlinck, que estudou bem o fenmeno esprita, faziase as seguintes perguntas em relao natureza surpreendente
dos contatos. Por que eles escolhem essa maneira (essa forma
de relacionamento) ? Por que se limitam a isso? Por que ficam
to obstinadamente acantonados na estreita faixa de terreno
que a memria ocupa, nos confins de dois mundos, e de onde
no nos podem chegar seno testemunhos indecisos e
suspeitos? No tm, ento, outras sadas nem outros
horizontes? Por que ficam tanto tempo vegetando ao nosso
redor, em seu pequeno passado, quando, desembaraados da
carne, poderiam vagar livremente nas extenses virgens do
espao e do tempo? Ser que ainda no sabem que no entre
ns, mas neles mesmos, do outro lado do tmulo, que iro
encontrar o sinal que nos mostrar que eles sobreviveram? Por
que voltam de mos e palavras vazias? E s isso que se encontra
ao se banhar no prprio infinito? Tudo nulo, sem forma e
sem luz do outro lado da nossa ltima hora? De que serve

morrer se todas as mesquinharias da vida continuam... ? Ser


que realm ente vale a pena passar pelos assustadores
desfiladeiros que desembocam nos campos eternos, para
lembrarmos que nosso tio chamava-se Fulano e que Beltrano,
nosso primo, sofria de varizes e de um problema estomacal?
Poderamos, ento, pensar que os chamados espritos
contatados sejam, na verdade, resduos da passada experincia
desses seres, gravados naquilo que os ocultistas de antigamente
denominavam luz astral? A alma, por sua vez, bem poderia
estar muito alm e incomunicvel por esses meios. Lembre-se
da lenda que narra o contato entre Ulisses e Hrcules. Ulisses
s consegue se encontrar com a sombra de Hrcules, enquanto
o verdadeiro Hrcules est l no Olimpo, fora de alcance. Se
esse ponto de vista tem algum contedo de veracidade (e cabe
a cada um determin-lo), os chamados contatos com os mortos,
portanto, parecem ser apenas quimeras. Que pensar, ento,
daquelas pessoas que usam o sofrimento de lutos mal resolvidos
para fazer brilhar, num familiar pesaroso, a esperana de um
contato to fugaz quanto ilusrio?
Grande parte da incompreenso que existe acerca do
contato com os mortos reside na impreciso do uso dos termos
comunicao e comunho. Esses termos no tm o mesmo
sentido. H entre eles a mesma diferena que existe entre os
conceitos de unidade e dualidade. Querer a todo custo ver em
certos fenmenos a prova da comunicao com o outro plano
eqivaleria a considerar este ltimo como sendo igual ao plano
terreno. Trata-se de uma persistncia muito sutil das crenas
sobrevivencialistas, segundo as quais a vida no alm igual
vida na terra. Na mesma ordem de coisas, a conscientizao
da prpria morte implica, para muitos, que esse eu, que nos
to caro, tenha de continuar sua existncia de modo idntico

no outro plano. O que est em cima no igual ao que est em


baixo, mas unicamente como o que est em baixo. Como
poderia ser de outro modo?
O termo comunicao pertence, na verdade, terra, ao
mundo da dualidade, das relaes do eu e do tu. A palavra
comunho, por sua vez, implica uma fuso, uma unidade
indescritvel com o outro (ainda que, no retorno, a experincia
possa ser qualificada de com unicao). A noo de
comunho casa-se magnificamente bem com a noo de
transio ou de mudana do estado da conscincia. Nesses
domnios, o tempo e o espao deixam de existir, como tambm
as noes de separao e de dualidade. A comunho implica
uma elevao, da parte de quem deseja realiz-la, alm do plano
das contingncias materiais. Trata-se de um exerccio espiritual.
Impossvel resistir a citar aqui Ralph M. Lewis, antigo
dirigente supremo da AMORC: "Os Rosacruzes afirm am que a
fo rm a de conscincia, se esta categoria de fen m en o existe aps a
morte, totalm ente diferente de tudo o que o ser hum ano jam ais
ex p erim en to u aqu i, en q u a n to m o rta l. E les a d ecla ra m
inexplicvel. E im possvel descrever, com palavras, um estado de
existncia ao qual nada p od e se com parar na terra. O ser, declaram
eles, continua a existir, mas sua qualidade, sua natureza, difere
de toda im agem visvel p ela conscincia mortal. Isso no quer
dizer que o ser perca sua identidade, isto , que ele se dilua
com pletam en te no Universal, tam bm denom inado o Csmico.
E, antes, um a sensao nova de unidade com toda a realidade,
que , quando m uito, uma experincia fu ga z para o ser humano,
e que s a experimenta aqui em baixo um pequeno nm ero de
m ortais*.

(u u ic u e (f/i/ /o /o i

do /nedo da /nozte
Dizer que a Velha Dama da Foice amedronta constitui quase
uma obviedade. Quando sua evocao se torna realista, muitas
pessoas, confrontadas diretamente com sua prpria morte,
sentem necessidade de respirar mais profusamente, como que
para provarem a si mesmas que a vida as est animando e que
tudo nelas est funcionando bem. Como se a prpria idia da
m orte incitasse as clulas a inspirar mais profundamente essa
vida que circula atravs delas.
Parte do sofrimento sentido na perda de um ente querido
tem sua fonte no fato de que essa partida nos incita diretamente
a considerar, mais ou menos conscientemente, a nossa prpria
m o rte. N o entanto, a morte, segundo nossos prprios
contemporneos, no provocaria tanto medo assim. O que mais
inquieta o ser humano de hoje seria, sobretudo, todo o
sofrimento. Graas mudana de mentalidade e evoluo
dos tratamentos analgsicos, logo poderemos erradicar a maior
parte do espectro do sofrimento fsico, tornado intil. De fato,
por que continuar a aceitar suportar tormentos atrozes, desde
que a dor j tenha sido levada em considerao, como
advertncia?
Entretanto, sofrimento fsico ou no, para muitas pessoas vai
continuar existindo o medo de morrer e ir ao encontro ou do
nada ou de um outro mundo. Vejamos, ento, quais poderiam
ser as causas dessa angstia e quais seriam seus antdotos.

Bom nmero de n ossos tem ores poderia, em ltim a anlise,


ser imputado em parte quela inquietude fundamental. Medo
de perder o emprego, de fracassar, de falhar, sentimento de
solido, inquietude frente a mudanas, medo do escuro, falta
de autoconfiana, etc. Na maioria desses casos, o medo da
morte est espreita em alguma parte obscura da conscincia.
Assim, poderamos tomar o caminho oposto a essa idia,
adiantando que o verdadeiro medo que move muitos dos
nossos contemporneos , acima de tudo, o de viver. Vida e
morte esto indissociavelmente ligadas, inclusive na esfera da
inquietude. Suprima essa angstia e voc volta a ter confiana
na vida. O melhor meio de super-la consiste, primeiramente,
em tomar conscincia de sua natureza e de sua fonte. Em outras
palavras, em lanar luz sobre ela.

os cristos ou nas religies monotestas que o inferno assume


tal importncia. O Oriente, tanto taosta como budista,
imaginou centenas de formas para o inferno, do gelo ao fogo.
Outros povos desenvolveram em sua cultura idias terrveis
sobre o alm. Em geral, em todas as concepes, h sempre
mil vezes mais motivos para se acabar no fogo eterno do que
no jardim das delcias, e a culpa vai de arrasto. Nessas
condies, a pessoa essencialmente honesta no consegue
considerar que seu futuro seja no paraso. Conhecendo a si
mesma e conhecendo as imperfeies latentes de todos os seres
humanos, ela seguramente visualiza
uma pequena estada no

corao das fornalhas do Hades. E to espantoso, ento, que


ela tenha medo da morte?

Um dos primeiros motivos que torna a passagem to


assustadora tem origem no medo do desconhecido. Uma
mentalidade geralmente inquieta desenvolve a tendncia de
projetar toda sorte de fantasmas mais ou menos deliberados
no desconhecido. Imaginado como um lugar sombrio, ele se
povoa, ento, de criaturas informes e, de preferncia,
am eaadoras. Teias de aranha e outros obstculos impedem o
acesso a ele. Se tivesse tido essa atitude medrosa, Cristvo
Colombo com certeza nunca teria tentado fazer sua viagem
ndia. O vasto oceano representava ento o desconhecido mais
hermtico. Pensar no misterioso com angstia acaba sendo o
mesmo que fazer uma aposta audaciosa em sua natureza. A
origem de muitas supersties situa-se quase sempre nesse tipo
de atitude. Veremos, porm, que o desconhecido pode ser
encarado de outra maneira.

Elisabeth Kbler-Ross relata a histria de uma menina


sofrendo de cncer e que no podia morrer. Procurando
solucionar a situao, ela perguntou: L., h algum a coisa que
no deixa v o c partir? Parece que v o c no con segu e m orrer e eu
no consigo im aginar o porqu. Quer m e con tar?. Com visvel
alvio, ela m e respondeu: Sim. Eu no posso m orrer porque no
posso ir para o c u . Afra se m e causou um choque, e pergu nteilhe se ela j tinha ouvido algum dizer algum a coisa parecida.
Ela m e respondeu que os padres e outros religiosos que vieram
v-la muitas vezes disseram -lhe que a pessoa no vai para o cu
quando no ama a Deus sobre todas as coisas. Reunindo suas
ltimas foras, ela se ergueu, passou os bracinhos m agros em volta
do m eu p escoo e sussurrou, com o que para ser perdoada: Sabe,
o que eu am o mais que tudo p a p a i e m am e. Depois de uma
slida explicao para restabelecer a verdade, com a ajuda d e
parbolas, L. m orreu em paz p ou co tem po depois".

As idias de inferno ou paraso levaram muitas pessoas, ao


longo dos tempos, a temer o desfecho final. E somente entre

O sentimento de que resta algo a ser feito neste mundo, o


sentimento do inacabado, tambm no facilita em nada a

passagem. Enquanto tudo no est consumado numa vida,


em consonncia com a prpria conscincia interior, o
sentimento de paz dificilmente imaginvel. A disponibilidade
mental necessria para tornar menos terrvel a morte. Podese, alis, somar a tudo isso a angstia da separao ligada
perda do contato afetivo com os entes queridos.
Um outro tipo de perda tem origem ainda mais profunda,
ligada ao sentimento humanssimo da identidade. O ser
humano, produto de uma evoluo milenar, tanto do ponto
de vista do corpo como da alma, desenvolveu uma autoconscincia. Observando o corpo de um morto, os indcios
desse eu sou parecem ter desaparecido. Bem poucos seres
humanos aceitam imaginar o desaparecimento desse eu a que
eles tanto se apegam. Raros so os que poderiam se contentar,
para o futuro, com a imagem de uma fuso num todo coletivo
ou universal. O tormento que pode sentir algum que imagine
a morte como um acesso ao nada pode, conseqentemente,
ser considerado concomitante ao medo de perder a identidade.
H, na verdade, dois instintos de sobrevivncia que recorrem
a um medo natural em caso de perigo, a fim de permitir uma
fuga ou uma ao salvadora. O primeiro est associado ao corpo
e ao impulso irreprimvel, de cada uma de nossas clulas, para
conservar e expandir sua existncia. O instinto de sobrevivncia
fsica compartilhado por todos os reinos da natureza, e se
exprime diferentem ente segundo sua natureza e suas
caractersticas. H, ainda, um outro instinto de sobrevivncia,
ligado psicologia e relativo autoconscincia. Assim como a
vida das nossas clulas procura se expandir, o eu procura
constantemente progredir e anexar cada vez mais capacidades
a si mesmo. Seu sentimento de existir aumenta, ento,

proporcionalmente s consecues que resultam de seus


esforos. Logo, esse eu vai se recusar a morrer e ver o desfecho
final com inquietao. Ele vai se debater at o fim e isto acabar
provocando angstia.
Depois dessas rpidas pinceladas sobre a angstia diante
da morte, nada mais construtivo que considerar os possveis
meios de se precaver contra ela. O primeiro mtodo consiste
em encarar de frente a morte e sua angstia. Tomar conscincia
de um fenmeno , de certo modo, exorciz-lo e tirar dele um
pouco de sua fora desarmonizadora. Trata-se de defender a
atitude inversa do mundo moderno que, apesar de algumas
mudanas terem ocorrido em algumas camadas da populao,
continua a ocultar a morte. Ao mesmo tempo em que se
desenvolve o acompanhamento no fim da vida, o Dr. X
apresenta uma plula anti-envelhecimento, base de secrees
supra-renais. O velho sonho da cincia em busca a imortalidade
est relanado.
Sejamos lcidos e adultos. O ser humano nunca vai vencer a
morte por meios materiais. No mximo, conseguir retardar seu
desfecho. Alm do mais, seria isso desejvel? Imagine, por um
instante, que voc fosse presenteado com a imortalidade neste
mundo. Todas as manhs, eternamente, voc teria de se levantar
e ir trabalhar. Sua possvel aposentadoria teria igualmente uma
natureza infinita. Voc poderia explorar o universo material, mas
sendo este limitado, a explorao e o sentimento de novidade
chegaria forosamente ao fim. Reproduzir eternamente os
pequenos atos banais do cotidiano... Seria mesmo to divertido?
Cedo ou tarde, o tdio no acabaria se instalando, transformando
em inferno essa vida pela qual o agonizante tantas vezes tem os
mais ardentes desejos? Se, no limitado perodo de setenta e
cinco anos, a maioria das pessoas se acomoda numa mesmice,

como se comportariam elas se tivessem um infinito de tempo


sua frente?
A cincia afirma que urna nica bactria, sob condies
favorveis, poderia, em oito dias, sintetizar uma massa de
matria viva igual da terra. A realidade, porm, que ela
sempre se depara com limites. Se o processo no tivesse fim,
no haveria mais nenhuma matria para produzir clulas vivas.
A vida, portanto, deve se nutrir da morte. Para que a existncia
se tornasse eterna, seria preciso tambm que todas as causas
de doenas ou de acidentes fossem erradicadas. Estamos longe
disso. Por conseguinte, ao invs de considerar a morte como
uma horrvel fatalidade, a humanidade poderia conceb-la
como uma lei natural portadora de sentido e propsito, na
manuteno do equilbrio universal. Assim, ela se reconciliaria
com uma parte da natureza.
O segundo antdoto do medo age sobre as idias religiosas
ou supersticiosas que circulam a respeito da vida depois da
morte. No h nenhum inferno e nenhum paraso depois da
morte. O nico lugar onde o ser humano pode experimentar
essas condies na terra. Para imaginar um sofrimento no
alm, mesmo que de ordem espiritual, teramos de admitir que
a conscincia l a mesma daqui. Ora, as condies em que
nossa conscincia evolui, definitivamente, no so semelhantes.
No h mais nem corpo fsico nem sistema nervoso crebroespinal ou autnomo. Como, ento, conceber a conscincia
futura de outro modo que no o desconhecido?
Temer o desconhecido entregar-se prematuramente a uma
idia negativa, em vez de uma outra. A priori, o desconhecido
possui natureza neutra. Ele no nem positivo nem negativo,
justamente por ser desconhecido. Disso decorre que nada nos

impede de abord-lo com confiana e serenidade. Por que ter


medo do urso escondido em sua toca, sem ter sido atacado por
ele? No apostar um tanto precipitadamente numa suposta
natureza agressiva, quando as prprias crianas fizeram dele
seu melhor companheiro?
Na verdade, trata-se aqui de operar uma verdadeira alquimia
mental. H milhares de anos, os seres humanos tm oscilado
entre a aceitao de supersties que correm a respeito do reino
invisvel e a rejeio pura e simples, considerando-o como um
nada. Quaisquer que sejam as opinies que os seres humanos
tenham a seu respeito, elas em nada mudam sua verdadeira
natureza. O que pode mudar a atitude mental que temos em
relao a ele. Nem terror nem fascnio, mas nada impede que
uma atitude de serenidade torne-se um fato no horno
duplamente sapiens.
E depois, faamos por um instante o papel de advogado de
uma viso pessimista: do que que temos medo, afinal? O
nada que se afigura no horizonte do materialismo no seria
mais vantajoso do que vidas e vidas de sofrimentos inumerveis,
de nascimentos no sangue, de mortes em espasmos, de
preocupaes incessantes, de pesares e de fracassos? O medo
da morte um luxo dos que vivem no conforto, suficientemente
cegos ou sem compaixo para no verem o sofrimento deste
mundo. Buda ensinou que tudo sofrimento. (Este , alis,
um dos principais artigos de f do budismo: a realidade do
sofrimento e a possibilidade de seu fim, no nirvana). S a
familiaridade pode nos fazer esquecer esse fato. Mas o budismo,
que ensina a doutrina da vacuidade, no se juntaria ao
materialismo? Que diferena h entre determinada concepo
da vacuidade e o nada? O materialista no deveria temer a
morte, j que ela conduz ao nada.

Mas outros mtodos contribuem igualmente para diminuir


o medo da Velha Dama. Poderamos considerar, como no
sculo 17, que cada dia pode ser o ltimo, cultivando o
sentimento de que fazemos o melhor que podemos, em
consonancia com nossa consciencia. Elisabeth Kbler-Ross,
que dedicou sua vida ao acompanhamento de agonizantes,
explicou que o tema da morte devia ser abordado desde a
infancia, as escolas.
As crianas so geralmente mais maduras do que pensamos.
A atitude do ser humano frente prpria morte no se decreta
do dia para a noite; ela resulta de uma cultura e de uma longa
maturao que tem origem na infncia. No tanto uma prova
de morbidez quanto de familiaridade com ela. Ao contrrio,
trata-se de se impregnar da evidncia de nossa mortalidade e
disto tirar resultados em termos de qualidade de vida. Via de
regra, as pessoas que chegam perto da morte transformam suas
concepes da vida. Quem sabe se parte da intolerncia no
provenha do esquecimento do inelutvel desfecho para todos?
Por outro lado, quem procura viver de maneira construtiva,
com o sentimento constante do dever cumprido, est sempre
pronto, sem o saber. Quando sua vida desfila ante sua
conscincia, ele confia nela e, depois de se despedir de sua
famlia, pode partir em paz. Do mesmo modo, quem orienta
sua vida para o prximo d menos importncia perda de seu
ser pessoal.
Para terminar, se voc quiser mtodos ainda mais radicais,
lembre-se dos tibetanos. Todos os dias, seus lamas fazem uma
meditao sobre a morte e alguns se visualizam na forma de
um esqueleto. Um tratado samurai, o H agafyir, expressa-se
de modo bem marcial:

Todo dia aguarda a morte, afim de que, quando a hora chegar,


possas m orrer em paz. A desdita, quando vem, no to m edonha
quanto se c r ... Trabalha, toda manh, no sentido de acalm ar tua
m ente, e im agina o m om en to em que talvez p o s s a s s e r dilacerado
ou m utilado p or flechas, afogado p or enorm es ondas, lanado s
chamas, fu stiga d o p o r um raio, soterrado p o r um terrem oto,
caindo num precipcio, ou em que estejas m orrendo doente. Morre
em pensamento, toda manh, e nunca mais ters m edo de morrer.

Szeve ictfeu/o da a/ma


Seria possvel falar da morte sem procurar compreender a
natureza da alma? Foi respondendo negativamente a essa
pergunta que a idia deste captulo se imps. Difcilmente se
conseguiria apreender o fenmeno da separao entre a alma
e o corpo, sem se ter definido o que o termo alma encerra,
de onde vem ela, de quais ingredientes composta, etc.
Quando se comea a pensar no assunto, logo se percebe
que a alma no se deixa desvendar facilmente. Os diversos
pensadores que j se expressaram sobre o tema deixaram, cada
qual, uma doutrina diferente. Os povos e as culturas parecem
igualmente ir no sentido de urna patente diviso. De simples,
o assunto vai se tornando cada vez mais complexo, medida
dos estudos. A origem de sua diafaneidade artstica est no
fato de o tema da alma constituir uma abstrao por excelncia.
A alma no se deixa capturar. Sobre ela, comentou um
cirurgio: Nunca encontrei a alma sob a lmina do m eu bistu r.
No entanto, o termo usado habitualmente por todos,
materialistas e espiritualistas, com diferentes acepes. Para os
primeiros, ela corresponde a um construto mental que no
possui substancia prpria, ou, ento, eles a isolam no campo
da psicologia (que vem ep sych , um dos termos gregos para
alma). A psicologia humana o resultado da evoluo das
faculdades de seu crebro material, num dado ambiente
cultural, social e familiar.
Num pequeno tratado sobre a alma, naturalmente s se pode
abordar a questo psicolgica de forma resumida. No alvorecer

da consciencia humana, o tema certamente no era to


complexo. Os primeiros seres humanos da pr-histria
descobriram uma dimenso invisvel em seu ser, provavelmente
por intermdio de seus sonhos ou observando seu sono.
Tomando conscincia da morte de seus companheiros, eles
imaginaram a sobrevivncia de um princpio invisvel a que
deram o nome de alma, pois era desse princpio que o corpo,
assim acreditavam eles, extraa sua energia, seu calor e sua
conscincia. Mas nessa remotssima poca, o ser humano era
concebido apenas como uma dualidade, isto , uma alma
invisvel que impregnava um corpo fsico.
Encontramos em Plato essa mesma concepo dualista da
natureza humana. Nessa poca, a alma era concebida, entre os
gregos, como um alento oupneum a. Depois, esse princpio se
tornou gradualmente mais complexo. A palavra alma vem
do latim anim a, que significa alento ou ar e que remonta
palavra snscrita aditi ou ele respira. O latim distingua um
princpio superior masculino, denominado a nim us, e um
princpio feminino, anima ou a alma propriamente dita. A
palavra anim us foi mais tarde rivalizada por spiritus.
Assim, de uma concepo dualista do ser humano, a
civilizao passou a uma idia de trindade: esprito, spiritus;
alma, anim a; e corpo fsico. Os gregos desenvolveram uma
compreenso paralela. Pneum a significa alento espiritual e
abrange a noo de esprito. A divina e toda feminina p sych
abrange a anim a, na qual C. G. Jung viu o arqutipo da me.
Os filsofos gregos desenvolveram, ento, noes do ser
humano com dois, trs e at quatro nveis, como o fez Plato
em sua R epblica. Com os progressos da anlise intelectual,
outras concepes nasceram, como as de Toms de Aquino ou

as dos escolsticos da Idade Mdia. Para eles, trs divises


compunham o mundo anmico: a alma vegetativa, que comanda
as funes de nutrio e reproduo; a alma sen cien te, que
governa os cinco sentidos fsicos; e a alma racional, vinculada
ao intelecto e s emoes superiores. Os Pais da Igreja, como
Orgenes ou Clemente de Alexandria, retomaram, por sua vez,
os princpios de Plotino, que dividia os seres humanos em trs
grupos: sensveis, racionais e inteligveis.
A posio oficial da Igreja Catlica de hoje faz da alma o
princpio espiritual por excelncia, graas ao qual o ser
humano torna-se imagem de Deus. Acrescenta, ainda, que
ela veicula a vida e a personalidade humana. Aqui, o homem
realmente concebido como um todo, e essa unidade to
profunda que a alma considerada como tendo a forma do
corpo. A originalidade desse dogma est em que essa alma
no morre com o corpo, mas voltar a se unir a ele no dia do
Julgamento Final do Cristo ou da ressurreio dos corpos.
Nessa concepo, reconhece-se uma espcie de dualidade
entre a matria e a alma. No obstante, o ser humano s pode
ser concebido como uma unidade reencontrada. Eis por que
a vida da alma depois da morte no pode ser imaginada seno
como um sono. Essa toda a ambigidade da posio crist,
que oscila entre uma viso saducia da alma e uma concepo
platnica.
Na frica, diz-se que h no ser humano um ou vrios
princpios espirituais. Na morte de uma pessoa, sua alma ou
nia (o duplo) no morre. Ela guarda sua personalidade
eternamente, leva uma vida independente e pode transmigrar
para qualquer corpo. Consulta-se o ancestral, atravs de seu
nia, para pedir conselhos.

Entre os bambaras, a ni ou alma distinta do dya ou duplo,


que como a sombra da pessoa. A ni viaja durante o sono.
Mas h tambm dois outros princpios: o ter ou carter
eventualmente maligno e o wanzo ou mcula, produto de
uma espcie de pecado original. Esses princpios circulam no
corpo por meio do sangue ou at da saliva. No momento da
morte, dya volta gua com Deus, enquanto m\ pelo sacerdcio
do chefe da famlia, integra-se ao altar da famlia. Juntos, dya e
ni podem reencarnar num recm-nascido.
Os d o g es diferenciam a sombra estpida da sombra
inteligente (o anjo mau e o anjo bom, respectivamente). Alguns
povos africanos estimam que todos os seres vivos possuem
quatro almas: a clara, a opaca, a invisvel e o esprito. J os
iorubas contam apenas trs. Na Repblica Democrtica do
Congo, a parte da alma que permanece em contato com o
mundo a sombra. Uma outra parte pode perambular: a luz
do olho. Uma terceira parte pode se situar na orelha. Para os
quicuius, uma das duas almas retorna aos ancestrais, enquanto
a outra, smbolo do esprito da famlia, reencarna numa criana
da comunidade. Na frica do Sul, o alento e a carne so
distintos. Na ndia, existem concepes em sete nveis, e na
tradio cabalstica que o Oriente foi mais longe em termos de
anlise e complexidade.
Mas tudo isso pode passar uma imagem falsa de uma
evoluo linear das concepes, no curso da Histria. Na
verdade, o corpo completo das idias mais elevadas foi elaborado
nas antigas escolas de mistrios da ndia e do Egito, h milhares
de anos. O restante foi composto pelos comentrios de mestres
mais ou menos talentosos e mais ou menos ligados antiga
tradio. Os escolsticos da Idade Mdia inspiraram-se em

Aristteles, que foi discpulo de Plato. Aristteles postulou


que a alma era dotada de trs qualidades: a vegetativa, a
senciente e a racional. Os Pais da Igreja parafrasearam os
neoplatnicos. Os prprios muulmanos inspiraram-se nos
filsofos gregos, nos judeus e nos cristos que os precederam.
Os d oges, por sua vez, afirmam que sua origem encontra-se
no Egito antigo.
Plato, no Livro IV da R epblica, apresenta uma grade
de leitura da alma em trs partes ou domnios. Esses domnios,
segundo ele, devem ser relacionados s divises da sociedade
ideal: religio ou filosofia, justia e economia. Assim, ele
distingue na alma o elemento racional, o sensual e o irascvel.
Ao primeiro, ele associa os aspectos superiores da alma, que
levam pratica da virtude e busca da beleza e da harmonia
em todas as coisas. O domnio da sensualidade o dos instintos
e dos desejos fundamentais, que podem ficar entregues a si
mesmos. Finalmente, o elemento irascvel, que corresponde
justia e clera, auxilia a razo em sua misso de manter os
desejos no caminho certo. Se o elemento racional aconselha,
o irascvel que leva a rejeitar as tentaes dos desejos ilegtimos,
no indivduo e na sociedade.
Atravs dessa aparente mixrdia de doutrinas, possvel,
no entanto, encontrar uma constante no tema, mesmo
abordado por diferentes povos. Em primeiro lugar, a alma pode
ser concebida como masculina ou feminina, ativa ou passiva.
Os chineses tm uma concepo dupla: sen , o gnio, e chue,
que formam os desejos mais molestos. Esses dois princpios
remontam ao Yin positivo e ao Yang negativo. A alma pode ser
tambm intelectual ou instintiva, ativa ou vegetativa. Pode
aparecer na forma do pssaro Ab, no Egito, e da sombra. O

princpio superior o nico que se eleva ao cu, enquanto a


sombra continua em contato com a terra. Por extenso, ela pode
ser considerada ou perfeita ou em devenir. Os grandes
princpios que ela contm so a inteligncia, sob forma
consciente ou vegetativa, e a vitalidade. Disso pode-se inferir
que a mesma alma pode ser dividida no sentido horizontal
(positivo-negativo, masculino-feminino, direita-esquerda) e no
sentido vertical (superior, perfeito, sombra e devenir).
A sede da alma vegetativa supe-se geralmente estar no
fgado ou no sangue (o fgado o principal local de elaborao
do sangue). assim na frica do Norte e na Sibria. Os povos
dessas regies consideram os ossos como o local de circulao
da alma sutil, cuja sede seria o corao. Algumas vezes,
acontece uma inverso de smbolos, mas, via de regra,
encontramos a constante osso, sangue, alento e corao como
suportes das diversas partes da alma. Entre os maias quichs e
os ndios naspaki do Canad, a alma sai do corpo pela boca.
Igualmente, um ritual importante no Egito antigo era a
abertura da boca, depois da morte. Aristteles, que se apoiava
na experincia, situava a sede da alma no corao, ao passo
que seu mestre, Plato, a colocava no crebro. Ao longo da
histria, figuras ilustres como Leonardo da Vinci e o filsofo
Descartes entregaram-se tarefa de determinar o local da sede
da alma. Suas pesquisas sobre o crebro permitiram aos
trabalhos mais modernos estabelecerem suas concluses. Hoje,
tudo indica que o local privilegiado de contato entre o corpo e
a conscincia da alma pode ser o crebro mdio ou diencfalo.
As glndulas hipfise e epfise, o hipotlamo e o tlamo fazem
parte do diencfalo. Juntos, eles possuem um controle
importante sobre o sistema neurovegetativo. Seu papel no
controle do estresse, por exemplo, j foi evidenciado. O mesmo

j foi feito no tocante influncia da exposio luz e seu


efeito sobre a pineal (epfise), que atua sobre os ritmos vitais
do corpo. A funo do tlamo igualmente importante na
conscincia e nas reaes emocionais do indivduo.
Voltemos alma propriamente dita. Geralmente ela
associada sombra, imagem e ao nome, como, por exemplo,
entre os africanos ou os ndios da Amrica do Sul, e at entre
os delawares. A sombra corresponde parte da alma passvel
de evoluo. Na China, a lenda dos Imortais explica que estes
no tm mais a sombra. Isso indica que, tendo atingido a
perfeio, a luz circula livremente atravs deles, sem ser
ocultada. A sombra , portanto, uma projeo imperfeita do
plano divino na terra. Ela corresponde quilo que deve ser
purificado no ser humano. Para C. G. Jung, so esses os traos
de carter inferiores reprimidos e que podem se manifestar
atravs dos sonhos. Entre os zelandeses, a alma ou alento
denomina-se waidoua. No momento da morte, a parte mais
pura de waidoua eleva-se s regies de glria, enquanto a parte
impura precipita-se nas trevas.
Simbolicamente, a alma pode ser representada por uma
borboleta, um pssaro, uma fita, uma corda ou um espectro.
Mas h tambm uma alma do mundo que se supe vivificar o
universo. E ela que regeria o movimento dos astros. Os Antigos
transformaram-na no ter. Diga-se, de passagem, que nossa
cincia no conhece a natureza da fora de atrao que rege o
movimento dos planetas, apesar de conseguir mensur-la.
Prossigamos, agora, apresentando as concepes caba
lsticas. Essas idias baseiam-se na frase bblica: Deus fe z o
hom em do hm us da terra, insuflou n ele o alento de vida e o

h o m em to rn o u -se alm a v v e n t e . Os hebreus cabalistas


representam a alm a segundo trs princpios, que so:
neschamah, a parte divina ou espiritual do ser humano, m a ch ,
que corresponde ao alento de vida ou dimenso vital, e nephesh,
que a alma viva ou parte terrena da humanidade.
Assim, D eus fe z o h o m em corresponde a n escham ah,
insuflou n ele o a len to traduzido por ruach, e o homem
tornou-se n ep h esh , a alma vivente. Esses trs princpios
correspondem, portanto, ao esprito, alma e ao corpo dos
romanos e gregos. Papus (o Dr. Gerard Encausse), no incio
do sculo 20, acrescentou que cada um desses componentes,
por sua vez, divide-se em trs partes, todas elas formando um
nico indivduo. Assim, a parte corporal do ser humano
{nephesh) possui uma conscincia, uma vitalidade e um corpo
que a matria. A parte vital (ruach) possui uma conscincia
que dirige o funcionamento vegetativo dos rgos. E ela que
os vivifica com sua energia e, segundo os cabalistas, possui um
corpo. Do mesmo modo, a parte divina (neschamah) composta
de Alma Universal, conscincia divina e corpo espiritual. Se
neschamah o domnio da inteligncia do corao, ruach o
dos instintos que o ser humano deve subjugar. A rvore
cabalstica das sephiroth fornece uma imagem dessa concepo
da alma. Por sua vez, a via tradicional da Rosacruz aborda, de
forma muito mais exata e detalhada, essa constituio oculta
do ser humano, em nove princpios.
Passemos agora concepo desenvolvida por Sri
Aurobindo, famoso mestre hindu do incio do sculo 20. Esse
filsofo incontestvel exprimia-se atravs de idias bem
prximas s da cabala, apesar de sua terminologia ser um pouco
diferente. Para ele, a alma se divide em trs partes: a mental, a

vital e a fsica. Cada uma dessas divises, por sua vez,


composta de trs subprodutos. H o mental no mental, o vital
no mental e o fsico no mental. Depois, o mental no vital, o
vital no vital, e assim por diante. Assim como na cabala, no h
uma separao ntida entre cada um desses reinos, mas, sim,
uma interpenetrao progressiva. O domnio do mental puro
est vinculado aos aspectos mais elevados do ser humano. Sua
parte vital corresponde mentalizao dos desejos, quando
estes atrapalham a reflexo objetiva ou quando so sonhados
mentalmente, ao passo que a parte mental do vital corresponde
a uma temporizao do desejo pela razo. O domnio do vital
puro o dos instintos e desejos gerados pela prpria natureza
da fora vital. Se tudo isso parece muito complicado primeira
vista, o olhar experiente pode ver a correspondncias com
experincias bem concretas.
Na ndia, as almas humanas so consideradas como
imanentes da Alma Universal e Suprema, como inumerveis
centelhas brotando de um fogo imenso. Mas, nunca nasceram
e, portanto, no podem morrer. Elas vm de Brahman e
retornam a ele. Sua essncia a da Divindade que, por
conseguinte, dota-as de inteligncia, razo, sensibilidade e
imortalidade. Segundo os hindus, a alma pode experimentar
cinco estados em seu contato com o corpo.
1. O estado de viglia, no qual est ativa sob a direo da
Divindade.
2. O estado de sonho, iluso intermediria entre a viglia e
o sono, no qual pode ter premonies.
3. O estado de sono profundo, no qual ela est como que
mergulhada na Essncia Divina, at voltar a imprimir sua ao
no corpo.

4. O estado de desfalecimento ou de insensibilidade, ponto


medio entre o sono e a morte, no qual a alma fica tempo
rariamente separada do corpo.
5. Finalmente, o estado de morte, no qual a alma deixa
definitivamente seu involucro material.
O filsofo Plotino, nascido no Egito por volta do ano 203,
apresentou uma concepo da alma que exerceu importante
influencia em todo o Ocidente, tanto cristo como muulmano.
Ele foi o fundador da filosofa neoplatonica. Em sua Enade,
ele aborda o assunto de maneira bastante completa. Segundo
ele, a alma corresponde a urna substancia imortal e invisvel,
intermediaria entre o mundo sensvel e o das idias arquetpicas.
Ele a considera como a ltima das divindades. Sada do Deus
Supremo, ela produz o mundo engendrando o tempo, em
relao com a Justia Universal. Portanto, ela a causa primeira
de todas as coisas.
A alma no fica completamente encerrada no corpo, mas,
ao contrario, contm todos os seres ao mesmo tempo,
permanecendo sempre idntica a si mesma. E ela que fornece
o corpo, ordenando a matria na qual se infunde. Ela, ento,
individualiza-se, mas essa particularizao resulta do subemprego de sua forma primeira. Algumas faculdades da alma
atuam, portanto, em algumas pessoas unicamente em funo
das diferenas de corpo e rgos. A alma age sem reflexo, em
funo de sua natureza prpria e imperativa.
O vcio e a maldade das almas tm seu lugar na perfeio
do universo e contribuem para seu equilbrio. Mas a alma imvel
um ser absolutamente simples, que no responsvel pelas

faltas cometidas pelo ser humano. O culpado , na verdade, o


objeto mais ou menos iluminado por ela; um ser composto de
alma e corpo, que vive to-somente por ela e com ela. E, assim,
a alma recebe seu quinho segundo as escolhas que faz, sem o
menor acaso.
A alma dos sbios subjuga o corpo, elevando-se sobre as
contingncias materiais. Sua purificao, pelo sbio, consiste
em isol-la do corpo. Sem a alma superior e perfeita,
acompanhada da razo que ela confere, o ser humano ficaria,
portanto, sujeito ao destino cego. Ela entra no corpo no
momento oportuno, por meio de uma atrao irresistvel ou,
melhor, apenas sua natureza mais audaciosa, imprudente e
maldosa contm o corpo, enquanto a parte superior permanece
em contato com o domnio dos arqutipos. Portanto, tambm
em Plotino encontramos essa diviso da alma, em superior e
inferior, em nica e mltipla.
Segundo Plotino, a alma semelhante a raios luminosos
emitidos por um ser. Sua natureza propriamente luminosa e
ela faz nascer uma obscuridade nos limites de sua luminosidade.
Ela d, ento, uma forma a essa obscuridade, que corresponde
ao corpo. Ela se sente feliz somente em sua relao com o bem
com o qual vibra em afinidade, consumindo-se de desejo por
ele. Toda sua funo visa guiar o ser humano, ensin-lo e
iluminar seu pensamento, dirigindo-o no caminho do bem,
do justo, do belo e do verdadeiro. Em suma, para Plotino, a
perfeio da alma consiste em se tornar semelhante aos deuses
pela prtica das virtudes superiores.
Enfim, e isto encerrar este tratado da alma, diversas culturas
imaginaram o momento em que a alma se encarna e toma posse

de seu corpo. Alis, parte das proibies relativas ao aborto


provm desse debate. Para os cristos, embora no saibam ainda
claramente se a alma criada ou preexistente ao corpo, admitese de modo geral que ela est presente desde o primeiro
desenvolvimento das clulas fetais.
O budismo tibetano, pelos lbios do Bardo Thdol, afirma,
no Bardo do devenir, que a alma penetra no corpo no momento
da concepo: E nessas con dies que tu penetras na matriz e,
no exato instante em que o vu lo e a sem ente se encontram , sentes
a alegria inata e, nesta felicida de, desfaleces.
Mas as tradies esotricas tm uma posio muito mais
lgica, que resulta do prprio conceito da alma. Elas partem
do princpio de que a alma, como princpio vivificante, aquilo
que realmente d autonomia ao corpo. Em outras palavras, ela
s pode se introduzir no corpo no instante da primeira
respirao. Antes desse momento, o corpo da criana
vivificado e nutrido pelo corpo, pelo sangue, pela respirao e
pela alma de sua me. Ele no possui nenhuma autonomia. O
conceito de pessoa um absurdo ao se referir ao feto, pois esse
corpo ainda por nascer no possui nenhuma das caractersticas
autnomas. Como analogia, poderamos usar a imagem de um
carro. Que ele de fato? Um amontoado de ferragens, dotado
de rodas, motor e volante? Na realidade, um carro s
realmente digno deste nome quando a energia que lhe permite
deslocar-se e o seu condutor esto presentes. Antes disso, ele
no passa de um conjunto de lminas de ferro e plstico mais
ou menos bem modeladas.

0 7 m ozie: co/npazae)
com o sono e o najc/neno
O sono e a morte
B em -aventurados os humildes, porque vero a D eus.
O Sermo da M ontanha, Evangelho de Mateus

Quem no ouviu, alguma vez na infncia, algum lhe dizer,


para tranqiliz-lo: "Morrer co m o dorm ir} Essa comparao
entre a morte e o sono muito difundida no planeta. H ipnos, o
sono, cujo filho chamava-se M orfeu, era irmo de Tanatos, a
morte. Alguns muulmanos chamam o sono de "a pequena
m o rte. Entre os cristos, a morte era considerada um sono da
alma. Quando voc ouviu essa comparao pela primeira vez,
provavelmente achou a imagem bonita, mas sem realidade e
sem importncia. Pois, sim!
Os tibetanos consideram que h seis bardos ou estados
intermedirios, dos quais dois pertencem morte, sendo os
outros trs o da meditao, o do sono e sonhos, e o do
nascimento. Poderamos acrescentar tambm os estados
intermedirios que adornam a vida nas diversas transformaes.
Dessa constatao bastante geral, veio a idia de comparar
todos esses estados intermedirios ao da morte. Por que e como
o sono pode ser seu irmo? Se a morte representa uma porta
para o esprito, ento, o nascimento conduz para o mundo.
Em qu possuem eles um ar de parentesco?

Estabelecer essas comparaes poder parecer sem


significao para alguns, enquanto, para outros, assumir um
carter bem eloqente. Seja como for, devemos faze-las.
Muitas culturas comparam o sono e a morte, mas raros so os
exploradores que ousam ir l ver, de maneira mais direta e
sistemtica.
O que se segue provavelmente no tem um suficiente valor
cientfico para a inteligncia zelosa de exatido; todavia, as
comparaes a esto, muito significadvas. Basta se deixar levar.
Agora, se voc quiser saber mais, siga o guia e comece a
entranhar-se no reino do sono.
Imagine que voc se transportou para 35.000 a.C. Voc
est numa choupana de sap. E noite. O fogo acaba de se
apagar. Entretanto, ainda restam algumas brasas rubras na
fogueira. Perto dela, h dois homens deitados, que
apresentam traos parecidos com os do homem moderno.
Eles esto vestidos com peles de animais. Um deles dorme.
Seu trax sobe e desce regularmente, no ritmo de sua calma
respirao. Seu vizinho vigia, olhando os arredores. De
repente, a pessoa adormecida se agita e comea a dizer
palavras desordenadas, quase inaudveis. O outro observa,
meio intrigado, mas fica em silncio. A noite passa assim,
tranqilamente, sem mais incidentes. Na manh seguinte, j
acordados, os dois homens conversam. O que dormiu conta
ao seu companheiro que, durante a noite, seu esprito viajou.
E caou um caribu nas grandes estepes desertas. O outro
escuta, pensando profundamente. De repente, como um
relmpago ou uma revelao, ocorre-lhe uma idia: e se,
quando a gente morre, alguma coisa nossa sobrevive e sai
viajando, como nosso esprito durante a noite?

Deixemos agora essa cena, para voltar ao nosso tempo atual.


Esses dois seres do paleoltico acabaram de emitir a hiptese da
existncia de uma alma imortal. A experincia do sono e do sonho
foi talvez, naqueles tempos distantes, o meio pelo qual a
humanidade considerou, pela primeira vez, a existncia de uma
parte invisvel no ser humano. Essa parte invisvel tambm pode
ser definida como a face noturna do indivduo. Na mente dos
primeiros povos, tratava-se bem mais do que o inconsciente
redescoberto em nossa poca. Essa fase noturna, uma parte do
mundo cristo nunca cessou, desde seu surgimento, de combatla, perseguindo os ento chamados pagos. At hoje, ela incomoda
a mente racionalista do mundo moderno, onde s se acredita
naquilo que se v. As pessoas esquecem, porm, que nossos
prprios sentidos fsicos esto sujeitos iluso e manipulao.
Essa dimenso lunar foi a fonte das maiores criaes
artsticas. No incio do sculo 20, ela rebentou na forma do
surrealismo. E ainda hoje ela causa confuso, pois sobre ela
nenhum ser humano consegue ter poder, ao passo que a
inteligncia diurna pode ser facilmente condicionada. O esprito
sopra onde e quando bem entende. O ser humano no
somente um crebro montado sobre duas patas; tambm uma
alma unida ao seu subconsciente.
De modo surpreendente, essa dimenso do ser humano,
que nos parece noturna e pouco compreensvel, corresponde,
na verdade, sua verdadeira parte luminosa. Os egpcios
antigos no se enganaram; eles a chamaram de o Divino Rosir,
o Sol dos mortos. Como se a verdadeira luz pertencesse a esse
mundo situado atrs do espelho. Rosir reina no mundo do
alm, como o grande juiz das almas, mestre da psicostasia. De
qualquer modo, todos os que viveram uma experincia de morte
iminente normalmente citam essa luz que perceberam.

Mas voltemos ao ser humano e ao seu aspecto secreto.


Cinqenta por cento de seu ser lhe um total desconhecido,
mesmo com todo o progresso da psicologia. E foi provavelmente
isso o que descobriram os seres humanos a quem chamamos
primitivos, h uns 35000 anos, observando seu sono e seus
sonhos. Isso foi o incio da civilizao e de uma evoluo da
conscincia, sem precedente.
Passemos, ento, explorao do sono e sua comparao
com a morte. Analisemos, prim eiram ente, aquilo que
poderamos qualificar de mecanismo do sono. Quando o
indivduo deseja dormir, sente necessidade de deitar seu corpo.
Para que o mergulho no sono se faa nas melhores condies,
bom tambm que a pessoa se livre do estresse, das
preocupaes cotidianas e do fluxo dos pensamentos que
invadem seu crebro incessantemente. Em outras palavras, um
relaxamento prvio, tanto interna como externamente, ou tanto
mental como fisicamente, constitui uma boa preparao para
o sono.
No momento da morte, existe igualm ente uma fase
preparatria, que consiste numa espcie de liberao do
passado. O ser humano tem necessidade de sentir que sua
tarefa neste mundo foi cumprida, que est encerrada, e que
seus negcios esto em ordem. Para partir em paz, a pessoa
tem de poder se soltar, sem ser retida por nenhuma obrigao
ou inquietao. O andamento idntico, para o sono. E por
isso que, na Idade Mdia e mesmo mais tarde, ao se preparar
para o sono, a pessoa era aconselhada a fazer um exame de
conscincia, tendo em mente que o dia que passou podia ser o
ltimo. E por isso tambm que os muulmanos chamam o sono
de apeq u ena morte".

Mas, vejamos a seqncia. A pessoa acaba relaxando.


Pedaos de frases interrompidas, pensamentos desconexos
assaltam a conscincia. Imagens truncadas se sucedem
rapidamente, invadem a mente entre a viglia e o sono. As
palavras ou as cenas que se apresentam podem corresponder
quelas estocadas na memria pr-consciente ou semi
consciente do crebro. Para a maioria, essas palavras ou cenas
tm relao com o que foi ouvido ou visto durante o dia, mas
s quais no se deu ateno. Parece, ento, que nesse momento
o crebro libera parte de seu contedo subconsciente. No
momento da morte, defrontamo-nos com um processo similar.
A alma rev sua vida passada, igualmente posta diante de
seus contedos subconscientes. Isso explica o porqu de muitas
tradies afirmarem que as ltimas experincias da vida so
cruciais nesse instante. Assim como o estado mental de uma
pessoa condiciona seu modo de dormir, seu estado psicolgico
nos anos que precedem a morte influenciar a natureza da
experincia vivida no momento da passagem.
Prossigamos nossa viagem gradual pelo sono. Com o
relaxamento, a pessoa se harmoniza com os grandes ritmos
vitais de seu corpo. Via de regra, salvo problemas de sade
graves, a respirao se torna ampla, calma, relaxada, e
proporciona uma sensao de liberdade. Isso se chama
respirao do beb. Para observ-la, basta olhar para um beb
e constatar o relaxamento de seu corpo e a confiana absoluta
que ele demonstra.
No estado de viglia, a respirao muitas vezes truncada
ou sem ritmo. A presso da mente e das preocupaes
respondem por grande parte disso. O indivduo raramente est
em harmonia com os ritmos naturais de seu corpo. O tempo

todo h tenses que impedem a energia vital de circular


livremente. No pior dos casos, essa condio pode se tornar
fonte de enfermidades. No momento da morte, a alma tambm
entra em harmonia com os grandes ritmos do universo. Ela
intensifica seu contato com sua Me, a Grande Alma Universal.

atravs do sonho no aquilo de que a pessoa se lembra ao


acordar. A conscincia de viglia j ter feito uma seleo a partir
de seus preconceitos e de seus prprios cdigos e hbitos de
pensamento. Portanto, j ter traduzido a experincia nos
termos lhe convm.

Mas avancemos mais ainda sono adentro. Nesse momento,


o estado de conscincia do indivduo sofre uma alterao. Sua
conscincia se expande progressivamente, a prpria noo de
limite desaparece. Seu eu de viglia se dissolve cada vez mais, e
ele mergulha realmente no sono, perdendo totalmente
conscincia de si mesmo. A morte corresponde tambm a uma
alterao da conscincia. O eu exterior desaparece progres
sivamente e uma espcie de sono da alma se segue. Aps o
primeiro sono, o ser vai se expressar com sua linguagem
prpria. A recordao dos sonhos d uma idia dessa
linguagem.

Esses elementos deveriam nos tornar prudentes na


interpretao de experincias de morte iminente. Na realidade,
os relatos so dificilmente compreensveis no que concerne o
aspecto oculto da experincia. Da mesma maneira, tudo o que
diz respeito morte deveria ser tomado num sentido simblico.
As melhores linguagens que podem descrever uma experincia
da alma, aps a morte, so o smbolo e o mito. O smbolo mais
conhecido , sem dvida, o da balana onde feita psicostasia
(pesagem da alma e julgamento). No que tange as idias de
justia, balano da vida e purificao, temos de recorrer,
inegavelmente, aos smbolos. Esse um princpio mais fcil de
ser compreendido quando o abordamos fazendo comparaes
com os sonhos.

No curso de uma noite, sonhamos de acordo com vrias


fases, chamadas de sono paradoxal. Cinco desses perodos, de
durao varivel, adornam nossas noites, segundo os cientistas.
O mais importante deles, o quarto, ocorre entre quatro e seis
horas da manh, que um dos perodos durante o qual as
mortes so mais freqentes. Segundo alguns pesquisadores,
no curso de uma noite, viveramos apenas um nico sonho,
com uma simblica diferente a cada vez.
difcil interpretar um sonho por ser ele o modo de
expresso preferido da alm a, por intermdio de nosso
subconsciente. O Dr. Freud, sua maneira, descobriu e
demonstrou isto: que o inconsciente possui uma linguagem
constituda de smbolos. O que o ser interior tenta comunicar

H um outro ponto muito interessante, comum morte e


ao sonho. Trata-se do fenmeno do eu. O eu, no estado de
viglia, est normalmente vinculado ao corpo fsico. Ora, nem
no momento da morte nem no sonho, a conscincia est
vinculada ao corpo fsico. Na morte, a alma se separa do corpo,
enquanto, no sonho, o sistema nervoso est relativamente
adormecido, tanto que o corpo fica como que paralisado
durante algumas fases do sono paradoxal. Que acontece, ento,
quando observamos o sonho? Primeiro, o sonhador nunca v
seu corpo fsico. Segundo, sua conscincia do eu consegue
saltar de uma personagem para outra. Ela possui a faculdade
de se metamorfosear em qualquer coisa. Uma sonhadora

contou que uma vez sonhou que ela era uma chaleira. Isso
significa que, num sonho, a pessoa se confronta com o self,
isto , um eu difuso que se estende a todas as coisas. No
momento da morte, segundo os dados tradicionais, o mesmo
fenmeno se produz. A conscincia do eu vinculada ao corpo
desaparece pouco a pouco, para dar lugar a um tipo de
conscincia nova, mais prxima da universalidade.
Outro elemento intrigante e rico de significado: a noo de
tempo, no sono e no sonho, desaparece ou se torna totalmente
relativo. O mesmo ocorre com a noo de espao. Se acordamos
algum que est sonhando e lhe pedimos para contar seu sonho
e estimar o tempo que ele durou, ele fica surpreso ao constatar
que sua aventura onrica, que parece ter se estendido por horas
a fio, na verdade, no durou mais que uns poucos minutos ou
mesmo segundos. A pessoa que sai de um coma profundo
geralmente no consegue determinar a durao do perodo
em que ela viveu inconsciente. Depois de uma boa noite de
sono, fcil avaliar as horas passadas nos braos de Morfeu,
sem olhar o relgio? E bem conhecido tambm o fato de que o
sonhador pode viajar instantaneamente de um ponto a outro
do planeta, como num filme de cinema. A lgica que o sonho
segue no tem nada a ver com a do nosso mundo diurno.
Como ficam os elementos de tempo e espao no fenmeno
da morte? Muita vezes, as pessoas fazem a seguinte pergunta:
admitindo-se a doutrina da reencarnao, quanto tempo o se
humano passa do outro lado? Invariavelmente, pode-se
responder: do ponto de vista da terra, vrios anos, conforme o
caso; mas, do ponto de vista do cu, essa pergunta no faz o
menor sentido. Um piscar de olhos ou uma eternidade so a
mesma coisa, pois, nesses domnios, o tempo e o espao so

abolidos, como tambm as noes de dualidade e de separao.


Os celtas, lembre-se, haviam descrito esse fenmeno contando
que, na noite de Samain, o Dagda tinha perdido seu territrio
para seu filho. Na noite de Samain (Todos os Santos), o tempo
e o espao cessam de existir, no ?
Mas, ento, se no h tempo nem espao, que so as
descries fantasiosas e infantis que algumas pessoas fazem
do alm? Devemos buscar a realidade de outro modo? Nos
domnios da alma, portanto, estamos lidando com uma
dimenso nova que, para ser apreendia, exige uma nova lgica
e novos conceitos. Mais uma vez, recorrendo ao Bardo Thdol,
podemos acrescentar que as experincias encontradas pelo
morto assemelham-se a um sonho. Todos os ingredientes esto
l e, em especial, as projees dos contedos da conscincia.
Do ponto de vista da alm a, a morte acontece sem
sofrimento. Nas EMI, os testemunhos reportam que, aps a
separao entre o ser fsico e o ser espiritual, a pessoa pra de
sofrer e que a sensao muito agradvel. Em geral, a mesma
coisa acontece no sono e nas formas mais profundas de coma.
Em alguns casos, o corpo fsico pode at estar doente ou
ferido, e a pessoa gemer porque o instinto de sobrevivncia
est inscrito na memria de todas as suas clulas. Entretanto,
a conscincia no se solidariza com a experincia vivida no
nvel do corpo. Logo, no h conscientizao do sofrimento,
visto que uma parte do sistema nervoso est relativamente
dormente. Pessoas que estiveram em coma dizem no se
lembrar mais de nada, ao passo que observadores externos
jurariam que elas estavam sofrendo. Assim tambm, na morte,
onde ficaria o sofrimento fsico se no h mais nenhum
sistema nervoso para senti-lo?

Agora que o aspecto puramente mecnico do sono e do


sonho, comparativamente morte, foi abordado, h uma
pergunta que os cientistas se fazem e que tambm poderamos
fazer: para que servem o sono e o sonho? Ao responder essa
pergunta, possvel que descubramos, sempre por analogia,
valiosas informaes acerca da utilidade da morte. E, para
respond-la, til abord-la segundo trs pontos de vista:
fsico, mental e espiritual.
Pelo relaxamento que proporciona, o sono traz o repouso e
a regenerao fsica. Favorece a produo de diversos
hormnios, dentre os quais o do crescimento. Setenta e cinco
por cento desses hormnios so produzidos durante o sono
profundo, tanto que a insnia pode provocar retardo de
crescimento nas crianas. Esse hormnio favorece tambm a
reparao de fraturas e a cicatrizao. Vale lembrar que a
produo de hormnios dirigida pelo sistema nervoso
autnomo. No beb, j se comprovou o papel do sonho no
amadurecimento do crebro. Regenerao e desenvolvimento
fsico, estas parecem ser as palavras-chaves que definem o sono.
O mesmo vale para a morte, ainda que essa imagem possa
parecer engraada. O ser humano troca o co rp o usado de um
velho, o qual no lhe permite mais realizar todas as suas
funes, por outro, regenerado, de um recm-nascido, cheio
de potencialidades. Sem essa restaurao, a alma no poderia
mais evoluir nem manifestar as infinitas riquezas que ela
encerra.
Os cientistas concordam em pensar que, se o sono tivesse
apenas o papel de reparao fsica, o ser humano no teria
necessidade de tantas horas de repouso e, sobretudo, no
precisaria sonhar, mas simplesmente relaxar. E preciso, ento,

perseguir e abordar o papel do sono no plano mental. Nesse


quesito, as descobertas mostram que o sono e o sonho ajudam
a pr em ordem as impresses recebidas e memorizadas pelo
crebro. Contribuem tambm para a execuo de uma triagem
na enorme massa das informaes conscientes ou subliminares
recebidas diariamente pelo crebro. Tm, portanto, um efeito
benfico na assimilao das informaes adquiridas no estado
de viglia. O sono paradoxal tem imensa importncia na
memorizao e na maturao do sistema nervoso. Ele protege
as lembranas de todas as interferncias que possam perturblas e propicia um verdadeiro tratamento das informaes.
Uma pesquisa realizada com crianas em idade escolar
mostrou que quanto mais a criana dorme, aproximando-se
das doze horas, mais sua taxa de rendimento escolar aumenta
estticamente. Quanto mais a criana dorme, mais facilidade
ela apresenta para aprender e reter. Alm disso, como explicam
os psicanalistas, o sonho possui uma funo de liberao das
frustraes acumuladas no estado de viglia. Ele teria, assim,
uma relativa funo de purificao.
E quanto morte? Purificao, balano (que vem da palavra
italiana b a la n d o: balana), pesagem da alma, julgamento...
Todos esses termos no se parecem com um tratamento da
informao? A alma, nesse caso, seria considerada como um
conjunto de informaes a serem ordenadas, estocadas,
selecionadas... Alis, talvez seja a esse preo, pago ciclicamente,
que a personalidade humana pode continuar sua evoluo.
As explicaes que acabamos de dar sobre as funes do
sonho nos planos fsico e mental no satisfazem plenamente
os cientistas que trabalham no campo da pesquisa. Isso no

de espantar, j que muitos deles se recusam a levar em conta a


dimenso espiritual do ser humano. Essa, alis, urna das
caractersticas do processo cientfico atual, que propo
sitadamente deixa de lado, quando no nega, a faceta espiritual
do ser humano. Somente uns poucos pioneiros, como C. G.
Jung, tentaram fazer um processo unificador, associando o
cientfico e o espiritual. Esse processo, alis, era bem mais
sistemtico no Egito antigo, que tinha certo avano no
desenvolvimento cientfico de seu tempo. O fascnio que essa
civilizao exerce no mundo moderno vem, entre outras coisas,
desse desenvolvimento. Hoje, apenas movimentos como a
Ordem Rosacruz, AMORC, parecem ousar, contra ventos e
correntezas, restabelecer essa unidade entre a anlise cientfica
dos fenmenos e a espiritualidade.
Analisemos, ento, o papel espiritual do sono e do sonho,
comparando-o sempre funo cumprida pela passagem para
o outro lado do espelho. O sono possui uma funo
regeneradora no plano espiritual, da mesma forma que no
plano fsico. Os efeitos produzidos por um simples sono de
um minuto so bastante espetaculares, quando prestamos
ateno neles. A pessoa assiste a uma sensao de aquecimento
do sangue, a circulao sangnea melhora visivelmente e os
sentidos fsicos passam por uma espcie de limpeza. A pessoa
v melhor, as cores se reavivam, ela ouve melhor, seus reflexos
e sua vitalidade retornam. E quase impossvel obter resultados
como esses, em to pouco tempo, atravs de outro proce
dimento que no o sono.
Que outra explicao, que no seja estritamente fsica,
poderamos dar ao fenmeno, partindo do princpio de que o
fsico apenas a ponta emergente de um iceberg infinitamente

maior? Provavelmente, que a alma do ser humano necessita se


recolher ao seu mundo prprio, alguns momentos todo dia,
para se revigorar. E exatamente isso que ela faz no fim de sua
vida terrena. A diferena reside em que, durante o sono, no
h separao definitiva entre a alma e o corpo. Seria mais uma
espcie de re-harmonizao do ser psquico. Isso se traduziria
numa energia vital renovada, atravs de uma reativao do
sistema nervoso autnomo, o que explicaria as inmeras
conseqncias endocrinas.
Vale lembrar que a energia vital um atributo da alma,
representando a conscincia uma outra caracterstica. Quando
dormimos, a mente analtica fica entorpecida. Ora, essa mente,
em muitos casos, constitui uma das fontes do bloqueio da
circulao da energia no corpo e do mau funcionamento dos
rgos. Deve-se ver aqui a origem do estresse destruidor.
Durante o entorpecimento da mente analtica, o corpo se pe
a vibrar, naturalmente e sem entraves, em unssono com os
grandes ritmos universais. Isso se traduz numa respirao mais
plena, numa diminuio do ritmo cardaco, num relaxamento
do sistema nervoso, etc.
Pesquisadores demonstraram que cinco dias sem sono do
lugar a alucinaes; mais uns dias e a loucura se instala, na
forma de uma parania. Parece, todavia, que viver sem sono
no mata diretamente. O mesmo vale para os sonhos. Uma
pessoa que fosse sistematicamente impedida de sonhar
caminharia para a loucura. O sonho desempenha um papel
importante na manuteno dos instintos de sobrevivncia e da
integridade psquica da personalidade. Tudo se passa como se
o eu, paradoxalmente, para sobreviver, necessitasse se refugiar
no mundo do seIf ou numa zona de no-eu. A parania de

quem no dorme uma perverso do ego, que se sente


constantemente agredido. Para manter seu equilbrio, ele
precisa se soltar de tempo em tempo. S o sono torna possvel
esse abandono que permite alma evoluir em seu mundo
prprio.
Pierre Fluchaire, autor de "AR evoluo do S ono, explica,
numa audaciosa concluso, que uma pessoa que vivesse em
harmonia com as leis universais no precisaria dormir, pois
sua alma no sentiria necessidade desse recolhimento. Em
outras palavras, a pessoa a que os msticos se referem como
tendo alcanado a iluminao poderia passar sem o sono. Em
seu caso, a energia vital circularia sem entraves, no tendo,
portanto, necessidade de ser normalizada. O fato que houve
realmente, ao longo da Histria, pessoas reconhecidas como
santas e que no dormiam ou o faziam muito pouco. Por
exemplo, Marthe Robin, na Frana, ficou cinqenta anos sem
dormir. Francisco de Assis, tambm viveu, durante boa parte
de sua vida, dormindo muito pouco.
Se estabelecemos um paralelo com a idia de reencarnao,
apercebemo-nos de que os perodos que separam a morte de
uma nova encarnao so muito variveis. Os tibetanos, quando
falam da reencarnao de seus mestres espirituais, situam-na
entre zero e quarenta e nove dias aps a morte. Haveria pessoas
que no precisariam ficar um perodo longo no outro plano,
para se revigorarem? Tendo percebido e compreendido a
unidade entre os planos terreno e espiritual, sua conscincia
no teria nenhuma necessidade de ser purificada.
Comparando a morte ao sono, percebe-se que a primeira,
assim como a segunda, representam necessidades para o ser

humano. Sem essa oscilao de sua verdadeira natureza para


outros mundos ou outras dimenses, o ser humano, e mesmo
o animal, no consegue continuar vivendo eficazmente. Graas
a essa compreenso, o medo da morte se desfaz, para dar lugar
aceitao. Algumas vezes, como no caso dos mestres
espirituais, ele se transmuta em compreensiva aquiescncia.
Muitos animais fogem de seus predadores enquanto tm uma
chance de escapar deles. Mas, ao serem pegos, eles parecem se
entregar sua fatalidade, mas no trgica, apenas destinada.
O ser humano, em ruptura com a natureza, possui o triste
privilgio de se debater at o ltimo suspiro. Um dos melhores
servios que se pode prestar aos nossos contemporneos,
consiste em lhes restituir a concepo de uma morte til e
portadora de sentido. Isso pode lhes ajudar frente sua prpria
morte ou em situaes de luto, no obstante continuar
necessrio que se faa, no dia D, um acompanhamento com
amor e encorajamento.
O sono irmo da morte. Seria por essa razo que, o
momento mais comum do dia, no qual os agonizantes soltam
seu ltimo suspiro, situa-se incontestavelmente entre quatro e
seis horas da manh? Curiosamente, essas horas so as da fase
mais importante do sono paradoxal. Seria o sono tambm a
antecmara da morte?
Freqentemente, os mortos intercambiam com seus entes
queridos por intermdio dos sonhos. Do reino de Hades, os
sonhos sobem , passando pela porta de ch ifre ou pela porta de
marfim , assim dizem os mitos gregos. Uma pesquisa, realizada
no Pas de Gales, em 1971, mostrou que, de 295 vivos e vivas,
47% afirmaram ter vivenciado uma manifestao do cnjuge
falecido, quer por sua presena, seu contato ou sua voz. O
astrnomo Camille Flammarion realizara, em 1899, uma

pesquisa semelhante com 4.280 pessoas, obtendo resultados


idnticos. Vrios desses contatos foram obtidos tambm atravs
de sonhos.
A psicanlise explica que trata-se de um processo psicolgico
inerente a um trabalho de luto. Toda e qualquer possibilidade
de contato com uma pessoa morta estaria, sem dvida, excluda
para essa disciplina. Sua mais avanada explicao que o
inconsciente desconhece a morte e que demonstra isto atravs
dos sonhos. Com toda certeza, em alguns casos, a posio da
psicanlise vlida, mas no em todos. Nas tradies antigas,
considerava-se que o sonho constitui um meio de comunicao
com outros mundos. Isso ainda praticado em muitas tribos
da frica e da Amrica do Sul. Entre os bondos da frica do
Sul, por exemplo, Deus considerado muito distante para
ajudar os seres humanos no cotidiano. Eles, ento, recorrem
aos ancestrais, que tm o dever de ampar-los. Para isso, existe
na tribo uma pessoa considerada pela comunidade como
predestinada a receber a orientao dos ancestrais, atravs de
sonhos. Acredita-se que esse personagem faa parte do povo
da luz. Ele recebe, dos ancestrais, conselhos para curar ou guiar
seu povo. O xam, na Sibria e no Canad, cumpre uma funo
similar. Durante o contato com outras esferas de existncia, o
xam tem acesso ao passado, ao presente e ao futuro. Para os
bantus do Congo, a alma sai do corpo no momento do sono.
Dessas viagens, ela traz os sonhos que lhe foram transmitidos
pelos ancestrais com quem conversou.
No Ocidente, bastante comum encontrar pessoas que
contam que sonharam com um parente falecido. Aqui est o
testemunho de uma senhora que perdera sua nora: O contato
f o i fe ito durante o sono, sem que eu o tivesse buscado ou desejado
ou, de outro modo, intencionado conscientem ente. Na verdade, a

tdia de entrar em contato com ela nunca tinha m e passado pela


cabea. Como era o lugar onde isso a con teceu ? Bem, nada de
paisagem bonita, nem luz, nem m esm o um lugar especifico.
S im plesm ente f o i ; nem tem po, nem espao, nem lu ga r a ser
definido concretam ente. Mas o contato gerou uma reao fsica,
pois quando minha nora sentiu que tinha sido reconhecida, ela
m anifestou toda sua alegria apertando-m e fo rtem en te em seus
braos. E no f o i uma sim ples sensao, f o i to forte, to con creto
e to real quanto p od e ser um contato com qualquer pessoa viva,
aqui na terra. Eu a a ch ei ento idntica, psquica e p sico
logicam ente, ao que ela era em vid a ... Minha nora queira m e dar
um a m ensagem para transmitir sua fa m lia ...
Testemunhos como esse existem aos milhares e impossvel
relatar todos eles. Em todo caso, eis aqui um ltimo, breve
mas comovente: "Uma noite, p ou co tem po depois da m orte de
m eu filh o, sonhei com ele. Ele no era o beb que eu tinha perdido,
mas um jo v em m uito bonito, de uns vinte anos. Quando ele falou ,
ouvi sua voz m e dizendo: Como v o c p od e ver, mame, eu estou
bem, no chore m ais.
Existem tambm sonhos nos quais se v uma pessoa
morrendo ou que so compostos de imagens ligadas morte.
Freqentemente esses sonhos informam de uma transformao
que ocorrer no relacionamento com aquela pessoa. Podem
tambm anunciar uma possvel mudana de vida para ela ou
uma transformao em sua personalidade.

O nascimento e a morte
H algum tempo, o escritor Arnaud Desjardins contou,
num de seus livros, que dedicou-se um dia a uma espcie de
sondagem. A pblicos orientais e ocidentais, ele dirigiu essa

nica e mesma pergunta: qual , para voc, o contrrio da palavra


m orte? A maioria dos ocidentais respondeu vida, ao passo
que os orientais responderam nascimento. Essas respostas
sintetizam bem as diferentes sensibilidades dos povos em
relao ao assunto. A morte um fim ou somente uma
passagem? Nossa aposta aqui de que existe apenas uma nica
vida eterna, composta de uma sucesso de dias e noites, como
no caso do movimento dirio do sol. A manh de cada dia
corresponde ao nascimento e a noite, morte. Ambos
representam passagens entre o dia e a noite. O que est em
cima comunica-se, assim, com o que em baixo, para realizar o
milagre de uma s coisa. Nascimento e morte corresponderiam,
ento, s duas faces de um mesmo rosto, como um Jano.
No instante do falecimento, o ser humano se desintegra em
seus diversos componentes, sendo cada um deles eterno em
essncia. O corpo fsico retorna ao p da terra e prossegue seu
priplo na forma de tomos e de molculas diferentes. Os
componentes mais sutis ou psquicos do ser tambm se
dispersam no mago de sua essncia primitiva. Os egpcios
admitiam a disperso dos componentes da alma, como o B a c
o K a, que at ento estavam unidos no corpo vivo. Na verdade,
cada elemento integrado no ser humano vivo volta a se unir
Essncia Universal que lhe deu origem. A integridade do ser
humano alma ou ser vivente perdida momentaneamente.
Com o nascimento, o processo adquire carter rigorosamente
inverso. H a reconstituio de um ser de sntese fsica, psquica,
anmica e crmica, encarnado na terra.
Se quisssemos designar esses fenmenos em termos de
alquimia, designaramos a morte pelo termo dissoluo, ao
passo que o nascimento seria qualificado de coagulao.

Solve et coa gu la , diz o alquimista, expresso que significa:


purifica e integra. A purificao corresponde morte,
enquanto a integrao representa o nascimento.
A ontologia Rosacruz e a cincia do ser explicam que a
encarnao da alma, no nascimento, ocorre no momento do
primeiro alento; estando alma e alento vinculados. Inver
samente, a morte ocorre no ltimo alento. Ele deu seu ltimo
suspiro, isto , seu ltimo alento, ele entregou a alma, so
expresses que escutamos muitas e muitas vezes. Mas h outros
pontos de comparao menos conhecidos.
Muitas descries da passagem fazem referncia a uma
segunda morte, na passagem de uma fronteira, como a do tnel
nas experincias de EMI. Sabe-se que, do mesmo modo, a
criana vive um segundo nascimento, ligado sua evoluo.
Em seguida ao nascimento, sua tomada de conscincia do
mundo ocorre de maneira gradual, da mesma forma que, na
morte, a separao gradual. No nascimento, a criana, se no
totalmente cega, tambm no possui, antes de um ms, uma
boa acuidade visual, e seu sistema nervoso no totalmente
eficiente. No entanto, est cientificamente provado que todos
os rgos do corpo esto presentes e operacionais desde o
nascimento. Mas, ento, como explicar essa aparente
contradio? Explicando que a alma ainda no tomou plena
posse de seu veculo fsico?
Devemos crer que, no nascimento, a alma tome posse do
corpo da mesma forma que um objeto entra num outro objeto
ou devemos considerar que ela intensifique seu contato com
ele, assim como qualquer coisa abstrata influencia o concreto?
Observe uma criana em pleno desenvolvimento: e uma

maravilha v-la despertar pouco a pouco para o mundo. Mas,


afinal, onde est aquele segundo nascimento prometido? Os
psiclogos afirmam que entre um ano e meio e trs anos a
criana toma conscincia de si mesma. Ela diz eu. Eles
chamam isso de o estgio do espelho. A criana reconhece sua
imagem no espelho, ao passo que a maioria dos animais adultos
no se reconhecem espontaneamente quando colocados na
frente de um. Este o segundo nascimento: a tomada de
conscincia do eu, a partir da qual a relao com o mundo
nunca mais ser a mesma. Nesse exato momento, a conscincia
se cristaliza em torno do ser fsico, ao passo que, antes disso, a
distino entre
o eu e os objetos (ou a me) muito mais

nebulosa. E, alis, em torno dessa idade que a criana perde a


memria do meio espiritual de onde veio. Todos esses motivos
conjugados explicam por que geralmente to difcil recordar
o passado anterior aos primeiros trs anos de vida. Assim
tambm, na segunda morte, o ser esquece pouco a pouco o
meio terreno de onde saiu.
Mas ainda outros pontos de comparao merecem ser
ressaltados. Nunca demais repetir que nascimento e morte
correspondem a dois portais, separando dois mundos. Parece
(sem querer ver nisso um discurso sexista, infinitamente
distante das intenes do autor) que os seres que guardam
esses portais so, com mais freqncia, as mulheres. O smbolo
aqui admirvel. So a me e a parteira que assistem (o e ao)
nascimento do recm-nascido. Hoje em dia, na maioria dos
casos, so as enfermeiras e as auxiliares de enfermagem que
prestam ao defunto os ltimos servios ou que acolhem seu
ltimo suspiro. Na grande maioria dos seminrios de reflexo
sobre a morte e dos seminrios sobre acompanhamento, a
participao das mulheres quase sempre numericamente

superior dos homens. O fato de um homem se interessar


pela morte mostra que ele tomou conscincia e deixou que se
expressasse nele a dimenso feminina, feita de receptividade.
Face morte, evento do qual se padece, s nos resta sermos
receptivos, o que explica o porqu de as mulheres sentirem
menos repulsa pelo assunto.
No instante da morte, o corpo retorna sua me Terra,
enquanto a personalidade rene-se sua Me, a Alma
Universal. Em outras palavras, o humano retorna sua
existncia essencial. Inversam ente, no nascim ento, a
personalidade deixa sua Me Universal, para reassumir sua
natureza individual, no mesmo instante em que o corpo do
beb sai de sua me humana. Nascimento e morte invocam o
simbolismo da gruta. Gruta uterina da me, tmulo da terra.
O tnel de acesso, nas experincias de morte iminente, tambm
nos leva a pensar na entrada de uma gruta. Essa a razo pela
qual alguns psiclogos se enganam grandemente ao com
pararem as EMI e determinadas experincias sob efeito de
psicotrpicos s reminiscncias do nascimento. No nem um
pouco espantoso que essas experincias sejam similares na
forma. Contudo, o sentido do nascimento e o da morte so
estritamente inversos.
No tratado da alma, falamos de uma representao simblica
da alma, na forma de uma corda. Na imaginao popular, a
alma muitas vezes representada como uma espcie de cordo
que se une ao corpo. A morte seria, ento, a ruptura desse
cordo. Mas, e quanto ao beb, no est ele ligado sua me
pelo cordo umbilical, que cortado no nascimento? Um
cordo substituiu o outro, e o ser est sempre atado a alguma
coisa. No nascimento, essa ligao sutil intensifica gradual
mente seu contato com a dimenso psquica da pessoa. Alguns

pesquisadores explicaram que, antes dos vinte e oito anos, o


ser humano ainda no tomou conscincia de todas as
potencialidades includas em sua alma. O ser humano, afinal,
pode ser comparado a um sol. Seu percurso noturno
corresponde vida p o s t- m o r te m , seu percurso diurno
representa a existncia terrena.
Nem o nascimento nem a morte so repentinos. O ser
humano se dirige lentamente para seu znite e sua maturidade,
despertando pouco a pouco para o mundo manifesto. Depois
do znite, a fase espiritual do ser comea a despontar e o ser
humano se dirige progressivamente para sua morte. O
momento exato da morte no foi definido com exatido pelo
mundo mdico. Se a morte biolgica definida como a parada
definitiva das funes vitais, principalmente no nvel do
tringulo crebro, corao e pulmes, ainda difcil situar no
tempo a passagem da vida para a morte. Segundo L. V Thomas,
"se no fo sse a urgncia em determ inar com exatido o m om ento
propcio para a extrao de rgos e o da inumao ou da cremao,
provavelm en te no haveria uma definio legal do que m orrer".
Q uanto m ais a cin cia p ro grid e no assunto, m en o s se sabe
quando e como a morte ocorre. Ela no um estado, mas um
processo; permanece, portanto, inapreensvel. No nvel do
corpo, ela onipresente nas manifestaes de destruio das
clulas; fenmeno que se acelera em caso de doena. Basta, na
verdade, uma perda de vitalidade, e as foras da morte entram
em ao. Assim, a morte , antes de mais nada e principalmente,
ausncia de vida. Ela no corresponde a uma manifestao
positiva. Aps a morte biolgica, o corpo, porm, no se torna
inerte, mas continua a se transformar.
A essa altura, podemos considerar no mais uma com
parao entre nascimento e morte, mas a onipresena desta

ltima na prpria vida. Com efeito, a compreenso da funo


da destruio muito importante para nos ajudar a viver melhor.
Se assim no fosse, a utilidade de uma reflexo sobre o tema
ficaria seriamente reduzida. A principal lei do mundo m anifesto
a da perptua transformao. "Nada se perde, nada se ena, tudo
se transforma. A morte representa essa transformao sempre
presente na existncia e nas atividades terrenas. Como voc
acabou de ver, o metabolismo do corpo humano representa um
reflexo dessa lei. Continuamente, h criao de clulas novas
para substituir as foram destrudas. Na verdade, boa parte do
corpo humano ter sido inteiramente substituda no fim de
alguns anos. Isso ilustra o aspecto fsico da questo.
Na vida social de um indivduo, essa lei tambm afirma sua
presena. Os grandes eventos familiares - nascimento, casamento,
mudana de casa, mudana d e emprego, etc. - constituem
algumas dessas transformaes. Em outras palavras, a situao
anterior morre no advento da nova. As prprias sociedades
humanas sofrem essas mutaes e os perodos de crise implicam
uma resistncia s mudanas ou uma dificuldade de dar luz ao
futuro. Em todos os processos de morte, perde-se alguma coisa,
para se ganhar outra num nvel superior. Mas preciso aceitar
perder antes de ganhar; a evoluo jamais implica um ganho
perptuo ou linear. O ser humano abandona um corpo fsico e
uma conscincia fsica, para ganhar vida e conscincia espirituais.
As almas ditas presas terra no querem perder nem esse corpo
fsico nem as percepes de seus cinco sentidos. Elas se privam,
assim, de prazeres superiores. Na vida cotidiana e na das sociedades,
se o indivduo no quiser abandonar nada, sejam seus
preconceitos, seu modo de pensar ou seus processos esclerosados,
no poder continuar progredindo - ou, ento, isto se dar apenas
no sentido do sofrimento. O velho homem teima em no morrer.

Este termo, velho homem, permite passarmos agora


diretamente questo da iniciao. Os Rosacruzes chamam
a morte de "a gra n d e i n i c i a o Trata-se exatamente de uma
iniciao, posto que, quando ela sobrevem, a alma passa por
diferentes etapas que a levam gradualmente a deixar a zona
tenebrosa do mundo material, para alcanar a luz celeste.
O term o in iciao , do latim in itia r e , que sign ifica
comear, descreve bem esse processo que implica ritos
de passagem, de transformao, de conhecimento, de
habituao progressiva e, por fim, de ilum inao da
conscincia. Trata-se de uma mudana de estado, de
condio e de dimenso. Podemos reduzir uma iniciao,
de maneira mais ou menos arbitrria, a quatro partes ou
fases de desenvolvimento. Essas quatro fases j foram
nomeadas: separao, admisso, revelao e retorno. Elas
valem tambm para uma iniciao terrena, que, na verdade,
supe uma morte simblica.
Antigamente, no Egito, uma tradio relata a existncia
de uma cerimnia que era praticada e que depois desa
pareceu, pelo menos no Ocidente. O postulante aos graus
superiores do conhecimento era colocado num sarcfago.
Antes disso, oficiantes o tinham feito beber um elixir ou uma
droga. O iniciando assistia ento, num estado secundrio
induzido pelo produto, separao momentnea entre seu
ser espiritual e seu ser fsico. Ele fazia de fato a experincia
da alm a e da im ortalidade. E, alis, justam ente essa
experincia que vivem as pessoas que, sem o quererem, sofrem
uma EMI, depois de um acidente, uma doena ou um coma.
Hoje no h mais iniciaes desse tipo, pois acontecia s vezes
de a pessoa morrer mesmo, devido a uma excessiva fraqueza
ou a uma excessiva impressionabilidade.

preciso acrescentar que prticas como essa seriam


perigosas hoje, pela simples razo de que, antigamente, as
iniciaes eram feitas dentro de sociedades tradicionais
extremamente fortes. Desde que nasciam, os postulantes
estavam acostumados a prticas de cultos bem estritos, e o uso
de drogas e outros cogumelos mgicos era comum nessas
prticas. Hoje, nas sociedades materialistas, as pessoas que
fazem uso de psicotrpicos fazem isto unicamente pelo prazer,
o que as leva aos piores excessos autodestrutivos. Mesmo que
alguns estejam em busca, mais ou menos conscientemente, de
estados de conscincia diferentes, eles o fazem num mbito
definitivamente inadequado.
Nos anos sessenta, na Tchecoslovquia, um psicoterapeuta
e pesquisador tentou utilizar a droga para explorar as zonas
de conscincia superiores ou paralelas do ser humano. Stanislas
Grof utilizou o LSD, que ele prprio absorvia ou fazia ser
absorvido por voluntrios. A observao das reaes que se
seguiam e as operaes sucessivas obedeciam a um protocolo
cientfico muito estrito. No demorou muito para que essas
experincias fossem proibidas. No obstante, a corrente de
psicologia que leva o nome de transpessoal saiu dessas
primeiras exploraes. Curiosamente, essa nova escola confirma
os elementos transmitidos pelas mais antigas tradies acerca
do ser humano. Fenmenos como a telepatia, a projeo da
conscincia distncia e as reminiscncias de provveis vidas
anteriores foram observados. Qualquer uma das matrizes
perinatais de Grof envolvem, alis, o conflito e a experincia
de morte-nascimento.
De fato, os iogues da ndia, os sbios chineses e algumas
raras escolas ocidentais, dentre elas a Ordem Rosacruz,

AMORC, h sculos vm ensinando tcnicas seguras e


inofensivas, cujo objetivo realizar essas investigaes, sem
fazer uso de drogas e sem que a pessoa precise sofrer um coma
ou um acidente. Contudo, a verdade que anos de prtica so
necessrios para que o estudante alcance um resultado desse
tipo. Longe de ns sermos mercadores de promessas
inalcanveis.

(9 M lccto
As cifras falam: hoje h cada vez mais suicdios entre jovens
e aposentados. Esse aumento da autodestruio interroga nossa
sociedade, como o fez em todas as pocas. Plato j se
pronunciara sobre a questo, h dois mil e quinhentos anos. E
disse formalmente: o suicdio proibido. A originalidade de
sua posio, ou de sua ambigidade, est no fato de que ele
considerava o derradeiro fim do ser humano totalmente
desejvel. Segundo ele, a morte marca o fim de todas as iluses
e todos os apegos s paixes terrenas. Ainda assim, insistia em
que o ser humano no tem o direito de adiantar esse evento,
pelo suicdio.
De fato, nenhuma espiritualidade realmente vlida jamais
encorajou a autodestruio ou suicdio. O budismo, que leva
ao mais alto grau o respeito para com toda forma de vida,
ensina: "no m a t a r s Essa frase aplica-se, em primeiro lugar,
pessoa a quem ela se dirige. Essa recusa autodestruio
corresponde, na verdade, a uma atitude ecolgica. Isso implica
que a natureza, por intermdio de sua criatura humana,
cumpre uma funo de inteligncia e de conscincia mpares.
Eliminar-se significa frustrar a natureza da oportunidade de
realizar uma experincia por intermdio do fator humano. O
suicdio seria, portanto, anti-ecolgico.
Vale ressaltar aqui, todavia, que, em pleno sculo 21, os
velhos tabus e as atitudes de rejeio para com os suicidas e
suas famlias no podem mais estar em circulao. Antigamente,
a comunidade exclua as famlias dos que cometiam o ato
considerado abominvel e negava o enterro religioso aos

culpados. Assim, o grupo economizava fazer uma reflexo


sobre seus prprios comportamentos e normas, os quais
poderiam ter levado a pessoa a fazer o irreparvel. Tratar-seia, talvez, de um meio de autoproteo frente a um ato
percebido como uma agresso sociedade, feita por um de
seus membros?
Hoje, sem desenvolver um sentimento de culpa, que
corresponderia ao plo inverso da questo, podemos conduzir
uma reflexo indita sobre o sentido desse gesto. H uma
infinidade de razes que levam uma pessoa a cometer o
irreparvel. O desespero, a solido, um pedido mudo de
socorro, o medo do futuro, uma necessidade de iniciao, uma
atitude filosfica, o sentimento de inutilidade, a sensao de
estar esmagado pelo peso das provaes, um mal-estar geral
resultante da perda do sentido de viver, etc.
No obstante ser impossvel pretender cobrir todo o
conjunto das motivaes que levam algumas pessoas ao
suicdio, visto que cada criatura uma histria e um caso nicos,
podemos, todavia, explorar algumas delas. Os dois perodos
da vida onde uma grande recrudescncia do fenmeno pode
ser observada so, segundo pesquisas econmicas feitas na
Frana, a adolescncia e a aposentadoria.
Com a aposentadoria, sabemos que um certo sentimento
de solido geralmente se instala. A pessoa se sente tambm
aposentada da sociedade. Na era moderna, o velho, que no
produz mais, geralmente considerado simplesmente o
aposentado. Em outras palavras, ele no tem mais nenhuma
funo reconhecida, est fora do circuito ativo. Eis o que
significa, in f i n e , a palavra aposentado. Pior, esse termo

muitas vezes se compara derrota militar, e muitas pessoas


ficam angustiadas quando comeam a ver despontar o dia em
tero de se aposentar.
Um mapeamento da Frana (mas que tambm poderia ser
aplicado ao mundo) dos locais onde as taxas de suicdio so as
mais altas faz ver que as regies mais atingidas so aquelas
onde a comunicao entre os indivduos mais fraca.
Sentimento de inutilidade, falta de comunicao, afastamento
das famlias, so alguns dos ingredientes que favorecem o
desespero.
H tambm, se bem que infinitamente mais raros, suicdios
por razes filosficas ou culturais. Todo mundo se lembra dos
kamikazes japoneses, capazes de se lanarem com seus avies
sobre os porta-avies americanos, em 1945. Seppufyu, o suicdio
ritual do Japo, era, at o incio do sculo 20, o meio de acabar
com a prpria vida quando a honra do sam urai era maculada.
Do mesmo modo, filsofos materialistas, ante um universo
que lhes parecia desprovido de sentido, concluram que a nica
sada possvel, face ao absurdo, residia no suicdio. Tratava-se,
na verdade, da resposta filosfica fornecida por seres centrados
em si mesmos, para os quais a corrente da vida universal pouco
importava. No est evidente que a atual perda do sentido da
vida, que, inclusive, repercute na educao das crianas, seja
uma das razes do crescimento do fenmeno.
Concluso filosfica para uns, porta de sada das provaes
para outros, essa forma de suicdio negligencia o seguinte fato:
de acordo com a idia de encarnaes sucessivas, no h
escapatria possvel. Segundo o princpio do renascimento,
teremos de voltar terra para enfrentar nossas questes e
dificuldades.

O suicdio de adolescentes, por sua vez, possui uma multido


de explicaes. Angstia frente ao desconhecido que o mundo
dos adultos representa, crise de crescimento, falta de referenciais,
medo de futuras dificuldade econmicas... Todas essas razes
j foram diversa e fartamente evocadas por psiclogos e
socilogos. Mas h uma que praticamente nunca foi objeto de
reflexo, e a seguinte: a passagem da adolescncia corresponde
a uma fase inicitica. A psicloga Franoise Dolto evocou, para
descrever esse perodo, aquilo que ela chamou de complexo de
lavagante. Como esse crustceo do grupo das lagostas, o
adolescente sofre uma muda que o torna excessivamente frgil e
sensvel. Alguma coisa nele precisa morrer (sua infncia), antes
que ele possa chegar ao estado adulto. Mal acompanhada pelo
ambiente (famlia, escola, sociedade), essa iniciao pode se
transformar em algo crtico. Antigamente, as sociedades
tradicionais, como na Africa, instauraram ritos (a circunciso,
por exemplo) cuja finalidade era ajudar a criana a se tornar
adulto. Nossas sociedades ocidentais abandonaram todos os ritos
e o jovem ficou entregue a si mesmo. Num perodo de prova e
de surda competio escolar, no qual boa parte de seu futuro
est em jogo, o jovem se sente muitas vezes desarmado.
Podemos, ento, considerar a seguinte idia: alguns
adolescentes tentariam, mais ou menos conscientemente,
provocar uma espcie de experincia inicitica, que antigamente
era simblica, inclinando-se tentativa de suicdio. Viveriam,
assim, no plano do corpo, a morte produzida nos domnios da
personalidade e da fisiologia, durante a passagem da infncia
maturidade. Alguns (felizmente mais numerosos) saem dela
fisicamente inclumes. Outros recomeam, porque a tentativa
fsica de suicdio no resolve o problema psicolgico. Mas uns
tantos acabam cometendo mesmo o irreparvel.

A soluo consistiria, entre outras, em instaurar um rito


moderno de passagem, adaptado mentalidade dos jovens de
hoje, mas ainda estamos longe disso. Um dia chegar, talvez,
em que o pensamento moderno se reconciliar com a
mentalidade inicitica, com base no no misterioso nem no
demonaco, mas num conhecimento profundo da psicologia
humana.

/ti6o/oj
c/a a//na e c/a //totfe
Algumas vezes, o emprego de smbolos mais eloqente
do que longos discursos. Eles permitem que as faculdades
inteligentes mais profundas do ser humano sejam mobilizadas
para uma compreenso do tema em questo, no mais ntimo
de seu corao. O smbolo desperta tambm a intuio,
mostrando a outra face das coisas, aquela diante da qual a razo
pura emudece. O ser humano imaginou uma multido de
representaes da morte. Apresentaremos aqui apenas algumas
delas.

O taro dos icongrafos da idade mdia


1 - 0 Arcano Sete, A Carruagem: um Smbolo da Alma

Essa carta do famoso jogo de tar apresenta um rei


coroado, sob um dossel, conduzindo uma carruagem cujas
rdeas esto ausentes. O rei, jovem, porta o cetro do poder
e da autoridade. A carruagem puxada por dois cavalos,
um de cor azul e o outro de cor vermelha, que parecem ir
em direes opostas, mas que fitam o mesmo objetivo. Na
realidade, a carruagem avanaria segundo uma direo
mediana em relao visada pelos dois cavalos. Duas letras,
S e M, esto inscritas na frente da carruagem. A tradio
que acompanha esse jogo de cartas explica que a carruagem
do triunfo de fato um smbolo da alma. Mas qual a origem
dessa representao?

Vejamos, ento, o que diz Plato sobre a alma, em Fedra


Eu dina, da alma, que ela se assemelha a um a fora , com posta
de uma parelha e um cocheiro alados. Nos deuses, cavalos e cocheiro
so igualm ente bons e d e boa raa; nos outros seres, tm valores
desiguais; em ns, o cocheiro dirige a parelha, mas um dos cavalos
ex celen te e de excelente raa, enquanto o outro ju sto o contrrio,
p or si m esm o e p or sua origem . Disso decorre, fatalm ente, que
tarefa penosa e rdua ter as rdeas de ?iossa alma".
Para Plato, o cavalo vicioso faz a alma pender para a trra,
se tiver sido mal adestrado pelo cocheiro, e, assim, a alma tem
de lutar para se conservar na direo do bem. Por conseguinte,
ele distingue na alma trs partes, sendo uma delas o cocheiro e
as outras duas so representadas pelos cavalos. O prim eiro,
direita, correto e bem talhado, tem p escoo alongado, ventas
aquilinas, p los brancos e olhos negros; am ante da honradez, da
tem perana e do pudor, arraigado opinio verdadeira; a palavra
e a razo, sem os golpes, so o que basta para conduzi-lo. O outro
torto, grosseiro, m al talhado, tem corpo pequetio egordo, p escoo
curto, ventas achatadas, p los negros, e olhos azuis e injetados de
sangue; am igo da violncia e da fanfarronice, p elu d o em volta
das orelhas, surdo, e s ob ed ece, com m uito custo, a chicotadas e
aguilhes". Em seguida, o filsofo tece as relaes que os dois
cavalos mantm com o cocheiro; um facilmente submisso, o
outro rebelde ao comando.
Poderamos, ento, crer que o tar reproduz simplesmente
esse smbolo platnico, visto que em algumas cartas os dois
cavalos so branco e preto, e no azul e vermelho. Entretanto,
um texto hindu, o Katha Upanishad, assim se expressa: "Vede a
alma (que vivifica o corpo) com o aquela que est montada na
carruagem , e o corpo com o a carruagem ; vede o entendim ento

com o o condutor, e o espirito com o as rdeas. Os sentidos so os


cavalos e os objetos que se lhes apresentam, as rotas. A alma dotada
do corpo, dos sentidos e do esprito desfruta daquilo que lhe cerca;
assim dizem os sbios. A pessoa desprovida de sabedoria e que no
fa z uso das rdeas tem sentidos indomveis, com o os cavalos ariscos
que puxam a carruagem ... Aquela cuja carruagem dirigida
p or um sbio condutor e cujas rdeas (do esprito) so habilm ente
utilizadas alcana a m eta colocada na extremidade da rota, a
morada superior de Vishnu".
No B hagavad-G ita, uma famosa carruagem tambm
descrita. A que conduz o divino Krishna pelas mos de Arjuna,
o arqueiro. O primeiro representa a conscincia e o segundo,
a vontade. Juntos, eles guiam a carruagem da alma e sua ao
neste mundo. Mas a vontade deve ser submissa e educada pela
conscincia superior.
2 - 0 Arcano Sem Nome
A dcima terceira carta do tar a nica que no tem nome.
Por esse motivo, foi batizada "Arcano Sem Nome". Aquilo que
tem nome pode ser designado na qualidade de fenmeno
palpvel, portador de vida. A morte no faz parte dessa
categoria; ela inapreensvel em sua qualidade de passagem
evanescente. Na compreenso popular, ela se tornou sinnimo
de supresso do ser. Quando a morte sobrevem, entre alguns
grupos africanos, ningum pode pronunciar o nome do morto
por algum tempo.
Na carta do tar, a personagem esqueltica, com a foice,
corta mos, ps e cabeas coroadas, em meio a ramos de ervas.
Ela manifesta, assim, a igualdade de todos diante da morte. O
cho de cor preta, que lembra a fase negra da alquimia. A

cabea representa a conscincia, e as ervas, a vida vegetativa. A


morte, portanto, corta conscincia e vida, livrando-se de
riquezas. A foice, da cor do sangue, despreza o intil para
conservar apenas o que verdadeiramente produtivo. Apenas
as extremidades dos membros so cortadas. A morte tem,
portanto, uma funo purificadora.
Associada ao nmero treze, ela marca (ao menos na Frana)
esse nmero com uma idia de infortnio. Pode-se ver a uma
ligao com o nmero do Cristo e seus apstolos, em torno da
mesa da Ceia, e dentre os quais um deles era um traidor. No
h quartos de nmero treze nos hotis, ter treze convidados
mesa traz desgraa e a sexta-feira 13 um dia nefasto. Na
China, o nmero quatro, reduo teosfica de 13 (1 + 3 ),
constitui um pressgio de morte. A superstio que acompanha
essa cifra a mesma da que envolve a morte. Trata-se, na
verdade, da exacerbao de uma resistncia mudana.

renascimento do ser humano muito alm da morte, no fim dos


tempos. A palavra julgamento refere-se aqui ao primeiro
Julgamento dos Justos, do Apocalipse de So Joo.
Mas houve, na Histria, outros tmulos famosos que foram
abertos, entre os quais o do Cristo e o de C hristian
Rosenkreutz.

3 - 0 Arcano Vinte, O Julgamento - Tmulos Clebres

O tmulo da personagem mtica C. R. C. foi aberto por


buscadores, segundo a lenda, cento e vinte anos aps sua morte.
Nele, eles encontraram o corpo, conservado intacto, do
presumido fundador da Fraternidade dos Rosacruzes. Na
realidade, o tmulo, ele prprio um livro de conhecimento,
encerra tesouros, manuscritos, obras de sabedoria... A abertura
desse tmulo marcava o ressurgimento da Ordem num
determinado pas, depois de um necessrio perodo de sono,
de mais de um sculo. O Fama Fraternitatis, texto que narra
a histria de sua descoberta, sugere que aquele ou aqueles que
conhecem a natureza dessa cripta e dos tesouros que ela encerra
tornam-se capazes de restaurar de novo a Ordem ou a
Fraternidade. E isso, mesmo que, aps centenas de anos, ela
tenha sido reduzida a nada. Essa lenda simblica sugere, na
verdade, que a Ordem Rosacruz, AMORC, identificada por
C.R.C., uma Organizao que sabe ficar sempre jovem e atual.
No obstante permanea tradicional, ela sabe tambm morrer
a fim de melhor se regenerar, como uma fnix que renasce
perpetuamente de suas prprias cinzas.

O tmulo representa o local de um processo de renas


cimento, aps a morte. Nesse arcano, uma personagem,
desenhada de costas, despertada pela trombeta do anjo do
Julgamento. Dois indivduos, um homem e uma mulher,
assistem religiosamente ressurreio. Esse smbolo marca o

O tmulo do Cristo, por sua vez, foi encontrado vazio pelos


discpulos do mestre. Cristo ressuscitou! , exclamaram. O
tmulo estava vazio, seu ocupante s podia mesmo estar vivo.
A morte foi para ele o local de maturao de uma obra que

O verdadeiro sentido do arcano indica o despojamento


extremo (os ossos representados so brancos) que acompanha
uma transformao. Ela marca o fim de um ciclo, para uma nova
primavera. Esse arcano (por ser um princpio invisvel mas ativo)
sugere que o processo morte-transio onipresente em toda
existncia. Assim, o ser humano e as sociedades sofrem contnuas
transformaes que constituem outras tantas mortes.

cobriu dois milnios. Ela sinalizou uma mudana por meio da


qual o homem Jesus foi transformado em um deus por seus
discpulos. Muitas vezes, e o caso da Alscia, calvrios so
colocados sobre um crnio ou sobre o caixo de algum, cujo
esqueleto pode ser visto. Isso faz aluso ao Glgota ou local
do crnio, em Jerusalm, onde a cruz do sacrifcio cristo se
realizou. Trata-se tambm do velho Ado, cujo caixo se
encontra sob a cruz. A cabea freqentemente associada
morte (cf. o Arcano Sem Nome, cortador de cabeas). As
ornamentaes da Renascena usam bastante essa repre
sentao. Em alguns ritos manicos, cabeas da morte esto
presentes e uma colocada na cmara da reflexo. Tudo isso
sugere, na simbologia crist, que o ser humano que morreu
em Ado regenerado no Cristo, graas obra da cruz e a do
tmulo tornado vazio. A prpria cruz pode ser representada
pelo nmero treze, como na Rosacruz Hermtica. Em cada
ponto cardeal, trs elementos esto representados, mostrando
doze princpios. O dcimo terceiro encontra-se no centro da
cruz, no qual se realiza o ato sacrificial.

de Languedoc, na Idade Mdia. Uma nova vida, ento, ganha


razes na caverna. Ela pode conduzir terra, como no caso de
um recm-nascido, ou dar acesso vida eterna, rumo ao cu.
Corresponde, portanto, ao local de passagem por excelncia.
Visita o interior da terra e, retificando-o, encontrars a Pedra ,
diz, em suma, a Tbua de Esmeralda. Em cima dessa bblia
dos alquimistas, estava gravada a palavra "vitriol. No no
topo de uma montanha, mas numa gruta, lugar subterrneo,
que se realiza a primeira transmutao, a obra em negro ou
a nigredo do alquimista, associada morte e putrefao.

4 - A Gruta

Existem outros instrumentos utilizados nas cerimnias,


tanto crists como de outras religies, cujo valor simblico
inegvel. A gua, benta ou em outras formas, representa a idia
de purificao da alma. Antigamente, entre os camponeses,
costumava-se colocar um jarro com gua no quarto do morto.
Acreditava-se ento que a alma devia se banhar antes de alar
vo. O fogo tambm estava presente na forma das chamas das
velas, que eram acesas ao lado do caixo. Ele simboliza a
imortalidade do princpio invisvel do ser humano. O incenso
que perfuma os templos e as igrejas, e cujas volutas envolvem
os corpos, representa, neste mundo, a essncia etrea da alma
do morto. Ele se insinua progressivamente em todos os cantos,

Outro smbolo, a gruta, tambm freqentemente associado


idia de morte-renascimento. Plato utilizou o mito da
caverna, em cuja entrada o habitante percebe a luz que vem de
fora. As representaes crists fazem da gruta o local do
nascimento e da morte de Jesus. O prespio do nascimento
uma gruta, o tmulo do Cristo outra. Foi numa gruta que a
Virgem Maria apareceu para Bernadete, em Lourdes, e lhe
confiou sua revelao.
Lugar de trevas, nela que o ser atinge a maturidade. Pode
tambm se tornar um local de iniciao, como entre os ctaros

As civilizaes que precederam os celtas na Europa


reconstituram a gruta atravs dos dlmens. Esses prova
velmente deviam servir como local de iniciao. Representao
da matriz materna, serviam igualmente como campos de
sepultura. Pode-se entrar num dlmen como na morte ou dele
sair rumo ao sol do oeste, para um novo nascimento. Vemos
aqui o quanto a idia da morte inseparvel da idia do
nascimento.

a exemplo do elemento ar ao qual est associado. Enfim, quem


no se lembra do punhado de terra que tradicionalmente era
jogado sobre o caixo, no cemitrio, antes da inumao
definitiva? As flores, que lembram a juventude eterna, a beleza
e o renascimento cclico, tambm fazem parte dos principios
freqentemente utilizados.
Ao contato da morte, tudo se torna smbolo. Tradi
cionalmente, h quatro maneiras de devolver o corpo
natureza, assim como quatro so os princpios que regem nosso
universo: pela terra, na forma da inumao mais ou menos
direta; pelo fogo, atravs da cremao; pela gua, como fazem
os marinheiros e tambm no Oriente, onde os corpos
desmembrados so lanados num rio; e, finalmente, pelo ar,
quando exposto, sem sepultura, ao ataque dos animais de
rapina. Pouco importa o mtodo utilizado, contanto que um
rito sagrado seja realizado.

(9

c/at/w c/a a////a

Somos inclinados a nos apegarmos ao ego e sua


sobrevivncia. No obstante, outras concepes, que podem
ser muito valiosas, foram apresentadas aqui guisa de reflexo.
O universo pode ser imaginado como um grande ser em
devenir, cada componente do qual executa uma funo antes
de morrer definitivamente. Enquanto as partes desaparecem,
o Ser supremo, o propsito, prossegue seu desenvolvimento
esta a posio saducia. Tomemos o ca so de um form igu eiro:
cada formiga executa uma tarefa especfica, quase meca
nicamente. Quer sofra ou no, ao final de sua existncia, a
formiga se retira e desaparece definitivamente como entidade
constituda. Uma vez esgotada a energia que lhe permitiu
desempenhar seu papel, ela morre. Nada de reencarnao, nada
de sobrevivncia, simplesmente uma obra a ser feita enquanto
a criatura est viva, em perfeita harmonia com o plano criador
do formigueiro. Nada impede que seja exatamente assim para
o ser humano, e ponto final. O ego iluso, o sofrimento pouco
importa, a alegria pouco importa, somente a obra viva e criativa
possui algum valor.
Isso bem poderia representar a verdade final do nosso futuro
e da nossa razo de ser (por que no?). No entanto, o ego do
ser humano no se satisfaz com isso. Ele no aceita ser tosomente a engrenagem utilizada por um imenso ser vivo, uma
engrenagem da qual o todo se livra depois que ela cumpriu
sua funo.
A viso acima, para um ser consciente e dotado de livre
arbtrio, exige uma capacidade de abnegao sobre-humana

para ser aceita. A concepo budista de anatman (sem alma)


aproxima-se dessa viso, e o prprio Dalai Lama, embora a
defenda, explica que ela pode levar pessoas no preparadas ao
niilismo.
O que, provavelmente, levou alguns filsofos a considerarem
outras solues, baseadas nos dois fatos abaixo.
1. O ser humano um ser consciente de si mesmo; ele tem
conscincia de sua alegria e de sua dor, e busca sua felicidade.
2. Sua conscincia altamente desenvolvida proporciona-lhe
um poder de discriminao e discernimento, e o livre-arbtrio.
Disso decorre que o fenmeno humano, em sua grande
maioria, dificilmente aceita que um demiurgo ponha no mundo
criaturas para faze-las desaparecer para sempre, sendo que
muitas so chamadas a sofrer. Esse arquiteto seria, ento, uma
espcie de Moloque ou de monstro arbitrrio que se serviria
de suas criaturas, antes de se livrar delas, como a leno de papel
usado. O ser humano no consegue apreender os fundamentos
de uma ao como essa, que o criou na luz, fazendo-o sofrer,
para no fim faze-lo desaparecer atravs de uma morte absurda.
Mesmo que possamos admitir que a coletividade, por sua
evoluo cientfica, tenha se libertado progressivamente da
fatalidade do sofrimento, nem por isso essa dor deixa de ser
inteira para o indivduo, num dado instante de sua histria. A
cincia, a despeito de seu desenvolvimento, nunca triunfar
sobre a morte.
Ento, veio a idia de um desgnio mais vasto reservado ao
ser humano. Ele no est mais na Terra unicamente para

cumprir uma funo quase mecnica, mas tornou-se a


testemunha do Deus criador. Assim, foi concebido como um
ser em devenir. Um ser livre, cujos atos podem ser sancionados
e cuja morte no mais constitui o fim. Sua vida, portanto,
enquadra-se num esquema mais vasto, em consonncia com
as faculdades por ele demonstradas.
Das particularidades de seu ser inteligente, veio a idia de
que a liberdade por ele manifesta presume a possibilidade de
agir segundo o aspecto destruidor da lei universal. Alguns atos
foram concebidos como justos e outros como falsos ou
inarmnicos em vista de uma progresso da Criao, entregue
s tendncias construtivas de sua natureza. A fim de que o ser
humano no ficasse mais sujeito ao seu prprio arbtrio, sua
prpria desordem, veio-lhe a revelao de que seus atos podem
ser julgados por uma Justia Universal que mantm o equilbrio
na Criao; uma harmonia rompida pela ao desordenada,
cega e egosta do ser humano. Se, a despeito de tudo, ele um
produto da natureza, pode igualmente edificar a si mesmo em
acordo ou desacordo com a corrente construtiva geral que
preside ao alamento de sua conscincia e de todo seu ser. Foi
em funo das idias de livre-arbtrio, de justia retribuidora e
de conscincia organizada e abstrata, que germinou a
convico de que esse ser excepcional no pode desaparecer
to simplesmente como uma formiga.
O conceito deatm an, a alma individual dos hindus, emergiu.
Com os conhecimentos adquiridos hoje em matria de
psicologia profunda, essa alma pode ser qualificada de
personalidade-alma ou eu individual. Porque o ser humano
pode declarar eu sou, imagem do eu sou Aquele que do
Deus bblico, presumiu-se que um ncleo de seu ser pode,

aps purificao, participar na imortalidade divina. Melhor


ainda, esse eu sou humano s pode ser um produto do Eu
Sou divino e, por conseguinte, sua verdadeira identidade foi
concebida como divina. Ento, uma centelha, um fogo sagrado
depositado no corao do ser humano pode continuar aceso, a
despeito do desaparecimento do corpo que a continha.

(Soncuo
H um vivo p on to d e interrogao ante a vida em geral, mas
igualm ente em fa c e de todo ensinamento. Nunca aceite, a priori,
um conhecim ento; ponha-o em prtica, experimente, trabalhe com
ele e tire as concluses necessrias ao seu progresso. .. "
Essa reflexo Rosacruz pode se tornar uma fonte de
meditao para cada um.
O tema da morte geralmente objeto de excluso nas mentes
racionais, que consideram que nunca poderemos saber o que
ela representa realmente. Ningum nunca voltou para nos
contar o que viu l em cima (ou l em baixo), dizem, com ar
de sabedoria douta. No entanto, a experincia prova que uma
verdadeira pesquisa pode fornecer alguns indcios. As
experincias de morte iminente ensinam sobre os estados
vizinhos morte, o acompanhamento ajuda a compreender
aquilo por que passam os agonizantes. A possibilidade de
contato ou de influncia entre os vivos e os mortos sempre
evocada. Contudo, nada disso nos ensina
coisa alguma sobre a

realidade da experincia derradeira. E como se ns opuss


semos nossa possibilidade de conhecer as coisas e as leis do
nosso mundo ao desconhecido que a morte.
Estamos ns to seguros de poder conhecer tudo neste
mundo? Ns nos interrogamos sobre a natureza da conscincia
depois da morte, mas que sabemos sobre o estado de
conscincia de um simples animal, sem falar da conscincia do
nosso prximo? Ns conseguimos determinar o tamanho de

um co, suas necessidades, seus humores, seus modos de


reproduo e comunicao... mas isto no nos informa nada
sobre a intimidade de seus modos de conscientizao. Tudo
isso, portanto, no passa de conhecimentos externos. No
entanto, saciamos nossa ignorncia contentando-nos com esses
indcios externos. A maior parte dos nossos conhecimentos
neste mundo exatamente assim. Moldamos matematicamente
as leis naturais (pelo menos aquilo que acreditamos ter
compreendido), desenvolvemos tecnologias, mas as coisas em
si continuam desconhecidas. Ignoramos, por exemplo, qual
a natureza intrnseca do tomo, exceto que ele corresponde a
um conjunto de partculas cada vez menores, como num jogo
de bonecas russas. Usamos e calculamos os campos magnticos,
mesmo ignorando sua verdadeira natureza. Acaso sabemos ao
menos o que uma vibrao em sua natureza profunda? Um
fton considerado ora uma onda ora um corpsculo. Uma
onda uma vibrao. Que que vibra, ento? Que que d a
polaridade positiva ou negativa ao eltron ou ao m? Nossa
cincia ainda no sabe. Mesmo assim, ela explora suas
propriedades em nossos eletrodomsticos.
Se somos to pouco informados acerca de nosso mundo,
por que ficarmos chocados com a ignorncia sobre a morte?
No fim das contas, tambm em relao a ela, temos os indcios
j citados. Tentar empreender pesquisas sobre ela possui
tambm interesse prtico. Poderia ela, talvez, nos dar as
respostas para todas as outras perguntas? A longo termo, para
nossa surpresa, percebemos que, com a prtica da meditao,
o estado da conscincia se transforma progressivamente.
Finalmente, ao fim de alguns meses ou anos, a necessidade de
obter um conhecimento objetivo sobre ela adquire cada vez
menos importncia, para dar lugar a um estado de paz. A

verdade que a reflexo sobre o tema desloca progressivamente


os plos de interesse principais, do ter para o ser. Tudo se passa
como se, paradoxalmente, ela tornasse a vida mais bela, a
exemplo daquilo que vivenciam os que passam por uma EMI.
A diferena est em que, para eles, a transformao se produz
em alguns minutos.
Se um conhecimento produz tantos resultados prticos,
porque possui um interesse real, num sentido pragmtico. Foi
exatamente isso, alis, que C. G. Jung pressentiu: O ser humano
d eve pod er ter a prova de q u efez todo o possvel para form a r uma
con cep o ou uma im agem da vida aps a morte, ainda que isto
seja uma declarao de sua im potncia. Quem j no sofreu uma
perda? Pois a instncia interrogativa q u efa la n ele uma herana
m uito longnqua da humanidade, um arqutipo rico de vida
secreta, que quer se unir nossa para aperfeio-la. A razo nos
im pe lim ites excessivamente estreitos e nos convida a viver apenas
o con hecid o (ainda que com m uitas restries) e numa esfera
conhecida, com o se conhecssem os a verdadeira amplitude da vida.
Se apenas com muita dificuldade conseguimos compreender
a morte intelectualmente, podemos tentar nos familiarizar com
ela, para descortinarmos intuitivamente sua funo. Mas, para
isso preciso ousar cerc-la em todas as suas manifestaes
mais ou menos discretas. A imortalidade da alma representa
um fenmeno e as condies que o enquadram j foram
definidas. O obstculo sua compreenso talvez venha de
nosso modo de abord-lo; sua natureza incompreensvel, se
no for acompanhado da ativao da inteligncia do corao e
de certa dose de poesia.
No creio que o alm possa ser descrito em termos do nosso
mundo. Tudo o que dizem as lendas, as tradies, as religies

e os filsofos so apenas smbolos da experincia da alma.


Permitem unicamente pressentir a verdade, mas esta est
sempre alhures. Podemos sonhar com a preservao do ego,
da autoconscincia e de quaisquer outras coisas que possam
ser conservadas; n ossos desejos e, talvez a razo, sigam nessa
direo. A realidade, porm, provavelmente mais sutil.
Quando um homem ou mulher morre, a experincia de sua
vida conservada em algum recndito da memria universal
(um dia chegar em que a prpria cincia provar a existncia
desta memria). A imagem do disquete que permite conservar
o trabalho feito no computador simboliza bem essa idia da
conservao dos feitos humanos. Entretanto, a identidade
conservada de modo impessoal, at ser utilizada na terra numa
futura encarnao.
O ser humano, desde sempre, num recndito de sua
conscincia, est em contato com o infinito. O passado, o
presente e at o futuro no tm segredos para ele. E bem nesse
nvel da conscincia que cada um encontra seus ancestrais;
eles vivem em ns. O perodo de luto permite a cada um
compreender e realizar esse fato. Para muitos, passar pelo luto
o mesmo que esquecer, quando, na verdade, trata-se de
integrar simbolicamente em si a alma do antepassado. Ento,
o vivo pode ser inspirado por aqueles com quem est em
harmonia. Isso, alis, no significa forosamente um contato
entre duas pessoas, mas uma harmonizao momentnea (e
talvez involuntria) entre duas vibraes simpticas. Os grandes
ancestrais correspondem aos mestres das tradies esotricas;
e o Mestre, como se costuma dizer, s se expressa quando o
discpulo se eleva at ele.

A morte corresponde a uma fuso naquilo que os


Rosacruzes denominam O Csmico. Quantos sbios j
explicaram que, nessa fuso, o ser humano perde momen
taneamente a conscincia de sua identidade, como as cores
perdem a sua na luz branca do sol. A identidade continua l,
adormecida, at que uma nova vida leve-a a se manifestar. Com
a morte, o ser humano funde-se na luz, unindo-se ao amor
incondicional, perfeito, infinito, e ... nele se perde. Da mesma
forma como ele se perde no sono. Mas isso no dura, pois nesse
plano o tempo abolido. Parte do medo da morte pode,
portanto, ser comparado ao medo daquele tipo de pessoa que
se angustia perante o sono, porque no quer perder o controle
nem abandonar sua conscincia de viglia. Para aceitar o sono,
a pessoa precisa primeiro ter confiana no fato de que, na
manh seguinte, ela vai acordar, e, em seguida, deixar-se levar.
a mesma coisa em relao morte. Confiana a palavrachave.
Assim, entre uma morte e um nascimento, h uma
continuidade de conscincia. No intervalo, a alma passa pela
purificao que se segue ao seu julgamento ou pesagem
simblica. Com toda certeza, isso que acontece, seno, para
que serviria morrer, no plano da alma?
No curso dos tempos, outras verses mais materialistas
foram inventadas. Em sua angstia, o ser humano no queria
considerar outro modo de existncia, bem diferente do que ele
conhecia. O espiritismo representa uma tentativa moderna,
muito elaborada, nesse sentido. Para muitas pessoas, difcil
ficar numa abstrao que no as satisfaz. Os grandes
fundadores de religio souberam levar em conta esse fator,
sugerindo o conhecimento e, ao mesmo tempo, respondendo

s aspiraes dos povos. Mas a humanidade at hoje no


compreendeu que a realidade muito mais bela que as fices
inventadas pelos seres humanos. Os experimentadores de EMI
falam da luz e da unidade que encontraram nela. Basta ouvir
os testemunhos que eles do ao retornarem.
Uma histria sufi usa o smbolo da borboleta da noite, que
gosta tanto da luz da vela que tenta se aproximar dela, at que
acaba queimando as asas e, por fim, morrendo. A alma como
essa borboleta, com uma diferena: sua prpria natureza a
luz. Assim, longe de se aniquilar em seu contato, ela se encontra
consigo mesma, em sua natureza suprema e verdadeira. Longe
de morrer para sempre, ela se pe a viver sua vida prpria.
Longe de se deslumbrar na pequenez de um ego ilusrio, ela
abre suas asas imensas e voa rumo eternidade.
No continente norte-americano, existe uma raa de
borboletas, as monarcas, que voam, a cada dois anos, do Canad
at o Mxico. A migrao, uma das mais extraordinrias de
todas na Terra, abrange vrias geraes desses insetos. Aos
milhes, elas levantam vo para uma viagem de vrios milhares
de quilmetros, cujo circuito conhecido dos observadores.
Em sua chegada ao Mxico, elas so objeto de grandes festejos,
pois os mexicanos acreditam que essas borboletas so as almas
de seus ancestrais voltando ao pas.
Observando as manifestaes de sofrimento, destruio e
morte neste mundo, comparveis s nossas atividades e
incessante competio, ficamos tentados a acreditar que
vivemos no planeta da agitao, ao largo dos verdadeiros valores
da vida. Podemos viver e agir dentro do mundo, mas a meta de
todas as atividades e ser sempre nos fazer tomar conscincia

do incrvel esplendor das dimenses espirituais. So desejveis


essas esferas onde no reina nem sofrimento nem morte, onde
todas as coisas correm de sua fonte numa harm onia
intraduzvel. Estamos na Terra para melhor aspirar ao cu.
Trata-se de uma escolha voluntria. A escolha da pessoa que
compreende que este mundo apenas "vaidade e perseguio
de ven to.
A busca do nico e o esforo para guiar outras pessoas rumo
a Ele so louvveis e provavelmente louvadas... em algum outro
lugar. Neste mundo aqui, nada estvel. To logo a pessoa
acha que se apossou de uma situao, esta lhe escapa. Perdese um amigo, sofre-se uma provao terrvel. Num dado
momento, as pessoas se questionam sobre o sentido de suas
dificuldades e depois esquecem, at que a aspereza do mundo
as apanhe de novo. De tempos em tempos, uma guerra
disparada, elevando o nvel do so frim en to humano. No
obstante, muitos vivem s cegas nesta terra. Os mais lcidos,
porm, sabem que no h muito o que esperar. Somente uma
atitude plena de espiritualidade e de gratido para com o
Criador santifica a passagem neste mundo.
A vida s pode ser verdadeiramente feliz e bela se o ser
humano situ-la no corao de um desgnio mais vasto que ele
mesmo. Seno, ela corresponde to-somente a uma busca de
vs quimeras. A felicidade no pode ser puramente um produto
da matria. Ela pode vir somente da contemplao do espiritual,
inclusive do espiritual contido - por que no? - na matria. A
ao sem a contemplao no nada.

S 6 / w < / ia / a
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Manses da A lma - H. Spencer Lewis, F.R.C., Ph.D.
M il A nos Passados-//. Spencer Lewis, F.R.C., Ph.D.
M inistrio do Homem- esprito, O - Louis-Claude de Saint-Martin
M inutos de Meditao e Pa7. - Paulo de Lacerda, Ph. D.
M isticismo - Evelyn Underhill
Momentos de Reflexo Charles Vega Parucfyer, F.R.C.
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Ontologia dos Rosacruzes, A - Serge Toussaint, F.R.C.
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Franz Hartmann, F.R.C.

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V ida M stica de J esus, A - H . Spencer Lewis,


V ida S empiterna - Marie Corelli

V oc M udou? Charles

Vega Parud^er, F.R.C.

V s C onfio, A Revisada por Sri Ramatherio

Zanoni -

Edward BulwerLytton

F.R.C., Ph.D.

R eiao de C D s
A scenso C elestial - Locuo: Tnio Luna
ureo A lvorecerTextos: Antonio Roberto SoaresExperimento, Harmonizao Csmica:

Zaneli Ramos Locuo: Tnio Luna


C onscincia C smica - Ralph M. LewisLocuo: Tnio Luna
Em Paz Profunda Textos: Joo Polovanic\ Momentos de Harmonizao, Exerccios:
Zaneli RamosLocuo: Oliveira Netto
Enlevo Espritu ai. Volume 1 e 2 Maestro: Paulo S. G. T. Pereira Coordenao Geral:
Antonio Thomazini
Eterna C ano da V ida - Regente em A ve Maris Stella": Bruno Spadoni. Regente nas
demais canes: Padre Jos PenaIva.
Eu T e C ompreendo Textos: Antonio Roberto SoaresLocuo: Tnio Luna
Histria do S ecreto Eterno - Texto e Msica: Suprema Grande Loja, AMORC - Locuo
Tnio Luna
Illuminati - Produo e execuo: Plnio de Oliveira
Jerusalm -P lnio Oliveira
L egado do Saber, OTextos: Max Guilmot Adapto: Euclides Bordignon Locuo e
montagem: Oliveira Netto
Momentos de Reflexo - Textos: Charles Vega Parucker-Locuo: Tnio Luna
M undo C riana - Produo e execuo: Plnio de Oliveira
Preciso df. ti - Texto: Euclides Bordignon Locuo: Paulo Roberto de Oliveira e Nlson
Martins
Profeta, O Volume 1 e 2 Autor: Gibran Khalil Gibran Traduo: Mansour Challita
Locuo: Tnio Luna e Maria Angela Molteni
Reflexes e Relaxamento - Volume 1 e2 Texto: Tnio Luna - Locuo: Tnio Luna
S enhor - Textos: Jamil Snege - Locuo: Tnio Luna e Maria Angela Molteni
Sinfonia Mstica Rosacruz Para o T ercfjro MilnioProduo e execuo: Plnio de Oliveira
S ons V oclicos - Gravados no interior da Cmara do rei, da Pirmide de Quops
V os da A lma - Produo e execuo: Plnio de Oliveira

Propsito da Ordem Rosacruz


A Ordem Rosacruz, A M O RC uma organizao interna
cional, de carter cultural, fraternal, no-sectrio e nodogmtico, de homens e mulheres dedicados ao estudo e
aplicao prtica das leis naturais que regem o universo e a
vida.
Seu objetivo promover a evoluo da humanidade atravs
do desenvolvimento das potencialidades de cada indivduo
e propiciar uma vida harmoniosa com sade, felicidade e
paz.
A Ordem Rosacruz oferece um sistema eficaz e comprovado
de instruo e orientao para o autoconhecim ento e
compreenso dos processos que determinam a mais alta
realizao hum ana. Essa profunda e prtica sabedoria,
cuidadosamente preservada e desenvolvida pelas Escolas
de Mistrios esotricos, est disposio de toda pessoa
sincera, de mente aberta e motivao positiva e construtiva.
Para mais informaes, os interessados podem solicitar c
informativo gratuito O Domnio da Vida, escrevendo para:
Ordem Rosacruz, AMORC
Grande Loja da Jurisdio de Lngua Portuguesa
Rua Nicargua, 2620 - Bacacheri 82515-260
Curitiba - P rBrasil
Caixa Postal 4450-82501-970
Fone: (0xx41) 351-3000
Fax: (0xx41) 351-3065 e 351-3020
Site: www.amorc.org.br

M isso Rosacruz

A Ordem Rosacruz, AMORC uma


Organizao Internacional de carter
mstico-filosfico, que tem por MIS SAO
despertar o potencial interior do ser
humano, auxiliando-o em
seu desenvolvimento, em esprito de
fraternidade, respeitando a liberdade
individual, dentro da Tradio e
da Cultura Rosacruz.

morte constitui, tanto no plano individual

"

um

como no social, um dos principais eventos da


vida. Em todas as crenas, pocas e lugares, ela
p o rt a l cu ja

p a ssa g em

su scita

p e rg u n ta s

fundamentais: que h depois da morte? Que acontece


com a alma e a personalidade? Seria a morte apenas uma
espcie de sono? Que existe no intervalo'' entre duas
vidas? E possvel preparar-se para m orrer ou ajudar
algum a faze-lo? C om o combater o medo da morte? E
possvel contatar os mortos? Se a reencarnao existe,
qual parte de ns reencarna?
Este livro , s in g u la rm e n te c o m p le to , fr u to de
p e s q u is a s e fe tu a d a s na U n i v e r s i d a d e R o s a c ru z
Internacional. um a sntese no apenas cultural e
sociolgica, mas tam b m filosfica e espiritual, de
reflexes sobre a morte e seus mistrios. Ele nos incita,
pela riqueza das anlises apresentadas, compreenso
da alma e do destino humano.

\ s DIFFUSION
VROSICRUCIENNE

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